REFLEXÕES SOBRE O DISCURSO POLÍTICO BRASILEIRO

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  • 7/22/2019 REFLEXES SOBRE O DISCURSO POLTICO BRASILEIRO

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    UNESP UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTAJLIO DE MESQUITA FILHO

    FACULDADE DE CINCIAS E LETRAS DE ARARAQUARA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LINGSTICA E LNGUA PORTUGUESA

    CARLOS PIOVEZANI

    VERBO, CORPO E VOZ:

    REFLEXES SOBRE O DISCURSO POLTICO BRASILEIRO

    CONTEMPORNEO

    2007

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    UNESP UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTAJLIO DE MESQUITA FILHO

    FACULDADE DE CINCIAS E LETRAS DE ARARAQUARA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LINGSTICA E LNGUA PORTUGUESA

    CARLOS PIOVEZANI

    VERBO, CORPO E VOZ:

    REFLEXES SOBRE O DISCURSO POLTICO BRASILEIRO CONTEMPORNEO

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em

    Lingstica e Lngua Portuguesa da Universidade Estadual

    Paulista Jlio de Mesquita Filho, como requisito para a

    obteno do ttulo de Doutor em Lingstica e Lngua

    Portuguesa.

    Orientadora: Profa. Dra. Maria do Rosrio Valencise

    Gregolin

    ARARAQUARA2007

    1

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    BANCA EXAMINADORA

    Orientadora: Profa. Dra. Maria do Rosrio Valencise Gregolin

    Prof. Dr. Jos Luiz Fiorin

    Profa. Dra. Maria Jos Faria Rodrigues Coracini

    Profa. Dra. Renata Coelho Marchezan

    Profa. Dra. Vanice Maria Oliveira Sargentini

    MEMBROS SUPLENTES

    Prof. Dr. Cleudemar Alves Fernandes

    Prof. Dr. Pedro Navarro Barbosa

    Profa. Dra. Eva Ucy Soto

    2

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    CARLOS PIOVEZANI

    VERBO, CORPO E VOZ:

    REFLEXES SOBRE O DISCURSO POLTICO BRASILEIRO CONTEMPORNEO

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em

    Lingstica e Lngua Portuguesa da Universidade Estadual

    Paulista Jlio de Mesquita Filho, como requisito para a

    obteno do ttulo de Doutor em Lingstica e Lngua

    Portuguesa.

    Orientadora: Profa. Dra. Maria do Rosrio Valencise

    Gregolin

    Data de Aprovao

    ________/_______________________/__________.

    Orientadora: Profa. Dra. Maria do Rosrio Valencise Gregolin

    Prof. Dr. Jos Luiz Fiorin

    Profa. Dra. Maria Jos Faria Rodrigues Coracini

    Profa. Dra. Renata Coelho Marchezan

    Profa. Dra. Vanice Maria Oliveira Sargentini

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    DEDICATRIA

    Aos meus Pais,

    Meus Primeiros Mestres da Linguagem,com quem aprendi, por atos e palavras, a conjugar os verbos dever e poder.Por terem me ensinado, com rigor e doura, alguns dos limites do mundoe as tantas possibilidades da vida.

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    AGRADECIMENTOS

    minha Orientadora, Professora Maria do Rosrio Valencise Gregolin, que, como poucos,conjuga leveza e profundidade, por me guiar segura e docemente neste percurso, por meoferecer delicada e cuidadosamente tantas oportunidades. Por ter sugerido rumos, sem nuncaimpor uma nica direo, por estar sempre aberta ao dilogo, sem jamais tolher minhasintuies. Enfim, por nunca ter cedido ao dogmatismo.Ao meu Co-orientador estrangeiro, Prof. Jean-Jacques Courtine, pela imensa generosidade ehonestidade intelectual, pela constante interlocuo e pela amizade sincera. Por nuncapretender que eu fosse um seu discpulo e por me instigar na busca pela criatividade dopensamento. Em sua voz, no raras vezes, ouvi recitaes de seu saudoso amigo, Michel deCerteau: Penser, cest passer, Carlos.

    s Professoras Maria das Dores C. Vigrio Marchi, minha orientadora na IniciaoCientfica, no ento CEUD/UFMS e na atual UFGD, e Renata F. Coelho Marchezan,minha orientadora no Mestrado, na UNESP/Araraquara, pela confiana e pelo incentivo,quando dos meus primeiros passos na pesquisa lingstica. Pelas primeiras e inesquecveisorientaes.Aos Professores do Programa de Ps-Graduao em Lingstica e Lngua Portuguesa daFCL/UNESP-Araraquara, sobretudo queles com quem tive a grata satisfao de convivermais proximamente e com quem tanto aprendi dentro e fora das salas de aula: ao ProfessorArnaldo Cortina, Professora Letcia Marcondes Rezende, ao Professor Luiz CarlosCagliari, Professora Marymarcia Guedes, Professora Rosane Berlinck e ProfessoraSlvia Dinucci Fernandes.

    Aos Professores que contriburam decisiva e intensamente no apenas para a escrita destatese, mas, principalmente, para a minha formao como professor e pesquisador, durante meu5

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    estgio de Doutorado no exterior: aos Professores Catherine Kerbrat-Orecchioni, ChristianDelporte, Christian Puech, Claude Hagge, Dominique Maingueneau, Francine Mazire,Jacques Guilhaumou, Jean Hebrard, Marie-Anne Paveau, Smir Badir, Sonia BrancaRosoff, Sophie Moirand e Sylvain Auroux.Aos Professores Jos Luiz Fiorin, Maria Jos Coracini, Renata Marchezan, Srio Possenti eVanice Sargentini, pelo generoso incentivo, pelos preciosos comentrios e pelas valiosascrticas e sugestes feitas no Exame de qualificao e na Defesa da Tese.Aos funcionrios da FCL/UNESP-Araraquara, particularmente aos da Seo de Ps-Graduao e da Biblioteca, pela prontido de socorros indispensveis das mais diversasordens.Aos companheiros de quatro geraes do GEADA, especialmente ao Adrian, Amanda, Bruna, Cludia, Claudiana, ao Diogo, ao Euclsio, ao Fbio, Ftima, Flvia, Ismara, ao Israel, ao Joo, Ktia, Lurdinha, Marisa, Mara, ao Marcos Lcio, Mnica, Ndea, Nilde, ao Nilton, ao Paulinho, ao Paulo Barbosa, ao Pedro, ReginaBaracuhy, Regina Momesso, ao Renan, ao Roberto, Roselene, Socorro e Ucy, pelasvicissitudes, que s foram superadas, e pelas conquistas, que s foram obtidas, por estarmossempre juntos.Ao Henrique, Maysa e Bete, por fazerem de cada encontro um descanso na loucura.Pela amizade sincera, pela cumplicidade constante e pelo apoio permanente que tantoextrapolam os limites da tese e que tocam as coisas do corao. Por me contarem os encantosdo mundo, da floresta e de Rio Branco, que ainda hei de conhecer na mais perfeitacompanhia. Cida, Leandra, Mara Rbia, Marlene, ao Micael, Rita, Sirlene e Tasa, portrazerem sorrisos e tranqilidade a cada visita e por provarem que afeto e carinho nadadevem cronologia.

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    Ao Cleudemar e ao Tony, pelas calorosas acolhidas em Uberlndia, pelos queijos e docesmineiros. Pelas discusses tericas e pelas tantas sugestes bibliogrficas. famlia Sargentini, ao Csar, Vanice, ao Henrique e ao Andr, pela alegria e levezacontagiantes e pelo apoio nas questes fundamentais.Ao Pedro Navarro, ao Carlos Rubens de Souza Costa, ao Marcio Alexandre Cruz e Luzmara Curcino, pela leitura atenta e rigorosa das primeiras verses deste trabalho.Ao Jean Stringheta, pelas primeiras dicas sobre os elementos fsicos da voz. CAPES, pela concesso das Bolsas no Brasil e na Frana.s minhas irms, Marlene e Janaina, por sempre me trazerem to facilmente o sorriso napresena ou na lembrana.E, especialmente, Luzmara, pela beleza e poesia de uma vida a dois.

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    RESUMO

    Com vistas a refletir sobre o discurso poltico-eleitoral brasileiro contemporneo,

    fundamentamo-nos nos postulados da Anlise do discurso, derivada dos trabalhos do Grupo

    em torno de Michel Pcheux e de contribuies da obra de Michel Foucault, e concebemos os

    seguintes pressupostos que subsidiaro as consideraes a serem aqui desenvolvidas: a)

    embora o atual discurso poltico eleitoral televisivo no seja manifesto somente por meio de

    pronunciamentos do candidato, trata-se de um tipo de fala pblica; b) falar em pblico uma

    prtica histrica e, por essa razo, apresenta algumas continuidades relativas e diversas

    metamorfoses, ao longo da histria; c) o discurso poltico possui certas propriedades que o

    distinguem de outros discursos e que o caracterizam; d) a emergncia e a utilizao de

    tecnologias da linguagem, neste caso, a televiso, em conjunto com transformaes histricas,

    sociais e culturais, promoveram vrias mudanas no discurso poltico; e) esse discurso

    apresenta novas formas semiolgicas, formula-se em uma ampla gama de gneros discursivos

    e explora as possibilidades abertas por sua circulao em um medium audiovisual; e f) uma

    abordagem discursiva que se detenha estritamente na linguagem verbal no ser suficiente

    para interpretar a complexidade do discurso poltico contemporneo. A concepo desses

    pressupostos conduziu-nos a avanar a hiptese de que muitos trabalhos em AD sobre o atual

    discurso poltico ainda no consideraram suficientemente suas novas formas, quando de sua

    transmisso pela televiso, nem tampouco exploraram satisfatoriamente sua dimenso

    histrica. Por essa razo, tentamos avaliar o alcance das anlises j realizadas em AD sobre o

    discurso poltico e sugerir algumas possibilidades tericas e analticas para o desenvolvimento

    da capacidade heurstica da Anlise do discurso, em face das novas configuraes do discurso

    poltico-eleitoral brasileiro. Para tanto, seguindo a proposta de uma Semiologia histrica,

    concebida por Jean-Jacques Courtine, empreendemos a conjuno entre a perspectiva

    discursiva e alguns aportes da Histria cultural, da Antropologia histrica e da Semiologia.Abordamos o discurso poltico televisivo contemporneo, portanto, sob a gide da AD e

    inspirados pela Semiologia histrica e pelas disciplinas com as quais ela dialoga. Mediante

    uma rpida anlise, que focaliza a produo de efeitos de verdade no Horrio Gratuito de

    Propaganda Eleitoral do pleito de 2002 Presidncia da Repblica, procuramos averiguar a

    viabilidade e avaliar a produtividade desse enfoque.

    PALAVRAS-CHAVE: Discurso poltico; Anlise do discurso; Fala pblica; Semiologiahistrica; Corpo; Voz; Tecnologias de linguagem.

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    ABSTRACT

    Based on the Discourse Analysis (AD) propositions, more closely on the works of Michel

    Pcheuxs group and the instruments of Michel Foucaults thoughts, this research attempts to

    reflect about the contemporary Brazilian voting political discourse. The assumptions that will

    support our considerations are the following: a) the current TV voting political discourse is

    not expressed only by the candidate speech, but it also can be considered one kind of public

    speech itself; b) making a speech is a historical perform, and therefore, in the course of

    history it presents relating continuities and several metamorphoses; c) the political discourse

    presents some attributes that make it different from other discourses and distinguish it from

    them; d) the urgency and the use of some language tools, in this case, the television,

    altogether with the cultural, social, political and historical transformations brought a number

    of changes to the contemporary political discourse; e) the present-day political discourse that

    shows new semiological forms states itself in an large variety of discursive genres, and it

    explores ostensible possibilities because of its circulation in the audiovisual media, as the

    television itself; f) a discursive approach that stands still rigorously upon the verbal language

    would not be enough to account for the complexity of the contemporary political discourse.

    All these assumptions lead us to raise the hypothesis that most studies on Discourse Analysis

    about the contemporary political discourse have not considered these new forms, not only the

    television broadcasting, and they have not explored its historical dimension either. For this

    reason, and considering the new patterns of Brazilian voting political discourse, we try to

    evaluate some analyses already done in this field and to suggest some analytical and

    theoretical possibilities to the development of the AD heuristic competence. In order to do so,

    we adopt Jean-Jacques Courtines proposal concerning the Historical Semiology in an attempt

    to conjoin the discursive perspective and some Cultural History, Historical Anthropology, and

    Semiology notions. As a result, we approach the contemporary political discourse ontelevision under the account of the AD inspired not only by the Historical Semiology, but also

    by the subjects that extend ideas among them. Through a brief analytical study we try to

    validate our research focusing on the 2002 broadcasting publicity for presidential campaign

    effects of truth. We also aim to validate its viability and evaluate the efficiency of this

    perspective.

    KEY WORDS: Political discourse; Discourse Analysis; Public speech; Historical Semiology;Body; Voice; Language tools.

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    SUMRIO

    INTRODUO......................................................................................................... 11

    CAPTULO I

    FRAGMENTOS PARA UMA GENEALOGIA DA FALA PBLICA

    1.1 Antes do comeo, algumas precises................................................................ 21

    1.2 Transformaes da fala pblica na Histria

    1.2.1 Falar em pblico na Antigidade...................................................................... 24

    1.2.2 Falar em pblico na Idade Mdia...................................................................... 33

    1.2.3 Falar em pblico na Idade Moderna.................................................................. 44

    1.3 Gneses da fala pblica no Brasil

    1.3.1 Falar em pblico nos primeiros tempos............................................................ 56

    1.3.2 Falar em pblico no final do sculo XIX.......................................................... 70

    CAPTULO II

    SUMRIA CARACTERIZAO DO DISCURSO POLTICO

    2.1 Especulaes sobre o "discurso poltico": entre o nome e o mito................. 96

    2.1.1 Os quatro elementos: mitologia da legitimidade.............................................. 97

    2.1.2 Do ser pelo nome: extratos de uma pequena ontologia.................................... 104

    CAPTULO IIINOVAS FORMAS DO DISCURSO POLTICO:

    METAMORFOSES DISCURSIVAS E ATUALIZAES DISCIPLINARES

    3.1 Alguns descompassos entre a vida e a cincia.......................................... 119

    3.2 Contribuies transdisciplinares Anlise do Discurso:

    Por uma semiologia histrica do discurso poltico contemporneo?.................... 133

    CAPTULO IV

    DAESCUTA E DO OLHAR. A ESPETACULARIZAO DA POLTICA:SONS E IMAGENS NO DISCURSO POLTICO CONTEMPORNEO

    4.1 Dispositivos de fala pblica: o palanque, o rdio e a tv.................................. 168

    4.2 Verbo, corpo e voz na televiso:

    Efeitos de verdade nas novas do discurso poltico................................................. 208

    CONSIDERAES FINAIS...................................................................................... 260

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS........................................................................ 270

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    INTRODUO

    No pode haver ausncia de boca nas palavras.Manoel de Barros

    Comecemos pela aluso a uma histria banal e a um episdio excntrico e quase

    hertico.

    Depois de ter sido abandonada e trocada por outra, uma mulher sozinha, na baguna de

    uma vida, representada pela desordem do seu quarto, fala com seu j ex-amante, mas ainda

    amado:Antes, a gente se via. A gente podia perder a cabea, esquecer as promessas, arriscar

    o impossvel, convencer quem a gente adora, se abraando, se agarrando. Um olhar podia

    mudar tudo. Mas, com este aparelho, o que acabou, acabou... Estamos, pois, diante da

    angstia de uma perda e de uma falta. Mas h ainda um "fio" de esperana: no rompimento, em

    face da ausncia do corpo, existe a presena da voz. No aparelho, o gro da voz1 um sopro

    de vida e uma ameaa de morte, um pouco de carne e um resto de corpo: Agora, eu tenho ar

    porque voc est falando comigo. [...] Eu estou com o fio em volta do meu pescoo. Eu estou

    com a sua voz em volta do meu pescoo. Esta histria acaba com a trgica conjuno entre a

    cesso da voz, o limite do amor e a chegada do fim. Antes de falar com ele, ela j tinha tentadoo suicdio. E na iminncia do fechamento das cortinas, um outro e ltimo detalhe cenogrfico:

    O receptor cai no cho...

    No final dos anos 20, uma suposta experincia vivida por Jean Cocteau foi

    suficientemente forte para que ele nela se inspirasse e, a partir dela, escrevesse a pea La voix

    humaine. Essa experincia teria sido uma conversa ao telefone2. Uma vez mais na Histria,

    tratava-se de uma histria que nos faz vislumbrar o complexo encontro entre prticas,

    representaes e tecnologias.Nove sculos antes desse encontro, um horrvel escndalo pasmaria os nobres de

    Veneza: s refeies, uma princesa grega, vinda do Imprio Bizantino e tornada dogaresa por

    haver esposado um fidalgo genovs, levava os alimentos boca, valendo-se de um excntrico

    instrumento que ela trouxera consigo: um pequeno garfo de ouro com dois dentes3. O espanto

    da nobreza veneziana, de ento, e o estranhamento contemporneo no se equivalem na

    intensidade, nem compartilham dos motivos. Talvez, cause-nos uma relativa surpresa o

    1 Cf. Barthes ([1972] 1984).2Cf. Cocteau ([1930] 2002).3 Cabans, A.Moeurs intimes du temps pass. (1910); citado por Norbert Elias ([1939] 1994, p. 81-82).

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    material (de ouro) e o aspecto do utenslio (dois dentes); j os venezianos, do sculo XI, visto

    que o ouro era-lhes comum nos objetos da corte, espantaram-se sobremaneira no com o metal

    precioso, mas com a prpria existncia do instrumento. Manifestao de um excesso de

    refinamento, a novidade, sob a forma de talher e de seu manuseio extravagante, foi alvo de

    severas repreenses eclesisticas, que invocavam a ira divina: So Boaventura no titubeou em

    aviltar a dogaresa, quando ela foi acometida de uma grave doena que provocaria sua morte,

    afirmando se tratar de um castigo que Deus lhe infligira. Somente depois de transcorridos cinco

    sculos, que os hbitos, as idias e as crenas se transformariam o bastante para que o

    emprego do garfo fosse algo difundido entre a aristocracia: no sculo XVI, pelo menos a

    metade da comida caa antes de chegar boca; e, no XVII, o garfo era ainda artigo de luxo,

    comumente feito de prata ou ouro, embora j houvesse algumas manifestaes de desagrado,diante do uso das mos nas refeies.

    Da emergncia de um talher ao desenvolvimento de ondas sonoras eltricas, do bom

    uso de instrumentos e maneiras da etiqueta no Antigo Regime reproduo e transmisso da

    voz humana distncia, no final do sculo XIX, muitas mudanas aconteceram e, depois delas,

    tantas outras ainda estariam por vir. Os desenvolvimentos de tecnologias materiais, no interior

    de um determinado funcionamento das instituies sociais e histricas4, apontam para a

    possibilidade, para o processo e para o produto de um longo percurso de recrudescimento dacivilit e da individualizao. Quanto difuso do garfo, cujo corolrio o paulatino

    estabelecimento da utilizao do prato individual, cabe afirmar que o lento processo de

    elaborao e de adoo de novos padres de comportamento e de novas sensibilidades no

    consistia, conforme se poderia crer com base em nosso imaginrio contemporneo, em

    medidas higinicas e salutares; antes, tratava-se da instaurao de procedimentos que visavam

    a privar o olhar sensvel dos espetculos desagradveis, oriundos da rusticidade dos hbitos, e

    que tencionavam construir uma parede invisvelem torno dos indivduos

    5

    . No que respeita ao

    4 Conforme salienta Deleuze, ao comentar o estatuto das mquinas referidas por Foucault em Vigiar e punir:Emsuma, h uma tecnologia humana antes que haja uma tecnolgia material. A tecnologia , portanto, social antes deser tcnica. (1986, p. 47).5 Nos termos de Norbert Elias:As pessoas que comiam juntas na maneira costumeira na Idade Mdia, pegando acarne com os dedos na mesma travessa, bebendo vinho no mesmo clice, tomando a sopa na mesma sopeira ouprato fundo [...], essas pessoas tinham entre si relaes diferentes das que hoje vivemos. E isto envolve no s onvel da conscincia, clara, racional, pois sua vida emocional revestia-se tambm de uma diferente estrutura ecarter. Suas emoes eram condicionadas a formas de relaes e conduta que, em comparao com os atuaispadres de condicionamento, parecem-nos embaraosas ou pelo menos sem atrativos. O que falta nesse mundocourtois, ou no mnimo no havia sido desenvolvido no mesmo grau, era a parede invisvel de emoes queparece hoje se erguer entre um corpo humano e outro, repelindo e separando, a parede que freqentementeperceptvel mera aproximao de alguma coisa que esteve em contato com a boca ou as mos de outra pessoa,e que se manifesta como embarao mera vista de muitas funes corporais de outrem, e no raro sua mera

    12

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    telefone, provvel que ele tenha contribudo para alterar aes e pensamentos. Se, em

    princpio, ele fora considerado um meio privilegiado de interao social, uma vez que seu uso

    possibilitava a comunho do nunc, ele era tambm o promotor de um encontro sem contato,

    visto que elidia o hic. De certo modo, o telefone parece ter representado uma promessa no

    cumprida ou uma consumao pela metade, diante da expectativa e desejo da presena.

    Quando se trata de conceber as relaes entre prticas, representaes e tecnologias,

    bem como os efeitos que delas decorrem, pensamos que a atitude mais plausvel consista em

    problematizar as equaes, to difundidas quanto falaciosas, segundo as quais o surgimento de

    um novo instrumento tcnico importante acarreta necessria e imediatamente a emergncia de

    novos modos de pensar e de agir na sociedade. A Histria cultural ensina-nos, por exemplo,

    que o aparecimento da prensa e dos tipos mveis, na Europa do sculo XV, em conjuno coma supervalorizao da escrita, nos sculos XVI e XVII, no implicou a extino e nem mesmo

    provocou uma drstica mitigao das prticas sociais fundamentadas na tradio oral. De modo

    anlogo ao que ocorre com o uso da internet, o telefone paradoxalmente inviabiliza, sem

    dvida, mas tambm promove o contato pessoal. No se trata, aqui, nem da alterao imediata

    e radical de uma prtica, nem de sua imutabilidade absoluta. Uma vez que a complexidade da

    histria no deve ser reduzida a simplificaes grosseiras como o "absolutamente indito" ou o

    "totalmente idntico", torna-se necessrio relativizar as origens e desconfiar das gneses equestionar as permanncias e criticar as imobilidades. Sabemos que antes do garfo, havia a

    faca, e, antes dela, a mo. Sabemos ainda que antes do telefone, havia a carta, e, antes dela, o

    tambor. Porm, os pensamentos e aes dos homens transformam-se consideravelmente,

    medida que se relacionam com esses objetos.

    A referncia histria banal e ao episdio quase excntrico fora, pois, uma espcie de

    pretexto para que pudssemos ilustrar tanto o modo como consideramos as relaes entre

    prticas, representaes e instrumentos tcnicos, quanto a maneira como concebemos ahistria. sob essa perspectiva que pretendemos abordar o discurso poltico brasileiro

    contemporneo, mais precisamente, aquele produzido em contexto eleitoral e transmitido pela

    televiso. E tendo em vista que nosso trabalho apresenta um escopo mais especulativo do que

    descritivo, o corpus que constituimos desempenhar, antes, a funo de elucidar as reflexes a

    serem erigidas que a de servir de objeto a ser submetido a uma anlise rigorosa e detalhada.

    Constituem o referido corpus os programas da ltima semana do segundo turno do Horrio

    meno, ou como um sentimento de vergonha quando nossas prprias funes so expostas vista de outros, eem absoluto apenas nessas ocasies. (ELIAS, [1939] 1994, p. 82).

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    Gratuito de Propaganda Eleitoral (HGPE) televisivo, referente campanha presidencial de

    2002, quando os candidatos eram Lus Incio Lula da Silva e Jos Serra.

    Tentando afastar as iluses do nunca visto e dosempre assim6, abordaremos o discurso

    poltico-eleitoral televisivo contemporneo, a partir dos postulados da Anlise do discurso,

    derivada dos trabalhos do grupo em torno de Michel Pcheux e de contribuies provenientes

    da obra de Michel Foucault. Com vistas a refletir sobre esse discurso poltico de nossos dias,

    concebemos os seguintes pressupostos que subsidiaro as consideraes a serem aqui

    desenvolvidas: a) embora o atual discurso poltico televisivo no seja manifesto somente por

    meio de pronunciamentos do candidato, trata-se de um tipo de fala pblica; b) falar em pblico

    uma prtica histrica e, por essa razo, apresenta algumas continuidades relativas e diversas

    metamorfoses, ao longo da histria; c) o discurso poltico possui certas propriedades que odistinguem de outros discursos e que o caracterizam; d) a emergncia e a utilizao de um

    instrumento tcnico, neste caso, a televiso, em conjunto com transformaes histricas,

    polticas, sociais e culturais, promoveram vrias mudanas no discurso poltico; e) o discurso

    poltico eleitoral televisivo apresenta novas formas semiolgicas, formula-se em uma ampla

    gama de gneros discursivos e explora as possibilidades abertas por sua circulao em um

    medium audiovisual; e f) uma abordagem discursiva que se detenha estritamente na linguagem

    verbal no ser suficiente para interpretar a complexidade do discurso poltico contemporneo.A concepo desses pressupostos conduziu-nos a avanar a hiptese de que muitos trabalhos

    em AD sobre o atual discurso poltico ainda no consideraram suficientemente suas novas

    formas, quando de sua transmisso pela televiso, nem tampouco exploraram satisfatoriamente

    sua dimenso histrica.

    A partir do estabelecimento desses pressupostos e dessa hiptese, instituimos

    basicamente dois objetivos para o nosso trabalho. O primeiro consiste em refletir sobre o

    discurso poltico-eleitoral televisivo contemporneo, buscando sublinhar algumas dastransformaes histricas da fala pblica, que direta ou indiretamente incidiram sobre esse

    discurso poltico; visando a apreender algumas de suas propriedades, a fim de caracteriz-lo

    provisoriamente; e procurando ressaltar alguns aspectos de seus novos modos de formulao

    semitica e de circulao histrica e social. J o segundo, mais especfico, resume-se a tentar

    avaliar o alcance das anlises j realizadas sobre o discurso poltico, a partir do enfoque da

    Anlise do discurso, e sugerir, mediante nossas prprias reflexes, algumas possibilidades

    tericas e analticas para o desenvolvimento de trabalhos ulteriores sobre o discurso poltico

    6 Cf. Bourdieu ([1996] 1997).

    14

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    contemporneo. Para tanto, empreenderemos uma reflexo epistemolgica sobre a Anlise do

    discurso, no interior da qual faremos um breve receseamento de trabalhos em AD que trataram

    do discurso poltico e ao longo da qual apontaremos algumas contribuies advindas da

    Histria cultural, da Antropologia histrica e da Semiologia, para que a AD talvez possa

    potencializar sua capacidade heurstica, em face das novas configuraes do atual discurso

    poltico-eleitoral brasileiro. A essa conjuno entre uma perspectiva discursiva e alguns aportes

    provenientes da Histria cultural, da Antropologia histrica e da Semiologia, Jean-Jacques

    Courtine denominou Semiologia histrica7. Abordamos o discurso poltico televisivo

    contemporneo, portanto, sob a gide da AD e inspirados pela Semiologia histrica e pelas

    disciplinas com as quais ela dialoga. Mediante uma rpida anlise, que focaliza a produo de

    efeitos de verdade nos ltimos programas do HGPE das eleies Presidncia da Repblica,no ano de 2002, procuramos averiguar a viabilidade e avaliar a produtividade desse enfoque.

    Considerando o ltimo de nossos pressupostos, conforme o qual h um certo

    descompasso entre as transformaes do objeto e o alcance interpretativo da teoria e do mtodo

    que tentam compreend-lo, vislumbramos a possibilidade de tentar diminuir essa distncia, por

    intermdio das contribuies que a Semiologia histrica pode oferecer Anlise do discurso.

    Acerca desse descompasso, Courtine afirma, por exemplo, a existncia de um formidable

    dcalage entre os postulados althusserianos da anlise de classes, que sustentavam a AD, e aefervescncia poltica, social e cultural francesa, na dcada de 1960:

    No exato momento em que Althusser escrevia, a classe operria qual elefazia referncia j no existia mais. As reconfiguraes econmicas, atransformao dos comportamentos polticos, a mudana da identidadeoperria que estavam ento em gesto j tinham, sem que se o soubesse ousem que se o quisesse ver, tornado a anlise caduca. Do mesmo modooperava-se a maturao de novas formas de comunicao poltica quedestituam pouco a pouco o afrontamento verbal, o choque frontal dos

    aparelhos, a surdez monolgica como sendo as nicas prticas legtimas daluta poltica. [...] E aqui, novamente, uma cegueira considervel: em plenodesenvolvimento do aparelho audiovisual de informao, s vsperas doreino das imagens, escola e s suas prticas de leitura que Althusser d opapel de aparelho ideolgico dominante. (COURTINE, 1989, p. 24-25)

    7 A expresso cujo advento data de 1985, ano da escrita dos dois artigos em que ela se manifesta inicialmente,Language, Political Discourse and Ideology ([1987] 2006a) e Lhomme dvisag (Smiologie et Anthropologiehistorique de la physionomie et de lexpression du XVIIme au XIXme sicle (1986; escrito com ClaudineHaroche) foi cunhada por Jean-Jacques Courtine e refere-se perspectiva adotada em sua prpria obra, desde asegunda metade da dcada de 1980, quando seus trabalhos sobre a genealogia e a epistemologia da AD e sobre o

    discurso poltico contemporneo conduziram-no a uma certa inflexo de enfoque e de procedimentos em direos perspectivas histricas e antropolgicas, em princpio, em torno das prticas e representaes do rosto, e, maisrecentemente, dos modos de "pensar", "sentir" e "fazer" do corpo. No item 3.2 do Captulo III, trataremos demodo mais detalhado da Semiologia histrica.

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    Assim, quando Althusser afirmava ser a escola o aparelho ideolgico do Estado que

    assumiu a posio de dominante nas formaes capitalistas maduras (ALTHUSSER, [1970]

    1985, p. 77), parecia desconsiderar, em alguma medida, a passagem da sociedade disciplinar

    para a contemporneasociedade de controle8 que j o envolvia. No que tange particularmente

    ao discurso poltico, essa passagem no corresponde a um abandono absoluto de antigas

    prticas e representaes, em favor da instaurao exclusiva das novidades incondicionais, mas

    se trata inegavelmente do estabelecimento de uma relativa predominncia de novas

    modalidades de ao e pensamento. Nesse caso, a transio de um tipo predominante de

    relaes sociais para um outro: a) assinala, aps a derrocada dos regimes autoritrios e desde o

    recente crescimento do individualismo, o advento de uma conjuntura histrica mais

    democrtica e dotada de novas sensibilidades, na qual se privilegiam certos comportamentosexpressivos e certas estratgias argumentativas, que transformam o prprio estatuto dos

    interlocutores; e b) implica a emergncia e a consolidao de novos media, que, por seu turno,

    permitem a constituio de textos em novas formulaes semiticas, alterando

    consideravelmente a produo e a recepo discursivas. Observamos, ento, um conjunto de

    reconfiguraes histricas intrnsecas ou oblquas de um dos objetos privilegiados da Anlise

    do discurso que, praticamente, nasceu analisando-o e que, no entanto, parece nem sempre ter

    considerado, suficientemente e sem algum atraso, suas metamorfoses capitais9

    .A reflexo sobre o discurso poltico contemporneo, inspirada pela Semiologia

    histrica, impeliu-nos a considerar invarincias e transformaes da fala pblica. No que

    respeita s continuidades, cremos que haja uma permanente utilizao de recursos corporais,

    tcnicos e semiolgicos que, conjugados com a linguagem verbal, sempre foram mobilizados

    nas ocasies de fala pblica. Tambm acreditamos no ter havido grandes alteraes quanto

    separao entre fala pblica e fala privada, considerando que a primeira caracteriza-se pela

    presena de um nico e determinado falante que se dirige a um conjunto de ouvintes, em umcontexto marcado por alguns protocolos e rituais de fala, e que a segunda consiste em uma

    8 Para detalhes sobre a distino apontada por Michel Foucault entre as sociedades de soberania, disciplinare decontrole, alm dos textos do prprio autor, tal como Foucault ([1975] 1987), ver tambm Deleuze (1986) eGregolin (2004). Voltaremos a considerar essa distino em vrias passagens de nosso trabalho.9 Somente a partir da dcada de 1980 que Michel Pcheux comea a considerar as mudanas do discurso polticocontemporneo, sugerindo que as atuais discursividades polticas estavam j, naquele perodo, definitivamenterelacionadas com as mdias. A lngua de madeira havia se transformado em lngua de vento e as eleiesassemelhavam-se cada vez mais a manifestaes esportivas miditicas. Pcheux alude ainda ao acontecimentotelevisuale questo da relao entre a imagem e o texto. Apontamentos e aluses importantes e fecundos, que,

    todavia, por sua prpria natureza, no tm o alcance de ponderaes aprofundadas e exaustivas. (Cf., por exemplo:Gadet & Pcheux (1981); Pcheux ([1983] 1997a); e Pcheux ([1983] 1997c). Pretendemos observar, por meio deum conciso recenseamento bibliogrfico, quando, como e em que medida essas indicaes de Pcheux ressoarame influenciaram os trabalhos ulteriores em AD sobre o discurso poltico.

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    situao aparentemente mais informal, em que a comunicao coloquial tende a se apresentar

    menos tensa e mais descontrada, tendo em vista que o direito fala est, em princpio,

    repartido entre todos os sujeitos que participam dessa ocasio. J no que concerne s

    descontinuidades das prticas de falar em pblico, pressupomos que tenham ocorrido diversas

    metamorfoses no uso dos elementos lingsticos, dos gestos, da voz e de diferentes intrumentos

    tcnicos, na medida em que eles foram inseridos em diferentes quadros culturais ou em

    distintas pocas da histria. Detendo-nos sobre certas especificidades contemporneas desse

    tipo de fala pblica que o discurso poltico eleitoral televisivo, pensamos poder condens-las

    no fenmeno da espetacularizao da poltica, no interior do qual se inscrevem o suposto

    fim das ideologias e comeo da despolitizao, a dissoluo das massas e o

    recrudescimento recente dos individualismos, a ampliao da esfera privada e a diminuio dapblica, o surgimento e a consolidao das novas mdias, a acelerao dos ritmos e a reduo

    dos espaos da vida, a incorporao de estratgias publicitrias pela fala poltica, as mudanas

    retricas e as novas configuraes semiolgicas do discurso poltico-televisivo.

    Essas transformaes tornam-se ainda mais visveis nas ocasies em que a produo e a

    recepo da fala pblica foram submetidas simultaneamente s metamorfoses histricas e s

    modificaes tcnicas. No discurso poltico-eleitoral televisivo articulam-se novos valores e

    sensibilidades, novos meios materiais de transmisso, novas cenas enunciativas, novasdiscursividades e tticas retricas, novas dinmicas e formulaes semiticas. Sem perder de

    vista as modificaes e especificidades dessa fala pblica de nossos tempos, examinaremos

    nosso corpus, conforme dissemos, focalizando as estratgias nele utilizadas para a produo de

    efeitos de verdade. O discurso poltico apresenta um trao que lhe parece ser constitutivo, a

    saber, a ambivalncia entre a confiana, que o legitima, e o descrdito, que o torna vtima de

    muitas suspeitas. nessa ambivalncia que o campo poltico adquire sua legitimidade

    constantemente questionada (BOURDIEU, [1989] 2001), da qual deriva o estigma dementiroso que o persegue freqentemente. A despeito de se tratar ou no de uma propriedade

    estrutural, a desconfiana que ronda o discurso poltico recebe novos contornos da

    espetacularizao da poltica. Caberia-nos, portanto, perguntar: o que h de novo na

    velha pecha de mentiroso amide impingida ao discurso poltico? Em que medida algumas

    das representaes acerca da televiso, de seus recursos tcnicos e de suas imagens corroboram

    a indiferena, o descrdito e a suspeita sofridos pelo discurso poltico?10

    10 Nossa preocupao no incide sobre a essncia da verdade e da mentira no discurso poltico, nem sobre odireito (ou sobre sua interdio) reservado classe poltica de mentir para a sociedade, quando se tratam dementiras que lhe seriam salutares. Grandes e ilustres pensadores ocidentais, tais como Plato, Maquiavel e Kant,

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    Considerando a especificidade de nosso objeto, de nossa fundamentao terica e de

    nossos pressupostos, hiptese e objetivos, dividimos nosso trabalho em quatro captulos. No

    Captulo I, esboaremos algumas linhas gerais do que poderamos chamar de uma genealogia

    da fala pblica, a partir da qual pretendemos apresentar certas invariantes e algumas

    transformaes no exerccio de falar em pblico, ao longo da histria. Para tanto, produziremos

    alguns instantneos de momentos muito precisos, mas, segundo nossa interpretao, bastante

    significativos das prticas de fala pblica, mediante um rpido sobrevo por diferentes fases da

    histria ocidental: em princpio, na Europa, indo da Antigidade, passando pela Idade Mdia e

    chegando at a Idade Moderna; e, em seguida, no Brasil, partindo das primeiras pregaes dos

    missionrios europeus, no sculo XVI, at os pronunciamentos de Antnio Conselheiro e de

    Rui Barbosa, dois clebres, e distintos entre si, oradores de nosso sculo XIX.Uma vez encerradas nossas observaes sobre determinadas continuidades e

    descontinuidades da fala pblica, passaremos, ento, no Captulo II, a tentar apreender

    algumas caractersticas do discurso poltico. As aluses a esse discurso pululam entre leigos e

    especialistas, mas, em boa parte dos casos, sem que haja grande interesse ou preocupao em

    tentar circunscrever o objeto do qual se fala. Na Anlise do discurso, em particular, vimos

    serem repetidas, de modo freqente e quase indistinto, referncias ao sintagma o poltico

    para designar uma ampla gama de produes discursivas. Muitas vezes, tudo se passa como setodo e qualquer discurso fosse igualmente poltico, como se no houvesse diferentes modos e

    intensidades de controle do dizer, distintas formas de enunciao e de legitimao institucional

    e diversos investimentos de poder que atravessam os discursos que se produzem no campo

    poltico em relao a outros produzidos alhures. Evidentemente, isso no significa, contudo,

    que pressupomos a exclusividade das caractersticas s quais faremos referncia. Somente uma

    lgica torta ou um pensamento voluntariamente tendencioso de um conhecedor dos princpios

    da AD faria corresponder alegao das especificidades do discurso poltico uma ausncia deprocedimentos de controle, de legitimao e de poder presentes, de fato e a seu modo, em todos

    os outros domnios discursivos, at mesmo, nos mais cotidianos e descontrados. Por essas

    razes e para tentar melhor compreender nosso prprio objeto de reflexo, empreenderemos

    uma sumria caracterizao do discurso poltico.

    J no Captulo III, realizaremos um breve recenseamento bibliogrfico, no qual sero

    includos tanto trabalhos clssicos quanto estudos mais recentes que tenham se debruado

    por exemplo, j refletiram acerca dessas questes, que fogem de nossa alada. Consideramos somente um aspectode sua dimenso discursiva, ou seja, a constncia de uma representao sobre o discurso poltico, de uma memriafreqentemente atualizada no cotidiano e insistentemente refutada por esse mesmo discurso.

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    sobre o discurso poltico e que tenham sido levados a cabo por autores franceses e brasileiros,

    fundamentados nos preceitos da Anlise do discurso, desde os anos 1980 at nossos dias. Por

    meio desse recenseamento bibliogrfico, buscaremos sustentar a idia de que h um certo

    descompasso entre os ritmos da vida e da cincia, que representam metafrica e

    respectivamente as transformaes sofridas pelo discurso poltico e muitos estudos

    desenvolvidos sobre ele, no interior da AD. Em seguida, tentaremos articular algumas

    contribuies da Histria cultural, da Semiologia e da Antropologia histrica aos postulados e

    procedimentos da Anlsie do discurso, e refletir sobre a pertinncia do enfoque que congrega

    esses campos de saber ao qual, conforme afirmamos, Courtine designou como Semiologia

    histrica , quando se trata de interpretar as novas formas do discurso poltico contemporneo.

    As relaes histricas entre prticas, representaes e tecnologias de linguagem, queatravessam praticamente toda a tese, retornam de modo explcito na primeira parte do Captulo

    IV. Nela, pretendemos traar uma distino entre dois dispositivos, o disciplinar e o de

    controle, e entre suas diferentes formas de atualizao da fala pblica no palanque, no rdio e

    na tev. Sublinhando as diferenas existentes entre essas formas de se falar em pblico, nosso

    propsito consiste em mostrar comparativamente algumas caractersticas do discurso poltico

    transmitido pela televiso. Considerando as novas formas do discurso poltico contemporneo,

    tais como suas formulaes semiolgicas sincrticas, a diversidade de gneros discursivos emque ele se manifesta e a explorao da dimenso audiovisual da tev, cremos que o prprio

    objeto indica-nos um modo possvel e vivel de se abord-lo, de modo que no negligenciemos

    as outras linguagens que concorrem com a lngua e produzem textos sincrticos, nem

    desconsideremos o emprego estratgico de gneros discursivos, tais como reportagens,

    entrevistas, debates, documentrios, videoclipes, etc., to distintos dos clssicos

    pronunciamentos monolgicos dos polticos de outrora. Alm disso, a tev um medium11 que

    toca o olhar e a escuta, fato que contribui para a produo de efeitos de verdade, ainda quepaire sobre as produes televisivas uma boa dose de desconfiana. J na segunda parte do

    ltimo captulo, empreenderemos uma rpida anlise dos HGPE televisivos das eleies

    presidenciais de 2002, justamente tentando apreender algumas estratgias do atual discurso

    poltico eleitoral, por meio das quais se tenta produzir certos efeitos de verdade de seu dizer e

    do que neles se diz.

    Depois do anncio de nosso objeto, de nossos pressupostos e de nossos objetivos, na

    iminncia de encerrarmos nossa Introduo, somos acossados, ao mesmo tempo, pela vontade

    11 Utilizamos a noo de medium, conforme a conceituao de suporte, na obra de Roger Chartier ([1982-1986]1990).

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    de efetivamente comear e por uma certa hesitao a faz-lo. Foucault ([1970] 2000a) j nos

    ensinou sobre os perigos que rondam os comeos... Se, como homens, somos impelidos a falar,

    tambm somos constrangidos a controlar nosso dizer. O sentimento que ora nos freqenta no

    , portanto, nossa exclusividade: antes do tempo, ainda no mito, onde quase tudo comea e

    termina, Prometeu j se afligia diante dessa dupla injuno.

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    CAPTULO I

    FRAGMENTOS PARA UMA GENEALOGIA DA FALA PBLICA

    A retrica essencialmente republicana.Nietzsche

    Falar mete-me medo porque, nuncadizendo o suficiente sempre digo tambm

    demasiado. Derrida

    1.1. Antes do comeo, algumas precises

    Se no posso romper o silncio sobre o que me afeta, tampouco posso guardar o

    silncio! , certamente, doloroso, para mim, tomar a palavra, mas tambm doloroso calar-

    me: de todos os lados, aflio!12 Depois da angstia de um longo silncio, a injuno, no

    menos incmoda, ao dizer. No mito, um dizer contundente seguido, uma vez mais, de um

    longo e novo silncio... Prometeu ouve Oceano, escuta o coro e silencia. E se o seu silncio

    longo, no , entretanto, infindo. preciso ainda e novamente rescindir o silncio, retomar a

    palavra e defender-se, altivamente, dizendo dos benefcios feitos humanidade (Cf.

    SQUILO, [525-456 a. C.] 1999, p. 337).

    Mas, Prometeu um mito. Ele e est em um tempo antes do tempo e em um espao

    fora de lugar. Teseu, por sua vez, ainda que no universo trgico, est no tempo histrico e no

    espao poltico. O silncio e a fala do rei de Atenas so produzidos em um intrincado jogo de

    relaes de fora na histria e produzem efeitos sobre essas relaes. Pela voz de Teseu,

    instaura-se uma apologia fala ilustre e cidad, que se contrape omisso annima, sob a

    forma de um silncio: No chegamos a lugar nenhum, se mantivermos a boca fechada.13

    12 squilo ([525-456 a. C.] 1999, p. 328 e 331).13 Eurpedes ([480-406 a. C.], 1999, p. 1066). Ao longo de As suplicantes, observamos ainda outras passagens emque Eurpedes, pela voz de Teseu, discorre sobre a importncia da fala pblica na democracia, destacando,inclusive, a frmula pela qual o arauto da polis abre a assemblia, em que participam e podem intervir todos os

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    Relacionados a essa defesa da alocuo civil, no seio de uma representao idealizada da

    democracia, encontramos um recorrente motivo argumentativo e a correlata imagem que o

    orador constri de si e de sua prpria fala: somente uma imperiosa necessidade de servir ao

    bem comum o arranca do silncio.Uma imposio tica e poltica obriga-o a falar. Ele no o

    faz por mero prazer. Tambm em Lsias, observamos a atualizao desse motivo: Quisera eu

    que um outro falasse em meu lugar...14

    O orador diz ou sugere que fala to-somente em nome e pelo bem da coletividade, pela

    importncia de sua opinio, pela impossibilidade de que outro o substitua... Em face da

    suspeita de que os interesses de quem fala possam ser apenas individuais e no pblicos, torna-

    se necessrio que o orador aja como se lamentasse a situao de fala. Por outro lado, seu

    silncio quase impossvel ou, ao menos, bastante significativo. Enquanto para Teseu, emboraele incite a fala, calar-se na assemblia parece tratar-se simplesmente de uma atitude neutra do

    homem annimo, para muitos oradores gregos, o silncio deveria ser justificado e no

    interpretado como mera e inocente deciso de nada dizer, por no ter o que dizer. incipiente

    distino de Teseu, de acordo com a qual no h seno uma nica espcie de fala (a til e

    clebre) e um nico tipo de silncio (o annimo e discreto), ope-se e impe-se uma ampla

    gama de matizes significativos no falar e no calar-se, cujo limite um silncio que fala e uma

    fala que silencia. Assim, diante do elogio fala til, prefervel ao silncio pernicioso, haveriaum silncio salutar, prefervel a uma fala qualquer e, talvez, at lesiva.

    Desenvolvendo esse princpio do silncio edificante, squines, compelido a tornar

    plausveis suas ausncias nas assemblias, contrape-se a Demstenes, fazendo uma clebre

    defesa da intermitncia de suas alocues15:

    Nas oligarquias, aquele que fala ao povo no quem quer faz-lo, masaquele que tem o poder para faz-lo; nas democracias, ao contrrio, fala

    quem quer e quando lhe parece por bem. Falar de vez em quando significafazer poltica, em funo das circunstncias e da utilidade dessa sua fala,enquanto no deixar passar um nico dia sem falar denuncia um homem queo faz por profisso e somente para receber um salrio. (SQUINES, [389a.C.-314 a.C.] apudMONTIGLIO, 1994, p. 25).

    Demstenes, por seu turno, reivindica o primado da fala, recusando ao homem poltico a

    liberdade de guardar seu silncio: o imperativo de falar pelo bem comum deve sobrepor-se ao

    cidados gregos: Aquele que quiser tomar a palavra para expor seu ponto de vista, pelo bem do Estado,

    comunidade, pode faz-lo agora.14. Nessa e vrias outras passagens de seus discursos, Lsias vale-se dessa estratgia retrica. (Cf LYSIAS, [440a.C.-360 a.C] 1967, p. 111 e 160).15 Esta contraposio entre squines e Demstenes devida ao texto de Montiglio (1994, p. 23-41).

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    direito de calar-se, seja por omisso seja por interesse inescrupuloso. Eia, tomai e lede este

    meu decreto, sobre o qual squines, muito de indstria, silenciou. e adiante Isto fiz eu,

    squines, depois que o pregoeiro interrogou: 'quem quer falar?' [...] A esse tempo, estavas

    mudo na assemblia; eu me apresentava e falava. (DEMSTENES, [384 a.C.-322 a.C.] 1965,

    p. 99). provvel que sempre haja a suspeita de indiferena, de passividade excessiva ou at

    mesmo de desonestidade sobre aquele que se cala e se omite. Nos sculos V e IV a. C., no

    espao pblico grego, e mais particularmente em Atenas, a eqidade do direito fala

    concedido a cada cidado (isegora) e o exerccio efetivo desse direito (parrhesa), em toda a

    sua extenso na assemblia, so condies necessrias para realizao do projeto de uma

    democracia direta: diante da eventual inexistncia da isegora e/ou da impossibilidade de seu

    corolrio, a parrhesa, tratar-se-ia do aniquilamento da condio de base desse projetodemocrtico e, por extenso, da atividade que o concretiza16. As posies de squines e de

    Demstenes sobre o comportamento nas assemblias representam, respectivamente, um direito

    ao silncio e um dever de fala.

    Mas as aflies, poderes e perigos do dizer e do calar no esto reservados aos tits, aos

    reis e aos inesquecveis oradores. Tambm ns, humanos e mortais, usufrumos esse bem e

    padecemos desse mal. Por isso, depois de um longo silncio, durante o qual se pressupe que

    tenhamos realizado leituras e escutas produtivas, supostamente adquirimos um saber,conquistamos um direito de fala e somos impelidos por um dever-dizer. Conforme j

    anunciamos, comearemos por discorrer acerca da fala pblica, para que possamos tratar mais

    adequadamente de algumas complexidades do discurso poltico contemporneo. Tentaremos

    delinear alguns dos traos mais marcantes das prticas de fala pblica, em diferentes perodos

    da histria, focalizando as metamorfoses e as invarincias das relaes entre o orador, sua fala

    e seu pblico. Conforme j adiantamos, passaremos ligeiramente pela Antigidade (Perodos

    Homrico, Clssico e Helenstico), pelo final da Idade Mdia europia e pelo incio da EraModerna ocidental17. Ao finalizarmos esse trajeto, lanaremos algumas notas do que

    16 O direito fala pblica no se confunde, entretanto, com a ausncia de controle sobre o dizer. Na gora, eramnumerosas as restries consuetudinrias cujo objetivo era o de conter os excessos e perigos da liberdade de fala.Esses controles sobre a elocuo pblica eram, inclusive, explorados por alguns oradores e figuravam sob a formade efeitos de silncio em torno dos auto-elogios ou dos insultos: oradores que sugerem o indizvel e que fazemdas hesitaes e dos silncios um dizer eloqentssimo. Simulando calar-se sobre o que poderia ainda ser dito,ampliavam consideravelmente a potncia do seu dizer.17 Seguindo uma certa conveno historiogrfica j consolidada (ainda que reconhecidamente problemtica...),conservamos aqui, em funo de sua comodidade e didatismo, a diviso da Histria em Antigidade, Idade

    Mdia, Idade Moderna, Contemporaneidade. Nesse sentido, sublinhamos que os marcos cronolgicos e suasdenominaes devem ser concebidos to somente como pontos de referncia, visto que no se pode atribuir aosprocessos histricos comeo, meio e fim precisos e definitivos: cada momento da Histria tem seus antecedentese seus desenvolvimentos ulteriores.

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    poderamos chamar de uma breve genealogia da fala pblica no Brasil, comparando dois

    perodos de nossa histria: o Colonial e a Primeira Repblica. Interromperemos

    provisoriamente esse percurso e o retomaremos, de certo modo, no Captulo IV, quando

    voltaremos a nos ocupar das diferenas entre as prticas de falar em pblico no palanque, no

    rdio e na televiso, durante o sculo XX. Nosso propsito ser, ento, o de tentar distinguir o

    tempo da integrao poltica das massas e o perodo de sua disperso, fomentada pela

    emergncia e consolidao das novas tecnologias de linguagem que possibilitaram a

    transmisso da fala poltica distncia.

    Tendo em vista esse nosso objetivo, compilamos fontes primrias e secundrias, de

    naturezas diversas: desde a Ilada e a Odissia, da Histria da guerra do Peloponeso e de

    discursos de oradores gregos, passando pelas interpretaes de especialistas que se debruaramsobre as Idades Mdia e Moderna, at relatos de missionrios e de viajantes do sculo XVI, Os

    sertes, de Euclydes da Cunha, manuscritos de Antnio Conselheiro e um pronunciamento de

    Rui Barbosa. Cremos, no entanto, que a heterogeneidade das fontes e sua natureza, por vezes,

    problemtica (como as literrias, por exemplo), no inviabilizaro, nem mesmo prejudicaro

    substancialmente, a possibilidade de sugerir algumas das caractersticas mais emblemticas da

    fala pblica desses diferentes perodos considerados. Alm disso, no que concerne ao final do

    sculo XIX a poca das massas, na qual tentaremos apreender alguns ndices das relaesentre o orador poltico e seu pblico, para que possamos, em seguida, contrast-los com

    aqueles que caracterizam as falas pblicas da segunda metade do sculo XX , acreditamos

    dispor de fontes e de comentrios especializados suficientes para o nosso fim.

    1.2. Transformaes da fala pblica na Histria

    1.2.1.Falar em pblico na Antigidade

    Entre os Perodos Homrico, Clssico e Helenstico, alm das relativas continuidades

    de tcnicas, prticas e representaes histricas, existe uma tnue, mas bastante significativa

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    diferena no que se refere fala pblica18. Em se tratando da preocupao do orador em fazer

    silenciar o pblico ouvinte para que ele pudesse usufruir sua ateno e sua possvel adeso, a

    mudana reside no modo como a fala do tribuno interrompida pelas intervenes,

    comentrios, glosas, elucidaes ou discordncias dos ouvintes. Tornava-se necessrio, diante

    dos tumultos, alaridos e agitaes iniciais ou constantes, impor ou, ao menos, solicitar o

    silncio aos participantes das assemblias. Em certos casos, era preciso interromper antes que

    se fosse interrompido. Tratava-se de uma situao ideal concebida para uma eloqncia

    perfeita. J na Ilada, deparamo-nos com a representao de um orador que toma precaues

    contra as dificuldades de seu fazer persuasivo, pressupondo a indiferena ou, at mesmo, a

    hostilidade de seu pblico. Tomemos, por exemplo, a reao exultante dos gregos que

    compunham a assemblia sugerida por Ttis e convocada por Aquiles para que esse ltimoanunciasse tanto sua reconciliao com Agamenon quanto sua deciso de voltar guerra ,

    provocada pela fala de Aquiles, impe a Agamenon, que quem tomar a palavra em seguida,

    cuidados e cautelas para que ele consiga falar e ser ouvido:

    Logo que todos os homens da Acaia reunidos se acharam,Ala-se Aquiles de rpidos ps e lhes diz o seguinte:'Esta reconciliao, Agammnone, fora mais til

    para ns dois, se levada a bom termo no dia em que fomospela Discrdia vencidos, por causa, to-s, de uma escrava.[...]Mas passado passado. O dever me concita, nessa hora,ainda que muito irritado, a refrear o rancor do imo peito.Da ira desisto; no me orna, em verdade, mostrar-me implacvelpor muito tempo. Mas vamos! agora incitar te competepara o combate os Aquivos de soltos cabelos nos ombros.Quero encontrar, novamente, os Troianos e ver se ainda insistemem pernoitar junto aos nossos navios; mas penso que muitosho de, aliviados, os joelhos dobrar, quando escapos se viremda fria insana da guerra e de nossa hasta longa e invencvel'.

    Isso disse ele; os Acaios de grevas bem feitas exultampor ver o grande Pelida acalmado o rancor, finalmente.Disse aos Aquivos, ento, Agammnone, rei poderoso,sem avanar para o meio, do prprio lugar onde estava:'Meus valorosos Aquivos, alunos do deus Ares forte, decoroso em silncio escutardes-me agora; at mesmoos oradores mais hbeis aparte importuno os perturba.Como possvel que em meio ao barulho falar algum possa,ou ser ouvido, ainda mesmo dotado de voz retumbante?Vou dirigir-me ao Pelida; mas quero que todos os homensde Argos me escutem e, atentos, reflitam nas minhas palavras.

    18 As interpretaes que fizemos de algumas das caractersticas das falas pblicas na Antigidade inspiraram-senos trabalhos de Nietzsche ([1896] 1999);Vernant (1962); Detienne (1981); Montiglio (1994); Chau (2002). Foitambm com base nas referncias contidas nesses trabalhos que coligimos algumas fontes primrias fundamentaispara o estabelecimento das nossas breves consideraes acerca da fala pblica na Antigidade.

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    (ILADA, XIX, v. 54-84, grifos nossos)

    A manifestao do silncio e da passividade dos participantes nos espetculos artsticos,

    reunies ou assemblias , relativamente, freqente na Ilada, mas tambm o na Odissia.Vejamos algumas passagens que atestam a bem comportada recepo dos ouvintes homricos:

    a) quando Agamenon encerra sua proposta de abandonar a guerra: 'Ora faamos conforme o

    aconselho; obedeam-me todos:/ para o torro de nascena fujamos nas cleres naves,/ pois

    impossvel tomar a cidade espaosa dos Teucros.'/ Isso disse ele; calados e quedos os outros

    ficaram./ Por muito tempo em silncio mantm-se os turvados Aquivos (ILADA, IX, v. 26-

    30);

    b) na reunio dos pretendentes de Penlope, na casa de Ulisses: Todos, em volta, escutavamsilentes o aedo famoso,/ que lhes cantava o retrno funesto [...]. (ODISSIA, I, v. 325-326);

    c) na descrio da reao fala de Telmaco: Isso disse le, indignado; e, rompendo num

    pranto copioso,/ o cetro atira no cho. Todo o povo de dor tomado./ Quedos mantm-se os

    presentes; ningum a objetar se atrevia/ s expresses de Telmaco, prenhes de acerbo

    sentido. (ODISSIA, II, v. 80-83);

    d) na interveno de Mentor, intercedendo em favor do filho de Ulisses e contra os

    pretendentes na assemblia convocada por Telmaco: Os pretendentes soberbos, no vou

    censurar, certamente,/ pelas violncias que fazem, produto de instintos malvados,/ que les as

    prprias cabeas arriscam pilhando a fazenda/ do valoroso Odisseu, na iluso de que a casa

    no volta./ Mas contra o resto do povo no posso deixar de indignar-me./ Com serdes muitos,

    ficais em silncio, sentados, sem verdes/ que aos pretendentes, por poucos, podeis impor

    vosso freio. (ODISSIA, II, v. 235-241);

    e) quando o narrador assinala tanto a reao dos faces quanto seu comportamento durante a

    exposio de Ulisses, no momento em que esse ltimo finalizara o longo relato de suas

    proezas, desde sua partida de Tria at sua chegada s terras de Calipso, que se estende do

    Canto IX ao Canto XII: Isso disse le; os presentes calados e quedos ficaram,/ como que

    presos por mgico influxo na sala sombria. (ODISSIA, XIII, v.1-2).

    Poder-se-ia, entretanto, interpretar esses silncios e omisses como decorrentes do

    carter excepcional das situaes em que eles se manifestam e no como caracterstica

    propriamente dita da expresso em pblico. Contudo, seguindo o levantamento que fizemos

    nas duas grandes epopias de Homero, constatamos que todas as referncias a

    pronunciamentos, ainda que eles sejam de diversas ordens e de diferentes tipos, atestam no

    somente a alterao regulada dos turnos de fala, mas tambm o bom comportamento dos

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    ouvintes homricos; to-logo uma fala envolvida pelo ritual de tomada de palavra iniciada, o

    pblico se mantm em absoluto silncio. A participao ativa daqueles que ouvem se d

    antes e depois, mas nunca durante um pronunciamento.

    De modo anlogo, mas no idntico, os oradores da poca clssica protegem-se contra

    os perigos da audincia. Nesse caso, trata-se de reiterados assaltos dos ouvintes e das

    constantes celeumas que consistem em uma real ameaa, diferentemente da pacata escuta

    qual se dirigiam os oradores de Homero. Enquanto na Ilada e na Odissia, de acordo com

    nosso inventrio, os tumultos limitam-se fase inicial da assemblia, antes do comeo da

    interveno do orador ou, ao seu final, e se apresentam sob a forma de reaes favorveis ou

    contrrias, de modo que basta ao tribuno adotar algumas prvias medidas retricas19 para ser

    ouvido, no auditrio de uma assemblia na qual fala Pricles, no Perodo Clssico, ouDemstenes, no Helenstico, por exemplo, parece haver um barulho constante e cada um dos

    ouvintes pode interromp-los a qualquer momento. Tendo sido iniciado o turno de fala de um

    orador, no Perodo Homrico, no h mais o risco de que ele seja interrompido por um outro,

    que lhe tomaria a fala: nas epopias de Homero, as seqncias sem interrupo so

    freqentemente binrias, tornando improvvel o advento de intervenes polifnicas ou de

    rudos democrticos. De certo modo, o povo homrico est alijado das deliberaes, visto

    que assiste, sem interromper, a uma alternncia de seqncias (proferidas por divindades esemi-divindades) sistemtica e regulada20.

    J em uma poca em que a doxa superava a altheia tempo em que, pouco a pouco,

    em detrimento de um verbo inspirado, no qual a verdade presentificava-se como recitao,

    19 Alm da linguagem verbal, sob a forma de um pedido de silncio feito pelo prprio orador ou da intervenodos arautos, constam outros recursos retricos. A tomada da palavra na Ilada e na Odissia normalmenteprecedida e/ou acompanhada da seguinte seqncia: o orador eleva-se de sua cadeira, pondo-se de p, caminha ato centro da assemblia, toma e porta o cetro e eleva sua voz. Procedimentos para ser visto e ouvido que

    ratificavam a j extraordinria figura do tribuno. Entre as vrias passagens em que observamos o uso dessesprocedimentos, podemos mencionar aquela em que Odisseu, antes de retomar a palavra, cala-se, aps terrepreendido Tersites, e suscitado na multido uma grande reao favorvel: A chusma assim se expressava.Odisseu, eversor de cidades,/ o cetro empunha, de p. Sob a forma do arauto, ao seu lado,/ a de olhos glaucos,Atena, ordenava silncio s fileiras,/ para que todos os homens Acaios, de perto e de longe, suas palavrasouvissem e, aps, orientar-se soubessem./Cheio de bons pensamentos lhe diz, arengando, o seguinte: Filho deAtreu, soberano, os guerreiros Aquivos desejam/ que ante o universo os homens mortais infamado tu fiques.(ILADA, II, v. 278-285, grifo nosso).20 Ver, por exemplo, algumas das passagens daIlada e da Odissia, nas quais se pode observar essa caractersticanas representaes homricas das relaes entre o orador e seu auditrio:Ilada (Cantos: I, II, VII, IX, XIX e XX)e Odissia (Cantos: I, II, V, VIII e XXIV). Entretanto, ainda que haja um certo alijamento do povo, nas imagensda assemblia do perodo homrico e preciso que no nos esqueamos da grande excluso que permanecermesmo nos tempos clssicos da democracia de Pricles, na qual apenas uma parcela bastante limitada da

    populao, de fato, participava da vida poltica da cidade (cf. SENNETT, [1994] 2003, p. 47-48) , j existe umaintensa valorizao da assemblia, como condio de "civilidade" e "cidadania", conforme, por exemplo, apassagem em que Ulisses fala aos Faces sobre a ausncia de assemblias entre os Ciclopes (ODISSIA, IX, v.105-108; 112-115).

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    como no-esquecimento daquilo que j havia sido vislumbrado em um inteligvel

    transcendente, estabelece-se a sobreposio de um verbo leigo e humano, por meio do qual a

    verdade instaura-se sob a forma de decises oriundas das discusses pblicas , comeam a ser

    abertas as condies de possibilidade para o advento da filosofia e da poltica, mas tambm

    para o da sofstica e da retrica. Noutros termos, trata-se da decadncia da fala-eficaz,

    proferida por aquele que fazia porque falava de (e encarnava) um invisvel sagrado, e da

    ascenso da fala-dilogo, pronunciada por aquele que faz porque fala de um visvel

    poltico21. Segundo uma certa tradio da histria da filosofia, esta ltima teria se separado da

    religio entre os sculos VII e VI a.C. At esse perodo, entretanto, preservava-se a crena de

    que a eloqncia era um dom divino-natural. Somente por volta do sculo V, surgiram os

    primeiros manuais de retrica, cuja emergncia sugere o fato de que, a partir de ento, tornou-se possvel ensinar e aprender a arte da oratria. Do final do Perodo Homrico at o apogeu do

    Perodo Clssico, no interior do qual Pricles, entre os anos de 460 a.C. e 429 a.C., depois das

    reformas de Clstenes, consolidou e aperfeioou a democracia ateniense, passaram-se

    aproximadamente quatro sculos de histria e ocorreram muitas transformaes polticas,

    sociais, culturais e urbanas22.

    Assim, a partir do auge da democracia grega, nos sculos V e IV a.C., as relaes entre

    o orador e o pblico que participava das assemblias tornaram-se bastante interativas.Conforme havamos dito, os tribunos gregos dessa poca, mesmo com toda a potncia oratria

    de um Pricles, tinham de tomar muitas precaues para evitar uma ateno demasiadamente

    difusa e para assegurar que seu turno de fala se mantivesse relativamente a salvo das

    constantes tentativas de interrupo. preciso ainda que no se perca de vista o fato de que,

    no sculo V a.C., Atenas dispunha de dois tipos absolutamente diferentes de espao de fala, a

    saber, a gora e o teatro, onde, respectiva e preponderantemente, habitavam o logos e o

    pathos. Esses dois ambientes proporcionavam duas experincias distintas das prticas de falapblica:

    Na gora, mltiplas atividades transcorriam simultaneamente, enquanto aspessoas se movimentavam, conversando em pequenos grupos sobre

    21 Marilena Chau sublinha a relao entre as mudanas ocorridas e o nascimento da filosofia:A filosofia nasce,portanto, no contexto da plis e da existncia de um discurso (logos) pblico, dialogal, compartilhado,decisional, feito na troca de opinies e na capacidade para encontrar e desenvolver argumentos que persuadamos outros e os faam aceitar como vlida e correta a opinio emitida, ou rejeit-la se houver fraqueza dos

    argumentos. (CHAU, 2002, p. 44). Para mais detalhes sobre o deslocamento de um logos mgico-sagrado paraum logos poltico, conferir Vernant (1962, p. 41) e Detienne (1981, p. 102).22 H entre essas duas pocas o chamadoPerodo Arcaico, que se estende do final do sculo VIII a.C. ao incio dosculo V a.C. Sobre esse perodo da Antigidade grega, ver, Chau (2002, p. 16).

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    diferentes assuntos ao mesmo tempo. No havia nenhuma voz dominante.Nos teatros da velha cidade, as pessoas ainda ocupavam seus lugares paraouvir uma nica e clara voz. Os stios urbanos mais amplos apresentavamperigo para a linguagem, pois neles, em meio s atividades concomitantes eininterruptas, as palavras se dispersavam entre murmrios das vozes; amassa dos corpos em movimento nada percebia alm de fragmentos dosentido que elas expressavam. No teatro, a voz singular assumia formaartstica, atravs das tcnicas de retrica. Os locais reservados aosespectadores eram to organizados que amide a eloqncia os vitimava,paralisando-os e humilhando-os com seu fluxo. (SENNETT, [1994] 2003,p. 47).

    Em razo de nosso objeto de reflexo, interessamo-nos antes pelos tumultos da gora

    (lugar privilegiado dos encontros, debates e assemblias pblicas) do que por uma certa

    ordem apassivadora dos teatros; embora, eventualmente, esses recintos tenham sidoutilizados para reunies polticas, e ainda tenham sido tomados como modelos para a

    concepo e uso de stios polticos como a Casa do Conselho, Bouleuterion, ou a colina de

    Pnice (cf. SENNETT, [1994] 2003). Nossa predileo, contudo, no implica a

    desconsiderao da dimenso poltica das prticas culturais dessa poca, como, por exemplo,

    a relevncia das tragdias tanto pela temtica de algumas delas quanto pela sua prpria forma

    de apresentao. Face isegora e parrhesa, diferentemente, portanto, das assemblias

    homricas, as quais se caracterizavam pelo clima pacato e tranqilo, o orador clssico

    vislumbrava os riscos de freqentes rudos, comentrios e tumultos e pedia solicitamente a

    ateno e o silncio de seu auditrio para se fazer ouvir. Por vezes, era preciso que o tribuno

    interrompesse seu discurso, fizesse uma digresso ftica, para que ele no fosse,

    seguidamente, interrompido. NaHistria da Guerra do Peloponeso, por exemplo, Tucdides,

    aludindo j na sua poca aos rigores historiogrficos e revelando como se deu a reproduo

    dos discursos que constam em sua obra, apresenta uma srie de elogios oratria, uma

    verdadeira apologia palavra23. As referncias s assemblias, as reprodues dos discursos

    e os enaltecimentos eloqncia, sobretudo, a de Pricles e de Antifon, pululam naHistria,

    de Tucdides.

    A fala pblica e os valores democrticos a ela intrinsecamente relacionados esto

    presentes em quase toda extenso da Histria da Guerra do Peloponeso, mas so

    particularmente marcantes na cerimnia de enterramento dos atenienses mortos ao fim do

    primeiro ano da Guerra. Trata-se de uma das mais clebres passagens da Histria, na qual,

    no sem razo, Pricles foi o escolhido para encerrar o ritual fnebre com um discurso,

    23 Sobre o mtodo historiogrfico de Tucdides, o modo como foram registrados os discursos que constam emsuaHistria e a valorizao da fala pblica, ver Tucdides ([411 a.C.] 1986, respectivamente s pginas 27-28,28 e 77-81).

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    conforme era o costume dos antepassados. Ao finalizar a descrio do rito, Tucdides

    acrescenta: Aps o enterro dos restos mortais, um cidado escolhido pela cidade,

    considerado o mais qualificado em termos de inteligncia e tido na mais alta estima pblica,

    pronuncia um elogio adequado em honra dos defuntos. (TUCDIDES, [411 a.C.] 1986, p. 96-

    97). E antes de dar voz ao prprio Pricles, Tucdides, tendo afirmado que havia sido ele,

    Pricles, o indicado, relata o modo como o mais renomado dos comandantes militares gregos

    tomou a palavra:No caso presente das primeiras vtimas de guerra, Pricles filho de Xntipos

    foi escolhido para falar. No momento oportuno ele avanou para o mausolu, subiu

    plataforma, bastante alta para que sua voz fosse ouvida to longe quanto possvel pela

    multido [...] (TUCDIDES, [411 a.C.] 1986, p. 97, grifo nosso). De acordo com o relato de

    Tucdides, podemos observar que, embora se tratasse de uma ocasio em que no haveriadebate de opinies, de uma situao na qual o silncio ouvinte se estabeleceria facilmente,

    dado o carter solene-fnebre das circunstncias, h uma ntida preocupao em envolver o

    episdio pelo aparato ritualstico e de fazer com que o orador fosse visto e ouvido pelo

    auditrio.

    O respeito s circunstncias funreas e o silncio dos mortos na Guerra no

    correspondem ao ambiente dinmico das assemblias representadas em tantas passagens da

    Histria da Guerra do Peloponeso. Tomemos, por exemplo, duas das mais animadas dessasreunies, a saber: a) a assemblia na qual os gregos de Samos, convencidos de que a aliana

    com o rei Darios seria a nica soluo a ser adotada para vencer os habitantes do Peloponeso,

    propem o retorno de Alcibades para que, por meio dele, essa aliana fosse estabelecida:

    Ao mesmo tempo os emissrios mandados de Samos com Psandroschegaram a Atenas e falaram diante do povo resumindo inmerosargumentos, insistindo particularmente em que, se chamassem Alcibadesde volta e no mantivessem a mesma forma de democracia, poderiam ter o

    Rei como aliado e vencer os peloponsios. Quanto democracia, muitosfalaram contra a proposta, e os inimigos de Alcibades aproveitaram aoportunidade para protestar em altos brados, dizendo que seria intolervelreceb-lo de volta aps a violao pelo mesmo das leis da cidade.(TUCDIDES, [411 a.C.] 1986, p. 408, grifo nosso)

    e b) o confronto verbal entre os enviados dos Quatrocentos e os soldados democratas que

    ficaram em Samos, em uma assemblia em que somente com muito custo Alcibades

    conseguiu acalmar os soldados, fazendo-os desistir do atacar seus prprios conterrneos na

    Inia, onde seriam dominados pelos peloponsios:

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    Os emissrios dos Quatrocentos, mandados na poca mencionadaanteriormente para apaziguar os soldados em Samos e dar-lhes explicaes,chegaram finalmente de Delos quando Alcibades j estava em Samos, etentaram falar durante uma reunio da assemblia. Os soldados a princpiono quiseram ouvi-los, e ameaaram de morte, aos gritos, os destruidores dademocracia; a muito custo se acalmaram, afinal, e os ouviram. Osemissrios declararam que a revoluo havia sido feita no para arruinar acidade, mas para salv-la, e nunca para que Atenas fosse entregue aoinimigo [...] Embora tenham dito tudo isto e ainda mais, no conseguirampersuadir os soldados, que continuavam irados e apresentavamseguidamente vrias sugestes, particularmente a de embarcaremprontamente para atacar o Pireu. (TUCDIDES, [411 a.C.] 1986, p. 422-423, grifos nossos).

    No que respeita ao Perodo Helenstico, as assemblias parecem ter se tornado ainda

    mais intensas e ativas, de modo que, conforme podemos observar em alguns excertos dediscursos de Demstenes, tornava-se necessrio suspender a fala para solicitar ao auditrio

    que no se dispersasse, que no interrompesse o orador e que no o apressasse:

    Avant de vous prononcer, veuillez m'couter jusqu'au bout; attendez pourprendre parti; et si les mesures que je propose vous semblent nouvelles,n'allez pas m'accuser de crer ainsi des retards. Il ne sert rien d'avoirtoujours la bouche ces mots: "Vite", "Ds aujourd'hui". (DEMSTENES,[384 a.C.-322 a.C.] 1968, p. 40, grifo nosso)

    Certes la dlibration, par elle-mme, est toujours ardue et difficile; maisvous, Athniens, vous l'avez rendue bien plus difficile encore. Partoutailleurs, en effet, on a l'habitude de dlibrer avant l'vnement; vous, c'estaprs l'vnement que vous dlibrez. La consquence, je l'ai toujoursconstat, c'est que l'orateur qui critique les erreurs commises se fait unsuccs; on admire comme il parle bien; mais le parti prendre, ce qui taitproprement l'objet de votre dlibration, vous chappe.N'importe: je pense et c'est dans cette conviction que je prends la parole que si vous voulez bien faire trve aux cris et aux disputes pour m'couter, comme il convient quand la rpublique, quand nos plus graves intrts sonten jeu, j'aurai vous proposer un avis qui pourra amliorer nos affaires et

    mme sauver ce qui a t abandonn. (DEMSTENES, [384 a.C.-322 a.C.]1946, p. 9-10, grifo nosso)

    Essas assemblias so tumultuadas e efervescentes porque o silncio e a passividade

    so concebidos pejorativamente. Por outro lado, se nos fiarmos em um dado pouco

    representativo visto que se trata do nico que conhecemos que sugere uma maior

    afinidade dos romanos com os oradores homricos do que com os gregos que lhes eram

    contemporneos, talvez pudssemos encontrar alguns indcios de que alguns latinos

    valorizavam euforicamente a mudez de um auditrio atento. No Dilogo dos Oradores [81

    d.C.], de Tcito, Aper, antecipando-se a Maternus que defender os mritos da poesia,

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    endossar a tese segundo a qual, em detrimento dessa ltima, a eloqncia a atividade da

    linguagem que tem maior valor e por meio da qual se obtm prazer com o silncio dos

    ouvintes:

    Je passe aux jouissances que procure l'loquence digne d'un orateuraccompli; l'agrment n'en est pas d'un instant fugitif, mais presque de tousles jours et presque toutes les heures. [...] Ce n'est pas tout. Quel cortge decitoyens en toge quand tu sors! Quel spectacle imposant dans la rue! Quelrespect au tribunal! Quel joie de se lever pour parler ou pour assister un amiau milieu d'un auditoire silencieux, o tous les visages sont tourns vers toi!(TCITO, [81 d.C.] 2003, p. 28-29, grifo nosso)

    Ao invs de uma disciplina que instauraria uma pretensa escuta inteligente e fecunda,

    impe-se a desordem ativa de uma assemblia constituda de iguais, na qual cada um daqueles

    que dela participam instado a intervir efetivamente, dizendo aquilo que acredita ser til

    cidade. Mas, para tanto, era preciso um certo domnio de recursos da lngua, do corpo e da

    voz, sob a pena de ser facilmente interrompido ou de no conseguir quase nada dizer. No por

    acaso aRetrica24, de Aristteles, apresenta preocupaes no seu Livro III em torno daquilo

    que os latinos (principalmente, Ccero e Quintiliano) chamaro de actio, ou seja, todo

    investimento retrico da mise en scne gestual, mmica e vocal do orador, quando de suas

    alocues em pblico. Nesse sentido, so bastante conhecidas as lendas relacionadas

    preparao e aos ensaios de Demstenes antes de seus discursos nas assemblias25. Tendo em

    vista que a relao entre o orador e seu auditrio poderia ser imaginada como uma luta entre

    duas emisses sonoras, buscando pari passu a audincia e a ateno, uma contra a outra,

    absolutamente importante que o tribuno tenha, alm do emprego dos expedientes retricos,

    que datam j do Perodo Homrico, uma bela e potente voz. Ou, conforme afirma Montiglio:

    En effet, nous savons qu'une voix faible et dfectueuse empchait srieusement l'orateur de

    faire son entre dans la vie politique. (1994, p. 37).

    24 Aristteles ([384 a.C.-322 a.C] s.d).25Segundo a tradio o grande orador ateniense custou muito a alcanar a perfeio refletida na Orao daCoroa lanou mo, para chegar a esse estagio final, dos recursos mais desencontrados. Ter-se-ia recolhido auma caverna, com metade dos cabelos raspados para melhor resistir tentao de deixar seu isolamento, e lteria copiado oito vezes aHistria da Guerra do Peloponeso, vigorosa obra de Tucdides, historiador grego dagerao anterior e seu modelo. Para corrigir os defeitos de articulao de certos sons punha pequenas pedrassobre a lngua. Falava a princpio diante do espelho para aprimorar a gesticulao. Falava beira-mar para

    conseguir tornar a voz mais forte que o rudo das ondas e capaz de sobrepujar o murmrio do povo nasassemblias. Fez-se discpulo de um dos maiores atores da poca (Neoptlemo), ao qual pagou uma fortuna afim de dar voz a empostao perfeita. (KURY, 1965, p. 8; Introduo. In:DEMSTENES [384-322 a. C.]1965)

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    1.2.2. Falar em pblico na Idade Mdia

    Aps essas nossas breves consideraes sobre alguns dos diferentes tipos de relaes

    que se estabelecem, por meio da fala pblica, entre o tribuno e seu auditrio nos Perodos

    Homrico, Clssico e Helenstico, passaremos, em seguida, a um ligeiro levantamento de

    algumas das caractersticas das prticas de fala pblica na Idade Mdia26. Em face desse longo

    perodo (que se estende do sculo V at o final do sculo XV e comeo do sculo XVI),

    optamos por discorrer, rapidamente, sobre alguns dos traos mais marcantes da fala pblica

    eclesistica da Baixa Idade Mdia.

    A linguagem era absolutamente importante no convvio nas cortes da Baixa Idade

    Mdia. Seu domnio valia a condio de seu usurio e, por essa razo, estar na corte era j, de

    algum modo, falar em pblico, empregando os recursos do verbo, do corpo e da voz. Porm, a

    fala pblica por excelncia do perodo medieval foi, sem dvida, a pregao eclesistica. No

    que se refere s relaes entre o orador, o pronunciamento e o pblico na fala pblica

    religiosa medieval, que buscava, em princpio, mas no exclusivamente, a converso e a

    salvao, preciso no perder de vista que ela se caracterizava pela intensificao de um

    paradoxo presente em quase toda ocasio de fala pblica: ela estabelecia uma rgida diviso

    entre locutores e ouvintes, quando reunia os paroquianos e, ao mesmo tempo, instaurava, no

    prprio interior dessa reunio, uma estvel diviso entre clrigos e leigos. Mas a enunciao

    da palavra sagrada tinha ainda outras peculiaridades: adaptando-se aos seus diferentes

    auditrios, os pregadores distinguiam, em suma e diferentemente no curso da histria

    medieval, os sermes ad cleros e os sermes ad populum. Com base nessa distino, Marie-

    Anne de Beaulieu prope a instituio de uma cronologia dos desenvolvimentos de vriostipos de predicao que se desenrolaram ao longo da Idade Mdia. Assim, a autora discerne

    esquematicamente trs perodos:

    26 Conforme se pode observar, diferentemente do exerccio que fizemos para caracterizargrosso modo umaspecto da fala pblica na Antigidade, recorrendo a fontes primrias (a Ilada e a Odissia, a Histria daGuerra do Peloponeso e alguns discursos de oradores gregos) e a interpretaes que delas foram feitas, aqui,

    dadas as dificuldades de acesso s fontes, valer-nos-emos to-somente de alguns consagrados comentrios e dealgumas recentes referncias acerca da Idade Mdia. Cremos, porm, que a ausncia de fontes primrias noinviabilizar o escopo de nosso trabalho em torno da poca medieval, uma vez que pretendemos somente, comodito, ressaltar algumas das propriedades mais evidentes da fala pblica desse perodo.

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    uma Alta Idade Mdia marcada por uma pregao mais voltada para osclrigos (sculos V-X); uma Idade Mdia Central (sculos XI-XII) nodecurso da qual a pregao se diversifica; e uma Baixa Idade Mdia(sculos XIII-XV) que v a emergncia de uma verdadeira pregaopopular, quer dizer, destinada ao povo, paralelamente ao aprofundamento dapregao aos clrigos. (BEAULIEU, 2002, p. 367)

    Se na Antiguidade tardia a pregao desempenhava a funo de preparar para a

    converso, sendo que as prdicas eram um monoplio episcopal exercido no quadro do

    catecumenato e da missa, na Alta Idade Mdia, o batismo, conferido s crianas logo aps o

    nascimento, e as atribuies polticas e administrativas do episcopado reconfiguraram os

    objetivos da pregao e seu prprio desempenho. Nesse perodo, dois indcios poderiam

    apontar para uma suposta popularizao dos sermes, a saber, a proliferao dos homilirios,entre os sculos VI e IX, e a apario do plpito, no sculo IX. No entanto, o plpito era

    apenas encontrado em algumas poucas e privilegiadas igrejas episcopais e monsticas, e as

    pregaes efetivamente ad populum, realizadas pelo baixo clero, eram bastante limitadas tanto

    no que se referia sua regularidade quanto no que dizia respeito ao seu domnio doutrinal,

    restringindo os sermes a comentrios e conselhos morais. Assim, a conjuno dos esforos,

    com vistas a democratizar as alocues religiosas durante a Alta Idade Mdia, no gozou de

    bons resultados, visto que a pregao continuou a ser geralmente erudita, endereada em

    latim aos clrigos. No curso deste perodo muito tumultuado, o povo permaneceu afastado da

    palavra sagrada (BEAULIEU, 2002, p. 369).

    Embora a pregao aos clrigos tenha se tornado cada vez mais erudita e a produo

    dos homilirios tenha sido consideravelmente reduzida, uma relativa inflexo na pregao, no

    perodo que Beaulieu denomina Idade Mdia Central, pode ser vislumbrada, por exemplo, nas

    prdicas da figura monstica mais eminente dessa poca: So Bernardo, que concebia e

    pronunciava seus sermes em latim, para os clrigos, e em lngua vulgar, para o povo.

    Ultrapassando o quadro monstico, a pregao estendeu-se s escolas e s igrejas paroquiais:

    fiis urbanos e rurais ouviam pregadores itinerantes, que, uma vez entregues vida apostlica,

    haviam recebido autorizao da Igreja para pregar. Entretanto, desde o fim do sculo XII,

    proliferaram os pregadores leigos que exerciam a funo sagrado-profana de difundir a

    palavra de Deus sem o consentimento eclesistico e, por vezes, mesmo revelia da Igreja ou

    contra ela. Face ausncia de controle e ao conseqente crescimento dos movimentos

    heterodoxos, o alto clero tornou a conteno da predicao leiga, popular e para o povo uma

    de suas fundamentais prioridades.

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    Somente entre os sculos XIII e XV, que se pode falar de uma efetiva emergncia da

    pregao popular. Na mais alta hierarquia eclesistica, os papas regulamentavam e

    estimulavam as prdicas, delegando aos bispos a funo de verificar a competncia, o valor

    moral e a ortodoxia dos pregadores. Esses, por seu turno, deviam expor artigos de f e

    combater heresias nas preces e nos sermes de domingo e dias de festa. justamente nessas

    circunstncias que surgem as Ordens Mendicantes e Dominicana que se tornaram rapidamente

    responsveis pela promoo da pregao popular. Depois de ter sido autorizado pelo Papa

    Inocncio III a pregar a penitncia em todos os lugares, So Francisco de Assis ampliou essa

    autorizao a outros clrigos, mas tambm a leigos. A extenso aos leigos do direito de pregar

    reintroduziu o problema da autoridade para difundir a palavra sagrada, fazendo com que,

    posteriormente, Gregrio IX proibisse a pregao pblica laica. Desde ento, franciscanos edominicanos apenas podiam pregar em igrejas ou praas pblicas com a devida permisso do

    proco e em horrios pr-determinados, de modo que no houvesse concomitncia entre as

    pregaes do itinerante e do eclesistico local.

    Tendo se tornado uma questo cada vez mais especializada, exigindo uma longa

    formao e uma iniciao aos segredos do ofcio, a pregao tambm passou a impor uma

    vida quase sempre itinerante ao orador. Essa exigncia advinha do fato de que o pregador

    ideal deveria estar apto a pregar nas mais diversas circunstncias, nos mais distintos lugares epara os mais variados pblicos: desde cortes principescas, passando pelas universidades,

    conclios e colgios, at as mais simples parquias. Nessas ocasies, conforme sublinha

    Beaulieu, os pregadores atraam multides considerveis, transformando praas pblicas e

    monumentos profanos em locais de pregao (2002, p. 373). J por volta do sculo XIII,

    houve uma verdadeira fragmentao e democratizao dos pblicos: os clrigos

    compuseram diferentes tipos de sermes que eram destinados aos prncipes, nobres,

    mercadores, burgueses, estudantes, camponeses, marinheiros, ou, ainda, aos casados, smulheres e s crianas. A popularizao dos sermes desenvolveu-se de tal modo, que

    A pregao podia ser animada pelas intervenes dos ouvintes (questes,objees), por representaes imaginadas pelo pregador (mediante brados,dilogos fictcios, mimodramas e gestos) e pelo recurso aos exempla anedotas exemplares, muitas vezes tiradas da vida cotidiana cujo tomoscilava entre o drama cristo e o efeit