Reforma Universitária e Diretrizes Curriculares (1)

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    Mnemosine Vol.8, n1, p. 178-193 (2012) Artigos

    Departamento de Psicologia Social e Institucional/ UERJ

    Reforma Universitria e Diretrizes Curriculares:a formao reativa da graduao em Psicologia

    University Reform and Curriculum Guidelines: the reactive formation ofthe graduation in Psychology

    Wilson Alves Senne

    Universidade Federal da Bahia

    RESUMO:Em vista da multiplicao acelerada dos novos cursos de graduao em psicologia, a

    partir de 1995, e da conseqente desvalorizao da profisso no mercado de trabalho, opresente estudo crtico visou 1) contextualizar brevemente a reforma universitria nombito da reforma do Estado, que presidiu essa multiplicao; 2) analisar o texto dasDiretrizes Curriculares Nacionais para as graduaes em Psicologia para mostrar queenquanto projeta um perfil profissional flexvel e polivalente, aberto ao mercado,pretende contornar o risco de disperso da profisso reforando as basesepistemolgicas e a investigao cientfica naturalstica em psicologia admitindo-seassim uma via que, alm de no especificar a psicologia diante de outras profisses,talvez tambm iniba, nos estudantes, aquilo que nela o senso-comum mais valoriza: apsicologia como uma cincia humanae enquanto prtica principalmente clnica.

    Palavras-chave:reforma universitria; currculo; graduao; prtica profissionalABSTRACT:Due to the accelerated multiplication of the new graduation courses in psychology,since 1995, and the consequent devaluation of the profession on the labor market, thepresent critical study aimed 1) contextualize the academic reform of the State, thatpresided this multiplication; 2) Analyze the National Curriculum Guidelines text forthe graduations in psychology showing that while it designs a flexible and polyvalentprofessional profile that is opened to the market, intend to outline the risk of dispersionof the profession fortifying the epistemological basis and the naturalistic scientificinvestigation in psychology when this path, aside from not specifying psychology

    against other professions, probably also inhibits what could valorize it: peoples intereston psychology as a human science, and as a mainly clinicalpractice.

    Key-words:academic reform; curriculum; graduation; professional practice.

    Formao e atuao em Psicologia: da clnica particular ao campo social

    A psicologia, regulamentada como profisso no Brasil em 1962, teve suas

    primeiras graduaes modeladas segundo uma diviso que se estabelecia em termos de

    reas de atuao tradicionalmente a clnica, a escola e a industrial , mas no demoroumuito para que a clnica de extrao psicanaltica se estabelecesse como a rea mais

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    nobre da profisso. No cabe no bojo deste trabalho detalhar as razes que levaram o

    Brasil a se tornar, no dizer de M. Berlinck (1989), o terceiro mercado mundial de

    psicanlise, e, num futuro prximo, talvez o segundo, ficando atrs apenas dos Estados

    Unidos. Diversos estudos (VELHO, 1981; FIGUEIRA, 1985; COSTA, 1984; RUSSO,1993; VAITSMAN, 1994; COIMBRA, 1995) avaliam as razes histricas que levaram

    a clnica a se tornar um modelo hegemnico at o ponto em que o prprio conceito de

    psiclogo aparecesse profundamente associado, seja no imaginrio do senso-comum ou

    dos pretendentes formao que chegam universidade, com esta atividade em

    particular. A poca em que a clnica esteve em seu melhor momento correspondeu ao

    endurecimento do regime militar e ecloso do milagre brasileiro (fins da dcada de

    1960 e comeo da dcada de 1970), e a relao entre um contexto politicamenterepressivo e uma teorizao emancipatria como a psicanlise bastante explorada.

    Setores das classes mdia e alta, favorecidos economicamente pelo regime poltico,

    aparentemente encontraram nos divs uma ocasio predileta para elaborar contradies

    pessoais entre pblico e privado ou entre conservadorismo e desejo de inovao, alm

    de compartilhar, no esprito de uma poca de vanguardas libertrias, de um ethosgrupal

    culto e crtico.

    Se at meados dos anos 1970 a clnica psicanaltica viveu seu auge, entrando os

    anos 80, no entanto, entre crises econmicas e estagnao, mudou o padro de consumo

    do segmento social que frequentava os consultrios, e o campo profissional foi forado

    seja a retomar reas tradicionais que haviam estado secundadas ou ento,

    principalmente, a se diversificar atravs das chamadas prticas emergentes. Dentre

    estas, destacam-se as da rea social (que envolve educao, sade e ao social), um

    novo espao de insero que se abriu em consequncia de uma srie de acontecimentos

    sociais e polticos que marcaram o perodo (movimentos sociais, formao de novos

    partidos polticos, criao da terceira via, movimento sanitarista e dos trabalhadores

    da sade mental, etc.). A formao em psicologia, que tinha como modelo principal os

    consultrios privados e que se punha a servio de uma clientela de classe mdia ou alta,

    teve que comear a se redirecionar para as demandas das classes populares e adotar

    outros modelos (pblicos, comunitrios) de atuao, perfazendo uma transio que s se

    tornou de fato premente na dcada seguinte, com a multiplicao acelerada de novos

    cursos de psicologia orquestrada pelo governo.

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    Com a reforma do Estado e a implantao de uma poltica de expanso da rede

    de ensino, sobretudo privada, em meados dos anos 1990, a quantidade de cursos e de

    diplomados na praa comeou a exceder de longe tanto o mercado da clnica dos

    consultrios, que j no ia to bem, quanto o das prticas emergentes, que ainda eram

    incipientes.1 O rendimento mdio dos profissionais em psicologia despencou - e teria

    certamente se desvalorizado ainda mais se os rgos de representao da categoria,

    crescendo em nmero e mobilizando-se nacionalmente em rede, no pleiteassem e

    conseguissem a abertura de novos postos de trabalho principalmente junto ao setor

    pblico, amortecendo parte dessa desvalorizao. Com efeito, com desvelo que hoje

    se comemora o papel que os Conselhos e outras entidades da categoria tiveram no

    credenciamento da psicologia junto ao MEC e ao MS, conseguindo oficializar a

    psicologia como profisso da rea da sade, em 1997, e incluir, desde ento, alguns

    milhares de psiclogos para atuao em programas sociais e de sade, em unidades

    bsicas, CRAS, CREAS, CAPS, NASF etc.

    A Reforma do Estado e o impacto sobre a graduao em psicologia

    A inflao de ttulos de psicologia na praa poderia sem dvida ter sido melhor

    regulada, mas tornou-se praticamente inevitvel desde que, para tirar o pas da profunda

    crise fiscal em que se encontrava, o governo de Fernando Henrique Cardoso, assim que

    empossou em seu primeiro mandato, em 1995, assumiu realizar a reforma do Estado,

    criando o MARE (Ministrio da Administrao da Reforma do Estado) e encarregando

    o ministro Bresser-Pereira de capitane-lo. Essa reforma significou implantar uma srie

    de mudanas administrativas (a chamada agenda neoliberal) ditada pelos credores

    internacionais Banco Mundial, FMI, OMC , com destaque para a minimizao do

    Estado no tocante s polticas pblicas (ajuste fiscal), a liberao das foras de mercado

    (desregulamentaes) e o incentivo iniciativa econmica e aos investimentos externosdiretos (privatizaes). Para os defensores desta poltica de administrao pblica, a

    iniciativa privada poderia desempenhar melhor e mais barato muitas atividades que

    estavam ao encargo do Estado, advogando-se maior eficincia gerencial dos recursos

    pblicos como motivo para transferi-los para o setor privado incluindo-se setores de

    pesquisa, de educao e sade que at ento eram considerados bens coletivos e direitos

    adquiridos de cidadania.

    Na lgica encampada pela reforma, alm das tradicionais esferas pblica eprivada, haveria que ser reconhecida legalmente e desenvolvida competentemente uma

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    terceira esfera, dita pblica no-estatal, composta por um tipo especial de entidades

    privadas sem fins lucrativos que prestam servios de relevante interesse pblico as

    chamadas OSs (Organizaes Sociais). De acordo com o plano diretor da reforma, a

    educao e a sade pblica continuariam sendo financiadas pelo Estado, mas atravs decontratos de gesto com essas entidades no-estatais que receberiam subveno do

    governo federal para prestar servios de interesse coletivo. (B-PEREIRA&GRAU,

    1999)

    Para que a iniciativa privada se ocupasse da criao da maior parte das vagas no

    ensino superior, tratou-se de atrair capital corporativo atravs de isenes fiscais,

    convnios e parcerias, criando programas de incentivo (como o FIES e o PROUNI, que

    financiam ou compram vagas pblicas na rede privada) e tomando outras medidas legaise administrativas de agrado dos credores. Entre essas medidas, se destacou aquela que,

    projetada desde o governo Sarney (e Marco Maciel no MEC), e implementada sob

    decreto (no. 2.306) em 1997, distinguiu universidades de pesquisa e universidades de

    ensino. Esta separao permitiu a criao e difuso dos centros universitrios,

    instituies de ensino que ( diferena de uns poucos centros de pesquisa de excelncia

    que continuariam sendo mantidos com recursos pblicos) so universidades dispensadas

    de produzir pesquisa e de possuir ps-graduao, e por isso, capazes de oferecer cursos

    mais baratos, voltados para a (grande) clientela das classes C e D.

    O pacote de medidas da reforma do ensino superior incluiu tambm uma

    reestruturao curricular favorvel diversificao dos cursos e das IES, sendo

    sugerido, atravs da LDB de 1996, um modelo de formao no mais restrito

    graduao, mas assumida na perspectiva da formao continuada dos cursos

    sequenciais. De acordo com o novo modelo, tratava-se de conjugar, flexivelmente, um

    tempo mais curto para os cursos individuais (de modo a serem dados em maior nmero

    de maneira presencial ou distncia, diurnos ou noturnos , como ps-graduaes,

    MBAs etc), com uma quantidade mxima de saberes (essencialmente tecno-

    instrumentais, organizados para assimilao rpida e programtica) fornecidos

    maneira de mdulos sequenciais. Alm disso, para favorecer a adaptao produto-

    cliente, as empresas/instituies de ensino ganhariam liberdade para compor at 50%

    dos contedos formativos da grade curricular de acordo com as demandas do

    profissional/mercado, podendo juntar s graduaes, desde ento, componentes variados

    e mesmo inusitados como cursos sobre apresentao pessoal em entrevistas, seminrios

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    de responsabilidade social, palestras sobre empreendedorismo, oficinas de leitura

    dinmica...e o que mais a modernidade exigir.2

    As novas Diretrizes Curriculares: competncias e cientificidade

    Para reformar os currculos de graduao, o SESU-MEC constituiu equipes de

    especialistas e as encarregou de formular as Diretrizes Curriculares; depois de alguns

    anos de trabalho que incluram a troca das equipes e um vai-vem de minutas, pareceres e

    consultas s entidades,3negociando-se aspectos, elas foram, enfim, institudas no caso

    da psicologia, em 2004. A anlise deste documento interessante no que possui de

    sintomticanum sentido psicanaltico, ou seja, enquanto uma tentativa de defesa contra

    uma determinada concepo de psicologia por intensificao de uma anttese, mas de ummodo to exagerado que acaba denunciando o lado avesso que se tenta, justamente,

    afastar ou esconder. Como vamos ver, nas Diretrizes afirmou-se to insistentemente o

    carter cientificoda psicologia e as competncias do psiclogo que somos lembrados dos

    exemplares tpicos da reao defensiva em clnica: por que se afirma to repetidamente

    isso? No ser, porventura, porque se quer afastar o contrrio, por exemplo, a decantada

    fragilidade cientfica das prticas em psicologia, ou a disperso do campo e a ausncia

    de definio de uma competncia real?

    Seno por isso, vejamos.

    De posse do texto das Diretrizes Curriculares em psicologia notamos que,

    precedidas de um parecer que comea explicitando, sem nenhum prembulo, que se trata

    de substituir uma tradio curricular caracterizada pela enunciao de disciplinas e

    contedos programticos por diretrizes curriculares baseadas em competncias e

    habilidades profissionais, vemos que ao longo de meia dzia de pginas o leitor pode

    ler nelas mais de trinta vezes repetida esta palavra competncias que aparece

    definida no Art. 8, como dizendo respeito a desempenhos e atuaes requeridas do

    formado em Psicologia. Sendo este o eixo principal de toda reformulao curricular, ele

    tambm poderia ser dito demanda de mercado, embora a palavra competncia, de

    origem jurdica, soe mais conveniente por sugerir conhecimentos ou habilidades que so

    requeridos como desempenhos e atuaes dentro de determinada rea ou circunscrio

    reconhecida e legitimada. Notamos que competncia uma palavra que junta tanto o

    sentido (interno) de capacidade de expressar juzo de valor sobre algo a respeito de que

    versado (uma soma de conhecimentos ou de habilidades, portanto) quanto o sentido

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    (externo) de atribuio, alada, conta, no sentido de qualidades conferidas a algum

    para conhecer e deliberar dentro de uma determinada jurisdio ou domnio. Como na

    palavra mercado, porm, o sentido da territorialidade tambm no se desagrega da

    palavra competncia (e as Diretrizes o reforam, repetindo como um mantra: domniodo conhecimento, domnio de atuao profissional, domnio da Psicologia...), alm

    do que, quem diz competncia no deixa de conotar competio, concorrncia,

    disputa, luta, que so igualmente evocativos do mercado. (Dicionrio Houaiss, 3.0)

    O fato que em nome das tais competncias, as Diretrizes substituram o

    currculo mnimo, de 1962, que era organizado em disciplinas e que se conclua com os

    estgios, por um novo currculo de graduao ora dividido em duas partes, consistindo

    em um ncleo comum de disciplinas ditas fundamentais, na primeira metade, e naoutra, as chamadas nfases curriculares, mais os estgios supervisionados. A noo de

    nfases curriculares, como novidade principal das Diretrizes da psicologia,

    explicitada no Art. 10 como um conjunto delimitado e articulado de competnciase

    habilidades que configuram oportunidades de concentrao de estudos e estgios em

    algum domnio da Psicologia (grifos nossos). Repeties parte, embora as nfases

    sejam referidas aos domnios mais consolidados de atuao, as Diretrizes destacam

    que estes seriam apenas pontos de partida, isto , nfases possveis, entre outras,

    dando-se exemplos: Psicologia e processos de investigao cientfica; Psicologia e

    processos educativos etc.

    Assim, se a graduao consistia num longo ncleo comum (feito de diferentes

    teorias, mtodos ou doutrinas), de modo que o aluno s tinha de escolher uma das reas

    de atuao (clnica, escolar, industrial) nos estgios do ltimo ano, doravante o ncleo

    comum haveria que ser encurtado (dispensando-se preferencialmente disciplinas

    introdutrias e de cunho humanstico, como Introduo Sociologia, Antropologia,

    Filosofia, tica... para abrir espao s bases epistemolgicas, cientficas e profissionais),

    tendo o aluno de escolher, j no meio do curso, uma direo qual agregar recursos

    conceituais e de atuao. Com mais este detalhe: as nfases dadas sua escolha

    (segundo as Diretrizes, cada curso precisa dispor de ao menos duas) no seriam mais

    fixas e, sim, oferecidas pelas empresas/instituies, conforme elas queiram se basear

    nos domnios tradicionais de atuao ou propor recortes inovadores de competncias

    que venham instituir novos arranjos de prticas no campo (Art. 12).

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    Como se tratava de desancorar a formao de uma graduao considerada

    demasiado terica para lig-la aos novos arranjos de prticas, as Diretrizes da

    psicologia foram formuladas evitando-se fazer qualquer referncia aos grandes e

    principais sistemas tericos que sempre marcaram e no s teoricamente - o campo,

    ou seja, sem qualquer meno psicanlise, abordagens behavioristas ou Psicologia da

    Gestalt. Por outro lado, dada a decantada flexibilidade que o mercado exige, para evitar

    limitar as possibilidades, as Diretrizes s especificaram minimamente o que seria

    exclusivo na formao, quase s indicando, alis, o que no exclusivo da competncia

    do psiclogo: levantar e analisar necessidades..., avaliar fenmenos humanos...,

    atuar inter e multiprofissionalmente..., coordenar e intervir em processos grupais...

    Resultando bastante vaga, a verso otimista dos comentrios sobre as Diretrizes

    que elas seriam bem adequadas para a formao de um profissional polivalente, um

    multiprofissional; porm uma vez que este ser genrico o que deve estar contido em

    todas as profisses, por carecerem de uma mais clara especificao do fazer do

    psiclogo, as Diretrizes arriscam-se a se adequar, de fato, a uma orientao para a

    formao de profissionais multi-uso ou multi-tarefeiros. Ou seja, ao procurarem ser

    mais abrangentes, para abraar vrias possibilidades de mercado ao mesmo tempo, cabe

    perguntar se no ficaria a profisso exposta ao risco de diluir-se entre tantos arranjos

    de prticas possveis. Afinal, nas Diretrizes ou atravs delas, o que se mantm da

    especificidade do psiclogo? O que seria bsicoem sua formao? Quais so os traos

    de sua identidade profissional mnima?

    O senso-comum da psicologia como clnica e a pesquisa cientfica

    Se quisermos fazer uma idia de como as pessoas em geral representam um

    psiclogo, no h nenhuma dificuldade; basta digitar psiclogo (ou psychologist) no

    buscador de imagens do Google para ver que, alm do smbolo da psicologia, o que

    primeiro aparece com destaque total Freud e o div, ou a tpica cena da clnica

    psicolgica (o terapeuta e o paciente). Mas se de um lado esta a imagem do psiclogo

    para o senso-comum, de outro no faltam especialistas da profisso que a critiquem

    como smbolo de uma abordagem individualizante que fascina os estudantes e atrapalha

    a insero da psicologia nos novos contextos profissionais. Este o caso, por exemplo,

    de Gondim e Bastos (2010), que chegam a admitir a dificuldade em explicar por que a

    psicanlise persiste como a teoria mais usada [pelos psiclogos], a despeito do

    reconhecimento de que ela impe limites para a apreenso de fenmenos psicossociais

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    que se estendem para alm da dinmica intrapsquica (p. 190) uma opinio que

    poderia ser desprezada por ressoar bastante equvoca, no fosse ter sido endossada por

    um dos principais especialistas responsveis pela elaborao das tais Diretrizes

    Curriculares.Nos princpios gerais destas Diretrizes, com efeito, j se poderia notar a inteno

    manifesta de alterar a representao arraigada do psiclogo como profissional liberal,

    tentando-se estabelecer a compreenso de um ator metido em diversos campos,

    trabalhando em equipes multiprofissionais, inserido em vrios espaos sociais... Como um

    sintoma das Diretrizes de psicologia no muito querer sugerir a ampliao do campo de atuao,

    vale notar a dupla expresso psicolgico e psicossocial, que aparece duas vezes ao longo do

    documento, e que, ainda hoje rara, era muito mais rara antes que as prprias Diretrizes

    ajudassem a divulg-la. Por isso tambm a meno clnica, no texto das Diretrizes, no

    poderia ser mais discreta, evitando-se coloc-la em evidncia, fazendo-a s aparecer

    referida no documento como Psicologia e processos clnicos ao lado de cinco

    nfases possveis entre outras, quais sejam, antes de processos de avaliao

    psicolgica e depois de processos de investigao cientfica, educativos, de

    gesto e de sade (Art. 10).

    Podemos no estranhar que mesmo sendo a clnica, at hoje, o referencial mais

    importante do psiclogo e no s porque corresponde imagem pblica mais

    estampada , este domnio da atuao s aparea, na lista das nfases apresentada pelas

    Diretrizes, em penltimo lugar: so exemplares ao acaso, dir-se-ia, oferecidos

    aleatoriamente; por isso tampouco se estranha que Psicologia e processos de

    investigao cientfica aparea em primeiro: ora, poderia aparecer em ltimo, tanto

    faz... A no ser que tambm se tenha eventualmente notado, na abertura do documento,

    afirmado entre os princpios e compromissos da profisso, novamente em primeiro

    lugar, a construo e desenvolvimento do conhecimento cientfico em Psicologia

    ocorrendo ento ao leitor desconfiar de certo exagero no zelo que as Diretrizes de

    psicologia emprestam cientificidade, o que se poderia confirmar comparando-as com

    as dos demais cursos.

    Demos uma busca com a ferramenta do Google nas Diretrizes de 50 outros

    cursos disponveis no portal do MEC4 e, de fato, no encontramos nenhum outro que

    fizesse algum tipo de juramento ao conhecimento cientifico enquanto princpio e

    compromisso semelhana do que se fez em psicologia; tampouco algum quesugerisse a investigao cientfica como um tipo de nfase ou algo que merecesse

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    especial meno, como o nosso. Contamos tambm o nmero de vezes que o radical

    cientfic aparece nas Diretrizes de psicologia e nas demais: encontramos um total de

    onze vezes em psicologia e nem a metade disso, em mdia, em todos os outros cursos

    sendo que nenhum deles ultrapassa o recorde do documento da psicologia. Apareceram

    outras discrepncias relacionadas: tanto a expresso investigao cientfica (que

    desponta trs vezes nas Diretrizes de Psicologia) como a expresso fundamentos

    epistemolgicos (uma vez) no aparecem nenhuma vez nas diretrizes de qualquer outro

    curso. Do mesmo modo, buscamos a expresso conhecimento cientfico, que aparece

    trs vezes nas Diretrizes de psicologia, e s a encontramos nas Diretrizes de Geografia

    (duas vezes), e em nenhum outro curso. Tendo-se em conta que as Diretrizes da

    psicologia encheram apenas seis pginas de nosso arquivo e as dos outros cursos,

    somadas, totalizaram 300 pginas, pode-se ter uma idia do quo carregado de jargo

    cientfico aparece o documento do curso de psicologia comparado com os demais. A

    pergunta que se pode fazer mediante tal diferena flagrante a seguinte: por que, afinal,

    a graduao em psicologia, como orientada pelas Diretrizes, tem necessidade de se

    afirmar to mais cientfica que as dos outros cursos? A quem interessa arrogar-se to

    enfaticamente uma tal cientificidade?

    A resposta parece simples: com a formao ameaada pela reduo do campo

    tradicional de insero (da clnica privada) e forada a abrir-se s possibilidades

    emergentes, as Diretrizes s podiam conceber o perfil de uma profisso polivalente.

    Porm, como essa multivalncia incapaz de proteg-la do risco de superficializao e

    banalizao (bem ao contrrio!), invocou-se ento o conhecimento cientfico e a

    investigao cientfica como o que poderia, de algum modo, salvaguard-la. Pode ser

    que esta cientificidade que se quer para o currculo ajude a produzir uma postura crtica

    sobre o conhecimento disponvel e uma atitude flexvel ao gerar capacidade de anlise e

    ajustamento a diferentes contextos e problemas, como diz o Relatrio das Diretrizes,mas isso no especifica o curso de psicologia contra outros cursos de graduao (uma

    vez que cientficos por cientficos, todos so). Alm disso, por muito querer evitar que o

    curso de psicologia parea reduzido clnica, as caractersticas do fazer do psiclogo

    mantm-se muito mal determinadas.

    Vale lembrar: essa nfase na cientificidade da formao, como sugerida pelas

    Diretrizes, j se articulava no Brasil desde a dcada de 1980, sob o argumento de que a

    psicologia, sendo uma cincia jovem, a-paradigmtica, ou em construo, estariamuito susceptvel a apreenses parciais afirmadas como verdades finais; quer dizer, a

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    doutrinaes tericas que acabavam dominando a formao. (WEBER & CAHARRER,

    1982) Tratava-se, j ento, de incentivar o campo das prticas emergentes como o

    trabalho social ou com as organizaes , desinflando a influncia da clnica individual

    sobre a graduao, e especialmente da psicanlise, que a partir de ento passou a seratacada em duas frentes: uma delas, segundo motivaes crtico-epistemolgicas,

    acusada de ser pseudocientfica, uma simples mitologia; a outra, crtico-ideolgica,

    acusada de servir s elites, de incentivar uma viso e uma prtica individualizantes e

    de faltar com o compromisso social da psicologia.

    Embora no se refiram em nenhum momento psicanlise nem tenham deixado

    de sugerir os processos clnicos como exemplar de uma nfase curricular entre

    outras, a deferncia exagerada ao cientfico, nas Diretrizes da psicologia, pareceatualizar essa disposio crtica contra a hegemonia da clnica-psicanaltica-do-sujeito-

    psicolgico sobre a formao. Ou seja, um texto que no s traduz a necessidade de a

    formao se abrir para todos os horizontes possveis psicolgico e psicossocial, de

    acordo com seu jargo englobante , como manifesta um desejo de restrio que a

    evocao do cientfico e do epistemolgico no esconde, e que, por ser demasiado

    enftica, parece sintomtica, umaformao reativacontra algo que o texto no diz, mas

    cuja omisso mesma, por insistncia em sua anttese cientfica, no deixa de ser

    reveladora.

    Note-se que, quando em mais um episdio de ligao extremosa com o

    cientfico, as Diretrizes de psicologia descreveram, no Art. 9, entre as competncias

    bsicas do graduando, utilizar o mtodo experimental, de observao e outros

    mtodos de investigao cientfica coisa que tambm no se avista nas Diretrizes de

    nenhum outro curso! , parece proposital que se tenha omitido o mtodo clnico

    (quando justamente ele poderia, de acordo com o senso-comum, especificar o

    psiclogo). O leitor tem que presumi-lo entre outros mtodos de investigao

    cientfica ou ento... no seria cientfico? As Diretrizes (que poderiam assumir ao

    menos isso) no o explicitam, e no por acaso: a questo polmica. Ao preferir realar

    a dupla observao-experimentao como mtodos exemplares, sem referir o mtodo

    clnico, parecem assumir um dos lados de uma velha diviso do campo da psicologia,

    qual seja, o lado naturalista da psicologia enquanto pesquisa (experimental ou

    emprico-analtica) que se ope escuta clnica enquanto prtica profissional

    (hermenutico-interpretativa). isso que aparece em questo no texto das Diretrizes:

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    tanto mais se afirma a cientificidade da psicologia quanto mais se quer despistar a

    hegemonia do modelo clnico. Vale indagar por que.

    A velha ciso entre pesquisa cientfica e prtica profissional em psicologia.

    Longe de se tratar de uma diviso qualquer, bom recordar que os dois ladosdessa oposio se anunciaram praticamente desde as origens da formao em

    psicologia. Emblematicamente, desde a criao daAmerican Psychological Association

    (APA), quando, ainda no incio do sculo XX, professores/pesquisadores cientficos

    j criticavam abertamente o que viam como falta de rigor da psicologia aplicada, j

    acusavam a impostura de muitos profissionais clnicos e aplicados que, segundo eles,

    emprestavam a mscara da cientificidade para iludir as pessoas, fazer fama e ganhar

    dinheiro. De acordo com aHistria da Psicologia Modernade J. Goodwin (2005), datade 1917 a primeira tentativa dos psiclogos clnicos de organizar uma associao

    prpria razo que levou a APA, temendo sua prpria desintegrao, a criar uma seo

    interna para a psicologia clnica (ou do bem estar humano, como ento especificado,

    por oposio psicologia cientfica). Ainda na dcada de 1920, tambm para evitar

    nova desintegrao, a APA criou dois tipos de membros, os integrais e os

    associados, visando acomodar tanto pesquisadores quanto profissionais em

    psicologia; na dcada de 1930, por continuarem no se sentindo vontade no ambiente

    acadmico da APA, os psiclogos clnicos criaram uma organizao prpria, a AAAP

    (American Association for Aplied Psychology), que foi reintegrada pela APA no ps-

    guerra. Deste modo, de crise em crise, a celeuma entre pesquisadores cientficos e

    profissionais que trabalham em proveito do bem-estar humano em psicologia

    atravessou dcadas, at que a composio da APA se tornasse majoritariamente feita de

    clnicos e a dissidncia se tornasse inevitvel. Os docentes/pesquisadores cientficos,

    que tinham outrora a hegemonia, se sentiram forados a abandonar a APA e formar uma

    nova entidade, criando-se, em 1988, a Association for Psychological Science (APS),

    organizao que, empenhada em reforar a psicologia como disciplina cientfica

    coerente, proteger os valores cientficos da prtica psicolgica etc.5, lembra muito

    de perto, alis, o esprito do texto de nossas Diretrizes.

    Para que a nfase na cientificidade, na formulao das Diretrizes de psicologia,

    fosse to reforada, outros fatores tambm podem ter-se sobreposto ao desejo generoso

    de proteger a profisso do risco de banalizao. Como j ensinava Michel Foucault, a

    pretenso de ser cincia traz sempre consigo ambies de poder, devendo-se indagar, l

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    onde a cientificidade arrogada, acerca de quais outros saberes, ou quais outros sujeitos

    de experincia se quer com isso menorizar ou afastar.6Vale tambm lembrar que a

    reforma do ensino superior, que incluiu as novas diretrizes, alm de aumentar o grau de

    subordinao acadmica ao mercado de trabalho por intermdio da reestruturaocurricular, tambm implantou o controle da produo do trabalho acadmico por meio

    de sistemas de avaliao e de estmulos docncia (Provo, GED etc.) que, entre outras

    coisas, passou a servir, na forma de uma poltica de competio administrada, para

    compensar as perdas salariais sem acrescentar um centavo ao salrio bsico dos

    professores. As atividades docentes relacionadas com a pesquisa em ps-graduao

    orientao de tese, participao em bancas, publicao de artigos em revistas cientficas,

    apresentao de trabalhos em eventos cientficos etc. tornaram-se a maneira principalde somar pontos para fins de progresso funcional. Com a promulgao da Lei 10.973,

    de 2004, que dispe sobre os Incentivos Inovao e Pesquisa Cientfica e

    Tecnolgica (IIPCT), participar de projetos de pesquisa e disputar bolsas de estmulo,

    alm de fortalecer as bases cientficas da formao em psicologia, tem ajudado muitos

    docentes a reforar seus vencimentos. Em 2006 tambm foi criada uma nova classe

    funcional a de professor associado , estabelecendo mais quatro nveis de progresso,

    de um modo que, como uma escada fincada na areia movedia, a condio colocada aos

    professores para que seus salrios no afundem progredir sem parar.

    Os impactos de tais medidas sobre a formao esto apenas comeando a ser

    avaliados, mas j podemos adivinhar a reabertura e aprofundamento da velha linha de

    fratura entre a psicologia dos pesquisadores (que se produz dentro da universidade) e a

    psicologia aplicada (que se pratica fora dela). Desde que a distribuio de bolsas de

    iniciao pesquisa do PIBIC, como o primeiro degrau na carreira do pesquisador-

    orientador, passou a seguir critrios praticamente quantitativos (basicamente o currculo

    acadmico verificado por barema, com pontuaes referentes a dados extrados do

    Lattes), tem-se um crculo vicioso que tende a premiar os j premiados (sem muita

    considerao pela qualidade do projeto apresentado) e dificulta a progresso dos

    desqualificados (por mais relevantes socialmente ou bem construdos que sejam seus

    projetos), criando-se, enfim, duas categorias de professores os pesquisadores e os

    outros e um bocado de ressentimentos de parte a parte. Esse descompasso tambm

    tende a ser intensificado com a separao ora em curso entre mestrados acadmicose

    profissionais: enquanto estes so mestrados de aplicao, voltados para a qualificao

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    de quem j est no mercado de trabalho, o mestrado acadmico, centrado na pesquisa e

    voltado para a formao de professores-pesquisadores, tende a se tornar pr-condio

    para o doutorado. Nas selees e concursos docentes das universidades esse impacto j

    se faz sentir, com candidatos pouco traquejados na profisso, mas super-titulados em

    pesquisa (esto sobrando doutores na praa!), e, claro, no em qualquer modelo de

    pesquisa, bem entendido, e sim, tendencialmente, nos modelos instrumentais que

    melhor se encaixam nos critrios de produtividade das agncias de fomento. A

    avaliao dos programas dessas agncias, a comear pelo CAPES, sendo tambm

    meramente quantitativa, aperta os professores e orientandos com prazos de concluso e

    indicadores de produtividade bruta que servem como critrios para renovao de bolsas

    e recursos o que fora a instituio de um verdadeiro sistema de fabricao de teses a

    toque de caixa, segundo esquemas e modelos prontos, no qual praticamente nuncaum

    trabalho mesmo sendo muito ruim recusado. Ao contrrio, quanto mais vezes

    puder ser apresentado em congressos, publicado em revistas em forma de artigos

    escritos de preferncia a n mos etc, mais pontos, maior produtividade (o que bom

    para o ps-graduando, para o orientador, o ncleo... ento..., who cares?).

    Concluso

    Mesmo despencando o salrio que esto pagando aos psiclogos, a busca pelos

    cursos de psicologia nas universidades pblicas, surpreendentemente, continua

    disputada e no porque as pessoas que os procuram sejam desinformadas. Elas sabem

    que o trabalho do psiclogo no se resume ao consultrio e que este segmento, saturado,

    tornou-se super exigente; tambm concordam que, fosse pela remunerao, no

    cursariam psicologia. E, no entanto, o fazem. Por qu?

    Diversas pesquisas sobre a escolha vocacional da psicologia constatam as razes

    altrusticas (para ajudar os outros) como predominantes, como tambm o interesse

    intrnseco pela rea (porque gosto de psicologia, para conhecer o ser humano) e a

    perspectiva de autoconhecimento (para conhecer melhor a mim mesmo). Ou seja, a

    psicologia como profisso de ajuda, como maneira de melhor ajudar o outro, de

    conhec-lo, de estabelecer com ele um tipo de relao de apoio ou confidncia etc., so

    as concepes mais corriqueiras entre o pblico dos cursos de psicologia. Como

    tambm j se notou, entre estudantes de psicologia, os fatores internos de escolha pesam

    mais do que os externos, sendo movidos mais por vocao uma mstica da

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    dedicao ao prximo do que por interesses financeiros ou pelas determinaes do

    mercado (MAGALHES, 2001).

    Ora, uma vez que, sem inclinao ou vontade determinadas, as decantadas

    competncias no passam de habilidades e conhecimentos inteis, talvez convenharetornar aos propsitos das Diretrizes para indagar se a nfase colocada na

    cientificidade, como mostramos, como uma espcie de formao reativa erigida contra

    as prticas clnicas, que tendem a perder espao na partilha dos recursos de pesquisa,

    embora dizendo visar fortalecer a profisso, no se arriscaria a frustrar motivaes de

    muitos estudantes, que escolhem psicologia no porque esta seja a mais cientfica das

    reas de estudo e atuao, tampouco a mais polivalente (como parecem querer fazer crer

    as Diretrizes), mas sim porque, sem deixar de ser cientfica ou polivalente, sempre foitambm, antes de tudo, uma cincia humana.

    No ser este a mais da psicologia sua prtica clnica e sua vocao

    altrustica como aquilo mesmo que a diferencia e explica seu interesse uma espcie de

    hspede indesejado para as Diretrizes e seus idealizadores, posto que irredutvel aos

    modelos de pesquisa padronizados (estilo emprico-analtico, isto , basicamente

    questionrios e processamento estatstico), mais interessantes para a carreira docente e o

    fortalecimento (leia-se obteno de recursos) das ps-graduaes em psicologia?

    Afirmar, sintomaticamente (quer dizer, de modo indireto, porm insistente), a

    cientificidade da psicologia contra a pesquisa e as prticas clnicas, mesmo que em

    defesa de outras tantas possibilidades em termos de atuao profissional, no uma

    recomendao tendente a fazer trocar o certo pelo duvidoso? Essa vocao para ajudar

    o outro, para a relao com o outro etc, to assdua nas falas dos estudantes de

    psicologia, no seria efetivamente nossa primogenitura?

    Ora, ao invs de tentar encontrar outras vocaes para a formao em psicologia,

    talvez se possa tentar deriv-las a partir da prpria clnica, de algum modo destravando

    por dentro o consultrio no rumo de outras possibilidades de atuao. Como cincia

    humana, cujos vestgios as Diretrizes apagaram,7 e como clnica, omitida entre os

    mtodos de investigao cientfica que elas destacaram, talvez seja justamente no

    interditado das Diretrizes, e no no que elas recomendam, que a formao em

    psicologia tenha mais chances de reverter sua desvalorizao profissional em curso. Ou

    seja, ser cincia sem deixar de ser cincia humana, bem entendido e ultrapassar os

    limites do consultrio privado sem esquecer suas origens clnicas , talvez s haja

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    futuro para a formao em psicologia se soubermos no trocar sua primogenitura por

    algum prato de lentilhas.

    Contrariar vocaes altrusticas e autnticas para relevar motivaes e incentivos

    exteriores, como parecem promover as Diretrizes, talvez se arrisque a destinar a

    psicologia quela condio, h muito observada pelos antigos, segundo a qual, sem o

    thyms(a paixo, o mpeto), e s com o logos, apsychno passa de uma triste sombra

    perdida na noite do esquecimento...8

    Referncias

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    Wilson Alves SenneInstituto de Psicologia da Universidade Federal da Bahia (IPSI-UFBA)

    E-mail:[email protected]

    1Segundo dados no INEP, no perodo de 1958 a 2000 mais de quatro dcadas , houve um incrementode 188 cursos de psicologia; porm s entre 2001 e 2007 entraram em funcionamento 203 novos cursos.2Palavras do fundador de um dos maiores grupos de educao privada no Brasil Cf. Folha de S. Paulo,29.05.2011, Com ensino high-tech para classe C, Anhanguera quer duplicar sua rede.3 As Diretrizes podem ser contadas entre os motivos principais da realizao do Frum de EntidadesNacionais da Psicologia Brasileira (FENPB), em 2002, de cuja organizao, ao longo da dcada de 1990,foi gerada a Associao Brasileira de Ensino de Psicologia (ABEP), fundada em 1998.4http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=129915Cf. http://www.psychologicalscience.org/6Cf. M. Foucault,Microfsica do Poder, p. 1727 Nos Relatrios dos Pareceres de 2001 e 2002 das Diretrizes da psicologia, a expresso cinciashumanas ainda aparecia mesmo que para situar a psicologia, porexcluso, num trecho que se referiaaos processos psicolgicos nas suas interfacescom as cincias da vida, humanas e sociais. Na versofinal, aprovada em 2004, estas ltimas desaparecem do texto, substitudas por processos psicolgicos nassuas interaescomprocessosbiolgicos, humanos e sociais.8 deuses! Existe, portanto, no Hades umapsych / ou uma sombra do homem, mas falta-lhe o thyms. Homero, Ilada, XXIII-103. Caminhando no encontrareis os limites da psych, mesmo se percorrerdes

    todas as estradas, pois muito profundo o lgos que ela possui. Herclito de feso, frag. 45.