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Refutação de Todas as Doutrinas Não-Católicas - Pedro Lima www.pedrohenriquedelima.wordpress.com
1
Refutação de Todas as Doutrinas Não-Católicas
Refutação de Todas as Doutrinas Não-Católicas - Pedro Lima www.pedrohenriquedelima.wordpress.com
2
Conteúdo Ateísmo ......................................................................................................................................... 3
Protestantismo ............................................................................................................................ 19
Pós-Conciliarismo ........................................................................................................................ 28
Judaísmo ...................................................................................................................................... 46
Espiritismo ................................................................................................................................... 72
Marxismo..................................................................................................................................... 85
Igreja Ortodoxa ........................................................................................................................... 94
Islamismo .................................................................................................................................. 102
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Ateísmo – Muito bem, Sr. Marcondes, muito bem. — Começou Malcolm. — Sucede que se
Deus existe, eu não vou ficar por aí buscando saber dele ou buscando-o em alguma
seita. Na verdade, sinceramente, não me interessa tanto se Deus existe ou não, se esta ou
aquela religião está certa ou está errada. Em que isso vai me ajudar? Eu tenho que pagar
as minhas contas, eu tenho de me assegurar de que não vou depender das outras
pessoas, uma vez que obviamente nenhuma delas me vai pagar as contas, e eu tenho que
agir muito cuidadosamente para manter-me em uma condição favorável.
– A vida não é um mar de rosas, senhor Marcondes — continuou Malcolm –, a maior
parte dos religiosos que eu conheço vive uma ilusão, pensa horrores dos outros
religiosos, enquanto que eles mesmos são cegos para os podres, e os crimes, do seu
próprio grupo. Tem algo na religião que deixa as pessoas cegas, nem todos são assim na
mesma medida, é claro, eu tenho alguns amigos religiosos; mas em geral os religiosos
agem como semi-retardados, creem em coisas que mesmo crianças teriam dificuldade
para acreditar. E quase nenhum deles estudou ou embasou a sua posição de um modo
minimamente digno. Se você perguntar a algum cientista desses que ganharam o prêmio
nobel, por que é religioso, ele vai ter dificuldade em se explicar. É algo muito pessoal,
sensível, claro, mas é uma loucura. Você começa por ter de afirmar de todos os outros
credos que estão errados e são uma abominação do diabo, e você termina afundando um
avião em um arranha-céu para mostrar o quanto é piedoso. A religião em certos
aspectos faz bem às pessoas, lhes dá esperança, lhes dá uma resposta, e nesse mundo
frio em que vivemos o quão isso é agradável… É um privilégio. As pessoas se sentem
muito especiais quando se sentem protegidas por uma resposta e uma esperança, elas,
em nome dessa esperança, se reúnem, fazem obras de caridade, discutem, casam-se.
Mas o mundo não se torna menos frio, a resposta não se parece uma resposta a essa
frieza, mas o contrário, é uma resposta escrita, de manual, é um sinal gráfico alheio à
minha vida, às minhas necessidades, aos meus medos e anseios.
– Eu conheço poucas pessoas que se tornaram boas pela religião — continuou Malcolm
–. As pessoas se tornam menos maliciosas? Menos cruéis? Elas amam o próximo e se
sacrificam? As suas orações realizam milagres? Eu conheci alguns psicopatas que
usavam uma linguagem religiosa, sabe? Na verdade, eu cheguei a ouvir um relato de um
ex-pastor dizendo que antes de abandonar a fé protestante, e virar judeu, ele fingia nos
cultos o dom da clarividência. Ele apontava o dedo para alguém e dizia, “quando você
era jovem você passou por tal e tal situação”, e era mentira, era invenção, a pessoa
acreditava porque às vezes é difícil recordar de eventos passados; essas hipnoses mútuas
talvez ocorram muito. Diante de você há um homem que fala com firmeza, parece ter
todas as respostas, mas ele está mais perdido que qualquer um na audiência. Ele pode
ser um pobre coitado. A maldade independe da crença que se tem, ao que parece. A
loucura acomete a todos, a crença religiosa, se for necessária à salvação, significa que
os loucos e pessoas imersos na ignorância serão rejeitados para sempre?
– Sim, porque os religiosos alegam que “Deus” criou um número incontável de anjos, e
um terço deles foi para o inferno. Mas que droga! Você é capaz de dormir ouvindo uma
coisa dessas? As penas do inferno são descritas como ultrapassando em intensidade a
nossa imaginação, portanto ultrapassam as dores do caso mais extremo de enfermidade
que conhecemos. O doente às vezes experimenta dores que o homem médio não
imagina. Um terço das criaturas angélicas vão ser expostas a essas dores, e não por um
tempo, não por um tempo considerável, mas para sempre! Se Deus criou um universo
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em que esse tipo de coisa pode ocorrer, quão espantoso é esse Deus! Ele parece mais
com um demônio. A maioria das pessoas que conhecemos, segundo essa fantástica
história, será condenada ao inferno. E por que as pessoas acreditam nisso? São tantas as
versões contraditórias, são tantas as versões diferentes, que se se aceitasse essa história
de horror, o próximo problema seria descobrir qual é a maneira correta de escapar a esse
horror, e nem eu nem ninguém tem tempo para estudar milhares de seitas; se eu tivesse,
provavelmente não seria suficiente. Um certo Camille Flamarion, um dos ícones da
religião espírita, e membro da sociedade Teosófica, estudou o fenômeno da invocação
de espíritos nas reuniões chamadas séances por quarenta anos, e ao fim de quarenta anos
ele chegou à conclusão de que isso era uma empulhação, mas depois mudou de ideia
ainda, um pouquinho. Ou seja você pode estudar um assunto com muito esforço por
quarenta anos, e ainda assim mudar de ideia ou se enganar. Isso para uma religião:
Como posso eu, então, me assegurar de qual a religião certa se há centenas delas?
– Eu admiro um pouco a sua fé, senhor Marcondes — afirmou Malcom — mas eu
receio que você seja um grande tolo. Você é um imbecil, na verdade, segundo penso.
Você acreditou em algo não porque veja que é certo, ou muito evidente, mas por uma
mistura de conveniência e estupidez. A falar a verdade, pelas coisas que a minha mãe
professa por causa do senhor, me parece mesmo que o senhor jogou a sua vida inteira
fora. O ridículo da religião é tornado evidente até por seus defensores. Um filósofo
como Ortega y Gasset louva a religião, e procura deduzir do seu conteúdo explícito
alguma coisa mais, esotérica, profunda, mas esse tipo de blefe parece ser incoerente
com o fato de que ele em muitos momentos descartou insensivelmente todo tipo de
dogma. As pessoas acreditam no que elas querem, como querem; as pessoas, até com
certa razão, acreditam no que testemunharam de algum modo. E religiosos como você
dizem que isso não é razoável? Que isso torna um homem como eu maligno, insensato?
Se pode alegar qualquer coisa, meu amigo, se pode alegar qualquer coisa. A realidade é
o que eu testemunho, e o que eu testemunho é que a religião é tão falsa que quase a
totalidade das pessoas, ao falar a respeito, não conseguem ter nem um décimo da
sinceridade para consigo e os outros que alguns ateus tiveram. Nós vivemos em um
mundo muito mais caótico e selvagem do que se imagina. Se a religião fosse verdadeira,
Deus teria preparado alguma linguagem para referir a miséria que nos ronda. Os
religiosos falam como crianças a sonhar, na vida real testemunham ou tomam parte em
tudo de errado, feio, grosseiro, que se nos impõe. Estupros, abuso, maus sentimentos. A
linguagem religiosa serve apenas para camuflar e potencializar essa calamidade.
– A verdade religiosa tinha algum papel a desempenhar quando o homem, ainda
demasiado primitivo — continuou Malcom — precisava dessas figuras de linguagem da
religião para comunicar diretrizes que as pessoas pudessem seguir de modo simples. O
homem não precisa dessa besteira mais. Até o papa agora aceita a teoria da evolução.
Darwin provou que as espécies não se distinguem das variações advindas das sucessões
geracionais. Isso foi cientificamente provado. Que eu saiba Deus não apareceu para
contradizer o ensaio sobre a Origem das Espécies. Ninguém, absolutamente, é capaz de
dizer que a teoria darwinista é um nonsense. Mesmo o grande anti-darwinista que
debateu à época da edição do ensaio, o cientista Richard Owen, não rejeitou a teoria
inteiramente, se vendo obrigado a admitir muitos pontos dela, se vendo obrigado a
conciliá-la de algum modo com o seu ponto de vista. Mas parece que para os de
mentalidade religiosa isso nunca vai servir para ensinar nada. Eles acreditam que a
criação do universo se deu há alguns milhares de anos, e não bilhões de anos, como a
ciência prova. Eles acreditam em Adão e Eva. Eu me pergunto por que essa gente tem
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tanta certeza, embora as opiniões delas sejam contraditórias entre si, porque alguém tem
de estar errado, certo? Senão todos, ao menos alguns. A religião é uma das maneira
mais bizarras de uma pessoa se orientar na vida. Você não apenas vai passar a acreditar
no burro falante de que a bíblia fala, mas você vai acreditar em coisas que qualquer um
percebe que é bizarro. Você já viu um hare-krishna distribuindo flores em troca de
donativos? E um testemunha de Jeová, distribuindo um jornal sobre um encontro para
discutir um governo mundial sob o reinado de Cristo?
– Mas claro, — continuou o Sr. Malcom Antonov — você dirá que o ateísmo é
marginal e não mainstream. Para começo de conversa, como o Richard Dawkins referiu,
o ateísmo pode ser dividido em várias escalas, no ateísmo máximo se sabe como dois e
dois são quatro que Deus não existe. Não é assim que Dawkins é ateu, e não é assim que
eu sou ateu. Esse tipo de abordagem é religiosa, porque é impossível se pronunciar a
respeito desse assunto de modo tão seguro. Em segundo lugar, obviamente que o
ateísmo não é um fenômeno marginal, nem geograficamente, nem historicamente.
Sempre houve ateus, obviamente. Até um padre da igreja católica, nos primórdios da
Igreja, creio que Orígenes, polemizou com um pagão romano que era ateu. Em um
desses países da Escandinávia, segundo relato muito antigo, da baixa idade média,
existe uma mitologia ateia, quase uma história sagrada do ateísmo. Os autos de
processos inquisitoriais demonstram a existência do ateísmo; o
escritor Friedrich Büchner observa que em muitos povos mais primitivos que o povo
europeu o temperamento de muitas pessoas é de ceticismo em relação à religião. Ainda
que haja fenômenos extraordinários ligados à religião, como feitiçaria, etc., tal qual um
antropólogo renomado como Claude Levy-Strauss procurou apontar, não há prova de
que esses fenômenos comprovem por si mesmos a verdade dogmática da religião, até
porque cada religião tem seu fenômeno extraordinário; as religiões se anulam no quesito
apresentar um critério diferenciador e retórico. Não há como saber se uma religião é
falsa ou não no sentido de demonstrá-lo de modo suficiente. Porque se essa
demonstração é possível, não haveria embate religioso. O que se pode alegar é que as
alegações das religiões são absurdas e insultam a razão humana, não devem ser levadas
a sério.
– Muitas pessoas, na prática, não se importam com estar certas ou erradas a respeito de
suas crenças. — Disse ainda o Sr. Antonov. — A verdade religiosa que professam,
portanto, é algo maior que elas mesmas. Elas não se importam com essas coisas de fato.
É o que você, senhor Marcondes, não consegue entender. As características de Deus ou
dos anjos são características que o homem nota fora de Deus e fora dos anjos, são
características puramente humanas projetadas sobre seres desconhecidos. Se o homem
se perguntar o que é Deus fora dessas características, ele vai ficar perdido. O homem
não sabe realmente o que é Deus, ele não tem a menor ideia. O que ele supõe que Deus
seja é um conceito tão postiço, tão carregado de atributos puramente humanos difíceis
de se atribuir a Deus, na prática, que ao procurar distinguir o que Deus é para o homem
que o pensa e o que é em si, o homem deixa de acreditar em Deus, porque o que Deus é
em si, para o homem, é bastante desconhecido, é um vazio, nada se sabe.
– E quanto às muitas lendas diferentes mas semelhantes que permeiam a religião? —
Indagou o Sr. Antonov. — Uma virgem dando à luz, um filho de Deus nascido na terra.
Isso está na religião egípcia, Hórus e Isis, sua mãe. A ideia da trindade já estava
presente em outras religiões, assim como a da ressurreição. O filósofo germano-
americano, Eric Voegelin, começa o seu trabalho Order and History discorrendo sobre o
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festival anual, entre os caldeus ou qualquer região da mesopotâmia antiga, em que o
filho de Deus se sacrifica pelos pecados dos homens. Na Grécia um herói chamado
Perseu nasceu de um virgem. Percebes o quão suspeita é a verdade religiosa, se
repetindo com pequenas variações aqui e ali? E qual garantia temos de que a “nossa”
versão cristã do mito vai persistir pelos séculos? Por que o cristianismo, e mais
particularmente o cristianismo católico, é a verdadeira religião?
– Por que não simplesmente reconhecer, “eu não sei”? “Eu não entendo, eu não quero
exercer o meu juízo a respeito”? Por que continuar sectariamente a se apegar à suas
opiniões, independente das opiniões alheias? — Disse ainda o Sr. Antonov. — Eu não
sei mais o que posso dizer…
– A primeira dificuldade que existe tocante ao ateísmo — começou o velho Marcondes
— é a dificuldade que tem em definir o que é religião. A religião não é a crença em uma
deidade, porque há cientistas anti-religiosos que admitem como razoável a hipótese de
extraterrestres haverem projetado o homem ou a vida animal na terra, há os que creem
nisso contra as religiões, mas essa ideia parece um pouco com a ideia bíblica de criação.
Por outro lado ateus como Christopher Hitchens chamam o budismo, religião na qual a
divindade é apenas problematicamente insinuada, de religião. Também chamam de
religião o regime oficial da Coreia do Norte, e o regime stalinista. “O Deus de Stalin era
Stalin”, disse alguém. É difícil , dada essa retórica, definir com precisão o que é
religião. Se tem a sensação dos ateus que eles avacalham o assunto, porque não têm
paciência para lidar com o assunto. De fato ao comparar a ciência e a religião, os ateus
vão frequentemente mostrar como a ciência se baseia na evidência e testes laboratoriais,
e a religião se baseia em mistério e neblina. Essa visão subentende que a maioria dos
ateus não sabe o que é uma ciência em geral, mas só a sua ciência particular. O método
laboratorial serve à biologia, não à história. Cada ciência tem o seu próprio método, e o
critério para saber qual o método certo é a pergunta: Como eu posso adquirir premissas,
ou informações, da maneira máxima dentro do campo dessa ciência, ou assunto, ou
objeto?
– A resposta a essa pergunta subentende que é possível demonstrar o que as religiões
são, e em que sentido são falsas, depois de adquirido um conhecimento científico das
religiões. E esse conhecimento não se vai achar em laboratórios. Esse conhecimento não
é buscado pelos ateus porque eles têm aversão às religiões, e essa aversão é a chave para
entender porque não conseguem definir corretamente as religiões. Alguns dirão que uma
religião é uma crença, o que é tolice, porque por esse critério o ateísmo terá de ser
considerado uma religião. A aversão dos ateus faz que eles não se aproximem demais
do objeto religioso, mas o vejam por uma distância saudável, e assim toda abordagem
que terão a respeito será retórica, e não científica. Essa indiferença significa que se quer
ter a respeito das religiões, apenas o mínimo de informações necessário para justificar
um afastamento do objeto, quando a verdadeira ciência, para Aristóteles, é o
cruzamento de opiniões que reconstitua o objeto o quanto seja possível. — Disse o
velho Marcondes.
– A religião é na verdade uma crença advinda de uma fonte não-humana que é
inteligente. Até o budismo se encaixa nisso, porque antes de certa experiência religiosa
Buda teve acesso a demônios ou a certas tentações sobrenaturais. Isso não é um
empecilho a que os ateus definam a religião, porque eles podem simplesmente dizer que
uma religião é uma crença advinda da alegação de se ter obtido informações de
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inteligências não-humanas. Talvez o motivo pelo qual os ateus, o ateísmo em geral, não
se interesse por adotar essa definição, é o de que ela implica que uma crença religiosa
não é uma matéria tão plástica para interpretação. É mais fácil refutar uma crença em si
do que uma crença que se apresenta como um relato. É mais difícil entender o relato,
porque a comunicação tem certos limites, e se se disser, de um relato, “isso é tolice”, é
mais fácil ver que o sentido em que isso é tolice pode não ser bem o sentido que o autor
do relato quis transmitir.
– O relato exige confiança, e portanto se justifica bastante o ateísmo, no sentido de que
há muitas razões para não se confiar em relatos. Se o ateísmo, por seu lado, fosse
confiável, eu próprio creria nele. Mas não é, nem um pouco. É só mais um relato, é só
mais um indivíduo pedindo que nele depositemos nossa confiança. Nós não sabemos o
que se passava pela mente de Christopher Hitchens antes de morrer, sabíamos apenas o
que ele dizia e confiávamos nele conforme nos parecia razoável. Um ateu como
Dawkins disse, para o meu pasmo, que ele tem certeza de que ao fim da vida os homens
cessam para sempre. Não há nada de científico nisso, enquanto certeza. Essa opinião só
é razoável porque o seu contrário parece bizarro, e porque a possibilidade de
continuação da alma gera dúvidas a respeito de ensinamentos religiosos. — Disse o Sr.
Marcondes.
– E daí que você tem de pagar as suas contas? — Continuou o velho Marcondes. — Foi
a sua mãe quem me pagou a viagem para cá. Um homem chamado Santo Agostinho
doou todos os seus bens antes de entrar para a vida religiosa. Ainda que essa boa ação se
apagasse ou diminuísse por feitos ulteriores, ela foi feita. As pessoas doam e pagam
despesas alheias, elas se endividam pelos outros, mesmo quando são más, e têm
segundas intenções. O fato de que há divisão do trabalho é já um sinal da dramática
interdependência entre os homens, segundo Adam Smith demonstrou; só o fato de
trabalhar como médico, quando outro trabalha como carpinteiro ou motorista, significa
necessariamente que você paga as contas alheias para que os outros paguem a sua
conta.
– Você disse que os religiosos são cegos para os próprios crimes, e maliciosos para com
as outras religiões. Mas isso, essa malícia e cegueira, é absolutamente acidental à
religião. O famoso maçom Albert Pike leu e traduziu os infindáveis e grossos volumes
do Talmud, texto ortodoxo dos judeus, traduziu do hebreu. Como é que ele pode
enxergar esses religiosos de modo malicioso e preconceituoso? Você disse que todo
religioso abomina os credos de todas as outras religiões. Não é exatamente isso que
você mesmo faz, e não é em nome de aversão análoga, mas não inteiramente
semelhante, que muitos ateus assassinaram? Os comunistas eram ateus. Embora haja
relatos de que muitos indivíduos por trás do comunismo fossem membros de
organizações esotéricas, como é verossímil levando-se em conta que os iluministas
franceses os historiadores declaram sem dificuldade que eram membros de organizações
esotéricas; houve muitos comunistas sinceramente ateus, que colaboraram com as
matanças de milhões de indivíduos, sem julgamento, para espalhar o terror e intimidar,
como confessou o próprio partido comunista após a morte de Stalin. — Disse o Sr.
Marcondes.
– Você referiu que as pessoas não se tornam melhores por serem religiosas. Bem, é
precisamente nisso que a religião católica acredita. A segunda maior autoridade
eclesiástica do seu tempo, o bispo São João Crisóstomo, afirmou que, conforme lhe
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parecia então, a maioria dos padres não seria salva. O maior dos teólogos católicos,
Santo Tomás de Aquino, afirmou como coisa segura que os que são salvos são uma
minoria. Os muitos padres pedófilos dos quais se ouve, eles apareceram no contexto de
uma tal demolição da fé tradicional, com o concílio Vaticano II e o que se lhe seguiu,
que não é exagero algum, mas sim honesto, pensar que a totalidade desses “padres”
atuais não têm a fé tradicional, mas a rejeitam exatamente como os ateus fazem, e os
relatos a respeito vêm às vezes de figuras midiáticas que não têm interesse nenhum em
expor a calamidade dos seminários, com a sua promoção de uma cultura gaysista e de
valores anticatólicos, como a ordenação de mulheres. Você diz que a religião não torna
as pessoas melhores. Eu penso, ao contrário, que a dificuldade não está em ser um bom
religioso, mas em ser religioso. Para ser um católico é necessário pouco conhecimento,
mas esse conhecimento é negado às novas gerações, e é muito difícil obtê-lo se ninguém
o indica, instruindo sobre certos detalhes a respeito. — Disse o Sr. Marcondes.
– A sua objeção sobre os religiosos não saberem nada a respeito das coisas que
apregoam, e se iludirem a respeito de possuírem dons místicos, é uma objeção bastante
limitada. Ainda que haja falsos místicos, as provas de que existem fenômenos
sobrenaturais são abundantes, e fenômenos assim não são estranhos à elite intelectual
americana. Um professor universitário chamado Carrol Quigley, a quem Bill Clinton
prestou homenagem publicamente em uma convenção nacional do Partido Democrata,
acreditava e advogava em favor de fenômenos sobrenaturais. Não é necessário ir muito
longe, ou pedir a sua confiança, para prová-lo. Basta tomar o alcorão. Esse livro possui
uma forma poética, uma forma de composição, tão extraordinária, que um estudioso a
quem assisti afirmou que dez anos não são suficientes para escavar todos os sentidos ou
intenções imprimidos no texto formando uma estrutura poética intencional muito mais
profunda que a letra literal do texto. E o modo como é fácil memorizar o texto original
do Alcorão, por causa da sua misteriosa propriedade, é algo tão notório, que os
muçulmanos possuem a tradição de memorizá-lo. Existem fenômenos sobrenaturais, e é
possível demonstrar que esse é o caso do alcorão sob vários aspectos, a começar pelo
fato de ele ser um texto tão diferente dos outros que constitui um gênero literário
separado, e ao mesmo tempo esse texto vem de uma fonte, um homem, que a tradição
muçulmana alega que era incapaz de ler e escrever. Isso já foi provado por um sujeito
chamado Nouman Ali Khan, em um vídeo chamado The Quran for Dummies. Além
disso, o estudo da grafoscopia, que é o estudo da semelhança entre a caligrafia de
pessoas para determinar se uma mesma pessoa escreveu em documentos diferentes; o
estudo da grafoscopia, tal qual realizado por um acadêmico brasileiro e examinado por
seus pares, mostra que o fenômeno da psicografia realizada por espíritos de mortos tem
alguma base empírica verídica. O psicógrafo escreve exatamente como o falecido que o
psicógrafo desconhecia. Essas coisas são admitidas por muitos ateus e agnósticos, eles
apenas não gostam de pensar muito a respeito. Isso apenas reafirma o que eu disse
antes: Que o fenômeno do ateísmo é mais uma desconfiança do que uma afirmação
positiva construída sobre bases racionais. — Disse o velho Marcondes.
– O exemplo que você deu sobre Camille Flamarion ter estudado quarenta anos um
assunto e depois ter mudado de ideia é capcioso. Porque isso por si não prova que ele
estudou várias religiões a fundo. Além disso, não é possível de antemão demonstrar se o
maior empecilho em se chegar a uma decisão é o volume de informações a ser
adquirido, ou simplesmente a boa vontade em estudar o assunto, uma vez que parece
bem claro que o modo de abordar o assunto por muitos ateus se baseia mais no
ressentimento contra a religião do que no amor pela evidência, assim como afirmar que
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após a morte nós vamos nos dissipar se baseia mais na aversão à religião do que no
amor pela evidência. — Disse o Sr. Marcondes. — Além disso, se é verdade que existe
uma condenação eterna, isso não faz com que seja imediatamente evidente que alguém
tenha se danado sem, de algum modo, o assentimento da sua vontade. Isso não é claro,
assim como a mera posse de um escrito não equivale em clareza à fonte testemunhal
que escreveu. E, se existe a possibilidade de uma danação eterna, não é mais natural e
prudente, se preocupar com isso, ainda que seja uma mera possibilidade? E não é essa
preocupação, quando tomada de modo exagerado, contrária ao parecer das religiões de
um modo geral? Eu digo isso no sentido de que se crer já condenado com toda certeza,
ou muito provavelmente, é, no catolicismo, um pecado. Por outro lado a Igreja afirma
que possui os meios de assegurar a salvação, e eles não são muito complicados, nem
requerem que se realize prodígios hercúleos incompatíveis com a vida humana; basta
receber os sacramentos e doar algo de si, sem que haja um fiscal do tesouro para cobrar
a quantia exata.
– Sobre a crítica que você fez a Ortega y Gasset — continuou o Sr. Marcondes — ela é
parecida com uma crítica que Nietzsche fez ao acadêmico que se acha superior ao
religioso, Nietzsche, embora ateu, ridiculariza tal acadêmico, do que se depreende
algumas coisas: É possível defender a religião de modo anti-dogmático, como Ortega y
Gasset fez, por causa da influência de um meio acadêmico esnobe e inconsciente do
próprio ridículo, e isso significa que Ortega estava sobretudo sendo retórico, falando aos
outros do modo que esperavam. Ainda que muitos dos que defendem a religião
incorram nessa falta, há muitos indivíduos proeminentes que a defendem de modo
ortodoxo. De outro modo me parece tolo, como você fez, dizer que a linguagem do
religioso é mais infantil e imperfeita. Que eu saiba Dostoiévski era
um eslavófilo radical, um cristão ortodoxo, e um dos mais bem-sucedidos ateus dos
últimos tempos, Christopher Hitchens, afirma que para se decidir e inteirar sobre
assuntos humanos mais profundos e não-científicos, ele recorria a Dostoiévski, que
todos sabem usou a sua obra literária como uma bandeira indistinguível da sua posição
político-religiosa a favor do cristianismo ortodoxo do oriente.
– A ideia de que o papel desempenhado pela religião anteriormente deve
ser substituído por uma outra convenção — continuou o Sr. Marcondes — foi
propugnada por um homem chamado Auguste Comte, no século XIX. Essa ideia
implica que todos os registros religiosos, como as especulações do Talmud e os escritos
da Bíblia, devem ser descartados das considerações práticas e científicas. Por exemplo,
a sociologia, ciência fundada de algum modo por Comte, representava para ele uma
condensação de toda a história humana tal qual cristalizada nos costumes humanos. Que
sejam descartados os registros anteriores, o que importa para nós homens é o fenômeno
positivo, aquilo que é dado positivamente, ou imediatamente, na realidade. O problema
dessa proposição é que o que é dado como positivo e presente a alguém, não é dado a
outro. As pessoas se encontram em pontos diferentes e vêem as coisas de ângulos
distintos, por isso Aristóteles considerava que a ciência é baseada no cruzamento e
levantamento de opiniões. Descartar opiniões é anti-científico.
– É verdade que o “papa” João Paulo II e outros deram indicações de aprovação da
teoria da evolução. Mas os tradicionalistas têm sérias dúvidas de se eles são papas de
verdade, e os tradicionalistas que os apoiam têm sérias dúvidas se os “papas” sabem o
que estão fazendo. Esse argumento do papa parece muito bom a princípio, mas eu sou
capaz de demonstrar que é um péssimo argumento. Desde São Cipriano de Cartago pelo
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menos, no séc. III, existe a ideia de que só os católicos são salvos. No séc. XIII o papa
Inocêncio III definiu isso de modo explícito, que fora da Igreja não há salvação. Essa
concepção atingiu dois pontos máximos adiante. O primeiro foi com Martinho V, no
Concílio de Constança, no qual ele condenou a noção de que é tolo e presunçoso dizer
que os filhos pequenos dos fiéis mortos antes de receber batismo sacramental não serão
salvos. Portanto o Concílio de Constança considera que esses bebês não serão salvos, ou
ao menos não é tolo nem presunçoso dizer que não serão salvos. O outro ponto máximo
foi o Papa Eugênio IV, no Concílio de Florença, bula Cantate Domino, 1441 depois de
Cristo: “A Santa Igreja Romana firmemente crê, professa e apregoa que todos fora da
Igreja Católica, não apenas pagãos mas também judeus ou hereges e cismáticos, não
podem tomar parte na vida eterna e irão para o fogo eterno que foi preparado para o
diabo e seus anjos, a não ser que se unam à Igreja antes do fim de seus dias; [a Santa
Igreja Romana firmemente crê, professa e apregoa] que a unidade deste corpo
eclesiástico é de tal importância que apenas aqueles que residem nele tomando parte nos
sacramentos contribuem para a sua salvação, somente aqueles que jejuam, distribuem
esmolas e realizam outras obras de piedade e práticas da milícia cristã produzem
recompensas eternas; [a Santa Igreja Romana firmemente crê, professa e apregoa] que
ninguém pode ser salvo, não importa quanto tenha dado em esmolas e mesmo se tiver
tido seu sangue derramado no nome de Cristo, a não ser que persevere no seio e unidade
da Igreja Católica”.
– Diante da citação que eu acabo de fazer — continuou o Sr. Marcondes — fica claro
que a posterior negação de que os recém-nascidos mortos sem batismo não são salvos,
feita por Bento XVI, é uma rejeição da fé católica. O Concílio de Florença que acabo de
citar afirma categoricamente que todos que se opõem pensando coisas contrárias ou
opostas às coisas que a Igreja ensina, a igreja rejeita-os, os anatematiza, os condena.
Desde João XXIII até Francisco, os “papas” não condenam nem rejeitam, nem
anatematizam, isto é nem abominam, nenhuma religião e nenhum líder não-católico.
Eles rezam por judeus falecidos, batem palmas nos cultos de diferentes religiões, e
convidam dezenas de seitas diferentes para rezarem em comum, nas notórias reuniões
em Assis, na Itália. É nesse contexto que você está dizendo que o papa aprova a teoria
da evolução, um contexto bastante esquisito e difícil de examinar. Pela doutrina católica
esses homens, sendo hereges, perdem a jurisdição e se tornam antipapas, alguém que
meramente alega ser papa. Houve dezenas de antipapas na história da Igreja, e houve
mesmo um período em que um antipapa reinou em Roma quando o verdadeiro papa era
acossado e tinha um séquito muito mais reduzido que o dos outros alegando ser papas.
A atual crise da Igreja, que eu descrevo, foi prevista por duas aparições da Virgem
Maria, com a aprovação do Vaticano. Em uma delas, a de Fátima, segundo um cardeal
da Igreja Católica que foi também um teólogo papal, o cardeal Mario Luigi Ciappi, “é
predito, entre outras coisas, que a grande apostasia na Igreja começaria no topo”. O
segredo a que o cardeal se referiu, o Terceiro Segredo de Fátima, curiosamente nunca
foi revelado ao público. Portanto alegar a opinião de um “papa” atual em favor da teoria
da evolução é bastante capcioso, não tem muito valor, porque essa argumentação é uma
faca de dois gumes: Se ela precipita a Igreja no descrédito, ela dá crédito à aparição de
Fátima, em um contexto em que essa aparição parece estar extremamente correta na sua
previsão. E uma vez que a aparição esteja correta, a Igreja está correta. E para mais
demonstrar esse fato, basta me fiar no testemunho do cardeal John Henry Newman. Ele
e outros professores universitários ingleses, no século XIX, perceberam que o
secularismo e o ateísmo estava ganhando muita força no país, a Inglaterra. Por isso
lançaram um movimento, e o Sr. Newman, então um clérigo anglicano, passou a
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publicar de maneira orquestrada com pessoas influentes, e por meio de editoras e
imprensa, vários tratados que revitalizavam o pensamento cristão no país. Esse
movimento anglicano foi um sucesso. John Henry Newman é chamado a figura pública
mais influente, o formador de opinião mais influente, da Inglaterra no séc. XIX por um
estudioso católico de nomeada chamado Michael Davies. Newman foi extremamente
influente na segunda metade do séc. XIX, justamente no contexto da publicação de A
Origem das Espécies. Os maiores críticos de Henry Newman, em tempos recentes, me
parece, são os irmãos Dimond; embora o considerem um herege, dizem que Newman
foi um homem inacreditavelmente culto e erudito, o que talvez signifique que
reconheçam que Newman é mais erudito que eles. Eis o perfil desse estudioso. Eu o
menciono porque de acordo com o que ele diz na sua obra Apologia Pro Vita Sua, um
exame da história da Igreja deixará bem claro que a Igreja Católica pode ser identificada
por nunca mudar de opiniões ou de posição ao longo de toda a sua história, e condenar
varonilmente, austeramente, todo erro, e todos em erro. Quando Newman, ainda um
clérigo anglicano, se viu forçado a admitir isso depois de tanto atacar na imprensa a
Igreja Católica, ele ficou pálido, e começou o período de dúvida que levou à sua
conversão pública ao catolicismo. Portanto há uma prova bastante segura de que a
aceitação da teoria da evolução por um João Paulo II ou um Francisco, não muda o fato
de que a Igreja nunca muda de uso e opinião no decorrer da história, e se muda, a
mudança é tão escancaradamente anti-católica, que sua ocorrência merece um cuidado
redobrado.
– A respeito da teoria da Evolução, e a seleção natural, que nos propõe que o homem
evoluiu de outras espécies animais, deixa-me citar um paleontologista do Museu
Britânico, o Sr. Colin Patterson. — Continuou o velho Marcondes. — A paleontologia é
o estudo dos fósseis, e de acordo com a teoria da evolução devem haver fósseis
comprovando as espécies de transição entre o homem e outras formas animais, ou ao
menos é possível que haja tais fósseis. Alguém perguntou ao Sr. Patterson por que ele
não incluiu em um trabalho os fósseis indicando o “elo perdido”, a espécie de transição.
Esse paleontologista respondeu, por escrito, assim: “Eu concordo inteiramente com os
seus comentários a respeito da falta de transições quanto à evolução, no meu livro. Se
eu tivesse qualquer informação a esse respeito, tanto de fóssil ou animal vivente, eu os
teria incluído no meu livro, mas devo lhe dizer que não há tal fóssil.” Existe de fato, e
foi comprovado por Darwin, que há pequenas variações, imperceptíveis ou quase
imperceptíveis, dentro das espécies, a cada cria que nasce. Mas não existe a
demonstração de que uma espécie se tornou uma outra espécie completamente diferente.
É possível demonstrar que a teoria da evolução não é propriamente uma demonstração.
Em primeiro lugar porque um dos maiores defensores dessa teoria, quando foi
inicialmente publicada, o cientista Thomas Huxley (chamado o bulldog ou cão de
guarda de Darwin) tinha reservas a essa teoria. Ele não a encarava como uma
demonstração, isto é, algo que torna um objeto evidente. Ele tinha respeito pela teoria, e
achava que devia ser discutida, e mesmo contribuiu com ela, mas ele não a via como
uma demonstração. Um dos motivos é que a teoria da evolução envolve ramos que vão
muito além da biologia. Darwin foi um geólogo, mas a teoria da evolução certamente e
necessariamente envolve especulações no ramo da astronomia, por exemplo. Isso
porque, de acordo com Richard Dawkins, grande defensor da evolução, a vida na terra
começou há cerca de três bilhões e meio de anos. Isso significa que para demonstrar a
teoria da evolução é preciso especular em alguma medida a respeito das condições
geológicas e astronômicas prevalecentes quando a vida começou. Cientistas dizem que
o volume do sol decresce formidavelmente com o correr do tempo, o que significa que a
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relação da terra com a luz solar três bilhões de anos atrás era diferente, ou pode ter sido
diferente. Então a especulação evolucionária é uma especulação também astronômica. E
isso estava fora do campo de estudos de Darwin, que, claro, era já abrangente. Mas
disso se conclui que a teoria da evolução não é uma demonstração, como era evidente
para o maior defensor público dela.
– Por essas coisas se vê porque o cientista Richard Owen, que você mencionou, não
acreditava em evolução, ou não a propugnava com firmeza. — Disse ainda o velho
Marcondes. — Ele levantou a hipótese da variação tênue das espécies, claramente
demonstrada, não ter sido o mesmo mecanismo que deu origem às espécies em toda a
variação que apresentam. Uma das maneiras de ver isso é que segundo um cientista
chamado Stephen Meyer, no livro Signature in The Cell, todos os seres vivos são feitos
de proteína. E a proteína, para existir, necessita de uma estrutura química chamada
aminoácido. Ora, nenhuma cadeia de aminoácidos é encontrada espontaneamente na
natureza, se não é produzida pela célula dos organismos vivos. O Dr. Meyer calculou a
probabilidade de os aminoácidos se formarem por acidente na natureza, sem um
organismo preexistente, e comparou essa probabilidade a se achar uma agulha que possa
estar em qualquer lugar do universo visível. Se o surgimento dos organismos não é
espontâneo, mas o fruto de uma intenção, então porque deveria ser necessário que a
evolução das espécies ocorresse desde um único, ou uns poucos, seres viventes? Se é
possível a um criador gerar a vida do nada, é possível gerar todas as espécies do nada. A
evolução, sob essa luz, é um mecanismo inócuo. Se é possível criar um ser vivente, um
organismo vivente, é possível a Deus criar o primeiro homem e a primeira mulher. Aqui
se vê novamente que o ateísmo não se baseia tanto no próprio embasamento racional,
mas na desconfiança em relação à hipótese contrária. Porque se não existe Deus, e Adão
e Eva não foram os primeiros seres humanos, mas o homem surgiu de um único ser
vivente, ou alguns seres viventes que não se pareciam com o homem em nada, então
significa que tudo ocorreu por um processo randômico; e se ocorreu por tal processo,
uma catástrofe poderia muito bem ocorrer no universo eliminando todos os seres
viventes, e o universo poderia subsistir sem vida alguma, e para sempre, ainda que a
possibilidade da vida subsistisse também. Essa ideia também é estranha, ou ocasiona
estranhamento. Não é o mesmo que se objeta a “Adão e Eva”? Que causa
estranhamento? Como eu já disse, não é tanto que o ateísmo faça muito sentido, mas
que a hipótese contrária evoca ressentimento e desconfiança. Argumentar que a religião
é bizarra é um jogo fácil, e que se apresenta como uma via de mão dupla: Eu também
posso, com certa eficácia retórica, dizer que o ateísmo é bizarro. Você acusou os
religiosos de não olharem as próprias faltas e inconsistências, mas apenas as faltas e
inconsistências alheias; não é precisamente isso que você faz?
– Você apontou, com Büchner, que em todo lugar para o qual formos teremos muita
gente bastante cética em relação à religião local. — Disse o velho Marcondes. — Isso
não é, de certo modo, um fator probante em favor, não contra, a religião? Pensa bem,
não existem relatos minuciosos de como se cria uma religião fraudulentamente do nada,
pois até mesmo as religiões da Nova Era têm certa filiação tradicional na Sociedade
Teosófica e organizações de cunho esotérico, suspeitas de satanismo, que existiam no
século anterior ao advento da Nova Era. Não existem relatos literários de como se cria
religiões do nada, e por estelionato, então não é possível sequer imaginar como um
grupo acaba por se fiar em certa tradição religiosa, se o ceticismo é natural no ser
humano, como Büchner aponta. Se acontece por fraude, como não temos qualquer ideia
mais clara de como funciona essa fraude? Por exemplo, a famosa escritora mística Alice
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Bailey, que foi expulsa da Sociedade Teosófica americana no séc. XIX. Ela dizia que
recebia mensagens de um espírito chamado “O Tibetano”. Se ela era uma mera
estelionatária inventando uma história para enganar os outros, por que é que ela se
submeteu a ser execrada pelos outros teosóficos que não acreditavam no “tibetano”,
para de modo até certo ponto independente e corajoso fundar a Lucifer Trust, uma
organização para promover a publicação de livros esotéricos, isto é, o seu próprio
material? Você consegue imaginar um estelionatário inclinado a dedicar a sua vida
inteira a uma história inventada, de cunho esotérico, sem ter meios de saber se o seu
projeto vai dar certo? A organização fundada na década de vinte, a Lucifer Publishing
Company, tem uma formidável sede hoje nos Estados Unidos, em Manhattan; vai muito
bem. A organização tem filiais ou sedes em pelo menos três países europeus, incluso a
Inglaterra, e a influência que teve sobre o movimento da Nova Era e sobre o mundo foi
profundo. Basta que eu refira aquilo que disse o falecido estudioso e radialista
americano, Dr. Stanley Montieth, “a Nova Era influenciou todos os aspectos da nossa
vida”.
– Você disse que não há como saber se uma religião é falsa ou não, no sentido de
demonstrá-lo de modo suficiente. — Disse o velho Marcondes. — Se isso é verdade,
por que você diz que rejeita as religiões como bizarras? Se são bizarras, não é isso uma
demonstração suficiente de que se deve rejeitá-las, e portanto resta provado que há
critério para rejeitá-las? Se elas são bizarras então exalam um odor de coisa
extraordinariamente má, destrutiva de uma estabilidade ou salubridade psíquicas, e não
é de modo algum claro que o homem consiga produzir realidades assim da sua própria
imaginação, sem a concorrência de fatores sobrenaturais diabólicos. Um ateu como o
americano Bill Maher pode escarnecer do que lhe pareceu bizarro na religião de Joseph
Smith, o mormonismo, e suas revelações. Mas eu escarneço da ingênua ideia dele de
que esses fenômenos foram inventados da imaginação de Joseph Smith. Aliás, Maher
nem mesmo pensa ou afirma com segurança que essas visões de Smith foram
inventadas. Ele simplesmente não sabe do que se trata! É para mim bastante evidente
que o ateísmo é um ressentimento ou desconfiança contra a religião, esta definida como
a crença advinda de algum tipo de revelação ou mensagem de uma inteligência não-
humana. E ressentimento por ressentimento, ele não é realmente mais racional do que o
ressentimento contra a ideia de que Deus não existe. Uma prova adicional do que eu
estou falando é o interessante trabalho do Dr. Richard Carrier, um ateu que escreveu o
livro On the Historicity of Jesus: Why We Might Have Reason for Doubt. Ele apresenta
os eventos que geram as religiões como “alucinações”, mas mais adiante ele explica que
esse é termo técnico, não literal. As visões e revelações que os fundadores de religiões
têm, e até mesmo o reformista Lutero alegou tais revelações no seu comentário à
Epístola aos Gálatas, as revelações que os fundadores de religiões têm são coisas que o
Dr. Carrier não faz a menor ideia do que sejam. Ele não pode dizer que essas
“alucinações” são invenções, porque se ele o dissesse soaria muito esquisito; não
obstante o sentido vago de “alucinações” que ele usa é já por si tremendamente
esquisito.
– Você lançou mão de um argumento de Ludwig Feuerbach — continuou o velho
Marcondes — a distinção entre o que Deus é para mim e o que ele é em si mesmo.
Segundo Feuerbach uma vez que se faça essa distinção, o conceito de Deus em si
mesmo parecerá inteiramente vazio. A Summa Theologica, de Santo Tomás de Aquino,
enumera e discute sob muitos ângulos os atributos que Deus deve ter em si mesmo, para
todos que considerem o mesmo raciocínio, e um desses atributos é o colocar
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generosamente as coisas em movimento, uma vez que tudo o que é movido foi movido
por uma outra coisa, e na cadeia de movimentos assim considerados deve ter havido
algo que primeiro moveu sem ser movido, porque o conceito de um começo que nunca
começou é absurdo. Se pode argumentar contra essa prova da existência de Deus que é
baseada em um raciocínio que, por não poder ser reconstituído pela observação, nem
pela imaginação de modo fácil, tem tanta veracidade quanto um ente de razão, e não se
parece com uma demonstração. É o que diria talvez um lógico ateu como Bertrand
Russel. Mas a mesma objeção pode ser feita, de maneira ainda mais certeira, contra a
teoria da evolução que os ateus tanto exaltam. Ainda que fosse certo considerar que a
distinção entre o que Deus é para mim e o que ele é em si destrói a religião, isso parece
se aplicar apenas a pessoas que, como provavelmente foi o caso de Feuerbach, não
tiveram nenhuma experiência do sobrenatural, pessoas que não eram como Alice
Bailey; porque ela obviamente, ao receber recados do “tibetano”, tinha uma experiência
de um ente que não se resumia em expectativas subjetivas misturadas a atributos
genéricos de origem puramente humana. Se pode ver isso, por exemplo, pelo fato de os
escritos dela, abrangendo muitos assuntos e distinções, causarem fascínio e
influenciarem muitas pessoas. E como vimos, não faz sentido dizer que ela inventou
tudo isso do nada, nem um historiador com PhD em história antiga como Carrier é
capaz de dizer com clareza o que são essas “alucinações”.
– O próprio Dr. Carrier — continuou o Sr. Marcondes — discorreu sobre as muitas
lendas religiosas que são semelhantes. Rômulo, na Roma pagã, tinha as morte e
ressurreição celebradas anualmente, como Jesus Cristo. Sobre Osíris, o deus egípcio, era
prometida a salvação no além a quem quer que fosse batizado em sua morte e
ressurreição. E também na província mediterrânea da Trácia se acha uma tradição muito
semelhante, o cristianismo sendo, para o Dr. Carrier, mais uma tradição entre muitas
outras. Você citou Voegelin, que aponta na mesma direção. Mas o próprio Dr. Carrier
avisa os desavisados que muitos dos paralelos entre o cristianismo e as outras religiões
são dúbias ou simplesmente falsas. Por exemplo, circula muito a informação de que
Hórus, ou Mithra (um deus persa do zoroastrismo), tiveram, como Jesus teve, doze
discípulos, o que é falso. Não se sabe, segundo Carrier, de uma repetição desse padrão
de doze discípulos. E conquanto hajam essas alegações dúbias, o Dr. Carrier propõe que
o cristianismo promoveu o mesmo tipo de crença que outras tradições pagãs
promoveram. Inclusive, segundo ele, o Jesus das escrituras provavelmente nunca
existiu, apesar dos relatos a respeito na antiguidade, que ele aponta serem escassos; as
histórias foram inventadas posteriormente pelos discípulos, assim como a passagem
pela terra dos deuses pagãos foi inventada. Existem muitos deuses com a mesma
característica de Jesus, segundo o Dr. Carrier. Há muitos deuses salvadores, chamados
filhos de deus, que sofrem o que é designado no grego como “paixão”, todos vencem a
morte e comunicam essa vitória aos discípulos, e todos têm relatos de si como se
passando na história humana. A argumentação do Dr. Carrier é simples: Se a história de
Jesus é tão semelhante a muitas outras histórias pagãs, e o paganismo deve
ter influenciado o judaísmo no correr do helenismo ou disseminação da cultura grega,
por que a história de Jesus tem de ser considerada real?
– OK. Escutem. Eu vou lhes dizer porque a ideia de que Jesus nunca existiu e não teve o
seu ministério público diante dos homens me parece incorreta, ainda que a verdade
sobre a pregação de Jesus, tal qual está no evangelho, faça com que ele se assemelhe a
deidades pagãs. Primeiramente deixem-me lhes explicar quem foi Alexander Hislop.
Ele foi um estudioso de grande erudição, um escocês protestante ao séc. XIX; tinha bom
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domínio de línguas como grego e mesmo sânscrito, que é usado na liturgia do
hinduísmo. Hislop acreditava que a Igreja Católica era a continuação de uma religião
babilônica de mistérios; um exemplo atual desse tipo de religião, segundo um estudioso
chamado Stephen Missick, é a Maçonaria. Portanto, à segunda metade do séc. XIX,
como o livro de Alexander Hislop chamado As Duas Babilônias deixa entrever, havia
passado tempo suficiente desde a reforma protestante para que os estudiosos da reforma
protestante se detivessem na elaboração de inúmeras teses anti-católicas como essa. Mas
ao século XIX, quando Newman era influenciado por escritores protestantes que lhe
indispunham profundamente contra a Igreja Católica, a exemplo de Isaac Newton,
nenhum deles lhe indispôs contra Santo Inácio de Antioquia, bispo de Antioquia. Esse
homem, contemporâneo a Policarpo de Esmirna, também homem de uma região da ásia,
foi junto com Policarpo um dos bispos que conheceram os apóstolos. Policarpo é
venerado pelas Igrejas luteranas que detestam o vaticano (se se levar em consideração a
linguagem costumeiramente violenta de Lutero contra Roma). Julgar que os anglicanos
não foram profundamente influenciados pela reforma protestante e seu espírito, apesar
de manterem o “episcopado”, é bastante ingênuo. Os anglicanos, na geração em que
Newman cresceu, tinham a mesma impressão de qualquer calvinista a respeito dos
exagero e velada idolatria católica, dirigida aos santos. É isso simplesmente um fato.
Mas os protestantes de uma maneira geral, não vêem falsificação nos documentos
conservados pela Igreja com os relatos de homens como Santo Inácio de Antioquia e
Policarpo de Esmirna, homens da primeira metade do séc. II, tão perto da geração
apostólica que na verdade um discípulo de Policarpo, chamado Irineu, é um dos autores-
chave para entender aquele período. Não há muita disputa histórica a esse respeito,
embora tenha havido alguma, sobretudo se se considerar que Alexander Hislop (um dos
maiores responsáveis pela aversão pública ao catolicismo), cita como fonte
minimamente fidedigna um historiador do século IV como o bispo Eusébio de Cesaréia,
o qual por sua vez cita as epístolas de Inácio de Antioquia. Assim, me parece, também
pensa um expert em grego e manuscritos antigos, um protestante contemporâneo
chamado James White; White é o tipo de protestante que espuma de ódio com o que
considera ser a idolatria da virgem Maria, e no entanto ele não põe dúvida, por exemplo,
nos escritos e registros históricos do bispo Atanásio de Alexandria, um ícone do
catolicismo nascido décadas antes do Concílio de Niceia ocorrido em 325 D.C.. Pelo
contrário, ele chama Atanásio praticamente de protestante, pelo apego de Atanásio às
escrituras durante a controvérsia com os da heresia ariana.
– Portanto — continuou o velho Marcondes — é seguro que escritos dos padres da
Igreja, que são os santos do primeiro milênio, como Santo Inácio de Antioquia, são bem
aceitos. Newman se baseou muito em Inácio quando era um anglicano. Se os escritos de
Santo Inácio de Antioquia devem ser bem aceitos, então a ideia de que os apóstolos
criam em um Jesus real vindo ao mundo, essa ideia deve ser aceita. Santo Inácio, nas
sua epístolas, afirmava crer em um Jesus nascido do útero da Virgem Maria, e
descendente do rei David. Ademais, instou por suas epístolas que as pessoas cressem na
paixão ocorrida sob Pôncio Pilatos. O Dr. Carrier acredita que os apóstolos e primeiros
cristãos criam que a paixão de Jesus tinha ocorrido no céu, e não na terra. Ele crê que
assim como nos mitos pagãos, a realidade de Jesus teria sido revelada por “alucinação”
e depois projetada fiticiamente sobre a história, e nisso cita certo escrito da época (de
autoria desconhecida) chamado Ascensão de Isaías, que parece apontar para uma paixão
de Cristo, e embate de Cristo contra o diabo, ocorrida exclusivamente no Céu. À luz
dessa hipótese as epístolas de Santo Inácio são submetidas a um estranhamento. As suas
referências ao nascimento de Jesus passam a ter de ser vistas como metáforas a insinuar
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de um segredo esotérico. As epístolas dele passam a ganhar um odor de repugnância, a
natural repugnância que se tem contra a duplicidade.
– É possível argumentar, contra o Dr. Carrier — continuou o velho Marcondes — que é
bem seguro aquilo referido no Catecismo de Trento, a saber, que Pôncio Pilatos foi
incluído no Credo constantinopolitano, no séc. IV, justamente porque entre os das
primeiras gerações de cristãos houve os que negaram a existência de Jesus na história.
Se é verdade que os primeiros cristãos, como o apóstolo Paulo, não acreditavam em um
Jesus histórico, então significa que, curiosamente, esse segredo esotérico ficou tão bem
guardado, que não há registros de tal conspiração enquanto tal, e um dos maiores
intelectuais e eruditos de todos os tempos, o cardeal Newman, nos admite com pasmo
que a Igreja Católica não muda de opinião, mas sempre, contra tudo e contra todos,
mantém austeramente o mesmo modo de crer. Depois de o primeiro Concílio ecumênico
ocorrer, o Concílio de Niceia, definindo que Jesus era Deus, e ao mesmo tempo havia
um só Deus, décadas depois os hereges arianos que haviam disputado no concílio
viraram a mesa. Apenas três bispos em todo o Concílio de Niceia, se recusaram a
assinar o credo concordando que Jesus era Deus, apenas três bispos se apegaram ao seu
arianismo. Mas infelizmente, uma vez que os arianos conseguiram o apoio do
imperador romano, e contaram com outras circunstâncias favoráveis, o mundo do dia
para noite se tornou ariano, ainda no século em que ocorrera Niceia. São Basílio Magno
foi o único bispo não-ariano em todo o oriente durante parte da segunda metade do séc.
IV que reteve sua diocese, e a maior parte da Igreja ficava no oriente. 97% a 99% de
todos os bispos do mundo abandonaram a fé. Os católicos que restaram se apegaram
firmemente à fé. Em nome dessa fé, que o cardeal Newman assegura foi sempre
professada de modo austero e inalterável, os católicos atravessaram os séculos
continuando a ser o que são. Crer que a fé católica tenha se baseado nesse segredo
esotérico inicial, tomado a máscara que encobria o segredo pela verdade e se apegado a
essa máscara por tanto tempo, quando todas as outras seitas, a começar pelo arianismo,
se contradiziam, mudavam e estilhaçavam em muitos pedaços, crer nisso é coisa
estranha. Quando foi que o segredo esotérico deixou de ser contado, e por que deixou de
ser contado? O Dr. Carrier não tem uma resposta a isso, o que significa que a sua tese
não é uma demonstração. Ele próprio admite que é uma possibilidade.
– Quanto à semelhança entre o cristianismo e as outras religiões pagãs, parece
conveniente mencionar a opinião de um dos padres da Igreja a respeito, São Justino
Mártir (que escreveu no ano de 165 D.C). — Continuou o velho Marcondes. — Ele
acreditava que essas semelhanças entre o cristianismo e outras tradições são fruto da
influência do demônio sobre as várias sociedades humanas, um engendramento de
confusão. É só a opinião de um santo, não é de fide, parte do depósito da fé deixada
pelos apóstolos. Há pelo menos duas teses explicativas de que eu posso lançar mão a
respeito. A primeira consiste em apontar que, segundo Gilbert Chesterton
primorosamente mostrou no seu livro Hereges, existe uma diferença tão grande entre o
paganismo e o cristianismo, que a experiência vital de um pagão será completamente
diferente da experiência vital do cristão. Ele procura demonstrar que isso é bastante
evidente. Por exemplo, quando as pessoas criticam o cristianismo porque defende o
casamento com o fim exclusivo de procriação. Temos um exemplo perfeito da oposição
paganismo e cristianismo. O pagão tenderá a se chocar com uma tal concepção de
casamento, porque o pagão vê o aqui e o agora, o prazer imediato, aquilo que está diante
dele. O sexo para o pagão é só sexo. Para o cristão o sexo é só uma alusão a algo não
imediato, isto é, o filho que vai nascer, e o nascimento do filho é só uma alusão à
salvação do mesmo, preparada para a maior glória de Deus. No cristianismo a infinitude
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permeia tudo, tudo se insere em uma perspectiva maior, infinita, inesgotável. É por
causa dessa estranha experiência vital e perspectiva que Santo Inácio de Antioquia
pulava de alegria quando se dirigia aos leões para ser por eles despedaçado; ele foi um
mártir cristão sob o Imperador Trajano. Glorificar a Deus e ganhar a vida eterna por
meio do sacrifício da própria vida?! Ele não conseguia conter a si mesmo de
entusiasmo, e de receio que o seu martírio não sucedesse. Chesterton elaborou essa
oposição entre o paganismo e o cristianismo, referindo que o Ulisses de Homero, pagão,
queria apenas voltar para casa; e que o Ulisses de Tennyson, de um poema dentro da era
cristã, queria navegar contra o pôr do sol, se aventurar, queria se defrontar com a
imensidão. Como as críticas que Chesterton recebeu por Hereges não contemplaram
nenhuma rejeição dessas noções de paganismo e cristianismo, e como Chesterton de
fato estudou essas noções e citou autores a respeito, significa que pareceu aos
estudiosos dos tempos de Chesterton que essas noções não são forçadas e inadequadas.
Portanto, por mais que o mito pagão e o mito cristão tragam entre si alguma
semelhança, existe algo muito profundo que diferencia o paganismo do cristianismo,
algo que forçaria mesmo o Dr. Carrier a admitir que o mito cristão é um tipo
diferenciado de paganismo.
– Por que essa diferença entre o paganismo e o cristianismo? — Continuou o velho
Marcondes. — Essa expectativa cristã da imensidão se baseia em uma certeza, em
uma experiência que alimentou a alma dos primeiros cristãos de esperança, de um
discurso apaixonado como aquele que se nota em Santo Inácio de Antioquia. Foi nesse
espírito que Santo Inácio, depois de escoltado por soldados até o anfiteatro Romano, se
deixou devorar por leões em nome de Cristo no ano 107. Eu não compreendo o mistério
cristão, mas eu sei que, se o relato dos evangelhos não é verdadeiro, e os apóstolos não
testemunharam de verdade o que está nesse relato, é bastante curioso que a “alucinação”
deles tenha causado uma impressão tão forte, uma mudança tão profunda de experiência
vital. Por que tanta esperança, tanto vislumbre da eternidade em todas as coisas? Como
nós vimos, pelo escritor Büchner, as pessoas são geralmente céticas e alheias à sua
tradição religiosa; por que tanta esperança? Naquele filme sobre o cavalo Seabiscuit, a
narrativa da cena final diz, no contexto das várias vitórias em corrida de cavalo: “As
pessoas pensam que nós pegamos esse cavalo, o consertamos, para ele se tornar
campeão, mas a verdade é que foi ele quem nos consertou”. A vitória, o triunfo, o
milagre, existe alguma outra coisa como essas capaz de nutrir o coração de alguém de
esperança a ponto de tornar fácil o sacrificar a própria vida?
– A minha segunda tese é como segue: Segundo a narrativa de Gênesis, a terra foi
amaldiçoada por causa do pecado do primeiro homem. O homem teve de passar a
ganhar o alimento com o suor do rosto. Se pode ver que é um castigo que dá ao homem
uma ideia realista de que depende de Deus, e é menor que Deus. Da mesma maneira,
quando no Gênesis a empresa da torre de Babel é interrompida, e ocorre a confusão
das línguas, o mesmo padrão ligeiramente se repete: A tentativa do homem de se
engrandecer e se tornar capaz de executar todos os seus empreendimentos é frustrada,
para que, segundo me parece, não deixe de perceber o quanto depende de Deus. Existe
portanto uma descontinuidade entre a natureza primitiva, paradisíaca, e a que nós
conhecemos; existe uma descontinuidade entre a primitiva facilidade de comunicação
entre os homens, e a comunicação atual. Nos dois casos a diferença serve para
assombrar o homem e mostrar-lhe que é pequeno. Talvez o mesmo propósito seja
desempenhado pelos diferentes mitos religiosos, talvez a descontinuidade que existe
entre uma religião e outra, como as duas primeiras, não sendo total mas parcial, cumpra
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a função de fazer saber que o homem, arraigado na sua tradição religiosa, não
compreende, não abarca, outras muitas perspectivas, o homem é pequeno. O fato de a
narrativa cristã não ser exatamente igual às outras reforça isso, porque igualmente entre
ela e as outras há uma mistura de continuidade e descontinuidade. Embora isso seja
assim, tal não chega a ser propriamente uma apologia das religiões, mas as religiões são
um castigo, uma peia, e o fruto do orgulho humano; assim como a natureza amaldiçoada
é um castigo e o fruto do orgulho. Portanto, o fato de que existe uma descontinuidade
não-total entre a religião verdadeira e as outras, semelhante à descontinuidade não-total
entre a natureza paradisíaca e a atual, é uma indício de que a religião cristã é verdadeira,
e sobretudo é um indício de que o entendimento ateísta do que sejam as religiões não é
verdadeiro.
– Isso pode ser exemplificado com alguns exemplos e qualificações — continuou o
velho Marcondes –, por exemplo, se é necessário crer na Santíssima Trindade e na
encarnação de Jesus Cristo para ser salvo, como a fé católica afirma, é porque ao falecer
e se defrontar com tais realidades, o homem tem de ter se adequado a aceitá-las com
firmeza para não fugir da face delas ao se apresentarem. E a preparação para aceitar tais
realidades implica não só um vislumbre da humildade que será necessária para se
defrontar com tais realidades, mas essa preparação implica um moldar a humildade
necessária para se aceitar essas realidades. O mover do orgulho no homem faz que ele
se incline a não aceitar esses dogmas, porque a confrontação com a própria pequenez é
dolorosa. Heresias como o arianismo ou o nestorianismo, são um reflexo do orgulho
humano. Nessa visão, as religiões tomadas individualmente, com exceção da cristã, são
más, mas tomadas em conjunto, são boas no sentido de que a confrontação delas dá ao
homem a medida de que, não sendo capaz de abarcar a linguagem de todas as religiões,
algum conhecimento lhe falta, ele é mísero e mais abaixo da sua situação do que
gostaria de admitir. Assim, faz sentido que Deus permitisse muitas religiões com
descontinuidades não-totais entre si, em vez de uma só falsa religião, e portanto a
existência das muitas religiões não advoga contra o cristianismo se puder ser mostrado
que é uma religião verdadeira.
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Protestantismo
– Muito bem — disse o Sr. Marcondes. — Primeiramente, se vamos decidir qual é a
única religião, usemos a cortesia socrática de definir o que é uma religião, e o que são o
catolicismo e o protestantismo. A religião é uma crença advinda de uma revelação desde
uma fonte não-humana. A fonte que o catolicismo alega é o Deus dos judeus, que falou
a eles no deserto; e Jesus Cristo, aquele mesmo Deus que falou a eles, mas nos últimos
tempos se tornou um homem para realizar uma obra de salvação. O protestantismo alega
a mesma fonte de revelação. Mas há uma disputa sobre questões doutrinais. Não há
ninguém nos meios liberais e midiáticos que goste da ideia de que essas disputas são
brutais ao ponto de representarem uma mútua condenação ao inferno. É porque a mídia
é a tentativa de apresentar uma unidade que não existe, é um espelho para o qual todos
olham, mas curiosamente ele não reflete o que é mais importante.
– Decorre disso que o dogma Fora Da Igreja Não Há Salvação é considerado nem
mesmo positivamente católico, apenas uma opinião marginal dentro do catolicismo.
James White e outros eminentes protestantes atuais nos dirão que os católicos, se se
fiarem em seus dogmas, vão para o inferno. O antipapa Bento XVI não acredita que os
protestantes sejam sequer hereges, ou merecedores dessa categorização; muitos
protestantes discutirão os assuntos católicos, como o Concílio Vaticano II, sem a atitude
de quem examina uma doença ou um inimigo (é o caso de Billy Graham, o ministro e
missionário da South Baptist Church nos EUA). — Disse o sr. Marcondes.
– De modo geral, o protestantismo é um fenômeno muito obscuro, o bastante para que
seus adeptos às vezes sequer enxerguem a si mesmos como tais. Eu quero dizer que
John Henry Newman, por exemplo, quando era um clérigo anglicano, tinha a impressão
de que a Igreja da Inglaterra, junto com a Igreja Latina e Grega (os cismáticos do
oriente), não representavam senão ramos relativa mas não inteiramente separados da
Igreja universal primitiva. Isso um católico não pode admitir, mas, ao contrário, o
católico é forçado a acreditar, por exemplo pela carta papal de Clemente VI chamada
Super Quibusdam, que todos andarilhos fora da fé dessa Igreja, e fora da obediência ao
papa de Roma, não podem ser salvos ao final da vida. Então temos um paradoxo:
Newman nos explica que para ele e seus companheiros de fé, quando era um anglicano,
o papa devia ser considerado um anticristo, e sua Igreja anticristã, sobretudo por causa
da veneração a santos; ao mesmo tempo, ele admitia ou passou a acreditar que tanto a
sua Igreja quanto a Igreja Latina eram membros de um mesmo corpo, a despeito de
qualquer acidente, essencialmente herdeiros dos apóstolos e de suas instituições.
– James White, o apologeta famoso, também é carregado de sentimentos semelhantes,
de algum modo. — Disse o velho Marcondes. — A crença na dignidade do sacerdócio
católico, como ensinada no catecismo católico, ele declara que pode danar uma alma.
Ao mesmo tempo, ele disse em alto e bom som que é grato por Niceia, o Primeiro
Concílio Ecumênico convocado pelo imperador Constantino. Ele é grato, e em geral as
Igrejas evangélicas admitem o conteúdo dos cinco primeiros concílios ecumênicos
aprovados pelo papa, porque o conteúdo desses concílios, os seus credos, não são
inteiramente claros a partir, diretamente, da bíblia. Tanto é assim que quase a totalidade
dos bispos católicos rejeitaram Niceia do dia para a noite, pouco depois do concílio, por
conta de alguma pressão do imperador que sucedeu Constantino. Então, por esses dois
exemplos, de White e Newman, se começa a perceber que os protestantes têm
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sentimentos contraditórios, eles são um fenômeno obscuro. Quem tenha tentado
conversar com um protestante vai ter essa impressão. Você dirá “São Francisco de Assis
é um modelo de vida”, o protestante talvez objetará que nenhum católico
necessariamente vai para o inferno (como se as crenças e alianças de São Francisco
sequer existissem). Se você objeta que Martinho Lutero tinha profunda veneração pela
Virgem Maria, o protestante talvez objetará que “Lutero era praticamente católico, e não
protestante”. Mas, como todos sabem, se ele era um promotor do catolicismo, o sorriso
de satisfação de muitos protestantes ante a oposição de Lutero à Igreja perde
completamente o sentido.
– A controvérsia sobre a tradução e manuscritos bíblicos, — continuou o Sr. Marcondes
— segundo vi em um debate certa vez, parecia ter como fundamento unânime que a
publicação das 95 teses (de Lutero) foi um marco, uma espécie de retorno ao
cristianismo autêntico. Mas nessas teses Lutero ainda tinha uma atitude de obediência,
ainda que em pequena medida problemática, ao papa. A tradução do Novo testamento
geralmente mais amada pelos protestantes, a King James Version, ou 1611 AD
Authorized Version, foi pesadamente baseada no texto editado em grego por Erasmo de
Rotterdam, que foi, como se sabe, um padre católico que, identificado embora a certas
críticas anticatólicas, desdenhou a Reforma Protestante. Os anglicanos e outros guardam
o domingo; os adventistas (por princípio), e os Judeus por Jesus (segundo os críticos por
tática), guardam o sábado como se fossem judeus. Os sábados, por sua vez, parecem
segundo alguns, ter sido expressamente abandonados pela cristandade conforme a
Epístola aos Colossenses, capítulo 2, versículo 16 (passagem que os adventistas há
muito reconheceram tem alguma força retórica contra a posição deles). Alguns dizem
que os não-cristãos não vão se salvar, outros dizem que “deixam isso à misericórdia de
Deus”. Quem se acostume aos protestantes, e talvez não seja o meu caso (eu quero dizer
que sou inexperiente), vai ter a sensação de que eles não falam uma linguagem que soe
demonstrativa, mas usam um outro tipo de linguagem, ou abordam a questão religiosa
de um modo inteiramente diferente. Um pouco disso se nota, por exemplo, em ateus
como Christopher Hitchens: Ele disse que o cristianismo na década de trinta se aliou ao
fascismo, querendo dizer que a Igreja se aliou à Alemanha nazista e à Itália fascista.
Essa ideia é altamente capciosa, a começar pelo fato de que Mussolini tinha uma
formação inteiramente marxista, foi elogiado por Lênin na época em que pertencia ao
partido comunista — Isso ao mesmo tempo que o comunismo era visceral e
explicitamente combatido pela Igreja. Por outro lado, Hitler tinha planos da matar o
papa, como foi referido de passagem por Paul Johnson em um dos seus livros, e a
segregação racial é uma ideia profundamente anticatólica e herética (a começar pelo
fato de que Jesus era um judeu, como todo judeu sabe). A ideia de Hitchens foi procurar
comprometer a imagem da Igreja, quando a suposta aliança dela com esses governos
não possui o caráter de um pacto demoníaco de modo algum. Assim como Hitchens, os
protestantes em alguns casos usam uma retórica que se agarra a meras aparências
fugidias, e a linhas de raciocínio cujo escopo é muito limitado e pouco complexo. Se
tem a sensação de que eles não têm o hábito de distinguir entre uma sugestão e uma
demonstração. A sugestão é o apontar para um sentido, a demonstração é o empilhar
proposições até uma reconstituição do objeto, é tornar o objeto evidente, visível.
– Você sente quando você chegou a uma demonstração; Hegel diz que quando
chegamos a um conhecimento pensante de algo, não a meras pressuposições, a
evidência tem a força de uma presença física, você não apenas conhece o assunto, mas o
conhecimento do assunto é uma prova da realidade dele. — Disse o Sr. Marcondes. —
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Essa distinção entre uma mera sugestão e uma demonstração parece ausente no discurso
religioso dos protestantes em alguns pontos, ainda que existam bons lógicos entre eles;
a exemplo do clérigo-teólogo (me parece anglicano) William Paley, o qual por sua
lógica tanto influenciou Charles Darwin; como disse, a exemplo dele os protestantes se
mostraram muito hábeis em qualificar e demonstrar. É que a dificuldade deles em
demonstrar toca não a tudo quanto dizem, mas a certos pontos. Eu vou dar um exemplo,
alguns grupos do ramo reformista dos calvinistas, os da Berean Church, eles se
engajaram na controvérsia sobre os manuscritos antigos da bíblia do seguinte modo.
Existe, para simplificar as coisas, os textos bizantino, ou de Antioquia, e o texto de
Alexandria, ou do Egito. Como eles creem que os textos egípcios são mais corrompidos
e suspeitos, e há certa variação entre os dois manuscritos da bíblia, eles escolheram
como o texto correto o bizantino; e levantaram o pretexto de que na bíblia se diz que o
Egito é uma terra de corrução, e que não se deve confiar no que sai de lá. Essa não é a
opinião de certos protestantes que entraram na controvérsia, contudo o modo dos da
Berean Church de resolver a questão me pareceu tremendamente característico. Não é
uma demonstração. Mas é como se fosse para eles. Entendem? Se você argumentar que
o maior profeta do Antigo Testamento, Moisés, saiu da corte do Egito, não de
Antioquia, a sugestão deles não parecerá mais tão sugestiva. Alguns creem na
infalibilidade da King James Bible, outros, como o Sr. White, veem com bons olhos a
New International Version que corrige o texto bizantino no qual a King James se
baseou. Supostamente a fé apenas, por graça e sem obras, deveria ser o princípio
protestante, mas é notório que há graus e graus de aceitação dessa doutrina, entre os
adeptos. Alguns, pelo menos um ministro protestante, dirá que a “abominação da
desolação”, de que Jesus fala no evangelho, foi a vinda do exército romano para destruir
o templo de Jerusalém décadas depois; outros dirão, seguindo talvez o fato de o termo
“abominação da desolação” ter sido usado para descrever sacrilégios cometidos no
templo pelos selêucidas à época dos Macabeus, que a “abominação da desolação” será
um fenômeno apocalíptico. Dirão não só que a o Tribunal da Santa Inquisição existiu
por toda a idade média, mas que matou milhões e milhões de pessoas; ao passo que o
famoso debatedor americano, Sr. Dinesh D’souza, um protestante, atribuirá à Inquisição
Espanhola não mais de dois mil condenados e provavelmente dirá que a Inquisição
surgiu ao século treze, já quase no fim da Idade Média. Se trata de uma roleta alucinante
de opiniões e variações, quase impossível de registrar uma por uma.
– Portanto — continuou o velho — embora se deva admitir, como no caso do reverendo
William Paley e outros, que os protestantes sejam capazes de grande tour de force
lógico e erudito — o que é ademais demonstrado pelo fato óbvio que muitos deles são
clássicos da literatura e filosofia –; por causa das doutrinas e proposições que nos
apresentam, no entanto, eu sinto que há algo de averso à demonstração na religião deles.
Tanto é assim que John Henry Newman explica que um dos principais desafios do
movimento antisecularista do qual fez parte na Inglaterra, foi justamente delinear um
sistema teológico anglicano completo, que satisfizesse os anseios dos jovens por
compreender todo o escopo do fenômeno cristão; esse sistema, a sua viabilidade, lhe
pareceu então, era bastante problemática. Embora alguns dos seus companheiros de
movimento, homens de status em Oxford etc., tenham tentado esboçar esse sistema; o
próprio Newman procurou adquirir os meios de esboçar o sistema, e isso se deu,
segundo me parece, por pelo menos dois meios. Primeiro, um descompromisso inicial
com o sistema, a publicação de ensaios sobre assuntos diversos carregados de uma
opinião e, quase, devaneio, profundamente pessoais. Isso lhe deu a vantagem de
multiplicar e estender as proposições (o que de certa forma é a própria definição de
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demonstração). Em segundo lugar, ele usou como combustível para esse
empreendimento, aliás profundamente bem-sucedido, os padres da Igreja, os santos
católicos do primeiro milênio. Newman se aproximou da demonstração e fez a cabeça
da Inglaterra porque se aproximou dos padres da Igreja. O elemento subjetivo que lhe
impulsionou, não é de modo algum manifesto que esteja ausente entre os reformistas e
continuadores do protestantismo, ao contrário, alguns críticos do protestantismo
procuram enfatizar a subjetividade do mesmo. O problema é que até nesse ponto, isto é,
a consideração dos padres da Igreja, os protestantes diferem. O Sr. White citará Santo
Inácio de Antioquia, bispo, morto no ano de 107 AD, como uma fonte fidedigna para
mostrar o que os primeiros cristãos pensavam. Outros, como o calvinista Keith
Thompson, nosso contemporâneo, procurarão demonstrar por meio de scholars que os
padres da Igreja criam em sola fide, a salvação sem obras humanas em colaboração com
Deus, como se os padres fossem protestantes (o que faz surgir a pergunta “porque
administravam a confissão?”, se criam em sola fide). Ao mesmo tempo alguns
protestantes influentes dirão simplesmente “não leiam os padres da Igreja, eu não os
recomendo, porque eles fazem mal”.
– Some-se a isso o seguinte problema — continuou o Sr. Marcondes –, que é: Embora
os protestantes em geral professem se ater à sola scriptura, só o texto bíblico é a fonte
doutrinal; há certas inferências classicamente realizadas por eles que se incorporaram à
mentalidade, dir-se-ia dogmática, dos protestantes ou parte deles. Por exemplo,
Alexander Hislop diz que o conteúdo das escrituras é como a criação de Deus de um
modo geral; se você observa uma flor, um lírio, ele é bonito, mas se você o observa com
uma luneta, mais detidamente, acaba por encontrar perfeições admiráveis que não
estavam aparentes antes. Ele aplica isso à ideia de que Roma, a Santa Sé, sendo para ele
a Meretriz Apocalíptica, recebeu na bíblia o título de “Mistério”. Ele vê nisso a ideia de
que o catolicismo é uma religião de mistérios, semelhante à maçonaria, que tem
segredos, ritos iniciáticos, e graus de iniciação. Essa ideia é uma extrapolação, um
adendo, ao texto bíblico, e muitos protestantes, como o estudioso de antigas civilizações
chamado Stephen Missick diz, acreditam que se você não crer nessa “hipótese”
hislopiana, você vai para o inferno. A tese de Hislop é bastante curiosa, por não ser
verdadeira, de modo manifesto, em certos sentidos. Por exemplo, não existem verdades
no catolicismo que devam ser objeto de encobrimento, como nas religiões de mistério;
pelo contrário, assim que um fiel católico ouve um dogma proclamado, é obrigado a
professá-lo a quem lhe possa ouvir. A segunda maior autoridade eclesiástica do seu
tempo, o patriarca Nestório de Constantinopla, foi deposto por não professar um ponto
relativamente sutil da fé, o que seria em grande medida impensável de ocorrer se os
católicos possuíssem uma agenda sobretudo esotérica e encoberta. Ao contrário,
Nestório foi primeiramente anatematizado não por autoridades oficiais da Igreja, não
por pessoas “de dentro da organização”, mas por leigos, os quais por isso foram mais
tarde elogiados pelos papas. Ademais, o que Hislop propõe como contexto histórico-
religioso da antiga Babilônia, no livro As Duas Babilônias, é segundo o Dr. Missick
bastante inverídico. Para não me estender muito, baste que segundo ele, quem conheça
bem a religião pagã em questão, perceberá que ela não é exportada para outros lugares
do mundo como queria Hislop, mas ao contrário, primeiro se apresenta como um
sistema sincretista que recebe divindades alheias em vez de exportá-las, e gradualmente
passa a tomar um sentido monoteísta e fechado a outras religiões e concepções.
– A tese de Hislop mostra como aquilo que não está manifestamente no texto bíblico
acaba por entrar no imaginário protestante como um dogma familiar, e quando essa
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extrapolação não se baseia em boas evidências, a possibilidade de erigirem uma boa
demonstração fica seriamente comprometida. — Continuou ainda o velho. — Isso
porque é difícil construir um edifício de demonstração que se baseia em uma fantasia
frágil. A mesma frágil constituição também me parece ser uma propriedade do conceito
mesmo de sola fide. Se diz que a fé apenas, sem obras, é capaz de salvar o homem,
porque, como Lutero procurou apontar, aquilo de que a alma está cheia, isto é, se está
cheia do conteúdo da fé, a torna redimida e conforme com Deus. Mas, me parece, se
supormos que é humilhante e socialmente desagradável professar o cristianismo, não
significa isso que a fé que professamos é já uma obra, uma resistência, uma ação na qual
colaboramos livremente com Deus? A aceitação da fé, por que é que não deveria ser
considerada uma obra? E se o for, como o conceito de sola fide pode não ser
considerado uma contradição indevida? Um certo ministro protestante disse do católico
sedevacantista, chamado Peter Dimond, que ele possui tremendos dons (isso no
contexto de um debate no qual se engajaram); e esse irmão Dimond, que é um expert
em textos bíblicos, afirma que basicamente todo livro do Novo Testamento pode ser
usado para refutar a ideia de sola fide. Sobretudo uma passagem na Primeira Epístola
aos Gálatas, capítulo 5, e versículos 19 a 21. Nessa passagem São Paulo lista pecados, e
se dirigindo precisamente não a falsos crentes, mas a interlocutores que ele mais cedo
identificou como “filhos de Deus através da fé”, ele lhes avisa e admoesta para não
cometer tais pecados, porque os que os cometerem não serão salvos. Os protestantes
portanto, diante dessa passagem, não podem alegar que São Paulo admoestava falsos
crentes, porque se dirigia a pessoas por quem declarara estima: “Eu vos admoesto, como
vos admoestei anteriormente, que os que praticam tais coisas não herdarão o Reino de
Deus”. Vocês protestantes usam muito a Epístola aos Romanos, capítulo 4, e a ideia ali
contida de que o homem é justificado pela fé, como Abraão, sem obras. Eu me pergunto
quantos de vocês leram o comentário de Santo Tomás a essa epístola. No comentário ele
aponta que, ao contrário do que pode parecer aos judeus de hoje, São Paulo tem certo
constrangimento em dispensar a lei, ou Torá. Ele quer, segundo Santo Tomás, fazer a
distinção entre a justiça qual reconhecida pelos homens, e a reconhecida por Deus, a
justiça que consiste em honrar o motivo formal da fé — Deus — ainda que isso ponha a
prova nossa consciência e crença, e por outro lado a justiça de fazer o que consideramos
oportuno. É a fé que leva à salvação, ainda que pareça pouco razoável a promessa de
Deus de fazer Abraão, em idade avançada e sem filhos, se tornar o pai de uma multidão
de povos. É nesse sentido que a fé, não as obras, aproveita para a salvação: O critério do
que seja a justiça tem o seu fundamento naquilo que cremos, na confiança benigna que
depositamos em Deus, a justiça está em acreditar nEle, e portanto sem Ele e a
obediência àquilo que nos obrigou, não há salvação. Não é a obediência à lei que nos
vai salvar, é a obediência a Deus, e por isso, uma vez que Ele nos tenha proposto que a
lei antiga deu lugar a uma nova aliança, e a representou, nos atemos a Ele, porque
cremos nEle. Assim, Abraão foi obrigado a imolar seu próprio filho, ainda que isso
tenha sido apenas uma prova, e não de verdade, o que ainda mais reforça a ideia de que
não basta a fé, a crença apenas, para ser reputado justo, é necessário fazer aquilo que
Deus manda (em decorrência do que Ele revelou) .
– Um dos mais curiosos pontos do protestantismo é a condenação da adoração de
imagens, que atribuem aos católicos. — Disse o Sr. Marcondes. — Eu penso que essa é
uma questão fácil para os católicos, de modo algum difícil de ser endereçado. Basta
tomar o profeta Eliseu e as passagens a respeito dele no livro dos Reis. Ele cura um
general da Síria, e esse general lhe pergunta “quando eu tiver de me apresentar diante do
ídolo, por causa do meu rei, e me ajoelhar, ainda que eu saiba que não existe outro Deus
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que não o teu, que devo fazer?” O profeta Eliseu, surpreendentemente, diz “faze-o
tranquilamente”. O que significa que ajoelhar-se diante de uma estátua ou ídolo, ainda
que seja uma divindade pagã, é algo acidental a cometer idolatria. Essa passagem prova
que a idolatria depende essencialmente da intenção, e não é isso que os protestantes
alegam a respeito dos católicos (porque alegam que cometemos idolatria mesmo sem a
intenção); eles podem, naturalmente, supor que a nossa idolatria é “semi-consciente”,
uma verdade que escondemos de nós mesmos no recesso do coração. Mas se é assim
por que Eliseu disse “faze-o tranquilamente”, e não “faze-o sempre preocupado com
rejeitar o ídolo e jamais se deixar impressionar por sua figura”? Não há como o
protestante tornar convincente que a diferença entre a idolatria e a mera veneração de
um santo é tênue e quase inexistente, porque, como os judeus mesmos são capazes de
reconhecer em uma conversa informal, o profeta Eliseu foi “adorado”. Uma mulher se
ajoelhou aos seus pés para ter o filho ressuscitado, rapazes foram miraculosamente
despedaçados por ursos por não lhe tratarem com respeito. Eliseu, depois de morto, não
parou de fazer milagres, mas os seus ossos ressuscitaram um morto. Ele se parece muito
com uma outra figura do antigo testamento, um objeto (não uma pessoa): A Arca da
Aliança. Não que tenham a mesma importância ou natureza, mas em certo sentido,
ambos foram instrumentos usados por Deus de um modo extraordinário. Acontece de
tempos em tempos, segundo a bíblia, que Deus escolha algo ou alguém como arado.
Sucedeu que Ele escolheu uma virgem, e se manteve unido a ela até a vida adulta, a
pessoa de quem era mais próximo, segundo o Evangelho de São João dá a entender, ao
menos até a sua vida pública. No antigo Testamento a Arca da Nova Aliança era a coisa
mais santa e poderosa que havia na face da terra. A Arca guardava a palavra escrita por
Deus, os dez mandamentos, e também guardava o pão que havia caído do céu para os
hebreus. A Virgem Maria conteve em si mesma o Verbo de Deus, Jesus Cristo, o qual
chama a si mesmo “o pão vivo que caiu do céu”. A Arca da Aliança continha o bastão
do sacerdote Aarão, e esse bastão é um símbolo do sumo-sacerdócio verdadeiro. A
Virgem Maria conteve em si Jesus Cristo, que é chamado “sumo-sacerdote”, na Epístola
aos Hebreus, capitulo 3, versículo 1. Em Êxodo, capítulo 40, versículos 34 a 39, é dito
que a glória de Deus envolvia o tabernáculo, isto é, o templo portátil dos judeus no
deserto (onde a Arca estava contida). Também a Virgem Maria se diz que foi envolvida
pela presença e poder de Deus. No segundo livro de Samuel, capítulo 6, e versículo 9, é
dito que o rei David, o rei dos judeus, quando se lhe apresentou a arca, perguntou
“como pode a Arca do Senhor vir a mim?”. Alguns versos depois o rei pula ou dança
diante da arca, e é referido que a arca permaneceu por três meses, e trouxe bençãos
sobre toda a casa. Do mesmo modo, quando a Vigem Maria se apresenta à sua prima
Isabel, esta lhe pergunta “como a mãe do meu Senhor pode vir a mim?”. O bebê no
útero de Santa Isabel pula de alegria, ao sentir a saudação da Virgem. Maria permanece
na casa de sua prima por três meses, segundo o texto. De acordo com o livro de Êxodo,
capítulo 25, versículo 11, a Arca possuía uma “coroa de ouro”, além de ser revestida de
ouro. No livro Apocalipse, capítulo 11, a partir do versículo 19, é dito que a mulher que
deu à luz o messias possui uma coroa de doze estrelas. No livro de Êxodo, Deus ordena
aos hebreus que façam a Arca com madeira de acácia, o que é referido no capítulo 25. A
septuaginta, a tradução famosa do antigo testamento para o grego (cujo trabalho de
tradução, precisamente o pentateuco do qual Êxodo faz parte, é muito elogiado até hoje
pelos rabinos judeus) traduziu as palavras “madeira de acácia” como “madeira
incorruptível”. Isso porque esse tipo de madeira é de grande qualidade e durabilidade.
Do mesmo modo, segundo o dogma católico, a Virgem Maria é incorruptível, ela não
morre. Eis um sinal de que ela não conheceu o pecado, e por isso não teve sua entrada
no céu bloqueada por o que seja, quando da Assunção. Deus usou a Arca da Aliança, na
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antiguidade, para expressar a sua presença no mundo. A Virgem Maria foi também um
arado com que ele tem procurado cultivar as suas vinhas na terra. Ela é exaltada
frequentemente pelos padres da Igreja, foi chamada “o segredo dos segredos do Rei”, e
se diz que aqueles a quem ela não favorecer com sua poderosa intercessão, não poderão
jamais entrar no céu. Como os sacramentos e demais instituições do novo testamento,
que se afiguram meios propícios e tremendamente facilitadores da salvação, ela é aquela
brisa celeste, avassaladora, poderosa, que Deus deixa sair por uma fresta da eternidade
para que saibamos que Deus nos ama, quando não merecemos ser amados, que Ele nos
quer perdoar, quando não merecemos perdão, e que nos quer fiados na esperança que
nos propôs, quando não há a mais mínima chance de essa esperança ser sustentada e
subsistir em um mundo submisso a toda sorte de erros, pecados e sofrimentos. Como
está no Apocalipse, esta mulher que deu à luz o Rei dos reis, tem um local no deserto, e
recebeu asas para escapar com os seus descendentes, que são os cristãos, aos ataques do
dragão que é o demônio. E nada aproveita aos protestantes alegar, como fazem, que o
“culto de Maria” é uma tradição pagã visível em diversas civilizações, porque o mesmo
se pode dizer da ideia mesma de um filho de Deus que é sacrificado para a remissão dos
pecados, como Eric Voegelin demonstra em Order and History. Também, ainda sobre
os santos, não nos esqueçamos que o livro dos Macabeus, que os protestantes não
aceitam como canônico, ou parte da bíblia, refere que Judas Macabeu foi ajudado pela
forte intercessão do falecido profeta Jeremias. Os eventos desses escritos não foram
incluídos pelos judeus como parte da bíblia deles (porque consideraram tal narrativa
sangrenta etc.), é verdade, mas eles não apenas não têm aversão à figura dos Macabeus,
como celebram o hanukkah, que é uma lembrança da vitória dos Macabeus, com
especial afeição. E eu desejo acrescentar que o estudioso anteriormente citado, Stephen
Missick, embora seja protestante, e diga que jamais acreditará na Presença Real de Jesus
na eucaristia, afirmou que um dos seus maiores “ídolos” é Judas Macabeu (e advinha
que livros falam a respeito dele? Isso mesmo, os livros da bíblia católica a respeito).
– Também de nada aproveita alegar que o rosário não é coisa bíblica, porque na mesma
linha talvez se devesse parar de compor músicas e orações, como os protestantes fazem,
já que não estão na bíblia. — Disse o velho. — E se objetam que a palavra “católico”
não está na bíblia, eu devo lembrar que essa palavra foi usada por Santo Inácio de
Antioquia, um autor citado como fidedigno por James White; e pelo mesmo raciocínio
talvez a descida do Espírito Santo em Pentecostes não fizesse tanto sentido sem a
existência do nome “cristão”, que só existiria mais tarde, por coincidência a partir de
Antioquia.
– Mas — continuou o velho — o que direi a respeito do protestantismo? Que porque o
princípio da sola scriptura, não estando manifesto em toda a bíblia (como apontou o
apologeta católico Gerry Matatics) dissipa a opinião dos seus adeptos? Não é isso que
se espera de quem queira converter os dessa heresia, porque essa refutação, ainda não é
uma demonstração; e é dela que eu necessito para conseguir o que eu quero. Mas ainda
não tenho a definição de protestantismo, para erguer a demonstração. O protestantismo
não consiste em nenhuma crença em particular, porque eles na verdade, conforme
variem de opinião, crerão basicamente em qualquer coisa. Essa foi, segundo o seu filho,
a sensação desesperançada do pastor presbiteriano Francis Schaeffer pouco antes da
morte; Schaeffer foi pessoa ilustre e conhecidíssima, um intelectual, também amigo do
eminente missionário evangélico Billy Graham. Ver o protestantismo de um modo
geral, portanto, compromete a integridade doutrinal da doutrina que lhe é propriedade.
Não há essa unidade doutrinal. Me parece, e eis a minha definição de protestantismo,
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que ele consiste em um projeto, não uma doutrina; e esse projeto é justamente, como foi
confessadamente o de Newman antes de se tornar católico, o de demonstrar ou
reconstituir a religião cristã na sua inteireza sem a comunhão com Roma e o Pontífice
Romano. De certo modo esse não é o caso dos ortodoxos do oriente, porque eles não
precisam fazer um esforço positivo nesse sentido, em boa medida, ou ao menos pouco
depois do Cisma do Oriente (e um sinal disso é que a Igreja de Roma sempre ensinou
que, embora cismáticos, os ortodoxos têm sacramentos válidos, inclusive sacerdotes
válidos). Eu repito, os protestantes querem demonstrar o fenômeno cristão, querem
vivê-lo, sem dar importância ou submissão aos ensinamentos do Papa, mas erigir a sua
própria demonstração. Assim, ainda que eles tomem como válidos certos elementos do
magistério, como os cinco primeiros concílios ecumênicos, as explicações que
desenvolvem e elaboram, sempre descartarão implicitamente o princípio do Concílio
Vaticano I, de que o papa é infalível e não pode errar quando explicitamente se dirige a
todos os fieis querendo obrigá-los, sempre descartarão implicitamente que o papa é o
princípio da unidade da fé e da unidade de comunhão, na Igreja. O protestantismo não é
apenas a rejeição do papado, mas é aquela rejeição do papado que simultaneamente
elabora uma demonstração do que seja o depósito da fé, aquilo deixado por Cristo e
seus apóstolos como ensinamento. A posição católica é a de que essa demonstração e
projeto são falhos na raiz, já começam errados. Um papa não necessita examinar todas
as questões dogmáticas, de ensinamento, com preocupação (como fazem os protestantes
devido à sua metodologia); ele não necessita porque, dada a infalibilidade papal, só
precisa examinar os concílios e o que os papas promulgaram de modo solene, para
tranquilamente construir em cima desse edifício seguro. Já os protestantes têm de
construir em cima de um sujeito, Lutero, que ao contrário de boa parte deles, cria na
presença real de Cristo durante a cerimonia “eucarística” luterana. De fato entre os
católicos há erros e divergências, e se sabe que de certo modo o papa pode errar, isto é,
quando não se dirige a toda a cristandade; mas, por outro lado, hoje, sobretudo depois
do concílio Vaticano I, se tem uma formidável metodologia para distinguir o texto
falível do infalível, e se sabe que quem persistir na divergência depois das explicações
pertinentes e de mostrada a evidência, está simplesmente fora da Igreja, é um herege. A
detecção da infalibilidade dos textos foi mais falha antes do concílio, mas ao menos
sempre se soube, por exemplo, que um concílio ecumênico (de toda a Igreja, não-
regional) aprovado pelo papa não pode errar. Também, a infalibilidade papal, ou ao
menos a infalibilidade de Roma, é doutrina muito antiga; ela foi mencionada por Santo
Irineu de Lyon, no escrito Contra os Hereges, o qual Irineu foi discípulo de São
Policarpo de Esmirna, e este do apóstolo João. Até scholars não-católicos admitem que
Irineu fez referência ao conceito da infalibilidade de Roma, porque disse que não se
pode discordar de Roma e permanecer em comunhão com a Igreja, ou palavras assim,
porque lá é onde morreram os apóstolos Pedro e Paulo. Irineu, com isso, ao mesmo
tempo indica que Roma não é importante sobretudo por causa do laço da Igreja com o
Império (contrariamente ao que pensaram alguns padres conciliares sem a aprovação do
papa no Concílio de Calcedônia) mas sim porque é o lugar onde se assenta o sucessor
de Pedro, e que tem o prestígio de ter sido objeto da pregação do grande apóstolo Paulo.
– Mas, enfim — continuou o sr. Marcondes — o que é a Igreja católica? É a conjunção
de uma fé, dos sacramentos (ao menos o batismo) e da caridade. Existe um homem
sobre a face da terra a quem Jesus Cristo entregou o ofício de pastorear os membros
dessa Igreja. No concílio de Jerusalém, Atos dos Apóstolos capítulo 15, versículo 7,
Pedro é ouvido pelos irmãos: “E, havendo grande contenda, levantou-se Pedro e disse-
lhes: Homens irmãos, bem sabeis que já há muito tempo Deus me elegeu dentre nós,
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para que os gentios ouvissem da minha boca a palavra do evangelho, e cressem.” Ao
terminar Pedro o seu discurso no concílio, segundo o livro sagrado, toda multidão, que
andava debatendo, simplesmente silenciou e se deu lugar a que outros falassem. Aquilo
proposto por Pedro no concílio, que ninguém está mais obrigado à circuncisão etc., se
incorporou ao dogma infalível e à obediência universal; o que o apóstolo Tiago impôs
no concílio, a saber, a disciplina de abstenção de provar sangue e carnes imoladas a
ídolos, veio a ser mais adiante considerado apenas uma disciplina eclesiástica, não parte
do dogma infalível da Igreja, não algo legado a todas as gerações e lugares. A primeira
pessoa a ser convertida à fé da Igreja entre os gentios, nos Atos dos Apóstolos, é
especificamente orientada a procurar Pedro. A passagem em Mateus, capítulo 16, na
qual Jesus diz “tu és Pedro, e sobre essa Pedra eu construirei a minha Igreja”, muitos
entenderam como não manifestamente significando que a Pedra em questão é Pedro.
Mas há scholars protestantes que rejeitam que a pedra não é Pedro na passagem, há pelo
menos um scholar protestante que consideraria “a pedra não é Pedro” uma interpretação
artificial e forçada. Mais adiante, na mesma passagem, Jesus afirma que dará a Pedro a
chave do Reino dos Céus, e que o princípio que identificou com Pedro faria que as
portas do inferno não prevalecessem sobre a Igreja. Pedro é descrito como o princípio
que tornaria a vida da Igreja segura, a base sobre a qual se a iria construir. Parece nada
forçado supor que o princípio petrino transcende o indivíduo Pedro, e se afigura um
ofício. É o que Santo Irineu — que em última instancia aprendeu com o apóstolo João,
isto é, quase diretamente — pareceu dizer. Até mesmo os ortodoxos, que rejeitam a
comunhão com Roma, admitem que Pedro teve seus sucessores em Roma. Em todas as
listas de discípulos, no novo testamento, Pedro aparece em primeiro lugar. Pedro é o
apóstolo mais citado nas escrituras, bem mais do que todos os outros. Pedro é o chefe, é
ele quem confirma os fiéis na fé. Um dos últimos santos da Igreja a serem canonizados
também pelos ortodoxos do oriente, São Máximo Confessor, era um teólogo eminente;
faleceu a 662 AD, e em um dos seus escritos se referiu ao papa de Roma como “um
papa santo”, porque tinha especial confiança no papa seu contemporâneo. Ainda que
São Máximo não tenha sido o primeiro, nem de longe, a lhe conceder o título “papa”, é
significativo que ele lhe tenha concedido tanta reverência quando não era um teólogo
latino, mas de influência sobretudo grega. O papa, em todos os primeiros concílios, teve
algum peso nos acontecimentos, e isso se verifica por exemplo no Concílio de Éfeso
(ano 431 AD), admitido por protestantes e ortodoxos, no qual o protagonista em
oposição ao heresiarca Nestório, a saber, São Cirilo de Alexandria, se correspondia e
articulava politicamente em profunda sintonia ou coordenação com o papa de Roma.
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Pós-Conciliarismo
– Você está certo, eu sou sedevacantista, e você, me parece, conhece bem essa opinião.
— Disse o velho Marcondes. — Há quem tenha estudado o assunto por vinte anos e,
criticando a tese sedevacantista, não lhe tenha atribuído o caráter de heresia ou cisma.
Alguns, como o canonista Gregory Hesse, dirão que é uma tese ousada, e maluca, que
não se baseia em nenhuma firme evidência. Mas esse tipo de afirmação é muito pouco
esclarecedor, e muito pouco coerente. Hesse disse que a nova missa do Concílio
Vaticano II, na sua forma vernácula, é inválida, ela não efetua o milagre eucarístico, não
obstante tenha sido aprovada por Roma. Ora, não é possível dizer algo mais ousado que
isso. Ele também alega que um certo verso da aparição de Nossa Senhora em La Salette,
no séc. XIX, foi suprimido intencionalmente pelo Vaticano, e que tal verso fala de dois
papas cheios de vermes no séc. XX, o raciocínio sendo que se havia de surgir papas
maus, eles não podem ser considerados antipapas, e já se teve maus papas antes, e
mesmo os que apregoaram heresia.
– O que os adversários todos da tese sedevacantista admitem (com exceção de uma ala
minoritária e separada da FSSPX), é que, seguindo um número significativo de doutores
da Igreja e, de modo ligeiramente mais indireto a Encíclica Satis Cognitum de Leão
XIII, um herege não pode ser papa, porque ele não é sequer um membro da Igreja (“[…]
é absurdo pensar que quem está fora pode comandar na Igreja”). Um herege é aquele
que, por rejeitar obstinadamente, ou duvidar obstinadamente, de um dogma da Igreja,
não pertence mais a ela, não é um dos que tem “um Senhor, uma fé, um batismo”
(Efésios 4:5). O máximo que podem alegar é que o papa está em erro, isto é, convencido
de algo que contradiz a revelação finda com os apóstolos mas que não é intrinsecamente
contrário e oposto à síntese essencial da fé (o Credo de Santo Atanásio) nem foi
declarado pelo magistério extraordinário (os concílios ecumênicos) como parte da
revelação, nem pelos pronunciamentos solenes dos papas (chamados pronunciamentos
ex cathedra dirigidos a todos os fiéis, que também são o magistério extraordinário), e
nem é manifestamente contrário ao que os padres e teólogos ensinaram de modo
contínuo e consistente pela história, o que é chamado o Magistério Universal e
Ordinário (aquilo que sempre se soube faz parte da fé). Um exemplo de papa em erro,
que não era herege, como se sabe, foi João XXII no séc. XIV, o qual negava a visão
beatífica dos eleitos imediatamente após a morte, antes do Juízo Final. João XXII se
defendeu dos críticos alegando que não ensinara essa doutrina a todos os fiéis, e se
arrependeu antes de morrer. — Disse o Sr. Marcondes.
– Mas me diga — continuou o velho — como nem mesmo o antisedevacantista William
Golle, em debate com o irmão Peter Dimond, considera manifesta parte da fé que
um interregno de Sé Vacante só possa durar breve período de tempo; como o próprio
teólogo irlandês Edmund James O’Reilly, escrevendo pouco depois do concílio
Vaticano I (o concílio que falou da sucessão perpétua dos sucessores de Pedro),
declarou que um interregno de quase 40 anos não é manifesto que seja impossível;
como os “papas” desde João XXIII se recusam a “condenar, rejeitar e anatematizar” as
opiniões contrárias à Igreja e seus ensinamentos, mas demonstram estima por outras
religiões; como chamar-me de cismático, e não a Paulo VI, o qual condenou o
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proselitismo dirigido a ortodoxos do oriente (o que é a promoção do cisma), é bastante
desonesto; como você pode estar tão certo de estar certo?
– Eu já ouvi os seus argumentos antes, e já fui sedevacantista. Na confusão, eu vendo
que se tratava de um meio confuso, cheio de eventos deprimentes e que desembocavam
no surgimento das mais diversas seitas e opiniões, incluso um grupo liderado por um
“profeta”, o qual afirmava que Santo Tomás e Santa Terezinha eram hereges e não
membros da Igreja; eu acabei por aceitar um homem que se autointitula papa Michael, e
diz que é o vigário de Cristo na terra, acusando os de Roma de impostores. No momento
em que se rejeita os papas, você acaba ou virando o seu próprio papa, ou aderindo a
algum papa. — Tornou Gregory, sombrio e a assustar o seu interlocutor.
– Entendo — tornou o velho.
– Como eu vi que a posição do papa Michael em rejeitar a Fraternidade São Pio X,
criada pelo tradicionalista Lefébvre, como heterodoxa, levaria inevitavelmente a um
isolamento em relação aos católicos conservadores, me pareceu que a alegação dele de
ser papa, quando foi eleito por apenas seis pessoas, era uma alegação tola. Eu demorei
muito para perceber isso: Seis meses. — Disse Gregory. — O motivo que me levou a
isso foi gerado por diversas leituras, uma delas a leitura de um estudo da FSSPX a
respeito do novo rito de ordenação de bispos, estudo que cita com bastante
detalhamento o Pe. Annibale Bugnini, um suspeito de ser maçom que participou do
conselho que submeteu a alteração litúrgica ao Santo Ofício nos anos sessenta. Como
no caso da ordenação do sacerdos ou sacerdote, o segundo rank do sacerdócio, a
consagração de bispos apresenta aparentes defeitos em relação às orações externas à
formula de consagração, porque se omitiu todo tipo de coisa cristalizada por longa
tradição a respeito dos atributos e da graça próprios do efetuado pelo sacramento. Foi
por esse tipo de raciocínio que o famoso Michael Davies chegou a expressar-se como a
indicar que se o novo rito é válido, para o sacerdócio comum, a ordem anglicana ainda
existe e é válida, o que o próprio Davies admitiu que é absurdo porque um decreto de
Leão XIII declarou acima de dúvida que os anglicanos não têm mais sacerdotes.
– Por isso eu fiquei surpreso ao notar no estudo da FSSPX, a respeito de Bugnini e seu
colaborador e supervisor Dom Botte, que a intenção deles em modificar a liturgia de
consagração episcopal, a primeira na sucessão de reformas promulgadas no concílio,
conforme o próprio testemunho dos bispos que analisaram e criticaram suas ideias a
distância, era uma intenção relativamente conservadora mesmo para
os parâmetros daquilo que o concílio pedira. – Continuou Gregory. — O estudo mostra
que a expertise de Bugnini e sua detalhada defesa de um sacramentário oriental como
fonte, agradou e dissipou dúvidas dos bispos que o criticavam. Também é mencionada
certa carta em que os peritti da reforma tinham um estado de espírito leve, talvez
demasiado liberal, mas nada cheirando a conspiração maçônica; eles recebiam bem as
críticas. Em resumo, se o novo rito de consagração ao episcopado é inválido, segundo o
estudo aponta detalhadamente, o rito maronita em aramaico é quase certamente
inválido, o que seria absurdo, porque este último rito tinha sido aprovado pela Igreja
antes do concílio.
– A falta de consideração de certos sedevacantistas para esse fato, embora
impressionante, não foi o que mais me impressionou. — Disse ainda Gregory. — O que
mais me chamou a atenção é que os peritti do conselho de reforma viam como acidental
à intenção ecumênica do concílio, o equiparar e unir a liturgia católica a outras religiões,
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isso eles viam como acidental à reforma. O essencial, no caso do rito episcopal, era
aproximar o rito oriental do rito latino. Portanto, a intenção ecumênica do concílio não
tem a ver com incorporar dogmas e proposições religiosas de outras religiões, já que ao
aproximar o rito latino do rito oriental não se está mudando a intenção e a graça própria
do sacramento, ainda que orações desde muito tradicionais ao rito tenham sido
suprimidas. Ainda que a ordenação de padres tenha ficado indistinguível da anglicana, e
a missa também no conteúdo dos propium e oratio, a intenção ecumênica por traz das
alterações não tem a ver essencialmente com uma absorção de dogmas alheios, mas com
uma mudança de atitude externa. Isso se vê em que mudar o rito latino para o rito
maronita não muda a essência do sacramento, mas muda a aparência.
– O Romano Amerio, defensor dos papas, estudou essa mudança de atitude, e mostrou o
que tem de absurdo em deixar de condenar outrem em nome da “caridade”, e de se
enturmar consigo. — Disse Gregory. — Mas eu parei para pensar no contexto em que o
João XXIII e Paulo VI assumiram o ofício; a universalização dos meios de comunicação
de massa, expondo a Igreja e suas decisões a todos como nunca; Guerra Fria, Crise dos
Mísseis, a necessidade de pisar em ovos diplomaticamente; o Dr. Fastiggi mencionou
em um debate contra sedevacantistas que João XXII, no séc. 14, usara uma declaração,
por correspondência, a muçulmanos, semelhante ao conteúdo do Nostra Aetate, do
concílio Vaticano II, tratando com reverência a religião deles. Todo mundo tem de
mudar de atitude conforme a ocasião. Eu não vou ensinar o catecismo ao meu personal
trainer, não é apropriado, mas também não vou tratar ele mal porque não é católico,
durante o treino, senão não há treino. Ao mesmo tempo, alguns que professam o ex
ecclesiam nulla sallus ardentemente, como o irmão Michael Dimond, são capazes de rir
da própria situação durante uma entrevista ao rádio, e ainda que efetuada levemente
como no caso dele, essa atitude é quase um se rir do dogma, então não é possível em
toda e qualquer ocasião tomar a mesma atitude em relação a um dogma que se tem no
foro íntimo. João Paulo II emitiu um non possumus declarando como impossível à
Igreja ordenar mulheres ao sacerdócio, o que significa que quando ele ou Bento XVI
iam a cultos anglicanos/protestantes junto a “bispos” mulheres, de algum modo o non
possumus impedia que se lhes visse como considerando esses religiosos membros da
Igreja. Houve uma conformidade com as outras religiões, não com os outros dogmas, e
a própria Constituição Dominus Iesus de Ratzinger, futuro Bento XVI, aponta para
imperfeições nas religiões alheias.
– Some-se a isso o fato de que um membro do Santo Ofício, em 1949, emitiu um
documento chamado Suprema haec sacra. É apenas uma carta privada, nunca registrada
nos Atos da Santa Sé (apesar de que se diz que Pio XII, que você mesmo admite foi um
papa válido, leu e aprovou tal documento), na qual se condenava o pe. Leonard Feeney
pelo seu rigorismo. — Continuou o terceiro Antonov. — O documento condena a
rejeição do batismo de desejo, o desejo implícito, para a salvação. Segundo o
documento qualquer um, de qualquer religião, pode ser salvo se tiver um desejo
implícito pelo sacramento. Na mesma linha há a doutrina da ignorância invencível, pela
qual alguém pode supostamente ser salvo sem a fé católica, o que teria, segundo alguns,
sido ensinado pelo papa Pio IX. Com um pouquinho de trabalho é possível demonstrar
satisfatoriamente que essas vias alternativas de salvação são falsas, que o magistério,
tanto extraordinário, quanto as declarações ex cathedra, quanto o magistério universal e
ordinário, rejeitam essas noções. Uma pessoa pode abraçá-las de boa fé por um tempo,
mas são noções errôneas e heréticas. Eu parei para pensar, com surpresa, que essas
noções não foram ensinadas nem no concílio Vaticano II, nem na Constituição
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Apostólica Dominus Iesus, assinada pelo então prefeito da Congregação para A
Doutrina da Fé. Essas são noções típicas da FSSPX e, como bem se sabe, dos clérigos
sedevacantistas mais populares nos EUA, os da CMRI e o pessoal da linhagem do bispo
Guerard de Lauriers, a saber, o bispo Donald Sanborn e o pe. Anthony Cekada. O pe.
Cekada não tolera quem quer que seja un fineíta; Cekada argumenta que o batismo de
desejo, apesar de não ser o magistério, é o consenso teológico, e que portanto, conforme
decreto de Pio IX sobre o consenso teológico, é mandatório. Portanto os tradicionalistas
são menos conservadores que o Vaticano e seu ecumenismo. De nada adianta mostrar
ao pe. Cekada que a rigor, se ele devesse se fiar no consenso dos teólogos, ele devia
aderir ao Vaticano II.
– A questão do Ex Ecclesiam Nulla Sallus (Fora da Igreja Não Há Salvação) é
relativamente simples. — Continuou o terceiro Antonov. — Só duas vozes do primeiro
milênio da Igreja, só duas, a geração de São Bernardo de Claraval e seguintes
considerou como tendo pregado o batismo de desejo: Santo Agostinho e Santo
Ambrósio. Os dois cometeram erros e são fontes falíveis. O scholar William Jurgens,
que é a favor do batismo de desejo, diz que a rejeição do batismo de desejo, mais
especificamente de alguma exceção à necessidade do batismo sacramental, se apresenta
entre os padres antigos com uma constância tão grande quanto a constituir revelação. A
defesa de Santo Ambrósio do batismo de desejo não é manifesta, o discurso dele a
respeito do destino eterno do imperador Valentiniano é muito obscuro. A defesa de
Santo Agostinho do batismo de desejo é manifesta, mas ele não trata essa doutrina como
coisa certa, ele a trata como uma dedução que pode ser feita a partir da doutrina de São
Cipriano sobre o batismo de sangue, uma outra exceção ao batismo sacramental. Santo
Agostinho não tratou o batismo de desejo como tradição apostólica, mas como uma
espécie de dedução teológica.
– Ademais São Francisco Xavier não acreditava em batismo de desejo, o que o próprio
pe. Cekada admite. — Disse ainda Gregory. — O batismo de desejo ensinado por Santo
Tomás não admite a possibilidade de uma adesão implícita, apenas, aos mistérios
essenciais da fé, nisso diferindo ele ligeiramente de Santo Afonso de Ligório (que
admitia o desejo implícito pelo batismo, da parte dos catecúmenos, como eficaz). O
catecismo de Trento, que propõe o batismo de desejo, não é um texto infalível, e
sobretudo não o é no trecho sobre o batismo de desejo, coisa que mesmo um defensor
do Concílio Vaticano II como William Albrecht admite (e o catecismo sequer usa a
expressão “batismo de desejo”). Há um trecho no Concílio de Trento, sobre a
justificação, não sobre o batismo propriamente (o qual tem uma sessão separada para
si), em que se diz que a regeneração não pode ocorrer “sem o batismo ou o desejo por
ele, como está escrito, ‘se um homem não nascer de novo da água e do Espírito, não
pode entrar no Reino de Deus'”. Alguns entenderam que o desejo é apontado no trecho
como uma alternativa ao batismo, mas o próprio Concílio de Trento afirma na sessão
sobre esse sacramento que o batismo não é opcional, mas necessário, e afirma que as
palavras “se um homem não nascer de novo da água e do Espírito etc.” não podem ser
entendidas como uma metáfora. O irmão Peter Dimond procurou demonstrar que o
trecho problemático “sem o batismo ou o desejo por ele”, usa um termo em Latin, “aut”,
que significa “ou”, o qual é frequentemente usado em um sentido inclusivo, não
exclusivo, se tratando pois de “sem o batismo e o desejo por ele”, isso em se notando
que a sessão é sobre a justificação de adultos, e os adultos que recebem o sacramento
precisam desejá-lo para a justificação. Um outro ponto é que nessa passagem, “sem o
batismo ou o desejo por ele”, segue o dizer “como está escrito: Se um homem não
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nascer de novo da água e do Espírito etc.”, o que significaria que se deve entender
COMO ESTÁ ESCRITO, que a água é necessária. A isso defensores do batismo de
desejo, como o padre Cekada, enfatizarão que é o consenso dos teólogos que conta. O
Concílio de Florença claramente se pronunciou a respeito desse sacramento, sem
mencionar exceção, e um entendimento do dogma deve ser mantido conforme
inicialmente proclamado ou definido. O concílio infalível de Constança referiu que não
é tolo nem presunçoso dizer que os filhos dos fiéis mortos sem batismo sacramental não
serão salvos. E de tal modo é inequívoco o entendimento no Concílio de Trento sobre a
necessidade de batismo para crianças pequenas serem salvas, que um grande defensor
de batismo de desejo, o sedevacantista Steven Speray, admite que o batismo de desejo é
apenas para adultos ou para quem tenha o uso da razão.
– Sobre o papa Pio IX no caso, ele teve várias oportunidades de aludir a batismo de
desejo, mas não o fez. Ele elaborou em cima do destino daqueles que estão fora da
Igreja, e de um entendimento a respeito das chances de serem salvos, e nenhuma palavra
sobre batismo de desejo. Em Quanto Conficiamur Moerore, alocução, logo após
condenar como caídos em grave erro aqueles que não acreditam que a fé católica é
necessária à salvação, ele refere que os que pelejam contra a condição de ignorância
invencível, e de boa fé, terão a si disponibilizados todos os meios de salvação, portanto
essa afirmação implica que a condição de ignorância invencível e a boa fé não são de si
o mínimo necessário à salvação, mas possibilitam que os meios necessários sejam
disponibilizados. Em Singulari Quidem, Pio IX volta à carga, condenando como
perversa a noção de que os membros de qualquer religião podem ser salvos, e menciona
que só aqueles imersos em ignorância acima das suas forças podem nutrir
alguma esperança de salvação, o que, lido no contexto da própria encíclica e de Quanto
Conficiamur, reforça a ideia de que a ignorância invencível e a boa vontade abrem
possibilidades de salvação, mas de si não são o minimamente necessário para a
salvação. Em Singulari Quadem, Pio IX talvez trate do assunto de modo mais perfeito
que nos outros casos. Ele diz que os que pelejam na “ignorância da verdadeira religião”
pela ignorância invencível não serão considerados culpados “nessa questão” aos olhos
de Deus; mas, continua, desde que estamos na terra sob o peso de nossas limitações
carnais, apenas nos fiemos, conforme o ensinamento da Igreja, em que haja “Um Deus,
uma fé, um batismo” (Efésios 4:5), e nos avisa ele que é ilícito prosseguir mais adiante
a respeito, com curiosidade. A expressão “Um Deus, uma fé, um batismo” significa,
porque foi usada em vários pronunciamentos solenes, que é preciso ser católico para ser
salvo, que é preciso ter sido batizado e professar firmemente a fé católica, este último
ponto aliás muito enfatizado no Credo de Santo Atanásio. A princípio Pio IX parece se
contradizer, mas se nota que o que ele diz é profundamente católico. Porque é a
primeira coisa que é ensinada no Catecismo de Trento, também no Concílio Vaticano I
é ensinado, é que o dogma não é uma demonstração, que aquilo do qual ele fala não é
possível de se provar, é preciso ter fé e é essa a única via para dentro da Igreja. Portanto
O Ex Ecclesiam Nulla Sallus também não é uma demonstração, e não o sendo, a visão
do objeto desse dogma, quando os fiéis tomarem posse do paraíso, será de algum modo
surpreendente e inesperada. Não significa que não se reconhecerá como certa, no
paraíso, a declaração do papa Gregório XVI em Mirari Vos (“Portanto, sem dúvida, eles
perecerão por toda a eternidade [os membros de todas as outras religiões] se não
professarem a fé católica inteira e invioladamente”); significa apenas que o dogma, não
podendo ser aceito firmemente senão como um mistério, não uma demonstração, tem
como objeto algo que de algum modo é difícil antever. — Disse Gregory.
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– Portanto, como o Ex Ecclesiam Nulla Sallus é um dogma bem claro e corriqueiro,
como as ações do Vaticano podem ser perfeitamente racionalizadas, como a intenção
dos que reformaram os sacramentos passou por muitos crivos e foi aceita, e como o
Vaticano é mais conservador que os tradicionalistas a respeito desse dogma da salvação,
infinitamente mais tolerante até onde vejo, eu me retrato publicamente de toda rejeição
pública que dirigi à Santa Sé e aos papas, e declaro que eu estava errado e agi como um
grande tolo em supor que a Santa Sé estivesse vazia. — Afirmou Gregory.
– O senhor fala de modo convincente, meu filho. — Disse o velho. — Mas deixa-me
lembrar algumas coisas. Há aqueles, como Gregory Hesse, o canonista, que acreditam
que um concílio ecumêncico, sendo um ato sacramental, precisa ter a intenção correta
para a sua validade; ele usa isso para argumentar que o Concílio Vaticano II não foi
inválido porque o papa na verdade era um herege e antipapa, mas foi inválido porque
faltou a intenção unívoca (porque tanto João XXIII quanto Paulo VI se contradisseram
sobre a infalibilidade e intenção do concílio em alguma medida, segundo ele). Há
também os defensores desses antipapas que dizem, como é o caso de Robert Sungenis e
Patrick Madrid, que o verdadeiro sentido do Concílio difere da interpretação privada
que João Paulo II ou Bento XVI deram ao concílio. As pessoas procuram, e isso é
notório, ou desacreditar o concílio, ou dar a ele um sentido que é francamente diferente
daquele aceito em Roma e pelas dioceses do mundo. Argumentarão que a heresia
modernista não pode ser manifesta, por sua própria natureza, e que uma vez não-
manifesta não há base ou direito com que declarar o papa um herege, a não ser que toda
a Igreja se decida por isso. Como a Igreja é uma realidade visível, no sentido de que é
sempre possível identificá-la de algum modo, não faria sentido segundo dizem que esse
corpo eclesiástico permanecesse com uma falsa cabeça, uma cabeça ilegítima, porque
isso conflitaria com a ideia de que a Igreja é visível, e não é possível reconhecer como
um corpo sadio e íntegro um corpo que apresenta uma cabeça alheia a si. Se poderia
argumentar contra isso que houve antipapas reinando em Roma antes, e que ao menos
um papa válido foi validamente deposto por suspeita de heresia. Essas objeções são
interessantes, porque por trás delas há toda uma circunstância muito pouco esclarecida.
De fato, como é notório que um grande defensor de João Paulo II, como Malachy
Martin considerava que o primeiro cria na salvação para não-católicos, como é notório
que Francisco participa de celebrações judaicas, ora em público por muçulmanos
falecidos, como é notório que Bento XVI rejeita tanto nos seus escritos quanto diante de
audiências a conversão de não-católicos protestantes, ao ponto de afirmar não ser o
caminho para união o converter outrem e convencê-los a negar a história da própria fé,
me parece que a objeção geral e comum ao sedevacantismo não diz tanto dos fatos, não
é tanto algo dito na clave descritiva. É algo dito como quem, em desespero, se agarra
àquilo que é menos doloroso. Também eu vou fingir para mim mesmo que adoro o meu
chefe, a fim de manter o emprego.
– O Concílio de Florença é infalível, foi um concílio ecumênico. Isso o Dr. Fastiggi
admitiu em um debate contra sedevacantistas, inclusive ele nesse debate argumentou
usando Florença. Um Concílio Ecumênico não pode falhar, se ele puder falhar, a fé
católica se despedaça como um castelo de cartas. É a opinião de um doutor da Igreja
citado por Robert Fastiggi. É o que todos estamos cansados de saber. O Concílio de
Florença definiu como dogma que os judeus vivem, por não aceitar a fé católica, como
rejeitados por Deus porque mantêm opiniões contrárias e opostas; e propôs que eles não
poderão ser salvos se até o fim de suas vidas não se unirem à Igreja. Florença também
disse que todos aqueles que praticam a lei mosaica depois da promulgação do
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evangelho, a lei do Antigo Testamento, não estão no mais mínimo aptos a tomar parte
na salvação eterna. É o que diz a bula Cantate Domine, do concílio. O Concílio
Vaticano II, por outro lado, ensina, em Nostra Aetate nº 4, que não se deve apresentar os
judeus como rejeitados ou amaldiçoados por Deus. Alguém poderia entender essa
declaração como uma afirmação disciplinar, isto é, relativa à governança da Igreja, não
a moral e dogmas, apesar de Paulo VI ter confirmado o concílio com linguagem solene.
Mas se atentarmos que é verdade que os judeus foram rejeitados; que é verdade,
conforme o papa Gregório X menciona em uma antiga bula cujo propósito foi defender
os judeus de perseguições, que eles estão fora da Arca de São Pedro, fora da qual se está
fadado a perecer em um dilúvio; como é por causa do Concílio Vaticano II que João
Paulo II jamais tentou converter o seu amigo judeu Gilbert Levine, mas lhe presenteou
com o objeto litúrgico chamado menorá, e saudou seus filhos quando do bar mitzvah
deles; se deve entender que uma suposta interpretação conservadora do concílio é
acidental à heresia dos antipapas que o aceitaram, e a posição dos que rejeitam o
concílio é no fundo profundamente herética, porque é absurdo pensar que algo proposto
pelos papas como esse concílio foi e é, possa conter tão absurdos e violentos erros (eu
digo isso porque Bento XVI afirmou que os da FSSPX não estão em “plena comunhão”
com a Igreja por não aceitarem o concílio). — Disse o velho Marcondes.
– Desde que o renomado Michael Davies explicou a natureza do novo rito de
ordenação, ainda que o rito episcopal seja válido como apontam os da FSSPX, é melhor,
e não dói nada aderir a essa precaução, ir a padres do rito oriental e dos da FSSPX, que
não foram submetidos a essas mudanças. Ainda que essas opções para frequentar os
sacramentos sejam de clérigos em união com antipapas, a controvérsia a respeito entre o
irmão Peter Dimond e Gerry Matatics, o apologeta (chamada controvérsia “una cum”,
alusão a parte da missa que menciona o papa), a controvérsia deixou claro que é
possível tomar sacramentos de hereges, desde que a notoriedade da heresia deles não
seja impositiva mas escusável de algum modo; Peter Dimond demonstrou que essa é a
prática universal da Igreja, qual contida no Concílio de Basileia, em um decreto
disciplinar, qual se portaram os católicos durante a Reforma na Inglaterra, qual se
comportaram certos padres da Igreja, como São Cirilo de Alexandria. É claro que, se
esses sacramentos fora de tais opções que restam forem inválidos, a situação é tão séria
que assume um caráter trágico e mesmo apocalíptico. Mas ninguém, segundo o teólogo
Edmund O’Reilly, deve se apressar em afirmar o que Deus pode ou não permitir, assim
como no Grande Cisma do Ocidente aconteceram coisas que julgariam antes ser
impossíveis… a cristandade dividida pela disputa de três homens alegando ser papas.
Eu entendo a sua ânsia por voltar à normalidade, mas ao menos eu sei que a minha
posição não leva de modo algum a ações extremas, pelo simples fato de que não há
clérigos tradicionalistas, validamente ordenados, que sejam ortodoxos na fé, todos eles
impõem como herética ou pecaminosa a rejeição do batismo de desejo, e dissolvem a
necessidade de se pertencer à Igreja em mil estilhaços, exatamente como o arcebispo
Lefébvre fez no livro Carta Aberta A Católicos Confundidos, deixando claro que outros
religiosos se vão salvar “mas não por causa da sua religião”. Eles não podem ser papas
válidos, ainda que procurassem articular um conclave como o “papa Michael”, que aliás
pensa como eles sobre batismo de desejo. Para falar a verdade o batismo de desejo é
algo acidental à discussão, quase. Todos os santos criam unanimemente que a salvação
é para uma minoria, é assim que Santo Tomás pensava. O batismo de desejo não pode
mudar isso. E também se sabe que qualquer um tem até os últimos momentos da vida
para se arrepender e se converter à fé na Trindade e na Encarnação de Cristo, além de
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ser batizado. Se sabe que Deus ordena todas as coisas com tranquilidade. — Disse o
velho Marcondes.
– É inegável que o batismo sacramental é necessário para a salvação, e que portanto é
temerário presumir que alguém de outra religião tenha ido para o céu sem o batismo. —
Disse o velho. — Bento XVI não apenas deu comunhão, a eucaristia, ao protestante
Roger Schutz da comunidade de Taizé, mas afirmou que ele foi direto para o céu
quando morreu. A Encíclica Mirari Vos, de 15 de agosto de 1832, papa Gregório XVI,
nº 13, explica como a Igreja vê os membros de outras religiões: “Agora devemos
considerar uma outra abundante fonte de males que aflige a Igreja presentemente:
Indiferentismo. Nessa perversa opinião, disseminada por todo lugar pela fraude dos que
são perversos, é alegado que é possível conseguir a salvação eterna da alma pela
profissão de qualquer tipo de religião, desde que a moralidade seja sustentada.
Certamente, em um assunto tão claro, um erro tão mortal deveria ser expulso para longe
do contato das pessoas sob o seu cuidado, com a admoestação do apóstolo, de que existe
um Deus, uma Fé e um Batismo. Que temam os que contraem a noção de que o porto
seguro da salvação está aberto para pessoas de qualquer religião; tais pessoas deveriam
considerar o testemunho do próprio Cristo, de que aqueles que não estão com Cristo
estão contra Ele, e que dispersam desafortunadamente se não ajuntam com Ele.
Portanto, sem dúvida, eles vão perecer para sempre, a não ser que professem a fé
católica inteira e invioladamente.” Diante dessa declaração de Gregório XVI, o pe.
William Most, criticando as reservas de Marcel Lefébvre ao Concílio Vaticano II,
procurou apontar que o sentido do papa em dizer o que disse, foi mais o
emocionalmente deplorar os efeitos do indiferentismo religioso, do que realmente
propor que não há a menor possibilidade de os outros religiosos serem salvos sem a
conversão explícita. Na bula Unam Sanctam do papa Bonifácio VIII, 1302, está escrito:
“Ademais, Nós declaramos, proclamamos e definimos que é absolutamente necessário
para a salvação de toda criatura humana que esteja submetida ao Pontífice Romano”. O
historiador Warren H. Carrel bateu nessa declaração, dizendo que é um claro exemplo
da tendência daquele papa a exagerar nas suas falas. É claro que não é necessário
conhecer o ofício petrino para ser salvo, mas é necessário ser batizado e, no caso de
adultos, professar a fé inteira e intacta, sendo o pontífice romano aquele na face da terra
que mantém a fé una e intacta, e a também a comunhão entre os cristãos. Se eu puder
demonstrar que a Igreja entende que a maioria das pessoas não será salva, mas apenas
uma espantosa minoria, e se eu puder demonstrar que o batismo sacramental, isto é,
ritual, é necessário em absoluto, essas duas proposições em conjunção com o fato de
que a Igreja sempre condenou as heresias como portas do inferno (e fora da comunhão
quem discorde no mais mínimo de qualquer ponto da fé), demonstrarão que os papas
desde João XXIII não professam a fé católica, e sim uma fé estranha à Igreja. E Pio XII
ensinou na Encíclica Mystici Corporis Christi de 1943, que só devem ser vistos como
Católicos os que foram batizados e professam a fé verdadeira.
– Para demonstrar que poucos são os salvos, basta citar os santos e o evangelho a
respeito. — Disse o Sr. Marcondes. — Mateus cap. 25 , 1 ; 7-12: “Então o reino dos
céus será semelhante a dez virgens que, tomando as suas lâmpadas, saíram ao encontro
do esposo […] Então todas aquelas virgens se levantaram, e prepararam as suas
lâmpadas. E as loucas disseram às prudentes: Dai-nos do vosso azeite, porque as nossas
lâmpadas se apagam. Mas as prudentes responderam, dizendo: Não seja caso que nos
falte a nós e a vós, ide antes aos que o vendem, e comprai-o para vós. E, tendo elas ido
comprá-lo, chegou o esposo, e as que estavam preparadas entraram com ele para as
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bodas, e fechou-se a porta. E depois chegaram também as outras virgens, dizendo:
Senhor, Senhor, abre-nos. E ele, respondendo, disse: Em verdade vos digo que vos não
conheço.” Mateus cap. 7:13-14: “Entrai pela porta estreita; porque larga é a porta, e
espaçoso o caminho que conduz à perdição, e muitos são os que entram por ela; e
porque estreita é a porta, e apertado o caminho que leva à vida, e poucos há que a
encontrem”. Lucas cap. 13: 23-24: “‘Senhor, são poucos os que são salvos?’ Mas ele
lhes disse: ‘Esforçai-vos por entrar pela porta estreita, porque muitos, eu vos digo,
procurarão entrar e não hão de conseguir.'” Bem-aventurada Anna Maria Taigi (falecida
em Roma a 1937 A.D.): “O número de cristãos que é danado é a maioria. O destino
daqueles mortos em um dia é de que poucos – talvez menos de dez – se dirijam para o
céu. Muitos permaneçam no purgatório; e aqueles lançados no inferno são tão
numerosos quanto flocos de neve durante o centro da estação de inverno.” São João da
Cruz (falecido a 1591 A.D.): “Vede quantos são chamados, e quão poucos são
escolhidos! E vede, se não tiverdes cuidado convosco, vossa perdição é mais certa que a
vossa melhora, especialmente se o caminho que leva à vida eterna é tão estreito”. Santo
Afonso Maria de Ligório, Doutor da Igreja (falecido a 1787 A.D.): “Nós devemos a
Deus um profundo pesar de gratidão pela graça pura e gratuita da fé verdadeira com que
Ele nos favoreceu. Quantos não são os infiéis, hereges e cismáticos que não gozam de
semelhante felicidade? A terra está cheia deles e todos eles estão perdidos!”.
– Papa São Gregório Magno, doutor e padre da Igreja, falecido a 604 A.D.: “Quanto
mais abundam os perversos, mais é mister sofrermos consigo em paciência; porque no
fazer da debulha poucos são os grãos a ser levados ao celeiro, e altas são as pilhas de
palha consumidas pelo fogo.” — Disse ainda o velho. — Santo Anselmo, doutor da
Igreja, falecido a 1109 A.D.: “Se queres estar certo da tua salvação, esforça-te por estar
entre os poucos dos poucos. Não sigas a maioria da humanidade, mas segue aqueles que
renunciam ao mundo e nunca relaxam nos seus esforços dia e noite, para que possam
conseguir a eterna bem-aventurança”. Santo Antonio Maria Claret, arcebispo, morto a
1870 A.D.: “Uma multidão de almas cai nas profundezas do inferno, e é de fide que
todos que morrem em pecado mortal são condenados para sempre e sempre. De acordo
com as estatísticas, oitenta mil pessoas morrem todo dia. Quantas dessas morrem em
pecado mortal, e quantas serão condenadas! Porque, conforme tenha sido sua vida,
assim será o seu fim.” Santo Agostinho, padre e doutor da Igreja, falecido a 430 A.D.:
“Nem todos, nem a maioria, são salvos… São eles [os salvos] muitos, se considerados
em si, mas são poucos em comparação com o número maior daqueles que serão punidos
com o demônio.” São Luís Maria Grignion de Monfort, falecido a 1716: “O número dos
eleitos é tão pequeno — mas tão pequeno — que se soubéssemos-lo, nós
desmaiaríamos com pesar. O número dos eleitos é tão pequeno que se Deus reunisse os
desse número, ele exclamaria a eles, como fizera antes pela boca de seus profetas
‘Juntai-vos um por um’ — um dessa província, outro daquele reino.”
– São Leonardo de Porto Maurizio, franciscano, falecido a 1751 A.D: “As nossas
crônicas relatam um evento ainda mais terrível. Um dos nosso irmãos, conhecido por
suas doutrinas e santidade, estava a pregar na Alemanha. Ele aludia à feiura do pecado
de impureza tão pressurosamente, que uma mulher caiu morta de tristeza na frente de
todos. Após isso, voltando à vida, ela disse ‘Quando estive no tribunal de Deus, sessenta
mil pessoas lá chegaram ao mesmo tempo que eu de todas as partes do mundo; daquele
número, três foram salvos se dirigindo ao purgatório, e todo o resto foi danado.” —
Disse ainda o Sr. Marcondes. — Venerável Maria de Agreda, religiosa, falecida a 1665
A.D.: “Que aqueles que caminham para a salvação estão no menor número, é devido ao
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vício e aos hábitos depravados inoculados na juventude e nutridos quando criança. Por
esse meio Lúcifer lançou ao inferno um número tão grande de almas, e continua a fazê-
lo todo dia, lançando muitas nações em abismo a abismo de escuridão e erros, os quais
estão contidos nas heresias e falsas seitas dos infiéis.” São Basílio Magno, doutor e
padre da Igreja, falecido a 379 A.D.: “Eu vos exorto, pois, a que não desfaleçais nas
vossas aflições, mas revivei pelo amor de Deus, e adicionai diariamente ao vosso zelo,
sabendo que em vós devem ser preservados aqueles remanescentes da verdadeira
religião, os quais o Senhor encontrará quando vier à terra. Ainda que bispos sejam
expulsos de suas Igrejas, não desfaleçais. Se traidores surgirem do próprio clero, não
deixeis que isso comprometa a vossa confiança em Deus. Não somos salvos por nomes,
mas por consideração e por propósito, e genuíno amor para com o nosso Criador.
Lembrai como no ataque a Nosso Senhor, altos sacerdotes e escribas e anciãos
elaboraram plano, e quão poucas pessoas foram achadas realmente recebendo a palavra.
Lembrai que não é a multidão que está sendo salva, mas os eleitos de Deus. Portanto
não temais diante da grande multidão de pessoas que são carregadas para lá e para cá
por sopros do vento, semelhantes às águas do mar. Se for um só o salvo, como Ló em
Sodoma, ele deve residir em retidão de julgamento, mantendo esperança inabalada em
Cristo, porque o Senhor não vai esquecer os seus santos. Saudai todos os irmãos em
Cristo por mim. Orai pela minha miserável alma.”
– São Beda, o venerável, monge, doutor e padre da Igreja, falecido a 735 A.D.: “Nem
devemos pensar que basta para a salvação que não sejamos piores que a massa dos
desleixados e indiferentes, ou que sejamos tão pouco instruídos na fé quanto muitos
outros.” — Disse o velho. — São Benedito José Labré, um santo francês muito pobre,
um mendigo, que impressionou algum protestante americano por se ter reportado que
realizara muitos milagres em espaço de poucos dias, falecido a 1783 A.D.: “Medita nos
horrores do inferno que durarão por toda eternidade por causa de um pecado mortal
cometido com facilidade. Esforça-te muito para estar entre os poucos que são
escolhidos. Pensa nas eternas chamas do inferno, e em como são poucos os que são
salvos.” Ainda São Benedito José Labré: “Eu via almas descendo para o abismo tão
densas e rápidas quanto flocos de neve despencando na neblina de inverno.” São João
Crisóstomo, doutor e padre da Igreja, bispo de Constantinopla falecido a 407 A.D.:
“Que pensais? Quantos dos habitantes dessa cidade porventura serão salvos? O que
estou prestes a dizer é demasiado terrível, ainda assim não o ocultarei de vós. Desta
muito populosa cidade com seus milhares de habitantes nem uma centena de pessoas
será salva. Eu duvido mesmo que haverá algo em torno desse número!”. São João Maria
Batista Vianney, pároco e grande milagreiro, falecido a 1859: “Seremos todos salvos?
Iremos todos ao paraíso? Ai, minhas crianças, não sabemos de modo algum! Eu tremo,
no entanto, quando vejo tantas almas perdidas nesses dias. Vede, eles descendem ao
inferno como as folhas despencam das árvores ao se aproximar o inverno”. Santa
Brigite da Suécia, monja falecida a 1373 A.D.: “Ó Jesus!… Lembra da tristeza que
experimentaste, que quando contemplando na luz da tua divindade a predestinação
daqueles que seriam salvos pelos méritos da Vossa Sagrada Paixão, viste também a
grande multidão de réprobos que seriam danados por seus pecados, e nisto te queixaste
amargamente dos pecadores incorrigíveis, perdidos e desafortunados.” São Remígio de
Rheims, bispo falecido a 533 A.D.: “Com exceção daqueles que morrem na infância, a
maioria dos homens será danada”.
– De novo Santo Afonso de Ligório: “Deus, segundo observa um certo autor, deseja ser
servido por seus sacerdotes com o fervor com que os serafins lhe servem no Céu; de
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outro modo retira dos sacerdotes suas graças e permite que durmam na tibieza, assim
caiam, primeiro no precipício do pecado, depois no inferno.” — Disse o Sr. Marcondes.
— São Francisco Xavier, apóstolo das Índias, falecido a 1552 A.D.: “Ah, quantas almas
perdem o Paraíso e são lançadas no inferno!”. Santa Francesca Saveria Cabrini,
religiosa missionária falecida a 1917 A.D.: “Quantas das pessoas não-civilizadas não
conhecem ainda Deus, e são afundadas na mais tenebrosa idolatria, superstição e
ignorância!.. Pobres almas! É nelas que Cristo mirou, em todo o horror da sua Paixão
Iminente, a inutilidade da sua agonia para tantas almas!”. São José Cafasso, colaborador
de Dom Bosco em Turim e falecido a 1860 A.D.: “Ponde os olhos no mundo, observai a
maneira de se viver, de se falar, e vereis imediatamente se o mal do pecado é conhecido
no mundo ou se alguém presta atenção a isso. Sem falar das pessoas que vivem vidas
decididamente irreligiosas e perversas, quão poucas são aquelas que passam por boas e
se aproximam dos sacramentos conscientes do grande mal que é o pecado, e a grande
ruína que traz. É forçoso que tal culposa ignorância da maioria dos homens leve um
grande número a ser danado porque nenhum pecado é perdoado se não é detestado, e é
impossível detestar o pecado de modo apropriado se ele não é conhecido como é.”
– Santo Tomás de Aquino, doutor da Igreja, falecido a 1274 A.D.: “Porque a felicidade
eterna consiste como faz na visão de Deus, ela excede o estado comum da natureza,
especialmente a natureza considerada na condição de desprovida da graça através do
pecado original, por isso aqueles que são salvos são uma minoria. Isso é particularmente
revelador da misericórdia divina, que Ele tenha escolhido alguns para aquela salvação
não alcançada pelos muitos conformados ao curso e tendência comuns da natureza.” Eu
poderia citar cerca de quinze santos que ainda não mencionei, e mais cerca de cinquenta
citações no mesmo sentido. Portanto, é simplesmente um fato que a maioria das pessoas
que se consideram católicas, hoje, ou que veem a Igreja, não compreendem como a
expectativa da Igreja a respeito da humanidade, e dos salvos, é deprimente. Portanto não
faz sentido o entusiasmo de João Paulo II em encorajar os seus amigos judeus a ser
judeus devotos e de estrita observância da lei mosaica, não faz sentido que Bento XVI
encoraje rabinos nas suas “missões”, que o antipapa Francisco peça a um líder
muçulmano que ore por si, e juntos rezem na mesquita. Tudo isso, represente ou não
uma leitura legítima do Concílio Vaticano II, como Sungenis disputa a respeito, tudo
isso constitui uma outra fé, uma outra expectativa em relação ao papel da Igreja no
mundo. — Disse o senhor Marcondes.
– Agora, eu vou explicar a minha posição a respeito do batismo de desejo, que se
assemelha à sua, e usarei isso também para argumentar sobre a maneira correta de
entender o dogma e reconhecer na Igreja pós-conciliar uma religião estranha à religião
dos apóstolos. Se tomarmos o Catecismo de Trento e o Concílio de Florença, veremos
que eles parecem apresentar posições diferentes a respeito da necessidade de batismo
sacramental para a salvação. O Catecismo de Trento tem um, um apenas, um parágrafo
que articula a ideia de batismo de desejo. O desejo do batismo pode dar ao que deseja a
graça e a retidão. Ora, o Catecismo de Trento não é infalível. Ele não é parte do
Concílio Ecumênico de Trento, mas é posterior ao concílio, ao seu encerramento. O
catecismo não é endereçado à Igreja universal, o que se verifica pelo título do volume,
que especificamente menciona como destinatários os padres paroquiais. Não é, portanto,
endereçado nem à Igreja universal nem a todos os padres, porque nem todos os padres
são padres paroquiais, há aqueles de ordens religiosas etc. Na verdade, em uma versão
ou edição do catecismo publicada pela editora Tan Books, há uma introdução citando
vários autores, e um deles, chamado Dr. John Hagen, afirma na passagem citada que os
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ensinamentos do volume não são infalíveis. O catecismo de Trento ensina que o
embrião humano não é ainda humano no momento da concepção, no catecismo se diz
que a alma racional humana é unida ao corpo só depois de algum tempo. Isso está no
artigo três, na seção sobre o credo; essa passagem do catecismo reflete uma certa
concepção escolástica, que se acha no próprio Santo Tomás e outros autores, segundo a
qual o embrião no útero de uma mulher não passa a existir como embrião humano desde
o começo, mas acaba por se tornar humano quando a alma racional é infusa no embrião.
Isso aconteceria, segundo tal ideia, dentro de quarenta dias depois da concepção no caso
de machos, e em oitenta ou noventa dias no caso de fêmeas. — Disse o velho.
– Essa ideia de que o embrião não é humano desde o momento da concepção, presente
no Catecismo de Trento e em Santo Tomás, é algo em que a maioria das pessoas hoje
não pode acreditar. O movimento antiaborto no mundo não concordaria, e até mesmo os
teólogos responsáveis pela Enciclopédia Católica de 1907 admitiram, nesse escrito, que
não concordam com tal posição de Santo Tomás; se tais teólogos acreditassem que o
que está contido em Santo Tomás e no catecismo é necessariamente infalível, eles
teriam rejeitado essa ideia? As evidências modernas a respeito do DNA indicam que
todas as características de um indivíduo estão presentes no embrião ao momento da
concepção, o que fortemente sugere que a alma racional está desde o início no embrião,
e não apenas isso, mas que no embrião feminino também, não havendo a respeito dele
algum atraso na formação em relação aos embriões masculinos. Portanto, se alguém diz
“a doutrina do batismo de desejo está no Catecismo de Trento”, eu pergunto: “Você
concorda que a alma racional só reside no embrião algum tempo depois da concepção?”.
É simplesmente um dogma, contrário ao catecismo, que a alma racional é a própria
forma do corpo humano; foi definido isso no Concílio de Viena, França, a 1312 A.D.,
pelo papa Clemente V. — Disse o velho.
– Quando se estuda o Catecismo de Trento — disse ainda o Sr. Marcondes — se nota
que há apenas determinadas porções da doutrina que o catecismo identifica como coisas
que podem, devem ou deveriam ser comunicadas a todos os fiéis. No trecho sob o título
“Comunhão dos Santos”, está escrito: “Os fiéis, portanto, devem ser informados de que
tal parte do artigo […]”; significando que há informações que devem ser dirigidas aos
fiéis, portanto nem toda passagem do volume é precisamente dirigida aos fiéis. Também
em “Sofreu sob Pôncio Pilatos”, está escrito: “Ademais, o pastor não deve omitir a
porção histórica deste artigo […]”. Portanto, nem tudo no catecismo é para todos os
fiéis, se o próprio texto identifica as porções que seria bom não omitir dos fiéis;
tornando absurda a concepção de que a intenção era de que todo o conteúdo do
catecismo estivesse sendo entregue aos fiéis. Eu poderia dar cerca de cinquenta
exemplos de passagens em que o texto frisa certos pontos doutrinais como interessantes
de se os comunicar aos fiéis. Das centenas de páginas do livro, só algumas passagens
são especificamente dirigidas aos fiéis. Uma dessas passagens dirigidas a todos os fiéis,
sobre a matéria do batismo (água), diz: “Os pastores podem ensinar, em primeiro lugar,
que a água, sempre disponível e ao alcance de todos, foi a mais apropriada matéria para
o sacramento que é necessário a todos para a salvação”. Ora, o catecismo, na passagem
dirigida a todos os fiéis, diz que o sacramento do batismo é necessário para a salvação, e
o batismo de desejo não é um sacramento, conforme todos admitem. O sacramento do
batismo não é necessário para todos, segundo os que abraçaram a ideia de batismo de
desejo. É, na verdade, absolutamente fascinante que em toda passagem sobre a
necessidade do batismo, que simultaneamente dirige a doutrina aos fiéis, o sacramento é
apontado como necessário pelo catecismo. A mesma coisa não ocorre no solitário
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parágrafo que aponta uma exceção a essa regra, no catecismo. Neste parágrafo sobre a
justificação sem sacramento, não há a mais mínima sugestão de que seja algo que o
pastor possa, deva ou devia transmitir aos fiéis, é só uma informação dirigida ao pastor,
e não aos fiéis. Mais um exemplo de como isso é aparente, segundo diz o texto: “Como
o conhecimento do que foi até aqui explanado seja, como é, da mais alta importância
para os fiéis, não é menos importante para eles aprender que a lei do batismo qual
estabelecida por Nosso Senhor, se estende a todos, de modo que a não ser que eles
sejam regenerados a Deus pela graça do batismo, não importa se de pais cristãos ou
infiéis, eles estão nascidos para eterna miséria e destruição. Os pastores, portanto,
devem frequentemente explicar essas palavras do evangelho: Se um homem não nascer
de novo da água e do Espírito, não pode entrar no Reino de Deus”. A doutrina sobre a
necessidade do batismo contida no catecismo, quando dirigida a todos os fiéis, portanto,
é indistinguível da doutrina dos concílios ecumênicos, e todos eles, perfeitamente em
concórdia, dizem que a água real e natural é necessária não só para o batismo, mas para
a justificação que o sacramento comunica.
– Os defensores do batismo de desejo dirão que o Catecismo de Trento é recomendado
pelo papa Pio X, na Encíclica Acerbo Nimis, como bom manual catequético para os
fiéis. “Como o Catecismo de Trento pode não ser o ensinamento católico, mas sim
herético”, perguntarão eles, “se foi recomendado por Pio X?”. O argumento que eu
estabeleci há pouco lhes responde: O oficialmente promulgado pelo catecismo como
devendo ser comunicado a todos os fiéis é que o batismo é necessário. A longa
bula Ineffabilis Deus, de Pio IX, estabelecendo a Imaculada Conceição, tem a mesma
linguagem do catecismo; nem tudo ali é dirigido a todos os fiéis. — Disse ainda o
velho.
– O próximo argumento contra a necessidade de batismo sacramental é “Depois das
definições infalíveis que você cita, pela necessidade de batismo sacramental, surgiram
teólogos e homens eminentes na Igreja que apontaram como válidas exceções; como
eles podem não ter sido hereges?”. Ora, assim como o catecismo não-infalível foi
recomendado por papas, a Suma Teológica, que contém heresias, também foi
recomendada. Suma, Parte três, artigo vinte e sete, questão dois, resposta à objeção
dois: “Se a alma da bem-aventurada virgem não tivesse incorrido na mancha do pecado
original, isso seria derogatório à dignidade de Cristo”. Ele contradiz na Suma a
Imaculada Conceição, mas a Suma foi sempre louvada e recomendada pelos papas. É
porque no geral, a Suma é católica e não herética, embora contenha alguns erros e
opiniões heréticas. Não adianta se objetar, como foi feito, que o erro ocorreu antes da
definição da Imaculada Conceição, porque, se algo aprovado pela Igreja não pode
conter erro, segundo dizem, teria de ser verdadeiro antes e depois da definição, e além
disso mesmo depois da definição o trabalho de Santo Tomás foi recomendado por
papas, por exemplo Leão XIII. Os hereges favoráveis ao batismo de desejo se veem
obrigados a dizer “ora, a Imaculada Conceição não pode ser uma doutrina católica”, ou
então “a Imaculada Conceição tem de ser perfeitamente compatível com Santo Tomás,
no fundo”. Não, esses fatos mostram que a aprovação papal de um documento pode ter
um sentido geral, e não se dirigir a todo conteúdo do texto, sobretudo se não é dirigido a
todos os fiéis com a linguagem característica. A Suma é recomendada sobretudo a
seminaristas e estudantes, o catecismo a seminaristas e padres paroquiais. — Disse o
velho Marcondes. — Ademais, na herética passagem do catecismo se trata de o batismo
de desejo se aplicando a casos em que um evento inesperado impede de se receber o
sacramento, quando é de fide, do Concílio Vaticano I, que Deus ordena todas as coisas
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com tranquilidade, o que mostra que a passagem do catecismo é contrária à noção de
providência. Além disso, essa passagem herética do catecismo diz que o efeito do
batismo de desejo se aplica àqueles que desejam o sacramento, quando tal não é a
opinião dos que professam o batismo de desejo, uma vez que eles creem que esse
batismo não-sacramental se aplica a pessoas que desconhecem o sacramento, a pagãos e
outros membros de outras religiões que não desejam explicitamente ser católicos.
– Mas, como o Catecismo pode ter sido aprovado por teólogos sem que eles se
tornassem hereges? — Perguntou o Sr. Marcondes. — Como o “batismo de desejo”
pode ser contrário aos concílios ecumênicos, e à necessidade da água para o sacramento,
e à necessidade de se submeter ao pontífice romano, sem ser um conceito herético que
levou à heresia os teólogos que o defenderam? Ora, é possível citar santos, doutores e
mesmo papas que defenderam erros que todos reconhecem hoje como erros. Por
exemplo, no séc. XVII teólogos do Santo Ofício condenaram a ideia de que a Terra não
é o centro do universo. O papa Paulo V ordenou que Galileu abandonasse essa ideia.
Uma das congregações papais, chamada a Congregação do Index, publicou um decreto
nessa mesma linha, condenando o não-geocentrismo. Ao ano 1633 A.D. o Santo Ofício
condenou, sob o papa Urbano VIII, o não-geocentrismo ao ponto de fazer circular tal
informação. Mas esse padrão foi revertido depois, a 1757 A.D. o papa Bento XIV
suspendeu os decretos da congregação que publicou em defesa do geocentrismo. A
1822 A.D. o Santo Ofício, sob Pio VII, concedeu permissão para a impressão de livros
ensinando o movimento terrestre. O papa Bento XV se dirigiu, nos seus dias, a
estudantes, ensinando que a Terra pode não ser o centro do universo. Nisso, o papa
Bento XV contradisse os onze teólogos do Santo Ofício a 1616 A.D., incluso São
Roberto Belarmino (que se envolveu em tal controvérsia). Os hereges do “batismo de
desejo”, como não admitem que nada errôneo possa ser aprovado pelo papa, teriam de
professar que Bento XV contradisse um ensino da Igreja e se tornou um herege por
duvidar do geocentrismo, que São Roberto Belarmino ensinou que é de fide. Teólogos e
papas podem se enganar sobre alguma verdade, eles podem pensar que algo é herético e
não é, e que algo não é herético e é. A propósito, a condenação de Galileu foi aprovada
pelo papa com o conhecimento do papa, mas sem uma fórmula ex cathedra específica,
de modo que a Igreja não ensinou técnica ou oficialmente que a Terra é o centro do
universo.
– Um outro exemplo — continuou o Sr. Marcondes — é sobre o cânon das escrituras. O
cânon das escrituras é o conjunto de livros que a Igreja oficialmente declarou que fazem
parte da bíblia. O Concílio de Florença declarou infalivelmente, a 1441 A.D., qual é o
cânon das escrituras através da bula Cantate Domino. E na bula Cantate Domino os
livros deuterocanônicos, por exemplo o Livro da Sabedoria, estão inclusos. Entretanto
alguns dos homens mais eminentes na Igreja, depois da bula, acreditaram que os livros
deuterocanônicos não fazem parte da bíblia. Por exemplo, o cardeal Francisco Jiménez
de Cisneros (séc. XVI), dentre as mais poderosas figuras da história da Espanha, e
editor de uma versão poliglota da bíblia. Com a aprovação do papa Leão X, o cardeal
Jiménez publicou uma bíblia excluindo os livros deuterocanônicos. Pela lógica dos
defensores do “batismo de desejo”, tanto o cardeal Jiménez quanto o papa Leão X têm
de ser hereges, porque aprovaram e promoveram uma versão da bíblia que exclui
conscientemente parte do cânon, contrariamente ao que o Concílio
de Florença declarara. Não, o papa Leão X não era um herege, é que papas podem errar,
podem se confundir, podem estar pouco advertidos do status quaestionis de um assunto
teológico, um Concílio Ecumênico, ao menos parcialmente, pode lhes passar
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despercebido. O cardeal Jiménez não foi de modo algum o único a incorrer nesse erro.
O celebrado teólogo, cardeal Girolamo Seripando, também não entendeu os livros
deuterocanônicos conforme Florença declarara, apesar de ter sido uma personalidade
chave no Concílio de Trento. O cardeal Cajetan, igualmente, a despeito de ser até hoje
uma marcante figura em oposição à Reforma Protestante, não entendia os livros
deuterocanônicos como parte da bíblia. Os defensores do batismo de desejo chegaram
ao ponto de argumentar contra essas evidências, que o cânon das escrituras só foi
infalivelmente declarado em Trento, não em Florença, e portanto essas grandes
personalidades não se opunham ao magistério realmente. Tal objeção, no entanto, é
fraquíssima; na encíclica Providentissimus Deus, 1893 A.D., o papa Leão XIII usou a
expressão “a fé antiga e imutável da Igreja solenemente declarada em ambos concílios
de Florença e de Trento”, e tal encíclica tem como tema principal as Sagradas
Escrituras. Leão XIII identificou a passagem em Florença sobre o cânon como uma
passagem solene, isto é, infalível. Como pode ser que o cardeal Jiménes, o cardeal
Seripando, o cardeal Cajetan e o papa Leão X etc. podem ter errado a respeito do cânon
sem ser hereges? É que a aquisição e transmissão de informações naqueles tempos, até
pelo menos o séc. XVIII ou mais, era muito problemática por dois fatores; o primeiro é
que não havia tecnologia de informações como há hoje; e em segundo lugar eles viviam
antes da definição dogmática da infalibilidade papal e da clarificação a respeito de
quando e como a infalibilidade está operando. Santo Afonso de Ligório, se percebe,
fiava-se muito na opinião de teólogos, mas desde o Concílio Vaticano I não é isso mais
necessário, não é mais necessário se atolar na multidão de opiniões teológicas que não
são infalíveis. Os teólogos podem falar brilhantemente, mas não é necessário mais
extrair conclusões diretamente deles. Podemos hoje sem dificuldade ir direto ao
magistério. Também a tecnologia determina a rapidez com que a rejeição obstinada,
herética, de um dogma, pode ser determinada. Hoje, em cinco minutos, eu posso ler a
opinião de alguém resumida sobre um assunto, e conferir se bate com o que o
magistério diz a respeito. Eu posso admoestar alguém por email, e em poucos minutos
ou horas receber uma resposta, o que antigamente era muito mais difícil.
– Por exemplo — continuou o velho –, São Roberto Belarmino acreditava que hereges
ocultos são membros da Igreja, do corpo da Igreja. Não seria, por essa opinião, o ato da
heresia que expulsa alguém da Igreja, mas apenas o crime de heresia, apenas o se juntar
a um grupo herético (protestante etc.) ou ser declarado herege por uma autoridade
eclesiástica. Um opinador chamado Robert Siscoe usa essa opinião de São Roberto
Belarmino, em favor da ideia de que os antipapas são parte da Igreja, membros da
Igreja. Nesse ponto a opinião de São Roberto não apenas é errada, mas herética, porque
a bula do Concílio de Florença, chamada Cantate Domino, claramente condena tal
opinião. Bula Cantate Domino: “Ela [a Santa Igreja Romana] condena, rejeita e
anatematiza, todos pensando coisas opostas e contrárias, e lhes declara alheios ao Corpo
de Cristo, que é a Igreja.” Florença diz que pensar, meramente pensar, contrária e
opostamente à Igreja, é perder filiação na Igreja. Ainda que você não revele a ninguém
que não crê na divindade de Jesus, ou na infalibilidade papal, você está fora. São
Roberto era um herege? Não, ele estava apenas enganado. Só porque muitos criam em
batismo de desejo, apesar de esta opinião jamais ter sido proposta pelo magistério, mas
ao contrário ter sido excluída como possibilidade, não significa nem que o batismo de
desejo seja certo, nem necessariamente que os que acreditam nele sejam hereges. Assim
como o conceito de São Roberto Belarmino do “herege oculto como membro da Igreja”
foi por várias vezes admitido por teólogos, também o errôneo batismo de desejo foi
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defendido por muitos. Nós só nos fiamos no ensinamento de santos e doutores quando
eles não contradizem o magistério.
– Do mesmo modo, Joseph Tixeront, autor de História dos Dogmas, explicou que a
admissão católica do filioque (a ideia de que o Espírito Santo procede tanto do Pai
quanto do Filho) era universalmente aceita na Igreja latina aos séculos V e VI A.D.; mas
se acreditava que o filioque não devia ser adicionado ao Credo de Constantinopla,
porque seria proibído modificar um credo. O papa Leão III (dos séc. VIII e IX), se opôs
à inserção do filioque no credo, ao ponto de protestar contra o Imperador Carlos Magno
a respeito. O papa Bento VIII, a 1012 A.D. pôs fim à controvérsia e oficialmente
adicionou o filioque ao credo, a despeito de o concílio de Éfeso (431 A.D.) ter alguma
passagem dando a impressão de que de modo algum se deve alterar o texto de um credo.
A ação de Bento VIII foi confirmada e aprovada no Concílio de Florença. O papa Leão
III não se opôs à inserção do filioque de um modo obrigante aos fiéis, mas ele tinha uma
opinião errônea a respeito. Os papas, quando não atuam infalivelmente obrigando todos
os fiéis em virtude do seu ofício, ou quando atuam negativamente, ao não agir, podem
errar e falhar em reconhecer algum ponto da doutrina. A opinião “se o batismo de
desejo fosse errôneo, seria impossível que os papas aprovassem ou não o
condenassem”, é uma opinião inteiramente falsa. É uma opinião baseada em uma
compreensão muito pouco experimentada da história dogmática e do ensinamento
católico. O batismo de desejo jamais foi ensinado aos fiéis pelo magistério de um modo
obrigante e claramente solene, não há um único concílio ecumênico, nenhuma bula ou
encíclica papal, que sequer menciona o batismo de desejo. Os doutores da Igreja não
obrigam os fiéis, no conteúdo dos seus livros, os catecismos também não, nenhum
deles; as poucas declarações de papas sobre batismo de desejo, não se dirigem de modo
algum à Igreja universal; o código de direito canônico refere o batismo de desejo, mas
também refere que o status do código não é obrigante a todos os fiéis no cânon 1,
porque não se dirige a toda a Igreja e diz explicitamente que não obriga toda a Igreja, ao
passo que a infalibilidade necessita de uma declaração dirigida a toda a Igreja. A Igreja
católica nunca ensinou batismo de desejo, ou batismo de sangue de modo obrigante.
Mas os Concílios Ecumênicos, e as encíclicas, apontam que ninguém é salvo sem o
sacramento do batismo. — Disse o velho.
– Um outro argumento contra os hereges do batismo de desejo, é que Santo Agostinho,
e São Fulgêncio, ensinaram que as crianças pequenas que morrem sem batismo sofrem
as penas do fogo. Essa opinião de Santo Agostinho foi adotada sem contestação por
mais de quinhentos anos. Como pode ser que teólogos adotem uma opinião por tanto
tempo, se essa opinião não é católica? É porque teólogos podem errar, o que importa é o
que o magistério ensinou. Um outro exemplo é São Cipriano, e a controvérsia sobre o
batismo de hereges. São Cipriano, no séc. III, acreditava que batismos feitos por hereges
são inválidos, e ele sustentou essa opinião contra o papa São Estevão (falecido a 252
A.D.). O papa Estêvão I não falou por um documento ex cathedra obrigando a Igreja,
ele simplesmente enviou a São Cipriano de Cartago uma carta privada explicando que
hereges têm a faculdade de batizar validamente. São Cipriano acusou o papa de erro e
convocou um concílio, com oitenta e quatro bispos que aprovaram a posição de São
Cipriano unanimemente. Ora, São Cipriano não apenas é um doutor da Igreja, mas ele é
constantemente citado nas encíclicas papais. Nós temos um doutor da Igreja ensinando
uma visão errônea, temos oitenta e quatro bispos concordando com ele, e ademais as
Igrejas das regiões da Capadócia (próxima do mediterrâneo) e da África concordaram
com Cipriano. Como é que um doutor da Igreja, dezenas de bispos, dois grandes centros
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católicos, podem todos estar errados? É que eles podem errar, o que importa é o que a
Igreja ensinou infalivelmente, o que, no caso do batismo, no caso do que foi claramente
ensinado no Concílio de Florença, consiste em que se não nascermos de novo da água e
do Espírito, não podemos entrar no Reino de Deus. — Disse o Sr. Marcondes.
– Um outro exemplo de doutor da Igreja que errou foi Santo Afonso de Ligório, que,
após considerar várias opiniões de teólogos, identificou como a forma de consagração
da eucaristia, não a forma longa presente no missal tradicional, mas apenas as palavras
“Este é o meu Corpo” e “Este é o meu sangue”. A maioria dos tradicionalistas, e
ademais os argumentos de Leão XIII a respeito dos sacramentos no decreto Apostolicae
Curae, 1898 A.D., contradiriam Santo Afonso a esse respeito, porque a referência à
remissão dos pecados, na forma de consagração, também significa a graça que a
eucaristia comunica. Então, como um doutor da Igreja pode errar? Ele simplesmente
pode errar, o que importa é o que a Igreja ensinou infalivelmente. — Disse o Sr.
Marcondes.
– Na bula do Concílio de Florença, chamada Exultate Deo, está escrito: “O santo
batismo, que é a porta de entrada para a vida espiritual tem o primeiro lugar entre os
sacramentos; por meio dele nós somos feitos membros de Cristo e do Corpo da Igreja, e
desde que a morte entrou no universo pelo primeiro homem, se não nascermos de novo
da água e do Espírito, não podemos, como a Verdade diz, entrar no Reino dos Céus. A
matéria deste sacramento é água real e natural”. Quem prega que a água não é
necessária, que não é necessário nascer de novo dela e do Espírito, contradiz um dogma
definido. Os hereges do batismo de desejo professam que a água real e natural, o rito, é
apenas necessário, é apenas verdadeiramente necessário, ordinariamente, mas há meios
para a salvação extraordinários, não-ordinários. Essa opinião, no entanto, é herética, e é
modernismo. Se há aplicações extraordinárias para um dogma, significa que há
aplicações para fora dele. Se um dogma definido não é sempre verdade, é em última
instância falso. De acordo com Monsignor Joseph Clifford Fenton, um americano e
teólogo que enxergava o dogma Fora da Igreja Não Há Salvação de um modo liberal,
alguns autores procuram explicar o dogma dizendo que a Igreja é apenas o meio
ordinário, mas de acordo com essa opinião o dogma seria apenas uma fórmula vã, algo
que os que lhe aceitassem tratariam para todos os efeitos como inverídico. Isso que
monsignor Fenton disse sobre a salvação se aplica a todo dogma. Se as exceções não
são incluídas no dogma, na própria definição, não existem e é modernismo e heresia
afirmar que existem. Pio X condenou a ideia de que o dogma está submetido a
mudanças e a vicissitudes (ao acaso, ou a circunstâncias). Os hereges que defendem
batismo de desejo dizem que a posição “fineíta” a respeito é que é herética e pecado
mortal, o que é bastante comprometedor da salvação deles. São Paulo apóstolo ensinou
que a doutrina revelada não é “é isso, e não é isso”. Nós não cremos que “se um homem
não nascer de novo da água e do Espírito, não pode entrar no Reino dos Céus” e ao
mesmo tempo “sim, se um homem não nascer de novo da água e do Espírito ele pode
entrar no Reino dos Céus”. No latim dessa passagem em Exultate Deo, é usado o termo
non possumus, que é um termo técnico conforme todo teólogo familiarizado com
história do dogma sabe. O papa São Leão, O Grande, e outros papas, usaram o termo
non possumus para designar a impossibilidade conforme lei divina imutável, de fazer
algo. O próprio antipapa Bento XVI, no livro Luz do Mundo, referiu um decreto de
João Paulo II assim: “A impossibilidade da ordenação de mulheres na Igreja Católica,
foi claramente decidida por um non possumus do magistério supremo”. Quem rejeita
obstinadamente que é necessário nascer de novo da água e do Espírito para ser salvo, é
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um herege. O próprio Concílio de Florença declarou em Cantate Domino que é
necessário pertencer ao Corpo da Igreja para ser salvo. — Disse ainda o Sr. Marcondes.
– Mas o pe. Cekada diz que o Syllabus de Erros, de Pio IX, condenou a ideia de que só
as declarações do magistério devem ser aceitas de modo obrigante pelos fiéis, na
proposição nº 22. — Objetou Gregory Antonov.
– Sim, mas isso se aplica ao magistério universal e ordinário, o que é tão constante
quanto a representar revelação, se trata do consenso sob o qual as declarações ex
cathedra são expressas. Se nota isso em que Santo Irineu, no séc. II, o papa Leão X
durante a Reforma Protestante, e o próprio Pio IX ao estabelecer de modo plenamente
manifesto a infalibilidade papal no séc. XIX, todos reconheciam o primado de Pedro
sobre a Igreja. — Tornou o Sr. Marcondes. — Tal não se aplica ao consenso nutrido na
opinião de Santo Agostinho, que as crianças que morrem só com o pecado original
sofrem com chamas.
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Judaísmo
– O entendimento que nós judeus temos do que seja o messias prometido por Deus, é
um entendimento claro e preciso. — Disse o quarto Antonov. — A opinião judia sobre
o messias é a mais acertada. O que é o messias? O messias é alguém ungido, alguém
que recebe uma aplicação de óleo como ritual para a sua iniciação no serviço a Deus.
No capítulo 30 de Êxodo é referido que vários objetos, incluso o sacerdote Aarão e os
seus filhos, foram ungidos. Os reis também, desde Saul e David, eram ungidos, e o fato
de alguém ser ungido sob o comando de Deus lhe separava entre as pessoas de modo
que não se lhe poderia atacar sem incorrer na ira de Deus, como está no livro de
Samuel. Até mesmo profetas, como Eliseu, foram ungidos, em outras palavras, eram
messias. Mas é simplesmente um fato que a palavra “messias”, qual os cristãos a
entendem referindo-se a Jesus, não aparece nem uma única vez em toda a bíblia, em
todo o Antigo Testamento. Nenhuma das passagens narrativas da bíblia, sobre histórias
e eventos, fala do messias. A parte da bíblia que fala sobre legislação, isto é, normas e
costumes instituídos, também não fala do messias. Há também a literatura de sabedoria
na bíblia, o Livro de Jó, o Eclesiastes escrito pelo rei Salomão, os salmos etc. Nenhum
destes livros é muito claramente um local certo para achar referências ao messias.
Sobrou os livros proféticos. Os profetas tinham como função repreender e admoestar o
povo judeu. Mas também encorajar os judeus. Como se diz, é difícil ser judeu. Eles
também, por isso, encorajavam os judeus avisando do futuro glorioso que lhes espera. A
bíblia diz que nós judeus vamos voltar à terra prometida, vindos de todos os cantos da
terra, e as dez tribos de Israel perdidas vão se unir a nós. Isso está em Isaías e em
Jeremias. O livro de Deuteronômio fala de uma restauração também espiritual para o
povo judeu. Isaías 2:1-4: “Palavra que viu Isaías, filho de Amós, a respeito de Judá e de
Jerusalém. E acontecerá nos últimos dias que se firmará o monte da casa do Senhor no
cume dos montes, e se elevará por cima dos outeiros; e concorrerão a ele todas as
nações. E irão muitos povos, e dirão: Vinde, subamos ao monte do Senhor, à casa do
Deus de Jacó, para que nos ensine os seus caminhos, e andemos nas suas veredas;
porque de Sião sairá a lei, e de Jerusalém a palavra do Senhor. E ele julgará entre as
nações, e repreenderá a muitos povos; e estes converterão as suas espadas em enxadões
e as suas lanças em foices; uma nação não levantará espada contra outra nação, nem
aprenderão mais a guerrear.” Também no profeta Oseias, capítulo 2, é dito que Deus
fará a paz na terra e abolirá a espada e o arco. Em resumo, o tempo messiânico será
marcado pelo retorno dos judeus à Terra Prometida, a reconstrução do Templo
coincidindo com a restauração espiritual profetizada, e uma paz universal. Também está
escrito em Zacarias, capítulo 8, versículo 23: “Assim diz o Senhor dos Exércitos:
Naquele dia sucederá que pegarão dez homens, de todas as línguas das nações, pegarão,
sim, na orla das vestes de um judeu, dizendo: Iremos convosco, porque temos ouvido
que Deus está convosco.” Todas essas passagens dizem de um mundo redimido, mas de
nenhum messias. Mas eis as passagens sobre o messias, as quais, aliás, implicam
sempre a realização de todos esses prodígios utópicos para os judeus: Isaías 11:1-10:
“Um ramo surgirá do tronco de Jessé, e das suas raízes brotará um renovo. O Espírito
do Senhor repousará sobre ele, o Espírito que dá sabedoria e entendimento, o Espírito
que traz conselho e poder, o Espírito que dá conhecimento e temor do Senhor. E ele se
inspirará no temor do Senhor. Não julgará pela aparência, nem decidirá com base no
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que ouviu; mas com retidão julgará os necessitados, com justiça tomará decisões em
favor dos pobres. Com suas palavras, como se fossem um cajado, ferirá a terra; com o
sopro de sua boca matará os ímpios. A retidão será a faixa de seu peito, e a fidelidade o
seu cinturão. O lobo viverá com o cordeiro, o leopardo se deitará com o bode, o bezerro,
o leão e o novilho gordo pastarão juntos; e uma criança os guiará. A vaca se alimentará
com o urso, seus filhotes se deitarão juntos, e o leão comerá palha como o boi. A
criancinha brincará perto do esconderijo da cobra, a criança colocará a mão no ninho da
víbora. Ninguém fará nenhum mal, nem destruirá coisa alguma em todo o meu santo
monte, pois a terra se encherá do conhecimento do Senhor como as águas cobrem o
mar. Naquele dia as nações buscarão a Raiz de Jessé, que será como uma bandeira para
os povos, e o seu lugar de descanso será glorioso.”
– Esse ramo de Jessé, um antepassado do rei David, nós cristãos chamamos Jesus. —
Disse o velho.
– É claro. — Tornou o quarto Antonov com enfado e pressa. — Mas tornemos ao
messias, diz Jeremias 23:5-6: “‘Dias virão’, declara o Senhor, ‘em que levantarei para
David um Renovo justo, um rei que reinará com sabedoria e fará o que é justo e certo na
terra. Em seus dias Judá será salva, Israel viverá em segurança, e este é o nome pelo
qual será chamado: O Senhor é a Nossa Justiça'”. Em Jeremias, capítulo 30, também o
rei messiânico é associado com a proteção e segurança futura com que Deus vai
sustentar os descendentes de Jacó. E mais adiante no capítulo 33, a mesma ideia. Em
Ezequiel, capítulo 34, a mesma ideia, isto é, um rei da descendência de David vai reinar
e haverá nesses dias uma multidão de bençãos e um mundo utópico. No capítulo 37 se
repete a ideia, com a menção de que esse descendente de David vai reinar para sempre.
Portanto, o verdadeiro messias, que não é Jesus Cristo, é o messias bíblico. A bíblia diz
isso sobre o messias: Quando ele vier os judeus terão voltado para Jerusalém, haverá
paz universal, o templo será reconstruído, todos os gentios perguntarão aos judeus o que
devem fazer para se aproximar de Deus, e todos os judeus observarão a lei, a torá,
conforme certa passagem. Quando esses eventos ocorrerem, não haverá erro, será muito
claro quem é o messias. É por isso que eu acredito que o messias não é Jesus.
– É o que lhe parece? — Perguntou o velho.
– Sim. — Tornou o quarto Antonov –. Vocês, cristãos, dizem que é preciso crer em
Jesus. Mas quando vier o messias ninguém terá de crer nele, todos saberão que ele é o
messias, por causa dos fatos que devem acompanhar a vinda dele. É por isso que a
chamada “segunda vinda” é uma lorota. Não há uma única passagem bíblica que
corrobora essa noção de que o messias deve voltar. Quando Jesus morreu ele não disse
“missão cumprida!” ou “marquei mais pontos”. Ele disse, isso sim, “Meu Deus, meu
Deus, por que me abandonaste?”. As passagens da bíblia judaica sobre o messias têm
mais a ver com o triunfo dele na sua primeira vinda. Qualquer um pode alegar ser o
messias, falhar e depois salvaguardarem sua legitimidade com o dizer “ele vai voltar!”.
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O Novo Testamento fala repetidamente que Jesus deve voltar em breve, na mesma
geração dos apóstolos. Isso aconteceu? Mas, claro, você dirá que Jesus fez muitos
milagres. O capítulo 13 de Deuteronômio avisa-nos que surgirão falsos profetas, e que
enganarão a muitos com milagres verídicos. Por que Deus permitiria que falsos profetas
realizassem milagres verdadeiros? Para testar-nos. E quem nos garante que Jesus tenha
feito milagres, ou que a descrição deles seja precisa? O primeiro evangelho a ser escrito
é o de Marcos, mas cerca de quarenta anos depois de Cristo falecer. Há organizações,
como a Judeus por Jesus, que reconheceram em editorial de uma sua publicação, que
muitos adeptos estavam inclinados a mentir sobre curas milagrosas em suas vidas.
Nenhum de nós estava entre os apóstolos de Jesus há dois mil anos atrás para saber que
gente era aquela.
– Pôncio Pilatos é retratado em mais de uma fonte histórica como um procurador brutal
e sanguinário — continuou o quarto Antonov –, mas os evangelhos o retratam como um
tipo manso que se deixa intimidar pelos judeus para condenar Jesus. E, por falar nos
evangelhos, a história de como Herodes mandou matar as crianças de Belém menores de
dois anos não está em nenhuma fonte que não o próprio Novo Testamento, não está nem
no Talmud, e nem mesmo em Josefo, o qual dedicou uns quarenta capítulos a Herodes.
Mateus, o evangelista, diz que à morte de Jesus os corpos de homens
justos ressuscitaram e apareceram a muitos em Jerusalém, o que não é mencionado por
nenhuma fonte extra-evangélica. A verdade é que não adianta se insistir nos milagres
cristãos, todas as seitas reportam milagres, portanto um milagre não pode ser tomado
como uma prova definitiva de que uma religião é verdadeira. Os de uma seita dirão “o
vosso milagre é feito pelo demônio para vos confundir”, e os outros replicarão o
mesmo.
– São Paulo escreveu — continuou o quarto Antonov — que a ressurreição é milagre
tão importante para os cristãos, que, se não houver ocorrido, “é vã a nossa fé”. Mas a
bíblia dos judeus não menciona em nada a importância de uma suposta ressurreição do
messias; ainda que Jesus tenha ressuscitado, isso não prova por si que ele é o messias.
Os evangelhos diferem a respeito do dia da crucificação, o evangelho de João propõe
que foi no dia anterior à páscoa, os outros no dia da páscoa. Os evangelhos diferem a
respeito das pessoas que se dirigiram à tumba de Jesus. E assim por diante, as diferenças
são inúmeras. Os scholars cristãos admitem isso, e se defendem alegando que essas
diferenças são acidentais ao mais importante. Shabbetai Tzvi, no séc. 17, alegou ser o
messias judeu, e muitos judeus creram nele, mas depois, capturado e intimidado por
autoridades muçulmanas, ele se converteu ao islã; e centenas de famílias se converteram
com ele. Alguns acreditaram que o Shabbetai Tzvi convertido era um sósia, e que o
verdadeiro tinha ido para o céu e voltaria para cumprir as escrituras. Mas tal não
aconteceu. Outro exemplo: Dorothy Martin, uma americana do séc. XX, alegou ela
canalizar mensagens de uma entidade extraterrestre que predizia um dilúvio. Esse
fenômeno, ligado a doutrinas da cientologia, foi estudado por um psicólogo chamado
Leon Festinger. Quando o dilúvio não ocorreu, como o Dr. Festinger previu, os adeptos
da seita de ufólogos em torno de Dorothy se tornaram ainda mais convictos de que ela
estava certa. Isso se chama dissonância cognitiva, que é o nome que se dá a quando a
realidade desautoriza ou não confirma alguma crença que as pessoas sustentam. As
pessoas vão reinterpretar de modo criativo a realidade para harmonizá-la com uma
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crença absurda. Mais um exemplo: Jack Rickman era um ministro luterano do Missouri,
e um certo dia ele anunciou aos seus seguidores que recebera uma revelação, a qual
consistia em um chamado para se observar as leis do antigo testamento, como os judeus.
Essa revelação não apenas foi bem acolhida, como despertou interesse e a admissão de
judeus. Mas mais tarde se descobriu que Rickman abusava sexualmente de meninos
pequenos, o que perturbou os fiéis, além do que ficou evidente que ele mentia a respeito
de certas coisas; metade dos seguidores dele permaneceu mesmo assim. Sigmund Freud
já dizia, no que diz respeito ao auto-engano, todo homem é genial.
– Do mesmo modo — continuou o quarto Antonov — há dois mil anos alguns judeus
acreditaram que Jesus era o messias, e investiram nisso muito esforço e emoção, e se
tornou difícil para eles negar adiante que ele era o messias. Dissonância cognitiva.
Como justificar um messias que é morto e ignorado, em vez de trazer a paz e o reino de
Deus ao mundo? Segundo os Atos dos Apóstolos, o livro do Novo testamento, os
apóstolos foram chamados ao conselho judeu, e os fariseus debateram o que fariam com
eles, como está no capítulo 5, versículos 34 a 39: “Mas, levantando-se no conselho um
certo fariseu, chamado Gamaliel, doutor da lei, venerado por todo o povo, mandou que
por um pouco levassem para fora os apóstolos; e disse-lhes: Homens israelitas,
acautelai-vos a respeito do que haveis de fazer a estes homens, porque antes destes dias
levantou-se Teudas, dizendo ser alguém; a este se ajuntou o número de uns quatrocentos
homens; o qual foi morto, e todos os que lhe deram ouvidos foram dispersos e reduzidos
a nada. Depois deste levantou-se Judas, o galileu, nos dias do alistamento, e levou muito
povo após si; mas também este pereceu, e todos os que lhe deram ouvidos foram
dispersos. E agora digo-vos: Dai de mão a estes homens, e deixai-os, porque, se este
conselho ou esta obra é de homens, se desfará, mas, se é de Deus, não podereis desfazê-
la; para que não aconteça serdes também achados combatendo contra Deus.” Vós
cristãos usais essa passagem para inferir, diante dos judeus, que porque o vosso
movimento cresceu muito, deveis estar certos. Mas nenhum cristão realmente acredita
nisso. O que o chefe do conselho, Gamaliel, disse na passagem, “eles não estão fazendo
nada de errado, vejamos o que sucede mais adiante”, é muito significativo. Se pode
seguramente inferir que Gamaliel não acreditava que os apóstolos adorassem Jesus
como Deus, ou acreditava que os apóstolos comessem porco como os pagãos fazem, em
fez de se ater a comida kosher. Porque se ele acreditava que eles faziam essas coisas,
teria proposto que fossem mortos por idolatria.
– Há muitos não-judeus que têm trabalhos acadêmicos publicados sobre o sentido do
cristianismo, e eles creem que os primeiros seguidores de Jesus observavam a lei
judaica, a torá, como qualquer judeu. — Disse o quarto Antonov. — E muitos
indivíduos daquela época, cerca de um milhão, eram gentios que simpatizavam com o
judaísmo mas não o praticavam por ser uma disciplina complexa e difícil, por exemplo
por causa da circuncisão, uma operação dolorosa. O apóstolo Paulo, ao que tudo indica,
chegou em cena bem depois dos apóstolos e começou a pregar que não é necessário
observar a torá para entrar no cristianismo. Ele é quem introduziu a não-observância das
leis judaicas. Esse novo movimento judaico de Paulo, que não é o movimento cristão
original, ganhou hegemonia no séc. IV com Constantino, o imperador, o qual nem
sabemos se era um cristão sincero, pois alguns dizem que ele abraçou tal fé por motivos
políticos, a saber, a necessidade por dificuldades econômicas e políticas de unificar o
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império em torno de uma crença disseminada por vários lugares diferentes, e em todas
as direções, e ao mesmo tempo marginalizar adversários que não reconheceriam tal
crença como legítima. Esse cristianismo disseminado, não sendo o cristianismo judaico,
é um outro fenômeno, e portanto o movimento não continuou, mas foi interrompido e se
mostrou falso, exatamente como Gamaliel previra. Os que criam em Jesus e observavam
a circuncisão e a torá, os quais os cristãos hoje consideram os “hereges” chamados
ebionitas, esses desapareceram do mapa e da história e sobraram apenas os pagãos
convertidos por Paulo.
– O problema com o cristianismo — continuou Anthony Antonov — não é nem tanto a
ideia da segunda vinda de Cristo, que não está no Antigo Testamento mas eu admito
que é compatível de algum modo com o judaísmo, porque nós acreditamos
na ressurreição dos mortos. O problema mesmo é a ideia de que o messias deveria
morrer pelos pecados do mundo, e não simplesmente trazer o reino de Deus para o
mundo. Essa é uma ideia na qual os cristãos se apoiam com o poderoso apelo dos
pecados pessoais cometidos pelas pessoas, e do modo de ser deles redimidas. Ademais
os cristãos julgam que, desde que o Templo de Jerusalém foi destruído pelos romanos a
70 C.E., não há mais o lugar santo onde oferecermos sacrifício de animais, derramando
o seu sangue, mas os fariseus e sábios rabinos elaboraram modos alternativos de
cumprir a lei nessa circunstância. Os cristãos nos acusam de não mais seguir a lei de
Deus, porque está escrito em Levítico 17:11: “Porque a vida da carne está no sangue;
pelo que vo-lo tenho dado sobre o altar, para fazer expiação pelas vossas almas;
porquanto é o sangue que fará expiação pela alma.” Essa passagem de si, no entanto,
não implica necessariamente, e de modo tão explícito, que a reparação pelos pecados
sempre ocorre pelo derramamento de sangue. É comum aos cristãos, começando por
Paulo, o citar erroneamente a tanach, a bíblia do Antigo Testamento. Paulo disse, em
Romanos cap. 11, versículo 26: “E assim todo o Israel será salvo, como está escrito: De
Sião virá o Libertador, e desviará de Jacó as impiedades”. Mas a passagem que ele
cita, Isaías 59:20, diz: “E virá um Redentor a Sião e aos que em Jacó se converterem da
transgressão, diz o Senhor”. O antigo testamento diz “a Sião”, Paulo diz “de Sião”. Sião
é uma fortaleza montanhosa de Jerusalém, centro do culto judeu. A nossa bíblia judaica
diz que o redentor virá a Sião, a bíblia cristã, citando a nossa errado, diz que o redentor
virá de Sião. A nossa bíblia, na mesma passagem, diz que o redentor virá para aqueles
que se converterem da transgressão, mas Paulo cita errado dizendo que o redentor virá e
desviará de Jacó as impiedades. Não, no Antigo Testamento o termo salvação nunca
tem a ver com uma liberação espiritual, mas com uma libertação de perigo físico ou
político, uma exegese a esse respeito não pode ocasionar controvérsia. E se é esse o
caso, o cristianismo só pode parecer suspeito aos olhos daqueles judeus que ouviram a
pregação de Paulo a respeito de o messias ter como propósito salvar sobretudo
espiritualmente, sem trazer o reino definitivo de Deus na terra. A passagem em Levítico
a respeito da reparação por sangue é a única que os missionários cristãos tentam usar em
favor da ideia de Jesus como oferta sacrificial, e da cessação dos sacrifícios pelos judeus
como prova de que a religião judaica não está mais em vigor. Eles têm apenas essa
passagem isolada de Levítico e ela está fora do contexto preciso, e não aponta
claramente ao sentido que eles propõem. A passagem, tomada mais largamente com os
versos que a circundam, diz respeito unicamente a certa proibição de consumir sangue.
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– Quem estude a bíblia judaica perceberá — continuou o quarto Antonov — que a
oferta pelo pecado não era trazida ao altar sacrificial por qualquer pecado cometido, mas
somente quando o pecado cometido não era intencional, quando não era tão grave. E,
como o capítulo 5 de Levítico ilustra, uma oferta de sangue, o animal, para aqueles
destituídos de qualquer posse, podia ser substituída por uma matéria menos cara, como
uma pequena medida de farinha de trigo. Além disso, quando da dedicação do templo
de Jerusalém, o rei Salomão parece haver passado por cima, e omitido, a ideia de algum
ofertório de sangue pelos pecados dos judeus, caso caíssem na idolatria e fossem
dispersos. Ele diz simplesmente que o arrependimento deles, não alguma oferta de
sangue, deveria lhes ganhar o favor de Deus novamente. A mesma ideia, de que um
arrependimento genuíno, não essencialmente uma oferta de sangue, é necessário para a
justificação, está em 2 Crônicas 7:14: “E se o meu povo, que se chama pelo meu nome,
se humilhar, e orar, e buscar a minha face e se converter dos seus maus caminhos, então
eu ouvirei dos céus, e perdoarei os seus pecados, e sararei a sua terra.” Também no
capítulo 33 do profeta Ezequiel, é mencionado que quem quer que cesse de fazer o mal
e passe a fazer o bem, será perdoado, e não se refere aí nenhum sacrifício de sangue. E
bem outras passagens repetem tal ideia.
– Jesus é um de muitos auto-proclamados messias do seu tempo. — Disse o quarto
Antonov. — Ele ilustra que quando se muda um pouco o judaísmo, acaba-se por mudá-
lo de todo. Os seguidores dele, quando ele falhou em trazer o reino messiânico ao
mundo, conforme as profecias, tiveram de argumentar que ele era o messias assim
mesmo, e ainda por cima que de fato o messias devia sofrer muito e ser crucificado para
cumprir a sua missão. As pessoas lhes devem ter perguntado “Mas o que torna a morte
dele especial, quando tantos outros foram mortos?”. Daí deve ter surgido a ideia de que
Jesus era Deus, porque apenas a morte de Deus pode soar tão significativa. E por acaso
a bíblia, o antigo testamento, ensina que o messias iria morrer pelos pecados do mundo?
Os cristãos usam o capítulo 53 do profeta Isaías, sobre o servo sofredor que se sacrifica
pelos outros, conforme está ali retratado. Mas essa passagem de Isaías não dizia
claramente do messias, para os judeus da época, e mesmo para o apóstolo Pedro, que
rejeitava os dizeres de Jesus a respeito da necessidade de o messias sofrer e ser
assassinado. Sempre que essa realidade era mencionada por Jesus, os seus discípulos
reagiam com espanto e choque. E ainda que Jesus fosse o messias, como é que se atesta
empiricamente que ele é o messias? Os critérios mais claros dados a respeito do
messias, no Antigo Testamento (a paz universal, o interesse de todos os gentios pelo
judaísmo, o mundo utópico), são dados empíricos que comprovariam que tal ou qual
indivíduo é o messias. Mas como é que nós podemos ter certeza empírica de que Jesus
morreu pelos pecados e os reparou? Até mesmo a passagem em Isaías de que tanto os
cristãos gostam, foi traduzida erroneamente: Deveria ser pelo hebreu “ele foi
machucado das nossas transgressões” e não, como se usa, “ele foi machucado por
nossas transgressões”, como se se insinuasse uma oferta sacrificial em alternativa à
punição dos transgressores.
– A passagem do Antigo Testamento mais promissora para os cristãos é o livro do
profeta Daniel, capítulo 9. Lá é referido que o messias será assassinado, entre outras
predições. — Continuou Anthony. — Mas, e isso é comprometedor da honestidade com
que missionários cristãos interpretam tal passagem, geralmente a bíblia cristã traduz o
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“messias” na passagem com uma letra maiúscula, como a insinuar que se trata não de
um ungido, de um homem consagrado, mas do messias; entretanto, o hebreu não tem
distinção entre letras minúsculas e maiúsculas. Portanto, os cristãos são desonestos em
apresentar “messias” com o “m” maiúsculo. E ainda por cima é usado na tradução cristã
“o messias”, quando o original usa um artigo indefinido “um messias”, isto é, “um
ungido”. A intenção é propor que sem dúvida tal passagem fala de Jesus. A passagem,
na verdade, sugere dois messias preditos (conforme alguns scholars cristãos admitiram),
um após as primeiras sete semanas, cada dia significando um ano, totalizando quarenta
e nove anos, e outro após as sessenta e duas semanas seguintes, totalizando quatrocentos
e trinta e quatro anos. Esse erro não está presente na versão original da King James
Version, ao menos em parte, eu admito, mas correções ulteriores corromperam o texto.
Algumas traduções modernas, como a New American Version, traduzem igualmente o
sentido de modo correto ao menos em parte. No verso vinte e seis, do capítulo 9 de
Daniel, no original em hebraico, é dito que “o messias será cortado, e não terá nada”,
significando que perderá algo, mas as bíblias cristãs em muitos casos traduzem “o
messias será cortado, mas não por si mesmo”, procurando sugerir de modo infiel à
linguagem do hebreu, que ele seria assassinado em favor de outros.
– A ideia de muitos missionários cristãos — continuou Anthony — de que Deus, por
meio de Daniel, predisse o ano em que o messias surgiria e seria morto, parece ir contra
o bom-senso. Por passagens do Antigo Testamento, se nota uma censura de um tal
procedimento. No capítulo final de Daniel Deus lhe ordena “sela o livro!”, significando,
“não reveles esse conteúdo”. Por que Deus quereria revelar esse tipo de coisa de
antemão? Ainda que a predição no sentido cristão fosse exata, o número de anos dentro
do prazo dado por Daniel, só muito problematicamente se encaixaria com a data em que
Jesus foi morto, pois necessitaria haver uma data precisa para o começo da contagem,
para ficarmos só por aí, porque se eu começar a mencionar que Justino, o mártir,
apologeta a 165 C.E., menciona centenas de passagens do Antigo Testamento mas
nunca Daniel capítulo 9, se eu começar a apontar as muitas evidências que eu tenho,
você vai pular para trás de consternação e dúvida.
– O verdadeiro sentido de Daniel, capítulo 9, é que um certo ungido será cortado. Mas
ser cortado, para a bíblia judaica, invariavelmente significa ser cortado de comunhão
com o povo judeu por conta da iniquidade. — Continuou o quarto Antonov. — A
passagem em Daniel faz alusão a um profeta anterior, Jeremias. Ele, Jeremias,
profetizou que a Babilônia seria destruída setenta anos depois de certo evento ligado ao
exílio e captura dos judeus pelo rei Nabucodonosor. Depois os judeus retornariam para
Jerusalém. A primeira profecia, a queda do império da Babilônia, Daniel viu que se
realizou, mas a segunda, a volta dos judeus, ele viu que não se realizara. É porque ele
ansiava pela volta dos judeus que ele suplicava a Deus, na passagem, e esse é o
verdadeiro contexto do capítulo, o anseio pela volta dos judeus, o anseio por uma
clarificação a esse respeito, e não uma predição a respeito do messias. Mas, é claro, a
passagem diz que as setenta semanas, cada ano para cada dia, foram decretadas para o
cumprimento do fim das transgressões e reparação pelas iniquidades, para o
estabelecimento da retidão. Essas coisas não sucederam dentro do prazo que os cristãos
estipulam: Ainda que as setenta semanas tenham passado, com o cumprimento de
alguma profecia sobre o messias, Jesus não eliminou a iniquidade e trouxe a retidão
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eterna à terra. O anjo Gabriel informa Daniel que um príncipe ungido, que se verificou
foi o imperador Ciro, o persa, haveria de proclamar a reconstrução de Jerusalém; e
Isaías, o profeta, confirmou que Ciro foi considerado um messias aos olhos de Deus,
uma vez que o termo “messias” tem várias acepções na bíblia. O príncipe ungido
surgiria para lançar e proclamar a reconstrução de Jerusalém, como de fato ocorreu,
dando início à contagem de sete “semanas”, que são quarenta e nove anos. A
reconstrução do templo se finalizaria em sessenta e duas “semanas”, mas em tempos
turbulentos e dificultosos, o que se verificou, porque muitos impérios constrangeram os
judeus, por exemplo o selêucida à época dos macabeus, e ao fim das sessenta e duas
semanas a permanência do templo seria resistida. A discrepância entre a expectativa
frustrada inicial de Daniel, e a profecia de Jeremias é explicada pelo fato de Jeremias ter
profetizado a volta dos judeus não a partir da conquista de Jerusalém por
Nabucodonosor, mas a partir da destruição do templo, que só ocorreria anos depois da
conquista. Se a volta dos judeus realmente foi predita setenta anos após a destruição do
templo, ao momento em que o anjo Gabriel falava a Daniel, o decreto ou proclamação
de Ciro estaria à porta, quase chegando. E só através de uma tal contagem, as primeiras
sete semanas começando da proclamação de Ciro para a reconstrução, que pode a
passagem conter o sentido de uma mensagem que conforta e encoraja o profeta Daniel,
porque ele saberia da proclamação próxima. Mais adiante a passagem em Daniel refere
que esse templo reconstruído seria destruído novamente, e o ungido, que provavelmente
seria um rei, ou um sumo-sacerdote, seria cortado. Aqui faz todo o sentido que um
ungido, um messias, seja cortado, e “não tenha nada”, como refere a passagem; a
tragédia da destruição do templo é enfatizada com a menção da queda de alguém
responsável por ele. E a passagem continua com a menção de uma invasão, que se
verificou historicamente ser a dos romanos sobre Jerusalém. Essa contagem de modo
algum coincide com a contagem de alguns cristãos, que datam a proclamação para
reconstruir Jerusalém a partir de outro evento posterior referido no Antigo Testamento,
e não da proclamação de Ciro. Além disso, como eu referi, eles entendem a contagem
de um modo diferente. A destruição do templo não acontece em uma data específica,
segundo a profecia, mas é referido ligeiramente, como ocorre “depois das sessenta e
duas semanas”. A posição judaica é mais fiável, portanto.
O velho Marcondes mirou o jovem impressionado, e abobado. Não sabia o que replicar.
– Muito bem, muito bem… — balbuciou ele.
– Anthony. — Tornou o jovem.
– Ah Anthony! O senhor tem uma opinião dura de se ouvir, senhor. — Respondeu o
velho Marcondes. — Eu não sei bem o que dizer, ou como responder a cada ponto.
Mas, creia, não está abalada em nada a minha confiança no evangelho de Jesus Cristo.
Você se rirá, atribuindo a mim o slogan “a bíblia o diz, eu lhe acredito, e isso resolve a
questão”. Mas crê-me, há algo que posso opor ao que disseste.
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– O que seria? — Se riu o Sr. Antonov, o quarto deles.
– O método que escolho para replicar será a simplicidade, e entretanto não endereçarei
um ponto apenas, mas três. É melhor que endereçar milhares de pontos, e os há. A
comunidade judaica está bem familiarizada com os muitos argumentos contra o
cristianismo propugnados por brilhantes ativistas em favor da vossa religião, como o
rabino Michael Skobac. Se eu replicasse a cada um dos incontáveis argumentos
certeiros que ele propôs, eu pareceria com o protestante James White, o qual costuma
usar a arma da copiosidade. Mas isso causa enfado e confusão, quando essa copiosidade
não forma por si um sistema resumível em poucos traços marcantes. Eu também
gostaria de notar de passagem, como talvez você saiba, que o sentido no qual o sangue
derramado de Cristo salva, foi discutido mas muito mal clarificado mesmo entre
católicos, e você criticou essa necessidade sacrificial só no sentido protestante, porque
Santo Anselmo elaborou uma teoria da reparação pelos pecados na qual, em
inconformidade com o calvinismo, Cristo não recebe a punição devida aos pecadores,
mas eleva a retidão própria conforme os pecadores não puderam; em Santo Tomás não
sucede que Jesus faz qualquer reparação direta pelos pecadores, mas o seu sacrifício
possibilita que eles tomem parte na justiça de Cristo pelo contato com ele, pela
comunhão com ele como modelo e luz que testemunham (o que é referência aos
sacramentos). — Disse o velho.
– O primeiro ponto vem de que embora as más citações que você atribui aos
evangelistas possam ser toleradas por vocês, segundo o rabino Skobac, como
interpretações mais latas, as midrash, não há nenhuma indicação inequívoca de
conceitos como a Trindade, a Encarnação, etc. O cristianismo é para os judeus como o
islã é para nós católicos, uma espécie de leitura ulterior que procurou absorver e mudar
algo que já existia para outra completamente diferente, e se se quiser, para outra coisa
bizarramente diferente, para algo chocante que significa o colapso e a destruição de tudo
quanto se preza e guarda, de tudo quanto seja a tradição e o senso sadio do certo e do
errado. — Continuou o Sr. Marcondes. — E embora seja bastante compreensível que os
judeus tenham tal impressão, nem isso significa que o atual estado da religião deles não
seja problemático aos olhos deles mesmos, nem significa, como eles mesmos admitem,
que eles tenham um domínio cognitivo, intelectual, do que está se passando. Um indício
disso é que certos judeus com quem falei, não aqueles que aderiram a organizações
como “Judeus por Jesus”, não aqueles, e sim os que jamais se submeterão ao rito
batismal, certos judeus não só alegam que creem privada e informalmente em Jesus,
mas que outros como eles também o fazem. Há histórias na mídia secular, que procura
ridicularizar as comunidades hassidistas americanas, sobre como os pais judeus mantêm
as crianças ignorantes de que existem dinossauros, etc., porque isso contradiz a bíblia e
o número de dias bíblicos desde a criação, que para os judeus não são milhões ou
bilhões de anos, mas apenas milhares. Existe uma dificuldade dramática e espantosa, da
qual todas as religiões do mundo padecem mais ou menos, em dias de disseminação
relativa da informação (como vivemos agora). Como organizar essas informações, e
extrair daí as conclusões e as teses filosóficas das quais nos assegurar da nossa visão de
mundo? Por que vale a pena ser judeu, ou cristão, ou mesmo ateu?
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– Os ateus — continuou o velho — têm uma fórmula para descrever o quão absurdo é o
cristianismo: “A crença de que um zumbi-judeu cósmico pode fazer você viver para
sempre se você simbolicamente comer da carne dele e telepaticamente dizer-lhe que lhe
aceita como mestre, para que ele possa remover da sua alma uma força maligna que está
presente na humanidade porque uma mulher nascida de uma costela se deixou
convencer por uma serpente falante de que devia comer de uma árvore mágica”.Os
ateus semelhantemente demonstrarão que o fenômeno conhecido como mormonismo é
muito parecido com um delírio esquizofrênico, uma religião na qual todo tipo de
absurdo é crido, como as mágicas placas de ouro contendo a nova revelação, e uma
suposta civilização perdida na qual foi anunciado o evangelho. Sem ofensa, Steve.
– De modo algum, eu nem creio que você seja católico mesmo, não me surpreende em
nada. — Notou Steve com indiferença.
– Larry Levey — continuou o velho –, um judeu que se decepcionou com uma
experiência na organização “Judeus por Jesus”, descreveu, com escárnio, o que os
protestantes chamam “ser nascido de novo” como um tipo de experiência paralela
àquela do filme “Invasores de Corpos”. Esses exemplos mostram como é possível que
seja bem aparente para alguns o que há de bizarro em outros e em outras
religiões. Shabbetai Tzvi e os judeus que o consideraram o messias no séc. XVII, a
mulher que canalizava mensagens de extraterrestres sobre um dilúvio, tudo isso parece
bizarro; para não falar de homens, como o papa Michael de que falávamos há pouco; há
também o auto-intitulado papa Adriano VII, que pertenceu a uma organização hoje
sedevacantista, a CMRI, o qual foi expulso porque, além de chefiar a organização de
sacerdotes usando as vestes papais, ele acordava no meio da noite indivíduos que
tinham feito voto de castidade, e lhes convidava a relações homossexuais. Um outro
exemplo é o místico Willian Kamm, o qual por um tempo alegou ser o papa, e disse
também que a virgem Maria lhe tinha prometido oitenta e quatro esposas místicas, que
teriam com ele o papel de repovoar o mundo depois que uma bola de fogo o
consumisse, e uma dessas esposas seria uma moça de quinze anos que participava da
comunidade de Kamm em New South Wales, Australia. Há muitas teses, opiniões, e
crenças diferentes espalhadas pelo mundo, e certos ateus, como o Dr. Carrier, procuram
enfatizar que à época do apóstolo Paulo, no Império Romano, embora o cristianismo se
tivesse espalhado por muitos lugares, as comunidades cristãs tinham em média de vinte
a cem participantes, e o número de cristãos no mundo todo era tremendamente mais
reduzido que o número de judeus, os quais, ao séc. III, mal conseguiam compor dez por
cento do Império. O cristianismo é apenas uma seita, dentro de centenas de outras, que
foi bem sucedida porque, pela lógica, alguma dessas muitas seitas tinha de
eventualmente assumir proeminência. E por que a verdadeira seria o judaísmo, o qual
por sua vez os ateus não têm muita dificuldade em também escarnecer? Os ateus
geralmente não têm muita paciência, e se pode inferir familiaridade, com os filósofos
que criam em deidades, embora dessas filosofias tenham surgido certamente os meios
de encontrar a resposta mais responsável para tais questões. Por exemplo, o Dr. Carrier
pareceu desautorizar Aristóteles em uma conferência da Rapture Day, alegando que a
concepção científica do filósofo era bastante rudimentar. Rudimentar ou não, se sabe
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que Hiedegger aconselhou que se não lesse Nietzsche sem catorze anos prévios de
Aristóteles. Rudimentar ou não (o apego aristotélico à ciência), nós sabemos o seguinte:
Os scholars Eric Voegelin e Hans Kelsen ilustraram algo espantoso. Todos sabem que a
concepção ateística de ciência é positivista, e Voegelin (grande leitor de Aristóteles)
escreveu uma crítica severa à essa concepção; Voegelin e Kelsen vieram da mais
brilhante geração de scholars austríacos que o mundo já viu; Kelsen, um jurista e
cientista político de grande fama nos EUA, esboçou uma crítica escrita a esse trabalho
de Voegelin sobre o positivismo (o trabalho se chama The New Science of Politics),
mas algumas observações de Voegelin por escrito foram suficientes para fazer Kelsen
desistir de publicar a sua oposição. Isso significa que o positivismo, que é inseparável
do discurso e lógica dos ateus, é também uma tese absurda, algo que um estudioso
experimentado teria vergonha de defender em público. A concepção ateística do que
seja ciência é uma piada, é uma paródia da ciência. Se as religiões são aberrações,
também o ateísmo, e o agnosticismo, muito semelhantes entre si, não são saídas, mas
sintomas do problema.
– Então — continuou o velho — será que o homem está fadado a crer no absurdo? Será
que são a loucura e o erro inevitáveis de algum modo no homem? Parece ser essa a
conclusão que Manly Palmer Hall propõe no livro Os Ensinamentos Secretos de Todas
As Épocas, no qual ele mostra de modo espantoso o quanto as teses filosóficas têm de
limitadas, como se fossem veleidades pueris, o fruto de um projeto incompatível com a
natureza humana. É por causa disso, talvez, que o naturalista britânico de anos recentes,
Colin Patterson, a despeito de estar na posição mais favorável para atestar a verdade do
evolucionismo darwinista, a despeito de acusar criacionistas de abusar de suas opiniões
públicas, prefere uma postura cética, e não levar muito a sério os registros fósseis como
matéria para conclusões definitivas. Então, temos um problema: Em que acreditar?
Porque, como se sabe, toda opinião e crença pode ser escarnecida, eu posso dizer dos
ateus que se assemelham àquela seita de suicidas do Jim Jones, já que todo ateu,
sobretudo os ativistas, quer que lhes demos as mãos em suas convicções para
juntamente pularmos no mar da inexistência determinada pelo acaso, após a morte. De
fato, há algo de consideravelmente bizarro e incitador de estranhamento no ateísmo. O
que é a verdade, quando eu sei que a encontrei, uma vez que podemos tão facilmente
nos enganar? Para minha surpresa, eu me vi forçado a admitir para mim mesmo que não
há impedimentos de idade, ou mesmo, muio claramente, de conhecimento, para que se
adote uma cosmovisão. Um ateu extremamente culto como Paulo Francis, se tornou
ateu aos quatorze anos. Christopher Hitchens, o ateu falecido, se deu conta não do
ateísmo, mas de uma chocante inconsistência na visão de mundo dos religiosos quando
uma simples criança, porque a professora dissera que Deus tinha feito as árvores de cor
verde porque é cor mais amena aos nossos olhos. A sensação de que somos nós que nos
adaptamos ao mundo externo, e não o contrário, fez que ele se sentisse chocado com a
pouca percepção dos religiosos. De outro lado, uma tese do espiritista Camille
Flamarion, a de que os espíritos não retornam mais a esse mundo, passando a habitar
outros mundos, foi abandonada por ele após ele ter se assegurado dela por um tempo, e
após ter se confirmado nela com quarenta anos de estudo. Flamarion não era um idiota,
mas o fundador de um observatório astronômico francês. Também os católicos e
protestantes creem que a admissão da fé verdadeira pode ser alcançada em qualquer
idade (desde que se tenha o uso da razão), e os católicos em particular afirmam que as
crianças ainda sem o uso da razão, se batizadas, estão revestidas da fé, ou do hábito da
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fé. E ademais pode, a admissão da fé verdadeira, ser alcançada por pessoas de qualquer
origem; de fato, ainda que alguns apontem que estatisticamente as pessoas não mudem
de religião. Por que as pessoas creem? Porque elas têm a demonstração? Não, nem
mesmo os ateus alegam ter essa demonstração, mesmo Dawkins alega não poder dizer
“eu vejo com toda a certeza que não há um Deus”.
– Eu proponho para o Sr., meu caro Anthony — continuou o velho Marcondes — que o
modo com que os homens creem é o modo com que se apaixonam. Chesterton, autor a
quem Scott Fitzgerald (talvez o maior escritor americano de seu tempo) se dedicou a ler
com afinco e obsessão, Chesterton nota que se apaixonar é como ser pobre. É ser
alguém paciente, a quem algo acontece, alguém que não controla o que se lhe acontece,
como os ricos que procuram determinar o curso das suas vidas. O louco é o indivíduo
que perdeu tudo, menos a razão, porque, quem tem melhores razões que um paranoico,
quem melhor argumenta que ele? Ele que não controla a realidade em que vive, como
um pobre, ou um apaixonado, é mais são, tem mais o pé no chão. Aquele que percebe
que a realidade lhe resiste, e não se lhe dobra, aquele que percebe que é paciente, mais
que agente, tem o pé no chão. Aquele que percebe que tudo pode mudar de um
momento para o outro, que não devemos presumir de antemão o que é a regularidade,
que não sabemos porque agimos desta ou daquela maneira; aquele que percebe essas
coisas, percebe que o mundo em que vivemos se assemelha de certo modo mais a um
conto de fadas do que a conto realista, e de fato eu ouso dizer que histórias modernas da
literatura, como as que se pode verificar em um autor como Evelyn Waugh, são de tal
modo contra-intuitivas e fantásticas, inclusive algumas passagens que conheci de James
Joyce, que não nos devemos fiar muito de que conhecemos o mundo. De fato o mundo,
não apenas no seu vasto e intimidador aspecto físico, mas no seu aspecto humano, é um
grande enigma e a tentativa de abarcar esse enigma se mostrou sempre um sintoma do
mesmo. Viram uma tese e apologia do humanismo em Nietzsche, o qual ridicularizou o
humanismo; a visão dele sobre como o fiar-se no espírito e iniciativa humanos é algo
ridículo, é contraditória com a visão que a atitude mesma que ele toma encerra: Ele age,
ou agiu como um espírito criativo, como uma encarnação do humanismo. O mais
perspicaz filósofo vai ser confundido pelo abismo da realidade.
– E entretanto, de tudo isso parece certo que, a despeito de a religião ser para nós como
a pobreza a que nos submetemos involuntariamente, como o amor com que nos vemos
forçados a nos apaixonar sem o nosso consentimento, nós podemos e conseguimos
rejeitar a religião e a condição de religiosos, assim como há meios, escusos ou não, de
abandonar a pobreza, e mesmo de fazer morrer o nosso amor. — Disse o Sr. Marcondes.
— Em tais casos aquilo que nos leva a abandonar a condição de paciente, é um anseio
por controle. Imagina um jovem, de treze ou menos anos, que se apaixona por sua
colega de escola. Ele passa as noites em angustia, e ninguém sequer lhe ensinou o que
fazer. Ele não sabe por que se apaixonou, o objeto da sua paixão, a moça, ele não é
capaz de antever os pensamentos dela, o que dirá, ela é um mistério para ele. Ele não
sabe como os familiares dele verão o seu sentimento, e portanto procura escondê-lo, ele
não sabe o que ela ou a família dela dirão. Ele não sabe se é o rapaz certo, se é a hora
certa, o que afinal quer fazer com ela, uma vez que o sexo, sem mencionar a prematura
idade que têm, é algo animalesco e indigno, em si mesmo, do que ele sente. Imagine
que esse rapaz passa a achar o seu sentimento tolo e absurdo enquanto,
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simultaneamente, esse sentimento lhe revolve a alma e exaspera como um doente em
agonia. Chega o final do ano e ela, que é sua colega de escola, vai ter de se mudar para
outra cidade. Imagina só, então, o desespero que ele sente quando se aproximam os
últimos dias de aula, e pior, o último dia. Como não é terrível vê-la sorrir ao falar com
outros colegas. Ele chega em casa, paralisado com a própria dor, ele vê que é
surpreendente que alguém da sua idade seja obrigado a assumir a responsabilidade e o
testemunho de algo tão grave. Eu não exagero, mas creio que muitas pessoas se
identificariam com tal descrição, inclusive o famoso escritor Henry Miller, que se
expressou ligeiramente, e isso é compreensível, a respeito do mesmo fenômeno. O feio
e o bruto, nós nos estendemos nessas coisas sem dificuldade, nós conseguimos vê-las,
mas aquilo que é sublime, e por isso mesmo pode ser terrível, ah isso nós guardamos no
depósito de lembranças que jamais consultamos. A visão do que é sublime é a
visão simultânea de como somos insignificantes, a visão do que é grande e belo, é a
visão de como somos pequenos e “feios”. A visão de como não temos o controle
cognitivo, é a visão de que há coisas que ultrapassam em muito a nossa compreensão.
Não adianta, portanto, se argumentar contra a religião que ela é bizarra, ou contra o
cristianismo protestante que é bizarro, só há a garantia de que se está mirando o
sobrenatural, e portanto que se pode mirar essas religiões no seu fundamento, se se é
capaz de ver a própria pequenez, se se está nessa condição. E como observou John
Henry Newman, no calvinismo apenas, não na concepção católica, é evidente qual é o
status de cada alma, quem é santo e quem não é, porque isso só Deus sabe, nem
mesmo amiúde o santo sabe, porque pode haver santos que não parecem sãos (Dom
Bosco foi acusado de louco por outros padres), e pecadores que parecem santos. A
verdade religiosa, portanto, e ao que parece, é algo que é testemunhado no íntimo de
modo simultâneo a uma certa condição moral que as pessoas não podem atestar ou
verificar com facilidade, como se vissem essas realidades desde fora. E é possível
rejeitar uma verdade sublime que nós conhecemos perfeitamente no íntimo e
na consciência? É claro que sim. Retornemos ao moço apaixonado. Ele passa anos sem
ver a sua amada, e às vezes, sem querer, se distrai com a esperança ligeira de a rever. É
um grande incômodo. Sucede porém que ela torna à cidade, e à escola; eles já
envelheceram um pouco, já são mais maduros adolescentes; ele ainda nutre por ela o
mesmo sentimento, e ainda, do mesmo modo, a ama. Ainda, do mesmo modo, não
consegue se expressar. Por algum motivo ele não tomou a decisão convicta de esperar
por um sucesso com ela. Ele tem receio de como as coisas serão, dos muitos
constrangimentos que a vida prenuncia, de todas as realidades que parecem contradizer
o sentido de tal sentimento. Ele vê tal paixão, e sabe no íntimo que não apenas é real,
mas dolorosa. Entretanto, ele quer um controle sobre a vida, um controle que
necessariamente deprimiria e esvaziaria a vida; ele quer escolher a moça com quem se
ligar, ele quer se precaver e se blindar de antemão, contra o que não pode antever, ele
quer um mundo criado por ele, ele quer ser “realista” e não como os homens que vivem
um sonho acordado. Ele é covarde demais para se desviar do fracasso, portanto quando
surge a oportunidade, quando ela e ele conversam casualmente, de modo íntimo (devido
aos muitos anos de contato), e quando ela expressa que se sente pouco realizada
amorosamente, o coração dele palpita, e ele, de modo absurdo, se agarra ao menor
pretexto para a recusar. Ela engordou, ou não é a mesma pessoa que conheceu quando
menor (mas nem ele próprio acredita em tais pretextos), ela e ele, ele sente, têm destinos
diferentes e só momentaneamente ligados. A felicidade verdadeira tem um conteúdo
determinado, não se baseia na beleza dela ou nos bons sentimentos dele, mas
parafraseando Michel de Montaigne a respeito de um amigo de prenome Etienne, se
pode dizer que ele a amava “porque era ela, porque era ele!”. É assim que se fazem os
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fracassados, pela recusa em reconhecer, na grandeza alheia, a própria vulnerabilidade
e insignificância. Eu, é claro, como todo homem sou exatamente assim. Há pessoas tão
orgulhosas que não admitirão que outro tem algum conhecimento ou expertise que elas
não têm, como o jovem apaixonado, elas convencerão a si mesmas que o domínio que o
outro tem da sua disciplina não é tão grande, ou tão impressionante. Há os que esperam
o pior dos outros. Há os que, contra a própria consciência, cometem uma injustiça para
não reconhecer que erraram.
– Tudo isso se aplica a questões religiosas. — Disse o Sr. Marcondes. — Se os fanáticos
e membros de seitas que propugnaram loucuras nós julgamos severamente, é, me
parece, por não vermos em nós mesmos o nosso ridículo e orgulho, porque todos os
homens de algum modo, pela mancha do pecado original, têm certa inclinação para criar
e propor uma “verdade nova”, que não é a verdade pura e simples, e isso contra todas as
evidências. Então o meu primeiro ponto, dos três que eu queria levantar, e por causa
dele fiz todo esse rodeio, é: Eu peço que você tenha cautela no modo de ver a questão e
lembre o quanto somos todos inclinados a negar e recusar o que é bom, porque somos
maus. Eu ilustro isso do seguinte modo: O famoso Testimonium Flavianum, o relato de
Flávio Josefo sobre Jesus, segundo dizem supostamente escrito a 93 A.D., foi acusado
de falsificação, e dizem mesmo que o bispo Eusébio de Cesareia criou essa interpolação
no texto do historiador ao séc. IV, além de citar a passagem cheia do texto que
consideram duvidoso. O texto é assim: “Por esse tempo [quando Pilatos era procurador
na Judeia] vivia Jesus, um sábio, se de fato deva ser considerado um homem. Era
alguém que realizava obras surpreendentes e era um professor dos que aceitam de bom
grado a verdade. Ele conquistou muitos judeus, e muitos dos gregos. Ele era o messias.
E quando esteve diante da acusação dos principais homens dentre nós, Pilatos o
condenou à cruz, mas aqueles que já o amavam não cessaram. Ele apareceu a eles
passado o terceiro dia trazido de novo à vida, porque os profetas de Deus predisseram
essas coisas e mil outras maravilhas sobre ele. A tribo dos cristãos, assim chamada após
ele, não desapareceu até este dia”. Há quem rejeite como se referindo a esse mesmo
Jesus uma outra passagem, bem mais ligeira, em Josefo. Por outro lado, a tese de que
esse texto essencialmente corresponde ao original, com poucas interpolações ulteriores
teve muita acolhida pelos scholars, e por mais de um motivo, o principal deles é que
todos os manuscritos antigos em Josefo trazem essa passagem.
– O que você desejou ilustrar com isso? — Perguntou Anthony.
– Que Jesus deve ter feito mesmo “obras surpreendentes” entre os judeus, e que mesmo
que todo o relato dos evangelhos seja fidedigno, ainda não é contraditório com a
natureza humana que o tivessem rejeitado. Eu vejo isso não como uma negação da
teoria da dissonância cognitiva, mas como uma teoria expandida da dissonância
cognitiva. — Respondeu o velho.
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Anthony Antonov sentiu um pouco de contrariedade, mas como achava interessante
essa fala, manteve-se a ouvir.
– A desconstrução do cristianismo que você empreendeu , e esse é meu segundo ponto
— continuou o velho — foi de algum modo algo de que o próprio judaísmo foi vítima,
porque certo livro de Eric Voegelin, Order And History: Israel And Revelation, põe em
dúvida de vários modos, por meios filológicos, a exatidão e verdade do texto bíblico, e
Voegelin é um dos scholars mais intimidadores que pode haver, algo que o próprio
Kelsen admitiria, mas que também é demonstrado pelo fato de ele extrair conclusões
sutis frequentemente desde uma quantidade significativa de teses contraditórias,
mostrando que refletiu para trás e adiante tudo quanto diz. O livro está cheio de notas de
rodapé que nunca verificaremos na fonte.
– Essa segunda tese é ridícula. Qual a terceira? — Perguntou Anthony.
– A terceira é simples como as anteriores. — Disse o Sr. Marcondes. –Toda a oposição
dos judeus ao cristianismo, ao menos na atualidade, se baseia não apenas em que os
relatos do Novo Testamento não são fidedignos, mas que o cristianismo passou por uma
mutação de seita judaica para seita que admite pessoas que não observam a torá, e tal
por causa de Paulo. Os apóstolos promoviam uma variação do judaísmo, e Paulo,
entrando em um processo de contínuas pequenas alterações, e tentando indicar como
fácil o acesso ao cristianismo, deu o golpe de misericórdia no ramo cristão do judaísmo,
separando-o dessa árvore para sempre, ao ponto de alguns judeus messiânicos da
atualidade assegurarem que a Santíssima Trindade é um conceito pagão estranho à
pregação do messias. Os apóstolos, supostamente, pregavam os mandamentos de Jesus,
e Paulo, revolucionando todo o entendimento daquela seita, passou a pregar Jesus em
vez dos mandamentos de Jesus. A crença em Jesus, não a submissão à lei como aparente
na epístola de São Tiago Apóstolo, passou a ser a essência do cristianismo, para trazer
novos adeptos mais fácil. Se eu puder demonstrar que Paulo não acreditava em sola
fide, que a fé sem obras é o caminho para a salvação, a sua tese em favor de Paulo ter
criado o cristianismo, se despedaça como um castelo de cartas. De fato há muitos
indícios de que Paulo não criou todos os ritos e concepções cristãs. Por exemplo o
rabino Skobac cita o bispo Santo Irineu de Lyon e outros (que escreveu a 180 A.D.),
como tendo observado que os cristãos judaizantes se opunham a Paulo, mas o mesmo
Irineu atribui o prestígio perene de Roma não apenas a Paulo, mas a Pedro. E o mestre
de Irineu, isto é, Policarpo de Esmirna (região turca), era discípulo e aprendeu com o
apóstolo João, não com Paulo. Um sacramentário é um livro com instrução para a
realização de ritos e sacramentos. Hipólito de Roma, falecido a 235 A.D., fundou um
grupo cismático dentro da Igreja, e o sacramentário que usava, especificamente a parte
para a consagração de bispos, tem forte semelhança com o rito usado mais de um século
depois por Santo Atanásio no Egito, o que fortemente sugere, até onde me parece, que a
geração anterior à de Hipólito deve ter se baseado em um sacramentário idêntico, e essa
geração é a geração de Irineu, que vem da linhagem de João, não de Paulo. Em um
debate sobre a nova missa do séc. XX, entre o irmão Peter Dimond e William Albrecht,
foi mencionado que de dezenas de anáforas, ou cânons de missa antigos, todas têm uma
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fórmula de consagração eucarística idêntica quanto à mensagem ali identificável de
união de Cristo com a Igreja, mesmo quando o cânon tem algumas ideias heréticas,
dos monofisitas ou outros grupos. Irineu, junto a esse fato, parece indicar que há de fato
uma comunhão de fé entre todos os apóstolos e Paulo, há, como escrito por Paulo na
década de cinquenta A.D., “um Senhor, uma fé, um batismo”. Portanto se eu puder
demonstrar que Paulo cria na necessidade de se fiar nos mandamentos, e não na fé
apenas como creem os protestantes, a tese de que Paulo pregava sola fide para atrair as
pessoas, e de que ele pregava o que era estranho aos apóstolos, sofrerá um grande
abalo.
– A justificação é um veredito de absolvição, velho, não uma infusão de justiça. —
Disse Peter Antonov. — Deuteronômio 25:1: “Quando houver contenda entre alguns, e
vierem a juízo, para que os julguem, ao justo justificarão, e ao injusto condenarão”. 1
Reis 8:32: “Ouve tu, então, nos céus e age e julga a teus servos, condenando ao injusto,
fazendo recair o seu proceder sobre a sua cabeça, e justificando ao justo, rendendo-lhe
segundo a sua justiça”. 2 Crônicas 6:23: “Ouve tu, então, desde os céus, e age e julga a
teus servos, condenando ao ímpio, retribuindo o seu proceder sobre a sua cabeça; e
justificando ao justo, dando-lhe segundo a sua justiça”. Salmos 143:2: “E não entres em
juízo com o teu servo, porque à tua vista não se achará justo nenhum vivente”. Êxodo
23:7: “De palavras de falsidade te afastarás, e não matarás o inocente e o justo; porque
não justificarei o ímpio”. Jó 32:2: “E acendeu-se a ira de Eliú, filho de Baraquel, o
buzita, da família de Rão; contra Jó se acendeu a sua ira, porque se justificava a si
mesmo, mais do que a Deus”. Provérbios 17:5: “O que escarnece do pobre insulta ao
seu Criador, o que se alegra da calamidade não ficará impune”. Isaías 5:22-23: “Ai dos
que são poderosos para beber vinho, e homens de poder para misturar bebida forte; dos
que justificam ao ímpio por suborno, e aos justos negam a justiça!”. Romanos 3:19-20:
“Ora, nós sabemos que tudo o que a lei diz, aos que estão debaixo da lei o diz, para que
toda a boca esteja fechada e todo o mundo seja condenável diante de Deus. Por isso
nenhuma carne será justificada diante dele pelas obras da lei, porque pela lei vem o
conhecimento do pecado”. Gálatas 3:11: “E é evidente que pela lei ninguém será
justificado diante de Deus, porque o justo viverá pela fé”. Romanos 5:16: “E não foi
assim o dom como a ofensa, por um só que pecou. Porque o juízo veio de uma só
ofensa, na verdade, para condenação, mas o dom gratuito veio de muitas ofensas para
justificação”. Romanos 8:33-34: “Quem intentará acusação contra os escolhidos de
Deus? É Deus quem os justifica. Quem é que condena? Pois é Cristo quem morreu, ou
antes quem ressuscitou dentre os mortos, o qual está à direita de Deus, e também
intercede por nós”. Romanos 9:30-32: “Que diremos pois? Que os gentios, que não
buscavam a justiça, alcançaram a justiça? Sim, mas a justiça que é pela fé. Mas Israel,
que buscava a lei da justiça, não chegou à lei da justiça. Por quê? Porque não foi pela fé,
mas como que pelas obras da lei; pois tropeçaram na pedra de tropeço”.
– Lucas 10:29: “Ele, porém, querendo justificar-se a si mesmo, disse a Jesus: E quem é
o meu próximo?” — Conitnuou Peter. — Mateus 12:37: “Porque por tuas palavras serás
justificado, e por tuas palavras serás condenado”. Por todas essas passagens, e certos
exames feitos mesmo por católicos, muitos teólogos católicos admitem o caráter
forense, relativo a corte de justiça, da justificação, de ser considerado justo por Deus. É
o caso de Joseph Fitzmyer, professor da Catholic University of America em
Washington, D.C.; a ideia de justificação forense está em Lucas 18:9-14: “E disse
também esta parábola a uns que confiavam em si mesmos, crendo que eram justos, e
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desprezavam os outros: Dois homens subiram ao templo, para orar; um, fariseu, e o
outro, publicano. O fariseu, estando em pé, orava consigo desta maneira: Ó Deus, graças
te dou porque não sou como os demais homens, roubadores, injustos e adúlteros; nem
ainda como este publicano. Jejuo duas vezes na semana, e dou os dízimos de tudo
quanto possuo. O publicano, porém, estando em pé, de longe, nem ainda queria levantar
os olhos ao céu, mas batia no peito, dizendo: Ó Deus, tem misericórdia de mim,
pecador! Digo-vos que este desceu justificado para sua casa, e não aquele; porque
qualquer que a si mesmo se exalta será humilhado, e qualquer que a si mesmo se
humilha será exaltado”. A justificação é pela fé apenas, e não por obras. Romanos 1:16:
“Porque não me envergonho do evangelho de Cristo, pois é o poder de Deus para
salvação de todo aquele que crê; primeiro do judeu, e também do grego”. Romanos
3:20: “Por isso nenhuma carne será justificada diante dele pelas obras da lei, porque
pela lei vem o conhecimento do pecado”. Romanos 3:25-28: “Ao qual Deus propôs para
propiciação pela fé no seu sangue, para demonstrar a sua justiça pela remissão dos
pecados dantes cometidos, sob a paciência de Deus; para demonstração da sua justiça
neste tempo presente, para que ele seja justo e justificador daquele que tem fé em Jesus.
Onde está logo a jactância? É excluída. Por qual lei? Das obras? Não; mas pela lei da fé.
Concluímos, pois, que o homem é justificado pela fé sem as obras da lei”. Romanos
4:2-5: “Porque, se Abraão foi justificado pelas obras, tem de que se gloriar, mas não
diante de Deus. Pois, que diz a Escritura? Creu Abraão a Deus, e isso lhe foi imputado
como justiça. Ora, àquele que faz qualquer obra não lhe é imputado o galardão segundo
a graça, mas segundo a dívida. Mas, àquele que não pratica, mas crê naquele que
justifica o ímpio, a sua fé lhe é imputada como justiça”. Romanos 4:13-14: “Porque a
promessa de que havia de ser herdeiro do mundo não foi feita pela lei a Abraão, ou à
sua posteridade, mas pela justiça da fé. Porque, se os que são da lei são herdeiros, logo a
fé é vã e a promessa é aniquilada”. Romanos 5:1: “Tendo sido, pois, justificados pela fé,
temos paz com Deus, por nosso Senhor Jesus Cristo”. Romanos 10:4: “Porque o fim da
lei é Cristo para justiça de todo aquele que crê”. Gálatas 2:16: “Sabendo que o homem
não é justificado pelas obras da lei, mas pela fé em Jesus Cristo, temos também crido
em Jesus Cristo, para sermos justificados pela fé em Cristo, e não pelas obras da lei;
porquanto pelas obras da lei nenhuma carne será justificada”. Gálatas 3:10-11: “Todos
aqueles, pois, que são das obras da lei estão debaixo da maldição; porque está escrito:
Maldito todo aquele que não permanecer em todas as coisas que estão escritas no livro
da lei, para fazê-las. E é evidente que pela lei ninguém será justificado diante de Deus,
porque o justo viverá pela fé”. Filipenses 3:9: “E, na verdade, tenho também por perda
todas as coisas, pela excelência do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor; pelo qual
sofri a perda de todas estas coisas, e as considero como escória, para que possa ganhar a
Cristo, e seja achado nele, não tendo a minha justiça que vem da lei, mas a que vem pela
fé em Cristo, a saber, a justiça que vem de Deus pela fé”. 2 Timóteo 1:9-10: “Que nos
salvou, e chamou com uma santa vocação; não segundo as nossas obras, mas segundo o
seu próprio propósito e graça que nos foi dada em Cristo Jesus antes dos tempos dos
séculos; e que é manifesta agora pela aparição de nosso Salvador Jesus Cristo, o qual
aboliu a morte, e trouxe à luz a vida e a incorrupção pelo evangelho”.
– A justificação é uma declaração feita uma vez e para sempre, uma declaração de
absolvição, e não um processo. — Continuou Peter Antonov. — Hebreus 10:9-
10: “Então disse: Eis aqui venho, para fazer, ó Deus, a tua vontade. Tira o primeiro,
para estabelecer o segundo. Na qual vontade temos sido santificados pela oblação do
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corpo de Jesus Cristo, feita uma vez”. Hebreus 10:14: “Porque com uma só oblação
aperfeiçoou para sempre os que são santificados”. 1 Coríntios 1:30: “Mas vós sois dele,
em Jesus Cristo, o qual para nós foi feito por Deus sabedoria, e justiça, e santificação, e
redenção”. Filipenses 3:9: “E seja achado nele, não tendo a minha justiça que vem da
lei, mas a que vem pela fé em Cristo, a saber, a justiça que vem de Deus pela fé”.
– Não adianta citar a epístola de Tiago, capítulo 2:24 “Vedes então que o homem é
justificado pelas obras, e não somente pela fé”. — Continuou Peter. — Dentro do
contexto da epístola, o apóstolo Tiago concordou que a justificação é apenas pela fé, no
verso 23 do capítulo 2: “E cumpriu-se a Escritura, que diz: E creu Abraão em Deus, e
foi-lhe isso imputado como justiça, e foi chamado o amigo de Deus”. Tanto Paulo
quanto Tiago criam que a justificação é pela fé, apenas, Tiago enfatizou que a fé incita
boas obras; para Paulo ser justificado é definido como a ação de Deus ao emitir um
juízo forense, segundo o qual somos justificados e declarados inocentes quando não
somos de fato; o que Tiago chamou de ser justificado é o receber de Deus a declaração
forense de ser pessoa justa quando da demonstração externa de uma retidão já
anteriormente obtida pela justificação forense. Em um caso a justificação é salvífica, em
outro é apenas uma declaração dirigida por Deus, retoricamente, aos outros, para que
vejam a retidão do homem a quem ele justificou. Portanto a epístola de Tiago não refuta
sola fide, porque existem duas justificações, a justificação real, ou propriamente dita, e a
justificação declarada, ou exteriorizada por Deus.
– Alguns católicos dirão que, porque os protestantes distinguem a regeneração de que
falam as epístolas, da justificação, eles abrem a guarda para uma refutação; se a
justificação não regenera o homem, dirão, por que os protestantes dizem que fomos
salvos pelo banho da regeneração? — Continuou Peter Antonov. — Mas essa
abordagem de modo algum desdiz a sola fide, porque nós cremos que, apesar de a
regeneração e a justificação serem distintas, elas estão relacionadas. Efésios 2:1: “E vos
vivificou, estando vós mortos em ofensas e pecados”. Aqueles que não foram
regenerados pela ação salvífica de Deus, não as próprias obras, não podem estar vivos,
mas estão mortos no pecado, e portanto não pode o homem buscar o batismo sem a
regeneração prévia, como dizem os católicos que o batismo é que engendra a
regeneração (uma das afirmações mais contrárias à bíblia que se pode imaginar). Essa
ideia de que sem a regeneração prévia o homem não pode procurar a Deus desdiz a
intenção mesma de procurar o batismo sem uma regeneração, e portanto não é o
batismo que engendra a regeneração, isso é reforçado em Colossenses 1:21: “A vós
também, que noutro tempo éreis estranhos, e inimigos no entendimento pelas vossas
obras más, agora contudo vos reconciliou”. A justificação é a condição de quem, pela
fé, foi reconciliado com Deus sem obras, e a regeneração é quando Deus infunde os
dons espirituais gratuitamente no homem, sem o mérito do homem, como está em João
1:13: “Os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do
homem, mas de Deus”, e em 1 Coríntios 2:14: “Ora, o homem natural não compreende
as coisas do Espírito de Deus, porque lhe parecem loucura; e não pode entendê-las,
porque elas se discernem espiritualmente”, e em Atos 2:41-42: “De sorte que foram
batizados os que de bom grado receberam a sua palavra; e naquele dia agregaram-se
quase três mil almas”. Os católicos usam Tito 3:5, para referir que o batismo
regenera: “Não pelas obras de justiça que houvéssemos feito, mas segundo a sua
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misericórdia, nos salvou pela lavagem da regeneração e da renovação do Espírito
Santo”. Essa passagem não pode ser usada com eficiência porque o batismo é de fato
uma obra de justiça que se faz, e a passagem diz que não é pelas obras de justiça que se
faz, que uma pessoa é salva. De acordo com a bíblia, a única coisa que não é obra, que
não é o obrar, é a fé ou confiança, Romanos 4:5: “Mas, àquele que não pratica, mas crê
naquele que justifica o ímpio, a sua fé lhe é imputada como justiça”. A regeneração é
relacionada pela bíblia com a salvação porque a regeneração que nos leva a crer é
temporalmente próxima da fé com a qual nós somos salvos, como está em Efésios 2:5-
8: “Estando nós ainda mortos em nossas ofensas, nos vivificou juntamente com Cristo
(pela graça sois salvos), e nos ressuscitou juntamente com ele e nos fez assentar nos
lugares celestiais, em Cristo Jesus; para mostrar nos séculos vindouros as abundantes
riquezas da sua graça pela sua benignidade para conosco em Cristo Jesus. Porque pela
graça sois salvos, por meio da fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus”. Em 1 João 5:1
há a referência a alguém nascendo de novo e logo após acreditando para a salvação
própria: “Todo aquele que crê que Jesus é o Cristo, é nascido de Deus; e todo aquele
que ama ao que o gerou também ama ao que dele é nascido”.
– O senhor tirou muitas citações da manga, Peter. — Observou o Sr. Marcondes.
– Então deixa-me usar uma que os católicos gostam de usar para defender a regeneração
pelo batismo, — tornou o segundo Antonov — Atos 2:38: “E disse-lhes Pedro:
Arrependei-vos, e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo, para perdão
dos pecados; e recebereis o dom do Espírito Santo”. Mas há muitas passagens que
apontam que o modo de entender isso não é como os católicos dizem. Vocês dizem que
no séc. XVI os protestantes “inventaram” a noção mesma de justificação forense. O
teólogo metodista, Thomas Oden, e o também metodista Nick Needham, mostraram em
publicações que isso não é verdade, mas os padres da Igreja ensinaram um conceito
indistinguível de sola fide. Eles ensinaram que a justificação é algo distinto da
santificação. Clemente de Roma, padre da Igreja, Carta aos Coríntios, séc. I: “Todos
esses, portanto, foram grandemente honrados, foram engrandecidos, não por causa de si
mesmos, ou por suas obras, ou pela retidão em que se dispuseram, mas pela operação da
Vontade Dele. E nós, também, sendo chamados pela Vontade Dele em Cristo Jesus, não
somos justificados por nós mesmos, nem pela nossa própria sabedoria, ou
entendimento, ou piedade, ou obras que trabalhamos em santidade de coração; mas por
aquela fé através da qual, desde o começo, o Todo-Poderoso Deus justificou todos os
homens; para quem seja dada a glória para sempre e sempre. Amém.” Irineu de Lyon,
Contra As Heresias, séc. II: “O Senhor, portanto, não foi desconhecido de Abraão, cujo
dia este desejara ver; nem, de novo, foi o Pai do Senhor desconhecido, porque Abraão
aprendera pela Palavra do Senhor, e cria nEle; portanto, foi isso atribuído a ele pelo
Senhor como retidão da parte dele. Porque a fé para com Deus justifica uma pessoa.”
João Crisóstomo, padre da Igreja, Homilia Aos Gálatas, séc. IV: “Eles tinham uma
apreenssão mais; foi escrito ‘amaldiçoado seja todo que não continua em todas as coisas
escritas no livro da lei, realizando-as’ (Deuteronômio 27:26) […] eles disseram que
aquele que adere à fé somente é amaldiçoado, mas ele mostra que quem adere à fé,
apenas, é abençoado”.
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– A verdade — continuou Peter Antonov — é que, apesar de a salvação envolver a
regeneração, não se limita a isso, a regeneração é um pequeno componente do
fenômeno. Eu digo isso porque a expressão “ser tornado vivo em Cristo” se refere à
regeneração em Efésios 2:1-5, sobretudo por causa de outra passagem que se apresenta
como paralela e idêntica, em Colossenses 2:12-13, significando que é pela regeneração
que alguém é salvo, não pela justificação forense. Esse é um argumento católico.
Efésios 2:1-5: “E vos vivificou, estando vós mortos em ofensas e pecados, em que
noutro tempo andastes segundo o curso deste mundo, segundo o príncipe das potestades
do ar, do espírito que agora opera nos filhos da desobediência; entre os quais todos nós
também antes andávamos nos desejos da nossa carne, fazendo a vontade da carne e dos
pensamentos; e éramos por natureza filhos da ira, como os outros também. Mas Deus,
que é riquíssimo em misericórdia, pelo seu muito amor com que nos amou, estando nós
ainda mortos em nossas ofensas, nos vivificou juntamente com Cristo (pela graça sois
salvos)”. Colossenses 2:11-13: “No qual também estais circuncidados com a circuncisão
não feita por mão no despojo do corpo dos pecados da carne, pela circuncisão de Cristo;
sepultados com ele no batismo, nele também ressuscitastes pela fé no poder de Deus,
que o ressuscitou dentre os mortos. E, quando vós estáveis mortos nos pecados, e na
incircuncisão da vossa carne, vos vivificou juntamente com ele, perdoando-vos todas as
ofensas”. As passagens em Colossenses e Efésios, nós protestantes admitimos que se
referem à regeneração, e portanto, que ser regenerado é ser tornado vivo em Cristo e
que isso tem a ver com o dizer “pela graça fostes salvos”. Mas, apesar disso, nós
dizemos que tais passagens não se referem apenas à regeneração, mas a outra coisa,
como é de se esperar, também a justificação pela fé apenas. “Ser tornado vivo” não é
apenas regeneração, mas a união com Cristo no projeto salvífico pelo qual todo o mérito
da salvação cabe a ele, e nenhum a nós. A regeneração em si não é sinônimo de ser
salvo, e não se pode inferir isso tão claramente do texto, mas a regeneração como um
aspecto ou componente da salvação, isso é evidente. A regeneração é apenas o pontapé
inicial no processo de o fiel em Cristo receber o dom do arrependimento e da fé
salvífica, a partir daí a fé lhe assegura a justificação sem obras.
– Eu vos digo, como já disse — continuou Peter — a retidão de quem é salvo não é a
própria retidão, mas a de Cristo. Romanos 4:3-4: “Pois, que diz a Escritura? Creu
Abraão em Deus, e isso lhe foi imputado como justiça. Ora, àquele que faz qualquer
obra não lhe é imputado o galardão segundo a graça, mas segundo a dívida”. A crença
faz que Deus atribua à pessoa uma justiça que é de outra pessoa, a justiça de Jesus.
Como está em Filipenses 3:9: “E seja achado nele, não tendo a minha justiça que vem
da lei, mas a que vem pela fé em Cristo, a saber, a justiça que vem de Deus pela fé”.
Também uma passagem em 1 Coríntios reforça a ideia de que Cristo é a retidão do que
nele crê, 1 Coríntios 1:30: “Mas vós sois dele, em Jesus Cristo, o qual para nós foi feito
por Deus sabedoria, e justiça, e santificação, e redenção”. Em 2 Coríntios é dito que
aquele que se une a Cristo não terá contra si pecados imputados, mas será considerado
como tendo a retidão do próprio Cristo, 2 Coríntios 5:19-20: “Isto é, Deus estava em
Cristo reconciliando consigo o mundo, não lhes imputando os seus pecados; e pôs em
nós a palavra da reconciliação. De sorte que somos embaixadores da parte de Cristo,
como se Deus por nós rogasse. Rogamo-vos, pois, da parte de Cristo, que vos
reconcilieis com Deus”.
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– Embora alguns citem o evangelho de Mateus, sobre a necessidade de obedecer os
mandamentos, não nos esqueçamos — continuou ainda o segundo Antonov — temos
Paulo explicando que toda a nossa esperança é na fé, Romanos 4:5: “Mas, àquele que
não pratica, mas crê naquele que justifica o ímpio, a sua fé lhe é imputada como
justiça”, Efésios 2:8-10: “Porque pela graça sois salvos, por meio da fé; e isto não vem
de vós, é dom de Deus. Não vem das obras, para que ninguém se glorie; porque somos
feitura sua, criados em Cristo Jesus para as boas obras, as quais Deus preparou para que
andássemos nelas”. Os católicos citarão o evangelho de Lucas, Lucas 18:18-21: “E
perguntou-lhe um certo príncipe, dizendo: Bom Mestre, que hei de fazer para herdar a
vida eterna? Jesus lhe disse: Por que me chamas bom? Ninguém há bom, senão um, que
é Deus. Sabes os mandamentos: Não adulterarás, não matarás, não furtarás, não dirás
falso testemunho, honra a teu pai e a tua mãe”. É verdade que há tal passagem, mas
Jesus mais adiante exige do jovem rico mais obras, que o tal não vê com agrado. Jesus
diz, pois, que é mais fácil passar um camelo por uma agulha do que um rico entrar no
reino. Os apóstolos perguntaram, “quem, então, pode ser salvo?”. E Jesus respondeu: O
que é impossível aos homens é possível a Deus, e portanto isso significou que Deus,
apenas, seria capaz de obedecer à lei para a salvação, Jesus, apenas, faria isso, e a
retidão de Deus seria imputada ao homem que cresse nele. Gálatas 3:10-11: “Todos
aqueles, pois, que são das obras da lei estão debaixo da maldição; porque está escrito:
Maldito todo aquele que não permanecer em todas as coisas que estão escritas no livro
da lei, para fazê-las. E é evidente que pela lei ninguém será justificado diante de Deus,
porque o justo viverá pela fé”. O próprio apóstolo Tiago, que os católicos, e mesmo os
judeus, usam para proclamar que a mensagem evangélica foi corrompida (sobretudo por
nós protestantes), diz ele em Tiago 2:10: “Porque qualquer que guardar toda a lei, e
tropeçar em um só ponto, tornou-se culpado de todos”. Tomar o caminho católico, no
qual é necessário obedecer todos os mandamentos e nunca errar, é um caminho perigoso
e que leva à perdição, porque Cristo já morreu por nossos pecados, e basta se fiar com
fé na salvação e retidão dele.
– Por isso — disse Peter — mentem desavergonhadamente os que dizem que em
Romanos Paulo procurou dizer que apenas o cerimonial mosaico e a circuncisão foram
abandonados a título de “lei”, e não os mandamentos morais. Romanos 3:20: “Por isso
nenhuma carne será justificada diante dele pelas obras da lei, porque pela lei vem o
conhecimento do pecado”. Romanos 3:11-14: “Não há ninguém que entenda; não há
ninguém que busque a Deus. Todos se extraviaram, e juntamente se fizeram inúteis.
Não há quem faça o bem, não há nem um só. A sua garganta é um sepulcro aberto; com
as suas línguas tratam enganosamente; peçonha de áspides está debaixo de seus lábios;
cuja boca está cheia de maldição e amargura”. As nossas boas obras não são o que nos
justifica, mas as boas obras são a evidência de que Deus já nos absolveu pela fé.
Também citarão os católicos, 1 Coríntios 7:19: “A circuncisão é nada e a incircuncisão
nada é, mas, sim, a observância dos mandamentos de Deus”. Mas o que isso prova? O
resumo de tudo quanto eu digo é: Tudo quanto não é a confiança é obra, e a obra não vai
salvar.
– Eu entendo a sua posição. — Respondeu o velho. — Mas me diga: Você apontou que
os padres da Igreja ensinaram sola fide porque a opinião deles, sobretudo o consenso
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deles, é bastante intimidador (isso porque muitos católicos acusam a sola fide de não ter
sido pregada senão desde Lutero), não é?
– Eu apontei isso porque de fato eles pregaram sola fide. — Tornou Peter Antonov.
– Eu sei que foi por isso que você os citou, o que eu pergunto é se o consenso deles, aos
seus olhos, é algo intimidador, se é algo que não levar em consideração pode e deve ser
comprometedor. — Disse o velho. — Sim ou não?
– Diga logo o que você quer dizer! — Replicou Peter, incomodado.
– Desde que você responda com um sim ou um não, eu direi exatamente o que tenho em
mente. — Tornou o velho.
– Se o consenso deles discorda da bíblia, não é intimidador no mais mínimo, porque é a
bíblia que tem razão, não o homem. — Respondeu Peter.
– E portanto, se o consenso dos padres da Igreja está errado e contraria a bíblia, os
judeus terão boas razões para dizer que o cristianismo é falso, porque significa que
gerações de cristãos apostataram e a religião que esses homens seguiam é falsa. Então,
de fato o consenso dos padres da Igreja não intimida? — Perguntou o velho.
– Sim. — Respondeu Peter, sem conseguir pensar direito, e confundido.
– Pois bem, o Codex Sinaiticus (uma manuscrito da bíblia), muito criticado por certos
protestantes, mas escusado e defendido pelo protestante mainstream James White,
contém a Epístola de Barnabás. — Continuou o velho. — É sem dúvida um dos mais
antigos manuscritos da história da Igreja, é coisa do séc. V. Não se sabe se o
tal Barnabás é o apóstolo, ou se é algum outro indivíduo, mas o escrito diz: “Nós
descemos à água cheios de pecados e impurezas, e tornamos carregando fruto no nosso
coração”. Será que ele não quis dizer que o rito batismal é necessário para a regeneração
e para a justificação? O escrito O Pastor, de Hermas, datado comumente a 140 A.D., e
considerado valioso por Santo Irineu de Lyon, diz: “Eles necessitavam se erguer através
da água, para que pudessem se tornar vivos; porque eles não poderiam de outro modo
entrar no Reino de Deus”. Diz São Justino mártir, a 155 A.D.: “[…] eles são levados
por nós a um lugar onde há água; lá eles são nascidos de novo do mesmo tipo de
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renascimento no qual também nós renascemos […] em nome de Deus […] eles recebem
a lavagem da água. Porque Cristo disse ‘Se não renasceres, não entrarás no Reino dos
céus’. A razão para fazer isso nós aprendemos dos apóstolos”. As pessoas no séc. II
claramente entendiam João 3:5 (“se um homem não nascer de novo da água e do
Espírito, não pode entrar no Reino de Deus”), como se referindo diretamente ao batismo
sacramental. Diz Santo Irineu a 180 A.D.: ” […] dando aos apóstolos o poder da
regeneração em Deus, Ele lhes disse: ‘Ide e ensinai todas as nações, e batizai’ […]
Assim como trigo ressequido sem umidade não pode se tornar massa ou pão, também,
nós que somos muitos não podemos nos tornar um em Cristo Jesus, sem a água do
paraíso […] Nossos corpos adquirem unidade através da lavagem […] nossas almas, no
entanto, [adquirem unidade] através do espírito. Ambos [água e espírito], portanto, são
necessários”.
– São Teófilo — continuou o velho –, bispo de Antioquia, escreveu a 180 A.D.:
“Aquelas coisas que foram criadas das águas foram abençoadas por Deus, de forma a
que isso possa também ser um sinal de que o homem viria no futuro a receber
arrependimento e remissão dos pecados através da água e do banho da regeneração”.
Peter mirou o velho com horror, ao ouvir tais palavras.
– Tertuliano escreveu a 203 A.D.: “[…] é de fato prescrito que ninguém pode alcançar a
salvação sem batismo, especialmente em vista da declaração do Senhor, que diz ‘Se um
homem não nascer de novo da água não terá vida'”. — Disse o velho. — A sua grande
cegueira em falhar em compreender as escrituras, se deve a que você segue a
metodologia segundo a qual você conhece e antevê perfeitamente o contexto das
pessoas a quem São Paulo falava. 2 Coríntios 1:21-22 diz: “Ora, é Deus que faz que nós
e vocês permaneçamos firmes em Cristo. Ele nos ungiu, nos selou como sua
propriedade e pôs o seu Espírito em nossos corações como garantia do que está por vir”.
Há bastante evidência de que o selo, ou selagem, em 2 Coríntios é o batismo, como está
em O Pastor, de Hermas, escrito a 140 A.D.: “”[…] antes que o homem carregue o
nome do Filho de Deus, ele está morto. Mas quando ele recebe o selo, ele retira a
mortalidade e recebe a vida. O selo, portanto, é a água. Eles descem à água mortos, e
tornam dela vivos”. Na Segunda Epístola de Clemente de Roma aos Coríntios, escrito a
120-170 A.D., está escrito: “Para aqueles que não guardaram o selo do batismo ele diz
‘Seu verme não morrerá, e seu fogo não será amainado'”. A mesma ideia da necessidade
do batismo está em São Clemente de Alexandria, que escreveu a 202 A.D., está em
Orígenes que escreveu a 244 A.D., está em São Afraates que escreveu a 336 A.D., em
São Basílio Magno que escreveu a 355 A.D., em São Gregório de Elvira, que escreveu a
360 A.D., em São Efraim que escreveu a 366 A.D., em São Damásio que escreveu a
382 A.D., em Santo Ambrósio que escreveu a 387 A.D., em São João Crisóstomo que
escreveu a 392 A.D., eu poderia citar de cor mais quatro ou cinco padres da Igreja para
quem isso era ponto pacífico. Desejo encerrar com São Cirilo de Jerusalém que
escreveu a 350 A.D.: “Ele diz ‘se um homem não nascer de novo’ — e Ele adiciona as
palavras ‘da água e do Espírito’ — não pode entrar no Reino de Deus […] se um
homem for virtuoso nas obras, mas não receber o selo por meio da água, não pode entrar
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no Reino do Céu. É uma afirmação ousada, mas não é minha; porque foi Jesus que o
declarou”.
– Você admite — continuou o velho — que os padres da Igreja falharam em perceber
“que as obras de piedade” não aproveitam em nada para a salvação, e que o batismo é
necessariamente uma obra assim?
Silêncio.
– Toma o teu tempo, toma o teu tempo, meu filho. — Continuou o velho. — Eu lhe
farei uma pergunta, mas só daqui a alguns instantes. Eu gostaria primeiro de apontar
que certa controvérsia, entre o Papa Cornélio (falecido a 253 A.D.) e um bispo chamado
Novaciano, levou a um cisma de Novaciano. Eles brigaram a respeito do sacramento da
penitência, o que significa que este sacramento, também o batismo, os padres da Igreja
consideravam ligado à missão da Igreja na terra. Por que, diante de tantas passagens de
Paulo, os padres da Igreja ainda não criam na fé apenas, sem obras e ritos, e
sacramentos, para a salvação? Lembra do rapaz apaixonado que eu mencionei mais
cedo. Recorda que ele teve a chance de conquistar a amada, mas não o fez. O fracasso
dele, segundo me parece, não tem tanto a ver com o falhar em fazer algo, porque ele não
sabia o que fazer de todo modo. O fracasso dele adveio da tentativa de se apegar a
qualquer pretexto para negar que a amava, e quão fortemente. Houve, no entanto, a
oportunidade de conquistá-la, de se declarar; pois bem, se ele tivesse se submetido à sua
consciência e se declarado no momento propício ele se pareceria mais com Abraão ou
mais com aqueles judeus que o apóstolo João disse que criam em Cristo mas não
ousavam confessá-lo publicamente para não ser expulsos da sinagoga?
– Mais com Abraão. — Respondeu Peter Antonov.
– E se ele tivesse, como fez, se agarrado a algum pretexto para se distanciar dela, não se
pareceria mais com os judeus? — Perguntou o velho.
– Sim, de fato, me parece que ele se pareceria com eles nesse caso. — Respondeu Peter.
– Nós vimos, no entanto, que a admissão de uma paixão é a admissão da própria
insignificância, e a admissão da própria insignificância é a admissão daquilo que nos
ultrapassa. Não é essa capacidade aumentada de ver o que é bom e belo, ao passo que se
vê que se é insignificante de modo aumentado, precisamente a virtude com que os
eleitos verão a Deus na eternidade?
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– Isso é bem claro. A resposta é sim. — Disse Peter, atônito.
– Nesse sentido também a fé, que é o mirar um conteúdo doutrinal determinado com
admissão, se assemelha a admitir a paixão pela moça, porque é a paixão por uma pessoa
determinada? — Perguntou o velho.
– Sim. — Respondeu o jovem.
– A admissão de uma paixão que é sublime pode não tornar uma pessoa melhor? —
Perguntou o velho.
– De modo algum pode deixar de fazê-o. — Tornou o jovem.
– E a admissão daquela pessoa determinada por quem se tem paixão pode não tornar
uma pessoa melhor?
– De modo algum pode deixar de fazê-lo. — Tornou o jovem.
– Como pode, pois, a admissão da fé não ser simultânea à regeneração em Cristo, e
como pode haver alguma distinção entre a justificação e a regeneração, seja lógica, seja
temporal? — Perguntou o velho.
Silêncio.
– Pode alguma regeneração não coincidir logicamente com a admissão de um conteúdo
determinado? Pode a admissão de uma paixão sublime não coincidir com um conteúdo
determinado? — Perguntou o velho.
– Mas o que dizem vocês católicos? — Indagou Peter Antonov. — Que a pessoa a ser
batizada crê, mas depois do batismo é que realmente crê? Isso é absurdo.
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– Os catecúmenos tradicionalmente imploram a fé da Igreja, no primeiro milênio da
Igreja. Eles sabem o conteúdo da fé, mas não se agarram a ele, assim como é possível
estar apaixonado, mas não se agarrar à verdade disto, pois acabamos de tomar como
pressuposto que é possível negar uma paixão. A graça de se apegar a uma verdade que
nos ultrapassa e não controlamos de modo algum é sobrenatural. — Disse o velho.
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Espiritismo
– E por que “Deus” — tornou o velho, agora já profundamente interessado no caso –é
espírita?
– Ele não me falou nada a esse respeito, mas eu conclui por mim mesmo que o
catolicismo não pode ser verdadeiro, em certo sentido. Eu vou dar um exemplo: Uma
vez um padre disse-me que a água benta não é mesmo benta, que isso é só uma
convenção, uma ficção. As crenças católicas não convencem nem mesmo os seus
adeptos oficiais. — Disse Mark, contrito por contrariar o seu interlocutor.
– No séc. XIX um grupo de intelectuais da Universidade de Oxford se propôs a
revitalizar o pensamento anglicano na Inglaterra, e nisso fazer frente ao secularismo que
viçava na política e na “opinião pública”. Eles são a escola chamada Tractarianism,
nome tirado da série de escritos Tracts For The Times (Tratados para Os Tempos). Esse
movimento foi todo baseado em uma discussão dos padres do primeiro milênio da
Igreja, e de certas práticas litúrgicas da Igreja de Roma, a exemplo da literatura do
Breviário que os padres rezam. Mas também se baseava em uma clara rejeição da Igreja
Romana. Então, ainda que um expoente deles, John Henry Newman, tenha se
convertido ao catolicismo, o movimento não tinha propriamente a intenção de converter
as pessoas à minha religião; e no entanto, Newman encontrou nos seus estudos de
heresias históricas a impressão, que abalou para sempre a sua fé anglicana, de que a fé
da Igreja Católica é sempre professada com firmeza, sem se ceder em nenhum ponto,
enquanto todas as outras seitas se adequam às circunstâncias e corrompem seu sistema.
Newman é considerado um dos maiores estudiosos de todos os tempos. E ademais, o
tipo de sintoma da apostasia atual, com o qual você teve contato, apenas revela que a
predição dada à vidente Lúcia dos Santos em Fátima, Portugal, a 1917, estava correta:
“Em Portugal o dogma da fé sempre vai ser preservado etc.” Ela disse que uma grande
apostasia, aludida nessas linhas, se tornaria mais clara a 1960 e que por isso o papa
devia abrir o envelope com a continuação das palavras condensada no mencionado
“etc”. Essa apostasia, predita com muito tempo de antecedência, diz da situação atual.
Se a apostasia de fato ocorreu, e mesmo você a verificou, então Fátima está correta, e se
Fátima está correta, a Igreja Católica está correta. E ademais as epístolas do Novo
Testamento mencionam que uma certa apostasia seguramente vai ocorrer. — Disse o
velho.
– Espera só, espera só que eu já direi algo interessante. — Disse o velho. — O sistema
teológico espírita é bastante extenso, mas há poucos meios de distinguir a sua versão
ortodoxa, pois um estudo dessa religião deve apontar que não há muitas disputas
doutrinais, simultaneamente a certa liberalidade interpretativa, se bem que haja alguma
preocupação com se ser fiel ao plano original do “pentateuco” espírita, os cinco livros
da revelação. O mais importante talvez seja O Livro dos Espíritos. Nele é mencionado
que os espíritos falam com Deus, ao menos alguns deles, os que têm acesso a esferas
mais elevadas. Ao passo que certo centro espírita paulista, de São Paulo, Brasil, afirma
que Deus é um ente não-individuado, que ele não é propriamente um indivíduo, mais
uma instância inacessível, uma realidade dir-se-ia abstrata da qual as coisas emanam.
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– E daí? — Perguntou Mark. — O que isso prova? É possível, talvez, conciliar os dois
textos, e ainda que um deles estivesse errado, os indivíduos que discutem doutrinas às
vezes erram.
– Mas esse é precisamente o ponto a que eu queria chegar. — Disse o velho. — Os
espíritas de certo modo, embora tenham alguma preocupação com a sua ortodoxia,
carregam essa preocupação muito problematicamente, porque, de certo modo, não lhes
importa o erro e o acerto. Isso se vê por exemplo em que O Livro dos Espíritos
menciona, bem claramente, que o universo tem milhões de anos, mas também deixa a
entender com igual clareza que isso é o que se deve entender por conta do que a ciência
tem indicado. Não se trata, porque Alan Kardec era o primeiro a admitir que os espíritos
podem errar e de fato o fazem, não se trata de um texto infalível, mas de um texto que
apela de algum modo ao testemunho da ciência e das evidências científicas em um
sentido não-apodítico ou auto-evidente, porque nem tudo que chamamos científico o é
neste último sentido. Os trechos nO Livro dos Espíritos que aduzem e reforçam essa
impressão são numerosos. Eu não insisto na menção feita por René Guénon (autor de A
Falácia Espírita), a respeito de os relatos dos espíritos terem passado por “correções”, e
isso ter sido mencionado por um médium que de algum modo tinha consideração por
Kardec. O que reforço é, por exemplo, a menção a mundos nos quais os seres
reencarnam em corpos pouco desenvolvidos, que se vão desenvolvendo e modificando
lentamente, desde um aspecto mais rude e imperfeito, até um aspecto mais harmônico e
esteticamente melhor. Ora, o surgimento dessa ideia, estranhamente, coincide com uma
geração que sentia o impacto da publicação de A Origem das Espécies, de Charles
Darwin. É como se os espíritos estivessem aludindo, problematicamente é claro, a esse
fenômeno, e talvez tenha sido a primeira vez na história em que essa doutrina espírita
foi enunciada (a despeito de o Bezerra de Menezes ter alegado que não há nada nO
Livro dos Espíritos que ele não tivesse experimentado nas leituras clássicas). Se tem a
impressão, no caso, que Kardec contribui com os espíritos, ou que ao menos as
descobertas científicas da última hora contribuem com a comunicação dos espíritos.
– A coisa fica ainda mais complicada — continuou o velho — quando o mesmo livro
nos indica que há certas coisas que os os espíritos mais evoluídos não são capazes de
expressar aos menos evoluídos. Ficamos com a impressão de que não dá para saber se a
diferença entre um grau determinado da evolução espiritual e o seguinte (e basicamente
há infinitos graus), em termos doutrinais, é tão drástico quanto é drástica a diferença
entre ser um criacionista judeu e um darwinista roxo. A indefinição e ambiguidade que
está presente nessa conjuntura, na qual se percebe que certos espíritos erram, e se tem
de deduzir por conta própria (qual um investigador científico) o que está havendo; e o
caráter tênue e pouco definitivo de uma doutrina que aponta para o universo físico como
povoado por infinidade de mundos estranhos, aos quais muitos espíritos não têm acesso;
são elementos que apontam para um tipo bastante peculiar de religião. A religião aqui
não é mais uma crença definitiva e infalível, mas é uma espécie de complexo de
elementos que mesmo um ateu como Ludwig von Mises julgaria, a distância, um
complexo exigindo um juízo incompatível com as capacidades da razão humana. O
Alcorão, comparado com o kardecismo, é, sob muitos aspectos, de um didatismo e de
um apelo sumário acachapantes. Dado esse expansivo e impressionante sistema, que os
cânons espíritas asseguram diante dos críticos só pode ser julgado após muitos anos de
esforço e dedicação, não é de admirar que os espíritas não se preocupem muito, até
certo ponto, com o que as pessoas creem.
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– Isso é admitido até certo ponto pelos espíritas, que não há grande preocupação com o
que as pessoas acreditam. — Continuou o velho. — Naturalmente, não é assim que
funciona o cristianismo “clássico”, ao qual eles procuram se filiar de algum modo. É
certo que os espíritas chamam “fanatismo” à rejeição da sua doutrina, mas tal não tão
enfaticamente, e tal sobretudo quando julgam que a obstinação em não reconhecer
alguma verdade pessoal relacionada à teoria kardecista pode servir de bloqueio à missão
evolutiva do espírito encarnado, ou desencarnado, conforme a ocasião (porque até
mesmo o espírito desencarnado habitando uma camada fluídica pouco acima da
superfície da terra, pode estar bastante desorientado a respeito dos cânons da religião de
Kardec). O fato de que as pessoas vão e vêm pelas reencarnações reforça essa ideia,
estranha ao cristianismo, de que não se trata tanto da fé que você tem de professar, se
trata mais da experiência pela qual você tem de passar. Essa desvalorização do conteúdo
do que se acredita é reforçada de vários modos; com as alusões de um autor como Edgar
Armond às disputas doutrinais que ele insinua dividiram os primeiros séculos cristãos
nos mais diversos grupos; com o fato de a doutrina espírita ser manifestamente diferente
de tudo que viera antes, incluso a reencarnação no sentido budista (a qual um intelectual
como Luiz Gonzaga de Carvalho Neto assegura que é algo bem diferente do que os
espíritas entendem por reencarnação); por fim, com o fato de certos médiuns terem,
mais recentemente, feito contribuições à doutrina que o próprio Kardec nem suspeitara.
Eu cito por exemplo o livro de Edgard Armond chamado Exilados de Capela. Capela
teria sido o planeta de origem de certos espíritos que migraram para o planeta Terra,
onde se tornaram a humanidade que conhecemos. Essa teoria de Armond inspirou um
movimento, em boa parte fundado por uma médium chamada Tia Neiva, chamado
“Vale do Amanhecer”, que é uma espécie de retiro espiritual no qual os indivíduos
vestem trajes um tanto extravagantes e mencionam uma certa confederação alienígena
intergalática da qual Jesus Cristo seria o presidente. Um documentarista britânico disse
a uma adepta do grupo que é uma religião muito boa para alguém que gosta de se vestir,
e ela concordou. É duvidoso se isso estivesse nos planos do espiritismo original.
– Eu referi portanto como a ortodoxia do espiritismo é problemática e como eles têm, de
muitos modos, indiferença pela adesão a uma doutrina (como no cristianismo
tradicional). Também é notável a descontinuidade com toda doutrina anterior. É verdade
que o apego espírita à ideia de se submeter a uma vida terrena incompatível com a nossa
vocação intelectiva (a realização espiritual é sobretudo intelectiva) é obviamente uma
doutrina do rosacrucianismo, a doutrina Rosa-cruz enfatiza muito isso. E isso se torna
tanto mais interessante quando se repara que Alan Kardec foi membro da organização
maçônica (e no entanto, espúria às grandes lojas) chamada Ordo Templi Orientis. A
doutrina Rosa-cruz é do século XVII, pelo menos, e corresponde ao menos
nominalmente a um determinado âmbito do Rito Escocês maçom. Ainda que os
primeiros adeptos do espiritismo discordassem de esse esquema religioso ter vindo
direta ou exclusivamente do rosacrucianismo, eles teriam de concordar que as duas
visões são quase idênticas quanto ao apego à vida terrena como provação salutar. Uma
diferença entre as duas doutrinas é que a Rosa-cruz não reduz os espíritos de luz,
luciferinos, que têm apego ao intelectivo, a espíritos desencarnados. Os rosa-cruzes
realmente creem, em alguma medida com os cristãos tradicionais, que os anjos e
espíritos não-corporais pertencem a uma ordem de seres completamente diferente da
ordem humana. — Disse o Sr. Marcondes.
– Esse detalhe por si, — continuou o velho — parece tornar evidente e condensar o fato
de que o espiritismo, conforme muitos sinais disso, é uma espécie de tentativa de
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deslocar o eixo da realidade espiritual para mais perto da realidade humana e do
“conhecido”, apagando ou apontando como obscuro tudo quanto vai muito além disso,
pois até os espíritos que se diz nos influenciam, não estão em um paraíso, mas a poucos
quilômetros de distância acima de nós. O espiritismo é o fruto de uma época em que os
conceitos religiosos tradicionais soavam como nunca estranhos; o poeta dessa época,
Nietzsche, apelava para o surgimento de uma nova filosofia, de novos filósofos, para
quem a percepção direta e pessoal dos fatos , bastante indiferente àquilo que está fora de
alcance, assumiria a primazia sobre qualquer outro elemento da responsabilidade
cognitiva. Otto Maria Carpeaux, o maior erudito que jamais pisou em solo brasileiro,
afirmou ter sido o único a compreender Nietzsche, e que de fato o papel que este tomou
para si foi o de poeta da sua época, o poeta ateu que “na noite da sua loucura, antecipou
a loucura de todos nós”. Como eu defino a religião como a crença advinda de uma
revelação, e a revelação a comunicação de um ente inteligente e não humano, resta a
respeito do espiritismo a ambiguidade a respeito de ser realmente uma religião ou não,
porque a revelação em questão é recebida de espíritos humanos, não de deuses. E
ademais é uma doutrina revelada de algum modo confessadamente peneirada e
“corrigida” por aquele que a recebeu. O espiritismo, enquanto religião, é ambíguo. E
essa ambiguidade é particularmente reforçada pela sincronia do espiritismo em aderir
(ainda que problematicamente) ao evolucionismo darwinista e à ideia, também
necessariamente darwinista, de que o universo é bastante antigo. Se eu puder mostrar
que essas duas teses sincrônicas ao espiritismo são intrinsecamente subjetivistas, eu
demonstro necessariamente que o espiritismo é intrinsecamente subjetivista, e aí está a
raiz dos pontos forte e fraco dessa religião.
– Primeiro a ideia de que o universo é antigo. — Disse o Sr. Marcondes. — Se diz que a
datação por carbono é a primeira via para se demonstrar que o universo não é novo. E
que não acreditar nesse método é como não acreditar na lei da gravidade. Entretanto,
certos exames com moluscos mortos recentemente mostram que os moluscos têm três
mil anos, de acordo com a datação por carbono. E certos pinheiros de Bristlecone, na
Califórnia, através da datação por carbono são entre dois mil a três mil anos mais novos
do que o são na realidade. Até mesmo um evolucionista chamado William Stansfield
admitiu que “não há relógio radiológico confiável em absoluto para a apreensão de
períodos muito extensos”. É um fato bem admitido por todos os defensores da datação
por carbono que há “certas anomalias” nos exames feitos, mas isso eles consideram
como não-necessariamente derogatório da teoria por traz da datação. A datação por
carbono se baseia na noção de que a taxa de decadência ou diminuição do carbono nos
objetos sempre foi a mesma no correr da história; na noção de que a quantidade de
carbono na atmosfera sempre foi qual a atual; e na noção de que a teoria da coluna
geológica (que cada camada corresponde um período histórico) é correta. Todas essas
ideias são pressuposições, e no caso da coluna geológica, temos ainda o problema de
que evolucionistas em geral não o admitem, mas criacionistas como o Dr. Walt Brown
(autor do livro In The Beginning) dirão que se achou fósseis de cavalos, no Afeganistão
etc., em uma camada geológica na qual eles não deveriam estar se a coluna geológica é
verdadeira.
– Uma outra argumentação em favor de um universo antigo — continuou ele — é a
velocidade da luz. Se sabe com grande exatidão qual é a velocidade da luz, e isso é
usado para os cálculos de transmissões a satélites artificiais que, no espaço, giram em
torno da terra. Uma antena terrestre envia ondas de rádio ao satélite, e este reenvia os
sinal eletromagnético para uma segunda antena. Os cálculos usados na tecnologia de
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transmissão se utilizam de conceitos da Teoria da Relatividade, e a eficácia desse
processo denota que de fato o homem conseguiu calcular a velocidade dessas ondas.
Ora, se de fato nós conseguimos calcular a velocidade da luz, e recebemos informações
visuais de planetas e estrelas, e locais do universo bastante remotos, na forma de luz; de
acordo com os cálculos o tempo que uma determinada emissão de luz gastaria para
chegar a nós implica necessariamente que o universo tem bilhões de anos. Mas essa
proposição, embora seja compreensível, não o é de todo, uma vez que os limites do
universo, de acordo com muitas tradições cosmológicas, e com a razão humana, são
limites indeterminados, e uma especulação a respeito de por quanto tempo uma
informação se deslocou de um longínquo ponto ao outro (em uma escala que abarca
uma porção generosa do universo visível) implica necessariamente que se pode
responder com certa clareza de que modo o conjunto do universo é indeterminado, uma
vez que obviamente ele não tem um limite determinado. Mas não, não é possível dizer
de que modo o conjunto do universo é indeterminado, de modo que a especulação a
respeito do que está ocorrendo a distâncias muito longínquas, ainda que nós as vejamos,
é uma especulação fictícia, conforme os ateus proponentes de um universo antigo
admitem eles mesmos; e o ateu Christopher Hitchens chega a elogiar um monge
escolástico medieval como Guilherme de Ockham por ter afirmado que não é necessário
que as estrelas no céu que vemos estejam lá realmente.
– Também há a teoria da Pangeia — disse o Sr. Marcondes –, o continente primitivo
que deu origem aos atuais continentes. As placas tectônicas em movimento sobre o
magma terrestre necessitariam de centenas de milhares de anos para se deslocar como as
feição continentais parecem se ter deslocado. O problema com essa proposição é que ela
é relativamente recente na história, e se baseia precisamente na opinião, admitida por
todo ateu, de que as concepções científicas mudam o tempo todo, de modo que não é
possível afirmar de antemão se a teoria da Pangeia se vai manter para sempre. É
provável, mas não chega a ser certo. Uma outra proposição em favor do universo antigo
são os recifes de corais. Os corais são um grupo de animais do gênero dos cnidários, a
exemplo daquelas medusas que parecem sacos, com tranças que se locomovem de um
modo admirável; no caso dos corais, ao contrário da medusa, eles expelem ou segregam
um “exoesqueleto calcário” que chamamos recifes de corais; os quais, de acordo com os
cálculos de alguns, fundados na taxa de crescimento dos corais, indicam que o planeta
terra existiu por no mínimo um milhão de anos (tomando alguns recifes em particular),
que é pouco mais de cem vezes o tempo daquele indicado pelos proponentes de um
universo novo conforme diz a bíblia. Além dessa evidência há os pinheiros de
Bristlecone, no Norte da Califórnia, pelo menos um deles; de acordo com o número de
círculos contado no corte seccional em comparação a outros exemplares de árvores, se
pode inferir que os pinheiros são de nove mil anos atrás, quando os defensores de um
universo novo estipulam que o universo teria seis mil anos aproximadamente.
– Além disso há os varves (cujo conceito, ainda que sem esse nome de origem sueca,
existe pelo menos desde meados do séc. XIX), que são camadas de sedimento
depositadas anualmente conforme o ritmo dos processos fluviais. Um certo lago japonês
chamado Suigetsu possui quarenta e cinco mil camadas de sedimentos, o que indica que
a terra tem pelo menos quarenta e cinco mil anos. Há algumas outras evidências mais
notáveis nessa linha, como por exemplo o argumento do Dr. Richard Dawkins a respeito
da natureza solar presente no livro The Greatest Show on Earth; à época de Darwin um
cientista calculou a idade do sol em um milhão de anos, o que, se correto, refutaria a
teoria darwinista, mas Dawkins procura mostrar que o conceito do sol mudou com o
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tempo, e hoje se considera que ele queima menos como um carvão e mais como um
reator nuclear (o qual por definição emite energia de um modo inteiramente distinto, de
um modo que maximiza a sua vida útil); entretanto eu quero passar aos argumentos em
favor de um universo novo. — Disse o Sr. Marcondes.
– Em certas galáxias as estrelas, quanto ao brilho, se expandem e contraem
significativamente em uma escala anual. Isso não acontece com o sol do sistema solar
onde reside a terra. Uma supernova é uma explosão de uma estrela, que deixa destroços
ou restos após uma emissão acentuada de energia; e ademais essas explosões se mantêm
visíveis por milhões de anos. Há certo estudo segundo o qual as galáxias parecidas com
a nossa Via Láctea apresentam a explosão de estrelas, chamada supernova, a cada vinte
e seis anos. Na nossa galáxia os cientistas conseguiram achar um total de apenas
duzentos e cinquenta supernovas, o que permite um cálculo de quão antiga é a nossa
galáxia, e esse cálculo resulta em seis mil e quinhentos anos aproximadamente, o
mesmo período apontado na bíblia como o começo da criação. Se os evolucionistas
estivessem certos a respeito da idade da terra, segundo essa evidência indica, nós
teríamos dezenas de milhares de supernovas na nossa galáxia, e não apenas algumas
centenas. Ademais, segundo uma projeção matemática, em bem menos de quatro
bilhões e meio de anos atrás (que é quando o universo teria começado) a lua estaria tão
próxima da terra que chegaria mesmo a atingir a terra. — Disse o Sr. Marcondes.
– Um dos argumentos contra um universo antigo é que a população humana parece ter
começado aproximadamente quando do evento no jardim do Éden descrito na bíblia.
Para que duas pessoas gerem uma população de sete bilhões e trezentos milhões, seria
necessário apenas mil e cem anos a uma taxa modesta ou corriqueira de crescimento.
Por que a população mundial não é bem maior que sete bilhões? E ademais, onde estão
os ossos dos restos mortais indo bem mais avante no passado do que seis mil anos? E,
considerando-se que toda civilização adotou a prática de enterrar os mortos, onde estão
as tumbas e os cemitérios antecedendo de muito seis mil anos de história? — Perguntou
o Sr. Marcondes.
Mark riu-se, com satisfação. E disse:
– Muito bem, vejamos agora a teoria da evolução.
– A teoria da evolução… — repetiu o Sr. Marcondes. — Segundo ela todos os seres
viventes vieram de um único, ou de uns poucos, seres primitivos. E, na mesma linha,
esses seres primitivos sofreram mudanças através de certos processos naturais. Seria
impossível aos cientistas, basicamente, estudar todas as espécies (que somam mais de
oito milhões), por isso eles selecionaram algumas delas para provar o ponto, e aplicar as
conclusões a todas elas. Um grupo de animais, chamados cetáceos (os quais são
mamíferos), serve bem para ilustrar. Entre eles está a baleia, e se acredita que todos eles
descendem de um mamífero terrestre quadrúpede, incluso a baleia. A disciplina de
anatomia comparada demonstra que as baleias fêmeas, como os mamíferos terrestres,
têm placentas onde repousam os fetos em gestação; elas têm a função de amamentar as
crias com leite; e, também, as baleias têm sangue quente, o que é algo extremamente
raro nos peixes em geral. Em vez das guelras ou branquias dos peixes, que são
“barbatanas” ou tecido móvel do seu sistema respiratório, as baleias possuem dois
pulmões perfeitamente desenvolvidos, e respiram ar. As baleias não têm narinas, ou
aberturas respiratórias como outros mamíferos, mas têm buracos respiratórios que ficam
no topo da sua cabeça. Muitas baleias têm cabelos, assim com os mamíferos terrestres.
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A estrutura óssea das baleias, dentro das barbatanas, possui exatamente a mesma
estrutura das patas de muitos mamíferos: Braço, punho, mão e dedos, com o braço
precedendo o punho possuindo uma parte de osso único e outra parte com um osso
duplo. Embora não possuam patas traseiras, as baleias possuem dois pares de ossos
traseiros muito pequenos e apagados dentro do seu tronco, e exatamente onde os ossos
das patas traseiras deveriam aparecer, com uma estrutura que se assemelha de algum
modo a patas, insinuando as mesmas junções que em outros animais apresentam os
quadris e as canelas.
– Há além disso o campo da embriologia, que é o estudo do desenvolvimento anatômico
anterior à cria ser dada à luz. — Continuou o velho. — O embrião humano se assemelha
muito com o de um golfinho. Em um estágio mais primitivo do embrião do golfinho, ele
apresenta como uma face com duas narinas, exatamente como outros mamíferos, mas
depois de desenvolvido inteiramente ele apresenta apenas uma abertura respiratória e
ela se desloca para o topo da sua cabeça.
– Os registros fósseis apresentam, ainda, uma evidência interessante: As baleias
jurássicas, chamadas basilosauros, têm esqueletos descobertos em estado relativamente
considerável de preservação. Se acredita que os basilosauros viveram há quarenta
milhões de anos atrás. Eles têm patas traseiras que, não obstante sejam incompatíveis
com a vida terrestre, são ligeiramente mais desenvolvidas e extensas relativamente às
patas das baleias atuais, as quais estão reduzidas a bem pequenos osso que não se vê
senão através de um esquema ósseo das baleias, porque esses ossos estão no interior do
tronco. Uma outra criatura, anterior ao basilosauro em dez milhões de anos, conforme se
estipula, é o maiacetus inuus, o qual, por ser sempre encontrado perto de elementos
aquáticos, se considera que era uma baleia; mas ao contrário da baleia e do basilosauro,
ele possui patas traseiras muito mais desenvolvidas e extensas, com nadadeiras (o que
se infere do formato dos ossos que correspondem aos dedos), permitindo mesmo, talvez,
uma vida terrestre. Fósseis de seres como o maiacetus abundam. — disse o Sr.
Marcondes.
– O exame de DNA nos informa que o DNA das baleias se assemelha mais ao do
hipopótamo do que ao de outras criaturas viventes. Os evolucionistas creem que as
baleias e hipopótamos evoluíram a partir de um ancestral comum. Por conta disso os
estudiosos se surpreenderam, uma vez que as baleias são carnívoras, e os hipopótamos
são em geral herbívoros. Mas, como as baleias, os hipopótamos dão à luz e amamentam
as crias debaixo da água. Os dois possuem estômagos com câmaras diversas, o que é
comum entre herbívoros, mas não entre carnívoros, uma vez que um estômago múltiplo
tem a função de auxiliar os ruminantes a digerir o pasto (e a ruminação é o processo
pelo qual o bolo alimentar parcialmente digerido volta à boca para uma nova
mastigação de reforço). E, conforme se examinou, os testículos das baleias, como os dos
hipopótamos, são internos, o que não acontece em nenhum outro mamífero que não
eles. Portanto, essas evidências fortemente sugerem um ancestral comum. E outras
considerações, advindas de fontes e disciplinas completamente independentes,
corroboram esses indícios, não raro de um modo surpreendente, e sem dúvida alguma
de um modo abundante. — Disse o Sr. Marcondes.
– O Sr. acredita na evolução, então? — Perguntou Mark, desconcertado.
– Não. — Disse o velho.
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– Por quê? — Indagou o kardecista, e quinto Antonov a debater.
– Porque há certas evidências avassaladoras contra essa tese. — Respondeu o Sr.
Marcondes. — David Berlinski, PhD, a quem não se atribui comumente “credenciais”, é
na verdade um estudioso sem qualquer denominação religiosa e que conhece e tem
próximos amigos acadêmicos de vários ramos da ciência, incluso ciências exatas e a
biologia, embora ele se tenha formado em filosofia. Ele é contrário ao darwinismo. O
primeiro fato que os evolucionistas procuram esconder é que há ateus que rejeitam a
teoria da evolução, a própria escritora Ann Coulter menciona alguns cientistas desse
tipo no livro Godless: The Church of Liberalism, além do que o Sr. Berlinski ele próprio
não tem qualquer religião determinada nem pensa em si mesmo como fundamentalista;
a sua rejeição do evolucionismo foi gradual e se baseou em um exame bastante
demorado. Portanto a ideia de que se necessita a todo custo salvaguardar a Deus com a
rejeição da teoria, é no mínimo problemática. E o mais irônico nisso tudo é que os
evolucionistas não raro são pessoas no mais alto grau incapazes de desdenhar a teoria da
evolução ou colocá-la entre aspas, mesmo que para os fins de ouvir algum argumento;
eu conheci evolucionistas literalmente histéricos, a quem a mais simples linha de
argumentação, mesmo quando indireta, mesmo quando um elo dentro de um raciocínio
maior, era deliberada e abruptamente mal-compreendida, o que é o equivalente a se
tapar os ouvidos e cantarolar. Portanto o evolucionismo é um ponto sensível aos não-
evolucionistas apenas de um modo acidental, mas eu estou ainda para achar um
evolucionista (talvez haja, mas não estou certo) que realmente queira ouvir objeções
sem se portar como uma criança levada que, perdendo no xadrez, derruba e espalha as
peças com irritação.
– Para começo de conversa — disse o velho — John von Neumann, um destacado
polímata, matemático (tanto de matemática pura quanto aplicada), físico, e membro do
Projeto Manhattan (que desenvolveu a primeira bomba atômica), acreditava que a
Teoria da Evolução é uma ideia ridícula. Ele, um dos grandes matemáticos do século
XX (junto de algumas dezenas de outros matemáticos) rejeitou a evolução e seleção
natural como origem da espécie humana e das espécies em geral. O consenso em torno
da evolução está mais ligado ao campo da biologia que ao da matemática e ao da física,
mas mesmo entre biólogos acadêmicos há algumas exceções que riem da teoria da
evolução. Por exemplo, um famoso zoólogo da Royal Society do séc. XX, e especialista
em anatomia comparada (a mesma disciplina de Thomas Huxley, o grande defensor de
Darwin), chamado David Meredith Seares Watson, afirmou ele: “A Teoria da Evolução
é uma teoria universalmente aceita não porque se pode provar que seja verdadeira, mas
porque a alternativa a ela, [chamada] criação especial, é algo claramente inacreditável”.
– Temos, é claro, os registros fósseis. — Continuou ele. — Mas os registros fósseis não
são uma fonte tão segura para conclusões. Eis o que diz um autor, Colin Patterson
(falecido curador do Mudeu Britânico de História Natural que é querido dos
evolucionistas) em correspondência com um evolucionista: “[…] as proposições sobre
ancestralidade e descendência não se aplicam ao registro fóssil. É o Archaeopteryx
[conforme sugeriu Thomas Huxley] o ancestral de todas as aves? Talvez sim, talvez
não: Não há modo algum de responder a questão. De fato é bem fácil inventar histórias
sobre como uma forma deu lugar a outra, é bem fácil achar razões para explicar as
etapas pelas quais as formas passaram favorecidas pela seleção natural. Mas tais
histórias não são parte da ciência, porque não há modo algum de testar se estão certas
ou não”. Um outro problema com os registros fósseis é que criacionistas alegam que a
chamada “coluna geológica” que indicaria uma escala geológica de muitos milhões de
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anos, na verdade é o fruto de um tipo de sedimentação abrupta ocorrida quando do
dilúvio de Noé. Se trata da velha disputa, na qual Darwin contribuiu, entre o
catastrofismo e o gradualismo. Os criacionistas explicam a coluna geológica através do
“sorteio hidráulico” (a hidráulica é a ciência dos líquidos, e a sua relação com os
corpos), mediante o qual certos tipos de animais naturalmente, por seu formato e
densidade, se depositaram durante o processo diluvial no fundo da sedimentação antes
de outros corpos. A contra-argumentação dos evolucionistas a isso é bastante específica,
e se baseia por exemplo em apontar a diferença de propriedade entre vegetais e animais
que deve ter influenciado o “sorteio hidráulico”, entre outras coisas; mas não é de todo
absurdo procurar discutir alguma tese catastrofista em geologia por um fato bastante
notório, e que se impõe com grande vantagem: Todas as civilizações antigas de que se
tem conhecimento (e eu estou falando de algumas civilizações cujo nome muitos até
desconhecem), sem exceção, mencionam um dilúvio. Se nós pusermos sujeira em um
frasco, e isso foi demonstrado com um frasco de vidro em formato verticalmente
achatado para fins de exposição; se a pusermos no frasco e mexermos ou agitarmos o
frasco, o depósito vai se fixar em camadas, exatamente como os criacionistas alegam
que aconteceu quando do dilúvio. Muitas árvores com um aspecto que deveria ser mais
recente que milhões de anos são encontradas em camadas de milhões de anos, e,
ademais, muitas árvores do registro fóssil foram encontradas de cabeça para baixo, o
que sugere o evento apontado na teoria do catastrofismo. Ademais, a teoria gradualista
foi grandemente posta em dúvida pela atividade vulcânica no sudoeste de Washington a
18 de maio de 1980, quando o Mount St. Helen explodiu e mudou drasticamente toda a
paisagem local. Para um objeto ser fossilizado ele necessita ter partes duras, como
esqueleto ou couraça, ou madeira, tem de ser enterrado rapidamente para fazer frente à
decadência, e também necessita não ser perturbado durante o longo processo de
fossilização, sendo o fóssil aquele vestígio da matéria orgânica que mantém ainda a
capacidade de aludir ao objeto vivo do qual se originou.
– Segundo o Dr. Berlinski não apenas a inexistência dos “elos perdidos” (admitida por
evolucionistas como Dawkins, o qual afirma que temos sorte por haver registros fósseis
de todo, ainda que “incompletos”), mas muitos outros detalhes a respeito dos registros
fósseis, não fazem muito sentido se o evolucionismo está certo. Berlinski analisa a
alegação darwinista de que as variações randômicas inter-geracionais e a seleção natural
contribuem para explicar a complexidade e o número enorme de espécies distintas; ele
analisa essa alegação e, tentando estabelecer algum paralelo entre isso e teorias bem-
sucedidas da física, afirma que é uma alegação absurda. Newton, no século XVII
afirmou que os corpos se atraem por meio de uma força; não qualquer força, mas uma
força que aumenta ou diminui conforme uma proporção invertida e ao quadrado. A
partir disso ele demonstrou não apenas que a órbita da terra, ou de marte, deve ser
cônica, e não circular; mas que se a órbita dos planetas é cônica, os planetas devem estar
gravitando em torno de um centro gravitacional por meio de uma proporção invertida e
ao quadrado. Esse tipo de tira teima ou “prova real” simplesmente inexiste, com essa
clareza, na teoria evolucionista, a respeito de se demonstrar que as variações randômicas
e a seleção natural contribuem ou reforçam a complexidade e o número diferente, de
uma variação alucinante, de espécies. Não há nada na teoria darwinista que explica
claramente, como Newton explicou a gravidade, as diferenças entre uma raposa e uma
medusa, entre um gato e um tubarão. — Afirmou o sr. Marcondes.
– Ademais — continuou ele — muitas especulações em ciência são, hoje, trabalhadas
através de modelos e hipóteses testadas por cálculos de computador. Isso é feito na
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física quântica, por exemplo, e em outras disciplinas como a genética. O Dr. Berlinski
assegura que a hipótese darwinista, testada matematicamente por computadores, não dá,
como em ouras áreas, resultados satisfatórios que confirmem a evolução. É por esse tipo
de coisa que o matemático von Neumann considerava a evolução uma ideia ridícula. A
Teoria da Evolução, também, quando testada laboratorialmente, não permitiu inferir que
um cachorro deixa de ser cachorro, ou uma bactéria deixa de ser bactéria. Dawkins
aponta para certos experimentos em que no curso de décadas um descendente de cães
passa a se assemelhar a uma raposa, mas isso parece reforçar mais a ideia de que todas
as especies atuais têm ancestrais da Arca de Noé, do que têm ancestrais advindos de
algum ser unicelular. O que se percebe é que cada espécie parece ter um limite para as
variações que pode sofrer. Uma ave como o tentilhão vai mudar o formato do bico, mas
não vai mudar tão drasticamente de modo a se tornar irreconhecível.
– Se tomarmos — continuou o Sr. Marcondes — o exemplo da baleia: Nós temos
originalmente um mamífero terrestre, e temos que transformá-lo em um mamífero
marinho que respira pelo ar e tem pulmões. Quais são todas as características que têm
de mudar no mamífero terrestre, mais ou menos como uma vaca, para que se torne uma
baleia? Para usar uma analogia: O que seria preciso mudar em um carro, para torná-lo
um submarino? Muita coisa tem de mudar para um mamífero terrestre se tornar uma
baleia. O tipo de pele tem de mudar; o formato do corpo, para facilitar os movimentos
de mergulho, tem de mudar; o sistema de comunicação do leite materno tem de mudar;
os olhos têm de ser protegidos; o tipo de aparato digestivo tem de mudar, porque a
comida tem de mudar etc. O número de mudanças listado para essa transformação, nos
cálculos do Dr. Berlinski, não poderia ser menor que cinquenta mil, e as mudanças
teriam necessariamente de ser interdependentes, ou consideradas como dependentes
umas das outras no seus curso, enquanto tomam lugar de geração a geração. Se há uma
quantidade tão numerosa de alterações, e necessidades que devem ser tão delicadamente
atendidas para que possam dar certo, isto é, para um mamífero terrestre se tornar uma
baleia, a que se pode atribuir que o animal tenha conseguido fazer frente a tão
numerosas restrições? Ao acaso apenas?
– Há também a questão da homologia, a semelhança, por exemplo, entre o feto do
golfinho e o feto humano. — Continuou o Sr. Marcondes. — Mas, por exemplo, a
homologia às vezes se apresenta entre espécies que estão separadas geograficamente de
um modo que diminui a probabilidade de terem tido um ancestral comum, senão um
muito primitivo que não se assemelharia a elas muito. E além disso, às vezes a
homologia parece indicar uma regularidade bastante expansiva e de algum modo
incompatível com um processo randômico, como por exemplo o fato de os mamíferos
terem geralmente cinco dedos, a despeito de uma enorme variação de formas no meio
desse grupo.
– E ademais — continuou ele — a evolução nos diz que as variações são o produto de
mutação, ou que a mutação é a força que propulsiona a evolução. Mas, e isso é bastante
sério e significativo, praticamente todas as mutações que se possa examinar
empiricamente são deletérias, ou comprometedoras da sobrevivência. Os seres viventes
são organizados pelos aminoácidos e códigos presentes no DNA, de modo que uma
mutação se deve supor que mais provavelmente destruiria ou comprometeria a
constituição desses mecanismos. Por que, exatamente, se deve pensar que as mutações
tenham impulsionado a evolução, e não lhe comprometido catastroficamente? Por quê?
As variações darwinistas são randômicas, o que significa que em boa medida não se
sabe quando vão ocorrer, e que forma vão tomar. Isso significa que uma variação de A
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para B não tem absolutamente nada a ver com a variação de B para C, a não ser sob o
aspecto da seleção natural. Os matemáticos chamariam isso de “uma variável
randômica”; e essa variável randômica, não se sabe claramente por que, deu origem às
mais diversas e belas formas que se possa imaginar. Cada episódio da história da
evolução é independente do que o precedeu e do que o sucedeu, e não obstante
permaneceu por três bilhões ou mais anos sem a mais mínima interrupção e deu origem
a várias formas que não parecem no mais mínimo carecer da nossa admiração.
– A sua fala é impressionante — disse Mark — mas eu não sou um darwinista.
– Entretanto — tornou o velho — como eu tenho apontado, essa e outras novas
científicas fizeram a cabeça da geração que codificou o espiritismo: Karl Marx dedicou
O Capital a Darwin. A geração dos primeiros espíritas é uma geração que se deixou
impressionar, assim como Nietzsche, por uma quantidade formidável de mudanças na
civilização, as quais no seu conjunto pareceram pedir uma nova religião. E essa religião
tentou insinuar uma certa flexibilidade para com essas teorias e novas concepções, as
quais não há garantia que vão perdurar por muito tempo; e nesse afã de liberalidade o
espiritismo procurou até mesmo compreender o catolicismo. Como é possível conciliar
o tipo de subjetivismo inerente à mentalidade positivista (que ignora o desconhecido e
fora de alcance como ilusório) com o catolicismo? Resposta: Através de um sistema
que, tomando alguma doutrina ou pressentimento daqui e dali, não se assemelha a
nenhum doutrina anterior e não pretende nem mesmo, nas entrelinhas (exatamente como
o ateísmo), enunciar uma fórmula definitiva. O apelo do espiritismo se deve muito mais
a que suas histórias, e romances psicografados, trazem um incentivo poderoso à
imaginação (por certa exuberância não desprovida de qualidade estética que pode ser
vista como natural mesmo às fantasias sem nexo dos sonhos), do que à capacidade de
compreender as doutrinas a si alheias com uma generosidade ou abrangência
acadêmicas. Mesmo quando essa generosidade existe nos espíritas, não se trata de um
exame filosófico das doutrinas alheias, mas de um olhar complacente sobre as doutrinas
alheias, de vez que o espiritismo é completamente diferente de tudo mais.
– Temos — continuou ele — o caso do Roger Morneau. Ele foi um escritor canadense
que se interessou por um grupo que manifestava visualmente espíritos de antepassados.
Mas, segundo relata, os espíritos assim manifestos eram, para os membros menos
externos ao grupo, falsos espíritos, na verdade demônios. Os membros mais ligados ao
coração do grupo estavam não apenas cientes disso, mas engajados com esses demônios
em certas atividades. Um dos pontos interessantes a respeito de certa entrevista do Sr.
Morneau é que ele afirma que os membros dessa organização satânica à qual pertenceu
sabiam ou assinalavam que surgiria o fenômeno espiritual chamado New Age
Movement anos antes de ele estourar e mudar a face do mundo. O testemunho do Sr.
Morneau é fidedigno por vários indícios, um deles sendo que ele se mostrou um homem
“de princípios” quando jovem, ao largar a religião católica por causa do dogma “Fora da
Igreja Católica Não Há Salvação”; e também por ter ele, mais tarde na vida, e
arrependido da participação na seita maligna, ingressado na Igreja Adventista do Sétimo
Dia, escolha que não pode parecer de modo algum motivada pela ânsia de prestígio
social ou afluência, mas fruto de uma decisão baseada no exame pessoal da bíblia. Que
esse tipo de fenômeno espiritual (a ação de demônios ou outras entidades não-
corpóreas) tenha influência sobre a sociedade, é algo bem fácil de estabelecer. Por
exemplo, o conceito de “quinta dimensão” é muito discutido por homens da New Age
como David Wilcock, se trata de uma esfera ou âmbito diferente e concomitante com as
três dimensões normais quais percebidas pelo homem. Ora, um dos episódios de uma
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série televisiva antiga do Spider Man, disponível no Youtube, se chama “Revolta na
Quinta Dimensão”, e a história do episódio fala sobre extraterrestres; exatamente como
Wilcock, que acredita não apenas em OVNIs, mas em todo tipo de atividade alienígena.
A quinta dimensão também é o nome de uma banda pop dos anos sessenta, Fifth
Dimension, cujos membros compuseram talvez o mais famoso hino da New Age, a
saber, a música Aquarius. Também o senhor Wilcock nos informa que certas mensagens
ou informações apresentadas na série de tevê chamada Startrek (Jornada nas Estrelas)
coincidem com mensagens psicografadas ou adquiridas por meios “espirituais” que
circulam no meio da New Age. “Os programas de televisão estão nos dizendo a verdade
por meio da ficção há muito tempo”, diz ele algo assim. Existem meios sociais e grupos
onde circulam crenças que muitas pessoas não são sequer capazes de admitir como
críveis; mas dirão que tais grupos não existem. É necessário um “maluco” como o
estudioso protestante Al Neal para examinar de que modo todo tipo de mensagem
esotérica está presente em todo tipo de material impresso, como propagandas ou livros,
subliminarmente. A ideia parece fantástica, a princípio, mas na verdade, quando se
pensa a respeito é meramente natural que pessoas cuja linguagem o indivíduo médio
não está preparado para entender, se comuniquem entre si em uma faixa de linguagem
mais sutil e discreta, para fins de se identificarem e comunicarem.
– Ora, se a ortodoxia cristã está certa e o espiritismo e a New Age são um fenômeno de
origem demoníaca, como demonstrá-lo? Um modo de fazer isso é usando proposições
dialéticas, as proposições que Aristóteles dizia são respeitáveis. A totalidade das
pessoas, ou a maioria, tem necessariamente uma opinião respeitável. A maioria, ateus e
não-ateus, zoroastristas e não-zoroastristas, católicos e protestantes, todos acreditam que
uma quantidade muito grande de pessoas pode se enganar e crer no que é falso.
Evidências históricas disso abundam; por exemplo: Durante parte da Idade Média
milhões de cristãos, segundo se diz, acreditavam que Maomé era cultuado como um
deus pelos muçulmanos, o que é uma ideia falsa. A coisa mais fácil é uma pessoa ser
tapeada, especialmente quando ela não tem à disposição, certas informações, porque
fora de alcance. — Disse o Sr. Marcondes.
– Um dos expoentes do socialismo utópico, o engenheiro proponente de reformas
sociais chamado Barthélemy Prosper Enfantin, recebeu um dia a visita de um indivíduo
que conhecia a filiação de Prosper Enfantin às ideias do Conde de Saint-Simon. —
Disse o velho. — Esse indivíduo lhe disse que ele, Prosper Enfantin, era um messias
que havia de encontrar uma dama messias como ele e juntos reformariam o mundo. A
princípio Prosper Enfantin despediu o homem com cautela, mas depois de mais
insistências se deixou convencer por algum tempo, terminando por desistir da coisa toda
quando a sua parceira na missão messiânica não apareceu. Do mesmo modo um grupo
de devotos espanhóis alegou certa aparição mariana no seu meio, na década de sessenta,
a ponto de chamar a atenção do arcebispo tradicionalista Marcel Lefébvre. Este o
mencionou ao bispo Ngo Dinh Thuc e sugeriu que o averiguasse. Os membros desse
grupo, em Palmar de Troya, pediram que Thuc consagrasse alguns deles como bispos, e
um desses homens (chamado Clemente Dominguez, que mais tarde, seis meses depois,
alegaria ser papa) afirmou diante do monsenhor Ngo que recebera misticamente, do
Paulo VI, a autorização para a consagração. O monsenhor Ngo, e pessoas que lhe viram
no último ano de vida asseguram que estava são e não senil (a exemplo do bispo
sedevacantista Neal Webster), acreditou nele. Por que esses fenômenos acontecem?
Pelo mesmo motivo, me parece, que o personagem de O Máscara consegue engajar
qualquer um nas suas palhaçadas, como alguém inebria ou droga o senso de realidade
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alheio. Não é de admirar que atividades demoníacas, tão frequentemente associadas à
chamada possessão, impliquem em um turbamento do discernimento das pessoas. E
esse fenômeno é tão frequente e corriqueiro; e também é tão claro que pessoas
envolvidas nisso se sentem como mulheres estupradas, humilhadas no seu orgulho
brutalmente; que deveria ser tratada com irritação a atitude de estigmatizar pessoas
vítimas de eventos assim. Também causa alguma irritação que os ateus tratem esses
assuntos como um capial espantado diante de uma metrópole, quando, segundo Santo
Agostinho a respeito da geração de cristãos do seu tempo, qualquer senhora cristã não
teme o demônio e suas manifestações, nem se espanta com essas coisas, de modo
algum. Na minha opinião, se você se filiou a alguma doutrina errônea, ou acreditou em
alguma falsa revelação privada, isso tem bem menos importância do que você pensa. O
que importa é que existe “Uma fé, um Senhor, um batismo”. Algum padre da Igreja
argumenta que se de quarenta mil israelitas saídos do Egito apenas dois viveram para
ver a Terra Prometida, o número de pessoas salvas será proporcionalmente pequeno. É o
mesmo que dizer, em analogia a isso, que de quarenta mil manifestações espirituais e
alegações de mensagens sobrenaturais, provavelmente apenas uma ou duas se
verificarão fidedignas.
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Marxismo
– Pois então Karl Marx era um existencialista? — Perguntou Mary com curiosidade.
– Como não? Sempre que nós lemos um autor, nós vemos que ele se expressa através de
universais. Mesmo aqueles cujo trabalho se aproxima mais do campo jornalístico,
geralmente têm uma certa “metodologia”, como chamam, que é um outro nome para
algum universal. O universal é aquilo que se pode dizer de mais de uma coisa, ou de
coisas que apresentam diferenças entre si. É quando nós conhecemos o universal, ou o
conjunto de noções universais com os quais um autor se expressa, que passamos a
entender os seus princípios, e ao entender os seus princípios entendemos, também,
aquilo que para ele fundamenta o seu conhecimento, o que lhe parece mais real, o que
para ele ancora todas as conclusões consecutivas e contingentes, ou mais relativas e
menos principiais. Ao se examinar o marxismo, e a vida pessoal de Marx e outros
comunistas, se percebe que, embora eles se tenham dedicado a analisar algum fenômeno
político, eles se interessaram igualmente por outras ciências, por exemplo a biologia
(Marx dedicou O Capital a Charles Darwin). Isso significa que ele cria, como todos nós,
que um conjunto determinado de princípios se aplica a ciências completamente
distintas. Ele acreditava em universais que transcendem o limite da ciência política ou
da propaganda política.
– Erram portanto, — continuou o velho — os que dizem que para Marx toda esfera da
superestrutura, toda expressão cultural, toda expressão indireta das ciências e discussões
acadêmicas, seja uma modalidade de indução à acomodação para as massas, para o
proletariado, ou para aqueles que pertencem a classes economicamente exploradas. Isso
porque, uma vez que ele acreditava em universais, ele acreditava também na capacidade
humana de apreendê-los. Ora, um universal é por definição uma proposição ou ao
menos um elemento que pode ser averiguado e clarificado indutivamente pelo dia a dia,
através da experiência e dos exemplos concretos experienciados. Os princípios, em Karl
Marx, existem, mas eles são necessariamente mais universais que os princípios da ação
política, porque ele estava ciente de universais assim. Quais são então esses princípios?
Você sabe?
– Eu penso saber. — Respondeu Mary. — Ora, Marx viveu gerações depois da
influência da escola escocesa do senso comum sobre correntes políticas. Ele mesmo
refere um autor como Victor Cousin, que afinal era um secretário do governo francês,
além de filósofo e educador. A ideia básica da escola escocesa fundada por Thomas
Reid é a de que existe um princípio supra-individual, algo que não é propriamente
testemunhado por todo e cada indivíduo, uma espécie de esfera que concentra as
experiências de diferentes gerações, ocupações profissionais, testemunhos, tradições,
uma fonte natural de preceitos e orientação da qual os homens bebem, no plano
individual, e que eles não podem, nem nunca poderão compreender completamente
como funciona ou de onde vem. Às vezes agimos instruídos por princípios que mal
conhecemos, eu bem conheço o poder do senso comum, senhor Marcondes. Eu
caminhava um dia, próxima de um sítio, e vi algumas cobras margeando o caminho. Por
isso, sem ter pensado a respeito, eu avisava todos que passavam por mim, sem sequer
ter planejado fazê-lo. A dinâmica da existência social do homem parece indicar que ele
é imerso em uma esfera supra-individual, desde cujo ponto de vista o homem parece
nem sequer possuir uma consciência separada, parece apenas servir a sociedade, e ser
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esta a sua consciência. A persistência dos movimentos sociais, inspirados no aspecto
“radical” da Revolução Francesa, antecedendo de muito a geração de Marx, parece
indicar isso. A sociedade, o princípio que transcende a nossa consciência, parecia gemer
pedindo pela instauração de um regime em benefício do proletariado. Esses movimentos
se manifestaram de muitas maneiras, através de muitas tradições, até o socialismo
científico. Um socialista utópico como Fourier propunha uma ação associativa, um
sistema de cooperativas. Um historiador como Jules Michelet propunha algo como um
princípio nacionalista que suprimiria o conflito de classes. Nos dois casos parece ter
faltado a compreensão de em que consiste a o fenômeno social. O social é quanto seja
relativo aos costumes (um ponto demonstrado por Ortega y Gasset), e portanto a
implementação de um costume é um sinal de poder. Isso significa que o plano a ser
acatado em benefício do proletariado seria aquele no qual o proletariado tivesse o poder
de efetuar e efetuasse verdadeiramente a moldagem dos costumes seguidos por todo,
porque o conjunto desses costumes é o próprio Estado. A apropriação das forças
produtivas e sua utilização adequada, como expressão da vontade proletária, seria
necessariamente a implementação de costumes. Ora, os costumes são tradições, são
elementos do senso-comum, daquilo que é relativo ao âmbito supra-individual da
realidade.
– Eu não nego — tornou o velho — que exista de fato um âmbito supra-individual que
se possa associar de algum modo à sociedade, ou ao menos àquilo que chamamos
tradição social. Isso é verdade, mas a tradição social enquanto tal não é um elemento
principial, senão de modo relativo. É preciso, por exemplo, estabelecer universais, como
princípios fundantes do conhecimento, que transcendam o plano das tradições sociais, e
se apliquem como princípio também à realidade material enquanto tal, uma vez que
Marx admitiu que o mundo físico pode ser conhecido por princípios que se aplicam a
essa ciência, e como eu apontei, se há mais de uma ciência, há princípios que que se
aplicam a todas as ciências sem distinção, ou que se aplicam à ciência em geral, ou à
ciência enquanto ciência. E para falar a verdade se trata de estabelecer não apenas o
princípio do conhecimento, para Marx, mas o princípio em sentido irrestrito, para ele.
– O que seria? — Perguntou a noiva.
– Quando lemos a literatura que Marx deixou, como os artigos do New York Tribune,
ou alguns trechos de uma obra de mais fôlego como o 18 de Brumário, frequentemente
se tem a sensação de que ele carrega em uma retórica má, suspeita e fantasmagórica. —
Continuou o velho. — A retórica é sem muito exagero a própria ciência, quando bem
praticada, ou melhor, quando verdadeiramente praticada; ela traz todos os elementos
que considero essenciais à ciência: Em primeiro lugar é uma discussão (ou
qualificação); em segundo lugar é uma linguagem; e por fim tem um movimento
compreensivo, ela vai estendendo as proposições das anteriores para as ulteriores, sem
perder o fio da meada. É por isso que a retórica, para Aristóteles, era um ramo ou
modalidade da dialética. A retórica qualifica, isso significa que estabelece universais e
logo mais as suas espécies, assim se pratica a ciência. Mas o estilo literário de Marx,
muito impressionante e informativo mesmo no plano dos artigos de jornal, conforme até
o Edmund Wilson admitiu, faz que ele sempre mova os universais em uma direção
escolhida de antemão. Por exemplo, na década de cinquenta ele opinou sobre o suicídio
dissipando como ilusão todo fator psicológico relativo a mimetismo, e insistindo no
caráter social do fenômeno. Mas, em primeiro lugar, um autor recente como Robert
Cialdini demonstrou com suficiência (dados estatísticos etc.) que o fator mimético está
relacionado ao suicídio; isto é, pessoas vão cometer suicídio mais frequentemente
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quando virem que indivíduos de perfil semelhante, em situação semelhante, cometeram
suicídio. Nós instintivamente procuramos nos assemelhar às pessoas que achamos que
se parecem conosco, não somente quanto a raça ou fenótipo, mas quanto a fatores como
sexo, idade, ou interesses. O suicídio de pessoas que se parecem conosco é como um
sinal verde para lhes imitar. Karl Marx não viu isso, ou não quis ver, mas atribuiu
suicídios a causas materiais relativas a condições materiais dos indivíduos, e por esse
aspecto apenas considerou aparentes regularidades entre o número de suicídios e a as
condições ou a estrutura social ambiente. Karl Marx podia falar retoricamente só a
pessoas que pensavam exatamente como ele, mas era tremendamente incapaz, por causa
desse tipo de vício imaginativo e teórico, de transitar por todas as faixas e direções
diferentes nas quais se pode encontrar universais.
– Você se refere a um erro particular que ele cometeu, não ao princípio que ele
postulava. — Tornou Mary. — Lembremos que ele não viveu o suficiente para
conhecer o trabalho de Sigmund Freud, ou os experimentos psicológicos de Pavlov com
animais. Além disso o desconhecer ou apequenar uma determinada faixa ou universal,
como o campo psicológico, não equivale tão claramente a dissipar todo princípio da
ciência enquanto tal.
– Sim — tornou o velho — mas o princípio do senso comum, que você apontou, do
modo que apontou, não pode ser um princípio geral; ademais causa estranhamento que
alguém que faça análises políticas apequene ou dissipe processos que são estritamente
psicológicos quando nós sabemos que na política, como no discurso dialético marxista
costumeiro, se está continuamente brincando ou flertando com a tenção entre o plano do
conhecido e do desconhecido, porque as estratégias e posicionamento no âmbito
político dão verossimilhança máxima à mentalidade kantiana, marcada como é pela
impressão de que a noção efetuada pelo juízo é a noção efetuada por um conteúdo mais
conceitual do que relativo à coisa em si. Na política a expectativa alheia, e a
compreensão da ordem da essência humana no seu aspecto psicológico, é crucialmente
importante justamente porque as ações políticas têm de ser referidas a conceituações, e
têm de ser motivadas por conceituações. Os bons políticos são bons psicólogos, assim
como o são os bons vendedores. Esses dois ofícios são amparado por tradições que
tornam explícito, de algum modo, o campo psicológico. Como justificar que Karl Marx
suprimisse o campo psicológico de modo tão sumário, sendo ele um analista político?
Ele suprimia pontos de vista, seja de Hegel ou outros autores, com tanta naturalidade, e
a sua retórica é tão naturalmente assim configurada, que é sem dúvida isso é um sinal ou
expressão do princípio da filosofia dele.
– O que pode ser esse princípio? — Perguntou Mary. — Por aquilo que você notou,
sobre a necessidade de esse princípio da filosofia dele transcender a natureza física
como objeto, eu julgaria que você refere a metafísica dele, assemelhada, segundo se diz,
à metafísica de Espinoza a que ele se referiu com aprovação certa vez.
– Eu não diria que a filosofia dele está baseada em Espinoza. — Tornou o velho. —
Engels, co-autor com Marx de vários textos, traçava uma linha pouco distinta entre o
agnosticismo e o materialismo ao qual aderia. Espinoza traçava um linha pouco distinta
entre o plano da manifestação e da infinitude. Não é bem dessa impressão que se funda
a filosofia de Marx; até porque o que Espinoza entreviu a respeito de metafísica, ao
contrário do que supôs a Madame Blavatsky (segundo creio), não está carregado de uma
taxonomia e qualificação tão completa e “sistêmica” quanto está a metafísica oriental, a
qual se apresenta, sem variações, entre hindus, chineses, e muçulmanos; porque se
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estivessem tão evidente para Marx as distinções orientais que Espinoza acidentalmente
intuiu parcialmente, se estivessem tão distintas quanto estão aos sheiks muçulmanos,
Marx estaria convicto da existência de uma revelação pronta e acabada que abarcaria
sinteticamente não apenas o plano mais “abstrato” e universal do ser, e do que
transcende o ser em sentido convencional, mas todos os estados do ser, e todas as
disciplinas e ciências, até mesmo as empíricas e experimentais. O caráter sistêmico,
relativo a várias voltas e aspectos que explicitam e revolvem em torno do mesmo ponto,
da metafísica oriental, força a fazer crer que o que Espinoza e Marx entenderam a
respeito da manifestação como apenas aparentemente distinta da infinitude, foi uma
síntese confusa, uma espécie de lampejo poético sem profundidade. Isso é
particularmente reforçado pelo fato de Espinoza não ser, de modo algum, o herdeiro de
alguma tradição filosófica orgulhosa do senso-comum religioso em cuja esteira se
moveu. Ele era um individualista quase tão radical, se me é permitido pensar em voz
alta, quanto Max Stirner, ele não dava a mínima para ortodoxias. A sua visão de mundo
era a sua visão pessoal de mundo. Essa posição torna bem pouco verossímil que ele
tivesse herdado, intactas, taxonomias e uma qualificação de círculos concêntricos e
multifacetada do que concerne à metafísica, e isso explica o fato de a sua indistinção
explícita entre o plano da infinitude e da manifestação ter sido objeto de controvérsia
quanto ao sentido que ele quis dar a essa noção, alguns chamando-o panteísta, outros
atribuindo-lhe outros nomes e intenções.
Mary inferiu, desse dizer, que o velho Marcondes havia conhecido Espinoza de segunda
mão, tendo ela mesma lido a Ética.
– Você parece estar dizendo, — observou Mary — que o princípio da filosofia de Marx
não se assemelha a um conjunto de proposições, como a filosofia oriental, o que é
absurdo.
– Na verdade o que estou dizendo, apenas, — replicou o velho — é que uma verdadeira
compreensão de metafísica, para Marx, lhe teria dado um senso prático da consistência
e existência (existência que resiste ou se faz sentir como realidade a que se não pode
opor) dos diferentes âmbitos da realidade. Um princípio metafísico saudável faria que
ele pudesse se mover retoricamente em todas as direções sem atropelar ou suprimir
insensivelmente aspectos da realidade que não pareciam confirmar as suas hipóteses e
intuições científicas. Mas você deve estar curiosa para saber o que eu entendo como
sendo o princípio epistemológico e metafísico dele. Ele enfatiza invariavelmente a ação
humana histórica, e isso faz suspeitar que a abordagem dele seja uma forma de
transcendentalismo, isto é, uma visão da realidade na qual o conhecimento é atrelado,
desde o fundamento, ao sujeito conhecedor como sujeito. Por exemplo, em David Hume
o transcendentalismo se expressa em que ele enfatiza como problemáticas as inferências
lógicas, do sujeito que conhece, a partir das impressões experienciadas. Ele atribui essas
inferências, e portanto o juízo daí decorrente a respeito do mundo objetivo, a uma
decisão ou efeito que está no sujeito. Karl Marx percebeu que a ação humana histórica
pode ser examinada, a ação do sujeito humano como autor da história, pode ser
compreendida e fundamentada. É possível, segundo ele, entender porque a Rússia
promoveu sua campanha pan-eslavista em território turco-europeu, no séc. XIX: A
Rússia precisava promover seu mercado de exportação, tomando controle sobre portos e
mercados na Anatólia então dominados pelos ingleses etc. O homem compreende esses
eventos, em parte porque ele precisa compreendê-los para agir, e todos estão seguros de
que seria loucura não agir. Essa intuição se assemelha um pouco à escola de Thomas
Reid, mas ela pode ser apresentada exatamente como Edmund Husserl o fez,
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estabelecendo a relação entre o existencialismo e a fenomenologia. Se trata,
basicamente, da ideia de que o mundo real, o mundo da vida, possui uma profundidade
epistemológica pouco experimentada e examinada, e que nesse mundo, desse mundo, o
homem extrai o seu senso de orientação e as suas noções a respeito do que é certo,
seguro, real. O conteúdo do mundo experienciado é o princípio e o fundamento do
conhecimento. Portanto, um exame a respeito do fundamento do conhecimento é um
exame fenomenológico do que fundamenta as nossas ações no mundo real, é a própria
fenomenologia. É evidente que Karl Marx percebeu isso.
– Para tornar claro o que é a fenomenologia, talvez seja útil referir a sua influência
sobre as ciências. — Disse o velho. — Na primeira metade do século XX a
fenomenologia mudou a abordagem de várias ciências, e o ponto de vista de onde a
fenomenologia saiu é responsável, segundo me parece, pela ideia enfática tanto de que
um determinado campo do saber tem de ser explicitamente delimitado, quanto de que as
proposições de uma determinada ciência, pela falha da delimitação, podem assumir um
caráter analógico inadequado. O sociólogo americano Talcott Parsons especulava sobre
as ações humanas em sociedade supondo uma invariável racionalidade por traz das
ações; o seu pupilo Harold Garfinkel, influenciado pelo austríaco chamado Alfred
Schutz (um ícone da fenomenologia), passou a supor também as ações sob a influência
da irracionalidade, ou de uma racionalidade deprimida. O efeito da fenomenologia sobre
as ciências, a volta “para o mundo da vida”, de certo modo assemelha-se ao método
dialético que Aristóteles propôs, o qual método consiste apenas em sobrepor
proposições, e descer ao plano das espécies de um termo para observar o objeto sob
facetas diversas. A diferença, conforme Husserl prometeu, é que o método
fenomenológico oferece uma fonte incomparavelmente mais rica de proposições, e de
um modo inteiramente distinto do método aristotélico, ainda que a fenomenologia não
exclua, mas ao contrário se beneficie do método aristotélico.
– Talvez o senhor queira restabelecer o fio da meada agora. — Observou Mary.
– É o que eu pretendo fazer. — Replicou o velho. — A fenomenologia é um campo do
saber que propõe uma contemplação adequada do fundamento do conhecimento. O
marxismo, como a fenomenologia, propôs um método para essa contemplação baseado
na contemplação do conteúdo específico das decisões e ações concretas que se dão nos
acontecimentos históricos. Logo, Marx é um existencialista, na medida em que o
método fenomenológico o é. Esse é o fundamento da filosofia dele, e é um princípio, na
medida em que o conteúdo de toda ciência e todo conhecimento é tornado possível pela
ação histórica do homem. Daí se depreende que a ciência e a ação histórica, assim como
as ciências objetivas e a sua apreensão subjetiva, estão ligadas ou misturadas. Na
filosofia dele isso significa não apenas que o princípio supra-individual social, na linha
de Thomas Reid, projeta sobre a investigação científica o seu caráter concreto, mas
significa também que o único tipo genuíno de ação histórica, que necessariamente tem
um caráter social, é aquele no qual a ação histórica toma uma forma consciente e
responsável. Essa ação histórica genuína, para Marx, é o fundamento do conhecimento,
e é também algo simultâneo à consciência de classe e à ação histórica dela derivada.
– Eu estou curiosa, senhor Marcondes. Talvez você possa satisfazer tal curiosidade. Se
esse princípio existencialista é o princípio marxista, qual é o princípio da metafísica
oriental, análoga à fórmula de Espinoza, que o senhor disse não ter nada a ver com a
epistemologia marxista? E qual dos dois princípios é o mais correto? — Perguntou a
Srta. Crawford.
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– O princípio na metafísica oriental — respondeu o velho — se baseia na distinção, que
é apreendida subconscientemente, de modo mais ou menos perfeito, por todo indivíduo
humano, entre as diversas camadas e estados do ser, desde o plano mais contingente e
material, até o plano que transcende toda distinção. A substância, isto é, a forma tal qual
a matéria a carrega, é uma expressão da essência ou forma que a origina e mantém.
Toda manifestação é uma expressão de princípios, todas as coisas na sua multiplicidade
têm como princípio a unidade. Se a filosofia marxista supõe alguma unidade em sentido
metafísico, como é claro, de outro lado ela supunha uma unidade hipotética ou ao
menos não tornada inteiramente explícita. O fundamento do conhecimento, e da
realidade, tanto para o existencialismo quanto para o marxismo, é um conteúdo
específico, o conteúdo do mundo da vida. Ora, é esse também o conteúdo da metafísica
oriental, mas nesta última o conjunto desse conteúdo se apresenta de modo explícito e
sintetizado. No existencialismo o conteúdo se apresenta, no dizer de Edmund Husserl,
como uma nova dimensão bem pouco explorada, uma vez que o mundo da vida ele
demonstrou com bastante minúcia ser um plano estranho à filosofia européia e ao
desenvolvimento dessa filosofia sobretudo no período moderno. No caso da metafísica
oriental o fundamento do conhecimento é contemplado em todos os seus elementos, e
de modo explícito e suficiente. No existencialismo, o fundamento do conhecimento é
uma massa indistinta de elementos obscuros, cuja explicitação e qualificação depende
de uma certa prática. O desafio de exercer essa prática, no marxismo, tomou a forma da
luta de classes. Através da posse consciente e responsável da ação histórica da parte dos
homens, uma ação histórica contrária às ilusões dos interesses de classe escusos e não-
universais, a vida do mundo se tornaria mais explícita e as pressuposições camuflando o
verdadeiro sentido da “vida do mundo” seriam dissipadas pela atualização, ou pelo
efeito, dessa ação histórica. A alienação que reside em atuar historicamente em nome de
interesses ou de noções que camuflam a realidade é um tema comum do existencialismo
herdeiro de Husserl; basta lembrar aquilo que Sartre chamava “má fé”, isto é, um
indivíduo tomar o seu papel social momentâneo por seu eu em sentido irrestrito.
– Essa parece ser, de algum modo, a perspectiva marxista. — Disse Mary. — Mas… o
que o senhor tem a opor a essa visão? E o que isso tem a ver com o que você chamou da
“má retórica” em Karl Marx?
– Se o conteúdo da “vida do mundo” é uma massa “obscura” ou pouco explícita, e a
alienação ou “má fé” de caráter social é um obstáculo a tornar explícito o conteúdo em
jogo, resta claro que a ação histórica deliberada e consciente, a ação histórica
responsável e intensificada, seria um equivalente, no marxismo, àquilo que Eric
Voegelin chamaria “um salto para dentro do ser”, um desvelamento da realidade, a
dissolução de todas as pressuposições provisórias. Um modo de compreender esse ideal
seria consultar o panegírico feito por Ortega y Gasset ao fim do livro O Que É
Filosofia?, uma palestra ao fim da qual ele procurou descrever de que modo o acúmulo
de responsabilidades torna o mundo mais explícito e realizante, porque torna mais viva
e intensa a consciência. O desenvolvimento histórico do movimento revolucionário
marxista parece trazer essa premissa como algo fundamental. Assim como Ortega y
Gasset considerava os ideais vitais ilusões a que necessariamente se deve dedicar,
também o marxismo pareceu, de novo e de novo, não se importar com o conteúdo
específico da sua “profissão de fé” ou doutrina. Eduard Bernstein, um dos fundadores
do Partido Social-Democrata alemão, estava nas graças de Engels, e no entanto é uma
figura moderada em oposição à fórmula política leninista, e Vladimir Lenin tinha boas
relações com os comunistas europeus, ao menos parte deles (o que incluiu uma das
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filhas de Marx). A escola de Frankfurt, interessada em combater a seu modo as
tendências anti-espirituais da modernidade massificada, procurou sintetizar o marxismo
e o freudianismo, ao passo que um amigo de György Lukács (o poderoso intelectual
marxista da era estalinista) chamado Enst Bloch limpou as nossas almas dizendo coisas
bastante negativas do freudianismo. As relações entre a intelectualidade liberal-radical
nas artes da Europa e americas com o comunismo é coisa notória, baste mencionar que
o escritor Ernest Hemingway pregou o alistamento pela causa político-militar da
esquerda durante a Guerra Civil Espanhola (e isso em solo americano), é preciso apenas
ler a obra memorialística de Pablo Neruda, Confesso Que Vivi, para compreender de
que modo homens como Pablo Picasso e muitos outros artistas participavam do meio
social comunista e colaboravam com ele de algum modo. Um artista como Picasso, que
teve em vida uma exposição no Louvre em sua homenagem, não é de modo algum uma
exceção à regra quanto ao caráter do prestígio comunista. Os agentes do comunismo
colaboraram com um tipo de arte decadentista (relativa à arte pela arte, uma marca de
Hemingway) que um comunista tradicional da geração de Lenin consideraria perversão
burguesa, tipo de arte que chegou mesmo a ser perseguido pelos comunistas em solo
soviético. A unidade dessas posturas contraditórias não se explica apenas por alguma
discordância ou controvérsia no meio marxista, mas a ambiguidade e o jogo dialético
malicioso com proposições doutrinais provisórias é apenas uma expressão da
necessidade de agir intensificando a ação histórica o máximo possível. A cooptação
comunista da intelectualidade européia através de dinheiro e técnicas de espionagem,
fenômeno documentado por exemplo no livro Double Lives (Stephen Koch), serviu à
intensificação do processo histórico, por isso o conteúdo particular das ideias desses
artistas não importava.
– Do mesmo modo — continuou o velho — a Nova Política Econômica de Lenin, de
acordo com o ex-espião soviético chamado Anatole Golitsyn, foi chamada “nova
sinalização” ou associada a um movimento com esse nome, não porque significasse
realmente que os soviéticos haviam se abrandado e passado a considerar valor positivo a
retomada de liberdades civis e de atividade econômica, mas, como Golitsyn apontou, o
termo “sinalização” tinha um sentido duplo, se pretendia veladamente referir a
sinalização dirigida à Europa ocidental hostil, para acalmá-la e formar nela uma opinião
favorável. Uma prova disso foi a criação da República do Extremo Oriente, um aspecto
da Mudança de Sinalização; essa suposta província renegada e separada da União
Soviética tinha na verdade oficiais militares e administradores que eram agentes
soviéticos. A República do Extremo Oriente recebeu auxílio material de países vizinhos
que haviam formado uma coalizão contra os comunistas, entre eles o Irã. Depois de a
Mudança de Sinalização ter obtido os resultados pretendidos, a República do Extremo
Oriente foi devidamente reanexada ao território comunista. A versão mais recente dessa
estratégia foi descrita, mas não de todo abarcada, no livro New lies for old, do Sr.
Anatole Golitsyin. Nesse livro ele procurou demonstrar que à década de cinquenta os
soviéticos adotaram, sob os auspícios do estudo histórico da Mudança de Sinalização,
uma estratégia geral que implicava a redução drástica, nos países domésticos ao
comunismo, dos meios policiais diretos de intervenção para a manutenção do regime; e
implicava também a ênfase aumentada na infiltração de focos sociais de resistência ao
regime, e mesmo a criação artificial de focos de resistência ao regime. O resultado disso
foi multifacetado. A falsas inimizades apresentadas ao ocidente entre países da cortina
de ferro etc., entre países sob influência comunista, acalmou e relaxou a rotina da
OTAN, dos analistas políticos de agências governamentais e da imprensa, os quais em
parte estavam na folha de pagamento dos comunistas. Os partidos comunistas europeus
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se fragmentaram e pareceram divididos, além de serem denunciados fingidamente por
líderes comunistas como Enver Hoxha (presidente albanês autor de “O Eurocomunismo
é Anticomunismo”), propiciando que antigos líderes comunistas europeus fossem
cooptados por social-democratas e passassem a ser vistos como rivais da estratégia
russa. Mas esse é apenas o aspecto doméstico, por assim dizer, do que se chamou
“Estratégia de Longo Alcance”. Organizações internacionais que antes eram controladas
pelos soviéticos, se não simplesmente criadas por eles, passaram a aderir a certos ideais
associados à chamada New Left, cujos valores frequentemente colidem com os dos
comunistas clássicos como Lenin. Estamos falando de feminismo; abortismo; direitos
para homossexuais que estranhamente não têm precedente na história humana;
ambientalismo radical; a promoção da legalização de drogas; novos padrões de
julgamento para criminosos e mesmo a promoção de valores criminosos; e por fim, a
promoção de uma forma de indiferentismo religioso, por meio de organizações como a
United Religions Initiative, que se afigura uma espécie de espiritualidade ecumênica
virtual a se insinuar obscuramente na cultura secular e midiática. Não há dúvida que as
organizações e partidos de esquerda, que muito verossimilmente têm relações mais ou
menos estreitas com a inteligência russa (baste mencionar que o líder soviético
Gorbachev foi um dos mentores da filosofia New Age que articulou a URI, United
Religions Initiative), estão promovendo essas políticas de mudança civilizacional
radical a olhos vistos. Isso foi documentado por exemplo no livro da Ann Coulter
chamado Godless: The Church of Liberalism, no qual é mostrado que organizações
públicas americanas, políticos, pessoas da comunidade acadêmica etc., estão
empenhados na defesa de valores que representam o remodelamento da sociedade e a
banição da religiosidade tradicional, em benefício de outros valores que tocam desde o
âmbito da educação sexual infantil e a educação ambiental, e vão até questões
acadêmicas e/ou controversas e problemáticas, como o evolucionismo darwinista, que
os esquerdistas desejam impor como verdadeiro, e procuram impor como paradigma
hegemônico, como ativistas por uma causa política urgente.
– Um esquerdista e ateu influente como Richard Carrier — continuou o velho
Marcondes –, a despeito do seu PhD, parece mais um provocador radical intensamente
irritado com o fato de nem todo mundo concordar com toda a agenda política da
esquerda americana, parece muito mais com isso do que com um acadêmico, alguém
que deveria ser, acima de tudo, um indivíduo assombrado por perplexas questões. Não é
de surpreender que acadêmicos, como Bart Ehrman (um agnóstico famoso) e outros, se
engajem em controvérsias políticas de modo ao menos indireto; o mais interessante a
respeito do modo de falar ou expressar de certos acadêmicos americanos com ele, é que
eles tomam esse profundo distanciamento em relação aos valores civilizacionais
tradicionais como algo natural, e nisso dão o tom e o caráter de certos meios sociais. Os
meios sociais assim são insensíveis à surpresa desses novos valores em relação ao que é
tradicional, perderam a capacidade de ver que bem recentemente na história, há bem
pouco, a intelectualidade ocidental não via a fé religiosa tradicional como uma coisa
aversiva, sobretudo não no novo sentido contemporâneo. Talvez por isso quando um
filme moderno retrata a vida de um papa famoso por cometer pecados, como Rodrigo
Borgia (Alexandre VI), o filme necessariamente insinua que a fé desse papa era uma
farsa. Só na faixa mais marginal da expressão cultural da fé se afigura ainda pensável
que um indivíduo tenha fé genuína e cometa pecados, isto é, apenas na faixa mais
marginal da sociedade contemporânea, se pode reter sem estereótipo, mas desde uma
variação de formas e acidentes, e através de tal variação, o que é um religioso; isso está,
por exemplo, no filme Eclipse Total, sobre a vida de dois poetas franceses que eram
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homossexuais, além de frequentarem prostitutas, Arthur Rimbaud e Paul Verlaine. O
filme retrata parcialmente as dificuldades de se aderir à fé religiosa e ser uma pessoa
comum sob o peso do pecado original, com loucuras e virtudes, algum vestígio de
esperança e fraquezas. Esse não é o tipo de filme que as pessoas costumam ver.
– É certo, portanto, que o movimento comunista promoveu políticas que remodularam
toda a cultura ocidental, e que com isso promoveu a si mesmo na medida em que
promoveu a sua posse do poder de agir historicamente. — Continuou o velho. — O
conteúdo dessas políticas importa pouco, e vimos mais recentemente de que modo o
movimento revolucionário se serve até mesmo da tradição religiosa como meio de agir
sobre a história, a saber, com a chamada Quarta Teoria Política promovida na Europa e
na Rússia pelo estudioso Aleksandr Dugin, o qual redigiu a constituição do Partido
Comunista Russo nos noventa, segundo me parece, mas cujo trabalho procura sintetizar
o perenialismo de René Guénon (isto é, saberes esotéricos de sheiks muçulmanos e
polímatas aversos à modernidade ateística) com o agir revolucionário. O movimento
eurasiano do Sr. Dugin tem fileiras em toda a Europa Ocidental, e é promovido pelos
sucessores governamentais dos mesmos agentes comunistas que viviam durante a
Guerra Fria e são, de modo mais direto do que se imagina, os cérebros por detrás da
New Left que tanta dor de cabeça dá à Ann Coulter. O movimento comunista prova
mais uma vez que, a julgar pela vitalidade, ele está correto. Talvez esteja mais claro
agora o que eu quis dizer com “má retórica”?
– E a julgar por que parâmetro, — perguntou Mary — estaria errado o movimento
comunista?
– Essa é uma boa pergunta, minha cara. — Tornou o velho. — A maneira mais simples
de colocar seria que a experiência do fundamento do conhecimento, qual mesmo os
existencialistas o enxergam, implica a contemplação de uma ordem que transcende a
substância humana. Não se trata aqui, como os ateus frequentemente confundem, da
ideia de design inteligente, porque a filosofia escolástica concordava que há um
coeficiente de absurdidade em todas as coisas criadas, se trata apenas que, a despeito
dessa parcela de absurdidade que há nas coisas, se nota inegavelmente certa ordem. Isso
em ramos separados da vida, desde a ordem da ciência da lógica, até a ordem que há na
esfera social ou na biologia. Isso significa que a ordem que está na realidade é de algum
modo independente da ação histórica do homem, é algo no qual o homem está imerso, e
isso significa que é razoável pensar que essa ordem seja consciente; se alguma intenção
relativa a essa ordem consciente foi objeto de uma revelação divina dada ao homem nos
termos que a religião propõe, isso significa que não aderir à revelação nos termos da
revelação (como fazem os comunistas) é o mesmo que rejeitar a ordem do universo, e
qualquer tentativa de intensificar a ação humana histórica nesses termos seria não o se
adequar responsavelmente à unidade do real, mas se opor como um renegado à ordem
do real, e consequentemente à própria natureza humana. Homens alegaram que essa
revelação rejeitada pelos comunistas ocorreu, e é verossímil que tenha ocorrido porque
o universo é carregado de ordenamento em várias esferas distintas da realidade, e é
razoável supor que essa ordem seja consciente, é razoável supor não apenas que Deus
existe, mas que ele tem intenções, entre elas a de manter a ordem do universo e a vida
humana.
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Igreja Ortodoxa
– As escrituras dizem que o papa é o cabeça da Igreja. — Disse o velho.
– E também dizem que os bispos têm a mesma função, todos eles. — Replicou Victor.
– Isso segundo a sua interpretação das Escrituras. Muitos padres da Igreja cometeram
erros de interpretação. Mas deixa-me apresentar a coisa desde o início, conforme uma
exposição histórica que a minha experiência aponta, por causa dos defensores públicos
da religião ortodoxa, é bastante ignorada por vocês. A lista inteira de papas da Igreja
existe, foi compilada desde pelo menos o séc. IV com todo tipo de tradição ligada aos
nomes dos papas, se sabe coisas até dos mais antigos. Por exemplo, segundo Santo
Irineu de Lyon (180 A.D.), que vocês mesmos consideram um cristão genuíno, o
sucessor imediato de Pedro foi o Papa Lino, um dos companheiros de São Paulo
Apóstolo mencionado na Epístola a Timóteo. Os papas do início do século II
intervinham na vida da Igreja de modo decisivo, isso nunca deixou de ocorrer desde
então. Um dos discípulos do apóstolo São João Evangelista, chamado São Policarpo de
Esmirna, de acordo com São Irineu, viajou desde a região da Turquia até Roma apenas
para pedir ao papa da época por uma permissão litúrgica. Décadas depois, na geração de
Irineu (de acordo com o bispo Eusébio de Cesaréia, séc. IV), aproximadamente no ano
180 A.D., o papa procurou impor a todas as Igrejas do Oriente certas práticas litúrgicas
relativas à Páscoa em uso pelos latinos, e o resultado foi exasperar os indivíduos de
origem oriental como Irineu. Este chegou a exclamar algo como “O bispo de Roma vai
fazer a Igreja entrar em colapso!”. Isso significa que o papa tinha, certamente, um poder
significativo sobre as Igrejas, um poder que ele exercia ativamente e sem escrúpulos. —
Disse o velho.
– Ao século III o famoso bispo africano, São Cipriano de Cartago, perguntou
retoricamente em um escrito: “Acaso é possível se desligar da comunhão com Roma e
permanecer na Igreja?”. No séc. III o papa não apenas intervinha em disputas
diocesanas, mas habilmente passou a usar a intermediação do Imperador Romano para
exercer esse poder e ao mesmo tempo criar um laço com o Império que coibisse o poder
secular de ver a Igreja com suspeitas. Ele pedia a bispos de regiões distantes que
prestassem contas da sua ortodoxia e saúde dogmática fazendo declarações e profissões
de fé, ele estabelecia práticas litúrgicas adicionando algo ao cânon da missa, ou
estabelecendo as ordens menores dos clérigos abaixo do diaconato, ele levantava fundos
e doações para prover o bem-estar de cristãos em terras distantes que passavam fome ou
haviam sido presos e tornados escravos, lhes nutrindo ou pagando pela sua libertação.
E, acima de tudo, os papas tomaram para si o dever de dizer qual é a noção correta,
quanto a dogma e moral, a ser seguida pelos fiéis. — Disse o velho.
– Passada a última grande perseguição à Igreja, em fins do século III, — continuou o Sr.
Marcondes — o Imperador Constantino doou à Igreja Romana o suntuoso Palácio de
Latrão, se propôs a convocar e organizar o Concílio de Arles para atender a petições e
controvérsias surgidas na África por seguidores de um certo bispo Donato, que haviam
aderido a um cisma. O imperador fez questão de proclamar a liberdade civil para a
Igreja cristã, de modo que homens como São Martinho de Tours, Gália, pudessem
demolir templos pagãos, pacificamente, e propagar a fé sem obstáculos. Antes de
falecer o Imperador Constantino se deixou seduzir por um indivíduo chamado Eusébio
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de Nicomédia, por intermédio do qual a corte romana em Constantinopla passou a dar
atenção às teses teológicas de um certo Ário, um diácono egípcio. As teses basicamente
postulavam que Jesus não era Deus, exatamente, mas semelhante a ele. Contradizendo
um concílio convocado anos antes por Constantino em Niceia, cidade turca próxima de
Constantinopla, as ideias de Ário foram reinseridas na ordem do dia e engolfaram todo
o oriente, em eventos resumíveis na deposição do bispo Santo Atanásio de Alexandria,
seu subsequente exílio, e certos concílios de iniciativa do papa que deveriam absolvê-lo
mas foram sequestrados por manobras políticas; e portanto os papas não os aprovaram.
O imperador Constâncio, sucessor de Constantino, conseguiu estender sua influência
militar sobre a porção ocidental do Império, e foi pessoalmente ao Papa Libério impor a
condenação de Santo Atanásio e a aprovação dos cânons favoráveis ao arianismo, cerca
da década de trinta do séc. IV. Isso prova o quão decisivo era o papel do papa na
história da Igreja. Tivesse ele aprovado tais concílios, a falsa Religião ‘Ortodoxa’ teria
alguma base. Libério preferiu o exílio. Segundo São Roberto Belarmino os clérigos de
Roma mais tarde elegeram um sujeito chamado Félix para o papado, poque Libério
havia procurado arranjar uma trégua política com os arianos, mas há outras fontes que
indicam que Félix foi eleito apenas para suprir a ausência de Libério após o exílio. De
todo modo os clérigos de Roma não eram arianos.
— Ao séc. V sucedeu que acirrou-se uma disputa entre os patriarcados da Cristandade.
— Disse o velho. — Todos sabiam qual era a Sé principal do mundo, isto é, Roma. Os
demais Patriarcados, de Antioquia, de Alexandria, e de Jerusalém, tinham o seu
prestígio devido à tradição. São Cirilo de Alexandria, Egito, estava brigando pelo
segundo lugar, e o rival seu era o patriarca de Constantinopla. Ele soube das acusações
de heresia contra Nestório (o qual negara à Virgem Maria o título de Mãe de Deus),
patriarca da sede do Império (Constantinopla), e se pôs, com a autorização do papa de
Roma, a presidir um concílio convocado para julgar o caso. Os rivais de São Cirilo, que
incluíam o bispo Teodoro de Mopsuestia (o mentor intelectual do nestorianismo) e o
bispoTeodoreto de Cirro (considerado um santo por alguns dos ortodoxos, um
intelectual com obras de valor), foram vencidos e humilhados. Das duas versões do
concílio em Éfeso, onde se deu o embate, o único critério último para saber quem eram
os mocinhos e quem os bandidos, para os católicos, é saber qual dos dois concílios o
papa de Roma aprovou. Isso já era verdade antes, por causa do número significativo de
concílios aprovando mais ou menos ousadamente o arianismo. Esse é o tema central da
discussão entre católicos e ortodoxos, porque dado o número alucinante de concílios do
primeiro milênio da Cristandade, o único critério para estabelecer a ortodoxia é a
aprovação do papa. Os documentos do papa São Leão I, o Grande, lidos no concílio de
Calcedônia, foram aclamados pelos padres conciliares orientais (em grande parte) como
representando a tradição apostólica, e o papa São Leão I explicitamente afirmou que a
validade do concílio se deveu à sua aprovação, foi comunicada ao concílio por sua
aprovação. A “arrogância” tranquila com que um dos sucessores do papa São Leão I,
papa São Hórmisdas, repreendeu o patriarca de Constantinopla por haver procurado
uma conciliação com os monofisitas orientais (os que criam em uma só natureza em
Cristo, e não duas) sem a sua aprovação e consentimento, e a influência do papa São
Hórmisdas sobre o Imperador em Constantinopla, além do fato de o patriarcado dessa
Sé ter aderido por algum tempo ao monofisitismo, apenas reforçam dramaticamente o
caráter estável e fundamental da Sé de Roma.
– E quanto ao papa Honório, que se revelou um herege? — Replicou Victor Antonov.
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– Ele foi acusado, pelo Terceiro Concílio de Constantinopla, de ter aderido ao
monofisitismo. — Admitiu o velho. — Entretanto, o tipo específico de monofisitismo
ao qual ele aderiu, o monotelitismo, típica heresia do séc. VII, é,talvez, mais ambíguo e
escusável que outras heresias; essa heresia só se afigurou um problema algum tempo
depois de ser propagada; além disso os papas que sucederam Honório enfatizaram que
ele mais falhou em coibir essa heresia do que procurou ativamente promovê-la; ademais
Honório não confirmou nenhum concílio ecumênico em prol do monotelitismo, nem
sequer propôs ex cathedra a sua doutrina. O mais importante a respeito do exemplo
histórico do papa Honório é que falham miseravelmente os críticos do papado em ver
que a doutrina católica não exclui a possibilidade de um indivíduo perder o cargo papal
por heresia. Ao contrário, essa possibilidade foi manifestada por um dos canonistas
mais eminentes da história, Baldus de Ubaldis, no séc. XIV. É a típica crítica
fundamentada em pressuposições equívocas, muito comum entre ortodoxos. Vocês
costumam argumentar contra o papado que Pedro negou Jesus três vezes, quando, na
verdade, é algo estabelecido em inúmeros autores que os sacramentos e graças do Novo
testamento, como o papado, só foram estabelecidos depois da Ressurreição de Jesus,
isto é, depois de Pedro negá-lo. Nem tudo que o papa diz e pensa é necessariamente
não-herético. O papa pode professar uma heresia, desde que o seu conteúdo não seja
relacionado com as postulações essenciais a respeito da Trindade e da Encarnação, e
desde que algum pronunciamento ex cathedra do magistério, aprovado por um papa, não
seja apresentado a um papa provando que ele professa uma heresia e por ele seja
rejeitado obstinadamente. Até o momento em que uma heresia não essencial (como
explicado) professada não é, para o que a professa, confrontada com algum documento
do magistério que a contradiz, até esse momento a pessoa professando a heresia ainda é
católica. Ela perde a filiação na Igreja se ela sabe que a sua profissão de fé contradiz o
magistério, se ela se atém à sua heresia ou duvida obstinadamente do magistério. O
monotelitismo, em certo sentido, de fato não pode ser professado em boa fé, apenas
como heresia material e não formal, porque diz respeito ao que é essencial aos mistérios
básicos; mas muitas heresias podem ser meramente materiais, não alijando o papa do
seu cargo ou da sua filiação à Igreja. E mesmo que um papa professe uma heresia
formalmente, como o monotelitismo, ele deixa de ser papa ipso facto.
– E o que sobra do papado — perguntou Victor — se Honório tiver realmente perdido o
ofício papal junto com a filiação à Igreja?
– Jesus Cristo disse “Quando porém vier o Filho do homem, porventura achará fé na
terra?” (Lucas 18:8). É preciso contar com alguma apostasia vindoura, ainda que não se
a conheça de antemão. — Replicou o velho. — O papado de Honório teve bem pouca
influência sobre a Cristandade, o monotelitismo foi sempre combatido pelos papas que
o seguiram, e o fato da queda dele não desdiz o papel extraordinário, e multimilenar,
dos papas como diplomatas habilidosos sempre bem-sucedidos em combater o bom
combate e admoestar, para o seu bem, os orientais e outras regiões. As missões cristãs
na Inglaterra, Escócia, Alemanha (nos séc. VI e subsequentes) seriam impensáveis sem
as invariáveis intervenções papais, o pedido de que os bispos da Gália provessem os
missionários com todo recurso, os tratados diplomáticos com os reis pagãos, e,
igualmente importante, a resolução de conflitos entre dioceses. O prestígio dos papas
entre os orientais foi sempre tão grande que o papa Bonifácio Terceiro (séc. VII)
conseguiu do imperador Bizantino a declaração por decreto de que a Sé do Apóstolo
Pedro deve ser a cabeça de todas as Igrejas, uma opinião que teólogos bizantinos como
Teodoro Estudita (séc. VIII) consideravam bastante natural. O Imperador bizantino se
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prostrou diante do papa Constantino (séc. VIII) quando este o visitou na capital do
império.
– É por causa de eventos bizarros como esse que se fez a sua falsa religião. — Replicou
Victor. — Foi fácil para vocês romanos convencer alguns nobres provincianos do
período medieval a respeito de pontos doutrinais, mas a verdade é que os teólogos
orientais davam de dez a zero em vocês, como no evento da disputa a respeito da
cláusula “filioque” no credo niceno.
– Ah sim! A cláusula “filioque”, isto é, a ideia de que o Espírito Santo procede tanto do
Pai quanto do Filho, e não apenas do Pai. Um patriarca chamado Fócio, uma mala sem
alça e temerário indivíduo (séc. IX) com esse nome, procurou desafiar o papa a esse
respeito negando o entendimento Ocidental sobre o filioque e excomungando o papa
por meio de um concílio. — Disse o velho em voz alta. — A verdade sobre o Fócio é
que um dos principais motivos de ele antipatizar com o papa foi que o papa Nicolau I
discordou da nomeação dele ao patriarcado de Constantinopla. Eu mesmo não amaria o
papa se estivesse no lugar dele. Sucede porém que o Segundo Concílio de
Constantinopla (555 A.D.) expressou notável reverência por um padre da Igreja latina
que promoveu explícita e notoriamente a ideia expressa pelo filioque, a saber, Santo
Agostinho. O Segundo Concílio de Constantinopla não tinha nem sequer sido de
iniciativa do papa ou dos latinos, foram os bispos gregos que o promoveram e o papa
demorou anos para concordar (depois de muita insistência e pressão) com aprovar esse
concílio. Ademais, o Credo antigo que contém a profissão do filioque, chamado Credo
de Santo Atanásio, segundo historiadores seculares, foi muito provavelmente
promovido por Santo Ambrósio de Milão (séc. IV), um indivíduo muito estimado na
corte bizantina. Não importa o quão atrasados intelectualmente os ortodoxos
considerem os teólogos da corte de Carlos Magno, a verdade é que bem pouco antes de
Fócio, historicamente, a corte de Constantinopla havia sido consumida pelas ideias
ridículas dos iconoclastas (que repugnavam as imagens de santos), possivelmente por
influência muçulmana, e pelo monotelitismo; além disso a Renascença Carolíngia, que
contou com nomes de estudiosos como Alcuíno de York (séc. VIII), não apenas
mereceu uma significativa atenção de um dos maiores eruditos de todos os tempos, Otto
maria Carpeux (História da Literatura Ocidental), como também, por ser essa
notoriamente a época do primeiro chamado à formação das Escolas das Catedrais, foi
esse período o germe de um dos desenvolvimentos pedagógicos mais brilhantes do
mundo Ocidental, sob muitos aspectos (o que é objeto de estudo do livro A Inveja dos
Anjos: As Escolas das Catedrais e Os Ideais Sociais da Europa Medieval entre 950-
1200 A.D., Stephen Jaeger).
– Não me venha com essa! O filioque não é bíblico! — Afirmou Victor.
– E por esse tipo de pensamento surge uma nova seita evangélica a cada instante. —
Tornou o velho. — Fócio foi condenado em Constantinopla por um concílio presidido
por núncios apostólicos enviados pelo papa de Roma. E além disso a ambição de
Constantinopla a respeito da Bulgária, um território com nobreza recém-convertida, foi
em parte objeto de humilhação para o Fócio de algum modo, porque o papa ganhou para
si o direito explícito de exercer jurisdição sobre aquele povo. O ressentimento entre
gregos e latinos, acirrado pelo Patriarca de Constantinopla Miguel Cerulário (séc. XI)
por causa de questões litúrgicas e disciplinares, foi combatido pelo próprio imperador
bizantino muito depois desse evento, inclusive o imperador tinha relações diplomáticas
e dinásticas com a nobreza latina (européia) muito depois desse evento, ao ponto de se
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haver tentado dar fim ao cisma em mais de um concílio. A culminação do espírito de
Cisma dos gregos foi o Concílio Ecumênico de Florença (séc. XV) no qual por breve
tempo todos os “ortodoxos” concordaram, de novo, pela enésima vez, com o Primado
de Pedro (algo de que a Igreja Católica jamais abriu mão). A aversão posterior ao
Concílio de Florença, o ter mudado de ideia por parte dos “gregos” a respeito,
significou para vocês que a Sé Romana não é essencial à subsistência da Igreja, e que
vocês passam bem sem o sucessor de Pedro. Se pode dizer que essa é uma ideia tão
estranha ao primeiro milênio da Igreja, que muitos dos padres se sentiriam chocados
ante ela. Mas vocês não. Assim como os seguidores de Teodoro de Mopsuestia se
exilaram na Pérsia e declararam toda a demais Igreja excomungada e herética, assim
também vocês, cedendo à tentação luxuriosa do cisma, professam que as ideias de São
Leão I sobre o primado de Pedro são uma história da carochinha e somos todos
cismáticos. O que você tem a dizer a respeito, Teodoro?
Victor deu um soco no velho.
– Você enlouqueceu? — Perguntou Susana, chocada.
– Ele deu um soco no seu caçula, mãe. — Replicou Victor.
Pouco depois Victor retomava:
– Além do mais, velho, me parece que ao aderir à igreja romana você se coloca em um
dilema insolúvel. De um lado você pode aceitar as inovações dos sessenta e os papas
desde aquela época, e com isso vai estar aceitando uma missa que uma quantidade
significativa de teólogos considera feia, sacrílega e insultuosa a todo padrão de
normalidade litúrgica. Nos anos setenta e oitenta era comum ver freiras de mini-saia,
doutrinas no mínimo curiosas propagando-se em seminários, enfim a mais chocante
revolução religiosa dentro do romanismo que já houve, o que inclui aliás os abusos
sexuais de criancinhas indefesas, tão notórios que o então cardeal Ratzinger admitiu, em
entrevista à EWTN, que a multiplicidade desses casos lhe dava “dor de cabeça” como
chefe de uma congregação romana. De outro lado você pode aderir à tese
sedevacantista, e se ver isolado mais do que os Testemunhas de Jeová, tendo de se fiar
em uma tese de pessoas cujo meio social e ações causaram escândalo em cima de
escândalo (eu me refiro aos clérigos sedevacantistas), ou quando menos você pode se
fiar na tese sedevacantista de dois indivíduos isolados em Rochester, NY, chamados
irmãos Dimond, que afirmam nas entrelinhas serem as duas testemunhas do apocalipse.
Eu creio que seja claro a qualquer pessoa com bom senso que o romanismo acabou.
Virou pó.
– Quão graciosamente — notou o velho — o senhor mudou de assunto! Tão
graciosamente quanto convenientemente. Eu gostaria de lembrar-lhe que o espírito do
Vaticano II penetrou na falsa Religião Ortodoxa tão fundo, deixada de lado a superfície,
quanto na instituição que alega ser católica. Os líderes ortodoxos têm laços estreitos
com o Conselho Mundial das Igrejas, os líderes ortodoxos participam de cerimônias
ecumênicas não apenas com os antipapas de Roma, mas até com anglicanos. Isso para
não mencionar a obsessão dos ortodoxos que falam em público por assinalar,
contrariamente à quase unanimidade dos padres da Igreja, que não é realmente
necessário ser católico para ser salvo. Eu me pergunto o que São João Crisóstomo,
Patriarca de Constantinopla, pensaria disso, o que pensaria ele da ideia “Deixamos os
não-cristãos à misericórdia de deus”. Porque um teólogo como São Máximo Confessor
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(séc. VII) era um universalista, há declarações dele que indicam a ideia de que todos
eventualmente serão redimidos, Nicolai Berdyaev popularizou no séc. XX o
universalismo ao ponto, segundo me parece, de isso ter embriagado os ortodoxos a
respeito da necessidade da Igreja para a salvação. A perspectiva de Berdyaev é
existencialista ao ponto de ele ter se identificado profundamente com os “sonhos”
filosóficos de Søren Aabye Kierkegaard, o universalista danês para quem as ações
concretas da vida humana são subsumidas poeticamente em linhas de sentido
metafísicas pairando com um tipo de profundidade que oscila entre o horror e o
sublime. Tudo é subsumido, ou integrado, em alguma aspiração maior, como um
aspecto se movendo sob o fundo de uma infinitude não-explícita. Como o marxismo,
esse tipo de existencialismo que tanto influenciou a cultura ortodoxa, parece pouco
consciente da existência de uma revelação sintética pronta e acabada, relativa a
metafísica, como há para os orientais. Os orientais já sabem tudo, não há para eles
abismos aflitivos. O Sr. René Guénon bem opinou quanto aos russos não serem
participantes da tradição Oriental. Mas talvez ele tenha pecado em não ver, como viu
Carroll Quigley, que os russos representam uma civilização completamente diferente da
Ocidental. Os russos necessitam, segundo Quigley, de um sistema filosófico que dissipe
a variação de múltiplas opiniões em um sistema fechado. Por isso a sociedade russa
retratada por Fiódor Dostoiéviski estava manifestamente em crise, sem um sistema
único, mas, ao contrário, com uma porção de ideias contraditórias e fanaticamente
abraçadas, formando grupos distintos. Para os russos, segundo Quigley, essa situação é
bem menos tolerável do que para ocidentais. A solução que eles adotaram
historicamente para compor alguma unidade foi o marxismo, que é um tipo particular de
existencialismo.
– Ora, — continuou o velho — o surgimento mesmo dessa crise se deve a que a
civilização russa tinha um contato literário muito intenso com o Ocidente, Berdyaev não
sendo uma exceção, mas ao contrário; ele, tendo sido expulso pelos soviéticos pouco
depois da Revolução, exerceu um magistério em Paris e outros lugares, tal que à década
de cinquenta a elite intelectual brasileira (a elite de um país bastante isolado
intelectualmente) estava já bem familiarizada com ele e lhe tinha em grande estima,
como foi mencionado em certo escrito pelo poeta de Oxford Bruno Tolentino. O
existencialismo, por não carregar uma fórmula sintética do mundo como os orientais
(chineses, hindus e muçulmanos), acaba por tomar a forma de uma filosofia cética.
Cética não em um sentido absoluto, mas em um sentido metodológico. Quem conheça
os concílios ecumênicos, sobretudo aqueles que lidam diretamente com a natureza da
Encarnação de Cristo e da Trindade Divina, vai perceber que uma abordagem cética
quanto a esses dogmas, qual se sente como coisa óbvia desde o texto, é perfeitamente
impertinente e absurda. Os ortodoxos como Berdyaev beberam desse cálice, no entanto,
beberam do cálice do existencialismo, até a última gota. É por isso que eles se sentem
tão à vontade em relação à própria condição e atitude relativa ao dogma “Fora da Igreja
Não Há Salvação”. Os ortodoxos, como Karl Marx bem notou em algum artigo, são
apegados a tradições regionais, portanto faz sentido pensar que eles percebam a
descontinuidade entre os padres e sua visão contemporânea-moderna desse dogma como
algo pouco relevante, apenas uma bravata lógica a ser dissolvida no fato de que se toma
parte em liturgias tradicionais e se alega servir a Cristo. Muitos ortodoxos, hoje,
consideram um falso pregador o homem que repete as palavras de São Fulgêncio que
seguem (Regra da Fé, escrito a 526 A.D.): “Professai mui firmemente e jamais duvideis
no mais mínimo que não apenas todos os pagãos mas também todos os judeus e todos
os hereges e cismáticos que terminam a presente vida fora da Igreja Católica, estão
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prestes a ir para o fogo eterno que foi preparado para o demônio e os seus anjos”. Me
parece uma audácia da parte do senhor me acusar de abandonar a minha fé ao rejeitar o
entendimento contrário a São Fulgêncio, a respeito dessas coisas, porque foi o próprio
papa, em várias ocasiões, que me obrigou a pensar do modo que penso. O papa
Inocêncio III proclamou no Quarto Concílio de Latrão, na Primeira Constituição, a 1215
A.D., ex cathedra: “Há de fato uma Igreja universal dos fiéis, fora da qual ninguém de
todo é salvo, e na qual Jesus Cristo é sacerdote e sacrifício”. Como um fiel tem de ter a
fé, e o herege por não ter fé não é um fiel, um herege não pode ser salvo.
– Quanto ao outro ponto, o do meio social sedevacantista, se trata de um termo
capcioso. A maioria desses padres pensa quase como Bento XVI a respeito da
necessidade da Igreja para a salvação, e não como São Fulgêncio. Os Dimond, em um
tempo normal, que não é o atual, eu consideraria com bastante facilidade pessoas
completamente loucas. Mas a verdade é que a função e o caráter deles não é a
insanidade, não é isso que explica o que eles são. Eles são mais corretamente
identificáveis como demônios, no sentido que Otto Maria Carpeaux atribuiu a
Napoleão, o sentido de entes que atuam dentro de certas circunstâncias como
catalizadores, como incitadores de um movimento que, extraordinariamente, não pode
ser aplacado ou dissipado. Os Dimond têm alguns argumentos aos quais ninguém pode
responder sem parecer tolo, e até que essas respostas surjam, eles continuarão a exercer
a influência que exercem sem obstáculo algum, e com todo o prestígio advindo da
bestificada atitude dos adversários deles. Isso não significa que eu confie neles, ou que
eles peçam alguma confiança, exatamente. Significa apenas que se está testemunhando
certo impasse que jamais vai poder ser dissipado pelas ações e opiniões dos adversários
dos Dimond. Nesse sentido é correto dizer que os Dimond são a única saída para a crise,
porque eles são os únicos que veem a crise desde uma perspectiva não-letárgica, mas
significativa. Eles são inegavelmente o princípio, de algum modo, da solução da crise.
Há perguntas que têm de ser respondidas (por exemplo: Por que Pio XII conviveu com
Paulo VI, Giovanni Montini, por vinte anos, tinha estima por ele, e não notou que ele
não era católico?), e elas só poderão ser respondidas com um sentido genuíno porque os
Dimond deixaram queimar a tocha que lhes coube, por mais que essa tocha não deixe
ver tudo que aconteceu. Ao tocha deles gerou interesse por se buscar um sentido vital
genuíno a despeito dessa crise. — Disse o velho.
– Baboseira — afirmou Victor –, a sua religião é falsa e se contradisse.
– A Virgem de La Salette afirmou no séc. XIX, “Roma vai perder a fé e se tornar o
assento do Anticristo”, e La salette foi aprovada pelo Vaticano. A vidente de Fátima,
Lúcia dos Santos, afirmou ao fim do Segundo Segredo (1942 A.D.) “[…] em Portugal o
dogma da fé vai ser sempre preservado etc.”. O papa Leão XIII teve uma visão, ela
causou nele tão profunda impressão que houve até práticas litúrgicas adicionadas à
missa tridentina por causa dela. Na visão estavam o demônio e Jesus Cristo. O demônio
disse “Eu posso destruir a tua Igreja”. “Você pode?”, tornou Jesus, “então vá e a
destrói”. “Para fazê-lo eu preciso de mais tempo e mais poder”, replicou o demônio.
“Quanto tempo? quanto poder?”, perguntou Jesus. “Entre setenta e cinco a cem anos, e
um poder maior sobre aqueles que hão de entregar-se ao meu serviço”, afirmou o
demônio. “Tens o tempo, tens o poder. Faze com eles como quiseres”, tornou Jesus. São
Luís Montfort afirmou, ao séc. XVIII, que o tempo em que se manifestariam os sinais
da grande apostasia e do apostolado dos apóstolos dos últimos tempos (cuja santidade e
obras superariam em muito a de quase todos os santos que os precederam), parecia estar
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próximo. Se ele estava certo em dizer tais coisas então, muito mais está a presente
geração.
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Islamismo
– Debater não seria a abordagem mais exata, Francis. Em certo sentido eu não tenho
meios de debater contra o islã, porque é um fenômeno complexo e um dos mais
curiosos da história. As pessoas dizem que os muçulmanos são misóginos, quando os
filmes religiosos em urdu e árabe parecem não raro retratar as mulheres de um modo
positivo, chegando ao ponto de ironizar o conceito da inferioridade delas. Se diz que os
muçulmanos são intolerantes e indiferentes em relação ao credo alheio, quando na
verdade, além de os scholars muçulmanos habilitados a agir como fonte de fatwas
(decretos) terem abrigatoriamente de ser polímatas e mestres em religiões comparadas,
também há o fato de os muçulmanos frequentemente darem mostras de genuína
delicadeza a esse respeito. Por exemplo, quando os muçulmanos voltaram armados e em
peso a Meca, tendo sido antes exilados ou expulsos por conta dos clãs politeístas, eles
destruíram todos os ídolos pagãos da localidade, embora não tenham ferido ninguém.
Um muçulmano comentando o caso em algum documentário notou, com olhos
lacrimejando quase, e tom de pesar, que tal medida deve ter parecido horrível àqueles
que tiveram seus ídolos destruídos (“Como vocês podem fazer isso com a religião de
nossos pais?”). Esse tipo de delicadeza e cortesia não é rara entre os muçulmanos. Se
reclama que em certos lugares a fiqh ( a jurisprudência ou entendimento normativo) é
autoritária e desumana, mas em certos lugares, como em anos recentes o Egito, a fiqh é
bastante liberal quanto a muitos costumes. Se diz que a religião islâmica é para povos
primitivos, e no entanto os europeus, os ingleses não menos que o resto, apresentam
fiéis convertidos e entusiastas dessa religião. — Disse o velho.
– Eu sabia que o velho era muçulmano. — Observou Steve.
– O fato de em poucas décadas umas tribos árabes fragmentadas a oeste do Egito terem
humilhado e desmantelado muito do território do Império Bizantino, e o Império
Sassânida, que corresponde à Pérsia, atual Irã, é um fato impressionante que joga uma
luz toda nova sobre o Islã. — Continuou o velho. — Parece que o islã estava
predestinado a se interpor entre o Ocidente e o Oriente.
– Dada essa delicada introdução, mais delicada a mim do que ao homem que você acaba
de agredir, — tornou Francis — eu concordo em ser cortês ao ponto de explicar porque
aderi à religião do Profeta, a paz esteja com ele; foi tudo porque tive certa desilusão
com o ateísmo. Eu lembro que lia dois livros pela mesma época, o primeiro A Crise das
Ciências Europeias e a Fenomenologia Transcendental, de Edmund Husserl, e O
Homem e o Seu Devir Segundo o Vedanta, do René Guénon. Husserl, ao descrever o
que foi a filosofia moderna, o que transcorreu com o seu desenvolvimento, me deixou
bastante deprimido e desiludido a respeito da intelectualidade ocidental. O vício da
filosofia moderna, que consiste basicamente em enfatizar alguma faixa da realidade em
detrimento de outras, pode ter o seu efeito deprimente bastante enfatizado pela
descrição da doutrina hindu, uma vez que esta doutrina parece fazer exatamente o
contrário da filosofia moderna, é uma doutrina que nem apequena o complexo por
algum “espírito sistêmico” ou “negativo”, nem se estende em uma linha indeterminada
de divagação, realmente abarcando todo o campo das possibilidades universais de modo
sintético. Quando eu entendi que tanto os orientalistas europeus tinham uma
compreensão muito limitada do Oriente, incluso um pseudo-sinólogo como Leibniz, e
que as civilizações orientais, muçulmanos, budistas, chineses e hindus, têm a mesma
doutrina metafísica; pareceu claro que aquilo que é perene, clássico, normal, é o
Oriente. É isso que eu buscava, estar integrado no âmbito do normal, não como algum
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ateu que acredita que os deuses hindus são realmente deuses e não apenas predicados
metafísicos, ao mesmo tempo que ignoram ademais todo tipo de perspectiva a respeito
de tradições multimilenares dos quais guardam apenas uma síntese confusa e sombra
deformante. A ignorância dos apóstolos do ateísmo, não raro me deixando
envergonhado, me deu o empurrão que eu precisava para abraçar uma tradição
realmente sadia. A aversão ateística a se pertencer a seitas é, a bem da verdade, nutrida
por obscurantismos e preconceitos que lembram seitas doentias. — Disse Francis.
– Eu entendo que você se sinta assim, Francis. — Tornou o velho Marcondes. — O
René Guénon retratou os erros do orientalistas no livro Introdução Ao Estudo Das
Doutrinas Hindus de tal maneira que a inferioridade da intelectualidade ocidental a
respeito desses assuntos chega a dar medo, e um frio na espinha. Assim como os
orientalistas estabeleceram arbitrariamente datas e períodos posteriores para a redação
dos upanishads, os textos doutrinais que acompanham a literatura védica; também os
scholars ocidentais, nos quais aliás os debatedores muçulmanos exotéricos se baseiam
com frequência, também eles procuraram catalogar datas e eventos relacionados aos
manuscritos cristãos antigos, de tal maneira a desautorizar a tradição cristã. O Bart
Ehrman, muito conhecido nos E.U.A, procurou apontar que há inúmeras variações entre
os manuscritos mais antigos do Novo Testamento, e que os mais antigos não são os
originais, e sim cópias surgidas séculos depois, nos séc. III e IV, segundo certas técnicas
empíricas de averiguação da idade do manuscrito. Certas passagens, como a passagem
evangélica sobre a mulher adúltera, estão faltando nesses manuscritos, e há sinais de
que os escribas cristãos cometeram erros involuntários e voluntários na hora de copiar e
reproduzir os textos. De outro lado, conforme argumenta um protestante como James
White, cerca de noventa e cinco por cento das variações entre os manuscritos são
acidentais a uma compreensão razoável do texto, e além disso a prática de copiar o
Novo Testamento não foi submetida a algum controle centralizado, na antiguidade, de
modo que todos faziam cópias a seu bel-prazer, e isso indica fortemente que não houve
adulterações grotescas na mensagem religiosa em questão, porque não houve modo de
impor alguma versão em detrimento da outra arbitrariamente. E a respeito da passagem
da mulher adúltera, se sabe que Santo Agostinho, em um escrito, afirma taxativamente
que essa passagem é parte do texto, e ainda que algumas pessoas retiraram essa
passagem intencionalmente dos seus manuscritos para não causar pudor em algumas
pessoas; isso a despeito de nenhum manuscrito da época de Santo Agostinho ter
sobrevivido com a passagem da mulher adúltera. Um misticista (ele crê que Jesus
provavelmente nunca existiu) como o Dr. Robert Price, lista o número de manuscritos
restantes sem a passagem da mulher adúltera, mas ele não cita o número total de
manuscritos que provavelmente circularam nos séc. III e IV. Bart Ehrman crê que as
Epístolas de Santo Inácio de Antioquia são do início do séc. II, ou fim do séc. I, o que
seria fato bastante inconveniente aos misticistas, quando o Dr. Richard Carrier diz que
as epístolas de Santo Inácio são falsificações do séc. III. O mesmo Carrier afirma haver
interpolações fraudulentas em certas epístolas de São Paulo, com o fim de apequenar e
frustrar posteriormente o papel das mulheres nas comunidades cristãs, ao mesmo tempo
que muito tempo depois das epístolas, na geração de Santo Irineu de Lyon (como é
referido no livro dele Contra As Heresias), havia mulheres diáconos servindo a igreja, e
além disso, das inúmeras controvérsias do século II referidas no Liber Pontificalis (que
lista os papas antigos) e outras fontes, nenhuma controvérsia dizia respeito a algum
conflito entre mulheres e homens, muito menos entre clérigos homens e supostas
mulheres clérigos. Não há um único indício, seja em alguma epístola, seja em outra
fonte, que alguma mulher foi considerada capaz de consagrar as espécies eucarísticas
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como os padres, o que por si, segundo me parece, é uma discriminação bem mais
intolerável do que o Dr. Carrier pode aguentar. Ele também, ao criticar o método e as
credenciais de São Lucas ao escrever Os Atos dos Apóstolos e o seu evangelho, parece
não ser capaz de transcender o seu ponto de vista e considerar que uma historiografia
convencional se adequaria melhor a alguma história profana, do que a uma história
sacra. Mas, claro, é difícil para ele conceber tal perspectiva, uma vez que ele deve
ignorar que a definição de profano é “não-iniciado” e “ignorante”, e a definição de
“iniciado” não necessariamente seja “tornado um idiota”.
– Se tivéssemos de traçar o fundo do que esses misticistas concebem — continuou o
velho –, eles que são tão frequentemente usados por debatedores muçulmanos para
indicar que os textos cristãos foram corrompidos, o princípio que os norteia poderia ser
descrito como um princípio positivo. Eles estão, nas entrelinhas, dizendo “Aquilo que
nós não experimentamos pessoalmente não pode existir!”. É fácil acusar pessoas que
alegam ter visões de algum transtorno epiléptico, mas mesmo no que se refere a muito
do que, para eles, não pode existir, nós temos um probleminha: É possível demonstrar
que sua ideia do que é possível e impossível é bastante ilusória. Muitos mágicos
contemporâneos, como o Chris Angel, fizeram pessoas levitar em locais públicos, e na
frente de transeuntes chocados. Um mágico inglês chamado Dynamo atravessou a
parede de vidro de uma loja pública na frente de testemunhas atônitas. Até mesmo uma
figura pública muito respeitada, e não destacadamente religiosa, não religiosa quanto ao
ofício, o Sr. Dale Carnegie, afirma ele ter visto um grande número de curas
inexplicáveis. Eu conheço pelo menos um indivíduo que se declara ateu e alega ter visto
fatos semelhantes sem procurar justificá-los ceticamente. Todo o fundamento filosófico
dos scholars misticistas, portanto, quando falam dos manuscritos, é uma impressão
equívoca. Isso nos leva à pergunta: Por que pessoas que têm uma compreensão tão
limitada das religiões têm ao mesmo tempo tanto ódio delas? Ora, o motivo pelo qual o
Dr. Carrier desejaria que todos tivessem em alguma medida a mesma experiência vital
que ele teve, é que ele desejaria que as pessoas estivessem unidas e fossem tanto
acessíveis à subjetividade dele, quanto ele fosse acessível à subjetividade delas. Isso ele
expressou ao referir que se todos ouvissem Deus na mente, e todos concordassem com
ter recebido a mesma mensagem, aí então seria possível acreditar em Deus. O René
Guénon veria esse ponto de vista como uma tentativa de reduzir o qualitativo ao
quantitativo, veria isso como uma infernal descida “ao plano da quantidade”, por várias
razões. Uma delas é que o ódio contra o segredo, o esotérico e oculto, é uma ânsia
desordenada por uma unidade que, não podendo ser metafísica e transcendente, acaba
por ser uma mera unidade numérica, acaba sendo um apego que tende ao que é imediato
e sensível. O motivo pelo qual os ateus se engajam em argumentos e pontos de vista tão
rasos tem a ver com o fato de a filosofia moderna se ter dedicado à “regionalização do
ser”, ter caído metafisicamente em um abismo. Se trata de um curso de ação que faz
mais sentido pelo seu efeito do que por sua justificação oficial. A secularização da
sociedade pode ter tornado as universidades e a mídia profanas, isto é, ignorantes, mas
isso serviu de suporte a se poder respirar retoricamente, poder criar uma convenção pela
qual se pode dirigir a todos os grupos sem irritá-los muito. Essa zona neutra tem alguns
frutos que não podem ser considerados deméritos de todo, mas úteis no mesmo sentido
em que a literatura pagã pareceu útil aos monges medievais. Por exemplo, o seriado da
Warner Brothers chamado Buffy: A Caça-vampiros, do escritor Joss Whedon (que é um
ateu), soube habilmente criar um mundo ficcional que discute coisas bem interessantes e
essenciais da psicologia do mundo contemporâneo, como as rotinas do ensino público,
relacionamentos de tipos diversos, o ajustamento à vida adulta por meio da faculdade,
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do subemprego etc.; e não apresenta nenhuma mensagem positiva a respeito de
engajamentos religiosos, o mundo fantástico da série é apenas uma linguagem simbólica
que se pode adaptar a todo mundo. É esse tipo de alívio retórico, o poder se dirigir a
qualquer um funcionalmente, o que está verdadeiramente por traz da motivação dos
ateus, embora eles talvez não o compreendam muito bem. A bem da verdade, a unidade
que o Joss Whedon oferece parece ser, em alguma medida, e do ponto de vista da
notação emocional, uma unidade autenticamente universal, e não superficial e
“numérica”. O problema com essa válvula de escape retórica é que ela só funciona
quando as pessoas procuram superar os vícios do pensamento moderno que são, de
acordo com René Guénon, a causa mesma da dissolução da unidade de pensamento no
ocidente.
– Não é de modo algum surpreendente que os muçulmanos se baseiem em autores tão
profanos para falar de coisas tão sacras. — Continuou o velho Marcondes. — Há certa
aversão histórica de alguns pregadores muçulmanos contra as ordens e indivíduos sufis
e esotéricos, sobretudo os esotéricos subsequentes aos primeiros séculos islâmicos, uma
vez que o prestigioso imam Ali ibn Abi Talib (casado com Fatimah, a filha do Maomé)
foi, por assim dizer, um entusiasta e símbolo do caráter mais profundo e metafísico da
religião muçulmana. O islã tem, com certa notoriedade, o seu lado profano. Ao mesmo
tempo que alguns muçulmanos rejeitam a Trindade do cristianismo, e afirmam ser a
missa uma cerimônia parecida com o vudu, também certos membros de tariqas
islâmicas, como o Rama Coomaraswamy, foram professores em seminários católicos
tradicionalistas. Não é preciso ser um gênio para perceber que, porque o lado esotérico
do islã é por definição mais oculto e qualitativo, menos material e sensível, porque é
mais profundo, é mais influente; se deve considerar, pois, que aquilo que é mais real no
islã é o seu aspecto esotérico. O seu lado esotérico não é, porém, contrário ao
cristianismo, pelo menos não em sentido convencional, no mesmo sentido em que os
chineses da época de Guénon não eram contrários ao cristianismo, mas, em vez disso,
frequentemente se tornavam “católicos” quando visitavam o Ocidente porque o
catolicismo é a única coisa ocidental que se parece com alguma tradição espiritual como
há, ou havia, na China. O esoterismo islâmico é uma cristalização particular de algo
mais geral chamado metafísica oriental. Na metafísica oriental tudo que é objeto de
alguma iniciação, todo conhecimento adquirido, é um conhecimento relativo ao que é
acessível independente de época e lugar, de forma que um evento histórico como a
Encarnação de Jesus, parecerá à pessoa integrada nessa tradição metafísica algo menos
importante pelo seu caráter histórico do que por seu caráter de alusão a princípios supra-
históricos, qualquer evento histórico será mais importante como matriz simbólica de
alguma intuição metafísica, do que como evento que assume o caráter de um “fenômeno
objetivo” husserliano, isto é, não-inteiramente invadido e abarcado por um sujeito
cognoscente, não-inteiramente dissipado naquilo que lhe parece mais natural e
translúcido como presente à sua consciência. No conjunto de conhecimentos metafísicos
intuídos como descrito, consiste a revelação oriental. Apesar dela tudo que é intuído por
algum sujeito, mesmo no plano mais elevado da sua faculdade intelectiva, não impede o
indivíduo oriental de possuir noções, a respeito do mundo e da realidade experienciada,
que são manifestamente “objetivas”, ou pressuposições. Por exemplo, ao descrever o
que é a filosofia, inventada pelos ocidentais, o René Guénon a qualificou simplesmente
como educação, no sentido mais racional, e não supra-racional, do termo. Essa é uma
opinião que se pode chamar pressuposição hegeliana, é uma ideia imperfeita. A filosofia
foi qualificada por alguém, muito apropriadamente, como a “responsabilidade cognitiva
máxima”, o que é algo que não exclui o levar em consideração intuições metafísicas no
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sentido guenoniano, desde que isso contribua para algum fim filosófico. E não é sequer
possível argumentar que a maioria dos filósofos modernos não levou esse tipo de
intuição em consideração, para erigir alguma proposição cuja finalidade foi responder
responsavelmente a alguma dificuldade, uma vez que o próprio Guénon admitiu que a
poesia ocidental está cheia dessas intuições. Se pode notá-las como causa formal até de
algumas passagens na filosofia de um sujeito cético como Michel de Montaigne. Se a
ideia guenoniana de filosofia é inexata, é possível a um iniciado na tradição oriental se
confundir a respeito de todo tipo de coisa. Ao lado das intuições genuínas há, portanto,
“fenômenos objetivos”, mirados com certo distanciamento cognitivo e uma áurea de
sombra.
– Talvez essas observações sejam suficientes para enfatizar certa diferença essencial
entre o cristianismo e o islamismo. — Disse ainda o velho. — Enquanto o papa
Gregório I, o Grande, (séc. VI) debatia a respeito de se as almas bem-aventuradas
viriam a ter corpos sutis ou não, os esotéricos do islamismo discutem apenas objetos
que podem ser reduzidos, de algum modo, a intuições que podem se tornar presentes à
faculdade intelectiva humana independente do tempo, ainda que tais intuições
antevejam ou pressintam alguma limitação cognitiva relativa a contingências temporais.
A princípio isso faz parecer que o conhecimento que os cristãos professam, a respeito da
Trindade etc., teria para os orientais o caráter de “fenômenos objetivos” que podem ser
reduzidos a intuições metafísicas ulteriores. O problema com essa perspectiva é que não
há indício algum de que é essa a principal função dessas proposições dogmáticas no
cristianismo. De fato essas proposições, enquanto fenômenos objetivos, podem se tornar
matrizes simbólicas de intuições metafísicas, mas para que essa fosse a sua função
principal, teria isso de ter sido a intenção dos apóstolos ou de Deus ao revelar essas
verdades, e obviamente não foi por causa da maneira com que os concílios
continuamente lidaram com tais questões. Isso significa que essas verdades não se
diluem em intuições ulteriores e mais abrangentes, mas são elas, em si mesmas, o
princípio a ser salvaguardado e, no dizer do René Guénon, constituem fatos enunciados
de modo simples e direto. Essa é a intenção do cristianismo, e disso resulta que o
cristianismo como manifestação histórica é uma sinalização e suporte para essas
verdades essenciais, a Trindade e a Encarnação do Filho. O cristianismo tem de ser visto
como o clímax de um cortejo divino cuja finalidade foi, o tempo todo, fazer as pessoas
professarem essas proposições enquanto tais precisamente porque a verdade a respeito
delas não pode ser demonstrada, conforme ensinou o Concílio Vaticano I.
– Ora, ao final da década de noventa um jornalista americano chamado Neil Strauss
começou a participar de uma comunidade na internet de indivíduos interessados em
conquistar mulheres, sobretudo mulheres bonitas. — Disse ainda o velho. — Ele
publicou um livro a esse respeito, chamado The Game. Na primeira vez que saiu em um
boot camp, um dia de treinamento com um artista da sedução profissional chamado
Mystery, o instrutor que lhe acompanhou na boate explicou vários erros que ele cometia
ao abordar garotas. Por exemplo, ele aprendeu a nunca abordar uma garota desde as
costas dela, tocando o seu ombro enquanto ela caminha; as mulheres estranham isso; o
motivo, muito simples, é que o homem que faz isso pode se mandar a qualquer
momento, diminuindo da parte da mulher o controle sobre a situação. A maneira certa
de abordar é estando na frente da mulher, indo de encontro a ela. Uma outra aplicação
desse princípio é a ideia de que, ao abordar um grupo onde há uma mulher que se
considera o “alvo”, as primeiras palavras a se endereçar ao grupo têm de fazer com que
o grupo se sinta no controle da situação. As primeiras coisas que ocorrem a um grupo de
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pessoas quando um estranho o aborda é “quem é esse cara?”, e “quanto tempo ele vai
ficar aqui?”, por isso o artista da sedução sempre começa por tecer alguma história que
explique claramente o que ele quer do grupo e quanto tempo ele pretende ficar,
geralmente um tempo bem curto, dando poder ao grupo. As técnicas a respeito dessa
atividade, a linguagem a respeito dessa atividade, são bem mais ricas do que tais
observações, e são tão surpreendentemente eficazes que o Neil Strauss conseguiu o
telefone da Britney Spears, e um outro artista da sedução que andava com ele conseguiu
o telefone da Paris Hilton. Existe algo a respeito do poder da palavra, como mostrado
nesse estranho exemplo, que é bastante extraordinário. Nesse contexto, a melhor
maneira de mostrar que o cristianismo é verdadeiro, e o islã não, é comparar as duas
religiões a respeito de qual das duas tem o melhor apelo expressivo. E ao nos
perguntarmos isso surge a impressão de que o aspecto mais real do islã, o aspecto
esotérico, não está muito interessado em se ligar ao melhor apelo expressivo, mas sim
em atualizar de modo necessariamente imperfeito certos saberes multimilenares. Os
islâmicos buscam conhecimento pelo conhecimento, os cristãos buscam o conhecimento
para a confirmação da fé. Os cristãos auscultam o mundo pela confirmação da fé na
forma de uma linguagem indireta, os muçulmanos pretendem estar acima disso com a
sua intuição intelectiva direta das verdades eternas. Logo, se houver sinais expressivos
muito eloquentes, mas não equivalentes a uma intuição direta que prescinda da fé, da
verdade cristã, o cristianismo está correto e o islamismo errado, porque de outro modo
não faria muito sentido que houvesse tais sinais. Um desses sinais é o próprio islã. De
que outro modo, senão por meio dessa religião (já que as missões cristãs foram sempre
não muito bem-sucedidas), a profissão de que Jesus é o messias se faria ouvir por todo o
Oriente, dando assim um enorme prestígio ao cristianismo? O islã é um dos muitos
motivos pelos quais a Igreja Católica tem um prestígio social e tradicional gigantesco,
como o próprio ateu Ludwig von Mises admitiu, e denotar prestígio e valor é uma das
marcas dos artistas da sedução.