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Refutação de Todas as Doutrinas Não-Católicas - Pedro Lima www.pedrohenriquedelima.wordpress.com 1 Refutação de Todas as Doutrinas Não-Católicas

Refutação de Todas as Doutrinas Não-Católicas · Deus existe, eu não vou ficar por aí buscando saber dele ou buscando-o em alguma seita. Na verdade, ... aquela religião está

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Refutação de Todas as Doutrinas Não-Católicas

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Conteúdo Ateísmo ......................................................................................................................................... 3

Protestantismo ............................................................................................................................ 19

Pós-Conciliarismo ........................................................................................................................ 28

Judaísmo ...................................................................................................................................... 46

Espiritismo ................................................................................................................................... 72

Marxismo..................................................................................................................................... 85

Igreja Ortodoxa ........................................................................................................................... 94

Islamismo .................................................................................................................................. 102

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Ateísmo – Muito bem, Sr. Marcondes, muito bem. — Começou Malcolm. — Sucede que se

Deus existe, eu não vou ficar por aí buscando saber dele ou buscando-o em alguma

seita. Na verdade, sinceramente, não me interessa tanto se Deus existe ou não, se esta ou

aquela religião está certa ou está errada. Em que isso vai me ajudar? Eu tenho que pagar

as minhas contas, eu tenho de me assegurar de que não vou depender das outras

pessoas, uma vez que obviamente nenhuma delas me vai pagar as contas, e eu tenho que

agir muito cuidadosamente para manter-me em uma condição favorável.

– A vida não é um mar de rosas, senhor Marcondes — continuou Malcolm –, a maior

parte dos religiosos que eu conheço vive uma ilusão, pensa horrores dos outros

religiosos, enquanto que eles mesmos são cegos para os podres, e os crimes, do seu

próprio grupo. Tem algo na religião que deixa as pessoas cegas, nem todos são assim na

mesma medida, é claro, eu tenho alguns amigos religiosos; mas em geral os religiosos

agem como semi-retardados, creem em coisas que mesmo crianças teriam dificuldade

para acreditar. E quase nenhum deles estudou ou embasou a sua posição de um modo

minimamente digno. Se você perguntar a algum cientista desses que ganharam o prêmio

nobel, por que é religioso, ele vai ter dificuldade em se explicar. É algo muito pessoal,

sensível, claro, mas é uma loucura. Você começa por ter de afirmar de todos os outros

credos que estão errados e são uma abominação do diabo, e você termina afundando um

avião em um arranha-céu para mostrar o quanto é piedoso. A religião em certos

aspectos faz bem às pessoas, lhes dá esperança, lhes dá uma resposta, e nesse mundo

frio em que vivemos o quão isso é agradável… É um privilégio. As pessoas se sentem

muito especiais quando se sentem protegidas por uma resposta e uma esperança, elas,

em nome dessa esperança, se reúnem, fazem obras de caridade, discutem, casam-se.

Mas o mundo não se torna menos frio, a resposta não se parece uma resposta a essa

frieza, mas o contrário, é uma resposta escrita, de manual, é um sinal gráfico alheio à

minha vida, às minhas necessidades, aos meus medos e anseios.

– Eu conheço poucas pessoas que se tornaram boas pela religião — continuou Malcolm

–. As pessoas se tornam menos maliciosas? Menos cruéis? Elas amam o próximo e se

sacrificam? As suas orações realizam milagres? Eu conheci alguns psicopatas que

usavam uma linguagem religiosa, sabe? Na verdade, eu cheguei a ouvir um relato de um

ex-pastor dizendo que antes de abandonar a fé protestante, e virar judeu, ele fingia nos

cultos o dom da clarividência. Ele apontava o dedo para alguém e dizia, “quando você

era jovem você passou por tal e tal situação”, e era mentira, era invenção, a pessoa

acreditava porque às vezes é difícil recordar de eventos passados; essas hipnoses mútuas

talvez ocorram muito. Diante de você há um homem que fala com firmeza, parece ter

todas as respostas, mas ele está mais perdido que qualquer um na audiência. Ele pode

ser um pobre coitado. A maldade independe da crença que se tem, ao que parece. A

loucura acomete a todos, a crença religiosa, se for necessária à salvação, significa que

os loucos e pessoas imersos na ignorância serão rejeitados para sempre?

– Sim, porque os religiosos alegam que “Deus” criou um número incontável de anjos, e

um terço deles foi para o inferno. Mas que droga! Você é capaz de dormir ouvindo uma

coisa dessas? As penas do inferno são descritas como ultrapassando em intensidade a

nossa imaginação, portanto ultrapassam as dores do caso mais extremo de enfermidade

que conhecemos. O doente às vezes experimenta dores que o homem médio não

imagina. Um terço das criaturas angélicas vão ser expostas a essas dores, e não por um

tempo, não por um tempo considerável, mas para sempre! Se Deus criou um universo

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em que esse tipo de coisa pode ocorrer, quão espantoso é esse Deus! Ele parece mais

com um demônio. A maioria das pessoas que conhecemos, segundo essa fantástica

história, será condenada ao inferno. E por que as pessoas acreditam nisso? São tantas as

versões contraditórias, são tantas as versões diferentes, que se se aceitasse essa história

de horror, o próximo problema seria descobrir qual é a maneira correta de escapar a esse

horror, e nem eu nem ninguém tem tempo para estudar milhares de seitas; se eu tivesse,

provavelmente não seria suficiente. Um certo Camille Flamarion, um dos ícones da

religião espírita, e membro da sociedade Teosófica, estudou o fenômeno da invocação

de espíritos nas reuniões chamadas séances por quarenta anos, e ao fim de quarenta anos

ele chegou à conclusão de que isso era uma empulhação, mas depois mudou de ideia

ainda, um pouquinho. Ou seja você pode estudar um assunto com muito esforço por

quarenta anos, e ainda assim mudar de ideia ou se enganar. Isso para uma religião:

Como posso eu, então, me assegurar de qual a religião certa se há centenas delas?

– Eu admiro um pouco a sua fé, senhor Marcondes — afirmou Malcom — mas eu

receio que você seja um grande tolo. Você é um imbecil, na verdade, segundo penso.

Você acreditou em algo não porque veja que é certo, ou muito evidente, mas por uma

mistura de conveniência e estupidez. A falar a verdade, pelas coisas que a minha mãe

professa por causa do senhor, me parece mesmo que o senhor jogou a sua vida inteira

fora. O ridículo da religião é tornado evidente até por seus defensores. Um filósofo

como Ortega y Gasset louva a religião, e procura deduzir do seu conteúdo explícito

alguma coisa mais, esotérica, profunda, mas esse tipo de blefe parece ser incoerente

com o fato de que ele em muitos momentos descartou insensivelmente todo tipo de

dogma. As pessoas acreditam no que elas querem, como querem; as pessoas, até com

certa razão, acreditam no que testemunharam de algum modo. E religiosos como você

dizem que isso não é razoável? Que isso torna um homem como eu maligno, insensato?

Se pode alegar qualquer coisa, meu amigo, se pode alegar qualquer coisa. A realidade é

o que eu testemunho, e o que eu testemunho é que a religião é tão falsa que quase a

totalidade das pessoas, ao falar a respeito, não conseguem ter nem um décimo da

sinceridade para consigo e os outros que alguns ateus tiveram. Nós vivemos em um

mundo muito mais caótico e selvagem do que se imagina. Se a religião fosse verdadeira,

Deus teria preparado alguma linguagem para referir a miséria que nos ronda. Os

religiosos falam como crianças a sonhar, na vida real testemunham ou tomam parte em

tudo de errado, feio, grosseiro, que se nos impõe. Estupros, abuso, maus sentimentos. A

linguagem religiosa serve apenas para camuflar e potencializar essa calamidade.

– A verdade religiosa tinha algum papel a desempenhar quando o homem, ainda

demasiado primitivo — continuou Malcom — precisava dessas figuras de linguagem da

religião para comunicar diretrizes que as pessoas pudessem seguir de modo simples. O

homem não precisa dessa besteira mais. Até o papa agora aceita a teoria da evolução.

Darwin provou que as espécies não se distinguem das variações advindas das sucessões

geracionais. Isso foi cientificamente provado. Que eu saiba Deus não apareceu para

contradizer o ensaio sobre a Origem das Espécies. Ninguém, absolutamente, é capaz de

dizer que a teoria darwinista é um nonsense. Mesmo o grande anti-darwinista que

debateu à época da edição do ensaio, o cientista Richard Owen, não rejeitou a teoria

inteiramente, se vendo obrigado a admitir muitos pontos dela, se vendo obrigado a

conciliá-la de algum modo com o seu ponto de vista. Mas parece que para os de

mentalidade religiosa isso nunca vai servir para ensinar nada. Eles acreditam que a

criação do universo se deu há alguns milhares de anos, e não bilhões de anos, como a

ciência prova. Eles acreditam em Adão e Eva. Eu me pergunto por que essa gente tem

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tanta certeza, embora as opiniões delas sejam contraditórias entre si, porque alguém tem

de estar errado, certo? Senão todos, ao menos alguns. A religião é uma das maneira

mais bizarras de uma pessoa se orientar na vida. Você não apenas vai passar a acreditar

no burro falante de que a bíblia fala, mas você vai acreditar em coisas que qualquer um

percebe que é bizarro. Você já viu um hare-krishna distribuindo flores em troca de

donativos? E um testemunha de Jeová, distribuindo um jornal sobre um encontro para

discutir um governo mundial sob o reinado de Cristo?

– Mas claro, — continuou o Sr. Malcom Antonov — você dirá que o ateísmo é

marginal e não mainstream. Para começo de conversa, como o Richard Dawkins referiu,

o ateísmo pode ser dividido em várias escalas, no ateísmo máximo se sabe como dois e

dois são quatro que Deus não existe. Não é assim que Dawkins é ateu, e não é assim que

eu sou ateu. Esse tipo de abordagem é religiosa, porque é impossível se pronunciar a

respeito desse assunto de modo tão seguro. Em segundo lugar, obviamente que o

ateísmo não é um fenômeno marginal, nem geograficamente, nem historicamente.

Sempre houve ateus, obviamente. Até um padre da igreja católica, nos primórdios da

Igreja, creio que Orígenes, polemizou com um pagão romano que era ateu. Em um

desses países da Escandinávia, segundo relato muito antigo, da baixa idade média,

existe uma mitologia ateia, quase uma história sagrada do ateísmo. Os autos de

processos inquisitoriais demonstram a existência do ateísmo; o

escritor Friedrich Büchner observa que em muitos povos mais primitivos que o povo

europeu o temperamento de muitas pessoas é de ceticismo em relação à religião. Ainda

que haja fenômenos extraordinários ligados à religião, como feitiçaria, etc., tal qual um

antropólogo renomado como Claude Levy-Strauss procurou apontar, não há prova de

que esses fenômenos comprovem por si mesmos a verdade dogmática da religião, até

porque cada religião tem seu fenômeno extraordinário; as religiões se anulam no quesito

apresentar um critério diferenciador e retórico. Não há como saber se uma religião é

falsa ou não no sentido de demonstrá-lo de modo suficiente. Porque se essa

demonstração é possível, não haveria embate religioso. O que se pode alegar é que as

alegações das religiões são absurdas e insultam a razão humana, não devem ser levadas

a sério.

– Muitas pessoas, na prática, não se importam com estar certas ou erradas a respeito de

suas crenças. — Disse ainda o Sr. Antonov. — A verdade religiosa que professam,

portanto, é algo maior que elas mesmas. Elas não se importam com essas coisas de fato.

É o que você, senhor Marcondes, não consegue entender. As características de Deus ou

dos anjos são características que o homem nota fora de Deus e fora dos anjos, são

características puramente humanas projetadas sobre seres desconhecidos. Se o homem

se perguntar o que é Deus fora dessas características, ele vai ficar perdido. O homem

não sabe realmente o que é Deus, ele não tem a menor ideia. O que ele supõe que Deus

seja é um conceito tão postiço, tão carregado de atributos puramente humanos difíceis

de se atribuir a Deus, na prática, que ao procurar distinguir o que Deus é para o homem

que o pensa e o que é em si, o homem deixa de acreditar em Deus, porque o que Deus é

em si, para o homem, é bastante desconhecido, é um vazio, nada se sabe.

– E quanto às muitas lendas diferentes mas semelhantes que permeiam a religião? —

Indagou o Sr. Antonov. — Uma virgem dando à luz, um filho de Deus nascido na terra.

Isso está na religião egípcia, Hórus e Isis, sua mãe. A ideia da trindade já estava

presente em outras religiões, assim como a da ressurreição. O filósofo germano-

americano, Eric Voegelin, começa o seu trabalho Order and History discorrendo sobre o

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festival anual, entre os caldeus ou qualquer região da mesopotâmia antiga, em que o

filho de Deus se sacrifica pelos pecados dos homens. Na Grécia um herói chamado

Perseu nasceu de um virgem. Percebes o quão suspeita é a verdade religiosa, se

repetindo com pequenas variações aqui e ali? E qual garantia temos de que a “nossa”

versão cristã do mito vai persistir pelos séculos? Por que o cristianismo, e mais

particularmente o cristianismo católico, é a verdadeira religião?

– Por que não simplesmente reconhecer, “eu não sei”? “Eu não entendo, eu não quero

exercer o meu juízo a respeito”? Por que continuar sectariamente a se apegar à suas

opiniões, independente das opiniões alheias? — Disse ainda o Sr. Antonov. — Eu não

sei mais o que posso dizer…

– A primeira dificuldade que existe tocante ao ateísmo — começou o velho Marcondes

— é a dificuldade que tem em definir o que é religião. A religião não é a crença em uma

deidade, porque há cientistas anti-religiosos que admitem como razoável a hipótese de

extraterrestres haverem projetado o homem ou a vida animal na terra, há os que creem

nisso contra as religiões, mas essa ideia parece um pouco com a ideia bíblica de criação.

Por outro lado ateus como Christopher Hitchens chamam o budismo, religião na qual a

divindade é apenas problematicamente insinuada, de religião. Também chamam de

religião o regime oficial da Coreia do Norte, e o regime stalinista. “O Deus de Stalin era

Stalin”, disse alguém. É difícil , dada essa retórica, definir com precisão o que é

religião. Se tem a sensação dos ateus que eles avacalham o assunto, porque não têm

paciência para lidar com o assunto. De fato ao comparar a ciência e a religião, os ateus

vão frequentemente mostrar como a ciência se baseia na evidência e testes laboratoriais,

e a religião se baseia em mistério e neblina. Essa visão subentende que a maioria dos

ateus não sabe o que é uma ciência em geral, mas só a sua ciência particular. O método

laboratorial serve à biologia, não à história. Cada ciência tem o seu próprio método, e o

critério para saber qual o método certo é a pergunta: Como eu posso adquirir premissas,

ou informações, da maneira máxima dentro do campo dessa ciência, ou assunto, ou

objeto?

– A resposta a essa pergunta subentende que é possível demonstrar o que as religiões

são, e em que sentido são falsas, depois de adquirido um conhecimento científico das

religiões. E esse conhecimento não se vai achar em laboratórios. Esse conhecimento não

é buscado pelos ateus porque eles têm aversão às religiões, e essa aversão é a chave para

entender porque não conseguem definir corretamente as religiões. Alguns dirão que uma

religião é uma crença, o que é tolice, porque por esse critério o ateísmo terá de ser

considerado uma religião. A aversão dos ateus faz que eles não se aproximem demais

do objeto religioso, mas o vejam por uma distância saudável, e assim toda abordagem

que terão a respeito será retórica, e não científica. Essa indiferença significa que se quer

ter a respeito das religiões, apenas o mínimo de informações necessário para justificar

um afastamento do objeto, quando a verdadeira ciência, para Aristóteles, é o

cruzamento de opiniões que reconstitua o objeto o quanto seja possível. — Disse o

velho Marcondes.

– A religião é na verdade uma crença advinda de uma fonte não-humana que é

inteligente. Até o budismo se encaixa nisso, porque antes de certa experiência religiosa

Buda teve acesso a demônios ou a certas tentações sobrenaturais. Isso não é um

empecilho a que os ateus definam a religião, porque eles podem simplesmente dizer que

uma religião é uma crença advinda da alegação de se ter obtido informações de

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inteligências não-humanas. Talvez o motivo pelo qual os ateus, o ateísmo em geral, não

se interesse por adotar essa definição, é o de que ela implica que uma crença religiosa

não é uma matéria tão plástica para interpretação. É mais fácil refutar uma crença em si

do que uma crença que se apresenta como um relato. É mais difícil entender o relato,

porque a comunicação tem certos limites, e se se disser, de um relato, “isso é tolice”, é

mais fácil ver que o sentido em que isso é tolice pode não ser bem o sentido que o autor

do relato quis transmitir.

– O relato exige confiança, e portanto se justifica bastante o ateísmo, no sentido de que

há muitas razões para não se confiar em relatos. Se o ateísmo, por seu lado, fosse

confiável, eu próprio creria nele. Mas não é, nem um pouco. É só mais um relato, é só

mais um indivíduo pedindo que nele depositemos nossa confiança. Nós não sabemos o

que se passava pela mente de Christopher Hitchens antes de morrer, sabíamos apenas o

que ele dizia e confiávamos nele conforme nos parecia razoável. Um ateu como

Dawkins disse, para o meu pasmo, que ele tem certeza de que ao fim da vida os homens

cessam para sempre. Não há nada de científico nisso, enquanto certeza. Essa opinião só

é razoável porque o seu contrário parece bizarro, e porque a possibilidade de

continuação da alma gera dúvidas a respeito de ensinamentos religiosos. — Disse o Sr.

Marcondes.

– E daí que você tem de pagar as suas contas? — Continuou o velho Marcondes. — Foi

a sua mãe quem me pagou a viagem para cá. Um homem chamado Santo Agostinho

doou todos os seus bens antes de entrar para a vida religiosa. Ainda que essa boa ação se

apagasse ou diminuísse por feitos ulteriores, ela foi feita. As pessoas doam e pagam

despesas alheias, elas se endividam pelos outros, mesmo quando são más, e têm

segundas intenções. O fato de que há divisão do trabalho é já um sinal da dramática

interdependência entre os homens, segundo Adam Smith demonstrou; só o fato de

trabalhar como médico, quando outro trabalha como carpinteiro ou motorista, significa

necessariamente que você paga as contas alheias para que os outros paguem a sua

conta.

– Você disse que os religiosos são cegos para os próprios crimes, e maliciosos para com

as outras religiões. Mas isso, essa malícia e cegueira, é absolutamente acidental à

religião. O famoso maçom Albert Pike leu e traduziu os infindáveis e grossos volumes

do Talmud, texto ortodoxo dos judeus, traduziu do hebreu. Como é que ele pode

enxergar esses religiosos de modo malicioso e preconceituoso? Você disse que todo

religioso abomina os credos de todas as outras religiões. Não é exatamente isso que

você mesmo faz, e não é em nome de aversão análoga, mas não inteiramente

semelhante, que muitos ateus assassinaram? Os comunistas eram ateus. Embora haja

relatos de que muitos indivíduos por trás do comunismo fossem membros de

organizações esotéricas, como é verossímil levando-se em conta que os iluministas

franceses os historiadores declaram sem dificuldade que eram membros de organizações

esotéricas; houve muitos comunistas sinceramente ateus, que colaboraram com as

matanças de milhões de indivíduos, sem julgamento, para espalhar o terror e intimidar,

como confessou o próprio partido comunista após a morte de Stalin. — Disse o Sr.

Marcondes.

– Você referiu que as pessoas não se tornam melhores por serem religiosas. Bem, é

precisamente nisso que a religião católica acredita. A segunda maior autoridade

eclesiástica do seu tempo, o bispo São João Crisóstomo, afirmou que, conforme lhe

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parecia então, a maioria dos padres não seria salva. O maior dos teólogos católicos,

Santo Tomás de Aquino, afirmou como coisa segura que os que são salvos são uma

minoria. Os muitos padres pedófilos dos quais se ouve, eles apareceram no contexto de

uma tal demolição da fé tradicional, com o concílio Vaticano II e o que se lhe seguiu,

que não é exagero algum, mas sim honesto, pensar que a totalidade desses “padres”

atuais não têm a fé tradicional, mas a rejeitam exatamente como os ateus fazem, e os

relatos a respeito vêm às vezes de figuras midiáticas que não têm interesse nenhum em

expor a calamidade dos seminários, com a sua promoção de uma cultura gaysista e de

valores anticatólicos, como a ordenação de mulheres. Você diz que a religião não torna

as pessoas melhores. Eu penso, ao contrário, que a dificuldade não está em ser um bom

religioso, mas em ser religioso. Para ser um católico é necessário pouco conhecimento,

mas esse conhecimento é negado às novas gerações, e é muito difícil obtê-lo se ninguém

o indica, instruindo sobre certos detalhes a respeito. — Disse o Sr. Marcondes.

– A sua objeção sobre os religiosos não saberem nada a respeito das coisas que

apregoam, e se iludirem a respeito de possuírem dons místicos, é uma objeção bastante

limitada. Ainda que haja falsos místicos, as provas de que existem fenômenos

sobrenaturais são abundantes, e fenômenos assim não são estranhos à elite intelectual

americana. Um professor universitário chamado Carrol Quigley, a quem Bill Clinton

prestou homenagem publicamente em uma convenção nacional do Partido Democrata,

acreditava e advogava em favor de fenômenos sobrenaturais. Não é necessário ir muito

longe, ou pedir a sua confiança, para prová-lo. Basta tomar o alcorão. Esse livro possui

uma forma poética, uma forma de composição, tão extraordinária, que um estudioso a

quem assisti afirmou que dez anos não são suficientes para escavar todos os sentidos ou

intenções imprimidos no texto formando uma estrutura poética intencional muito mais

profunda que a letra literal do texto. E o modo como é fácil memorizar o texto original

do Alcorão, por causa da sua misteriosa propriedade, é algo tão notório, que os

muçulmanos possuem a tradição de memorizá-lo. Existem fenômenos sobrenaturais, e é

possível demonstrar que esse é o caso do alcorão sob vários aspectos, a começar pelo

fato de ele ser um texto tão diferente dos outros que constitui um gênero literário

separado, e ao mesmo tempo esse texto vem de uma fonte, um homem, que a tradição

muçulmana alega que era incapaz de ler e escrever. Isso já foi provado por um sujeito

chamado Nouman Ali Khan, em um vídeo chamado The Quran for Dummies. Além

disso, o estudo da grafoscopia, que é o estudo da semelhança entre a caligrafia de

pessoas para determinar se uma mesma pessoa escreveu em documentos diferentes; o

estudo da grafoscopia, tal qual realizado por um acadêmico brasileiro e examinado por

seus pares, mostra que o fenômeno da psicografia realizada por espíritos de mortos tem

alguma base empírica verídica. O psicógrafo escreve exatamente como o falecido que o

psicógrafo desconhecia. Essas coisas são admitidas por muitos ateus e agnósticos, eles

apenas não gostam de pensar muito a respeito. Isso apenas reafirma o que eu disse

antes: Que o fenômeno do ateísmo é mais uma desconfiança do que uma afirmação

positiva construída sobre bases racionais. — Disse o velho Marcondes.

– O exemplo que você deu sobre Camille Flamarion ter estudado quarenta anos um

assunto e depois ter mudado de ideia é capcioso. Porque isso por si não prova que ele

estudou várias religiões a fundo. Além disso, não é possível de antemão demonstrar se o

maior empecilho em se chegar a uma decisão é o volume de informações a ser

adquirido, ou simplesmente a boa vontade em estudar o assunto, uma vez que parece

bem claro que o modo de abordar o assunto por muitos ateus se baseia mais no

ressentimento contra a religião do que no amor pela evidência, assim como afirmar que

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após a morte nós vamos nos dissipar se baseia mais na aversão à religião do que no

amor pela evidência. — Disse o Sr. Marcondes. — Além disso, se é verdade que existe

uma condenação eterna, isso não faz com que seja imediatamente evidente que alguém

tenha se danado sem, de algum modo, o assentimento da sua vontade. Isso não é claro,

assim como a mera posse de um escrito não equivale em clareza à fonte testemunhal

que escreveu. E, se existe a possibilidade de uma danação eterna, não é mais natural e

prudente, se preocupar com isso, ainda que seja uma mera possibilidade? E não é essa

preocupação, quando tomada de modo exagerado, contrária ao parecer das religiões de

um modo geral? Eu digo isso no sentido de que se crer já condenado com toda certeza,

ou muito provavelmente, é, no catolicismo, um pecado. Por outro lado a Igreja afirma

que possui os meios de assegurar a salvação, e eles não são muito complicados, nem

requerem que se realize prodígios hercúleos incompatíveis com a vida humana; basta

receber os sacramentos e doar algo de si, sem que haja um fiscal do tesouro para cobrar

a quantia exata.

– Sobre a crítica que você fez a Ortega y Gasset — continuou o Sr. Marcondes — ela é

parecida com uma crítica que Nietzsche fez ao acadêmico que se acha superior ao

religioso, Nietzsche, embora ateu, ridiculariza tal acadêmico, do que se depreende

algumas coisas: É possível defender a religião de modo anti-dogmático, como Ortega y

Gasset fez, por causa da influência de um meio acadêmico esnobe e inconsciente do

próprio ridículo, e isso significa que Ortega estava sobretudo sendo retórico, falando aos

outros do modo que esperavam. Ainda que muitos dos que defendem a religião

incorram nessa falta, há muitos indivíduos proeminentes que a defendem de modo

ortodoxo. De outro modo me parece tolo, como você fez, dizer que a linguagem do

religioso é mais infantil e imperfeita. Que eu saiba Dostoiévski era

um eslavófilo radical, um cristão ortodoxo, e um dos mais bem-sucedidos ateus dos

últimos tempos, Christopher Hitchens, afirma que para se decidir e inteirar sobre

assuntos humanos mais profundos e não-científicos, ele recorria a Dostoiévski, que

todos sabem usou a sua obra literária como uma bandeira indistinguível da sua posição

político-religiosa a favor do cristianismo ortodoxo do oriente.

– A ideia de que o papel desempenhado pela religião anteriormente deve

ser substituído por uma outra convenção — continuou o Sr. Marcondes — foi

propugnada por um homem chamado Auguste Comte, no século XIX. Essa ideia

implica que todos os registros religiosos, como as especulações do Talmud e os escritos

da Bíblia, devem ser descartados das considerações práticas e científicas. Por exemplo,

a sociologia, ciência fundada de algum modo por Comte, representava para ele uma

condensação de toda a história humana tal qual cristalizada nos costumes humanos. Que

sejam descartados os registros anteriores, o que importa para nós homens é o fenômeno

positivo, aquilo que é dado positivamente, ou imediatamente, na realidade. O problema

dessa proposição é que o que é dado como positivo e presente a alguém, não é dado a

outro. As pessoas se encontram em pontos diferentes e vêem as coisas de ângulos

distintos, por isso Aristóteles considerava que a ciência é baseada no cruzamento e

levantamento de opiniões. Descartar opiniões é anti-científico.

– É verdade que o “papa” João Paulo II e outros deram indicações de aprovação da

teoria da evolução. Mas os tradicionalistas têm sérias dúvidas de se eles são papas de

verdade, e os tradicionalistas que os apoiam têm sérias dúvidas se os “papas” sabem o

que estão fazendo. Esse argumento do papa parece muito bom a princípio, mas eu sou

capaz de demonstrar que é um péssimo argumento. Desde São Cipriano de Cartago pelo

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menos, no séc. III, existe a ideia de que só os católicos são salvos. No séc. XIII o papa

Inocêncio III definiu isso de modo explícito, que fora da Igreja não há salvação. Essa

concepção atingiu dois pontos máximos adiante. O primeiro foi com Martinho V, no

Concílio de Constança, no qual ele condenou a noção de que é tolo e presunçoso dizer

que os filhos pequenos dos fiéis mortos antes de receber batismo sacramental não serão

salvos. Portanto o Concílio de Constança considera que esses bebês não serão salvos, ou

ao menos não é tolo nem presunçoso dizer que não serão salvos. O outro ponto máximo

foi o Papa Eugênio IV, no Concílio de Florença, bula Cantate Domino, 1441 depois de

Cristo: “A Santa Igreja Romana firmemente crê, professa e apregoa que todos fora da

Igreja Católica, não apenas pagãos mas também judeus ou hereges e cismáticos, não

podem tomar parte na vida eterna e irão para o fogo eterno que foi preparado para o

diabo e seus anjos, a não ser que se unam à Igreja antes do fim de seus dias; [a Santa

Igreja Romana firmemente crê, professa e apregoa] que a unidade deste corpo

eclesiástico é de tal importância que apenas aqueles que residem nele tomando parte nos

sacramentos contribuem para a sua salvação, somente aqueles que jejuam, distribuem

esmolas e realizam outras obras de piedade e práticas da milícia cristã produzem

recompensas eternas; [a Santa Igreja Romana firmemente crê, professa e apregoa] que

ninguém pode ser salvo, não importa quanto tenha dado em esmolas e mesmo se tiver

tido seu sangue derramado no nome de Cristo, a não ser que persevere no seio e unidade

da Igreja Católica”.

– Diante da citação que eu acabo de fazer — continuou o Sr. Marcondes — fica claro

que a posterior negação de que os recém-nascidos mortos sem batismo não são salvos,

feita por Bento XVI, é uma rejeição da fé católica. O Concílio de Florença que acabo de

citar afirma categoricamente que todos que se opõem pensando coisas contrárias ou

opostas às coisas que a Igreja ensina, a igreja rejeita-os, os anatematiza, os condena.

Desde João XXIII até Francisco, os “papas” não condenam nem rejeitam, nem

anatematizam, isto é nem abominam, nenhuma religião e nenhum líder não-católico.

Eles rezam por judeus falecidos, batem palmas nos cultos de diferentes religiões, e

convidam dezenas de seitas diferentes para rezarem em comum, nas notórias reuniões

em Assis, na Itália. É nesse contexto que você está dizendo que o papa aprova a teoria

da evolução, um contexto bastante esquisito e difícil de examinar. Pela doutrina católica

esses homens, sendo hereges, perdem a jurisdição e se tornam antipapas, alguém que

meramente alega ser papa. Houve dezenas de antipapas na história da Igreja, e houve

mesmo um período em que um antipapa reinou em Roma quando o verdadeiro papa era

acossado e tinha um séquito muito mais reduzido que o dos outros alegando ser papas.

A atual crise da Igreja, que eu descrevo, foi prevista por duas aparições da Virgem

Maria, com a aprovação do Vaticano. Em uma delas, a de Fátima, segundo um cardeal

da Igreja Católica que foi também um teólogo papal, o cardeal Mario Luigi Ciappi, “é

predito, entre outras coisas, que a grande apostasia na Igreja começaria no topo”. O

segredo a que o cardeal se referiu, o Terceiro Segredo de Fátima, curiosamente nunca

foi revelado ao público. Portanto alegar a opinião de um “papa” atual em favor da teoria

da evolução é bastante capcioso, não tem muito valor, porque essa argumentação é uma

faca de dois gumes: Se ela precipita a Igreja no descrédito, ela dá crédito à aparição de

Fátima, em um contexto em que essa aparição parece estar extremamente correta na sua

previsão. E uma vez que a aparição esteja correta, a Igreja está correta. E para mais

demonstrar esse fato, basta me fiar no testemunho do cardeal John Henry Newman. Ele

e outros professores universitários ingleses, no século XIX, perceberam que o

secularismo e o ateísmo estava ganhando muita força no país, a Inglaterra. Por isso

lançaram um movimento, e o Sr. Newman, então um clérigo anglicano, passou a

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publicar de maneira orquestrada com pessoas influentes, e por meio de editoras e

imprensa, vários tratados que revitalizavam o pensamento cristão no país. Esse

movimento anglicano foi um sucesso. John Henry Newman é chamado a figura pública

mais influente, o formador de opinião mais influente, da Inglaterra no séc. XIX por um

estudioso católico de nomeada chamado Michael Davies. Newman foi extremamente

influente na segunda metade do séc. XIX, justamente no contexto da publicação de A

Origem das Espécies. Os maiores críticos de Henry Newman, em tempos recentes, me

parece, são os irmãos Dimond; embora o considerem um herege, dizem que Newman

foi um homem inacreditavelmente culto e erudito, o que talvez signifique que

reconheçam que Newman é mais erudito que eles. Eis o perfil desse estudioso. Eu o

menciono porque de acordo com o que ele diz na sua obra Apologia Pro Vita Sua, um

exame da história da Igreja deixará bem claro que a Igreja Católica pode ser identificada

por nunca mudar de opiniões ou de posição ao longo de toda a sua história, e condenar

varonilmente, austeramente, todo erro, e todos em erro. Quando Newman, ainda um

clérigo anglicano, se viu forçado a admitir isso depois de tanto atacar na imprensa a

Igreja Católica, ele ficou pálido, e começou o período de dúvida que levou à sua

conversão pública ao catolicismo. Portanto há uma prova bastante segura de que a

aceitação da teoria da evolução por um João Paulo II ou um Francisco, não muda o fato

de que a Igreja nunca muda de uso e opinião no decorrer da história, e se muda, a

mudança é tão escancaradamente anti-católica, que sua ocorrência merece um cuidado

redobrado.

– A respeito da teoria da Evolução, e a seleção natural, que nos propõe que o homem

evoluiu de outras espécies animais, deixa-me citar um paleontologista do Museu

Britânico, o Sr. Colin Patterson. — Continuou o velho Marcondes. — A paleontologia é

o estudo dos fósseis, e de acordo com a teoria da evolução devem haver fósseis

comprovando as espécies de transição entre o homem e outras formas animais, ou ao

menos é possível que haja tais fósseis. Alguém perguntou ao Sr. Patterson por que ele

não incluiu em um trabalho os fósseis indicando o “elo perdido”, a espécie de transição.

Esse paleontologista respondeu, por escrito, assim: “Eu concordo inteiramente com os

seus comentários a respeito da falta de transições quanto à evolução, no meu livro. Se

eu tivesse qualquer informação a esse respeito, tanto de fóssil ou animal vivente, eu os

teria incluído no meu livro, mas devo lhe dizer que não há tal fóssil.” Existe de fato, e

foi comprovado por Darwin, que há pequenas variações, imperceptíveis ou quase

imperceptíveis, dentro das espécies, a cada cria que nasce. Mas não existe a

demonstração de que uma espécie se tornou uma outra espécie completamente diferente.

É possível demonstrar que a teoria da evolução não é propriamente uma demonstração.

Em primeiro lugar porque um dos maiores defensores dessa teoria, quando foi

inicialmente publicada, o cientista Thomas Huxley (chamado o bulldog ou cão de

guarda de Darwin) tinha reservas a essa teoria. Ele não a encarava como uma

demonstração, isto é, algo que torna um objeto evidente. Ele tinha respeito pela teoria, e

achava que devia ser discutida, e mesmo contribuiu com ela, mas ele não a via como

uma demonstração. Um dos motivos é que a teoria da evolução envolve ramos que vão

muito além da biologia. Darwin foi um geólogo, mas a teoria da evolução certamente e

necessariamente envolve especulações no ramo da astronomia, por exemplo. Isso

porque, de acordo com Richard Dawkins, grande defensor da evolução, a vida na terra

começou há cerca de três bilhões e meio de anos. Isso significa que para demonstrar a

teoria da evolução é preciso especular em alguma medida a respeito das condições

geológicas e astronômicas prevalecentes quando a vida começou. Cientistas dizem que

o volume do sol decresce formidavelmente com o correr do tempo, o que significa que a

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relação da terra com a luz solar três bilhões de anos atrás era diferente, ou pode ter sido

diferente. Então a especulação evolucionária é uma especulação também astronômica. E

isso estava fora do campo de estudos de Darwin, que, claro, era já abrangente. Mas

disso se conclui que a teoria da evolução não é uma demonstração, como era evidente

para o maior defensor público dela.

– Por essas coisas se vê porque o cientista Richard Owen, que você mencionou, não

acreditava em evolução, ou não a propugnava com firmeza. — Disse ainda o velho

Marcondes. — Ele levantou a hipótese da variação tênue das espécies, claramente

demonstrada, não ter sido o mesmo mecanismo que deu origem às espécies em toda a

variação que apresentam. Uma das maneiras de ver isso é que segundo um cientista

chamado Stephen Meyer, no livro Signature in The Cell, todos os seres vivos são feitos

de proteína. E a proteína, para existir, necessita de uma estrutura química chamada

aminoácido. Ora, nenhuma cadeia de aminoácidos é encontrada espontaneamente na

natureza, se não é produzida pela célula dos organismos vivos. O Dr. Meyer calculou a

probabilidade de os aminoácidos se formarem por acidente na natureza, sem um

organismo preexistente, e comparou essa probabilidade a se achar uma agulha que possa

estar em qualquer lugar do universo visível. Se o surgimento dos organismos não é

espontâneo, mas o fruto de uma intenção, então porque deveria ser necessário que a

evolução das espécies ocorresse desde um único, ou uns poucos, seres viventes? Se é

possível a um criador gerar a vida do nada, é possível gerar todas as espécies do nada. A

evolução, sob essa luz, é um mecanismo inócuo. Se é possível criar um ser vivente, um

organismo vivente, é possível a Deus criar o primeiro homem e a primeira mulher. Aqui

se vê novamente que o ateísmo não se baseia tanto no próprio embasamento racional,

mas na desconfiança em relação à hipótese contrária. Porque se não existe Deus, e Adão

e Eva não foram os primeiros seres humanos, mas o homem surgiu de um único ser

vivente, ou alguns seres viventes que não se pareciam com o homem em nada, então

significa que tudo ocorreu por um processo randômico; e se ocorreu por tal processo,

uma catástrofe poderia muito bem ocorrer no universo eliminando todos os seres

viventes, e o universo poderia subsistir sem vida alguma, e para sempre, ainda que a

possibilidade da vida subsistisse também. Essa ideia também é estranha, ou ocasiona

estranhamento. Não é o mesmo que se objeta a “Adão e Eva”? Que causa

estranhamento? Como eu já disse, não é tanto que o ateísmo faça muito sentido, mas

que a hipótese contrária evoca ressentimento e desconfiança. Argumentar que a religião

é bizarra é um jogo fácil, e que se apresenta como uma via de mão dupla: Eu também

posso, com certa eficácia retórica, dizer que o ateísmo é bizarro. Você acusou os

religiosos de não olharem as próprias faltas e inconsistências, mas apenas as faltas e

inconsistências alheias; não é precisamente isso que você faz?

– Você apontou, com Büchner, que em todo lugar para o qual formos teremos muita

gente bastante cética em relação à religião local. — Disse o velho Marcondes. — Isso

não é, de certo modo, um fator probante em favor, não contra, a religião? Pensa bem,

não existem relatos minuciosos de como se cria uma religião fraudulentamente do nada,

pois até mesmo as religiões da Nova Era têm certa filiação tradicional na Sociedade

Teosófica e organizações de cunho esotérico, suspeitas de satanismo, que existiam no

século anterior ao advento da Nova Era. Não existem relatos literários de como se cria

religiões do nada, e por estelionato, então não é possível sequer imaginar como um

grupo acaba por se fiar em certa tradição religiosa, se o ceticismo é natural no ser

humano, como Büchner aponta. Se acontece por fraude, como não temos qualquer ideia

mais clara de como funciona essa fraude? Por exemplo, a famosa escritora mística Alice

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Bailey, que foi expulsa da Sociedade Teosófica americana no séc. XIX. Ela dizia que

recebia mensagens de um espírito chamado “O Tibetano”. Se ela era uma mera

estelionatária inventando uma história para enganar os outros, por que é que ela se

submeteu a ser execrada pelos outros teosóficos que não acreditavam no “tibetano”,

para de modo até certo ponto independente e corajoso fundar a Lucifer Trust, uma

organização para promover a publicação de livros esotéricos, isto é, o seu próprio

material? Você consegue imaginar um estelionatário inclinado a dedicar a sua vida

inteira a uma história inventada, de cunho esotérico, sem ter meios de saber se o seu

projeto vai dar certo? A organização fundada na década de vinte, a Lucifer Publishing

Company, tem uma formidável sede hoje nos Estados Unidos, em Manhattan; vai muito

bem. A organização tem filiais ou sedes em pelo menos três países europeus, incluso a

Inglaterra, e a influência que teve sobre o movimento da Nova Era e sobre o mundo foi

profundo. Basta que eu refira aquilo que disse o falecido estudioso e radialista

americano, Dr. Stanley Montieth, “a Nova Era influenciou todos os aspectos da nossa

vida”.

– Você disse que não há como saber se uma religião é falsa ou não, no sentido de

demonstrá-lo de modo suficiente. — Disse o velho Marcondes. — Se isso é verdade,

por que você diz que rejeita as religiões como bizarras? Se são bizarras, não é isso uma

demonstração suficiente de que se deve rejeitá-las, e portanto resta provado que há

critério para rejeitá-las? Se elas são bizarras então exalam um odor de coisa

extraordinariamente má, destrutiva de uma estabilidade ou salubridade psíquicas, e não

é de modo algum claro que o homem consiga produzir realidades assim da sua própria

imaginação, sem a concorrência de fatores sobrenaturais diabólicos. Um ateu como o

americano Bill Maher pode escarnecer do que lhe pareceu bizarro na religião de Joseph

Smith, o mormonismo, e suas revelações. Mas eu escarneço da ingênua ideia dele de

que esses fenômenos foram inventados da imaginação de Joseph Smith. Aliás, Maher

nem mesmo pensa ou afirma com segurança que essas visões de Smith foram

inventadas. Ele simplesmente não sabe do que se trata! É para mim bastante evidente

que o ateísmo é um ressentimento ou desconfiança contra a religião, esta definida como

a crença advinda de algum tipo de revelação ou mensagem de uma inteligência não-

humana. E ressentimento por ressentimento, ele não é realmente mais racional do que o

ressentimento contra a ideia de que Deus não existe. Uma prova adicional do que eu

estou falando é o interessante trabalho do Dr. Richard Carrier, um ateu que escreveu o

livro On the Historicity of Jesus: Why We Might Have Reason for Doubt. Ele apresenta

os eventos que geram as religiões como “alucinações”, mas mais adiante ele explica que

esse é termo técnico, não literal. As visões e revelações que os fundadores de religiões

têm, e até mesmo o reformista Lutero alegou tais revelações no seu comentário à

Epístola aos Gálatas, as revelações que os fundadores de religiões têm são coisas que o

Dr. Carrier não faz a menor ideia do que sejam. Ele não pode dizer que essas

“alucinações” são invenções, porque se ele o dissesse soaria muito esquisito; não

obstante o sentido vago de “alucinações” que ele usa é já por si tremendamente

esquisito.

– Você lançou mão de um argumento de Ludwig Feuerbach — continuou o velho

Marcondes — a distinção entre o que Deus é para mim e o que ele é em si mesmo.

Segundo Feuerbach uma vez que se faça essa distinção, o conceito de Deus em si

mesmo parecerá inteiramente vazio. A Summa Theologica, de Santo Tomás de Aquino,

enumera e discute sob muitos ângulos os atributos que Deus deve ter em si mesmo, para

todos que considerem o mesmo raciocínio, e um desses atributos é o colocar

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generosamente as coisas em movimento, uma vez que tudo o que é movido foi movido

por uma outra coisa, e na cadeia de movimentos assim considerados deve ter havido

algo que primeiro moveu sem ser movido, porque o conceito de um começo que nunca

começou é absurdo. Se pode argumentar contra essa prova da existência de Deus que é

baseada em um raciocínio que, por não poder ser reconstituído pela observação, nem

pela imaginação de modo fácil, tem tanta veracidade quanto um ente de razão, e não se

parece com uma demonstração. É o que diria talvez um lógico ateu como Bertrand

Russel. Mas a mesma objeção pode ser feita, de maneira ainda mais certeira, contra a

teoria da evolução que os ateus tanto exaltam. Ainda que fosse certo considerar que a

distinção entre o que Deus é para mim e o que ele é em si destrói a religião, isso parece

se aplicar apenas a pessoas que, como provavelmente foi o caso de Feuerbach, não

tiveram nenhuma experiência do sobrenatural, pessoas que não eram como Alice

Bailey; porque ela obviamente, ao receber recados do “tibetano”, tinha uma experiência

de um ente que não se resumia em expectativas subjetivas misturadas a atributos

genéricos de origem puramente humana. Se pode ver isso, por exemplo, pelo fato de os

escritos dela, abrangendo muitos assuntos e distinções, causarem fascínio e

influenciarem muitas pessoas. E como vimos, não faz sentido dizer que ela inventou

tudo isso do nada, nem um historiador com PhD em história antiga como Carrier é

capaz de dizer com clareza o que são essas “alucinações”.

– O próprio Dr. Carrier — continuou o Sr. Marcondes — discorreu sobre as muitas

lendas religiosas que são semelhantes. Rômulo, na Roma pagã, tinha as morte e

ressurreição celebradas anualmente, como Jesus Cristo. Sobre Osíris, o deus egípcio, era

prometida a salvação no além a quem quer que fosse batizado em sua morte e

ressurreição. E também na província mediterrânea da Trácia se acha uma tradição muito

semelhante, o cristianismo sendo, para o Dr. Carrier, mais uma tradição entre muitas

outras. Você citou Voegelin, que aponta na mesma direção. Mas o próprio Dr. Carrier

avisa os desavisados que muitos dos paralelos entre o cristianismo e as outras religiões

são dúbias ou simplesmente falsas. Por exemplo, circula muito a informação de que

Hórus, ou Mithra (um deus persa do zoroastrismo), tiveram, como Jesus teve, doze

discípulos, o que é falso. Não se sabe, segundo Carrier, de uma repetição desse padrão

de doze discípulos. E conquanto hajam essas alegações dúbias, o Dr. Carrier propõe que

o cristianismo promoveu o mesmo tipo de crença que outras tradições pagãs

promoveram. Inclusive, segundo ele, o Jesus das escrituras provavelmente nunca

existiu, apesar dos relatos a respeito na antiguidade, que ele aponta serem escassos; as

histórias foram inventadas posteriormente pelos discípulos, assim como a passagem

pela terra dos deuses pagãos foi inventada. Existem muitos deuses com a mesma

característica de Jesus, segundo o Dr. Carrier. Há muitos deuses salvadores, chamados

filhos de deus, que sofrem o que é designado no grego como “paixão”, todos vencem a

morte e comunicam essa vitória aos discípulos, e todos têm relatos de si como se

passando na história humana. A argumentação do Dr. Carrier é simples: Se a história de

Jesus é tão semelhante a muitas outras histórias pagãs, e o paganismo deve

ter influenciado o judaísmo no correr do helenismo ou disseminação da cultura grega,

por que a história de Jesus tem de ser considerada real?

– OK. Escutem. Eu vou lhes dizer porque a ideia de que Jesus nunca existiu e não teve o

seu ministério público diante dos homens me parece incorreta, ainda que a verdade

sobre a pregação de Jesus, tal qual está no evangelho, faça com que ele se assemelhe a

deidades pagãs. Primeiramente deixem-me lhes explicar quem foi Alexander Hislop.

Ele foi um estudioso de grande erudição, um escocês protestante ao séc. XIX; tinha bom

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domínio de línguas como grego e mesmo sânscrito, que é usado na liturgia do

hinduísmo. Hislop acreditava que a Igreja Católica era a continuação de uma religião

babilônica de mistérios; um exemplo atual desse tipo de religião, segundo um estudioso

chamado Stephen Missick, é a Maçonaria. Portanto, à segunda metade do séc. XIX,

como o livro de Alexander Hislop chamado As Duas Babilônias deixa entrever, havia

passado tempo suficiente desde a reforma protestante para que os estudiosos da reforma

protestante se detivessem na elaboração de inúmeras teses anti-católicas como essa. Mas

ao século XIX, quando Newman era influenciado por escritores protestantes que lhe

indispunham profundamente contra a Igreja Católica, a exemplo de Isaac Newton,

nenhum deles lhe indispôs contra Santo Inácio de Antioquia, bispo de Antioquia. Esse

homem, contemporâneo a Policarpo de Esmirna, também homem de uma região da ásia,

foi junto com Policarpo um dos bispos que conheceram os apóstolos. Policarpo é

venerado pelas Igrejas luteranas que detestam o vaticano (se se levar em consideração a

linguagem costumeiramente violenta de Lutero contra Roma). Julgar que os anglicanos

não foram profundamente influenciados pela reforma protestante e seu espírito, apesar

de manterem o “episcopado”, é bastante ingênuo. Os anglicanos, na geração em que

Newman cresceu, tinham a mesma impressão de qualquer calvinista a respeito dos

exagero e velada idolatria católica, dirigida aos santos. É isso simplesmente um fato.

Mas os protestantes de uma maneira geral, não vêem falsificação nos documentos

conservados pela Igreja com os relatos de homens como Santo Inácio de Antioquia e

Policarpo de Esmirna, homens da primeira metade do séc. II, tão perto da geração

apostólica que na verdade um discípulo de Policarpo, chamado Irineu, é um dos autores-

chave para entender aquele período. Não há muita disputa histórica a esse respeito,

embora tenha havido alguma, sobretudo se se considerar que Alexander Hislop (um dos

maiores responsáveis pela aversão pública ao catolicismo), cita como fonte

minimamente fidedigna um historiador do século IV como o bispo Eusébio de Cesaréia,

o qual por sua vez cita as epístolas de Inácio de Antioquia. Assim, me parece, também

pensa um expert em grego e manuscritos antigos, um protestante contemporâneo

chamado James White; White é o tipo de protestante que espuma de ódio com o que

considera ser a idolatria da virgem Maria, e no entanto ele não põe dúvida, por exemplo,

nos escritos e registros históricos do bispo Atanásio de Alexandria, um ícone do

catolicismo nascido décadas antes do Concílio de Niceia ocorrido em 325 D.C.. Pelo

contrário, ele chama Atanásio praticamente de protestante, pelo apego de Atanásio às

escrituras durante a controvérsia com os da heresia ariana.

– Portanto — continuou o velho Marcondes — é seguro que escritos dos padres da

Igreja, que são os santos do primeiro milênio, como Santo Inácio de Antioquia, são bem

aceitos. Newman se baseou muito em Inácio quando era um anglicano. Se os escritos de

Santo Inácio de Antioquia devem ser bem aceitos, então a ideia de que os apóstolos

criam em um Jesus real vindo ao mundo, essa ideia deve ser aceita. Santo Inácio, nas

sua epístolas, afirmava crer em um Jesus nascido do útero da Virgem Maria, e

descendente do rei David. Ademais, instou por suas epístolas que as pessoas cressem na

paixão ocorrida sob Pôncio Pilatos. O Dr. Carrier acredita que os apóstolos e primeiros

cristãos criam que a paixão de Jesus tinha ocorrido no céu, e não na terra. Ele crê que

assim como nos mitos pagãos, a realidade de Jesus teria sido revelada por “alucinação”

e depois projetada fiticiamente sobre a história, e nisso cita certo escrito da época (de

autoria desconhecida) chamado Ascensão de Isaías, que parece apontar para uma paixão

de Cristo, e embate de Cristo contra o diabo, ocorrida exclusivamente no Céu. À luz

dessa hipótese as epístolas de Santo Inácio são submetidas a um estranhamento. As suas

referências ao nascimento de Jesus passam a ter de ser vistas como metáforas a insinuar

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de um segredo esotérico. As epístolas dele passam a ganhar um odor de repugnância, a

natural repugnância que se tem contra a duplicidade.

– É possível argumentar, contra o Dr. Carrier — continuou o velho Marcondes — que é

bem seguro aquilo referido no Catecismo de Trento, a saber, que Pôncio Pilatos foi

incluído no Credo constantinopolitano, no séc. IV, justamente porque entre os das

primeiras gerações de cristãos houve os que negaram a existência de Jesus na história.

Se é verdade que os primeiros cristãos, como o apóstolo Paulo, não acreditavam em um

Jesus histórico, então significa que, curiosamente, esse segredo esotérico ficou tão bem

guardado, que não há registros de tal conspiração enquanto tal, e um dos maiores

intelectuais e eruditos de todos os tempos, o cardeal Newman, nos admite com pasmo

que a Igreja Católica não muda de opinião, mas sempre, contra tudo e contra todos,

mantém austeramente o mesmo modo de crer. Depois de o primeiro Concílio ecumênico

ocorrer, o Concílio de Niceia, definindo que Jesus era Deus, e ao mesmo tempo havia

um só Deus, décadas depois os hereges arianos que haviam disputado no concílio

viraram a mesa. Apenas três bispos em todo o Concílio de Niceia, se recusaram a

assinar o credo concordando que Jesus era Deus, apenas três bispos se apegaram ao seu

arianismo. Mas infelizmente, uma vez que os arianos conseguiram o apoio do

imperador romano, e contaram com outras circunstâncias favoráveis, o mundo do dia

para noite se tornou ariano, ainda no século em que ocorrera Niceia. São Basílio Magno

foi o único bispo não-ariano em todo o oriente durante parte da segunda metade do séc.

IV que reteve sua diocese, e a maior parte da Igreja ficava no oriente. 97% a 99% de

todos os bispos do mundo abandonaram a fé. Os católicos que restaram se apegaram

firmemente à fé. Em nome dessa fé, que o cardeal Newman assegura foi sempre

professada de modo austero e inalterável, os católicos atravessaram os séculos

continuando a ser o que são. Crer que a fé católica tenha se baseado nesse segredo

esotérico inicial, tomado a máscara que encobria o segredo pela verdade e se apegado a

essa máscara por tanto tempo, quando todas as outras seitas, a começar pelo arianismo,

se contradiziam, mudavam e estilhaçavam em muitos pedaços, crer nisso é coisa

estranha. Quando foi que o segredo esotérico deixou de ser contado, e por que deixou de

ser contado? O Dr. Carrier não tem uma resposta a isso, o que significa que a sua tese

não é uma demonstração. Ele próprio admite que é uma possibilidade.

– Quanto à semelhança entre o cristianismo e as outras religiões pagãs, parece

conveniente mencionar a opinião de um dos padres da Igreja a respeito, São Justino

Mártir (que escreveu no ano de 165 D.C). — Continuou o velho Marcondes. — Ele

acreditava que essas semelhanças entre o cristianismo e outras tradições são fruto da

influência do demônio sobre as várias sociedades humanas, um engendramento de

confusão. É só a opinião de um santo, não é de fide, parte do depósito da fé deixada

pelos apóstolos. Há pelo menos duas teses explicativas de que eu posso lançar mão a

respeito. A primeira consiste em apontar que, segundo Gilbert Chesterton

primorosamente mostrou no seu livro Hereges, existe uma diferença tão grande entre o

paganismo e o cristianismo, que a experiência vital de um pagão será completamente

diferente da experiência vital do cristão. Ele procura demonstrar que isso é bastante

evidente. Por exemplo, quando as pessoas criticam o cristianismo porque defende o

casamento com o fim exclusivo de procriação. Temos um exemplo perfeito da oposição

paganismo e cristianismo. O pagão tenderá a se chocar com uma tal concepção de

casamento, porque o pagão vê o aqui e o agora, o prazer imediato, aquilo que está diante

dele. O sexo para o pagão é só sexo. Para o cristão o sexo é só uma alusão a algo não

imediato, isto é, o filho que vai nascer, e o nascimento do filho é só uma alusão à

salvação do mesmo, preparada para a maior glória de Deus. No cristianismo a infinitude

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permeia tudo, tudo se insere em uma perspectiva maior, infinita, inesgotável. É por

causa dessa estranha experiência vital e perspectiva que Santo Inácio de Antioquia

pulava de alegria quando se dirigia aos leões para ser por eles despedaçado; ele foi um

mártir cristão sob o Imperador Trajano. Glorificar a Deus e ganhar a vida eterna por

meio do sacrifício da própria vida?! Ele não conseguia conter a si mesmo de

entusiasmo, e de receio que o seu martírio não sucedesse. Chesterton elaborou essa

oposição entre o paganismo e o cristianismo, referindo que o Ulisses de Homero, pagão,

queria apenas voltar para casa; e que o Ulisses de Tennyson, de um poema dentro da era

cristã, queria navegar contra o pôr do sol, se aventurar, queria se defrontar com a

imensidão. Como as críticas que Chesterton recebeu por Hereges não contemplaram

nenhuma rejeição dessas noções de paganismo e cristianismo, e como Chesterton de

fato estudou essas noções e citou autores a respeito, significa que pareceu aos

estudiosos dos tempos de Chesterton que essas noções não são forçadas e inadequadas.

Portanto, por mais que o mito pagão e o mito cristão tragam entre si alguma

semelhança, existe algo muito profundo que diferencia o paganismo do cristianismo,

algo que forçaria mesmo o Dr. Carrier a admitir que o mito cristão é um tipo

diferenciado de paganismo.

– Por que essa diferença entre o paganismo e o cristianismo? — Continuou o velho

Marcondes. — Essa expectativa cristã da imensidão se baseia em uma certeza, em

uma experiência que alimentou a alma dos primeiros cristãos de esperança, de um

discurso apaixonado como aquele que se nota em Santo Inácio de Antioquia. Foi nesse

espírito que Santo Inácio, depois de escoltado por soldados até o anfiteatro Romano, se

deixou devorar por leões em nome de Cristo no ano 107. Eu não compreendo o mistério

cristão, mas eu sei que, se o relato dos evangelhos não é verdadeiro, e os apóstolos não

testemunharam de verdade o que está nesse relato, é bastante curioso que a “alucinação”

deles tenha causado uma impressão tão forte, uma mudança tão profunda de experiência

vital. Por que tanta esperança, tanto vislumbre da eternidade em todas as coisas? Como

nós vimos, pelo escritor Büchner, as pessoas são geralmente céticas e alheias à sua

tradição religiosa; por que tanta esperança? Naquele filme sobre o cavalo Seabiscuit, a

narrativa da cena final diz, no contexto das várias vitórias em corrida de cavalo: “As

pessoas pensam que nós pegamos esse cavalo, o consertamos, para ele se tornar

campeão, mas a verdade é que foi ele quem nos consertou”. A vitória, o triunfo, o

milagre, existe alguma outra coisa como essas capaz de nutrir o coração de alguém de

esperança a ponto de tornar fácil o sacrificar a própria vida?

– A minha segunda tese é como segue: Segundo a narrativa de Gênesis, a terra foi

amaldiçoada por causa do pecado do primeiro homem. O homem teve de passar a

ganhar o alimento com o suor do rosto. Se pode ver que é um castigo que dá ao homem

uma ideia realista de que depende de Deus, e é menor que Deus. Da mesma maneira,

quando no Gênesis a empresa da torre de Babel é interrompida, e ocorre a confusão

das línguas, o mesmo padrão ligeiramente se repete: A tentativa do homem de se

engrandecer e se tornar capaz de executar todos os seus empreendimentos é frustrada,

para que, segundo me parece, não deixe de perceber o quanto depende de Deus. Existe

portanto uma descontinuidade entre a natureza primitiva, paradisíaca, e a que nós

conhecemos; existe uma descontinuidade entre a primitiva facilidade de comunicação

entre os homens, e a comunicação atual. Nos dois casos a diferença serve para

assombrar o homem e mostrar-lhe que é pequeno. Talvez o mesmo propósito seja

desempenhado pelos diferentes mitos religiosos, talvez a descontinuidade que existe

entre uma religião e outra, como as duas primeiras, não sendo total mas parcial, cumpra

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a função de fazer saber que o homem, arraigado na sua tradição religiosa, não

compreende, não abarca, outras muitas perspectivas, o homem é pequeno. O fato de a

narrativa cristã não ser exatamente igual às outras reforça isso, porque igualmente entre

ela e as outras há uma mistura de continuidade e descontinuidade. Embora isso seja

assim, tal não chega a ser propriamente uma apologia das religiões, mas as religiões são

um castigo, uma peia, e o fruto do orgulho humano; assim como a natureza amaldiçoada

é um castigo e o fruto do orgulho. Portanto, o fato de que existe uma descontinuidade

não-total entre a religião verdadeira e as outras, semelhante à descontinuidade não-total

entre a natureza paradisíaca e a atual, é uma indício de que a religião cristã é verdadeira,

e sobretudo é um indício de que o entendimento ateísta do que sejam as religiões não é

verdadeiro.

– Isso pode ser exemplificado com alguns exemplos e qualificações — continuou o

velho Marcondes –, por exemplo, se é necessário crer na Santíssima Trindade e na

encarnação de Jesus Cristo para ser salvo, como a fé católica afirma, é porque ao falecer

e se defrontar com tais realidades, o homem tem de ter se adequado a aceitá-las com

firmeza para não fugir da face delas ao se apresentarem. E a preparação para aceitar tais

realidades implica não só um vislumbre da humildade que será necessária para se

defrontar com tais realidades, mas essa preparação implica um moldar a humildade

necessária para se aceitar essas realidades. O mover do orgulho no homem faz que ele

se incline a não aceitar esses dogmas, porque a confrontação com a própria pequenez é

dolorosa. Heresias como o arianismo ou o nestorianismo, são um reflexo do orgulho

humano. Nessa visão, as religiões tomadas individualmente, com exceção da cristã, são

más, mas tomadas em conjunto, são boas no sentido de que a confrontação delas dá ao

homem a medida de que, não sendo capaz de abarcar a linguagem de todas as religiões,

algum conhecimento lhe falta, ele é mísero e mais abaixo da sua situação do que

gostaria de admitir. Assim, faz sentido que Deus permitisse muitas religiões com

descontinuidades não-totais entre si, em vez de uma só falsa religião, e portanto a

existência das muitas religiões não advoga contra o cristianismo se puder ser mostrado

que é uma religião verdadeira.

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Protestantismo

– Muito bem — disse o Sr. Marcondes. — Primeiramente, se vamos decidir qual é a

única religião, usemos a cortesia socrática de definir o que é uma religião, e o que são o

catolicismo e o protestantismo. A religião é uma crença advinda de uma revelação desde

uma fonte não-humana. A fonte que o catolicismo alega é o Deus dos judeus, que falou

a eles no deserto; e Jesus Cristo, aquele mesmo Deus que falou a eles, mas nos últimos

tempos se tornou um homem para realizar uma obra de salvação. O protestantismo alega

a mesma fonte de revelação. Mas há uma disputa sobre questões doutrinais. Não há

ninguém nos meios liberais e midiáticos que goste da ideia de que essas disputas são

brutais ao ponto de representarem uma mútua condenação ao inferno. É porque a mídia

é a tentativa de apresentar uma unidade que não existe, é um espelho para o qual todos

olham, mas curiosamente ele não reflete o que é mais importante.

– Decorre disso que o dogma Fora Da Igreja Não Há Salvação é considerado nem

mesmo positivamente católico, apenas uma opinião marginal dentro do catolicismo.

James White e outros eminentes protestantes atuais nos dirão que os católicos, se se

fiarem em seus dogmas, vão para o inferno. O antipapa Bento XVI não acredita que os

protestantes sejam sequer hereges, ou merecedores dessa categorização; muitos

protestantes discutirão os assuntos católicos, como o Concílio Vaticano II, sem a atitude

de quem examina uma doença ou um inimigo (é o caso de Billy Graham, o ministro e

missionário da South Baptist Church nos EUA). — Disse o sr. Marcondes.

– De modo geral, o protestantismo é um fenômeno muito obscuro, o bastante para que

seus adeptos às vezes sequer enxerguem a si mesmos como tais. Eu quero dizer que

John Henry Newman, por exemplo, quando era um clérigo anglicano, tinha a impressão

de que a Igreja da Inglaterra, junto com a Igreja Latina e Grega (os cismáticos do

oriente), não representavam senão ramos relativa mas não inteiramente separados da

Igreja universal primitiva. Isso um católico não pode admitir, mas, ao contrário, o

católico é forçado a acreditar, por exemplo pela carta papal de Clemente VI chamada

Super Quibusdam, que todos andarilhos fora da fé dessa Igreja, e fora da obediência ao

papa de Roma, não podem ser salvos ao final da vida. Então temos um paradoxo:

Newman nos explica que para ele e seus companheiros de fé, quando era um anglicano,

o papa devia ser considerado um anticristo, e sua Igreja anticristã, sobretudo por causa

da veneração a santos; ao mesmo tempo, ele admitia ou passou a acreditar que tanto a

sua Igreja quanto a Igreja Latina eram membros de um mesmo corpo, a despeito de

qualquer acidente, essencialmente herdeiros dos apóstolos e de suas instituições.

– James White, o apologeta famoso, também é carregado de sentimentos semelhantes,

de algum modo. — Disse o velho Marcondes. — A crença na dignidade do sacerdócio

católico, como ensinada no catecismo católico, ele declara que pode danar uma alma.

Ao mesmo tempo, ele disse em alto e bom som que é grato por Niceia, o Primeiro

Concílio Ecumênico convocado pelo imperador Constantino. Ele é grato, e em geral as

Igrejas evangélicas admitem o conteúdo dos cinco primeiros concílios ecumênicos

aprovados pelo papa, porque o conteúdo desses concílios, os seus credos, não são

inteiramente claros a partir, diretamente, da bíblia. Tanto é assim que quase a totalidade

dos bispos católicos rejeitaram Niceia do dia para a noite, pouco depois do concílio, por

conta de alguma pressão do imperador que sucedeu Constantino. Então, por esses dois

exemplos, de White e Newman, se começa a perceber que os protestantes têm

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sentimentos contraditórios, eles são um fenômeno obscuro. Quem tenha tentado

conversar com um protestante vai ter essa impressão. Você dirá “São Francisco de Assis

é um modelo de vida”, o protestante talvez objetará que nenhum católico

necessariamente vai para o inferno (como se as crenças e alianças de São Francisco

sequer existissem). Se você objeta que Martinho Lutero tinha profunda veneração pela

Virgem Maria, o protestante talvez objetará que “Lutero era praticamente católico, e não

protestante”. Mas, como todos sabem, se ele era um promotor do catolicismo, o sorriso

de satisfação de muitos protestantes ante a oposição de Lutero à Igreja perde

completamente o sentido.

– A controvérsia sobre a tradução e manuscritos bíblicos, — continuou o Sr. Marcondes

— segundo vi em um debate certa vez, parecia ter como fundamento unânime que a

publicação das 95 teses (de Lutero) foi um marco, uma espécie de retorno ao

cristianismo autêntico. Mas nessas teses Lutero ainda tinha uma atitude de obediência,

ainda que em pequena medida problemática, ao papa. A tradução do Novo testamento

geralmente mais amada pelos protestantes, a King James Version, ou 1611 AD

Authorized Version, foi pesadamente baseada no texto editado em grego por Erasmo de

Rotterdam, que foi, como se sabe, um padre católico que, identificado embora a certas

críticas anticatólicas, desdenhou a Reforma Protestante. Os anglicanos e outros guardam

o domingo; os adventistas (por princípio), e os Judeus por Jesus (segundo os críticos por

tática), guardam o sábado como se fossem judeus. Os sábados, por sua vez, parecem

segundo alguns, ter sido expressamente abandonados pela cristandade conforme a

Epístola aos Colossenses, capítulo 2, versículo 16 (passagem que os adventistas há

muito reconheceram tem alguma força retórica contra a posição deles). Alguns dizem

que os não-cristãos não vão se salvar, outros dizem que “deixam isso à misericórdia de

Deus”. Quem se acostume aos protestantes, e talvez não seja o meu caso (eu quero dizer

que sou inexperiente), vai ter a sensação de que eles não falam uma linguagem que soe

demonstrativa, mas usam um outro tipo de linguagem, ou abordam a questão religiosa

de um modo inteiramente diferente. Um pouco disso se nota, por exemplo, em ateus

como Christopher Hitchens: Ele disse que o cristianismo na década de trinta se aliou ao

fascismo, querendo dizer que a Igreja se aliou à Alemanha nazista e à Itália fascista.

Essa ideia é altamente capciosa, a começar pelo fato de que Mussolini tinha uma

formação inteiramente marxista, foi elogiado por Lênin na época em que pertencia ao

partido comunista — Isso ao mesmo tempo que o comunismo era visceral e

explicitamente combatido pela Igreja. Por outro lado, Hitler tinha planos da matar o

papa, como foi referido de passagem por Paul Johnson em um dos seus livros, e a

segregação racial é uma ideia profundamente anticatólica e herética (a começar pelo

fato de que Jesus era um judeu, como todo judeu sabe). A ideia de Hitchens foi procurar

comprometer a imagem da Igreja, quando a suposta aliança dela com esses governos

não possui o caráter de um pacto demoníaco de modo algum. Assim como Hitchens, os

protestantes em alguns casos usam uma retórica que se agarra a meras aparências

fugidias, e a linhas de raciocínio cujo escopo é muito limitado e pouco complexo. Se

tem a sensação de que eles não têm o hábito de distinguir entre uma sugestão e uma

demonstração. A sugestão é o apontar para um sentido, a demonstração é o empilhar

proposições até uma reconstituição do objeto, é tornar o objeto evidente, visível.

– Você sente quando você chegou a uma demonstração; Hegel diz que quando

chegamos a um conhecimento pensante de algo, não a meras pressuposições, a

evidência tem a força de uma presença física, você não apenas conhece o assunto, mas o

conhecimento do assunto é uma prova da realidade dele. — Disse o Sr. Marcondes. —

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Essa distinção entre uma mera sugestão e uma demonstração parece ausente no discurso

religioso dos protestantes em alguns pontos, ainda que existam bons lógicos entre eles;

a exemplo do clérigo-teólogo (me parece anglicano) William Paley, o qual por sua

lógica tanto influenciou Charles Darwin; como disse, a exemplo dele os protestantes se

mostraram muito hábeis em qualificar e demonstrar. É que a dificuldade deles em

demonstrar toca não a tudo quanto dizem, mas a certos pontos. Eu vou dar um exemplo,

alguns grupos do ramo reformista dos calvinistas, os da Berean Church, eles se

engajaram na controvérsia sobre os manuscritos antigos da bíblia do seguinte modo.

Existe, para simplificar as coisas, os textos bizantino, ou de Antioquia, e o texto de

Alexandria, ou do Egito. Como eles creem que os textos egípcios são mais corrompidos

e suspeitos, e há certa variação entre os dois manuscritos da bíblia, eles escolheram

como o texto correto o bizantino; e levantaram o pretexto de que na bíblia se diz que o

Egito é uma terra de corrução, e que não se deve confiar no que sai de lá. Essa não é a

opinião de certos protestantes que entraram na controvérsia, contudo o modo dos da

Berean Church de resolver a questão me pareceu tremendamente característico. Não é

uma demonstração. Mas é como se fosse para eles. Entendem? Se você argumentar que

o maior profeta do Antigo Testamento, Moisés, saiu da corte do Egito, não de

Antioquia, a sugestão deles não parecerá mais tão sugestiva. Alguns creem na

infalibilidade da King James Bible, outros, como o Sr. White, veem com bons olhos a

New International Version que corrige o texto bizantino no qual a King James se

baseou. Supostamente a fé apenas, por graça e sem obras, deveria ser o princípio

protestante, mas é notório que há graus e graus de aceitação dessa doutrina, entre os

adeptos. Alguns, pelo menos um ministro protestante, dirá que a “abominação da

desolação”, de que Jesus fala no evangelho, foi a vinda do exército romano para destruir

o templo de Jerusalém décadas depois; outros dirão, seguindo talvez o fato de o termo

“abominação da desolação” ter sido usado para descrever sacrilégios cometidos no

templo pelos selêucidas à época dos Macabeus, que a “abominação da desolação” será

um fenômeno apocalíptico. Dirão não só que a o Tribunal da Santa Inquisição existiu

por toda a idade média, mas que matou milhões e milhões de pessoas; ao passo que o

famoso debatedor americano, Sr. Dinesh D’souza, um protestante, atribuirá à Inquisição

Espanhola não mais de dois mil condenados e provavelmente dirá que a Inquisição

surgiu ao século treze, já quase no fim da Idade Média. Se trata de uma roleta alucinante

de opiniões e variações, quase impossível de registrar uma por uma.

– Portanto — continuou o velho — embora se deva admitir, como no caso do reverendo

William Paley e outros, que os protestantes sejam capazes de grande tour de force

lógico e erudito — o que é ademais demonstrado pelo fato óbvio que muitos deles são

clássicos da literatura e filosofia –; por causa das doutrinas e proposições que nos

apresentam, no entanto, eu sinto que há algo de averso à demonstração na religião deles.

Tanto é assim que John Henry Newman explica que um dos principais desafios do

movimento antisecularista do qual fez parte na Inglaterra, foi justamente delinear um

sistema teológico anglicano completo, que satisfizesse os anseios dos jovens por

compreender todo o escopo do fenômeno cristão; esse sistema, a sua viabilidade, lhe

pareceu então, era bastante problemática. Embora alguns dos seus companheiros de

movimento, homens de status em Oxford etc., tenham tentado esboçar esse sistema; o

próprio Newman procurou adquirir os meios de esboçar o sistema, e isso se deu,

segundo me parece, por pelo menos dois meios. Primeiro, um descompromisso inicial

com o sistema, a publicação de ensaios sobre assuntos diversos carregados de uma

opinião e, quase, devaneio, profundamente pessoais. Isso lhe deu a vantagem de

multiplicar e estender as proposições (o que de certa forma é a própria definição de

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demonstração). Em segundo lugar, ele usou como combustível para esse

empreendimento, aliás profundamente bem-sucedido, os padres da Igreja, os santos

católicos do primeiro milênio. Newman se aproximou da demonstração e fez a cabeça

da Inglaterra porque se aproximou dos padres da Igreja. O elemento subjetivo que lhe

impulsionou, não é de modo algum manifesto que esteja ausente entre os reformistas e

continuadores do protestantismo, ao contrário, alguns críticos do protestantismo

procuram enfatizar a subjetividade do mesmo. O problema é que até nesse ponto, isto é,

a consideração dos padres da Igreja, os protestantes diferem. O Sr. White citará Santo

Inácio de Antioquia, bispo, morto no ano de 107 AD, como uma fonte fidedigna para

mostrar o que os primeiros cristãos pensavam. Outros, como o calvinista Keith

Thompson, nosso contemporâneo, procurarão demonstrar por meio de scholars que os

padres da Igreja criam em sola fide, a salvação sem obras humanas em colaboração com

Deus, como se os padres fossem protestantes (o que faz surgir a pergunta “porque

administravam a confissão?”, se criam em sola fide). Ao mesmo tempo alguns

protestantes influentes dirão simplesmente “não leiam os padres da Igreja, eu não os

recomendo, porque eles fazem mal”.

– Some-se a isso o seguinte problema — continuou o Sr. Marcondes –, que é: Embora

os protestantes em geral professem se ater à sola scriptura, só o texto bíblico é a fonte

doutrinal; há certas inferências classicamente realizadas por eles que se incorporaram à

mentalidade, dir-se-ia dogmática, dos protestantes ou parte deles. Por exemplo,

Alexander Hislop diz que o conteúdo das escrituras é como a criação de Deus de um

modo geral; se você observa uma flor, um lírio, ele é bonito, mas se você o observa com

uma luneta, mais detidamente, acaba por encontrar perfeições admiráveis que não

estavam aparentes antes. Ele aplica isso à ideia de que Roma, a Santa Sé, sendo para ele

a Meretriz Apocalíptica, recebeu na bíblia o título de “Mistério”. Ele vê nisso a ideia de

que o catolicismo é uma religião de mistérios, semelhante à maçonaria, que tem

segredos, ritos iniciáticos, e graus de iniciação. Essa ideia é uma extrapolação, um

adendo, ao texto bíblico, e muitos protestantes, como o estudioso de antigas civilizações

chamado Stephen Missick diz, acreditam que se você não crer nessa “hipótese”

hislopiana, você vai para o inferno. A tese de Hislop é bastante curiosa, por não ser

verdadeira, de modo manifesto, em certos sentidos. Por exemplo, não existem verdades

no catolicismo que devam ser objeto de encobrimento, como nas religiões de mistério;

pelo contrário, assim que um fiel católico ouve um dogma proclamado, é obrigado a

professá-lo a quem lhe possa ouvir. A segunda maior autoridade eclesiástica do seu

tempo, o patriarca Nestório de Constantinopla, foi deposto por não professar um ponto

relativamente sutil da fé, o que seria em grande medida impensável de ocorrer se os

católicos possuíssem uma agenda sobretudo esotérica e encoberta. Ao contrário,

Nestório foi primeiramente anatematizado não por autoridades oficiais da Igreja, não

por pessoas “de dentro da organização”, mas por leigos, os quais por isso foram mais

tarde elogiados pelos papas. Ademais, o que Hislop propõe como contexto histórico-

religioso da antiga Babilônia, no livro As Duas Babilônias, é segundo o Dr. Missick

bastante inverídico. Para não me estender muito, baste que segundo ele, quem conheça

bem a religião pagã em questão, perceberá que ela não é exportada para outros lugares

do mundo como queria Hislop, mas ao contrário, primeiro se apresenta como um

sistema sincretista que recebe divindades alheias em vez de exportá-las, e gradualmente

passa a tomar um sentido monoteísta e fechado a outras religiões e concepções.

– A tese de Hislop mostra como aquilo que não está manifestamente no texto bíblico

acaba por entrar no imaginário protestante como um dogma familiar, e quando essa

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extrapolação não se baseia em boas evidências, a possibilidade de erigirem uma boa

demonstração fica seriamente comprometida. — Continuou ainda o velho. — Isso

porque é difícil construir um edifício de demonstração que se baseia em uma fantasia

frágil. A mesma frágil constituição também me parece ser uma propriedade do conceito

mesmo de sola fide. Se diz que a fé apenas, sem obras, é capaz de salvar o homem,

porque, como Lutero procurou apontar, aquilo de que a alma está cheia, isto é, se está

cheia do conteúdo da fé, a torna redimida e conforme com Deus. Mas, me parece, se

supormos que é humilhante e socialmente desagradável professar o cristianismo, não

significa isso que a fé que professamos é já uma obra, uma resistência, uma ação na qual

colaboramos livremente com Deus? A aceitação da fé, por que é que não deveria ser

considerada uma obra? E se o for, como o conceito de sola fide pode não ser

considerado uma contradição indevida? Um certo ministro protestante disse do católico

sedevacantista, chamado Peter Dimond, que ele possui tremendos dons (isso no

contexto de um debate no qual se engajaram); e esse irmão Dimond, que é um expert

em textos bíblicos, afirma que basicamente todo livro do Novo Testamento pode ser

usado para refutar a ideia de sola fide. Sobretudo uma passagem na Primeira Epístola

aos Gálatas, capítulo 5, e versículos 19 a 21. Nessa passagem São Paulo lista pecados, e

se dirigindo precisamente não a falsos crentes, mas a interlocutores que ele mais cedo

identificou como “filhos de Deus através da fé”, ele lhes avisa e admoesta para não

cometer tais pecados, porque os que os cometerem não serão salvos. Os protestantes

portanto, diante dessa passagem, não podem alegar que São Paulo admoestava falsos

crentes, porque se dirigia a pessoas por quem declarara estima: “Eu vos admoesto, como

vos admoestei anteriormente, que os que praticam tais coisas não herdarão o Reino de

Deus”. Vocês protestantes usam muito a Epístola aos Romanos, capítulo 4, e a ideia ali

contida de que o homem é justificado pela fé, como Abraão, sem obras. Eu me pergunto

quantos de vocês leram o comentário de Santo Tomás a essa epístola. No comentário ele

aponta que, ao contrário do que pode parecer aos judeus de hoje, São Paulo tem certo

constrangimento em dispensar a lei, ou Torá. Ele quer, segundo Santo Tomás, fazer a

distinção entre a justiça qual reconhecida pelos homens, e a reconhecida por Deus, a

justiça que consiste em honrar o motivo formal da fé — Deus — ainda que isso ponha a

prova nossa consciência e crença, e por outro lado a justiça de fazer o que consideramos

oportuno. É a fé que leva à salvação, ainda que pareça pouco razoável a promessa de

Deus de fazer Abraão, em idade avançada e sem filhos, se tornar o pai de uma multidão

de povos. É nesse sentido que a fé, não as obras, aproveita para a salvação: O critério do

que seja a justiça tem o seu fundamento naquilo que cremos, na confiança benigna que

depositamos em Deus, a justiça está em acreditar nEle, e portanto sem Ele e a

obediência àquilo que nos obrigou, não há salvação. Não é a obediência à lei que nos

vai salvar, é a obediência a Deus, e por isso, uma vez que Ele nos tenha proposto que a

lei antiga deu lugar a uma nova aliança, e a representou, nos atemos a Ele, porque

cremos nEle. Assim, Abraão foi obrigado a imolar seu próprio filho, ainda que isso

tenha sido apenas uma prova, e não de verdade, o que ainda mais reforça a ideia de que

não basta a fé, a crença apenas, para ser reputado justo, é necessário fazer aquilo que

Deus manda (em decorrência do que Ele revelou) .

– Um dos mais curiosos pontos do protestantismo é a condenação da adoração de

imagens, que atribuem aos católicos. — Disse o Sr. Marcondes. — Eu penso que essa é

uma questão fácil para os católicos, de modo algum difícil de ser endereçado. Basta

tomar o profeta Eliseu e as passagens a respeito dele no livro dos Reis. Ele cura um

general da Síria, e esse general lhe pergunta “quando eu tiver de me apresentar diante do

ídolo, por causa do meu rei, e me ajoelhar, ainda que eu saiba que não existe outro Deus

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que não o teu, que devo fazer?” O profeta Eliseu, surpreendentemente, diz “faze-o

tranquilamente”. O que significa que ajoelhar-se diante de uma estátua ou ídolo, ainda

que seja uma divindade pagã, é algo acidental a cometer idolatria. Essa passagem prova

que a idolatria depende essencialmente da intenção, e não é isso que os protestantes

alegam a respeito dos católicos (porque alegam que cometemos idolatria mesmo sem a

intenção); eles podem, naturalmente, supor que a nossa idolatria é “semi-consciente”,

uma verdade que escondemos de nós mesmos no recesso do coração. Mas se é assim

por que Eliseu disse “faze-o tranquilamente”, e não “faze-o sempre preocupado com

rejeitar o ídolo e jamais se deixar impressionar por sua figura”? Não há como o

protestante tornar convincente que a diferença entre a idolatria e a mera veneração de

um santo é tênue e quase inexistente, porque, como os judeus mesmos são capazes de

reconhecer em uma conversa informal, o profeta Eliseu foi “adorado”. Uma mulher se

ajoelhou aos seus pés para ter o filho ressuscitado, rapazes foram miraculosamente

despedaçados por ursos por não lhe tratarem com respeito. Eliseu, depois de morto, não

parou de fazer milagres, mas os seus ossos ressuscitaram um morto. Ele se parece muito

com uma outra figura do antigo testamento, um objeto (não uma pessoa): A Arca da

Aliança. Não que tenham a mesma importância ou natureza, mas em certo sentido,

ambos foram instrumentos usados por Deus de um modo extraordinário. Acontece de

tempos em tempos, segundo a bíblia, que Deus escolha algo ou alguém como arado.

Sucedeu que Ele escolheu uma virgem, e se manteve unido a ela até a vida adulta, a

pessoa de quem era mais próximo, segundo o Evangelho de São João dá a entender, ao

menos até a sua vida pública. No antigo Testamento a Arca da Nova Aliança era a coisa

mais santa e poderosa que havia na face da terra. A Arca guardava a palavra escrita por

Deus, os dez mandamentos, e também guardava o pão que havia caído do céu para os

hebreus. A Virgem Maria conteve em si mesma o Verbo de Deus, Jesus Cristo, o qual

chama a si mesmo “o pão vivo que caiu do céu”. A Arca da Aliança continha o bastão

do sacerdote Aarão, e esse bastão é um símbolo do sumo-sacerdócio verdadeiro. A

Virgem Maria conteve em si Jesus Cristo, que é chamado “sumo-sacerdote”, na Epístola

aos Hebreus, capitulo 3, versículo 1. Em Êxodo, capítulo 40, versículos 34 a 39, é dito

que a glória de Deus envolvia o tabernáculo, isto é, o templo portátil dos judeus no

deserto (onde a Arca estava contida). Também a Virgem Maria se diz que foi envolvida

pela presença e poder de Deus. No segundo livro de Samuel, capítulo 6, e versículo 9, é

dito que o rei David, o rei dos judeus, quando se lhe apresentou a arca, perguntou

“como pode a Arca do Senhor vir a mim?”. Alguns versos depois o rei pula ou dança

diante da arca, e é referido que a arca permaneceu por três meses, e trouxe bençãos

sobre toda a casa. Do mesmo modo, quando a Vigem Maria se apresenta à sua prima

Isabel, esta lhe pergunta “como a mãe do meu Senhor pode vir a mim?”. O bebê no

útero de Santa Isabel pula de alegria, ao sentir a saudação da Virgem. Maria permanece

na casa de sua prima por três meses, segundo o texto. De acordo com o livro de Êxodo,

capítulo 25, versículo 11, a Arca possuía uma “coroa de ouro”, além de ser revestida de

ouro. No livro Apocalipse, capítulo 11, a partir do versículo 19, é dito que a mulher que

deu à luz o messias possui uma coroa de doze estrelas. No livro de Êxodo, Deus ordena

aos hebreus que façam a Arca com madeira de acácia, o que é referido no capítulo 25. A

septuaginta, a tradução famosa do antigo testamento para o grego (cujo trabalho de

tradução, precisamente o pentateuco do qual Êxodo faz parte, é muito elogiado até hoje

pelos rabinos judeus) traduziu as palavras “madeira de acácia” como “madeira

incorruptível”. Isso porque esse tipo de madeira é de grande qualidade e durabilidade.

Do mesmo modo, segundo o dogma católico, a Virgem Maria é incorruptível, ela não

morre. Eis um sinal de que ela não conheceu o pecado, e por isso não teve sua entrada

no céu bloqueada por o que seja, quando da Assunção. Deus usou a Arca da Aliança, na

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antiguidade, para expressar a sua presença no mundo. A Virgem Maria foi também um

arado com que ele tem procurado cultivar as suas vinhas na terra. Ela é exaltada

frequentemente pelos padres da Igreja, foi chamada “o segredo dos segredos do Rei”, e

se diz que aqueles a quem ela não favorecer com sua poderosa intercessão, não poderão

jamais entrar no céu. Como os sacramentos e demais instituições do novo testamento,

que se afiguram meios propícios e tremendamente facilitadores da salvação, ela é aquela

brisa celeste, avassaladora, poderosa, que Deus deixa sair por uma fresta da eternidade

para que saibamos que Deus nos ama, quando não merecemos ser amados, que Ele nos

quer perdoar, quando não merecemos perdão, e que nos quer fiados na esperança que

nos propôs, quando não há a mais mínima chance de essa esperança ser sustentada e

subsistir em um mundo submisso a toda sorte de erros, pecados e sofrimentos. Como

está no Apocalipse, esta mulher que deu à luz o Rei dos reis, tem um local no deserto, e

recebeu asas para escapar com os seus descendentes, que são os cristãos, aos ataques do

dragão que é o demônio. E nada aproveita aos protestantes alegar, como fazem, que o

“culto de Maria” é uma tradição pagã visível em diversas civilizações, porque o mesmo

se pode dizer da ideia mesma de um filho de Deus que é sacrificado para a remissão dos

pecados, como Eric Voegelin demonstra em Order and History. Também, ainda sobre

os santos, não nos esqueçamos que o livro dos Macabeus, que os protestantes não

aceitam como canônico, ou parte da bíblia, refere que Judas Macabeu foi ajudado pela

forte intercessão do falecido profeta Jeremias. Os eventos desses escritos não foram

incluídos pelos judeus como parte da bíblia deles (porque consideraram tal narrativa

sangrenta etc.), é verdade, mas eles não apenas não têm aversão à figura dos Macabeus,

como celebram o hanukkah, que é uma lembrança da vitória dos Macabeus, com

especial afeição. E eu desejo acrescentar que o estudioso anteriormente citado, Stephen

Missick, embora seja protestante, e diga que jamais acreditará na Presença Real de Jesus

na eucaristia, afirmou que um dos seus maiores “ídolos” é Judas Macabeu (e advinha

que livros falam a respeito dele? Isso mesmo, os livros da bíblia católica a respeito).

– Também de nada aproveita alegar que o rosário não é coisa bíblica, porque na mesma

linha talvez se devesse parar de compor músicas e orações, como os protestantes fazem,

já que não estão na bíblia. — Disse o velho. — E se objetam que a palavra “católico”

não está na bíblia, eu devo lembrar que essa palavra foi usada por Santo Inácio de

Antioquia, um autor citado como fidedigno por James White; e pelo mesmo raciocínio

talvez a descida do Espírito Santo em Pentecostes não fizesse tanto sentido sem a

existência do nome “cristão”, que só existiria mais tarde, por coincidência a partir de

Antioquia.

– Mas — continuou o velho — o que direi a respeito do protestantismo? Que porque o

princípio da sola scriptura, não estando manifesto em toda a bíblia (como apontou o

apologeta católico Gerry Matatics) dissipa a opinião dos seus adeptos? Não é isso que

se espera de quem queira converter os dessa heresia, porque essa refutação, ainda não é

uma demonstração; e é dela que eu necessito para conseguir o que eu quero. Mas ainda

não tenho a definição de protestantismo, para erguer a demonstração. O protestantismo

não consiste em nenhuma crença em particular, porque eles na verdade, conforme

variem de opinião, crerão basicamente em qualquer coisa. Essa foi, segundo o seu filho,

a sensação desesperançada do pastor presbiteriano Francis Schaeffer pouco antes da

morte; Schaeffer foi pessoa ilustre e conhecidíssima, um intelectual, também amigo do

eminente missionário evangélico Billy Graham. Ver o protestantismo de um modo

geral, portanto, compromete a integridade doutrinal da doutrina que lhe é propriedade.

Não há essa unidade doutrinal. Me parece, e eis a minha definição de protestantismo,

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que ele consiste em um projeto, não uma doutrina; e esse projeto é justamente, como foi

confessadamente o de Newman antes de se tornar católico, o de demonstrar ou

reconstituir a religião cristã na sua inteireza sem a comunhão com Roma e o Pontífice

Romano. De certo modo esse não é o caso dos ortodoxos do oriente, porque eles não

precisam fazer um esforço positivo nesse sentido, em boa medida, ou ao menos pouco

depois do Cisma do Oriente (e um sinal disso é que a Igreja de Roma sempre ensinou

que, embora cismáticos, os ortodoxos têm sacramentos válidos, inclusive sacerdotes

válidos). Eu repito, os protestantes querem demonstrar o fenômeno cristão, querem

vivê-lo, sem dar importância ou submissão aos ensinamentos do Papa, mas erigir a sua

própria demonstração. Assim, ainda que eles tomem como válidos certos elementos do

magistério, como os cinco primeiros concílios ecumênicos, as explicações que

desenvolvem e elaboram, sempre descartarão implicitamente o princípio do Concílio

Vaticano I, de que o papa é infalível e não pode errar quando explicitamente se dirige a

todos os fieis querendo obrigá-los, sempre descartarão implicitamente que o papa é o

princípio da unidade da fé e da unidade de comunhão, na Igreja. O protestantismo não é

apenas a rejeição do papado, mas é aquela rejeição do papado que simultaneamente

elabora uma demonstração do que seja o depósito da fé, aquilo deixado por Cristo e

seus apóstolos como ensinamento. A posição católica é a de que essa demonstração e

projeto são falhos na raiz, já começam errados. Um papa não necessita examinar todas

as questões dogmáticas, de ensinamento, com preocupação (como fazem os protestantes

devido à sua metodologia); ele não necessita porque, dada a infalibilidade papal, só

precisa examinar os concílios e o que os papas promulgaram de modo solene, para

tranquilamente construir em cima desse edifício seguro. Já os protestantes têm de

construir em cima de um sujeito, Lutero, que ao contrário de boa parte deles, cria na

presença real de Cristo durante a cerimonia “eucarística” luterana. De fato entre os

católicos há erros e divergências, e se sabe que de certo modo o papa pode errar, isto é,

quando não se dirige a toda a cristandade; mas, por outro lado, hoje, sobretudo depois

do concílio Vaticano I, se tem uma formidável metodologia para distinguir o texto

falível do infalível, e se sabe que quem persistir na divergência depois das explicações

pertinentes e de mostrada a evidência, está simplesmente fora da Igreja, é um herege. A

detecção da infalibilidade dos textos foi mais falha antes do concílio, mas ao menos

sempre se soube, por exemplo, que um concílio ecumênico (de toda a Igreja, não-

regional) aprovado pelo papa não pode errar. Também, a infalibilidade papal, ou ao

menos a infalibilidade de Roma, é doutrina muito antiga; ela foi mencionada por Santo

Irineu de Lyon, no escrito Contra os Hereges, o qual Irineu foi discípulo de São

Policarpo de Esmirna, e este do apóstolo João. Até scholars não-católicos admitem que

Irineu fez referência ao conceito da infalibilidade de Roma, porque disse que não se

pode discordar de Roma e permanecer em comunhão com a Igreja, ou palavras assim,

porque lá é onde morreram os apóstolos Pedro e Paulo. Irineu, com isso, ao mesmo

tempo indica que Roma não é importante sobretudo por causa do laço da Igreja com o

Império (contrariamente ao que pensaram alguns padres conciliares sem a aprovação do

papa no Concílio de Calcedônia) mas sim porque é o lugar onde se assenta o sucessor

de Pedro, e que tem o prestígio de ter sido objeto da pregação do grande apóstolo Paulo.

– Mas, enfim — continuou o sr. Marcondes — o que é a Igreja católica? É a conjunção

de uma fé, dos sacramentos (ao menos o batismo) e da caridade. Existe um homem

sobre a face da terra a quem Jesus Cristo entregou o ofício de pastorear os membros

dessa Igreja. No concílio de Jerusalém, Atos dos Apóstolos capítulo 15, versículo 7,

Pedro é ouvido pelos irmãos: “E, havendo grande contenda, levantou-se Pedro e disse-

lhes: Homens irmãos, bem sabeis que já há muito tempo Deus me elegeu dentre nós,

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para que os gentios ouvissem da minha boca a palavra do evangelho, e cressem.” Ao

terminar Pedro o seu discurso no concílio, segundo o livro sagrado, toda multidão, que

andava debatendo, simplesmente silenciou e se deu lugar a que outros falassem. Aquilo

proposto por Pedro no concílio, que ninguém está mais obrigado à circuncisão etc., se

incorporou ao dogma infalível e à obediência universal; o que o apóstolo Tiago impôs

no concílio, a saber, a disciplina de abstenção de provar sangue e carnes imoladas a

ídolos, veio a ser mais adiante considerado apenas uma disciplina eclesiástica, não parte

do dogma infalível da Igreja, não algo legado a todas as gerações e lugares. A primeira

pessoa a ser convertida à fé da Igreja entre os gentios, nos Atos dos Apóstolos, é

especificamente orientada a procurar Pedro. A passagem em Mateus, capítulo 16, na

qual Jesus diz “tu és Pedro, e sobre essa Pedra eu construirei a minha Igreja”, muitos

entenderam como não manifestamente significando que a Pedra em questão é Pedro.

Mas há scholars protestantes que rejeitam que a pedra não é Pedro na passagem, há pelo

menos um scholar protestante que consideraria “a pedra não é Pedro” uma interpretação

artificial e forçada. Mais adiante, na mesma passagem, Jesus afirma que dará a Pedro a

chave do Reino dos Céus, e que o princípio que identificou com Pedro faria que as

portas do inferno não prevalecessem sobre a Igreja. Pedro é descrito como o princípio

que tornaria a vida da Igreja segura, a base sobre a qual se a iria construir. Parece nada

forçado supor que o princípio petrino transcende o indivíduo Pedro, e se afigura um

ofício. É o que Santo Irineu — que em última instancia aprendeu com o apóstolo João,

isto é, quase diretamente — pareceu dizer. Até mesmo os ortodoxos, que rejeitam a

comunhão com Roma, admitem que Pedro teve seus sucessores em Roma. Em todas as

listas de discípulos, no novo testamento, Pedro aparece em primeiro lugar. Pedro é o

apóstolo mais citado nas escrituras, bem mais do que todos os outros. Pedro é o chefe, é

ele quem confirma os fiéis na fé. Um dos últimos santos da Igreja a serem canonizados

também pelos ortodoxos do oriente, São Máximo Confessor, era um teólogo eminente;

faleceu a 662 AD, e em um dos seus escritos se referiu ao papa de Roma como “um

papa santo”, porque tinha especial confiança no papa seu contemporâneo. Ainda que

São Máximo não tenha sido o primeiro, nem de longe, a lhe conceder o título “papa”, é

significativo que ele lhe tenha concedido tanta reverência quando não era um teólogo

latino, mas de influência sobretudo grega. O papa, em todos os primeiros concílios, teve

algum peso nos acontecimentos, e isso se verifica por exemplo no Concílio de Éfeso

(ano 431 AD), admitido por protestantes e ortodoxos, no qual o protagonista em

oposição ao heresiarca Nestório, a saber, São Cirilo de Alexandria, se correspondia e

articulava politicamente em profunda sintonia ou coordenação com o papa de Roma.

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Pós-Conciliarismo

– Você está certo, eu sou sedevacantista, e você, me parece, conhece bem essa opinião.

— Disse o velho Marcondes. — Há quem tenha estudado o assunto por vinte anos e,

criticando a tese sedevacantista, não lhe tenha atribuído o caráter de heresia ou cisma.

Alguns, como o canonista Gregory Hesse, dirão que é uma tese ousada, e maluca, que

não se baseia em nenhuma firme evidência. Mas esse tipo de afirmação é muito pouco

esclarecedor, e muito pouco coerente. Hesse disse que a nova missa do Concílio

Vaticano II, na sua forma vernácula, é inválida, ela não efetua o milagre eucarístico, não

obstante tenha sido aprovada por Roma. Ora, não é possível dizer algo mais ousado que

isso. Ele também alega que um certo verso da aparição de Nossa Senhora em La Salette,

no séc. XIX, foi suprimido intencionalmente pelo Vaticano, e que tal verso fala de dois

papas cheios de vermes no séc. XX, o raciocínio sendo que se havia de surgir papas

maus, eles não podem ser considerados antipapas, e já se teve maus papas antes, e

mesmo os que apregoaram heresia.

– O que os adversários todos da tese sedevacantista admitem (com exceção de uma ala

minoritária e separada da FSSPX), é que, seguindo um número significativo de doutores

da Igreja e, de modo ligeiramente mais indireto a Encíclica Satis Cognitum de Leão

XIII, um herege não pode ser papa, porque ele não é sequer um membro da Igreja (“[…]

é absurdo pensar que quem está fora pode comandar na Igreja”). Um herege é aquele

que, por rejeitar obstinadamente, ou duvidar obstinadamente, de um dogma da Igreja,

não pertence mais a ela, não é um dos que tem “um Senhor, uma fé, um batismo”

(Efésios 4:5). O máximo que podem alegar é que o papa está em erro, isto é, convencido

de algo que contradiz a revelação finda com os apóstolos mas que não é intrinsecamente

contrário e oposto à síntese essencial da fé (o Credo de Santo Atanásio) nem foi

declarado pelo magistério extraordinário (os concílios ecumênicos) como parte da

revelação, nem pelos pronunciamentos solenes dos papas (chamados pronunciamentos

ex cathedra dirigidos a todos os fiéis, que também são o magistério extraordinário), e

nem é manifestamente contrário ao que os padres e teólogos ensinaram de modo

contínuo e consistente pela história, o que é chamado o Magistério Universal e

Ordinário (aquilo que sempre se soube faz parte da fé). Um exemplo de papa em erro,

que não era herege, como se sabe, foi João XXII no séc. XIV, o qual negava a visão

beatífica dos eleitos imediatamente após a morte, antes do Juízo Final. João XXII se

defendeu dos críticos alegando que não ensinara essa doutrina a todos os fiéis, e se

arrependeu antes de morrer. — Disse o Sr. Marcondes.

– Mas me diga — continuou o velho — como nem mesmo o antisedevacantista William

Golle, em debate com o irmão Peter Dimond, considera manifesta parte da fé que

um interregno de Sé Vacante só possa durar breve período de tempo; como o próprio

teólogo irlandês Edmund James O’Reilly, escrevendo pouco depois do concílio

Vaticano I (o concílio que falou da sucessão perpétua dos sucessores de Pedro),

declarou que um interregno de quase 40 anos não é manifesto que seja impossível;

como os “papas” desde João XXIII se recusam a “condenar, rejeitar e anatematizar” as

opiniões contrárias à Igreja e seus ensinamentos, mas demonstram estima por outras

religiões; como chamar-me de cismático, e não a Paulo VI, o qual condenou o

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proselitismo dirigido a ortodoxos do oriente (o que é a promoção do cisma), é bastante

desonesto; como você pode estar tão certo de estar certo?

– Eu já ouvi os seus argumentos antes, e já fui sedevacantista. Na confusão, eu vendo

que se tratava de um meio confuso, cheio de eventos deprimentes e que desembocavam

no surgimento das mais diversas seitas e opiniões, incluso um grupo liderado por um

“profeta”, o qual afirmava que Santo Tomás e Santa Terezinha eram hereges e não

membros da Igreja; eu acabei por aceitar um homem que se autointitula papa Michael, e

diz que é o vigário de Cristo na terra, acusando os de Roma de impostores. No momento

em que se rejeita os papas, você acaba ou virando o seu próprio papa, ou aderindo a

algum papa. — Tornou Gregory, sombrio e a assustar o seu interlocutor.

– Entendo — tornou o velho.

– Como eu vi que a posição do papa Michael em rejeitar a Fraternidade São Pio X,

criada pelo tradicionalista Lefébvre, como heterodoxa, levaria inevitavelmente a um

isolamento em relação aos católicos conservadores, me pareceu que a alegação dele de

ser papa, quando foi eleito por apenas seis pessoas, era uma alegação tola. Eu demorei

muito para perceber isso: Seis meses. — Disse Gregory. — O motivo que me levou a

isso foi gerado por diversas leituras, uma delas a leitura de um estudo da FSSPX a

respeito do novo rito de ordenação de bispos, estudo que cita com bastante

detalhamento o Pe. Annibale Bugnini, um suspeito de ser maçom que participou do

conselho que submeteu a alteração litúrgica ao Santo Ofício nos anos sessenta. Como

no caso da ordenação do sacerdos ou sacerdote, o segundo rank do sacerdócio, a

consagração de bispos apresenta aparentes defeitos em relação às orações externas à

formula de consagração, porque se omitiu todo tipo de coisa cristalizada por longa

tradição a respeito dos atributos e da graça próprios do efetuado pelo sacramento. Foi

por esse tipo de raciocínio que o famoso Michael Davies chegou a expressar-se como a

indicar que se o novo rito é válido, para o sacerdócio comum, a ordem anglicana ainda

existe e é válida, o que o próprio Davies admitiu que é absurdo porque um decreto de

Leão XIII declarou acima de dúvida que os anglicanos não têm mais sacerdotes.

– Por isso eu fiquei surpreso ao notar no estudo da FSSPX, a respeito de Bugnini e seu

colaborador e supervisor Dom Botte, que a intenção deles em modificar a liturgia de

consagração episcopal, a primeira na sucessão de reformas promulgadas no concílio,

conforme o próprio testemunho dos bispos que analisaram e criticaram suas ideias a

distância, era uma intenção relativamente conservadora mesmo para

os parâmetros daquilo que o concílio pedira. – Continuou Gregory. — O estudo mostra

que a expertise de Bugnini e sua detalhada defesa de um sacramentário oriental como

fonte, agradou e dissipou dúvidas dos bispos que o criticavam. Também é mencionada

certa carta em que os peritti da reforma tinham um estado de espírito leve, talvez

demasiado liberal, mas nada cheirando a conspiração maçônica; eles recebiam bem as

críticas. Em resumo, se o novo rito de consagração ao episcopado é inválido, segundo o

estudo aponta detalhadamente, o rito maronita em aramaico é quase certamente

inválido, o que seria absurdo, porque este último rito tinha sido aprovado pela Igreja

antes do concílio.

– A falta de consideração de certos sedevacantistas para esse fato, embora

impressionante, não foi o que mais me impressionou. — Disse ainda Gregory. — O que

mais me chamou a atenção é que os peritti do conselho de reforma viam como acidental

à intenção ecumênica do concílio, o equiparar e unir a liturgia católica a outras religiões,

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isso eles viam como acidental à reforma. O essencial, no caso do rito episcopal, era

aproximar o rito oriental do rito latino. Portanto, a intenção ecumênica do concílio não

tem a ver com incorporar dogmas e proposições religiosas de outras religiões, já que ao

aproximar o rito latino do rito oriental não se está mudando a intenção e a graça própria

do sacramento, ainda que orações desde muito tradicionais ao rito tenham sido

suprimidas. Ainda que a ordenação de padres tenha ficado indistinguível da anglicana, e

a missa também no conteúdo dos propium e oratio, a intenção ecumênica por traz das

alterações não tem a ver essencialmente com uma absorção de dogmas alheios, mas com

uma mudança de atitude externa. Isso se vê em que mudar o rito latino para o rito

maronita não muda a essência do sacramento, mas muda a aparência.

– O Romano Amerio, defensor dos papas, estudou essa mudança de atitude, e mostrou o

que tem de absurdo em deixar de condenar outrem em nome da “caridade”, e de se

enturmar consigo. — Disse Gregory. — Mas eu parei para pensar no contexto em que o

João XXIII e Paulo VI assumiram o ofício; a universalização dos meios de comunicação

de massa, expondo a Igreja e suas decisões a todos como nunca; Guerra Fria, Crise dos

Mísseis, a necessidade de pisar em ovos diplomaticamente; o Dr. Fastiggi mencionou

em um debate contra sedevacantistas que João XXII, no séc. 14, usara uma declaração,

por correspondência, a muçulmanos, semelhante ao conteúdo do Nostra Aetate, do

concílio Vaticano II, tratando com reverência a religião deles. Todo mundo tem de

mudar de atitude conforme a ocasião. Eu não vou ensinar o catecismo ao meu personal

trainer, não é apropriado, mas também não vou tratar ele mal porque não é católico,

durante o treino, senão não há treino. Ao mesmo tempo, alguns que professam o ex

ecclesiam nulla sallus ardentemente, como o irmão Michael Dimond, são capazes de rir

da própria situação durante uma entrevista ao rádio, e ainda que efetuada levemente

como no caso dele, essa atitude é quase um se rir do dogma, então não é possível em

toda e qualquer ocasião tomar a mesma atitude em relação a um dogma que se tem no

foro íntimo. João Paulo II emitiu um non possumus declarando como impossível à

Igreja ordenar mulheres ao sacerdócio, o que significa que quando ele ou Bento XVI

iam a cultos anglicanos/protestantes junto a “bispos” mulheres, de algum modo o non

possumus impedia que se lhes visse como considerando esses religiosos membros da

Igreja. Houve uma conformidade com as outras religiões, não com os outros dogmas, e

a própria Constituição Dominus Iesus de Ratzinger, futuro Bento XVI, aponta para

imperfeições nas religiões alheias.

– Some-se a isso o fato de que um membro do Santo Ofício, em 1949, emitiu um

documento chamado Suprema haec sacra. É apenas uma carta privada, nunca registrada

nos Atos da Santa Sé (apesar de que se diz que Pio XII, que você mesmo admite foi um

papa válido, leu e aprovou tal documento), na qual se condenava o pe. Leonard Feeney

pelo seu rigorismo. — Continuou o terceiro Antonov. — O documento condena a

rejeição do batismo de desejo, o desejo implícito, para a salvação. Segundo o

documento qualquer um, de qualquer religião, pode ser salvo se tiver um desejo

implícito pelo sacramento. Na mesma linha há a doutrina da ignorância invencível, pela

qual alguém pode supostamente ser salvo sem a fé católica, o que teria, segundo alguns,

sido ensinado pelo papa Pio IX. Com um pouquinho de trabalho é possível demonstrar

satisfatoriamente que essas vias alternativas de salvação são falsas, que o magistério,

tanto extraordinário, quanto as declarações ex cathedra, quanto o magistério universal e

ordinário, rejeitam essas noções. Uma pessoa pode abraçá-las de boa fé por um tempo,

mas são noções errôneas e heréticas. Eu parei para pensar, com surpresa, que essas

noções não foram ensinadas nem no concílio Vaticano II, nem na Constituição

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Apostólica Dominus Iesus, assinada pelo então prefeito da Congregação para A

Doutrina da Fé. Essas são noções típicas da FSSPX e, como bem se sabe, dos clérigos

sedevacantistas mais populares nos EUA, os da CMRI e o pessoal da linhagem do bispo

Guerard de Lauriers, a saber, o bispo Donald Sanborn e o pe. Anthony Cekada. O pe.

Cekada não tolera quem quer que seja un fineíta; Cekada argumenta que o batismo de

desejo, apesar de não ser o magistério, é o consenso teológico, e que portanto, conforme

decreto de Pio IX sobre o consenso teológico, é mandatório. Portanto os tradicionalistas

são menos conservadores que o Vaticano e seu ecumenismo. De nada adianta mostrar

ao pe. Cekada que a rigor, se ele devesse se fiar no consenso dos teólogos, ele devia

aderir ao Vaticano II.

– A questão do Ex Ecclesiam Nulla Sallus (Fora da Igreja Não Há Salvação) é

relativamente simples. — Continuou o terceiro Antonov. — Só duas vozes do primeiro

milênio da Igreja, só duas, a geração de São Bernardo de Claraval e seguintes

considerou como tendo pregado o batismo de desejo: Santo Agostinho e Santo

Ambrósio. Os dois cometeram erros e são fontes falíveis. O scholar William Jurgens,

que é a favor do batismo de desejo, diz que a rejeição do batismo de desejo, mais

especificamente de alguma exceção à necessidade do batismo sacramental, se apresenta

entre os padres antigos com uma constância tão grande quanto a constituir revelação. A

defesa de Santo Ambrósio do batismo de desejo não é manifesta, o discurso dele a

respeito do destino eterno do imperador Valentiniano é muito obscuro. A defesa de

Santo Agostinho do batismo de desejo é manifesta, mas ele não trata essa doutrina como

coisa certa, ele a trata como uma dedução que pode ser feita a partir da doutrina de São

Cipriano sobre o batismo de sangue, uma outra exceção ao batismo sacramental. Santo

Agostinho não tratou o batismo de desejo como tradição apostólica, mas como uma

espécie de dedução teológica.

– Ademais São Francisco Xavier não acreditava em batismo de desejo, o que o próprio

pe. Cekada admite. — Disse ainda Gregory. — O batismo de desejo ensinado por Santo

Tomás não admite a possibilidade de uma adesão implícita, apenas, aos mistérios

essenciais da fé, nisso diferindo ele ligeiramente de Santo Afonso de Ligório (que

admitia o desejo implícito pelo batismo, da parte dos catecúmenos, como eficaz). O

catecismo de Trento, que propõe o batismo de desejo, não é um texto infalível, e

sobretudo não o é no trecho sobre o batismo de desejo, coisa que mesmo um defensor

do Concílio Vaticano II como William Albrecht admite (e o catecismo sequer usa a

expressão “batismo de desejo”). Há um trecho no Concílio de Trento, sobre a

justificação, não sobre o batismo propriamente (o qual tem uma sessão separada para

si), em que se diz que a regeneração não pode ocorrer “sem o batismo ou o desejo por

ele, como está escrito, ‘se um homem não nascer de novo da água e do Espírito, não

pode entrar no Reino de Deus'”. Alguns entenderam que o desejo é apontado no trecho

como uma alternativa ao batismo, mas o próprio Concílio de Trento afirma na sessão

sobre esse sacramento que o batismo não é opcional, mas necessário, e afirma que as

palavras “se um homem não nascer de novo da água e do Espírito etc.” não podem ser

entendidas como uma metáfora. O irmão Peter Dimond procurou demonstrar que o

trecho problemático “sem o batismo ou o desejo por ele”, usa um termo em Latin, “aut”,

que significa “ou”, o qual é frequentemente usado em um sentido inclusivo, não

exclusivo, se tratando pois de “sem o batismo e o desejo por ele”, isso em se notando

que a sessão é sobre a justificação de adultos, e os adultos que recebem o sacramento

precisam desejá-lo para a justificação. Um outro ponto é que nessa passagem, “sem o

batismo ou o desejo por ele”, segue o dizer “como está escrito: Se um homem não

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nascer de novo da água e do Espírito etc.”, o que significaria que se deve entender

COMO ESTÁ ESCRITO, que a água é necessária. A isso defensores do batismo de

desejo, como o padre Cekada, enfatizarão que é o consenso dos teólogos que conta. O

Concílio de Florença claramente se pronunciou a respeito desse sacramento, sem

mencionar exceção, e um entendimento do dogma deve ser mantido conforme

inicialmente proclamado ou definido. O concílio infalível de Constança referiu que não

é tolo nem presunçoso dizer que os filhos dos fiéis mortos sem batismo sacramental não

serão salvos. E de tal modo é inequívoco o entendimento no Concílio de Trento sobre a

necessidade de batismo para crianças pequenas serem salvas, que um grande defensor

de batismo de desejo, o sedevacantista Steven Speray, admite que o batismo de desejo é

apenas para adultos ou para quem tenha o uso da razão.

– Sobre o papa Pio IX no caso, ele teve várias oportunidades de aludir a batismo de

desejo, mas não o fez. Ele elaborou em cima do destino daqueles que estão fora da

Igreja, e de um entendimento a respeito das chances de serem salvos, e nenhuma palavra

sobre batismo de desejo. Em Quanto Conficiamur Moerore, alocução, logo após

condenar como caídos em grave erro aqueles que não acreditam que a fé católica é

necessária à salvação, ele refere que os que pelejam contra a condição de ignorância

invencível, e de boa fé, terão a si disponibilizados todos os meios de salvação, portanto

essa afirmação implica que a condição de ignorância invencível e a boa fé não são de si

o mínimo necessário à salvação, mas possibilitam que os meios necessários sejam

disponibilizados. Em Singulari Quidem, Pio IX volta à carga, condenando como

perversa a noção de que os membros de qualquer religião podem ser salvos, e menciona

que só aqueles imersos em ignorância acima das suas forças podem nutrir

alguma esperança de salvação, o que, lido no contexto da própria encíclica e de Quanto

Conficiamur, reforça a ideia de que a ignorância invencível e a boa vontade abrem

possibilidades de salvação, mas de si não são o minimamente necessário para a

salvação. Em Singulari Quadem, Pio IX talvez trate do assunto de modo mais perfeito

que nos outros casos. Ele diz que os que pelejam na “ignorância da verdadeira religião”

pela ignorância invencível não serão considerados culpados “nessa questão” aos olhos

de Deus; mas, continua, desde que estamos na terra sob o peso de nossas limitações

carnais, apenas nos fiemos, conforme o ensinamento da Igreja, em que haja “Um Deus,

uma fé, um batismo” (Efésios 4:5), e nos avisa ele que é ilícito prosseguir mais adiante

a respeito, com curiosidade. A expressão “Um Deus, uma fé, um batismo” significa,

porque foi usada em vários pronunciamentos solenes, que é preciso ser católico para ser

salvo, que é preciso ter sido batizado e professar firmemente a fé católica, este último

ponto aliás muito enfatizado no Credo de Santo Atanásio. A princípio Pio IX parece se

contradizer, mas se nota que o que ele diz é profundamente católico. Porque é a

primeira coisa que é ensinada no Catecismo de Trento, também no Concílio Vaticano I

é ensinado, é que o dogma não é uma demonstração, que aquilo do qual ele fala não é

possível de se provar, é preciso ter fé e é essa a única via para dentro da Igreja. Portanto

O Ex Ecclesiam Nulla Sallus também não é uma demonstração, e não o sendo, a visão

do objeto desse dogma, quando os fiéis tomarem posse do paraíso, será de algum modo

surpreendente e inesperada. Não significa que não se reconhecerá como certa, no

paraíso, a declaração do papa Gregório XVI em Mirari Vos (“Portanto, sem dúvida, eles

perecerão por toda a eternidade [os membros de todas as outras religiões] se não

professarem a fé católica inteira e invioladamente”); significa apenas que o dogma, não

podendo ser aceito firmemente senão como um mistério, não uma demonstração, tem

como objeto algo que de algum modo é difícil antever. — Disse Gregory.

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– Portanto, como o Ex Ecclesiam Nulla Sallus é um dogma bem claro e corriqueiro,

como as ações do Vaticano podem ser perfeitamente racionalizadas, como a intenção

dos que reformaram os sacramentos passou por muitos crivos e foi aceita, e como o

Vaticano é mais conservador que os tradicionalistas a respeito desse dogma da salvação,

infinitamente mais tolerante até onde vejo, eu me retrato publicamente de toda rejeição

pública que dirigi à Santa Sé e aos papas, e declaro que eu estava errado e agi como um

grande tolo em supor que a Santa Sé estivesse vazia. — Afirmou Gregory.

– O senhor fala de modo convincente, meu filho. — Disse o velho. — Mas deixa-me

lembrar algumas coisas. Há aqueles, como Gregory Hesse, o canonista, que acreditam

que um concílio ecumêncico, sendo um ato sacramental, precisa ter a intenção correta

para a sua validade; ele usa isso para argumentar que o Concílio Vaticano II não foi

inválido porque o papa na verdade era um herege e antipapa, mas foi inválido porque

faltou a intenção unívoca (porque tanto João XXIII quanto Paulo VI se contradisseram

sobre a infalibilidade e intenção do concílio em alguma medida, segundo ele). Há

também os defensores desses antipapas que dizem, como é o caso de Robert Sungenis e

Patrick Madrid, que o verdadeiro sentido do Concílio difere da interpretação privada

que João Paulo II ou Bento XVI deram ao concílio. As pessoas procuram, e isso é

notório, ou desacreditar o concílio, ou dar a ele um sentido que é francamente diferente

daquele aceito em Roma e pelas dioceses do mundo. Argumentarão que a heresia

modernista não pode ser manifesta, por sua própria natureza, e que uma vez não-

manifesta não há base ou direito com que declarar o papa um herege, a não ser que toda

a Igreja se decida por isso. Como a Igreja é uma realidade visível, no sentido de que é

sempre possível identificá-la de algum modo, não faria sentido segundo dizem que esse

corpo eclesiástico permanecesse com uma falsa cabeça, uma cabeça ilegítima, porque

isso conflitaria com a ideia de que a Igreja é visível, e não é possível reconhecer como

um corpo sadio e íntegro um corpo que apresenta uma cabeça alheia a si. Se poderia

argumentar contra isso que houve antipapas reinando em Roma antes, e que ao menos

um papa válido foi validamente deposto por suspeita de heresia. Essas objeções são

interessantes, porque por trás delas há toda uma circunstância muito pouco esclarecida.

De fato, como é notório que um grande defensor de João Paulo II, como Malachy

Martin considerava que o primeiro cria na salvação para não-católicos, como é notório

que Francisco participa de celebrações judaicas, ora em público por muçulmanos

falecidos, como é notório que Bento XVI rejeita tanto nos seus escritos quanto diante de

audiências a conversão de não-católicos protestantes, ao ponto de afirmar não ser o

caminho para união o converter outrem e convencê-los a negar a história da própria fé,

me parece que a objeção geral e comum ao sedevacantismo não diz tanto dos fatos, não

é tanto algo dito na clave descritiva. É algo dito como quem, em desespero, se agarra

àquilo que é menos doloroso. Também eu vou fingir para mim mesmo que adoro o meu

chefe, a fim de manter o emprego.

– O Concílio de Florença é infalível, foi um concílio ecumênico. Isso o Dr. Fastiggi

admitiu em um debate contra sedevacantistas, inclusive ele nesse debate argumentou

usando Florença. Um Concílio Ecumênico não pode falhar, se ele puder falhar, a fé

católica se despedaça como um castelo de cartas. É a opinião de um doutor da Igreja

citado por Robert Fastiggi. É o que todos estamos cansados de saber. O Concílio de

Florença definiu como dogma que os judeus vivem, por não aceitar a fé católica, como

rejeitados por Deus porque mantêm opiniões contrárias e opostas; e propôs que eles não

poderão ser salvos se até o fim de suas vidas não se unirem à Igreja. Florença também

disse que todos aqueles que praticam a lei mosaica depois da promulgação do

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evangelho, a lei do Antigo Testamento, não estão no mais mínimo aptos a tomar parte

na salvação eterna. É o que diz a bula Cantate Domine, do concílio. O Concílio

Vaticano II, por outro lado, ensina, em Nostra Aetate nº 4, que não se deve apresentar os

judeus como rejeitados ou amaldiçoados por Deus. Alguém poderia entender essa

declaração como uma afirmação disciplinar, isto é, relativa à governança da Igreja, não

a moral e dogmas, apesar de Paulo VI ter confirmado o concílio com linguagem solene.

Mas se atentarmos que é verdade que os judeus foram rejeitados; que é verdade,

conforme o papa Gregório X menciona em uma antiga bula cujo propósito foi defender

os judeus de perseguições, que eles estão fora da Arca de São Pedro, fora da qual se está

fadado a perecer em um dilúvio; como é por causa do Concílio Vaticano II que João

Paulo II jamais tentou converter o seu amigo judeu Gilbert Levine, mas lhe presenteou

com o objeto litúrgico chamado menorá, e saudou seus filhos quando do bar mitzvah

deles; se deve entender que uma suposta interpretação conservadora do concílio é

acidental à heresia dos antipapas que o aceitaram, e a posição dos que rejeitam o

concílio é no fundo profundamente herética, porque é absurdo pensar que algo proposto

pelos papas como esse concílio foi e é, possa conter tão absurdos e violentos erros (eu

digo isso porque Bento XVI afirmou que os da FSSPX não estão em “plena comunhão”

com a Igreja por não aceitarem o concílio). — Disse o velho Marcondes.

– Desde que o renomado Michael Davies explicou a natureza do novo rito de

ordenação, ainda que o rito episcopal seja válido como apontam os da FSSPX, é melhor,

e não dói nada aderir a essa precaução, ir a padres do rito oriental e dos da FSSPX, que

não foram submetidos a essas mudanças. Ainda que essas opções para frequentar os

sacramentos sejam de clérigos em união com antipapas, a controvérsia a respeito entre o

irmão Peter Dimond e Gerry Matatics, o apologeta (chamada controvérsia “una cum”,

alusão a parte da missa que menciona o papa), a controvérsia deixou claro que é

possível tomar sacramentos de hereges, desde que a notoriedade da heresia deles não

seja impositiva mas escusável de algum modo; Peter Dimond demonstrou que essa é a

prática universal da Igreja, qual contida no Concílio de Basileia, em um decreto

disciplinar, qual se portaram os católicos durante a Reforma na Inglaterra, qual se

comportaram certos padres da Igreja, como São Cirilo de Alexandria. É claro que, se

esses sacramentos fora de tais opções que restam forem inválidos, a situação é tão séria

que assume um caráter trágico e mesmo apocalíptico. Mas ninguém, segundo o teólogo

Edmund O’Reilly, deve se apressar em afirmar o que Deus pode ou não permitir, assim

como no Grande Cisma do Ocidente aconteceram coisas que julgariam antes ser

impossíveis… a cristandade dividida pela disputa de três homens alegando ser papas.

Eu entendo a sua ânsia por voltar à normalidade, mas ao menos eu sei que a minha

posição não leva de modo algum a ações extremas, pelo simples fato de que não há

clérigos tradicionalistas, validamente ordenados, que sejam ortodoxos na fé, todos eles

impõem como herética ou pecaminosa a rejeição do batismo de desejo, e dissolvem a

necessidade de se pertencer à Igreja em mil estilhaços, exatamente como o arcebispo

Lefébvre fez no livro Carta Aberta A Católicos Confundidos, deixando claro que outros

religiosos se vão salvar “mas não por causa da sua religião”. Eles não podem ser papas

válidos, ainda que procurassem articular um conclave como o “papa Michael”, que aliás

pensa como eles sobre batismo de desejo. Para falar a verdade o batismo de desejo é

algo acidental à discussão, quase. Todos os santos criam unanimemente que a salvação

é para uma minoria, é assim que Santo Tomás pensava. O batismo de desejo não pode

mudar isso. E também se sabe que qualquer um tem até os últimos momentos da vida

para se arrepender e se converter à fé na Trindade e na Encarnação de Cristo, além de

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ser batizado. Se sabe que Deus ordena todas as coisas com tranquilidade. — Disse o

velho Marcondes.

– É inegável que o batismo sacramental é necessário para a salvação, e que portanto é

temerário presumir que alguém de outra religião tenha ido para o céu sem o batismo. —

Disse o velho. — Bento XVI não apenas deu comunhão, a eucaristia, ao protestante

Roger Schutz da comunidade de Taizé, mas afirmou que ele foi direto para o céu

quando morreu. A Encíclica Mirari Vos, de 15 de agosto de 1832, papa Gregório XVI,

nº 13, explica como a Igreja vê os membros de outras religiões: “Agora devemos

considerar uma outra abundante fonte de males que aflige a Igreja presentemente:

Indiferentismo. Nessa perversa opinião, disseminada por todo lugar pela fraude dos que

são perversos, é alegado que é possível conseguir a salvação eterna da alma pela

profissão de qualquer tipo de religião, desde que a moralidade seja sustentada.

Certamente, em um assunto tão claro, um erro tão mortal deveria ser expulso para longe

do contato das pessoas sob o seu cuidado, com a admoestação do apóstolo, de que existe

um Deus, uma Fé e um Batismo. Que temam os que contraem a noção de que o porto

seguro da salvação está aberto para pessoas de qualquer religião; tais pessoas deveriam

considerar o testemunho do próprio Cristo, de que aqueles que não estão com Cristo

estão contra Ele, e que dispersam desafortunadamente se não ajuntam com Ele.

Portanto, sem dúvida, eles vão perecer para sempre, a não ser que professem a fé

católica inteira e invioladamente.” Diante dessa declaração de Gregório XVI, o pe.

William Most, criticando as reservas de Marcel Lefébvre ao Concílio Vaticano II,

procurou apontar que o sentido do papa em dizer o que disse, foi mais o

emocionalmente deplorar os efeitos do indiferentismo religioso, do que realmente

propor que não há a menor possibilidade de os outros religiosos serem salvos sem a

conversão explícita. Na bula Unam Sanctam do papa Bonifácio VIII, 1302, está escrito:

“Ademais, Nós declaramos, proclamamos e definimos que é absolutamente necessário

para a salvação de toda criatura humana que esteja submetida ao Pontífice Romano”. O

historiador Warren H. Carrel bateu nessa declaração, dizendo que é um claro exemplo

da tendência daquele papa a exagerar nas suas falas. É claro que não é necessário

conhecer o ofício petrino para ser salvo, mas é necessário ser batizado e, no caso de

adultos, professar a fé inteira e intacta, sendo o pontífice romano aquele na face da terra

que mantém a fé una e intacta, e a também a comunhão entre os cristãos. Se eu puder

demonstrar que a Igreja entende que a maioria das pessoas não será salva, mas apenas

uma espantosa minoria, e se eu puder demonstrar que o batismo sacramental, isto é,

ritual, é necessário em absoluto, essas duas proposições em conjunção com o fato de

que a Igreja sempre condenou as heresias como portas do inferno (e fora da comunhão

quem discorde no mais mínimo de qualquer ponto da fé), demonstrarão que os papas

desde João XXIII não professam a fé católica, e sim uma fé estranha à Igreja. E Pio XII

ensinou na Encíclica Mystici Corporis Christi de 1943, que só devem ser vistos como

Católicos os que foram batizados e professam a fé verdadeira.

– Para demonstrar que poucos são os salvos, basta citar os santos e o evangelho a

respeito. — Disse o Sr. Marcondes. — Mateus cap. 25 , 1 ; 7-12: “Então o reino dos

céus será semelhante a dez virgens que, tomando as suas lâmpadas, saíram ao encontro

do esposo […] Então todas aquelas virgens se levantaram, e prepararam as suas

lâmpadas. E as loucas disseram às prudentes: Dai-nos do vosso azeite, porque as nossas

lâmpadas se apagam. Mas as prudentes responderam, dizendo: Não seja caso que nos

falte a nós e a vós, ide antes aos que o vendem, e comprai-o para vós. E, tendo elas ido

comprá-lo, chegou o esposo, e as que estavam preparadas entraram com ele para as

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bodas, e fechou-se a porta. E depois chegaram também as outras virgens, dizendo:

Senhor, Senhor, abre-nos. E ele, respondendo, disse: Em verdade vos digo que vos não

conheço.” Mateus cap. 7:13-14: “Entrai pela porta estreita; porque larga é a porta, e

espaçoso o caminho que conduz à perdição, e muitos são os que entram por ela; e

porque estreita é a porta, e apertado o caminho que leva à vida, e poucos há que a

encontrem”. Lucas cap. 13: 23-24: “‘Senhor, são poucos os que são salvos?’ Mas ele

lhes disse: ‘Esforçai-vos por entrar pela porta estreita, porque muitos, eu vos digo,

procurarão entrar e não hão de conseguir.'” Bem-aventurada Anna Maria Taigi (falecida

em Roma a 1937 A.D.): “O número de cristãos que é danado é a maioria. O destino

daqueles mortos em um dia é de que poucos – talvez menos de dez – se dirijam para o

céu. Muitos permaneçam no purgatório; e aqueles lançados no inferno são tão

numerosos quanto flocos de neve durante o centro da estação de inverno.” São João da

Cruz (falecido a 1591 A.D.): “Vede quantos são chamados, e quão poucos são

escolhidos! E vede, se não tiverdes cuidado convosco, vossa perdição é mais certa que a

vossa melhora, especialmente se o caminho que leva à vida eterna é tão estreito”. Santo

Afonso Maria de Ligório, Doutor da Igreja (falecido a 1787 A.D.): “Nós devemos a

Deus um profundo pesar de gratidão pela graça pura e gratuita da fé verdadeira com que

Ele nos favoreceu. Quantos não são os infiéis, hereges e cismáticos que não gozam de

semelhante felicidade? A terra está cheia deles e todos eles estão perdidos!”.

– Papa São Gregório Magno, doutor e padre da Igreja, falecido a 604 A.D.: “Quanto

mais abundam os perversos, mais é mister sofrermos consigo em paciência; porque no

fazer da debulha poucos são os grãos a ser levados ao celeiro, e altas são as pilhas de

palha consumidas pelo fogo.” — Disse ainda o velho. — Santo Anselmo, doutor da

Igreja, falecido a 1109 A.D.: “Se queres estar certo da tua salvação, esforça-te por estar

entre os poucos dos poucos. Não sigas a maioria da humanidade, mas segue aqueles que

renunciam ao mundo e nunca relaxam nos seus esforços dia e noite, para que possam

conseguir a eterna bem-aventurança”. Santo Antonio Maria Claret, arcebispo, morto a

1870 A.D.: “Uma multidão de almas cai nas profundezas do inferno, e é de fide que

todos que morrem em pecado mortal são condenados para sempre e sempre. De acordo

com as estatísticas, oitenta mil pessoas morrem todo dia. Quantas dessas morrem em

pecado mortal, e quantas serão condenadas! Porque, conforme tenha sido sua vida,

assim será o seu fim.” Santo Agostinho, padre e doutor da Igreja, falecido a 430 A.D.:

“Nem todos, nem a maioria, são salvos… São eles [os salvos] muitos, se considerados

em si, mas são poucos em comparação com o número maior daqueles que serão punidos

com o demônio.” São Luís Maria Grignion de Monfort, falecido a 1716: “O número dos

eleitos é tão pequeno — mas tão pequeno — que se soubéssemos-lo, nós

desmaiaríamos com pesar. O número dos eleitos é tão pequeno que se Deus reunisse os

desse número, ele exclamaria a eles, como fizera antes pela boca de seus profetas

‘Juntai-vos um por um’ — um dessa província, outro daquele reino.”

– São Leonardo de Porto Maurizio, franciscano, falecido a 1751 A.D: “As nossas

crônicas relatam um evento ainda mais terrível. Um dos nosso irmãos, conhecido por

suas doutrinas e santidade, estava a pregar na Alemanha. Ele aludia à feiura do pecado

de impureza tão pressurosamente, que uma mulher caiu morta de tristeza na frente de

todos. Após isso, voltando à vida, ela disse ‘Quando estive no tribunal de Deus, sessenta

mil pessoas lá chegaram ao mesmo tempo que eu de todas as partes do mundo; daquele

número, três foram salvos se dirigindo ao purgatório, e todo o resto foi danado.” —

Disse ainda o Sr. Marcondes. — Venerável Maria de Agreda, religiosa, falecida a 1665

A.D.: “Que aqueles que caminham para a salvação estão no menor número, é devido ao

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vício e aos hábitos depravados inoculados na juventude e nutridos quando criança. Por

esse meio Lúcifer lançou ao inferno um número tão grande de almas, e continua a fazê-

lo todo dia, lançando muitas nações em abismo a abismo de escuridão e erros, os quais

estão contidos nas heresias e falsas seitas dos infiéis.” São Basílio Magno, doutor e

padre da Igreja, falecido a 379 A.D.: “Eu vos exorto, pois, a que não desfaleçais nas

vossas aflições, mas revivei pelo amor de Deus, e adicionai diariamente ao vosso zelo,

sabendo que em vós devem ser preservados aqueles remanescentes da verdadeira

religião, os quais o Senhor encontrará quando vier à terra. Ainda que bispos sejam

expulsos de suas Igrejas, não desfaleçais. Se traidores surgirem do próprio clero, não

deixeis que isso comprometa a vossa confiança em Deus. Não somos salvos por nomes,

mas por consideração e por propósito, e genuíno amor para com o nosso Criador.

Lembrai como no ataque a Nosso Senhor, altos sacerdotes e escribas e anciãos

elaboraram plano, e quão poucas pessoas foram achadas realmente recebendo a palavra.

Lembrai que não é a multidão que está sendo salva, mas os eleitos de Deus. Portanto

não temais diante da grande multidão de pessoas que são carregadas para lá e para cá

por sopros do vento, semelhantes às águas do mar. Se for um só o salvo, como Ló em

Sodoma, ele deve residir em retidão de julgamento, mantendo esperança inabalada em

Cristo, porque o Senhor não vai esquecer os seus santos. Saudai todos os irmãos em

Cristo por mim. Orai pela minha miserável alma.”

– São Beda, o venerável, monge, doutor e padre da Igreja, falecido a 735 A.D.: “Nem

devemos pensar que basta para a salvação que não sejamos piores que a massa dos

desleixados e indiferentes, ou que sejamos tão pouco instruídos na fé quanto muitos

outros.” — Disse o velho. — São Benedito José Labré, um santo francês muito pobre,

um mendigo, que impressionou algum protestante americano por se ter reportado que

realizara muitos milagres em espaço de poucos dias, falecido a 1783 A.D.: “Medita nos

horrores do inferno que durarão por toda eternidade por causa de um pecado mortal

cometido com facilidade. Esforça-te muito para estar entre os poucos que são

escolhidos. Pensa nas eternas chamas do inferno, e em como são poucos os que são

salvos.” Ainda São Benedito José Labré: “Eu via almas descendo para o abismo tão

densas e rápidas quanto flocos de neve despencando na neblina de inverno.” São João

Crisóstomo, doutor e padre da Igreja, bispo de Constantinopla falecido a 407 A.D.:

“Que pensais? Quantos dos habitantes dessa cidade porventura serão salvos? O que

estou prestes a dizer é demasiado terrível, ainda assim não o ocultarei de vós. Desta

muito populosa cidade com seus milhares de habitantes nem uma centena de pessoas

será salva. Eu duvido mesmo que haverá algo em torno desse número!”. São João Maria

Batista Vianney, pároco e grande milagreiro, falecido a 1859: “Seremos todos salvos?

Iremos todos ao paraíso? Ai, minhas crianças, não sabemos de modo algum! Eu tremo,

no entanto, quando vejo tantas almas perdidas nesses dias. Vede, eles descendem ao

inferno como as folhas despencam das árvores ao se aproximar o inverno”. Santa

Brigite da Suécia, monja falecida a 1373 A.D.: “Ó Jesus!… Lembra da tristeza que

experimentaste, que quando contemplando na luz da tua divindade a predestinação

daqueles que seriam salvos pelos méritos da Vossa Sagrada Paixão, viste também a

grande multidão de réprobos que seriam danados por seus pecados, e nisto te queixaste

amargamente dos pecadores incorrigíveis, perdidos e desafortunados.” São Remígio de

Rheims, bispo falecido a 533 A.D.: “Com exceção daqueles que morrem na infância, a

maioria dos homens será danada”.

– De novo Santo Afonso de Ligório: “Deus, segundo observa um certo autor, deseja ser

servido por seus sacerdotes com o fervor com que os serafins lhe servem no Céu; de

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outro modo retira dos sacerdotes suas graças e permite que durmam na tibieza, assim

caiam, primeiro no precipício do pecado, depois no inferno.” — Disse o Sr. Marcondes.

— São Francisco Xavier, apóstolo das Índias, falecido a 1552 A.D.: “Ah, quantas almas

perdem o Paraíso e são lançadas no inferno!”. Santa Francesca Saveria Cabrini,

religiosa missionária falecida a 1917 A.D.: “Quantas das pessoas não-civilizadas não

conhecem ainda Deus, e são afundadas na mais tenebrosa idolatria, superstição e

ignorância!.. Pobres almas! É nelas que Cristo mirou, em todo o horror da sua Paixão

Iminente, a inutilidade da sua agonia para tantas almas!”. São José Cafasso, colaborador

de Dom Bosco em Turim e falecido a 1860 A.D.: “Ponde os olhos no mundo, observai a

maneira de se viver, de se falar, e vereis imediatamente se o mal do pecado é conhecido

no mundo ou se alguém presta atenção a isso. Sem falar das pessoas que vivem vidas

decididamente irreligiosas e perversas, quão poucas são aquelas que passam por boas e

se aproximam dos sacramentos conscientes do grande mal que é o pecado, e a grande

ruína que traz. É forçoso que tal culposa ignorância da maioria dos homens leve um

grande número a ser danado porque nenhum pecado é perdoado se não é detestado, e é

impossível detestar o pecado de modo apropriado se ele não é conhecido como é.”

– Santo Tomás de Aquino, doutor da Igreja, falecido a 1274 A.D.: “Porque a felicidade

eterna consiste como faz na visão de Deus, ela excede o estado comum da natureza,

especialmente a natureza considerada na condição de desprovida da graça através do

pecado original, por isso aqueles que são salvos são uma minoria. Isso é particularmente

revelador da misericórdia divina, que Ele tenha escolhido alguns para aquela salvação

não alcançada pelos muitos conformados ao curso e tendência comuns da natureza.” Eu

poderia citar cerca de quinze santos que ainda não mencionei, e mais cerca de cinquenta

citações no mesmo sentido. Portanto, é simplesmente um fato que a maioria das pessoas

que se consideram católicas, hoje, ou que veem a Igreja, não compreendem como a

expectativa da Igreja a respeito da humanidade, e dos salvos, é deprimente. Portanto não

faz sentido o entusiasmo de João Paulo II em encorajar os seus amigos judeus a ser

judeus devotos e de estrita observância da lei mosaica, não faz sentido que Bento XVI

encoraje rabinos nas suas “missões”, que o antipapa Francisco peça a um líder

muçulmano que ore por si, e juntos rezem na mesquita. Tudo isso, represente ou não

uma leitura legítima do Concílio Vaticano II, como Sungenis disputa a respeito, tudo

isso constitui uma outra fé, uma outra expectativa em relação ao papel da Igreja no

mundo. — Disse o senhor Marcondes.

– Agora, eu vou explicar a minha posição a respeito do batismo de desejo, que se

assemelha à sua, e usarei isso também para argumentar sobre a maneira correta de

entender o dogma e reconhecer na Igreja pós-conciliar uma religião estranha à religião

dos apóstolos. Se tomarmos o Catecismo de Trento e o Concílio de Florença, veremos

que eles parecem apresentar posições diferentes a respeito da necessidade de batismo

sacramental para a salvação. O Catecismo de Trento tem um, um apenas, um parágrafo

que articula a ideia de batismo de desejo. O desejo do batismo pode dar ao que deseja a

graça e a retidão. Ora, o Catecismo de Trento não é infalível. Ele não é parte do

Concílio Ecumênico de Trento, mas é posterior ao concílio, ao seu encerramento. O

catecismo não é endereçado à Igreja universal, o que se verifica pelo título do volume,

que especificamente menciona como destinatários os padres paroquiais. Não é, portanto,

endereçado nem à Igreja universal nem a todos os padres, porque nem todos os padres

são padres paroquiais, há aqueles de ordens religiosas etc. Na verdade, em uma versão

ou edição do catecismo publicada pela editora Tan Books, há uma introdução citando

vários autores, e um deles, chamado Dr. John Hagen, afirma na passagem citada que os

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ensinamentos do volume não são infalíveis. O catecismo de Trento ensina que o

embrião humano não é ainda humano no momento da concepção, no catecismo se diz

que a alma racional humana é unida ao corpo só depois de algum tempo. Isso está no

artigo três, na seção sobre o credo; essa passagem do catecismo reflete uma certa

concepção escolástica, que se acha no próprio Santo Tomás e outros autores, segundo a

qual o embrião no útero de uma mulher não passa a existir como embrião humano desde

o começo, mas acaba por se tornar humano quando a alma racional é infusa no embrião.

Isso aconteceria, segundo tal ideia, dentro de quarenta dias depois da concepção no caso

de machos, e em oitenta ou noventa dias no caso de fêmeas. — Disse o velho.

– Essa ideia de que o embrião não é humano desde o momento da concepção, presente

no Catecismo de Trento e em Santo Tomás, é algo em que a maioria das pessoas hoje

não pode acreditar. O movimento antiaborto no mundo não concordaria, e até mesmo os

teólogos responsáveis pela Enciclopédia Católica de 1907 admitiram, nesse escrito, que

não concordam com tal posição de Santo Tomás; se tais teólogos acreditassem que o

que está contido em Santo Tomás e no catecismo é necessariamente infalível, eles

teriam rejeitado essa ideia? As evidências modernas a respeito do DNA indicam que

todas as características de um indivíduo estão presentes no embrião ao momento da

concepção, o que fortemente sugere que a alma racional está desde o início no embrião,

e não apenas isso, mas que no embrião feminino também, não havendo a respeito dele

algum atraso na formação em relação aos embriões masculinos. Portanto, se alguém diz

“a doutrina do batismo de desejo está no Catecismo de Trento”, eu pergunto: “Você

concorda que a alma racional só reside no embrião algum tempo depois da concepção?”.

É simplesmente um dogma, contrário ao catecismo, que a alma racional é a própria

forma do corpo humano; foi definido isso no Concílio de Viena, França, a 1312 A.D.,

pelo papa Clemente V. — Disse o velho.

– Quando se estuda o Catecismo de Trento — disse ainda o Sr. Marcondes — se nota

que há apenas determinadas porções da doutrina que o catecismo identifica como coisas

que podem, devem ou deveriam ser comunicadas a todos os fiéis. No trecho sob o título

“Comunhão dos Santos”, está escrito: “Os fiéis, portanto, devem ser informados de que

tal parte do artigo […]”; significando que há informações que devem ser dirigidas aos

fiéis, portanto nem toda passagem do volume é precisamente dirigida aos fiéis. Também

em “Sofreu sob Pôncio Pilatos”, está escrito: “Ademais, o pastor não deve omitir a

porção histórica deste artigo […]”. Portanto, nem tudo no catecismo é para todos os

fiéis, se o próprio texto identifica as porções que seria bom não omitir dos fiéis;

tornando absurda a concepção de que a intenção era de que todo o conteúdo do

catecismo estivesse sendo entregue aos fiéis. Eu poderia dar cerca de cinquenta

exemplos de passagens em que o texto frisa certos pontos doutrinais como interessantes

de se os comunicar aos fiéis. Das centenas de páginas do livro, só algumas passagens

são especificamente dirigidas aos fiéis. Uma dessas passagens dirigidas a todos os fiéis,

sobre a matéria do batismo (água), diz: “Os pastores podem ensinar, em primeiro lugar,

que a água, sempre disponível e ao alcance de todos, foi a mais apropriada matéria para

o sacramento que é necessário a todos para a salvação”. Ora, o catecismo, na passagem

dirigida a todos os fiéis, diz que o sacramento do batismo é necessário para a salvação, e

o batismo de desejo não é um sacramento, conforme todos admitem. O sacramento do

batismo não é necessário para todos, segundo os que abraçaram a ideia de batismo de

desejo. É, na verdade, absolutamente fascinante que em toda passagem sobre a

necessidade do batismo, que simultaneamente dirige a doutrina aos fiéis, o sacramento é

apontado como necessário pelo catecismo. A mesma coisa não ocorre no solitário

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parágrafo que aponta uma exceção a essa regra, no catecismo. Neste parágrafo sobre a

justificação sem sacramento, não há a mais mínima sugestão de que seja algo que o

pastor possa, deva ou devia transmitir aos fiéis, é só uma informação dirigida ao pastor,

e não aos fiéis. Mais um exemplo de como isso é aparente, segundo diz o texto: “Como

o conhecimento do que foi até aqui explanado seja, como é, da mais alta importância

para os fiéis, não é menos importante para eles aprender que a lei do batismo qual

estabelecida por Nosso Senhor, se estende a todos, de modo que a não ser que eles

sejam regenerados a Deus pela graça do batismo, não importa se de pais cristãos ou

infiéis, eles estão nascidos para eterna miséria e destruição. Os pastores, portanto,

devem frequentemente explicar essas palavras do evangelho: Se um homem não nascer

de novo da água e do Espírito, não pode entrar no Reino de Deus”. A doutrina sobre a

necessidade do batismo contida no catecismo, quando dirigida a todos os fiéis, portanto,

é indistinguível da doutrina dos concílios ecumênicos, e todos eles, perfeitamente em

concórdia, dizem que a água real e natural é necessária não só para o batismo, mas para

a justificação que o sacramento comunica.

– Os defensores do batismo de desejo dirão que o Catecismo de Trento é recomendado

pelo papa Pio X, na Encíclica Acerbo Nimis, como bom manual catequético para os

fiéis. “Como o Catecismo de Trento pode não ser o ensinamento católico, mas sim

herético”, perguntarão eles, “se foi recomendado por Pio X?”. O argumento que eu

estabeleci há pouco lhes responde: O oficialmente promulgado pelo catecismo como

devendo ser comunicado a todos os fiéis é que o batismo é necessário. A longa

bula Ineffabilis Deus, de Pio IX, estabelecendo a Imaculada Conceição, tem a mesma

linguagem do catecismo; nem tudo ali é dirigido a todos os fiéis. — Disse ainda o

velho.

– O próximo argumento contra a necessidade de batismo sacramental é “Depois das

definições infalíveis que você cita, pela necessidade de batismo sacramental, surgiram

teólogos e homens eminentes na Igreja que apontaram como válidas exceções; como

eles podem não ter sido hereges?”. Ora, assim como o catecismo não-infalível foi

recomendado por papas, a Suma Teológica, que contém heresias, também foi

recomendada. Suma, Parte três, artigo vinte e sete, questão dois, resposta à objeção

dois: “Se a alma da bem-aventurada virgem não tivesse incorrido na mancha do pecado

original, isso seria derogatório à dignidade de Cristo”. Ele contradiz na Suma a

Imaculada Conceição, mas a Suma foi sempre louvada e recomendada pelos papas. É

porque no geral, a Suma é católica e não herética, embora contenha alguns erros e

opiniões heréticas. Não adianta se objetar, como foi feito, que o erro ocorreu antes da

definição da Imaculada Conceição, porque, se algo aprovado pela Igreja não pode

conter erro, segundo dizem, teria de ser verdadeiro antes e depois da definição, e além

disso mesmo depois da definição o trabalho de Santo Tomás foi recomendado por

papas, por exemplo Leão XIII. Os hereges favoráveis ao batismo de desejo se veem

obrigados a dizer “ora, a Imaculada Conceição não pode ser uma doutrina católica”, ou

então “a Imaculada Conceição tem de ser perfeitamente compatível com Santo Tomás,

no fundo”. Não, esses fatos mostram que a aprovação papal de um documento pode ter

um sentido geral, e não se dirigir a todo conteúdo do texto, sobretudo se não é dirigido a

todos os fiéis com a linguagem característica. A Suma é recomendada sobretudo a

seminaristas e estudantes, o catecismo a seminaristas e padres paroquiais. — Disse o

velho Marcondes. — Ademais, na herética passagem do catecismo se trata de o batismo

de desejo se aplicando a casos em que um evento inesperado impede de se receber o

sacramento, quando é de fide, do Concílio Vaticano I, que Deus ordena todas as coisas

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com tranquilidade, o que mostra que a passagem do catecismo é contrária à noção de

providência. Além disso, essa passagem herética do catecismo diz que o efeito do

batismo de desejo se aplica àqueles que desejam o sacramento, quando tal não é a

opinião dos que professam o batismo de desejo, uma vez que eles creem que esse

batismo não-sacramental se aplica a pessoas que desconhecem o sacramento, a pagãos e

outros membros de outras religiões que não desejam explicitamente ser católicos.

– Mas, como o Catecismo pode ter sido aprovado por teólogos sem que eles se

tornassem hereges? — Perguntou o Sr. Marcondes. — Como o “batismo de desejo”

pode ser contrário aos concílios ecumênicos, e à necessidade da água para o sacramento,

e à necessidade de se submeter ao pontífice romano, sem ser um conceito herético que

levou à heresia os teólogos que o defenderam? Ora, é possível citar santos, doutores e

mesmo papas que defenderam erros que todos reconhecem hoje como erros. Por

exemplo, no séc. XVII teólogos do Santo Ofício condenaram a ideia de que a Terra não

é o centro do universo. O papa Paulo V ordenou que Galileu abandonasse essa ideia.

Uma das congregações papais, chamada a Congregação do Index, publicou um decreto

nessa mesma linha, condenando o não-geocentrismo. Ao ano 1633 A.D. o Santo Ofício

condenou, sob o papa Urbano VIII, o não-geocentrismo ao ponto de fazer circular tal

informação. Mas esse padrão foi revertido depois, a 1757 A.D. o papa Bento XIV

suspendeu os decretos da congregação que publicou em defesa do geocentrismo. A

1822 A.D. o Santo Ofício, sob Pio VII, concedeu permissão para a impressão de livros

ensinando o movimento terrestre. O papa Bento XV se dirigiu, nos seus dias, a

estudantes, ensinando que a Terra pode não ser o centro do universo. Nisso, o papa

Bento XV contradisse os onze teólogos do Santo Ofício a 1616 A.D., incluso São

Roberto Belarmino (que se envolveu em tal controvérsia). Os hereges do “batismo de

desejo”, como não admitem que nada errôneo possa ser aprovado pelo papa, teriam de

professar que Bento XV contradisse um ensino da Igreja e se tornou um herege por

duvidar do geocentrismo, que São Roberto Belarmino ensinou que é de fide. Teólogos e

papas podem se enganar sobre alguma verdade, eles podem pensar que algo é herético e

não é, e que algo não é herético e é. A propósito, a condenação de Galileu foi aprovada

pelo papa com o conhecimento do papa, mas sem uma fórmula ex cathedra específica,

de modo que a Igreja não ensinou técnica ou oficialmente que a Terra é o centro do

universo.

– Um outro exemplo — continuou o Sr. Marcondes — é sobre o cânon das escrituras. O

cânon das escrituras é o conjunto de livros que a Igreja oficialmente declarou que fazem

parte da bíblia. O Concílio de Florença declarou infalivelmente, a 1441 A.D., qual é o

cânon das escrituras através da bula Cantate Domino. E na bula Cantate Domino os

livros deuterocanônicos, por exemplo o Livro da Sabedoria, estão inclusos. Entretanto

alguns dos homens mais eminentes na Igreja, depois da bula, acreditaram que os livros

deuterocanônicos não fazem parte da bíblia. Por exemplo, o cardeal Francisco Jiménez

de Cisneros (séc. XVI), dentre as mais poderosas figuras da história da Espanha, e

editor de uma versão poliglota da bíblia. Com a aprovação do papa Leão X, o cardeal

Jiménez publicou uma bíblia excluindo os livros deuterocanônicos. Pela lógica dos

defensores do “batismo de desejo”, tanto o cardeal Jiménez quanto o papa Leão X têm

de ser hereges, porque aprovaram e promoveram uma versão da bíblia que exclui

conscientemente parte do cânon, contrariamente ao que o Concílio

de Florença declarara. Não, o papa Leão X não era um herege, é que papas podem errar,

podem se confundir, podem estar pouco advertidos do status quaestionis de um assunto

teológico, um Concílio Ecumênico, ao menos parcialmente, pode lhes passar

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despercebido. O cardeal Jiménez não foi de modo algum o único a incorrer nesse erro.

O celebrado teólogo, cardeal Girolamo Seripando, também não entendeu os livros

deuterocanônicos conforme Florença declarara, apesar de ter sido uma personalidade

chave no Concílio de Trento. O cardeal Cajetan, igualmente, a despeito de ser até hoje

uma marcante figura em oposição à Reforma Protestante, não entendia os livros

deuterocanônicos como parte da bíblia. Os defensores do batismo de desejo chegaram

ao ponto de argumentar contra essas evidências, que o cânon das escrituras só foi

infalivelmente declarado em Trento, não em Florença, e portanto essas grandes

personalidades não se opunham ao magistério realmente. Tal objeção, no entanto, é

fraquíssima; na encíclica Providentissimus Deus, 1893 A.D., o papa Leão XIII usou a

expressão “a fé antiga e imutável da Igreja solenemente declarada em ambos concílios

de Florença e de Trento”, e tal encíclica tem como tema principal as Sagradas

Escrituras. Leão XIII identificou a passagem em Florença sobre o cânon como uma

passagem solene, isto é, infalível. Como pode ser que o cardeal Jiménes, o cardeal

Seripando, o cardeal Cajetan e o papa Leão X etc. podem ter errado a respeito do cânon

sem ser hereges? É que a aquisição e transmissão de informações naqueles tempos, até

pelo menos o séc. XVIII ou mais, era muito problemática por dois fatores; o primeiro é

que não havia tecnologia de informações como há hoje; e em segundo lugar eles viviam

antes da definição dogmática da infalibilidade papal e da clarificação a respeito de

quando e como a infalibilidade está operando. Santo Afonso de Ligório, se percebe,

fiava-se muito na opinião de teólogos, mas desde o Concílio Vaticano I não é isso mais

necessário, não é mais necessário se atolar na multidão de opiniões teológicas que não

são infalíveis. Os teólogos podem falar brilhantemente, mas não é necessário mais

extrair conclusões diretamente deles. Podemos hoje sem dificuldade ir direto ao

magistério. Também a tecnologia determina a rapidez com que a rejeição obstinada,

herética, de um dogma, pode ser determinada. Hoje, em cinco minutos, eu posso ler a

opinião de alguém resumida sobre um assunto, e conferir se bate com o que o

magistério diz a respeito. Eu posso admoestar alguém por email, e em poucos minutos

ou horas receber uma resposta, o que antigamente era muito mais difícil.

– Por exemplo — continuou o velho –, São Roberto Belarmino acreditava que hereges

ocultos são membros da Igreja, do corpo da Igreja. Não seria, por essa opinião, o ato da

heresia que expulsa alguém da Igreja, mas apenas o crime de heresia, apenas o se juntar

a um grupo herético (protestante etc.) ou ser declarado herege por uma autoridade

eclesiástica. Um opinador chamado Robert Siscoe usa essa opinião de São Roberto

Belarmino, em favor da ideia de que os antipapas são parte da Igreja, membros da

Igreja. Nesse ponto a opinião de São Roberto não apenas é errada, mas herética, porque

a bula do Concílio de Florença, chamada Cantate Domino, claramente condena tal

opinião. Bula Cantate Domino: “Ela [a Santa Igreja Romana] condena, rejeita e

anatematiza, todos pensando coisas opostas e contrárias, e lhes declara alheios ao Corpo

de Cristo, que é a Igreja.” Florença diz que pensar, meramente pensar, contrária e

opostamente à Igreja, é perder filiação na Igreja. Ainda que você não revele a ninguém

que não crê na divindade de Jesus, ou na infalibilidade papal, você está fora. São

Roberto era um herege? Não, ele estava apenas enganado. Só porque muitos criam em

batismo de desejo, apesar de esta opinião jamais ter sido proposta pelo magistério, mas

ao contrário ter sido excluída como possibilidade, não significa nem que o batismo de

desejo seja certo, nem necessariamente que os que acreditam nele sejam hereges. Assim

como o conceito de São Roberto Belarmino do “herege oculto como membro da Igreja”

foi por várias vezes admitido por teólogos, também o errôneo batismo de desejo foi

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defendido por muitos. Nós só nos fiamos no ensinamento de santos e doutores quando

eles não contradizem o magistério.

– Do mesmo modo, Joseph Tixeront, autor de História dos Dogmas, explicou que a

admissão católica do filioque (a ideia de que o Espírito Santo procede tanto do Pai

quanto do Filho) era universalmente aceita na Igreja latina aos séculos V e VI A.D.; mas

se acreditava que o filioque não devia ser adicionado ao Credo de Constantinopla,

porque seria proibído modificar um credo. O papa Leão III (dos séc. VIII e IX), se opôs

à inserção do filioque no credo, ao ponto de protestar contra o Imperador Carlos Magno

a respeito. O papa Bento VIII, a 1012 A.D. pôs fim à controvérsia e oficialmente

adicionou o filioque ao credo, a despeito de o concílio de Éfeso (431 A.D.) ter alguma

passagem dando a impressão de que de modo algum se deve alterar o texto de um credo.

A ação de Bento VIII foi confirmada e aprovada no Concílio de Florença. O papa Leão

III não se opôs à inserção do filioque de um modo obrigante aos fiéis, mas ele tinha uma

opinião errônea a respeito. Os papas, quando não atuam infalivelmente obrigando todos

os fiéis em virtude do seu ofício, ou quando atuam negativamente, ao não agir, podem

errar e falhar em reconhecer algum ponto da doutrina. A opinião “se o batismo de

desejo fosse errôneo, seria impossível que os papas aprovassem ou não o

condenassem”, é uma opinião inteiramente falsa. É uma opinião baseada em uma

compreensão muito pouco experimentada da história dogmática e do ensinamento

católico. O batismo de desejo jamais foi ensinado aos fiéis pelo magistério de um modo

obrigante e claramente solene, não há um único concílio ecumênico, nenhuma bula ou

encíclica papal, que sequer menciona o batismo de desejo. Os doutores da Igreja não

obrigam os fiéis, no conteúdo dos seus livros, os catecismos também não, nenhum

deles; as poucas declarações de papas sobre batismo de desejo, não se dirigem de modo

algum à Igreja universal; o código de direito canônico refere o batismo de desejo, mas

também refere que o status do código não é obrigante a todos os fiéis no cânon 1,

porque não se dirige a toda a Igreja e diz explicitamente que não obriga toda a Igreja, ao

passo que a infalibilidade necessita de uma declaração dirigida a toda a Igreja. A Igreja

católica nunca ensinou batismo de desejo, ou batismo de sangue de modo obrigante.

Mas os Concílios Ecumênicos, e as encíclicas, apontam que ninguém é salvo sem o

sacramento do batismo. — Disse o velho.

– Um outro argumento contra os hereges do batismo de desejo, é que Santo Agostinho,

e São Fulgêncio, ensinaram que as crianças pequenas que morrem sem batismo sofrem

as penas do fogo. Essa opinião de Santo Agostinho foi adotada sem contestação por

mais de quinhentos anos. Como pode ser que teólogos adotem uma opinião por tanto

tempo, se essa opinião não é católica? É porque teólogos podem errar, o que importa é o

que o magistério ensinou. Um outro exemplo é São Cipriano, e a controvérsia sobre o

batismo de hereges. São Cipriano, no séc. III, acreditava que batismos feitos por hereges

são inválidos, e ele sustentou essa opinião contra o papa São Estevão (falecido a 252

A.D.). O papa Estêvão I não falou por um documento ex cathedra obrigando a Igreja,

ele simplesmente enviou a São Cipriano de Cartago uma carta privada explicando que

hereges têm a faculdade de batizar validamente. São Cipriano acusou o papa de erro e

convocou um concílio, com oitenta e quatro bispos que aprovaram a posição de São

Cipriano unanimemente. Ora, São Cipriano não apenas é um doutor da Igreja, mas ele é

constantemente citado nas encíclicas papais. Nós temos um doutor da Igreja ensinando

uma visão errônea, temos oitenta e quatro bispos concordando com ele, e ademais as

Igrejas das regiões da Capadócia (próxima do mediterrâneo) e da África concordaram

com Cipriano. Como é que um doutor da Igreja, dezenas de bispos, dois grandes centros

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católicos, podem todos estar errados? É que eles podem errar, o que importa é o que a

Igreja ensinou infalivelmente, o que, no caso do batismo, no caso do que foi claramente

ensinado no Concílio de Florença, consiste em que se não nascermos de novo da água e

do Espírito, não podemos entrar no Reino de Deus. — Disse o Sr. Marcondes.

– Um outro exemplo de doutor da Igreja que errou foi Santo Afonso de Ligório, que,

após considerar várias opiniões de teólogos, identificou como a forma de consagração

da eucaristia, não a forma longa presente no missal tradicional, mas apenas as palavras

“Este é o meu Corpo” e “Este é o meu sangue”. A maioria dos tradicionalistas, e

ademais os argumentos de Leão XIII a respeito dos sacramentos no decreto Apostolicae

Curae, 1898 A.D., contradiriam Santo Afonso a esse respeito, porque a referência à

remissão dos pecados, na forma de consagração, também significa a graça que a

eucaristia comunica. Então, como um doutor da Igreja pode errar? Ele simplesmente

pode errar, o que importa é o que a Igreja ensinou infalivelmente. — Disse o Sr.

Marcondes.

– Na bula do Concílio de Florença, chamada Exultate Deo, está escrito: “O santo

batismo, que é a porta de entrada para a vida espiritual tem o primeiro lugar entre os

sacramentos; por meio dele nós somos feitos membros de Cristo e do Corpo da Igreja, e

desde que a morte entrou no universo pelo primeiro homem, se não nascermos de novo

da água e do Espírito, não podemos, como a Verdade diz, entrar no Reino dos Céus. A

matéria deste sacramento é água real e natural”. Quem prega que a água não é

necessária, que não é necessário nascer de novo dela e do Espírito, contradiz um dogma

definido. Os hereges do batismo de desejo professam que a água real e natural, o rito, é

apenas necessário, é apenas verdadeiramente necessário, ordinariamente, mas há meios

para a salvação extraordinários, não-ordinários. Essa opinião, no entanto, é herética, e é

modernismo. Se há aplicações extraordinárias para um dogma, significa que há

aplicações para fora dele. Se um dogma definido não é sempre verdade, é em última

instância falso. De acordo com Monsignor Joseph Clifford Fenton, um americano e

teólogo que enxergava o dogma Fora da Igreja Não Há Salvação de um modo liberal,

alguns autores procuram explicar o dogma dizendo que a Igreja é apenas o meio

ordinário, mas de acordo com essa opinião o dogma seria apenas uma fórmula vã, algo

que os que lhe aceitassem tratariam para todos os efeitos como inverídico. Isso que

monsignor Fenton disse sobre a salvação se aplica a todo dogma. Se as exceções não

são incluídas no dogma, na própria definição, não existem e é modernismo e heresia

afirmar que existem. Pio X condenou a ideia de que o dogma está submetido a

mudanças e a vicissitudes (ao acaso, ou a circunstâncias). Os hereges que defendem

batismo de desejo dizem que a posição “fineíta” a respeito é que é herética e pecado

mortal, o que é bastante comprometedor da salvação deles. São Paulo apóstolo ensinou

que a doutrina revelada não é “é isso, e não é isso”. Nós não cremos que “se um homem

não nascer de novo da água e do Espírito, não pode entrar no Reino dos Céus” e ao

mesmo tempo “sim, se um homem não nascer de novo da água e do Espírito ele pode

entrar no Reino dos Céus”. No latim dessa passagem em Exultate Deo, é usado o termo

non possumus, que é um termo técnico conforme todo teólogo familiarizado com

história do dogma sabe. O papa São Leão, O Grande, e outros papas, usaram o termo

non possumus para designar a impossibilidade conforme lei divina imutável, de fazer

algo. O próprio antipapa Bento XVI, no livro Luz do Mundo, referiu um decreto de

João Paulo II assim: “A impossibilidade da ordenação de mulheres na Igreja Católica,

foi claramente decidida por um non possumus do magistério supremo”. Quem rejeita

obstinadamente que é necessário nascer de novo da água e do Espírito para ser salvo, é

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um herege. O próprio Concílio de Florença declarou em Cantate Domino que é

necessário pertencer ao Corpo da Igreja para ser salvo. — Disse ainda o Sr. Marcondes.

– Mas o pe. Cekada diz que o Syllabus de Erros, de Pio IX, condenou a ideia de que só

as declarações do magistério devem ser aceitas de modo obrigante pelos fiéis, na

proposição nº 22. — Objetou Gregory Antonov.

– Sim, mas isso se aplica ao magistério universal e ordinário, o que é tão constante

quanto a representar revelação, se trata do consenso sob o qual as declarações ex

cathedra são expressas. Se nota isso em que Santo Irineu, no séc. II, o papa Leão X

durante a Reforma Protestante, e o próprio Pio IX ao estabelecer de modo plenamente

manifesto a infalibilidade papal no séc. XIX, todos reconheciam o primado de Pedro

sobre a Igreja. — Tornou o Sr. Marcondes. — Tal não se aplica ao consenso nutrido na

opinião de Santo Agostinho, que as crianças que morrem só com o pecado original

sofrem com chamas.

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Judaísmo

– O entendimento que nós judeus temos do que seja o messias prometido por Deus, é

um entendimento claro e preciso. — Disse o quarto Antonov. — A opinião judia sobre

o messias é a mais acertada. O que é o messias? O messias é alguém ungido, alguém

que recebe uma aplicação de óleo como ritual para a sua iniciação no serviço a Deus.

No capítulo 30 de Êxodo é referido que vários objetos, incluso o sacerdote Aarão e os

seus filhos, foram ungidos. Os reis também, desde Saul e David, eram ungidos, e o fato

de alguém ser ungido sob o comando de Deus lhe separava entre as pessoas de modo

que não se lhe poderia atacar sem incorrer na ira de Deus, como está no livro de

Samuel. Até mesmo profetas, como Eliseu, foram ungidos, em outras palavras, eram

messias. Mas é simplesmente um fato que a palavra “messias”, qual os cristãos a

entendem referindo-se a Jesus, não aparece nem uma única vez em toda a bíblia, em

todo o Antigo Testamento. Nenhuma das passagens narrativas da bíblia, sobre histórias

e eventos, fala do messias. A parte da bíblia que fala sobre legislação, isto é, normas e

costumes instituídos, também não fala do messias. Há também a literatura de sabedoria

na bíblia, o Livro de Jó, o Eclesiastes escrito pelo rei Salomão, os salmos etc. Nenhum

destes livros é muito claramente um local certo para achar referências ao messias.

Sobrou os livros proféticos. Os profetas tinham como função repreender e admoestar o

povo judeu. Mas também encorajar os judeus. Como se diz, é difícil ser judeu. Eles

também, por isso, encorajavam os judeus avisando do futuro glorioso que lhes espera. A

bíblia diz que nós judeus vamos voltar à terra prometida, vindos de todos os cantos da

terra, e as dez tribos de Israel perdidas vão se unir a nós. Isso está em Isaías e em

Jeremias. O livro de Deuteronômio fala de uma restauração também espiritual para o

povo judeu. Isaías 2:1-4: “Palavra que viu Isaías, filho de Amós, a respeito de Judá e de

Jerusalém. E acontecerá nos últimos dias que se firmará o monte da casa do Senhor no

cume dos montes, e se elevará por cima dos outeiros; e concorrerão a ele todas as

nações. E irão muitos povos, e dirão: Vinde, subamos ao monte do Senhor, à casa do

Deus de Jacó, para que nos ensine os seus caminhos, e andemos nas suas veredas;

porque de Sião sairá a lei, e de Jerusalém a palavra do Senhor. E ele julgará entre as

nações, e repreenderá a muitos povos; e estes converterão as suas espadas em enxadões

e as suas lanças em foices; uma nação não levantará espada contra outra nação, nem

aprenderão mais a guerrear.” Também no profeta Oseias, capítulo 2, é dito que Deus

fará a paz na terra e abolirá a espada e o arco. Em resumo, o tempo messiânico será

marcado pelo retorno dos judeus à Terra Prometida, a reconstrução do Templo

coincidindo com a restauração espiritual profetizada, e uma paz universal. Também está

escrito em Zacarias, capítulo 8, versículo 23: “Assim diz o Senhor dos Exércitos:

Naquele dia sucederá que pegarão dez homens, de todas as línguas das nações, pegarão,

sim, na orla das vestes de um judeu, dizendo: Iremos convosco, porque temos ouvido

que Deus está convosco.” Todas essas passagens dizem de um mundo redimido, mas de

nenhum messias. Mas eis as passagens sobre o messias, as quais, aliás, implicam

sempre a realização de todos esses prodígios utópicos para os judeus: Isaías 11:1-10:

“Um ramo surgirá do tronco de Jessé, e das suas raízes brotará um renovo. O Espírito

do Senhor repousará sobre ele, o Espírito que dá sabedoria e entendimento, o Espírito

que traz conselho e poder, o Espírito que dá conhecimento e temor do Senhor. E ele se

inspirará no temor do Senhor. Não julgará pela aparência, nem decidirá com base no

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que ouviu; mas com retidão julgará os necessitados, com justiça tomará decisões em

favor dos pobres. Com suas palavras, como se fossem um cajado, ferirá a terra; com o

sopro de sua boca matará os ímpios. A retidão será a faixa de seu peito, e a fidelidade o

seu cinturão. O lobo viverá com o cordeiro, o leopardo se deitará com o bode, o bezerro,

o leão e o novilho gordo pastarão juntos; e uma criança os guiará. A vaca se alimentará

com o urso, seus filhotes se deitarão juntos, e o leão comerá palha como o boi. A

criancinha brincará perto do esconderijo da cobra, a criança colocará a mão no ninho da

víbora. Ninguém fará nenhum mal, nem destruirá coisa alguma em todo o meu santo

monte, pois a terra se encherá do conhecimento do Senhor como as águas cobrem o

mar. Naquele dia as nações buscarão a Raiz de Jessé, que será como uma bandeira para

os povos, e o seu lugar de descanso será glorioso.”

– Esse ramo de Jessé, um antepassado do rei David, nós cristãos chamamos Jesus. —

Disse o velho.

– É claro. — Tornou o quarto Antonov com enfado e pressa. — Mas tornemos ao

messias, diz Jeremias 23:5-6: “‘Dias virão’, declara o Senhor, ‘em que levantarei para

David um Renovo justo, um rei que reinará com sabedoria e fará o que é justo e certo na

terra. Em seus dias Judá será salva, Israel viverá em segurança, e este é o nome pelo

qual será chamado: O Senhor é a Nossa Justiça'”. Em Jeremias, capítulo 30, também o

rei messiânico é associado com a proteção e segurança futura com que Deus vai

sustentar os descendentes de Jacó. E mais adiante no capítulo 33, a mesma ideia. Em

Ezequiel, capítulo 34, a mesma ideia, isto é, um rei da descendência de David vai reinar

e haverá nesses dias uma multidão de bençãos e um mundo utópico. No capítulo 37 se

repete a ideia, com a menção de que esse descendente de David vai reinar para sempre.

Portanto, o verdadeiro messias, que não é Jesus Cristo, é o messias bíblico. A bíblia diz

isso sobre o messias: Quando ele vier os judeus terão voltado para Jerusalém, haverá

paz universal, o templo será reconstruído, todos os gentios perguntarão aos judeus o que

devem fazer para se aproximar de Deus, e todos os judeus observarão a lei, a torá,

conforme certa passagem. Quando esses eventos ocorrerem, não haverá erro, será muito

claro quem é o messias. É por isso que eu acredito que o messias não é Jesus.

– É o que lhe parece? — Perguntou o velho.

– Sim. — Tornou o quarto Antonov –. Vocês, cristãos, dizem que é preciso crer em

Jesus. Mas quando vier o messias ninguém terá de crer nele, todos saberão que ele é o

messias, por causa dos fatos que devem acompanhar a vinda dele. É por isso que a

chamada “segunda vinda” é uma lorota. Não há uma única passagem bíblica que

corrobora essa noção de que o messias deve voltar. Quando Jesus morreu ele não disse

“missão cumprida!” ou “marquei mais pontos”. Ele disse, isso sim, “Meu Deus, meu

Deus, por que me abandonaste?”. As passagens da bíblia judaica sobre o messias têm

mais a ver com o triunfo dele na sua primeira vinda. Qualquer um pode alegar ser o

messias, falhar e depois salvaguardarem sua legitimidade com o dizer “ele vai voltar!”.

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O Novo Testamento fala repetidamente que Jesus deve voltar em breve, na mesma

geração dos apóstolos. Isso aconteceu? Mas, claro, você dirá que Jesus fez muitos

milagres. O capítulo 13 de Deuteronômio avisa-nos que surgirão falsos profetas, e que

enganarão a muitos com milagres verídicos. Por que Deus permitiria que falsos profetas

realizassem milagres verdadeiros? Para testar-nos. E quem nos garante que Jesus tenha

feito milagres, ou que a descrição deles seja precisa? O primeiro evangelho a ser escrito

é o de Marcos, mas cerca de quarenta anos depois de Cristo falecer. Há organizações,

como a Judeus por Jesus, que reconheceram em editorial de uma sua publicação, que

muitos adeptos estavam inclinados a mentir sobre curas milagrosas em suas vidas.

Nenhum de nós estava entre os apóstolos de Jesus há dois mil anos atrás para saber que

gente era aquela.

– Pôncio Pilatos é retratado em mais de uma fonte histórica como um procurador brutal

e sanguinário — continuou o quarto Antonov –, mas os evangelhos o retratam como um

tipo manso que se deixa intimidar pelos judeus para condenar Jesus. E, por falar nos

evangelhos, a história de como Herodes mandou matar as crianças de Belém menores de

dois anos não está em nenhuma fonte que não o próprio Novo Testamento, não está nem

no Talmud, e nem mesmo em Josefo, o qual dedicou uns quarenta capítulos a Herodes.

Mateus, o evangelista, diz que à morte de Jesus os corpos de homens

justos ressuscitaram e apareceram a muitos em Jerusalém, o que não é mencionado por

nenhuma fonte extra-evangélica. A verdade é que não adianta se insistir nos milagres

cristãos, todas as seitas reportam milagres, portanto um milagre não pode ser tomado

como uma prova definitiva de que uma religião é verdadeira. Os de uma seita dirão “o

vosso milagre é feito pelo demônio para vos confundir”, e os outros replicarão o

mesmo.

– São Paulo escreveu — continuou o quarto Antonov — que a ressurreição é milagre

tão importante para os cristãos, que, se não houver ocorrido, “é vã a nossa fé”. Mas a

bíblia dos judeus não menciona em nada a importância de uma suposta ressurreição do

messias; ainda que Jesus tenha ressuscitado, isso não prova por si que ele é o messias.

Os evangelhos diferem a respeito do dia da crucificação, o evangelho de João propõe

que foi no dia anterior à páscoa, os outros no dia da páscoa. Os evangelhos diferem a

respeito das pessoas que se dirigiram à tumba de Jesus. E assim por diante, as diferenças

são inúmeras. Os scholars cristãos admitem isso, e se defendem alegando que essas

diferenças são acidentais ao mais importante. Shabbetai Tzvi, no séc. 17, alegou ser o

messias judeu, e muitos judeus creram nele, mas depois, capturado e intimidado por

autoridades muçulmanas, ele se converteu ao islã; e centenas de famílias se converteram

com ele. Alguns acreditaram que o Shabbetai Tzvi convertido era um sósia, e que o

verdadeiro tinha ido para o céu e voltaria para cumprir as escrituras. Mas tal não

aconteceu. Outro exemplo: Dorothy Martin, uma americana do séc. XX, alegou ela

canalizar mensagens de uma entidade extraterrestre que predizia um dilúvio. Esse

fenômeno, ligado a doutrinas da cientologia, foi estudado por um psicólogo chamado

Leon Festinger. Quando o dilúvio não ocorreu, como o Dr. Festinger previu, os adeptos

da seita de ufólogos em torno de Dorothy se tornaram ainda mais convictos de que ela

estava certa. Isso se chama dissonância cognitiva, que é o nome que se dá a quando a

realidade desautoriza ou não confirma alguma crença que as pessoas sustentam. As

pessoas vão reinterpretar de modo criativo a realidade para harmonizá-la com uma

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crença absurda. Mais um exemplo: Jack Rickman era um ministro luterano do Missouri,

e um certo dia ele anunciou aos seus seguidores que recebera uma revelação, a qual

consistia em um chamado para se observar as leis do antigo testamento, como os judeus.

Essa revelação não apenas foi bem acolhida, como despertou interesse e a admissão de

judeus. Mas mais tarde se descobriu que Rickman abusava sexualmente de meninos

pequenos, o que perturbou os fiéis, além do que ficou evidente que ele mentia a respeito

de certas coisas; metade dos seguidores dele permaneceu mesmo assim. Sigmund Freud

já dizia, no que diz respeito ao auto-engano, todo homem é genial.

– Do mesmo modo — continuou o quarto Antonov — há dois mil anos alguns judeus

acreditaram que Jesus era o messias, e investiram nisso muito esforço e emoção, e se

tornou difícil para eles negar adiante que ele era o messias. Dissonância cognitiva.

Como justificar um messias que é morto e ignorado, em vez de trazer a paz e o reino de

Deus ao mundo? Segundo os Atos dos Apóstolos, o livro do Novo testamento, os

apóstolos foram chamados ao conselho judeu, e os fariseus debateram o que fariam com

eles, como está no capítulo 5, versículos 34 a 39: “Mas, levantando-se no conselho um

certo fariseu, chamado Gamaliel, doutor da lei, venerado por todo o povo, mandou que

por um pouco levassem para fora os apóstolos; e disse-lhes: Homens israelitas,

acautelai-vos a respeito do que haveis de fazer a estes homens, porque antes destes dias

levantou-se Teudas, dizendo ser alguém; a este se ajuntou o número de uns quatrocentos

homens; o qual foi morto, e todos os que lhe deram ouvidos foram dispersos e reduzidos

a nada. Depois deste levantou-se Judas, o galileu, nos dias do alistamento, e levou muito

povo após si; mas também este pereceu, e todos os que lhe deram ouvidos foram

dispersos. E agora digo-vos: Dai de mão a estes homens, e deixai-os, porque, se este

conselho ou esta obra é de homens, se desfará, mas, se é de Deus, não podereis desfazê-

la; para que não aconteça serdes também achados combatendo contra Deus.” Vós

cristãos usais essa passagem para inferir, diante dos judeus, que porque o vosso

movimento cresceu muito, deveis estar certos. Mas nenhum cristão realmente acredita

nisso. O que o chefe do conselho, Gamaliel, disse na passagem, “eles não estão fazendo

nada de errado, vejamos o que sucede mais adiante”, é muito significativo. Se pode

seguramente inferir que Gamaliel não acreditava que os apóstolos adorassem Jesus

como Deus, ou acreditava que os apóstolos comessem porco como os pagãos fazem, em

fez de se ater a comida kosher. Porque se ele acreditava que eles faziam essas coisas,

teria proposto que fossem mortos por idolatria.

– Há muitos não-judeus que têm trabalhos acadêmicos publicados sobre o sentido do

cristianismo, e eles creem que os primeiros seguidores de Jesus observavam a lei

judaica, a torá, como qualquer judeu. — Disse o quarto Antonov. — E muitos

indivíduos daquela época, cerca de um milhão, eram gentios que simpatizavam com o

judaísmo mas não o praticavam por ser uma disciplina complexa e difícil, por exemplo

por causa da circuncisão, uma operação dolorosa. O apóstolo Paulo, ao que tudo indica,

chegou em cena bem depois dos apóstolos e começou a pregar que não é necessário

observar a torá para entrar no cristianismo. Ele é quem introduziu a não-observância das

leis judaicas. Esse novo movimento judaico de Paulo, que não é o movimento cristão

original, ganhou hegemonia no séc. IV com Constantino, o imperador, o qual nem

sabemos se era um cristão sincero, pois alguns dizem que ele abraçou tal fé por motivos

políticos, a saber, a necessidade por dificuldades econômicas e políticas de unificar o

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império em torno de uma crença disseminada por vários lugares diferentes, e em todas

as direções, e ao mesmo tempo marginalizar adversários que não reconheceriam tal

crença como legítima. Esse cristianismo disseminado, não sendo o cristianismo judaico,

é um outro fenômeno, e portanto o movimento não continuou, mas foi interrompido e se

mostrou falso, exatamente como Gamaliel previra. Os que criam em Jesus e observavam

a circuncisão e a torá, os quais os cristãos hoje consideram os “hereges” chamados

ebionitas, esses desapareceram do mapa e da história e sobraram apenas os pagãos

convertidos por Paulo.

– O problema com o cristianismo — continuou Anthony Antonov — não é nem tanto a

ideia da segunda vinda de Cristo, que não está no Antigo Testamento mas eu admito

que é compatível de algum modo com o judaísmo, porque nós acreditamos

na ressurreição dos mortos. O problema mesmo é a ideia de que o messias deveria

morrer pelos pecados do mundo, e não simplesmente trazer o reino de Deus para o

mundo. Essa é uma ideia na qual os cristãos se apoiam com o poderoso apelo dos

pecados pessoais cometidos pelas pessoas, e do modo de ser deles redimidas. Ademais

os cristãos julgam que, desde que o Templo de Jerusalém foi destruído pelos romanos a

70 C.E., não há mais o lugar santo onde oferecermos sacrifício de animais, derramando

o seu sangue, mas os fariseus e sábios rabinos elaboraram modos alternativos de

cumprir a lei nessa circunstância. Os cristãos nos acusam de não mais seguir a lei de

Deus, porque está escrito em Levítico 17:11: “Porque a vida da carne está no sangue;

pelo que vo-lo tenho dado sobre o altar, para fazer expiação pelas vossas almas;

porquanto é o sangue que fará expiação pela alma.” Essa passagem de si, no entanto,

não implica necessariamente, e de modo tão explícito, que a reparação pelos pecados

sempre ocorre pelo derramamento de sangue. É comum aos cristãos, começando por

Paulo, o citar erroneamente a tanach, a bíblia do Antigo Testamento. Paulo disse, em

Romanos cap. 11, versículo 26: “E assim todo o Israel será salvo, como está escrito: De

Sião virá o Libertador, e desviará de Jacó as impiedades”. Mas a passagem que ele

cita, Isaías 59:20, diz: “E virá um Redentor a Sião e aos que em Jacó se converterem da

transgressão, diz o Senhor”. O antigo testamento diz “a Sião”, Paulo diz “de Sião”. Sião

é uma fortaleza montanhosa de Jerusalém, centro do culto judeu. A nossa bíblia judaica

diz que o redentor virá a Sião, a bíblia cristã, citando a nossa errado, diz que o redentor

virá de Sião. A nossa bíblia, na mesma passagem, diz que o redentor virá para aqueles

que se converterem da transgressão, mas Paulo cita errado dizendo que o redentor virá e

desviará de Jacó as impiedades. Não, no Antigo Testamento o termo salvação nunca

tem a ver com uma liberação espiritual, mas com uma libertação de perigo físico ou

político, uma exegese a esse respeito não pode ocasionar controvérsia. E se é esse o

caso, o cristianismo só pode parecer suspeito aos olhos daqueles judeus que ouviram a

pregação de Paulo a respeito de o messias ter como propósito salvar sobretudo

espiritualmente, sem trazer o reino definitivo de Deus na terra. A passagem em Levítico

a respeito da reparação por sangue é a única que os missionários cristãos tentam usar em

favor da ideia de Jesus como oferta sacrificial, e da cessação dos sacrifícios pelos judeus

como prova de que a religião judaica não está mais em vigor. Eles têm apenas essa

passagem isolada de Levítico e ela está fora do contexto preciso, e não aponta

claramente ao sentido que eles propõem. A passagem, tomada mais largamente com os

versos que a circundam, diz respeito unicamente a certa proibição de consumir sangue.

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– Quem estude a bíblia judaica perceberá — continuou o quarto Antonov — que a

oferta pelo pecado não era trazida ao altar sacrificial por qualquer pecado cometido, mas

somente quando o pecado cometido não era intencional, quando não era tão grave. E,

como o capítulo 5 de Levítico ilustra, uma oferta de sangue, o animal, para aqueles

destituídos de qualquer posse, podia ser substituída por uma matéria menos cara, como

uma pequena medida de farinha de trigo. Além disso, quando da dedicação do templo

de Jerusalém, o rei Salomão parece haver passado por cima, e omitido, a ideia de algum

ofertório de sangue pelos pecados dos judeus, caso caíssem na idolatria e fossem

dispersos. Ele diz simplesmente que o arrependimento deles, não alguma oferta de

sangue, deveria lhes ganhar o favor de Deus novamente. A mesma ideia, de que um

arrependimento genuíno, não essencialmente uma oferta de sangue, é necessário para a

justificação, está em 2 Crônicas 7:14: “E se o meu povo, que se chama pelo meu nome,

se humilhar, e orar, e buscar a minha face e se converter dos seus maus caminhos, então

eu ouvirei dos céus, e perdoarei os seus pecados, e sararei a sua terra.” Também no

capítulo 33 do profeta Ezequiel, é mencionado que quem quer que cesse de fazer o mal

e passe a fazer o bem, será perdoado, e não se refere aí nenhum sacrifício de sangue. E

bem outras passagens repetem tal ideia.

– Jesus é um de muitos auto-proclamados messias do seu tempo. — Disse o quarto

Antonov. — Ele ilustra que quando se muda um pouco o judaísmo, acaba-se por mudá-

lo de todo. Os seguidores dele, quando ele falhou em trazer o reino messiânico ao

mundo, conforme as profecias, tiveram de argumentar que ele era o messias assim

mesmo, e ainda por cima que de fato o messias devia sofrer muito e ser crucificado para

cumprir a sua missão. As pessoas lhes devem ter perguntado “Mas o que torna a morte

dele especial, quando tantos outros foram mortos?”. Daí deve ter surgido a ideia de que

Jesus era Deus, porque apenas a morte de Deus pode soar tão significativa. E por acaso

a bíblia, o antigo testamento, ensina que o messias iria morrer pelos pecados do mundo?

Os cristãos usam o capítulo 53 do profeta Isaías, sobre o servo sofredor que se sacrifica

pelos outros, conforme está ali retratado. Mas essa passagem de Isaías não dizia

claramente do messias, para os judeus da época, e mesmo para o apóstolo Pedro, que

rejeitava os dizeres de Jesus a respeito da necessidade de o messias sofrer e ser

assassinado. Sempre que essa realidade era mencionada por Jesus, os seus discípulos

reagiam com espanto e choque. E ainda que Jesus fosse o messias, como é que se atesta

empiricamente que ele é o messias? Os critérios mais claros dados a respeito do

messias, no Antigo Testamento (a paz universal, o interesse de todos os gentios pelo

judaísmo, o mundo utópico), são dados empíricos que comprovariam que tal ou qual

indivíduo é o messias. Mas como é que nós podemos ter certeza empírica de que Jesus

morreu pelos pecados e os reparou? Até mesmo a passagem em Isaías de que tanto os

cristãos gostam, foi traduzida erroneamente: Deveria ser pelo hebreu “ele foi

machucado das nossas transgressões” e não, como se usa, “ele foi machucado por

nossas transgressões”, como se se insinuasse uma oferta sacrificial em alternativa à

punição dos transgressores.

– A passagem do Antigo Testamento mais promissora para os cristãos é o livro do

profeta Daniel, capítulo 9. Lá é referido que o messias será assassinado, entre outras

predições. — Continuou Anthony. — Mas, e isso é comprometedor da honestidade com

que missionários cristãos interpretam tal passagem, geralmente a bíblia cristã traduz o

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“messias” na passagem com uma letra maiúscula, como a insinuar que se trata não de

um ungido, de um homem consagrado, mas do messias; entretanto, o hebreu não tem

distinção entre letras minúsculas e maiúsculas. Portanto, os cristãos são desonestos em

apresentar “messias” com o “m” maiúsculo. E ainda por cima é usado na tradução cristã

“o messias”, quando o original usa um artigo indefinido “um messias”, isto é, “um

ungido”. A intenção é propor que sem dúvida tal passagem fala de Jesus. A passagem,

na verdade, sugere dois messias preditos (conforme alguns scholars cristãos admitiram),

um após as primeiras sete semanas, cada dia significando um ano, totalizando quarenta

e nove anos, e outro após as sessenta e duas semanas seguintes, totalizando quatrocentos

e trinta e quatro anos. Esse erro não está presente na versão original da King James

Version, ao menos em parte, eu admito, mas correções ulteriores corromperam o texto.

Algumas traduções modernas, como a New American Version, traduzem igualmente o

sentido de modo correto ao menos em parte. No verso vinte e seis, do capítulo 9 de

Daniel, no original em hebraico, é dito que “o messias será cortado, e não terá nada”,

significando que perderá algo, mas as bíblias cristãs em muitos casos traduzem “o

messias será cortado, mas não por si mesmo”, procurando sugerir de modo infiel à

linguagem do hebreu, que ele seria assassinado em favor de outros.

– A ideia de muitos missionários cristãos — continuou Anthony — de que Deus, por

meio de Daniel, predisse o ano em que o messias surgiria e seria morto, parece ir contra

o bom-senso. Por passagens do Antigo Testamento, se nota uma censura de um tal

procedimento. No capítulo final de Daniel Deus lhe ordena “sela o livro!”, significando,

“não reveles esse conteúdo”. Por que Deus quereria revelar esse tipo de coisa de

antemão? Ainda que a predição no sentido cristão fosse exata, o número de anos dentro

do prazo dado por Daniel, só muito problematicamente se encaixaria com a data em que

Jesus foi morto, pois necessitaria haver uma data precisa para o começo da contagem,

para ficarmos só por aí, porque se eu começar a mencionar que Justino, o mártir,

apologeta a 165 C.E., menciona centenas de passagens do Antigo Testamento mas

nunca Daniel capítulo 9, se eu começar a apontar as muitas evidências que eu tenho,

você vai pular para trás de consternação e dúvida.

– O verdadeiro sentido de Daniel, capítulo 9, é que um certo ungido será cortado. Mas

ser cortado, para a bíblia judaica, invariavelmente significa ser cortado de comunhão

com o povo judeu por conta da iniquidade. — Continuou o quarto Antonov. — A

passagem em Daniel faz alusão a um profeta anterior, Jeremias. Ele, Jeremias,

profetizou que a Babilônia seria destruída setenta anos depois de certo evento ligado ao

exílio e captura dos judeus pelo rei Nabucodonosor. Depois os judeus retornariam para

Jerusalém. A primeira profecia, a queda do império da Babilônia, Daniel viu que se

realizou, mas a segunda, a volta dos judeus, ele viu que não se realizara. É porque ele

ansiava pela volta dos judeus que ele suplicava a Deus, na passagem, e esse é o

verdadeiro contexto do capítulo, o anseio pela volta dos judeus, o anseio por uma

clarificação a esse respeito, e não uma predição a respeito do messias. Mas, é claro, a

passagem diz que as setenta semanas, cada ano para cada dia, foram decretadas para o

cumprimento do fim das transgressões e reparação pelas iniquidades, para o

estabelecimento da retidão. Essas coisas não sucederam dentro do prazo que os cristãos

estipulam: Ainda que as setenta semanas tenham passado, com o cumprimento de

alguma profecia sobre o messias, Jesus não eliminou a iniquidade e trouxe a retidão

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eterna à terra. O anjo Gabriel informa Daniel que um príncipe ungido, que se verificou

foi o imperador Ciro, o persa, haveria de proclamar a reconstrução de Jerusalém; e

Isaías, o profeta, confirmou que Ciro foi considerado um messias aos olhos de Deus,

uma vez que o termo “messias” tem várias acepções na bíblia. O príncipe ungido

surgiria para lançar e proclamar a reconstrução de Jerusalém, como de fato ocorreu,

dando início à contagem de sete “semanas”, que são quarenta e nove anos. A

reconstrução do templo se finalizaria em sessenta e duas “semanas”, mas em tempos

turbulentos e dificultosos, o que se verificou, porque muitos impérios constrangeram os

judeus, por exemplo o selêucida à época dos macabeus, e ao fim das sessenta e duas

semanas a permanência do templo seria resistida. A discrepância entre a expectativa

frustrada inicial de Daniel, e a profecia de Jeremias é explicada pelo fato de Jeremias ter

profetizado a volta dos judeus não a partir da conquista de Jerusalém por

Nabucodonosor, mas a partir da destruição do templo, que só ocorreria anos depois da

conquista. Se a volta dos judeus realmente foi predita setenta anos após a destruição do

templo, ao momento em que o anjo Gabriel falava a Daniel, o decreto ou proclamação

de Ciro estaria à porta, quase chegando. E só através de uma tal contagem, as primeiras

sete semanas começando da proclamação de Ciro para a reconstrução, que pode a

passagem conter o sentido de uma mensagem que conforta e encoraja o profeta Daniel,

porque ele saberia da proclamação próxima. Mais adiante a passagem em Daniel refere

que esse templo reconstruído seria destruído novamente, e o ungido, que provavelmente

seria um rei, ou um sumo-sacerdote, seria cortado. Aqui faz todo o sentido que um

ungido, um messias, seja cortado, e “não tenha nada”, como refere a passagem; a

tragédia da destruição do templo é enfatizada com a menção da queda de alguém

responsável por ele. E a passagem continua com a menção de uma invasão, que se

verificou historicamente ser a dos romanos sobre Jerusalém. Essa contagem de modo

algum coincide com a contagem de alguns cristãos, que datam a proclamação para

reconstruir Jerusalém a partir de outro evento posterior referido no Antigo Testamento,

e não da proclamação de Ciro. Além disso, como eu referi, eles entendem a contagem

de um modo diferente. A destruição do templo não acontece em uma data específica,

segundo a profecia, mas é referido ligeiramente, como ocorre “depois das sessenta e

duas semanas”. A posição judaica é mais fiável, portanto.

O velho Marcondes mirou o jovem impressionado, e abobado. Não sabia o que replicar.

– Muito bem, muito bem… — balbuciou ele.

– Anthony. — Tornou o jovem.

– Ah Anthony! O senhor tem uma opinião dura de se ouvir, senhor. — Respondeu o

velho Marcondes. — Eu não sei bem o que dizer, ou como responder a cada ponto.

Mas, creia, não está abalada em nada a minha confiança no evangelho de Jesus Cristo.

Você se rirá, atribuindo a mim o slogan “a bíblia o diz, eu lhe acredito, e isso resolve a

questão”. Mas crê-me, há algo que posso opor ao que disseste.

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– O que seria? — Se riu o Sr. Antonov, o quarto deles.

– O método que escolho para replicar será a simplicidade, e entretanto não endereçarei

um ponto apenas, mas três. É melhor que endereçar milhares de pontos, e os há. A

comunidade judaica está bem familiarizada com os muitos argumentos contra o

cristianismo propugnados por brilhantes ativistas em favor da vossa religião, como o

rabino Michael Skobac. Se eu replicasse a cada um dos incontáveis argumentos

certeiros que ele propôs, eu pareceria com o protestante James White, o qual costuma

usar a arma da copiosidade. Mas isso causa enfado e confusão, quando essa copiosidade

não forma por si um sistema resumível em poucos traços marcantes. Eu também

gostaria de notar de passagem, como talvez você saiba, que o sentido no qual o sangue

derramado de Cristo salva, foi discutido mas muito mal clarificado mesmo entre

católicos, e você criticou essa necessidade sacrificial só no sentido protestante, porque

Santo Anselmo elaborou uma teoria da reparação pelos pecados na qual, em

inconformidade com o calvinismo, Cristo não recebe a punição devida aos pecadores,

mas eleva a retidão própria conforme os pecadores não puderam; em Santo Tomás não

sucede que Jesus faz qualquer reparação direta pelos pecadores, mas o seu sacrifício

possibilita que eles tomem parte na justiça de Cristo pelo contato com ele, pela

comunhão com ele como modelo e luz que testemunham (o que é referência aos

sacramentos). — Disse o velho.

– O primeiro ponto vem de que embora as más citações que você atribui aos

evangelistas possam ser toleradas por vocês, segundo o rabino Skobac, como

interpretações mais latas, as midrash, não há nenhuma indicação inequívoca de

conceitos como a Trindade, a Encarnação, etc. O cristianismo é para os judeus como o

islã é para nós católicos, uma espécie de leitura ulterior que procurou absorver e mudar

algo que já existia para outra completamente diferente, e se se quiser, para outra coisa

bizarramente diferente, para algo chocante que significa o colapso e a destruição de tudo

quanto se preza e guarda, de tudo quanto seja a tradição e o senso sadio do certo e do

errado. — Continuou o Sr. Marcondes. — E embora seja bastante compreensível que os

judeus tenham tal impressão, nem isso significa que o atual estado da religião deles não

seja problemático aos olhos deles mesmos, nem significa, como eles mesmos admitem,

que eles tenham um domínio cognitivo, intelectual, do que está se passando. Um indício

disso é que certos judeus com quem falei, não aqueles que aderiram a organizações

como “Judeus por Jesus”, não aqueles, e sim os que jamais se submeterão ao rito

batismal, certos judeus não só alegam que creem privada e informalmente em Jesus,

mas que outros como eles também o fazem. Há histórias na mídia secular, que procura

ridicularizar as comunidades hassidistas americanas, sobre como os pais judeus mantêm

as crianças ignorantes de que existem dinossauros, etc., porque isso contradiz a bíblia e

o número de dias bíblicos desde a criação, que para os judeus não são milhões ou

bilhões de anos, mas apenas milhares. Existe uma dificuldade dramática e espantosa, da

qual todas as religiões do mundo padecem mais ou menos, em dias de disseminação

relativa da informação (como vivemos agora). Como organizar essas informações, e

extrair daí as conclusões e as teses filosóficas das quais nos assegurar da nossa visão de

mundo? Por que vale a pena ser judeu, ou cristão, ou mesmo ateu?

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– Os ateus — continuou o velho — têm uma fórmula para descrever o quão absurdo é o

cristianismo: “A crença de que um zumbi-judeu cósmico pode fazer você viver para

sempre se você simbolicamente comer da carne dele e telepaticamente dizer-lhe que lhe

aceita como mestre, para que ele possa remover da sua alma uma força maligna que está

presente na humanidade porque uma mulher nascida de uma costela se deixou

convencer por uma serpente falante de que devia comer de uma árvore mágica”.Os

ateus semelhantemente demonstrarão que o fenômeno conhecido como mormonismo é

muito parecido com um delírio esquizofrênico, uma religião na qual todo tipo de

absurdo é crido, como as mágicas placas de ouro contendo a nova revelação, e uma

suposta civilização perdida na qual foi anunciado o evangelho. Sem ofensa, Steve.

– De modo algum, eu nem creio que você seja católico mesmo, não me surpreende em

nada. — Notou Steve com indiferença.

– Larry Levey — continuou o velho –, um judeu que se decepcionou com uma

experiência na organização “Judeus por Jesus”, descreveu, com escárnio, o que os

protestantes chamam “ser nascido de novo” como um tipo de experiência paralela

àquela do filme “Invasores de Corpos”. Esses exemplos mostram como é possível que

seja bem aparente para alguns o que há de bizarro em outros e em outras

religiões. Shabbetai Tzvi e os judeus que o consideraram o messias no séc. XVII, a

mulher que canalizava mensagens de extraterrestres sobre um dilúvio, tudo isso parece

bizarro; para não falar de homens, como o papa Michael de que falávamos há pouco; há

também o auto-intitulado papa Adriano VII, que pertenceu a uma organização hoje

sedevacantista, a CMRI, o qual foi expulso porque, além de chefiar a organização de

sacerdotes usando as vestes papais, ele acordava no meio da noite indivíduos que

tinham feito voto de castidade, e lhes convidava a relações homossexuais. Um outro

exemplo é o místico Willian Kamm, o qual por um tempo alegou ser o papa, e disse

também que a virgem Maria lhe tinha prometido oitenta e quatro esposas místicas, que

teriam com ele o papel de repovoar o mundo depois que uma bola de fogo o

consumisse, e uma dessas esposas seria uma moça de quinze anos que participava da

comunidade de Kamm em New South Wales, Australia. Há muitas teses, opiniões, e

crenças diferentes espalhadas pelo mundo, e certos ateus, como o Dr. Carrier, procuram

enfatizar que à época do apóstolo Paulo, no Império Romano, embora o cristianismo se

tivesse espalhado por muitos lugares, as comunidades cristãs tinham em média de vinte

a cem participantes, e o número de cristãos no mundo todo era tremendamente mais

reduzido que o número de judeus, os quais, ao séc. III, mal conseguiam compor dez por

cento do Império. O cristianismo é apenas uma seita, dentro de centenas de outras, que

foi bem sucedida porque, pela lógica, alguma dessas muitas seitas tinha de

eventualmente assumir proeminência. E por que a verdadeira seria o judaísmo, o qual

por sua vez os ateus não têm muita dificuldade em também escarnecer? Os ateus

geralmente não têm muita paciência, e se pode inferir familiaridade, com os filósofos

que criam em deidades, embora dessas filosofias tenham surgido certamente os meios

de encontrar a resposta mais responsável para tais questões. Por exemplo, o Dr. Carrier

pareceu desautorizar Aristóteles em uma conferência da Rapture Day, alegando que a

concepção científica do filósofo era bastante rudimentar. Rudimentar ou não, se sabe

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que Hiedegger aconselhou que se não lesse Nietzsche sem catorze anos prévios de

Aristóteles. Rudimentar ou não (o apego aristotélico à ciência), nós sabemos o seguinte:

Os scholars Eric Voegelin e Hans Kelsen ilustraram algo espantoso. Todos sabem que a

concepção ateística de ciência é positivista, e Voegelin (grande leitor de Aristóteles)

escreveu uma crítica severa à essa concepção; Voegelin e Kelsen vieram da mais

brilhante geração de scholars austríacos que o mundo já viu; Kelsen, um jurista e

cientista político de grande fama nos EUA, esboçou uma crítica escrita a esse trabalho

de Voegelin sobre o positivismo (o trabalho se chama The New Science of Politics),

mas algumas observações de Voegelin por escrito foram suficientes para fazer Kelsen

desistir de publicar a sua oposição. Isso significa que o positivismo, que é inseparável

do discurso e lógica dos ateus, é também uma tese absurda, algo que um estudioso

experimentado teria vergonha de defender em público. A concepção ateística do que

seja ciência é uma piada, é uma paródia da ciência. Se as religiões são aberrações,

também o ateísmo, e o agnosticismo, muito semelhantes entre si, não são saídas, mas

sintomas do problema.

– Então — continuou o velho — será que o homem está fadado a crer no absurdo? Será

que são a loucura e o erro inevitáveis de algum modo no homem? Parece ser essa a

conclusão que Manly Palmer Hall propõe no livro Os Ensinamentos Secretos de Todas

As Épocas, no qual ele mostra de modo espantoso o quanto as teses filosóficas têm de

limitadas, como se fossem veleidades pueris, o fruto de um projeto incompatível com a

natureza humana. É por causa disso, talvez, que o naturalista britânico de anos recentes,

Colin Patterson, a despeito de estar na posição mais favorável para atestar a verdade do

evolucionismo darwinista, a despeito de acusar criacionistas de abusar de suas opiniões

públicas, prefere uma postura cética, e não levar muito a sério os registros fósseis como

matéria para conclusões definitivas. Então, temos um problema: Em que acreditar?

Porque, como se sabe, toda opinião e crença pode ser escarnecida, eu posso dizer dos

ateus que se assemelham àquela seita de suicidas do Jim Jones, já que todo ateu,

sobretudo os ativistas, quer que lhes demos as mãos em suas convicções para

juntamente pularmos no mar da inexistência determinada pelo acaso, após a morte. De

fato, há algo de consideravelmente bizarro e incitador de estranhamento no ateísmo. O

que é a verdade, quando eu sei que a encontrei, uma vez que podemos tão facilmente

nos enganar? Para minha surpresa, eu me vi forçado a admitir para mim mesmo que não

há impedimentos de idade, ou mesmo, muio claramente, de conhecimento, para que se

adote uma cosmovisão. Um ateu extremamente culto como Paulo Francis, se tornou

ateu aos quatorze anos. Christopher Hitchens, o ateu falecido, se deu conta não do

ateísmo, mas de uma chocante inconsistência na visão de mundo dos religiosos quando

uma simples criança, porque a professora dissera que Deus tinha feito as árvores de cor

verde porque é cor mais amena aos nossos olhos. A sensação de que somos nós que nos

adaptamos ao mundo externo, e não o contrário, fez que ele se sentisse chocado com a

pouca percepção dos religiosos. De outro lado, uma tese do espiritista Camille

Flamarion, a de que os espíritos não retornam mais a esse mundo, passando a habitar

outros mundos, foi abandonada por ele após ele ter se assegurado dela por um tempo, e

após ter se confirmado nela com quarenta anos de estudo. Flamarion não era um idiota,

mas o fundador de um observatório astronômico francês. Também os católicos e

protestantes creem que a admissão da fé verdadeira pode ser alcançada em qualquer

idade (desde que se tenha o uso da razão), e os católicos em particular afirmam que as

crianças ainda sem o uso da razão, se batizadas, estão revestidas da fé, ou do hábito da

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fé. E ademais pode, a admissão da fé verdadeira, ser alcançada por pessoas de qualquer

origem; de fato, ainda que alguns apontem que estatisticamente as pessoas não mudem

de religião. Por que as pessoas creem? Porque elas têm a demonstração? Não, nem

mesmo os ateus alegam ter essa demonstração, mesmo Dawkins alega não poder dizer

“eu vejo com toda a certeza que não há um Deus”.

– Eu proponho para o Sr., meu caro Anthony — continuou o velho Marcondes — que o

modo com que os homens creem é o modo com que se apaixonam. Chesterton, autor a

quem Scott Fitzgerald (talvez o maior escritor americano de seu tempo) se dedicou a ler

com afinco e obsessão, Chesterton nota que se apaixonar é como ser pobre. É ser

alguém paciente, a quem algo acontece, alguém que não controla o que se lhe acontece,

como os ricos que procuram determinar o curso das suas vidas. O louco é o indivíduo

que perdeu tudo, menos a razão, porque, quem tem melhores razões que um paranoico,

quem melhor argumenta que ele? Ele que não controla a realidade em que vive, como

um pobre, ou um apaixonado, é mais são, tem mais o pé no chão. Aquele que percebe

que a realidade lhe resiste, e não se lhe dobra, aquele que percebe que é paciente, mais

que agente, tem o pé no chão. Aquele que percebe que tudo pode mudar de um

momento para o outro, que não devemos presumir de antemão o que é a regularidade,

que não sabemos porque agimos desta ou daquela maneira; aquele que percebe essas

coisas, percebe que o mundo em que vivemos se assemelha de certo modo mais a um

conto de fadas do que a conto realista, e de fato eu ouso dizer que histórias modernas da

literatura, como as que se pode verificar em um autor como Evelyn Waugh, são de tal

modo contra-intuitivas e fantásticas, inclusive algumas passagens que conheci de James

Joyce, que não nos devemos fiar muito de que conhecemos o mundo. De fato o mundo,

não apenas no seu vasto e intimidador aspecto físico, mas no seu aspecto humano, é um

grande enigma e a tentativa de abarcar esse enigma se mostrou sempre um sintoma do

mesmo. Viram uma tese e apologia do humanismo em Nietzsche, o qual ridicularizou o

humanismo; a visão dele sobre como o fiar-se no espírito e iniciativa humanos é algo

ridículo, é contraditória com a visão que a atitude mesma que ele toma encerra: Ele age,

ou agiu como um espírito criativo, como uma encarnação do humanismo. O mais

perspicaz filósofo vai ser confundido pelo abismo da realidade.

– E entretanto, de tudo isso parece certo que, a despeito de a religião ser para nós como

a pobreza a que nos submetemos involuntariamente, como o amor com que nos vemos

forçados a nos apaixonar sem o nosso consentimento, nós podemos e conseguimos

rejeitar a religião e a condição de religiosos, assim como há meios, escusos ou não, de

abandonar a pobreza, e mesmo de fazer morrer o nosso amor. — Disse o Sr. Marcondes.

— Em tais casos aquilo que nos leva a abandonar a condição de paciente, é um anseio

por controle. Imagina um jovem, de treze ou menos anos, que se apaixona por sua

colega de escola. Ele passa as noites em angustia, e ninguém sequer lhe ensinou o que

fazer. Ele não sabe por que se apaixonou, o objeto da sua paixão, a moça, ele não é

capaz de antever os pensamentos dela, o que dirá, ela é um mistério para ele. Ele não

sabe como os familiares dele verão o seu sentimento, e portanto procura escondê-lo, ele

não sabe o que ela ou a família dela dirão. Ele não sabe se é o rapaz certo, se é a hora

certa, o que afinal quer fazer com ela, uma vez que o sexo, sem mencionar a prematura

idade que têm, é algo animalesco e indigno, em si mesmo, do que ele sente. Imagine

que esse rapaz passa a achar o seu sentimento tolo e absurdo enquanto,

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simultaneamente, esse sentimento lhe revolve a alma e exaspera como um doente em

agonia. Chega o final do ano e ela, que é sua colega de escola, vai ter de se mudar para

outra cidade. Imagina só, então, o desespero que ele sente quando se aproximam os

últimos dias de aula, e pior, o último dia. Como não é terrível vê-la sorrir ao falar com

outros colegas. Ele chega em casa, paralisado com a própria dor, ele vê que é

surpreendente que alguém da sua idade seja obrigado a assumir a responsabilidade e o

testemunho de algo tão grave. Eu não exagero, mas creio que muitas pessoas se

identificariam com tal descrição, inclusive o famoso escritor Henry Miller, que se

expressou ligeiramente, e isso é compreensível, a respeito do mesmo fenômeno. O feio

e o bruto, nós nos estendemos nessas coisas sem dificuldade, nós conseguimos vê-las,

mas aquilo que é sublime, e por isso mesmo pode ser terrível, ah isso nós guardamos no

depósito de lembranças que jamais consultamos. A visão do que é sublime é a

visão simultânea de como somos insignificantes, a visão do que é grande e belo, é a

visão de como somos pequenos e “feios”. A visão de como não temos o controle

cognitivo, é a visão de que há coisas que ultrapassam em muito a nossa compreensão.

Não adianta, portanto, se argumentar contra a religião que ela é bizarra, ou contra o

cristianismo protestante que é bizarro, só há a garantia de que se está mirando o

sobrenatural, e portanto que se pode mirar essas religiões no seu fundamento, se se é

capaz de ver a própria pequenez, se se está nessa condição. E como observou John

Henry Newman, no calvinismo apenas, não na concepção católica, é evidente qual é o

status de cada alma, quem é santo e quem não é, porque isso só Deus sabe, nem

mesmo amiúde o santo sabe, porque pode haver santos que não parecem sãos (Dom

Bosco foi acusado de louco por outros padres), e pecadores que parecem santos. A

verdade religiosa, portanto, e ao que parece, é algo que é testemunhado no íntimo de

modo simultâneo a uma certa condição moral que as pessoas não podem atestar ou

verificar com facilidade, como se vissem essas realidades desde fora. E é possível

rejeitar uma verdade sublime que nós conhecemos perfeitamente no íntimo e

na consciência? É claro que sim. Retornemos ao moço apaixonado. Ele passa anos sem

ver a sua amada, e às vezes, sem querer, se distrai com a esperança ligeira de a rever. É

um grande incômodo. Sucede porém que ela torna à cidade, e à escola; eles já

envelheceram um pouco, já são mais maduros adolescentes; ele ainda nutre por ela o

mesmo sentimento, e ainda, do mesmo modo, a ama. Ainda, do mesmo modo, não

consegue se expressar. Por algum motivo ele não tomou a decisão convicta de esperar

por um sucesso com ela. Ele tem receio de como as coisas serão, dos muitos

constrangimentos que a vida prenuncia, de todas as realidades que parecem contradizer

o sentido de tal sentimento. Ele vê tal paixão, e sabe no íntimo que não apenas é real,

mas dolorosa. Entretanto, ele quer um controle sobre a vida, um controle que

necessariamente deprimiria e esvaziaria a vida; ele quer escolher a moça com quem se

ligar, ele quer se precaver e se blindar de antemão, contra o que não pode antever, ele

quer um mundo criado por ele, ele quer ser “realista” e não como os homens que vivem

um sonho acordado. Ele é covarde demais para se desviar do fracasso, portanto quando

surge a oportunidade, quando ela e ele conversam casualmente, de modo íntimo (devido

aos muitos anos de contato), e quando ela expressa que se sente pouco realizada

amorosamente, o coração dele palpita, e ele, de modo absurdo, se agarra ao menor

pretexto para a recusar. Ela engordou, ou não é a mesma pessoa que conheceu quando

menor (mas nem ele próprio acredita em tais pretextos), ela e ele, ele sente, têm destinos

diferentes e só momentaneamente ligados. A felicidade verdadeira tem um conteúdo

determinado, não se baseia na beleza dela ou nos bons sentimentos dele, mas

parafraseando Michel de Montaigne a respeito de um amigo de prenome Etienne, se

pode dizer que ele a amava “porque era ela, porque era ele!”. É assim que se fazem os

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fracassados, pela recusa em reconhecer, na grandeza alheia, a própria vulnerabilidade

e insignificância. Eu, é claro, como todo homem sou exatamente assim. Há pessoas tão

orgulhosas que não admitirão que outro tem algum conhecimento ou expertise que elas

não têm, como o jovem apaixonado, elas convencerão a si mesmas que o domínio que o

outro tem da sua disciplina não é tão grande, ou tão impressionante. Há os que esperam

o pior dos outros. Há os que, contra a própria consciência, cometem uma injustiça para

não reconhecer que erraram.

– Tudo isso se aplica a questões religiosas. — Disse o Sr. Marcondes. — Se os fanáticos

e membros de seitas que propugnaram loucuras nós julgamos severamente, é, me

parece, por não vermos em nós mesmos o nosso ridículo e orgulho, porque todos os

homens de algum modo, pela mancha do pecado original, têm certa inclinação para criar

e propor uma “verdade nova”, que não é a verdade pura e simples, e isso contra todas as

evidências. Então o meu primeiro ponto, dos três que eu queria levantar, e por causa

dele fiz todo esse rodeio, é: Eu peço que você tenha cautela no modo de ver a questão e

lembre o quanto somos todos inclinados a negar e recusar o que é bom, porque somos

maus. Eu ilustro isso do seguinte modo: O famoso Testimonium Flavianum, o relato de

Flávio Josefo sobre Jesus, segundo dizem supostamente escrito a 93 A.D., foi acusado

de falsificação, e dizem mesmo que o bispo Eusébio de Cesareia criou essa interpolação

no texto do historiador ao séc. IV, além de citar a passagem cheia do texto que

consideram duvidoso. O texto é assim: “Por esse tempo [quando Pilatos era procurador

na Judeia] vivia Jesus, um sábio, se de fato deva ser considerado um homem. Era

alguém que realizava obras surpreendentes e era um professor dos que aceitam de bom

grado a verdade. Ele conquistou muitos judeus, e muitos dos gregos. Ele era o messias.

E quando esteve diante da acusação dos principais homens dentre nós, Pilatos o

condenou à cruz, mas aqueles que já o amavam não cessaram. Ele apareceu a eles

passado o terceiro dia trazido de novo à vida, porque os profetas de Deus predisseram

essas coisas e mil outras maravilhas sobre ele. A tribo dos cristãos, assim chamada após

ele, não desapareceu até este dia”. Há quem rejeite como se referindo a esse mesmo

Jesus uma outra passagem, bem mais ligeira, em Josefo. Por outro lado, a tese de que

esse texto essencialmente corresponde ao original, com poucas interpolações ulteriores

teve muita acolhida pelos scholars, e por mais de um motivo, o principal deles é que

todos os manuscritos antigos em Josefo trazem essa passagem.

– O que você desejou ilustrar com isso? — Perguntou Anthony.

– Que Jesus deve ter feito mesmo “obras surpreendentes” entre os judeus, e que mesmo

que todo o relato dos evangelhos seja fidedigno, ainda não é contraditório com a

natureza humana que o tivessem rejeitado. Eu vejo isso não como uma negação da

teoria da dissonância cognitiva, mas como uma teoria expandida da dissonância

cognitiva. — Respondeu o velho.

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Anthony Antonov sentiu um pouco de contrariedade, mas como achava interessante

essa fala, manteve-se a ouvir.

– A desconstrução do cristianismo que você empreendeu , e esse é meu segundo ponto

— continuou o velho — foi de algum modo algo de que o próprio judaísmo foi vítima,

porque certo livro de Eric Voegelin, Order And History: Israel And Revelation, põe em

dúvida de vários modos, por meios filológicos, a exatidão e verdade do texto bíblico, e

Voegelin é um dos scholars mais intimidadores que pode haver, algo que o próprio

Kelsen admitiria, mas que também é demonstrado pelo fato de ele extrair conclusões

sutis frequentemente desde uma quantidade significativa de teses contraditórias,

mostrando que refletiu para trás e adiante tudo quanto diz. O livro está cheio de notas de

rodapé que nunca verificaremos na fonte.

– Essa segunda tese é ridícula. Qual a terceira? — Perguntou Anthony.

– A terceira é simples como as anteriores. — Disse o Sr. Marcondes. –Toda a oposição

dos judeus ao cristianismo, ao menos na atualidade, se baseia não apenas em que os

relatos do Novo Testamento não são fidedignos, mas que o cristianismo passou por uma

mutação de seita judaica para seita que admite pessoas que não observam a torá, e tal

por causa de Paulo. Os apóstolos promoviam uma variação do judaísmo, e Paulo,

entrando em um processo de contínuas pequenas alterações, e tentando indicar como

fácil o acesso ao cristianismo, deu o golpe de misericórdia no ramo cristão do judaísmo,

separando-o dessa árvore para sempre, ao ponto de alguns judeus messiânicos da

atualidade assegurarem que a Santíssima Trindade é um conceito pagão estranho à

pregação do messias. Os apóstolos, supostamente, pregavam os mandamentos de Jesus,

e Paulo, revolucionando todo o entendimento daquela seita, passou a pregar Jesus em

vez dos mandamentos de Jesus. A crença em Jesus, não a submissão à lei como aparente

na epístola de São Tiago Apóstolo, passou a ser a essência do cristianismo, para trazer

novos adeptos mais fácil. Se eu puder demonstrar que Paulo não acreditava em sola

fide, que a fé sem obras é o caminho para a salvação, a sua tese em favor de Paulo ter

criado o cristianismo, se despedaça como um castelo de cartas. De fato há muitos

indícios de que Paulo não criou todos os ritos e concepções cristãs. Por exemplo o

rabino Skobac cita o bispo Santo Irineu de Lyon e outros (que escreveu a 180 A.D.),

como tendo observado que os cristãos judaizantes se opunham a Paulo, mas o mesmo

Irineu atribui o prestígio perene de Roma não apenas a Paulo, mas a Pedro. E o mestre

de Irineu, isto é, Policarpo de Esmirna (região turca), era discípulo e aprendeu com o

apóstolo João, não com Paulo. Um sacramentário é um livro com instrução para a

realização de ritos e sacramentos. Hipólito de Roma, falecido a 235 A.D., fundou um

grupo cismático dentro da Igreja, e o sacramentário que usava, especificamente a parte

para a consagração de bispos, tem forte semelhança com o rito usado mais de um século

depois por Santo Atanásio no Egito, o que fortemente sugere, até onde me parece, que a

geração anterior à de Hipólito deve ter se baseado em um sacramentário idêntico, e essa

geração é a geração de Irineu, que vem da linhagem de João, não de Paulo. Em um

debate sobre a nova missa do séc. XX, entre o irmão Peter Dimond e William Albrecht,

foi mencionado que de dezenas de anáforas, ou cânons de missa antigos, todas têm uma

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fórmula de consagração eucarística idêntica quanto à mensagem ali identificável de

união de Cristo com a Igreja, mesmo quando o cânon tem algumas ideias heréticas,

dos monofisitas ou outros grupos. Irineu, junto a esse fato, parece indicar que há de fato

uma comunhão de fé entre todos os apóstolos e Paulo, há, como escrito por Paulo na

década de cinquenta A.D., “um Senhor, uma fé, um batismo”. Portanto se eu puder

demonstrar que Paulo cria na necessidade de se fiar nos mandamentos, e não na fé

apenas como creem os protestantes, a tese de que Paulo pregava sola fide para atrair as

pessoas, e de que ele pregava o que era estranho aos apóstolos, sofrerá um grande

abalo.

– A justificação é um veredito de absolvição, velho, não uma infusão de justiça. —

Disse Peter Antonov. — Deuteronômio 25:1: “Quando houver contenda entre alguns, e

vierem a juízo, para que os julguem, ao justo justificarão, e ao injusto condenarão”. 1

Reis 8:32: “Ouve tu, então, nos céus e age e julga a teus servos, condenando ao injusto,

fazendo recair o seu proceder sobre a sua cabeça, e justificando ao justo, rendendo-lhe

segundo a sua justiça”. 2 Crônicas 6:23: “Ouve tu, então, desde os céus, e age e julga a

teus servos, condenando ao ímpio, retribuindo o seu proceder sobre a sua cabeça; e

justificando ao justo, dando-lhe segundo a sua justiça”. Salmos 143:2: “E não entres em

juízo com o teu servo, porque à tua vista não se achará justo nenhum vivente”. Êxodo

23:7: “De palavras de falsidade te afastarás, e não matarás o inocente e o justo; porque

não justificarei o ímpio”. Jó 32:2: “E acendeu-se a ira de Eliú, filho de Baraquel, o

buzita, da família de Rão; contra Jó se acendeu a sua ira, porque se justificava a si

mesmo, mais do que a Deus”. Provérbios 17:5: “O que escarnece do pobre insulta ao

seu Criador, o que se alegra da calamidade não ficará impune”. Isaías 5:22-23: “Ai dos

que são poderosos para beber vinho, e homens de poder para misturar bebida forte; dos

que justificam ao ímpio por suborno, e aos justos negam a justiça!”. Romanos 3:19-20:

“Ora, nós sabemos que tudo o que a lei diz, aos que estão debaixo da lei o diz, para que

toda a boca esteja fechada e todo o mundo seja condenável diante de Deus. Por isso

nenhuma carne será justificada diante dele pelas obras da lei, porque pela lei vem o

conhecimento do pecado”. Gálatas 3:11: “E é evidente que pela lei ninguém será

justificado diante de Deus, porque o justo viverá pela fé”. Romanos 5:16: “E não foi

assim o dom como a ofensa, por um só que pecou. Porque o juízo veio de uma só

ofensa, na verdade, para condenação, mas o dom gratuito veio de muitas ofensas para

justificação”. Romanos 8:33-34: “Quem intentará acusação contra os escolhidos de

Deus? É Deus quem os justifica. Quem é que condena? Pois é Cristo quem morreu, ou

antes quem ressuscitou dentre os mortos, o qual está à direita de Deus, e também

intercede por nós”. Romanos 9:30-32: “Que diremos pois? Que os gentios, que não

buscavam a justiça, alcançaram a justiça? Sim, mas a justiça que é pela fé. Mas Israel,

que buscava a lei da justiça, não chegou à lei da justiça. Por quê? Porque não foi pela fé,

mas como que pelas obras da lei; pois tropeçaram na pedra de tropeço”.

– Lucas 10:29: “Ele, porém, querendo justificar-se a si mesmo, disse a Jesus: E quem é

o meu próximo?” — Conitnuou Peter. — Mateus 12:37: “Porque por tuas palavras serás

justificado, e por tuas palavras serás condenado”. Por todas essas passagens, e certos

exames feitos mesmo por católicos, muitos teólogos católicos admitem o caráter

forense, relativo a corte de justiça, da justificação, de ser considerado justo por Deus. É

o caso de Joseph Fitzmyer, professor da Catholic University of America em

Washington, D.C.; a ideia de justificação forense está em Lucas 18:9-14: “E disse

também esta parábola a uns que confiavam em si mesmos, crendo que eram justos, e

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desprezavam os outros: Dois homens subiram ao templo, para orar; um, fariseu, e o

outro, publicano. O fariseu, estando em pé, orava consigo desta maneira: Ó Deus, graças

te dou porque não sou como os demais homens, roubadores, injustos e adúlteros; nem

ainda como este publicano. Jejuo duas vezes na semana, e dou os dízimos de tudo

quanto possuo. O publicano, porém, estando em pé, de longe, nem ainda queria levantar

os olhos ao céu, mas batia no peito, dizendo: Ó Deus, tem misericórdia de mim,

pecador! Digo-vos que este desceu justificado para sua casa, e não aquele; porque

qualquer que a si mesmo se exalta será humilhado, e qualquer que a si mesmo se

humilha será exaltado”. A justificação é pela fé apenas, e não por obras. Romanos 1:16:

“Porque não me envergonho do evangelho de Cristo, pois é o poder de Deus para

salvação de todo aquele que crê; primeiro do judeu, e também do grego”. Romanos

3:20: “Por isso nenhuma carne será justificada diante dele pelas obras da lei, porque

pela lei vem o conhecimento do pecado”. Romanos 3:25-28: “Ao qual Deus propôs para

propiciação pela fé no seu sangue, para demonstrar a sua justiça pela remissão dos

pecados dantes cometidos, sob a paciência de Deus; para demonstração da sua justiça

neste tempo presente, para que ele seja justo e justificador daquele que tem fé em Jesus.

Onde está logo a jactância? É excluída. Por qual lei? Das obras? Não; mas pela lei da fé.

Concluímos, pois, que o homem é justificado pela fé sem as obras da lei”. Romanos

4:2-5: “Porque, se Abraão foi justificado pelas obras, tem de que se gloriar, mas não

diante de Deus. Pois, que diz a Escritura? Creu Abraão a Deus, e isso lhe foi imputado

como justiça. Ora, àquele que faz qualquer obra não lhe é imputado o galardão segundo

a graça, mas segundo a dívida. Mas, àquele que não pratica, mas crê naquele que

justifica o ímpio, a sua fé lhe é imputada como justiça”. Romanos 4:13-14: “Porque a

promessa de que havia de ser herdeiro do mundo não foi feita pela lei a Abraão, ou à

sua posteridade, mas pela justiça da fé. Porque, se os que são da lei são herdeiros, logo a

fé é vã e a promessa é aniquilada”. Romanos 5:1: “Tendo sido, pois, justificados pela fé,

temos paz com Deus, por nosso Senhor Jesus Cristo”. Romanos 10:4: “Porque o fim da

lei é Cristo para justiça de todo aquele que crê”. Gálatas 2:16: “Sabendo que o homem

não é justificado pelas obras da lei, mas pela fé em Jesus Cristo, temos também crido

em Jesus Cristo, para sermos justificados pela fé em Cristo, e não pelas obras da lei;

porquanto pelas obras da lei nenhuma carne será justificada”. Gálatas 3:10-11: “Todos

aqueles, pois, que são das obras da lei estão debaixo da maldição; porque está escrito:

Maldito todo aquele que não permanecer em todas as coisas que estão escritas no livro

da lei, para fazê-las. E é evidente que pela lei ninguém será justificado diante de Deus,

porque o justo viverá pela fé”. Filipenses 3:9: “E, na verdade, tenho também por perda

todas as coisas, pela excelência do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor; pelo qual

sofri a perda de todas estas coisas, e as considero como escória, para que possa ganhar a

Cristo, e seja achado nele, não tendo a minha justiça que vem da lei, mas a que vem pela

fé em Cristo, a saber, a justiça que vem de Deus pela fé”. 2 Timóteo 1:9-10: “Que nos

salvou, e chamou com uma santa vocação; não segundo as nossas obras, mas segundo o

seu próprio propósito e graça que nos foi dada em Cristo Jesus antes dos tempos dos

séculos; e que é manifesta agora pela aparição de nosso Salvador Jesus Cristo, o qual

aboliu a morte, e trouxe à luz a vida e a incorrupção pelo evangelho”.

– A justificação é uma declaração feita uma vez e para sempre, uma declaração de

absolvição, e não um processo. — Continuou Peter Antonov. — Hebreus 10:9-

10: “Então disse: Eis aqui venho, para fazer, ó Deus, a tua vontade. Tira o primeiro,

para estabelecer o segundo. Na qual vontade temos sido santificados pela oblação do

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corpo de Jesus Cristo, feita uma vez”. Hebreus 10:14: “Porque com uma só oblação

aperfeiçoou para sempre os que são santificados”. 1 Coríntios 1:30: “Mas vós sois dele,

em Jesus Cristo, o qual para nós foi feito por Deus sabedoria, e justiça, e santificação, e

redenção”. Filipenses 3:9: “E seja achado nele, não tendo a minha justiça que vem da

lei, mas a que vem pela fé em Cristo, a saber, a justiça que vem de Deus pela fé”.

– Não adianta citar a epístola de Tiago, capítulo 2:24 “Vedes então que o homem é

justificado pelas obras, e não somente pela fé”. — Continuou Peter. — Dentro do

contexto da epístola, o apóstolo Tiago concordou que a justificação é apenas pela fé, no

verso 23 do capítulo 2: “E cumpriu-se a Escritura, que diz: E creu Abraão em Deus, e

foi-lhe isso imputado como justiça, e foi chamado o amigo de Deus”. Tanto Paulo

quanto Tiago criam que a justificação é pela fé, apenas, Tiago enfatizou que a fé incita

boas obras; para Paulo ser justificado é definido como a ação de Deus ao emitir um

juízo forense, segundo o qual somos justificados e declarados inocentes quando não

somos de fato; o que Tiago chamou de ser justificado é o receber de Deus a declaração

forense de ser pessoa justa quando da demonstração externa de uma retidão já

anteriormente obtida pela justificação forense. Em um caso a justificação é salvífica, em

outro é apenas uma declaração dirigida por Deus, retoricamente, aos outros, para que

vejam a retidão do homem a quem ele justificou. Portanto a epístola de Tiago não refuta

sola fide, porque existem duas justificações, a justificação real, ou propriamente dita, e a

justificação declarada, ou exteriorizada por Deus.

– Alguns católicos dirão que, porque os protestantes distinguem a regeneração de que

falam as epístolas, da justificação, eles abrem a guarda para uma refutação; se a

justificação não regenera o homem, dirão, por que os protestantes dizem que fomos

salvos pelo banho da regeneração? — Continuou Peter Antonov. — Mas essa

abordagem de modo algum desdiz a sola fide, porque nós cremos que, apesar de a

regeneração e a justificação serem distintas, elas estão relacionadas. Efésios 2:1: “E vos

vivificou, estando vós mortos em ofensas e pecados”. Aqueles que não foram

regenerados pela ação salvífica de Deus, não as próprias obras, não podem estar vivos,

mas estão mortos no pecado, e portanto não pode o homem buscar o batismo sem a

regeneração prévia, como dizem os católicos que o batismo é que engendra a

regeneração (uma das afirmações mais contrárias à bíblia que se pode imaginar). Essa

ideia de que sem a regeneração prévia o homem não pode procurar a Deus desdiz a

intenção mesma de procurar o batismo sem uma regeneração, e portanto não é o

batismo que engendra a regeneração, isso é reforçado em Colossenses 1:21: “A vós

também, que noutro tempo éreis estranhos, e inimigos no entendimento pelas vossas

obras más, agora contudo vos reconciliou”. A justificação é a condição de quem, pela

fé, foi reconciliado com Deus sem obras, e a regeneração é quando Deus infunde os

dons espirituais gratuitamente no homem, sem o mérito do homem, como está em João

1:13: “Os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do

homem, mas de Deus”, e em 1 Coríntios 2:14: “Ora, o homem natural não compreende

as coisas do Espírito de Deus, porque lhe parecem loucura; e não pode entendê-las,

porque elas se discernem espiritualmente”, e em Atos 2:41-42: “De sorte que foram

batizados os que de bom grado receberam a sua palavra; e naquele dia agregaram-se

quase três mil almas”. Os católicos usam Tito 3:5, para referir que o batismo

regenera: “Não pelas obras de justiça que houvéssemos feito, mas segundo a sua

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misericórdia, nos salvou pela lavagem da regeneração e da renovação do Espírito

Santo”. Essa passagem não pode ser usada com eficiência porque o batismo é de fato

uma obra de justiça que se faz, e a passagem diz que não é pelas obras de justiça que se

faz, que uma pessoa é salva. De acordo com a bíblia, a única coisa que não é obra, que

não é o obrar, é a fé ou confiança, Romanos 4:5: “Mas, àquele que não pratica, mas crê

naquele que justifica o ímpio, a sua fé lhe é imputada como justiça”. A regeneração é

relacionada pela bíblia com a salvação porque a regeneração que nos leva a crer é

temporalmente próxima da fé com a qual nós somos salvos, como está em Efésios 2:5-

8: “Estando nós ainda mortos em nossas ofensas, nos vivificou juntamente com Cristo

(pela graça sois salvos), e nos ressuscitou juntamente com ele e nos fez assentar nos

lugares celestiais, em Cristo Jesus; para mostrar nos séculos vindouros as abundantes

riquezas da sua graça pela sua benignidade para conosco em Cristo Jesus. Porque pela

graça sois salvos, por meio da fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus”. Em 1 João 5:1

há a referência a alguém nascendo de novo e logo após acreditando para a salvação

própria: “Todo aquele que crê que Jesus é o Cristo, é nascido de Deus; e todo aquele

que ama ao que o gerou também ama ao que dele é nascido”.

– O senhor tirou muitas citações da manga, Peter. — Observou o Sr. Marcondes.

– Então deixa-me usar uma que os católicos gostam de usar para defender a regeneração

pelo batismo, — tornou o segundo Antonov — Atos 2:38: “E disse-lhes Pedro:

Arrependei-vos, e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo, para perdão

dos pecados; e recebereis o dom do Espírito Santo”. Mas há muitas passagens que

apontam que o modo de entender isso não é como os católicos dizem. Vocês dizem que

no séc. XVI os protestantes “inventaram” a noção mesma de justificação forense. O

teólogo metodista, Thomas Oden, e o também metodista Nick Needham, mostraram em

publicações que isso não é verdade, mas os padres da Igreja ensinaram um conceito

indistinguível de sola fide. Eles ensinaram que a justificação é algo distinto da

santificação. Clemente de Roma, padre da Igreja, Carta aos Coríntios, séc. I: “Todos

esses, portanto, foram grandemente honrados, foram engrandecidos, não por causa de si

mesmos, ou por suas obras, ou pela retidão em que se dispuseram, mas pela operação da

Vontade Dele. E nós, também, sendo chamados pela Vontade Dele em Cristo Jesus, não

somos justificados por nós mesmos, nem pela nossa própria sabedoria, ou

entendimento, ou piedade, ou obras que trabalhamos em santidade de coração; mas por

aquela fé através da qual, desde o começo, o Todo-Poderoso Deus justificou todos os

homens; para quem seja dada a glória para sempre e sempre. Amém.” Irineu de Lyon,

Contra As Heresias, séc. II: “O Senhor, portanto, não foi desconhecido de Abraão, cujo

dia este desejara ver; nem, de novo, foi o Pai do Senhor desconhecido, porque Abraão

aprendera pela Palavra do Senhor, e cria nEle; portanto, foi isso atribuído a ele pelo

Senhor como retidão da parte dele. Porque a fé para com Deus justifica uma pessoa.”

João Crisóstomo, padre da Igreja, Homilia Aos Gálatas, séc. IV: “Eles tinham uma

apreenssão mais; foi escrito ‘amaldiçoado seja todo que não continua em todas as coisas

escritas no livro da lei, realizando-as’ (Deuteronômio 27:26) […] eles disseram que

aquele que adere à fé somente é amaldiçoado, mas ele mostra que quem adere à fé,

apenas, é abençoado”.

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– A verdade — continuou Peter Antonov — é que, apesar de a salvação envolver a

regeneração, não se limita a isso, a regeneração é um pequeno componente do

fenômeno. Eu digo isso porque a expressão “ser tornado vivo em Cristo” se refere à

regeneração em Efésios 2:1-5, sobretudo por causa de outra passagem que se apresenta

como paralela e idêntica, em Colossenses 2:12-13, significando que é pela regeneração

que alguém é salvo, não pela justificação forense. Esse é um argumento católico.

Efésios 2:1-5: “E vos vivificou, estando vós mortos em ofensas e pecados, em que

noutro tempo andastes segundo o curso deste mundo, segundo o príncipe das potestades

do ar, do espírito que agora opera nos filhos da desobediência; entre os quais todos nós

também antes andávamos nos desejos da nossa carne, fazendo a vontade da carne e dos

pensamentos; e éramos por natureza filhos da ira, como os outros também. Mas Deus,

que é riquíssimo em misericórdia, pelo seu muito amor com que nos amou, estando nós

ainda mortos em nossas ofensas, nos vivificou juntamente com Cristo (pela graça sois

salvos)”. Colossenses 2:11-13: “No qual também estais circuncidados com a circuncisão

não feita por mão no despojo do corpo dos pecados da carne, pela circuncisão de Cristo;

sepultados com ele no batismo, nele também ressuscitastes pela fé no poder de Deus,

que o ressuscitou dentre os mortos. E, quando vós estáveis mortos nos pecados, e na

incircuncisão da vossa carne, vos vivificou juntamente com ele, perdoando-vos todas as

ofensas”. As passagens em Colossenses e Efésios, nós protestantes admitimos que se

referem à regeneração, e portanto, que ser regenerado é ser tornado vivo em Cristo e

que isso tem a ver com o dizer “pela graça fostes salvos”. Mas, apesar disso, nós

dizemos que tais passagens não se referem apenas à regeneração, mas a outra coisa,

como é de se esperar, também a justificação pela fé apenas. “Ser tornado vivo” não é

apenas regeneração, mas a união com Cristo no projeto salvífico pelo qual todo o mérito

da salvação cabe a ele, e nenhum a nós. A regeneração em si não é sinônimo de ser

salvo, e não se pode inferir isso tão claramente do texto, mas a regeneração como um

aspecto ou componente da salvação, isso é evidente. A regeneração é apenas o pontapé

inicial no processo de o fiel em Cristo receber o dom do arrependimento e da fé

salvífica, a partir daí a fé lhe assegura a justificação sem obras.

– Eu vos digo, como já disse — continuou Peter — a retidão de quem é salvo não é a

própria retidão, mas a de Cristo. Romanos 4:3-4: “Pois, que diz a Escritura? Creu

Abraão em Deus, e isso lhe foi imputado como justiça. Ora, àquele que faz qualquer

obra não lhe é imputado o galardão segundo a graça, mas segundo a dívida”. A crença

faz que Deus atribua à pessoa uma justiça que é de outra pessoa, a justiça de Jesus.

Como está em Filipenses 3:9: “E seja achado nele, não tendo a minha justiça que vem

da lei, mas a que vem pela fé em Cristo, a saber, a justiça que vem de Deus pela fé”.

Também uma passagem em 1 Coríntios reforça a ideia de que Cristo é a retidão do que

nele crê, 1 Coríntios 1:30: “Mas vós sois dele, em Jesus Cristo, o qual para nós foi feito

por Deus sabedoria, e justiça, e santificação, e redenção”. Em 2 Coríntios é dito que

aquele que se une a Cristo não terá contra si pecados imputados, mas será considerado

como tendo a retidão do próprio Cristo, 2 Coríntios 5:19-20: “Isto é, Deus estava em

Cristo reconciliando consigo o mundo, não lhes imputando os seus pecados; e pôs em

nós a palavra da reconciliação. De sorte que somos embaixadores da parte de Cristo,

como se Deus por nós rogasse. Rogamo-vos, pois, da parte de Cristo, que vos

reconcilieis com Deus”.

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– Embora alguns citem o evangelho de Mateus, sobre a necessidade de obedecer os

mandamentos, não nos esqueçamos — continuou ainda o segundo Antonov — temos

Paulo explicando que toda a nossa esperança é na fé, Romanos 4:5: “Mas, àquele que

não pratica, mas crê naquele que justifica o ímpio, a sua fé lhe é imputada como

justiça”, Efésios 2:8-10: “Porque pela graça sois salvos, por meio da fé; e isto não vem

de vós, é dom de Deus. Não vem das obras, para que ninguém se glorie; porque somos

feitura sua, criados em Cristo Jesus para as boas obras, as quais Deus preparou para que

andássemos nelas”. Os católicos citarão o evangelho de Lucas, Lucas 18:18-21: “E

perguntou-lhe um certo príncipe, dizendo: Bom Mestre, que hei de fazer para herdar a

vida eterna? Jesus lhe disse: Por que me chamas bom? Ninguém há bom, senão um, que

é Deus. Sabes os mandamentos: Não adulterarás, não matarás, não furtarás, não dirás

falso testemunho, honra a teu pai e a tua mãe”. É verdade que há tal passagem, mas

Jesus mais adiante exige do jovem rico mais obras, que o tal não vê com agrado. Jesus

diz, pois, que é mais fácil passar um camelo por uma agulha do que um rico entrar no

reino. Os apóstolos perguntaram, “quem, então, pode ser salvo?”. E Jesus respondeu: O

que é impossível aos homens é possível a Deus, e portanto isso significou que Deus,

apenas, seria capaz de obedecer à lei para a salvação, Jesus, apenas, faria isso, e a

retidão de Deus seria imputada ao homem que cresse nele. Gálatas 3:10-11: “Todos

aqueles, pois, que são das obras da lei estão debaixo da maldição; porque está escrito:

Maldito todo aquele que não permanecer em todas as coisas que estão escritas no livro

da lei, para fazê-las. E é evidente que pela lei ninguém será justificado diante de Deus,

porque o justo viverá pela fé”. O próprio apóstolo Tiago, que os católicos, e mesmo os

judeus, usam para proclamar que a mensagem evangélica foi corrompida (sobretudo por

nós protestantes), diz ele em Tiago 2:10: “Porque qualquer que guardar toda a lei, e

tropeçar em um só ponto, tornou-se culpado de todos”. Tomar o caminho católico, no

qual é necessário obedecer todos os mandamentos e nunca errar, é um caminho perigoso

e que leva à perdição, porque Cristo já morreu por nossos pecados, e basta se fiar com

fé na salvação e retidão dele.

– Por isso — disse Peter — mentem desavergonhadamente os que dizem que em

Romanos Paulo procurou dizer que apenas o cerimonial mosaico e a circuncisão foram

abandonados a título de “lei”, e não os mandamentos morais. Romanos 3:20: “Por isso

nenhuma carne será justificada diante dele pelas obras da lei, porque pela lei vem o

conhecimento do pecado”. Romanos 3:11-14: “Não há ninguém que entenda; não há

ninguém que busque a Deus. Todos se extraviaram, e juntamente se fizeram inúteis.

Não há quem faça o bem, não há nem um só. A sua garganta é um sepulcro aberto; com

as suas línguas tratam enganosamente; peçonha de áspides está debaixo de seus lábios;

cuja boca está cheia de maldição e amargura”. As nossas boas obras não são o que nos

justifica, mas as boas obras são a evidência de que Deus já nos absolveu pela fé.

Também citarão os católicos, 1 Coríntios 7:19: “A circuncisão é nada e a incircuncisão

nada é, mas, sim, a observância dos mandamentos de Deus”. Mas o que isso prova? O

resumo de tudo quanto eu digo é: Tudo quanto não é a confiança é obra, e a obra não vai

salvar.

– Eu entendo a sua posição. — Respondeu o velho. — Mas me diga: Você apontou que

os padres da Igreja ensinaram sola fide porque a opinião deles, sobretudo o consenso

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deles, é bastante intimidador (isso porque muitos católicos acusam a sola fide de não ter

sido pregada senão desde Lutero), não é?

– Eu apontei isso porque de fato eles pregaram sola fide. — Tornou Peter Antonov.

– Eu sei que foi por isso que você os citou, o que eu pergunto é se o consenso deles, aos

seus olhos, é algo intimidador, se é algo que não levar em consideração pode e deve ser

comprometedor. — Disse o velho. — Sim ou não?

– Diga logo o que você quer dizer! — Replicou Peter, incomodado.

– Desde que você responda com um sim ou um não, eu direi exatamente o que tenho em

mente. — Tornou o velho.

– Se o consenso deles discorda da bíblia, não é intimidador no mais mínimo, porque é a

bíblia que tem razão, não o homem. — Respondeu Peter.

– E portanto, se o consenso dos padres da Igreja está errado e contraria a bíblia, os

judeus terão boas razões para dizer que o cristianismo é falso, porque significa que

gerações de cristãos apostataram e a religião que esses homens seguiam é falsa. Então,

de fato o consenso dos padres da Igreja não intimida? — Perguntou o velho.

– Sim. — Respondeu Peter, sem conseguir pensar direito, e confundido.

– Pois bem, o Codex Sinaiticus (uma manuscrito da bíblia), muito criticado por certos

protestantes, mas escusado e defendido pelo protestante mainstream James White,

contém a Epístola de Barnabás. — Continuou o velho. — É sem dúvida um dos mais

antigos manuscritos da história da Igreja, é coisa do séc. V. Não se sabe se o

tal Barnabás é o apóstolo, ou se é algum outro indivíduo, mas o escrito diz: “Nós

descemos à água cheios de pecados e impurezas, e tornamos carregando fruto no nosso

coração”. Será que ele não quis dizer que o rito batismal é necessário para a regeneração

e para a justificação? O escrito O Pastor, de Hermas, datado comumente a 140 A.D., e

considerado valioso por Santo Irineu de Lyon, diz: “Eles necessitavam se erguer através

da água, para que pudessem se tornar vivos; porque eles não poderiam de outro modo

entrar no Reino de Deus”. Diz São Justino mártir, a 155 A.D.: “[…] eles são levados

por nós a um lugar onde há água; lá eles são nascidos de novo do mesmo tipo de

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renascimento no qual também nós renascemos […] em nome de Deus […] eles recebem

a lavagem da água. Porque Cristo disse ‘Se não renasceres, não entrarás no Reino dos

céus’. A razão para fazer isso nós aprendemos dos apóstolos”. As pessoas no séc. II

claramente entendiam João 3:5 (“se um homem não nascer de novo da água e do

Espírito, não pode entrar no Reino de Deus”), como se referindo diretamente ao batismo

sacramental. Diz Santo Irineu a 180 A.D.: ” […] dando aos apóstolos o poder da

regeneração em Deus, Ele lhes disse: ‘Ide e ensinai todas as nações, e batizai’ […]

Assim como trigo ressequido sem umidade não pode se tornar massa ou pão, também,

nós que somos muitos não podemos nos tornar um em Cristo Jesus, sem a água do

paraíso […] Nossos corpos adquirem unidade através da lavagem […] nossas almas, no

entanto, [adquirem unidade] através do espírito. Ambos [água e espírito], portanto, são

necessários”.

– São Teófilo — continuou o velho –, bispo de Antioquia, escreveu a 180 A.D.:

“Aquelas coisas que foram criadas das águas foram abençoadas por Deus, de forma a

que isso possa também ser um sinal de que o homem viria no futuro a receber

arrependimento e remissão dos pecados através da água e do banho da regeneração”.

Peter mirou o velho com horror, ao ouvir tais palavras.

– Tertuliano escreveu a 203 A.D.: “[…] é de fato prescrito que ninguém pode alcançar a

salvação sem batismo, especialmente em vista da declaração do Senhor, que diz ‘Se um

homem não nascer de novo da água não terá vida'”. — Disse o velho. — A sua grande

cegueira em falhar em compreender as escrituras, se deve a que você segue a

metodologia segundo a qual você conhece e antevê perfeitamente o contexto das

pessoas a quem São Paulo falava. 2 Coríntios 1:21-22 diz: “Ora, é Deus que faz que nós

e vocês permaneçamos firmes em Cristo. Ele nos ungiu, nos selou como sua

propriedade e pôs o seu Espírito em nossos corações como garantia do que está por vir”.

Há bastante evidência de que o selo, ou selagem, em 2 Coríntios é o batismo, como está

em O Pastor, de Hermas, escrito a 140 A.D.: “”[…] antes que o homem carregue o

nome do Filho de Deus, ele está morto. Mas quando ele recebe o selo, ele retira a

mortalidade e recebe a vida. O selo, portanto, é a água. Eles descem à água mortos, e

tornam dela vivos”. Na Segunda Epístola de Clemente de Roma aos Coríntios, escrito a

120-170 A.D., está escrito: “Para aqueles que não guardaram o selo do batismo ele diz

‘Seu verme não morrerá, e seu fogo não será amainado'”. A mesma ideia da necessidade

do batismo está em São Clemente de Alexandria, que escreveu a 202 A.D., está em

Orígenes que escreveu a 244 A.D., está em São Afraates que escreveu a 336 A.D., em

São Basílio Magno que escreveu a 355 A.D., em São Gregório de Elvira, que escreveu a

360 A.D., em São Efraim que escreveu a 366 A.D., em São Damásio que escreveu a

382 A.D., em Santo Ambrósio que escreveu a 387 A.D., em São João Crisóstomo que

escreveu a 392 A.D., eu poderia citar de cor mais quatro ou cinco padres da Igreja para

quem isso era ponto pacífico. Desejo encerrar com São Cirilo de Jerusalém que

escreveu a 350 A.D.: “Ele diz ‘se um homem não nascer de novo’ — e Ele adiciona as

palavras ‘da água e do Espírito’ — não pode entrar no Reino de Deus […] se um

homem for virtuoso nas obras, mas não receber o selo por meio da água, não pode entrar

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no Reino do Céu. É uma afirmação ousada, mas não é minha; porque foi Jesus que o

declarou”.

– Você admite — continuou o velho — que os padres da Igreja falharam em perceber

“que as obras de piedade” não aproveitam em nada para a salvação, e que o batismo é

necessariamente uma obra assim?

Silêncio.

– Toma o teu tempo, toma o teu tempo, meu filho. — Continuou o velho. — Eu lhe

farei uma pergunta, mas só daqui a alguns instantes. Eu gostaria primeiro de apontar

que certa controvérsia, entre o Papa Cornélio (falecido a 253 A.D.) e um bispo chamado

Novaciano, levou a um cisma de Novaciano. Eles brigaram a respeito do sacramento da

penitência, o que significa que este sacramento, também o batismo, os padres da Igreja

consideravam ligado à missão da Igreja na terra. Por que, diante de tantas passagens de

Paulo, os padres da Igreja ainda não criam na fé apenas, sem obras e ritos, e

sacramentos, para a salvação? Lembra do rapaz apaixonado que eu mencionei mais

cedo. Recorda que ele teve a chance de conquistar a amada, mas não o fez. O fracasso

dele, segundo me parece, não tem tanto a ver com o falhar em fazer algo, porque ele não

sabia o que fazer de todo modo. O fracasso dele adveio da tentativa de se apegar a

qualquer pretexto para negar que a amava, e quão fortemente. Houve, no entanto, a

oportunidade de conquistá-la, de se declarar; pois bem, se ele tivesse se submetido à sua

consciência e se declarado no momento propício ele se pareceria mais com Abraão ou

mais com aqueles judeus que o apóstolo João disse que criam em Cristo mas não

ousavam confessá-lo publicamente para não ser expulsos da sinagoga?

– Mais com Abraão. — Respondeu Peter Antonov.

– E se ele tivesse, como fez, se agarrado a algum pretexto para se distanciar dela, não se

pareceria mais com os judeus? — Perguntou o velho.

– Sim, de fato, me parece que ele se pareceria com eles nesse caso. — Respondeu Peter.

– Nós vimos, no entanto, que a admissão de uma paixão é a admissão da própria

insignificância, e a admissão da própria insignificância é a admissão daquilo que nos

ultrapassa. Não é essa capacidade aumentada de ver o que é bom e belo, ao passo que se

vê que se é insignificante de modo aumentado, precisamente a virtude com que os

eleitos verão a Deus na eternidade?

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– Isso é bem claro. A resposta é sim. — Disse Peter, atônito.

– Nesse sentido também a fé, que é o mirar um conteúdo doutrinal determinado com

admissão, se assemelha a admitir a paixão pela moça, porque é a paixão por uma pessoa

determinada? — Perguntou o velho.

– Sim. — Respondeu o jovem.

– A admissão de uma paixão que é sublime pode não tornar uma pessoa melhor? —

Perguntou o velho.

– De modo algum pode deixar de fazê-o. — Tornou o jovem.

– E a admissão daquela pessoa determinada por quem se tem paixão pode não tornar

uma pessoa melhor?

– De modo algum pode deixar de fazê-lo. — Tornou o jovem.

– Como pode, pois, a admissão da fé não ser simultânea à regeneração em Cristo, e

como pode haver alguma distinção entre a justificação e a regeneração, seja lógica, seja

temporal? — Perguntou o velho.

Silêncio.

– Pode alguma regeneração não coincidir logicamente com a admissão de um conteúdo

determinado? Pode a admissão de uma paixão sublime não coincidir com um conteúdo

determinado? — Perguntou o velho.

– Mas o que dizem vocês católicos? — Indagou Peter Antonov. — Que a pessoa a ser

batizada crê, mas depois do batismo é que realmente crê? Isso é absurdo.

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– Os catecúmenos tradicionalmente imploram a fé da Igreja, no primeiro milênio da

Igreja. Eles sabem o conteúdo da fé, mas não se agarram a ele, assim como é possível

estar apaixonado, mas não se agarrar à verdade disto, pois acabamos de tomar como

pressuposto que é possível negar uma paixão. A graça de se apegar a uma verdade que

nos ultrapassa e não controlamos de modo algum é sobrenatural. — Disse o velho.

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Espiritismo

– E por que “Deus” — tornou o velho, agora já profundamente interessado no caso –é

espírita?

– Ele não me falou nada a esse respeito, mas eu conclui por mim mesmo que o

catolicismo não pode ser verdadeiro, em certo sentido. Eu vou dar um exemplo: Uma

vez um padre disse-me que a água benta não é mesmo benta, que isso é só uma

convenção, uma ficção. As crenças católicas não convencem nem mesmo os seus

adeptos oficiais. — Disse Mark, contrito por contrariar o seu interlocutor.

– No séc. XIX um grupo de intelectuais da Universidade de Oxford se propôs a

revitalizar o pensamento anglicano na Inglaterra, e nisso fazer frente ao secularismo que

viçava na política e na “opinião pública”. Eles são a escola chamada Tractarianism,

nome tirado da série de escritos Tracts For The Times (Tratados para Os Tempos). Esse

movimento foi todo baseado em uma discussão dos padres do primeiro milênio da

Igreja, e de certas práticas litúrgicas da Igreja de Roma, a exemplo da literatura do

Breviário que os padres rezam. Mas também se baseava em uma clara rejeição da Igreja

Romana. Então, ainda que um expoente deles, John Henry Newman, tenha se

convertido ao catolicismo, o movimento não tinha propriamente a intenção de converter

as pessoas à minha religião; e no entanto, Newman encontrou nos seus estudos de

heresias históricas a impressão, que abalou para sempre a sua fé anglicana, de que a fé

da Igreja Católica é sempre professada com firmeza, sem se ceder em nenhum ponto,

enquanto todas as outras seitas se adequam às circunstâncias e corrompem seu sistema.

Newman é considerado um dos maiores estudiosos de todos os tempos. E ademais, o

tipo de sintoma da apostasia atual, com o qual você teve contato, apenas revela que a

predição dada à vidente Lúcia dos Santos em Fátima, Portugal, a 1917, estava correta:

“Em Portugal o dogma da fé sempre vai ser preservado etc.” Ela disse que uma grande

apostasia, aludida nessas linhas, se tornaria mais clara a 1960 e que por isso o papa

devia abrir o envelope com a continuação das palavras condensada no mencionado

“etc”. Essa apostasia, predita com muito tempo de antecedência, diz da situação atual.

Se a apostasia de fato ocorreu, e mesmo você a verificou, então Fátima está correta, e se

Fátima está correta, a Igreja Católica está correta. E ademais as epístolas do Novo

Testamento mencionam que uma certa apostasia seguramente vai ocorrer. — Disse o

velho.

– Espera só, espera só que eu já direi algo interessante. — Disse o velho. — O sistema

teológico espírita é bastante extenso, mas há poucos meios de distinguir a sua versão

ortodoxa, pois um estudo dessa religião deve apontar que não há muitas disputas

doutrinais, simultaneamente a certa liberalidade interpretativa, se bem que haja alguma

preocupação com se ser fiel ao plano original do “pentateuco” espírita, os cinco livros

da revelação. O mais importante talvez seja O Livro dos Espíritos. Nele é mencionado

que os espíritos falam com Deus, ao menos alguns deles, os que têm acesso a esferas

mais elevadas. Ao passo que certo centro espírita paulista, de São Paulo, Brasil, afirma

que Deus é um ente não-individuado, que ele não é propriamente um indivíduo, mais

uma instância inacessível, uma realidade dir-se-ia abstrata da qual as coisas emanam.

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– E daí? — Perguntou Mark. — O que isso prova? É possível, talvez, conciliar os dois

textos, e ainda que um deles estivesse errado, os indivíduos que discutem doutrinas às

vezes erram.

– Mas esse é precisamente o ponto a que eu queria chegar. — Disse o velho. — Os

espíritas de certo modo, embora tenham alguma preocupação com a sua ortodoxia,

carregam essa preocupação muito problematicamente, porque, de certo modo, não lhes

importa o erro e o acerto. Isso se vê por exemplo em que O Livro dos Espíritos

menciona, bem claramente, que o universo tem milhões de anos, mas também deixa a

entender com igual clareza que isso é o que se deve entender por conta do que a ciência

tem indicado. Não se trata, porque Alan Kardec era o primeiro a admitir que os espíritos

podem errar e de fato o fazem, não se trata de um texto infalível, mas de um texto que

apela de algum modo ao testemunho da ciência e das evidências científicas em um

sentido não-apodítico ou auto-evidente, porque nem tudo que chamamos científico o é

neste último sentido. Os trechos nO Livro dos Espíritos que aduzem e reforçam essa

impressão são numerosos. Eu não insisto na menção feita por René Guénon (autor de A

Falácia Espírita), a respeito de os relatos dos espíritos terem passado por “correções”, e

isso ter sido mencionado por um médium que de algum modo tinha consideração por

Kardec. O que reforço é, por exemplo, a menção a mundos nos quais os seres

reencarnam em corpos pouco desenvolvidos, que se vão desenvolvendo e modificando

lentamente, desde um aspecto mais rude e imperfeito, até um aspecto mais harmônico e

esteticamente melhor. Ora, o surgimento dessa ideia, estranhamente, coincide com uma

geração que sentia o impacto da publicação de A Origem das Espécies, de Charles

Darwin. É como se os espíritos estivessem aludindo, problematicamente é claro, a esse

fenômeno, e talvez tenha sido a primeira vez na história em que essa doutrina espírita

foi enunciada (a despeito de o Bezerra de Menezes ter alegado que não há nada nO

Livro dos Espíritos que ele não tivesse experimentado nas leituras clássicas). Se tem a

impressão, no caso, que Kardec contribui com os espíritos, ou que ao menos as

descobertas científicas da última hora contribuem com a comunicação dos espíritos.

– A coisa fica ainda mais complicada — continuou o velho — quando o mesmo livro

nos indica que há certas coisas que os os espíritos mais evoluídos não são capazes de

expressar aos menos evoluídos. Ficamos com a impressão de que não dá para saber se a

diferença entre um grau determinado da evolução espiritual e o seguinte (e basicamente

há infinitos graus), em termos doutrinais, é tão drástico quanto é drástica a diferença

entre ser um criacionista judeu e um darwinista roxo. A indefinição e ambiguidade que

está presente nessa conjuntura, na qual se percebe que certos espíritos erram, e se tem

de deduzir por conta própria (qual um investigador científico) o que está havendo; e o

caráter tênue e pouco definitivo de uma doutrina que aponta para o universo físico como

povoado por infinidade de mundos estranhos, aos quais muitos espíritos não têm acesso;

são elementos que apontam para um tipo bastante peculiar de religião. A religião aqui

não é mais uma crença definitiva e infalível, mas é uma espécie de complexo de

elementos que mesmo um ateu como Ludwig von Mises julgaria, a distância, um

complexo exigindo um juízo incompatível com as capacidades da razão humana. O

Alcorão, comparado com o kardecismo, é, sob muitos aspectos, de um didatismo e de

um apelo sumário acachapantes. Dado esse expansivo e impressionante sistema, que os

cânons espíritas asseguram diante dos críticos só pode ser julgado após muitos anos de

esforço e dedicação, não é de admirar que os espíritas não se preocupem muito, até

certo ponto, com o que as pessoas creem.

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– Isso é admitido até certo ponto pelos espíritas, que não há grande preocupação com o

que as pessoas acreditam. — Continuou o velho. — Naturalmente, não é assim que

funciona o cristianismo “clássico”, ao qual eles procuram se filiar de algum modo. É

certo que os espíritas chamam “fanatismo” à rejeição da sua doutrina, mas tal não tão

enfaticamente, e tal sobretudo quando julgam que a obstinação em não reconhecer

alguma verdade pessoal relacionada à teoria kardecista pode servir de bloqueio à missão

evolutiva do espírito encarnado, ou desencarnado, conforme a ocasião (porque até

mesmo o espírito desencarnado habitando uma camada fluídica pouco acima da

superfície da terra, pode estar bastante desorientado a respeito dos cânons da religião de

Kardec). O fato de que as pessoas vão e vêm pelas reencarnações reforça essa ideia,

estranha ao cristianismo, de que não se trata tanto da fé que você tem de professar, se

trata mais da experiência pela qual você tem de passar. Essa desvalorização do conteúdo

do que se acredita é reforçada de vários modos; com as alusões de um autor como Edgar

Armond às disputas doutrinais que ele insinua dividiram os primeiros séculos cristãos

nos mais diversos grupos; com o fato de a doutrina espírita ser manifestamente diferente

de tudo que viera antes, incluso a reencarnação no sentido budista (a qual um intelectual

como Luiz Gonzaga de Carvalho Neto assegura que é algo bem diferente do que os

espíritas entendem por reencarnação); por fim, com o fato de certos médiuns terem,

mais recentemente, feito contribuições à doutrina que o próprio Kardec nem suspeitara.

Eu cito por exemplo o livro de Edgard Armond chamado Exilados de Capela. Capela

teria sido o planeta de origem de certos espíritos que migraram para o planeta Terra,

onde se tornaram a humanidade que conhecemos. Essa teoria de Armond inspirou um

movimento, em boa parte fundado por uma médium chamada Tia Neiva, chamado

“Vale do Amanhecer”, que é uma espécie de retiro espiritual no qual os indivíduos

vestem trajes um tanto extravagantes e mencionam uma certa confederação alienígena

intergalática da qual Jesus Cristo seria o presidente. Um documentarista britânico disse

a uma adepta do grupo que é uma religião muito boa para alguém que gosta de se vestir,

e ela concordou. É duvidoso se isso estivesse nos planos do espiritismo original.

– Eu referi portanto como a ortodoxia do espiritismo é problemática e como eles têm, de

muitos modos, indiferença pela adesão a uma doutrina (como no cristianismo

tradicional). Também é notável a descontinuidade com toda doutrina anterior. É verdade

que o apego espírita à ideia de se submeter a uma vida terrena incompatível com a nossa

vocação intelectiva (a realização espiritual é sobretudo intelectiva) é obviamente uma

doutrina do rosacrucianismo, a doutrina Rosa-cruz enfatiza muito isso. E isso se torna

tanto mais interessante quando se repara que Alan Kardec foi membro da organização

maçônica (e no entanto, espúria às grandes lojas) chamada Ordo Templi Orientis. A

doutrina Rosa-cruz é do século XVII, pelo menos, e corresponde ao menos

nominalmente a um determinado âmbito do Rito Escocês maçom. Ainda que os

primeiros adeptos do espiritismo discordassem de esse esquema religioso ter vindo

direta ou exclusivamente do rosacrucianismo, eles teriam de concordar que as duas

visões são quase idênticas quanto ao apego à vida terrena como provação salutar. Uma

diferença entre as duas doutrinas é que a Rosa-cruz não reduz os espíritos de luz,

luciferinos, que têm apego ao intelectivo, a espíritos desencarnados. Os rosa-cruzes

realmente creem, em alguma medida com os cristãos tradicionais, que os anjos e

espíritos não-corporais pertencem a uma ordem de seres completamente diferente da

ordem humana. — Disse o Sr. Marcondes.

– Esse detalhe por si, — continuou o velho — parece tornar evidente e condensar o fato

de que o espiritismo, conforme muitos sinais disso, é uma espécie de tentativa de

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deslocar o eixo da realidade espiritual para mais perto da realidade humana e do

“conhecido”, apagando ou apontando como obscuro tudo quanto vai muito além disso,

pois até os espíritos que se diz nos influenciam, não estão em um paraíso, mas a poucos

quilômetros de distância acima de nós. O espiritismo é o fruto de uma época em que os

conceitos religiosos tradicionais soavam como nunca estranhos; o poeta dessa época,

Nietzsche, apelava para o surgimento de uma nova filosofia, de novos filósofos, para

quem a percepção direta e pessoal dos fatos , bastante indiferente àquilo que está fora de

alcance, assumiria a primazia sobre qualquer outro elemento da responsabilidade

cognitiva. Otto Maria Carpeaux, o maior erudito que jamais pisou em solo brasileiro,

afirmou ter sido o único a compreender Nietzsche, e que de fato o papel que este tomou

para si foi o de poeta da sua época, o poeta ateu que “na noite da sua loucura, antecipou

a loucura de todos nós”. Como eu defino a religião como a crença advinda de uma

revelação, e a revelação a comunicação de um ente inteligente e não humano, resta a

respeito do espiritismo a ambiguidade a respeito de ser realmente uma religião ou não,

porque a revelação em questão é recebida de espíritos humanos, não de deuses. E

ademais é uma doutrina revelada de algum modo confessadamente peneirada e

“corrigida” por aquele que a recebeu. O espiritismo, enquanto religião, é ambíguo. E

essa ambiguidade é particularmente reforçada pela sincronia do espiritismo em aderir

(ainda que problematicamente) ao evolucionismo darwinista e à ideia, também

necessariamente darwinista, de que o universo é bastante antigo. Se eu puder mostrar

que essas duas teses sincrônicas ao espiritismo são intrinsecamente subjetivistas, eu

demonstro necessariamente que o espiritismo é intrinsecamente subjetivista, e aí está a

raiz dos pontos forte e fraco dessa religião.

– Primeiro a ideia de que o universo é antigo. — Disse o Sr. Marcondes. — Se diz que a

datação por carbono é a primeira via para se demonstrar que o universo não é novo. E

que não acreditar nesse método é como não acreditar na lei da gravidade. Entretanto,

certos exames com moluscos mortos recentemente mostram que os moluscos têm três

mil anos, de acordo com a datação por carbono. E certos pinheiros de Bristlecone, na

Califórnia, através da datação por carbono são entre dois mil a três mil anos mais novos

do que o são na realidade. Até mesmo um evolucionista chamado William Stansfield

admitiu que “não há relógio radiológico confiável em absoluto para a apreensão de

períodos muito extensos”. É um fato bem admitido por todos os defensores da datação

por carbono que há “certas anomalias” nos exames feitos, mas isso eles consideram

como não-necessariamente derogatório da teoria por traz da datação. A datação por

carbono se baseia na noção de que a taxa de decadência ou diminuição do carbono nos

objetos sempre foi a mesma no correr da história; na noção de que a quantidade de

carbono na atmosfera sempre foi qual a atual; e na noção de que a teoria da coluna

geológica (que cada camada corresponde um período histórico) é correta. Todas essas

ideias são pressuposições, e no caso da coluna geológica, temos ainda o problema de

que evolucionistas em geral não o admitem, mas criacionistas como o Dr. Walt Brown

(autor do livro In The Beginning) dirão que se achou fósseis de cavalos, no Afeganistão

etc., em uma camada geológica na qual eles não deveriam estar se a coluna geológica é

verdadeira.

– Uma outra argumentação em favor de um universo antigo — continuou ele — é a

velocidade da luz. Se sabe com grande exatidão qual é a velocidade da luz, e isso é

usado para os cálculos de transmissões a satélites artificiais que, no espaço, giram em

torno da terra. Uma antena terrestre envia ondas de rádio ao satélite, e este reenvia os

sinal eletromagnético para uma segunda antena. Os cálculos usados na tecnologia de

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transmissão se utilizam de conceitos da Teoria da Relatividade, e a eficácia desse

processo denota que de fato o homem conseguiu calcular a velocidade dessas ondas.

Ora, se de fato nós conseguimos calcular a velocidade da luz, e recebemos informações

visuais de planetas e estrelas, e locais do universo bastante remotos, na forma de luz; de

acordo com os cálculos o tempo que uma determinada emissão de luz gastaria para

chegar a nós implica necessariamente que o universo tem bilhões de anos. Mas essa

proposição, embora seja compreensível, não o é de todo, uma vez que os limites do

universo, de acordo com muitas tradições cosmológicas, e com a razão humana, são

limites indeterminados, e uma especulação a respeito de por quanto tempo uma

informação se deslocou de um longínquo ponto ao outro (em uma escala que abarca

uma porção generosa do universo visível) implica necessariamente que se pode

responder com certa clareza de que modo o conjunto do universo é indeterminado, uma

vez que obviamente ele não tem um limite determinado. Mas não, não é possível dizer

de que modo o conjunto do universo é indeterminado, de modo que a especulação a

respeito do que está ocorrendo a distâncias muito longínquas, ainda que nós as vejamos,

é uma especulação fictícia, conforme os ateus proponentes de um universo antigo

admitem eles mesmos; e o ateu Christopher Hitchens chega a elogiar um monge

escolástico medieval como Guilherme de Ockham por ter afirmado que não é necessário

que as estrelas no céu que vemos estejam lá realmente.

– Também há a teoria da Pangeia — disse o Sr. Marcondes –, o continente primitivo

que deu origem aos atuais continentes. As placas tectônicas em movimento sobre o

magma terrestre necessitariam de centenas de milhares de anos para se deslocar como as

feição continentais parecem se ter deslocado. O problema com essa proposição é que ela

é relativamente recente na história, e se baseia precisamente na opinião, admitida por

todo ateu, de que as concepções científicas mudam o tempo todo, de modo que não é

possível afirmar de antemão se a teoria da Pangeia se vai manter para sempre. É

provável, mas não chega a ser certo. Uma outra proposição em favor do universo antigo

são os recifes de corais. Os corais são um grupo de animais do gênero dos cnidários, a

exemplo daquelas medusas que parecem sacos, com tranças que se locomovem de um

modo admirável; no caso dos corais, ao contrário da medusa, eles expelem ou segregam

um “exoesqueleto calcário” que chamamos recifes de corais; os quais, de acordo com os

cálculos de alguns, fundados na taxa de crescimento dos corais, indicam que o planeta

terra existiu por no mínimo um milhão de anos (tomando alguns recifes em particular),

que é pouco mais de cem vezes o tempo daquele indicado pelos proponentes de um

universo novo conforme diz a bíblia. Além dessa evidência há os pinheiros de

Bristlecone, no Norte da Califórnia, pelo menos um deles; de acordo com o número de

círculos contado no corte seccional em comparação a outros exemplares de árvores, se

pode inferir que os pinheiros são de nove mil anos atrás, quando os defensores de um

universo novo estipulam que o universo teria seis mil anos aproximadamente.

– Além disso há os varves (cujo conceito, ainda que sem esse nome de origem sueca,

existe pelo menos desde meados do séc. XIX), que são camadas de sedimento

depositadas anualmente conforme o ritmo dos processos fluviais. Um certo lago japonês

chamado Suigetsu possui quarenta e cinco mil camadas de sedimentos, o que indica que

a terra tem pelo menos quarenta e cinco mil anos. Há algumas outras evidências mais

notáveis nessa linha, como por exemplo o argumento do Dr. Richard Dawkins a respeito

da natureza solar presente no livro The Greatest Show on Earth; à época de Darwin um

cientista calculou a idade do sol em um milhão de anos, o que, se correto, refutaria a

teoria darwinista, mas Dawkins procura mostrar que o conceito do sol mudou com o

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tempo, e hoje se considera que ele queima menos como um carvão e mais como um

reator nuclear (o qual por definição emite energia de um modo inteiramente distinto, de

um modo que maximiza a sua vida útil); entretanto eu quero passar aos argumentos em

favor de um universo novo. — Disse o Sr. Marcondes.

– Em certas galáxias as estrelas, quanto ao brilho, se expandem e contraem

significativamente em uma escala anual. Isso não acontece com o sol do sistema solar

onde reside a terra. Uma supernova é uma explosão de uma estrela, que deixa destroços

ou restos após uma emissão acentuada de energia; e ademais essas explosões se mantêm

visíveis por milhões de anos. Há certo estudo segundo o qual as galáxias parecidas com

a nossa Via Láctea apresentam a explosão de estrelas, chamada supernova, a cada vinte

e seis anos. Na nossa galáxia os cientistas conseguiram achar um total de apenas

duzentos e cinquenta supernovas, o que permite um cálculo de quão antiga é a nossa

galáxia, e esse cálculo resulta em seis mil e quinhentos anos aproximadamente, o

mesmo período apontado na bíblia como o começo da criação. Se os evolucionistas

estivessem certos a respeito da idade da terra, segundo essa evidência indica, nós

teríamos dezenas de milhares de supernovas na nossa galáxia, e não apenas algumas

centenas. Ademais, segundo uma projeção matemática, em bem menos de quatro

bilhões e meio de anos atrás (que é quando o universo teria começado) a lua estaria tão

próxima da terra que chegaria mesmo a atingir a terra. — Disse o Sr. Marcondes.

– Um dos argumentos contra um universo antigo é que a população humana parece ter

começado aproximadamente quando do evento no jardim do Éden descrito na bíblia.

Para que duas pessoas gerem uma população de sete bilhões e trezentos milhões, seria

necessário apenas mil e cem anos a uma taxa modesta ou corriqueira de crescimento.

Por que a população mundial não é bem maior que sete bilhões? E ademais, onde estão

os ossos dos restos mortais indo bem mais avante no passado do que seis mil anos? E,

considerando-se que toda civilização adotou a prática de enterrar os mortos, onde estão

as tumbas e os cemitérios antecedendo de muito seis mil anos de história? — Perguntou

o Sr. Marcondes.

Mark riu-se, com satisfação. E disse:

– Muito bem, vejamos agora a teoria da evolução.

– A teoria da evolução… — repetiu o Sr. Marcondes. — Segundo ela todos os seres

viventes vieram de um único, ou de uns poucos, seres primitivos. E, na mesma linha,

esses seres primitivos sofreram mudanças através de certos processos naturais. Seria

impossível aos cientistas, basicamente, estudar todas as espécies (que somam mais de

oito milhões), por isso eles selecionaram algumas delas para provar o ponto, e aplicar as

conclusões a todas elas. Um grupo de animais, chamados cetáceos (os quais são

mamíferos), serve bem para ilustrar. Entre eles está a baleia, e se acredita que todos eles

descendem de um mamífero terrestre quadrúpede, incluso a baleia. A disciplina de

anatomia comparada demonstra que as baleias fêmeas, como os mamíferos terrestres,

têm placentas onde repousam os fetos em gestação; elas têm a função de amamentar as

crias com leite; e, também, as baleias têm sangue quente, o que é algo extremamente

raro nos peixes em geral. Em vez das guelras ou branquias dos peixes, que são

“barbatanas” ou tecido móvel do seu sistema respiratório, as baleias possuem dois

pulmões perfeitamente desenvolvidos, e respiram ar. As baleias não têm narinas, ou

aberturas respiratórias como outros mamíferos, mas têm buracos respiratórios que ficam

no topo da sua cabeça. Muitas baleias têm cabelos, assim com os mamíferos terrestres.

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A estrutura óssea das baleias, dentro das barbatanas, possui exatamente a mesma

estrutura das patas de muitos mamíferos: Braço, punho, mão e dedos, com o braço

precedendo o punho possuindo uma parte de osso único e outra parte com um osso

duplo. Embora não possuam patas traseiras, as baleias possuem dois pares de ossos

traseiros muito pequenos e apagados dentro do seu tronco, e exatamente onde os ossos

das patas traseiras deveriam aparecer, com uma estrutura que se assemelha de algum

modo a patas, insinuando as mesmas junções que em outros animais apresentam os

quadris e as canelas.

– Há além disso o campo da embriologia, que é o estudo do desenvolvimento anatômico

anterior à cria ser dada à luz. — Continuou o velho. — O embrião humano se assemelha

muito com o de um golfinho. Em um estágio mais primitivo do embrião do golfinho, ele

apresenta como uma face com duas narinas, exatamente como outros mamíferos, mas

depois de desenvolvido inteiramente ele apresenta apenas uma abertura respiratória e

ela se desloca para o topo da sua cabeça.

– Os registros fósseis apresentam, ainda, uma evidência interessante: As baleias

jurássicas, chamadas basilosauros, têm esqueletos descobertos em estado relativamente

considerável de preservação. Se acredita que os basilosauros viveram há quarenta

milhões de anos atrás. Eles têm patas traseiras que, não obstante sejam incompatíveis

com a vida terrestre, são ligeiramente mais desenvolvidas e extensas relativamente às

patas das baleias atuais, as quais estão reduzidas a bem pequenos osso que não se vê

senão através de um esquema ósseo das baleias, porque esses ossos estão no interior do

tronco. Uma outra criatura, anterior ao basilosauro em dez milhões de anos, conforme se

estipula, é o maiacetus inuus, o qual, por ser sempre encontrado perto de elementos

aquáticos, se considera que era uma baleia; mas ao contrário da baleia e do basilosauro,

ele possui patas traseiras muito mais desenvolvidas e extensas, com nadadeiras (o que

se infere do formato dos ossos que correspondem aos dedos), permitindo mesmo, talvez,

uma vida terrestre. Fósseis de seres como o maiacetus abundam. — disse o Sr.

Marcondes.

– O exame de DNA nos informa que o DNA das baleias se assemelha mais ao do

hipopótamo do que ao de outras criaturas viventes. Os evolucionistas creem que as

baleias e hipopótamos evoluíram a partir de um ancestral comum. Por conta disso os

estudiosos se surpreenderam, uma vez que as baleias são carnívoras, e os hipopótamos

são em geral herbívoros. Mas, como as baleias, os hipopótamos dão à luz e amamentam

as crias debaixo da água. Os dois possuem estômagos com câmaras diversas, o que é

comum entre herbívoros, mas não entre carnívoros, uma vez que um estômago múltiplo

tem a função de auxiliar os ruminantes a digerir o pasto (e a ruminação é o processo

pelo qual o bolo alimentar parcialmente digerido volta à boca para uma nova

mastigação de reforço). E, conforme se examinou, os testículos das baleias, como os dos

hipopótamos, são internos, o que não acontece em nenhum outro mamífero que não

eles. Portanto, essas evidências fortemente sugerem um ancestral comum. E outras

considerações, advindas de fontes e disciplinas completamente independentes,

corroboram esses indícios, não raro de um modo surpreendente, e sem dúvida alguma

de um modo abundante. — Disse o Sr. Marcondes.

– O Sr. acredita na evolução, então? — Perguntou Mark, desconcertado.

– Não. — Disse o velho.

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– Por quê? — Indagou o kardecista, e quinto Antonov a debater.

– Porque há certas evidências avassaladoras contra essa tese. — Respondeu o Sr.

Marcondes. — David Berlinski, PhD, a quem não se atribui comumente “credenciais”, é

na verdade um estudioso sem qualquer denominação religiosa e que conhece e tem

próximos amigos acadêmicos de vários ramos da ciência, incluso ciências exatas e a

biologia, embora ele se tenha formado em filosofia. Ele é contrário ao darwinismo. O

primeiro fato que os evolucionistas procuram esconder é que há ateus que rejeitam a

teoria da evolução, a própria escritora Ann Coulter menciona alguns cientistas desse

tipo no livro Godless: The Church of Liberalism, além do que o Sr. Berlinski ele próprio

não tem qualquer religião determinada nem pensa em si mesmo como fundamentalista;

a sua rejeição do evolucionismo foi gradual e se baseou em um exame bastante

demorado. Portanto a ideia de que se necessita a todo custo salvaguardar a Deus com a

rejeição da teoria, é no mínimo problemática. E o mais irônico nisso tudo é que os

evolucionistas não raro são pessoas no mais alto grau incapazes de desdenhar a teoria da

evolução ou colocá-la entre aspas, mesmo que para os fins de ouvir algum argumento;

eu conheci evolucionistas literalmente histéricos, a quem a mais simples linha de

argumentação, mesmo quando indireta, mesmo quando um elo dentro de um raciocínio

maior, era deliberada e abruptamente mal-compreendida, o que é o equivalente a se

tapar os ouvidos e cantarolar. Portanto o evolucionismo é um ponto sensível aos não-

evolucionistas apenas de um modo acidental, mas eu estou ainda para achar um

evolucionista (talvez haja, mas não estou certo) que realmente queira ouvir objeções

sem se portar como uma criança levada que, perdendo no xadrez, derruba e espalha as

peças com irritação.

– Para começo de conversa — disse o velho — John von Neumann, um destacado

polímata, matemático (tanto de matemática pura quanto aplicada), físico, e membro do

Projeto Manhattan (que desenvolveu a primeira bomba atômica), acreditava que a

Teoria da Evolução é uma ideia ridícula. Ele, um dos grandes matemáticos do século

XX (junto de algumas dezenas de outros matemáticos) rejeitou a evolução e seleção

natural como origem da espécie humana e das espécies em geral. O consenso em torno

da evolução está mais ligado ao campo da biologia que ao da matemática e ao da física,

mas mesmo entre biólogos acadêmicos há algumas exceções que riem da teoria da

evolução. Por exemplo, um famoso zoólogo da Royal Society do séc. XX, e especialista

em anatomia comparada (a mesma disciplina de Thomas Huxley, o grande defensor de

Darwin), chamado David Meredith Seares Watson, afirmou ele: “A Teoria da Evolução

é uma teoria universalmente aceita não porque se pode provar que seja verdadeira, mas

porque a alternativa a ela, [chamada] criação especial, é algo claramente inacreditável”.

– Temos, é claro, os registros fósseis. — Continuou ele. — Mas os registros fósseis não

são uma fonte tão segura para conclusões. Eis o que diz um autor, Colin Patterson

(falecido curador do Mudeu Britânico de História Natural que é querido dos

evolucionistas) em correspondência com um evolucionista: “[…] as proposições sobre

ancestralidade e descendência não se aplicam ao registro fóssil. É o Archaeopteryx

[conforme sugeriu Thomas Huxley] o ancestral de todas as aves? Talvez sim, talvez

não: Não há modo algum de responder a questão. De fato é bem fácil inventar histórias

sobre como uma forma deu lugar a outra, é bem fácil achar razões para explicar as

etapas pelas quais as formas passaram favorecidas pela seleção natural. Mas tais

histórias não são parte da ciência, porque não há modo algum de testar se estão certas

ou não”. Um outro problema com os registros fósseis é que criacionistas alegam que a

chamada “coluna geológica” que indicaria uma escala geológica de muitos milhões de

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anos, na verdade é o fruto de um tipo de sedimentação abrupta ocorrida quando do

dilúvio de Noé. Se trata da velha disputa, na qual Darwin contribuiu, entre o

catastrofismo e o gradualismo. Os criacionistas explicam a coluna geológica através do

“sorteio hidráulico” (a hidráulica é a ciência dos líquidos, e a sua relação com os

corpos), mediante o qual certos tipos de animais naturalmente, por seu formato e

densidade, se depositaram durante o processo diluvial no fundo da sedimentação antes

de outros corpos. A contra-argumentação dos evolucionistas a isso é bastante específica,

e se baseia por exemplo em apontar a diferença de propriedade entre vegetais e animais

que deve ter influenciado o “sorteio hidráulico”, entre outras coisas; mas não é de todo

absurdo procurar discutir alguma tese catastrofista em geologia por um fato bastante

notório, e que se impõe com grande vantagem: Todas as civilizações antigas de que se

tem conhecimento (e eu estou falando de algumas civilizações cujo nome muitos até

desconhecem), sem exceção, mencionam um dilúvio. Se nós pusermos sujeira em um

frasco, e isso foi demonstrado com um frasco de vidro em formato verticalmente

achatado para fins de exposição; se a pusermos no frasco e mexermos ou agitarmos o

frasco, o depósito vai se fixar em camadas, exatamente como os criacionistas alegam

que aconteceu quando do dilúvio. Muitas árvores com um aspecto que deveria ser mais

recente que milhões de anos são encontradas em camadas de milhões de anos, e,

ademais, muitas árvores do registro fóssil foram encontradas de cabeça para baixo, o

que sugere o evento apontado na teoria do catastrofismo. Ademais, a teoria gradualista

foi grandemente posta em dúvida pela atividade vulcânica no sudoeste de Washington a

18 de maio de 1980, quando o Mount St. Helen explodiu e mudou drasticamente toda a

paisagem local. Para um objeto ser fossilizado ele necessita ter partes duras, como

esqueleto ou couraça, ou madeira, tem de ser enterrado rapidamente para fazer frente à

decadência, e também necessita não ser perturbado durante o longo processo de

fossilização, sendo o fóssil aquele vestígio da matéria orgânica que mantém ainda a

capacidade de aludir ao objeto vivo do qual se originou.

– Segundo o Dr. Berlinski não apenas a inexistência dos “elos perdidos” (admitida por

evolucionistas como Dawkins, o qual afirma que temos sorte por haver registros fósseis

de todo, ainda que “incompletos”), mas muitos outros detalhes a respeito dos registros

fósseis, não fazem muito sentido se o evolucionismo está certo. Berlinski analisa a

alegação darwinista de que as variações randômicas inter-geracionais e a seleção natural

contribuem para explicar a complexidade e o número enorme de espécies distintas; ele

analisa essa alegação e, tentando estabelecer algum paralelo entre isso e teorias bem-

sucedidas da física, afirma que é uma alegação absurda. Newton, no século XVII

afirmou que os corpos se atraem por meio de uma força; não qualquer força, mas uma

força que aumenta ou diminui conforme uma proporção invertida e ao quadrado. A

partir disso ele demonstrou não apenas que a órbita da terra, ou de marte, deve ser

cônica, e não circular; mas que se a órbita dos planetas é cônica, os planetas devem estar

gravitando em torno de um centro gravitacional por meio de uma proporção invertida e

ao quadrado. Esse tipo de tira teima ou “prova real” simplesmente inexiste, com essa

clareza, na teoria evolucionista, a respeito de se demonstrar que as variações randômicas

e a seleção natural contribuem ou reforçam a complexidade e o número diferente, de

uma variação alucinante, de espécies. Não há nada na teoria darwinista que explica

claramente, como Newton explicou a gravidade, as diferenças entre uma raposa e uma

medusa, entre um gato e um tubarão. — Afirmou o sr. Marcondes.

– Ademais — continuou ele — muitas especulações em ciência são, hoje, trabalhadas

através de modelos e hipóteses testadas por cálculos de computador. Isso é feito na

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física quântica, por exemplo, e em outras disciplinas como a genética. O Dr. Berlinski

assegura que a hipótese darwinista, testada matematicamente por computadores, não dá,

como em ouras áreas, resultados satisfatórios que confirmem a evolução. É por esse tipo

de coisa que o matemático von Neumann considerava a evolução uma ideia ridícula. A

Teoria da Evolução, também, quando testada laboratorialmente, não permitiu inferir que

um cachorro deixa de ser cachorro, ou uma bactéria deixa de ser bactéria. Dawkins

aponta para certos experimentos em que no curso de décadas um descendente de cães

passa a se assemelhar a uma raposa, mas isso parece reforçar mais a ideia de que todas

as especies atuais têm ancestrais da Arca de Noé, do que têm ancestrais advindos de

algum ser unicelular. O que se percebe é que cada espécie parece ter um limite para as

variações que pode sofrer. Uma ave como o tentilhão vai mudar o formato do bico, mas

não vai mudar tão drasticamente de modo a se tornar irreconhecível.

– Se tomarmos — continuou o Sr. Marcondes — o exemplo da baleia: Nós temos

originalmente um mamífero terrestre, e temos que transformá-lo em um mamífero

marinho que respira pelo ar e tem pulmões. Quais são todas as características que têm

de mudar no mamífero terrestre, mais ou menos como uma vaca, para que se torne uma

baleia? Para usar uma analogia: O que seria preciso mudar em um carro, para torná-lo

um submarino? Muita coisa tem de mudar para um mamífero terrestre se tornar uma

baleia. O tipo de pele tem de mudar; o formato do corpo, para facilitar os movimentos

de mergulho, tem de mudar; o sistema de comunicação do leite materno tem de mudar;

os olhos têm de ser protegidos; o tipo de aparato digestivo tem de mudar, porque a

comida tem de mudar etc. O número de mudanças listado para essa transformação, nos

cálculos do Dr. Berlinski, não poderia ser menor que cinquenta mil, e as mudanças

teriam necessariamente de ser interdependentes, ou consideradas como dependentes

umas das outras no seus curso, enquanto tomam lugar de geração a geração. Se há uma

quantidade tão numerosa de alterações, e necessidades que devem ser tão delicadamente

atendidas para que possam dar certo, isto é, para um mamífero terrestre se tornar uma

baleia, a que se pode atribuir que o animal tenha conseguido fazer frente a tão

numerosas restrições? Ao acaso apenas?

– Há também a questão da homologia, a semelhança, por exemplo, entre o feto do

golfinho e o feto humano. — Continuou o Sr. Marcondes. — Mas, por exemplo, a

homologia às vezes se apresenta entre espécies que estão separadas geograficamente de

um modo que diminui a probabilidade de terem tido um ancestral comum, senão um

muito primitivo que não se assemelharia a elas muito. E além disso, às vezes a

homologia parece indicar uma regularidade bastante expansiva e de algum modo

incompatível com um processo randômico, como por exemplo o fato de os mamíferos

terem geralmente cinco dedos, a despeito de uma enorme variação de formas no meio

desse grupo.

– E ademais — continuou ele — a evolução nos diz que as variações são o produto de

mutação, ou que a mutação é a força que propulsiona a evolução. Mas, e isso é bastante

sério e significativo, praticamente todas as mutações que se possa examinar

empiricamente são deletérias, ou comprometedoras da sobrevivência. Os seres viventes

são organizados pelos aminoácidos e códigos presentes no DNA, de modo que uma

mutação se deve supor que mais provavelmente destruiria ou comprometeria a

constituição desses mecanismos. Por que, exatamente, se deve pensar que as mutações

tenham impulsionado a evolução, e não lhe comprometido catastroficamente? Por quê?

As variações darwinistas são randômicas, o que significa que em boa medida não se

sabe quando vão ocorrer, e que forma vão tomar. Isso significa que uma variação de A

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para B não tem absolutamente nada a ver com a variação de B para C, a não ser sob o

aspecto da seleção natural. Os matemáticos chamariam isso de “uma variável

randômica”; e essa variável randômica, não se sabe claramente por que, deu origem às

mais diversas e belas formas que se possa imaginar. Cada episódio da história da

evolução é independente do que o precedeu e do que o sucedeu, e não obstante

permaneceu por três bilhões ou mais anos sem a mais mínima interrupção e deu origem

a várias formas que não parecem no mais mínimo carecer da nossa admiração.

– A sua fala é impressionante — disse Mark — mas eu não sou um darwinista.

– Entretanto — tornou o velho — como eu tenho apontado, essa e outras novas

científicas fizeram a cabeça da geração que codificou o espiritismo: Karl Marx dedicou

O Capital a Darwin. A geração dos primeiros espíritas é uma geração que se deixou

impressionar, assim como Nietzsche, por uma quantidade formidável de mudanças na

civilização, as quais no seu conjunto pareceram pedir uma nova religião. E essa religião

tentou insinuar uma certa flexibilidade para com essas teorias e novas concepções, as

quais não há garantia que vão perdurar por muito tempo; e nesse afã de liberalidade o

espiritismo procurou até mesmo compreender o catolicismo. Como é possível conciliar

o tipo de subjetivismo inerente à mentalidade positivista (que ignora o desconhecido e

fora de alcance como ilusório) com o catolicismo? Resposta: Através de um sistema

que, tomando alguma doutrina ou pressentimento daqui e dali, não se assemelha a

nenhum doutrina anterior e não pretende nem mesmo, nas entrelinhas (exatamente como

o ateísmo), enunciar uma fórmula definitiva. O apelo do espiritismo se deve muito mais

a que suas histórias, e romances psicografados, trazem um incentivo poderoso à

imaginação (por certa exuberância não desprovida de qualidade estética que pode ser

vista como natural mesmo às fantasias sem nexo dos sonhos), do que à capacidade de

compreender as doutrinas a si alheias com uma generosidade ou abrangência

acadêmicas. Mesmo quando essa generosidade existe nos espíritas, não se trata de um

exame filosófico das doutrinas alheias, mas de um olhar complacente sobre as doutrinas

alheias, de vez que o espiritismo é completamente diferente de tudo mais.

– Temos — continuou ele — o caso do Roger Morneau. Ele foi um escritor canadense

que se interessou por um grupo que manifestava visualmente espíritos de antepassados.

Mas, segundo relata, os espíritos assim manifestos eram, para os membros menos

externos ao grupo, falsos espíritos, na verdade demônios. Os membros mais ligados ao

coração do grupo estavam não apenas cientes disso, mas engajados com esses demônios

em certas atividades. Um dos pontos interessantes a respeito de certa entrevista do Sr.

Morneau é que ele afirma que os membros dessa organização satânica à qual pertenceu

sabiam ou assinalavam que surgiria o fenômeno espiritual chamado New Age

Movement anos antes de ele estourar e mudar a face do mundo. O testemunho do Sr.

Morneau é fidedigno por vários indícios, um deles sendo que ele se mostrou um homem

“de princípios” quando jovem, ao largar a religião católica por causa do dogma “Fora da

Igreja Católica Não Há Salvação”; e também por ter ele, mais tarde na vida, e

arrependido da participação na seita maligna, ingressado na Igreja Adventista do Sétimo

Dia, escolha que não pode parecer de modo algum motivada pela ânsia de prestígio

social ou afluência, mas fruto de uma decisão baseada no exame pessoal da bíblia. Que

esse tipo de fenômeno espiritual (a ação de demônios ou outras entidades não-

corpóreas) tenha influência sobre a sociedade, é algo bem fácil de estabelecer. Por

exemplo, o conceito de “quinta dimensão” é muito discutido por homens da New Age

como David Wilcock, se trata de uma esfera ou âmbito diferente e concomitante com as

três dimensões normais quais percebidas pelo homem. Ora, um dos episódios de uma

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série televisiva antiga do Spider Man, disponível no Youtube, se chama “Revolta na

Quinta Dimensão”, e a história do episódio fala sobre extraterrestres; exatamente como

Wilcock, que acredita não apenas em OVNIs, mas em todo tipo de atividade alienígena.

A quinta dimensão também é o nome de uma banda pop dos anos sessenta, Fifth

Dimension, cujos membros compuseram talvez o mais famoso hino da New Age, a

saber, a música Aquarius. Também o senhor Wilcock nos informa que certas mensagens

ou informações apresentadas na série de tevê chamada Startrek (Jornada nas Estrelas)

coincidem com mensagens psicografadas ou adquiridas por meios “espirituais” que

circulam no meio da New Age. “Os programas de televisão estão nos dizendo a verdade

por meio da ficção há muito tempo”, diz ele algo assim. Existem meios sociais e grupos

onde circulam crenças que muitas pessoas não são sequer capazes de admitir como

críveis; mas dirão que tais grupos não existem. É necessário um “maluco” como o

estudioso protestante Al Neal para examinar de que modo todo tipo de mensagem

esotérica está presente em todo tipo de material impresso, como propagandas ou livros,

subliminarmente. A ideia parece fantástica, a princípio, mas na verdade, quando se

pensa a respeito é meramente natural que pessoas cuja linguagem o indivíduo médio

não está preparado para entender, se comuniquem entre si em uma faixa de linguagem

mais sutil e discreta, para fins de se identificarem e comunicarem.

– Ora, se a ortodoxia cristã está certa e o espiritismo e a New Age são um fenômeno de

origem demoníaca, como demonstrá-lo? Um modo de fazer isso é usando proposições

dialéticas, as proposições que Aristóteles dizia são respeitáveis. A totalidade das

pessoas, ou a maioria, tem necessariamente uma opinião respeitável. A maioria, ateus e

não-ateus, zoroastristas e não-zoroastristas, católicos e protestantes, todos acreditam que

uma quantidade muito grande de pessoas pode se enganar e crer no que é falso.

Evidências históricas disso abundam; por exemplo: Durante parte da Idade Média

milhões de cristãos, segundo se diz, acreditavam que Maomé era cultuado como um

deus pelos muçulmanos, o que é uma ideia falsa. A coisa mais fácil é uma pessoa ser

tapeada, especialmente quando ela não tem à disposição, certas informações, porque

fora de alcance. — Disse o Sr. Marcondes.

– Um dos expoentes do socialismo utópico, o engenheiro proponente de reformas

sociais chamado Barthélemy Prosper Enfantin, recebeu um dia a visita de um indivíduo

que conhecia a filiação de Prosper Enfantin às ideias do Conde de Saint-Simon. —

Disse o velho. — Esse indivíduo lhe disse que ele, Prosper Enfantin, era um messias

que havia de encontrar uma dama messias como ele e juntos reformariam o mundo. A

princípio Prosper Enfantin despediu o homem com cautela, mas depois de mais

insistências se deixou convencer por algum tempo, terminando por desistir da coisa toda

quando a sua parceira na missão messiânica não apareceu. Do mesmo modo um grupo

de devotos espanhóis alegou certa aparição mariana no seu meio, na década de sessenta,

a ponto de chamar a atenção do arcebispo tradicionalista Marcel Lefébvre. Este o

mencionou ao bispo Ngo Dinh Thuc e sugeriu que o averiguasse. Os membros desse

grupo, em Palmar de Troya, pediram que Thuc consagrasse alguns deles como bispos, e

um desses homens (chamado Clemente Dominguez, que mais tarde, seis meses depois,

alegaria ser papa) afirmou diante do monsenhor Ngo que recebera misticamente, do

Paulo VI, a autorização para a consagração. O monsenhor Ngo, e pessoas que lhe viram

no último ano de vida asseguram que estava são e não senil (a exemplo do bispo

sedevacantista Neal Webster), acreditou nele. Por que esses fenômenos acontecem?

Pelo mesmo motivo, me parece, que o personagem de O Máscara consegue engajar

qualquer um nas suas palhaçadas, como alguém inebria ou droga o senso de realidade

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alheio. Não é de admirar que atividades demoníacas, tão frequentemente associadas à

chamada possessão, impliquem em um turbamento do discernimento das pessoas. E

esse fenômeno é tão frequente e corriqueiro; e também é tão claro que pessoas

envolvidas nisso se sentem como mulheres estupradas, humilhadas no seu orgulho

brutalmente; que deveria ser tratada com irritação a atitude de estigmatizar pessoas

vítimas de eventos assim. Também causa alguma irritação que os ateus tratem esses

assuntos como um capial espantado diante de uma metrópole, quando, segundo Santo

Agostinho a respeito da geração de cristãos do seu tempo, qualquer senhora cristã não

teme o demônio e suas manifestações, nem se espanta com essas coisas, de modo

algum. Na minha opinião, se você se filiou a alguma doutrina errônea, ou acreditou em

alguma falsa revelação privada, isso tem bem menos importância do que você pensa. O

que importa é que existe “Uma fé, um Senhor, um batismo”. Algum padre da Igreja

argumenta que se de quarenta mil israelitas saídos do Egito apenas dois viveram para

ver a Terra Prometida, o número de pessoas salvas será proporcionalmente pequeno. É o

mesmo que dizer, em analogia a isso, que de quarenta mil manifestações espirituais e

alegações de mensagens sobrenaturais, provavelmente apenas uma ou duas se

verificarão fidedignas.

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Marxismo

– Pois então Karl Marx era um existencialista? — Perguntou Mary com curiosidade.

– Como não? Sempre que nós lemos um autor, nós vemos que ele se expressa através de

universais. Mesmo aqueles cujo trabalho se aproxima mais do campo jornalístico,

geralmente têm uma certa “metodologia”, como chamam, que é um outro nome para

algum universal. O universal é aquilo que se pode dizer de mais de uma coisa, ou de

coisas que apresentam diferenças entre si. É quando nós conhecemos o universal, ou o

conjunto de noções universais com os quais um autor se expressa, que passamos a

entender os seus princípios, e ao entender os seus princípios entendemos, também,

aquilo que para ele fundamenta o seu conhecimento, o que lhe parece mais real, o que

para ele ancora todas as conclusões consecutivas e contingentes, ou mais relativas e

menos principiais. Ao se examinar o marxismo, e a vida pessoal de Marx e outros

comunistas, se percebe que, embora eles se tenham dedicado a analisar algum fenômeno

político, eles se interessaram igualmente por outras ciências, por exemplo a biologia

(Marx dedicou O Capital a Charles Darwin). Isso significa que ele cria, como todos nós,

que um conjunto determinado de princípios se aplica a ciências completamente

distintas. Ele acreditava em universais que transcendem o limite da ciência política ou

da propaganda política.

– Erram portanto, — continuou o velho — os que dizem que para Marx toda esfera da

superestrutura, toda expressão cultural, toda expressão indireta das ciências e discussões

acadêmicas, seja uma modalidade de indução à acomodação para as massas, para o

proletariado, ou para aqueles que pertencem a classes economicamente exploradas. Isso

porque, uma vez que ele acreditava em universais, ele acreditava também na capacidade

humana de apreendê-los. Ora, um universal é por definição uma proposição ou ao

menos um elemento que pode ser averiguado e clarificado indutivamente pelo dia a dia,

através da experiência e dos exemplos concretos experienciados. Os princípios, em Karl

Marx, existem, mas eles são necessariamente mais universais que os princípios da ação

política, porque ele estava ciente de universais assim. Quais são então esses princípios?

Você sabe?

– Eu penso saber. — Respondeu Mary. — Ora, Marx viveu gerações depois da

influência da escola escocesa do senso comum sobre correntes políticas. Ele mesmo

refere um autor como Victor Cousin, que afinal era um secretário do governo francês,

além de filósofo e educador. A ideia básica da escola escocesa fundada por Thomas

Reid é a de que existe um princípio supra-individual, algo que não é propriamente

testemunhado por todo e cada indivíduo, uma espécie de esfera que concentra as

experiências de diferentes gerações, ocupações profissionais, testemunhos, tradições,

uma fonte natural de preceitos e orientação da qual os homens bebem, no plano

individual, e que eles não podem, nem nunca poderão compreender completamente

como funciona ou de onde vem. Às vezes agimos instruídos por princípios que mal

conhecemos, eu bem conheço o poder do senso comum, senhor Marcondes. Eu

caminhava um dia, próxima de um sítio, e vi algumas cobras margeando o caminho. Por

isso, sem ter pensado a respeito, eu avisava todos que passavam por mim, sem sequer

ter planejado fazê-lo. A dinâmica da existência social do homem parece indicar que ele

é imerso em uma esfera supra-individual, desde cujo ponto de vista o homem parece

nem sequer possuir uma consciência separada, parece apenas servir a sociedade, e ser

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esta a sua consciência. A persistência dos movimentos sociais, inspirados no aspecto

“radical” da Revolução Francesa, antecedendo de muito a geração de Marx, parece

indicar isso. A sociedade, o princípio que transcende a nossa consciência, parecia gemer

pedindo pela instauração de um regime em benefício do proletariado. Esses movimentos

se manifestaram de muitas maneiras, através de muitas tradições, até o socialismo

científico. Um socialista utópico como Fourier propunha uma ação associativa, um

sistema de cooperativas. Um historiador como Jules Michelet propunha algo como um

princípio nacionalista que suprimiria o conflito de classes. Nos dois casos parece ter

faltado a compreensão de em que consiste a o fenômeno social. O social é quanto seja

relativo aos costumes (um ponto demonstrado por Ortega y Gasset), e portanto a

implementação de um costume é um sinal de poder. Isso significa que o plano a ser

acatado em benefício do proletariado seria aquele no qual o proletariado tivesse o poder

de efetuar e efetuasse verdadeiramente a moldagem dos costumes seguidos por todo,

porque o conjunto desses costumes é o próprio Estado. A apropriação das forças

produtivas e sua utilização adequada, como expressão da vontade proletária, seria

necessariamente a implementação de costumes. Ora, os costumes são tradições, são

elementos do senso-comum, daquilo que é relativo ao âmbito supra-individual da

realidade.

– Eu não nego — tornou o velho — que exista de fato um âmbito supra-individual que

se possa associar de algum modo à sociedade, ou ao menos àquilo que chamamos

tradição social. Isso é verdade, mas a tradição social enquanto tal não é um elemento

principial, senão de modo relativo. É preciso, por exemplo, estabelecer universais, como

princípios fundantes do conhecimento, que transcendam o plano das tradições sociais, e

se apliquem como princípio também à realidade material enquanto tal, uma vez que

Marx admitiu que o mundo físico pode ser conhecido por princípios que se aplicam a

essa ciência, e como eu apontei, se há mais de uma ciência, há princípios que que se

aplicam a todas as ciências sem distinção, ou que se aplicam à ciência em geral, ou à

ciência enquanto ciência. E para falar a verdade se trata de estabelecer não apenas o

princípio do conhecimento, para Marx, mas o princípio em sentido irrestrito, para ele.

– O que seria? — Perguntou a noiva.

– Quando lemos a literatura que Marx deixou, como os artigos do New York Tribune,

ou alguns trechos de uma obra de mais fôlego como o 18 de Brumário, frequentemente

se tem a sensação de que ele carrega em uma retórica má, suspeita e fantasmagórica. —

Continuou o velho. — A retórica é sem muito exagero a própria ciência, quando bem

praticada, ou melhor, quando verdadeiramente praticada; ela traz todos os elementos

que considero essenciais à ciência: Em primeiro lugar é uma discussão (ou

qualificação); em segundo lugar é uma linguagem; e por fim tem um movimento

compreensivo, ela vai estendendo as proposições das anteriores para as ulteriores, sem

perder o fio da meada. É por isso que a retórica, para Aristóteles, era um ramo ou

modalidade da dialética. A retórica qualifica, isso significa que estabelece universais e

logo mais as suas espécies, assim se pratica a ciência. Mas o estilo literário de Marx,

muito impressionante e informativo mesmo no plano dos artigos de jornal, conforme até

o Edmund Wilson admitiu, faz que ele sempre mova os universais em uma direção

escolhida de antemão. Por exemplo, na década de cinquenta ele opinou sobre o suicídio

dissipando como ilusão todo fator psicológico relativo a mimetismo, e insistindo no

caráter social do fenômeno. Mas, em primeiro lugar, um autor recente como Robert

Cialdini demonstrou com suficiência (dados estatísticos etc.) que o fator mimético está

relacionado ao suicídio; isto é, pessoas vão cometer suicídio mais frequentemente

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quando virem que indivíduos de perfil semelhante, em situação semelhante, cometeram

suicídio. Nós instintivamente procuramos nos assemelhar às pessoas que achamos que

se parecem conosco, não somente quanto a raça ou fenótipo, mas quanto a fatores como

sexo, idade, ou interesses. O suicídio de pessoas que se parecem conosco é como um

sinal verde para lhes imitar. Karl Marx não viu isso, ou não quis ver, mas atribuiu

suicídios a causas materiais relativas a condições materiais dos indivíduos, e por esse

aspecto apenas considerou aparentes regularidades entre o número de suicídios e a as

condições ou a estrutura social ambiente. Karl Marx podia falar retoricamente só a

pessoas que pensavam exatamente como ele, mas era tremendamente incapaz, por causa

desse tipo de vício imaginativo e teórico, de transitar por todas as faixas e direções

diferentes nas quais se pode encontrar universais.

– Você se refere a um erro particular que ele cometeu, não ao princípio que ele

postulava. — Tornou Mary. — Lembremos que ele não viveu o suficiente para

conhecer o trabalho de Sigmund Freud, ou os experimentos psicológicos de Pavlov com

animais. Além disso o desconhecer ou apequenar uma determinada faixa ou universal,

como o campo psicológico, não equivale tão claramente a dissipar todo princípio da

ciência enquanto tal.

– Sim — tornou o velho — mas o princípio do senso comum, que você apontou, do

modo que apontou, não pode ser um princípio geral; ademais causa estranhamento que

alguém que faça análises políticas apequene ou dissipe processos que são estritamente

psicológicos quando nós sabemos que na política, como no discurso dialético marxista

costumeiro, se está continuamente brincando ou flertando com a tenção entre o plano do

conhecido e do desconhecido, porque as estratégias e posicionamento no âmbito

político dão verossimilhança máxima à mentalidade kantiana, marcada como é pela

impressão de que a noção efetuada pelo juízo é a noção efetuada por um conteúdo mais

conceitual do que relativo à coisa em si. Na política a expectativa alheia, e a

compreensão da ordem da essência humana no seu aspecto psicológico, é crucialmente

importante justamente porque as ações políticas têm de ser referidas a conceituações, e

têm de ser motivadas por conceituações. Os bons políticos são bons psicólogos, assim

como o são os bons vendedores. Esses dois ofícios são amparado por tradições que

tornam explícito, de algum modo, o campo psicológico. Como justificar que Karl Marx

suprimisse o campo psicológico de modo tão sumário, sendo ele um analista político?

Ele suprimia pontos de vista, seja de Hegel ou outros autores, com tanta naturalidade, e

a sua retórica é tão naturalmente assim configurada, que é sem dúvida isso é um sinal ou

expressão do princípio da filosofia dele.

– O que pode ser esse princípio? — Perguntou Mary. — Por aquilo que você notou,

sobre a necessidade de esse princípio da filosofia dele transcender a natureza física

como objeto, eu julgaria que você refere a metafísica dele, assemelhada, segundo se diz,

à metafísica de Espinoza a que ele se referiu com aprovação certa vez.

– Eu não diria que a filosofia dele está baseada em Espinoza. — Tornou o velho. —

Engels, co-autor com Marx de vários textos, traçava uma linha pouco distinta entre o

agnosticismo e o materialismo ao qual aderia. Espinoza traçava um linha pouco distinta

entre o plano da manifestação e da infinitude. Não é bem dessa impressão que se funda

a filosofia de Marx; até porque o que Espinoza entreviu a respeito de metafísica, ao

contrário do que supôs a Madame Blavatsky (segundo creio), não está carregado de uma

taxonomia e qualificação tão completa e “sistêmica” quanto está a metafísica oriental, a

qual se apresenta, sem variações, entre hindus, chineses, e muçulmanos; porque se

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estivessem tão evidente para Marx as distinções orientais que Espinoza acidentalmente

intuiu parcialmente, se estivessem tão distintas quanto estão aos sheiks muçulmanos,

Marx estaria convicto da existência de uma revelação pronta e acabada que abarcaria

sinteticamente não apenas o plano mais “abstrato” e universal do ser, e do que

transcende o ser em sentido convencional, mas todos os estados do ser, e todas as

disciplinas e ciências, até mesmo as empíricas e experimentais. O caráter sistêmico,

relativo a várias voltas e aspectos que explicitam e revolvem em torno do mesmo ponto,

da metafísica oriental, força a fazer crer que o que Espinoza e Marx entenderam a

respeito da manifestação como apenas aparentemente distinta da infinitude, foi uma

síntese confusa, uma espécie de lampejo poético sem profundidade. Isso é

particularmente reforçado pelo fato de Espinoza não ser, de modo algum, o herdeiro de

alguma tradição filosófica orgulhosa do senso-comum religioso em cuja esteira se

moveu. Ele era um individualista quase tão radical, se me é permitido pensar em voz

alta, quanto Max Stirner, ele não dava a mínima para ortodoxias. A sua visão de mundo

era a sua visão pessoal de mundo. Essa posição torna bem pouco verossímil que ele

tivesse herdado, intactas, taxonomias e uma qualificação de círculos concêntricos e

multifacetada do que concerne à metafísica, e isso explica o fato de a sua indistinção

explícita entre o plano da infinitude e da manifestação ter sido objeto de controvérsia

quanto ao sentido que ele quis dar a essa noção, alguns chamando-o panteísta, outros

atribuindo-lhe outros nomes e intenções.

Mary inferiu, desse dizer, que o velho Marcondes havia conhecido Espinoza de segunda

mão, tendo ela mesma lido a Ética.

– Você parece estar dizendo, — observou Mary — que o princípio da filosofia de Marx

não se assemelha a um conjunto de proposições, como a filosofia oriental, o que é

absurdo.

– Na verdade o que estou dizendo, apenas, — replicou o velho — é que uma verdadeira

compreensão de metafísica, para Marx, lhe teria dado um senso prático da consistência

e existência (existência que resiste ou se faz sentir como realidade a que se não pode

opor) dos diferentes âmbitos da realidade. Um princípio metafísico saudável faria que

ele pudesse se mover retoricamente em todas as direções sem atropelar ou suprimir

insensivelmente aspectos da realidade que não pareciam confirmar as suas hipóteses e

intuições científicas. Mas você deve estar curiosa para saber o que eu entendo como

sendo o princípio epistemológico e metafísico dele. Ele enfatiza invariavelmente a ação

humana histórica, e isso faz suspeitar que a abordagem dele seja uma forma de

transcendentalismo, isto é, uma visão da realidade na qual o conhecimento é atrelado,

desde o fundamento, ao sujeito conhecedor como sujeito. Por exemplo, em David Hume

o transcendentalismo se expressa em que ele enfatiza como problemáticas as inferências

lógicas, do sujeito que conhece, a partir das impressões experienciadas. Ele atribui essas

inferências, e portanto o juízo daí decorrente a respeito do mundo objetivo, a uma

decisão ou efeito que está no sujeito. Karl Marx percebeu que a ação humana histórica

pode ser examinada, a ação do sujeito humano como autor da história, pode ser

compreendida e fundamentada. É possível, segundo ele, entender porque a Rússia

promoveu sua campanha pan-eslavista em território turco-europeu, no séc. XIX: A

Rússia precisava promover seu mercado de exportação, tomando controle sobre portos e

mercados na Anatólia então dominados pelos ingleses etc. O homem compreende esses

eventos, em parte porque ele precisa compreendê-los para agir, e todos estão seguros de

que seria loucura não agir. Essa intuição se assemelha um pouco à escola de Thomas

Reid, mas ela pode ser apresentada exatamente como Edmund Husserl o fez,

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estabelecendo a relação entre o existencialismo e a fenomenologia. Se trata,

basicamente, da ideia de que o mundo real, o mundo da vida, possui uma profundidade

epistemológica pouco experimentada e examinada, e que nesse mundo, desse mundo, o

homem extrai o seu senso de orientação e as suas noções a respeito do que é certo,

seguro, real. O conteúdo do mundo experienciado é o princípio e o fundamento do

conhecimento. Portanto, um exame a respeito do fundamento do conhecimento é um

exame fenomenológico do que fundamenta as nossas ações no mundo real, é a própria

fenomenologia. É evidente que Karl Marx percebeu isso.

– Para tornar claro o que é a fenomenologia, talvez seja útil referir a sua influência

sobre as ciências. — Disse o velho. — Na primeira metade do século XX a

fenomenologia mudou a abordagem de várias ciências, e o ponto de vista de onde a

fenomenologia saiu é responsável, segundo me parece, pela ideia enfática tanto de que

um determinado campo do saber tem de ser explicitamente delimitado, quanto de que as

proposições de uma determinada ciência, pela falha da delimitação, podem assumir um

caráter analógico inadequado. O sociólogo americano Talcott Parsons especulava sobre

as ações humanas em sociedade supondo uma invariável racionalidade por traz das

ações; o seu pupilo Harold Garfinkel, influenciado pelo austríaco chamado Alfred

Schutz (um ícone da fenomenologia), passou a supor também as ações sob a influência

da irracionalidade, ou de uma racionalidade deprimida. O efeito da fenomenologia sobre

as ciências, a volta “para o mundo da vida”, de certo modo assemelha-se ao método

dialético que Aristóteles propôs, o qual método consiste apenas em sobrepor

proposições, e descer ao plano das espécies de um termo para observar o objeto sob

facetas diversas. A diferença, conforme Husserl prometeu, é que o método

fenomenológico oferece uma fonte incomparavelmente mais rica de proposições, e de

um modo inteiramente distinto do método aristotélico, ainda que a fenomenologia não

exclua, mas ao contrário se beneficie do método aristotélico.

– Talvez o senhor queira restabelecer o fio da meada agora. — Observou Mary.

– É o que eu pretendo fazer. — Replicou o velho. — A fenomenologia é um campo do

saber que propõe uma contemplação adequada do fundamento do conhecimento. O

marxismo, como a fenomenologia, propôs um método para essa contemplação baseado

na contemplação do conteúdo específico das decisões e ações concretas que se dão nos

acontecimentos históricos. Logo, Marx é um existencialista, na medida em que o

método fenomenológico o é. Esse é o fundamento da filosofia dele, e é um princípio, na

medida em que o conteúdo de toda ciência e todo conhecimento é tornado possível pela

ação histórica do homem. Daí se depreende que a ciência e a ação histórica, assim como

as ciências objetivas e a sua apreensão subjetiva, estão ligadas ou misturadas. Na

filosofia dele isso significa não apenas que o princípio supra-individual social, na linha

de Thomas Reid, projeta sobre a investigação científica o seu caráter concreto, mas

significa também que o único tipo genuíno de ação histórica, que necessariamente tem

um caráter social, é aquele no qual a ação histórica toma uma forma consciente e

responsável. Essa ação histórica genuína, para Marx, é o fundamento do conhecimento,

e é também algo simultâneo à consciência de classe e à ação histórica dela derivada.

– Eu estou curiosa, senhor Marcondes. Talvez você possa satisfazer tal curiosidade. Se

esse princípio existencialista é o princípio marxista, qual é o princípio da metafísica

oriental, análoga à fórmula de Espinoza, que o senhor disse não ter nada a ver com a

epistemologia marxista? E qual dos dois princípios é o mais correto? — Perguntou a

Srta. Crawford.

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– O princípio na metafísica oriental — respondeu o velho — se baseia na distinção, que

é apreendida subconscientemente, de modo mais ou menos perfeito, por todo indivíduo

humano, entre as diversas camadas e estados do ser, desde o plano mais contingente e

material, até o plano que transcende toda distinção. A substância, isto é, a forma tal qual

a matéria a carrega, é uma expressão da essência ou forma que a origina e mantém.

Toda manifestação é uma expressão de princípios, todas as coisas na sua multiplicidade

têm como princípio a unidade. Se a filosofia marxista supõe alguma unidade em sentido

metafísico, como é claro, de outro lado ela supunha uma unidade hipotética ou ao

menos não tornada inteiramente explícita. O fundamento do conhecimento, e da

realidade, tanto para o existencialismo quanto para o marxismo, é um conteúdo

específico, o conteúdo do mundo da vida. Ora, é esse também o conteúdo da metafísica

oriental, mas nesta última o conjunto desse conteúdo se apresenta de modo explícito e

sintetizado. No existencialismo o conteúdo se apresenta, no dizer de Edmund Husserl,

como uma nova dimensão bem pouco explorada, uma vez que o mundo da vida ele

demonstrou com bastante minúcia ser um plano estranho à filosofia européia e ao

desenvolvimento dessa filosofia sobretudo no período moderno. No caso da metafísica

oriental o fundamento do conhecimento é contemplado em todos os seus elementos, e

de modo explícito e suficiente. No existencialismo, o fundamento do conhecimento é

uma massa indistinta de elementos obscuros, cuja explicitação e qualificação depende

de uma certa prática. O desafio de exercer essa prática, no marxismo, tomou a forma da

luta de classes. Através da posse consciente e responsável da ação histórica da parte dos

homens, uma ação histórica contrária às ilusões dos interesses de classe escusos e não-

universais, a vida do mundo se tornaria mais explícita e as pressuposições camuflando o

verdadeiro sentido da “vida do mundo” seriam dissipadas pela atualização, ou pelo

efeito, dessa ação histórica. A alienação que reside em atuar historicamente em nome de

interesses ou de noções que camuflam a realidade é um tema comum do existencialismo

herdeiro de Husserl; basta lembrar aquilo que Sartre chamava “má fé”, isto é, um

indivíduo tomar o seu papel social momentâneo por seu eu em sentido irrestrito.

– Essa parece ser, de algum modo, a perspectiva marxista. — Disse Mary. — Mas… o

que o senhor tem a opor a essa visão? E o que isso tem a ver com o que você chamou da

“má retórica” em Karl Marx?

– Se o conteúdo da “vida do mundo” é uma massa “obscura” ou pouco explícita, e a

alienação ou “má fé” de caráter social é um obstáculo a tornar explícito o conteúdo em

jogo, resta claro que a ação histórica deliberada e consciente, a ação histórica

responsável e intensificada, seria um equivalente, no marxismo, àquilo que Eric

Voegelin chamaria “um salto para dentro do ser”, um desvelamento da realidade, a

dissolução de todas as pressuposições provisórias. Um modo de compreender esse ideal

seria consultar o panegírico feito por Ortega y Gasset ao fim do livro O Que É

Filosofia?, uma palestra ao fim da qual ele procurou descrever de que modo o acúmulo

de responsabilidades torna o mundo mais explícito e realizante, porque torna mais viva

e intensa a consciência. O desenvolvimento histórico do movimento revolucionário

marxista parece trazer essa premissa como algo fundamental. Assim como Ortega y

Gasset considerava os ideais vitais ilusões a que necessariamente se deve dedicar,

também o marxismo pareceu, de novo e de novo, não se importar com o conteúdo

específico da sua “profissão de fé” ou doutrina. Eduard Bernstein, um dos fundadores

do Partido Social-Democrata alemão, estava nas graças de Engels, e no entanto é uma

figura moderada em oposição à fórmula política leninista, e Vladimir Lenin tinha boas

relações com os comunistas europeus, ao menos parte deles (o que incluiu uma das

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filhas de Marx). A escola de Frankfurt, interessada em combater a seu modo as

tendências anti-espirituais da modernidade massificada, procurou sintetizar o marxismo

e o freudianismo, ao passo que um amigo de György Lukács (o poderoso intelectual

marxista da era estalinista) chamado Enst Bloch limpou as nossas almas dizendo coisas

bastante negativas do freudianismo. As relações entre a intelectualidade liberal-radical

nas artes da Europa e americas com o comunismo é coisa notória, baste mencionar que

o escritor Ernest Hemingway pregou o alistamento pela causa político-militar da

esquerda durante a Guerra Civil Espanhola (e isso em solo americano), é preciso apenas

ler a obra memorialística de Pablo Neruda, Confesso Que Vivi, para compreender de

que modo homens como Pablo Picasso e muitos outros artistas participavam do meio

social comunista e colaboravam com ele de algum modo. Um artista como Picasso, que

teve em vida uma exposição no Louvre em sua homenagem, não é de modo algum uma

exceção à regra quanto ao caráter do prestígio comunista. Os agentes do comunismo

colaboraram com um tipo de arte decadentista (relativa à arte pela arte, uma marca de

Hemingway) que um comunista tradicional da geração de Lenin consideraria perversão

burguesa, tipo de arte que chegou mesmo a ser perseguido pelos comunistas em solo

soviético. A unidade dessas posturas contraditórias não se explica apenas por alguma

discordância ou controvérsia no meio marxista, mas a ambiguidade e o jogo dialético

malicioso com proposições doutrinais provisórias é apenas uma expressão da

necessidade de agir intensificando a ação histórica o máximo possível. A cooptação

comunista da intelectualidade européia através de dinheiro e técnicas de espionagem,

fenômeno documentado por exemplo no livro Double Lives (Stephen Koch), serviu à

intensificação do processo histórico, por isso o conteúdo particular das ideias desses

artistas não importava.

– Do mesmo modo — continuou o velho — a Nova Política Econômica de Lenin, de

acordo com o ex-espião soviético chamado Anatole Golitsyn, foi chamada “nova

sinalização” ou associada a um movimento com esse nome, não porque significasse

realmente que os soviéticos haviam se abrandado e passado a considerar valor positivo a

retomada de liberdades civis e de atividade econômica, mas, como Golitsyn apontou, o

termo “sinalização” tinha um sentido duplo, se pretendia veladamente referir a

sinalização dirigida à Europa ocidental hostil, para acalmá-la e formar nela uma opinião

favorável. Uma prova disso foi a criação da República do Extremo Oriente, um aspecto

da Mudança de Sinalização; essa suposta província renegada e separada da União

Soviética tinha na verdade oficiais militares e administradores que eram agentes

soviéticos. A República do Extremo Oriente recebeu auxílio material de países vizinhos

que haviam formado uma coalizão contra os comunistas, entre eles o Irã. Depois de a

Mudança de Sinalização ter obtido os resultados pretendidos, a República do Extremo

Oriente foi devidamente reanexada ao território comunista. A versão mais recente dessa

estratégia foi descrita, mas não de todo abarcada, no livro New lies for old, do Sr.

Anatole Golitsyin. Nesse livro ele procurou demonstrar que à década de cinquenta os

soviéticos adotaram, sob os auspícios do estudo histórico da Mudança de Sinalização,

uma estratégia geral que implicava a redução drástica, nos países domésticos ao

comunismo, dos meios policiais diretos de intervenção para a manutenção do regime; e

implicava também a ênfase aumentada na infiltração de focos sociais de resistência ao

regime, e mesmo a criação artificial de focos de resistência ao regime. O resultado disso

foi multifacetado. A falsas inimizades apresentadas ao ocidente entre países da cortina

de ferro etc., entre países sob influência comunista, acalmou e relaxou a rotina da

OTAN, dos analistas políticos de agências governamentais e da imprensa, os quais em

parte estavam na folha de pagamento dos comunistas. Os partidos comunistas europeus

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se fragmentaram e pareceram divididos, além de serem denunciados fingidamente por

líderes comunistas como Enver Hoxha (presidente albanês autor de “O Eurocomunismo

é Anticomunismo”), propiciando que antigos líderes comunistas europeus fossem

cooptados por social-democratas e passassem a ser vistos como rivais da estratégia

russa. Mas esse é apenas o aspecto doméstico, por assim dizer, do que se chamou

“Estratégia de Longo Alcance”. Organizações internacionais que antes eram controladas

pelos soviéticos, se não simplesmente criadas por eles, passaram a aderir a certos ideais

associados à chamada New Left, cujos valores frequentemente colidem com os dos

comunistas clássicos como Lenin. Estamos falando de feminismo; abortismo; direitos

para homossexuais que estranhamente não têm precedente na história humana;

ambientalismo radical; a promoção da legalização de drogas; novos padrões de

julgamento para criminosos e mesmo a promoção de valores criminosos; e por fim, a

promoção de uma forma de indiferentismo religioso, por meio de organizações como a

United Religions Initiative, que se afigura uma espécie de espiritualidade ecumênica

virtual a se insinuar obscuramente na cultura secular e midiática. Não há dúvida que as

organizações e partidos de esquerda, que muito verossimilmente têm relações mais ou

menos estreitas com a inteligência russa (baste mencionar que o líder soviético

Gorbachev foi um dos mentores da filosofia New Age que articulou a URI, United

Religions Initiative), estão promovendo essas políticas de mudança civilizacional

radical a olhos vistos. Isso foi documentado por exemplo no livro da Ann Coulter

chamado Godless: The Church of Liberalism, no qual é mostrado que organizações

públicas americanas, políticos, pessoas da comunidade acadêmica etc., estão

empenhados na defesa de valores que representam o remodelamento da sociedade e a

banição da religiosidade tradicional, em benefício de outros valores que tocam desde o

âmbito da educação sexual infantil e a educação ambiental, e vão até questões

acadêmicas e/ou controversas e problemáticas, como o evolucionismo darwinista, que

os esquerdistas desejam impor como verdadeiro, e procuram impor como paradigma

hegemônico, como ativistas por uma causa política urgente.

– Um esquerdista e ateu influente como Richard Carrier — continuou o velho

Marcondes –, a despeito do seu PhD, parece mais um provocador radical intensamente

irritado com o fato de nem todo mundo concordar com toda a agenda política da

esquerda americana, parece muito mais com isso do que com um acadêmico, alguém

que deveria ser, acima de tudo, um indivíduo assombrado por perplexas questões. Não é

de surpreender que acadêmicos, como Bart Ehrman (um agnóstico famoso) e outros, se

engajem em controvérsias políticas de modo ao menos indireto; o mais interessante a

respeito do modo de falar ou expressar de certos acadêmicos americanos com ele, é que

eles tomam esse profundo distanciamento em relação aos valores civilizacionais

tradicionais como algo natural, e nisso dão o tom e o caráter de certos meios sociais. Os

meios sociais assim são insensíveis à surpresa desses novos valores em relação ao que é

tradicional, perderam a capacidade de ver que bem recentemente na história, há bem

pouco, a intelectualidade ocidental não via a fé religiosa tradicional como uma coisa

aversiva, sobretudo não no novo sentido contemporâneo. Talvez por isso quando um

filme moderno retrata a vida de um papa famoso por cometer pecados, como Rodrigo

Borgia (Alexandre VI), o filme necessariamente insinua que a fé desse papa era uma

farsa. Só na faixa mais marginal da expressão cultural da fé se afigura ainda pensável

que um indivíduo tenha fé genuína e cometa pecados, isto é, apenas na faixa mais

marginal da sociedade contemporânea, se pode reter sem estereótipo, mas desde uma

variação de formas e acidentes, e através de tal variação, o que é um religioso; isso está,

por exemplo, no filme Eclipse Total, sobre a vida de dois poetas franceses que eram

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homossexuais, além de frequentarem prostitutas, Arthur Rimbaud e Paul Verlaine. O

filme retrata parcialmente as dificuldades de se aderir à fé religiosa e ser uma pessoa

comum sob o peso do pecado original, com loucuras e virtudes, algum vestígio de

esperança e fraquezas. Esse não é o tipo de filme que as pessoas costumam ver.

– É certo, portanto, que o movimento comunista promoveu políticas que remodularam

toda a cultura ocidental, e que com isso promoveu a si mesmo na medida em que

promoveu a sua posse do poder de agir historicamente. — Continuou o velho. — O

conteúdo dessas políticas importa pouco, e vimos mais recentemente de que modo o

movimento revolucionário se serve até mesmo da tradição religiosa como meio de agir

sobre a história, a saber, com a chamada Quarta Teoria Política promovida na Europa e

na Rússia pelo estudioso Aleksandr Dugin, o qual redigiu a constituição do Partido

Comunista Russo nos noventa, segundo me parece, mas cujo trabalho procura sintetizar

o perenialismo de René Guénon (isto é, saberes esotéricos de sheiks muçulmanos e

polímatas aversos à modernidade ateística) com o agir revolucionário. O movimento

eurasiano do Sr. Dugin tem fileiras em toda a Europa Ocidental, e é promovido pelos

sucessores governamentais dos mesmos agentes comunistas que viviam durante a

Guerra Fria e são, de modo mais direto do que se imagina, os cérebros por detrás da

New Left que tanta dor de cabeça dá à Ann Coulter. O movimento comunista prova

mais uma vez que, a julgar pela vitalidade, ele está correto. Talvez esteja mais claro

agora o que eu quis dizer com “má retórica”?

– E a julgar por que parâmetro, — perguntou Mary — estaria errado o movimento

comunista?

– Essa é uma boa pergunta, minha cara. — Tornou o velho. — A maneira mais simples

de colocar seria que a experiência do fundamento do conhecimento, qual mesmo os

existencialistas o enxergam, implica a contemplação de uma ordem que transcende a

substância humana. Não se trata aqui, como os ateus frequentemente confundem, da

ideia de design inteligente, porque a filosofia escolástica concordava que há um

coeficiente de absurdidade em todas as coisas criadas, se trata apenas que, a despeito

dessa parcela de absurdidade que há nas coisas, se nota inegavelmente certa ordem. Isso

em ramos separados da vida, desde a ordem da ciência da lógica, até a ordem que há na

esfera social ou na biologia. Isso significa que a ordem que está na realidade é de algum

modo independente da ação histórica do homem, é algo no qual o homem está imerso, e

isso significa que é razoável pensar que essa ordem seja consciente; se alguma intenção

relativa a essa ordem consciente foi objeto de uma revelação divina dada ao homem nos

termos que a religião propõe, isso significa que não aderir à revelação nos termos da

revelação (como fazem os comunistas) é o mesmo que rejeitar a ordem do universo, e

qualquer tentativa de intensificar a ação humana histórica nesses termos seria não o se

adequar responsavelmente à unidade do real, mas se opor como um renegado à ordem

do real, e consequentemente à própria natureza humana. Homens alegaram que essa

revelação rejeitada pelos comunistas ocorreu, e é verossímil que tenha ocorrido porque

o universo é carregado de ordenamento em várias esferas distintas da realidade, e é

razoável supor que essa ordem seja consciente, é razoável supor não apenas que Deus

existe, mas que ele tem intenções, entre elas a de manter a ordem do universo e a vida

humana.

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Igreja Ortodoxa

– As escrituras dizem que o papa é o cabeça da Igreja. — Disse o velho.

– E também dizem que os bispos têm a mesma função, todos eles. — Replicou Victor.

– Isso segundo a sua interpretação das Escrituras. Muitos padres da Igreja cometeram

erros de interpretação. Mas deixa-me apresentar a coisa desde o início, conforme uma

exposição histórica que a minha experiência aponta, por causa dos defensores públicos

da religião ortodoxa, é bastante ignorada por vocês. A lista inteira de papas da Igreja

existe, foi compilada desde pelo menos o séc. IV com todo tipo de tradição ligada aos

nomes dos papas, se sabe coisas até dos mais antigos. Por exemplo, segundo Santo

Irineu de Lyon (180 A.D.), que vocês mesmos consideram um cristão genuíno, o

sucessor imediato de Pedro foi o Papa Lino, um dos companheiros de São Paulo

Apóstolo mencionado na Epístola a Timóteo. Os papas do início do século II

intervinham na vida da Igreja de modo decisivo, isso nunca deixou de ocorrer desde

então. Um dos discípulos do apóstolo São João Evangelista, chamado São Policarpo de

Esmirna, de acordo com São Irineu, viajou desde a região da Turquia até Roma apenas

para pedir ao papa da época por uma permissão litúrgica. Décadas depois, na geração de

Irineu (de acordo com o bispo Eusébio de Cesaréia, séc. IV), aproximadamente no ano

180 A.D., o papa procurou impor a todas as Igrejas do Oriente certas práticas litúrgicas

relativas à Páscoa em uso pelos latinos, e o resultado foi exasperar os indivíduos de

origem oriental como Irineu. Este chegou a exclamar algo como “O bispo de Roma vai

fazer a Igreja entrar em colapso!”. Isso significa que o papa tinha, certamente, um poder

significativo sobre as Igrejas, um poder que ele exercia ativamente e sem escrúpulos. —

Disse o velho.

– Ao século III o famoso bispo africano, São Cipriano de Cartago, perguntou

retoricamente em um escrito: “Acaso é possível se desligar da comunhão com Roma e

permanecer na Igreja?”. No séc. III o papa não apenas intervinha em disputas

diocesanas, mas habilmente passou a usar a intermediação do Imperador Romano para

exercer esse poder e ao mesmo tempo criar um laço com o Império que coibisse o poder

secular de ver a Igreja com suspeitas. Ele pedia a bispos de regiões distantes que

prestassem contas da sua ortodoxia e saúde dogmática fazendo declarações e profissões

de fé, ele estabelecia práticas litúrgicas adicionando algo ao cânon da missa, ou

estabelecendo as ordens menores dos clérigos abaixo do diaconato, ele levantava fundos

e doações para prover o bem-estar de cristãos em terras distantes que passavam fome ou

haviam sido presos e tornados escravos, lhes nutrindo ou pagando pela sua libertação.

E, acima de tudo, os papas tomaram para si o dever de dizer qual é a noção correta,

quanto a dogma e moral, a ser seguida pelos fiéis. — Disse o velho.

– Passada a última grande perseguição à Igreja, em fins do século III, — continuou o Sr.

Marcondes — o Imperador Constantino doou à Igreja Romana o suntuoso Palácio de

Latrão, se propôs a convocar e organizar o Concílio de Arles para atender a petições e

controvérsias surgidas na África por seguidores de um certo bispo Donato, que haviam

aderido a um cisma. O imperador fez questão de proclamar a liberdade civil para a

Igreja cristã, de modo que homens como São Martinho de Tours, Gália, pudessem

demolir templos pagãos, pacificamente, e propagar a fé sem obstáculos. Antes de

falecer o Imperador Constantino se deixou seduzir por um indivíduo chamado Eusébio

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de Nicomédia, por intermédio do qual a corte romana em Constantinopla passou a dar

atenção às teses teológicas de um certo Ário, um diácono egípcio. As teses basicamente

postulavam que Jesus não era Deus, exatamente, mas semelhante a ele. Contradizendo

um concílio convocado anos antes por Constantino em Niceia, cidade turca próxima de

Constantinopla, as ideias de Ário foram reinseridas na ordem do dia e engolfaram todo

o oriente, em eventos resumíveis na deposição do bispo Santo Atanásio de Alexandria,

seu subsequente exílio, e certos concílios de iniciativa do papa que deveriam absolvê-lo

mas foram sequestrados por manobras políticas; e portanto os papas não os aprovaram.

O imperador Constâncio, sucessor de Constantino, conseguiu estender sua influência

militar sobre a porção ocidental do Império, e foi pessoalmente ao Papa Libério impor a

condenação de Santo Atanásio e a aprovação dos cânons favoráveis ao arianismo, cerca

da década de trinta do séc. IV. Isso prova o quão decisivo era o papel do papa na

história da Igreja. Tivesse ele aprovado tais concílios, a falsa Religião ‘Ortodoxa’ teria

alguma base. Libério preferiu o exílio. Segundo São Roberto Belarmino os clérigos de

Roma mais tarde elegeram um sujeito chamado Félix para o papado, poque Libério

havia procurado arranjar uma trégua política com os arianos, mas há outras fontes que

indicam que Félix foi eleito apenas para suprir a ausência de Libério após o exílio. De

todo modo os clérigos de Roma não eram arianos.

— Ao séc. V sucedeu que acirrou-se uma disputa entre os patriarcados da Cristandade.

— Disse o velho. — Todos sabiam qual era a Sé principal do mundo, isto é, Roma. Os

demais Patriarcados, de Antioquia, de Alexandria, e de Jerusalém, tinham o seu

prestígio devido à tradição. São Cirilo de Alexandria, Egito, estava brigando pelo

segundo lugar, e o rival seu era o patriarca de Constantinopla. Ele soube das acusações

de heresia contra Nestório (o qual negara à Virgem Maria o título de Mãe de Deus),

patriarca da sede do Império (Constantinopla), e se pôs, com a autorização do papa de

Roma, a presidir um concílio convocado para julgar o caso. Os rivais de São Cirilo, que

incluíam o bispo Teodoro de Mopsuestia (o mentor intelectual do nestorianismo) e o

bispoTeodoreto de Cirro (considerado um santo por alguns dos ortodoxos, um

intelectual com obras de valor), foram vencidos e humilhados. Das duas versões do

concílio em Éfeso, onde se deu o embate, o único critério último para saber quem eram

os mocinhos e quem os bandidos, para os católicos, é saber qual dos dois concílios o

papa de Roma aprovou. Isso já era verdade antes, por causa do número significativo de

concílios aprovando mais ou menos ousadamente o arianismo. Esse é o tema central da

discussão entre católicos e ortodoxos, porque dado o número alucinante de concílios do

primeiro milênio da Cristandade, o único critério para estabelecer a ortodoxia é a

aprovação do papa. Os documentos do papa São Leão I, o Grande, lidos no concílio de

Calcedônia, foram aclamados pelos padres conciliares orientais (em grande parte) como

representando a tradição apostólica, e o papa São Leão I explicitamente afirmou que a

validade do concílio se deveu à sua aprovação, foi comunicada ao concílio por sua

aprovação. A “arrogância” tranquila com que um dos sucessores do papa São Leão I,

papa São Hórmisdas, repreendeu o patriarca de Constantinopla por haver procurado

uma conciliação com os monofisitas orientais (os que criam em uma só natureza em

Cristo, e não duas) sem a sua aprovação e consentimento, e a influência do papa São

Hórmisdas sobre o Imperador em Constantinopla, além do fato de o patriarcado dessa

Sé ter aderido por algum tempo ao monofisitismo, apenas reforçam dramaticamente o

caráter estável e fundamental da Sé de Roma.

– E quanto ao papa Honório, que se revelou um herege? — Replicou Victor Antonov.

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– Ele foi acusado, pelo Terceiro Concílio de Constantinopla, de ter aderido ao

monofisitismo. — Admitiu o velho. — Entretanto, o tipo específico de monofisitismo

ao qual ele aderiu, o monotelitismo, típica heresia do séc. VII, é,talvez, mais ambíguo e

escusável que outras heresias; essa heresia só se afigurou um problema algum tempo

depois de ser propagada; além disso os papas que sucederam Honório enfatizaram que

ele mais falhou em coibir essa heresia do que procurou ativamente promovê-la; ademais

Honório não confirmou nenhum concílio ecumênico em prol do monotelitismo, nem

sequer propôs ex cathedra a sua doutrina. O mais importante a respeito do exemplo

histórico do papa Honório é que falham miseravelmente os críticos do papado em ver

que a doutrina católica não exclui a possibilidade de um indivíduo perder o cargo papal

por heresia. Ao contrário, essa possibilidade foi manifestada por um dos canonistas

mais eminentes da história, Baldus de Ubaldis, no séc. XIV. É a típica crítica

fundamentada em pressuposições equívocas, muito comum entre ortodoxos. Vocês

costumam argumentar contra o papado que Pedro negou Jesus três vezes, quando, na

verdade, é algo estabelecido em inúmeros autores que os sacramentos e graças do Novo

testamento, como o papado, só foram estabelecidos depois da Ressurreição de Jesus,

isto é, depois de Pedro negá-lo. Nem tudo que o papa diz e pensa é necessariamente

não-herético. O papa pode professar uma heresia, desde que o seu conteúdo não seja

relacionado com as postulações essenciais a respeito da Trindade e da Encarnação, e

desde que algum pronunciamento ex cathedra do magistério, aprovado por um papa, não

seja apresentado a um papa provando que ele professa uma heresia e por ele seja

rejeitado obstinadamente. Até o momento em que uma heresia não essencial (como

explicado) professada não é, para o que a professa, confrontada com algum documento

do magistério que a contradiz, até esse momento a pessoa professando a heresia ainda é

católica. Ela perde a filiação na Igreja se ela sabe que a sua profissão de fé contradiz o

magistério, se ela se atém à sua heresia ou duvida obstinadamente do magistério. O

monotelitismo, em certo sentido, de fato não pode ser professado em boa fé, apenas

como heresia material e não formal, porque diz respeito ao que é essencial aos mistérios

básicos; mas muitas heresias podem ser meramente materiais, não alijando o papa do

seu cargo ou da sua filiação à Igreja. E mesmo que um papa professe uma heresia

formalmente, como o monotelitismo, ele deixa de ser papa ipso facto.

– E o que sobra do papado — perguntou Victor — se Honório tiver realmente perdido o

ofício papal junto com a filiação à Igreja?

– Jesus Cristo disse “Quando porém vier o Filho do homem, porventura achará fé na

terra?” (Lucas 18:8). É preciso contar com alguma apostasia vindoura, ainda que não se

a conheça de antemão. — Replicou o velho. — O papado de Honório teve bem pouca

influência sobre a Cristandade, o monotelitismo foi sempre combatido pelos papas que

o seguiram, e o fato da queda dele não desdiz o papel extraordinário, e multimilenar,

dos papas como diplomatas habilidosos sempre bem-sucedidos em combater o bom

combate e admoestar, para o seu bem, os orientais e outras regiões. As missões cristãs

na Inglaterra, Escócia, Alemanha (nos séc. VI e subsequentes) seriam impensáveis sem

as invariáveis intervenções papais, o pedido de que os bispos da Gália provessem os

missionários com todo recurso, os tratados diplomáticos com os reis pagãos, e,

igualmente importante, a resolução de conflitos entre dioceses. O prestígio dos papas

entre os orientais foi sempre tão grande que o papa Bonifácio Terceiro (séc. VII)

conseguiu do imperador Bizantino a declaração por decreto de que a Sé do Apóstolo

Pedro deve ser a cabeça de todas as Igrejas, uma opinião que teólogos bizantinos como

Teodoro Estudita (séc. VIII) consideravam bastante natural. O Imperador bizantino se

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prostrou diante do papa Constantino (séc. VIII) quando este o visitou na capital do

império.

– É por causa de eventos bizarros como esse que se fez a sua falsa religião. — Replicou

Victor. — Foi fácil para vocês romanos convencer alguns nobres provincianos do

período medieval a respeito de pontos doutrinais, mas a verdade é que os teólogos

orientais davam de dez a zero em vocês, como no evento da disputa a respeito da

cláusula “filioque” no credo niceno.

– Ah sim! A cláusula “filioque”, isto é, a ideia de que o Espírito Santo procede tanto do

Pai quanto do Filho, e não apenas do Pai. Um patriarca chamado Fócio, uma mala sem

alça e temerário indivíduo (séc. IX) com esse nome, procurou desafiar o papa a esse

respeito negando o entendimento Ocidental sobre o filioque e excomungando o papa

por meio de um concílio. — Disse o velho em voz alta. — A verdade sobre o Fócio é

que um dos principais motivos de ele antipatizar com o papa foi que o papa Nicolau I

discordou da nomeação dele ao patriarcado de Constantinopla. Eu mesmo não amaria o

papa se estivesse no lugar dele. Sucede porém que o Segundo Concílio de

Constantinopla (555 A.D.) expressou notável reverência por um padre da Igreja latina

que promoveu explícita e notoriamente a ideia expressa pelo filioque, a saber, Santo

Agostinho. O Segundo Concílio de Constantinopla não tinha nem sequer sido de

iniciativa do papa ou dos latinos, foram os bispos gregos que o promoveram e o papa

demorou anos para concordar (depois de muita insistência e pressão) com aprovar esse

concílio. Ademais, o Credo antigo que contém a profissão do filioque, chamado Credo

de Santo Atanásio, segundo historiadores seculares, foi muito provavelmente

promovido por Santo Ambrósio de Milão (séc. IV), um indivíduo muito estimado na

corte bizantina. Não importa o quão atrasados intelectualmente os ortodoxos

considerem os teólogos da corte de Carlos Magno, a verdade é que bem pouco antes de

Fócio, historicamente, a corte de Constantinopla havia sido consumida pelas ideias

ridículas dos iconoclastas (que repugnavam as imagens de santos), possivelmente por

influência muçulmana, e pelo monotelitismo; além disso a Renascença Carolíngia, que

contou com nomes de estudiosos como Alcuíno de York (séc. VIII), não apenas

mereceu uma significativa atenção de um dos maiores eruditos de todos os tempos, Otto

maria Carpeux (História da Literatura Ocidental), como também, por ser essa

notoriamente a época do primeiro chamado à formação das Escolas das Catedrais, foi

esse período o germe de um dos desenvolvimentos pedagógicos mais brilhantes do

mundo Ocidental, sob muitos aspectos (o que é objeto de estudo do livro A Inveja dos

Anjos: As Escolas das Catedrais e Os Ideais Sociais da Europa Medieval entre 950-

1200 A.D., Stephen Jaeger).

– Não me venha com essa! O filioque não é bíblico! — Afirmou Victor.

– E por esse tipo de pensamento surge uma nova seita evangélica a cada instante. —

Tornou o velho. — Fócio foi condenado em Constantinopla por um concílio presidido

por núncios apostólicos enviados pelo papa de Roma. E além disso a ambição de

Constantinopla a respeito da Bulgária, um território com nobreza recém-convertida, foi

em parte objeto de humilhação para o Fócio de algum modo, porque o papa ganhou para

si o direito explícito de exercer jurisdição sobre aquele povo. O ressentimento entre

gregos e latinos, acirrado pelo Patriarca de Constantinopla Miguel Cerulário (séc. XI)

por causa de questões litúrgicas e disciplinares, foi combatido pelo próprio imperador

bizantino muito depois desse evento, inclusive o imperador tinha relações diplomáticas

e dinásticas com a nobreza latina (européia) muito depois desse evento, ao ponto de se

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haver tentado dar fim ao cisma em mais de um concílio. A culminação do espírito de

Cisma dos gregos foi o Concílio Ecumênico de Florença (séc. XV) no qual por breve

tempo todos os “ortodoxos” concordaram, de novo, pela enésima vez, com o Primado

de Pedro (algo de que a Igreja Católica jamais abriu mão). A aversão posterior ao

Concílio de Florença, o ter mudado de ideia por parte dos “gregos” a respeito,

significou para vocês que a Sé Romana não é essencial à subsistência da Igreja, e que

vocês passam bem sem o sucessor de Pedro. Se pode dizer que essa é uma ideia tão

estranha ao primeiro milênio da Igreja, que muitos dos padres se sentiriam chocados

ante ela. Mas vocês não. Assim como os seguidores de Teodoro de Mopsuestia se

exilaram na Pérsia e declararam toda a demais Igreja excomungada e herética, assim

também vocês, cedendo à tentação luxuriosa do cisma, professam que as ideias de São

Leão I sobre o primado de Pedro são uma história da carochinha e somos todos

cismáticos. O que você tem a dizer a respeito, Teodoro?

Victor deu um soco no velho.

– Você enlouqueceu? — Perguntou Susana, chocada.

– Ele deu um soco no seu caçula, mãe. — Replicou Victor.

Pouco depois Victor retomava:

– Além do mais, velho, me parece que ao aderir à igreja romana você se coloca em um

dilema insolúvel. De um lado você pode aceitar as inovações dos sessenta e os papas

desde aquela época, e com isso vai estar aceitando uma missa que uma quantidade

significativa de teólogos considera feia, sacrílega e insultuosa a todo padrão de

normalidade litúrgica. Nos anos setenta e oitenta era comum ver freiras de mini-saia,

doutrinas no mínimo curiosas propagando-se em seminários, enfim a mais chocante

revolução religiosa dentro do romanismo que já houve, o que inclui aliás os abusos

sexuais de criancinhas indefesas, tão notórios que o então cardeal Ratzinger admitiu, em

entrevista à EWTN, que a multiplicidade desses casos lhe dava “dor de cabeça” como

chefe de uma congregação romana. De outro lado você pode aderir à tese

sedevacantista, e se ver isolado mais do que os Testemunhas de Jeová, tendo de se fiar

em uma tese de pessoas cujo meio social e ações causaram escândalo em cima de

escândalo (eu me refiro aos clérigos sedevacantistas), ou quando menos você pode se

fiar na tese sedevacantista de dois indivíduos isolados em Rochester, NY, chamados

irmãos Dimond, que afirmam nas entrelinhas serem as duas testemunhas do apocalipse.

Eu creio que seja claro a qualquer pessoa com bom senso que o romanismo acabou.

Virou pó.

– Quão graciosamente — notou o velho — o senhor mudou de assunto! Tão

graciosamente quanto convenientemente. Eu gostaria de lembrar-lhe que o espírito do

Vaticano II penetrou na falsa Religião Ortodoxa tão fundo, deixada de lado a superfície,

quanto na instituição que alega ser católica. Os líderes ortodoxos têm laços estreitos

com o Conselho Mundial das Igrejas, os líderes ortodoxos participam de cerimônias

ecumênicas não apenas com os antipapas de Roma, mas até com anglicanos. Isso para

não mencionar a obsessão dos ortodoxos que falam em público por assinalar,

contrariamente à quase unanimidade dos padres da Igreja, que não é realmente

necessário ser católico para ser salvo. Eu me pergunto o que São João Crisóstomo,

Patriarca de Constantinopla, pensaria disso, o que pensaria ele da ideia “Deixamos os

não-cristãos à misericórdia de deus”. Porque um teólogo como São Máximo Confessor

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(séc. VII) era um universalista, há declarações dele que indicam a ideia de que todos

eventualmente serão redimidos, Nicolai Berdyaev popularizou no séc. XX o

universalismo ao ponto, segundo me parece, de isso ter embriagado os ortodoxos a

respeito da necessidade da Igreja para a salvação. A perspectiva de Berdyaev é

existencialista ao ponto de ele ter se identificado profundamente com os “sonhos”

filosóficos de Søren Aabye Kierkegaard, o universalista danês para quem as ações

concretas da vida humana são subsumidas poeticamente em linhas de sentido

metafísicas pairando com um tipo de profundidade que oscila entre o horror e o

sublime. Tudo é subsumido, ou integrado, em alguma aspiração maior, como um

aspecto se movendo sob o fundo de uma infinitude não-explícita. Como o marxismo,

esse tipo de existencialismo que tanto influenciou a cultura ortodoxa, parece pouco

consciente da existência de uma revelação sintética pronta e acabada, relativa a

metafísica, como há para os orientais. Os orientais já sabem tudo, não há para eles

abismos aflitivos. O Sr. René Guénon bem opinou quanto aos russos não serem

participantes da tradição Oriental. Mas talvez ele tenha pecado em não ver, como viu

Carroll Quigley, que os russos representam uma civilização completamente diferente da

Ocidental. Os russos necessitam, segundo Quigley, de um sistema filosófico que dissipe

a variação de múltiplas opiniões em um sistema fechado. Por isso a sociedade russa

retratada por Fiódor Dostoiéviski estava manifestamente em crise, sem um sistema

único, mas, ao contrário, com uma porção de ideias contraditórias e fanaticamente

abraçadas, formando grupos distintos. Para os russos, segundo Quigley, essa situação é

bem menos tolerável do que para ocidentais. A solução que eles adotaram

historicamente para compor alguma unidade foi o marxismo, que é um tipo particular de

existencialismo.

– Ora, — continuou o velho — o surgimento mesmo dessa crise se deve a que a

civilização russa tinha um contato literário muito intenso com o Ocidente, Berdyaev não

sendo uma exceção, mas ao contrário; ele, tendo sido expulso pelos soviéticos pouco

depois da Revolução, exerceu um magistério em Paris e outros lugares, tal que à década

de cinquenta a elite intelectual brasileira (a elite de um país bastante isolado

intelectualmente) estava já bem familiarizada com ele e lhe tinha em grande estima,

como foi mencionado em certo escrito pelo poeta de Oxford Bruno Tolentino. O

existencialismo, por não carregar uma fórmula sintética do mundo como os orientais

(chineses, hindus e muçulmanos), acaba por tomar a forma de uma filosofia cética.

Cética não em um sentido absoluto, mas em um sentido metodológico. Quem conheça

os concílios ecumênicos, sobretudo aqueles que lidam diretamente com a natureza da

Encarnação de Cristo e da Trindade Divina, vai perceber que uma abordagem cética

quanto a esses dogmas, qual se sente como coisa óbvia desde o texto, é perfeitamente

impertinente e absurda. Os ortodoxos como Berdyaev beberam desse cálice, no entanto,

beberam do cálice do existencialismo, até a última gota. É por isso que eles se sentem

tão à vontade em relação à própria condição e atitude relativa ao dogma “Fora da Igreja

Não Há Salvação”. Os ortodoxos, como Karl Marx bem notou em algum artigo, são

apegados a tradições regionais, portanto faz sentido pensar que eles percebam a

descontinuidade entre os padres e sua visão contemporânea-moderna desse dogma como

algo pouco relevante, apenas uma bravata lógica a ser dissolvida no fato de que se toma

parte em liturgias tradicionais e se alega servir a Cristo. Muitos ortodoxos, hoje,

consideram um falso pregador o homem que repete as palavras de São Fulgêncio que

seguem (Regra da Fé, escrito a 526 A.D.): “Professai mui firmemente e jamais duvideis

no mais mínimo que não apenas todos os pagãos mas também todos os judeus e todos

os hereges e cismáticos que terminam a presente vida fora da Igreja Católica, estão

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prestes a ir para o fogo eterno que foi preparado para o demônio e os seus anjos”. Me

parece uma audácia da parte do senhor me acusar de abandonar a minha fé ao rejeitar o

entendimento contrário a São Fulgêncio, a respeito dessas coisas, porque foi o próprio

papa, em várias ocasiões, que me obrigou a pensar do modo que penso. O papa

Inocêncio III proclamou no Quarto Concílio de Latrão, na Primeira Constituição, a 1215

A.D., ex cathedra: “Há de fato uma Igreja universal dos fiéis, fora da qual ninguém de

todo é salvo, e na qual Jesus Cristo é sacerdote e sacrifício”. Como um fiel tem de ter a

fé, e o herege por não ter fé não é um fiel, um herege não pode ser salvo.

– Quanto ao outro ponto, o do meio social sedevacantista, se trata de um termo

capcioso. A maioria desses padres pensa quase como Bento XVI a respeito da

necessidade da Igreja para a salvação, e não como São Fulgêncio. Os Dimond, em um

tempo normal, que não é o atual, eu consideraria com bastante facilidade pessoas

completamente loucas. Mas a verdade é que a função e o caráter deles não é a

insanidade, não é isso que explica o que eles são. Eles são mais corretamente

identificáveis como demônios, no sentido que Otto Maria Carpeaux atribuiu a

Napoleão, o sentido de entes que atuam dentro de certas circunstâncias como

catalizadores, como incitadores de um movimento que, extraordinariamente, não pode

ser aplacado ou dissipado. Os Dimond têm alguns argumentos aos quais ninguém pode

responder sem parecer tolo, e até que essas respostas surjam, eles continuarão a exercer

a influência que exercem sem obstáculo algum, e com todo o prestígio advindo da

bestificada atitude dos adversários deles. Isso não significa que eu confie neles, ou que

eles peçam alguma confiança, exatamente. Significa apenas que se está testemunhando

certo impasse que jamais vai poder ser dissipado pelas ações e opiniões dos adversários

dos Dimond. Nesse sentido é correto dizer que os Dimond são a única saída para a crise,

porque eles são os únicos que veem a crise desde uma perspectiva não-letárgica, mas

significativa. Eles são inegavelmente o princípio, de algum modo, da solução da crise.

Há perguntas que têm de ser respondidas (por exemplo: Por que Pio XII conviveu com

Paulo VI, Giovanni Montini, por vinte anos, tinha estima por ele, e não notou que ele

não era católico?), e elas só poderão ser respondidas com um sentido genuíno porque os

Dimond deixaram queimar a tocha que lhes coube, por mais que essa tocha não deixe

ver tudo que aconteceu. Ao tocha deles gerou interesse por se buscar um sentido vital

genuíno a despeito dessa crise. — Disse o velho.

– Baboseira — afirmou Victor –, a sua religião é falsa e se contradisse.

– A Virgem de La Salette afirmou no séc. XIX, “Roma vai perder a fé e se tornar o

assento do Anticristo”, e La salette foi aprovada pelo Vaticano. A vidente de Fátima,

Lúcia dos Santos, afirmou ao fim do Segundo Segredo (1942 A.D.) “[…] em Portugal o

dogma da fé vai ser sempre preservado etc.”. O papa Leão XIII teve uma visão, ela

causou nele tão profunda impressão que houve até práticas litúrgicas adicionadas à

missa tridentina por causa dela. Na visão estavam o demônio e Jesus Cristo. O demônio

disse “Eu posso destruir a tua Igreja”. “Você pode?”, tornou Jesus, “então vá e a

destrói”. “Para fazê-lo eu preciso de mais tempo e mais poder”, replicou o demônio.

“Quanto tempo? quanto poder?”, perguntou Jesus. “Entre setenta e cinco a cem anos, e

um poder maior sobre aqueles que hão de entregar-se ao meu serviço”, afirmou o

demônio. “Tens o tempo, tens o poder. Faze com eles como quiseres”, tornou Jesus. São

Luís Montfort afirmou, ao séc. XVIII, que o tempo em que se manifestariam os sinais

da grande apostasia e do apostolado dos apóstolos dos últimos tempos (cuja santidade e

obras superariam em muito a de quase todos os santos que os precederam), parecia estar

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próximo. Se ele estava certo em dizer tais coisas então, muito mais está a presente

geração.

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Islamismo

– Debater não seria a abordagem mais exata, Francis. Em certo sentido eu não tenho

meios de debater contra o islã, porque é um fenômeno complexo e um dos mais

curiosos da história. As pessoas dizem que os muçulmanos são misóginos, quando os

filmes religiosos em urdu e árabe parecem não raro retratar as mulheres de um modo

positivo, chegando ao ponto de ironizar o conceito da inferioridade delas. Se diz que os

muçulmanos são intolerantes e indiferentes em relação ao credo alheio, quando na

verdade, além de os scholars muçulmanos habilitados a agir como fonte de fatwas

(decretos) terem abrigatoriamente de ser polímatas e mestres em religiões comparadas,

também há o fato de os muçulmanos frequentemente darem mostras de genuína

delicadeza a esse respeito. Por exemplo, quando os muçulmanos voltaram armados e em

peso a Meca, tendo sido antes exilados ou expulsos por conta dos clãs politeístas, eles

destruíram todos os ídolos pagãos da localidade, embora não tenham ferido ninguém.

Um muçulmano comentando o caso em algum documentário notou, com olhos

lacrimejando quase, e tom de pesar, que tal medida deve ter parecido horrível àqueles

que tiveram seus ídolos destruídos (“Como vocês podem fazer isso com a religião de

nossos pais?”). Esse tipo de delicadeza e cortesia não é rara entre os muçulmanos. Se

reclama que em certos lugares a fiqh ( a jurisprudência ou entendimento normativo) é

autoritária e desumana, mas em certos lugares, como em anos recentes o Egito, a fiqh é

bastante liberal quanto a muitos costumes. Se diz que a religião islâmica é para povos

primitivos, e no entanto os europeus, os ingleses não menos que o resto, apresentam

fiéis convertidos e entusiastas dessa religião. — Disse o velho.

– Eu sabia que o velho era muçulmano. — Observou Steve.

– O fato de em poucas décadas umas tribos árabes fragmentadas a oeste do Egito terem

humilhado e desmantelado muito do território do Império Bizantino, e o Império

Sassânida, que corresponde à Pérsia, atual Irã, é um fato impressionante que joga uma

luz toda nova sobre o Islã. — Continuou o velho. — Parece que o islã estava

predestinado a se interpor entre o Ocidente e o Oriente.

– Dada essa delicada introdução, mais delicada a mim do que ao homem que você acaba

de agredir, — tornou Francis — eu concordo em ser cortês ao ponto de explicar porque

aderi à religião do Profeta, a paz esteja com ele; foi tudo porque tive certa desilusão

com o ateísmo. Eu lembro que lia dois livros pela mesma época, o primeiro A Crise das

Ciências Europeias e a Fenomenologia Transcendental, de Edmund Husserl, e O

Homem e o Seu Devir Segundo o Vedanta, do René Guénon. Husserl, ao descrever o

que foi a filosofia moderna, o que transcorreu com o seu desenvolvimento, me deixou

bastante deprimido e desiludido a respeito da intelectualidade ocidental. O vício da

filosofia moderna, que consiste basicamente em enfatizar alguma faixa da realidade em

detrimento de outras, pode ter o seu efeito deprimente bastante enfatizado pela

descrição da doutrina hindu, uma vez que esta doutrina parece fazer exatamente o

contrário da filosofia moderna, é uma doutrina que nem apequena o complexo por

algum “espírito sistêmico” ou “negativo”, nem se estende em uma linha indeterminada

de divagação, realmente abarcando todo o campo das possibilidades universais de modo

sintético. Quando eu entendi que tanto os orientalistas europeus tinham uma

compreensão muito limitada do Oriente, incluso um pseudo-sinólogo como Leibniz, e

que as civilizações orientais, muçulmanos, budistas, chineses e hindus, têm a mesma

doutrina metafísica; pareceu claro que aquilo que é perene, clássico, normal, é o

Oriente. É isso que eu buscava, estar integrado no âmbito do normal, não como algum

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ateu que acredita que os deuses hindus são realmente deuses e não apenas predicados

metafísicos, ao mesmo tempo que ignoram ademais todo tipo de perspectiva a respeito

de tradições multimilenares dos quais guardam apenas uma síntese confusa e sombra

deformante. A ignorância dos apóstolos do ateísmo, não raro me deixando

envergonhado, me deu o empurrão que eu precisava para abraçar uma tradição

realmente sadia. A aversão ateística a se pertencer a seitas é, a bem da verdade, nutrida

por obscurantismos e preconceitos que lembram seitas doentias. — Disse Francis.

– Eu entendo que você se sinta assim, Francis. — Tornou o velho Marcondes. — O

René Guénon retratou os erros do orientalistas no livro Introdução Ao Estudo Das

Doutrinas Hindus de tal maneira que a inferioridade da intelectualidade ocidental a

respeito desses assuntos chega a dar medo, e um frio na espinha. Assim como os

orientalistas estabeleceram arbitrariamente datas e períodos posteriores para a redação

dos upanishads, os textos doutrinais que acompanham a literatura védica; também os

scholars ocidentais, nos quais aliás os debatedores muçulmanos exotéricos se baseiam

com frequência, também eles procuraram catalogar datas e eventos relacionados aos

manuscritos cristãos antigos, de tal maneira a desautorizar a tradição cristã. O Bart

Ehrman, muito conhecido nos E.U.A, procurou apontar que há inúmeras variações entre

os manuscritos mais antigos do Novo Testamento, e que os mais antigos não são os

originais, e sim cópias surgidas séculos depois, nos séc. III e IV, segundo certas técnicas

empíricas de averiguação da idade do manuscrito. Certas passagens, como a passagem

evangélica sobre a mulher adúltera, estão faltando nesses manuscritos, e há sinais de

que os escribas cristãos cometeram erros involuntários e voluntários na hora de copiar e

reproduzir os textos. De outro lado, conforme argumenta um protestante como James

White, cerca de noventa e cinco por cento das variações entre os manuscritos são

acidentais a uma compreensão razoável do texto, e além disso a prática de copiar o

Novo Testamento não foi submetida a algum controle centralizado, na antiguidade, de

modo que todos faziam cópias a seu bel-prazer, e isso indica fortemente que não houve

adulterações grotescas na mensagem religiosa em questão, porque não houve modo de

impor alguma versão em detrimento da outra arbitrariamente. E a respeito da passagem

da mulher adúltera, se sabe que Santo Agostinho, em um escrito, afirma taxativamente

que essa passagem é parte do texto, e ainda que algumas pessoas retiraram essa

passagem intencionalmente dos seus manuscritos para não causar pudor em algumas

pessoas; isso a despeito de nenhum manuscrito da época de Santo Agostinho ter

sobrevivido com a passagem da mulher adúltera. Um misticista (ele crê que Jesus

provavelmente nunca existiu) como o Dr. Robert Price, lista o número de manuscritos

restantes sem a passagem da mulher adúltera, mas ele não cita o número total de

manuscritos que provavelmente circularam nos séc. III e IV. Bart Ehrman crê que as

Epístolas de Santo Inácio de Antioquia são do início do séc. II, ou fim do séc. I, o que

seria fato bastante inconveniente aos misticistas, quando o Dr. Richard Carrier diz que

as epístolas de Santo Inácio são falsificações do séc. III. O mesmo Carrier afirma haver

interpolações fraudulentas em certas epístolas de São Paulo, com o fim de apequenar e

frustrar posteriormente o papel das mulheres nas comunidades cristãs, ao mesmo tempo

que muito tempo depois das epístolas, na geração de Santo Irineu de Lyon (como é

referido no livro dele Contra As Heresias), havia mulheres diáconos servindo a igreja, e

além disso, das inúmeras controvérsias do século II referidas no Liber Pontificalis (que

lista os papas antigos) e outras fontes, nenhuma controvérsia dizia respeito a algum

conflito entre mulheres e homens, muito menos entre clérigos homens e supostas

mulheres clérigos. Não há um único indício, seja em alguma epístola, seja em outra

fonte, que alguma mulher foi considerada capaz de consagrar as espécies eucarísticas

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como os padres, o que por si, segundo me parece, é uma discriminação bem mais

intolerável do que o Dr. Carrier pode aguentar. Ele também, ao criticar o método e as

credenciais de São Lucas ao escrever Os Atos dos Apóstolos e o seu evangelho, parece

não ser capaz de transcender o seu ponto de vista e considerar que uma historiografia

convencional se adequaria melhor a alguma história profana, do que a uma história

sacra. Mas, claro, é difícil para ele conceber tal perspectiva, uma vez que ele deve

ignorar que a definição de profano é “não-iniciado” e “ignorante”, e a definição de

“iniciado” não necessariamente seja “tornado um idiota”.

– Se tivéssemos de traçar o fundo do que esses misticistas concebem — continuou o

velho –, eles que são tão frequentemente usados por debatedores muçulmanos para

indicar que os textos cristãos foram corrompidos, o princípio que os norteia poderia ser

descrito como um princípio positivo. Eles estão, nas entrelinhas, dizendo “Aquilo que

nós não experimentamos pessoalmente não pode existir!”. É fácil acusar pessoas que

alegam ter visões de algum transtorno epiléptico, mas mesmo no que se refere a muito

do que, para eles, não pode existir, nós temos um probleminha: É possível demonstrar

que sua ideia do que é possível e impossível é bastante ilusória. Muitos mágicos

contemporâneos, como o Chris Angel, fizeram pessoas levitar em locais públicos, e na

frente de transeuntes chocados. Um mágico inglês chamado Dynamo atravessou a

parede de vidro de uma loja pública na frente de testemunhas atônitas. Até mesmo uma

figura pública muito respeitada, e não destacadamente religiosa, não religiosa quanto ao

ofício, o Sr. Dale Carnegie, afirma ele ter visto um grande número de curas

inexplicáveis. Eu conheço pelo menos um indivíduo que se declara ateu e alega ter visto

fatos semelhantes sem procurar justificá-los ceticamente. Todo o fundamento filosófico

dos scholars misticistas, portanto, quando falam dos manuscritos, é uma impressão

equívoca. Isso nos leva à pergunta: Por que pessoas que têm uma compreensão tão

limitada das religiões têm ao mesmo tempo tanto ódio delas? Ora, o motivo pelo qual o

Dr. Carrier desejaria que todos tivessem em alguma medida a mesma experiência vital

que ele teve, é que ele desejaria que as pessoas estivessem unidas e fossem tanto

acessíveis à subjetividade dele, quanto ele fosse acessível à subjetividade delas. Isso ele

expressou ao referir que se todos ouvissem Deus na mente, e todos concordassem com

ter recebido a mesma mensagem, aí então seria possível acreditar em Deus. O René

Guénon veria esse ponto de vista como uma tentativa de reduzir o qualitativo ao

quantitativo, veria isso como uma infernal descida “ao plano da quantidade”, por várias

razões. Uma delas é que o ódio contra o segredo, o esotérico e oculto, é uma ânsia

desordenada por uma unidade que, não podendo ser metafísica e transcendente, acaba

por ser uma mera unidade numérica, acaba sendo um apego que tende ao que é imediato

e sensível. O motivo pelo qual os ateus se engajam em argumentos e pontos de vista tão

rasos tem a ver com o fato de a filosofia moderna se ter dedicado à “regionalização do

ser”, ter caído metafisicamente em um abismo. Se trata de um curso de ação que faz

mais sentido pelo seu efeito do que por sua justificação oficial. A secularização da

sociedade pode ter tornado as universidades e a mídia profanas, isto é, ignorantes, mas

isso serviu de suporte a se poder respirar retoricamente, poder criar uma convenção pela

qual se pode dirigir a todos os grupos sem irritá-los muito. Essa zona neutra tem alguns

frutos que não podem ser considerados deméritos de todo, mas úteis no mesmo sentido

em que a literatura pagã pareceu útil aos monges medievais. Por exemplo, o seriado da

Warner Brothers chamado Buffy: A Caça-vampiros, do escritor Joss Whedon (que é um

ateu), soube habilmente criar um mundo ficcional que discute coisas bem interessantes e

essenciais da psicologia do mundo contemporâneo, como as rotinas do ensino público,

relacionamentos de tipos diversos, o ajustamento à vida adulta por meio da faculdade,

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do subemprego etc.; e não apresenta nenhuma mensagem positiva a respeito de

engajamentos religiosos, o mundo fantástico da série é apenas uma linguagem simbólica

que se pode adaptar a todo mundo. É esse tipo de alívio retórico, o poder se dirigir a

qualquer um funcionalmente, o que está verdadeiramente por traz da motivação dos

ateus, embora eles talvez não o compreendam muito bem. A bem da verdade, a unidade

que o Joss Whedon oferece parece ser, em alguma medida, e do ponto de vista da

notação emocional, uma unidade autenticamente universal, e não superficial e

“numérica”. O problema com essa válvula de escape retórica é que ela só funciona

quando as pessoas procuram superar os vícios do pensamento moderno que são, de

acordo com René Guénon, a causa mesma da dissolução da unidade de pensamento no

ocidente.

– Não é de modo algum surpreendente que os muçulmanos se baseiem em autores tão

profanos para falar de coisas tão sacras. — Continuou o velho Marcondes. — Há certa

aversão histórica de alguns pregadores muçulmanos contra as ordens e indivíduos sufis

e esotéricos, sobretudo os esotéricos subsequentes aos primeiros séculos islâmicos, uma

vez que o prestigioso imam Ali ibn Abi Talib (casado com Fatimah, a filha do Maomé)

foi, por assim dizer, um entusiasta e símbolo do caráter mais profundo e metafísico da

religião muçulmana. O islã tem, com certa notoriedade, o seu lado profano. Ao mesmo

tempo que alguns muçulmanos rejeitam a Trindade do cristianismo, e afirmam ser a

missa uma cerimônia parecida com o vudu, também certos membros de tariqas

islâmicas, como o Rama Coomaraswamy, foram professores em seminários católicos

tradicionalistas. Não é preciso ser um gênio para perceber que, porque o lado esotérico

do islã é por definição mais oculto e qualitativo, menos material e sensível, porque é

mais profundo, é mais influente; se deve considerar, pois, que aquilo que é mais real no

islã é o seu aspecto esotérico. O seu lado esotérico não é, porém, contrário ao

cristianismo, pelo menos não em sentido convencional, no mesmo sentido em que os

chineses da época de Guénon não eram contrários ao cristianismo, mas, em vez disso,

frequentemente se tornavam “católicos” quando visitavam o Ocidente porque o

catolicismo é a única coisa ocidental que se parece com alguma tradição espiritual como

há, ou havia, na China. O esoterismo islâmico é uma cristalização particular de algo

mais geral chamado metafísica oriental. Na metafísica oriental tudo que é objeto de

alguma iniciação, todo conhecimento adquirido, é um conhecimento relativo ao que é

acessível independente de época e lugar, de forma que um evento histórico como a

Encarnação de Jesus, parecerá à pessoa integrada nessa tradição metafísica algo menos

importante pelo seu caráter histórico do que por seu caráter de alusão a princípios supra-

históricos, qualquer evento histórico será mais importante como matriz simbólica de

alguma intuição metafísica, do que como evento que assume o caráter de um “fenômeno

objetivo” husserliano, isto é, não-inteiramente invadido e abarcado por um sujeito

cognoscente, não-inteiramente dissipado naquilo que lhe parece mais natural e

translúcido como presente à sua consciência. No conjunto de conhecimentos metafísicos

intuídos como descrito, consiste a revelação oriental. Apesar dela tudo que é intuído por

algum sujeito, mesmo no plano mais elevado da sua faculdade intelectiva, não impede o

indivíduo oriental de possuir noções, a respeito do mundo e da realidade experienciada,

que são manifestamente “objetivas”, ou pressuposições. Por exemplo, ao descrever o

que é a filosofia, inventada pelos ocidentais, o René Guénon a qualificou simplesmente

como educação, no sentido mais racional, e não supra-racional, do termo. Essa é uma

opinião que se pode chamar pressuposição hegeliana, é uma ideia imperfeita. A filosofia

foi qualificada por alguém, muito apropriadamente, como a “responsabilidade cognitiva

máxima”, o que é algo que não exclui o levar em consideração intuições metafísicas no

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sentido guenoniano, desde que isso contribua para algum fim filosófico. E não é sequer

possível argumentar que a maioria dos filósofos modernos não levou esse tipo de

intuição em consideração, para erigir alguma proposição cuja finalidade foi responder

responsavelmente a alguma dificuldade, uma vez que o próprio Guénon admitiu que a

poesia ocidental está cheia dessas intuições. Se pode notá-las como causa formal até de

algumas passagens na filosofia de um sujeito cético como Michel de Montaigne. Se a

ideia guenoniana de filosofia é inexata, é possível a um iniciado na tradição oriental se

confundir a respeito de todo tipo de coisa. Ao lado das intuições genuínas há, portanto,

“fenômenos objetivos”, mirados com certo distanciamento cognitivo e uma áurea de

sombra.

– Talvez essas observações sejam suficientes para enfatizar certa diferença essencial

entre o cristianismo e o islamismo. — Disse ainda o velho. — Enquanto o papa

Gregório I, o Grande, (séc. VI) debatia a respeito de se as almas bem-aventuradas

viriam a ter corpos sutis ou não, os esotéricos do islamismo discutem apenas objetos

que podem ser reduzidos, de algum modo, a intuições que podem se tornar presentes à

faculdade intelectiva humana independente do tempo, ainda que tais intuições

antevejam ou pressintam alguma limitação cognitiva relativa a contingências temporais.

A princípio isso faz parecer que o conhecimento que os cristãos professam, a respeito da

Trindade etc., teria para os orientais o caráter de “fenômenos objetivos” que podem ser

reduzidos a intuições metafísicas ulteriores. O problema com essa perspectiva é que não

há indício algum de que é essa a principal função dessas proposições dogmáticas no

cristianismo. De fato essas proposições, enquanto fenômenos objetivos, podem se tornar

matrizes simbólicas de intuições metafísicas, mas para que essa fosse a sua função

principal, teria isso de ter sido a intenção dos apóstolos ou de Deus ao revelar essas

verdades, e obviamente não foi por causa da maneira com que os concílios

continuamente lidaram com tais questões. Isso significa que essas verdades não se

diluem em intuições ulteriores e mais abrangentes, mas são elas, em si mesmas, o

princípio a ser salvaguardado e, no dizer do René Guénon, constituem fatos enunciados

de modo simples e direto. Essa é a intenção do cristianismo, e disso resulta que o

cristianismo como manifestação histórica é uma sinalização e suporte para essas

verdades essenciais, a Trindade e a Encarnação do Filho. O cristianismo tem de ser visto

como o clímax de um cortejo divino cuja finalidade foi, o tempo todo, fazer as pessoas

professarem essas proposições enquanto tais precisamente porque a verdade a respeito

delas não pode ser demonstrada, conforme ensinou o Concílio Vaticano I.

– Ora, ao final da década de noventa um jornalista americano chamado Neil Strauss

começou a participar de uma comunidade na internet de indivíduos interessados em

conquistar mulheres, sobretudo mulheres bonitas. — Disse ainda o velho. — Ele

publicou um livro a esse respeito, chamado The Game. Na primeira vez que saiu em um

boot camp, um dia de treinamento com um artista da sedução profissional chamado

Mystery, o instrutor que lhe acompanhou na boate explicou vários erros que ele cometia

ao abordar garotas. Por exemplo, ele aprendeu a nunca abordar uma garota desde as

costas dela, tocando o seu ombro enquanto ela caminha; as mulheres estranham isso; o

motivo, muito simples, é que o homem que faz isso pode se mandar a qualquer

momento, diminuindo da parte da mulher o controle sobre a situação. A maneira certa

de abordar é estando na frente da mulher, indo de encontro a ela. Uma outra aplicação

desse princípio é a ideia de que, ao abordar um grupo onde há uma mulher que se

considera o “alvo”, as primeiras palavras a se endereçar ao grupo têm de fazer com que

o grupo se sinta no controle da situação. As primeiras coisas que ocorrem a um grupo de

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pessoas quando um estranho o aborda é “quem é esse cara?”, e “quanto tempo ele vai

ficar aqui?”, por isso o artista da sedução sempre começa por tecer alguma história que

explique claramente o que ele quer do grupo e quanto tempo ele pretende ficar,

geralmente um tempo bem curto, dando poder ao grupo. As técnicas a respeito dessa

atividade, a linguagem a respeito dessa atividade, são bem mais ricas do que tais

observações, e são tão surpreendentemente eficazes que o Neil Strauss conseguiu o

telefone da Britney Spears, e um outro artista da sedução que andava com ele conseguiu

o telefone da Paris Hilton. Existe algo a respeito do poder da palavra, como mostrado

nesse estranho exemplo, que é bastante extraordinário. Nesse contexto, a melhor

maneira de mostrar que o cristianismo é verdadeiro, e o islã não, é comparar as duas

religiões a respeito de qual das duas tem o melhor apelo expressivo. E ao nos

perguntarmos isso surge a impressão de que o aspecto mais real do islã, o aspecto

esotérico, não está muito interessado em se ligar ao melhor apelo expressivo, mas sim

em atualizar de modo necessariamente imperfeito certos saberes multimilenares. Os

islâmicos buscam conhecimento pelo conhecimento, os cristãos buscam o conhecimento

para a confirmação da fé. Os cristãos auscultam o mundo pela confirmação da fé na

forma de uma linguagem indireta, os muçulmanos pretendem estar acima disso com a

sua intuição intelectiva direta das verdades eternas. Logo, se houver sinais expressivos

muito eloquentes, mas não equivalentes a uma intuição direta que prescinda da fé, da

verdade cristã, o cristianismo está correto e o islamismo errado, porque de outro modo

não faria muito sentido que houvesse tais sinais. Um desses sinais é o próprio islã. De

que outro modo, senão por meio dessa religião (já que as missões cristãs foram sempre

não muito bem-sucedidas), a profissão de que Jesus é o messias se faria ouvir por todo o

Oriente, dando assim um enorme prestígio ao cristianismo? O islã é um dos muitos

motivos pelos quais a Igreja Católica tem um prestígio social e tradicional gigantesco,

como o próprio ateu Ludwig von Mises admitiu, e denotar prestígio e valor é uma das

marcas dos artistas da sedução.

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