Régine Pernoud - Luz Sobre a Idade Média

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  • 7/22/2019 Rgine Pernoud - Luz Sobre a Idade Mdia

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    RGINE PERNOUD

    LUZ SOBREA IDADE MDIA

    PUBLICAES EUROPA-AMERICAhttp://saomiguel.webng.com/

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    NDICE

    Pg.Introduo...............................................................................................................................................9

    Cap tulo I A organizao socia l....................................................................................13

    Captulo II O vnculo feudal________27

    Cap tulo III A vida rura l................................................................................................... 37

    Captulo IV A vida urba na ................................................................................................47

    Captulo V A re aleza.........................................................................................................61

    Captulo VI A s relaes internacionais........................................................................... 71

    Captulo VII A Ig re ja .............................................................................................................81

    CaptuIoVHI O ensino.......................................................................................................... 95

    Captulo IXAs letras. ..........................................................................................................107

    Captulo X A s arte s.........................................................................................................143

    Captulo XI A s cincias ....................................................................................................155

    Captulo XII A vida quotidiana .........................................................................................161

    CaptuloXIII A mentalidade medieval ..............................................................................193

    Pequeno dicionrio da Idade Mdiatradicional...........................................................................201

    Bibliografia........................................................................................................................................207

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    INTRODUO

    Fazer livros um trabalho sem fim, dizia o Eclesiastes, notempo em que a Bblia se chamava Vulgata. E um pouco o sentimentodo autor considerando a presente obra quase a quarenta anos dedistncia ... Trabalho sem fim.

    Este tinha sido empreendido alguns anos aps a minha sada daEcole des Chartes, na fascinao de uma descoberta ainda completamente nova. Para mim, com efeito, como para toda a gente, no

    fim dos estudos secundrios e de uma licenciatura clssica, a IdadeMdia era uma poca de trevas. Muniam-nos, tanto em literaturacomo em histria, de um slido arsenal de juzo s prefabricados quenos levavam pura e simplesmente a declarar ingnuos os auditoresde So Toms de Aquino e brbaros os construtores do Thoronet.

    Nada nesses sculos obscuros que valesse a pena de algum se deterneles. Por isso no deixou de ser com um sentimento de resignao que abordei uma escola destinada nas minhas intenes a abrir-meuma carreira de bibliotecria.

    E eis que se me abriu uma janela para um outro mundo. E queaps pouco mais de trs anos de cursos pontuados muitas vezes, preciso diz-lo, por crises de sono irreprimvel, quando se tratava,

    por exemplo, de biblioteconomia ou de arquivstica esses temposa que chamamos obscuros me apareciam numa luz insuspeitvel.O mrito da escola era de nos colocar de repente em face dos prprios

    materiais da histria. Nenhuma literatura, muito pouca importnciadada s opinies emitidas por professores, mas uma exigncia rigorosa

    perante textos ou monumentos da poca tomados no sentido maislato. Eramos levados, em suma, a ser tcnicos da histria, e isso eramais frtil que as diversas filosofias da mesma histria que tnhamostido ocasio de abordar anteriormente. No terceiro ano, sobretudo,a arqueologia e mais ainda a histria do direito, ensinada por essemestre que foi Roger Grand, faziam-nos penetrar numa sociedadenas suas estruturas profundas como na sua expresso artstica; rev- la vam-nos um passado aflorando ainda o presente, um mundo que

    tinha visto apagar-se o lirismo, nascer a literatura romanesca e

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    erguerem-se Chartres e Reims; a identificar uma esttua aps outra,descobramos personagens de uma grande humanidade; a folhear

    cartas ou manuscritos tomvamos conscincia de uma harmonia daqual cada sinete, cada linha traada, cada paginao pareciam deter

    o segredo.Tanto assim que, pouco a pouco, uma pergunta nascia, a qual,

    em tempos demasiado difceis para deixar lugar para a contestao,mal ousvamos formular: por que razo nada nos tinha nunca deixado

    pressentir tudo isso? Por que razo esses programas que nunca nosfaziam entrever seno um grande vazio entre o sculo de Augustoe o Renascimento? Por que razo tnhamos de adoptar sem discusso

    a opinio de um Boileau sobre os sculos grosseiros e acolherapenas com um sorriso indulgente a dos romnticos sobre a florestagtica ?

    A presente obra nasceu destas interrogaes e de uma srie deoutras semelhantes. E parece que hoje toda a gente as colocaria.

    Mas nem mesmo essa a questo. Como entretanto comearam aviajar, os Franceses, como toda a gente, aprenderam a ver. Umacultura latente que faltava completamente na minha juventude, emque a Cultura era ainda apangio de uma sociedade muito restrita,

    difundiu-se. E se no chegmos ainda ao ponto de viajar tanto comoos Anglo-Saxes, ou de ler tanto como os Irlandeses, o nvel geral,sobretudo de h vinte e cinco anos para c, contrariamente a tantosclamores pessimistas, parece-nos ter-se consideravelmente elevado.Tanto assim, que um pouco por toda a parte comea-se a saberdiscernir no nosso meio aquilo que merece ser admirado.

    Vai passar a sua vida a reescrever essa obra, tinha-me dito,quando do seu aparecimento, l on Gischia; e essa segurana, vindade um pintor que eu admirava profundamente, ele prprio muito

    informado sobre as diversas formas de arte da nossa Idade Mdia, tinha-me tocado. De facto, ele tinha razo. Todos os meus trabalhos iamser consagrados a estudar, aprofundar, esclarecer os caminhos aquiabertos ou entrevistos, a tentar uma explorao mais completa, aquerer faz-la partilhar tambm por um pblico muito pronto paramanifestar a sua curiosidade de esprito; isto sobretudo, notemo-lo,

    fora dos meios tradicionalmente votados cultura clssica e a ela s.A propsito desta reedio, trinta e cinco anos exactamente aps

    o seu aparecimento, punha-se a questo de rejuvenescer ou no aobra. Feita a reflexo, deixamo-la tal como foi escrita. Os leitores esto hoje aptos a cobrir as suas eventuais lacunas, graas a coleces como a de Zodaco sobre a arte romana ou como os Cahiers de

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    LUZ SOBRE A IDADE MDIA II

    civilisation mdivale; ou ainda graas a esses estudos to honestos,to trabalhados, de Reto Bezzola, de Pierre Rich, de Paul Zumthor,

    de Lopold Gnicot e de inmeros eruditos americanos, Lynn Whitee tantos outros.No deixaremos de notar aqui e alm algumas aproximaes.

    Assim, reproduzi bastante inocentemente o que me ensinaram relativoao esquecimento da escultura at poca romana e gtica; os

    pintores do nosso tempo corrigiram de certa maneira a nossa visoe fizeram-nos compreender que os pintores de fescos romanos no estavam espera de um Matisse para obedecer s leis da perspectiva. Ou so ainda erros de detalhe: Abelardo nunca ensinou em

    Argenteuil; mas hoje j se sabe mais sobre ele.Teramos querido rectificar do mesmo modo, aqui e alm, im

    precises, detalhes que fazem poca, eptetos intempestivos, ju zosum pouco peremptrios: culpa da juventude; mas ao suprimi-loscorreria o risco de suprimir tambm um certo fervilhar de entusiasmo devido a essa mesma juventude. Podemos invocar para ela a indulgncia do leitor. Essa mesma indulgncia que memanifestou, na

    primeira vez que franqueei, muito intimidada, a porta das ediesGrassei, o querido Henry Poulaille, ento director do servio literrio. A despeito das suas imperfeies, esta obra pode apresentar

    para outros uma iniciao um pouco comparvel que recebi navelha casa do n. 19 da Rue de la Sorbonne.

    *

    Seria encetar um outro captulo sem dvida o mais importantedizer todo o reconhecimento que sinto para com todos os que inspiraram, acolheram, encorajaram esta obra e me forneceram a suamatria ou a sua forma. Recuando no tempo, haveria em primeirolugar os que aconselharam ou quiseram esta reedio: Christian deBartillat, das edies Stock, ou Franoise Verny, das ediesGrassei. E alm deles, tantos eruditos, mestres ou colegas. Apreciamos melhor, quand le jour baisse aux fentres et que se taisentles chansortb- o alcance do qu'as-tu que tu ne l'aies reu? 2

    ( 1 ) Ouando o dia decl ina sob as Janelas e se ca lam as canOes.(N. do R. p

    ( 2 ) Que adquiriste tu que no tenhas recebido? (N. do R.)

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    Mas, em prim eiro lu gar e para alm do mais, houve com o ponto

    de partida para esta obra, o conselho e a opimao do meu irmo Georges (Se tudo o que nos contas sobre a Idade Mdia e exacto, escreve-o-ningum o sabe), e, por consequncia, todas as outrasminhas obras tero sido inspiradas, guiadas, revistas postas em pratica

    p o r aquele que, atento obra dos outros a ponto de negligencia r po risso a sua prpria obra, conhece hoje a l u z para alm de toda a luz.

    2 de Fevereiro de 1981.

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    [...] esses tempos a quem chamam obscuros.

    (Miguel de UNAMUNO)

    CAPITULO I

    A ORGANIZAO SOCIAL

    Julgou-se durante muito tempo que bastava, para explicar a

    sociedade medieval, recorrer clssica diviso em trs ordens: clero,nobreza e terceiro estado. a noo que do ainda os manuais dehistria: trs categorias de indivduos, bem definidas, tendo cada umaas suas atribuies prprias e nitidamente separadas umas das outras.

    Nada est mais afastado da realidade histrica. A diviso em trsclasses pode aplicar-se ao Antigo Regime, aos sculos xvn e xvm,onde, efectivamente, as diferentes camadas da sociedade formaramordens distintas, cujas prerrogativas e relaes do conta do mecanismo da vida. No que concerne Idade Mdia, semelhante diviso

    superficial: explica o agrupamento, a repartio e distribuio dasforas, mas nada revela sobre a sua origem, sobre a sua jurisdio,sobre a estrutura profunda da sociedade. Tal como aparece nostextos jurdicos, literrios e outros, esta bem uma hierarquia, com

    portando uma ordem determinada, mas esta ordem outra que noa que se julgou, e partida muito mais diversa. Nos actos notariais,v-se correntemente o senhor de um condado, o cura de uma parquia aparecerem como testemunhas em transaces entre vilo, ccorte1 de um baro quer dizer, o seu meio, os seus familiares -comporta tantos servos e frades como altas personagens. As atribuiesdestas classes esto tambm estreitamente misturadas: a maior partedos bispos so igualmente senhores; ora muitos deles saem do povomido; um burgus que compra uma terra nobre toma-se, em certasregies, ele prprio nobre. Logo que abandonamos os manuais paramergulhar nos textos, esta noo das trs classes da sociedadeaparece-nos como fictcia e sumria.

    Mais prxima da verdade, a diviso em privilegiados e noprivilegiados permanece, ela tambm, incompleta, porque houve, naIdade Mdia, privilegiados da alta mais baixa escala social. O mais

    pequeno aprendiz , a determinados nveis, um privilegiado, poisparticipa dos privilgios do corpo de ofcio; as isenes da Univer-

    ( 1 ) Mesnada o termo correspondente entre ns, mas de sentidodiferente, englobando uni companheirismo guerreiro. (N. do R.)

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    sidade aproveitam tanto aos estudantes e mesmo aos seus criadoscomo aos mestres e aos doutores. Alguns grupos de servos rurais go

    zam de privilgios precisos que o seu senhor obrigado a respeitar.No considerar, como privilgios, seno os da nobreza e do clero, conceder uma noo completamente errnea da ordem social.

    Para compreender bem a sociedade medieval, necessrio estudara sua organizao familiar. A se encontra a chave da Idade Mdiae tambm a sua originalidade. Todas as relaes, nessa poca, seestabelecem sobre a estrutura familiar: tanto as de senhor-vassalocomo as de mestre-aprendiz. A vida rural, a histria do nosso solo,no se explicam seno pelo regime das famlias que a viveram.

    Queria-se avaliar a importncia de uma aldeia? Contava-se o nmerode fogos e no o nmero de indivduos que a compunham. Na legislao, nos costumes, todas as disposies tomadas dizem respeito aosbens de famlia, ao interesse da linhagem, ou, estendendo esta noofamiliar a um crculo mais importante, ao interesse do grupo, docorpo de ofcio, que no seno uma vasta famlia fundada sobreo mesmo modelo que a clula familiar propriamente dita. Os altos

    bares so antes de tudo pais de famlia, agrupando sua volta todosos seres que, pelo seu nascimento, fazem parte do domnio patrimonial;as suas lutas so querelas de famlia, nas quais toma parte toda essa

    corte, a qual tm o cargo de defender e de administrar. A histriada feudalidade no outra seno a das principais linhagens.E que ser, no fim de contas, a histria do poder real do sculo xao sculo xiv? A de uma linhagem, que se estabelece graas suafama de coragem, ao valor de que os seus antepassados tinham feitoprova: muito mais que um homem, uma famlia que os barescolocaram sua cabea; na pecsoa de Hugo Capeto viam o descendente de Roberto, o Forte, que tinha defendido a regio contraos invasores normandos, de Hugo, o Grande, que tinha j usado acoroa; facto que transparece no famoso discurso de Adalbron deReims: Tomai por chefe o duque dos Francos, glorioso pelas suasaces,pela sua famlia e pelos seus homens,o duque em quem encontrareis um tutor no s dos negcios pblicos, mas dos vossos negcios privados. Esta linhagem manteve-se no trono por hereditariedade, de pai para filhos, e viu os seus domnios crescerem por heranas e por casamentos, muito mais que por conquistas: histria que serepete milhares de vezes na nossa terra, a diversos nveis, e que decidiu uma vez por todas os destinos da Frana, fixando na sua terralinhagens de camponeses e de artesos, cuja persistncia atravs dos

    reveses dos tempos criou realmente a nossa nao. Na base da energia francesa h a famlia, tal como a Idade Mdia a compreendeue conheceu.

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    No poderamos apreender melhor a importncia desta basefamiliar que opondo, por exemplo, a sociedade medieval, comportade famlias, sociedade antiga, composta de indivduos. Nesta, ohomem, vir, detm a primazia em tudo; na vida pblica ele o civis,o cidado, que vota, que faz as leis e toma parte nos negcios deEstado; na vida privada, o pater famlias, o proprietrio de um bemque lhe pertence pessoalmente, do qual o nico responsvel e sobreo qual as suas atribuies so quase ilimitadas. Em parte algumase v a sua famlia ou a sua linhagem participando na sua actividade.A mulher e os filhos esto-lhe inteiramente submetidos e permanecemem relao a ele em estado de menoridade perptua; tem sobre eles,

    como sobre os escravos ou sobre as propriedades, o ju s utendi etabutendi, o poder de usar e abusar. A famlia parece no existir senoem estado latente; no vive seno pela personalidade do pai, simultaneamente chefe militar e grande sacerdote; isto com todas as consequncias morais que da decorrem, entre as quais preciso colocaro infanticdio legal. A criana de resto na Antiguidade a grandesacrificada: um objecto cuja vida depende do juzo ou do capricho

    paternal; est submetido a todas as eventualidades da troca ou daadopo, e, quando o direito de vida lhe acordado, permanece soba autoridade do pater famlias at morte deste; mesmo ento noadquire de pleno direito a herana paterna, j que o pai pode dispor vontade dos seus bens por testamento; quando o Estado se ocupadesta criana no de todo para intervir a favor de um ser frgil,mas para realizar a educao do futuro soldado e do futuro cidado.

    Nada subsiste desta concepo na nossa Idade Mdia. O queimporta ento j no o homem, mas a linhagem. Poderamos estudara Antiguidade e estudamo-la de facto sob a forma de biografiasindividuais: a histria de Roma a de Sila, de Pompeu, de Augusto;a conquista dos Gauleses a histria de Jlio Csar. Abordar-se a

    Idade Mdia? Uma mudana de mtodo impe-se: a histria da unidade francesa a da linhagem capetiana; a conquista da Siclia ahistria dos descendentes de uma famlia normanda, demasiado numerosa para o seu patrimnio. Para compreender bem a Idade Mdia, preciso v-la na sua continuidade, no seu conjunto. E talvez por issoque ela muito menos conhecida e muito mais difcil de estudar queo perodo antigo, porque necessrio apreend-la na sua complexidade, segui-la na continuidade do tempo, atravs dessas cortes queso a sua trama; e no apenas as que deixaram um nome pelo brilhodos seus feitos ou pela importncia do seu domnio, mas tambm asgentes mais humildes, das cidades e dos campos, que precisoconhecer na sua vida familiar se quisermos dar conta do que foi asociedade medieval.

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    0 que, alis, se explica: durante esse perodo de perturbaes

    e de decomposio total que foi a Alta Idade Mdia, a nica fontede unidade, a nica fora que permaneceu viva, foi precisamente oncleo familiar, a partir do qual se constituiu pouco a pouco a unidade francesa. A famlia e a sua base fundiria foram assim, devidos circunstncias, o ponto de partida da nossa nao.

    Esta importncia dada famlia traduz-se por uma preponderncia, muito marcada na Idade Mdia, da vida privada sobre a vida

    pblica. Em Rom a, um homem no tem valor seno enquanto exerceos seus direitos de cidado: enquanto vota, delibera e participa nosnegcios do Estado; as lutas da plebe para obter o direito de ser

    representada por um tribuno so a este nvel bastante significativas.Na Idade Mdia, raramente se trata de negcios pblicos: ou melhor,estes tomam logo o aspecto de uma administrao familiar; so contas de domnio, regulamentos de rendeiros e de proprietrios; mesmoquando os burgueses, no momento da formao das comunas, reclamam direitos polticos, para poderem exercer livremente o seu ofcio, no serem mais incomodados pelas portagem e pelos direitosde alfndega; a actividade poltica, em si, no apresenta interesse paraeles. De resto, a vida rural ento infinitamente mais activa que avida urbana, e, tanto numa como noutra, a famlia, no o indivduo,quem prevalece como unidade social.

    Tal como nos aparece no sculo X, a sociedade assim compreendida apresenta como trao essencial a noo de solidariedadefamiliar sada dos costumes brbaros, germnicos ou nrdicos. Afamlia considerada como um corpo, em todos os membros do qualcircula um mesmo sangue, ou como um mundo reduzido, desem

    penhando cada ser o seu papel com a conscincia de fazer parte deum todo. A unio no repousa, pois, como na antiguidade romana,sobre a concepo estatista da autoridade do seu chefe, mas sobre

    esse facto de ordem biolgica e moral, ao mesmo tempo, de acordocom o qual todos os indivduos que compem uma mesma famliaesto unidos pela carne e pelo sangue, os seus interesses so solidrios,e nada mais respeitvel que a afeio que naturalmente os animauns para com os outros. Tem-se muito vivo o sentido desse carctercomum dos seres de uma mesma famlia:

    Les gentils fils des gertiils presDes gentils et des bonnes mreslis ne font pas de pesants heres [hoirs, hritiers] 2

    2 Os gentis filhos dos gentia pois/Dos gentis e dos boas mes/No se tornam herdeiros pesados.

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    diz um autor do tempo. Aqueles que vivem debaixo de um mesmotecto, que cultivam o mesmo campo e que se aquecem no mesmofogo, ou, para empregar a linguagem do tempo, os que participamdo mesmo po e pote 3, que cortam a mesma cdea, sabem que

    podem contar uns com os outros, que o apoio da sua corte no lhesfaltar. O esprito de grupo , com efeito, mais potente aqui do que

    poderia ser em qualquer outro agrupamento, j que se funda sobreos laos inegveis do parentesco pelo sangue e se apoia sobre umacomunidade de interesses no menos visvel e evidente. O autor dequem foi citado o extracto precedente, tienne de Fougres, protestano seu Livre des Manires [Livro das Maneiras] contra o nepotismo

    dos bispos; todavia, reconhece que estes fariam bem em rodear-sedos seus parentes se esto de boas relae., pois, diz ele, nuncapodemos ter a certeza da fidelidade dos estranhos, enquanto os nossos, pelo menos, no nos faltaro.

    Partilha-se, pois, as alegrias e os sofrimentos; recolhe-se emcasa os filhos daqueles que morreram ou esto em diculdades,e todas as pessoas de uma mesma casa se agitam para desagravar4a injria feita a um dos $ur> membros. O direito de guerra privada,reconhecido durante grande parte da Idade Mdia, no seno aexpresso da solidariedade familiar. Correspondia, no seu inc o, a

    uma necessidade: quando da fraqueza do poder central, o indivduono podia contar com qualquer outra ajuda a no ser a da corte parao defender, e durante toda a poca das invases ficaria entregue, sozinho, a toda a e pcie de perigos e de misrias. Para viver era precisofazer frente, agrupar-se e que grupo valeria alguma vez mais queuma famlia resolutamente unida?

    A solidariedade familiar, exprimindo-se se fosse preciso pelorecurso s armas, resolvia ento o difcil problema da segurana pessoal e da do domnio. Em certas provncias, particularmente no Norteda Frana, o habitat traduz este sentimento da solidariedade: o principal compartimento da casa a sala, a sala que preside, com a suavasta lareira, s reunies de famlia, a sala onde se renem para comer,para festejar nos casamentos e nos aniversrioA e para velar os mortos; o hall dos costumes anglo-saxes porque a Inglaterra teve naIdade Mdia costumes semelhantes aos nossos, aos quais permaneceufiel em muitos pontos.

    A esta comunidade de bens e de afeio necessrio um administrador. naturalmente o pai de famlia que desempenha este papel.

    3 Em portu gus a expresso corresponden te ser comer da mesmagamela. (N. do R)

    4 O desagravo no Portugal medieval o direito de revindicta.(N. do R.)

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    Mas a autoridade de que ele desfruta antes a de um gerente em

    lugar de ser a de um chefe, absoluta e pessoal como no direito romano:gerente responsvel, directamente interessado na prosperidade da casa,mas que cumpre um dever mais do que exerce um direito. Protegeros seres fracos, mulheres, crianas, servos, que vivem debaixo do seutecto, assegurar a gesto do patrimnio, tal o seu cargo; mas noo consideram o chefe definitivo da casa familiar, nem como o proprietrio do domnio. Embora desfrute dos seus bens patrimoniais, notem seno o seu usufruto; tal como os recebeu dos antepassados devetransmiti-los queles cujo nascimento designar para lhe sucederem.O verdadeiro proprietrio a famlia, no o indivduo.

    Do mesmo modo, embora possua toda a autoridade necessriapara as suas funes, est longe de ter, sobre a mulher e os filhos,esse poder sem limites que lhe concedia o direito romano. A mulhercolabora na manbourne, quer dizer, na administrao da comunidadee na educao dos filhos; ele gere os bens prprios porque o consideram mais apto do que ela para os fazer prosperar, coisa que nose consegue sem esforo e sem trabalho; mas quando, por uma razoou por outra, tem de se ausentar, a mulher retoma essa gesto sem omnimo obstculo e sem autorizao prvia. Guarda-se to viva arecordao da origem da sua fortuna que, no caso em que uma

    mulher morra sem filhos, os seus bens prprios voltam integralmentepara a sua famlia; nenhum contrato pode opor-se a isto, as coisaspassam-se naturalmente assim.

    Em relao aos filhos, o pai o guardio, o protector e o mestre.A sua autoridade paterna pra na maioridade, que adquirem muito

    jovens: quase sempre aos catorze anos entre os plebeus; entre osnobres, a idade evolui de catorze a vinte anos, porque tm de fornecerpara a defesa do feudo um servio mais activo, que exige forase experincia. Os reis de Frana eram considerados maiores com catorze

    ou quinze anos, e foi com esta idade, sabe-se, que Filipe Augustoatacou cabea das suas tropas. Uma vez maior, o jovem continuaa gozar da proteco dos seus e da solidariedade familiar, mas,diferentemente do que se passava em Roma e consequentemente nos

    pases de direito escrito, adquire plena liberdade de iniciativa e podeafastar-se, fundar uma famlia, administrar os seus prprios benscomo entender. Logo que capaz de agir por si mesmo, nada vementravar a sua actividade; torna-se senhor de si prprio, mantendo,no entanto, o apoio da famlia de que saiu. uma cena clssica dosromances de cavalaria ver os filhos da casa, logo que esto em idade

    de usar armas e de receber a investidura, deixar a residncia paternapara correr o mundo ou ir servir o seu suserano.A noo de famlia assim compreendida repousa sobre uma base

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    material: a herana de famlia bem fundirio em geral, porquea terra constitui, desde os comeos da Idade Mdia, a nica fontede riqueza e permanece consequentemente o bem estvel por excelncia.

    Hritage ne peut mauvoirMais meubles est chose volage '

    dizia-se ento.Esta herana familiar, quer se trate de umarrendamento servil ou de um domnio senhorial, permanece sempre

    propriedade da linhagem. impenhorvel e inalienvel; os reveses

    acidentais da famlia no podem atingi-la. Ningum lha pode tomare a famlia tambm no tem o direito de a vender ou traficar.Quando o pai morre, estaherana de famlia passa para os her

    deiros directos. Se se trata de um feudo nobre,o filho mais velhorecebe quase a sua totalidade, porque necessrio umhomem, e umhomem amadurecido pela experincia, para manter e defender umdomnio; esta a razo do morgadio, que a maior parte dos costumesconsagra. Para os arrendamentos, o u~o variacom as provncias:

    por vezes a herana partilhada, mas em geral o filho mais velhoquem sucede. Notemos que se trata da herana principal, do patrimnio

    de famlia; as outras so, em tal circunstncia, partilhadas pelosfilhos mais novos; mas ao mais velho que cabe o solar principal,com uma extenso de terra suficiente para viver, bem como a suafamlia. justo, de resto, porque quase sempre o filho mais velhosecundou o pai e , depois dele, aquele que mais cooperou na manuteno e na defesa do patrimnio. Em algumas provncias, tais comoem Hainaut, Artois, Picardie e em algumas parte da Bretanha, . noo mais velho, mas o mais novo o sucessor herana principal, e umavez mais por uma razo de direito natural: porque, numa famlia,os mais velhos so os primeiros a casar e vo ento estabelecer-se

    por sua conta, enquanto o mais novo fica mais tempo com os paise trata-os na sua velhice. Este direito do mais jovem testemunha aelasticidade e a diversidade dos costumes, que se adaptam aos hbitosfamiliares de acordo com as condies de existncia.

    De qualquer maneira, o que notvel no sistema de transmissode bens que passam para um nico herdeiro, sendo este designado

    pelo sangue. No existe herdeiro por testamento, diz-se em direitoconsuetudinrio. Na transmisso do patrimnio de famlia, a vontade

    5 Uma herana no pode movimentar-se. / Mas os mveis so coisainstvel.11 Sem correspondncia em Portugal , normalmente esta euce3So

    do patrimnio passava para os filhos segundos. (N. do R.)

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    RGIE PERNO

    do testamenteiro no intervm. Pela morte de um pai de famlia, oseu sucessor natural entra de pleno direito em posse do patrimnio.O morto agarra o vivo, dizia-se ainda, nessa linguagem medieval,que tinha o segredo das expresses surpreendentes. E a morte doascendente que confere ao sucessor o ttulo de posse que o coloca defacto na posse da terra; o homem de lei no tem, como nos nossosdias, de passar por isso. Embora os costumes variem conforme olugar, fazendo aqui do mais velho, alm do mais novo o herdeironatural, embora a maneira como sobrinhos e sobrinhas possam pretender sucesso, falta de herdeiros directos, varie de acordo comas provncias, pelo menos uma regra constante: no se recebe uma

    herana seno em virtude dos laos naturais que unem uma pessoaa um defunto. Isto quando se trata de bens imveis; os testamentosnunca dizem respeito seno aos bens mveis ou a terras adquiridasdurante a vida e que no fazem parte dos bens de famlia. Quandoo herdeiro natural indigno do seu cargo, notoriamente, ou se ,

    por exemplo, pobre de esprito, so admitidas alteraes; mas emgeral a vontade humana no intervm contra a ordem natural dascoisas. Instituio de herdeiro no tem lugar, tal o adgio dos

    juristas de direito consuetudinrio. neste sentido que ainda hojese diz, falando das sucesses reais: O rei morreu, viva o rei. No

    h interrupo, nem vazio possvel, uma vez que s a hereditariedadedesigna o sucessor.Por isso a gesto dos bens de famlia se encontra continuamente

    assegurada. No deixar o patrimnio enfraquecer, tal realmente o fimque visam todos os costumes. Por isso nunca havia seno um nicoherdeiro, pelo menos para os feudos nobres. Temia-se a fragmentao, que empobrece a terra, dividindo-a at ao infinito: o parcelamento foi sempre fonte de discusses e de proces:os; prejudica o cultivador e dificulta o progresso material porque, para poder aproveitar os melhoramentos que a cincia ou o trabalho pem ao alcancedo campons, necessrio um empreendimento de certa importncia,que possa se necessrio suportar fracassos parciais e em qualquer casofornecer recursos variados. O grande domnio, tal como existe noregime feudal, permite uma sbia explorao da terra: pode-se deixarperiodicamente uma parte em pousio, o que lhe d tempo para serenovar, e variar as culturas, mantendo, de cada uma delas, umaharmoniosa proporo. Por isso a vida rural foi extraordinariamenteactiva durante a Idade Mdia e uma grande quantidade de culturasfoi introduzida em Frana durante essa poca.

    O que foi devido, em grande parte, s facilidades que o sistemarural da poca oferecia ao esprito de iniciativa da nossa raa. Ocampons de ento no nem um retardatrio nem um rotineiro. A

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    unidade e a estabilidade do domnio eram uma garantia tanto parao futuro como para o presente, favorecendo a continuidade do esforo

    familiar. Nos nossos dias, quando em presena se encontram vriosherdeiros, preciso desmembrar o fundo e passar por toda a espciede negociaes e de resgates para que um deles possa retomar aempresa paterna7. A explorao cessa com o indivduo. Ora, o indivduo passa enquanto o patrimnio fica, e, na Idade Mdia, tendia-se

    para residir. Se existe uma palavra significativa na terminologia medieval, essa palavra manso .senhorial, o lugar onde se est, manereo ponto de ligao da linhagem, o tecto que abriga os seus membros,

    passados e presentes, e que permite s geraes sucederem-se pacificamente.

    Bem caracterstico tambm, o emprego dessa unidade agrria quese denomina manse extenso de terra suficiente para que uma famlia

    possa nela fixar-se e viver. Variava naturalmente com as regies: umcantinho de terra na gorda Normandia ou na rica Gasconha trazmais ao cultivador que vastas extenses na Bretanha ou no Forez;a manse tem pois uma extenso muito varivel conforme o clima, asqualidades do solo e as condies de existncia. uma medida emprica, e, caracterstica essencial, de base familiar, no individual: resume

    por si s a caracterstica mais saliente da sociedade medieval.

    Assegurar famlia uma base fixa, lig-la ao solo de qualquerforma, para que a tome razes, possa dar fruto e perpetuar-se, tal a finalidade dos nossos antepassados. Se se pode traficar com asriquezas mveis e disp-las por testamento, porque por essnciaso mutveis e pouco estveis; pelas razes inversas, os bens fundiriosK, propriedade familiar, so inalienveis e impenhorveis. Ohomem no seno o guardio temporrio, o usufruturio; o verdadeiro proprietrio a linhagem.

    Uma srie de costumes medievais decorrem desta preocupaode salvaguardar o patrimnio de famlia. Assim, em caso de faltade herdeiro directo, os bens de origem paterna voltam para a famliado pai e os de origem materna para a da me enquanto no direitoromano s se reconhecia o parentesco por via masculina. aquiloa que se chama o direito de retorno, que desempata conforme a suaorigem os bens de uma famlia extinta. Do mesmo modo, o asilo delinhagem d aos parentes mesmo afastados direito de prefernciaquando por uma razo ou por outra um domnio vendido. A maneira como regulada a tutela de uma criana que ficou rf apre

    (7) .Sabemos que disposies recen tes vi eram fel izmente modif icaro re dim e das sucesses.

    (8) Bens fundirios prop rieda des rst icas , l igadas terra , ag ricu ltura Base da e conom ia medieval. (N. do R.)

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    senta tambm um tipo de legislao familiar. A tutela exercida pelo

    conjunto da famlia, e aquele cujo grau de parentesco designa paraadministrar os bens torna-se naturalmente o tutor. O nosso conselhode famlia no seno um resto do costume medieval que regula oarrendamento dos feudos e a guarda das crianas.

    A Idade Mdia tem, alis, to viva a preocupao de respeitaro curso natural das coisa?, de no criar prejuzos quando aos bensfamiliares, que, no caso em que aqueles que detm determinados bensmorram sem herdeiro, o seu domnio no pode voltar para os ascendentes; procura-se os descendentes mesmo afastados, primos ou parentes, tudo menos fazer voltar estes bens para os seus precedentes

    possessores: Bens prprios no voltam para trs. Tudo pelo desejode seguir a ordem normal da vida, que se transmite do mais velho

    para o mais novo, e no volta para trs: os rios no voltam nascente, do mesmo modo os elementos da vida devem alimentar aquiloque representa a juventude, o futuro. De resto mais uma garantia

    para o patrimnio da linhagem este virar-se necessariamente paraseres jovens, portanto mais activos e capazes de o fazer valer mais

    longamente.Por vezes, a transmisso dos bens faz-se de uma forma muito

    reveladora do sentimento familiar, que a grande fora da IdadeMdia. A famlia (aqueles que vivem de um mesmo po e pote)constitui uma verdadeira personalidade moral e jurdica, possuindoem comum os bens de que o pai o administrador; pela sua morte,a comunidade reconstitui-se com a orientao de um dos filhos-famlia,designado pelo sangue, sem que tenha havido interrupo da possedos bens nem transmisso de qualquer espcie. aquilo a que sechama a comunidade silenciosa, de que faz parte qualquer membroda casa de famlia que no tenha sido expressamente posto fora do po

    e pote. O costume sub:istiu at ao fim do Antigo Regime e podem-secitar famlias francesas que durante sculos nunca pagaram o mnimodireito de sucesso. O jurista Dupin assinalava deste modo, em 1840,a famlia Jault que no o pagava desde o sculo xiv.

    Em todos os casos, mesmo fora da comunidade silenciosa, a famlia, considerada no seu prolongamento atravs das geraes, permanece o verdadeiro proprietrio dos bens patrimoniais. O pai defamlia que recebeu estes bens dos antepassados deve dar conta delesaos seus descendentes; seja ele servo ou senhor, nunca o dono

    absoluto. Reconhece-se-lhe o direito de usar, no o de abusar, etem, alm disso, dever de defender, de proteger e de melhorar a sortede todos aqueles, seres e coisas, de que foi constitudo o guardionatural.

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    *

    E foi assim que se formou a Frana, obra destes milhares defamlias, obstinadamente fixadas ao solo, no tempo e no espao. Francos, Borgonheses, Normandos, Visigodos, todos esses povos mveis,cuja massa instvel faz da Alta Idade Mdia um caos to desconcertante, formavam, desde o sculo X, uma nao, solidamente ligada sua terra, unida por laos mais seguros que todas as federaes cujaexistncia se proclamou. O esforo renovado dessas famlias microscpicas deu origem a uma vasta famlia, um macrocosmo, cuja brilhante administrao, a linhagem capetiana simboliza maravilha,gloriosamente conduzindo de pai para filho, durante trs sculos, os

    destinos da Frana. certamente um dos mais belos espectculosque a histria pode oferecer, essa famlia sucedendo-se nossa cabeaem linha directa, sem interrupo, sem desfalecimento, durante maisde trezentos anos um tempo igual ao que se passou desde o aparecimento do rei Henrique IV at guerra de 1940...

    Mas o que importa compreender que a histria dos Capetosdirectos no seno a histria de uma famlia francesa entre milhesde outras. Esta vitalidade, esta persistncia na nossa terra, todosos lares de Frana a possuram, num grau mais ou menos equivalente,excepo feita a acidentes ou acasos, inveitveis na existncia. A IdadeMdia, sada da incerteza e do desacordo, da guerra e da invaso,foi uma poca de estabilidade, de permanncia, no sentido etimolgico da palavra.

    Facto que se deve s suas instituies familiares, tais como asexpe o nosso direito consuetudinrio. Nelas se conciliam com efeitoo mximo de independncia individual e o mximo de segurana.Cada indivduo encontra em casa a ajuda material, e na solidariedadefamiliar a proteco moral de que pode ter necessidade; ao mesmotempo, a partir do momento em que se pode ter necessidade; ao

    mesmo tempo, a partir do momento em que se basta a si prprio, ele livre, livre de desenvolver a sua iniciativa, de fazer a sua vida;nada entrava a expanso da sua personalidade. Mesmo os laos queo ligam casa paterna, ao seu passado, s suas tradies, no tmnada de entrave; a vida recomea inteira para ele, tal como, biologicamente falando, ela recomea inteira e nova para cada ser que vemao mundo ou como a experincia pessoal, tesouro incomunicvelque cada um deve forjar para si prprio, e que s vlido desdeque do prprio.

    evidente que uma semelhante concepo da famlia basta para

    fazer todo o dinamismo e tambm toda a solidez de uma nao. Aaventura de Robert Guiscard e dos irmos, filho-segundos de uma

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    famlia normanda, excessivamente pobre e excessivamente numerosa,que emigra, toma-o rei da Siclia e funda a uma dinastia poderosa,

    eis o prprio tipo da histria medieval, toda feita de audcia, desentimento familiar e de fecundidade. O direito consuetudinrio, quefez a fora do nosso pas, opunha-se nisso directamente ao direitoromano, no qual a coeso da famlia no se deve seno autoridadedo chefe, estando todos os membros submetidos a uma rigorosa disciplina durante toda a vida: concepo militar, estatista, repousandosobre uma ideologia de legistas e de funcionrios, no sobre o direitonatural. Comparou-se a famlia nrdica a uma colmeia que se desloca

    periodicamente e se multiplica renovando os terrenos de colheita e afamlia romana a uma colmeia que no enxamearia nunca. Disse-setambm da famlia medieval que ela formava pioneiros e homensde negcios, enquanto a famlia romana d nascimento a militares,administradores, funcionrios9.

    curioso seguir, ao longo dos sculos, a histria dos povosformados nestas diferentes disciplinas e verificar os resultados a quechegaram. A expanso romana tinha sido poltica e militar, e notnica; os Romanos conquistaram um imprio pelas armas e conser-varam-no por intermdio dos seus burocratas; este imprio s foislido enquanto soldados e funcionrios puderam vigi-lo facilmente;

    no parou de crescer a desproporo entre a extenso das fronteirase a centralizao, que o fim ideal e a consequncia inevitvel dodireito romano; ele desabaria por si prprio, pelas suas prprias instituies, quando o mpeto das invases lhe veio dar o golpe de misericrdia.

    Podemos, a este exemplo, opor o das raas anglo-saxnicas; osseus costumes familiares foram idnticos aos nossos durante toda aIdade Mdia, e, contrariamente ao que se passou entre ns, mantiveram-nos; isso sem dvida que explica a sua prodigiosa expansoatravs do mundo. Vagas de exploradores, de pioneiros, de comer

    ciantes, de aventureiros e de temerrios deixando as suas casas a fimde tentarem a sorte, sem por isso esquecerem a terra natal eas tradies dos pais, eis o que funda um imprio.

    Os pases germnicos, que nos forneceram em grande parte oscostumes que a nossa Idade Mdia adoptou, cedo se impuseramo direito romano. Os seus imperadores estavam em situao de retomar as tradies do Imprio do Ocidente e julgavam que, para unificaras vastas regies que lhes estavam submetidas, o direito romano lhesfornecia um excelente instrumento de centralizao. Foi a, portanto,

    (9) Es tas form ulas vm-n os de Roger Grand, professor na Ecoledes Chartes.

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    das nossas necessidades? os nossos costumes que nunca foram maisque os nossos prprios hbitos constatados e formulados juridicamente,os usos de cada indivduo ou, melhor ainda, do grupo de que cada umfazia parte. O direito romano tinha sido concebido por um Estadourbano, no por uma regio rural. Falar da Antiguidade evocarRoma ou Bizncio; para fazer reviver a Frana medieval precisoevocar no Paris, mas a Ilha de Frana, no Bordus, mas a Guiana,no Ruo, mas a Normandia; no podemos conceb-la seno nas suas

    provncias de solo fecundo em belo trigo e em bom vinho. umfacto significativo ver durante a Revoluo aquele a quem se chamavao manant (aquele que fica) tomar-se o cidado: em cidado h cida

    de. O que se compreende, j que a cidade iria deter o poder poltico,portanto o poder principal, porque, tendo deixado de existir o costume, tudo deveria a partir da depender da lei. As novas divisesadministrativas de Frana, os departamentos que giram todos voltade uma cidade, sem ter em conta a qualidade do solo dos camposque a ela se ligam, manifestam bem esta evoluo de estado de esprito.A vida familiar estava nessa poca suficientemente enfraquecida paraque possam estabelecer-se instituies tais como o divrcio, a aliena-

    bilidade do patrimnio ou as leis modernas sobre as sucesses. Asliberdades privadas de que antes se tinha sido to cioso desapareciam

    perante a concepo de um Estado centralizado maneira romana.Talvez devssemos procurar a a origem de problemas que depois se

    puseram com tanta acuidade: problemas da infncia, da educao,da famlia, da natalidade que no existiam na Idade Mdia, porquea famlia era ento uma realidade, porque possua a base materiale moral e as liberdades necessrias sua existncia.

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    CAPTULO II

    O VNCULO FEUDAL

    Pode-se dizer da sociedade actual que est fundada sobre osalariado. No plano econmico, as relaes de homem para homemligam-se s relaes do capital e do trabalho: realizar um determinadotrabalho, receber em troca uma determinada soma, tal o esquemadas relaes sociais. O dinheiro o seu nervo essencial, j que, salvoraras excepes, uma actividade determinada se transforma primeiroem numerrio antes de mudar de novo para quaisquer dos objectosnecessrios vida.

    Para compreender a Idade Mdia, temos de nos representar umasociedade que vive de um modo totalmente diferente, donde a noo

    de trabalho assalariado e mesmo em parte a de dinheiro esto ausentesou so muito secundrias. O fundamento das relaes de homem parahomem a dupla noo de fidelidade, por um lado, e de proteco,

    por outro. Assegura-se devoo a qualquer pes;oa e espera-se delaem troca segurana. Compromete-se, no a actividade em funode um trabalho preciso, de remunerao fixa, mas a prpria pessoa,ou melhor, a sua f, e em troca requere-se subsistncia e proteco,em todos os sentidos da palavra. Tal a essncia do vnculo feudal.

    Esta caracterstica da sociedade medieval explica-se ao considerarmos as circunstncias que presidiram sua formao. A origem encontra-se nessa Europa catica do sculo v ao sculo viu. O Imprio Romano desmoronava-se sob o duplo efeito da decomposio interior e da

    presso das invases. Tudo em Rom a dependia da fora do podercentral; a partir do momento em que esse poder foi ultrapassado, aruna era inevitvel; nem a ciso em dois imprios nem os esforosde recuperao provisria poderiam trav-la. Nada de slido subsistenesse mundo em que as foras vivas foram pouco a pouco esgotadas

    por um funcionalismo sufocante, onde o fisco oprime os pequenosproprietrios, que em breve no tm outro recurso seno ceder as

    suas terras ao Estado para pagar os impostos, onde o povo abandonaos campos e apela voluntariamente, para o trabalho dos campos, aesses mesmos brbaros que dificilmente so contidos nas fronteiras;

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    assim que, no Estado da Glia, os Borgonheses se instalam na

    regio Sabia-Franco-Condado e se tomam os rendeiros dos proprietrios galo-romanos, cujo domiclio partilham. Sucessivamente, pacificamente ou pela espada, as hordas germnicas ou nrdicas assomamno mundo ocidental; Roma tomada e retomada pelos Brbaros,os imperadores so eleitos e destitudos conforme o capricho dossoldados, a Europa no mais que um vasto campo de batalha ondese enfrentam as armas, as raas e as religies.

    Como poder algum defender-se numa poca em que a agitaoe a instabilidade so a nica lei? O Estado est distante e impotente,seno inexistente; cada um move-se por isso naturalmente em direco

    nica fora que permaneceu realmente slida e prxima: os grandesproprietrios fundirios, aqueles que podem assegurar a defesa doseu domnio e dos seus rendeiros; fracos e pequenos recorrem a eles;confiam-lhes a sua terra e a sua pessoa, com a condio de se verem

    protegidos contra os excessos fiscais e as incurses estrangeiras. Porum movimento que se tinha esboado a partir do Baixo Imprio e notinha parado de se acentuar nos sculos VII e VIII, o poderio dosgrandes proprietrios aumenta com a fraqueza do poder central. Cadavez mais se procura a proteco do senhor (snior), a nica activae eficaz, que proteger no s da guerra e da fome, mas tambmda ingerncia dos funcionrios reais. Assim se multiplicam as cartasde vassalagem, pelas quais a arraia-mida se liga a um senhor paraassegurar a sua segurana pessoal. Os reis merovngios tinham, alis,o hbito de se cercarem de uma corte de fiis (fidles), de homensdevotados sua pessoa, guerreiros ou outros, o que levar os poderosos da poca a agruparem sua volta, por imitao, os vassalos(vassi), que julgaram bom recomendarem-se a eles. Enfim, estes reis,eles prprio:, ajudaram muitas vezes formao do poder dominial,distribuindo terras aos seus funcionrios cada vez mais desprovidos

    de autoridade face aos grandes proprietrios para retribuir os seusservios.Quando os Carolngios chegaram ao poder, a evoluo estava

    quase terminada: em toda a extenso do territrio, senhores, mais oumenos poderosos, agrupando sua volta os seus homens, os seusfiis, administravam os feudos, mais ou menos extensos; sob a pressodos acontecimentos, o poder central tinha dado lugar ao poder local,que tinha absorvido, pacificamente, a pequena propriedade e permanecia, afinal de contas, a nica fora organizada; a hierarquia medieval, resultado dos factos econmicos e sociais, tinha-se formado a

    partir de si prpria, e os seus u?os, nascidos sob a presso das circunstncias, manter-se-iam pela tradio.

    No tentaram lutar contra o estado dos acontecimentos: a dinastia

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    de Pepino tinha de resto chegado ao poder porque os seus represen

    tantes se contavam entre os mais fortes proprietrios da poca. Con-tentaram-se em canalizar as foras em presena das quais faziamparte e em aceitar a hierarquia feudal tirando dela o partido quepodiam tirar. Tal a origem do estado social da Idade Mdia, cujascaractersticas so completamente diferentes das que se conheceramat a: a autoridade, em lugar de estar concentrada num s ponto

    indivduo ou organismo , encontra-se repartida pelo conjuntodo territrio. Foi essa a grande sabedoria dos Carolngios, no tentarem ter nas mos toda a mquina administrativa, mantendo a organizao emprica que tinham encontrado. A sua autoridade imediata

    no se estendia seno a um pequeno nmero de personagens, quepossuam elas prprias autoridade sobre outros, e assim de seguidaat s camadas sociais mais humildes; mas, degrau a degrau, umaordem do poder central podia assim transmitir-se ao conjunto do

    pas; aquilo que no controlavam directamente podia todavia seratingido indirectamente. Em lugar de combat-la, pois, Carlos Magnocontentou-se em disciplinar a hierarquia que deveria impregnar tofortemente os hbitos franceses; reconhecendo a legitimidade do duplo

    juramento que todo o homem livre devia a si prprio e ao seu senhor,ele consagrou a existncia do vnculo feudal. Tal a origem da sociedade medieval, e tambm a da nobreza, fundiria e no militar, comose julgou demasiadas vezes.

    Desta formao emprica, modelada pelos factos, pelas necessidades sociais e econm icas7, decorre uma extrema diversidade nacondio das pessoas e dos bens, j que a natureza dos compromissosque uniam o proprietrio ao seu rendeiro variava segundo as circunstncias, a natureza do solo e o modo de vida dos habitantes; toda aespcie de factores entram em jogo, os quais diferem de uma provncia

    para a outra, ou mesmo de um domnio para o outro, as relaes

    e a hierarquia; mas o que permanece estvel a obrigao recproca:fidelidade por um lado, proteco pelo outro por outras palavras:o vnculo feudal.

    Durante a maior parte da Idade Mdia, a principal caractersticadeste vnculo ser pessoal: um determinado vassalo, preciso e determinado, recomenda-se a um determinado senhor, igualmente precisoc determinado; decide vincular-se a ele, jura-lhe fidelidade e esperacm troca subsistncia material e proteco moral. Quando Rolandmorre, evoca Carlos, seu senhor que o alimentou, e esta simplesevocao diz bastante da natureza do vnculo que os une. Somente a

    ' Citemos a excelente frmula de Henri Pourrai: O sistema feudalfoi a organizao viva Imposta pela terra aos homens da terra (L'homme Ia bche H is to rie du paysa n, p. 83).

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    par tir do sculo x iv o vnculo se tornar mais real que pessoal; ligar-se- posse de uma propriedade e decorrer das obrigaes fundirias queexistem entre o senhor e os seus vassalos, cujas relaes se assemelharo desde ento muito mais s de um proprietrio com os seuslocatrios; a condio da terra que fixa a condio da pessoa. Mas

    para todo o perodo medieval propriamente dito, os vnculos criam-sede indivduo para indivduo. Nchl est preter ndvduum, dizia-se,nada existe fora do indivduo: o gosto de tudo o que pessoal e

    preciso, o horror da abstraco e do anonimato so de resto caractersticas da poca.

    Este vnculo pessoal que liga o vassalo ao suserano proclamado

    no decorrer de uma cerimnia em que se afirma o formalismo, caro Idade Mdia: porque qualquer obrigao, transaco, ou acordodevem ento traduzir-se por um gesto simblico, forma visvel e indis

    pensvel do assentimento interior. Quando, por exemplo, se vendeum terreno, o que constitui o acto de venda a entrega pelo vendedorao novo proprietrio de um pouco de palha ou de um torro de terra

    proveniente do seu campo; se a seguir se faz uma escritura o quenem sempre tem lugar, no servir seno para memria: o actoessencial a radto, como nos nossos dias o aperto de mo emalguns mercados. Entregar-lhe-ei, diz o Mnager de Paris, um

    pouco de palha ou um velho prego ou uma pedra que me foramentregues como sinal de um grande acontecimento (quer dizer, comosinal de uma transaco importante). A Idade Mdia uma pocaem que triunfa o rito, em que tudo o que se realiza na conscinciadeve passar obrigatoriamente a acto; o que satisfaz uma neces-idade

    profundamente humana: a do sinal corporal, falta do qual a realidade fica imperfeita, inacabada, fraca.

    O vassalo presta fidelidade e homenagem ao seu senhor: ficana sua frente, de joelhos, de cinturo desfeito, e coloca a mo nadele. Gestos que significam o abandono, a confiana, a fidelidade.

    Declara-se seu vassalo e confirma-lhe a dedicao da sua pessoa. Emtroca, e para selar o pacto que doravante os liga, o suserano beijao vassalo na boca. Este gesto implica mais e melhor que uma proteco geral: um lao de afeio pessoal que deve reger as relaesentre os dois homens.

    Segue-se a cerimnia do juramento, cuja importncia no demais sublinhar. preciso entender juramento no seu sentido etimolgico: sacramentum, coisa sagrada. Jura-se sobre os Evangelhos,realizando assim um acto sagrado, que compromete no s a honra,mas a f, a pessoa inteira. O valor do juram ento ento tal, e o per

    jrio de tal forma monstruoso, que no se hesita em manter a palavradada em circunstncias extremamente graves, por exemplo para teste

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    munhar das ltimas vontades de um moribundo, com o testemunho

    de uma ou duas pessoas. Renegar um juramento representa na mentalidade medieval a pior das desonras. Uma passagem de Joinvillemanifesta de maneira muito significativa que um exces_o por queum cavaleiro no pode decidir-se, mesmo que a sua vida esteja em

    jogo: quando do seu cativeiro, os drogom anos do sulto do Egiptovm oferecer-lhe a libertao, a ele e aos companheiros: Daria, perguntaram, para a sua libertao, algum dos castelos que pertencemaos bares de alm-mar? O conde respondeu que no tinha poder,

    porque eles pertenciam ao imperador da Alemanha que ento estavavivo. Perguntaram se entregaramos algum dos castelos do Templo

    ou do Hospital para a nossa libertao. E o conde respondeu que nopodia ser: que quando a se nomeava um castelo, faziam-no ju ra rpelos santos que no entregaria castelo algum para libertao de corpode homem. E eles responderam-nos que lhes parecia que no tnhamostalento para nos libertarmos e que se iriam embora e nos enviariamaqueles que nos lanariam espadas, como tinham feito aos outros2.

    A cerimnia completa-se com a investidura solene do feudo, feitapelo senhor ao vassalo: confirma-lhe a posse desse feudo por umgesto de tradto, entregando-lhe geralmente uma vara ou um bastonete,smbolo do poder que deve exercer no domnio que tem des e senhor: a investidura cum bculo vel vrga, para empregar os termos jurdicos em uso na poca.

    Deste cerimonial, das tradies que ele supe, decorre a elevadaconcepo que a Idade Mdia fazia da dignidade pessoal. Nenhumapoca esteve mais pronta para afastar as abstraces, os princpios,

    para se entregar unicamente s convenes de homem para homem;tambm nenhuma fez apelo a mais elevados sentimentos como basedessas convenes. Era prestar uma magnfica homenagem pessoahumana. Conceber uma sociedade fundada sobre a fidelidade rec

    proca era indubitavelmente audacioso; como se pode esperar, houveabusos, faltas; as lutas dos reis contra os vassalos recalcitrantes soa prova disso. Resta dizer que durante mais de cinco sculos a f ea honra permanecem a base essencial, a armadura das relaes sociais.Quando a estas se substituiu o princpio de autoridade, no sculo xvic sobretudo no sculo XVII, no se pode pretender que a sociedadetenha ganho com isso; em qualquer dos casos, a nobreza, j enfraquecida por outras razes, perdeu a sua fora moral essencial.

    Durante toda a Idade Mdia, sem esquecer a sua origem fundiria,dominial, essa nobreza teve um modo de viver sobretudo militar; (|iie efectivamente o seu dever de proteco comportava em primeiro

    (2) a isto que os massacrariam, como aos outros .

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    lugar uma funo guerreira: defender o seu domnio contra as poss

    veis usurpaes; de resto, embora se esforassem por reduzi-lo, odireito de guerra privada subsistia e a solidariedade familiar podiaimplicar a obrigao de vingar pelas armas as injrias feitas a umdos seus. Uma questo de ordem material se lhe acrescentava: ossenhores, detendo a principal, seno a nica fonte de riqueza, a terra,eram os nicos a ter a possibilidade de equipar um cavalo de guerrae de armar escudeiros e sargentos. O servio militar ser portantoinseparvel do servio do feudo, e a f prestada pelo vassalo nobresupe o contributo das suas armas sempre que disso for mester.

    o primeiro cargo da nobreza, e um dos mais onerosos, essa

    obrigao de defender o domnio e os seus habitantes.

    Lepe dit: Cest ma justice3Garder les deres de Saint Eglise*Et ceux par qui viandes est quse5.

    As praas-fortes mais antigas, aquelas que foram construdas naspocas de perturbao e de invases, mostram a marca visvel dessanecessidade: a aldeia, as casas dos servos e dos camponeses, esto

    ligadas s encostas da fortaleza, onde toda a populao ir refugiar-seem altura de perigo e onde encontrar ajuda e abastecimento em casode cerco.

    Das suas obrigaes militares decorre a maior parte dos hbitosda nobreza. O direito de morgadio vem em parte da necessidade deconfiar ao mais forte a herana que ele deve garantir, muitas vezes

    pela espada. A lei de masculinidade explica-se tambm dessa forma:s um homem pode assegurar a defesa de um torreo. Por isso tam

    bm, quando um feudo cai em roca, quando uma mulher a nicaherdeira, o suserano, sobre o qual recai a responsabilidade desse

    feudo que ficou assim em estado de inferioridade, sente-se no deverde cas-la. por isso que a mulher no suceder seno aps osfilhos mais novos, e estes aps o mais velho; s recebero apangios;por isso os desastres que tiveram lugar no fim da Idade Mdiativeram como origem os apangios excessivamente importantes deixados por Joo, o Bom, aos filhos, cujo poder se tornou para elesuma tentao perptua, e para todos uma fonte de desordens, durantea menoridade de Carlos VI.

    (3) Ofcio.

    (4)Aqueles que se ocupam da alimentao, da vida material (oscamponeses). Poema de Carit, de Reclus de Molliens.(5) A espada disse: meu dever/Manter os clrigos da Santa Igreja/

    e aqueles para quem os alimentos so obtidos.

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    L UZ SOBREA IDADE MEDIA 33

    Os nobres tm igualmente o dever de administrar a justia aos

    seus vassalos de qualquer condio e de administrar o feudo. Trata-sedo exerccio de um dever, e no de um direito, que implica responsabilidades muito pesadas, j que cada senhor deve dar conta doseu domnio no s sua linhagem, mas tambm ao seu suserano.tienne de Fougres descreve a vida do senhor de um grande domniocomo cheia de preocupaes e de fadigas:

    C et l va, souvent se tourne,Ne repose ni ne sjorne:Chteau abord, chteau aourne,

    Souvent haiti, plus souvent mourne.C et l va, pas ne reposeQue sa marche ne sot dclose6.

    Longe de ser ilimitado, como de uma maneira geral se julgou,o seu poder bem menor que, nos nossos dias, o de um chefe deindstria ou um qualquer proprietrio, j que nunca tem a propriedadeabsoluta dos seus domnios, depende sempre de um suserano, e, nofim de contas, os suseranos mais poderosos dependem do rei. Nosnossos dias, de acordo com a concepo romana, o pagamento de

    uma terra confere pleno direito sobre ela. Na Idade Mdia no assim: em caso de m administrao, o senhor sofre penalizaesque podem ir at confiscao dos seus bens. Deste modo, ningumgoverna com autoridade total nem escapa ao controlo directo daquelede quem depende. Esta repartio da propriedade e da autoridade um dos traos mais caractersticos da sociedade medieval.

    As obrigaes que ligam o vassalo ao seu senhor implicam deresto reciprocidade: O senhor deve tanto f e lealdade ao seuhomem como o homem ao seu senhor, diz Beaumanoir. Esta noo

    de dever recproco, de servio mtuo, encontra-se muitas vezes tantonos textos literrios como jurdicos:

    Graigneur ja it a sire son hommeQue Vhomme son seigneur et dome1

    observa tienne de Fougres, j citado no seu Livre des Manires[Livro das Maneiras]', e Philippe de Novare nota, a apoiar esta

    (6) Anda de c para l e muitas vezes muda de direco/Norepousanvm se detm'./Castelo dentro, castelo fora,/Muitas vezes alegre, mais

    vezes trixte./Anda de c para l, no repousa/Seno quando o seu caminho est aberto.(7) O senhor deve mais reconhecimento ao seu vassalo , que ele pr

    prio devo deve ao senhor.

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    34RGIE PERNOUD

    constatao: Aqueles que recebem servio e nunca o recompensambebem o suor dos seus servos, que veneno mortal para o corpoe para a alma. Donde tambm a mxima: Para bem servir convm

    bom ter. (A Bien servir convient E u f Avoir.)Como de justia, exige-se da nobreza mais dignidade e rectido

    moral que dos outros membros da sociedade. Por uma mesma falta,a pena infligida a um nobre ser muito superior que destinadaa um plebeu. Beaumanoir cita um delito para o qual pena de cam

    pons de sessenta soldos e de nobre de sessenta libras o queconstitui uma desproporo muito grande: de 1 para 20. Segundo osEtablissements de Saint-Louis, uma determinada falta pela qual

    um homem ordinrio, isto , um plebeu, pagar cinquenta soldos depena, implicar para um nobre a confiscao de todos os seus bensmveis. O que se encontra tambm nos estatutos de diferentes cidades; os de Pamiere fixam do seguinte modo a tarifa das penas emcaso de roubo: vinte libras para o baro, dez para o cavaleiro, cemsoldos para o burgus, vinte soldos para o vilo.

    A nobreza hereditria, mas pode tambm ser adquirida, querpor retribuio de servios prestados, quer, muito simplesmente, pelaaquisio de um feudo nobre. Foi o que aconteceu em grande escalano fim do sculo xin: numerosos foram os nobres mortos ou arruinados nas grandes expedies do Oriente, e vem-se famlias de bur-gue:es que enriqueceram, atingir em massa a nobreza, o que provocounoseu seio uma reaco. A cavalaria enobrece de igual modo aquelea quem conferida. Finalmente, houve, emsequncia dos factos,cartas de nobreza distribudas, certo, muito parcimoniosamente-9

    Se a condio de nobreza pode adquirir-se, pode igualmenteperder-se, por prescrio, em consequncia de uma condenao infa-mante.

    A vergonha de uma hora do dia,

    Apaga completamente a honra de quarenta anos,

    dizia-se. Ela perde-se ainda por infraco quando um nobre supostoter exercido um ofcio plebeu ou um trfego qualquer: -lhe interditocom efeito sair do papel que lhe entregue, e no deve tambm pro

    (8) Termo que corresponde a recompensa, com um sentido mais alargado: felicidade, bem-estar.

    (9) O Antigo Regime teve tendncia para impedir cada vez maiso acesso nobreza, o quecontribuiu para fazerdela uma casta fechada,

    que isolava o rei dos seus sbdidtos. Em Inglaterra, as numerosasnobilitaes deram pelo contrrio excelentes resultados, renovando aaristrocracia com a ajuda de elementos novosi fazendo dela uma classeaberta e vigorosa.

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    curar enriquecer, assumindo cargos que o fariam negligenciar aquelesaos quais a sua vida deve ser votada. Exceptua-se de resto dos ofcios

    plebeus aqueles que, necessitando de recursos importantes, no poderiam de todo ser realizados seno por nobres: por exemplo, avidraria ou a mestria de forjas; do mesmo modo o trfego martimo permitido aos nobres porque exige, para l dos capitais, um esprito de aventura que ningum ousaria entravar. No sculo XVII,Colbert alargar no mesmo sentido o campo de actividade econmicada nobreza, para dar mais impulso ao comrcio e indstria.

    A nobreza uma classe privilegiada. Os seus privilgios soem primeiro lugar honorficos: direitos de presidncia, etc. Alguns

    decorrem dos cargos que desempenha: assim, s o nobre tem direito espora, ao cinturo e bandeira, o que lembra que na origem sos nobres tinham o direito de equipar um cavalo de guerra. A pardisso, desfruta de certas isenes, as mesmas de que desfrutavam

    primitivamente todos os homens livres; exemplo disto a isenoda ta lh a1(1 e de certos impostos indirectos, cuja importncia, nulana Idade Mdia, no parou de crescer no sculo xvi e sobretudono sculo XVII.

    Finalmente, a nobreza possui direitos precisos, e esses substan

    ciais: encontram-se neste nmero todos os que decorrem do direito depropriedade: direito de cobrar censos, direito de caa e outros. Oscensos e rendas pagos pelos camponeses no so outra coisa senoo aluguer da terra onde tiveram permisso de se instalarem, ou queos seus antepassados julgaram por bem abandonar a um proprietriomais poderoso que eles prprios. Os nobres, ao cobrar os censos,estavam exactamente na situao de um proprietrio de imveiscobrando os seus alugueres. A origem longnqua deste direito de

    propriedade apagou-se pouco a pouco e, na poca da Revoluo, ocampons acabou por se tornar legtimo proprietrio de uma terra

    da qual era locatrio desde h sculos. Aconteceu o mesmo a essefamoso direito de caa, que se quis representar como um dos abusosmais gritantes de uma poca de terror e de tirania: que haver maislegtimo, para um homem que aluga um terreno a outro, que reser-varse o direito de caar nele? " Proprietrio e rendeiro sabem ambosao que se obrigam no momento em que acordam as suas obrigaes

    (10) imposto directo. Pago pelos camponeses em Fran a at ao fimdo Antigo Regime, 1789. Em. Portugal corresponde este imposto julgada. (N. da R.)

    (11) Ainda assim 6 preciso estabelecer uma distino entre as pocas:o direito de caa .s foi reservado, e isto apenas para a caa grossa,tardiamente',por volta do sculo XIV. As interdies formais s aparecemno sculo XVI Quanto pesca, permaneceu livre para todos.

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    36RGINE PERNOUD

    recprocas, o essencial; o senhor no deixa de estar nas suas terrasquando caa perto da habitao de um campons; que alguns de entreeles tenham abusado desse direito e e pisado com o casco doscavalos as ceifas douradas do campons, para nos exprimirmos comoos manuais de ensino primrio, coisa possvel ainda que inverificvel,mas concebe-se com dificuldade porqu o teriam feito sistematicamente, j que uma boa parte das rendas consistia numa quota-parteda colheita; o senhor estava portanto directamente interessado emque esta colheita fosse abundante. A questo a mesma para asbanalidades; o forno e o lagar senhorial esto na origem das comodidades oferecidas ao campons, em troca das quais normal receber

    uma retribuio exactamente como hoje, em certas comunasaluga-se ao campons a mquina de debulhar ou outros instrumentosagrcolas.

    Est contudo fora de dvida que pouco a pouco, por volta dofim da Idade Mdia, os encargos da nobreza diminuram sem que

    por isso os privilgios tivessem sido reduzidos e que no sculo XVII,por exemplo, era flagrante a desproporo entre os direitos mesmolegtimos de que ela desfrutava e os deveres insignificantes que lheincumbiam. O grande mal foi os nobres se terem desligado das suasterras e no terem sabido adaptar os seus privilgios s novas condi

    es de existncia; desde o momento em que o servio de um feudo,nomeadamente a sua defesa, deixou de ser um encargo oneroso, os

    privilgios da nobreza ficaram sem objecto. Foi isso que fez a decadncia da nossa aristocracia, decadncia moral que seria seguidade uma decadncia material, bem merecida. A nobreza directamenteresponsvel pelo mal-entendido, que ir aumentando, entre o povoe a realeza; tornada intil e muitas vezes prejudicial ao trono (foientre a nobreza, e graas a ela, que se espalhou a doutrina dos enciclopedistas, a irreligio voltaireana e as divulgaes de um Jean-

    Jacques), ela contribuiu grandemente para conduzir Lus XVI aocadafalso e Carlos X ao exlio; justo que ela os tenha seguido,a um e a outro. Mas podemos pensar que ainda assim foi uma pesada

    perda para o nosso pas; um pas sem aristocracia um pas semossatura, como sem tradies, pronto para todas as vacilaes e paratodos os erros.

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    CAPTULO IH

    A VIDA RURAL

    Na diviso um pouco sumria que muitas vezes foi feita dasociedade medieval, s h lugar para os senhores e para os servos:de um lado a tirania, o arbitrrio e os abusos de poder, do outroos miserveis, sujeitos aos impostos e aos dias de trabalho gratuito1 discrio; tal a ideia que evocam e no apenas nos manuaisde histria para uso das escolas primrias as palavras nobrezae terceiro estado. O simples bom senso basta no entanto paradificilmente admitir que os descendentes dos terrveis Gauleses,dos soldados romanos, dos guerreiros da Germnia e dos fogososEscandinavos se tenham reduzido durante sculos a uma vida de

    animais encurralados. Mas h lendas tenazes; o desdm pelos s"culos obscuros data alis de antes de Boileau.Na realidade, o terceiro estado comporta uma srie de condies

    intermedirias entre a liberdade absoluta e a servido. Nada de maisdiverso e de mais desconcertante que a sociedade medieval e as

    propriedades rurais da poca: a sua origem absolutamente empricad conta dessa prodigiosa variedade na condio das pessoas e dosbens. Para dar um exemplo, na Idade Mdia, ainda que o em parcelamento do domnio represente a concepo geral do direito de

    propriedade, existe no entanto aquilo que o nosso tempo j no conhecede todo: a terra possuda em franca propriedade, o aldio (alleu)ou aldio livre (franc-alleu) isento de todos os direitos e imposiesde qualquer espcie que seja; isto manteve-se at Revoluo, emque, qualquer terra declarada livre, os aldios deixaram de factode existir, j que tudo foi submetido ao controlo e s imposies doEstado. Notemos ainda que na Idade Mdia, quando um campons seinstala numa terra e nela exerce a sua arte durante o tempo da

    prescrio, ano o dia, isto , o tempo de percorrer o ciclo completo

    1 Taillables e corvables o autor refere-se sujeio dos cam-pnncwH a dois Impostos: a bi lha e a corveia trabalho gra tu i to , queentre ns, no perodo medieval, se designa por ANEUVA (N. do R.)

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    38RGIE PERNO

    dos trabalhos dos campos, desde a lavragem at colheita, sem serperturbado, considerado o nico proprietrio dessa terra .2

    Isto d ideia do nmero infinito de modalidades que podemosencontrar8. Hspedes, colonos, lhes, servos so termos que designamcondies pessoais diferentes. E a condio das terras apresenta umavariedade ainda maior4: censo, renda, champart, fazenda, propriedade en bordelage, en marche, en queuaise, complan, en collonge;conforme as pocas e as regies, encontramos uma infinidade deacepes diferentes na posse da terra com um nico ponto comum: que, salvo o caso especial do aldio livre, h sempre vrios pro

    prietrios, ou pelo menos vrios, a ter direito sobre um mesmo

    domnio. Tudo depende do costume, e o costume adapta-se a todasas variedades de terrenos, de climas e de tradies o que de resto lgico, j que no se poderia exigir daqueles que vivem num solo

    pobre as obrigaes que podem ser impostas, por exemplo, aos camponeses da Becia ou da Touraine. De facto, eruditos e historiadorestentam ainda analisar uma das matrias mais complexas que foioferecida sua sagacidade: h abundncia e diversidade de costumes;h em cada uma delas uma infinidade de diferentes condies, desdea do arroteador, que se instala numa terra nova e ao qual se pedirapenas uma fraca parte das colheitas, at ao cultivador estabelecido

    numa terra em plena produo e sujeito aos censos e rendas anuais;h os erros sempre possveis provenientes das confuses de termos,j que estes cobrem por vezes realidades completamente diferentesconforme as regies e as pocas; h finalmente o facto de a sociedademedieval estar em perptua evoluo, e aquilo que verdade nosculo XII j no o no sculo XIV.

    O que se pode todavia saber com segurana, que houve naIdade Mdia, para l da nobreza, um conjunto de homens livresque prestavam aos seus senhores um juramento mais ou menos seme

    lhante ao dos vassalos nobres e um conjunto no menos grande deindivduos de condio um pouco imprecisa entre a liberdade e a

    (2) Em Por tugal, este tipo de camponeses livres cham avam-se her-dadores e enfiteutas. (N. do RJ

    No Portugal medieval, e segundo Damio Peres, encontramos apartir de uma hie ra rquia asce ndentes: adscrito s gleba, colonos livres,herdadores e enfiteutas. (N. do RJ

    * Entre nos, as propriedades, segundo a sua posse, podem ser:

    Terras sen ho riais pertencentes s classes nobres.

    Reguengo s perten centes ao rei. Elerdades dos homens livres, plebeus. Ter ras foreiras de ca mponeses livres a quem pag ara m

    o foro ao seu senhor. (N. do RJ

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    servido. 0 jurista Beaumanoir distingue nitidamente trs estados:Nem todos os francos so nobres... Porque chamam-se nobres

    aqueles que provm de linhagens francas, como o rei, duques, condesou cavaleiros; e esta nobreza sempre transmitida pelos pais [...] Masno acontece o mesmo para o homem livre (poost) , porque o que elestm de franquia vem-lhes pelas mes, e qualquer pessoa que nasade me franca, franca e tem livre poosl, para fazer o que quiser... e o terceiro estado o de servo. E este conjunto de gente no toda de uma condio, existem vrias condies de servido [...]Vemos que no faltam distines a estabelecer-

    Os livres so todos os habitantes das cidades; estas, sabemo-lo,multiplicam-se a partir do comeo do sculo XII. O grande nmero

    delas que ainda hoje tm o nome de Villefranche6, Villeneuve, Bastide,etc, so para ns uma recordao dessas cartas de povoamento pelasquais todos aqueles que acabavam de se estabelecer numa dessascidades recentemente criadas eram declarados livres, como eram burgueses e artesos nas comunas, e em geral em todas as cidades doreino. Para l disso, um grande nmero de camponeses livre;nomeadamente aqueles a quem se chamava plebeus ou vilos, notendo os termos, bem entendido, o sentido pejorativo que depoistomaram; o plebeu o campons, o trabalhador, pois rutura, designaa aco de romper a terra com a relha da charrua; o vilo de umamaneira geral aquele que habita um domnio, villa.

    Depois vm os servos. A palavra foi muitas vezes mal compreendida, porque se confundiu a servido, prpria da Idade Mdia,com a escravatura que foi a base das sociedades antigas e da qualno se encontra qualquer rasto na sociedade medieval. Como refereLoisel: Todas as pessoas so francas neste reino, e logo que umescravo atinge os degraus do conhecimento (ice lui) fazendo-se baptizar, franqueado. Tendo a Idade Mdia por fora das circunstncias ido

    buscar o seu vocabulrio lngua latina seria tentador concluir da

    semelhana dos termos a semelhana de sentido. Ora, a condiodo servo totalmente diferente da do escravo antigo: o escravo uma coisa, no uma pessoa; est sob a dependncia absoluta do seudono que possui sobre ele direito de vida e de morte; qualqueractividade pessoal -lhe recusada; no conhece nem famlia; nemcasamento, nem propriedade.

    O servo, pelo contrrio, uma pessoa, no uma coisa, e tratam--no como tal. Possui uma famlia, uma casa, um campo e fica deso

    brigado em relao ao seu senhor logo que pague os censos. No est

    (3) Homem de poost, designa o vilo em geral.* EmPortuga l tambem existe esta origem no nome de algumascidades e vilas: Vila 1'Yanca. (N. do R.)

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    submetido a um patro, est ligado a um domnio: no uma servido pessoal, mas uma servido real. A restrio imposta sua

    liberdade que no pode abandonar a terra que cultiva. Mas, note-mo-lo, essa restrio no deixa de ter uma vantagem, j que, emborano possa deixar a propriedade, tambm no podem tirar-lha; estaparticularidade no estava longe, na Idade Mdia, de ser consideradaum privilgio, e, de facto, o termo encontra-se numa recolha decostumes, o Brakton, que diz expressamente falando dos servos:tali gaudent privilegio, quod a gleba amoveri non poterunt [...] gozamdesse privilgio de no poderem ser arrancados sua terra (maisou menos aquilo que seria nos nossos dias uma garantia contra odesemprego). O rendeiro livre est submetido a toda a espcie deresponsabilidades civis que tornam a sua sorte mais ou menosprecria: se se endivida, podem confiscar-lhe a terra; em caso deguerra, pode ser forado a tomar parte nela, ou o seu domnio podeser destrudo sem compensao possvel. O servo, esse, est ao abrigodas vicissitudes da sorte; a terra que trabalha no pode escapar-lhe,da mesma maneira que no pode afastar-se dela. Esta ligao gleba muito reveladora da mentalidade medieval, e, notemo-lo, a estenvel, o nobre est submetido s mesmas obrigaes que o servo,

    porque ele to-pouco pode em caso algum alienar o seu domnio ou

    separar-se dele de qualquer forma que seja: nas duas extremidadesda hierarquia encontramos essa mesma necessidade de estabilidade,de fixao, inerente alma medieval, que produziu a Frana e deuma maneira geral a Europa ocidental. No um paradoxo dizerque o campons actual deve a sua prosperidade servido dos seusantepassados; nenhuma instituio contribuiu mais para o destino docampesinato francs; mantido durante sculos sobre o mesmo solo,sem responsabilidades civis, sem obrigaes militares, o camponstomou-se o verdadeiro senhor da terra; s a servido poderia realizaruma ligao to ntima do homem gleba e fazer do antigo servo

    o proprietrio do solo- Se a condio do campons na Europa oriental,na Polnia e noutros lugares, permaneceu to miservel, porqueno houve esse lao protector da servido; nas pocas de perturbao,o pequeno proprietrio, entregue a si prprio, responsvel pela suaterra, conheceu as mais terrveis angstias que facilitaram a formaode domnios imensos; donde um flagrante desequilbrio social, contrastando a riqueza exagerada dos grandes proprietrios com a condio lamentvel dos seus rendeiros. Se o campons francs pdedesfrutar at aos ltimos tempos de uma existncia fcil, em relaoao campons da Europa oriental, no apenas riqueza do soloque o deve, mas tambm e sobretudo sabedoria das nossas antigasinstituies, que fixaram a sua sorte no momento cm que linha mais

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    todos os servos do domnio real, embateu em muitos lugares com a

    m vontade dos servos recalcitrantes. A servido no mais mencionada, quando da redaco dos costumes no sculo XIV, seno nosde Bourgogne, de Auvergne, do Boubonnais e do Nivemais, e noscostumes locais de Chaumont, Troyes e Vitry; de resto em toda a

    parte tinha desaparecido. Algumas ilhotas de servido muito moderadasubsistiram aqui e ali, que Lus XVI aboliu definitivamente em 1779

    dez anos antes do gesto teatral da demasiado famosa noite de4 de Agojto no domnio real, convidando os senhores a que oimitassem: que se tratava de uma matria de direito privado sobrea qual o poder central no tinha o direito de legislar. As actas mostram-nos, alis, que os servos no tinham de todo face aos senhoresessa atitude de ces espancados, que demasiadas vezes se sups.Vemo-los discutir, afirmar o seu direito, exigir o respeito por antigasconvenes e reclamar sem rodeios o que lhes devido. ~

    *

    Teremos o direito de aceitar sem controlo a lenda do camponsmiservel, inculto (esta uma outra histria) e desprezado, que uma

    tradio bem estabelecida impe ainda a um grande nmero dosnossos manuais de histria? O seu regime geral de vida e de alimentao no oferecia nada, v-lo-emos, que deva suscitar piedade.O campons no sofreu mais na Idade Mdia do que sofreu o homemem geral em todas as pocas da histria da humanidade. Sofreu arepercusso das guerras: tero elas poupado os seus descendentesdos sculos xix e XX? Alm disso, o servo medieval estava livre dequalquer obrigao militar, como a maior parte dos plebeus; almdisso, o castelo senhorial era para para ele um refgio na desventura,e a paz de Deus uma garantia contra as brutalidades dos homens de

    armas. Sofreu a fome nas pocas de ms colheitas como sofreuo mundo inteiro at que as facilidades de transportes permitiramlevar ajuda s regies ameaadas, e mesmo a partir dessa altura ... ,mas tinha a posssibilidade de recorrer ao celeiro do senhor-

    No houve seno uma poca realmente dura para o camponsna Idade Mdia, mas ela foi-o para todas as classes da sociedadeindistintamente: foi a dos desastres produzidos pelas guerras quemarcaram o declnio da poca perodo lamentvel de perturbaese de desordens engendradas por uma luta fratricida, durante a qual

    (7) Em Por tug al, a par ti r dos fins do sculo XI at princpios do sculo XIII o servo adscrito gleba foi progressivamente transformadoem colono livre. Entre ns, foi D. Afonso III que deu exemplo nos seusreguengos ao dar carta de franquia aos servos. (N. do li.)

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    44 RGIE PERNO

    os trabalhos dos campos como o mais corrente tema de inspirao.

    Que hino glria do campons valer alguma vez as miniaturasdas Trs riches heures du Duc de Berry ou o Livre des proujfictz champestres, iluminado pelo bastardo Antoine de Bourgogne, ouainda os pequenos quadros dos meses na fachada de Notre-Dame eem tantos outros edifcios? E, notemo-lo, em todas estas obras dearte, executadas pela multido ou pelo amador nobre, o camponsaparece na sua vida autntica: removendo o solo, manejando aenxada, podando a vinha, matando o porco. Haver uma outra poca,uma s, que possa apresentar tantos quadros exactos, vivos, realistas,da vida rural?

    Que individualmente determinados nobres ou determinados burgueses tenham manifestado desdm pelos camponeses, possvel emesmo certo: tal no existiu em todas as pocas? Mas a mentalidade geral, contando com hbitos sarcsticos da poca, tem muitonitidamente conscincia da igualdade fundiria dos homens no meiodas desigualdades de condio.

    Fils de vilain preux et courtoisVaut quinze mauvais fils de rof

    diz Robert de Blois, e Reclus de Molliens, no seu poema de Miserere,protesta vigorosamente contra aqueles que se crem superiores aosoutros:

    Garde qui tu as en ddain,Franc hom, qui m'appelles vilain

    Jde ce mot ne me plaindraisSi plus franc que moi te savais.Qui fut ta mre, et qui la moie? [la mienne]

    Andoi [toutes deux] furent filies Evain.Or mais ne dis que vilain soisPlus que toi, car j e te diroisTel mot ou a trop de levain9

    um jurista, Philippe de Novare, quem distingue trs tipos dehumanidade: as gentes francas, isto , todos aqueles que tiveremfranco corao ... e aquele que tiver corao franco, donde quer quetenha vindo, deve ser chamado franco e gentil; porque se de um

    8 Filho de vilo valente e corts/Vale quinze maus filhos de reis.9 Olhaquem tensem desdm/Franco homem, que me chamas vilo./

    Dessa palavra no me lamentaria/Se mais franco que eu te soubesse./Quem foi a tua me, e quem a minha f/Ambas foram filluis de Eva./Ora no me digas que vilo sou/Mais que tu, porque tu direi/(puc tal

    palavra tem muito de leviano.

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    LUZ SOBRE A [DA DE MDIA 45

    mau lugar e bom, tanto mais honrado deve ser; as pessoas de ofcio

    e os viles, isto , aqueles que no prestam servio seno constrangidospela fora, todos aqueles que o fazem so justam ente viles, querfossem servos ou jornaleiros ... Fidalguia e valor de antepassadosno faz seno prejudicar um mau herdeiro desonrado. Poderamoscitar em grande nmero essas proclamaes de igualdade, como noRoman de Fauvel:

    Noblesse, si com dit le sageVient tant seulement de courageQui est de bons moeurs aorn.

    Du ventre, sachez, pas ne vient10.

    Duma maneira mais geral, ser possvel dizer que um ser queocupou um lugar de primeiro plano nas manifestaes artsticas e literrias de uma nao tenha podido ser por ela desprezado?

    Sobre este ponto como sobre tantos outros, confundiram-se aspocas. Aquilo que verdade para a Idade Mdia no o para tudoaquilo a que chamamos o Antigo Regime. A partir do fim do sculo xv, produz-se uma ciso entre os nobres, os letrados e o povo;futuramente, as duas classes vivero uma vida paralela, mas pene-trar-se-o e compreender-se-o cada vez menos. Como natural,u alta sociedade drenar para si a vida intelectual e artstica e ocampons ser banido da cultura como da actividade poltica do pas.Desaparece da pintura, salvo raras excepes em todo o caso dapintura em voga , da literatura, como das preocupaes dos grandes.O sculo XVIII j no conher seno uma cpia completamenteartificial da vida rural. Que o campons tenha sido, seno desprezado,

    pelo menos desdenhado e mal conhecido, do sculo x v i 11 at aosnossos dias, no constitui qualquer dvida, mas tambm est fora

    de questo que na Idade Mdia tenha tido um lugar de primeiraordem na vida do nosso pas.

    (10) Nobreza, se como diz o sbio/Vem to s da coragem/Que

    firiKIM uitt po r bons costumes, / Do ventre, sabei-lo, no vem.(11)Notcmo.s que tambm no sculo XVI que reaparece o desdm,familiar Antiguidade, pelas prof isses ma nu ais. A Idade Mdia assinalava tradicionalmentei as cincias, ar tes e oficlos.

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    CAPTULO IV

    A VIDA URBANA

    A partir da altura em que cessam as invases, a vida transbordaos limites do domnio senhorial. O solar comea a no se bastar maisa si prprio; toma-se o caminho da cidade, o trfego organiza-se,e em breve, escalando as muralhas, surgem os subrbios. ento,a partir do sculo XI, o perodo de grande actividade urbana. Doisfactores da vida econmica, at ento um pouco secundrios, voadquirir uma importncia de primeiro plano: o ofcio e o comrcio.Com eles crescer uma classe cuja influncia ser capital para osdestinos de Frana ainda que o seu ace:so ao poder efectivo nodate seno da Revoluo Francesa, da qual ser nica a tirar benefcios reais: a burguesia.

    Pelo menos o seu poder data do muito mais longe, porque, desdea origem, ocupou um lugar preponderante no governo das cidades,enquanto os reis, nomeadamente a partir de Filipe, o Belo, faziamvoluntariamente apelo aos burgueses no governo das cidades comoconselheiros, administradores e agentes do poder central. Ela devea sua grandeza expan:o do movimento comunal, do qual alis oprincipal motor. Nada de mais vivo, de mais dinmico que esseimpulso irresistvel que, do sculo XI ao incio do sculo x i i i , levaas cidades a libertarem-se da autoridade dos senhores, e nada demais ciosamente defendido que as liberdades comunais, uma vezadquiridas. que com efeito os direitos exigidos pelos bares tornavam-se insuportveis a partir do momento em que no havia maisnecessidade da sua proteco: nos tempos de agitaes, outorgas e

    portagens eram justificadas, j que representavam os gastos de polciadu estrada: um comerciante roubado nas terras de um senhor podiafazer-se indemnizar por ele; mas a tempos novos e melhores devia

    corresponder um reajustamento que foi obra do movimento comunal.A Idade Mdia concluiu desta forma com xito essa necessria rejeio do passado, to difcil de realizar na evoluo da sociedade emgeral; muito provvel que, se o mesmo reajustamento tivesse sido

  • 7/22/2019 Rgine Pernoud - Luz Sobre a Idade Mdia

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    produzido em tempo oportuno para os direitos e privilgios da nobreza,muitas desordens teriam sido evitadas.

    A realeza d o exemplo do movimento pela outorga de liberdadess comunas rurais: a carta de Lorris concedida por Lus VI suprimeas anduvas e a servido, reduz as contribuies, simp