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Artigo de Maria da Conceição Araújo Castro (USP) aprsentado durante o XIX ENCONTRO NACIONAL DE GEOGRAFIA AGRÁRIA, São Paulo, 2009. Resumo:A relação campo-cidade tem sido marcada, historicamente, pela interdependência. Em razão do processo de apropriação privada da terra no Brasil para produzir as mercadorias cobiçadas no mercado mundial - as commodities agropecuárias -, esses dois espaços passaram a exercer funções estratégicas para o grande capital (produção e circulação das mercadorias) e para o trabalhador rural, que se mobiliza com mais assiduidade em ambas as direções. Este artigo busca contribuir com análises e reflexões a partir de um estudo realizado no Município de Santarém,Oeste do estado do Pará, cujo foco é o processo de mobilização do trabalhador rural em busca de alternativas de sobrevivência, em função da dinâmica capitalista.
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XIX ENCONTRO NACIONAL DE GEOGRAFIA AGRÁRIA, São Pau lo, 2009, pp. 1-30
RELAÇÃO CAMPO-CIDADE E A DINÂMICA CAPITALISTA
UM ESTUDO NO OESTE DO ESTADO DO PARÁ – MUNICÍPIO DE SANTARÉM 1
Maria da Conceição Araújo Castro
Universidade de São Paulo
Resumo: A relação campo-cidade tem sido marcada, historicamente, pela
interdependência. Em razão do processo de apropriação privada da terra no Brasil para
produzir as mercadorias cobiçadas no mercado mundial - as commodities
agropecuárias -, esses dois espaços passaram a exercer funções estratégicas para o
grande capital (produção e circulação das mercadorias) e para o trabalhador rural, que
se mobiliza com mais assiduidade em ambas as direções. Este artigo busca contribuir
com análises e reflexões a partir de um estudo realizado no Município de Santarém,
Oeste do estado do Pará, cujo foco é o processo de mobilização do trabalhador rural
em busca de alternativas de sobrevivência, em função da dinâmica capitalista.
Palavras-Chave : Terra – Capital – Trabalho – Mobilização – Mercadoria.
Abstract: The relation between the rural environment and the urban space has been
happened by the interdependence. In reason of the actions from private appropriation of
the land in Brazil for produce the goods demanded in the world market (the
commodities agricultural), those two spaces has strategic functions for the big
commercial relations (creation and distribution of the goods) and for the rural workers.
These workers are mobilized with more diligence in both the directions. This article has
the purpose of contribute with analyses and reflections made on the basis of research
elaborated in the Santarém City, the West of Pará State, whose focus the mobilization
of the worker rural that has exercised alternatives of survival, in function of the dynamic
capitalist.
Key Words : Land – Capital – Work – Mobilization – Merchandise.
1 Este artigo foi elaborado com base na tese doutorado da autora, intitulada “Mobilização do Trabalho na Amazônia: o Oeste do Pará entre grilos, latifúndios, cobiças e tensões”, sob orientação do Professor Doutor Heinz Dieter Heidemann e defendida em agosto de 2008, junto ao Programa de Pós Graduação em Geografia Humana da Universidade de São Paulo.
XIX ENGA, São Paulo, 2009 CASTRO, M. C. A.
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Introdução
A natureza do processo de mobilização que atinge o trabalhador rural de
pequenas posses no contexto da região amazônica, sob o impacto da dinâmica
capitalista, contém a indicação de que o exercício da condição de mobilidade dessa
categoria de trabalhador não se expressa, apenas, pelo movimento migratório no
sentido campo-cidade, ainda que este seja um fato inquestionável, mas também pela
realização de diversas ações e estratégias que são por eles engendradas, sem que
muitos desses trabalhadores deixem, necessariamente, o campo para morar na cidade.
A materialização dessas estratégias contempla, inclusive, a real possibilidade de
retorno ao campo, tal como se verificou no município de Santarém, lócus da pesquisa.
Para entender a natureza desse processo, que é uma conseqüência das
necessidades da dinâmica capitalista, nos apoiamos no conceito mobilidade do
trabalho de Jean Paul Gaudemar, perspectiva teórica que tem como referência a forma
mercadoria que “permite um constante rearranjo da organização da produção que força
os trabalhadores a constantes mobilizações [...] atendendo às necessidade do capital”
(ALFREDO, 2005, p.1).
O conceito mobilidade do trabalho está em Marx (“O Capital”, 1990) e foi
retomado por Gaudemar em “Mobilidade do Trabalho e Acumulação do Capital” (1977),
para quem “a mobilidade da força de trabalho surge então como uma condição
necessária, senão suficiente, da gênese do capitalismo e como um índice do seu
desenvolvimento” (GAUDEMAR, 1977, p. 192).
O objeto da pesquisa exprime o entendimento de que o deslocamento dos
trabalhadores rurais no município de Santarém e as estratégias de sobrevivência por
eles articuladas, são a expressão do exercício de suas mobilidades que estão
acontecendo no cerne de uma realidade que convive com um brutal desencontro de
temporalidades históricas, deixando à mostra, portanto, um modo particular de
mobilização do trabalho.
Nessa região de fronteira da Amazônia paraense há uma ação concreta que põe
em movimento diferentes segmentos da população local, no bojo de um processo de
organização produtiva que determina uma nova configuração territorial. É uma ação
que segue uma lógica de racionalidade que não passa, necessariamente, pelas formas
“civilizadas” de fazer (aquilo que se supunha que acontecesse e que seria compatível
Relação campo-cidade e a dinâmica capitalista um es tudo no oeste do estado do Pará – município de Santarém, pp. 1-30
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com o signo inovador dos tempos modernos) e que é mediada pelo conflito, ou seja, é
a lógica dos fins justificando os meios, é a lógica de acumulação do capital.
Muitas ações que orientam a produção de mercadorias naquele contexto não
expressam atitudes de superação de formas “ultrapassadas” de apropriação dos meios
de produção, tanto no que se refere aos mecanismos de aquisição da terra, quanto ao
processo de expropriação do trabalhador do seu meio de subsistência, para enfim
demarcar, qualificar e adequar o território “conquistado” à produção das coisas que são
trocadas no mercado. Por outro lado, e de modo gradativo, também vão sendo
inseridas novas regras, mecanismos, comportamentos e formas de linguagem de um
novo tempo, constitutivas de uma paisagem que vai sendo homogeneizada para
facilitar o curso das dinâmicas produtivas.
Por outro lado, e também naquele lugar, o modo de produção capitalista não
alcançou sua totalidade em todos os segmentos, assim como também não integrou de
forma homogênea todas as esferas de vida do cotidiano das comunidades. Muitas
dinâmicas que envolvem a produção de bens e as relações sociais vigentes não
seguem à risca os parâmetros da racionalidade capitalista, ainda que o produto final
seja a produção de mercadorias, ou seja, o processo de adaptação às novas
necessidades da dinâmica do capital não acontecem, sempre, e na mesma velocidade
que o receituário da acumulação requer.
Lócus da Pesquisa
Os elementos empíricos para analisar a questão que norteou a pesquisa foram
buscados no Estado do Pará, mais especificamente na Gleba 2 Pacoval , município de
Santarém. Trata-se de uma área próxima às estradas e articulada com uma rodovia de
grande importância, chamada de PA-370 (Rodovia do Curuá-Una).
Santarém é o nome da cidade-sede do município e do município propriamente
dito. Este fica situado no Oeste do Estado do Pará, e Santarém (a cidade) fica situada
à margem direita do rio Tapajós, na confluência com o rio Amazonas.
A Gleba Pacoval perpassa quatro municípios do estado do Pará (Santarém,
Prainha, Medicilância e Uruará) e possui 378.186 hectares de terra, sendo que grande
2 Gleba é uma área de terra que ainda não foi arrecadada (regularizada em cartório) ou objeto de parcelamento (dividida em lotes) (Lei 6.766 de 1979).
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parte da citada gleba se localiza no município de Santarém, em uma área denominada
de “região do Curuá-Una” em referência à bacia do Rio Curua-Una, que juntamente
com os rios Moju e Mojuí, formam toda a malha hídrica existente na também chamada
"região do planalto" santareno. Essa malha é composta por inúmeros igarapés e rios de
pequeno porte, que convergem para o rio central, o Curuá-Una. Todas essas bacias,
juntas, perfazem um total aproximado de 9.986 km² ou cerca de 37,65% de todo o
município de Santarém, ocupando a porção leste dessa região (PREFEITURA DE
SANTARÉM, 2008; INCRA, 2007).
São esses rios, na sua extensão, que possibilitam condições de moradia e
permanência das famílias naquela área, além de funcionarem como alternativa de
acesso para os planaltistas (famílias que moram no curso das estradas). Também
possibilitam a construção de hidroelétricas, entre outras formas de uso e convivência.
O município de Santarém possui vários ecossistemas e os mais destacados são a
várzea (planície aluvial de inundação), a terra firme (baixo platô terciário) e o planalto
(terra de solo mais seco). A pesquisa de campo se concentrou, majoritariamente, no
planalto santareno. As famílias rurais de pequenas posses que vivem nessa parte do
município são, em grande parte, formadas por migrantes e descendentes que
chegaram de outras regiões do Brasil, especialmente do nordeste brasileiro.
A Gleba Pacoval, como tantas outras no Oeste do Pará, é considerada área de
grande risco, por ter se tornado palco de constantes conflitos de terra, de polêmicas
ações implementadas pelo poder público, lugar de incertezas vividas pelas famílias
rurais assentadas ou candidatas ao programa de reforma agrária, foco da cobiça de
grileiros e de madeireiros, além de concentrar extensas áreas de terra com
potencialidade para o cultivo de grãos. Ou seja, neste momento da Amazônia
santarena, viver na Gleba Pacoval é uma incógnita e nela sobreviver tornou-se uma
grande aventura ou desventura.
No interior da citada gleba, há diversos tipos de Projetos criados pelo governo
federal: Projetos de Desenvolvimento Sustentável (PDS), Projetos Agroextrativistas
(PAE) e Projetos de Assentamento (PA), tal como o PA Corta Corda . O citado PA
possui 52.029 hectares de terra e é formado por nove Comunidades, entre as quais, as
Comunidades União Corta-Corda e Cícero Mendes . As pesquisas se concentraram
no interior desse PA, com ênfase maior nas duas comunidades citadas. Nem todas as
áreas (lotes de terra) ocupados pelas famílias que já moram nas Comunidades do PA
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Corta-Corda estão totalmente regularizadas, visto que existem pendências ainda não
sanadas pelo INCRA (Instituto Nacional de Reforma Agrária).
Em 2005, o número de famílias da Comunidade União Corta Corda era de 44.
Atualmente, possui bem menos, pois algumas delas se mudaram para “a vila” Cícero
Mendes ou para Santarém, mas já teve entre 50 a 60 famílias em anos anteriores, de
acordo com a presidente da Associação local. A Comunidade Cícero Mendes possui
em torno de 42 famílias. O PA Corta Corda, como um todo, somando as nove
comunidades do Projeto, teria, pelos números do INCRA, 468 famílias, porém, de
acordo com os líderes das comunidades possui, em torno de 331. Existem inúmeras
outras comunidades localizadas em torno do Rio Curuá-Una que não fazem parte do
PA Corta Corda .
O acesso à Gleba Pacoval é feito por três alternativas: a) via fluvial : descer o
Rio Amazonas, entrar pelo Rio Curuá-Una e depois seguir pelo afluente do Rio
Curuatinga; b) via terrestre : seguir pela Rodovia do Curuá-Una, passando pela
hidrelétrica do mesmo nome, seguindo de lá pelo ramal Corta Corda que adentra boa
parte da gleba; c) pelos ramais criados : existem diversos ramais secundários abertos
pelas madeireiras, além de igarapés estreitos, navegáveis, mas cheios de obstáculos e
em condições precárias (PROCESSO SR-30/54501.000590/2006-52).
No curso da pesquisa, buscou-se também entender o reflexo das mudanças que
lá ocorrem nos bairros periféricos da cidade de Santarém, com ênfase no bairro da
Alvorada (bairro de ocupação), que se localiza próximo à rodovia de acesso ao
aeroporto daquela cidade, uma vez que são nesses espaços que a população que é
“empurrada” do meio rural, se estabelece.
Grande parte da pesquisa de campo foi baseada em entrevistas. Estas foram
realizadas junto a diversos órgãos públicos e demais segmentos sociais no município
de Santarém, com o intuito de se apreender a realidade no seu contexto mais amplo:
INCRA, IBAMA, IBGE, PREFEITURA, Sindicatos, Comissão Pastoral da Terra,
Entidade Representativa dos Bairros, Associação de Bairro, ONG´s, personalidades
locais (poetas e estudiosos da Amazônia), professores e escritórios de
georreferenciamento. Também foram realizadas entrevistas semi-estruturadas com os
trabalhadores das comunidades do PA Corta-Corda, que são os agentes mais
próximos dos fatos que envolvem a problemática levantada. Utilizou-se também o
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respaldo de mapas, documentos e trabalhos de pesquisa, que foram obtidos junto aos
órgãos públicos, universidades, entre outras fontes.
A contundência do apossamento da terra, que se transformou em mercadoria
valorizada, está no centro dos problemas fundiários e da violência que acontecem no
município estudado e esse fato decorre do processo de desenvolvimento das
atividades produtivas em curso, tais como a extração da madeira, a pecuária e a
produção de grãos (agronegócio).
Categoria populacional estudada
Optou-se por identificar a população estuda como trabalhador rural . Esse
trabalhador pesquisado refere-se aquele de pequeno porte, que realiza suas atividades
no meio rural do município de Santarém e que tem área de terra de até 100 hectares.
Essa identificação tem como base o recorte feito na pesquisa empírica, cuja proposta
era entender a natureza dos deslocamentos dessa categoria de trabalhador que tanto
poderia estar de posse do seu lote de terra ou fosse pleiteante, e que trabalhasse em
regime de economia familiar.
Adotou-se o conceito trabalhador rural em detrimento de pequeno produtor e
agricultor familiar, que são utilizados com freqüência naquela região, além de outros
existentes, porque a pretensão do estudo era analisar a mobilização do trabalho em
decorrência das ações da dinâmica capitalista. Ou seja, no horizonte da pesquisa está
a sociedade produtora de mercadorias. Nesse contexto, um trabalhador rural ou outro,
é suscetível à mobilização em razão do trabalho ou pela falta dele, especialmente
numa região onde a propriedade privada da terra orienta o processo de ocupação da
terra, que na maioria das vezes não é feita de forma amistosa.
O conceito pequeno produtor está vinculado aos propósitos da política agrícola
do governo federal e caracteriza aquele que explora imóvel rural de até quatro módulos
rurais da respectiva região. O conceito agricultor familiar é usado para fins de
enquadramento sindical no segmento patronal ou no segmento obreiro.
Trabalhador rural , de acordo com a Lei 9.701/98, é a pessoa física que presta
serviço a empregador rural mediante remuneração de qualquer espécie; quem,
proprietário ou não, trabalhe individualmente ou em regime de economia familiar, assim
entendido o trabalho dos membros da mesma família, indispensável à própria
subsistência e exercido em condições de mútua dependência e colaboração, ainda que
com ajuda eventual de terceiros. Empresário ou empregador rural é a pessoa física
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ou jurídica que, tendo empregado, empreende, a qualquer título, atividade econômica
rural; quem proprietário ou não, e mesmo sem empregado, em regime de economia
familiar, explore imóvel rural que lhe absorva toda a força de trabalho e lhe garanta a
subsistência e progresso social e econômico em área superior a dois módulos rurais da
respectiva região; os proprietários de mais de um imóvel rural, desde que a soma de
suas áreas seja superior a dois módulos rurais da respectiva região (DECRETO-LEI
1166/71, com a redação dada pela LEI Nº. 9.701/98; FAEMG, 2008).
MAPA 01
Localização do Projeto de Assentamento (PA) Corta-C orda
FONTE: Adaptado do Mapa Estado do Pará - Área de Atuação da SR 01 - PA, escala 1:1800.000, INCRA, 1999.
PA Corta Corda
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MAPA 02
Mapa de Conflito em Santarém (Oeste do Pará)
Fonte: IPAM, Abril/2005 (APUD Prefeitura Municipal de Santarém, 2007).
A terra não é uma mercadoria qualquer
Nas inúmeras etapas da economia extrativa amazônica da era colonial e
também a posteriori, foi inegável o uso de grandes extensões de terra para colocar em
prática o mecanismo da coleta de bens, que se transformariam em mercadorias
exportáveis. Considerando as condições produtivas dessa região, à época, havia sim
nos primeiros séculos, grande interesse para explorar tudo o que pudesse estar sobre
a terra (o propósito da exploração) e não pelo que pudesse ser produzido na terra , até
então. Ainda assim, os mecanismos de apropriação (títulos paroquiais ou outro) eram
sempre no sentido de valorizar a formação de extensas áreas:
“Eles controlavam a produção extrativa, financiavam a safra. Não eram
exatamente senhores da terra, ou fazendeiros, mas apenas ‘dominadores’ das áreas
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de matéria-prima como a castanha, a piaçava, madeira, a batata, a sorva e a borracha
[...] Esta classe estabeleceu o controle da terra, abrangendo grandes áreas produtivas”
(SOUZA, 2002, p.2).
Os séculos foram passando e a terra foi sendo percebida cada vez mais como
um bem maior e “sacralizada” como tal, uma vez que os homens de posses viam que
tudo que fosse realizado com ela e a partir dela teria condição de se transformar em
riqueza. E ao se converter em mercadoria de grande valor, a terra funcionaria como
instrumento de poder e dominação.
O desenvolvimento das relações capitalistas por que passa a Amazônia traz em seu bojo a propriedade de acelerar o processo de conversão da terra em mercadoria. Esta vai perdendo, gradativamente, sua característica histórica de terra de trabalho e sustento de caboclos, índios, posseiros, moradores etc., e cedendo lugar a atividades lucrativas para o capital (seja a criação de gado ou outras atividades produtivas). Seja mesmo a simples apropriação privada da terra para valorização futura ou como fator de acesso a outras rendas, com a bancária, para cuja obtenção a terra consiste em insubstituível garantia fiduciária (LOUREIRO, 1987, p.36).
A compreensão do significado da terra, que se comportava como mercadoria, foi
sendo incorporada pelos dominadores que se apossavam de vastas extensões,
transformando-a, de fato, na grande mercadoria . Nesse sentido, a terra passou a ser
explorada não só com a finalidade de produzir coisas para atender ao mercado,
conferir privilégios de monopólio aos seus donos, mas também passou a ser o
instrumento pelo qual o latifundiário formaria o sustentáculo de valorização da própria
terra. Era de fundamental importância que alguém realizasse as tarefas nesse
processo visando o melhor aproveitamento.
Com esse fim, terras foram loteadas entre os que nada tinham - os sem posses ,
para que estes, estando por perto, pudessem realizar as ditas tarefas: desbravar as
fronteiras, dar operacionalidade aos projetos, amansar a terra e mais adiante, quem
sabe, “devolvê-las” aos que dela saberiam fazer melhor proveito. Quando na condição
de desapossados, os trabalhadores, antes recrutados, teriam que sair em busca de
terras ainda não desbravadas ou buscar outras formas de sobrevivência. Poderiam
também ser úteis na realização de atividades extrativas dos bens da floresta, que se
transformariam em mercadorias cobiçadas por consumidores para além do Atlântico:
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extração da madeira, coleta de frutos exóticos, plantas medicinais, animais da floresta,
entre outros.
Mais recentemente, o nível de qualidade e a velocidade produtiva que são
exigidos pelo padrão concorrencial, especialmente nas atividades agrícolas, requerem
formas de fazer que braços comuns não têm mais condições de se ocupar. As
máquinas são mais produtivas, portanto, mais baratas.
No contexto atual, o empreendedor do agronegócio pode ser definido como
aquela personagem de visão que faz as apostas e delas têm muito pouco para se
arrepender. Na sua tarefa de prospectar, criar e inovar, ele busca combinar, sempre,
elementos essenciais da dinâmica capitalista – a terra, o capital, o trabalho, as
máquinas, as patentes “commoditizadas”, entre outros, para criar e disponibilizar as
mercadorias que são cobiçadas nos grandes mercados.
Determinadas localidades da Amazônia brasileira, vão sendo, gradativamente,
incorporadas como bases produtivas para os grandes centros econômicos. Além da
agricultura, também passaram a se destacar outras atividades que já faziam parte da
economia regional e que tiveram seu espaço ampliado nesse novo cenário de negócios
globais, tal como a extração da madeira e a pecuária. Nestes dois últimos segmentos,
o estado do Pará tornou-se uma das referências nacionais, pois já é o 5º maior
fornecedor de carne bovina do país e o maior da região, com 17 milhões de cabeças de
gado (EMBRAPA – AMAZÔNIA ORIENTAL, 2006). No que se refere à madeira, é o
segundo exportador de madeiras do Brasil, ficando atrás, apenas, do Paraná, que
exporta grandes quantidades de madeiras abatidas a partir de plantios (FONSECA;
LISBOA; URBINATI, 2005, p. 66).
Os trabalhadores rurais de pequenas posses ou em busca delas, que formariam
a força de trabalho no campo, nutrem a ilusão de que são donos do seu próprio
destino, no entanto, muitos deles, vagam sem destino em busca de um lote de terra.
Ainda que aparentem estar descolados do processo, eles continuam inseridos no
“jogo”, mesmo que num papel indefinido. Considerando que seus braços não são tão
indispensáveis em grande parte das atividades produtivas de determinadas
mercadorias (agronegócio, por exemplo), eles serão, sempre, reserva para alguma
coisa e certamente úteis em alguma etapa do processo de acumulação. E mais,
formam uma grande massa de consumidores de diversas mercadorias.
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Para que se entenda o histórico processo de ocupação da Amazônia e o papel
que as personagens citadas e o Estado foram desempenhando no decorrer dessa
dinâmica, Ariovaldo Umbelino de Oliveira nos dá a explicação do tipo de colonização
que foi realizada na região:
Nesse aspecto estrutural, Estado e capital caminham juntos. Este, por meio da venda da terra aos camponeses nos seus projetos de colonização, além do lucro com a venda, foi formando os “viveiros de mão-de-obra” para utilização nos próprios projetos. O Estado ficou com a tarefa de conter as tensões sociais e fez dos projetos de colonização e dos assentamentos de reforma agrária ‘válvulas de escape’ das terras de tensão social. Essa é a raiz histórica da ‘Marcha para o Oeste’, da implantação dos projetos agropecuários, da colonização e da expansão do agronegócio na fronteira (OLIVEIRA, 2005, p. 72).
Evidencia ainda o autor que “o processo de ocupação recente traz novas formas
de atuação. Não se está diante da lógica ditada pela disputa livre no mercado, há tão
somente a imposição dos monopólios. A mercadoria que comanda esse processo
de ocupação é a propriedade privada da terra ” (OLIVEIRA, 2005, p.72). (grifo
nosso ). O autor fundamenta ainda mais sua argumentação quando diz que:
Assim, a produção da cidade de certa forma, precede o campo, ainda que a propaganda indique que o campo possa estar sendo vendido primeiro. São as cidades que se impõem nessa porção da Amazônia atravessada pela BR-163, em Mato Grosso primeiro, e agora no Pará. É a lógica dos monopólios privados, que se instauram e determinam a lógica do campo. [...] E a economia brasileira mundializada requeria a elevação das taxas de produtividade da agricultura e o aumento do poder de competitividade. Como a fronteira não reunia condições para isso, a chamada modernização no campo começou pelo Sudeste e Sul (OLIVEIRA, 2005, pp. 72-73).
Há de se ter em boa compreensão, que a forma histórica da propriedade privada
é uma condição predominante e uma necessidade nas relações capitalistas, que está
em Marx em “O Capital”. A terra, nessa condição e nos dias atuais, está na base dos
inúmeros conflitos que se configuram na Amazônia brasileira.
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O acelerado processo de reprodução do capital
No seu contínuo processo de ampliação, o sistema capitalista demanda e
estimula novos segmentos produtivos que se tornam indispensáveis no processo de
acumulação. Nesse movimento, a dinâmica capitalista se estabelece e busca
consolidar sua hegemonia . Isso não significa dizer que exista homogeneidade em
todos os processos. Eis a contradição: o processo de desenvolvimento capitalista não é
homogêneo, ainda que busque trabalhar nessa direção. O processo também não se
generaliza e se efetiva de uma única vez, ainda que almeje se implantar desse modo,
em definitivo.
Mamede (2007, p. 24) enfatiza que o processo de desenvolvimento capitalista é
desigual porque a tendência à universalização não se realiza pela homogeneização
dos processos de trabalho e produção. A heterogeneidade define o movimento do
capital, justificando a desigualdade na repartição dos frutos da exploração. Portanto, a
particularização dos espaços sociais em termos produtivos é a expressão desse
desenvolvimento. A autora utiliza esse argumento para explicar o deslocamento do eixo
central que a economia da borracha ocupava junto aos países do centro para tornar-se
periférica de uma hora para outra na sua crise: “as economias de caráter retardatário
submetem-se às determinações mais gerais do desenvolvimento industrial das
economias centrais”.
Robert Kurz (2007, p.166), já se referindo ao aprofundamento da crise por que
passa o sistema produtor de mercadorias, argumenta que “as diferentes sociedades
encontram-se ainda em situações totalmente diversas nos planos material, social,
político, etc. Muitos países estão apenas nos primórdios do ‘desenvolvimento’
moderno; outros estão empacados a meio caminho. Mas o declive não mobiliza
nenhuma dinâmica adicional de ‘modernização reparadora”. Neste contexto, o autor já
se reporta ao que ele chama de (expiração da não-simultaneidade no interior do
sistema de produção de mercadoria). Antecedendo a este novo enfoque, no entanto, o
autor se reportou ao que ele chamou de não-simultaneidade interna do capitalismo.
A perspectiva da ‘não-simultaneidade’ imanente na formação do sistema social moderno pode ser representada em diversos níveis [...] Por um lado, esse modo de produção já desenvolvera a sua lógica interna a tal ponto que esta se tornara visível em suas feições básicas e com isso abstratamente reconhecível; por outro lado, as formas especificamente capitalistas ainda se encontram multiplamente mescladas com relações pré-capitalistas em diversos estágios da
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decadência e daquela transformação ainda longe de ser concluída [...] o modo de produção capitalista ainda não atingira integralmente todos os ramos de produção e as esferas sociais que se encontravam fora da produção empresarial direta (Estado, família, vida cultural, corporações extra-econômicas, etc.) (KURZ, 2004, p. 2-3).
O movimento de não-simultaneidade do qual fala o autor e que tem
acompanhado o histórico processo de produção capitalista, não é de difícil
reconhecimento no contexto da Amazônia santarena de hoje, especialmente quando se
observa o curso do processo modernizante que já acontece em determinadas
atividades. Alfredo (2005, p.1) argumenta que “a modernização fundamenta-se no
desenvolvimento das forças produtivas de uma dada sociedade de modo a colocar
mobilização do trabalho como necessidade da realização da riqueza monetária no
processo de acumulação”.
Alguns destaques são necessários no curso desta análise:
a) o processo de desenvolvimento das forças produtivas na região em estudo
tem se pautado pela contradição;
b) os empreendimentos capitalistas não foram acontecendo de um dia para o
outro e a mudança de perfil da economia local foi sendo processada de forma contínua,
mas permeada por períodos de euforia e de arrefecimento, sempre comportando a
exploração e/ou produção de bens com perfil cíclico e objetivo exportador, e a
exploração e/ou a produção de bens privilegiando a subsistência. A despeito da
incorporação tecnológica em determinadas atividades, muito da subsistência da
população local, de hoje, está vinculada às antigas práticas de fazer, que têm ritmo
específico e modos particulares de lidar com as relações de produção, com as relações
trabalho e com os contratos sociais.
c) muitas das dinâmicas do momento para colocar em curso as atividades
produtivas, têm se caracterizado pela pressa e pela agressividade , no que se refere
ao ritmo produtivo e posse da terra para extração da madeira, expansão de rebanhos
(bovinos e búfalos), plantio de grãos e aquisição para uso especulativo (valorização
futura).
d) a apropriação e o uso da terra para construir moradias e para o cultivo da
pequena agricultura, pautaram-se, por muitos séculos, “na palavra” e não no registro
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em papel. Isso foi acontecendo com os pequenos posseiros ribeirinhos e,
posteriormente, com os moradores das áreas mais centrais do planalto santareno.
Compreende-se, a partir das referências pontuadas, que a permanência de
antigas formas de fazer e de viver, a pressão pela mudança e as próprias mudanças,
têm gerado atitudes e sentimentos de aceitação, de contrariedade e de indagação
entre os protagonistas. Essa relação entre o antigo e o moderno tem estado no centro
de muitas divergências que ocorrem na área pesquisada. O que está sendo proposto,
de modo incisivo, é a introdução de novas formas de produzir e de trabalho, que, ao
mesmo tempo, é uma proposta de quebra das antigas relações sociais, dos costumes e
da organização espacial que estava moldada na atividade extrativa. É o remanescer de
cinco séculos de história da atividade extrativa que está sendo posto à prova.
A propriedade privada da terra, nos moldes que o sistema capitalista exige, foi
acontecendo com a progressiva apropriação das terras para a produção e exploração
de mercadorias, que se transformaram em commodities valorizadas no mercado
externo. As terras paraenses, na sua indiscutível maioria, sempre foram do Estado
(federal ou estadual) e esse entendimento foi assimilado, de um modo ou de outro,
pelos moradores da região, tanto ribeirinhos quanto colonos.
Por anos e gerações, a terra ia sendo repassada para os descendentes na
mesma lógica e nunca houve a preocupação de se buscar um documento formal de
posse ou algo semelhante, pois nem o Estado pressionava para tal (a urgência não
havia se materializado), nem o morador achava isso necessário. Com a chegada dos
empreendedores capitalizados, a situação foi mudando, pois toda terra passou a ter
dono e muitos daqueles que estavam presos aos compromissos da “palavra”, viram-se,
de uma hora para outra, colocados na condição de invasores da terra alheia, onde
supostos donos iam chegando e apresentando documentos de propriedade dessas
terras.
A agilidade com que a dinâmica desse apossamento aconteceu, foi
avassaladora, para a qual nem os particulares nem o Estado estavam preparados,
ainda que este último estivesse comprometido com essa dinâmica. A despeito das
pressões em contrário, os embaraços de percurso não têm sido insuperáveis. A
produção das mercadorias que contam no mercado mundial, tem se realizado, apesar
da permanência de antigos modos de viver e de fazer. O empenho imediato não é no
sentido de uniformizar padrões, mas de achar formas e mecanismos para reverter as
Relação campo-cidade e a dinâmica capitalista um es tudo no oeste do estado do Pará – município de Santarém, pp. 1-30
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diferenças de modo favorável, seja pela força ou por intermédio das articulações
políticas, mediações e composições.
4.3 A dinâmica da mobilização do trabalho no planalt o santareno
Nos tempos iniciais de consolidação do capitalismo e da acumulação primitiva, a
expropriação das populações do campo aconteceu para que as terras comunais
fossem utilizadas em prol da atividade produtiva e também para que os trabalhadores
ficassem liberados para o trabalho assalariado (condição de expropriado para
explorado). No meio rural amazônico-santareno de hoje, já em tempos de capitalismo
consolidado (os pressupostos) e com uma trajetória modernizante em ascensão, a
expropriação ou as tentativas de expropriação do pequeno trabalhador acontece para
que sua terra seja utilizada como meio de produção para a realização de negócios,
mas não necessariamente para usá-lo como mão de obra nos processos produtivos em
causa.
Parte desses trabalhadores tem buscado as alternativas oficiais para resolver
seus problemas de sobrevivência, a partir da terra: assentar-se pelas opções
disponíveis nos programas da reforma agrária. Para outros, resta o desafio de migrar
para Santarém ou sair em busca de uma nova frente de expansão. Se a opção for pela
cidade, as alternativas de trabalho não são muitas. Para os mais velhos, tem o trabalho
de “encostado”, de fazer “bicos”, de ser ambulante ou de viver da aposentadoria rural,
se for o caso. Os mais novos também podem realizar algumas das atividades citadas
ou tentar uma vaga no comércio local ou mesmo no serviço público, se tiver o estudo
mínimo exigido. Se for mulher, amplia-se o leque com a possibilidade da atividade
doméstica na casa de famílias santarenas ou mesmo a prostituição, no caso das mais
jovens. Seriam estas as contrariedades que lhes estariam sendo impostas pela procura
de trabalho às famílias que partem do campo.
Retoma-se aqui Gaudemar (1977, p.192) quando ele diz que: “Se se afirmou que
o capitalismo começava com a exploração da força de trabalho, é necessário
acrescentar que ele só poderia nascer uma vez que o trabalhador tivesse adquirido
esta mobilidade, não no sentido apologético que a teoria clássica reconheceu, do
homem inteiramente livre do seu destino, ator da sua própria história, mas no sentido
das contrariedades que lhe são impostas por essa procura por emprego”.
XIX ENGA, São Paulo, 2009 CASTRO, M. C. A.
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Jean Hébette (Cruzando a Fronteira: 30 anos de estudo do campesinato na
Amazônia, 2004), ao interpretar a mobilidade como um fenômeno único, com diversas
facetas e tendo como foco o conceito de mobilidade do trabalho de Gaudemar diz que,
No caso da Amazônia, o construto deve ser apto a captar uma realidade diferente, correspondendo a um estágio diverso de desenvolvimento do capitalismo. A empresa capitalista, e ainda mais a empresa “especificamente capitalista” não são muito representativas dessa realidade. As formas de produção são, em grande parte, ainda pré-capitalistas. Já que a mobilidade significa subordinação ao capital, ela deve apresentar características concretas necessariamente diversas. O estágio de subordinação ao capital na Amazônia diz respeito à geração de força de trabalho dissociada de seus mei os de produção, muito mais do que à exploração industrial intensiva dessa força de trabalho . É a fase de expulsão da agricultura que acompanha os fluxos migratórios, de destruição do artesanato tradicional pela invasão dos produtos industrializados; é a fase da chamada “liberação” da força de trabalho transformada em mercadoria vendida e comprada. A fase da Amazônia é a que arranca da sua terra o trabalhador nascido e criado com seus pais, na roça ou no sítio, que obsoletiza os equipamentos do artesão e torna arcaica sua produção ... (HÉBETTE, 2004, pp.171-172). (grifo nosso ).
O conceito de mobilidade do trabalho, no sentido que aqui se apreende, foi
ficando cada vez mais fluido e os processos de sua materialidade vão sendo expressos
nas diversas esferas de trabalho e nos estágios de desenvolvimento econômico de
cada realidade, em particular. Por outro lado, o seu acontecer vai assumindo uma
aparência de “quase natural”, de modo que cada trabalhador não conseguiria
dimensionar o quanto já exercitou essa capacidade em nome do trabalho e o que ainda
seria capaz de fazer por ele.
Há de se reconhecer também que o sentido de mobilidade, a partir do
pensamento de Gaudemar, não se expressa apenas por meio da migração, mas
também por intermédio das inúmeras estratégias e articulações que o trabalhador é
forçado a exercitar em prol do trabalho e da sobrevivência. Nesse aspecto, e levado
pelas circunstâncias, o trabalhador é pródigo em elaborar ou achar as alternativas, seja
no campo, seja na cidade, seja na volta da cidade para o campo, ou na “ponte
terrestre” campo-cidade, cidade-campo.
Relação campo-cidade e a dinâmica capitalista um es tudo no oeste do estado do Pará – município de Santarém, pp. 1-30
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As estratégias e as articulações dos pequenos: plan tar e colher? Não necessariamente!
Nas comunidades do PA Corta-Corda, e mais especificamente de União Corta-
Corda, as atividades que fazem parte da base de subsistência das famílias são,
basicamente, a pequena agricultura (arroz, feijão, mandioca, milho, macaxeira e
algumas frutas), o plantio do capim (em poucos casos) e os benefícios governamentais.
Também, eventualmente, e dependendo da sazonalidade, eles coletam na floresta o
açaí, o piquiá, o tucumã, a castanha-do-Pará, o uxi e a abacaba.
Em 2003, Ruth Helena Almeida apurou em pesquisa na citada comunidade, que
os recursos da subsistência eram provenientes de duas fontes: da agricultura (51%) e
dos benefícios governamentais (49%). Neste último estavam incluídas a bolsa escola, a
aposentadoria e a pensão (ALMEIDA, 2003).
No entanto, um dos maiores problemas enfrentados pelas famílias do citado PA
e das redondezas nos últimos tempos, tem sido a dificuldade de escoar os bens
agrícolas para Santarém, que quase sempre é feito por ônibus pela Rodovia Curuá-
Una (PA-370) e eventualmente, por outro tipo de veículo. Em determinados trechos a
estrada é de difícil tráfego. No período chuvoso o lamaçal é tão grande que não permite
que o transporte chegue próximo aos locais de embarque nas Comunidades e os
trabalhadores também encontram dificuldades para andar a pé. Por conta disso,
diversas alternativas são engendradas.
Uma das famílias pesquisadas, por exemplo, produzia o que podia no verão e
armazenava em camburões (latões) para sobreviver nos dias mais difíceis; montou um
micro comércio em um dos quartos da casa onde vendia para quem não tivesse colhido
ou a produção tivesse acabado. Uma vez por mês a esposa ia a Santarém e comprava
alguns produtos de higiene, beleza e Avon, além de mantimentos básicos (óleo,
açúcar, sabão, sal...) para revender aos comunitários. Como também era delegada
sindical, conseguia apurar mais 20% sobre tudo que arrecadava das contribuições
sindicais de cada associado pagante, que tem valor mensal de R$ 4,00. E assim, a
família juntava o suficiente para a provisão. Dos três filhos do casal, dois moravam em
Santarém e iam à Comunidade de tempo em tempo, levando os netos.
Muitas outras casas da Comunidade têm um idoso aposentado, isso tem
ajudado as famílias nos dias de aperto. No período da pesquisa, a maioria das famílias
estava produzindo na lavoura somente para o consumo, apoiada no trabalho do pai e
XIX ENGA, São Paulo, 2009 CASTRO, M. C. A.
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da esposa ou mesmo de alguns filhos e netos, quando estes não haviam migrado para
Santarém.
Para Chayanov (1974, p.10) “el trabajo de la família es la unica categoria de
ingresso posible para um campesino o um artesano, porque no existe el fenômeno
social de los salarios y, por tal motivo, también porque está ausente el cálculo
capitalista de ganancia”.
Hébette, Magalhães e Maneschy (2002, pp. 33 e 34) abordam a
contemporaneidade dos grupos sociais que conformam o contexto rural da Amazônia
Oriental e que pode ser ampliada para analisar aspectos de vida da população rural na
região estudada:
Hoje, na Amazônia, é necessário compreender a diversidade de situações de vida dos muitos tipos de pequenos produtores que combinam atividades econômicas ou são especializados, com maior ou menor grau de intervenção e de transformação do meio ambiente. Para tal, é imperativo considerar as dimensões históricas e culturais. Suas trajetórias são variadas. [...] Aquelas pequenas sociedades que remontam aos idos da colônia... [...] Renovaram-se, adaptando-se aos seus novos espaços e tempos, cada vez de forma original e incomparável, e constituindo diversas faces de uma sociedade rural paraense, profundamente diferente das sociedades de outras grandes regiões do país.
Em um determinado dia da pesquisa de campo, encontrei-me, na cidade de
Santarém, com um comunitário do PA Corta-Corda (delegado sindical de sua
Comunidade), vendendo picolé em um ponto de ônibus. Entre a compra de um picolé e
a conversa, ele me disse que a roça não estava rendendo, pois na última safra havia
perdido quase tudo da parte que tinha reservado para a venda, pois com a chuva não
foi possível levar para Santarém e assim criar uma reserva. O citado comunitário pediu-
me discrição quanto ao seu nome, pois o “regulamento” do órgão oficial não permite a
realização de trabalhos fora do previsto nas regras para assentados.
No que se refere ao regulamento citado pelo comunitário, este deveria ter sua
contrapartida, ou seja, todas as providências requeridas no programa de reforma
agrária deveriam ser colocadas em prática pelo poder público. Uma delas seria a de
dar condições de escoamento da produção dos comunitários pelos ramais que foram
criados e que dão acesso à rodovia principal, a PA-370.
Relação campo-cidade e a dinâmica capitalista um es tudo no oeste do estado do Pará – município de Santarém, pp. 1-30
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Um outro comunitário, no decorrer de uma das entrevistas, e referindo-se à
precariedade das estradas, disse que “só ainda roda carro é por causa do sojeiro;
podem ser ruim, mas como beneficia a si próprio, também ajuda”. Neste caso, o que
ele queria dizer é que os sojeiros ou os madeireiros sempre dão uma melhorada nas
estradas, nos caminhos e nas travessias por cima dos igarapés por onde passam seus
caminhões.
Os pequenos jeitos e as facilidades da lei
Não se trata aqui de colocar o pequeno trabalhador rural numa redoma ou de
“santificá-lo” como o coitado expropriado, e que todos os demais protagonistas do
grande processo que move as dinâmicas na realidade em causa, sejam os grandes
vilões. O que se pretende evidenciar são os limites que lhes são impostos naquele
contexto de grandes decisões e múltiplas ações, e as formas que eles encontram para
lidar com essas limitações.
São nos espaços não ocupados ou não controlados pelos maiores protagonistas
(Estado, latifundiários...), que eles constroem suas estratégias de sobrevivência,
aproveitando as oportunidades que se apresentam no sentido de ampliar sua margem
de subsistir no presente e no futuro. De um modo geral isso está relacionado com a
expansão de suas posses, com a melhoria das condições de sobrevivência diária e
com a possibilidade de fincar um pé na cidade. Não são todos os que agem nessa
direção, mas são muitos os que buscam essas saídas. Também observamos que não
se tratam de ações previamente calculadas, mas de articulações nascidas no contexto
de suas relações sociais, onde contam muito a rede de informações, as relações de
parentesco, os conhecimentos que eles vão adquirindo por meio dos cursos e reuniões
no Sindicato e nas discussões que acontecem nos encontros mensais nas suas
comunidades.
Por outro lado, o elo que os comunitários do PA Corta-Corda mantêm com a
cidade de Santarém é muito forte e isso independe da distância que os separa – é
sempre o lote, a estrada e a cidade, e vice-versa. Ainda que muitos não se empenhem
para morar na cidade, é importante para eles o entendimento de que ela esteja lá. A
cidade nas suas falas é uma constante. Ela é funcional tanto nas suas vidas práticas no
sentido de vender, comprar, ter acesso ao médico, ao dentista..., quanto no sentido da
conquista de seus espaços de natureza política, das relações com outros agentes
XIX ENGA, São Paulo, 2009 CASTRO, M. C. A.
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sociais que comungam dos mesmos interesses, com as instituições públicas e
privadas, entre outros. É na cidade que eles articulam a luta em defesa de suas terras.
A cidade sempre teve relações com a sociedade no seu conjunto, na sua composição e seu funcionamento, com seus elementos constituintes (campo e agricultura, poder ofensivo e defensivo, poderes políticos, Estados etc.), com sua história [...] A cidade depende também e não menos essencialmente das relações de imediatice, das relações diretas entre as pessoas e grupos que compõem a sociedade (famílias, corpos, organizações, profissões e corporações etc.) [...] A cidade é uma mediação entre as mediações (LEFEBVRE, 2001, p.46).
No que refere aos pequenos jeitos anteriormente mencionados, eles tanto
podem trazer benefícios quanto podem se constituir em armadilhas, que prejudicam os
próprios trabalhadores. Eis alguns deles:
● Muitos comunitários do PA Corta-Corda possuem o seu lote num assentamento
qualquer, onde trabalham no cultivo dos produtos que já foram mencionados ou podem
também fazer criação de aves ou lidar com algumas cabeças de gado (entre três e
quatro). Em paralelo, eles tentam encontrar um pequeno terreno na “vila” de Cícero
Mendes que tenha em torno de 25mx25m, 20mx40m ou outro, por oferecer melhor
infra-estrutura, visto que determinados assentamentos são distantes da estrada
principal e o acesso é precário. Passam um tempo num e no noutro ou deixam a família
na vila onde as crianças podem estudar e ficam trabalhando no lote.
● Outros dão um jeito de achar um terreno de ocupação na periferia da cidade de
Santarém e constroem uma pequena casa com o material possível. É estratégico, pois
como precisam ir à Santarém periodicamente tem onde ficar, pois o ônibus de volta tem
hora marcada e os problemas são muitos para resolver, não dando para retornar no
mesmo dia. Muitos deles têm filhos e já pensam onde eles poderão ficar para estudar.
Ou ainda, que já tem o que deixar para os filhos no futuro. Quem toma conta do
casebre na cidade é, normalmente, um familiar que já mora na mesma área de
ocupação.
● Muitos trabalhadores rurais que já perderam a terra e moram na periferia de
Santarém, buscam se inscrever junto a possíveis líderes das comunidades que seriam
criadas em novos Projetos de Assentamento (PA ou PDS), dentro da Gleba Pacoval.
Porém, muitos assentamentos estão sendo “projetados” por fora do aparato legal ou
Relação campo-cidade e a dinâmica capitalista um es tudo no oeste do estado do Pará – município de Santarém, pp. 1-30
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descumprindo atos normativos, para depois tentar provar a sua viabilidade e
necessidade. Tal como consta no Relatório do Greenpeace, (“Assentamentos de Papel,
Madeira de Lei”, no quesito “Quebrando as regras: a indústria de assentamentos”),
existem diversos erros de procedimento e ilegalidade nos processos de criação de
determinados assentamentos:
O PDS Serra Azul, por exemplo, é mais um caso onde os assentados foram
contabilizados para fins de cumprimento de metas, sem que a terra lhes tenha sido
entregue. O PDS teve a capacidade calculada inicialmente por técnicos para 300
famílias, mas foi sobrecarregado na portaria de criação com mais 160, totalizando 460
famílias. Mais tarde foi ampliado para 760 famílias: um salto de 153,33% na
capacidade tecnicamente mensurada, sem qualquer estudo técnico para o aumento
(GREENPEACE, 2007, p.12).
Além de perder o lote em assentamentos “inflacionados” ou por outros
problemas de ilegalidade, muitos trabalhadores pagam uma taxa mensal que é
justificada pelos organizadores como necessária para despesas diversas, como manter
micro-escritórios, documentação e trâmites. Entre aqueles que se inscrevem, muitos
são pessoas idosas que pouco têm para o sustento, mas que se submetem a essa
condição no afã de conseguir um lote.
● Outra situação diz respeito à existência de dono de lote que tem casa e profissão na
cidade (dentista, por exemplo) e vive no vai-e-vem (participa de reuniões e eventos
dentro do assentamento). A partir dessa facilidade existe uma negociação entre os
comunitários e o assentado profissional: todos que tem problemas dentários e precisam
extrair um dente procuram esse comunitário nos dias que ele está em Santarém e
dependendo do serviço, ela cobra um valor mínimo. Por uma extração de dente, por
exemplo, ele cobra R$ 5,00 do assentado que pode até pagar depois quando puder.
● Existem trabalhadores que possuem lote de terra em determinado Projeto de
Assentamento, com casa e mínima infra-estrutura, onde vivem com sua numerosa
família. Este é o caso do Seu Antônio (nome fictício para preservar sua identidade) que
mora na Comunidade de Cícero Mendes e que possui lote de terra de 60 ha. Como a
atividade na roça não estava rendendo na época da pesquisa, Seu Antonio estava
trabalhando na realização de picadas para os madeireiros da região, de onde tirava
parte do sustento da família. No período da pesquisa, as únicas funções que a família
realizava no lote, era a de limpar o terreiro e a parte reservada ao plantio da mandioca
XIX ENGA, São Paulo, 2009 CASTRO, M. C. A.
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e de alguns legumes para ajudar na alimentação. O Seu Antonio havia conseguido
esse lote no PA depois de ter passado pelo município de Itaituba; por uma localidade
no Rio Moju, próximo ao Rancho da Cabocla (grande Madeireira da região), até chegar
ao PA Corta-Corda, na Comunidade de Cícero Mendes, onde reside.
Mesmo articulando pequenos negócios para garantir um maior patrimônio ou
facilitar a vida cotidiana, esses trabalhadores não agem na condição de especuladores
ou com a intenção de acumular, ainda que os bens sejam possíveis de venda, pois as
dinâmicas são engendradas para garantir a sobrevivência no dia-a-dia. E justamente
por não terem grandes recursos, fica difícil promover melhorias nos bens adquiridos.
Aposentadoria rural: conquista de um direito e abra ndamento do processo de expropriação e da falta de trabalho
A previdência rural é destacada por todos os analistas de políticas públicas pelo
seu caráter inovador, cujo maior mérito foi o de universalizar o acesso da população
rural brasileira ao citado benefício, sem que os pretendentes tenham que provar
regularidade na contribuição. Apenas necessitam comprovar o exercício da atividade
agrícola. O impacto dessa política no campo é inegável, pois são muitos os resultados
favoráveis já indicados em vários estudos: “criou-se o segurado especial, que incorpora
a previdência social no amplo universo de agricultores familiares, autônomos e seus
auxiliares familiares. O programa de maior abrangência foi a instituição da
aposentadoria rural por idade, que atualmente beneficia mais de 4 dos mais de 16
milhões de trabalhadores rurais”. (ZIMMERMANN, 2005, p. 1).
Tabela 15 – Quantidade de Beneficiários da Previdên cia Rural
ANO 1991 1993 2000 2001 2002 2003
Beneficiários rurais inclusive pensões
4.080.400 5.370.597 6.493.872 6.621.259 6.869.592 7.029.020
Por tempo de contribuição
- - 5.661 6.068 6.567 6.938
Por Idade 2.240.500 3.113.715 4.012.127 4.117.371 4.287.817 4.403.561
Por Invalidez - 444.847 415.177 413.399 415.607 420.263
Fonte: DATAPREV, Apud ZIMMERMANN, 2005, p. 3.
Relação campo-cidade e a dinâmica capitalista um es tudo no oeste do estado do Pará – município de Santarém, pp. 1-30
23
O que se quer destacar aqui é a aposentadoria por idade, considerando o
grande benefício que ela tem trazido para o trabalhador rural mais velho, para a
dinâmica dos negócios e também para o resultado dos números da reforma agrária. Se
muitos trabalhadores permanecem no campo ou em assentamentos precários sem
condições de se estabelecer, apropriadamente, isso se deve, em muito, à
aposentadoria rural. É por conta dela que existe muita movimentação no município
pesquisado. A condição para ser um homem ou uma mulher do campo não é
suficiente mostrar as rugas da face, a pele envelhecida e as mãos calejadas, tem que
ter a prova de que pegou no cabo de uma enxada e mora perto da roça.
A aposentadoria rural por idade, que é devida ao homem aos 60 anos e à mulher
aos 55 anos, dá direito a um salário mínimo. Para receber o benefício é necessária a
comprovação da atividade rural, mesmo que descontínua, dentro das condições
previstas em lei. É o chamado período de carência, que até 2006 eram de 12 anos e
seis meses, e que a partir de 2007 passou para 13 anos de atividade rural. Se o
trabalhador não tiver documento, basta apresentar um documento idôneo que se
constitua indício razoável de prova material e a confirmação por testemunhas, também
idôneas, sob as penas da lei, ou seja, no que se refere à prova material podem ser
considerados documentos particulares ou públicos, tais como certidão de casamento
civil ou canônica, certidão de nascimento dos filhos em comum e declaração de filiação
em qualquer sindicato rural. Se estas provas forem insuficientes requerem-se as
provas testemunhais . Na entrevista, o candidato ao benefício, responde um
questionário para caracterizar a agricultura familiar. Entre todas as questões, a mais
relevante é aquela em que fique caracterizado que ele é um agricultor que vend e o
excedente da produção e trabalhe sem a ajuda de emp regado, contando somente
com a ajuda da família, além de ter uma vida no cam po .
No caso do PA Corta-Corda, o associado/candidato ao benefício deve pagar a
mensalidade do sindicato regularmente, pois é quem viabiliza os procedimentos. Um
dos argumentos mais contundentes adotado pelos delegados sindicais para colocar em
dia as mensalidades é justamente o da aposentadoria, seja por tempo ou por idade.
Observamos, também, que são muitos os jovens associados que buscam colocar as
mensalidades do sindicato em dia.
Nas localidades onde existe grande instabilidade em decorrência da posse da
terra, aumentaram, consideravelmente, ações relacionadas com a aposentadoria rural.
XIX ENGA, São Paulo, 2009 CASTRO, M. C. A.
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Na área de abrangência do PA Corta-Corda, o Sindicato dos Trabalhadores
Rurais de Santarém (STRS) tem tido um papel fundamental nas ações de ajuda aos
trabalhadores. Por conta disso, o citado sindicato foi considerado, entre as instituições
mencionadas na pesquisa, como a mais próxima e a mais bem avaliada: “dá uma maior
assistência para cobrar os direitos”, “ajuda na aposentadoria e no benefício saúde”,
“ampara e briga por nós”, “dá mais explicação”, “é mais rápido”. Quando o associado
paga seis meses de mensalidade, ininterruptamente, já começa a ter direito; quando
adoece já pode entrar em benefício por três meses. O INSS tem parceria com o
sindicato para acelerar todo o processo.
Êxodo rural às avessas: cidade-campo-cidade
Dois fatos têm sido decisivos para que muitos trabalhadores, na região em
estudo, tenham retornado para o meio rural: a possibilidade de se aposentar por idade
e a chance de conseguir um lote de terra. Aliás, as duas situações estão relacionadas,
pois sem a terra não há chance de aposentadoria. É fato, também, que a maioria das
famílias que mora em bairros de ocupação na cidade de Santarém é oriunda da área
rural, seja da colônia ou do beiradão (margem dos rios). Portanto, a condição de
descontinuidade prevista na lei, possibilita esse retorno, haja vista que grande parte
desses trabalhadores migrantes já pegou numa enxada por vários anos. As razões
citadas com freqüência pela maioria das famílias entrevistadas para terem saído do
campo são: trabalho para os filhos, pressão pela posse da terra, acesso à educação e
problemas de saúde.
Entre as várias trajetórias que retratam as situações campo-cidade e cidade-
campo, citamos o caso de Dona Maria (nome fictício para preservar sua identidade),
moradora do Bairro da Alvorada, nascida no Acre e filha de pais cearenses, e que teria,
provavelmente, 50 anos em 2007, pois se negou a dar sua idade, dizendo, apenas, que
faltavam cinco anos para se aposentar. Disse que estava se organizando para voltar a
morar na área rural e assim poder se aposentar por idade. Ela já foi moradora da
Comunidade São João, no município de Belterra, onde vendeu suas terras para os
sojeiros. Chegou a Santarém em 2002 e desde então, tem trabalhado na lavagem de
roupa na casa de várias famílias. Tem um filho e uma filha com sítios na Vila de Boim,
na subida do Rio Tapajós, em Ponte Alta/Cucurumã. Possui o terreno onde mora em
um bairro de ocupação (Bairro da Alvorada), com mais ou menos 10mx20m. Disse
também possuir duas tarefas de terra na área do PA Corta-Corda, que é para seus
Relação campo-cidade e a dinâmica capitalista um es tudo no oeste do estado do Pará – município de Santarém, pp. 1-30
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filhos. Candidatou-se a um lote de terra no PDS Arará Azul, dentro da Gleba Pacoval e
já estava inscrita no sindicato. Pretendia se mudar para o Arará Azul para conseguir a
aposentadoria, mas que iria a Santarém sempre que pudesse. De acordo com Dona
Maria, muitas pessoas estariam voltando para a roça, para conseguir a aposentadoria.
A liderança do PDS Arara Azul, segundo o Greenpeace (Relatório de 2007,
pp.20-21), estava no meio de uma disputa com outra liderança do PDS Renascer II. Em
decorrência da disputa entre dois grupos madeireiros rivais pelo controle da associação
de moradores do PDS Renascer II, criado em dezembro de 2005, no município de
Uruará. Por conta do “racha” entre o presidente e a tesoureira, foram criadas duas
associações, dividindo o PDS: “... passaram a disputar o mesmo assentamento,
refletindo, na prática, a disputa das madeireiras Pires do Brasil e Estância Alecrim pelo
controle do PDS”.
Outro exemplo de retorno da periferia da cidade de Santarém para o meio rural,
é o do Seu João de 62 anos, casado com Arlete de 24. Eles tem cinco filhos entre 8 a 2
anos de idade e moram na Comunidade de União Corta Corda, desde o ano 2000. Lá
possuem um lote de terra de 100m x 2000m. Perguntado sobre a razão de ter decidido
voltar para a roça, já que morava em Santarém, vindo da área rural do Mararú, Seu
João respondeu dizendo: “Posso falar a verdade? Eu voltei porque precisava me
aposentar”. Mas afirmou que não pretendia mais retornar à Santarém para morar, a
não ser por uma grande necessidade.
Considerações Finais
A ocupação recente do espaço amazônico decorre das mudanças provocadas
pelo uso da terra para fins privados. Esse fato tem determinado a maioria das
dinâmicas que estão acontecendo no município de Santarém. A mencionada ocupação
pauta-se em um novo perfil produtivo, focada no mercado externo, que se inicia com a
extração da madeira e segue com a pecuária e a produção de grãos. Na maioria das
vezes, a realização dessas atividades tem como processo antecedente, a grilagem das
terras públicas, momento em que são utilizados mecanismos ilícitos e contundentes de
apropriação dessas terras, tais como a utilização de documentos falsos e a violência.
A forte inserção da economia brasileira nos mercados mundiais e a importância
que as commodities agropecuárias conquistaram nesses mercados, criaram a urgência
da ocupação de vastas extensões de terra para o desenvolvimento das atividades em
XIX ENGA, São Paulo, 2009 CASTRO, M. C. A.
26
causa. Essa urgência também requereu decisões governamentais voltadas para esses
negócios, tais como a disponibilidade de financiamento, provimento de infra-estrutura,
além daquelas ações decorrentes do processo da “juridificação”. Esta última é
caracterizada quando o Estado transforma-se numa máquina legislativa permanente,
encaminhando procedimentos para a criação de leis, decretos, medidas provisórias,
entre outros. Quanto maior o número de relações de mercadoria e dinheiro, maior é o
empenho do Estado nessa direção (KURZ, 1994).
O nível de produtividade exigido pelo padrão concorrencial não possibilita que as
atividades agropecuárias continuem utilizando práticas e estruturas pré-existentes. Os
municípios da Amazônia Legal que começaram a produzir em bases mais modernas,
têm recebido um substancial aporte tecnológico, seja com relação às pesquisas
científicas, que possibilitam a introdução de novas espécies vegetais em áreas de
cerrado e de terras úmidas, seja com relação às máquinas, equipamentos e insumos.
A produção capitalista moderna vai se consolidando e orientando as múltiplas
dinâmicas naquela realidade, entre as quais, a desorganização dos espaços, a
mobilização das pessoas (com ou sem trabalho) e o desapossamento das famílias
rurais que utilizam a terra como base de reprodução.
O avanço da fronteira amazônica não é um fato recente. No decorrer dos
séculos, essa região tem participado do propósito exportador do Brasil, desde quando o
país ainda era colônia de Portugal. De lá foi sendo extraindo o que de melhor a região
tinha para oferecer, à época: as mercadorias obtidas na floresta pelo processo da
coleta. Por conta dessa atividade, os coletadores não somente aprimoraram técnicas
artesãs para melhorar o nível produtivo, utilizando o profundo conhecimento que tinham
sobre as dinâmicas das florestas e dos rios, como também desenvolveram hábitos,
costumes e códigos de conduta que passaram a compor o seu cotidiano e relações
sociais vigentes.
A década de 70, já em tempos mais recentes, é considerada um marco na
corrida pela ocupação das terras para empreendimentos agropecuários. Foi quando os
governos militares planejaram e colocaram em ação o “Projeto Amazônia”, com as
justificativas de tirá-la do isolamento, de proteger as fronteiras nacionais e de eliminar
focos de tensão social em decorrência da fome e falta de trabalho no nordeste
brasileiro.
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A partir de então, intensificou-se o processo migratório de trabalhadores rurais
que chegavam de muitas partes do Brasil, especialmente das regiões Nordeste e Sul,
para conseguir um lote de terra. Também chegaram as grandes empresas
exploradoras de minérios, especialmente para o estado do Pará. Esses acontecimentos
geraram, à época, momentos de tensão e conflitos declarados com índios e posseiros.
Posteriormente, outro grande contingente de pessoas foi mobilizado para trabalhar nas
atividades de extração do ouro, mais fortemente para o estado do Pará, por conta da
Serra Pelada. Esses migrantes eram de várias origens, porém, na sua grande maioria,
do nordeste brasileiro. Nos dias atuais, a migração em direção ao Oeste do Pará
envolve um outro tipo de protagonista – o empreendedor do agronegócio – que chega
do Sul do Brasil ou do Centro-Oeste brasileiro para atuar nos negócios relacionados à
produção dos grãos, venda de insumos ou em áreas de serviços.
A partir desse contexto, os questionamentos, as divergências e os confrontos
que acontecem no município de Santarém, de hoje, foram sendo gestados ao longo da
história e com potencial de acelerar-se de forma progressiva. No centro do problema
não está, apenas, a ocupação da terra para o trabalho ou para os negócios, mas a
ocupação privada da terra com perfil monopolista.
A expropriação do trabalhador ou as tentativas de expropriação tem acontecido
para que sua terra seja utilizada como meio de produção, mas não necessariamente
para usá-lo como mão-de-obra nos processos produtivos em causa. Ou seja, no
contexto estudado, o processo de mobilização do trabalhador rural acontece, entre
outras razões, para que suas terras sejam utilizadas nos empreendimentos madeireiros
e agropecuários. No estágio atual, o capital está mobilizando uma força de trabalho já
dissociada de seus meios de produção, cujos processos de trabalho tornam-se
obsoletos diante da nova ordem produtiva que se instala.
Muitos trabalhadores têm buscado as alternativas oficiais para resolver seus
problemas de sobrevivência, a partir da terra, assentando-se nos pelos programas da
reforma agrária do governo federal. Outros migram para Santarém ou saem em busca
de uma nova frente de expansão. Muitos outros partem para o enfrentamento, negando
a possibilidade da condição de expropriado, do lugar onde nasceram e onde vivem por
gerações.
Por outro lado, como a lógica capitalista tem por natureza a contradição, em
determinadas situações, é indiferente se os processos utilizados para o
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desenvolvimento das atividades produtivas necessitam ser avançados ou não. As
práticas que já existem nos lugares onde a dinâmica capitalista se instala, tanto podem
ser rompidas como podem ser mantidas.
Os descompassos dos tempos vividos são evidentes. O desafio é lidar e
conviver com a presença do “novo” diante do “velho” no mesmo espaço, onde novas
formas de produzir e de trabalhar estão sendo incorporadas. Essas dinâmicas são
constitutivas de uma realidade que está impondo a “quebra” das antigas relações
sociais, dos costumes e da organização espacial, que foram moldadas na atividade
extrativa ao longo dos séculos. E isso não se refere a um passado longínquo, pois as
atividades extrativas ainda são a base de sustentação inúmeras famílias amazônicas,
especialmente daquelas que vivem nas áreas de várzea.
Em busca das alternativas de sobrevivência, os trabalhadores rurais em causa
articulam diversas estratégias, entre as quais, a migração para a cidade. Essas
estratégias não se constituem ações previamente calculadas, mas são articulações
nascidas no contexto de suas relações sociais. Para muitos deles, o fato de terem
migrado para a cidade não significa dizer que não retornem ao campo. A aposentadoria
rural, no município pesquisado, tem sido um dos elementos motivadores do retorno de
muitos trabalhadores ao campo.
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