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/home/website/convert/temp/convert_html/5870ac6e1a28ab69568bc071/ document.doc 2022/01/23 A1P1 03:48 Relação entre o Regulamento Administrativo e o Decreto-Lei na Região Administrativa Especial de Macau Chi Un Ho 1 I. Introdução Com o estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau (adiante designada por RAEM), em 20 de Dezembro de 1999, houve uma mudança radical na situação política de Macau. A Lei Básica da RAEM da República Popular da China (abreviadamente designada como Lei Básica) substituiu o Estatuto Orgânico de Macau (abreviadamente designada por EOM) e tornou-se o novo acto constitucional de Macau. Como a Lei Básica só entrou em vigor há pouco mais de um ano, ainda se encontra numa fase preliminar de funcionamento e a sua aplicabilidade está sujeita a experimentação. É inevitável que se levantem diversas questões, e uma das questões mais discutidas tem sido o facto de alguns regulamentos administrativos feitos pelo Chefe do Executivo terem revogado decretos-leis feitos pelo Governador antes do estabelecimento da RAEM, o que provocou grande controvérsia no sector jurídico, que pensa em geral que isto contraria o princípio da continuidade do sistema jurídico. Por isso, pretendo fazer uma análise e 1 Licenciado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Macau, intérprete-tradutor do Departamento de Tradução Jurídica da Direcção dos Serviços de Assuntos de Justiça. 1

Relação entre o Regulamento Administrativo e o Decreto-Lei

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Relação entre o Regulamento Administrativo e o Decreto-Lei

na Região Administrativa Especial de MacauChi Un Ho1

I. Introdução

Com o estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau (adiante designada por RAEM), em 20 de Dezembro de 1999, houve uma mudança radical na situação política de Macau. A Lei Básica da RAEM da República Popular da China (abreviadamente designada como Lei Básica) substituiu o Estatuto Orgânico de Macau (abreviadamente designada por EOM) e tornou-se o novo acto constitucional de Macau. Como a Lei Básica só entrou em vigor há pouco mais de um ano, ainda se encontra numa fase preliminar de funcionamento e a sua aplicabilidade está sujeita a experimentação. É inevitável que se levantem diversas questões, e uma das questões mais discutidas tem sido o facto de alguns regulamentos administrativos feitos pelo Chefe do Executivo terem revogado decretos-leis feitos pelo Governador antes do estabelecimento da RAEM, o que provocou grande controvérsia no sector jurídico, que pensa em geral que isto contraria o princípio da continuidade do sistema jurídico. Por isso, pretendo fazer uma análise e dissertação sobre este tema, contribuindo assim com algumas opiniões para a resolução desta questão.

II. Análise Geral

Para abordar este tema, é necessário conhecer o sistema político-constitucional de Macau antes da sua reintegração. O estatuto político de Macau mudou bastante depois da reintegração. Relativamente à fase em que Macau esteve sob o governo português, é importante referir a Revolução de 25 de Abril de 1974 em Portugal, que levou a uma mudança substancial no estatuto político de Macau. A nova Constituição da República Portuguesa (adiante designada por CRP), aprovada em 2 de Abril de 1976, deixou de considerar Macau como um Território de Portugal e passou a considerá-lo um território

1 Licenciado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Macau, intérprete-tradutor do Departamento de Tradução Jurídica da Direcção dos Serviços de Assuntos de Justiça.

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sob administração portuguesa, com uma autonomia que era exercida conforme um estatuto adequado às características locais. O EOM2, aprovado pela Lei nº 1/76 de 17 de Fevereiro de 1976, concedeu a Macau um alto grau de autonomia. Aquele Estatuto regulou principalmente as matérias relacionadas com as competências, o funcionamento e a constituição dos órgãos de governo próprios. O Estatuto Orgânico era a lei fundamental de Macau que não podia ser contrariada por nenhuma outra lei.

O EOM estava no topo da hierarquia do sistema jurídico de Macau e tinha os efeitos jurídicos mais fortes. Este Estatuto era diferente das outras leis aprovadas pela Assembleia Legislativa de Macau, na medida em que só a Assembleia da República Portuguesa tinha competência para o alterar e além disso, orientava transitoriamente a administração de Portugal sobre Macau. A aplicação do Estatuto Orgânico de Macau estava sujeita a restrições territoriais e temporais, uma vez que só era aplicável ao Território de Macau e apenas até 19 de Dezembro de 1999.

As negociações formais sobre o futuro de Macau começaram em 1986. A Declaração Conjunta do Governo da República Portuguesa e do Governo da República Popular da China sobre a Questão de Macau foi assinada em 13 de Abril de 1987. Nos termos da alínea (4) do nº 2, depois do estabelecimento da RAEM em 1999, “as leis vigentes manter-se-ão basicamente inalteradas”. Nos termos da alínea (2), “À Região Administrativa Especial de Macau serão atribuídos poderes executivo, legislativo e judicial independente incluindo o de julgamento em última instância”. No parágrafo III do Anexo I, “Após o estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau, as leis, os decretos-leis, os regulamentos administrativos e demais actos normativos previamente vigentes em Macau manter-se-ão, salvo no que contrariar o disposto na Lei Básica ou no que for sujeito a emendas pelo órgão legislativo da Região Administrativa Especial de Macau” e “O ordenamento jurídico da Região Administrativa Especial de Macau será constituído pela Lei Básica, pelas leis previamente vigentes em Macau e pelas criadas pela Região Administrativa Especial de Macau”.

A República Popular da China (adiante designada por RPC) voltou a assumir o exercício da soberania sobre Macau em 20 de Dezembro de 1999. Nesta data foi estabelecida a RAEM de acordo com as disposições do artigo 31º da Constituição da

2 Alterado pela Rectificação nº 2/97 de 3 de Fevereiro de 1997.

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República Popular da China e de harmonia com o princípio “um país, dois sistemas”, segundo os quais se manterão inalterados durante cinquenta anos o sistema capitalista e a maneira de viver anteriormente existentes. A Região Administrativa Especial foi estabelecida por decisão da Assembleia Popular Nacional. Os diversos poderes de que o Governo e os órgãos legislativo e judiciais da RAEM gozam, foram atribuídos pela Assembleia Popular Nacional e o seu exercício está subordinado ao poder central. A RAEM é idêntica às províncias, aos municípios subordinados directamente ao Governo Central e às regiões autónomas da China uma vez que todos fazem parte integrante da China como país unitário. A RAEM é assim uma região administrativa local. Mas ao mesmo tempo a RAEM é especial, na medida em que foi estabelecida por disposições especiais da Constituição, com um sistema político-económico diferente das demais províncias, dos municípios subordinados directamente ao Governo Central e das regiões autónomas da China e na medida em que goza de um elevado grau de autonomia.

O fundamento jurídico para o estabelecimento e funcionamento dos órgãos políticos da RAEM é a Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau da República Popular da China. A Lei Básica é o acto constitucional da RAEM aprovado pela Assembleia Popular Nacional com base na Constituição. A Constituição da RPC é o fundamento legislativo da Lei Básica, enquanto a Declaração Conjunta é apenas um tratado internacional assinado pelo Governo da China e de Portugal. A relação entre a Declaração Conjunta e a Lei Básica é a mesma que existe entre um tratado internacional e uma lei interna. Para garantir a aplicação concreta de um tratado internacional, os países que o celebraram têm geralmente que elaborar leis internas, especialmente quando o próprio tratado prevê expressamente que as partes devem tomar medidas legislativas adequadas. Foi assim que, de harmonia com a Constituição da RPC, a Assembleia Popular Nacional aprovou a Lei Básica da RAEM.

Em suma, antes da reintegração o estatuto jurídico-constitucional de Macau conheceu três períodos:

1. Período de soberania mista (1557 - 1846) - Aplicação simultânea em Macau dos regimes jurídicos chinês e português. Aplicava-se o regime jurídico da China aos chineses e o de Portugal aos portugueses e estrangeiros.

2. Período de política colonial (1846 - 1974) - O regime jurídico de Portugal passou a abranger todos os habitantes, existindo ainda órgãos judiciais próprios e leis especiais aplicáveis apenas aos chineses, aceitando-se em grande extensão

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as leis de Macau, especialmente no que diz respeito ao direito civil que não só englobava a lei material da China mas também os seus usos e costumes.

3. Período de autonomia política e de transição (1974 - 1999) - Depois da Revolução de 25 de Abril de 1974, o futuro de Macau passou a estar dependente duma negociação com a RPC. Durante este período, Macau conseguiu uma grande autonomia legislativa e criou a Assembleia Legislativa. A partir de 1976 começaram a surgir alguns deputados eleitos pela população.

A partir de 1999, Macau entrou na quarta fase da sua história constitucional que durará pelo menos cinquenta anos. Esta fase ficará marcada pela influência do sistema jurídico pluralista da China, no qual Macau se integrará gradualmente.

III. Natureza Jurídica do Decreto-Lei e do Regulamento Administrativo

(1) Natureza jurídica do decreto-lei

O sistema político de Macau antes da reintegração era um sistema de tipo executivo. O governador de Macau, nomeado pelo Presidente da República Portuguesa, era o chefe superior do executivo. A função legislativa era exercida pela Assembleia Legislativa e pelo governador nos termos do artigo 5º do Estatuto Orgânico de Macau. O Decreto-Lei era um acto normativo que se caracterizava pela generalidade e abstracção, elaborado pelo Governador no exercício da sua competência legislativa. A Lei era elaborada pela Assembleia Legislativa. O exercício conjunto da competência legislativa pelo governador e pela Assembleia Legislativa é uma característica da tradição político-constitucional de Portugal. Para entender a realidade do exercício conjunto da competência legislativa, é preciso analisar em profundidade a tradição político-constitucional de Portugal.

Nos termos do artigo 114º da CRP, “Os órgãos de soberania devem observar a separação e a interdependência estabelecidas na Constituição”. Como princípio fundamental integrante do poder político, o princípio de separação e interdependência não acolhe na totalidade a pretensão da doutrina clássica de “divisão de poderes”3,

3 Para evitar a centralização de "poderes" ou de "funções" num órgão ou numa pessoa e o abuso do poder, os poderes ou funções administrativo, legislativo e judicial são exercidos por três órgãos específicos diferentes e não se admite que haja intervenção ou subordinação entre eles.

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precisamente porque a separação dos poderes do Estado ao nível constitucional não pode ser estabelecida claramente. Com efeito, como sublinha hoje a moderna doutrina juspublicística, “não se trata de «dividir» o poder soberano, cujo titular é apenas o povo, mas da «divisão» ou separação das funções do Estado e da sua ordenação e distribuição por vários órgãos de soberania.” A separação dos órgãos de soberania é constitucionalmente concebida, quer como critério ordenador da relação entre funções e tarefas constitucionais, de um lado, e órgãos de soberania, do outro (distribuição das diversas funções por vários órgãos com a finalidade de uma optimização das tarefas e fins do Estado), quer como princípio de divisão das funções políticas. O princípio de divisão das funções políticas pode ser compreendido através dos seguintes três aspectos: a) divisão funcional - separação e individualização das funções fundamentais do poder político; b) divisão orgânica - separação dos órgãos de soberania instituídos pela CRP, aos quais são atribuídas as principais funções ou competências; c) divisão pessoal - sobretudo com o estatuto de incompatibilidades, a fim de se evitar qualquer “união pessoal” dos órgãos de soberania. A CRP considera como “ponto de partida” da estrutura organizatória a separação orgânica4.

A separação funcional e orgânica não exclui, antes pressupõe, a interdependência entre os vários órgãos de soberania. Essa interdependência concretiza-se em vários planos: a) na própria forma de governo, assente numa complexa teia de relações e interdependências recíprocas dos órgãos de soberania; b) na exigência da intervenção de vários órgãos no exercício de certas competências (e.g., declaração do estado de sítio, escolha, nomeação ou demissão de titulares de certos órgãos ou titulares de cargos); c) na distribuição da mesma função por diferentes órgãos (e.g., função legislativa). A definição do princípio constitucional da separação e interdependência através de critérios orgânicos e funcionais - cada função básica é atribuída a um órgão ou titular principal - é importante para a compreensão da teoria do núcleo essencial das funções, nos termos da qual a nenhum órgão de soberania podem ser reconhecidas funções das quais resulte o esvaziamento das funções materiais específica e principalmente atribuídas a outro órgão. Isto significa que nenhum órgão de soberania pode intrometer-se no núcleo essencial das funções pertencentes a outro órgão.

4 Ver o artigo 113º-1 da Constituição da República Portuguesa, onde se fala de "órgãos de soberania", e o artigo 114º-1, que estabelece claramente a referência orgânica do princípio da separação e interdependência. No entanto, subjacente a este princípio está também a ideia da distribuição de competências funcionalmente orientada (ver os artigos 165º, 167º, 200º, 201º, 202º e 206º).

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No nº 2 do artigo 114º consagra-se o princípio da indisponibilidade de competências, segundo o qual nenhum órgão de soberania, de região autónoma ou do poder local pode “transferir” os seus poderes para outros órgãos, salvo quando esta transferência for definida pela CRP. Este princípio é um corolário lógico do princípio do Estado de direito democrático, de acordo com o qual se as competências constituem a medida do poder correspondente a cada órgão, impõe-se não deixar subverter a ordenação de competências através de “delegações” ou “transferências” de poderes. A proibição de delegação de poderes abrange a delegação em sentido restrito e, por maioria de razão, a chamada transferência de poderes (transmissão a título definitivo dos poderes de um titular para outro). As consequências práticas mais relevantes, sob o ponto de vista constitucional, do princípio da indisponibilidade de competências são: a) a proibição dos chamados “plenos poderes”, através dos quais se possibilita ao governo avocar o exercício de qualquer poder ou atribuição; b) a proibição, mesmo nos casos de delegação constitucionalmente admitidos, das delegações genéricas, isto é, delegações respeitantes a funções globais (e.g.: as delegações genéricas dos órgãos de soberania para os órgãos regionais).

Por outro lado, a CRP admite algumas excepções ao princípio da indisponibilidade de competências, mas aqui a delegação de poderes tem de ter fundamento normativo expresso na CRP ou na lei5. A mais típica delegação de poderes prevista na CRP diz respeito às autorizações legislativas da Assembleia da República ao Governo6. O artigo 201º da CRP prevê expressamente que o Governo tem competência legislativa. Quando se fala na separação dos poderes com base no critério da função dos órgãos e na análise de várias disposições constitucionais (os artigos 115º, 167º, 168º e 200º), sabe-se que o governo tem competência legislativa, o que tem a ver com a evolução histórica do poder legislativo deste órgão. A CRP de 1933 atribuiu uma ampla competência legislativa ao Governo. O que difere da maioria dos sistemas políticos democráticos, é que este poder legislativo do Governo é autónomo (não depende apenas da autorização legislativa da Assembleia da República) e normal (não funciona só em casos excepcionais ou urgentes). Baseando-se no sistema de representação e na teoria da separação dos poderes, as constituições oitocentistas retiraram completamente o poder legislativo ao Governo, não admitindo sequer a sua delegação. Por esta razão, os diplomas promulgados pelo executivo foram considerados “legislação de ditadura” por

5 Ver os artigos 168º-2 e 229º-1/b da CRP.6 Ver os artigos 164/e e 168º-2 da CRP.

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implicarem a usurpação do poder legislativo. A CRP de 1911 reafirmou por um lado o princípio da competência legislativa exclusiva, e por outro lado consagrou a possibilidade da delegação do poder legislativo ao Governo. A primeira versão da CRP de 1933 não alterou radicalmente o regime constitucional de 1911, prevendo a autorização ao Governo para produzir leis apenas em casos urgentes ou quando a Assembleia estivesse fora do seu período normal de funcionamento7. A CRP de 1933 atribuiu todo o poder legislativo ao Governo e retirou quase completamente a função legislativa à Assembleia. Só em 1945, quando se fez a revisão constitucional, ficou previsto que o Governo podia legislar sobre diversas matérias, excluindo as matérias que desde sempre tinham sido reservadas à Assembleia, salvo nos casos em que houvesse uma delegação de competências. A CRP de 1976 não revogou o regime constitucional de 1933, pelo contrário alargou o âmbito das matérias reservadas à Assembleia (primeira versão da CRP de 1967). A revisão constitucional de 1982 seguiu este caminho e fixou um âmbito de reserva absoluta à Assembleia da República, fixando também mais restrições às autorizações legislativas (nº 2 do artigo 168º). A revisão constitucional de 1989, por sua vez, veio alargar um pouco mais o âmbito das competências reservadas à Assembleia da República. Assim, como podemos ver, a competência legislativa atribuída ao Governo tem um fundamento histórico.

Em suma, a separação de poderes a que se refere o artigo 114º é uma separação político-constitucional de poderes e não uma separação social de poderes. Os problemas relacionados com os novos desenvolvimentos da separação social dos poderes - «neopluralismo político-estamental», «neocorporativismo» - dizem respeito ao pluralismo político-partidário, à regulação autónoma da economia, às formas de concertação social, que embora possam ter algumas refracções a nível político, não se devem confundir com o princípio político-constitucional de separação dos poderes.

O artigo 115º (actos normativos) da CRP é um preceito-chave. Em primeiro lugar, ele concretiza alguns dos princípios fundamentais inerentes ao princípio do Estado de direito democrático: o princípio da hierarquia das fontes, o princípio da tipicidade das leis e o princípio da legalidade da administração. Embora a epígrafe se refira apenas a «actos normativos», é evidente que o preceito é uma norma sobre as fontes normativas (fonte-acto) e, complementarmente, é também uma norma sobre os efeitos dos actos

7 O período de funcionamento da Assembleia era mais curto do que o período em que a Assembleia não estava a funcionar.

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normativos constitucionalmente tipificados. Ao estabelecer a relação hierárquica entre os vários tipos de actos legislativos ou entre os actos legislativos e os actos regulamentares, este preceito é uma norma concretizadora da vinculação constitucional do legislador quanto à produção normativa. Além disso, o preceito aponta para o relevo do princípio da competência como segundo princípio ordenador da estrutura normativa. São duas as categorias de actos normativos aqui contemplados: 1) os actos legislativos; 2) os actos regulamentares. Os actos legislativos são de três espécies: as leis da AR, o decreto-lei e o decreto-legislativo regional e o acto regulamentar é o decreto-regulamentar.

O mais importante acto normativo infraconstitucional é o acto legislativo - a lei. Todavia, o termo «lei» designa um conceito caracteristicamente polissémico ao longo de toda a CRP, sendo aqui utilizado em três sentidos diferentes: (a) no sentido genérico, abrangendo as leis da AR, os decretos-leis do Governo e os decretos legislativos regionais (nº 5, 6 e 7 do artigo 115º da CRP); (b) no sentido de leis da República, isto é, as leis e os decretos-leis (nº 2 e 3 do mesmo artigo); (c) no sentido restrito de lei formal da AR.

Nos termos do nº 2 do artigo 115º, “As leis e os decretos-leis têm igual valor, sem prejuízo do valor reforçado das leis orgânicas e da subordinação às correspondentes leis dos decretos-leis publicados no uso de autorização legislativa e dos que desenvolvam as bases gerais dos regimes jurídicos”, ficando definida a posição normativa recíproca dos actos legislativos da Assembleia da República e dos actos do Governo. O princípio geral é o da igualdade ou paridade de forma e valor das leis e dos decretos-leis. As leis e os decretos-leis podem, em princípio, livremente interpretar-se, suspender-se ou revogar-se, entre si ou reciprocamente. Portanto, os diplomas governamentais não são leis secundárias ou subordinadas às leis, e vice versa.

O modelo político-constitucional de Macau antes da reintegração seguiu sobretudo o modelo político-constitucional de Portugal. A competência legislativa do Governador dividia-se principalmente em quatro tipos:

1. Competência geral - competia ao Governador legislar sobre matérias que não estivessem reservadas aos órgãos de soberania da República ou à Assembleia Legislativa (nº 1 do artigo 13º do Estatuto Orgânico de Macau).

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2. Competência concorrencial - tanto o Governador como a Assembleia Legislativa podiam legislar sobre as matérias previstas nos nºs 4 e 5 do artigo 31º do EOM.

3. Competência autorizada - o Governador podia legislar sobre matérias da exclusiva competência da Assembleia Legislativa, quando tivesse sido concedida autorização da AL ou quando esta tivesse sido dissolvida (nº 2 do artigo 13º e nº 2 do artigo 31º do EOM).

4. Competência exclusiva - competia em exclusivo ao Governador desenvolver as leis de bases dos órgãos de soberania da República e aprovar os diplomas de estruturação e funcionamento do órgão executivo (nº 3 do artigo 13º do EOM).

As competências legislativas da Assembleia Legislativa eram as seguintes:1. Competência concorrencial - tanto o Governador como a Assembleia

Legislativa podiam legislar sobre as matérias previstas nos nºs 4 e 5 do artigo 31º do EOM.

2. Competência de reserva relativa - nos termos do nº 2 do artigo 13º e do nº 2 do artigo 31º do EOM, a Assembleia Legislativa tinha competência exclusiva sobre determinadas matérias, salvo autorização ao Governador que legislava sobre determinadas matérias num dado prazo. Quando a AL tivesse sido dissolvida, o Governador podia legislar sobre determinadas matérias sem a autorização legislativa.

3. Competência de reserva absoluta ou competência exclusiva - as matérias previstas no nº 1 do artigo 31º do EOM eram matérias da competência exclusiva da Assembleia Legislativa, ou seja, o Governador não podia legislar sobre tais matérias nem através de autorização legislativa nem em lugar da AL quando esta tivesse sido dissolvida. Tais matérias incluíam: o Estatuto dos Deputados, o regime eleitoral (e.g. requisitos do eleitor, requisitos de elegibilidade, recenseamento eleitoral, capacidade eleitoral), a definição dos interesses sociais representados pelo sufrágio indirecto, o processo de eleição e a data em que deveriam realizar-se as eleições.

(2) Natureza Jurídica do Regulamento Administrativo

Nos termos do artigo 67º da Lei Básica, “A Assembleia Legislativa da Região Administrativa Especial de Macau é o órgão legislativo da Região Administrativa

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Especial de Macau”. Ainda nos termos do nº 1 do artigo 71º, “Compete à Assembleia Legislativa da Região Administrativa Especial de Macau fazer, alterar, suspender ou revogar leis, nos termos desta Lei e de acordo com os procedimentos legais”. Isto significa que a competência legislativa da RAEM é exercida apenas por um órgão. Nos termos do nº 5 do artigo 50º da Lei Básica, sendo dirigente máximo da RAEM, compete ao Chefe do Executivo elaborar, mandar publicar e fazer cumprir os regulamentos administrativos. Elaborar regulamentos administrativos é uma competência administrativa do Chefe do Executivo ao elaborar actos normativos gerais e abstractos, portanto o seu poder é regulamentar e não legislativo, sendo o regulamento administrativo do Chefe do Executivo apenas lei em sentido material e não lei em sentido material e formal.

O regulamento administrativo8 é uma forma de exercício da função executiva9. Os estudiosos em geral entendem que o “regulamento administrativo” é um termo global que não deve ser utilizado como designação específica como acontece actualmente. Transcreve-se a seguir a opinião dum estudioso sobre o conceito do “regulamento administrativo”:

“1) É preciso entender o regulamento administrativo partindo das disposições da Lei Básica na sua globalidade, conjugando-as com as disposições da LB relativas ao sistema político. 2) Com base neste artigo (artigo 11º), podemos observar que o regulamento administrativo é um conceito global que inclui por um lado as portarias e os despachos externos promulgados pelo ex-Governador antes da transferência da soberania e por outro lado, os regulamentos administrativos elaborados pelo Chefe do Executivo no exercício da competência prevista no nº 5 do artigo 50º da Lei Básica. 3) Os regulamentos administrativos a que se referem os outros capítulos da Lei Básica são os elaborados pelo Chefe do Executivo. 4) Os regulamentos administrativos elaborados pelo Chefe do Executivo são uma forma de regulamentação no ordenamento jurídico da Região Administrativa Especial de Macau. 5) Depois do estabelecimento da RAEM, o regulamento administrativo é apenas, ao nível do funcionamento, o regulamento elaborado pelo Chefe do Executivo.”10 “Segundo, foi negligenciado o facto de a maioria

8 Alguns despachos e ordens executivas do Chefe do Executivo com conteúdo geral e abstracto são também regulamentos administrativos em sentido lato.

9 Os despachos, ordens executivas e avisos do Chefe do Executivo são as outras formas do exercício da função administrativa.

10 Zhao Xiangyang, elementos fornecidos no curso breve sobre a Lei Básica da RAEM, página 5.

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das designações e dos termos utilizados na Lei Básica serem designações gerais. Isto tem a ver com a natureza da Lei Básica (a Lei Básica é uma lei de base e os pormenores do seu conteúdo têm que ser desenvolvidos pelo órgão legislativo). Um exemplo típico são as ordens executivas e os regulamentos administrativos previstos nos nºs 4 e 5 do artigo 50º da Lei Básica, que são ambos designações gerais mas estão aqui utilizados como nomes específicos, aparecendo depois a Ordem Executiva nº X, o Regulamento Administrativo nº X.”11

Em suma, as formas de cumprimento da função executiva do órgão administrativo são variadas, dada a diversidade da natureza e das actividades da função executiva. Os seus actos podem dividir-se em: decretos, portarias, estatutos, despachos, comandos, orientações, avisos e instruções. Antes do estabelecimento da RAEM, as formas principais de exercício da função executiva eram: as portarias, os estatutos e os despachos, pela ordem seguinte:

1. Portaria - era a forma mais solene de exercício da função executiva e o seu conteúdo versava geralmente sobre casos concretos e específicos.

2. Estatuto - era composto por normas gerais e abstractas e só podia ser elaborado nos casos previstos na lei.

3. Despacho - era geralmente uma decisão feita sobre casos concretos, com base numa lei ou num estatuto, encontrando-se por essa razão hierarquicamente abaixo da lei ou do estatuto.

Como a ordem hierárquica e o conteúdo dos actos acima mencionados estão definidos pela lei, é relativamente fácil resolver os conflitos que por vezes surgem. Adopta-se geralmente este critério: as normas de hierarquia superior prevalecem sobre as normas da hierarquia inferior; se as normas em conflito pertencem à mesma hierarquia ou escalonamento, a mais recente prevalece sobre a mais antiga.

IV. Hierarquia dos actos normativos da Região Administrativa Especial de Macau

No direito escrito do sistema jurídico continental, as normas jurídicas têm designações diferentes consoante a sua natureza e obedecem a uma ordem hierárquica

11 Fong Man Chong, Boletim Especial para o 10º Aniversário da Associação dos Estudantes da Faculdade de Direito da Universidade de Macau, página 44.

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que se chama “hierarquia das leis”. A ordem hierárquica desempenha um papel importante no que diz respeito aos efeitos jurídicos, porque as leis de hierarquia inferior não podem contradizer as leis da hierarquia superior e as leis de hierarquia igual ou superior podem revogar ou alterar as leis de hierarquia igual ou inferior, assegurando-se assim a estabilidade e segurança da ordem jurídica. Tendo analisado os artigos correspondentes da Lei Básica (artigo 67º, 71º - nº 1, 50º - nº 5), constatamos que a ordem hierárquica das normas jurídicas da RAEM (da superior para a inferior) é a seguinte:

1. Lei Básica;2. Lei;3. Regulamento Administrativo;4. Ordem executiva;5. Despacho normativo.

A ordem hierárquica (da superior para a inferior) das normas jurídicas de Macau antes do estabelecimento da RAEM, quanto ao seu efeito, era a seguinte:

1. Normas constitucionais portuguesas aplicáveis ao Território de Macau;2. Direito internacional geral e tratados-leis;3. Estatuto Orgânico de Macau e leis portuguesas com valor superior às leis

emanadas em Macau;4. Leis emanadas pela Assembleia Legislativa de Macau e decretos-leis emanados

pelo Governador;5. Regulamento administrativo sob a forma de portaria;6. Regulamento administrativo sob a forma de despacho e regulamentos

administrativos elaborados por autarquias locais, pessoas colectivas de utilidade pública administrativa e entidades concessionárias.

No sistema jurídico português nos termos do nº 2 do artigo 115º da Constituição da República Portuguesa:

1. As leis da Assembleia da República e os decretos-leis do Governo da República têm o mesmo valor;

2. As leis orgânicas (em sentido restrito) aprovadas pela Assembleia da República têm valor reforçado relativamente às restantes (leis da Assembleia e decretos-leis do Governo), i.e., as leis posteriores não podem contrariar às leis anteriores;

3. Os decretos-leis emanados pelo Governo no uso de autorização legislativa ou

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os decretos-leis que desenvolvam as leis de bases, estão sujeitos às correspondentes autorização legislativa ou leis de bases, que têm um valor superior.

No sistema jurídico de Macau, o Estatuto Orgânico de Macau não tinha uma disposição correspondente ao sistema português. Nos termos dos artigos 2º, 5º, 13º-1, 30º-1/c e 40º-1, as leis feitas pela Assembleia Legislativa no exercício da sua competência legislativa deviam ter o mesmo valor que os decretos-leis feitos pelo Governador, mas os decretos-leis emanados pelo Governador no uso da autorização da Assembleia Legislativa ou que desenvolvessem as leis de bases aprovadas pela Assembleia Legislativa não podiam contrariar as correspondentes autorização legislativa ou leis de base12.

Apesar do artigo 67º da Lei Básica prever que a Assembleia Legislativa é o órgão legislativo da RAEM, não indica qual o conteúdo concreto do acto legislativo. Por isso, é difícil distinguir a competência legislativa e a competência para elaborar regulamentos, uma vez que o artigo 64º-5) prevê que “compete ao Governo da Região Administrativa Especial de Macau elaborar regulamentos administrativos”.

A questão da hierarquia entre o regulamento administrativo e a ordem executiva também merece discussão. Nos termos do artigo 50º da Lei Básica, compete ao Chefe do Executivo da RAEM: “4) Definir as políticas do Governo e mandar publicar as ordens executivas; 5) Elaborar, mandar publicar e fazer cumprir os regulamentos administrativos”. Nos termos do artigo 3º da Lei nº 3/1999, “Sob pena de ineficácia jurídica, são publicados na I série do Boletim Oficial: 1) As leis; 2) Os regulamentos administrativos; 3) As resoluções da Assembleia Legislativa; 4) As ordens executivas e os despachos regulamentares externos, exarados pelo Chefe do Executivo;” Analisando as disposições dos referidos artigos, chegamos à conclusão que a relação hierárquica entre a ordem executiva e o regulamento administrativo estabelecida na Lei Básica é diferente da relação hierárquica estabelecida no artigo 3º da Lei nº 3/1999 (que põe o regulamento administrativo à frente da ordem executiva). Existe uma diferença fundamental entre o regulamento administrativo e a ordem executiva quanto ao seu

12 Por isso, apesar do EOM não ter previsto expressamente o referido caso, o princípio e espírito do nº 2 do artigo 115º da Constituição da República Portuguesa devem vincular directamente o sistema legislativo do nosso território, ou seja, o valor dos decretos-leis em causa deve ser inferior às leis da Assembleia Legislativa.

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conteúdo: o primeiro tem como objecto um caso abstrato e aplica-se aos destinatários em geral e não a um destinatário específico, enquanto que o objecto da segunda é um caso concreto e tem um destinatário específico. Além disso, a ordem executiva baseia-se numa lei ou num regulamento administrativo, i.e., geralmente só se elabora uma ordem executiva com a autorização prévia dum regulamento administrativo ou duma lei.

V.Questões que surgem na aplicação do regulamento administrativo e do decreto-lei

Nos termos do artigo 67º da Lei Básica, “A Assembleia Legislativa da Região Administrativa Especial de Macau é o órgão legislativo da Região Administrativa Especial de Macau”. Só a Assembleia Legislativa tem competência legislativa, o que é diferente do sistema legislativo que existia antes da reintegração. O artigo 5º do Estatuto Orgânico de Macau previa o exercício comum da função legislativa pelo Governador e pela Assembleia Legislativa, mas na Lei Básica não existe uma disposição correspondente, o que exclui obviamente a possibilidade de o Chefe do Executivo ter competência legislativa.

Nos termos do artigo 8º da Lei Básica, “As leis, os decretos-leis, os regulamentos administrativos e demais actos normativos previamente vigentes em Macau mantêm-se, salvo no que contrariar esta Lei ou no que for sujeito a emendas em conformidade com os procedimentos legais, pelo órgão legislativo ou por outros órgãos competentes da Região Administrativa Especial de Macau”. O conceito de “leis previamente vigentes em Macau” deve entender-se como sendo “as leis previamente vigentes em Macau que têm a forma de leis, decretos-leis, regulamentos administrativos e demais actos normativos que já existiam em Macau antes do estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau. Fora destas leis, não há outras que se possam considerar como normas jurídicas previamente vigentes em Macau. 2) As leis previamente vigentes em Macau são concretamente as leis já existentes no momento do estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau e que vão continuar a vigorar, e não todas as leis vigentes em Macau.”13 Desta forma fica assegurado plenamente o princípio de continuidade do sistema jurídico.

13 Xiao Weiyun, Um País, Dois Sistemas e a Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau, Editora Universidade de Pequim, 1993, página 268.

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De acordo com a Lei Básica, a continuação da aplicação, depois do estabelecimento da RAEM, das leis previamente vigentes em Macau, tem que preencher dois requisitos: primeiro, essas leis não podem contrariar as disposições da Lei Básica, concretamente as disposições referentes aos regimes político, económico e sócio-cultural, sob pena de serem revogadas ou emendadas; segundo, estas leis não podem ter sido sujeitas a emendas em conformidade com os procedimentos legais, pelo órgão legislativo ou por outros órgãos competentes da RAEM.

Nos termos do primeiro parágrafo do artigo 145º da Lei Básica, “Ao estabelecer-se a Região Administrativa Especial de Macau, as leis anteriormente vigentes em Macau são adoptadas como leis da Região, salvo no que seja declarado pelo Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional como contrário a esta Lei. Se alguma lei for posteriormente considerada como contrária a esta Lei, pode ser alterada ou deixar de vigorar, em conformidade com as disposições desta Lei e com os procedimentos legais”. É este o procedimento previsto especificamente para revogar e alterar leis, ou seja, ao estabelecer-se a RAEM, todas as leis que vigorarem em Macau nessa altura são consideradas leis anteriormente vigentes em Macau, salvo as que forem revogadas por declaração do Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional. Depois do estabelecimento da RAEM, se alguma lei for considerada como contrária à Lei Básica, pode ser alterada ou revogada. A razão da alteração não é apenas o facto de determinada lei contrariar a Lei Básica, mas também a necessidade da adaptação do direito ao desenvolvimento social contínuo.

Nos termos da “Decisão relativa ao Tratamento das Leis Previamente Vigentes em Macau de acordo com o Disposto no Artigo 145º da Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau”14, “São adoptadas como leis da Região Administrativa Especial de Macau as leis, os decretos-leis, os regulamentos administrativos e demais actos normativos previamente vigentes, salvo no que contrariar a Lei Básica”. Isto significa que a alteração, suspensão e revogação de leis ou decretos-leis é feita por normas de hierarquia superior ou equivalente, ou seja, pelas leis da Assembleia Legislativa da RAEM. Uma vez que as leis e os decretos-leis pertencem à mesma hierarquia e têm valor equivalente, a revogação do decreto-lei tem que ser feita por uma lei da Assembleia Legislativa e nunca por um regulamento administrativo.

14 Foi publicado no Boletim Oficial da Região Administrativa Especial de Macau - Série I de 20 de Dezembro de 1999 através do Aviso do Chefe do Executivo nº 5/1999.

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No entanto, devido à existência de pontos de vista diferentes, a questão ainda é objecto de discussão. Apesar de, em princípio, se admitir que o valor do regulamento administrativo é inferior ao do decreto-lei, um estudioso entende que “o conceito de regulamento administrativo na Lei Básica é um termo próprio e não é uma designação geral, um nome colectivo, para os actos normativos na área administrativa, mas indica especificamente os actos normativos com forças obrigatórias gerais emanados pelo Chefe do Executivo. O regulamento administrativo pertence à hierarquia do acto normativo, e está imediatamente a seguir à Lei Básica e às leis no ordenamento jurídico de Macau. O regulamento administrativo é elaborado pelo Chefe do Executivo, e o seu valor é inferior às leis e superior a outros actos normativos.”15 No entanto, há quem entenda que “6) Quanto à relação entre o regulamento administrativo e o decreto-lei: na ordem hierárquica do ordenamento jurídico, o regulamento administrativo é inferior ao decreto-lei (ver os artigos 8º e 11º da Lei Básica); mas devido à alteração do sistema constitucional e de todo o ordenamento jurídico e a outros factores, a alteração ou revogação do decreto-lei até certo ponto é aceitável. 7) De acordo com a alteração do sistema constitucional acima referido, deve ser feita uma distinção quanto à aplicação e quanto à alteração do decreto-lei: conforme o princípio da inalteração das leis previamente vigentes, quanto à aplicação consagra-se um valor equivalente entre o decreto-lei e a lei. Como a Lei Básica substituiu o Estatuto Orgânico de Macau o que deu origem a uma base constitucional nova, é possível adoptar um regime dualista quanto à alteração do decreto-lei, isto é, a Assembleia Legislativa altera os decretos-leis através das leis e o Chefe do Executivo altera-os através dos regulamentos administrativos. 8) O fundamento jurídico que se utiliza para alterar o decreto-lei é o regime dualista…”16 Esta é uma das opiniões.

De acordo com outra opinião, como no passado a maior parte dos decretos-leis versavam sobre matéria administrativa, podem ser revogados por regulamentos administrativos, apesar de terem a forma de decretos-leis. Porém, em termos de hierarquia jurídica, o regulamento administrativo não pode revogar o decreto-lei. As duas opiniões acima referidas partem obviamente de uma consideração política e pretendem que seja possível a revogação do decreto-lei pelo regulamento

15 Luo Weijian, Introdução à Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau, Fundação Macau, 2000, página 163.

16 Zhao Xiangyang, elementos fornecidos no curso breve sobre a Lei Básica da RAEM, página 6.

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administrativo. Por outro lado, alguns estudiosos partem do ponto de vista da interpretação da lei e entendem que, em determinadas condições, o regulamento administrativo pode revogar o decreto-lei. Tendo interpretado o primeiro parágrafo do artigo 145º da Lei Básica, alguns estudiosos chegam à seguinte conclusão: “O órgão que faz as alterações só pode ser o órgão legislativo da RAEM, i.e., só a Assembleia Legislativa da RAEM pode alterar as leis e os decretos-leis feitos pelos órgãos legislativos anteriores de Macau de acordo com a lei. O Governo da RAEM pode alterar os decretos-leis, os regulamentos administrativos e demais actos normativos promulgados pelo anterior Governo de Macau.”17 Também há quem entenda que: “Quando é preciso uma alteração, suspensão e revogação de uma lei ou de um decreto-lei, estas são feitas através duma norma de hierarquia superior ou equivalente, i.e., através das leis da Assembleia Legislativa da RAEM. No entanto, de acordo com determinadas disposições concretas da Lei Básica, parece que o referido princípio de reserva das leis tem excepções, como é o caso, por exemplo, dos artigos 92º e 139º da Lei Básica, que prevêem expressamente que o Governo 'pode estabelecer disposições para o exercício da profissão forense, na RAEM, por advogados locais e advogados vindos do exterior de Macau' e 'pode aplicar medidas de controle de imigração sobre a entrada, estadia e saída de indivíduos de países e regiões estrangeiros' .”18

Relativamente às questões colocadas, a minha opinião é a seguinte: é claro que de acordo com os artigos 92º e 139º, o Governo tem competência legislativa neste aspecto, mas esta competência só é exercida nos seguintes casos: quando um decreto-lei é revogado por uma lei e existe vacuum legis o Governo pode elaborar um regulamento administrativo como forma de suprir essa lacuna; o Governo pode ainda elaborar um regulamento administrativo sobre matéria contida no decreto-lei revogado e que não o contrarie. De facto, esse princípio pode ser aplicado por analogia a casos semelhantes. Nos casos em que só a Assembleia Legislativa tem competência legislativa, de acordo com a hierarquia jurídica acima analisada, se considerarmos que o direito internacional está hierarquicamente acima das leis da Assembleia Legislativa, estas não podem contrariar as disposições do direito internacional em geral. Em suma, os casos referidos implicam duas questões de níveis diferentes: em primeiro lugar, é indubitável que

17 Xiao Weiyun, Um País, Dois Sistemas e a Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau, Editora Universidade de Pequim, 1993, página 269.

18 Vong Hin Fai, Boletim Especial para o 10º Aniversário da Associação dos Estudantes da Faculdade de Direito da Universidade de Macau, página 37.

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compete ao Governo fazer regulamentos, nos termos da Lei Básica; em segundo lugar, apesar de o Governo ter esta competência, não significa que também pode elaborar normas que entram em conflito com a hierarquia jurídica, como sejam normas que revoguem ou alterem os decretos-leis, isto é, regulamentos administrativos. A nível teórico, a tendência é considerar que “o regulamento administrativo pode revogar o decreto-lei”, o que faz com que na prática seja inevitável aderir a esta tendência. Consequentemente, existem casos que contrariam o princípio de continuidade do sistema jurídico, como por exemplo:

1. o Regulamento Administrativo nº 11/1999;2. o Regulamento Administrativo nº 6/1999;3. o Regulamento Administrativo nº 30/2000; 4. o Regulamento Administrativo nº 36/2000;5. o Regulamento Administrativo nº 5/2001;6. o Regulamento Administrativo nº 6/2001;7. o Despacho do Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura nº 80/2000 revogou

a Portaria nº 293/96/M de 2 de Dezembro.

VI. Soluções para as Questões em Análise

Depois da análise feita, creio que já entendem mais ou menos a questão. Pretendo agora apresentar aqui algumas soluções para as questões analisadas. Primeira solução: o Chefe do Executivo pode propor à Assembleia Legislativa que revogue um decreto-lei através de uma lei - assim, respeita-se o princípio de revogação de um diploma com outro diploma de hierarquia equivalente. Segunda solução: altera-se a Lei Básica - o que é a solução mais radical. A alteração à Lei Básica pode consubstanciar-se em qualquer uma das seguintes formas: 1) alteração do sistema legislativo, atribuindo competência legislativa ao Chefe do Executivo, que exerceria a competência legislativa em conjunto com a Assembleia Legislativa, e desta maneira não se violaria o modelo do sistema político da RAEM que dá primazia ao Governo, assim, o Chefe do Executivo, para além de manter a competência para apresentar propostas de lei, poderia ainda legislar sobre a mesma matéria; 2) desvalorizar o decreto-lei para regulamento administrativo, prevendo que os decretos-leis feitos previamente pelo governador passariam a ter apenas valor jurídico de regulamento administrativo, o que permitiria ao Chefe do Executivo revogar um decreto-lei com um regulamento administrativo. A Lei Básica não prevê expressamente que a lei tem um efeito superior ao regulamento

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administrativo, mas com base no princípio de continuidade do sistema jurídico e na forma doutrinária de resolver a questão da hierarquia jurídica, podemos chegar à seguinte conclusão: a lei tem um efeito jurídico superior ao regulamento administrativo. De facto, podemos seguir o previsto no artigo 79º da Lei de Legislação19 recentemente promulgada na China continental, que prevê expressamente que “o efeito jurídico da lei é superior ao regulamento administrativo, aos diplomas regionais e aos regulamentos.”

VII. Conclusão

O estatuto político-constitucional de Macau sofreu uma grande mudança desde 20 de Dezembro de 1999, passando dum Território sob administração portuguesa para uma região administrativa especial da China. Apesar da Lei Básica como lei fundamental de Macau ter assegurado a inalteração durante cinquenta anos do sistema capitalista e da maneira de viver anteriormente existentes, temos de admitir que a mudança no sistema constitucional teve indubitavelmente uma grande influência. Como a Lei Básica só entrou em vigor há pouco tempo, existem ainda aspectos a melhorar. Só depois de se terem feito aplicações contínuas é que se podem conhecer realmente as questões existentes na Lei Básica. A questão que agora surge com a aplicação da Lei Básica e que merece discussão é a possibilidade da revogação do decreto-lei pelo regulamento administrativo.

A competência legislativa da RAEM é exercida mormente pela Assembleia Legislativa. O Chefe do Executivo não tem competência legislativa. O regulamento administrativo é um acto normativo elaborado pelo Chefe do Executivo no exercício da sua competência executiva, por isso não é uma lei em sentido formal. A competência que ele exerce é apenas uma competência para elaborar regulamentos e não é uma competência legislativa. Do ponto de vista da hierarquia jurídica, o decreto-lei do Governador e a lei da Assembleia Legislativa pertencem à mesma hierarquia e o regulamento administrativo fica abaixo deles. Leis de hierarquia inferior não podem revogar ou alterar leis de hierarquia superior. Por isso o regulamento administrativo, do ponto de vista jurídico, devido à sua natureza e efeito, não pode revogar um decreto-lei. É este o meu ponto de vista relativamente a esta questão.

19 Publicado pelo Decreto nº 31 do Presidente da RPC. Nos termos do artigo 79º da Lei de Legislação, "o efeito jurídico da lei é superior ao regulamento administrativo, aos diplomas regionais e aos regulamentos."

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Por outro lado, o princípio “um país dois sistemas” é indubitavelmente uma importante concepção para a solução da questão de Macau. Alguns estudiosos até consideram que o sistema político de “um país dois sistemas” prevalece sobre o sistema federal. No percurso da aplicação do princípio “um país dois sistemas” é normal que surjam questões, dificuldades e obstáculos, pois cada sistema tem que passar por uma fase de sucessivas aplicações e aperfeiçoamento para funcionar melhor. No entanto, o ponto fulcral actualmente é saber como tratar as questões que surgem. Na minha opinião, ter uma atitude prática, objectiva e justa no tratamento com seriedade de cada questão é indispensável para a concretização do espírito de “um país dois sistemas”, e só assim este princípio tem um sentido real.

Bibliografia:

1. Xiao Weiyun, Um País, Dois Sistemas e a Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau, Editora Universidade de Pequim, 1993.

2. Luo Weijian, Introdução à Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau, Fundação Macau, 2000.

3. Vong Hin Fai, O Sistema Político de Macau e a Fonte de Direito, Instituto Português do Oriente, 1992.

4. Sistema Político-constitucinal e Organização Judiciária de Macau , Gabinete para a Tradução Jurídica, 1995.

5. Perspectivas de Direito , nº 5, Gabinete para a Tradução Jurídica, 1998.

6. Boletim Especial para o 10º Aniversário da Associação dos Estudantes da Faculdade de Direito da Universidade de Macau, Associação dos Estudantes da Faculdade de Direito da Universidade de Macau, 2000.

7. Zhao Xiangyang, elementos sobre o capítulo I da Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau, fornecidos no curso breve sobre a Lei Básica da RAEM.

8. Zhao Guoqiang, “Relações entre o Poder Central e as Autoridades da RAEM”, apresentado no curso breve sobre a Lei Básica da RAEM.

9. Prof. Doutor João Castro Mendes, Introdução ao Estudo do Direito, Lisboa, 1994.

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10. J. J. Gomes Canotilho, Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição revista, Coimbra Editora, 1993.

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