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RELAÇÕES DE PODER E VIOLÊNCIA NO CONTO ARAMIDES FLORENÇA, DE CONCEIÇÃO EVARISTO Marcela Gizeli Batalini (Doutorado – UEM) Ana Maria Soares Zukoski (Mestrado – UEM) [email protected] Resumo O presente trabalho tem por objetivo desenvolver uma análise interpretativa do conto Aramides Florença, presente na coletânea Insubmissas Lágrimas de Mulheres, de Conceição Evaristo, publicada inicialmente em 2011, com uma segunda edição lançada em 2016. Nosso enfoque incide, então, nas relações de gênero observadas no conto em questão, as marcas de poder e a violência exercida sobre o corpo da mulher negra, desnudando, assim, o racismo e o machismo que ainda permeiam a sociedade brasileira, a invisibilidade a que é submetida, em contrapartida ao espaço central que ocupam na escrita evaristiana. Para tanto, pautamo-nos em pesquisadoras como: Dalcastagnè (2008), Hooks (1995) e Sabadell (2003). Palavras-chave: Relações de Poder; Violência contra a mulher; Conceição Evaristo Introdução Não se pode negar o espaço que a produção de autoria feminina vem conquistando na atualidade, nítido no leque de cursos, simpósios, dissertações e teses que englobam essas obras. Entretanto, ao enfocarmos mais especificamente a mulher negra, notamos que seu espaço ainda é limitado, tanto no que diz respeito a publicação de seus textos quanto à abrangência de personagens negras como protagonistas das histórias narradas. Ao enfocar esse cenário na literatura brasileira, Regina Dalcastagnè (2008, p.87) ressalta que “séculos de racismo estrutural” afastaram as pessoas negras desses “espaços de poder e de produção de discurso”, e a mesma disparidade se verifica na literatura, afinal, ainda “são poucos os autores negros e poucas, também,

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RELAÇÕES DE PODER E VIOLÊNCIA NO CONTO ARAMIDES FLORENÇA, DE CONCEIÇÃO EVARISTO

Marcela Gizeli Batalini (Doutorado – UEM)

Ana Maria Soares Zukoski (Mestrado – UEM)

[email protected]

Resumo O presente trabalho tem por objetivo desenvolver uma análise interpretativa do conto Aramides Florença, presente na coletânea Insubmissas Lágrimas de Mulheres, de Conceição Evaristo, publicada inicialmente em 2011, com uma segunda edição lançada em 2016. Nosso enfoque incide, então, nas relações de gênero observadas no conto em questão, as marcas de poder e a violência exercida sobre o corpo da mulher negra, desnudando, assim, o racismo e o machismo que ainda permeiam a sociedade brasileira, a invisibilidade a que é submetida, em contrapartida ao espaço central que ocupam na escrita evaristiana. Para tanto, pautamo-nos em pesquisadoras como: Dalcastagnè (2008), Hooks (1995) e Sabadell (2003). Palavras-chave: Relações de Poder; Violência contra a mulher; Conceição Evaristo Introdução

Não se pode negar o espaço que a produção de autoria feminina vem

conquistando na atualidade, nítido no leque de cursos, simpósios, dissertações e

teses que englobam essas obras. Entretanto, ao enfocarmos mais especificamente a

mulher negra, notamos que seu espaço ainda é limitado, tanto no que diz respeito a

publicação de seus textos quanto à abrangência de personagens negras como

protagonistas das histórias narradas.

Ao enfocar esse cenário na literatura brasileira, Regina Dalcastagnè (2008,

p.87) ressalta que “séculos de racismo estrutural” afastaram as pessoas negras

desses “espaços de poder e de produção de discurso”, e a mesma disparidade se

verifica na literatura, afinal, ainda “são poucos os autores negros e poucas, também,

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as personagens”. O que corrobora para a perpetuação de estereótipos, a limitação

de perspectivas também nesse campo.

Esse fato justifica nosso interesse por tais textos, dando visibilidade a essas

autoras, bem como às temáticas abordadas por elas. A exemplo da escritora

Conceição Evaristo, que, na obra em questão: Insubmissas lágrimas de mulheres

(2011), lança luz à assimetria no que diz respeito às relações de gênero, ao racismo

ainda presente em nossa sociedade, às diferentes formas de violência que incidem

sobre o corpo mulher-negra, sobre seu ser, como abordaremos no conto Aramides

Florença.

Uma análise do conto Aramides Florença

Faz-se importante considerar, inicialmente, o título da obra: Insubmissas

lágrimas de mulheres, que remete a um universo de adversidades e dores,

marcadas pelas lágrimas, vivenciado por mulheres negras, mas sobretudo sua não

resignação, como indica o adjetivo: insubmissas.

A obra apresenta treze contos que têm como título o nome das mulheres com

quem a narradora conversa, o que já marca esse lugar principal, a importância das

mesmas para a narrativa. Afinal, como observamos posteriormente, são as vivências

e os relatos dessas mulheres que ocupam o espaço central desses contos. E, ainda

que os nomes próprios particularizem as histórias, são indivíduos que compartilham

experiências, por vezes, pouco contadas, ou mesmo, silenciadas, mas que,

sobretudo, seguem adiante, dividem a coragem em prosseguir, apesar das marcas

deixadas. Nas palavras da narradora: Enquanto Lia Gabriel me narrava a história dela, a lembrança de Aramides Florença se intrometeu entre nós duas. Não só a de Aramides, mas as de várias outras mulheres que se confundiram em minha mente. [...] Aramides, Líbia, Shirley, Isaltina, Da Luz, e mais outras que desfiavam as contas de um infinito rosário de dor. E, depois, elas mesmas, a partir de seus corpos mulheres, concebem a

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sua própria ressureição e persistem vivendo (EVARISTO, 2016, p.95).

Como podemos observar, a partir desse recurso literário, perpassando

diversas histórias, a narradora traz para o primeiro plano vozes ignoradas,

silenciadas por longo período, relatos não-ouvidos, como o “de várias outras

mulheres”. São histórias dentro de histórias, costuradas, que ora diferem sua

tessitura, ora se mesclam, assemelham-se.

No que tange ao conto em questão, a protagonista, Aramides Florença, conta

à narradora sobre sua vivência no casamento, aparentemente, uma união tranquila,

em que sua espera por um companheiro e pai de seu filho havia sido cessada. Aos

poucos, montaram o apartamento em que moravam: ela, trabalhando como chefe

em uma auspiciosa empresa; ele, funcionário em um importante banco. Entretanto,

durante a gestação, ela passa a observar no comportamento do marido sinais

bastante ameaçadores, que culminam tanto na violência doméstica como na

violência sexual sofrida por ela logo após o nascimento de Emildes.

Acerca da violência doméstica, Sabadell afirma que pode ser compreendida

como “uma forma de violência física e/ou psíquica, exercida pelos homens contra as

mulheres, no âmbito das relações de intimidade e manifestando um poder de posse

de caráter patriarcal.” (SABADELL, 2003, p. 235-236). Por se desenvolver no âmbito

privado, as mulheres acabam por permanecer mais vulneráveis, uma vez que não

há a influência da comunidade externa, assim como, para a vítima, é complexo

compreender que o homem com quem mantém laços afetivos é o seu agressor. O

primeiro episódio de violência doméstica ocorre durante seu momento de descanso: Ela virava para lá e para cá, procurando uma melhor posição para encaixar a barriga e, no lugar em que se deitou, seus dedos esbarraram-se em algo estranho. Lá estava um desses aparelhos de barbear, em que se acopla a lâmina na hora do uso [...]. Um filete de sangue escorria de um dos lados de seu ventre. Aramides não conseguiu entender a presença daquele objeto estranho em cima da cama (EVARISTO, 2016, p.13).

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Ao questionar o marido, o mesmo não consegue explicar a presença desse

aparelho ali, o que a traz inquietação, a busca por uma justificativa, e se ele

estivesse com o objeto em mão: “Talvez.... Quem sabe...” (EVARISTO, 2016, p.13).

Entretanto, após três semanas, outro fato desencadeia insegurança na protagonista,

abalando a confiança que tinha em seu esposo. Isso ocorre enquanto se olhava no

espelho, já de camisola, observando as mudanças no corpo, quando viu ele se

aproximar: Só que, nesse instante, gritou de dor. Ele, que pouco fumava, e principalmente se estivesse na presença dela, acabara de abraçá-la com o cigarro aceso entre os dedos. Foi um gesto tão rápido e tão violento que o cigarro foi macerado e apagado no ventre de Aramides. Um ligeiro odor de carne queimada invadiu o ar. Por um ínfimo momento, ela teve a sensação de que o gesto dele tinha sido voluntário (EVARISTO, 2016, p.14).

O nascimento do filho, contudo, a faz esquecer tais acontecimentos, inebriada

pelo mistério da vida, e a possibilidade, ainda, desses descuidos estarem ligados a

primeira vivência da paternidade. Após duas semanas de solicitude da parte dele,

iniciam os questionamentos sobre “quando ela novamente seria dele, só dele”

(EVARISTO, 2016, p.15). Apoiando-nos em Hooks (1995, p.468), notamos o

machismo e o racismo atuando juntos na representação da mulher negra como

corpo para “servir o outro”, deixando-se de lado suas necessidades, seu ser; sua

presença próxima da natureza primitiva, a ser controlada, governada, explorada, que

ainda permeia o imaginário social, nesse caso representado pelo marido, ocupando,

portanto, um lugar ainda menor se comparada a mulher branca ou ao homem negro.

Desse modo, pouco depois, ele faz uso da violência para conseguir o que quer: Numa sucessão de gestos violentos, ele me jogou sobre nossa cama, rasgando minhas roupas [...] dessa forma, o pai de Emildes me violentou. E, em mim, o que ainda doía um pouco pela passagem de meu filho, de dor aprofundada sofri, sentindo o sangue jorrar (EVARISTO, 2016, p.17).

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Após tal ato, ele decide então deixá-la, alegando que a mesma “não havia

sido dele” (EVARISTO, 2016, p.18), como nas outras ocasiões. Mas Aramides não

se resigna, a narrativa inicia com Emildes em seu colo, seu “bem-amado”, como ela

descreve, chefe em uma grande empresa, buscando ser o alimento do filho: “e,

literalmente, era. O menino só se nutria do leite materno”, bem como o “melodioso

balbucio infantil que se assemelhava a uma alegre canção” (EVARISTO, 2016,

p.09,10), proferida pelo menino desde que o pai partira, como se só a mãe lhe

bastasse. Trata-se, apesar de tudo, de uma mulher forte, que segue adiante,

encarando, por si mesma, os obstáculos que se sobrepõe à sua vida.

Considerações finais

A luz das reflexões arroladas anteriormente, percebe-se que nem o contexto

familiar configura-se como um lugar seguro e tranquilo para as mulheres, sobretudo,

as mulheres negras, que carregam nas histórias de suas gerações, a

marginalização. Apesar de ser bem-sucedida, Aramides sofre com as violências que

permeiam o seu lar, marcadas pela presença do esposo. Esse enxerga a mulher

como um objeto para sua realização sexual e não como uma parceira, mas isso não

a impede de seguir adiante, de ter uma nova vida ao lado de seu filho.

Referências DALCASTAGNÈ, R. Entre silêncios e estereótipos: relações raciais na literatura brasileira contemporânea. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, DF, n.31, p.87-110, jan./jun. 2008. Disponível em: <http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/9620/1/ARTIGO_SilencioEstereotiposRelacoes.pdf>. Acesso em: 10 fev. 2019. EVARISTO, C. Insubmissas Lágrimas de Mulheres. Rio de Janeiro: Malê, 2016.

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HOOKS, B. Intelectuais negras. Trad. Marcos Santarrita. Revista Estudos Feministas, Santa Catarina, v.3, n.2, p. 464-478, 1995. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/16465>. Acesso em: 15 fev. 2019. SABADELL, A. L. Manual de Sociologia Jurídica: introdução a uma leitura externa do Direito. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.