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Relatório Os Muros Nas Favelas e o Processo de Criminalização

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Os muros nas favelas - relatório

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    Esse tempo de partido, tempo de homens partidos.

    Em vo percorremos volumes, viajamos e nos colorimos.

    A hora pressentida esmigalha-se em p na rua. Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos. As leis no bastam. Os lrios no nascem

    da lei. Meu nome tumulto e escreve-se

    na pedra.

    Carlos Drummond de Andrade

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    NDICE

    Apresentao

    1. POLTICA DE SEGURANA E CRIMINALIZAO DA POBREZA

    1.a) Os Muros nas Favelas .............................05 1.b) Poltica de Extermnio...............................07 1.c) Milcias......................................................17 1.d) Criminalizao da Cultura Popular...........22 1.e) Choque de Ordem....................................30

    2. O PROCESSO DE VIOLAO DOS DIREITOS HUMANOS PELAS GRANDES EMPRESAS

    2.a) Conflitos entre transacionais e comunidades do entorno: o caso dos pescadores artesanais da Baa de Sepetiba e a TKCSA e o caso dos pescadores artesanais da Baa de Guanabara e a Petrobras.........................................................35

    2.b) Supervia...................................................54

    3. INSTITUIES TOTAIS

    3.a) Sistema prisional......................................56 3.b) Sistema scio-educativo..........................62

    4. CRIMINALIZAO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS

    4.a) O processo de criminalizao do Movimento dos Trabalhadores Rurais e Sem Terra (MST) .........................................83

    4.b) Outros casos emblemticos.....................84

    5. CONTATO DAS ORGANIZAES............89

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    Apresentao

    O relatrio Os muros nas favelas e o processo de criminalizao nasce da premente necessidade dos movimentos sociais e defensores de Direitos Humanos do Brasil, de tornarem pblico, nacional e internacionalmente, o processo de criminalizao social em curso no Rio de Janeiro.

    Entendemos que a criminalizao da pobreza e dos movimentos sociais tem sofrido um forte acirramento no pas, atingindo as suas regies com instrumentos e polticas distintas. Neste relatrio, optamos, no entanto, por trabalhar com um recorte de polticas e prticas de criminalizao da pobreza e violaes de direitos humanos que tm sido recorrentes no Rio de Janeiro.

    Nesse sentido, buscamos reunir informaes sobre os instrumentos utilizados em distintos processos de criminalizao e elaborar uma anlise de recentes casos concretos e emblemticos acompanhados por organizaes de Direitos Humanos e movimentos sociais.

    No pretendemos abarcar a abrangncia e a complexidade do tema, dados os limites do recorte territorial e descritivo adotado. Mas esperamos, a partir dessa reflexo inicial, contribuir para uma viso ampliada e dar visibilidade ao grave processo em curso.

    Alm disso, sem dvida, pretendemos, a partir do panorama que tal compilao nos proporciona, motivar e fortalecer os processos de luta e de resistncia criminalizao social.

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    1. POLTICA DE SEGURANA E CRIMINALIZAO DA POBREZA

    1.a) Os muros nas favelas Os nmeros da violncia no Rio de Janeiro, que frequentemente so divulgados na imprensa e em relatrios de pesquisa, traduzem uma situao alarmante. Diante de um quadro complexo de fatores que se coadunam para a deflagrao de conflitos, temos testemunhado a execuo de algumas polticas pblicas que so pouco legtimas e ineficazes na soluo dos problemas para os quais se dirigem. Um projeto de construo de muros em torno de favelas do Rio de Janeiro est na pauta das polticas do Governo do Estado. Vamos mtrica deste projeto.

    Trs metros de altura com um comprimento inicial de 3,4 quilmetros ao redor das favelas da Rocinha, Pedra Branca e Chcara do Cu, com obras j licitadas, e 634 metros j em construo no Morro Dona Marta eis algumas medidas destes muros. Treze comunidades compem a lista daquelas que o governo pretende murar. Onze ficam na Zona Sul, em reas nobres da cidade: Pavo-Pavozinho, Ladeira dos Tabajaras, Chapu Mangueira, Rocinha, Babilnia, Cantagalo, Morro dos Cabritos, Vidigal, Parque da Cidade, Benjamim Constant e Dona Marta. O projeto do Governo do Estado consiste na construo de muros ao redor de favelas que estariam avanando sobre reas de Mata Atlntica. O governador do Estado intitulou a iniciativa de ecolimites.

    A preocupao com a preservao de reas de Mata Atlntica deve, sem dvida, constar na pauta dos rgos de governo. Mas, se avaliarmos esse tipo de projeto utilizando como critrios a sua eficcia e a sua legitimidade, conclumos que esses muros representam um equvoco e podem contribuir para a formao de scio-limites, no lugar dos ecolimites propostos.

    Em primeiro lugar, o projeto pode acirrar as tenses entre a populao moradora de reas de favela e a classe mdia que vive prxima dessas reas. A ampliao do sentimento de segurana que a construo dos muros promove entre as camadas mdias pode ter como contrapartida o aprofundamento de diversos estigmas que so associados populao moradora de favelas. Quando se promete que aquelas favelas no crescero mais, por meio de um dispositivo meramente mecnico (um muro), a preocupao com as questes sociais que permeiam o problema fica fora da discusso. Esse tipo de poltica pblica traz a reboque de seus efeitos a difuso de uma viso simplificadora sobre temas cuja gravidade demanda abordagens mais abrangentes. Muitos estigmas nascem da atribuio de imagens exageradas ou simplificadas aos sujeitos sobre os quais incidem. No h como refutar a preocupao quanto ocupao de reas de Mata Atlntica. Mas a expanso das favelas no diz respeito apenas preservao ambiental. uma questo complexa que no pode ser tratada sob a lgica pouco sofisticada da construo de muros de conteno.

    Quando um muro construdo para conter ou separar pessoas pode estar em jogo a produo de formas de segregao social e espacial. De acordo com o Dicionrio Aurlio, o verbo murar apresenta os seguintes significados: 1. Cercar ou vedar com muro ou tapume; amuralhar. 2. Defender contra assaltos; fortificar. 3. Servir de muro a: Uma cerca viva murava a casa. 4. Cobrir, fortalecer, defender, contra ataques de qualquer natureza: Conseguiu murar a pessoa contra assdios importunos. 5. Fortificar-se, defender-se, cobrir-se, abrigar-se. 6. Cercar-se ou cobrir-se com qualquer coisa que possa livrar de dano. 7. Revestir-se, prevenir-se: Misantropo, necessita murar-se de pacincia para agentar um bate-papo. Murar, nestes termos, um verbo carregado de sentido no que diz respeito proteo contra uma ameaa. O que

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    informa o significado dessa ao a definio do inconveniente contra a qual se dirige. No caso dos muros ao redor das favelas, ainda que sejam destinados proteo da Mata Atlntica, define-se que o elemento ameaador a populao que ali vive. No limite, a construo desses ecolimites reitera o campo semntico do termo favela como um sinnimo de perigo para a sociedade e para a natureza. Nosso dicionrio apresenta, ainda, outros significados para o verbo murar quando o remete sua raiz latina mure: 1. Caar (ratos). 2. Espiar ou espreitar ratos para ca-los. Esta definio do termo nos faz lembrar que, em alguma medida, esses muros se relacionam com uma estratgia de segurana pblica voltada para a asfixia das reas de favela.

    Tanto no Rio de Janeiro quanto em So Paulo, no sculo 19, as polticas de sanitarizao, contriburam para a difuso da imagem da pobreza como doena, sujeira e promiscuidade. Essas polticas, alm de removerem os moradores de cortios para reas afastadas, relacionam-se com as origens de empreendimentos imobilirios voltados para as elites. Esse o caso dos condomnios de luxo de So Paulo que se separam da favela de Paraispolis por uma linha tnue formada por seus muros. A imagem desses muros a prpria metonmia da segregao espacial e social que atravessa o processo de urbanizao de nossas grandes cidades. A construo de muros, que impliquem na imposio de limites entre as favelas e o restante da cidade, dialoga com problemas histricos que manifestam mais um aspecto de suas configuraes recentes.

    Alm do delicado problema social relacionado produo de estigmas e ao aprofundamento de dinmicas de segregao, o projeto do Governo do Estado, apresenta inconsistncias em relao sua eficcia. As favelas da Zona Sul apontadas no projeto possuem percentuais de expanso horizontal inferior ao total do crescimento das reas de favela do Estado. Entre 1999 e 2008, esse foi de 6,8%, segundo dados do Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos (IPP). As comunidades do Parque da Cidade e de Benjamim Constant tiveram taxa de crescimento zero. A favela Dona Marta decresceu em 0,78%. Soma-se a isso o fato de que a construo de muros de conteno no contribui em nada para a resoluo das dinmicas que pressionam a ocupao das reas de Mata Atlntica por essas favelas. Trata-se, portanto, de uma poltica de preservao ambiental pouco eficaz, que mantm inalteradas as tenses pertinentes ao quadro de fragilidade urbana do Rio de Janeiro. Em 2004, Luiz Paulo Conde, ento secretrio estadual de desenvolvimento urbano e meio ambiente, props um projeto semelhante que foi rechaado pela imprensa e pela opinio pblica e, por isso, no foi levado adiante. O atual projeto, igualmente polmico, deve ser amplamente debatido com a populao da cidade do Rio de Janeiro, sobretudo, com os moradores das favelas atingidas por essa poltica.

    A preocupao com o crescimento das favelas deve ter como pilares o combate pobreza, o acesso a direitos e uma poltica habitacional abrangente. A construo de muros expressa uma postura do poder pblico que lida de forma imediata com os efeitos de problemas graves da cidade, sob o argumento de que atuar nas causas demanda um tempo no disponvel em vista da urgncia da situao presente.

    H ainda questes relativas legitimidade do projeto de construo dos muros. No dia 13 de abril de 2009, foi divulgada uma pesquisa feita pelo Datafolha, na qual 47% dos pesquisados foram favorveis construo de muros e 44%, contra. Mas essa aprovao no pode ignorar o plebiscito feito pela associao de moradores da Rocinha, no dia 25 de abril de 2009, no qual 1.056 pessoas rejeitaram o projeto e apenas 50 pessoas o apoiaram. No pode haver uma poltica pblica efetivamente legtima que se estabelea prescindindo do dilogo com as pessoas sobre as quais incidem diretamente os seus efeitos. A consulta ampla populao das favelas que

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    ocupam reas de Mata Atlntica deve ser uma premissa das formas de aplicao de polticas pblicas voltadas para esse tipo de ocupao irregular. Esse mesmo princpio deve se impor na formulao dessas polticas.

    Construir muros para conter a expanso de favelas uma iniciativa pouco justificvel no que se refere sua eficcia, por sua articulao com as causas do problema que busca combater. Seus canais de consulta e dilogo para produo de legitimidade tambm so fracos ou quase inexistentes. Se o Caveiro sintoma de uma poltica equivocada praticada no Brasil, em vista de sua vinculao ao Yellow Mellow, que hoje se encontra no Museu do Apartheid, na frica do Sul, os muros em torno das favelas do Rio de Janeiro se vinculam, em alguma medida, aos de Paraispolis.

    Quais providncias j foram tomadas?

    1) A Faferj A Federao das Associaes de Favelas do Estado do Rio de Janeiro trava uma rdua batalha, a partir do posicionamento poltico de sua Assembleia, contra a suspenso dos muros em favelas;

    2) A Associao de Moradores da Rocinha realizou recente plebiscito na comunidade que tornou explcita a vontade da maioria: mais de mil moradores se posicionaram contrrios ao projeto, enquanto cerca de 50 expressaram voto favorvel;

    3) Movimentos sociais e organizaes de Direitos Humanos divulgaram nota por meio da imprensa apoiando a iniciativa da Faferj e se dispondo a atuar em conjunto contra os muros;

    4) Ncleo de Terras e Habitao da Defensoria Pblica do Estado RJ: defensores pblicos comunicaram a instruo 02/2009 com o objetivo de apurar no mbito coletivo as possveis violaes de direitos fundamentais em razo do projeto de construo de muros no entorno de assentamentos precrios (favelas) pelo estado e pelo municpio e eventual propositura de ao civil pblica. Tambm solicitou um agendamento de audincia pblica sobre o tema;

    5) A Justia Global levou o caso ONU, que pediu explicaes oficiais ao governo brasileiro sobre o projeto.

    1.b) Poltica de segurana pblica no Rio de Janeiro: criminalizao da pobreza e extermnio

    As incurses da polcia nas comunidades e, em sua decorrncia, os casos emblemticos de extermnio, so o resultado mais cruel de uma poltica de segurana pblica baseada na lgica da criminalizao da pobreza e do confronto permanente. Operaes policiais no interior de comunidades pobres do Rio de Janeiro provocam medo e terror; impedem crianas e jovens de freqentar a escola e moradores de sair para trabalhar; alm de inviabilizarem o funcionamento dos postos de sade.1

    Esse tem sido o padro pacificador da poltica de segurana pblica em comunidades pobres do Rio de Janeiro: a mobilizao de um grande aparato com um elevado saldo de mortos, sempre apresentados como traficantes. A polcia desse estado insiste em utilizar como critrio de eficincia o alto ndice de letalidade policial, respaldada pelos autos de resistncia.

    1 Folha de S. Paulo, 7 morrem a cada 2 dias em confronto com a polcia do Rio, 23 de outubro de 2007.

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    Em todas as incurses policiais nas reas mais pobres de recursos do Rio de Janeiro, as autoridades responsveis como o governador Srgio Cabral e o secretrio de Segurana Pblica Jos Mariano Beltrame deixam evidente a poltica de segurana pblica temerria do estado: mortes so entendidas como meios necessrios para o enfrentamento da criminalidade; o que significa dizer que a letalidade da ao policial encarada como parmetro de sucesso.

    A partir de um discurso baseado na imprescindibilidade do uso da violncia nas operaes da polcia, o Estado busca legitimar suas aes frente opinio pblica, quando, na verdade, poderia e deveria apresentar outras propostas de segurana, baseadas em trabalho de investigao e inteligncia e na valorizao da vida.

    De acordo com o mais recente relatrio sobre incidncias criminais do Instituto de Segurana Pblica do Estado do Rio de Janeiro (ISP), houve um aumento de 9,1% no nmero de autos de resistncia (registros de mortes provocadas pela polcia) no primeiro semestre de 2008 em comparao ao mesmo perodo do ano anterior. Assim, entre janeiro e julho de 2007, 694 pessoas morreram por ao da polcia, enquanto no mesmo perodo do ano de 2008 foram registradas 757 mortes. Desde o ano 2000 at hoje, os dados do ISP tm revelado o aumento crescente da letalidade policial.2

    Casos emblemticos da Poltica de Extermnio

    Conferir status de emblemtico a alguns casos de violao de Direitos Humanos incorrer, obviamente, em uma arbitrariedade. No possvel por bvio mensurar ou hierarquizar casos que, em sua homogeneidade, tenham como resultado o extermnio.

    Mas, diante da impossibilidade da anlise de todos os casos de extermnio em decorrncia de operaes policiais, faz-se necessrio definir alguns recortes no sentido de analisar os casos de execuo. Nesse sentido, utilizamos como exemplos emblemticos aqueles que, de alguma forma, mobilizaram as organizaes de Direitos Humanos na construo de um processo de resistncia ao homicdio em voga ou indivduos e grupos para a participao em processos de reao poltica de segurana ora implantada.

    Em geral, esses casos coincidem com os que, de uma maneira ou outra, obtiveram maior repercusso na imprensa. O perodo de compreenso dos fatos aqui analisados se refere ao ltimo semestre de 2008 e ao primeiro semestre de 2009.

    1) Caso da Coroa3

    Em 2 de Abril de 2009, uma operao do 1 BPM matou seis pessoas no Morro da Coroa, em Santa Teresa, Rio de Janeiro. Uma das vtimas, Josenildo Estanislau dos Santos, de 42 anos, cujo apelido era Teo, foi morto a sangue

    frio depois de detido e imobilizado por policiais militares ao testemunhada por vrias pessoas, duas delas que se dispuseram, inclusive, a testemunhar em ofcio.

    2 www.isp.rj.gov.br

    3 http://odia.terra.com.br/portal/rio/html/2009/4/morto_no_morro_da_coroa_era_inocente_diz_familia_4267.html

    http://noticias.terra.com.br/brasil/interna/0,,OI3680888-EI5030,00- Tres+mortos+em+operacao+no+Rio+nao+tinham+antecedentes.html

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    Segundo a famlia, Josenildo recebeu um tiro na perna, ajoelhou-se e, entre gemidos de dor, perguntou aos policiais se eles j teriam visto algum bandido com as mos sujas de graxa. "O apelo no foi suficiente para impedir o ltimo tiro, que o atingiu na cabea. Isso s porque ele estava descendo a rua e viu os policiais matando as outras pessoas", relatou o seu irmo, Macario, Comisso de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Alerj. Durante a operao, os policiais atuaram encapuzados e sem a identificao na farda.

    A 6 DP (Cidade Nova), que registrou o caso, identificou quatro dos seis mortos na incurso da Polcia Militar ao Morro da Coroa e se deparou com o fato de que trs deles no tinham quaisquer registros criminais.

    A famlia de Josenildo recusa a verso oficial da polcia de que os seis executados eram bandidos e garante que o rapaz foi executado ao sair de casa para comprar cigarros. A comunidade confirma a verso da famlia e fez um abaixo-assinado com mais de mil assinaturas coletadas em um nico dia em apoio aos familiares e em memria da vtima. Os parentes de Josenildo procuraram a Comisso de Defesa dos Direitos Humanos e da Cidadania da Alerj que, com o Ncleo de Direitos Humanos da Defensoria Pblica, acompanha o caso.

    2) Caso da Mineira

    Em 17 de maro, s 7h da manh, horrio de grande circulao de pessoas na comunidade, sobretudo de crianas, policiais do 1 BPM executaram uma operao no Morro da Mineira. Na ao, duas pessoas morreram e trs foram feridas por balas de fuzis, na entrada da comunidade. Francisco Fabrcio, de seis anos, foi baleado na cabea, quando estava sentado no sof de casa. A tia do garoto, Dona Amparo, feriu-se com estilhaos e um senhor, Jos de Souza, teve uma das mos fraturada por estilhaos do projtil.

    O senhor Jos conta que homens fardados de preto surgiram rapidamente na rua e de maneira incauta comearam a atirar na direo de um rapaz supostamente envolvido com o trfico. Segundo o relato de Jos, eles no tinham identificao nas fardas e trajavam toucas pretas. Alm desse jovem, outra morte decorreu das rajadas de fuzil: a do senhor Alosio da Costa, de 38 anos. Os moradores afirmam que o rapaz no estava armado quando foi morto e, pouco depois, a cena do crime foi desfeita. Os corpos, recolhidos.

    O menino Francisco Fabrcio no pode ir escola e no tem recebido qualquer assistncia. Alosio da Costa morreu na hora. Era trabalhador e querido pelos moradores.

    Na semana seguinte ao incidente, cerca de 200 pessoas foram s ruas e pararam o trnsito em direo ao tnel Santa Brbara, que liga o Centro Zona Sul da cidade. Policiais do 1 BPM foram destacados para conter os manifestantes. Os moradores da comunidade esto indignados com as mortes que h anos ocorrem na regio.

    Segundo o presidente da Associao de Moradores da Mineira, Ricardo Barros, a comunidade viveu 25 anos em guerra por causa da rivalidade entre faces do comrcio de drogas e continua enfrentando dificuldades decorrentes de operaes policiais. Ele afirma que os ndices de criminalidade e de mortalidade baixaram nos ltimos tempos no Catumbi e acredita que essa ao tenha sido uma represlia dos policiais morte de um agente do 1 BPM, antes do carnaval.

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    No dia 17 de abril, em memria pelos 30 dias do ocorrido, moradores da comunidade, representantes da associao de moradores e de organizaes de Direitos Humanos, como o Instituto de Defensores de Direitos Humanos, Justia Global, Rede Contra a Violncia e Comisso de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, realizaram uma manifestao pblica nas proximidades do Morro da Mineira. Houve uma caminhada pela comunidade com faixas, cartazes, carro de som e distribuio de panfletos com uma viso crtica acerca do modelo de segurana pblica em curso. Durante a atividade, policiais no identificados, tiraram fotos dos moradores presentes, que temem retaliaes futuras.

    O caso est sendo acompanhado pelo DDH.

    3) Caso da Vila Aliana

    Nos ltimos dois meses, duas meninas, Yasmin Kely Barbosa da Silva, de trs anos, e Julia Andrade de Carvalho, de oito, foram mortas durante operaes policiais na Vila Aliana, em Bangu, Zona Oeste do Rio de Janeiro.

    Em 20 de maro, Julia foi baleada na barriga, enquanto brincava. Levada ao Hospital Albert Schweitzer, em Realengo, no resistiu ao ferimento e faleceu.

    Na manh de 29 de abril, Yasmim Kely brincava com a av quando levou um tiro de fuzil nas costas. Chegou morta ao Hospital Albert Schweitzer, para onde foi levada por policiais. A me de Yasmim, Roberta Kelly Barbosa da Silva, de 26 anos, grvida de seis meses na ocasio, precisou ser dopada.

    Rosngela da Silva, av da menina, contou que viu quando os policiais entraram na comunidade atirando, mas que no teve tempo nem de correr. Eles atiraram em direo comunidade. Quando vi, ela estava sangrando no cho. Implorei para que eles parassem de atirar. No houve troca de tiros. Segundo moradores e parentes da menina, PMs do 14 BPM (Bangu) entraram na comunidade atirando. A polcia nega a acusao. No era uma troca de tiros. Quando viu a menina morta um dos policiais disse que tinha feito merda", relatou uma testemunha.

    Wagner Alves de Carvalho, pai da outra criana, Julia, contou que no viu quem atirou na filha durante uma operao do Batalho de Choque, mas disse que os moradores no aguentam mais a condio de indefesos, de viver na linha de tiro, quando h operaes. "Eu espero que a polcia entre na comunidade para cumprir seu papel, mas pare de nos tratar como lixo. Queremos quebrar esse muro de impunidade". O pai de Yasmim, Andr dos Santos, de 33 anos, contou que o comandante do 14 BPM (Bangu), coronel Pedro Paulo da Silva, ligou para oferecer ajuda. Que ajuda eu posso querer. Uma criana morreu. Minha filha est morta, indagou o pai.

    No 1 de maio, aps a morte das duas crianas, moradores realizaram ato em protesto na Estrada do Engenho, mas foram impedidos pelos policiais. Os manifestantes chegaram a jogar pedras contra os policiais que revidaram com tiros de fuzil. Um grupo de parentes das crianas, moradores da comunidade e parlamentares reuniu-se no dia 4 de maio com a presidente da comisso de Direitos Humanos da OAB/RJ, Margarida Pressburger, para pedir ajuda na apurao das mortes de crianas atingidas por balas perdidas. Acompanhados de moradores e parlamentares, parentes das vtimas disseram que as operaes acontecem sempre em horrio de entrada ou sada escolar, quando h muitas crianas nas ruas.

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    O caso acompanhado pela Comisso de Direitos Humanos da OAB, que recebeu denncia dos moradores da Vila Aliana. Estes tm, pelo menos, duas preocupaes: o medo de denunciar crimes porque se sentem intimidados, e as aes policiais que, segundo eles, acontecem no horrio em que crianas e trabalhadores esto saindo de casa.

    4) Caso da Providncia 2009

    No dia 26 de maro de 2009, Jos Carlos Barbosa, de 22 anos, foi assassinado por policiais militares do GPAE no Morro da Providncia. Segundo relatos de testemunhas, cinco policiais, na patrulha 520577, subiram a favela atirando.

    A me dele, Maria de Ftima uma das mes de um dos meninos mortos por traficantes do Morro da Mineira aps serem entregues quadrilha por militares do Exrcito no ano passado tambm foi espancada quando tentou se aproximar do local do crime. H outra testemunha, que foi agredida a ponto de ter ficado com vrias manchas no corpo, mas no quer testemunhar formalmente porque j foi ameaada pelos policiais envolvidos. Alm dela, outras testemunhas e familiares sofreram ameaas.

    Segundo a verso dos policiais, o rapaz morreu numa troca de tiros e com ele foram encontradas uma pistola e drogas.

    O caso acompanhado pela Comisso de Direitos Humanos da OAB/RJ e foi registrado na 4 DP. Foi comunicado tambm Secretaria Especial de Direitos Humanos, em Braslia, e ao Ministrio Pblico do Estado do Rio de Janeiro. A Rede Contra a Violncia tambm acompanha o caso.

    5) Casos da Mar

    5. a) Matheus, oito anos, assassinado por policiais na porta de casa Por volta das 8h de 4 de novembro, Matheus Rodrigues, de oito anos, foi executado pela Polcia Militar, na Baixa do Sapateiro, Complexo da Mar. O menino morreu com um tiro no rosto. Familiares e testemunhas afirmam que no houve troca de tiros. Matheus saa de casa para comprar po. Ele estava cado junto de um muro, sentado, com uma moeda na mo. Moradores revoltados no deixaram que o corpo fosse retirado do local pelo Corpo de

    Bombeiros. Exigimos a presena de um perito, gritavam.

    Por volta das 10h, peritos do Instituto de Criminalstica Carlos boli chegaram ao local. A famlia estava sem condies de dar entrevistas. A me e a av do menino precisaram de atendimento mdico. A comoo tomou conta dos moradores, que choravam a morte trgica da criana.

    Um grupo de moradores gritava por justia em frente ao Posto Policial Comunitrio (PPC) da Baixa do Sapateiro. Um caveiro estava estacionado em frente ao posto. Inicialmente os policiais reagiram com tiros para cima. Depois, o major responsvel pelo PPC ordenou que os policiais parassem de atirar. Ningum dispara, ningum, joga bomba, avisou. Moradores traziam faixas e cartazes exigindo justia e respeito.

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    O caso de Mateus acompanhado pela ONG Uer, Projeto Legal e pela Comisso de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Alerj.

    5.b) Felipe, 17 anos, morto em operao policial na Mar

    No dia 14 de abril de 2009, quatro policiais militares do 22 BPM entraram na comunidade da Baixa do Sapateiro, no Complexo da Mar, Zona Norte do Rio de Janeiro. No usavam uniformes ou qualquer tipo de identificao. Testemunhas contam que, ao chegarem ao local onde a Rua do Servio se encontra com a Rua da Paz e a Rua So Salvador, os policias dispararam um tiro de fuzil que acertou, na cabea, Felipe dos Santos Correia Lima, estudante de 17 anos. O jovem conversava com dois amigos em frente oficina de consertos de televisores de seu tio, a cerca de cinco metros da entrada da casa onde morava com a me, o padrasto e os irmos. Os quatro policiais insultaram moradores e impediram que amigos e parentes de Felipe prestassem socorro ao rapaz. Em poucos minutos, um veculo tipo Chevrolet Blazer, de cor branca e placa KNY 8301, chegou ao local, dirigido por um quinto homem. Felipe foi levado, ainda com vida, para o Hospital Geral de Bonsucesso, onde foi deixado no cho da entrada. Testemunhas afirmam que os policiais proibiram de maneira agressiva que enfermeiras e mdicos atendessem o jovem, alegando que se tratava de um criminoso. Felipe morreu em seguida. Segundo matria publicada no jornal O Globo de 15 de abril de 2009, o comandante do 22 BPM, tenente-coronel Rogrio Seixas, afirmou que os policiais eram agentes do Servio Reservado da PM (P-2) e estavam em uma operao policial para cumprir mandados de priso papel que, legalmente, caberia Policia Civil. O deputado Marcelo Freixo enviou um ofcio ao Secretrio de Segurana pedindo mais informaes sobre a suposta operao, mas ainda no obteve resposta. Contrariando o relato de diversas testemunhas, os cinco policiais sustentaram que houve troca de tiros e que foram encontradas com o jovem uma pistola, uma granada e uma mochila com drogas. Felipe era estudante da Escola Bahia, em Bonsucesso, trabalhava na lanchonete de um tio e tinha acabado de se alistar no Exrcito. Os moradores da Baixa do Sapateiro fizeram trs manifestaes denunciando o assassinato do jovem; em duas delas, houve represso violenta por parte da polcia, com bombas e tiros disparados. O caso de Felipe dos Santos Correia Lima acompanhado pela ONG Uer, Justia Global, pela Comisso de Defesa dos Direitos Humanos e da Cidadania da Alerj e IDDH.

    6) Caso de Z Garoto, So Gonalo Oldemar Pablo Escola de Faria, 17 anos, assassinado por policial com trs tiros

    Em 6 de setembro de 2008, houve uma festa na Casa de Show Aldeia Velha, no bairro Z Garoto, na cidade de So Gonalo. A proprietria da casa noturna Alexandra Duro de Barros Pereira, esposa do tenente da Polcia Militar Carlos Henrique Figueiredo Pereira, que atua como segurana no local. Entre 20h e 21h teve incio uma briga no salo, os envolvidos foram postos para fora, mas o tumulto continuou e a festa foi interrompida. Muitas pessoas foram para o lado de fora, inclusive o referido tenente, que, irresponsavelmente, atirou para o alto, levando a maioria, assustada, a se deitar no cho.

    O tenente ento, com arma em punho, agrediu um rapaz, que gritou: Meu pai tambm polcia!. O tenente Carlos Henrique respondeu: polcia nada; e disparou pelo

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    menos outro tiro (algumas testemunhas falam em dois tiros), agora em direo ao rapaz, que se esquivou, mas assim mesmo foi atingido de raspo no brao. Pelo menos um tiro feriu na cabea Oldemar Pablo Escola de Faria, 17 anos, que estava na festa com a namorada.

    O tenente Carlos Henrique tentou fugir, mas teve seu carro cercado pelos adolescentes que o obrigaram a socorrer Oldemar. Entretanto, depois que Oldemar foi posto no carro, o tenente no deixou que ningum entrasse e saiu com o automvel pela contramo. Da casa de shows ao pronto-socorro no se leva mais de trs minutos, porm a entrada no hospital s aconteceu meia hora depois. Oldemar ficou internado em coma induzido por uma semana, falecendo em 14 de setembro de 2008.

    O PM apresentou-se 72 Delegacia (no Centro de So Gonalo) com a verso de que teria sido atacado pelos jovens, que no se dispersaram quando atirou para o alto, e que s havia disparado mais uma vez acidentalmente, ao golpear com a arma a face de um agressor, que seria Oldemar. No hospital, registrou-se, no entanto, que Oldemar fora atingido por trs tiros na cabea, fato confirmado pelo laudo do IML. Todas as testemunhas prestaram depoimento declarando que no local da confuso o tenente s disparou um tiro para o alto, e talvez mais dois, sendo que apenas um atingiu Oldemar. Familiares e amigos suspeitam de que os outros disparos foram efetuados pelo policial dentro do carro, antes de chegar ao hospital

    Diante das contradies de suas declaraes, o tenente foi preso e recolhido ao batalho prisional em Benfica. O Ministrio Pblico, com base nas provas j recolhidas, ir pedir a priso preventiva do PM, lotado no Batalho de Choque (Rio). Ele deu o endereo do batalho como se fosse o da sua residncia no depoimento na Delegacia de Polcia.

    Em 7 de janeiro de 2009, a juza da 4 Vara Criminal de So Gonalo, Patrcia Lourival Acioli, aceitou o pedido de pronncia do tenente feito pelo Ministrio Publico, o que levar o caso ao Tribunal do Jri, mas ao mesmo tempo decidiu que o policial ir aguardar em liberdade o seu julgamento pelo homicdio. Essa deciso prejudica, na prtica, o andamento do processo, por levar insegurana a testemunhas e familiares.

    6) Operao Pavo-Pavozinho e Cantagalo

    Trs pessoas morreram em 12 de novembro de 2008 durante violenta operao da Polcia Civil no Complexo de comunidades do Pavo-Pavozinho e Cantagalo, na cidade do Rio de Janeiro. Na ocasio, muitas outras pessoas ficaram feridas e cinco suspeitos foram presos.

    Cerca de 50 policiais participaram da operao, coordenada pela Delegacia Especial de Apoio ao Turista (Deat), que teve incio s nove horas da manh. O auge da ao aconteceu por volta de meio-dia, quando policiais da Coordenadoria de Recursos Especiais (Core) receberam informaes de que supostos traficantes haviam se escondido no escritrio da empreiteira que realiza as obras do Programa de Acelerao do Crescimento (PAC).4 Este escritrio, localizado na ladeira Saint Roman,

    4 O Programa de Acelerao do Crescimento (PAC), lanado em 28 de janeiro de 2007, um programa

    do governo federal brasileiro que engloba um conjunto de polticas econmicas planejadas para os quatro anos seguintes e que tem como objetivo acelerar o crescimento econmico do Brasil, prevendo investimentos vultuosos, sendo uma de suas prioridades a infra-estrutura, como portos e rodovias.. Esto tambm includas neste programa medidas de infra-estrutura social, como habitao, saneamento e transporte de massa.

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    na subida para os morros do Cantagalo e Pavo-Pavozinho foi, ento, cercado, iniciando-se um tiroteio entre policiais e suspeitos que durou mais de 20 (vinte) minutos.

    Quem passava ou estava prximo ao local precisou esconder-se atrs de carros e postes. Funcionrios do PAC ficaram deitados no cho, no segundo andar do citado escritrio, sem que pudessem se mover, durante todo o tempo de troca de tiros, o que s terminou quando trs homens foram mortos pelos disparos da polcia e morreram.

    Segundo o noticiado na imprensa, o objetivo da operao era cumprir 14 mandados de priso. Dez deles seriam contra suspeitos de envolvimento com o trfico de drogas e trs contra acusados de praticar crimes contra turistas. Havia, ainda, um mandado de priso contra um funcionrio das obras do PAC que estaria desviando material de construo para erguer casas de traficantes. Esse funcionrio est foragido.

    Aps atirar e matar trs pessoas, a equipe de policiais apreendeu uma granada, trs fuzis FAL calibre 7,62, uma metralhadora antiarea, trs pistolas e um revlver. Entre os presos est Samuel de Freitas e Silva, o Muel, apontado pela polcia como o "gerente" do trfico naquela comunidade. Policiais tambm prenderam Ivo Pablo de Souza, Carlos Alberto de Jesus Jnior, Jos Roberto da Silva e um quinto suspeito no identificado. Entre os mortos, Jonathan Monteiro do Rego da Silva, tambm com mandado de priso expedido.

    Apesar das mortes e agresses, e de todo o tumulto e pnico causados aos moradores, o chefe da Polcia Civil, Gilberto Ribeiro, classificou a ao policial como positiva: As aes so planejadas e o resultado foi exitoso. Muitas vezes os funcionrios do PAC so coagidos por criminosos. Vamos continuar atuando contra esses criminosos.

    Do ponto de vista dos membros da comunidade, e mais especificamente dos parentes dos homens mortos pela polcia, a operao foi desastrosa e extremamente violenta. Assim, revoltados, os moradores tentaram invadir o escritrio do PAC, onde estavam os corpos das pessoas assassinadas. Para conter a multido, os policiais atiraram para o alto e lanaram spray de pimenta. Os policiais, descontrolados, chegaram a agredir e a prender alguns moradores.

    Uma das vtimas da arbitrariedade policial foi Lorraine R. Carvalho L. Ferreira da Silva, de 15 anos de idade. A adolescente, ao saber da morte de Jonathan Monteiro do Rego da Silva, seu primo, dirigiu-se at o local. Chegando l, encontrou sua av e sua tia aos prantos enquanto um policial ria do ocorrido. Diante disso, Lorraine comeou a bater na viatura da polcia, quando ento foi brutalmente agredida por um dos policiais, que avanou sobre ela e torceu o seu pescoo.5

    Como se no bastasse, Lorraine foi detida e levada para a 14 Delegacia de Polcia, acusada de desacato autoridade. A estudante permaneceu encarcerada durante muitas horas, aguardando a oitiva com o Delegado, que s aconteceu s 22h, depois do que foi, finalmente, liberada.

    Em 1 de dezembro de 2008, o inqurito foi remetido Justia da Infncia, Juventude e do Idoso (Processo Administrativo do Inqurito 90602195/2008). H tambm outro processo de nmero 90602125/2008, em que outras pessoas envolvidas foram citadas. Recentemente, em 31 de maro ltimo, Lorraine prestou depoimento no

    5 Ver tambm reportagem e vdeo da operao policial disponvel em:

    http://g1.globo.com/bomdiabrasil/0,,MUL860378-16020,00.html.

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    Ministrio Pblico, quando se defendeu da acusao de desacato e relatou a agresso fsica praticada contra ela por um policial.

    Recomendaes:

    1. Pressionar pela Investigao clere e efetiva para apurar os abusos cometidos pela polcia nas comunidades supracitadas, considerando-se especialmente:

    1.1. As pessoas mortas e feridas nas operaes; 1.2. Os familiares ameaados e agredidos fsica e verbalmente pelos policiais; 1.3. Os manifestantes criminalizados.

    2. Pressionar pela extino da ao judicial instaurada contra Lorraine R. Carvalho L. Ferreira da Silva, tendo em vista a infundada acusao de desacato sofrida pela adolescente na operao Pavo-Pavozinho.

    3. Pressionar pela transformao profunda da atual poltica de segurana pblica adotada pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro, visando a reduo da letalidade policial atravs de um srio programa de reduo de danos.

    4. Que o Governo do Estado do Rio de Janeiro tome as medidas necessrias a DESAUTORIZAR, por completo, o uso dos CARROS BLINDADOS pelas polcias militar e civil do Estado induzindo a uma reformulao das polticas governamentais de segurana pblica para uma estratgia pautada na inteligncia policial e no policiamento scio-comunitrio.

    5. Que o Governo da Repblica Federativa do Brasil e ao Governo do Estado do Rio de Janeiro que sejam tomadas medidas no sentido de APROVAR o projeto de Lei que prev a ampliao da competncia da justia comum na elucidao e no julgamento dos crimes praticados por policiais militares em suas atividades de policiamento, de modo a incluir homicdio culposo, leso corporal e tortura. (mbito federal)

    6. Que o Governo do Estado do Rio de Janeiro tome medidas no sentido de dar plena autonomia e independncia as Corregedorias e Ouvidorias de Polcia, alm de recursos suficientes para sua capacitao e desempenho competente das funes. Os ouvidores devem ser autorizados a examinar integralmente cada queixa, assim como submeter propostas de representao aos promotores. Alm disso, os ouvidores devem ter o poder de requisitar judicialmente pessoa e documentos (ou seja, ter o poder de tomar testemunhos sob pena de perjrio e requerer documentos sob pena de omisso de provas). Finalmente, as autoridades devem garantir a integridade fsica e a segurana dos ouvidores e suas equipes.

    7. Que o Governo do Estado do Rio de Janeiro tome medidas no sentido de efetivao do Controle Externo da Atividade Policial pelo Ministrio Pblico e criao de rgos de investigao independentes. As autoridades brasileiras devem elaborar e regulamentar a criao de rgo de investigao dentro dos Ministrios Pblicos estaduais e federais. Estes rgos devem estar autorizados a requerer judicialmente documentos, intimar testemunhas e investigar reparties pblicas, inclusive delegacias e outros centros de deteno para conduzir investigaes completas e independentes.

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    8. Que o Governo do Estado do Rio de Janeiro tome medidas no sentido de dar independncia e controle social dos Institutos de Medicina Legal, bem como ampliao e modernizao de sua estrutura e desvinculao dos setores periciais da rea de Secretaria da Segurana Pblica.

    9. Que o Governo do Estado do Rio de Janeiro tome medidas no sentido de valorizao do enfoque preventivo, ampliando a capacidade do sistema de justia e segurana pblica de evitar a ocorrncia de danos, ao invs de investir simplesmente na representao aos crimes j ocorridos.

    10. Que o Governo do Estado do Rio de Janeiro tome medidas no sentido de adoo por parte das autoridades da segurana pblica do Estado de um plano semestral de reduo de homicdio, pela de utilizao de policiamento preventivo, comunitrio e permanente que vise reduo de danos, da punio de policiais infratores e responsveis, e do controle e fiscalizao de armas.

    11. Que o Governo do Estado do Rio de Janeiro tome medidas no sentido de criao de programas que retirem das ruas policiais que se envolverem em eventos com resultado de morte, at que se investiguem as motivaes e proceda a necessria avaliao psicolgica do envolvido.

    12. Que o Governo do Estado do Rio de Janeiro tome medidas no sentido de elaborar rigoroso estatuto sobre abordagem de suspeitos, a fim de reduzir o nmero de vtimas fatais durante esses procedimentos e unificao progressiva das Academias e Escolas de Formao, e estabelecimento de convnios com as Universidades para formao do corpo policial.

    13. Que o Governo do Estado do Rio de Janeiro tome medidas no sentido de melhorar a remunerao dos policiais e a busca de alternativas como o pagamento de horas-extras para evitar os bicos dos policiais.

    14. Que o Governo do Estado do Rio de Janeiro tome medidas no sentido de treinamento para todos os policiais no emprego de tcnicas no letais nas operaes policiais (tiro defensivo, forma de abordagem, etc.).

    15. Que o Governo do Estado do Rio de Janeiro tome medidas no sentido de modificar os regulamentos policiais para que agentes vtimas de atentados ou que de alguma forma estejam envolvidos com o episdio no continuem participando das investigaes, para diminuir aes vingativas.

    16. Que o Governo do Estado do Rio de Janeiro tome medidas no sentido da no utilizao de armas de fogo em operaes como reintegrao de posse, estdios de futebol, greves e outros eventos com multides.

    17. Que o Governo do Estado do Rio de Janeiro tome medidas no sentido de implementar um programa eficaz de proteo testemunha e vtimas da violncia, assim como garantia de investigaes isentas e apurao de todos os casos de ameaa vida e integridade pessoal denunciados por testemunhas.

    18. Que o Governo do Estado do Rio de Janeiro tome medidas no sentido de facilitar os relatos de abuso. Todos os defensores de Direitos Humanos, assim como as vtimas e seus familiares, devem ter acesso a um procedimento seguro para apresentao das queixas sem medo de represlias. Tais queixas

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    deveriam ser automaticamente levadas s divises de Direitos Humanos dos Ministrios Pblicos estaduais.

    19. Que o Governo do Estado do Rio de Janeiro tome medidas no sentido de ampliar a capacidade investigativa da Polcia Civil, com modernizao e capacitao da polcia tcnica e cientfica; criao imediata de dos sistemas de rastreamento de armas e de veculos, inclusive os oficiais usados pela polcia, pela ampliao do uso de sistemas como o GPS, identificao balstica, identificao de impresso digital e fotogrfica.

    20. Que o Governo do Estado do Rio de Janeiro tome medidas no sentido de criar um nico rgo de informao e inteligncia, sob controle do executivo e com Regimento Interno nico, com objetivo exclusivo de combater o crime organizado, prevenir e inibir a prtica de delitos cometidos por agentes do Estado, e subsidiar o planejamento estratgico da ao policial.

    21. Que o Governo do Estado do Rio de Janeiro tome medidas no sentido de priorizar o combate dos homicdios dolosos com policiamento preventivo e investigativo e represso sistemtica aos grupos de extermnio.

    22. Que o Governo do Estado do Rio de Janeiro tome medidas no sentido de apurao e concluso dos inquritos policiais que esto em andamento permitindo o acesso justia aos familiares de vtimas de violncia institucional.

    23. Que o Governo da Repblica Federativa do Brasil e ao Governo do Estado do Rio de Janeiro que sejam tomadas medidas no sentido de impedir quaisquer tentativas de mudanas nas clusulas ptreas da Constituio da Repblica Federativa do Brasil de 1988, em especial aquelas para restringir direitos e garantias individuais, como a atual tentativa de reduo da idade mnima de responsabilizao penal (maioridade penal).

    1.c) Milcias

    A violncia policial no Brasil e a expanso da ao das milcias, muitas vezes, no so analisadas diante de processos sociais e histricos mais amplos. A violao sistemtica dos direitos econmicos sociais e culturais est ligada com a situao dramtica de violncia institucionalizada vivida no pas. Por isso, importante avaliar a violncia sistemtica dentro do contexto mais abrangente dos direitos econmicos, sociais e culturais.

    O Estado do Rio de Janeiro apresenta alguns dos ndices de violncia mais elevados no Brasil, como os nmeros de homicdio e de violncia policial. O Rio de Janeiro ocupa o primeiro lugar no pas em bitos por arma de fogo. Foram 2.235 casos no ano de 2006.6 As execues sumrias, os casos de tortura e o uso desproporcional da fora por agentes do Estado expressam a responsabilidade e participao do poder pblico nas violaes de direitos fundamentais. Por sua vez, a expanso do poder das milcias grupos armados compostos na sua maioria por agentes do Estado que controlam territrios e realizam extorso dos moradores de reas pobres da cidade evidenciam que o descumprimento dos direitos econmicos, sociais e culturais abre espao para o crescimento e a disseminao de prticas violentas.

    6 WAISELFISZ, J. J. Mapa da violncia dos municpios Brasileiros - 2008. Braslia, 2008.

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    As aes de milcias foram pesquisadas e documentadas por entidades de Direitos Humanos e movimentos sociais que denunciaram a permissividade e, por vezes, apoio direto de representantes do poder pblico a essas atividades ilegais. O relatrio final da CPI das Milcias, presidida pelo deputado Marcelo Freixo, na Alerj demonstra a extenso dessas organizaes criminosas que atuam por dentro do Estado.

    Para entender melhor o fenmeno das milcias no Rio de Janeiro necessrio evidenciar um pouco do seu histrico e os fatos mais relevantes para a constituio e manuteno desses grupos, assim como descrever as suas principais caractersticas de atuao e as violaes cometidas.

    Contexto geral sobre as milcias

    As milcias so grupos que promovem o controle de diversas comunidades do Rio de Janeiro, principalmente na Zona Oeste e Zona Norte, podemos citar como exemplo de bairros com forte presena de milcias: Campo Grande e Jacarepagu. Existe um rpido avano desses grupos para as reas metropolitanas e municpios prximos da cidade do Rio de Janeiro. As milcias obtm lucro atravs da coao armada sobre a populao e so formados, em grande parte, por policiais militares e civis, ou mesmo ex-policiais, bombeiros, agentes penitencirios e militares. Tais grupos ampliaram, a partir de 2004, sua ao no estado com a conivncia do poder pblico (governo estadual e municipal) que entendiam e justificavam a atuao ilegal das milcias como mal menor e instrumento auxiliar no combate ao trfico de drogas. A relao promscua entre as milcias e poder pblico clara, quando esses grupos utilizam equipamento de segurana do estado (viaturas, armas, etc.) e contam com a colaborao das foras policiais para dominar comunidades do Rio de Janeiro.

    Philip Alston, relator especial das Naes Unidas para execues sumrias, arbitrrias e extrajudiciais, no seu relatrio preliminar em decorrncia da sua visita ao Brasil, em novembro de 2007, identificou o envolvimento de policiais em organizaes criminosas que cometem execues sumrias, como so as milcias e grupos de extermnio7.

    O termo milcias comeou a ser usado de forma freqente no ano de 2006 por rgos de imprensa e representantes pblicos para designar um fenmeno que se expandia rapidamente naquele momento. Esses grupos foram comparados a chamada polcia mineira, que se constituiu na dcada de 1980, a partir da Zona Oeste8. O termo ficou ainda mais consolidado aps os atentados de final de dezembro de 2006 na cidade do Rio de Janeiro, que foram atribudos a uma represlia de determinadas faces de narcotraficantes propagao das milcias na cidade. Segundo os jornais, um relatrio da Subsecretaria de Inteligncia da prefeitura do Rio de Janeiro identificou 92 comunidades dominadas naquele momento pelas milcias9. O termo se tornou ento bastante popular, muito embora ainda no possua uma definio precisa ou consensual10.

    O controle armado exercido pelas milcias coage os moradores, principalmente de comunidades pobres e com pouca presena oficial do poder pblico, a pagar taxas em

    7 ALSTON, Philip. United Nations (Human Rights Council).14 may, 2008. Report by the Special

    Rapporteur on extrajudicial, summary or arbitrary executions, Philip Alston. Mission to Brazil (4 14 November, 2007). A/HRC/8/3/Add.4. 8 BURGOS, Marcelo (Org.) A utopia da Comunidade: Rio das Pedras, uma favela carioca. Rio de Janeiro:

    PUC-Rio: Loyola, 2002. 9 O Globo on line 10/12/2006. Milcias expulsam os traficantes de drogas e j controlam 92 favelas da

    cidade. http://oglobo.globo.com/rio/mat/2006/12/09/286975035.asp 10

    Relatrio da Sociedade Civil para o Relator especial das Naes Unidas para Execues Sumrias, Arbitrrias e Extrajudiciais. Rio de Janeiro, 2007.

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    troca de proteo na forma de segurana privada, alm da compra de outros servios como televiso paga (TV a cabo), transporte alternativo, gs domstico e jogos de azar (caa nqueis). As lideranas locais e moradores que se ope s prticas da milcia so torturados, expulsos ou mortos.

    Como foi o caso do lder comunitrio da favela Kelsons, Jorge da Silva Siqueira Netto. Em abril de 2007 ele foi at a Secretaria de Segurana Pblica denunciar que estava sofrendo ameaas de morte dos milicianos. No ms de agosto do mesmo ano, foi publicado no jornal O Globo denncias do lder comunitrio contra a ao de milcias na comunidade. Os policiais militares presos em decorrncia da denncia foram, posteriormente, liberados e Jorge da Silva foi seqestrado naquela localidade e possivelmente assassinado como forma de retaliao11. Os policiais acusados e que foram libertados so do 16 BPM em Olaria e do 14 BPM em Bangu: Alexandre Barbosa Batista, Andr Luiz de Oliveira Lima, Antonio Souza dos Santos, Jorge Henrique Alves do Santos e Fernando Barcelos.12

    Em 14 de maio de 2008, jornalistas de um rgo de imprensa (Jornal O Dia) do estado Rio de Janeiro foram torturados por integrantes de uma milcia na favela do Batan, localizada na Zona Oeste da cidade. Os jornalistas realizavam uma reportagem investigativa sobre o modo de atuao da milcia local e para isso alugaram uma casa na favela do Batan. Os milicianos descobriram a identidade dos jornalistas e os prenderam, fizeram ameaas de morte e os torturaram. Os agressores que participavam da milcia local so policiais militares e civis. Durante a sesso de torturas as vtimas viram pessoas com fardas da polcia militar no local. O Jornal O Dia denunciou as torturas publicamente no dia 31 de maio de 2008. Durante esse perodo o jornal entrou em contato com a cpula da segurana pblica e o Ministrio Pblico Estadual para denunciar o fato e a participao de agentes do Estado na tortura.

    Esse fato teve grande repercusso nacional e internacional13, evidenciando o controle de grupos de milicianos de favelas e as sistemticas prticas de violao de direitos humanos a que esto submetidas a populao dessas reas. Esse fato evidencia a articulao poltica das milcias na cidade do Rio de Janeiro e o sua influncia na mquina da segurana pblica do Estado.

    A pesquisa, exploratria, coordenada pelo socilogo Igncio Cano em 2008, sobre o fenmeno das milcias no Rio de Janeiro mostra que as principais denncias enviadas para o servio de disque-denncia, entre janeiro de 2006 a abril de 2008, tm a ver com o crime de extorso com 19,5% do total. So citados posteriormente como denncias mais freqentes no perodo indicado: desvio de conduta, posse ilcita de arma de fogo e homicdio consumado.

    Para Cano (2008) a milcia definida atravs de cinco eixos principais, listados a seguir: 1) Controle de um territrio e da populao que nele habita por um grupo armado irregular; 2) Carter em alguma medida coativo desse controle dos moradores do territrio; 3) O nimo de lucro individual como motivao principal dos integrantes desse grupo; 4) Um discurso de legitimao referido proteo dos habitantes

    11 CANO, Igncio. Seis por meia dzia? Um estudo exploratrio do fenmeno das chamadas Milcias no

    Rio de Janeiro. Segurana, Trfico e Milcias no Rio de Janeiro. Org. Justia Global. Rio de Janeiro, 2008. (p.56) 12

    Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violncia. O judicirio trabalhando contra a justia decises judiciais libertam militares e policiais acusados de crimes violaes de direitos, 2009. Disponvel em: http://www.redecontraviolencia.org/Documentos/442.html 13

    A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Associao Brasileira de Imprensa (ABI) e o Ministrio da Justia condenaram a tortura. As organizaes profissionais condenaram a tolerncia do poder pblico com as milcias.

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    instaurao de uma ordem que, como toda ordem, garante certos direitos e exclui outros, mas permite gerar regras de normatizao de conduta; 5) A participao ativa e reconhecida de agentes do Estado como integrantes dos grupos.

    O relatrio final da Comisso Parlamentar de Inqurito (CPI) das Milcias, presidida pelo deputado Marcelo Freixo, indiciou 226 pessoas com envolvimento em milcias e mapeou 117 reas dominadas por esses grupos armados.14 Uma das principais fontes de financiamento das milcias vm do controle sobre o transporte alternativo, atravs de extorso e ameaa em cima das cooperativas que prestam esse servio. Os dados produzidos pela CPI das Milcias do conta de que num nico dia o faturamento de uma cooperativa de Rio das Pedras alcana a cifra de R$ 169.500,00, podendo chegar ao final de um ano a um lucro bruto superior a R$ 60 milhes. Existem fortes evidncias de que crianas e adolescentes esto sendo aliciados por integrantes da milcia para trabalhar como cobrador de Kombi, que fazem transporte alternativo. Dessa maneira, o bairro de Campo Grande tem taxa de 20% de evaso escolar15.

    A privatizao da segurana no pas tambm est relacionada com a expanso das milcias. Segundo o relatrio da CPI das Milcias, estima-se que deva existir de 1,2 milho a at 1,8 milho de pessoas atuando nesse ramo de servio privado no Brasil e a imensa maioria das empresas, legais ou clandestinas, constituda por policiais, ex-policiais, integrantes ou ex-integrantes das Foras Armadas.

    Existe, no entanto, uma diferena entre os grupos de segurana privada que oferecem seus servios nas reas de classe mdia e o que acontece nos bairros pobres da cidade controlados por milcias. No primeiro caso os moradores tm, de modo geral, poder de escolher e no contar com o servio privado, j nas comunidades populares as famlias e comerciantes s tem uma alternativa possvel: pagar as taxas de segurana cobradas pelas milcias para que no sofram punies que podem ir desde a intimidao agresso at a expulso de casa. O relatrio da CPI afirma que as milcias vendem proteo contra a violncia praticada por eles mesmos.16

    As milcias tambm exercem forte controle eleitoral de grandes reas da cidade do Rio de Janeiro. A atuao desses grupos armados que controlam o territrio mantm relao direta com representantes do poder pblico que realizam uma troca de favores e interesses com integrantes do legislativo e judicirio. Existe uma correlao entre a atividade das milcias e o favorecimento de polticos no Legislativo e no Executivo, por meio da criao de currais eleitorais, onde as pessoas so coagidas a votar em candidatos indicados pela milcia. Em muitos casos, os chefes de milcias so os prprios candidatos a cargos polticos do legislativo estadual. O mapa eleitoral da eleio de 2008, apresentado pela CPI das Milcias, mostra que regies dominadas por esses grupos tm correlao direta com candidatos eleitos e que foram indiciados por envolvimento com as milcias.17 Alguns polticos, entre eles vereadores e deputados estaduais, aparecem como indiciados no relatrio final da CPI das Milcias por envolvimento com esses grupos e favorecimento poltico pelos currais eleitorais [controle eleitoral de algumas reas da cidade]. Esse controle realizado tambm pela prtica de clientelismo, em centros sociais criados por esses polticos ou pessoas envolvidas com milcias para atender os

    14 ALERJ.Relatrio Final da Comisso Parlamentar de Inqurito destinada a investigar a ao de Milcias

    no mbito do estado do Rio de Janeiro. Novembro, 2008. 15

    O Globo on line. 14/02/2009. Jovens trocam banco escolar por de Kombis das Milcias da Zona Oeste. Disponvel em: http://oglobo.globo.com/rio/mat/2009/02/14/jovens-trocam-banco-escolar-por-de-kombis-das-milicias-na-zona-oeste-754416305.asp 16

    (ALERJ, P.123-124) 17

    Idem

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    moradores de comunidades pobres, prestando um servio assistencialista ou fazendo aes no espao pblico de responsabilidade do Estado.

    Existem representantes polticos que foram presos por chefiar esses grupos criminosos. Em 2009. O deputado estadual do Rio de Janeiro, Natalino Jos Guimares (PMDB) e o seu irmo, o vereador Jernimo Guimares Filho (DEM), foram condenados a 10 anos e 6 meses de priso pela juza Alessandra de Arajo Bilac Moreira Pinto, no dia 10 de maro, por formao de quadrilha armada. Outros polticos citados pela CPI das Milcias por envolvimento nesses grupos so: Josivaldo Francisco da Cruz (DEM), conhecido como Nadinho, vereador e que tem grande concentrao de votos na localidade de Rio das Pedras, Zona Oeste da cidade; Cristiano Giro Matias (PTC) foi candidato a vereador em 2008 e no se elegeu. Ele acusado de comandar uma milcia na Gardnia Azul tambm na Zona Oeste.

    O relatrio final da Comisso Parlamentar de Inqurito (CPI) pede ao Tribunal Regional Eleitoral (TRE) a adoo de medidas preventivas enfticas nas futuras eleies, assim como estudos comparativos dos padres desviantes dos perfis de votao de todos os candidatos18. J ao Ministrio Pblico Eleitoral solicita que investigue com rigor, a partir dos indcios levantados pela CPI, a relao de alguns candidatos eleitos com as milcias.

    A participao da cpula da polcia carioca com atividades ilegais e crime organizado ficou evidente com a priso em flagrante, realizada pela Polcia Federal, de lvaro Lins, ex-chefe da Polcia Civil, no perodo de 2000 a 2006, e ex-deputado estadual pelo PMDB, alm de outros membros da polcia civil no dia 29 de maio de 2008. Foram denunciados por envolvimento em corrupo, lavagem de dinheiro, formao de quadrilha armada, corrupo passiva e facilitao ao contrabando. lvaro Lins teve cassado seu mandato da Assemblia Legislativa do Rio de Janeiro em 11 de agosto de 2008, por quebra de decoro parlamentar com base nas denncias da PF. Depois da cassao do mandato parlamentar ele foi novamente preso. O relatrio da PF aponta ligao do deputado lvaro Lins com milcia no estado19. Em 11 de maro de 2009, o ex-parlamentar foi demitido da Polcia Civil em decorrncia dos crimes relatados20.

    No dia 28 de outubro de 2008, Ricardo Teixeira Cruz, ex-policial e conhecido como matador da milcia chamada de Liga da Justia fugiu da priso de segurana mxima pela porta da frente21. Existem denncias de que sua fuga teria sido facilitada por pagamento de R$ 2 milhes para agentes penitencirios e outros servidores pblicos. Aps sua fuga, vrios assassinatos aconteceram na rea de Campo Grande, que dominada pela milcia identificada como Liga da Justia. Esses crimes tm relao direta com a fuga do criminoso e a sua atuao na conquista de territrio na cidade do Rio de Janeiro e a explorao econmica do transporte alternativo, que ainda no regulamentado pelo Estado22.

    18 ALERJ, p. 110.

    19 Agncia Brasil. 30 de maio de 2008. Deputado lvaro Lins solto depois de determinao da

    Assemblia Legislativa do Rio. Disponvel em: http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2008/05/30/materia.2008-05-30.9597920800/view 20

    G1. 11 de maro de 2009. lvaro Lins demitido da polcia civil. Disponvel em: http://g1.globo.com/Noticias/Rio/0,,MUL1038964-5606,00.html 21

    Extra on line. 28 de outubro de 2008. Ricardo Bataman foge do presdio Bangu 8. Disponvel em: http://extra.globo.com/geral/casodepolicia/post.asp?t=ricardo_batman_foge_do_presidio_bangu_8&cod_Post=136202&a=443 22

    O Relatrio da CPI das Milcias afirma: o transporte alternativo, quase 15 anos aps o seu surgimento, terra sem lei. (ALERJ, p.112).

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    Autoridades pblicas que investigam a ao de grupos de extermnio esto sendo ameaadas de morte. O deputado estadual Marcelo Freixo, presidente da CPI das Milcias e da Comisso de Direitos Humanos da Assemblia Legislativa do Rio de Janeiro, assim como outras pessoas esto sendo ameaadas por integrantes das milcias. Esse tambm o caso de Vincius George de Oliveira, delegado da polcia civil e Marcus Neves, delegado de polcia civil que investigou as milcias em Campo Grande na 35 DP. Algumas denncias chegaram pela Disque-Milcias, mecanismo criado pela CPI assim que ela foi instalada. Foram recebidas 1.162 denncias no perodo de 30 de junho a 31 de outubro de 2008.

    Os dados da Secretaria de Segurana Pblica demonstram que as maiores taxas de homicdios dolosos esto concentradas na Zona Norte e Oeste da cidade. No ano de 2008, foram 955 casos na Zona Oeste e 962 casos de homicdio na Zona Norte. No mesmo perodo, foram notificados 50 casos na Zona Sul23.

    Atualmente, os grupos de milicianos protagonizam conflito armado entre faces na disputa por territrios. Os nmeros da Segurana Pblica mostram que houve aumento no nmero de homicdios nessas reas em disputa e a mdia pblica, cada vez mais, fatos relacionados a essa temtica. importante frisar que esses grupos armados dominam reas pobres da cidade, que tem escassos equipamentos pblicos e presena efetiva do estado com polticas pblicas. Isso evidencia que grandes reas da cidade esto sendo loteadas e foram entregues pelo prprio estado a esses grupos criminosos. Os moradores dessas localidades esto submetidos a um poder extremamente repressivo e violento que controla economicamente essas reas mais empobrecidas da cidade e da retiram sua fora para criar um projeto poltico e de poder.

    1.d) Criminalizao da Cultura Popular

    A arte no um espelho para refletir o mundo, mas um martelo para forj-lo

    (Wladimir Maiakovski)

    Podem me prender Podem me bater

    Podem, at deixar-me sem comer Que eu no mudo de opinio

    Daqui do morro Eu no saio, no

    Se no tem gua Eu furo um poo

    Se no tem carne Eu compro um osso

    E ponho na sopa E deixa andar

    Fale de mim quem quiser falar Aqui eu no pago aluguel

    Se eu morrer amanh, seu doutor Estou pertinho do cu

    (Opinio, Z Ketti)

    Na histria brasileira a criminalizao da cultura popular sempre esteve presente como uma das principais formas de criminalizao dos pobres. Por muito tempo a capoeira,

    23 Instituto de Segurana Pblica. Disponvel em: www.isp.rj.gov.br

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    cultura brasileira produzida pelos escravos vindos da frica, foi conduta tipificada no Cdigo Penal, perdurando esta poltica criminal at o incio do sculo XX. Da mesma maneira, o samba, gnero musical criado pelos brasileiros negros a partir da sntese das tradies musicais africanas com as influncias da realidade brasileira, esteve permanentemente perseguido pela poltica criminal de nosso pas.

    Por outro lado, ao mesmo passo em que os agitadores culturais populares eram submetidos ao tratamento mais discriminatrio por parte do Poder Pblico que os identifica a partir de esteretipos que incluem elementos da pobreza e daquela cultura por eles desenvolvidos sempre foi possvel perceber a utilizao de formas culturais populares em publicidades e campanhas polticas. Sem dvida, o reconhecimento do potencial comunicativo de formas lingusticas criadas pelo prprio pblico-alvo das abordagens governamentais. A pergunta que se coloca, portanto, : por que a cultura popular alvo de represso?

    Para esta pergunta, podemos reivindicar a origem da palavra cultura. Cultura originalmente diz respeito a cultivo da terra. Hoje, cultura pode ser simplificadamente definido como modo de vida. Neste sentido, quando falamos em cultura popular, falamos na forma como o indivduo interage com a realidade onde ele est inserido, de maneira dialtica, sendo formado por influncia desta cultura, mas tambm produzindo manifestaes culturais que vo influenciar a realidade na qual ele est mergulhado.

    O que se come, e como se come, tem a ver com cultura. O que se bebe e como se bebe, tambm. O mesmo pode ser dito quanto s vestimentas, forma de morar, de se relacionar, de pensar o mundo e de agir sobre ele. neste ponto que queremos chegar.

    No Rio de Janeiro, a histria comprova que os pobres no s foram limados do foco das polticas pblicas garantidoras de direitos, como foram historicamente agredidos e expulsos de seus locais de origem. Muitas reas hoje consideradas nobres na cidade eram ocupadas por pobres arrancados de l pelas polticas urbanas higienistas. Assim ocorreu em todo o Centro da cidade. Assim ocorreu na Lagoa Rodrigo de Freitas. Assim os pobres foram jogados para os subrbios ou ocuparam as encostas e resistiram nas favelas.

    Ora, uma cidade como a nossa remete a uma produo cultural que d respostas diviso produzida pelo tratamento concedido a seus cidados. natural que a cultura popular produza em alguma medida uma leitura crtica dessa realidade. Portanto, a criminalizao da cultura popular significa mais do que o cerceamento ao direito ao lazer e ao livre exerccio profissional. A criminalizao da cultura popular significa a cassao de todo o direito de conhecer a prpria histria, de pensar a prpria realidade e de propor formas comunicativas que coesionem a sociedade em direo a um modo de vida mais prximo daquilo que a prpria sociedade quer.

    Nesta prxima parte do relatrio, vamos apresentar alguns casos de criminalizao da cultura popular no Rio de Janeiro.

    CRIMINALIZAO DO FUNK

    Mas no me bate doutor porque eu sou de batalha

    eu acho que o senhor t cometendo uma falha se danamos funk porque somos funkeiros

    da favela carioca flamenguistas brasileiros apanhei do meu pai apanhei da vida

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    apanhei da policia apanhei da mdia quem bate sim se acha certo

    quem apanha t errado mas nem sempre meu senhor as coisas vo por esse lado

    violncia so gera violncia irmo quero paz quero festa funk do povo

    ja cansei de ser visto com descriminao l na comunidade funk diverso

    hj eu t na parede ganhando uma geral se eu cantasse outro estilo isso no seria igual

    hoje eu tenho um pedido pra fazer pra Deus pai olhai os irmos filhas e filhos teus prejuzo desemprego diferena social

    classe alta bem classe baixa mal porque tudo que acontece no Rio a culpa cai todinha

    na conta dos funkeiros e se um mar de rosas virar um mar de sangue

    voc pode ter certeza vo botar a culpa no funk (No me bate doutor, MCs Cidinho e Doca)

    Nas ltimas dcadas, o funk carioca tem se destacado no cenrio musical brasileiro. O ritmo criado nas favelas do Rio de Janeiro ganhou projeo, conquistando espao na mdia e atingindo expressiva vendagem na indstria fonogrfica, inclusive em outros pases. Artistas de outros gneros musicais aderiram ao Movimento Funk, entendendo o surgimento do ritmo como conseqncia da realidade popular carioca, com influncias da cultura nordestina, afro-brasileira, do samba, bem como de batidas e montagens provenientes do exterior.

    Contraditoriamente, em um processo parecido com o sofrido pelo samba e pela capoeira no Brasil, o funk passou a ser reprimido to logo o gnero comeou a ficar conhecido. Este processo marcou as letras produzidas pelos MCs e estimulou a criao da APAFunk, uma organizao que congrega profissionais da rea, em torno de lemas como Liberdade para todos ns, DJ!.

    Nesse contexto que foi aprovada em 2008 uma lei estadual no Rio de Janeiro que disciplina a realizao de bailes funk e festas rave. As primeiras, festas populares tpicas das favelas cariocas, cuja msica produzida por moradores de favelas e periferias. J as raves so eventos elitizados, importados para o Brasil. Festas to diferentes entre si foram reunidas e tratadas em uma mesma lei por um motivo: o alvo do legislador era, segundo sua prpria justificativa do projeto, combater o trfico de drogas e a violncia.

    O autor do projeto foi cassado ainda no ano passado e hoje est preso pela participao em inmeros ilcitos. Antes de ser deputado estadual pelo partido que governa o Rio h mais de dcada, lvaro Lins j foi policial militar, de cujo cargo foi afastado por corrupo, fez parte da comisso de licitaes do Governo Estadual, foi reprovado em inmeros concursos pblicos na investigao social, e, por fim, acabou tornando-se Delegado de Polcia. Contrariando a prpria legislao brasileira, em dois anos de exerccio do cargo de Delegado, Lins foi promovido a Delegado em final de carreira e nomeado Chefe da Polcia Civil do Estado do Rio de Janeiro pelo ento governador Garotinho. Suas ligaes com ilcitos e com o Poder Poltico fluminense sempre foram explcitas, e sua rea de atuao poltica sempre foi a Segurana Pblica.

    Pois bem, a lei 5265/2008, antes de aprovada, trazia como argumento para sua aprovao a necessidade de impor regras mais firmes ao controle destas festas, j que seria de conhecimento pblico a utizao livre de drogas e a ocorrncia de diversos outros ilcitos penais. Para realizar esse controle, Lins props a vinculao

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    desses eventos aos rgos estatais de Segurana Pblica, condicionando-as ainda a uma srie de exigncias para a realizao das mesmas, de modo a torn-las impossveis de serem realizadas, a no ser por casas de shows com maior arrecadao. A lei foi a ltima proposta de lvaro Lins aprovada antes de sua cassao.

    Apesar de no ter sido a primeira legislao discriminatria aprovada contra o funk, esta lei que hoje vigora tem representado um desastre social. Alm do grande equvoco de tratar a festa como se fosse o prprio problema das drogas, a lei tem gerado grandes obstculos para a efetivao de inmeros direitos fundamentais, todos consagrados na Constituio Federal brasileira. A comear pelo direito ao acesso cultura, positivado nos artigos 215 e 216 da Carta Magna, passando pela agresso liberdade de manifestao artstica independente de censura ou licena, chegando inviabilizar o livre exerccio da atividade profissional de DJs, MCs e demais profissionais do funk, a lei de Lins tem massacrado as favelas e periferias do Rio de Janeiro.

    No entanto, no somente a Lei 5265/2008 que tem impulsionado a criminalizao do funk carioca. Na verdade, como dito no incio deste tpico, a prtica poltica dos prprios agentes estatais de Segurana Pblica muitas vezes incidem de maneira ainda mais agressiva do que a prpria lei de lvaro Lins.

    Importante dizer que a associao do funk ao trfico se mostra frgil, uma vez que o funk o gnero musical mais popular entre os jovens do Rio de Janeiro. Isso significa que pode ser associado a qualquer coisa que esteja associado tambm juventude carioca. Por outro lado, o funk tem representado a linguagem mais acessvel maior parte dos jovens pobres, j que, at mesmo pelas suas origens, pode ser produzido, reproduzido, entendido e desenvolvido independentemente de escolaridade ou acesso polticas pblicas. Por esse motivo que podemos encontrar inmeras letras de funk crticas poltica, realidade social, desigualdade, polcia e pregando um mundo diferente do que a est.

    ALGUNS CASOS EMBLEMTICOS

    i) DJ TOJO TRS RIOS

    Em Trs Rios, municpio do Estado do Rio de Janeiro, ocorreu o caso mais forte de perseguio institucionalizada ao funk. O DJ Tojo, conhecido por trabalhar com a Equipe Choque de Monstro, ao solicitar o Nada a Opor da Polcia Militar para a realizao de festa de rotina, recebeu ofcio, por escrito, assinado pelo Comandante do Batalho, dizendo: concedo o Nada a Opor, desde que seja observada a proibio de tocar msicas do tipo FUNK.

    Tal arbitrariedade no se baseava em nenhuma legislao vigente, nem mesmo na lei 5265/2008, j que esta no proibe a execuo de funk em festas. O Comandante do Batalho se baseava simplesmente na sua prpria deciso de que ali, em sua rea o funk estava proibido. Assim, outros ofcios foram emitidos com o mesmo teor em outras oportunidades.

    A partir de um determinado momento o Comandante intensificou os ataques. Em festa organizada pelo DJ Tojo, o Comandante no s indeferiu o Nada a Opor sem respaldo objetivo, como enquadrou a festa pretendida na categoria de baile funk. Tratava-se, no entanto, da Festa dos Ritmos, que iria tocar todos os ritmos, inclusive o

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    funk. O Comandante ignorou inclusive que a atrao principal da festa seria um grupo de Pagode.

    No satisfeito, o Comandante articulou ao na justia para conseguir liminar impedindo a realizao da festa, j que a proibira a menos de 24 horas do horrio que havia sido divulgado para seu incio. Assim, conseguiu em deciso da Juza da comarca competente a deciso proibindo a festa. Em recurso s instncias superiores, a liminar foi mantida monocraticamente pelo desembargador em exerccio.

    O caso preocupa em funo da total ausncia de respaldo legal para as decises que foram tomadas. As justificativasdas autoridades julgadoras demonstram que tais decises foram baseadas exclusivamente no preconceito que possuem com relao ao gnero musical nascido nas favelas cariocas.

    ii) O FUNK PROIBIDO PELA POLICIA COMUNITRIA

    H cerca de seis meses ocupado pela polcia militar, a comunidade do Santa Marta, em Botafogo, Zona Sul do Rio de Janeiro, est proibida de promover festas em que o funk seja executado. A proibio expressa desde o comeo da operao, diretamente da Capit Priscila, que comanda o policiamento da rea e a justifica a medida associando o funk ao trfico de drogas.

    Na Cidade de Deus, Zona Oeste, outra comunidade onde o mesmo modelo est sendo implementado, a mesma medida foi tomada, sob a mesma alegao.

    RECOMENDA-SE:

    1) Solidariedade s atividades da Associao de Profissionais e Amigos do Funk - APAFunk;

    2) Pressionar o governo do Estado, o secretrio de segurana e o comando local da PM no sentido de coibir aes de perseguio ao Funk e aos funkeiros;

    3) Solicitar a liberao dos bailes funk no Estado por parte das autoridades pblicas, compreendendo-a como uma atividade de lazer e cultural, bem como as demais atividades culturais na favela;

    4) Apoiar o Projeto de Lei de autoria do Deputado Marcelo Freixo em parceria com o deputado Wagner Montes, que reconhece o funk como movimento cultural de carter popular, a ser respeitado , protegido e fomentado pelo Poder Pblico;

    5) Apoiar o Projeto de Lei de autoria do Deputado Marcelo Freixo em coautoria com Paulo Melo, que prope a revogao imediata da lei 5265/2008;

    6) Denunciar publicamente o processo de criminalizao do funk em curso no Rio de Janeiro como um processo que produz seqelas graves na liberdade de expresso, de produo cultural, de exerccio da profisso, de acesso aos bens culturais e de reunio para fins pacficos;

    7) Articular via Ministrio Pblico e/ou Defensoria Pblica Ao Popular ou outra forma jurdica mais adequada, que vise combater medidas arbitrrias de proibio realizao de quaisquer eventos culturais pblicos em qualquer lugar da cidade do Rio de Janeiro.

    PAGORAP PROIBIDO PELA POLCIA COMUNITRIA

    No dia 25 de abril de 2009, o evento chamado PAGORAP uma juno de pagode com Rap que acontecia semanalmente no Santa Marta, foi proibido a partir de uma abordagem truculenta da polcia comunitria local.

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    Por volta de trs horas da madrugada diversos moradores presentes na atividade foram surpreendidos pela presena de 10 policiais militares armados, inclusive com fuzil, ameaando a todos aqueles que estavam no local. A atividade foi interrompida naquele momento e, posteriormente, oficialmente cancelada pela capit da PM responsvel pelo policiamento da localidade, sob o argumento de que seria uma atividade aonde se praticava o narcotrfico. Para piorar, logo aps a deciso, a capit proibiu a realizao de qualquer evento cultural pblico na comunidade.

    A atividade Pagorap um evento cultural entre vrios outros promovidos pelo grupo Viso da Favela Brasil24, que ocorria semanalmente e gratuitamente no bar conhecido como bar do Z baixinho. Mesclando apresentaes de pagode e rap, era um evento muitssimo freqentado pela comunidade, especialmente por jovens, e no tinha ocorrncias de violncia e brigas.

    Um vdeo gravado no final da ao derradeira demonstra a ironia e deboche de um dos PMS que sugeriu que aquelas imagens fossem postadas no Youtube. No vdeo ainda possvel verificar a presena de dois policiais se identificao, uma clara violao da regras de ao das polcias, j que nas normas vigentes o policial deve estar sempre identificado e, quando solicitado, deve apresentar sua carteira funcional. Alm disso, a abordagem truculenta com xingamentos e empurres fere a dignidade humana e, portanto, normas contidas na Constituio Brasileira, no cdigo de processo penal, no cdigo penal, no ECA, na Lei de tortura e em outras leis em vigncia.

    No que tange forma de ao e a argumentao utilizada para proibir o evento PAGORAP, identificamos um objetivo argumento criminalizante e de vinculao s atividades ilcitas. Tanto a abordagem policial quanto a proibio do evento podem ser considerados exemplos da criminalizao da cultura e de violao das leis e regras institudas para que se faa valer os direitos humanos25.

    Ao contrrio de colocar as imagens em pblico, as atitudes tomadas pelo organizador do evento foram:

    1) Entregar uma cpia capit da polcia local exigindo providncias da mesma;

    2) Encaminhar Comisso de Defesa dos Direitos Humanos e da Cidadania da ALERJ um exemplar do vdeo;

    3) Denunciar publicamente a truculncia da ao e os equvocos dos argumentos que criminalizam a atividade, que, at ento, no passava de um espao de cultura e lazer no Santa Marta.

    4) Questionar a postura abusiva da polcia ao proibir a realizao de qualquer evento cultural pblico na comunidade, baseada nos mesmos argumentos equivocados direcionados ao PagoRap.

    AMEAAS AO RAPPER FIELL

    24 Outras atividades organizadas pelo Viso da Favela Brasil: Pintando o Morro, Hip-Hop Santa Martha,

    Poesia no Morro, Sesso Santa Marta, Ncleo de Cinema Cria Filmes. 25

    A importncia das leis e regras institudas no se pode negar, especialmente quando conferem universalidade ao tratamento dos agentes do Estado. Porm, sua existncia no pode ocultar a ao prtica do Estado e as constantes violaes dessas prprias leis to recorrente nas abordagens policiais no Rio de Janeiro e do pas, em particular com moradores de favelas e comunidades que se constituem num perodo de recrudescente criminalizao como rarssimo objeto de acesso.

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    O rapper Fiell, produtor dos eventos culturais organizados pelo grupo viso da favela Brasil, vem se destacando como um importante defensor dos direitos humanos na comunidade do Santa Marta tanto a partir de sua interlocuo com as organizaes de direitos humanos, como pela sua disposio de dilogo com o comando da polcia comunitria local.

    No dia 25 de abril de 2009, no entanto, no momento da proibio do evento Pagorap, o rapper recebeu ameaas de um dos cabos que estava participando da ao, que declarou: voc virou meu inimigo daqui para frente.

    Uma semana depois, no dia 02/05 quando retornava para casa, o Rapper foi parado em frente a blazer permanente da PM que fica na esquina da Rua So Clemente com Marechal Francisco Moura. Fiell estava acompanhado por mais dois amigos, um deles membro da equipe da comisso de direitos humanos da ALERJ que testemunhou a minuciosa revista feita pelo policial em Fiell.

    O procedimento da revista foi absolutamente diferenciado uma vez que aos acompanhantes de Fiell s foi feita uma revista superficial, enquanto, no rapper, foi feita uma minuciosa revista da bolsa, do casaco, do bon e de todos os seus pertences, de seu corpo e foi solicitada sua documentao. Alm disso, ao perguntar o porqu daquela revista uma vez que se supe que policiais permanentemente lotados naquele policiamento j teriam tempo suficiente de conhecer sua conduta como liderana e de qual suspeita versava sobre ele, o policial respondeu: Voc muito cheio de marra e j sabemos quem voc . Est bagunando o morro e fazendo apologia. Ao responder, Fiell afirmou aquilo era uma acusao descabida j que ele trabalha a nove anos de carteira assinada e foi surpreendido pela explcita ameaa do policial: sua sorte que eu sou da polcia comunitria, se no eu te colocava no seu devido lugar.

    As revistas policiais devem ocorrer de forma que no se constranja a pessoa revistada e os policiais no podem parar pessoas porque acham que so suspeitas, uma vez que isso incorre em explcito preconceito. Se no houver fundada suspeita, no se pode para uma pessoa porque ela mora em uma favela ou negra, ou se veste de forma suspeita. Constitui-se ainda como abuso de autoridade e injria levantar falsas e infundadas suspeitas contra quem quer que seja, e deve-se tratar com respeito a pessoa que est sendo revistada. Todas essas arbitrariedades podem ser registradas com o exemplo da revista procedida em Fiell.

    A revista feita em Fiell no pode, no entanto, ser encarada fora do contexto da criminalizao da atividade Pagorap ocorrida na semana anterior. Em uma prvia interpretao possvel afirmar que est em curso um processo criminalizante de um dos principais lderes do local. O mais grave ainda que Fiell sofreu claras ameaas de dois agentes da polcia que est permanentemente na comunidade, o que vem lhe causando medo e insegurana.

    Quais providncias foram tomadas at o momento:

    1) A denncia foi assumida institucionalmente pela Justia Global, CDDH-Petrpolis e Comisso de Defesa dos Direitos Humanos e da Cidadania da ALERJ que faro uma reunio com capita do local no sentido de inibir quaisquer ameaa ou atentado por parte da polcia local;

    2) As ameaas foram registradas na corregedoria da Polcia Militar; 3) Foram exigidas providncias imediatas no sentido de inibir e coibir esse tipo de

    ao;

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    4) Fiell deu entrevistas imprensa no sentido de publicizar as ameaas sofridas.

    RECOMENDA-SE:

    1) Solidariedade s atividades do rapper Fiell; 2) Pressionar o governo do Estado, o secretrio de segurana e o comando local da PM no sentido de coibir aes desse tipo; inibir as revistas vexatrias baseadas em infundadas suspeitas; liberar as atividades culturais, que se constituem como um direito ao lazer, matria importante da declarao dos direitos humanos; e que se garanta a convivncia com segurana daqueles que fazem trabalhos e militncia na comunidade. 3) Solicitar a liberao da atividade PAGORAP, compreendendo-a como uma atividade de lazer e cultural, bem como as demais atividades culturais na favela; 4) Solicitar a incluso, caso se d continuidade a qualquer tipo de intimidao, do Rapper Fiell no Programa de Defensores dos Direitos Humanos.

    4. CRIMINALIZAO DO GRAFFITI

    No dia 9 de abril, o jornal O Dia, veculo da grande imprensa carioca, ao noticiar uma operao policial ocorrida na vspera em trs comunidades de Costa Barros, deu destaque a um grafite de autoria do coletivo de Hip Hop Lutarmada, tratando-o como uma apologia ao crime. O grafite traz a imagem de um rapaz de touca ninja, sem camisa, descalo e com duas pistolas nas mos, ao lado da inscrio Projeto Primeiro Emprego, numa aluso falta de perspectiva que acomete boa parte da juventude

    favelada, que acabaria empurra rumo criminalidade antes mesmo de esses jovens terem o seu primeiro contato com o mercado formal de trabalho.

    Essa abordagem miditica induziu no s os leitores, como outros rgos jornalsticos, e por conseqncia, seus espectadores, a uma leitura criminalizante da arte popular do grafite, parte da cultura Hip Hop. Como se no bastasse toda a opresso racial, poltica e de classe, vivida pela juventude pobre do Rio de Janeiro, agora a liberdade de expresso tambm vem sendo atingida nesse processo que criminaliza as vtimas da pobreza.

    Feito o contato com o autor da reportagem, este demonstrou seu desprezo pela tica de sua profisso. Respondeu afirmando que se o grafite estivesse na praia de Copacabana seria entendido como uma denncia, mas como foi numa comunidade violenta como a Quitanda, o grafite funciona como apologia ao crime. Tal afirmativa demonstra perigosamente a seletividade no tratamento concedido arte. A arte como crnica social sempre existiu e no d sinais de extino, porm, conforme demonstra a afirmativa do prprio autor da reportagem, o tratamento que ela recebe pode ir de um extremo ao oposto dependendo da sua origem.

    RECOMENDA-SE:

    1) Questionar a utilizao arbitrria do poder miditico no caso em tela, para tentar pressionar por uma prtica mais respeitosa, tica, no criminalizante e no discriminatria.

    2) Estudar a viabilidade de uma ao de direito de resposta no mesmo jornal.

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    1.e) Choque de Ordem e a criminalizao da pobreza

    O choque de ordem, em vigor desde o dia 5 de janeiro, tem por objetivo realizar operaes de represso a vendedores ambulantes, flanelinhas, moradores de rua, construes irregulares e publicidade no autorizada. Tem no comando das aes o Secretrio Especial de Ordem Pblica, Rodrigo Bethlem, mobilizando uma equipe de cerca de 2.000 servidores formada de guardas municipais, PMS, fiscais e operrios. Em 11 de maio, a Secretaria de Ordem Pblica26 do Rio divulgou o resultado dos cinco meses da operao choque de ordem. O termo convencionalmente utilizado pelo poder pblico para caracterizar as aes combate a desordem urbana. No entanto, a autorizao para ao coletiva do Choque de ordem tem consistido em tratar diversos casos em uma operao, violando, coletivamente, o exerccio muitas vezes legal da profisso informal, dos processos judiciais quanto a moradias em ocupaes ou, at mesmo, quanto moradia da populao de rua.

    Ao tratar toda essa gama de problemas estruturais originados pela extrema desigualdade social como desordem urbana, o poder pblico evidencia que no enfrentar as reais causas para alterar a realidade. Ao contrrio, opta pela adoo de uma poltica que criminaliza e penaliza ainda mais a pobreza. A lgica expressa nas aes da operao e nas declaraes das autoridades demonstra que a idia de limpeza social e tnica volta tona com o pretexto de promover "ordem" e "segurana" para o espao pblico, ao custo da eliminao de todos os direitos dos mais pobres, nesse caso moradia e, principalmente, ao trabalho.

    Apesar de o Choque de Ordem ter uma abrangncia de ao em todo o municpio do Rio, suas aes so, majoritariamente, concentradas em territrios nobres como Zona Sul, Barra da Tijuca, Recreio e Centro, reas das maiores concentraes de riqueza desta cidade.

    No presente relatrio vamos nos ater questo da represso populao de rua, em especial crianas, adolescentes e jovens, destacando as chamadas operaes de recolhimento deste pblico.

    CHOQUE DE ORDEM - A reproduo de uma poltica de governo que viola direitos e criminaliza a pobreza e a juventude27

    26 A Secretaria de Ordem Pblica do Rio divulgou um balano das aes de combate desordem urbana

    desde o incio do ano. De janeiro a abril, o Choque de Ordem j fez 140 aes de demolio de obras irregulares, quase 215 mil veculos foram multados, mais de sete mil rebocados e 76 transportes piratas foram retirados das ruas. E no combate ao comrcio ambulante, os fiscais apreenderam quase 154 mil produtos no perecveis e cerca de 30 toneladas de mercadorias e carrocinhas que estavam em depsitos clandestinos. (fonte: http://rjtv.globo.com/Jornalismo/RJTV/0,,MUL1115956-9101,00.html)

    27 Este Relatrio foi produzido pela Rede Rio Criana, uma articulao de referncia no trabalho com

    crianas e adolescentes em situao de rua, atualmente formada por 15 ONGs: Associao Beneficente So Martinho; Associao Beneficente AMAR; Associao Brasileira Terra dos Homens (ABTH); Banco da Providncia; Centro de Teatro do Oprimido (CTO-Rio); Childhope Brasil; Criana Rio; Excola; Fondation Terre des hommes (Tdh); Fundao Bento Rubio; Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua; REMER; Organizao de Direitos Humanos Projeto Legal; Projeto Social Crescer e Viver e Se Essa Rua Fosse Minha.

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    Historicamente a questo da infncia como problema social no Brasil aparece como conseqncia direta da escravido. Notadamente, a histria marcada por um processo altamente excludente e nele, as crianas, efetivamente as negras e pobres, tem sido o segmento mais vitimado.

    A retirada compulsria da populao de rua, destacando-se as chamadas operaes de recolhimento, tem sido uma poltica de governo que se perpetua desde o sculo XIX. Das polticas que passaram por ideais eugnicos, higienistas e de segurana pblica, o recolhimento compulsrio e sistemtico deste segmento da populao pressupe um contedo subjetivo discriminatrio, classista / elitista de dominao.