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RELATÓRIO TÉCNICO-CIENTÍFICOSOBRE OS REMANESCENTES DA COMUNIDADE DE QUILOMBO DE
MORRO SECO/IGUAPE-SP
Março/2006
2
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 03
2. A ATUALIZAÇÃO DO CONCEITO DE QUILOMBO: O PRIMADO DA IDENTIDADE E
DO TERRITÓRIO NAS DEFINIÇÕES TEÓRICAS ...........................................................05
3. IGUAPE: ASPECTOS DA OCUPAÇÃO REGIONAL E CARACTERÍSTICAS DO
MUNICÍPIO............................................................................... ........................................ 14
4. A COMUNIDADE MORRO SECO: ORIGEM E MODO DE VIDA TRADICIONAL ...... 22
4.1. A constituição da comunidade Morro Seco................................................................................................ 224.2. As atividades econômicas: apogeu e crise ................................................................................................ 254.3. A sociabilidade caipira: os mutirões e o fandango................................................................................... 33
(ANEXO I - Croqui de ocupação histórica
5. AS TRANSFORMAÇÕES NO TERRITÓRIO QUILOMBOLA.......................................... 37
(ANEXO II – Croqui de uso e ocupação atuais
6. MORRO SECO ATUAL: INFRAESTRUTURA, RELAÇÕES POLÍTICAS E
ATIVIDADES ECONÔMICAS .......................................................................................... 42
6.1. Serviços básicos e a interação com o poder público................................................................................. 426.2. O estabelecimento da nova identidade quilombola................................................................................... 46
7. CONCLUSÃO................................................................................................................ 49
8. BIBLIOGRAFIA............................................................................................................. 52
(ANEXO III - Documentação iconográfica - Genealogia da comunidade Morro Seco
- Memorial Descritivo e Planta da área para reconhecimento
3
1. INTRODUÇÃO
Este trabalho apresenta uma série de elementos concernentes à
comunidade denominada Morro Seco, localizada no município de Iguape (região
sul do litoral paulista), com o escopo de estabelecer sua tipificação frente à
condição de Remanescentes de Comunidade de Quilombo, pleiteada pelos
seus integrantes, permitindo-lhes, assim, o direito de usufruir os programas de
desenvolvimento socioeconômico que vêm sendo oferecidos pela Fundação
Instituto de Terras do Estado de São Paulo, bem como reafirmar sua identidade
no processo de interação com outros grupos e instituições.
A comunidade do Morro Seco ocupa as terras que conformam seu
território desde tempos imemoriais, produzindo e reproduzindo ali sua cultura
material e simbólica. Hoje à margem do mercado, praticam a agricultura somente
para subsistência e alimentam expectativas quanto à introdução de novas
atividades econômicas que lhes garantam melhores condições de vida.
Baseado em critérios antropológicos de fundo teórico, este Relatório
Técnico-Científico1 buscou analisar dados advindos tanto da pesquisa direta com
a comunidade quanto de fontes secundárias levantadas por pesquisa documental,
a fim de retratar os aspectos etnológicos que possibilitam a reconstrução da 1 A criação desta categoria de investigação denominada Relatório Técnico Científico, bem como os parâmetros que o norteiam, são resultantes dos esforços do Grupo de Trabalho criado pelo Governo do Estado de São Paulo por meio do Decreto nº 40.723, de 21 de março de 1996, que tinha por objetivo fazer proposições visando a plena aplicabilidade dos dispositivos constitucionais conferentes do direito de propriedade aos remanescentes das comunidades de quilombos em território paulista. Foi integrado por representantes da Secretaria da Justiça e Defesa da Cidadania, Instituto de Terras do Estado de São Paulo “José Gomes da Silva”, Secretaria do Meio Ambiente, Procuradoria Geral do Estado, Secretaria de Governo e Gestão Estratégica, Secretaria de Cultura, Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico, Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra no Estado de São Paulo, Subcomissão do Negro da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil - Secção São Paulo e Fórum Estadual de Entidades Negras. Os trabalhos deste Grupo levaram à criação: a) do Programa de Cooperação Técnica e de Ação Conjunta para identificação, discriminação e legitimação de terras devolutas do Estado ocupadas por remanescentes de comunidades de quilombos visando sua regularização fundiária, implantando medidas sócio-econômicas, ambientais e culturais e b) de um Grupo Gestor para implementação do Programa. O Programa e o Grupo Gestor foram criados por meio do decreto nº 41.774 de 13 de maio de 1997..
4
história da comunidade e o resgate de sua origem étnica e da sua identidade
grupal, esta última fundamentada tanto pelas redes de sociabilidade calcadas no
parentesco e nas relações de trabalho quanto pela relação material e simbólica
que o grupo mantém com a área que ocupa.
Finalmente, é preciso ressaltar que esta reconstituição interpretativa do
modo de vida da comunidade, contemplando suas estratégias de reprodução
econômica, social e cultural, visa, sobretudo, demonstrar a singularidade da
ocupação humana empreendida no espaço físico em questão - não obstante suas
características genéricas de uma população rural tradicional - por tratar-se de um
grupo cujas raízes remontam ao ocaso de uma determinada relação social
historicamente datada, qual seja, a escravidão e, desta feita, constitui-se em
segmento social específico, dotado de uma identidade política portadora de
direitos assegurados constitucionalmente.
Nas palavras de ALMEIDA (1997:125), tal disposição do Estado em
institucionalizar a categoria de populações remanescentes de comunidades de
quilombos “evidencia a tentativa de reconhecimento formal de uma transformação
social considerada como incompleta. A institucionalização incide sobre resíduos e
sobrevivências, revelando as distorções sociais de um processo de abolição da
escravatura limitado, parcial”.
Por conseguinte, tendo em vista que este trabalho atende às
necessidades pontuadas no Decreto Estadual 41.839/98, que regulamenta o artigo
3º da lei n.º 9.757/97, está ele inserido neste contexto de uma política afirmativa
do Estado em relação às comunidades negras rurais que, lograda sua libertação
formal dos senhores brancos e do jugo escravista, ainda anseiam por uma
libertação efetiva que as incorpore de fato ao universo de bem-estar material que
lhes é devido, bem como configure uma nova auto-identificação positiva e plena
de orgulho e cidadania.
5
2. A ATUALIZAÇÃO DO CONCEITO DE QUILOMBO: O PRIMADO DA IDENTIDADE E DO TERRITÓRIO NAS DEFINIÇÕES TEÓRICAS2
O reconhecimento, por parte do Estado, da existência de comunidades
negras rurais como uma categoria social carente de demarcação e regularização
das terras que ocupam longevamente e às quais se convencionou denominar
comunidades remanescentes de quilombos, traz à tona a necessidade de
redimensionar o próprio conceito de quilombo, a fim de abarcar a gama variada de
situações de ocupação de terras por grupos negros e ultrapassar o binômio fuga-
resistência, instaurado no pensamento corrente quando se trata de caracterizar os
quilombos.
Em 1740, reportando-se ao rei de Portugal, o Conselho Ultramarino valeu-
se da seguinte definição de quilombo: “toda habitação de negros fugidos, que
passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos
levantados e nem se achem pilões nele”. Esta caracterização descritiva
perpetuou-se como definição clássica do conceito em questão e influenciou uma
geração de estudiosos da temática quilombola até meados dos anos 70, como
Artur Ramos (1953) e Edson Carneiro (1957). O traço marcadamente comum
entre esses autores é atribuir aos quilombos um tempo histórico passado,
cristalizando sua existência no período em que vigorou a escravidão no Brasil,
além de caracterizarem-nos exclusivamente como expressão da negação do
sistema escravista, aparecendo como espaços de resistência e de isolamento da
população negra.
Embora o trabalho destes autores seja importante e legítimo, ele não
abarca, porém, a diversidade das relações entre escravos e sociedade
escravocrata e nem as diferentes formas pelas quais os grupos negros
apropriaram-se da terra. Flávio dos Santos Gomes (1996a:36), explicita tal
2 Este texto foi elaborado em parceria com as antropólogas Alessandra Schmitt (USP) e Maria Celina Pereira de Carvalho (Unicamp).
6
diversidade ao forjar o conceito de “campo negro”: “uma complexa rede social
permeada por aspectos multifacetados que envolveu , em determinadas regiões
do Brasil, inúmeros movimentos sociais e práticas econômicas com interesses
diversos” .
No entanto, foi a produção científica ainda atada a exegeses restritivas e
pouco plásticas que subsidiou a luta política em torno das reivindicações da
população rural negra que, sofrendo expropriações incessantes, se colocava como
um segmento específico no palco dos movimentos sociais. Desta forma, a
denominação quilombo se impôs no contexto da elaboração da constituição de
19883.
Esta visão reduzida que se tinha das comunidades rurais negras refletia,
na verdade, a “invisibilidade” produzida pela história oficial, cuja ideologia,
propositadamente, ignora os efeitos da escravidão na sociedade brasileira (Neusa
Gusmão, 1996) e, especialmente, os efeitos da inexistência de uma política
governamental que regularizasse as posses de terras de grupos e/ou famílias
negras após a abolição, extremamente comuns à época, conforme comprovam os
estudos de Ciro Cardoso (1987).
Ao fazer a crítica do conceito de quilombo estabelecido pelo Conselho
Ultramarino, Alfredo Wagner de Almeida (1999:14-15) mostra que aquela definição
constitui-se basicamente de cinco elementos: 1) a fuga; 2) uma quantidade
mínima de fugidos; 3) o isolamento geográfico, em locais de difícil acesso e mais
próximos de uma “natureza selvagem” que da chamada civilização; 4) moradia
habitual, referida no termo “rancho”; 5) autoconsumo e capacidade de reprodução,
simbolizados na imagem do pilão de arroz. Para ele, com os instrumentos da
observação etnográfica “se pode reinterpretar criticamente o conceito e asseverar
que a situação de quilombo existe onde há autonomia, existe onde há uma
produção autônoma que não passa pelo grande proprietário ou pelo senhor de
escravos como mediador efetivo, embora simbolicamente tal mediação possa ser
3 Sobre o fortalecimento da organização política dos grupos negros e a incorporação da questão quilombola ao seu rol de reivindicações, v. Flávio dos Santos Gomes (1996b).
7
estrategicamente mantida numa reapropriação do mito do”bom senhor”, tal como
se detecta hoje em algumas situações de aforamento” .
O autor exemplifica situações que contrariam esses cinco elementos da
definição, como o caso do quilombo Frechal, no Maranhão, localizado a cem
metros da casa grande, ou casos onde o quilombo esteve na própria senzala,
representado por formas de produção autônoma dos escravos que poderiam
ocorrer – e de fato ocorriam –, sobretudo em épocas de decadência de ciclos
econômicos, fossem agrícolas ou de mineração. Diversos trabalhos mais recentes
a respeito de comunidades negras com origem mais diretamente relacionada à
escravidão têm demonstrado que a economia interna desses grupos está longe de
representar um aspecto isolado em relação às economias regionais da Colônia, do
Império e da República. Em geral existiu, paralelamente à formação do aparato de
perseguição aos fugitivos, uma rede de informações que ia desde as senzalas até
muitos comerciantes locais. Estes últimos tinham grande interesse na manutenção
desses grupos porque lucravam com as trocas de produtos agrícolas por produtos
que não eram produzidos no interior do quilombo.
Não obstante esta integração das formas mais ou menos autônomas de
atividades produtivas empreendidas pelos escravos à economia geral, é preciso
ressaltar que o trabalho livre sobre a terra não garantiu, de forma alguma, o
acesso dos ex-cativos a ela no momento posterior à Abolição. Ao contrário, a
exclusão do segmento populacional negro em relação à propriedade da terra foi
peremptoriamente estabelecida por meio de uma série de atos do poder legislativo
ao longo do tempo. Ainda durante a escravidão, a Lei de Terras de 1850, veio
substituir o direito à terra calcado na posse por um direito auferido via registros
cartoriais que comprovassem o domínio de uma dada porção de terra4. O direito
legítimo adquirido através da posse efetiva é uma noção do “direito costumeiro”,
4 Segundo Lígia Osório Silva (1996:152-153), a proibição da posse foi o aspecto que mais mereceu atenção “pela importância social que adviria da sua aplicação”. Tornada ilegal a apropriação privada de terras por meio da posse, foram justamente as classes dominantes no campo que se rebelaram contra tal medida –elas próprias mantinham vastas extensões de terras devolutas – e conseguiram um série de concessões junto ao governo imperial. A severidade irrestrita da lei recaiu somente sobre os pequenos posseiros, entre os quais os ex-escravos.
8
que até hoje regeu a relação do campesinato tradicional com a terra, incluindo os
grupos camponeses negros.
Múltiplas formas, amplos conceitos
Como já foi assinalado por outros autores5, os grupos que hoje são
considerados remanescentes de comunidades de quilombos se constituíram a
partir de uma grande diversidade de processos, que incluem as fugas com
ocupação de terras livres e geralmente isoladas, mas também as heranças,
doações, recebimento de terras como pagamento de serviços prestados ao
Estado, simples permanência nas terras que ocupavam e cultivavam no interior
das grandes propriedades, bem como a compra de terras, tanto durante a vigência
do sistema escravocrata quanto após a sua extinção.
Dentro de uma visão ampliada, que considera as diversas origens e
histórias destes grupos, uma denominação também possível para estes
agrupamentos identificados como remanescentes de quilombo seria a de “terras
de preto”, ou “território negro”, tal como é utilizada por vários autores6, que
enfatizam a sua condição de coletividades camponesa, definida pelo
compartilhamento de um território e de uma identidade.
A promulgação da constituição e a necessidade de regulamentação do
Artigo 68 provocaram discussões de cunho técnico e acadêmico7 que levaram a
esta revisão dos conceitos clássicos que dominavam a historiografia sobre a
escravidão, instaurando a relativização e adequação dos critérios para se
conceituar quilombo, de modo que a maioria dos grupos que hoje, efetivamente,
reivindicam a titulação de suas terras, pudesse ser contemplada por esta
5 Ver especialmente Alfredo Wagner Almeida (1987/1988) e Neusa Gusmão (op.cit). 6 Ver Almeida (op.cit.), Gusmão (op.cit.), Andrade, (1988) e Acevedo Marin (1995).7 Especialmente no III Encontro Nacional sobre Sítios Históricos e Monumentos Negros (Goiânia: 1992); na Reunião do Grupo de Trabalho sobre Comunidades Negras Rurais, da Associação Brasileira de Antropologia (Rio de Janeiro, outubro de 1994), e na reunião técnica “Reconhecimento de Terras Quilombolas Incidentes em Domínios Particulares e Áreas de Proteção Ambiental” (São Paulo, abril de 1997).
9
categoria, uma vez demonstrada, por meio de estudos científicos, a existência de
uma identidade social e étnica por eles compartilhada, bem como a antigüidade
da ocupação de suas terras e, ainda, suas “práticas de resistência na manutenção
e reprodução de seus modos de vida característicos num determinado lugar” 8.
Assim, em consonância com o moderno conceito antropológico aqui
disposto, a condição de remanescente de quilombo é também definida de forma
dilatada e enfatiza os elementos identidade e território. Com efeito, o termo em
questão indica: “a situação presente dos segmentos negros em diferentes regiões
e contextos e é utilizado para designar um legado, uma herança cultural e material
que lhe confere uma referência presencial no sentimento de ser e pertencer a um
lugar específico”9.
Este sentimento de pertença a um grupo e a uma terra é uma forma de
expressão da identidade étnica e da territorialidade, construídas sempre em
relação aos outros grupos com os quais os quilombolas se confrontam e se
relacionam.
Estes dois conceitos são fundamentais e estão sempre inter-relacionados
no caso das comunidades negras rurais, pois “a presença e o interesse de
brancos e negros sobre um mesmo espaço físico e social revela, no dizer de
Bandeira, aspectos encobertos das relações raciais” (Gusmão, op.cit.:14). Estes
aspectos encobertos aos quais a autora se refere são a submissão e a
dependência dos grupos negros em relação à sociedade inclusiva.
Território e identidade nos grupos rurais negros
Diversos trabalhos sobre populações camponesas no Brasil têm
demonstrado a importância da relação entre território e parentesco10. Nesta chave,
o acesso á terra é garantido “pela via hereditária, isto quer dizer que alguém tem
direito virtual de ‘dono’ sobre a terra não simplesmente porque é um indivíduo, 8 Cfe. João Pacheco de Oliveira e Eliane Cantarino O’Dwyer. ABA, 1994.9 Garcia, José Milton (Procuradoria do Patrimônio Imobiliário/SP), in Tânia Andrade (1997:47).10 Ver: MOURA,1978; WORTMANN, 1995; PAOLIELO, 1992 e 1999, entre outros.
10
mas porque o é enquanto filho e herdeiro. Na definição da herança igualitária,
assim, está imbricada uma definição estrita das relações de parentesco, seguindo
o critério prioritário da filiação” (Paolielo, 1999: 158).
Assim, parentesco e território, juntos, constituem identidade, na medida
em que os indivíduos estão estruturalmente localizados a partir de sua pertença a
grupos familiares que se relacionam a lugares dentro de um território maior. Se,
por um lado, temos território constituindo identidade de uma forma bastante
estrutural, apoiando-se em estruturas de parentesco, podemos ver que território
também constitui identidade de uma forma bastante fluída, levando em conta a
concepção de F.Barth (1976) de flexibilidade dos grupos étnicos e, sobretudo, a
idéia de que um grupo, confrontado por uma situação histórica peculiar, realça
determinados traços culturais que julga relevantes em tal ocasião. É o caso da
identidade quilombola, construída a partir da necessidade de lutar pela terra ao
longo das últimas duas décadas.
A necessidade de lutar contra fazendeiros e grileiros e contra a construção
de barragens no rio Ribeira de Iguape, que inundariam diversas comunidades,
deixando algumas totalmente submersas, levou muitos desses bairros à
construção da identidade de negros e quilombolas, em decorrência do artigo 68. A
identidade quilombola, até então um corpo estranho para estas comunidades
rurais negras11, passa a significar uma complexa arma nesta batalha desigual pela
sobrevivência material e simbólica.
Estamos, portanto, diante da incorporação de identidades que, em
decorrência de eventos históricos, introduzem novas relações de diferença, as
quais passam a ser fundamentais na luta dessas populações negras pelo direito
11 Este estranhamento inicial é bem ilustrado por um fato sucedido no Vale do Ribeira. Um dos agentes técnicos do Itesp nos contou que, certo dia, ele e alguns colegas foram recebidos por moradores de uma dada comunidade aos gritos de “os quilombos chegaram, os quilombos chegaram”. Nota-se, atualmente, que há uma aceitação maior tanto da caracterização de quilombolas como da condição negra por parte destas comunidades. Isto ocorre, por uma lado, pelos motivos que expressamos acima, ou seja, a instrumentalização política destas categorias forjada na luta pela terra e, por outro, devido a um trabalho de “catequese cultural” realizado pelos setores mais progressistas da Igreja católica que mantêm contato com essas populações.
11
de continuar ocupando e transmitindo às gerações vindouras o território
conformado por diversas gerações de seus antepassados. Assim, na esteira de
Barth, podemos pensar as identidades não como sendo fixas, mas, tomando as
palavras de Boaventura Souza Santos, como “identificações em curso”,
integrantes do processo histórico da modernidade, no qual concorrem velhos e
novos processos de recontextualização e de particularização das identidades
(Boaventura de Souza Santos, 2000). Um processo histórico de resistência,
deflagrado no passado, é evocado para constituir resistência hoje, praticamente
como a reivindicação de uma continuidade desse mesmo processo. A identidade
de negro é colocada como uma relação de diferença calcada na subalternidade e
na diferença de classes. Boaventura S. Santos (op.cit.), ao relacionar identidade e
questões de poder, nos lembra que quem é obrigado a reivindicar uma identidade
encontra-se necessariamente em posição de carência e subordinação.
Ademais, esta submissão é sustentada por representações sociais que
justificam a inferioridade estrutural do grupo minoritário, nas quais podemos
identificar forte disposição racista. É um racismo recalcado, escondido atrás de
“um sistema de valores que [...] tanto inibe manifestações negativas na avaliação
‘do outro’ racial como estimula a apologia da igualdade e da harmonia racial entre
nós” (Borges Pereira, 1996:76). A ocultação do racismo na sociedade brasileira foi
estimulada pelo discurso da democracia racial, da qual Gilberto Freyre é um
grande expoente, na década de 30, e que só começou a ser contestado na
década de 50 por Florestan Fernandes e Oracy Nogueira.
E é a partir dessa posição historicamente desfavorável no que diz respeito
às relações de poder, que comunidades quilombolas vêm lutando pelo direito de
serem agentes de sua própria história. Em tal situação de desigualdade, os grupos
minoritários passam a valorar positivamente seus traços culturais diacríticos e
suas relações coletivas como forma de ajustar-se às pressões sofridas, e é neste
contexto social que constroem sua relação com a terra, tornando-a um território
impregnado de significações relacionadas à resistência cultural. Não é qualquer
terra, mas a terra na qual mantiveram alguma autonomia cultural, social e,
12
conseqüentemente, a auto-estima. Siglia Dória (1985) salienta que a identidade de
grupos rurais negros se constrói sempre numa correlação profunda com o seu
território e é precisamente esta relação que cria e informa o seu direito à terra.
A maior parte destes grupos que hoje vem reivindicar seu direito
constitucional o faz como um último recurso na longa batalha para manterem-se
em suas terras, as quais são alvo de interesse de membros da sociedade
envolvente, em geral grandes proprietários e grileiros, cuja característica essencial
é tratar a terra apenas como mercadoria. José de Souza MARTINS (1991:43-60)
explicita as características dessa relação dos homens com a terra, mediada pelo
capital, em que esta passa a ser “terra de negócio” em oposição à “terra de
trabalho”. Em conseqüência da cobiça que esta lógica de mercado despertou, os
camponeses foram pressionados com expedientes espúrios, tais como o auxílio
do aparato judicial e violência física direta, que agiram no sentido de negar-lhes o
direito de obter o registro legal de suas posses, invariavelmente muito mais
antigas do que o tempo mínimo requerido pela legislação para a sua
transformação em propriedades.
Portanto, não se deve imaginar que estes grupos camponeses negros
tenham resistido em suas terras até os dias de hoje porque ficaram isolados, à
margem da sociedade. Pelo contrário, sempre se relacionaram intensa e
assimetricamente com a sociedade brasileira, resistindo a várias formas de
violência para permanecer em seus territórios ou, ao menos, em parte deles12.
Finalmente, devemos salientar que é devido às considerações teóricas e
às constatações históricas aqui apresentadas que estudiosos das comunidades
negras rurais - e, particularmente, da legislação pertinente à questão quilombola –
têm buscado rediscutir e recaracterizar o conceito de quilombo. Tal intento, ainda
em curso, tende a aprimorar-se quanto mais os organismos responsáveis pela
12 Muitas das comunidades rurais negras já pré-identificadas como remanescentes de quilombo no Estado de São Paulo mantém uma pequena parcela de seus territórios, estando o restante ocupado por fazendeiros ou posseiros, alguns destes últimos com o consentimento dos próprios grupos quilombola; os primeiros, entretanto, invariavelmente chegaram às terras em questão valendo-se da ingenuidade das comunidades ou mesmo da coerção física para apoderar-se dos territórios negros.
13
identificação e reconhecimento das comunidades quilombolas ampliem e otimizem
suas atividades, gerando mais dados que contribuam para o desvendar científico
das lacunas presentes na historiografia nacional no que se refere às comunidades
negras rurais.
14
3. IGUAPE : ASPECTOS DA OCUPAÇÃO REGIONAL E CARACTERÍSTICAS DO MUNICÍPIO
O município de Iguape localiza-se no Vale do Ribeira, mais especificamente
na região denominada Baixada do Ribeira, que compreende ainda os municípios
de Jacupiranga, Cananéia, Eldorado, Juquiá, Pariquera-Açu, Miracatu, Registro,
Sete Barras e Ilha Comprida . Alguns autores destacam Iguape e Cananéia – e
mais recentemente a Ilha Comprida, alçada à categoria de município em 1997,
também poderia ser aí inclusa - como pertencentes à Faixa Litorânea do Vale do
Ribeira (apud Scapin, 1991)13.
Segundo o “Laudo Antropológico do Ministério Público Federal sobre as
comunidades remanescentes de quilombo Sapatu, Nhunguara, André Lopes,
Ivaporunduva, Pedro Cubas, Pilões, Maria Rosa e São Pedro” (LA-MPF), de 1998,
o início da ocupação no Vale do Ribeira de Iguape remonta ao período pré-
colombiano. A partir dos dados fornecidos pelas pesquisas de cunho arqueológico
e passagem para os ameríndios que desciam, no inverno, do planalto para o
litoral, documental, concluiu-se que a região do Ribeira foi, à época, ”uma área de
em busca de pesca, sendo habitada permanentemente por contingentes pouco
numerosos” (LA-MPF:9).
Os grupos indígenas que habitavam a região foram expulsos “de modo
violento e precoce” nesta região, dada a necessidade de proteção do litoral frente
às constantes investidas de estrangeiros – franceses e espanhóis -, ávidos em
pilhar ou mesmo conquistar a costa brasileira (LA-MPF:14). Com efeito, o
povoamento desta área sob os auspícios coloniais empreendeu-se rapidamente: a
ilha de Cananéia, por exemplo, já havia sido elevada à condição de município em
1578.
13 A área mais ampla que abarca todo o Vale do Ribeira compreende 23 municípios. Além dos já citados, temos ainda: Apiaí, Barra do Chapéu, Barra do Turvo, Cajati, Itaóca, Itapirapuã Paulista, Itariri, Juquitiba, Pedro de Toledo, Ribeira, São Lourenço da Serra e Tapiraí.
15
Iguape e Cananéia, situadas estrategicamente uma em cada extremidade
da Ilha Comprida, “funcionaram desde o século XVI como cabeças de ponte para
a penetração em direção ao interior: ambas ligavam-se por mar com outros
centros da capitania de São Vicente e do país” (LA-MPF:15). A atividade
mineradora era preponderante nestes portos e estendeu-se pelo interior na
medida em que eram descobertas jazidas mais ricas em pontos mais afastados da
costa.
Durante dois séculos (XVII-XVIII), a extração do ouro de lavagem conhece
seu período mais profícuo. Embora a “corrida do ouro” no Vale do Ribeira tenha
arrefecido um pouco devido à descoberta das Minas Gerais no século XVII–
muitos proprietários de minas deixaram o Vale do Ribeira em direção à nova
promessa de ouro abundante – houve extração aurífera até as primeiras décadas
do século XIX, devido aos inumeráveis depósitos de ouro de aluvião conhecidos
pela população14.
Com referência à mão-de-obra escrava e sua ligação com a atividade
mineradora, sabemos que “sendo a base da atividade mineradora, a entrada da
mão-de-obra negra em São Paulo já no século XVII, com ênfase a partir da
segunda metade, está ligada às bandeiras de mineração que se expandiram para
o interior do litoral sul. Ao contrário do ocorrido nas outras regiões de São Paulo,
onde a presença de populações negras é associada à cultura do café a partir do
século XIX, o Vale do Ribeira recebeu já no século XVI os primeiros contingentes
negros que foram a mão-de-obra de sustentação para o desenvolvimento da
atividade mineradora. Embora a maior concentração de escravos se desse em
Iguape, porta de entrada pelo Porto dos africanos distribuídos na região,
eles foram levados também às outras localidades situadas Ribeira acima”
(LA-MPF:19-grifo nosso).
O contingente de mão-de-obra empregado na mineração sempre foi
subtilizado na lavoura. Somente a partir do século XVIII, “a lavoura sofreu um
incremento relativamente grande,encontrando condições para a exportação de 14 V. Lourdes CARRIL (1995:64).
16
eventual excedente de produção”. A atividade agrícola passa, então, a adquirir
maior estabilidade, sendo produzidos o milho, o café, a cana-de-açúcar, a
mandioca, o feijão e o fumo (LA-MPF:20-21). No caso da cana-de-açúcar, a
lavoura era ainda um pouco mais incrementada, devido ao fato de a fabricação de
aguardente ter sido uma atividade bastante praticada na região.
No início do século XIX, precisamente a partir de 1809, a monocultura de
arroz desponta como atividade econômica de destaque na região: “Incrementado
pela chegada da família real ao Brasil (...), o consumo de arroz estimulou essa
cultura, que passou a ser realizada em maior escala”. Durante todo o século em
questão, o arroz colhido no Vale era, em sua maior parte, comercializado com
outras províncias, tornando-se o principal produto escoado pelo Porto de Iguape15
(LA-MPF:22).
A cultura do arroz modificou a estrutura da mão-de-obra escrava vigente até
então, provocando considerável diminuição do número de escravos por
proprietário. Uma das razões era a dificuldade em manter plantéis de escravos
nas grandes fazendas frente à escassez de gêneros alimentícios que imperava.
Os pequenos produtores mantinham lavouras de víveres essenciais, mas cada
vez mais buscavam empregar a mão-de-obra disponível na cultura do arroz,
ocasionando uma alta no preço dos alimentos oferecidos em pequena quantidade
no mercado local (LA-MPF:22-24).
Entretanto, na segunda metade do século XIX, a rizicultura entra em crise
devido às oscilações de mercado e pelas dificuldades encontradas para manter e
repor os fatores de produção. A mão-de-obra escrava havia encarecido por conta
da abolição do tráfico (1850), e o contingente existente era disputado
acirradamente pela cafeicultura que, então, dominava o planalto paulista. A
lavoura cafeeira foi responsável, também, por abrir mercados para o arroz de
15 “A importância que o ‘arroz de Iguape’ assumiu no contexto econômico da Província pode ser avaliada pelo crescimento da participação relativa da população da baixada na população provincial (de 3,0% em 1772 para 3,9% em 1828)... Além disso, dos 119 engenhos hidráulicos de beneficiamento de arroz existentes em São Paulo, 100 estavam na região do Ribeira” (José Roberto Zan apud BRANDÃO, 1997:24).
17
outras regiões e para a entrada do produto norte-americano. Ademais, a Baixada
do Ribeira foi colocada à margem tanto da rede ferroviária instalada na província
quanto do incremento de mão-de-obra gerado pela imigração estrangeira, ambas
medidas visando o beneficiamento apenas da cultura cafeeira.
A situação agravou-se nas primeiras três décadas do século XX,
inviabilizando a continuidade da cultura do arroz e lançando o Vale do Ribeira num
período de estagnação econômica. Ademais, “a existência de extensas áreas de
terras devolutas, já no século XIX começou a atrair o interesse de indivíduos que
passaram a ocupar imensas posses com fins especulativos” (ZAN apud
BRANDÃO, op.cit.:25), fato este que contribuiu para que a economia do Vale do
Ribeira não se desenvolvesse em níveis comparáveis aos das outras regiões do
Estado de São Paulo.
Remetendo-nos especificamente à Iguape, sabemos que a gênese
populacional da localidade data aproximadamente da segunda metade do século
XVI. Martim Afonso de Souza, em seu diário de navegação, relata que, ao chegar
na vizinha Cananéia, deparou-se com Mestre Cosme Fernandes, o Bacharel,
acompanhado pelo português Francisco de Chaves e mais cinco ou seis
castelhanos, náufragos ou degredados16. Estes europeus conviveram com os
carijós – grupo indígena do tronco tupi – e iniciaram o povoamento da cidade,
incrementado por outros degredados. Segundo o historiador Ernesto G. YOUNG
(1901a), há provas de que esse mesmo bacharel Cosme Fernandes, um
português degredado em 1502, e seus agregados teriam sido também os
fundadores do primeiro núcleo populacional de Iguape, localizado ao pé de um
monte então denominado “Outeiro do Bacharel”. “(...) é provado que existia uma
povoação ao pé do ‘Oiteiro do Bacharel’ anteriormente ao anno de 1577, anno
este em que [é] aberto um livro de Tombo da Egreja dedicada a Nossa Senhora
das Neves” (op.cit.:226). O povoado teria sido alçado à condição de Vila em anos
16 Ver PAULINO DE ALMEIDA, Antônio (1961-63, Parte III:401-408).
18
anteriores a 1637 (embora muitos historiadores citem o ano de 1654), recebendo o
nome de Villa de Nossa Senhora das Neves de Iguape17.
Como visto anteriormente, a vocação econômica de Iguape cristalizou-se
em dois grandes ciclos: o da mineração de ouro e do arroz. Este primeiro teria
durado “até o descobrimento das Minas Geraes, em o anno de mil seis sentos e
noventa e sete, pouco mais ou menos em que ficou sessando, porque quasi todos
os Mineiros auzentarão d’aqui para as ditas Minas”, conforme Livro de Tombo de
Iguape transcrito por YOUNG (1901b:407). Contudo, o referido historiador nos
mostra que a atividade mineradora persistiu significativamente ao menos até 1780,
embora a Casa de Fundição de Iguape tenha sido fechada em 1763,
especialmente nas minas de Ivaporunduva - bairro que abriga hoje uma
comunidade de remanescente de quilombo já reconhecida. A atividade mineradora
valia-se da mão-de-obra escrava, embora não possamos exibir dados exatos que
certifiquem em que monta.
YOUNG (1901a:349) afirma ser a região um desaguadouro de negros
escravos, vindos nos navios negreiros que aportavam naquelas paragens
costeiras: “É voz geral que esta localidade serviu durante muitos annos para a
introdução de escravos africanos, e, de facto, pelos livros da Câmara pudemos
verificar que haviam freqüentemente troca de correspondencia entre a Camara e
os Juizes de Paz a respeito da chegada de algum negreiro à Ilha do Abrigo.
Porém, podemos suppor que estes avisos eram simplesmente para affastar
suspeitas de connivencia neste trafico, visto como não consta a menor providencia
dada para reprimil-o (...)”.
17 a) YOUNG chega a essa conclusão após analisar um requerimento datado de 8 de dezembro de 1637, em que Francicso de Pontes Vidal pedia para si e seu filho uma sesmaria de terras, identificando-se como morador da referida Villa de Nossa Senhora das Neves de Iguape. Há ainda outros documentos analisados que corroboram essa tese.b) “Em 1938, o prefeito Manoel Honório Fortes, apoiado por uma comissão de historiadores, fixou o nascimento da cidade em 3 de dezembro de 1538, quando o donatário da Capitania teria expedido documento separando o termo de Iguape do de Cananéia” (MACHADO, 1997: 38, extraído de RAMBELLI, 1998).
19
Também no período referente ao ciclo ao arroz, a mão-de-obra escrava era
amplamente utilizada. Em nossas pesquisas no Arquivo do Estado de São Paulo,
encontramos, analisando os Maços de População de Iguape (Caixa 0062/Rolo
73), alguns exemplos interessantes. Em 1815, um único produtor de arroz, o
Capitão-Mor José Antônio Penedo, possuía 63 escravos. Outro, de nome
Bartolomeu da Costa Almeida, possuía 54. YOUNG (op.cit.:350) relata que em
1825, levando-se em conta todo o município de Iguape, que englobava a freguesia
de Xiririca e a região do entorno, que incluía praticamente todo o Baixo Ribeira,
havia uma população de escravos montante a 1183 pessoas, enquanto a
população branca perfazia 2791 pessoas, ou seja, o contingente escravo beirava
os 30% da população total do município.
Curiosamente, o declínio da economia de Iguape inicia-se em decorrência
de sua própria faustosidade e necessidade de expansão. Conforme nos explica o
pesquisador Gilson RAMBELLI (1998):
“A grande produção agrícola, liderada pelo o arroz, exigia uma solução ao transtorno
ocasionado pelo transporte fluvial e/ou terrestre das cargas das embarcações do porto fluvial -
Porto Velho da Ribeira - ao porto marítimo - Porto Grande (ou Porto de Iguape). Pois, ‘os barcos
carregados que desciam o rio Ribeira chegavam a cêrca de 3 quilômetros de Iguape, quando as
tôrres de sua igreja já eram avistadas, para continuar viagem durante ainda muitas horas,
percorrendo mais de 53 quilômetros, enfrentando ondas do Oceano Atlântico, atravessando a
sinuosa barra de Icapara, penetrando no chamado ‘Mar da Ilha’, acompanhando as costas da Ilha
Comprida, até atingir o Pôrto de Iguape. Este longo trajeto representava sem dúvida alguma,
tempo e dinheiro perdidos e perigos inutilmente arrostados’ (GEOBRÁS, 1966: 57).
(...) Em 1827, após anos de discussões, foram finalmente iniciadas as obras de abertura
do canal de comunicação entre o rio Ribeira e o mar. Antes mesmo de a obra ser finalizada,
começaram a aparecer os primeiros problemas pois, à medida que a obra ia crescendo, terrenos
marginais desmoronavam, ‘tragando ruas e casas em uma avalanche incessante, que
transportando volume considerável de material, ia paulatinamente caminhando para assorear o
próprio porto de Iguape e o Mar Pequeno, em um continuado caminhamento rumo ao oceano’
(GEOBRÁS, 1966: 88).
(...) Em termos numéricos, a abertura do Valo Grande, proporcionou um desequilíbrio no
sistema lagunar da região, ‘a quase totalidade do material escavado no Valo e em seu
prolongamento (cerca de 6.000.000 m3) veio depositar-se no mar Pequeno, provocando a
20
formação de extensos bancos arenosos e ilhas, que atualmente entulham um trecho de
aproximadamente 15 km nas imediações da desembocadura do Valo. O material trazido em
suspensão pelas águas do rio Ribeira de Iguape (avaliado em 1.000.000 m3 por ano) também veio
contribuir para o assoreamento sistemático da região, formando alguns bancos de silte e
principalmente decantando nas margens e parte superior dos bancos de areia, origem da maioria
dos mangues hoje existentes’ (GEOBRÁS, 1966: 312).
Além dos problemas provocados pela abertura do Valo Grande, outros fatores ajudam a
caracterizar esta fase econômica de Iguape: 1) o caráter de monocultura do arroz, que obrigava a
população a importar todos os outros víveres; 2) a cultura do arroz era feita nos moldes antigos e
dependia da mão-de-obra escrava; 3) tal cultivo se realizava ‘em áreas ribeirinhas, estando sujeito
a cheias e ao ataque de roedores, o que causava doença aos trabalhadores e principalmente aos
escravos’ (ROCHA, 1996: 25).
(...) O crescente comércio do Porto Grande (Porto de Iguape) foi atingido diretamente
pela abertura do Valo Grande, pois ‘os aluviões do Ribeira, ao invés de serem carregados para sua
barra e em grande parte dispersos pelas águas do mar, passaram a ser transportados por
intermédio do canal artificial, depositando-se no Mar Pequeno de modo a diminuir sensivelmente
as profundidades, com a criação de extensos e rasos bancos arenosos obstruindo o próprio porto e
a barra de Icapara (que inclusive graças às flechas de restingas que se formaram, deslocou-se
centenas de metros para nordeste)’ (Op.cit.: 26 - 27).
Este assoreamento contínuo do mar Pequeno e principalmente da área portuária,
começava a atrapalhar a navegação marítima e impedir a atracação dos navios porto de Iguape.
Para termos uma idéia da situação, ‘por volta de 1.876, os vapores e embarcações à vela já não
conseguiam chegar a menos de 100 metros do ‘Porto Grande’. No início do século XX, os navios
eram obrigados a ficar a mais de um quilômetro de distância, na região do ‘Morro do Espia’’
(GEOBRÁS, 1966: 50).
Neste contexto, não podemos deixar de mencionar que Santos preparara mais uma
“armadilha” ao seu concorrente portuário, caracterizada pela ‘“inauguração da estrada de ferro
Southern São Paulo Railway, que ligava Juquiá a Santos, aliada às condições econômicas de toda
região em franco declínio, condicionada ainda a dificuldades de acesso marítimo cada vez
maiores, fizeram com que os navios fossem desaparecendo do porto de Iguape’ (Op.cit.: 117).
Desta forma, os fatores comentados anteriormente contribuíram em conjunto para o
fortalecimento desse impasse econômico. Pois, “a febre amarela, a malária, as inundações, a
perda da função portuária, a competição do arroz do planalto, o mercado do café deixando o litoral
à margem, a abolição da escravatura, a estrada de ferro que lhe volta as costas, o esvaziamento
de capitais, a falta de líderes (...) são aspectos intimamente relacionados, que conduziram
inexoravelmente Iguape à ruína” (FRANÇA, 1975: 135).
21
Atualmente, o município em tela possui área de 1.981 Km2 e uma
população total de 27.427 pessoas, send0o 21934 na área urbana e 5.493 na área
rural.18. Compõe, com Cananéia e Paranaguá - esta última uma cidade do litoral
norte paranaense - o que chamamos de Complexo Estuarino-Lagunar, formado
por distintos ambientes, como ilhas, lagunas e canais, repletos de formações
típicas das regiões de Mata Atlântica: floresta tropical, mangues, várzeas e
restingas. A variedade ambiental bastante preservada desta região requer
cuidados e desperta atenção em âmbito nacional e internacional. Além da fauna e
da flora peculiares, ainda encontramos muitos sambaquis (sítios arqueológicos) na
paisagem iguapense.
Após o terrível declínio econômico experimentado por Iguape em fins do
século XIX, o município tenta se recuperar até os dias de hoje. Ainda com vocação
agrícola, destaca-se na produção de frutas - especialmente maracujá e banana –
e atividades de criação de búfalos, gado de corte, javalis, capivaras e escargots.
Contudo, o motor da atividade econômica hoje em Cananéia é o turismo,
acrescido de sua variante mais contemporânea, o ecoturismo. Tais atividades são
valorizadas em função do município reunir a um só tempo belezas naturais e
marcos importantes da história nacional19.
18 Fonte (dados de área e demografia): IBGE, 2000.19 Todavia parece haver muito o que se incrementar na infra-estrutura da cidade para que o turismo torne-se de fato uma atividade rentável, embora não se pense em grandes construções ou na invasão de hordas de turistas, já que o modelo desejado é o do ecoturismo e do turismo histórico. Vale ressaltar ainda que parece ser necessário pensar formas de inclusão também das comunidades rurais na atividade turística.
22
4. A COMUNIDADE MORRO SECO: ORIGEM E MODO DE VIDA TRADICIONAL
4.1. A constituição da comunidade Morro Seco
Segundo pudemos apurar, a fundação da comunidade Morro Seco não
obedece a critérios encontrados em outras comunidades de quilombos nas quais
já trabalhamos. Nestas, via de regra, há um ancestral fundador, geralmente
reconhecido como ex-escravo. Em Morro Seco, os informantes mais antigos – Sr.
Bonifácio, de 77 anos e Sr. Armando, de 65 anos – não conseguem se remeter,
em termos genealógicos, para além de seus avós paternos e maternos e não
apresentam nenhuma história a respeito de como seus antepassados chegaram à
área em que nasceram e vivem até agora.
De acordo com o ponto memorial mais longevo alcançado pela comunidade
na construção de sua genealogia, o núcleo familiar mais antigo seria aquele
formado por Joaquim Alves Sabino, sua esposa Maria Constância do Espírito
Santo e seus oito filhos. Um outro núcleo familiar adjacente é aquele formado
por Teobaldino Onório Pereira, sua esposa Rita Modesto Pereira e seus três
filhos.
Grande parte dos moradores atuais da comunidade descende das uniões
formadas pelos filhos desses dois casais-chave. A lembrança dos avós, para Sr.
Bonifácio e Sr. Armando, nos remete vagamente à origem deles. Maria Constância
do Espírito Santo teria ascendência portuguesa enquanto Joaquim Alves Sabino
era negro. Em nossas pesquisas no Arquivo do Estado descobrimos, consultando
os Maços de População, que esse tipo de ligação familiar de homens negros ou
pardos com mulheres brancas era bastante comum na região de Iguape, o que
corrobora a memória dos nossos informantes.
Já Teobaldino Onório Pereira é descrito como “branco”, enquanto Rita
Modesto Pereira era “uma negra bem escura, africana pura, pequenina com pés e
23
orelhas muito grandes, que se casou bem de idade”. Nossos informantes
acreditam que ela “provavelmente” foi escrava.
Existem pouquíssimas listagens populacionais referentes a Iguape no
período em que acreditamos que Rita pudesse estar listada como escrava (1835-
1870, de acordo com nossas aproximações geracionais). Nas duas únicas
listagens disponíveis, as do ano de 1836 e 1846, achamos diversas escravas de
nome Rita com idades mais ou menos compatíveis à idade presumida da Rita que
procurávamos, mas não é possível concluir pela correspondência exata entre uma
dessas escravas e a Rita Modesto Pereira de Morro Seco.
Quando indagados sobre a ligação desses ancestrais com a escravidão,
nossos informantes dizem que esse assunto nunca foi levantado pelos mais
velhos a não ser como um “causo”, uma “falagem”, algo que tanto poderia ser
verdade como pura ficção. Segundo relata o Sr. Bonifácio:
”Com referência ao caso de escravidão, quando meu pai falava de escravidão,
para nós era como se ele tava contando uma história que diz que aconteceu. (...) [Rita,
avó materna] ela contava muita história, mas para nós era como que... nós não guardava
porque tava contando uma coisa que para nós era um negócio de passatempo... eu acho
que uma história, quando a gente conta uma história e a gente tem uma certa noção a
gente segura isso. Agora, quando é uma ‘falagem’ só - porque para nós era uma ‘falagem’
– nós não segura. A razão disto era que nós não tinha estudo para confirmar se isso era
verdade. Por isso que para poder nós dar crédito, era preciso que os nosso pais
contassem aquilo como um caso sério, mas eles não contavam como sério, era como
passatempo. (...) Meu pai contava quantas e quantas histórias que nós tomamos aquilo
como ‘coisa do pé da cinza’, como dizia antes”20.
Com efeito, embora não haja um ‘mito de origem’ da comunidade ligado à
escravidão, é quase um truísmo valer-se de muitos procedimentos para tentar
afirmar uma ascendência escrava para o grupo. Ora, a bem da verdade, é
20 Um “causo” que teria sido contado a Seu Bonifácio pelos seus pais refere-se a um escravo que assassinou seus senhores. Tanto essa história poderia carregar um fundo de verdade que YOUNG (op.cit:364) transcreve uma sentença de morte proferida contra dois escravos que haviam assassinado a família inteira de seus senhores.
24
desnecessário afirmar que negros brasileiros cujos pais não aportaram nestas
terras a passeio após 1889, são todos descendentes de negros cativos.
25
4.2. As atividades econômicas: apogeu e crise
De início, é preciso apresentar as singularidades da economia camponesa
para que se possa compreender o modo de vida da comunidade Morro Seco. Para
tanto, tomamos de empréstimo as considerações expostas no Laudo
Antropológico - já citado no Capítulo 3 -, baseadas, principalmente, nas
proposições do economista russo Alexander V. Chayanov21 , segundo o qual não
se pode compreender as economias camponesas a partir das mesmas chaves
conceituais empregadas no estudo dos empreendimentos econômicos capitalistas
levados a cabo em economias de mercado (LA-MPF:118-122). “Chayanov mostra
como as economias de subsistência, baseadas no trabalho familiar, regem-se por
uma lógica peculiar, periférica aos processos econômicos (e ao instrumental
teórico) da economia capitalista de mercado. Assentando-se no trabalho da
unidade familiar, a economia dos grupos camponeses orienta-se, essencialmente,
para a satisfação das necessidades do grupo doméstico, unidade básica produtora
e consumidora. Daí seu caráter intrinsecamente qualitativo, centrado no
atendimento de demandas culturalmente determinadas, com produtos dotados de
características específicas para a sua satisfação, não necessariamente
intercambiáveis por outros de características diversas. Tal capacidade de
intercâmbio, cuja base – no que tange às relações com a economia de mercado –
é a existência da moeda enquanto meio de troca universal (ou que tende à
universalidade), é bastante restrita em economias de subsistência, uma vez que
apenas parte da esfera produtiva se volta para o mercado e para a obtenção de
dinheiro” (LA-MPF:122-123).
Do mesmo modo, a organização social camponesa baseada nas famílias
como centro de produção e consumo, constrói-se em torno de padrões de
relações sociais marcadamente horizontalizados, baseado no auxílio mútuo e nas
redes de solidariedade vicinal22. Embora não haja uma equalização absoluta das
posições sociais, também não há a relação vertical clássica do capitalismo 21 CHAYANOV, A. V. The Theory of Peasant Economy. 1966, The American Economic Association Translation Series. Published by richard D. Irwin, Inc., Homewood, Illinois.22 Este assunto será abordado com maior profundidade no tópico que se segue (4.3).
26
marcada pela presença, em pólos opostos, de patrões e empregados,
relacionando-se por conta unicamente do trabalho assalariado.
Segundo o Laudo Antropológico, a interface entre as formas de produção
material e da organização social das comunidades rurais determina o conceito de
territorialidade tradicional: “Produção de bens materiais e produção de significados
sociais se entrelaçam, interdependentes e mutuamente determinantes, permitindo
a exploração de recursos naturais e a concomitante produção de vida social
relativamente autônoma frente à economia e às relações sociais características do
Estado-Nação brasileiro” (LA-MPF:124).
Ainda: “A expressão de ambas formas de produção – produção material e
produção de significados culturais – sobre uma porção do espaço geográfico,
constitui o território tradicional, cuja característica de tradicionalidade, em sua face
social, é expressa pelo conjunto distintivo de relações sociais entabuladas por
seus membros (...). Em sua face econômica, esta tradicionalidade se traduz na
impossibilidade de os ocupantes de tais territórios adotarem modernas técnicas de
produção (...) direcionadas ais empreendimentos econômicos de natureza
mercantil, dependentes de inversão de capital e guiando-se pelas regras
econômicas expressas pelas categorias econômicas a que nos referimos
anteriormente, não operacionalizadas nas denominadas economias ‘tradicionais’.
A contrapartida deste processo é uma sociedade cujo fim último é a reprodução
entre seus membros e não a acumulação de bens e de lucro - isto é, a
preservação de modo de vida – o que implica a preservação dos recursos naturais
de seu território, dos quais depende para sobreviver” (LA-MPF:128).
As atividades econômicas desenvolvidas pela comunidade Morro Seco
sempre foram eminentemente agrícolas. As roças de arroz, milho e mandioca
garantiam a subsistência do grupo e também uma renda monetária mediante a
comercialização dos produtos excedentes em escala local.
27
O arroz e a mandioca eram os principais produtos de comercialização,
enquanto o milho era mais utilizado na alimentação das pessoas e da criação de
pequeno porte (galinhas e porcos). Nossos informantes se recordam de um
comprador de arroz de nome Alberico Marietto, que lhes garantia o escoamento
de quase toda a produção; o restante era vendido a outros pequenos
comerciantes. A mandioca, vendida já processada em farinha, era bastante
apreciada e tal produto chegou a ser conhecido como a melhor farinha da região.
Também a criação de animais proporcionava atividades comerciais,
especialmente os rebanhos suínos.
Até 1930 o comércio entre os moradores do Morro Seco e os compradores
da região, mormente das cidades de Iguape e Juquiá, era realizado de maneira
bastante penosa dada a dificuldade de transporte das mercadorias. Era
necessário carregar as canoas em Morro Seco e viajar por cerca de quatro dias
pelo Rio Peropava até atingir Iguape. Com a posterior abertura da estrada, o
comércio se intensificou e outros produtos foram explorados.
A banana passou a ser cultivada em Morro Seco a partir de 1945. O
produto era vendido para intermediários por um valor bastante inferior àquele
auferido pelos grandes bananicultores da região. Todavia, alguma tempo depois,
com o aparecimento da sigatoca – doença da banana que a faz murchar
rapidamente - a produção de banana se inviabilizou, posto que o custo de
prevenção da sigatoca – era necessário borrifar cada cacho com um preparado
oleoso bastante caro e depois ensacá-lo - era demasiado elevado para os
padrões financeiros da comunidade.
A extração do palmito foi uma atividade intensamente desenvolvida pela
comunidade entre 1950 e 1970. Elemento da economia tradicional, além da parte
comestível, toda a árvore do palmito “era utilizada para fazer caibros e ripas para a
estrutura e cobertura das casas, monjolos, chiqueiros feitos pelos moradores” (LA-
MPF:141).
É exatamente nos idos de 1950 que se inicia a extração comercial em larga
escala do palmito no Vale do Ribeira, resultando no estabelecimento de indústrias
28
de beneficiamento em diversos municípios da região. Com o aumento da
demanda pelo palmito, as comunidades rurais passaram a intensificar a extração
de palmito para vendê-lo, in natura, a um atravessador – o palmiteiro - que, por
sua vez, repassava o produto ao comerciante.
Desta atividades, resultaram dois problemas principais: 1) as comunidades,
frente à demanda crescente pelo palmito, aumentaram o extrativismo e
abandonam gradualmente as atividades agrícolas, tornando-se mais dependentes
do mercado para adquirir produtos que antes eram produzidos por elas mesmas e
2) a extração do palmito passou a adquirir caráter predatório, impondo um alto
custo ambiental à floresta. “A extração da parte comestível do palmito implica na
derrubada da palmeira toda, aproveitando-se apenas a ponta da árvore e
desprezando-se todo o resto. Isso faz com que o custo ambiental da atividade seja
desproporcional ao volume da produção, considerando-se o tempo de maturação
relativamente alto da espécie, em torno de seis anos. Além disso, as trilhas
abertas na mata para facilitar o acesso a novas palmeiras e o armazenamento do
produto também provocam impacto sobre a floresta. A semente do palmito juçara
é alimento para certas espécies silvestres, cujo processo excretor promove a
aspersão das sementes, o que permite o replantio da palmeira; em áreas
altamente impactadas, onde a retirada do palmito não é manejada
adequadamente, essa cadeia é interrompida” (LA-MPF:141).
Ademais, como as comunidades utilizavam técnicas rudimentares de
beneficiamento, o palmito por elas produzido e vendido pronto para o consumo
padecia de um nível sanitário bastante deficiente (LA-MPF:142-143). Mesmo com
a intensificação da fiscalização ambiental, muitos moradores das comunidades
rurais continuam extraindo palmito. Contudo, na comunidade Morro Seco esta
prática parece ter sido efetivamente abandonada.
Muitos moradores do Morro Seco enveredaram por outra atividade
igualmente deplorável do ponto de vista ambiental: a produção de carvão. Até
1962, produzia-se no Morro Seco carvão numa quantidade relativamente grande -
um dos produtores conta que só o seu núcleo de produção familiar gerava 400
29
sacos de carvão por mês -, até que a Polícia Florestal os proibiu de continuar esta
atividade.
A agricultura era tradicionalmente praticada pela comunidade Morro Seco
em regime de coivara, ou seja, um sistema de rodízio de culturas e periodizações
de tempo sobre o qual apresentaremos detalhes a seguir:
“A roça era aberta antes do início das chuvas, em local de mata densa,
onde o ‘cabeça’ da família delimitava um trecho (entre 1 ha. E 6 ha., dificilmente
maior) e fazia derrubada da vegetação rasteira com o auxílio da força ativa de seu
grupo doméstico, normalmente os filhos maiores. A vegetação rasteira e de
pequeno porte era então empilhada em locais estratégicos do terreno e deixada
por algum tempo até que secasse.
Todo o processo, aliás, subordinava-se (...) à existência de um período de
seca antes da estação chuvosa ou, como se diz no local, ‘fazer verão’ (tirar antes
das chuvas), para permitir que a vegetação derrubada pudesse secar o suficiente
para ser queimada. Algum tempo depois, procedia-se à derrubada das árvores
maiores, de acordo com o planejamento logístico, para que a derrubada de umas
pudesse auxiliar na queda de outras. Os troncos maiores eram deixados no
terreno, semi-queimados, e o plantio era feito imediatamente depois das
queimadas das pilhas de vegetação derrubadas, agora secas.
O primeiro produto a ser plantado em uma roça recém-aberta era,
normalmente, o arroz – muitas vezes em consórcio com o milho, em carreiras
alternadas – colhido cerca de três meses após o plantio. O milho é colhido,
normalmente, após cerca de quatro meses e meio do plantio; após a colheita de
arroz, ou após a do milho, no caso de culturas conjugadas, carpia-se o terreno da
vegetação rasteira e plantava-se imediatamente o feijão. Quando não se havia
plantado o milho anteriormente, o plantio do feijão era conjugado com o do milho.
A colheita de feijão, realizada na época das águas, coincidindo com a safra dos
grandes produtores, não alcançava preços compensadores no mercado, o que
dificultava sobremaneira sua comercialização.
30
Após a colheita de feijão, replantava-se o milho, sem intervalo. Algumas
vezes as roças de milho eram destinadas à alimentação dos suínos. Após a
secagem do milho, soltava-se os porcos no local que somente eram recolhidos
após a engorda (sic). As roças localizavam-se preferencialmente a certa distância
das habitações, não apenas porque os moradores evitavam a proximidade dos
porcos, mas também porque a exaustão natural do solo – após, em média, três
anos de plantio contínuo – fazia com que as novas roças se distanciassem
progressivamente das moradias. As roças, após esse período, eram colocadas em
descanso e seus donos retornavam a ela periodicamente para a coleta de abacaxi
e da cana-de-açúcar, usualmente, consorciadas com o produto principal.
Nenhuma dessas duas culturas requer grandes cuidados após o plantio, podendo
florescer no meio do mato baixo que começa a se formar na roça após o plantio.
A terra era posta em descanso por períodos que chegavam a doze anos
mas, de forma nenhuma, inferiores a três para permitir a formação de uma
cobertura vegetal denominada, na região, capoeira ou capuava, que reconstitui os
nutrientes do solo, condição essencial para que ele possa ser novamente utilizado.
Exímios conhecedores das matas e da topografia locais, os habitantes dos
bairros negros exibem a capacidade de distinguir, à distância, um trecho de
capuava dentro da vegetação primária da Mata Atlântica, mesmo em casos de
florestas da mesma altura, através da coloração das folhas, grau de
homogeneidade da cobertura e pela presença ou ausência de determinadas
espécies características das matas primária e secundária” (LA-MPF:131-134).
Os importantes resquícios de Mata Atlântica primária e em formação
secundária presentes na região estudada – estima-se que dos 13.000 Km2
restantes desta vegetação no país, 8.350 Km2 estejam no Vale do Ribeira –
fizeram com que o governo interviesse nessa área desde o final da década de 50,
com o propósito preservacionista. Com efeito, as legislações ambientais que
31
incidem sobre o Vale surtiram interditos legais que impedem o uso de 75% das
terras que o compõem23.
Segundo dados de 1996 (e posteriormente atualizados), há 12 Unidades de
Conservação no Vale do Ribeira, compreendendo em torno de 979.949,48 ha.
de terra24. Estas Unidades de Conservação, consubstanciadas em parques ou
APA’s (Áreas de Proteção Ambiental), agem no sentido de preservar a flora e a
fauna do Vale do Ribeira, mas empreendem, por outro lado, um efeito nocivo
sobre as comunidades camponesas. A proibição das roças no sistema de coivara
sujeita o camponês do Vale a sequer poder reproduzir sua dieta alimentar como
antigamente. Frente à impossibilidade de abrir novas roças, as capuavas são
novamente reaproveitadas com maior rapidez, não se respeitando o tempo
tradicional de pousio, o que enfraquece o solo. Como a fiscalização incide
diretamente sobre o território das comunidades rurais, estas se vêem obrigadas a
abrir suas roças cada vez mais no interior da mata, na tentativa de fugir das
pesadas multas e, ao mesmo tempo, conseguir produzir gêneros agrícolas
essenciais para a sua alimentação e para o trato das pequenas criações. Também
a extração do palmito, ilegal, passa a ser feita na clandestinidade, inclusive como
forma de garantir o sustento dos membros das comunidades, impedidos de
realizar o trabalho agrícola25.
23 Estes dados são retirados de CARRIL (1995.:116).24 Dados extraídos de ”Atlas das Unidades de Conservação Ambiental do Estado de São Paulo (Parte I, Litoral), Secretaria do Meio Ambiente do Estado de São Paulo, 1996. Vale ressaltar que as doze Unidades de Conservação aqui consideradas são os parques da Ilha do Cardoso, o Intervales, o Jacupiranga, o Pariquera Abaixo e o Petar, as APA’s de Cananéia, Iguape e Peruíbe, Ilha Comprida e Serra do Mar, além da Área sob Proteção Especial (ASPE) da Juréia e a Zona de Vida Silvestre (ZVS) de Ilha Comprida. O total de terras em hectares que elas ocupavam até o final de 1999 era de 986.902; nesta época, entretanto, o governador do Estado de São Paulo, Mário Covas, modificou por decreto os limites do Parque Intervales, a fim de retirar de seu interior porções dos territórios pertencentes a comunidades quilombolas já reconhecidas como tal (Maria Rosa, Pilões, São Pedro, Pedro Cubas e Ivaporunduva). Por conta disso, o Intervales teve em torno de 6.961, 52 ha. subtraídos de sua área original.25 Todavia, a legislação ambiental, severamente aplicada às comunidades rurais, parece ter sido usada com maior plasticidade quando se refere a empreendimentos econômicos de maior vulto. Como salienta CARRIL (op.cit.:120): “(...) as várias legislações que dispuseram sobre as reservas florestais no Vale do Ribeira têm sido bastante flexíveis no tocante aos projetos de caráter econômico. (...) Criou-se em 1958, por exemplo, o Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira – PETAR, mas, até hoje, não existem limites demarcados e essa questão nunca foi objeto de atenção dos governos estaduais subsequentes. O decreto
32
No Morro Seco, muitas das roças estão sendo feitas nos lugares
tradicionalmente reservados aos quintais - espaços contíguos às moradias - onde
dever-se-ia cultivar canteiros de especiarias e plantas medicinais e construir
cercados para a criação de pequeno porte. Ainda subsistem roças mais
embrenhadas na mata. Contudo, estas tendem a desaparecer visto que há uma
ação da Fundação Itesp – comum nas áreas quilombolas - para intermediar a
regularização das roças junto ao DEPRN (Departamento Estadual de Recursos
Naturais) e este órgão tende a não aprovar roças com este tipo de localização.
Finalizando, cabe ressaltar que a partir dos anos 60, alguns fatores se
combinam e pressionam a comunidade na direção de uma deterioração da sua
qualidade de vida. A entrada mais intensa de produtos beneficiados por grandes
produtores no mercado de consumo de Iguape e região aliada ao endurecimento
da legislação ambiental abala o bom rendimento da agricultura na comunidade.
Este último fator também inibe as práticas alternativas de geração de renda –
palmito e carvão - utilizadas pela comunidade. Destarte, o próximo recurso à mão
– e sem dúvida o mais intensamente destrutivo tanto simbólica quanto
economicamente - foi a venda maciça de pequenos lotes de terra para pessoas
estranhas à comunidade. Como veremos mais adiante, a comunidade possui hoje
cerca de 1/3 de seu território original, uma quantidade de terras certamente
insuficiente para abarcar o crescimento em progressão geométrica da população
de quilombolas do Morro Seco.
41.626 de 30/01/63, colocou o PETAR sob a responsabilidade do Serviço Florestal (...) e da Procuradoria do Patrimônio Imobiliário (PPI). Porém, a partir de pressões, certos interesses econômicos começaram a prevalecer e o decreto de 29/12/69 excluiu 600,17 ha. da área original, ao norte do parque, essa área é ocupada atualmente, por uma empresa de calcário, a Mineradora Espírito Santo”.
33
4.3. A sociabilidade caipira: os mutirões e o fandango
Como é próprio de um bairro rural tradicional, os moradores estabeleciam
entre si vínculos de solidariedade para o trabalho que se estendiam alhures, para
além dos limites de suas próprias áreas, abarcando domínios vicinais. Antônio
Cândido define os bairros rurais a partir de dois critérios principais: o trabalho
coletivo e a co-participação em eventos religiosos. Sobre o primeiro deles Candido
diz (1987:67): “Um bairro poderia, deste ângulo, definir-se como o agrupamento
territorial, mais ou menos denso, cujos limites são traçados pela participação dos
moradores em trabalhos de ajuda mútua. É membro do bairro quem convoca e é
convocado para tais atividades. A obrigação bilateral é aí elemento integrante da
sociabilidade do grupo, que desta forma adquire consciência de unidade e
funcionamento”. A principal manifestação de trabalho coletivo nas sociedades de
camponeses livres é o mutirão. Trata-se de um acordo tácito dos moradores dos
bairros entre si para que haja uma reunião de pessoas empenhadas em realizar
algum serviço – derrubada, roçada, plantio, limpa, colheita, construção de casa,
etc – para um determinado beneficiário. A partir deste arranjo, resolvem-se as
limitações de mão-de-obra presentes na atividade individual ou familiar.
Quem solicita o mutirão está moralmente obrigado a comparecer para
trabalhar para outrem quando solicitado e é nesta relação de reciprocidade que se
assenta a eficácia do mutirão. Não há qualquer tipo de remuneração, mas como o
mutirão reveste-se essencialmente de um caráter festivo, o beneficiário oferece
aos seus vizinhos alimentos e um baile ao final do trabalho.
O segundo aspecto definidor dos bairros rurais, o da religiosidade, é assim
descrito por Candido (op.cit.:74): ”(...) há nos bairros uma solidariedade que se
exprime pela participação nas rezas caseiras, nas festas promovidas em casa
para cumprimento de promessas, onde a parte religiosa, como se sabe, é
inseparável das danças. Quando, por exemplo, é muito grande o número de
inscritos para promover a festa mensal da capela, um morador que tem promessa
a cumprir pode trazer a imagem a sua casa: há reza, distribuição de alimentos e,
34
depois, fandango. Geralmente a primeira parte se desenvolve durante o dia, a
segunda, à noite”.
Na comunidade Morro Seco, todos os moradores mais idosos se lembram
com saudade dos mutirões, das festas religiosas e dos bailes de fandango. Da
rede vicinal da qual participava o Morro Seco constam os seguintes bairros: Rio do
Braço do Peropava, Guabiruva, Biguá, Salva-vidas e Palmeiras. O sr. Bonifácio
assim relata suas lembranças:
“Acontecia que tinha ocasião de ter 150 pessoas reunidas rezando, dançando até,
havia o carnaval, o carnaval simples, né, não sei se vocês ouviram falar de ‘entruído’.
Entruído era de primeiro o nome do carnaval, né? Então o povo chamava: ah, hoje nós
vamos dançar o entruído para o Morro Seco, hoje vamos para as Palmeiras, sempre
houve uma harmonia muito boa. Se fazia o mutirão com trinta homens no mato, roçando
pra uma só pessoa, vinham hoje pra mim, amanhã pra você, entendeu? O serviço tava
atrasado nós ia lá, para adiantar. E não eram poucas pessoas, eram vinte, trinta, quarenta
homens, senhoras também plantando milho, arrancando capim da roça do mandiocal, era
sempre assim, unido e respeitado. A dança à noite era com o maior respeito, ninguém
tava bêbado, os homens dançando com as senhoras, é essa mesma dança que se faz
agora”.
Esta dança à qual se refere o sr. Bonifácio é o fandango, como vimos
acima presente nas tradicionais e obrigatórias festividades realizadas ao término
do mutirão e nos eventos religiosos. O fandango é originariamente espanhol,
bailado pelos camponeses ‘gitanos’ do sul do país, mormente na região de
Huelva. Muito similar a outras coreografias como as malaguenhas, granadinas,
rondenhas e murcianas, da Espanha o fandango passou para Portugal, onde se
generalizou especialmente no Alentejo e no Ribatejo26, ganhando alguns timbres
da polca e dos minuetos apreciados nas cortes européias.
O fandango chegou ao Brasil com os primeiros casais de colonos açorianos
por volta do século XVIII e era bailado principalmente durante o entrudo – ou
‘entruído’, como prefere o sr. Bonifácio. Se na Espanha o fandango se caracteriza
26 Diccionário de la Musica, editado em Barcelona e citado em ANDRADADE, 1959.
35
genericamente por uma coreografia de movimentos rápidos, quase selvagens e
por intensas seqüências de sapateado, no Brasil ele passou a ter características
distintas de acordo com a região que o entronizou.
No Nordeste, o fandango também tem por nome a marujada ou “Chegança
dos Marujos” e possui características dramáticas acentuadas. No Sul do Brasil e
em São Paulo uma vertente mais sutil ganhou força, embora os traços originais
ainda permaneçam. Mário de Andrade (1959:115) assim define: “Na região
paulista de Cananéia, a palavra [fandango] é mais ou menos sinônimo de baile, e
reúne um bom número de coreografias diferentes, até mesmo valsas. Distinguem
lá o ‘fandango bailado’ do ‘fandango batido’, caracterizando-se este pelo bate-pé,
proibido no primeiro”.
Tanto a música quanto a letra são improvisadas pelos “tocadores” e
“cantadores” numa atitude muito próxima dos repentistas nordestinos. Há uma
enorme variedade de danças no fandango, e alguns dos seus nomes denotam
claramente a influência indígena na recomposição híbrida e multicultural que o
fandango original espanhol sofreu em terras brasileiras27. Alguns exemplos: tirana,
anu, tatu, cará, feliz-amor, balaio, xará, chimarrita, chico, ribada, cerra-baile,
galinha-morta, quero-mana, serrana, dandão, sabão, bambaquerê, pinheiro,
pagará, pega-fogo, recortada, retorcida e outros.
Os instrumentos utilizados, geralmente, para se tocar o fandango são a
viola e a rabeca, sendo esta última assemelhada a um violino rústico. As rabecas
são esculpidas em madeira maciça (apenas a tampa é colada) e encordoadas
com arame verde-gás, às vezes usando a primeira e a segunda cordas de viola e
a terceira e quarta de violão. O sedenho do arco é feito de crina de rabo-de-
cavalo, fio de linha ou imbira (cipó)28.
27 Não se descarta também uma possível influência dos grupos negros nesta re-elaboração.28 Para obter informações sobre o fandango no Brasil, vali-me de pesquisas nos seguintes sítios da Internet: www.jangadabrasil.com.br, www.brasilfolclore.hpg.ig.com.br, além do sítio da Secretaria da Cultura do Estado do Paraná.
36
Rabeca com arco
Na comunidade Morro Seco, o fandango continua a ser dançado
como dantes. São 10 casais que bailam o fandango em apresentações pela região
do Vale do Ribeira e até em outros Estados29. Este traço típico da cultura caipira
permanece vivo para o grupo, embora haja uma pequena confusão sobre a sua
origem. Dizem os moradores que esta é uma dança dos negros, trazida da África,
mas pelo exposto acima já pudemos comprovar que este fato não corresponde à
verdade. Mais adiante, no capítulo 6, veremos por que este discurso foi produzido
e se firmou entre as comunidades rurais negras do Vale do Ribeira.
29 O Sr. Bonifácio, uma espécie de “maestro” do grupo de fandango do Morro Seco, ensina a dança e o toque da rabeca para um grupo de crianças de Juquiá, a fim de que a tradição não se perca. Na própriacomunidade, muitos jovens já sabem dançar e tocar o fandango.
37
5. AS TRANSFORMAÇÕES NO TERRITÓRIO QUILOMBOLA
Até meados de 1963-65, a disposição espacial das famílias na comunidade
Morro Seco obedecia a critérios calcados no direito costumeiro. Cada um e todos
reconheciam os limites de propriedade familiar e repartiam suas heranças de
acordo com suas tradições. Com efeito, na época acima aventada, o Estado de
São Paulo oficializa as propriedades familiares do bairro Morro Seco, dividindo o
território quilombola em glebas demarcadas e tituladas, dispostas no 5º Perímetro
de Iguape. Conforme vimos no capítulo precedente, esta época é exatamente
aquela em que as atividades econômicas da comunidade degringolam, o que
forçou alguns moradores a vender suas áreas e tentar a vida em outros locais.
Como sói ocorrer em áreas ocupadas por comunidades negras rurais, os
moradores do Morro Seco enfrentaram o assédio de grileiros e negociantes de
má-fé, interessados na combinação das terras férteis e da pouca instrução à
disposição dos quilombolas.
Trataremos aqui então dos conflitos e mistifórios ocorridos nas Glebas
nomeadas 79 e 84, bem como a situação das demais glebas que compunham o
território histórico da comunidade.
GLEBA 79 - Por ocasião da divisão e regulamentação das terras realizadas
em 1963-65, a área de terra que coube a Joaquim Soares Alves passou a chamar-
se gleba 79. Antes disso, por volta dos anos 40, houve uma tentativa de
usurpação da área por parte de um grileiro de nome Manoel Forte, de Iguape, que
disse ao proprietário Joaquim Soares Alves ter feito um acordo com pai dele
(Joaquim Alves Sabino) de inventaria as terras após sua morte, serviço pelo qual
receberia metade das terras. Assessorado por um procurador de justiça, o
herdeiro descobriu não haver como inventariar uma área que sequer possuía
registro oficial de propriedade. Nesta época, as famílias descendentes de Joaquim
Alves Sabino tinham oficiado à Justiça um pedido de requerimento de posse, que
só foi deferido mediante a regularização de terras de 1963-65. Nesta divisão,
Joaquim Soares Alves recebeu uma outra pequena porção de terra (1/2 alqueire),
38
denominada gleba 75. Esta área foi, em 1981, invadida à força por José Ramiro,
que chegou inclusive a atirar nos herdeiros de Joaquim Soares Alves. Estes,
assustados, não quiseram apelar à Justiça para reaver tal área, pois seriam
muitos gastos para garantir uma gleba tão pequena. Atualmente, os herdeiros
possuem os direitos sobre a gleba 79, concedidos mediante inventário do Espólio
de Joaquim Soares Alves 30. Alguns herdeiros venderam a totalidade da parte que
lhes cabia e mudaram-se para a cidade. Os que ainda permanecem na área
também venderam muitos pedaços de suas terras, freqüentemente após acolher
famílias em condições miseráveis que, depois de algum tempo lá estabelecidas,
pagavam uma quantia irrisória ao seu beneficiário, a fim de "legalizar" sua
situação. Destarte, aproximadamente metade das famílias residentes no Morro
Seco não tenha laços consangüíneos ou de afinidade com a comunidade
original31.
Desde o começo deste trabalho, os moradores entrevistados relataram que
o seu interesse maior em adquirir o reconhecimento oficial de Morro Seco como
comunidade remanescente de quilombo residia na vontade de obter um título
coletivo da área que ocupam em nome da Associação de Moradores do Quilombo
do Morro Seco, a fim de impedir futuras vendas de porções do território, tanto por
parte dos próprios quilombolas quanto dos não-quilombolas que já adquiriram
terras na comunidade, haja vista a maioria das áreas vendidas já ter saído das
mãos de seus compradores originais, havendo casos em que o lote de terra já
está no quarto ou quinto proprietário. Assim, a reivindicação da comunidade é
que seja reconhecida a GLEBA 79 como o território da Comunidade
Remanescente de Quilombo do Morro Seco e que, posteriormente, se lhe
ofereça a possibilidade de converter os vários títulos particulares que virão a
30 O inventário ainda não está finalizado e a comunidade tem tido problemas com os advogados constituídos. A partir do reconhecimento formal como comunidade de quilombo, talvez o Ministério Público possa intervir em benefício da conclusão deste processo.31 Há, contudo, ao menos dois casos de união entre moradores “de fora” que estabeleceram laços de parentesco com membros da comunidade quilombola mediante o casamento. As famílias Brito e Wilbosque, que adquiriram terras há bastante tempo no Morro Seco, casaram filhos com filhas de moradores originais da comunidade.
39
existir após o término do inventário em um único título coletivo que
estabeleça a inalienabilidade da terra.
Contudo o procedimento do Estado em conceder um título coletivo a uma
Associação de Quilombolas só se aplicou até hoje às áreas devolutas sob posse
de quilombolas. Será preciso conceber um arranjo jurídico que permita, por
exemplo, que os membros da Associação que se venham a se tornar detentores
de títulos particulares, ao fim do inventário, repassem seus direitos possessórios
sobre a Gleba 79 para a Associação e, também, que a União, por meio das suas
instâncias responsáveis (INCRA, Fundação Palmares), desaproprie aqueles
proprietários que não guardam vínculo solidário com a comunidade e não querem
participar da Associação Quilombola, garantido-lhes o direito à indenização. Ao
Estado de São Paulo cabe tão somente a responsabilidade pelo reconhecimento
oficial do grupo e do território na categoria de remanescente de quilombo.
Ademais, como veremos no capítulo seguinte, a Fundação Itesp está
desenvolvendo uma série de projetos na comunidade Morro Seco e parece
razoável supor que tanto estes, como outros vindouros, carecerão de espaço
físico disponível para se concretizar.
GLEBA 84 - A gleba 84, uma área de 157 hectares (70 alqueires),
pertenceu à família de Antônio Alves Sabino até meados dos anos 80. Nesta
época, segundo relata uma das filhas do referido proprietário, seus pais haviam
falecido, alguns irmãos já haviam se mudado para a cidade e ela e suas irmãs
casadas residiam em áreas pertencentes aos maridos - como é costume nestes
grupos sociais patrilocais. Já em torno de 1967, houve uma primeira tentativa de
compra da área por parte de um português chamado Joaquim Esteves. Ele teria
comprado uma parcela de terra, mas como não honrou o pagamento combinado,
não houve a regularização deste ato de compra e venda. Em meados dos anos
80, surge então na área Bertolino Barth, que passa a ocupar algumas porções da
propriedade e, posteriormente, procura os herdeiros com proposta de compra total
da área. Dos nove herdeiros então vivos sete fazem negócio com Bertolino. O
problema é que há uma controvérsia bastante grave nesta negociação. Em alguns
40
momentos, os herdeiros parecem ter clareza de que efetivamente venderam as
áreas que reconheciam suas por direito pelo valor de três mil cruzeiros para cada
um, mas se confundem bastante em outros momentos dizendo que na verdade
Bertolino comprou-lhes o direito de ser seu inventariante. Ora, o inventariante, via
de regra, recebe para desempenhar tal atividade, o que torna essa história
minimamente esdrúxula. Documentos encontrados no Primeiro Cartório de Notas
e Ofício de Justiça do município de Registro, datados de julho de 1986, trazem um
pouco de luz a esta mixórdia. Um conjunto de procurações registradas neste
cartório faz da senhora Geni Cais - à época, esposa de Bertolino Barth - a
procuradora destes sete herdeiros de Antônio Alves Sabino, em que estes
conferem a ela “amplos e ilimitados poderes para o fim especial de vender, ceder
e transferir todos os [seus] direitos hereditários“.
Bertulino Barth vendeu a gleba 84 para Paulo Valmiki, que já instalou uma
placa que o anuncia como proprietário da área ora denominada “Fazenda
Fortaleza”. Valmiki comprou a parte dos herdeiros que não tinham negociado com
Bertulino, tornando a aquisição da área plenamente legal. Os moradores da
Comunidade Morro Seco julgaram por bem não reivindicar a retomada dessa
gleba por entender que o processo de aquisição desta área pela União para
que posteriormente fosse repassada a eles seria muito demorado e talvez
inexeqüível32. Ademais, como a única herdeira desta área a residir no Morro
Seco encontra-se instalada nas terras do marido (gleba 79), a comunidade
aponta para o fato de que os outros herdeiros não apresentam interesse em
voltar para a área.
GLEBAS 85, 86 e 87 (vide mapa histórico) – Estas glebas foram tituladas
para membros da família à época da regularização de 1963-1965, mas foram
vendidas e encontram-se hoje completamente fora do domínio da comunidade
32 A partir de pesquisa cartorial realizada pelo Grupo Técnico de Iguape, descobrimos que a gleba 84 ainda está em nome de Antônio Alves Sabino. Contudo, segundo orientação recebida pelo Departamento Jurídico da Fundação Itesp, tal fato não tem importância, visto que de qualquer forma os herdeiros do referido proprietário transmitiram a outrem seus direitos sucessórios.
41
quilombola. Os moradores da comunidade Morro Seco não desejam
reivindicar estas áreas.
6. MORRO SECO ATUAL: INFRAESTRUTURA, RELAÇÕES POLÍTICAS E ATIVIDADES ECONÔMICAS
A comunidade Morro Seco situa-se próxima à Rodovia BR-116 (Régis
Bittencourt). Para chegarmos até lá, partindo de São Paulo, é preciso fazer um
retorno localizado na altura do Km 418, pegar a pista de volta e entre os Km’s 414
e 413, atentar para uma entrada de estrada de terra indicando a direção da
“Fazenda Progresso”. Após tomar tal estrada, são precisos mais 5 quilômetros
para se alcançar a comunidade. Embora o Morro Seco localize-se no município de
Iguape, as cidades mais próximas são Juquiá (15 Km de distância) e Registro (35
Km de distância). Iguape propriamente dista 85 Km da comunidade.
Bastante organizadas, as 44 famílias residentes na comunidade Morro Seco
buscam incrementar suas atividades econômicas em direção a uma maior
prosperidade, especialmente a partir de parcerias com órgãos públicos e privados,
mas ainda padecem de alguns problemas de infra-estrutura local, tal como
relataremos a seguir.
6.1. Serviços básicos e a interação com o poder público
O acesso à educação no bairro Morro Seco opera da seguinte maneira: a
escola localizada na própria comunidade oferecer ensino fundamental de 1ª à 4ª
séries. Para continuar os estudos da 5ª à 8ª séries, os alunos precisam se
locomover até Juquiá, em transporte cedido pela prefeitura de Juquiá. Os poucos
que chegam até ao colegial precisam mudar-se para Iguape para completá-lo.
O serviço de transporte é bastante precário. Os moradores vão muito mais
a Juquiá que a Iguape, haja vista o fato de que o primeiro município é muito mais
próximo da comunidade que o segundo. Além disso, não há ônibus que passam
42
pelo bairro com destino a qualquer dos dois municípios; os moradores valem-se
de “caronas” no transporte escolar para ir até Juquiá.
O acesso a tratamentos de saúde é recordista de reclamações entre os
moradores da comunidade. O Posto de Saúde está praticamente desativado. A
visita do médico acontece uma vez por mês e, se alguém adoecer neste meio-
tempo, é preciso que vá até Juquiá e de lá pegue um ônibus até Iguape. Isto
porque a prefeitura de Juquiá não permite que os moradores de Morro Seco sejam
atendidos na cidade, já que o bairro pertence ao município de Iguape – mas por
que então fornece transporte escolar para este mesmo bairro? Se nos lembramos
da distância muito maior que separa Morro Seco de Iguape em comparação com a
distância da comunidade a Juquiá, parece crueldade que as prefeituras dos dois
municípios não tenham até agora firmado alguma espécie de convênio entre si
para permitir que os moradores de Morro Seco sejam atendidos em Juquiá.
Além de promover os trabalhos necessários ao reconhecimento oficial de
Morro Seco como Comunidade Remanescente de Quilombo, a Fundação Instituto
de Terras do Estado de São Paulo (ITESP) vem trabalhando, desde o ano 2000,
no sentido de implementar projetos de desenvolvimento e melhoria de qualidade
de vida na comunidade. Listamos abaixo os projetos destinados ao Morro Seco,
bem como o estágio em que se encontram, tal como nos informou o Grupo de
Trabalho de Desenvolvimento do ITESP/Pariquera-Açu:
1 – Apicultura – processo em andamento, com apoio do Grupo
Técnico de Desenvolvimento/Eldorado.
2 – Horta comunitária – Produção de hortaliças orgânicas
visando a melhoria da alimentação das famílias e a geração de
renda com a venda do excedente.
3 – Palmito nos quintais – Processo em discussão – O projeto
visa o repovoamento de áreas próximas às residências com o
palmito juçara.
43
4 – Recuperação de solo – Introdução do cultivo de adubos
verdes em áreas desgastadas pela exploração contínua da
agricultura, visando o aumento da produtividade das lavouras.
5 – Horta na escola – Processo em discussão – Implantação
prevista para o inicio do mês de abril/2003. Busca-se o apoio da
Prefeitura Municipal de Iguape.
6 – Licenciamento de roças – processo realizado anualmente
pela Fundação ITESP visando o licenciamento de roças de
subsistência junto ao DEPRN.
7 – Manejo ecológico de bananais – Processo em discussão
– Melhoria do sistema de produção de bananas, privilegiando o
sistema agroecológico, visando a produção de fruta e fibras
para o artesanato.
8 – Desenvolvimento do artesanato como alternativa de
renda – Artesanato em fibra de bananeira - Parceria com
Grupo Técnico de Formação e apoio da Prefeitura municipal de
Iguape, que cedeu os teares para a comunidade.
9 – Obras - Construção de uma quadra de esportes, um galpão
multifinalitário e um centro comunitário.
10 – Projeto criança é saúde – Aulas semanais de capoeira e
oficinas de educação ambiental.
11 – Capacitação dos agricultores – Curso de produção de
mudas, abordando a enxertia, estaquia e alporquia.
12 – Telefone - Gestões junto à concessionária local de
telefone e a ANATEL, visando à instalação de telefone público
na comunidade.
44
13 – Piscicultura – Projeto em fase de licenciamento junto aos
órgãos competentes – Projeto visa à melhoria da alimentação
das famílias.
14 – Projeto FEHIDRO – Captação e distribuição de água para
a comunidade.
15 – Implantação de área demonstrativa de sistema
agroflorestal – Projeto previsto para ser implantado no 2º
semestre/2003.
A comunidade parece manter uma boa expectativa em relação a estes
projetos, mas critica o fato de muitos dos projetos serem levados pelo técnicos até
elas, sem que houvesse uma genuína demanda interna. Também reclama a falta
de investimento em maquinário para a agricultura.
6.2. O estabelecimento da nova identidade quilombola
Os membros mais antigos da comunidade Morro Seco orgulham-se ao dizer
que sempre ouviram os conselhos de seus pais sobre a importância de conservar
a terra que lhes dá o sustento. E alegam ser esse o principal motivo para que
desejassem ser reconhecidos oficialmente como remanescentes de comunidade
de quilombo, garantindo para seus filhos e netos a segurança sobre a propriedade
dessa terra que tanto estimam.
Embora não reconheçam explicitamente, os membros da comunidade
Morro Seco ressentem-se de, por força das adversidades econômicas que
enfrentaram, terem vendido boa parte das terras que seus antepassados lhes
legaram. Hoje, a despeito de manter boas relações – algumas de real proximidade
e até de parentesco por aliança - com os seus vizinhos não quilombolas, a
comunidade tem como seu maior desejo alguma tipo de proteção contra a entrada
de mais estranhos no seu território. Entre os familiares quilombolas parece
subsistir um auto-reconhecimento étnico, posto que comparticipam uma relação
45
dialética de exclusão/inclusão e recusa/aceitação gestada em sua relação com o
Outro, neste caso, com a sociedade envolvente.
Para o antropólogo F. BARTH (1976), os grupos étnicos definem-se de
maneira flexível e dinâmica, ou seja, estão constantemente redefinindo-se,
adequando, na interação com outros grupos, seus padrões de valores e seus
critérios de pertença realçando-os, amenizando-os ou até desativando-os.
Sabemos que tais práticas podem ocorrer, em situações de contato interétnico,
desviando-se por dois extremos: no contexto da valorização excessiva dos traços
culturais de um grupo (etnocentrismo) ou, por outro lado, na tentativa de auto-
aniquilação cultural de um grupo subjugado por outro (etnocentrismo negativo).
A comunidade Morro Seco certamente esteve submetida a estas duas
variações de caráter identitário, estando a segunda forma sendo agora substituída
por uma nova positividade calcada na auto-estima que surge de um processo
iniciado externamente que, não obstante, se re-significa no interior do grupo.
Tal processo, ao encontrar-se no terreno do resgate da auto-identificação
positiva, propõe a revalorização dos elementos basilares que compõe um padrão
cultural socialmente compartilhado. A comunidade Morro Seco, por meio do
contato com outras comunidades rurais de origem quilombola e da organização
destas em torno de reivindicações políticas, recria uma identidade em confronto
com o Outro que os quer subjugar ou de quem exige respostas – grileiros, polícia
florestal, poderes públicos, entre outros, encontram-se neste rol de
personificações emblemáticas.
Neste embate de contornos políticos, a comunidade torna-se
remanescente de quilombo, condição que compartilha com outras comunidades,
fornecendo a identificação acabada e necessária para que se possa auferir
vantagens previstas em lei, e que a permite rememorar a importância de sua
origem, de seu modo de vida, das suas relações de parentesco, suas crenças e
sua organização interna. Cabe registrar, aqui, o importante trabalho que vem
sendo organizado no Vale do Ribeira pela Mitra Diocesana de Registro e outros
agentes mediadores no sentido de valorizar manifestações culturais étnicas que,
46
longe de referenciar-se apenas na questão da cor negra, adentra os campos da
classe social e dos modos de produção tradicionais, embora a primeira
característica venha sendo explorada com maior ênfase. No caso da comunidade
Morro Seco, essa valorização cultural se acentua por serem eles os “exibidores”
de uma manifestação artística – o fandango – que, embora erroneamente tomada
como “sobrevivência da cultura africana”, se impõe como traço diacrítico
exatamente por conta desse erro de origem e transfere à comunidade uma certa
“preponderância” sobre as demais, no sentido de carregar a responsabilidade de
cultivar a cultura negra quilombola. Não por acaso, os membros da comunidade
Morro Seco são presença imprescindível em todos os eventos que reúnem as
comunidades negras rurais do Vale do Ribeira, a fim de garantir a apresentação
do fandango. Também encenam seus dotes artísticos nos municípios vizinhos, em
capitais próximas (São Paulo, Curitiba), concorrendo para a publicização da
existência e das lutas das comunidades quilombolas.
Em face do processo acima descrito, é possível concluir que desponta na
comunidade uma nova forma de contemplar o futuro, tornando-a dinâmica, pronta
a empreender e aprender novas formas de adquirir dignidade, tanto na esfera da
vida material quanto no plano sócio-simbólico.
47
7. CONCLUSÃO
De acordo com o objetivo deste trabalho, elaboramos um estudo técnico-
científico sobre a comunidade Morro Seco, levantando as suas origens históricas,
as configurações sociais sobre as quais ela está organizada e as condições de
vida que a caracterizam atualmente. Apresentamos, a seguir, as considerações
finais pertinentes:
Considerando:
1) que os trabalhos de pesquisa antropológica não deixam dúvidas sobre
a origem quilombola da Comunidade Morro Seco, formada por lavradores rurais
negros que se estabeleceram em suas terras há mais de um século e que, por ter
havido na região do Vale do Ribeira intenso uso de mão-de-obra escrava, há uma
relação histórica clara entre estes moradores atuais e seus antepassados negros
vitimizados pela escravidão;
2) que a Comunidade Morro Seco se encontra em franco processo de
recuperação do orgulho de sua identidade étnica, bem como anseia por
desenvolver projetos de desenvolvimento econômico que auxiliem a incrementar
sua auto-visão positiva, plena de dignidade e respeito;
3) que o mesmo procedimento antropológico também comprovou a
profunda ligação prático-simbólica da comunidade Morro Seco com o território que
ocupa e apontou a importância de sua manutenção para a implementação de
formas de produção que promovam melhorias na qualidade de vida da
comunidade, tal como enunciado pelo GT: “Isto quer dizer que o território, em todo
seu perímetro, necessário à reprodução física e cultural de cada grupo
étnico/tradicional só poder ser dimensionado à luz da interpretação antropológica
e em face da capacidade suporte do meio ambiente circundante tendo em vista a
necessidade de garantir a melhoria de qualidade de vida de seus habitantes,
48
através da implementação de projetos econômicos adequados, conservando-se os
recursos naturais para as gerações vindouras” (GT33, p.24);
4) que a comunidade Morro Seco carece de instrumentos institucionais, tal
como o artigo nº 68 do ADCT para auxiliá-la a proteger o seu território;
5) que o GT reconheceu a necessidade de tratar de forma diferenciada à
identificação dos territórios de comunidades quilombolas, visto que “o cadastro
rural previsto pelo INCRA ou mesmo o cadastro de terras do patrimônio imobiliário
estadual usado para a ‘legitimação de posse’ e para embasar as ações
discriminatórias são incapazes de detectar apropriações comunais extensas que
compõem territórios tradicionais” (GT, p.17);
6) que uma das diretrizes do Grupo de Trabalho dispõe sobre a
“necessidade de rever procedimentos técnicos e jurídicos dos órgãos afetos à
questão do ordenamento fundiário, agrário, territorial e ambiental para reconhecer
e incorporar as diferenças étnicas e culturais proporcionando o reconhecimento e
a proteção, pelo Estado, dos segmentos portadores dessas referências e de seus
direitos” (p.18);
Concluímos:
- que os membros da comunidade Morro Seco são remanescentes de
comunidade de quilombo, de acordo com as definições que embasam os
critérios oficiais de reconhecimento adotados pelo Estado de São Paulo, e
devem, portanto, gozar dos direitos que tal identificação lhes assegura.
- que se faz urgente à ação da União, por meio de seus órgãos
competentes (Fundação Cultural Palmares, Incra), no sentido de coibir uma
maior fragmentação e uma nova ocupação por terceiros do espaço territorial
da Comunidade Morro Seco, a fim de assegurar o amplo domínio da
comunidade sobre os recursos naturais - observada a Legislação Ambiental
33 No decorrer desta conclusão, as citações identificadas como GT referem-se ao Relatório do Grupo de Trabalho, anteriormente referido na nota de rodapé número 1.
49
– para que estes sejam racional e organizadamente explorados. Para tanto, é
imprescindível que os órgãos supracitados dêem início aos estudos
necessários para a abertura do processo de regularização fundiária e
desapropriação das áreas que atualmente estão fora do controle da
comunidade.
- que a Procuradoria Geral e o Ministério Público do Estado de São Paulo
pronunciem-se no sentido de apresentar soluções que evitem novas vendas
de terras na área, como é desejo dos quilombolas.
MARIA CECÍLIA MANZOLI TURATTI Antropóloga
50
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DOCUMENTAÇÃO ICONOGRÁFICA
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Moradias típicas da comunidade (abaixo: D. Maria Sabina Pereira)
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Terreno em preparação para plantio
Moradia com pilão para fazer farinha de mandioca ao lado
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Igreja de São Miguel, padroeiro da comunidade.
Da esq. para a dir.: galpão multiutilitário, igreja e salão comunitário
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Mulheres da comunidade posam no salão, após terem preparado almoço coletivo.
Outro galpão multiutilitário
58
GENEALOGIA
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MEMORIAL DESCRITIVO E PLANTA