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RENASCIMENTO E IDADE MDIA: AS MADONAS DE FILLIPO LIPPI E GIOVANNI CIMABUE, Flavio Felicio Botton
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INTRODUO
ste ensaio pretende discutir a dialtica entre dois momentos histricos eartsticos de definio extremamente complexa: o perodo medieval e oRenascimento. Para tal, realizaremos uma breve exposio das postula-es mais relevantes dos perodos histricos em questo, para, em segui-
da, trabalharmos com suas realizaes artsticas, nas mos de dois grandes no-mes dos perodos: o medieval gtico Giovanni Cimabue, pintor de grandes painisreligiosos, e do frei Fillipo Lippi, um dos importantes nomes do Renascimento flo-rentino do sculo XV, conhecido por sua sensibilidade para pintar os encantosfemininos.
RENASCIMENTO, PRIMEIRA RENASCENA E HUMANISMO
O conceito de Renascimento como perodo caracterizado por um sentimen-to de oposio Idade Mdia (QUEIRZ, 1995, p. 12) teria sido uma inveno
RENASCIMENTOE IDADE MDIA:
AS MADONAS DE FILLIPO LIPPIE GIOVANNI CIMABUE
Flavio Felicio Botton*
Resumo: Este ensaio tem por objetivo discutiralguns conceitos de arte renascentista e medie-val, estabelecendo um dilogo entre as obras e ocontexto histrico, social e filosfico dos pero-dos. Para isso, sero analisadas obras de FillipoLippi, pintor renascentista, e de Giovanni Cima-bue, pintor e mosaicista medieval.
Palavras-chave: Artes plsticas; Renascimento;Idade Mdia.
E
* Mestre em Literatura Portuguesa pela Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo (FFLCH-USP) e professor de Literatura Portuguesa, Teoria Literria e Histria da Arte da UniABC (SP).
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dos historiadores do sculo XIX. Vasari, pintor, arquiteto, bigrafo de vrios ar-tistas, e contemporneo de Rafael, Leonardo e Michelangelo, refere-se uma vezao perodo como Rinascita, mas no de forma conceitual ou sistemtica.
A recente e imensa bibliografia que se encontra sobre o tema nos revela es-tarmos trabalhando no com uma ideia fechada, mas, como tudo que belonas cincias humanas, com um conceito sempre em construo.
A arte renascentista teve espao em vrios pases de formas diferentes, mash, entre eles, alguns elementos em comum. Costuma-se apontar a redescober-ta da arte clssica da Antiguidade greco-romana e o estudo cientfico do corpohumano e do mundo natural como caractersticas marcantes do perodo. Damesma forma, temos diversas inovaes tcnicas na pintura que proporcionamuma arte muito diversa da arte do perodo medieval. Veja-se, por exemplo, a uti-lizao da tinta a leo sobre tela: tcnica renascentista por excelncia, aumen-tou a possibilidade de cores, bastante limitada na arte medieval.
Poucas das inovaes que passaram para a histria como invenes ou in-fluncias do Renascimento, no entanto, foram compartilhadas pelos primeirosrenascentistas, daquele momento chamado de Primeira Renascena, que teveespao essencialmente na Florena do sculo XV. Ao contrrio, por exemplo, douso da pintura a leo, os primeiros renascentistas utilizavam a desconfortveltcnica da tmpera, em que os pigmentos so misturados a um colante, umamistura de gua e gemas de ovo, em que a pintura de gradaes se v bastan-te prejudicada pela secagem rpida da amlgama.
Como se v, no podemos falar no Renascimento como se falssemos de umperodo uniforme. H, no entanto, uma questo que, se no exatamente co-mum a todo o perodo, perpassa a criao dos primeiros renascentistas e semantm na mente dos mestres da Alta Renascena. Referimo-nos filosofiachamada de Humanismo.
A evoluo do Renascimento coincidiu com o desenvolvimento do Humanismoque estudava e traduzia textos filosficos da Antiguidade clssica. Na Florena dosculo XV, viveram os filsofos mais conhecidos e importantes do Renascimento,entre eles Marslio Ficino e Pico Della Mirandola: o primeiro, responsvel pela aca-demia neoplatnica, onde traduz e divulga as obras de Plato; o segundo, autordo texto conhecido como manifesto humanista, a De hominis dignitate oratio, ouDiscurso sobre a dignidade do homem. Ambos os filsofos desfrutavam da ami-zade da famlia Mdici, os verdadeiros governadores de Florena, e conviviamcom Lippi, Botticelli e outros.
Vejamos ento, resumidamente, em que consiste essa filosofia. Na Oratio, dePico Della Mirandola (2001, p. 53), encontramos afirmaes do tipo:
Nada grande na terra, a no ser o homem. Nada grande no homem, ano ser a mente e a alma. [...] A ti, Ado, no te temos dado nem uma sededeterminada, nem um aspecto peculiar [...] Eu te coloquei no centro do mundo,a fim de poderes inspecionar, da, de todos os lados, da maneira mais cmo-da, tudo que existe. No te fizemos nem celeste, nem terreno, mortal ou imor-tal, de modo que assim, tu, por ti mesmo, qual modelador e escultor da prpriaimagem, segundo tua preferncia e, por conseguinte, para tua glria, possasretratar a forma que gostarias de ostentar. Poders descer ao nvel dos seresembrutecidos; poders, ao invs, por livre escolha de tua alma, subir aos pata-mares superiores que so divinos.
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Como se v, segundo o autor, o homem tem, por meio de seu livre-arbtrio,a liberdade de escolher seu verdadeiro destino. De raiz platnica, a filosofia doautor nos informa que, por meio do conhecimento, do estudo e da filosofia, ohomem pode conhecer a divindade na Terra.
Abagnano (2003) definiu em trs pontos a filosofia humanista:
1. Reconhecimento do valor humano, o que significava ser necessria a edu-cao do homem. As artes no tinham valor de fim, mas sim valor de meio,para a formao de uma mente realmente humana, aberta em todas asdirees, por meio da conscincia histrico-crtica da tradio cultural;
2. Reconhecimento da totalidade do homem, como ser constitudo de alma ecorpo. Nega-se, assim, a superioridade da vida contemplativa sobre a vidaativa. Exalta-se a liberdade e a dignidade do homem, reconhecendo seulugar central na natureza e seu destino de dominador dessa;
3. Reconhecimento da historicidade do homem, ou seja, da ligao do ho-mem com seu passado. O humanista se investir da tarefa de descobrir averdadeira face da Antiguidade clssica.
Vejamos, ento, de que maneira essa filosofia aparece na obra de um dosprimeiros renascentistas.
RENASCENA: A OBRA DE FILLIPO LIPPI
Nascido em 1406, Lippi foi internado em um mosteiro carmelita por uma tia,aos oito anos de idade. Aos 26 anos, deixou o mosteiro, passando a viver nomundo e a sustentar-se da sua arte. Trabalhou em Prato, na regio italianada Toscana, e em Florena, onde aceitou como discpulo Sandro Botticelli.
De conhecida reputao desregrada, Lippi teria se inspirado para pintar obelssimo rosto da virgem que se v na obra no rosto de uma monja, LucreciaButti, que foi escandalosamente amada pelo pintor. Fillipo teria convencidoLucrecia a fugir do convento com ele e, por vrios anos, viveram juntos mari-talmente. Tiveram filhos, entre eles Fillipino Lippi, grande pintor, responsvelpor terminar os afrescos da capela Brancacci, depois de Massaccio. Somenteem 1461, Csimo, o patriarca da famlia Mdici, convenceu o papa Pio II a dis-pensar Lippi de seus votos.
O quadro de Lippi (Figura 1) nos mostra uma cena muitas vezes retratada napintura, seja medieval, seja renascentista: a Virgem Maria com o menino Jesus,acompanhada por anjos. Est ela sentada em uma banqueta baixa e ornamen-tada, sem encosto, mas com uma almofada, de costas para uma paisagem lon-gnqua, e pode-se reparar uma leve toro em seu corpo, tpica da pintura dosprimeiros renascentistas.
A figura da virgem de Lippi nos remete a alguns elementos simblicos inte-ressantes. Primeiramente, note-se o vu, em uma representao pictrica excep-cional. O vu se conecta com o tema escolhido por Lippi, na medida em que smbolo do oculto, do mistrio e, por extenso, da revelao. Como afirma Lexicon(1994, p. 205), o acesso aos mistrios espirituais expressa-se muitas vezes aose desvelar o corpo humano. Da mesma maneira que a nudez de Cristo nacruz interpretada como smbolo da revelao, o vu da virgem aparece aqui
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em toda a sua transparncia, revelando o colo, e ento a carne, da me deJesus. O hijab, vu em rabe (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2003), significa oque separa duas coisas: isso pode ser entendido como o que separa o ocultodo revelado, e, no momento em que se v a virgem de Lippi, tem-se acesso aoque revelado, como veremos mais adiante.
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Figura 1 Madona, o meninoe dois anjos.
Outra simbologia significativa utilizada pelo frei encontra-se na tiara de p-rolas que enfeita a cabea de Maria. A prola assume diversos sentidos rela-cionados, de maneira geral, com a mulher e com a gua. Pela forma e pelo bri-lho, associada perfeio; pela dureza e imutabilidade, imortalidade. Paraos gregos antigos, pela sua beleza, simbolizava o amor. A sua interpretaomais profunda, todavia, est ligada ao fato de que a prola est escondida naconcha e se desenvolve no fundo do mar:
Assim, ela um smbolo da criana que nasce no seio materno, mas ,sobretudo, a luz que brilha nas trevas [...] o gnosticismo e o cristianismo acen-tuam esse significado, relacionando-o freqentemente com Cristo como o Logosnascido da carne (Maria) (LEXICON, 1994, p. 160).
A prola simboliza ainda a espiritualizao da matria, elemento bastanteoportuno para adornar os cabelos de Maria.
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Na simbologia crist, a concha smbolo de Maria, que abrigou em seu teroJesus Cristo, a prola preciosa. Pode ser vista em pinturas de vrios altares(no altar de So Barnab, pintado por Botticelli, por exemplo) uma concha queprotege Maria. Sua simbologia reflete tambm a pureza, pois o homem antigoacreditava que a concha era fecundada pelo orvalho.
Todos esses elementos nos levam a refletir sobre o aspecto mstico e religio-so da Virgem Maria. Mas qual seria o lado humanista da cena, a faceta renas-centista que diferencia a Madona de Lippi das madonas medievais?
Uma possibilidade para nos aprofundarmos no sentido do quadro seria ana-lisar os olhares das personagens que compem a cena. Primeiramente, veja-mos o anjo que se posiciona frente de Maria. Ele olha diretamente para o es-pectador, como se estivesse entregando Cristo me, ainda que no s a ela,mas tambm aos observadores do quadro. O olhar alegre e sorridente do anjopode nos lembrar a felicidade da revelao de Cristo, mas tambm o compro-misso de quem entrega uma grande responsabilidade aos homens.
Um pouco mais acima, o menino Jesus olha indefinidamente ou para a meou para o cu, o que bastante significativo, pois Cristo no pertence a apenasuma dessas esferas, mas sim s duas, a do humano e a do divino. Ele apareceposicionado entre os elementos celestiais (anjos) e o elemento terreno (Maria),quase que passando por uma transio.
Finalmente, Maria traz o olhar mais enigmtico, pois no olha nem para ofilho nem para os anjos. Pode-se dizer que um olhar para o vazio, comoquem toma cincia de uma provao inevitvel e a aceita (como se imaginassetudo o que ela mesma iria passar, assim como seu filho). Maria coloca-se nosubmissa, mas com o respeito da cabea levemente reclinada e como quem pe-de foras, como se confirma pelas mos em forma de prece.
Vemos, ento, uma Maria humanizada por Lippi, pois seu olhar de quemsabe o que vai enfrentar. Sua grandeza vem, portanto, no de ser me de Cristo,mas de assumir tudo o que esse fato trar consigo. Em outras palavras, suagrandeza vem de seu lado humano, e no do seu contato com o divino.
Ela assume, ento, os aspectos da filosofia humanista a que nos referimosanteriormente. Ou seja, encarna, por assim dizer, o reconhecimento da totalida-de do ser humano no apenas em seu lado espiritual e contemplativo, mas tam-bm em seu lado terreno. Revelar o lado humano e antropocntrico no quer di-zer abandonar o lado divino, como se viu nas palavras de Pico Della Mirandola(2001, p. 53): poders, ao invs, por livre escolha de tua alma, subir aos pata-mares superiores que so divinos. essa a escolha que a Maria, humanizada,da obra de Fillipo Lippi realiza, com respeito e humanidade.
De forma bastante diferente se comportaria uma madona medieval. Vejamoscomo essa cena seria retratada por um artista como Cimabue.
IDADE MDIA: A OBRA DE CIMABUE
A definio de Idade Mdia to complexa quanto da Renascena, e a uni-dade do perodo completamente artificial. Historiadores e crticos literrios jperceberam que houve mais de um proto-Renascimento durante a Idade Mdia,o que descarta a possibilidade de trabalharmos com um perodo de caracters-ticas uniformes. Como afirma Cunha et al. (1993, p. 11):
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o que se pode dizer da poca de Alcuno, na corte de Carlos Magno (sculosVIII e IX), cuja admirao pela cultura antiga o faz idealizar uma nova Atenase instituir um verdadeiro crculo acadmico; ou ainda na sobrevivncia de moti-vos antigos na pintura e escultura na corte de Oto III (sculo X).
Em sua conhecida obra, Hauser (2000) prope uma diviso da cultura me-dieval em trs perodos distintos, que afirma possuir diferenas maiores do queas que marcam o incio e o fim da Idade Mdia. Essa periodizao compreende:a economia natural da fase inicial da Idade Mdia; a cavalaria galante da IdadeMdia; e a cultura burguesa urbana da Idade Mdia (HAUSER, 2000, p. 123).
A despeito de todas as diferenas, o autor admite uma, e apenas uma, ca-racterstica do pensamento humano que permanecer intocada durante todo operodo; trata-se logicamente da religiosidade:
O nico elemento de importncia que domina a Idade Mdia antes edepois dessas mudanas cruciais a cosmoviso assente em bases metafsi-cas. Na transio da fase inicial para a Alta Idade Mdia, a arte [...] conser-va ainda um carter profundamente religioso e espiritual, sendo a expressode uma sociedade inteiramente crist (HAUSER, 2000, p. 123-124).
Temos ento o ponto que mais sobressai na determinao da Idade Mdia, aviso de mundo baseada naquilo que est alm do fsico, ou seja, no mundoespiritual. Se diversas mudanas sociais e econmicas perpassaram o perodo,podemos estar certos de que a hegemonia do clero permaneceu sem concorren-tes, assim como o prestgio de seu meio de salvao, a Igreja Catlica.
A Igreja foi, sem dvida, um dos grandes mecenas, tanto do perodo medie-val quanto do Renascimento. Em Florena, durante o governo dos Mdici, porexemplo, era considerado ostentao ter obras de arte em casa, mas isso noocorreria se a obra fosse doada para a Igreja. Isso explica, em parte, a grandedimenso da temtica religiosa na arte medieval.
Esse ainda o ponto que de maneira mais clara contrape o perodo medie-val ao perodo renascentista. Se, no caso do primeiro, temos a predominnciado pensamento teocntrico e transcendente; no segundo, temos a presena dohomem como medida do pensamento, ou seja, do antropocentrismo.
O pensamento teocntrico perceptvel na obra de Cimabue, a Madonaentronada (Figura 2), realizada entre 1280 e 1290. A pea um painel de ma-deira de grandes dimenses (425 x 243 cm).
Assim como Lippi foi mestre de Botticelli, Giovanni Cimabue igualmente foimestre de um grande pintor, talvez o mais importante do perodo, o tambmitaliano Giotto.
O painel refaz o mesmo tema j descrito. Aqui, a Virgem Maria aparece flan-queada por oito anjos simtricos colocados em volta de seu trono. A perspecti-va um tanto plana, fato comum na pintura medieval, mas j se mostra umarazovel noo de profundidade nos arcos inferiores.
Nas arcadas laterais baixas, encontramos os profetas Jeremias e Isaas queolham para cima, como que corroborando as profecias dos evangelhos sobre aconcepo imaculada de Cristo. J nas arcadas centrais, h as figuras de Abraoe David de cuja estirpe nasceu Cristo.
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O tom predominante o dourado, comum em muitas obras do perodo, dadasua simbologia que nos remete ao ouro que a luz divina, perfeio e pureza. ainda, no cristianismo, smbolo do amor, a mais elevada das virtudes. Inte-ressante ainda o fato de o autor ter escolhido o nmero de oito anjos, poisesse o numeral que simboliza a ordem e o equilbrio csmicos.
O que, porm, nos chama a ateno, em relao a uma comparao entreas duas madonas, a renascentista e a medieval, justamente a questo anali-sada dos olhares e dos gestos.
Veja-se, ento, que o olhar das personagens do quadro de Cimabue estdiretamente voltado ao espectador, e a superioridade hierrquica dessas figu-ras se confirma no gesto demonstrativo da Virgem, como quem nos diz estar ali,em Jesus que nos abenoa, a salvao, e no nos arbtrios dos homens. Comodiversas madonas medievais, a madona de Cimabue nos olha diretamente,assumindo uma postura de divindade, como aquela que possui algo de conhe-cimento superior.
Assim, enquanto o gestual da madona de Lippi humano, o gesto da prece,de quem pede foras, o gestual da virgem de Cimabue de algum que j pos-sui a revelao, demonstrando que o elemento principal no o lado humano,mas o que importa o ensinamento divino.
Alm desses, retomem-se os outros elementos da obra de Lippi. Lembremo-nos do vu da madona do frei renascentista, que transparente e que deixaantever a carne de Maria. Por extenso, podemos dizer que o lado humano(o corpo) que o vu, smbolo da revelao, como foi dito, procura enfatizar oumesmo revelar, no sentido mais mstico da palavra.
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Figura 2 Madona entronada.
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Vejam-se, em oposio, as vestes da virgem de Cimabue, que lhe cobremcompletamente os cabelos, deixando aparecer apenas o rosto, as mos e a pon-ta dos sapatos. O tom da pele de Maria praticamente assume o mesmo douradodo fundo, remetendo-nos assim mesma simbologia (luz divina, perfeio, pu-reza). Como de ordinrio na arte medieval, as vestes apenas insinuam leve-mente as formas do corpo, embora apresentem, no caso de Cimabue, dobras edrapejados razoavelmente requintados (o que j no comum nos artistas doperodo. Veja-se, por exemplo, a virgem de Duccio de Boninsegna, pintada namesma poca e hoje exposta na mesma galeria Uffizzi).
Podemos dizer ento que, se o corpo est quase que totalmente coberto efora de qualquer destaque, h que tom-lo por um elemento secundrio. Des-tarte, se o corpo no se destaca, s podemos atribuir a isso um sentido: a prio-rizao do espiritual em detrimento do fsico.
isso o que mais importa a Cimabue e a toda a arte do perodo medievo: oque est alm do corpo, ou seja, a salvao da alma. Ou ainda, nas palavras deHauser, j citadas, as bases metafsicas do pensamento medieval.
Por fim, essa constatao se refora tambm ao compararmos as cadeirasutilizadas pelos dois artistas. Enquanto a Maria de Lippi utiliza uma banquetabaixa e sem encosto, graciosamente adornada, mas com apenas uma almofa-da, a madona de Cimabue se coloca majestosamente em um grandioso trono,que a situa acima dos homens (Jeremias, Isaas, Abrao e David) e ao lado dosanjos celestiais.
CONSIDERAES FINAIS
Este ensaio procurou discutir alguns conceitos de arte renascentista e me-dieval, mediante o estudo de seus contextos histricos e de elementos de suasfilosofias.
Ao analisarmos o contexto histrico renascentista, encontramos a filosofiahumanista e procuramos entender de que forma a arte realizada no perodo porFillipo Lippi realizava um dilogo com essa filosofia.
Da mesma maneira, visualizamos um elemento comum que perpassou a Ida-de Mdia, que seria a cosmoviso assente em bases metafsicas. Vimos, as-sim, de que forma essa cosmoviso se refletia tambm nas artes plsticas, pormeio da anlise da obra de Giovanni Cimabue.
O objetivo inicial foi alcanado, na medida em que analisamos as obras epudemos perceber a dialtica que se estabeleceu entre os dois perodos em ques-to. Desse modo, se o pensamento teocntrico caracterizava a cosmoviso me-dieval, esse elemento no poderia deixar de se apresentar nas artes plsticas doperodo. Da mesma forma, o pensamento antropocntrico humanista pode servisto e analisado na obra de Fillipo Lippi.
REFERNCIAS
ABBAGNANO, N. Dicionrio de filosofia. So Paulo: Martins Fontes, 2003.
CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Dicionrio de smbolos. So Paulo: JosOlympio, 2003.
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CUNHA, M. H. R. et al. A literatura portuguesa em perspectiva. Direo Mas-saud Moiss. So Paulo: Atlas, 1993.
DURANT, W. A Renascena: a histria da civilizao. 2. ed. Rio de Janeiro: Re-cord, 1953.
HAUSER, A. Histria social da literatura e da arte. So Paulo: Martins Fontes,2000.
LEXICON, H. Dicionrio de smbolos. So Paulo: Cultrix, 1994.
MIRANDOLA, P. Della. Discurso sobre a dignidade do homem. Edio bilngue.Traduo Maria de Lurdes S. Ganho. Lisboa: Edies 70, 2001.
QUEIRZ, T. A. P. de. O Renascimento. So Paulo: Edusp, 1995.
LITERATURA
BOTTON, F. F. Renaissance and Middle Ages: the madonas by Fillipo Lippi e Giovanni Cimabue.Todas as Letras (So Paulo), volume 10, n. 2, p. 32-40, 2008.
Abstract: This essay aims at analyzing some con-cepts of the Renaissance and medieval art, establis-hing a dialog between the works of art and the his-torical, social and philosophical period. Therefore,the works by Fillipo Lippi, Renaissance painter, andGiovanni Cimabue, painter and mosaic artist frommedieval era, will be analyzed.
Keywords: Painting; Renaissance; Middle Ages.