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Universidade Federal de Uberlândia Instituto de Geografia Rene Gonçalves Serafim Silva Os atingidos por barragens do Complexo Energético Amador Aguiar: reminiscências simbólico-afetivas de territórios alagados e as novas identidades territoriais no Assentamento Olhos D’água Uberlândia 2011

Rene Gonçalves Serafim Silva · 2012. 4. 17. · Rene Gonçalves Serafim Silva Os atingidos por barragens do Complexo Energético Amador Aguiar: reminiscências simbólico-afetivas

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  • Universidade Federal de Uberlândia

    Instituto de Geografia

    Rene Gonçalves Serafim Silva

    Os atingidos por barragens do Complexo Energético Amador Aguiar: reminiscências

    simbólico-afetivas de territórios alagados e as novas identidades territoriais no Assentamento

    Olhos D’água

    Uberlândia

    2011

  • RENE GONÇALVES SERAFIM SILVA

    Os atingidos por barragens do Complexo Energético Amador Aguiar: reminiscências

    simbólico-afetivas de territórios alagados e as novas identidades territoriais no Assentamento

    Olhos D’água

    Trabalho Final de Graduação (TFG)

    apresentado ao Instituto de Geografia da

    Universidade Federal de Uberlândia,

    como requisito parcial à obtenção do

    título de Bacharel em Geografia.

    Orientador: Prof. Dr. Vicente de Paulo

    da Silva

    Uberlândia

    2011

  • Rene Gonçalves Serafim Silva

    Os atingidos por barragens do Complexo Energético Amador Aguiar: reminiscências

    simbólico-afetivas de territórios alagados e as novas identidades territoriais no Assentamento

    Olhos D’água

    Uberlândia, 02 de Dezembro de 2011.

    Banca Examinadora

    ______________________________________________________________

    Prof. Dr. Vicente de Paulo da Silva (Orientador)

    Instituto de Geografia – Universidade Federal de Uberlândia

    ______________________________________________________________

    Prof. Dr. Marcelo Cervo Chelotti

    Instituto de Geografia – Universidade Federal de Uberlândia

    ___________________________________________________________

    Prof. Esp. Hudson Rodrigues Lima

    Escola de Educação Básica (ESEBA) – Universidade Federal de Uberlândia

    Uberlândia

    2011

  • Aos atingidos por barragens do Brasil e do mundo.

    Aos moradores de Olhos D’água, que nos abriram suas

    porteiras e possibilitaram a realização desta pesquisa.

    Aos meus pais, Tânia e Rene, pelo esforço, trabalho e

    amor dedicados nos últimos 26 anos.

  • AGRADECIMENTOS

    À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG), pelo

    financiamento do projeto intitulado “Grandes Projetos de Investimentos no Triângulo Mineiro

    e Alto Paranaíba: o rio Araguari passo a passo e os efeitos sócio-espaciais da construção de

    barragens”, por meio do qual se desenvolveu esta pesquisa; à Universidade Federal de

    Uberlândia e ao Instituto de Geografia; ao Laboratório de Planejamento Urbano e Regional

    (LAPUR), por disponibilizar sua estrutura física e material, necessários ao desenvolvimento

    do trabalho; à Fundação de Apoio Universitário (FAU), pela gestão dos recursos do projeto.

    Ao Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Efeitos de Grandes Empreendimentos

    (NEPEGE) do Instituto de Geografia, por ter me aceitado como integrante e pesquisador,

    possibilitando alcançar não só este objetivo, mas outros que ainda virão. Isso inclui todas as

    pessoas que fazem parte dele, professores, pós-graduandos, graduandos, colegas de luta e

    trabalho. Aos professores e técnicos do Instituto de Geografia, pelos ensinamentos e

    contribuição para minha formação acadêmica. Em especial à Mizmar Costa, secretária do

    curso de Geografia, pela presteza em atender minhas solicitações sempre que possível. Meus

    sinceros agradecimentos.

    Ao Prof. Dr. Carlos Rodrigues Brandão, por me aceitar em sua disciplina como aluno

    especial do Programa de Pós-Graduação (Mestrado) em Geografia, (des)construindo, em

    parte, minha visão de mundo, meu modo de pensar. Suas aulas foram mais que aulas. Foram

    verdadeiros atos poéticos de ser e pensar, viver e agir.

    Ao Prof. Dr. Vicente de Paulo da Silva, meu professor e orientador de longa data, por

    quem tenho um apreço enorme. Sua contribuição para minha formação profissional foi de

    grande importância, e continua sendo. Sua crença na educação e por um mundo melhor fez

  • com que eu me enveredasse pelos caminhos tortuosos da educação, e agora da pesquisa. Sua

    maneira “humana” de ser e tratar as pessoas me ensinou muito mais que as teorias e práticas

    poderiam me ensinar.

    Aos meus amigos e colegas de trabalho e da vida (antigos e atuais), que de alguma

    forma contribuíram para minha formação, acadêmica ou pessoal. Não há como citar o nome

    de todos, pois consumiria parte considerável das páginas desta pesquisa, e por isso, optei por

    agradecer a todos de forma geral.

    À minha família: irmãos, avós, primos(as), tios(as), cunhados(as), enfim, todos

    aqueles que se consideram parte integrante da minha vida. Em especial ao meu primo

    Wellington Júnior, um garoto brilhante, de apenas 8 anos de idade, que sabe muito sobre

    muitas coisas para alguém da sua faixa etária, com quem aprendo muito mais do que ensino.

    À Fernanda Tavares, minha companheira dos últimos e próximos anos, pelo amor,

    dedicação, compreensão, conversas, diálogos, poesia, (des)entendimentos, e tudo mais que

    uma relação a dois exige e demanda, com muito prazer. Sua importância não está apenas na

    minha vida pessoal, mas nesta pesquisa também, pelo seu olhar psicológico/filosófico sobre o

    trabalho que desenvolvi. Muito obrigado por tudo!

    Por fim, aos meus pais, Tânia Mara Serafim Silva e Rene Gonçalves da Silva,

    comerciantes na Rua Timbiras, 1112, Bairro Saraiva, há mais de duas décadas. Por meio do

    trabalho de vocês é que construí alguns dos valores mais importantes da minha vida. Vocês

    foram meus primeiros e mais importantes mestres, com ensinamentos e lições que nenhuma

    universidade será capaz de ensinar. Obrigado é pouco. Ainda não existe a palavra que

    expressaria a gratidão de uma vida inteira.

  • “(…) o dinheiro, que tudo busca desmanchar, e o

    território, que mostra que há coisas que não se podem

    desmanchar.”

    (Milton Santos, 2006)

  • RESUMO

    Nesta pesquisa, propôs-se estudar os atingidos por barragens do Complexo Energético

    Amador Aguiar, cujo empreendimento localiza-se na Bacia Hidrográfica do Rio Araguari, em

    Minas Gerais, na área de influência dos municípios de Uberlândia, Araguari e Indianópolis.

    As duas usinas hidrelétricas que compõem o complexo deslocaram um grupo de famílias para

    o Assentamento Olhos D’água, situado no município de Uberlândia, como forma de

    indenização pela construção das barragens, que interrompeu suas relações de trabalho na área

    de influência. Nesse sentido, a pesquisa preocupou-se em compreender os efeitos

    socioespaciais causados pelo empreendimento, principalmente em relação aos atingidos

    moradores do assentamento, analisando o processo de desterritorialização e reterritorialização,

    por meio das reminiscências simbólico-afetivas e das novas identidades territoriais. Para

    tanto, utilizou-se a revisão bibliográfica sobre a temática e os conceitos de território e

    atingido, além do levantamento de informações referente ao empreendimento. Nas pesquisas

    de campo, privilegiaram-se as entrevistas com alguns atingidos/assentados, com o objetivo de

    compreender, a partir de suas falas e observações empíricas, as novas formas de produção e

    reprodução socioespacial, além de compreender, por meio da memória, como o rio era um

    importante referencial simbólico dessa população.

    Palavras-chave: Grandes Projetos de Investimento; Atingidos por barragem; Assentamento

    Olhos D’água; Identidade Territorial.

  • ABSTRACT

    In this research, we proposed to study those affected by dams in the Energy Complex Amador

    Aguiar, whose project is located in the Araguari River Basin, Minas Gerais, in the area of

    influence of the municipalities of Uberlândia, Araguari and Indianópolis. The two power

    plants that comprise the complex have caused a movement of a group of families to the Olhos

    D’água Settlement, located in the city of Uberlândia, as a form of compensation for the

    construction of the dams, what has interrupted their working relationships in the area of

    influence. The research was concerned to understand the socio-spatial effects caused by the

    project, especially in relation to the affected residents of the settlement, analyzing the process

    of deterritorialization and reterritorialization, through the symbolic and emotional

    reminiscences and new territorial identities. For this purpose, we used the literature review on

    the subject and the concepts of territory and affected people, besides the collection of

    information regarding the undertaking. In field works, the interviews with some

    affected/settlers were conducted, in order to understand, from their speeches and empirical

    observations, the new ways of socio-spatial production/reproduction, and understand, through

    memory, how the river was an important symbolic reference for that population.

    Keywords: Large Investment Projects; People affected by dams; Olhos D' água settlement;

    Territorial Identity.

  • LISTA DE FOTOS

    Foto 1 – Infraestrutura de comunicação...................................................................................54

    Foto 2 – Reservatório de água..................................................................................................54

    Foto 3 – Estrada de terra (via de acesso à BR-365).................................................................54

    Foto 4 – Casarão antigo: referencial simbólico........................................................................65

    Foto 5 – Lavoura de feijão em estágio inicial. ......................................................................66

    Foto 6 – Rego d’água e bananal às margens............................................................................66

    Foto 7 – Assentado trabalhando na lavoura de milho..............................................................66

    Foto 8 – Frutas não consumidas no chão da chácara...............................................................67

    Foto 9 – Local da piscicultura..................................................................................................69

    Foto 10 – Parte da armadilha....................................................................................................69

    Foto 11 – Placa indicando o nome de uma das chácaras do assentamento..............................70

  • LISTA DE FIGURA, MAPA, TABELA E IMAGENS

    Figura 1 – Evolução Territorial do Aproveitamento do Potencial Hidrelétrico Brasileiro......36

    Mapa 1 – Localização dos Grandes Projetos Hidrelétricos no Rio Araguari-MG...................39

    Tabela 1 – População Total e Crescimento Populacional da área de influência......................42

    Imagem 1 – Área de abrangência do assentamento em 20 de abril de 2005............................51

    Imagem 2 – Área de abrangência do assentamento em 29 de julho de 2007...........................52

    Imagem 3 – Área de abrangência do assentamento em 11 de novembro de 2010...................52

  • SUMÁRIO

    INTRODUÇÃO ........................................................................................................................................ 12

    CAPÍTULO 1 – REFERENCIAL TEÓRICO ............................................................................................... 16

    1.1 GRANDES PROJETOS DE INVESTIMENTO (GPI) ............................................................................ 17

    1.2 CARACTERIZAÇÃO DO CONCEITO DE ATINGIDO .......................................................................... 19

    1.3 GRANDES EMPREENDIMENTOS E TRANSFORMAÇÕES NO TERRITÓRIO ...................................... 23

    1.4 DO EMPREENDIMENTO AO LUGAR: CAMINHOS INTERROMPIDOS ............................................... 26

    1.5 DO LUGAR À IDENTIDADE: CAMINHOS QUE SE FUNDEM ............................................................. 27

    1.6 OS CAMINHOS DA PESQUISA: OS PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS ........................................ 29

    1.6.1 A PESQUISA QUALITATIVA ......................................................................................................... 29

    1.6.2 A COLETA DE DADOS .................................................................................................................. 31

    CAPÍTULO 2 – A OPÇÃO PELAS HIDRELÉTRICAS: HISTÓRICO E O COMPLEXO ENERGÉTICO

    AMADOR AGUIAR ................................................................................................................................ 33

    2.1 HIDRELÉTRICAS NO BRASIL: HISTÓRIA E PANORAMA ATUAL .................................................... 33

    2.2 O COMPLEXO ENERGÉTICO AMADOR AGUIAR: FORMAÇÃO, IMPLANTAÇÃO E OPERAÇÃO DO

    EMPREENDIMENTO ............................................................................................................................... 37

    2.2.1 LOCALIZAÇÃO DO EMPREENDIMENTO E CARACTERIZAÇÃO DOS AHE’S AMADOR AGUIAR I E

    II ............................................................................................................................................................ 39

    2.2.2 CARACTERIZAÇÃO AMBIENTAL DA ÁREA DE INFLUÊNCIA DO EMPREENDIMENTO ................ 41

    2.2.3 CARACTERIZAÇÃO SOCIOECONÔMICA E CULTURAL DA ÁREA DE INFLUÊNCIA DO

    EMPREENDIMENTO ............................................................................................................................... 42

    CAPÍTULO 3 – OS ATINGIDOS POR BARRAGENS MORADORES DO ASSENTAMENTO RURAL OLHOS

    D’ÁGUA: REMINISCÊNCIAS SIMBÓLICO-AFETIVAS E AS NOVAS IDENTIDADES TERRITORIAIS ....... 47

    3.1 A LEGISLAÇÃO E OS ATINGIDOS POR BARRAGENS: AS BASES DA CRIAÇÃO DO ASSENTAMENTO

    RURAL OLHOS D’ÁGUA ....................................................................................................................... 48

    3.2 LOCALIZAÇÃO E CARACTERIZAÇÃO DO ASSENTAMENTO RURAL OLHOS D’ÁGUA ................... 51

    3.3 ANTES DA “CHEGADA DO ESTRANHO” ......................................................................................... 57

    3.4 AS NOVAS IDENTIDADES TERRITORIAIS ....................................................................................... 62

    CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................................................... 73

    REFERÊNCIAS ....................................................................................................................................... 77

  • 12

    INTRODUÇÃO

    O modelo energético adotado pelo Brasil, pautado pelo uso do potencial hidráulico

    para formação de usinas hidrelétricas, ao longo de sua história tem refletido em significativas

    alterações no espaço geográfico, impondo à sociedade uma reflexão de aspectos variados,

    como a questão dos atingidos pelos empreendimentos, os impactos e efeitos ambientais, os

    efeitos socioespaciais, a destruição e a formação de novos territórios. No caso de

    empreendimentos hidrelétricos, com a construção de grandes barragens e a formação de lagos

    artificiais, destituem-se populações de pouco poder político e/ou econômico ante aos grandes

    projetos hidrelétricos, também chamados de Grandes Empreendimentos ou Grandes Projetos

    de Investimento.

    Os efeitos causados pela implantação de um Grande Projeto de Investimento, no

    tocante aos aspectos socioespaciais, não são passíveis de mensuração tão somente quantitativa

    e de valor econômico, pois impactam as condições de vida de uma população que vive,

    trabalha e/ou mantém um sentimento de pertencimento e afetividade com a terra (lugar) que

    nela se relaciona, desencadeando efeitos não previsíveis. Portanto, mensurar somente as

    perdas materiais é desconhecer ou reprimir as sociedades locais, seus modos de vida, seus

    elos, suas identidades construídas sobre o território.

    Nesse contexto, o presente trabalho justificou-se por buscar compreender e analisar os

    efeitos e processos socioespaciais que ocorreram no território dos atingidos pelo Complexo

    Energético Amador Aguiar, moradores do Assentamento Rural Olhos D’água, efeitos esses

    que causaram rupturas no território simbólico-afetivo e de trabalho dos atingidos, ao mesmo

  • 13

    tempo em que formaram novas identidades territoriais com os referenciais criados a partir do

    deslocamento para o assentamento.

    O objetivo geral da pesquisa foi realizar um estudo qualitativo sobre os efeitos

    socioespaciais impostos aos atingidos em questão. Analisou-se, também, a questão das

    hidrelétricas no Brasil, inferindo algumas preocupações com a matriz energética brasileira

    pautada prioritariamente nos projetos hidrelétricos, e o Complexo Energético Amador Aguiar

    nesse contexto. Por último, objetivou-se compreender a situação dos atingidos pelas barragens

    do complexo energético, moradores do assentamento Olhos D’água, revisitando suas

    reminiscências simbólico-afetivas em relação ao rio Araguari, ainda chamado, por eles, de rio

    das velhas, e suas atividades socioculturais às margens desse rio, ao mesmo tempo em que se

    buscou entender as novas identidades territoriais que foram criadas a partir do deslocamento.

    Os atingidos por barragens fazem parte de uma parcela da população brasileira que é

    compulsoriamente deslocada para outras áreas, próximas ou não, ao empreendimento que a

    desterritorializa. Nem sempre são relocados de maneira satisfatória, em condições mínimas de

    dignidade e, por isso, precisam se organizar em grupos para reivindicarem melhores

    condições de vida pós-deslocamento, ou contar com a colaboração da legislação, em

    determinados locais, que impede a completa omissão para com eles.

    Compreender esse deslocamento e suas consequências é vislumbrar a possibilidade de

    analisar os processos que ocorrem no espaço geográfico; a perda de um território e, por

    conseguinte, de uma identidade territorial. Mais que isso, é discutir a forma como o processo

    conhecido como reterritorialização dar-se-á ao longo do tempo e espaço, e como os processos

    espaciais e as relações socioculturais e econômicas configurar-se-ão em novas identidades de

    um grupo específico da sociedade.

  • 14

    A problemática proposta permite investigar de forma qualitativa as reais perdas que

    ocorreram no processo de deslocamento do atingido pela barragem em questão. E, ainda,

    possibilitar ao indivíduo ou grupo social pesquisado resgatar a memória e a identidade

    deixadas submersas pelas águas dos reservatórios, além de ser porta-voz das metamorfoses,

    das novas identidades, dos vínculos com o novo lugar, os novos territórios.

    No primeiro capítulo da monografia ora apresentada, foi realizado um levantamento e

    discussão do referencial teórico, julgados pertinentes para o desenvolvimento da pesquisa,

    procurando sempre incorporar autores que acrescentassem algo à discussão, mesmo aqueles

    que não trabalham diretamente com a temática, mas que versam sobre os conceitos de

    território e lugar na geografia. Ao final do referencial teórico, destinou-se um espaço em que

    foi possível discutir os procedimentos metodológicos da pesquisa, ou melhor dizendo, os

    caminhos da pesquisa.

    Na sequência, o capítulo dois apresenta ao leitor um breve histórico da opção pelas

    hidrelétricas no Brasil, refletindo sobre o contexto em que esses empreendimentos serão

    inseridos no cenário nacional. Foram discutidas a formação, implantação e operação do

    Complexo Energético Amador Aguiar, apresentando sua localização e caracterização.

    Realizou-se, também, uma caracterização física e dos aspectos socioeconômicos e culturais da

    área de influência do empreendimento.

    Por último, no capítulo três, aprofundou-se na pesquisa in loco. O encontro entre o

    pesquisador e os pesquisados revelou nuances desses atingidos pelas barragens do complexo,

    os quais foram deslocados para o Assentamento Rural Olhos D’água. Foram discutidas as

    bases legais que deram aos atingidos a possibilidade de serem assistidos pelo consórcio que

    realizou a implantação do empreendimento. Da mesma forma, foram tratadas questões

  • 15

    referentes à localização e caracterização do assentamento, novas identidades e

    territorialidades, bem como os antigos territórios atingidos pela execução dessas obras.

    Nas considerações finais, buscou-se refletir e (re)pensar as discussões feitas ao longo

    da pesquisa, com base nas interpretações dos dados coletados, essencialmente qualitativas,

    para a proposição de novas formas de se tratar os atingidos por barragens, além de demonstrar

    a importância da Geografia no contexto da temática, não podendo essa ciência, e aqueles que

    a produzem, se furtar de seu papel social.

    Por fim, espera-se que este trabalho contribua não somente para o desenvolvimento da

    ciência geográfica de uma forma geral, mas que alimente outras pesquisas relacionadas à

    mesma temática, construindo, pouco a pouco, bases teóricas que futuramente possam

    contribuir para a qualidade de vida daqueles que, invariavelmente, sofrerão com novos

    processos de desterritorialização em virtude dos grandes empreendimentos.

  • 16

    CAPÍTULO 1 – REFERENCIAL TEÓRICO

    Neste capítulo são abordados os conceitos que orientam esta pesquisa no que se refere

    aos estudos dos Grandes Projetos de Investimento (GPI’s) ou Grandes Empreendimentos e

    dos autores que cunharam estes termos no âmbito acadêmico, iniciando uma temática ainda

    pouco explorada pela ciência geográfica, mas bastante difundida nas ciências sociais e

    humanas em geral.

    Em um segundo momento, o conceito de atingido é discutido, pois esta é uma

    característica marcante em relação aos sujeitos da pesquisa, os quais fazem parte de um grupo

    social bastante desconhecido ou ignorado pela população brasileira. O atingido por barragem

    é, na atualidade, um grupo social crescente e que clama, ainda que de forma velada na maioria

    dos casos, por estudos a seu respeito, colocando-o no mesmo patamar de exclusão que outros

    grupos sociais e movimentos de caráter social.

    Adentrando na abordagem de cunho geográfico desta pesquisa, conceitos de território

    e seus desdobramentos (territorialização, desterritorialização e reterritorialização), e

    identidade territorial, também são debatidos no sentido de reafirmar e orientar as concepções

    que melhor atendem aos sentidos desta pesquisa. Esses conceitos não são exclusivos da

    geografia, mas não se deve furtar da responsabilidade de afirmá-los enquanto parte importante

    da literatura geográfica.

    Por último, foi realizada uma reflexão acerca dos caminhos da pesquisa, atentando-se

    para a importância da pesquisa qualitativa e apresentando a forma como os dados foram

    coletados na pesquisa.

  • 17

    1.1 GRANDES PROJETOS DE INVESTIMENTO (GPI)

    Ao delimitar o conceito de Grandes Projetos de Investimento (GPI) busca-se

    apresentar ao leitor a magnitude de tais projetos. Embora o termo “delimitar” passe uma ideia

    de restrição, pretende-se aqui situar a esfera de abordagem.

    O Grande Projeto de Investimento “procura caracterizar projetos que mobilizam em

    grande intensidade elementos como capital, força de trabalho, recursos naturais, energia e

    território” (VAINER; ARAÚJO, 1992, p.29, grifo nosso). Embora esses autores alertassem

    para a falta de precisão do termo, convém destacar que os elementos caracterizados vêm ao

    encontro da proposta desta pesquisa, uma vez que a construção e operação de usinas

    hidrelétricas requerem todas as variáveis citadas e destacadas.

    Em perspectiva semelhante, porém bem mais contundente que a definição de Vainer e

    Araújo (1992), Martins (1993, p. 61-62, grifo nosso) afirma, em relação aos grandes

    empreendimentos, que “trata de projetos econômicos de envergadura, como hidrelétricas,

    rodovias, planos de colonização, de grande impacto social e ambiental, mas que não têm por

    destinatárias as populações locais”. Observa-se que nesse caso, o autor já delimita quais tipos

    de projetos poderiam se enquadrar dentro de um Grande Projeto de Investimento, informando

    que o termo gera conflitos, ao passo que os atingidos não são encarados como tal e, nesse

    sentido, não são beneficiados como deveriam os diretamente beneficiados pelos

    empreendimentos; ao contrário, são vistos como entraves à implantação desses

    empreendimentos.

    Ainda seguindo a linha de pensamento de Vainer e Araújo (1992), pode-se dizer que

  • 18

    São empreendimentos que consolidam o processo de apropriação de recursos

    naturais e humanos em determinados pontos do território, sob lógica

    estritamente econômica, respondendo a decisões e definições configuradas

    em espaços relacionais exógenos aos das populações/regiões das

    proximidades dos empreendimentos (VAINER; ARAÚJO, 1992, p.34)

    Desse modo, são empreendimentos que visam à apropriação e reprodução do espaço

    sob a lógica economicista, desenvolvimentista e exploratória de recursos naturais,

    desconsiderando as populações que vivem e possuem algum vínculo material ou imaterial

    com o local que sofrerá a ação.

    Muitas vezes são populações que jamais saíram de seus lugares e que possuem uma

    relação histórica com os territórios que ocupam, sendo palco de suas manifestações culturais,

    sociais e de trabalho, nem sempre imperando a lógica do capital industrial-financeiro do

    mundo contemporâneo.

    Embora utilizem termos diferentes, tanto Vainer e Araújo (1992) quanto Martins

    (1993) concordam em questões essenciais sobre os grandes projetos: as hidrelétricas se

    encaixam como um grande projeto devido ao elevado capital investido, e as populações que

    sofrem diretamente os efeitos socioespaciais não são as “destinatárias” dos mesmos, como

    afirmam os autores.

    O termo GPI, ou Grandes Empreendimentos, começou a ser utilizado quando o Brasil

    passou a investir sobremaneira em políticas públicas voltadas à infraestrutura básica para o

    desenvolvimento nacional, principalmente na questão energética, conforme destaca Bortoleto

    (2001, p.53):

    Por meio desses investimentos, surgiram as políticas setoriais e os planos de

    investimentos, como os grandes projetos que comportavam

    empreendimentos de grande porte e que foram elaborados como meio para a

    implementação da infra-estrutura necessária para a industrialização e, ainda,

    como uma forma de levar o “desenvolvimento” às regiões em que foram

    instalados.

  • 19

    Com base nisso, pode-se refletir e inferir que um Grande Projeto de Investimento é,

    antes de qualquer coisa, um projeto nacional de desenvolvimento de um país. É, também, uma

    “política setorial”, como afirma a autora, demonstrando que a premissa e finalidade dos

    grandes empreendimentos é o desenvolvimento regional e, consequentemente, nacional de

    setores da economia. Estes setores, em um primeiro plano, são o setor elétrico

    regional/nacional e, posteriormente, setores industriais diversos.

    1.2 CARACTERIZAÇÃO DO CONCEITO DE ATINGIDO

    Os atingidos por barragens surgem como uma categoria de análise na perspectiva dos

    Grandes Projetos de Investimento devido a sua posição frente a esses empreendimentos. São

    os primeiros a sofrerem os impactos e efeitos que são trazidos pela implantação e operação

    das usinas hidrelétricas, principalmente aqueles que se encontram em áreas que serão

    inundadas para enchimento do reservatório dos complexos energéticos.

    Juntamente com o termo “atingido”, entra em cena outra questão: o deslocamento

    compulsório. Esses deslocamentos são, hoje, os maiores problemas enfrentados pelos

    atingidos, surgindo, daí, a necessidade de estudos para fomentar não somente as questões

    teóricas na academia, mas viabilizar, na prática, tanto para empresas do setor elétrico como

    para concessionárias, bases fundamentadas para a reinserção desses deslocados na sociedade e

    na vida cotidiana, sem maiores prejuízos sociais.

  • 20

    Existem variadas concepções de atingidos, elaboradas a partir daquilo que se considera

    como base técnica e econômica na definição de “atingido”. Mas antes de tudo, Vainer (2008,

    p.40) informa que “a noção não é nem meramente técnica, nem estritamente econômica”, ou

    seja, é necessário que haja um equilíbrio entre as questões técnicas e econômicas na

    delimitação da terminologia.

    Dentre as concepções discutidas por Vainer (2008), é possível destacar,

    primeiramente, a concepção “territorial-patrimonialista”, na qual o atingido é o proprietário de

    terra. As medidas de negociações e reassentamento desses proprietários apresentam um

    caráter indenizatório das terras desapropriadas para construção da barragem e enchimento do

    reservatório. Embora o atingido aqui seja o proprietário, o autor faz uma ressalva ao incluir

    aqueles que trabalharam sobre um pedaço de terra sob posse e, por isso, possuem benfeitorias,

    entrando nessa concepção como atingidos também, e sendo indenizados pelo valor das

    benfeitorias realizadas.

    A outra concepção debatida pelo autor é a “concepção hídrica”, na qual o atingido

    passa a ser o inundado, ou seja, aquele que do ponto de vista prático teve suas terras alagadas.

    São reconhecidos nessa concepção os não-proprietários de terras, mas que nela trabalham,

    apesar de se delimitar apenas aqueles que perderam suas atividades/terras no limite do

    reservatório. Relegam-se, assim, aqueles que sofrem com os efeitos do empreendimento

    devido à proximidade com o projeto a ser executado.

    De acordo com Vainer (2008, p.44),

    A única forma de superar de maneira consistente as concepções que têm

    como núcleo o direito do empreendedor, e não os direitos das populações

    afetadas, é entender a natureza do processo social deflagrado pelo

    empreendimento, processo simultaneamente econômico, político, cultural e

    ambiental. Trata-se, com efeito, de um processo de mudança social que

    interfere em várias dimensões e escalas, espaciais e temporais.

  • 21

    Compreende-se que as concepções abordadas pelo autor vão, na verdade, atender aos

    interesses dos atores hegemônicos da relação de conflito que se estabelece nos Grandes

    Projetos de Investimento, e que é preciso superá-las. Dessa forma, é imperativo criar no

    âmbito acadêmico discussões densas e profundas acerca da problemática teórica exposta, uma

    vez que as populações afetadas pelos grandes empreendimentos são, de fato, as maiores

    prejudicadas pelas mudanças sociais ocasionadas por agentes exteriores a eles.

    Por modificar as estruturas socioeconômicas pré-estabelecidas, é preciso aprofundar as

    discussões e propor resoluções entre os sujeitos envolvidos no conflito que se instala, sendo

    que o Estado, representado pelas agências estatais, não pode se furtar do papel de mediador e

    representante do grupo social atingido. Na prática, grande parte dos atingidos ainda tem que

    se organizar por meio dos movimentos sociais para reivindicar suas perdas, ficando as

    concessionárias de energia e as agências do setor elétrico, de forma proposital, alheias ao

    processo de “desterritorialização” que se processa na implantação de uma usina hidrelétrica.

    No documento apresentado pela Comissão Mundial de Barragens (WCD), intitulado

    “Deslocamento, Reassentamento, Reabilitação, Reparação e Desenvolvimento” (2000,

    tradução nossa1), Bartolome e outros (2000), com relação ao termo “deslocamento”, dirão que

    se trata de um movimento involuntário na maioria das vezes, com pouca participação

    significativa da população atingida.

    Os afetados (tradução literal da palavra affected, o que equivaleria a atingidos no

    português), de acordo com a Comissão Mundial de Barragens (2000),

    1 Original em inglês: Displacement, Resettlement, Rehabilitation, Reparation, and Development. Final Version:

    November 2000.

  • 22

    têm sido [...] frequentemente os últimos a receber qualquer informação

    significativa do projeto de barragem. Que as informações que eles recebem

    são tipicamente limitadas e fornecidas muito tarde no planejamento e

    implementação de medidas mitigadoras (BARTOLOME et al., 2000, p.3,

    tradução nossa2).

    O documento em questão ainda informa que o deslocamento “refere-se não somente

    àqueles que são forçados a se relocarem fisicamente a fim de realização do projeto e seus

    aspectos relacionados, mas também incluem aqueles que são deslocados de seus recursos

    básicos e meio de vida” (BARTOLOME et al., 2000, p.4, tradução nossa3).

    Sigaud (1988) compara os deslocamentos compulsórios realizados nas barragens de

    Sobradinho e Machadinho, cujas realidades distintas não originaram processos de

    deslocamentos tão diferentes de outras realidades nacionais, como Germani (2003) relata e

    acompanha as negociações de reassentamento das populações atingidas por Itaipu no final da

    década de 1970 e início de 1980. Dessa forma, assume-se nesta pesquisa a concepção de

    deslocamento econômico, no qual o meio de vida e o sustento de um grupo social são

    interrompidos pelo empreendimento.

    2 Original em inglês: The displaced and other affected people have often been the last to receive any meaningful

    information on the dam project. What information they have received has typically been limited and provided

    very late in the planning and implementation of mitigation measures.

    3 Original em inglês: In this context displacement refers not only to those who are forced to physically relocate

    in order to make way for the project and its related aspects but also includes those who are displaced from their

    resource base and livelihoods.

  • 23

    1.3 GRANDES EMPREENDIMENTOS E TRANSFORMAÇÕES NO TERRITÓRIO

    É um tanto quanto desafiador debater sobre o conceito de território e contribuir para a

    definição deste termo nas pesquisas geográficas, cujo enredo obrigatoriamente se situa nas

    abordagens que esse conceito possui. Primeiramente, por se tratar de um conceito que não é

    exclusivo da Geografia, porém fundamental nas pesquisas geográficas. Em segundo lugar, por

    ser um conceito que se transformou muito ao longo dos anos na ciência geográfica e que hoje

    possui várias concepções e abordagens, dependendo das vertentes e bases filosóficas que os

    autores possuem e, por conseguinte, seguem.

    Nesta pesquisa, foram utilizadas as abordagens e concepções que trabalham na

    perspectiva de território enquanto “chão mais a identidade” (SANTOS, 2006, p.14) e as

    relações de poder que circunscrevem essas áreas, nem sempre palpáveis devido à

    imaterialidade em que muitas vezes se processam.

    Do ponto de vista teórico, é preciso entender que:

    Espaço e território não são termos equivalentes. [...] É essencial

    compreender bem que o espaço é anterior ao território. O território se forma

    a partir do espaço, é o resultado de uma ação conduzida por um ator

    sintagmático (ator que realiza um programa) em qualquer nível. Ao se

    apropriar de um espaço, concreta ou abstratamente (por exemplo, pela

    representação), o ator “territorializa” o espaço. (RAFFESTIN, 1993, p.143).

    Assim,

    […] o território compõe de forma indissociável a reprodução dos grupos

    sociais, no sentido de que as relações sociais são espacial ou

    geograficamente mediadas. Podemos dizer que essa é a noção mais ampla de

    território, possível assim de ser estendida a qualquer tipo de sociedade, em

    qualquer momento histórico, e podendo igualmente ser confundida com a

    noção de espaço geográfico. (HAESBAERT, 2006, p.53).

  • 24

    Com as contribuições desses dois autores importantes para a Geografia

    contemporânea, pode-se dizer que a questão que o primeiro coloca está na separação entre

    espaço e território. Estes dois termos, embora estejam um assentado sobre o outro na prática,

    não são iguais. Tampouco são semelhantes, uma vez que o território existe a partir da

    apropriação do espaço, ou seja, aquele é uma apropriação deste.

    Essa apropriação, conforme destaca Raffestin (1993) na citação acima, pode ocorrer de

    duas formas: concreta ou abstrata. Esta segunda, não sendo possível sua visualização, utiliza-

    se de representações que de alguma forma mostram sua “territorialização”. Haesbaert (2006)

    vem complementar a essência básica do território, enquanto local da reprodução dos grupos

    sociais e confundida com a noção de espaço geográfico.

    Em uma visão que traduz a essência do território, Santos (2006, p.13) dirá que

    território “é o lugar em que desembocam todas as ações, todas as paixões, todos os poderes,

    todas as forças, todas as fraquezas, isto é, onde a história do homem plenamente se realiza a

    partir das manifestações da sua existência”. Nessa concepção, o território adquire uma forma

    receptora, onde tudo aquilo que a sociedade produz e reproduz vai delimitar um determinado

    território.

    O geógrafo brasileiro Marcos Aurélio Saquet (2010), analisando obras de autores

    europeus que trabalham a questão do território, incorpora na concepção do termo a natureza

    enquanto fator relacional concomitante com os aspectos antropocêntricos conceituais

    apresentados nas definições dos autores supracitados. Assim, “o território é entendido como

    lugar de relações sociais; de conexões e redes; de vida, para além da produção econômica,

    como natureza, apropriação, mudanças, mobilidade, identidade e patrimônio cultural; como

    produto socioespacial e condição para o habitat, viver e produzir.” (SAQUET, 2010, p. 118).

  • 25

    Como consequência da abordagem de território, principalmente numa pesquisa na qual

    se trabalha com grupos sociais e deslocamentos compulsórios devido a agentes externos (a

    chegada das hidrelétricas), desmembramentos do conceito também se fazem presentes na

    pesquisa e vão caracterizar o movimento e a dinâmica do território. Consistem no processo de

    desterritorialização e reterritorialização que acontece devido às mudanças que ocorrem no

    interior do território, ou a partir dele, não somente uma mudança física de um lugar a outro,

    mas, principalmente, da perda de acesso a ele.

    Antes de relacionar, no âmbito deste trabalho, a desterritorialização como forma de

    extinção do território, propõe-se a pensá-la numa outra perspectiva:

    [...] desterritorialização relacionada à efetiva apropriação e ao domínio do

    espaço, especialmente aquela ligada aos processos de exclusão

    socioespacial. Trata-se, de fato, de uma des-territorialização como perda de

    acesso à terra, visto não só em seu papel de reprodução material, num

    sentido físico (como na principal bandeira do movimento dos sem-terra),

    mas também como locus de apropriação simbólica, afetiva (HAESBAERT,

    2001, p. 127, grifo do autor).

    Desse modo, a desterritorialização por ora trabalhada nesta pesquisa refere-se ao

    processo de privação do acesso à terra e trabalho que os atingidos por barragens sofrem (ou

    sofreram) com a chegada dos grandes empreendimentos, além da desapropriação simbólico-

    afetiva realizada pelo deslocamento compulsório, acarretando em transformações, ou mesmo

    perda, dos símbolos que faziam parte do cotidiano e do espaço vivido do atingido, restando-

    lhe apenas a memória daquilo que existia antes.

    Como a desterritorialização requer, nesse caso, uma nova territorialização a partir do

    momento em que não existe mais o território sucumbido, a reterritorialização é o movimento

    seguinte à perda de um território. Pensar nessa reterritorialização não é apenas refletir na

    mudança física de um determinado lugar a outro. É pensar como os símbolos e identidades

  • 26

    foram reproduzidos no novo território, e até que ponto as perdas foram superadas pela

    incorporação de novos símbolos ou pelas relações afetivas entre o Homem e o novo território.

    1.4 DO EMPREENDIMENTO AO LUGAR: CAMINHOS INTERROMPIDOS

    Não poderia ser relegado o conceito de lugar nesta pesquisa pelos significados e

    importância que esse termo alcançou na ciência geográfica nas últimas décadas. Outro fator

    preponderante está no recorte espacial em que esta pesquisa é desenvolvida, situando-se em

    um (ou múltiplos) território(s) onde vários lugares o preenchem, sendo, portanto, uma escala

    de abordagem.

    De acordo com Silva (2007, p.20),

    A conceituação de lugar parte do entendimento de que ele permite análises

    mais localizadas, no tempo e no espaço, e proporciona respostas mais

    nítidas, pois é ele que representa a dimensão do espaço mais próxima seja

    para o indivíduo, seja para a coletividade. Por outro lado, a inserção do lugar

    no chamado espaço global acaba por transformar os gestos, os sonhos, a

    utopia. Mesmo assim, sua característica de corresponder à dimensão do

    vivido, do cotidiano, não se perde e atua para manter a coerência do grupo.

    Ele é experienciado por uma população local, embora envolto por uma

    trama, progressivamente, regional, internacional, global.

    Nesta análise, destaca-se aquilo que procurou ser trabalhado na questão do lugar: o

    espaço vivido e o cotidiano como representação desse lugar. O espaço vivido, no interior de

    uma mesma família, nem sempre apresenta os mesmos valores, as mesmas “vivências” entre

    os indivíduos. Captar o espaço vivido de cada indivíduo na sociedade requer adentrar na vida

  • 27

    cotidiana das pessoas para compreender, minimamente, o lugar desses indivíduos na

    sociedade.

    Um clássico da geografia na perspectiva fenomenológica, Tuan (1980, p.5) apresenta o

    termo topofilia, segundo o qual “é o elo afetivo entre a pessoa e o lugar ou ambiente físico”.

    Com base nessa afirmação e retratando a formação do “lugar”, os elos são criados a partir das

    relações e vivências que o indivíduo realiza com o seu lugar, dentro de um determinado

    território, inseridos de maneira mais ampla no espaço geográfico. Retomando as ideias de

    Tuan, os sentidos são as bases da percepção do indivíduo em relação ao seu lugar, afirmando

    ainda que “O termo topofilia associa sentimento com lugar” (TUAN, 1980, p.129). Ressalta-

    se que o conceito de lugar trabalhado nesta pesquisa refere-se à abordagem humanística, cujas

    bases teóricas se apoiaram nas correntes fenomenológicas.

    1.5 DO LUGAR À IDENTIDADE: CAMINHOS QUE SE FUNDEM

    Para compreender os significados de identidade, recorre-se às leituras que não sejam

    exclusivamente da Geografia. Buscar outros autores e outras ciências é um exercício que

    enriquece o debate e promove um crescimento científico.

    Diante disso, uma primeira acepção de identidade que se procurou colocar nesta

    pesquisa vem da psicanálise por entender que a identidade é, em primeiro lugar, um conceito

    que envolve o Ser. Para tanto, recorreu-se à leitura de Laing (1989, p.82, grifo do autor), o

    qual argumenta que identidade “é aquilo pelo qual a pessoa se sente a mesma, neste lugar,

    neste momento, como naquele momento e naquele lugar, no passado ou no futuro; é aquilo

  • 28

    pelo qual se identifica”. Identificar-se com algo faz com que o indivíduo sinta-se parte de um

    todo por meio de sua individualidade. As identidades são passíveis de mudanças no decorrer

    do tempo e espaço, embora as heranças identitárias sejam carregadas por toda a vida do

    indivíduo.

    No prisma geográfico e com base na abordagem dada por Bagnasco (1999), Saquet

    (2010, p.147, grifo do autor) informa que identidade “se refere à vida em sociedade, a um

    campo simbólico e envolve reciprocidade. Na Geografia, significa, simultaneamente,

    espacialidade e/ou territorialidade”. Portanto, esse “campo simbólico” pode ser considerado

    além do território tangível. São os territórios simbólicos que as relações de lazer e trabalho

    proporcionam a grupos sociais, nesse caso os atingidos por barragens. Esses territórios são

    abstratos e de difícil visualização para aqueles que se encontram exteriores às relações

    socioculturais que se processam no interior dessas sociedades.

    A partir da consolidação desse território, Haesbaert (2007) introduz no âmbito da

    geografia o debate sobre as identidades territoriais, que mescla as categorias território e

    identidade em um sentido de identificação com o território sobre o qual pertence um

    indivíduo ou grupo social. Segundo o autor, a identidade territorial ocorre quando há uma

    construção “concomitante e indissociável” entre os conceitos de identidade e território. Nesse

    sentido, a identidade territorial é uma construção que pressupõe um espaço para que a

    identidade possa ser construída ao longo do tempo.

  • 29

    1.6 OS CAMINHOS DA PESQUISA: OS PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

    A pesquisa requer um caminho a ser seguido, um rigor que a torna e consolida como

    uma pesquisa que seja, de fato, científica. Nesse caminho, os procedimentos metodológicos

    tornam-se essenciais não somente por direcionar e encaminhar a construção do trabalho, mas

    por fazê-la uma ferramenta que contribua para o andamento e organização dos dados

    levantados e para a transformação dessas “fontes” em resultados.

    Obviamente as ciências humanas apresentam particularidades se comparadas com

    outras ciências, como as da natureza e exatas, constituindo, portanto, uma ciência que permite

    um rigor científico menos rígido (no que se refere a modelos, fórmulas, teoremas, etc.) e mais

    flexível (com relação a métodos, técnicas, abordagens, etc.). Todavia, essa flexibilidade a

    torna uma ciência tão ou mais complexa que as demais, por exigir do pesquisador e das

    pessoas que leem seus resultados uma capacidade analítica e crítica acerca das questões

    levantadas e discutidas.

    1.6.1 A PESQUISA QUALITATIVA

    O caminho escolhido neste estudo perpassa pela abordagem qualitativa, ou seja, visa

    uma compreensão de determinada realidade social a partir da qualidade dos dados coletados, e

    não de suas quantificações. Essa abordagem é uma escolha do pesquisador, mas que carrega

    forte influência da própria evolução do pensamento geográfico brasileiro. Não cabe por ora

  • 30

    levantar essa discussão, mas pode ser mais bem examinada e de forma bastante didática em

    Moraes (1987).

    Por ser uma pesquisa qualitativa, o que se busca é a compreensão de um determinado

    “fenômeno social” sobre o espaço geográfico, que neste caso são os efeitos de um

    empreendimento hidrelétrico sobre um grupo de pessoas atingidas e seus territórios. Nesse

    contexto, Seabra (2001, p.34, grifo do autor) afirma que

    O fenômeno social é melhor (sic) compreendido a partir de uma abordagem

    qualitativa. Entretanto, no Brasil, o procedimento quantitativo tornou-se uma

    regra para a pesquisa social até o final dos anos 1960. [...] A pesquisa

    qualitativa preocupa-se nas ciências sociais com um nível de realidade que

    não pode ser quantificado. Como a realidade social representa o próprio

    dinamismo da vida individual e coletiva, com toda a riqueza de significados

    a ela relacionados, o objeto da pesquisa social é essencialmente qualitativo.

    Embora o autor remeta à pesquisa nas ciências sociais, pode-se aplicar esse conceito às

    ciências humanas de forma geral também, uma vez que uma está, necessariamente, vinculada

    à outra. O início da fala do autor também evidencia uma questão que a própria geografia teve

    de superar, que é a questão do procedimento essencialmente quantitativo. Por ser algo

    dinâmico, compreender os processos do fenômeno social associado ao espaço geográfico em

    sua essência, e não na superficialidade dos números, é construir uma ciência engajada e

    preocupada com os sujeitos da pesquisa, não somente com um objeto.

  • 31

    1.6.2 A COLETA DE DADOS

    Toda pesquisa requer a coleta de dados, independentemente da abordagem utilizada.

    Neste caso, fez-se o levantamento bibliográfico sobre a temática proposta e de categorias da

    Geografia para uma discussão e reflexão diante da problemática exposta. O intuito desse

    levantamento e discussão é promover um diálogo com os autores que versam sobre as

    questões abordadas na pesquisa e fazer uma aproximação e conexão das categorias.

    Em seguida, delimitou-se a área a ser pesquisada e os sujeitos que seriam utilizados

    como fonte de pesquisa e, ao mesmo tempo, objeto de estudo. Houve, assim, um

    compartimento do recorte espacial: o Complexo Energético Amador Aguiar, de forma geral; e

    o Assentamento Olhos D’água, de forma específica.

    Com relação ao complexo energético, as fontes de pesquisa foram os boletins

    informativos do Consórcio Capim Branco Energia (CCBE) distribuídos gratuitamente à

    sociedade, tanto na versão impressa quanto na eletrônica. Por sua vez, com os atingidos do

    assentamento, foram utilizadas pesquisas de campo, fazendo entrevistas com roteiro prévio,

    fotografias e anotações de campo. Desse modo, o intuito era aprofundar na questão da

    pesquisa qualitativa, e não apenas nas questões meramente empíricas.

    Ao final, fez-se uma “amarração” das bases teóricas levantadas e discutidas com os

    dados coletados, possibilitando uma interpretação da realidade socioespacial, principalmente

    dos efeitos que o empreendimento trouxe aos atingidos.

    No próximo capítulo, será trabalhada a questão das hidrelétricas no Brasil, fazendo um

    breve histórico da questão hidrelétrica e a situação atual, além de inserir o Complexo

    Energético Amador Aguiar nesse contexto, abordando sua implantação. Além disso, será feita

  • 32

    uma localização do empreendimento, bem como as caracterizações física, socioeconômica e

    cultural da área de influência do complexo energético.

  • 33

    CAPÍTULO 2 – A OPÇÃO PELAS HIDRELÉTRICAS: HISTÓRICO E O COMPLEXO

    ENERGÉTICO AMADOR AGUIAR

    Neste capítulo retoma-se o processo histórico de formação das usinas hidrelétricas no

    Brasil de forma geral, além de analisar a conjuntura atual da questão energética e,

    principalmente, a implantação das hidrelétricas em território nacional. Ademais, é feito um

    estudo de caracterização e localização do Complexo Energético Amador Aguiar, cuja parcela

    de atingidos desse grande empreendimento encontra-se no Assentamento Rural Olhos D’água,

    objeto de estudo e análise desta monografia.

    É realizada uma caracterização geral da área de influência do empreendimento, tanto

    dos aspectos ambientais como dos aspectos socioespaciais e culturais, apresentando um

    panorama que permite o leitor refletir sobre a instalação das duas usinas hidrelétricas que

    compõem o complexo, visto que a bacia hidrográfica do Rio Araguari, conforme será visto

    adiante, abriga outros empreendimentos hidrelétricos ao longo de seu curso.

    2.1 HIDRELÉTRICAS NO BRASIL: HISTÓRIA E PANORAMA ATUAL

    Compreender o histórico de instalação e expansão das hidrelétricas no Brasil é uma

    questão de compreender a própria história do país, principalmente as (re)configurações

    socioespaciais ao longo do tempo e a influência dessa infraestrutura no desenvolvimento

    econômico nacional, regional e local.

  • 34

    Segundo Leite (1997), a partir da década de 1950 o Estado brasileiro ampliou o

    modelo de desenvolvimento energético oriundo das usinas hidrelétricas, cujo aumento foi

    impulsionado pela busca do desenvolvimento econômico e investimento em infraestrutura no

    governo Juscelino Kubitschek. O impulsionador desse processo logicamente não surge no

    governo JK, mas na Era Vargas, período em que o governo federal rompe com a estrutura

    política vigente e reformula as prioridades de investimento, principalmente aquelas vinculadas

    a uma infraestrutura que desse suporte às primeiras indústrias de base da época.

    De acordo com Rosa (1988, p.9), “o Brasil se destaca como um dos que mais

    investiram em grandes projetos, principalmente na década de 70” do século passado. Nesse

    período, a energia hidrelétrica no país triplicou devido à construção de usinas de grande porte

    (CONANT; GOLD, 1981, p.205). Nesse sentido, é possível pensar os fatos históricos em

    escala nacional e mundial para o aumento da produção de energia advinda das hidrelétricas: o

    período desenvolvimentista nacional foi iniciado, de fato, pela Era Vargas, quando da

    necessidade de substituição das importações e a criação das primeiras indústrias de base,

    consolidadas nos governos seguintes, até nas crises mundiais referentes à produção,

    fornecimento e comércio do petróleo.

    Aliado a esses fatores, existe também o potencial hídrico do Brasil em conjunto com

    as formas de relevo favoráveis ao represamento da água nos vales das grandes e médias bacias

    hidrográficas. No caso específico de Minas Gerais, o estado já possui um histórico antigo de

    sua utilização em recursos hidráulicos para geração de energia elétrica. No Brasil, “os

    primeiros aproveitamentos hidráulicos foram realizados no estado de Minas Gerais, durante

    os últimos vinte anos do século XIX” (MIELNIK; NEVES, 1988, p.17). Ainda de acordo com

    os autores, esses primeiros aproveitamentos tiveram origem privada, de empresas de

    mineração e fábricas têxteis cujo objetivo era a autoprodução.

  • 35

    Esse histórico possibilita visualizar como as ações das esferas governamentais

    influenciam e (re)configuram o espaço geográfico ao longo da história. As ações políticas e os

    planos de desenvolvimento (que no caso quase sempre estão correlacionadas estritamente ao

    desenvolvimento econômico) são determinantes na transformação do território, sendo que as

    políticas energéticas além de transformar também destroem territórios, os territórios das

    populações atingidas, não somente o meio físico e a biodiversidade.

    A situação energética atual é preocupante, na medida em que os grandes

    empreendimentos hidrelétricos estão migrando para a região norte do país, principalmente

    para a bacia amazônica, cujos efeitos são ainda maiores devido a um conjunto de fatores que,

    se somados, apresentam um aspecto bastante negativo, como um relevo de planície, grande

    biodiversidade, áreas de ocupação de ribeirinhos e indígenas (populações tradicionais, que

    dificilmente se adaptam aos deslocamentos forçados), predominantemente, dentre outros

    fatores.

    Em bacias hidrográficas já ocupadas por empreendimentos hidrelétricos,

    principalmente na região sudeste, estão surgindo em grande quantidade as Pequenas Centrais

    Elétricas (PCH’s), utilizando-se de rios menores e da suposta concepção de que esses

    pequenos empreendimentos hidrelétricos apresentam um impacto menor à sociedade e ao

    ambiente natural, mas que pode ser contestado e discutido dependendo do contexto no qual

    são feitas as instalações dessas centrais.

    Segundo dados do Ministério de Minas e Energia (MME), no ano de 2009 a Oferta

    Interna de Energia Elétrica (OIEE) oriunda da hidroeletricidade, dentre outras fontes

    disponíveis, era de 77,3% do total, sendo que a segunda maior oferta era de apenas 4,7%,

    proveniente da biomassa. Estes dois dados apresentados revelam duas preocupações: a

    primeira referente à falta de diversificação equilibrada da matriz energética brasileira,

  • 36

    sobrecarregando apenas uma fonte; a segunda refere-se aos problemas socioambientais que a

    energia hidrelétrica impõe à sociedade, principalmente àqueles que moram em regiões onde

    serão construídas barragens para a formação do reservatório que alimentará as turbinas dos

    geradores de energia elétrica.

    Analisando o documento, publicado em 2007 pelo Ministério de Minas e Energia

    (MME), denominado “Matriz Energética Nacional 2030”, o qual traça um exaustivo relatório

    sobre a expansão da oferta e demanda de energia no Brasil nas próximas duas décadas,

    observa-se que quando é abordada a questão das hidrelétricas no Brasil, o MME, recorrendo

    ao atlas de Energia Elétrica do Brasil divulgado pela Agência Nacional de Energia Elétrica

    (ANEEL) em 2002, aponta a região do Triângulo Mineiro, no estado de Minas Gerais, e

    adjacências como sendo a área central dos aproveitamentos do potencial hidrelétrico do país,

    tornando-se um núcleo de geração de energia elétrica por meio das hidrelétricas.

    A figura 1 ilustra essa evolução na segunda metade do século XX, claramente

    aparecendo a região do Triângulo Mineiro como o núcleo de máximo aproveitamento do

    potencial hidrelétrico devido à presença de bacias hidrográficas importantes, como a do Rio

    Grande, do Rio Paranaíba e, em maior escala, do Rio Paraná. Essa evolução pode estar ligada

    por dois fatores que, associados, propiciaram essa mudança territorial: o potencial hidráulico

    das bacias hidrográficas e à mudança da capital federal do país na década de 1960 do Rio de

    Janeiro para Brasília, construída com o propósito de abrigar o centro político nacional,

    possibilitando uma expansão e interiorização tanto da população/cidade quanto dos

    empreendimentos de infraestrutura básica, como a energia.

  • 37

    Figura 1 – Evolução Territorial do Aproveitamento do Potencial Hidrelétrico Brasileiro

    Fonte: Atlas de Energia Elétrica do Brasil ANEEL (2002), retirado do relatório “Matriz Energética

    Nacional 2030” (2007).

    Desse modo, o panorama da energia elétrica no Brasil se encontra muito dependente

    das hidrelétricas, devido ao processo histórico de investimento nesse setor, sem

    investimentos, na mesma proporção, em outros setores, principalmente naqueles considerados

    “limpos”, como a energia eólica e solar, que demandam investimentos pesados em pesquisas e

    tecnologia.

    2.2 O COMPLEXO ENERGÉTICO AMADOR AGUIAR: FORMAÇÃO, IMPLANTAÇÃO E

    OPERAÇÃO DO EMPREENDIMENTO

    O Complexo Energético Amador Aguiar4 foi criado a partir do Consórcio Capim

    Branco Energia (CCBE), composto pela associação das seguintes empresas: Vale (Companhia

    4 As informações referentes ao Complexo Energético Amador Aguiar e o processo de consolidação do

    empreendimento foram coletadas diretamente do sítio eletrônico do consórcio. Devido à ausência de autoria dos

    textos cujas informações foram coletadas, utilizamos na forma de citação indireta, sem citação de autoria, das

  • 38

    Vale do Rio Doce), Cemig (Companhia Energética de Minas Gerais), Suzano Papel e

    Celulose e Votorantim Metais. Até junho de 2002 a empresa Camargo Correia Cimentos

    também integrava o consórcio, porém transferiu suas cotas para as empresas do CCBE,

    autorizada pela ANEEL. O complexo energético é composto por duas hidrelétricas, citada

    pelo consórcio como Aproveitamentos Hidrelétricos (AHE’s) Amador Aguiar I e II. Na

    implantação do empreendimento os AHE’s eram chamados de Capim Branco I e II, sendo

    posteriormente rebatizados para o nome atual.

    A concessão de uso do trecho da Bacia Hidrográfica do Rio Araguari no qual se

    encontra o complexo, foi autorizada pela ANEEL em dezembro de 2000 por meio de um

    leilão, cujo ganhador, o CCBE, ficou responsável pela construção e operação do

    empreendimento. No entanto, os estudos de viabilidade e potencialidade energética na região

    começaram anos antes dessa concessão, em meados da década de 1960. Desse período até

    1987, foram realizados os primeiros estudos de viabilidade do potencial hidráulico do Rio

    Araguari.

    A princípio, apenas uma usina hidrelétrica seria construída na área que hoje

    compreende o complexo. Entretanto, o estudo de viabilidade técnica e econômica,

    posteriormente, decidiu que os impactos seriam menores com a construção de duas usinas,

    sem perder a capacidade de produção de energia. No segundo semestre de 2003, o complexo

    energético efetivamente começou a ser construído e entrou em operação parcialmente no dia

    21 de fevereiro de 2006, com a primeira unidade geradora em funcionamento do AHE

    Amador Aguiar I. O primeiro empreendimento do complexo entrou completamente em

    operação no dia 16 de maio de 2006, quando sua terceira e última unidade geradora entrou em

    informações obtidas. Os textos na íntegra podem ser acessados no seguinte endereço eletrônico:

    http://www.ccbe.com.br/home/

    http://www.ccbe.com.br/home/

  • 39

    funcionamento. Em 9 de março de 2007, a primeira unidade geradora do AHE Amador

    Aguiar II entrou em funcionamento, e sua última unidade geradora em 4 de julho do mesmo

    ano. Desse modo, da primeira unidade geradora da primeira usina até a última unidade da

    segunda, foram gastos quase 1 ano e meio com as obras, demonstrando a complexidade de

    tais empreendimentos.

    O Complexo Energético Amador Aguiar foi oficialmente inaugurado em 5 de

    dezembro de 2006, com a presença de vários políticos das esferas municipal e estadual,

    empresários e pessoas da comunidade que, de alguma forma, tiveram relações com a

    construção do complexo. Nota-se, por meio dos informativos do consórcio, que os “atores

    hegemônicos” da sociedade, tanto do cenário político como financeiro, fizeram questão de se

    apresentar como os responsáveis pelo desenvolvimento econômico da região, por meio de

    seus discursos.

    2.2.1 LOCALIZAÇÃO DO EMPREENDIMENTO E CARACTERIZAÇÃO DOS AHE’S AMADOR

    AGUIAR I E II

    A área de influência do Complexo Energético Amador Aguiar localiza-se na Bacia

    Hidrográfica do Rio Araguari, no trecho ocupado pelos municípios de Uberlândia,

    Indianópolis e Araguari, região do Triângulo Mineiro, extremo oeste do estado de Minas

    Gerais. O mapa 1 apresenta a localização dos empreendimentos hidrelétricos presentes na

    bacia hidrográfica, demonstrando o processo de ocupação e apropriação do espaço geográfico

    dos grandes empreendimentos na região.

  • 40

    Mapa 1 – Localização dos Grandes Projetos Hidrelétricos no Rio Araguari-MG.

    Fonte: ROSA, et al., 2004.

    Adaptações: BUENO, G. O.; DAMASCENO, I. A.; VIEIRA, W. A. (2010).

    Retirado de: DAMASCENO, I. A. (2011).

    Além de mostrar no mapa as usinas hidrelétricas, a Pequena Central Hidrelétrica

    (PCH) Pai Joaquim aparece por se inserir no contexto dos grandes projetos hidrelétricos,

    embora sua dimensão e área afetada seja de menor proporção. No entanto, os efeitos não

    devem ser compreendidos apenas no local, mas na região de influência do empreendimento,

    somados com as demais hidrelétricas.

    Segundo as informações do CCBE, o AHE Amador Aguiar I possui potência instalada

    de geração de energia instalada de 240 MW, operando a fio d’água e ocupando uma área de

    18 km2, enquanto o AHE Amador Aguiar II apresenta potência instalada de 210 MW e

    ocupando uma área de 46 km2, também operando no mesmo sistema que Amador Aguiar I.

    Percebe-se que apesar de Amador Aguiar II possuir uma área alagada bem maior que Amador

  • 41

    Aguiar I, a usina não possui a mesma capacidade de geração de energia, o que acarreta

    maiores impactos socioambientais.

    2.2.2 CARACTERIZAÇÃO AMBIENTAL DA ÁREA DE INFLUÊNCIA DO EMPREENDIMENTO

    Caracterizar ambientalmente a área de influência do empreendimento é um exercício

    não somente de elencar o tipo de solo, relevo, rochas, vegetação ou clima. É apresentar uma

    visão holística de como o conjunto dessas características propiciou a escolha desse trecho da

    Bacia Hidrográfica do Rio Araguari para a instalação de usinas hidrelétricas. Vale ressaltar

    que outros trechos também apresentam empreendimentos hidrelétricos, de maior ou menor

    magnitude, devido aos condicionantes ambientais semelhantes.

    De acordo com Baccaro e outros (2004, p.4),

    Os rios e córregos da região apresentam várias cachoeiras e corredeiras.

    Próxima do Vale do Araguari a paisagem possui um relevo fortemente

    ondulado, com altitude de 800 a 1.000 m e declividades suaves, em torno de

    30%. Os solos são muito férteis, do tipo latossolo vermelho e vermelho-

    escuro. Em todas as suas porções, verifica-se que a vegetação predominante

    é o cerrado e nas vertentes mais abruptas observa-se a presença de mata

    mesofítica. Além do abastecimento de água para alguns municípios, o Rio

    Araguari apresenta um potencial energético que já está sendo explorado,

    com as Usinas Hidroelétricas de Nova Ponte e Miranda. Está prevista

    também a construção das Usinas de Capim Branco I e II. [...] As condições

    climáticas na Bacia do Rio Araguari são caracterizadas com nitidez por duas

    estações bem definidas, sendo uma seca compreendendo os meses de abril a

    setembro, e outra úmida, entre os meses de outubro e março.

    Observa-se que o conjunto de atributos físicos apresentado pela autora revela um

    potencial energético, conforme citado, principalmente pelas condições geomorfológicas,

  • 42

    climáticas e hidrológicas. Por outro lado, a construção de uma usina impõe a criação de um

    reservatório que, no caso específico do Rio Araguari, alaga terras férteis e matas nativas de

    cerrado, modifica o microclima, trazendo consequências ambientais que ultrapassam a

    questão local.

    O desnível apresentado pelo relevo é preponderante para potencializar o uso da bacia

    hidrográfica no seu uso para a instalação de empreendimentos hidrelétricos. Embora a região

    apresente uma estação seca de 6 meses durante o ano, nos outros 6 meses as chuvas

    conseguem recarregar de forma satisfatória os reservatórios de água, impedindo uma possível

    desativação temporária das usinas hidrelétricas. Em anos mais secos, como na estação seca

    prolongada deste ano (2011), os reservatórios baixam seus volumes de água não só para

    aproveitamentos hidrelétricos, mas também para o abastecimento doméstico, necessitando do

    setor público solicitar aos usuários uma utilização racional da água.

    2.2.3 CARACTERIZAÇÃO SOCIOECONÔMICA E CULTURAL DA ÁREA DE INFLUÊNCIA DO

    EMPREENDIMENTO

    Os aspectos relacionados à condição socioeconômica e cultural da área de influência

    do empreendimento estudado tornam a problemática ainda mais interessante para a discussão

    e debate, pois é uma região que apresenta uma importância regional e nacional considerável

    em vários prismas. Conforme mencionado, os municípios afetados pelo empreendimento e

    que tiveram parte de suas terras alagadas foram Uberlândia, Araguari e Indianópolis. Este

    último apresentou efeitos menores por ter tido apenas um trecho de seu município alagado,

    enquanto que Uberlândia e Araguari sofreram maiores perdas.

  • 43

    A população total da área de influência do empreendimento é de 716.245 habitantes,

    segundo o último censo realizado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística)

    em 2010. Conforme pode ser observado na tabela 1, a taxa de crescimento populacional dos

    municípios envolvidos, se somada sua população, nos últimos 10 anos foi de 17,6%.

    Tabela 1 – População Total e Crescimento Populacional da área de influência.

    Município Censo 2000 Censo 2010 Taxa de Crescimento

    Uberlândia 501.214 600.285 19,7%

    Araguari 101.974 109.779 7,6%

    Indianópolis 5.387 6.181 14,7%

    Total 608.575 716.245 17,6%

    Fonte: IBGE - Censo Demográfico 2000-2010.

    Organizado por: SILVA, R.G.S. (2011).

    De acordo com a taxa de crescimento do Censo Demográfico 2000-2010 do IBGE

    divulgada no seu endereço eletrônico, essa taxa de crescimento populacional dos municípios

    envolvidos diretamente com o empreendimento foi superior à média nacional de 11,7%, à

    média regional (Sudeste) de 10,5% e à média estadual de 9,1%. Com exceção de Araguari, os

    outros dois municípios superaram as taxas de crescimento nos três níveis de escala (Brasil,

    Sudeste e Minas Gerais), o que não sugere que o crescimento populacional implique em

    desenvolvimento socioeconômico necessariamente, mas podem ser feitas correlações sob

    alguns aspectos, como nível de emprego/desemprego, infraestrutura básica e educacional,

    dentre outros fatores. Essas correlações podem sugerir se este crescimento traduziu-se em

    desenvolvimento regional.

  • 44

    Embora o crescimento populacional seja um indicativo quantitativo, algumas

    considerações a partir desses dados podem ser feitas, tais como: aumento do número de

    pessoas que demandam por energia elétrica em mais de 100.000 habitantes, impondo ao setor

    elétrico uma disponibilidade maior de energia para esse contingente populacional; como

    consequência, aumenta-se, também, a necessidade de energia para os demais setores que

    movimentarão a economia da região e, logicamente, do contingente excedente que cresceu

    nos últimos 10 anos e que estará locado nos setores econômicos dos municípios; impõe-se aos

    municípios novas linhas de transmissão de energia, que ocasionarão em áreas a serem

    ocupadas e, por conseguinte, investimento em infraestrutura urbana e rural que dê conta de

    acompanhar esse crescimento.

    Outras análises e correlações podem ser feitas com maiores detalhes, implicando em

    utilização de outras fontes de dados, tornando a análise mais rica e precisa, com informações e

    desdobramentos. Embora o intuito deste estudo seja apenas fazer uma breve caracterização

    socioeconômica e cultural, essas reflexões servem como exercício para (re)pensar a geografia

    como ferramenta ao planejamento de setores como o energético, aliado a outros setores de

    infraestrutura a partir de dados populacionais.

    Com relação aos setores econômicos, principalmente o setor industrial, por ser o

    grande consumidor da energia produzida no país, Soares e outros (2004, p.134) apresentam

    um estudo no qual mostram que

    A bacia do Rio Araguari, por estar situada em área de cerrado modernizado,

    possui importante complexo agroindustrial, constituído por agroindústrias

    processadoras de grãos, carnes, frutas, vegetais e laticínios, e também por

    indústrias relacionadas às demandas do campo, ou seja, indústrias para a

    agricultura, especialmente aquelas associadas ao segmento da biotecnologia

    animal e aquelas de insumos e equipamentos agrícolas.

  • 45

    Os municípios da área de influência do empreendimento não estão restritos a somente

    esses tipos de indústrias, mas contam também com outros setores industriais, principalmente

    Uberlândia, por ser polo educacional de diversos centros de pesquisa em nível superior de

    graduação e pós-graduação, papel desempenhado com destaque pela Universidade Federal de

    Uberlândia (UFU) em várias áreas do conhecimento.

    No que tange aos aspectos culturais, a questão religiosa é sempre colocada em

    evidência pela importância e tradição das festas populares na bacia do Rio Araguari,

    especialmente nas áreas rural e urbana de Uberlândia, na sede e nos demais distritos. Essa

    ênfase em destacar Uberlândia está relacionada à importância socioeconômica e cultural que o

    município representa, além de ser o local onde o assentamento rural Olhos D’água está

    inserido.

    Santos e Alves (2004) retratam a importância que as festas de cunho religioso, como a

    congada e a folia de reis, para citar apenas dois exemplos, representam para a tradição e

    costumes de um povo, cujo alicerce religioso não está baseado apenas nas origens europeias,

    mas africanas. Apresentam a dinâmica dessas festas na região, com suas características que

    envolvem simbolismo, tradição, metamorfoses, rupturas e outros fatores que tornam a festa

    em si uma forma de manifestação cultural do antigo e do novo mesclado no espaço

    geográfico.

    No próximo, e último, capítulo, o assentamento rural Olhos D’água será trabalhado na

    perspectiva das novas identidades territoriais construídas na vida dos atingidos que optaram

    por seguir morando no campo. A base teórica que permeia e traça as tramas de uma população

    ainda pouco conhecida pela sociedade brasileira, encontrará a realidade de um grupo social

    marcado para sempre pelos efeitos que o empreendimento hidrelétrico operou em suas vidas,

  • 46

    transformando não somente suas vidas cotidianas, mas estabelecendo novos territórios, ou

    melhor, novas identidades territoriais.

  • 47

    CAPÍTULO 3 – OS ATINGIDOS POR BARRAGENS MORADORES DO ASSENTAMENTO RURAL

    OLHOS D’ÁGUA: REMINISCÊNCIAS SIMBÓLICO-AFETIVAS E AS NOVAS IDENTIDADES

    TERRITORIAIS

    “(...) A gente quer ter voz ativa

    No nosso destino mandar

    Mas eis que chega a roda viva

    E carrega o destino prá lá (…)”

    (Roda Viva – Chico Buarque)

    A música “Roda Viva”, do compositor Chico Buarque, inicia a trajetória deste capítulo

    pela correlação do trecho citado com a vida daqueles que são atingidos por grandes

    empreendimentos hidrelétricos. São pessoas que querem ter voz, não necessariamente ativa,

    frente aos processos e urdiduras que lhes são lançados, sem que ao menos tenham a

    possibilidade de uma alternativa própria, de escolhas próprias.

    A “roda viva”, metaforicamente associada ao empreendimento hidrelétrico, comanda

    os deslocamentos de famílias inteiras, carregando não só “o destino pra lá”, mas os

    sentimentos simbólico-afetivos em relação ao pertencimento de um território, que não são

    passíveis de uma observação meramente empírica.

    Neste capítulo, portanto, a “voz” dos atingidos passa a ser a própria pesquisa e seus

    resultados, que visa atender essa necessidade dos alagados, dos inundados, dos afogados, ou

    qualquer outra nomenclatura utilizada para remeter às pessoas que são desprovidas de suas

    terras, de seus trabalhos e de suas vidas cotidianas, em virtude da construção de barragens das

    usinas hidrelétricas. Esses aspectos (trabalho, vida cotidiana, rio, etc) são o que pode ser

    chamado de concepção simbólico-afetivo nesta pesquisa.

  • 48

    3.1 A LEGISLAÇÃO E OS ATINGIDOS POR BARRAGENS: AS BASES DA CRIAÇÃO DO

    ASSENTAMENTO RURAL OLHOS D’ÁGUA

    Um dos pressupostos da pesquisa, de maneira mais ampla, é incutir no meio

    acadêmico e nas instituições públicas e privadas, que se relacionam com o setor elétrico, a

    nova exigência de um dos maiores avanços da legislação federal no que tange aos atingidos

    por barragens. Trata-se do Decreto nº 7.342, de 26 de Outubro de 2010, que na íntegra

    Institui o cadastro socioeconômico para identificação, qualificação e registro

    público da população atingida por empreendimentos de geração de energia

    hidrelétrica, cria o Comitê Interministerial de Cadastramento

    Socioeconômico, no âmbito do Ministério de Minas e Energia, e dá outras

    providências. (BRASIL, 2010).

    Esse reconhecimento jurídico não afasta a ideia de discussão e mais avanços na

    legislação sobre o atingido por barragem, mas inicia uma nova era sobre a legitimação, em

    nível nacional, de um grupo social que sequer obteve ao longo de décadas de lutas seu

    reconhecimento legal na totalidade dos atingidos.

    Embora o decreto federal tenha um valor jurídico apenas a partir dos empreendimentos

    licenciados de 2011 em diante, inicia-se com este trabalho um movimento de qualificação dos

    atingidos pelas barragens do Complexo Energético Amador Aguiar, um processo que

    desencadeou uma série de transformações socioespaciais de um pequeno grupo social. O foco

    não está no cadastramento socioeconômico, conforme reza a legislação, mas na qualificação

    dos territórios perdidos, e dos novos que surgiram com o reassentamento no Olhos D’água.

    Retomando a análise do Decreto nº 7.342, visualiza-se que o conceito de atingido,

    discutido no capítulo 1 desta monografia, é tratado logo no Art. 2º do documento, conforme a

    seguir:

  • 49

    Art. 2º - O cadastro socioeconômico previsto no art. 1o deverá contemplar os

    integrantes de populações sujeitos aos seguintes impactos:

    I - perda de propriedade ou da posse de imóvel localizado no polígono

    do empreendimento;

    II - perda da capacidade produtiva das terras de parcela remanescente

    de imóvel que faça limite com o polígono do empreendimento e por ele

    tenha sido parcialmente atingido;

    III - perda de áreas de exercício da atividade pesqueira e dos recursos

    pesqueiros, inviabilizando a atividade extrativa ou produtiva;

    IV - perda de fontes de renda e trabalho das quais os atingidos

    dependam economicamente, em virtude da ruptura de vínculo com áreas do

    polígono do empreendimento;

    V - prejuízos comprovados às atividades produtivas locais, com

    inviabilização de estabelecimento;

    VI - inviabilização do acesso ou de atividade de manejo dos recursos

    naturais e pesqueiros localizados nas áreas do polígono do empreendimento,

    incluindo as terras de domínio público e uso coletivo, afetando a renda, a

    subsistência e o modo de vida de populações; e

    VII - prejuízos comprovados às atividades produtivas locais a jusante

    e a montante do reservatório, afetando a renda, a subsistência e o modo de

    vida de populações.

    Parágrafo único. Para os efeitos do disposto neste Decreto, o

    polígono do empreendimento abrange áreas sujeitas à desapropriação ou

    negociação direta entre proprietário ou possuidor e empreendedor, incluindo

    as áreas reservadas ao canteiro de obras, ao enchimento do reservatório e à

    respectiva área de preservação permanente, às vias de acesso e às demais

    obras acessórias do empreendimento. (BRASIL, 2010, grifo nosso).

    Destaca-se no decreto o inciso IV e o parágrafo único do Art. 2º, nos quais abordam

    duas questões importantes e que se relacionam diretamente com esta pesquisa: a legitimação

    do atingido e a inserção do termo “polígono do empreendimento”. O referido documento

    insere os atingidos que perderam seus postos de trabalho e, por conseguinte, suas fontes de

    renda. Todos os moradores do assentamento Olhos D’água podem ser “classificados” pela

    concepção de atingido grifada na citação: não eram proprietários de terras ou posseiros, mas

    trabalhadores rurais das propriedades que integravam o polígono do empreendimento.

    Ao analisar o parágrafo único disposto no decreto, compreende-se que esse polígono

    do empreendimento não corresponde tão somente às áreas de alagamento da barragem, mas

  • 50

    áreas que estão diretamente relacionadas com o empreendimento, ampliando a noção de

    atingido. Todavia, as negociações, que deveriam ser mediadas pelo poder público (e suas

    instituições que garantem ao indivíduo a plena cidadania e democracia), são “privatizadas” ao

    empreendedor, formado por grandes corporações e empresas privadas, muitas vezes de capital

    aberto e estrangeiro, deixando os atingidos à mercê de um capital que visa o lucro e não as

    pessoas, respondendo à provocação incitada por Chomsky5 (2002) no título traduzido de sua

    obra.

    Ainda com relação às leis que regulam e asseguram o direito dos atingidos, muito

    antes do supracitado decreto, o estado de Minas Gerais já possuía legislação específica para

    tratar os atingidos por empreendimentos hidrelétricos. E por existir tal legislação estadual é

    que o assentamento Olhos D’água foi criado, atendendo a uma demanda legal, e não uma

    exigência dos atingidos não-proprietários.

    De acordo com a Lei Estadual nº 12.812 de 1998, que “Regulamenta o parágrafo único

    do art. 194 da Constituição do Estado, que dispõe sobre assistência social às populações de

    áreas inundadas por reservatórios, e dá outras providências”, os moradores do assentamento

    se enquadram como “assalariados”, conforme parágrafo único do art. 1º da lei:

    Parágrafo Único – A assistência social será prestada àqueles que habitem

    imóvel rural ou urbano desapropriado, bem como aos que nele exerçam

    qualquer atividade econômica, aí incluídos comerciantes, posseiros,

    assalariados, parceiros, arrendatários, meeiros e assemelhados. (MINAS

    GERAIS, 1998, grifo nosso).

    Esse dispositivo jurídico possibilitou aos atingidos uma assistência social impositiva

    ao empreendedor, tornando-se uma medida que, ao menos, não ignora a existência dos

    5 Título da obra de Noam Chomsky em português: O Lucro ou as Pessoas? Neoliberalismo e Ordem Global

    (2006).

  • 51

    atingidos “assalariados”, ou seja, pessoas que poderiam ser excluídas do processo de

    indenização/reassentamento por não possuir qualquer vínculo material com as propriedades

    alagadas pelo empreendimento.

    3.2 LOCALIZAÇÃO E CARACTERIZAÇÃO DO ASSENTAMENTO RURAL OLHOS D’ÁGUA

    O Assentamento Rural Olhos D’água6 está localizado próximo às margens da BR-365,

    no município de Uberlândia-MG, nas coordenadas geográficas 18º53’39.11”S e 48º07’39”O

    (a referência adotada foi a entrada que dá acesso à estrada de terra da rodovia para o

    assentamento). A distância do assentamento à sede municipal de Uberlândia é de 11

    quilômetros, tomando-se como referência o entroncamento da BR-050 com a BR-365, em

    direção ao rio Araguari, ao lado direito da rodovia nesse sentido.

    As imagens 1, 2 e 3 mostram as transformações espaciais ocorridas na área que

    compreende o assentamento, facilmente visualizadas pelas três imagens em três períodos

    distintos.

    6 Algumas informações do Complexo Energético Amador Aguiar (Capítulo 2) e do Assentamento Rural Olhos

    D’água foram retiradas do Consórcio Capim Branco Energia (CCBE) por meio dos Informativos “Capim

    Branco”, disponíveis no sítio eletrônico do consórcio em: www.ccbe.com.br. Desse modo, os créditos autorais

    das informações indiretamente citadas nesta parte do capítulo são do CCBE, que não cita autoria em seus textos.

    http://www.ccbe.com.br/

  • 52

    Imagem 1 – Área de abrangência do assentamento em 20 de abril de 2005.

    Fonte: Google Earth.

    Nota-se que a primeira imagem ainda apresentava uma grande quantidade de

    vegetação e era