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www.epoca.com.br 12 MAIO 2014 I Nº 832 I R$ 10,90 CARGA TRIBUTáRIA APROXIMADA 3,65% www.epoca.com.br HOSPITAIS E CONVêNIOS BRIGAM – E QUEM PAGA A CONTA é VOCê OS CUSTOS ABUSIVOS DE REMéDIOS E TRATAMENTOS AS FAMíLIAS QUE PERDERAM TUDO PARA PAGAR O HOSPITAL A NOVA FAMíLIA SCOLARI O que esperar da convocação previsível de Felipão PóS-GRADUAçãO Os cursos que ajudam a partir para uma nova carreira LINCHAMENTO ON-LINE Como a internet contribuiu para a morte brutal de Fabiane POR QUE A MEDICINA PODE LEVAR VOCÊ À FALÊNCIA REPORTAGEM ESPECIAL

reportagem por especial Que amedicinapode · Os exemplos estão distribuídos ao longo desta reporta- ... cisões do médico nem o material ... (chamados,segundo o jargão da saúde,

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www.epoca.com.br

12 maio 2014 i Nº 832 i R$ 10,90

Carga TribuTária aproximada 3,65%

www.epoca.com.br

hospitais e convêniosbrigam – e quem

paga a conta é você

os custos abusivosde remédios

e tratamentos

as famílias queperderam tudo

para pagar o hospital

a nova família scolario que esperar da convocaçãoprevisível de Felipão

pós-graduaçãoos cursos que ajudam apartir para uma nova carreira

linchamento on-lineComo a internet contribuiupara a morte brutal de Fabiane

porQue

a medicina podelevar vocÊ À falÊncia

reportageme s p e c i a l

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IDEIAS dilemas da saúde

A medicina privada prolongaa vida como nunca. Issopode significar a mortefinanceira das famíliasabandonadas pelos planosde saúde. É possível curaresse mercado doente?

O ladOOcultOdas cOntasde HOspital

uanto vale o ar que chega aos pulmõesa cada inspiração? Ninguém pensa nis-so enquanto respira, naturalmente, 25mil vezes ao dia. É uma pergunta irre-

levante na saúde – e crucial na doença. Por 24horas de oxigênio, os melhores hospitais privadosde São Paulo chegam a cobrar R$ 3 mil. Essa é sóuma das preocupações da oftalmologista S.L., de31 anos. Ela pertence a uma família de médicosque, há dois anos, vive um drama, em silêncio, numdos mais respeitados centros de saúde do país – oHospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo. s

Qcristiane segatto

Foto: Rogério Cassimiro/ÉPOCA e Sendi Morais/ÉPOCA60 i épOca i 12 de maio de 2014

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“Meu pai sOfreuuMa lesãO

cerebral nuMacirurgia nO

albert einstein.está internadO

Há dOis anOs.devO Quase r$ 5

MilHões e fuiprOcessada.

sintO vergOnHa.uMa vergOnHa

enOrMe de algOQue nãO fiz”

s.l., oftalmologista, segurauma montanha de extratos da

conta hospitalar detalhadae boletos de cobrança

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dilemas da saúde

S.L. não roubou. Não matou. Não feriu os bons costu-mes. Ainda assim, esconde o rosto. Para quem se orgulhavade manter as finanças em dia, a cobrança é constran-gedora. S.L. deve cerca de R$ 5 milhões. Foi processadapelo Einstein por não pagar uma conta impagável. Suacontravenção foi acompanhar o pai e assinar o documentode internação quando ele decidiu se submeter a uma ci-rurgia que tinha tudo para dar certo. No início de 2012,a família vivia uma vida confortável em Assis, interiorde São Paulo. Seu pai, o médico H.L., era dono de umaclínica de oftalmologia. Aos 60 anos, ele decidira se sub-meter a uma troca de válvula cardíaca quando um examerevelou que ela não funcionava bem. O procedimento foiplanejado com calma. H.L. escolheu o mesmo cirurgiãoque o operara, com sucesso, alguns anos antes no AlbertEinstein. O plano de saúde – a Unimed de Assis – nãooferecia cobertura naquele hospi-tal. Segundo o orçamento emitido,a operação custaria R$ 120 mil. AUnimed aceitou fazer um reembol-so de R$ 60 mil. O paciente pagariao restante em dez parcelas.

O orçamento compreendia oitodiárias de hospital. Segundo a pre-visão médica, após esse período, H.Lreceberia alta. Ele entrou no centrocirúrgico e nunca mais saiu do Eins-tein. Foi vítima de uma complicaçãopouco frequente. A artéria aorta serompeu. Com pouco oxigênio, seu cé-rebro sofreu uma lesão permanente.H.L. não fala e não se mexe. Olha episca. “Tenho a sensação de que, àsvezes, o cérebro dele conecta e, logodepois, desconecta”, diz a filha. “Emalguns momentos ele parece entendero que digo. Em outros, não.” Sem po-der contar com os rendimentos dele,a família fechou a clínica de Assis,demitiu os funcionários, vendeu car-ros e equipamentos médicos. A contacresce a cada dia. Cobranças chegam quase todo mês. Boletosde R$ 180 mil, R$ 250 mil, R$ 300 mil brotam sob a porta doapartamento, como se fossem contas de água e luz. Quandoa cobrança chega, S.L. abre o envelope, espia o valor e jogaa carta na gaveta de boletos do hospital. Foi preciso esva-ziar uma gaveta inteira do guarda-roupa para acomodar ascobranças. A aparente indiferença esconde uma dor moral.Para os honestos, a inadimplência pode ser devastadora. S.L.recorreu aos antidepressivos para tentar suportar a ausênciado pai e a falência da família. Com o nome registrado nocadastro nacional dos maus pagadores, ela não pode abrirconta em banco, nem sonhar com um financiamento imo-biliário. Quando o oficial de justiça bate à porta do prédiopara entregar uma nova intimação, a fofoca circula entreos vizinhos. S.L. encolhe os ombros. “Sinto vergonha. Umavergonha enorme de algo que não fiz.”

nos tribunais, o destinodas famílias falidas

A história de S.L. não é um caso isolado. Nos Tribunaisde Justiça do país, centenas de famílias falidas em decorrên-cia de tratamento médico são processadas pelos hospitais.Devem o que não têm,ou valores equivalentes ao patrimô-nio familiar construído ao longo da vida. São cobrançasde R$ 600 mil, R$ 750 mil, R$ 1,5 milhão, R$ 5 milhões.As contas não são apenas impagáveis. São excessivamen-te detalhadas e incompreensíveis. É impossível avaliar acoerência dos valores cobrados. Qual o preço justo de umpar de luvas cirúrgicas? E das agulhas hipodérmicas comdispositivo de segurança, na espessura Y, do fornecedor Z?Por que o soro fisiológico custa o dobro do preço cobrado

na farmácia da esquina? Como astaxas de materiais e procedimentossão definidas? Como compará-lasaos hospitais de mesmo porte?

Todo mundo sabe quanto custaum iPad, uma Ferrari ou um pacotede sabão em pó. Se não sabe, podedescobrir com um simples clique.Bem diferente do que acontece nasaúde. Quando está em jogo aquiloque existe de mais precioso – a vida–, o consumidor não encontra ins-trumentos para exercer seu poderde decisão. Exauridas financeira eemocionalmente, as famílias querecebem contas astronômicas ten-tam comparar os valores cobradospor medicamentos de baixo custoe materiais básicos com os preçosencontrados no varejo. Os hospi-tais argumentam que essa é umacomparação esdrúxula, porque oscustos da assistência numa insti-tuição de alto nível são superioresaos da farmácia da esquina. É um

parâmetro imperfeito, sem dúvida. Ainda assim, no obs-curo mercado da saúde, é o único disponível ao cliente.

Nos últimos meses,ÉPOCA seguiu os passos de famíliasarrasadas por um duplo infortúnio: uma doença grave e afalência financeira decorrente dela. Analisou as cobrançasrecebidas por pacientes particulares de hospitais de altonível:Albert Einstein,Sírio-Libanês e Samaritano, todos nacapital paulista. Comparou os valores de insumos e medi-camentos básicos com os preços praticados em farmáciase sites de materiais cirúrgicos. Grandes diferenças aparece-ram. Em março de 2012, o Einstein cobrou da família deH.L R$ 150 por 100 unidades de luvas de procedimentonão estéreis.Dois anos depois,ÉPOCA comprou o mesmoitem por R$ 30,66 no site da Drogaria Onofre. Em julhode 2012, o Sírio-Libanês cobrou R$ 5,91 por um frasco de500 mililitros de soro fisiológico 0,9%.Vinte meses depois,

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luvapara procedimento não

estéril 100 unidades

O HOspital cobrouem março de 2012

r$ 150Em março de 2014

pagamos nadrOgaria OnOfre

r$ 30,66

80% menos

para procedimento nãoestéril 100 unidades

HOspital

seringadescartável

20 ml

O HOspital cobrouem março de 2012

r$ 2,28Em março de 2014

pagamos nacirúrgica sãO paulO

r$ 0,60

74% menos

Foto: Rogério Cassimiro/ÉPOCA e Sendi Morais/ÉPOCA

Albert Einstein Albert Einstein

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ÉPOCA comprou o mesmo produto por R$ 3,20.Em abrilde 2011, uma cliente do Samaritano pagou R$ 12,92 porum frasco de 30 mililitros de Rinosoro. Três anos depois,ÉPOCA comprou o mesmo medicamento por R$ 6,88.Os exemplos estão distribuídos ao longo desta reporta-gem. Procurados por ÉPOCA, os hospitais preferiram nãocomentar as diferenças encontradas em cada item. A faltade critérios claros para definir preços, que confunde as fa-mílias e esgota economias, afeta todo o sistema de saúde.A indefinição sobre o valor dos produtos e dos serviçoscontribui para o aumento dos custos. A sociedade gastamais dinheiro sem, necessariamente, ganhar mais saúde.ÉPOCA pesquisou processos movidos contra pacientese entrevistou dezenas de especialistas para tentar enten-der como essas distorções afetam o país. O resultado dainvestigação, apresentado nas próximas páginas, é nossacontribuição para o debate informado de um dos temasmais urgentes da sociedade brasileira.

O custoda saúde

A poucos meses das eleições, a saúde é apontadanas pesquisas como maior preocupação dos brasilei-ros. Soluções mágicas e programas paliativos prova-velmente serão propostos nos próximos meses, graçasà criatividade dos marqueteiros políticos. Nenhumadessas medidas será capaz de transformar a realidadebrasileira. Isso só acontecerá quando a sociedade exigiruma solução para as duas razões do mau desempenhodo Brasil em saúde: falta de gestão e falta de dinheiro.

O país aplica em saúde 9% do PIB. É pouco. A Françagasta 11,7%. A Alemanha, 11,5%. O Reino Unido, 9,6%.Os Estados Unidos, 17,6%. A Argentina aplica menos(8,3%), mas tem indicadores de saúde melhores que osnossos. Isso significa que nossos vizinhos conseguem fazeruma gestão mais eficiente dos recursos (leia o quadro napágina 70). Nos principais países europeus, mais de 70%dos gastos com saúde saem dos cofres do governo. Dopouco que o Brasil destina à saúde, 47% é dinheiro público,derivado dos impostos pagos por cidadãos e empresas. Amaior parte dos gastos (53%) sai do caixa dos empregado-res, que contratam convênios médicos para os funcioná-rios, e do orçamento das famílias que gastam com planosde saúde, médicos particulares e remédios. Os cidadãos sãoduplamente penalizados. Financiam um sistema públicode saúde que funciona mal – e comprometem grande partedo orçamento familiar com tratamento médico.

Diante das falhas do Sistema Único de Saúde (SUS),ter um plano de saúde privado tornou-se uma das maio-res aspirações da população. Nos últimos cinco anos, 10milhões de cidadãos conquistaram a sonhada carteiri-nha. Há hoje 49 milhões de almas (25% da população)a acalentar a ilusão de nunca precisar do SUS. Nem dese internar como um paciente particular e receber umaconta impagável. Quem paga as altas mensalidades dos s

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“Há casOs eM Que O MédicOindica aO HOspital

a eMpresa Que fOrneceO Material e, aO MesMO

teMpO, recebe uMincentivO dO fabricante”

sergio bento,consultor de planos de saúde e hospitais

e, durante 15 anos, gestor doHospital Samaritano, em São Paulo

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dilemas da saúde

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planos de saúde acredita na garantia de receber atendi-mento médico quando precisar. Essa é a premissa quesustenta o crescimento do mercado da saúde suplemen-tar. A realidade é menos rósea. Quando o convênio serecusa a cobrir algum procedimento hospitalar ou, porqualquer razão, o paciente é internado num hospital pri-vado sem ter plano de saúde, a família vive um choque derealidade. Descobre o abominável mundo dos custos desaúde. Ser admitido num hospital na categoria “pacienteparticular” é uma operação de altíssimo risco. Significaestar à mercê de um sistema de preços confuso, criadonum ambiente de transparência zero. Durante ou depoisda internação, o doente ou seu responsável legal se veematolados em cobranças.

O avanço espetacular da medicina e dos custos desaúde impõe um paradoxo. Em muitos casos, a sobre-vivência do paciente representa amorte financeira das famílias. NosEstados Unidos, o risco de umdoente de câncer declarar falên-cia é 2,5 vezes o da população. Aconclusão faz parte de um estudoconduzido por Scott Ramsey, doFred Hutchinson Cancer ResearchCenter.“Matar o paciente financei-ramente também é desrespeitar ojuramento de Hipócrates”, disse aÉPOCA o oncologista Hagop Kan-tarjian, do MD Anderson CancerCenter, da Universidade do Texas.Desde a Grécia Antiga, os médicosjuram jamais aplicar tratamentosque possam causar dano ou ma-lefício. Pode parecer mera questãosemântica, mas Kantarjian levantaum dos mais atuais dilemas éticosda medicina. Em 2012, ele e outrosmédicos publicaram um manifestocontra o alto custo das novas dro-gas oncológicas na revista Blood, daSociedade Americana de Hemato-logia. Os médicos ameaçavam deixar de recomendar aoshospitais a adoção das drogas mais recentes e caríssimas.A pressão surtiu efeito. Alguns fabricantes reduziram ospreços dos novos medicamentos no mercado americano.

de ondevêm os preços

Respire fundo e conte até três. É preciso paciência paraentender como são definidos os preços cobrados pelos ser-viços hospitalares. Eles são divididos em cinco categorias:diárias e taxas (como num hotel),medicamentos,materiais,gases medicinais (oxigênio e outros) e exames.Cada hospi-tal define o valor da diária como bem entende. Para medi-camentos,o parâmetro de cobrança é uma tabela chamada

Brasíndice.As negociações com as operadoras de planos desaúde são feitas a partir dos valores dessa tabela, mas cadaplano recebe descontos diferentes,dependendo do volumede pacientes que encaminha ao hospital. Para materiais, areferência é outra tabela, a Simpro. Se o cliente é atendidopor meio do plano de saúde, ele não precisa queimar neu-rônios com isso.Se recebe a conta detalhada,como pacienteparticular, o pesadelo começa. O Ministério da Saúde de-veria advertir: “Tentar consultar a Simpro na tentativa decomparar os valores com a conta hospitalar pode provocarcolapso nervoso”. A lista de materiais ocupa 475 páginas.Os preços dos mais diversos insumos, nas mais variadasversões, fabricados por centenas de marcas, estão dispostosem tipologia minúscula. Quem procura o item “cateter”encontra milhares deles.Como saber que tipo foi usado nohospital, se as contas não trazem a especificação completa

de cada produto? É um trabalho in-sano e possivelmente inútil. Os va-lores pagos por exames (tomogra-fia, ressonância magnética e outros)são negociados com os convênios.A referência é uma terceira tabela,chamada Classificação BrasileiraHierarquizada de ProcedimentosMédicos (CBHPM), emitida pelaAssociação Médica Brasileira. Parapróteses e aparelhos externos (ór-teses) não há tabela. O hospitalnegocia com os distribuidores.

Um exemplo: numa operaçãode coluna, o médico recebe umacaixa com cerca de 200 pequenaspeças. Durante a cirurgia, escolheo material a implantar no pacien-te – de acordo com o tamanho, oformato e a necessidade. O hospi-tal não tem como controlar as de-cisões do médico nem o materialusado dentro do centro cirúrgico.Os distribuidores não têm tabelade preço. De cada hospital, co-

bram um valor diferente. Esse sistema é um terreno fértilpara fraudes e um incentivo ao desperdício.“Há casos emque o médico indica ao hospital a empresa que forneceo material e, ao mesmo tempo, recebe um incentivo dofabricante”, diz Sergio Bento, diretor técnico executivoda Planisa, uma consultoria especializada em gestão dehospitais e planos de saúde. O mercado das próteses eórteses virou caso de polícia em algumas cidades. NoParaná, deu origem a uma CPI da Assembleia Legislativa.A maior parte dos fornecedores de órteses, próteses e ma-teriais especiais (chamados, segundo o jargão da saúde,de OPMEs) mantém cláusulas de confidencialidade emseus contratos com os hospitais. Proíbem a divulgaçãodos preços pagos por esses insumos.“Essa prática permiteaos fornecedores cobrar de cada comprador um valordiferente pelo mesmo material”, diz o economista Luiz

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O HOspital cobrouem março de 2012

r$ 10,07Em março de 2014

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Albert EinsteinSírio-Libanês

Foto: Rogério Cassimiro/ÉPOCA e Sendi Morais/ÉPOCA

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Augusto Carneiro, superintendente executivo do Institutode Estudos de Saúde Suplementar (IESS), uma entidadede pesquisa mantida por planos de saúde.

Esses materiais são o caso mais grave, mas não o único.Desde 2006, as empresas que vendem produtos médi-cos de alto custo – em geral, importados – são obrigadasa informar à Agência Nacional de Vigilância Sanitária(Anvisa) os preços que pretendem cobrar no Brasil. AAnvisa não tem o poder de regular preços, mas divulgacomparações que ajudam os gestores públicos, os planosde saúde e os hospitais nas negociações. Em 2011, o preçomédio pago pelos hospitais privados de São Paulo por umstent coronário (prótese metálica usada para desobstruirartérias) foi de R$ 14 mil. Menos que em Brasília (R$ 19mil), Porto Alegre (R$ 20 mil), Fortaleza (R$ 21 mil) eBelém (R$ 22 mil). O preço de fábrica, informado à Anvisapela empresa produtora, era R$ 19 mil. Na Alemanha, omesmo produto custava e 642 (R$ 1.600). Na Espanha,e 1.500 (R$ 4 mil). Na Itália, e 728 (R$ 1.900).A alta car-ga tributária não é suficiente para explicar diferenças tãoexpressivas. “Ainda não sabemos por que esses produtossão tão mais caros no Brasil”, diz Renata Faria Pereira, donúcleo de assessoramento econômico em regulação daAnvisa. “O que contribui para os preços altos no Brasilé a assimetria de informação. O comprador e o gestorpúblico não têm ideia do valor das coisas.”

Os preços inflam ao longo da cadeia da saúde. O fa-bricante ou importador vendem por X. O distribuidorcobra uma percentagem em cima desse valor quandonegocia com o hospital. O hospital aplica outra quandonegocia com o plano de saúde. E outra, bem maior, noscasos em que a negociação ocorre com o elo mais fracode toda a cadeia: um paciente ou familiar em desespero.A disparidade de preços ocorre em todos os níveis. Aténos produtos de uso corriqueiro e baixo custo. No ano2000, o engenheiro de produção Maurício Barbosa crioua Bionexo, uma comunidade eletrônica de negócios quehoje reúne mais de 800 hospitais e 15 mil fornecedores detodo o país. Ao acessá-la, o cliente consegue comparar ospreços e condições de entrega de fornecedores de tudo oque ele precisa para funcionar: remédios, materiais, itensde gastronomia e de hotelaria. “Criamos uma oportu-nidade de transparência em compras de saúde”, afirmaBarbosa.“A sociedade busca isso. Eu, como pessoa, buscoisso.”A Bionexo sabe quanto cada cliente paga pelos maisdiversos produtos e acompanha as variações de preço.ÉPOCA pediu que ela avaliasse a variação, em relação àmédia do mercado, dos preços cobrados dos pacientes ci-tados nesta reportagem por alguns medicamentos básicos,como Rinosoro, Luftal, Plasil e Rivotril. A resposta revelaas regras desse mercado:“A Bionexo, por contrato de con-fidencialidade, não torna públicas as informações sobrepreços. Observando os medicamentos citados, podemosdizer que, no Brasil, eles podem variar em mais de 50%em função de volume, crédito e até marca”. Transparênciaé para poucos. Ao paciente, o cliente final da longa cadeiade negócios da saúde, resta a escuridão. s

12 de maio de 2014 i épOca i 65

“Os HOspitais prestaMserviçO seM saberQuantO ele custa.

as OperadOras pagaMseM saber QuantO ele

vale. fica uMa discussãOseM dadOs. QualQuer

bOtecO faz issO MelHOr”afonso José de Matos,

diretor presidente da Planisa, consultoriaespecializada em gestão de empresas de saúde

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dilemas da saúde

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A dentista Rita de Cássia Moreira Correia, de 48 anos,vendeu um apartamento em Belém, no Pará, e pagou umaconta de R$ 448.182,33 ao Hospital Samaritano, em SãoPaulo. Rita mora em Paragominas, a 300 quilômetros deBelém. Católica, ela decidiu conhecer Fátima, em Portugal,em abril de 2011. No meio da viagem, a irmã que a acom-panhava notou que seu lábio superior parecia ligeiramenteadormecido. Na volta ao Brasil, durante uma escala emBrasília, o passaporte caiu de sua mão. Rita imaginouter sofrido um AVC. Assim que chegou a Belém, com fal-ta de sensibilidade no lado esquerdo do corpo, procurouum hospital credenciado ao plano de saúde Unimed. Osmédicos diagnosticaram um tumorcerebral. Quando o neurocirurgiãoque a acompanhava precisou viajarpor motivos particulares, ela deci-diu não perder mais tempo. Pegouum avião e foi buscar uma segundaopinião em São Paulo.

Agendou consulta com quatroespecialistas durante a SemanaSanta. O primeiro que a recebeu foiJosé Marcus Rotta, chefe do Grupode Neuro-Oncologia da Universida-de de São Paulo (USP). Assim queentrou no consultório, Rita notou aimagem de Nossa Senhora de Fáti-ma sobre a estante. “Alguns podemchamar de coincidência. Eu chamode Providência”, diz ela. “Foi a mãode Deus. Se não tivesse encontradoaquele médico, hoje estaria morta.”

Feita a conexão divina, faltavaconquistar o entendimento entreos homens. O cirurgião operava noHospital Samaritano, credenciadoà Unimed Paulistana. O plano desaúde de Rita oferecia cobertura na rede nacional. Logo, elaacreditou que o tratamento em São Paulo seria coberto pelaUnimed. Enquanto a família tentava conseguir uma au-torização do plano de saúde para a internação, ela passoumal. Inconsciente, foi internada no Samaritano em caráterde urgência, como paciente particular. A autorização doconvênio não saiu. “Paguei plano de saúde durante 12anos. Quando precisei, fiquei desamparada”, diz. A neuro-cirurgia, feita no dia seguinte, foi bem-sucedida. Era só ocomeço do tratamento. Para combater o câncer – um tumortecnicamente conhecido como linfoma não Hodgkin desistema nervoso central –, Rita precisou de um transplante

de células dela mesma. É um procedimento chamado detransplante autólogo, o mesmo que contribuiu para a recu-peração do ator Reynaldo Gianecchini. Células saudáveisforam extraídas de sua medula óssea e guardadas. Emseguida, Rita enfrentou quatro sessões de quimioterapiaem altas doses. Qualquer infecção poderia ser fatal.

Os médicos tinham a convicção de que ela não poderiaser transferida de hospital. Emitiram atestados com a in-formação de que se tratava de um caso gravíssimo. Segun-do eles, Rita precisava ser atendida em um hospital de altacomplexidade, como o Samaritano, por profissionais capa-citados a realizar procedimentos sofisticados como aquele.

Enquanto a briga com o plano desaúde se arrastava, a conta do hos-pital crescia: R$ 100 mil, R$ 150mil, R$ 200 mil... Foi um caso di-fícil, de surpreendente sucesso. Trêsanos depois, Rita trabalha todos osdias no consultório. Exames recen-tes não detectaram qualquer sinalde retorno da doença.

Os 40 dias de internação em2011 prolongaram-lhe a vida,mas consumiram cada tijolo doimóvel comprado a prestações aolongo de anos de trabalho. Ritasaldou a dívida com o hospital.O sentimento de honestidade deulugar ao arrependimento. “Foi umerro”, diz ela. “Se tivesse entradocom uma liminar na Justiça, nãoteria pagado essa conta.” Paratentar obrigar o plano de saúde alhe restituir o dinheiro, Rita con-tratou o advogado Julius Conforti,especializado em Direito da Saú-de. Segundo ele, vários fatos favo-

recem Rita nessa disputa: era uma situação gravíssima;não existia o tratamento necessário em Belém; o contratogarantia à paciente ser atendida num hospital da redecredenciada em São Paulo, e, além disso, ela foi inter-nada em caráter de urgência. Conforti aconselha queas famílias não se desesperem ao receber a conta de umhospital. “Em vez de pagar, o melhor caminho é entrarcom uma liminar judicial”, diz ele. “As pessoas vendemimóveis a preço de banana, dilapidam o patrimônio,depois tentam recuperá-lo na Justiça. Isso é possível, maso processo costuma levar anos.” Procurada por ÉPOCA,a Unimed Belém não se pronunciou sobre o caso. s

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“O planO de saúde disse ‘nãO’.lá se fOi O apartaMentO”

Sírio-LibanêsSamaritano

Foto: Rafael Araujo/ÉPOCA e Sendi Morais /ÉPOCA

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i épOca i 6712 de maio de 2014 i12 de maio de 2014

“paguei planOde saúde durante12 anOs. QuandOprecisei, fiQueidesaMparada”rita de cássia Moreira correia,dentista. Em 2011, ela teve umtumor cerebral e não foi atendidapelo convênio. Vendeu umapartamento para saldara conta hospitalar de R$ 448 mil

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68 i épOca i 12 de maio de 2014

dilemas da saúde

um mercadodoente

Em quase todos os setores da economia, uma cadeiaprodutiva é formada por parceiros com dois objetivos co-muns: atender a uma necessidade do cliente e lucrar. Só háqueijo no café da manhã porque alguém tira o leite da vacae vende ao laticínio.A empresa fabrica o produto e forneceao supermercado.O consumidor decide o que comprar.Docampo à mesa, todos ganham. Uns mais, outros menos,mas a parceria que os economistas chamam de “cadeia devalor” é vantajosa para todos. Do contrário, ela se desfaz.

No ramo da saúde, a lógica é outra. Não há parceriaentre os dois principais elos da cadeia – os hospitais e osplanos de saúde. Há competição, disputa, desperdício deenergia e recursos.Segundo as regrasatuais desse mercado doente,o lucrodo hospital significa o prejuízo doplano de saúde – e vice-versa. Paraaumentar seus próprios ganhos,cada lado do balcão adota medidasque elevam os gastos da sociedadecom saúde, sem aumentar o benefí-cio entregue aos clientes.“O sistemade saúde é um não sistema. Cadaum está preocupado com o seu”,diz Ana Maria Malik, professorada Fundação GetulioVargas (FGV),em São Paulo. “O Brasil sofre comdoenças crônicas dispendiosas doséculo XXI, tem um sistema de saú-de preparado para atender males doséculo XX e gestão do século XIX.”

As distorções que explicam acrise de saúde começam na base.Quando entrega o queijo ao su-permercado, o produtor emiteum boleto bancário. Sabe que, nadata estabelecida, poderá contarcom aquele pagamento. A relaçãocomercial entre fornecedor e comprador em qualqueroutra área funciona assim: uma empresa vende o pro-duto e envia a fatura ao comprador.

“Na saúde,é diferente.O hospital manda as faturas parao plano de saúde, e ele decide se paga ou não”, diz AfonsoJosé de Matos,professor de administração financeira e cus-tos hospitalares da FGV e diretor presidente da Planisa. Oembate é diário.Planos de saúde reclamam que os hospitaiscobram muito mais do que valem os produtos empregadosno tratamento de seus beneficiários. Hospitais argumen-tam que são obrigados a fazer isso porque os convênios senegam a reajustar tabelas de serviço.Ou simplesmente nãopagam grande parte dos atendimentos já prestados.

Quem tem razão? “Muitas vezes os hospitais abusam.Noutras, as operadoras é que não ressarcem os valores quedeveriam”, diz o economista da saúde André Medici, do

Banco Mundial, em Washington.“Por precaução,os hospi-tais estabelecem preços mais altos para compensar as perdasque terão diante das negativas de pagamento pelos planosde saúde e pelos pacientes particulares inadimplentes.”

É assim que o dinheiro (do convênio, do cliente particu-lar, do empregador, da sociedade) vai para o ralo sem pro-duzir mais qualidade de vida. Os custos de saúde aumen-tam dramaticamente em todo o mundo. Uma das razõesé a adoção de tecnologia. Exames, drogas e procedimentossofisticados custam caro. Outra é o envelhecimento. Vivermais requer cuidados cada vez mais dispendiosos. Entreos idosos, 80% têm pelo menos uma doença. Mais de 30%têm três ou mais. O Brasil não se preparou para enfrentara transição demográfica que se avizinha. Enquanto a Eu-ropa enriqueceu antes de envelhecer, o Brasil envelhecesem ter se tornado rico. Em 2030, o país terá mais de

40 milhões de idosos, ou 17% dapopulação. Doerá no bolso.

Uma terceira razão leva ao au-mento dos custos: a indefinição dovalor dos serviços de saúde. É umfator incômodo, sobre o qual pou-co se fala – e a que se dedica estareportagem especial de ÉPOCA.“Os hospitais prestam serviço semsaber quanto ele custa; as opera-doras pagam sem saber quanto elevale”, diz Matos, da Planisa. “Ficauma discussão sem dados. Qual-quer boteco faz isso melhor.”

Num sistema saudável, o bomhospital seria capaz de curar outratar adequadamente um pacien-te e, ainda por cima, gastar pouco.A qualidade técnica, a segurança ea eficiência no controle de custosatrairiam mais clientes e o fariamprosperar. No atual modelo brasi-leiro, a função do hospital é distor-cida. Os hospitais passam a visarà doença. Quanto mais a situação

do paciente se complica, melhor para eles. Quanto maioro uso de insumos banais como esparadrapo e seringa,mais ganham. Ao contrário do que o senso comum ima-gina, as maiores fontes de receita dos hospitais privadosnão são os exames sofisticados, os quartos luxuosos ou aespecialidade dos médicos. “Os hospitais viraram gran-des varejistas de insumos”, diz Sergio Bento, da Planisa.Durante 15 anos, ele foi gestor do Samaritano, em SãoPaulo. “Para os hospitais, insumo é receita – não custo.”

Existem 4.081 hospitais privados no Brasil.Desses,2.615têm fim lucrativo. A nata das instituições, aquelas que se-guem um padrão elevado de assistência e gestão, compõea Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp). Sãoapenas 48. Seu presidente, Francisco Balestrin, reconhecea distorção mencionada por Bento e diz que a Anahp pre-tende liderar um movimento para combatê-la. “Todo s

cavilOncreMe barreira

92 g

O HOspital cobrouem agosto de 2012

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pagamos nacirúrgica sãO paulO

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O HOspital cobrouem julho de 2012

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46% menos

de 20 mg

Sírio-Libanês Sírio-Libanês

Foto: Sendi Morais /ÉPOCA

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dilemas da saúde

70 I época I 12 de maio de 2014

mundo gosta de criticar, mas ninguém sabe a história portrás disso”, diz Balestrin. Diante do tabelamento de preçosimposto pelo Plano Cruzado,em 1986,as taxas e os serviçoscobrados pelos hospitais também foram congelados.As re-gras da economia mudaram nos anos seguintes.Por muitotempo,os hospitais não conseguiram reajustar seus preços.

Não demorou a surgir uma solução engenhosa: criartaxas para tudo. Taxa para aplicar injeção. Taxa para fazercurativo. Taxa de maca, para transportar o paciente deum lugar para o outro. “Hoje, as listas de preço parecemárvores de Natal”, diz Balestrin. “Isso foi necessário paragarantir nossa sobrevivência diante do tabelamento depreços imposto pelo governo.”O Plano Cruzado é passado.Mesmo depois de 20 anos de estabilidade proporciona-da pela nova moeda, o real, as regras insólitas que regemo relacionamento entre hospitais e planos de saúde nãomudaram. “Aplicar os custos do hospital sobre o valordos medicamentos e dos materiais é hoje a única forma demanter a saúde financeira das instituições”, diz Balestrin.Essa é uma longa tradição que precisa acabar.

Mais doença,mais dinheiro

No Brasil, o sistema privado remunera a doença – nãoa saúde. Os convênios pagam os hospitais de acordo comum modelo conhecido como “conta aberta”. Ou, em in-glês,“fee for service”(pagamento por serviço). Uma contaé gerada para cada paciente. Todo e qualquer item usadono atendimento (dos mais banais aos mais sofisticados)é colocado na conta. A papelada é enviada ao plano desaúde ao longo da internação ou ao final do atendimen-to. Cem mulheres, 100 cesarianas, 100 contas diferentes.A operadora analisa cada uma e discute o que foi feito.Corta o que considera item desnecessário ou cobrançaexcessiva.A recusa de pagamento aos hospitais é chamadade“glosa”.As operadoras mantêm auditores nos hospitaispara verificar se o que está na conta realmente consta noprontuário de cada paciente. Eles verificam tudo: coe-rência da indicação, duplicidade de itens etc. Isso custa.Manter esses batalhões de auditores representa o segundomaior gasto administrativo das operadoras. O primeiroé a equipe de vendas de planos de saúde. “É o custo dadesconfiança”, diz Bento, da Planisa. “Com tudo isso, asoperadoras têm uma margem de lucro muito pequena.”Não há mágica. Se o custo aumenta (administrativo ouderivado do tratamento), mais cedo ou mais tarde é re-passado aos clientes individuais ou empresariais.

Isso ajuda a explicar por que, na maioria dos casos, exa-mes e procedimentos mais caros só são realizados comautorização prévia do convênio.É uma novela que médicose conveniados conhecem bem. O funcionário do hospital,o cliente ou ambos telefonam ao plano de saúde e passamlongos minutos ouvindo musiquinhas de tirar qualquer umdo sério. Com sorte, o procedimento é autorizado. Comfrequência, é negado. À família, restam duas opções: s

O Brasil investe pouco em saúde e gastamal. Envelhece antes de enriquecere desperdiça recursos no sistema privado

por que asaúde vaI Mal

47%Governos

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33%têm trêsou mais

80%da populaçãoidosa tem pelomenos umadoença crônica

2010 2030

10% da população 17% da população

19,2 milhõesde idosos

40,5 milhõesde idosos

Fontes:Organização

Mundial da Saúde(OMS) e Instituto

Brasileiro deGeografia e

Estatística (IBGE)

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12 de maio de 2014 I época I 71

planos de saúdeo NúMero de BeNefIcIárIos auMeNTou...

Os indicadores de saúde são melhores nas nações que destinam mais recursos a ela. A exceção são os EUA. O país gasta muito e mal

...Mas as despesas cresceraM MaIs que as receITas

REcEitAs

Em R$ bilhões Em R$ bilhões Em %

DEspEsAsAssistEnciAis

tAxA DEsinistRAliDADE(1)

Há 4.081 hospitais no país

Destes, 2.615 têm fim lucrativo

hospitais privados

dinheiro bem gasto + estrutura = mais saúde

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90,8%convênios

os MaTerIaIs sãoa prINcIpal foNTe dereceITa dos hospITaIs

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terapias

59,547,8

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47,9%Materiais

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as foNTespaGadoras doshospITaIs prIvados

2008 39 milhões2013 49 milhões

2008 2008 20082013 2013 2013

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em saúdeem 2010

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em saúdepor habitante

em 2010

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por 100 milnascidosvivos em

2010

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em 2010

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13

203

3,7

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200

47

36

Fonte: Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS)(1) Taxa de sinistralidade é a relação, expressa em percentagem,entre a despesa assistencial e a receita das operadoras

Fonte: Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp).A entidade reúne apenas as 48 instituições que seguem umpadrão mais elevado de assistência e gestão

Fonte: Organização Mundial da Saúde (2013)

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dilemas da saúde

procurar outro hospital ou assumir a conta.“De 2% a 4%dos pacientes dos hospitais são particulares. As tabelas denegociação com eles são de 30% a 40% superiores às cobra-das das operadoras”, diz Bento.“É uma distorção.”

Muita gente acha que tem plano de saúde. Até que per-cebe que, na prática, é como se não tivesse. O número dereclamações contra os convênios cresceu 31% em 2013, nacomparação com o ano anterior, segundo a Agência Nacio-nal de Saúde Suplementar (ANS). No ano passado, foramrecebidas 102.232 queixas. Em 72% dos casos, a razão foiuma só: negativa de cobertura. Para coibi-la, a ANS aplicamultas.Punições desse tipo só são pedagógicas se realmentedoerem no bolso,o mesmo princípio das multas de trânsito.

Mas as operadoras encontraram um jeito de se safar dapunição. Câmara e Senado aprovaram há poucas semanasuma nova sistemática para a cobrança dessas penalidades.Hoje funciona assim: a cada nega-tiva de cobertura comprovada pelaANS, a empresa deve pagar umamulta de R$ 2 mil. Se a empresanega dez procedimentos, pagará R$20 mil. Com a mudança aprovadapelo Congresso, se o plano de saúdenegar de dois a 50 procedimentos,pagará apenas duas multas (R$ 4mil, em vez de R$ 100 mil). Daí emdiante, haverá uma escala. Quan-to pior o serviço da operadora,menor será a multa. A mudançadeseducativa só entrará em vigorse for sancionada pela presidenteDilma Rousseff. A exemplo do queaconteceu com a votação sobre oCódigo Florestal, o movimento#VetaDilma já está lançado.

Na solidãodo corredorescuro

Os administradores dos hospitais costumam apre-sentar a mesma justificativa para os altos preços cobra-dos por insumos banais. O engenheiro Luiz de Luca,superintendente corporativo do Samaritano, faz umacomparação com uma garrafa d’água. “Todo mundosabe que ela custa R$ 1,30 no supermercado, mas aceitapagar R$ 6,50 pelo mesmo produto num restaurantechique”, diz. “O consumidor paga porque acha que orestaurante vale a pena. Tudo depende da percepção devalor que o cliente tem. Com hospital, é a mesma coisa.”Para aceitar essa analogia, é preciso relevar diferençascruciais entre os dois setores. Quem vai a um restau-rante pode planejar o programa, consultar os preços eescolher aquele que cabe em seu bolso. Ninguém esco-lhe ficar doente. Quando a necessidade de cuidado seimpõe, a família não está no controle da situação. Ela

busca atendimento sem contar com o benefício de saberquanto terá de desembolsar ao final do tratamento.

O dramático, na saúde, é a falta de previsibilidadesobre as despesas. Mesmo que o paciente receba umorçamento do tratamento, ele sempre será impreciso.Segundo Balestrin, da Anahp, os hospitais mantêm listasde preços de procedimentos afixadas em lugar visível,mas ele reconhece que é preciso ir além. “Talvez falteum site onde as pessoas possam verificar os preços”, diz.“Ainda assim, as famílias não deveriam se fixar tanto nopreço de cada item. É preciso pensar no custo final queos hospitais têm, e isso elas nunca conseguirão saber en-quanto o sistema de pagamento for do tipo conta aberta.”Hospitais não lucram como bancos. “A margem de lucrooperacional do Einstein e de muitos dos melhores hospi-tais de São Paulo é de 5%”, diz o oftalmologista Claudio

Lottenberg, presidente do Hospi-tal Albert Einstein. Compararpreços, diz ele, é um parâmetroerrado. “Não adianta apresentarum menu para o cliente verificarpreços. O que falta é compromis-so com o resultado.”

Nos Estados Unidos, há um for-te movimento pela transparência.A economista Bobbi Coluni reali-zou um estudo revelador para aempresa Truven Health Analytics.Ela analisou as variações de preçosde 300 procedimentos hospitalarese ambulatoriais. Descobriu que opreço de uma artroscopia de joe-lho em Chicago variava de US$1.000 a US$ 5 mil. Concluiu quea sociedade americana economi-zaria US$ 36 bilhões por ano se oshospitais cobrassem, de todas asfontes pagadoras, o preço médiode mercado. “Os consumidorestomam decisões que provocamgastos sem ter a informação ne-

cessária para fazer bom uso do dinheiro”, disse Bobbi aÉPOCA.“É preciso encorajá-los a exigir informação dosprestadores de serviço.” Segundo ela, isso criará compe-tição, aumentará a eficiência e reduzirá custos. No anopassado, o governo americano criou dois sites para aju-dar o cidadão a comparar e a escolher hospitais e planosde saúde. Nas páginas www.medicare.com e www.cms.gov, é possível acessar indicadores de qualidade de 3.300hospitais e comparar preços de 130 procedimentos. NoBrasil, o discurso da transparência é mais eloquente quea prática. ÉPOCA pediu que Albert Einstein, Sírio-Li-banês e Samaritano informassem os preços cobrados depacientes particulares por dez procedimentos e produtosde uso corriqueiro. Itens como hemograma, tomografia,soro fisiológico, paracetamol, omeprazol e seringa des-cartável. Nenhum deles aceitou divulgar a informação. s

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72 I época I 12 de maio de 2014

Albert EinsteinSírio-Libanês

Foto: Sendi Morais /ÉPOCA

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dilemas da saúde

74 I época I 12 de maio de 2014

A contadora Valquiria Catelli Nogueira dirige o depar-tamento financeiro da Câmara Municipal de Paulínia, nointerior de São Paulo. A familiaridade com os números nãoaliviou sua sensação de impotência diante da cobrança quelhe foi apresentada pelo Hospital Sírio-Libanês, há quase doisanos. Segundo o último registro do Tribunal de Justiça deSão Paulo, ela deve R$ 447.003,86, sem os juros. É um valorsuperior ao da casa própria em que vive, avaliada, segundoela, em R$ 390 mil. “Quando entramos num hospital, nãoimaginamos que cada agulhinha, cada esparadrapo será co-brado separadamente, item por item”, diz Valquiria.“Além daangústia provocada por uma doença grave, vivemos a agoniade não conseguir mensurar o valor de nada.”

O Sírio-Libanês entrou com umaação de cobrança contra Valquiriaporque ela assinou, como acompa-nhante, o documento de internaçãoda comerciante Claudia CristinaMiranda, em julho de 2012. “Elaera como uma irmã”, afirma Val-quiria. “Um anjo com quem tive oprazer de conviver.” As duas divi-diram a casa e as despesas durante12 anos. Claudia morreu no anopassado, aos 40 anos, de câncer deovário. “Tenho a consciência de quefiz tudo o que estava a meu alcancepara tentar salvá-la”, diz Valquiria.Uma das providências foi buscar aJustiça para garantir que ela pu-desse ser submetida a uma cirur-gia para extrair o tumor e aplicarquimioterapia na mesma operação.Era um recurso sofisticado, na épocasó feito em hospitais de primeiralinha, como o Sírio-Libanês.

O plano de saúde, a Unimed deCampinas, não cobria o procedi-mento nem a internação no famoso hospital filantrópicopaulistano, conhecido por atrair políticos e artistas. Com umaliminar judicial favorável, Claudia foi internada.“Estávamostranquilas. Graças à decisão do juiz, sabíamos que não tería-mos de arcar com as despesas de um hospital daquele nível”,diz Valquiria. Dez dias depois da cirurgia, Claudia precisouser reinternada às pressas. Uma fístula próxima ao reto pro-vocara uma infecção. Claudia entrou pelo pronto-socorro,como paciente particular. Assim como os irmãos, os sobrinhose os pais idosos, Claudia vivia da renda de uma pequena lojade material de construção, em Campinas. Não tinha condi-ções de arcar nem sequer com uma semana de Sírio-Libanês.

O médico emitiu um relatório para ajudá-la a explicar aojuiz que a fístula era decorrente da cirurgia. A reinternação,segundo esse raciocínio, deveria ser custeada pelo plano desaúde. A Justiça não aceitou essa argumentação. “Hoje, vocêtem um médico na sua frente. Amanhã, um advogado”, dizValquiria. Na ação contra a Unimed, Claudia e Valquiriaforam representadas pela advogada Renata Vilhena Silva,especializada em Direito da Saúde. Segundo Renata, a piorcoisa que pode acontecer a um paciente é precisar de umatendimento de alta complexidade e não o encontrar narede credenciada. “Os clientes pagam um plano de saúde etêm um atendimento péssimo”, diz Renata. “Quando pre-cisam de um tratamento de primeira linha, são obrigados

a buscá-lo fora da rede credenciadae enfrentam essa incompatibilidadede preços praticada pelos hospitais.”

Em três meses de hospital, a contade Claudia somou 2.754 itens. Emcada linha, aparece a descriçãoenigmática de materiais e preçosimpossíveis de comparar com coisaalguma. Valquiria tentou analisar acobrança. Fracassou. Como saber seuma ampola de Sandostatin 0,1 mg/mL Inj (=100 mcg/mL) valia mes-mo em agosto de 2012 os R$ 74,85cobrados pelo hospital? Ou se, ummês antes, era aceitável pagar R$4,54 por uma Seringa Desc. 20 mlS/Agulha Bico Luer Lock? O pesoda dívida aumentou o sofrimentode Claudia. “Ela ficava angustiadatoda vez que alguém do departa-mento financeiro ligava no quartoe dizia a ela que a conta já haviachegado a R$ 100 mil, R$ 200 mil...”,diz Valquiria. O Sírio-Libanês afir-ma que sempre esteve à disposição

dos familiares e da acompanhante de Claudia para oferecertodas as informações necessárias. Segundo o hospital, açõesjudiciais representam um último recurso. “Continuamosabertos, inclusive, a uma nova negociação, que leve a umacordo favorável a todos.” A Unimed de Campinas argu-menta que Claudia buscou tratamento em um hospitalnão oferecido pelo plano contratado. Em nota enviada aÉPOCA, a Unimed afirma: “Sob o prisma da regularidade,quer legal ou contratual, a Unimed Campinas em momen-to algum negou atendimento assistencial à beneficiária”.A briga jurídica entre a família de Claudia e o plano desaúde continua. Agora, no Superior Tribunal de Justiça. s

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Albert Einstein Samaritano

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12 de maio de 2014 I época I 75

“os clIentespagam planode saúdee têm umatendImentopéssImo. QuandoprecIsam de umtratamentode prImeIra lInha,enfrentam aIncompatIbIlIdadede preçosdos hospItaIs”renata Vilhena silva,advogada especializadaem Direito da Saúde

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dilemas da saúde

os saudáveise os moribundos

A falta de transparência que impera na medicina pri-vada brasileira impede que os clientes tomem partidonas disputas do setor. No chororô recíproco de hospitaise planos de saúde, quem tem razão? Quem está saudável?Quem está moribundo? “Instituições como Albert Eins-tein e Sírio-Libanês estão bem, mas a maioria dos hospi-tais não está”, diz Bento, da Planisa. Muitos concorrentesoferecem serviços semelhantes. A clientela fica diluída.Sem volume de atendimento e com falhas de gestão, elesobtêm lucros modestos – quando lucram. Os 23 maioreshospitais dos Estados Unidos têm mais de 1.000 leitos. OAlbert Einstein, considerado um gigante com 647 leitos,não estaria entre os 100 maioresamericanos. Ainda assim, bastacircular por São Paulo para per-ceber uma intensa expansão nosetor hospitalar. Muitos viraramcanteiro de obras. Até 2016, estãoprevistos 4.332 novos leitos noshospitais privados do país.

“Os melhores crescem. Os me-nores e menos competitivos ten-dem a desaparecer”, diz MarceloCaldeira Pedroso, professor doDepartamento de Administraçãoda FEA-USP. Há maior eficiênciaquando o volume de produçãoaumenta. “Quando conseguemaumentar o volume de servi-ços com uma adequada taxa deutilização, os hospitais tendema reduzir o custo dos serviçosprestados”, diz Pedroso. “É umaquestão de economia de escala.”A Índia pode servir de inspira-ção aos hospitais brasileiros. Aoinvestir no volume de atendimen-tos, alguns hospitais atingiram alto nível de excelênciamédica com custos baixíssimos. Viraram um celebradoexemplo de inovação (leia a entrevista na página 80 como indiano Vijay Govindarajan, especialista em inovação eprofessor da Tuck School of Business, nos Estados Unidos).

Na outra ponta, dos convênios, a saúde das empresastambém é heterogênea. Alguns planos vão bem, outrosestão quase quebrando. De forma geral, todos reclamamde falta de transparência e do aumento nas contas. “Osbalanços dos planos de saúde são auditados. No restanteda cadeia (hospitais, clínicas etc.) nem sempre”, diz LuizAugusto Carneiro, do IESS.“É uma caixa-preta. Ninguémsabe quem ganha dinheiro.” Os custos hospitalares au-mentaram 15,4% em 2012, segundo um estudo do IESS.O índice manteve-se acima da variação registrada peloÍndice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) no mes-

mo período, de 5,4%. Segundo Carneiro, o que chama aatenção é a diferença de 10 pontos percentuais, maior quea média histórica. Carneiro acredita no livre mercado. Éum economista formado pela FGV do Rio de Janeiro, umgrupo identificado com o liberalismo mais puro. Apesardisso, afirma que, sozinho, o mercado não será capaz deresolver as disputas improdutivas que prejudicam a so-ciedade.“Do jeito como a saúde funciona no Brasil, todaa estrutura se volta para incentivar o aumento de custos”,diz. “Quando o mercado não é capaz de resolver tantasfalhas do próprio sistema – como o caso da assimetria deinformação que compromete a comparação de preço equalidade –, cabe ao governo criar mecanismos de trans-parência e incentivar a concorrência”, afirma. Segundoele, as operadoras têm sentido inflação alta nos produtosde baixo valor.“A nova moda dos hospitais é cobrar muito

por materiais de baixo custo”, dizCarneiro. Esparadrapo, paraceta-mol, seringa pesam no orçamentocomo nunca.

o remédioamargo

Nos últimos dez anos, o gurudos negócios Michael Porter, pro-fessor do Instituto de Estratégiae Competitividade da HarvardBusiness School, se dedicou a es-tudar os desafios dos diferentessistemas de saúde adotados nomundo.“Precisamos transformartotalmente o sistema privado desaúde vigente nos Estados Unidose no Brasil. Sabemos o caminho aseguir. O desafio é conseguir fazeras mudanças”, diz Porter.

No livro Redefining health care:creating value-based competitionon results (algo como Redefinindo

a atenção à saúde: criando competição baseada em valor sobreresultados),Porter discute por que as regras do livre merca-do falharam na saúde.Num mercado normal, a competiçãoleva a ganhos de qualidade e à redução de custos. A rápidadifusão das novas tecnologias melhora o jeito de fazer ascoisas. Excelentes competidores prosperam e crescem. Éassim em todas as indústrias que funcionam segundo asleis da boa competição: computadores, celulares, bancos emuitas outras. Na saúde, não ocorre nada disso. Os custossão elevados e crescem cada vez mais. Os problemas dequalidade persistem. A falha da competição é evidente nasgrandes e inexplicáveis diferenças no custo e na qualidadedo mesmo tipo de assistência entre hospitais e em diferentesregiões geográficas.A competição não premia os melhoresprestadores de serviço,nem faz os piores saírem do negócio.“Essas coisas são inconcebíveis num mercado que funciona

76 I época I 12 de maio de 2014

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O hospItal cobrouem agosto de 2012

r$ 15,70Emmarço de 2014

pagamos na

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r$ 13,01

17% menos

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O hospItal cobrouemmaio de 2011

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Foto: Elie Honein

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bem e intoleráveis na saúde,porque a vida está sob ameaça”,escreve Porter. Por que, afinal, a competição falha no setorda saúde? Por que o valor, a qualidade do que é entregueao paciente, não aumenta como nas outras indústrias? Arazão, afirma Porter, não é a falta de competição, mas otipo errado de competição.“Na saúde, ela ocorre em níveiserrados e nas coisas erradas”,diz ele.“É uma competição desoma zero, em que os ganhos de um participante ocorremà custa do prejuízo de outros.”Os participantes competempara jogar os custos ao outro,acumular poder de barganhae limitar serviços.“A única forma de reformar a assistênciaà saúde é reformar a natureza da competição”, diz Porter.É preciso realinhar a competição com o valor entregue aopaciente. Valor, na assistência à saúde, significa resultadoobtido por unidade monetária gasta.

Para fomentar a competição que faz bem e melhorar ovalor dos serviços entregues ao cliente, é preciso mudar omodelo de remuneração dos hospitais.Assim como Porter,especialistas brasileiros defendem a mudança do modelode“conta aberta”para o modelo de pagamento por proce-dimento. Os hospitais passariam a receber um valor fixode acordo com cada serviço prestado. Os valores seriamnegociados entre hospitais e planos de saúde. Receberiamum valor X por uma cirurgia cardíaca, um valor Y pelotratamento de um paciente com câncer etc.

No SUS, os hospitais são remunerados pelo governodessa forma. Não podem cobrar por aspirina, agulha ouesparadrapo. Vários países europeus (como Reino Uni-do, França, Alemanha, Portugal, Espanha, Suíça, Suécia)também adotam o pagamento por procedimento. Desdeos anos 1990, usam um modelo sofisticado, chamado de“diagnostic related groups”(DRG).Em português, significa“grupo de diagnóstico homogêneo”. Dependendo do tipode paciente, o valor que o hospital recebe para o mesmoprocedimento é diferente. Tratar uma pneumonia numacriança custa um determinado valor. Num idoso, custamais.Num doente de aids,mais ainda.O DRG não funcio-na exatamente da mesma forma em todos os países. Cadaum incorpora diferentes fórmulas de cálculo de remunera-ção, de acordo com peculiaridades e necessidades do país.Em geral,há uma compensação financeira para os hospitaiscom melhor desempenho, segundo critérios de qualidade eatendimento.Um estudo coordenado por Philipp Schuetz,da Escola de Saúde Pública da Universidade Harvard, ava-liou resultados de instituições remuneradas segundo osdois sistemas, DRG e conta aberta, em hospitais da Suíça.Os pesquisadores compararam os dados de 925 pacientesatendidos para tratamento de pneumonia.Concluíram quea estadia hospitalar era 20% mais curta quando as institui-ções recebiam pelo sistema DRG.

Quando recebem por procedimento, os hospitais sãoestimulados a fazer um uso racional dos recursos da saúde.Negociam os preços com os fornecedores de materiais eadotam diretrizes de tratamento, com o objetivo de atingiros melhores resultados com o mínimo de gasto.O DRG é anova sensação da área no Brasil.Tem sido defendido comouma solução tanto por hospitais como por operadoras. s

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“na saúde, a competIçãoocorre em níVeIs errados

e nas coIsas erradas.a únIca forma de

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natureza da competIção”michael porter,

professor do Instituto de Estratégia eCompetitividade da Harvard Business School

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Mas é um sistema complexo.“O mercado da saúde deveriase chamar ‘fashion healthcare’. Cada hora é uma moda”,diz Luiz de Luca, superintendente corporativo do HospitalSamaritano. “O DRG foi inventado nos anos 1970, masagora os brasileiros resolveram achar que ele serve paraqualquer situação. Virou um vestidinho clássico. É o novotubinho preto.”

Segundo De Luca, a maioria dos hospitais e operado-ras brasileiras não sabe sequer como ele funciona. Paradar certo, é preciso avaliar se cada paciente tem doençascorrelacionadas e avaliar o estágio de cada uma. Depois,ainda é preciso aplicar preços diferentes. “Podemos ado-tar o DRG, mas é preciso combinar com os russos (asoperadoras) antes”, afirma. “As operadoras dizem que oDRG seria o jeito justo de remunerar. Na hora de fazer,alegam que não têm como colocar isso no sistema de-las.” Está em curso uma discussãonacional para mudança do mo-delo de remuneração, promovidapela ANS. Afonso José de Matos,da Planisa, é o mediador de umadifícil negociação entre hospitaisprivados e planos de saúde. A dis-cussão já dura três anos. No iní-cio, as partes não queriam dividira mesma mesa.

Foram dezenas de reuniões.Uma por mês. Um novo mode-lo de remuneração (um métodosimplificado, para uma futuraadoção do DRG) está em testeem 17 pares de hospitais e ope-radoras. É um primeiro passo.Segundo Matos, o modelo atualgera indignação. “Tem hospitalque usa medicamento genérico ecobra o de marca. Nesse sistema,quem não tem princípios frauda”,diz Matos. Outro complicador éa falta de padrão. Se um hospitaltem 50 médicos, cada um faz o quebem entende. Não pode ser assim. Um hospital precisa terconduta, diretrizes médicas e se cercar de um bom sistemade custos para negociar com as operadoras. “O sistemaprecisa sair do ciclo maldito que temos hoje. Precisa sairda análise de conta e ir para o resultado. O que interessaé saber se curou o paciente”, diz Matos.

Essa também é a opinião do superintendente corpora-tivo do Hospital Sírio-Libanês,GonzaloVecina Neto.“Nãotem cabimento continuarmos cobrando por mililitro deoxigênio consumido”,diz ele.Se hospitais e operadoras que-rem adotar o mesmo modelo, por que é tão difícil chegar aum acordo? Vecina diz que as duas partes estão sentadas àmesa, mas jogando pôquer. “Ninguém pisca, porque nin-guém está a fim de perder. É muito difícil construir umarelação ganha-ganha na situação em que estamos”, afirma.

O acordo não sai porque envolve mexer nas margens

de lucro. Na transição para o novo modelo, as operado-ras querem que os hospitais cobrem os medicamentose materiais a preço de custo, mas não parecem dis-postas a aumentar a remuneração daqueles serviçosque representam a missão essencial de um hospital:diagnosticar, tratar e curar com qualidade e segurança.A discussão vai longe. Os pacientes têm pressa.

* * *

A família de H.L., o médico internado no Albert Eins-tein que abriu esta reportagem, tem a esperança de que oplano de saúde assuma parte da dívida. A oftalmologistaS.L., sua filha, diz que, um mês após a cirurgia, tentoutransferir o pai para um hospital conveniado ao planode saúde. Não conseguiu. “As instituições diziam não ter

vaga na UTI”, afirma. “Ninguémquer assumir um caso complica-do como esse.” A Unimed de Assisnega. Diz que ofereceu à famíliaum hospital credenciado para arealização da cirurgia. Em notaencaminhada a ÉPOCA, afirmaque o paciente “deixou clara suaopção para que o referido proce-dimento fosse realizado no Hos-pital Albert Einstein, assumindoo risco desta autonomia própriae singular. A operadora mantéma disponibilidade da rede creden-ciada para o tratamento do sóciocooperado H.L., postura adotadadesde o início”.

A advogada de S.L. apresentaoutra versão. “Comprovamos nosautos que o paciente só não foitransferido porque o hospital cre-denciado ao plano de saúde nãoaceitou recebê-lo”, diz Renata Vi-lhena Silva. Se a família deve cercade R$ 5 milhões, afirma ela, é por-

que o hospital credenciado não aceitou esse paciente, e oplano de saúde não deu outra solução. “Minha cliente fezde tudo para transferir o pai”, afirma. O Einstein preferenão comentar o caso. Numa das mais recentes etapas dadisputa, argumentou que o paciente pode ser atendido emcasa. A família discorda. Diz que as condições de saúdedele variam abruptamente. “Se o levarmos para casa, emmenos de uma hora ele pode voltar a precisar de UTI”, dizS.L. “O que o Einstein chama de situação estável significacuidar dele 24 horas por dia: aspirar, virar, verificar a febree correr para o hospital se a pressão cair.”

Até o fechamento desta edição, a família perdia o processo.Ainda cabe recurso. S.L. adiou o casamento. “Dói muitopensar que meu pai não poderá entrar na igreja comigo,como fez com minha irmã e minha prima”, diz.

Os boletos de cobrança continuam a deslizar sob sua porta.u

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Foto: Sendi Morais/ÉPOCA

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