Upload
phillipp-gripp
View
238
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
5/7/2018 Reportagem sobre a primeira união homoafetiva do interior do RS - PDF - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/reportagem-sobre-a-primeira-uniao-homoafetiva-do-interior-do-rs-pdf 1/5
Você provavelmente
já ouviu a histó-ria da Bela Ador-
mecida, um clássico conto
de fadas escrito no século
XVII e adaptado para o ci-
nema pela Disney em 1959.
A linda história de amor
entre a princesa Aurora e
o príncipe Filipe percorre-
ram o mundo, mas, caso o
enredo lhe fuja à memória:
Aurora, ainda bebê, rece-
be uma maldição da bruxa
Malévola, que, ao comple-
tar 16 anos, ela espetaria o
dedo no fuso de uma roca
(antiga máquina usada para
tecer os) e cairia em sono
eterno. Contudo, três fadas
madrinhas – Fauna, Flora e
Primavera – descobrem que
o feitiço pode ser quebradocom um doce beijo de amor.
Quando o feitiço se cumpre,
as fadas madrinhas decidem
adormecer todo o reino até
que, certo dia, o corajoso
príncipe Filipe encontra a
princesa, depois de lutar
bravamente contra a bruxa,
e a beija, logo, a maldição é
quebrada e eles vivem “fe-lizes para sempre” - como
acontece em todo bom e
clássico conto de fadas.
Há milhões de me-
ninas que sonham com his-tórias como essa durante
toda a vida. Que algum dia
um príncipe encantado en-
frentaria tudo e todos por
ela, lhe acordaria com um
doce beijo, casar-se-iam e
viveriam para sempre jun-
tos e felizes. Pois bem,
algo parecido aconteceu
aqui em São Borja dia 1º de
julho de 2011, com direito à
fada, bruxa e maldição, mas
com os nomes de união,
discriminação e preconceito,
respectivamente.
Dia 30 de junho Bia
é acordada de um sono pro-
fundo por Milton, que diz:
“Bia, eu não consigo mais
viver nem mais um dia sem
ter a certeza de que nós va-mos car juntos para sem-
pre. Você aceita se casar
comigo amanhã?”. Claro
que, como qualquer pessoa,
ela cou emocionada, mas
como recusaria o pedido
de viver ao lado do amor
de sua vida, seu príncipe
encantado, que enfrentou
bravamente o preconceito ea discriminação que os dois
sofreram da sociedade?
Sem balbuciar, aceitou, e
Bia eMilton, ouvem, com atenção, à leitura do registro
de união estável.
O tabelião substituto, Abelardo Fontella, entrega o
registro de união estável ao casal.
logo se iniciaram os pre-
parativos para a união no dia
seguinte. A história que pa-
rece o desfecho de um con-to de fadas contemporâneo
seria visto por todos dessa
forma, exceto pelo nome
S | 14
5/7/2018 Reportagem sobre a primeira união homoafetiva do interior do RS - PDF - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/reportagem-sobre-a-primeira-uniao-homoafetiva-do-interior-do-rs-pdf 2/5
de Bia até então – Ubirajara
Ifran Oliveira.
Bia Ifran Oliveira,
cabeleireira, e Milton José
de Oliveira, mecânico, fo-
ram o primeiro casal ho-
mossexual do interior do
Rio Grande do Sul a efetivar
a união estável homo-
afetiva, após a decisão do
Supremo Tribunal Federal
(STF), que a legalizou em
maio deste ano. O tabelião
substituto, Abelardo Fon-
tella, após efetivar a união
do casal, disse estar hon-
rado em “lavrar o primeiro
ato nessa serventia”. Agora
os dois são considerados
um entidade familiar como
prevê a lei.
5/7/2018 Reportagem sobre a primeira união homoafetiva do interior do RS - PDF - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/reportagem-sobre-a-primeira-uniao-homoafetiva-do-interior-do-rs-pdf 3/5
Finais infelizesContudo, ainda esta-
mos – nós, homossexuais –
em situação frágil perante a
discriminação que podemos
sofrer – e não raramente de
fato sofremos - diariamente
ao dobrar qualquer esquina,
ir ao restaurante ou a uma
padaria qualquer.“Ei seus veados, to-
mem vergonha na cara e vi-
rem homens, suas bixonas”.Gritou do outro lado da rua,
para mim e meu namorado,
um homem gordo e com um
jeitão machista, acompa-
nhado de outros dois, apa-
rentando, todos, seus 50 e
poucos anos. Eu o abraçara
e rira de alguma piada que
ele havia feito. Com medo,
ele me empurrou para olado, saindo de perto, como
se me abraçar signicasse
perigo. Ironicamente isso
aconteceu alguns dias antes
da união de Bia e Milton.
Outro dia, na inter-
net , li o seguinte comentá-
rio: “Agora esse bando de
veadinhos querem leis pró-
prias. Pra que? Veado tem éque apanhar e ser xingado
mesmo. Querem é acabar
com a nossa liberdade de
expressão”. Tentei enten-
der – e, logo, lhe perguntei
- quais os motivos aquele
“ser humano” tinha para
que o Projeto de Lei 122,
que criminaliza a homofo-
bia (aversão e preconcei-to contra homossexuais),
não fosse aprovado, mas
ele utilizou a “liberdade de
expressão” que tanto preza
e obtive como resposta um
simples palavrão.
Mas não são só
casos isolados. Muito
menos chegam a ser ape-
nas palavras de baixo ca-
lão, risinhos e comentários
discriminatórios. O Grupo
Gay da Bahia (GGB) vem
registrando vários casos de
homofobia desde 2006 e
constatou que o índice de
assassinatos, tendo como
única causa a discrimina-
ção, aumentou 113% em
cinco anos, como nos mos-
tra o infográco ao lado.Contudo, esses da-
dos são apenas os que cons-
tam no relatório, o qual não
mostra nenhuma morte em
quatro estados brasileiros
no ano de 2009, o que é du-
vidoso, haja vista que o do-
cumento é formado a partir
de casos noticiados na im-
prensa e há muitíssimos ou-tros casos não divulgados.
O mais antigo tabe-
lião em atividade, hoje, no
S | 16
5/7/2018 Reportagem sobre a primeira união homoafetiva do interior do RS - PDF - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/reportagem-sobre-a-primeira-uniao-homoafetiva-do-interior-do-rs-pdf 4/5
Brasil, Dirceu Olea Dornel-
les, 82, é dono do cartório
onde foi realizada a união
de Bia e Milton, mas ele não
pôde estar presente e reali-
zar a cerimônia, por proble-
mas de saúde. Contudo, ementrevista, ele se manifes-
tou sobre o Projeto-lei que
criminaliza a homofobia,
dizendo que “seria um con-
tra-senso, pois se ele [STF]
aceita a União homoafetiva,
não há porquê ele deixar de
lado a discriminação”.
A luta contra ahomofobia
Cada dia mais a luta
contra o preconceito a ho-
mossexuais ganha força no
Brasil. Como já citei ante-
riormente, está em discus-
são, no Senado, a aprova-
ção do PLC122, que torna
crime a homofobia, como
explica a Jurista, professorade direito, além de
Coordenadora cientíca do
Curso Jurídico Preparatório
Flávio Monteiro de Barros
em Rondônia, Jéssica Som-
bra, 23, “Há vários tipos de
conguração de homofobia
no PLC122, cujas penas
chegam até cinco anos de
reclusão”.Sobre as uniões ho-
moafetivas a jurista declara
que são “laços afetivos com
o intuito de se construir uma
família, uma união entre pa-
res tão legítima quanto as
uniões heteroafetivas. Uma
das provas da pluralidade
da célula social mais impor-
tante: a família”.
Felizmente, as opi-
niões favoráveis à homoafe-
tividade não cam restritas
apenas a pessoas relaciona-
das ao estado, como é o caso
do padre Irineu Neto Gue-
des Machado, 54, sacerdoteresponsável pela Paróquia
São Francisco de Borja,
formado em losoa e teo-
logia. “Em primeiro lugar,
falamos de seres humanos,
de pessoas, as quais são me-
recedoras de todo respeito e
carinho, criadas à imagem
e semelhança de Deus (...)
Ninguém escolhe sua sexu-alidade. Cabe a cada um de
nós, tratarmos de conviver-
mos com ela e com as im-
plicações que esta tem no
dia a dia (...) As pessoas que
sentem atração sexual pelo
mesmo sexo, merecem res- peito e consideração. Isso é
intocável. Acolher o outro é
básico. Reconhecer a união
é necessário para garantir os
direitos”, declara o padre.
A questão também
tem ganhado espaço im-
portante na mídia nacional.
A novela global Insensato
Coração, exibida no horárionobre pela emissora, vem
trazendo fortes cenas de
homofobia, desde comentá-
Cartaz produzido pelo grupo gay da Bahia no combate à
discriminação contra os homossexuais.
S | 17
5/7/2018 Reportagem sobre a primeira união homoafetiva do interior do RS - PDF - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/reportagem-sobre-a-primeira-uniao-homoafetiva-do-interior-do-rs-pdf 5/5
rios ofensivos e discussões
a ataques de espancamento
e mortes por puro precon-
ceito. A trama mostra a re-
alidade vivida pelos LGBTs
(Lésbicas, Gays, Bissexu-
ais, Travestis, Transexuaise Trangêneros), pois nada
acontece com os que pra-
ticam o ato, apesar das de-
núncias.
O personagem ho-
mossexual Roni Frago-
nard, interpretado pelo ator
Leonardo
Miggiorin,
conta, emuma cena
que foi ao
ar no mes-
mo dia que
Bia e Mil-
ton troca-
ram alian-
ças, sobre o
que sentiu
com a per-
s e g u i ç ã o
que sofreu:
“nenhuma
ferida as-
sim, aparente que dê para
ver. Mas na hora, o medo
que eu senti. E a raiva?
Sabe você ser perseguido
por alguém, sem ter feito
absolutamente nada, nada?
Alguém achar que você temque apanhar pelo simples
fato de você estar vivo, de
existir, de ser o que é? Me
senti tão vulnerável, tão
frágil”.
Além da novela, há
vários lmes, curtas e do-
cumentários como o brasi-
leiro “Não Gosto dos Meni-
nos”, inspirado na produçãodo estúdio pixar, “It Gets
Better”. O documentário
mostra vários depoimentos
de homossexuais, para en-
corajar gays a enfrentar o
preconceito, com o intuito
de mostrar que tudo cará
melhor, como “não ter ver-
gonha de ser quem você é,
muda tudo na sua vida”,“o problema, na verdade,
estava com eles, de não en-
tender que eu não era como
eles gostariam que eu fosse”
e “acho que a gente deveria
se preocupar muito mais
com fazer o bem para a hu-
manidade, em estar feliz e
ajudar ao próximo, do que
tentar fazer um esforço de
coesão para que todo mun-
do siga preceitos religiosos,
ou sociais, ou alguma coisa
estabelecida”.
Resquícios de uma
esperançaJá usando alian-
ça, Bia Ifran diz que “ape-
sar de todos os problemas,
conseguimos [ela e Mil-
ton] quebrar mais um tabu,
principalmente na região
da fronteira oeste”. Com
um sorriso no rosto, Milton
diz que é maravilhoso saber
que agora ele e Bia são
uma família “era tudo que
nós queríamos”. Enquanto
Diego, amigo do casal, que
registrou toda a cerimônia,
se emociona “com tanto
preconceito para com agente, homossexuais, é
lindo ver alguém dizer que
ama o outro publicamente”.
Em todo clássico
conto de fadas, nós indaga-
mos o futuro das persona-
gens. Aquele “felizes para
sempre” do
nal, não é o
bastante parasaciar nossa
curiosidade.
P e r g u n t a s
como “será
mesmo tão
perfeito?”,
ou “será que
eles nunca
tiveram uma
briga?”, sur-
gem em nos-
sa fértil ima-
ginação.
A resposta,
talvez, esteja em qualquer
casal típico do cotidiano,
pois príncipes e princesas,
assim como homossexuais
e heterossexuais, são seres
humanos e, não obstante,
Bia e Milton devem saber a fórmula do “felizes para
sempre”: as brigas existem,
assim como os puxões de
orelha e os ciúmes e eles
aparecerão cedo ou tarde,
contudo, quando derem o
“ar da graça”, é necessário
relembrar o amor que lhes
uniu e de todos os proble-
mas que enfrentaram e ven-ceram um pelo outro, pois
apenas assim a eternidade
se unirá à felicidade.
Bia e Milton se beijam, felizes, com um sonho realizado
S | 18