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REPRESENTAÇÕES DE BRUXA NA LITERATURA INFANTIL
CONTEMPORÂNEA: A BRUXA CRIANÇA
Alexsandra Alves de Brito1
As narrativas para crianças, para além de suas dimensões literárias, têm
contribuído também para a construção de diferentes representações de infância na
atualidade. As personagens bruxas têm figurado como protagonistas em uma ampla
parcela de livros recentes para crianças e, em algumas histórias, as próprias crianças
passaram a incorporar essas personagens.
A literatura infantil, desde o seu surgimento como gênero até a
contemporaneidade, tem sido produzida por adultos. Portanto, os textos endereçados ao
público infantil partem da perspectiva do autor, conforme seus interesses e baseada na
literatura adulta, designada por Lypp2 apud Zilberman (2003) como “adultocêntrica”.
Esta literatura deriva de valores e hábitos para a organização de uma sociedade
conforme concebida pelos emancipados, sujeitos da produção e mediadores do
consumo.
Se as crianças não produziam literatura, assim como ainda escassamente a
produzem, elas raramente eram representadas nas obras que foram inicialmente
adaptadas para elas, a partir da literatura adulta. De acordo com Zilberman (2003),
personagens crianças como Alice, Dorothy, Peter Pan e outros surgiram como
protagonistas na literatura infantil somente na segunda metade do século XIX, mais de
um século depois da emergência desse gênero literário. A partir daí, muitos autores
percebem a utilização do universo infantil, de heróis ou de outros personagens que
simbolizem esta condição, como um terreno fecundo para a produção literária voltada a
este público. A representação da criança como eixo central das histórias estreita o
vínculo do leitor com o texto ficcional e provoca algumas alterações no rumo que essa
literatura toma posteriormente.
1 Mestre em Educação (ULBRA) 2 LYPP, Maria. Einleitung. In: LYPP, Maria (Org.). Literatur fur Kinder. Gottingen: Vandenhoeck und Ruprecht, 1977.
Na literatura infantil clássica, a personagem bruxa se opõe aos heróis com os
quais os leitores comumente se identificam. Ela é, na maioria das vezes, feia, velha e
má. E, por mais que dificilmente uma criança queira ser a bruxa má da história, esta
personagem exerce um forte encantamento no leitor, pois tem poderes mágicos, lida
com o desconhecido e representa muitas faces dos medos infantis. Conforme
mencionado, os livros para crianças de publicação recente têm trazido histórias
protagonizadas por bruxas crianças. São bruxinhas adjetivadas como curiosas,
inofensivas, espontâneas, solícitas, conduzidas por intenções ingênuas que, de certa
forma, brincam com os elementos do universo mágico. Essas particularidades que
relacionam esse período da vida à ingenuidade, espontaneidade, candura,
inculpabilidade, aludem às concepções modernas de infância, desfazem a relação de
medo pré-existente entre o leitor e a personagem na medida em que os aproximam,
produzem efeitos de identificação do leitor com a personagem e, ainda, abrem um novo
nicho aos mediadores deste consumo, pois, de certa forma, tornam a representação
atrativa e consumível, à criança e ao adulto, principalmente.
Quando a protagonista bruxa é adulta, ela, comumente, carrega características
estereotipadas da bruxa primordial, a personagem antagonista dos contos de fadas.
Todavia, quando a representação é infantilizada, a personagem aproxima-se de algumas
concepções ocidentais de infância que predominam na atualidade e tende a fugir das
representações estereotipadas de bruxa, incorrendo, contudo, em estereótipos sobre a
criança.
Não é comum, na literatura, uma personagem criança ser representada como
“feia” ou “má”, pois, de certa forma, conduziria a um rompimento com as expectativas
que giram em torno destas concepções de infância a partir da Modernidade. Porém,
quando isso ocorre, a maior parte das obras frequentemente desenvolve o enredo em
torno da temática das diferenças e conduz o desfecho para resoluções monológicas a
partir das principais soluções para os conflitos identificadas por Kirchof (2011). Cabe
destacar ainda que, quando a feiura é abordada em uma personagem infantil, ela é
representada metaforicamente por características fantásticas ou incorporada em
personagens animais antropomorfizados que amenizam esta condição em direção aos
estudos de Silveira et al (2012). Como exemplo, temos o clássico conto O patinho feio
de Andersen (1843) em que a diferença é superada no desfecho pela transformação da
feiura em beleza. Depois de Andersen, inúmeros autores recontaram essa história em
diferentes versões e adaptações. Silveira, Kirchof e Bonin (2016) desenvolveram um
estudo com base em oito adaptações contemporâneas desse conto, quatro em meio
impresso e quatro em meio digital. Dentre as conclusões dos autores a partir da análise,
foi apontada a necessidade que se impõe para que as adaptações contemporâneas se
ajustem às novas condições de infância e às diferentes circunstâncias culturais que
vivenciam os pequenos leitores na atualidade.
Momo e Costa (2010), baseadas em uma série de autores3, definem infância
como “uma construção cultural, social e histórica, sujeita a mudanças” (MOMO e
COSTA, 2010, p. 967). As autoras argumentam que os sujeitos infantis têm sido
representados por variados discursos, com múltiplos propósitos, que lhes conferem
diversos significados aos modos de ser e de viver esse período peculiar da vida.
Todavia, nas sociedades em que predominam as matrizes culturais ocidentais, a infância
ainda é compreendida com base nos discursos do mundo Moderno: cercada de
felicidade, proteção, ingenuidade, docilidade, dependência dos adultos
Bonin (2015) nos diz que a criança, como objeto de estudo, é definida como o
outro em relação a quem a estuda, do mesmo modo como ocorre com diferentes sujeitos
sociais: os índios, os negros, as mulheres, etc. A criança não fala sobre si, mas fala-se
sobre ela.
As diversas representações do que seja uma criança indicam que o conceito
de infância não é (e nunca foi) estático e único. Seu significado varia de um
lugar para outro, de uma cultura para outra, de um grupo para outro, no
contexto de uma mesma cultura (BONIN, 2015, p. 29).
Neste sentido, é possível dizer que a infância é uma construção cultural
produzida pelos mais variados discursos, inclusive pela literatura infantil, e, por isso,
incidem sobre esses textos os efeitos dos pensamentos sobre o que é ser criança na
atualidade.
Pode-se observar, por meio das representações das “bruxinhas” na literatura
recente, a reiteração de muitas concepções do sujeito infantil ainda articuladas às noções
de infância a partir da Modernidade. Os livros selecionados para compor o acervo deste
Ariès (2015), Del Priore (2000), e outros.
estudo, têm, como protagonistas, bruxas crianças. A bruxinha curiosa, (BAETEN,
2015), A bruxinha e o dragão, (ALPHEN, 2012) e Trudi e Kiki, (FURNARI, 2010).
Com base nessas três obras, este estudo pretende, ancorado nas teorizações dos Estudos
Culturais em Educação e da Literatura Infantil, analisar esta vertente representacional
em que se articulam as características da bruxa clássica a concepções de infância. Além
disso, a pesquisa propõe discorrer sobre as principais estratégias composicionais
utilizadas na construção destas histórias.
A bruxinha curiosa (BAETEN, 2015) tem como personagem central a menina
bruxa Nita. Como descreve o próprio título, a protagonista é uma bruxinha curiosa,
característica que atribuímos às crianças de maneira positiva na atualidade. Enquanto
viaja em sua vassoura, à meia-noite, Nita avista luzes acesas em uma casa no alto do
morro e decide descobrir quem vive lá. Quando espia pela janela, o gato que a
acompanha vê um rato e tenta pegá-lo. Neste momento, os dois caem dentro da casa, a
vassoura da bruxinha se parte e ela percebe que precisará de ajuda para consertá-la e
voar novamente. Ao adentrar a casa, Nita encontra quatro bruxas simpáticas e solícitas,
cada qual com habilidades ou características específicas: a bruxa musical, a bruxa
cozinheira, a bruxa dorminhoca e a bruxa consertadora. Por fim, após explorar os
espaços e questionar sobre as habilidades de cada bruxa, a última conserta a sua
vassoura para que possa prosseguir em suas aventuras. E Nita, apesar de ser designada
uma bruxa, é uma criança e, portanto, incapaz de consertar a própria vassoura quebrada
ou realizar a magia que a transforma em “um impressionante foguete-vassoura”, como o
faz a bruxa adulta. Esta história é protagonizada por uma bruxa infantil, intrometida e
inconsequente, que adentra a casa de desconhecidos sem ser convidada para uma
exploração, similarmente ao conto Cachinhos Dourados e os três Ursos. Contudo,
alguns fatos distinguem os dois enredos: neste último, as moradoras estão presentes na
casa, a recebem amigavelmente, ajudam-na a resolver seu problema e não a repreendem
pela atitude inapropriada. Ou seja, a conhecida “lição de moral” ao leitor infantil, típica
desses contos, não se manifesta nessa narrativa. Ademais, fica implícito também, no
desenrolar da história, o entendimento de que às crianças são permitidas certas atitudes
as quais, vindas dos adultos, seriam vistas como inadequadas.
Já o livro A bruxinha e o dragão (ALPHEN, 2012) conta a história de uma
bruxinha “birrenta” e teimosa, que deseja um dragão de estimação especial, diferente
dos dragões comuns. E o pai, um bruxo, faz todo o possível para satisfazer as vontades
da criança, até mesmo se transformar no próprio dragão para o contentamento da filha.
Com isso, passa a alternar a própria vida, sem que a filha saiba, entre pai e dragão. O
texto é composto em tom irreverente, explora sutilmente elementos de comicidade e
busca desviar-se de discursos prontos sobre os relacionamentos familiares. A
intertextualidade é outra estratégia de construção do texto, onde ficam evidentes o
resgate e a inversão de algumas premissas dos contos de fadas: a bruxa, e não a
princesa, é protegida por um dragão na torre do castelo, enquanto aguarda por seus
pretendentes, que são representados nas ilustrações como cavaleiros medievais e não
como príncipes encantados, ou bruxos, como seria de se esperar.
Figura 1: ilustração que mostra a Bruxinha presa em uma torre, guardada pelo dragão-pai, enquanto espera por seus
pretendentes. Fonte: (ALPEN, 2012), p. 41.
Este livro também se vale de recursos humorísticos como forma de aproximação
da narrativa com o universo lúdico do leitor infantil e ainda como forma de
desconstrução das personagens clássicas. A bruxinha é representada em um universo
ficcional fantástico, mas não há nenhuma menção à prática de magia pela personagem,
tampouco a alusão à maldade. Do mesmo modo, o dragão como personagem clássico
dos contos de fadas é subvertido, pois não é feroz, nem amedrontador, ao contrário, é
amigável e se torna o companheiro inseparável da protagonista. A inversão se dá
principalmente através da comicidade. Para tal, os traços representacionais dos dragões
dos contos de fadas são amenizados e desconstruídos com características que se opõem
às do dragão feroz, para que se relacione de igual para igual com a bruxinha criança e se
torne permeável ao universo infantil. Para tal, há que convertê-lo em dócil, pequeno,
engraçado, colorido.
Figura 2: à esquerda, texto verbal e as ilustrações representam o bruxo-pai após se transformar em dragão. À direita, a
ilustração mostra a bruxinha feliz ao lado de seu dragão de estimação. Fonte: (ALPEN, 2012), p. 11 e p. 17.
A hipérbole e o insólito também integram os artifícios cômicos desse texto.
Quando o dragão cresce e toma proporções gigantescas, isso lhe dificulta acompanhar a
bruxinha nas atividades cotidianas e conduz o texto para situações inusitadas. O dragão
derruba postes, apoia a cauda sobre uma casa e põe em chamas a escola da menina por
causa de um simples espirro. É interessante destacar também o contraste que se cria
entre o tamanho inicial do dragão, que é menor que a menina, e após, no
desenvolvimento do enredo ele se agiganta, à medida que a menina cresce. É possível
perceber a simbologia que subjaz ao texto, pois, primeiramente, o dragão deve ser
menor que a menina para caber em seu mundo infantil, contudo, à medida que a
bruxinha cresce e vai desfazendo o vínculo de dependência para com a figura do pai-
dragão, ele tem a necessidade de tomar proporções enormes, para se sobrepor aos
anseios da bruxinha, que se modificam na passagem da infância para a vida adulta.
Ainda, o tamanho descomunal do dragão começa a causar situações desconcertantes na
vida da menina, o que simboliza também que a presença constante e o controle do
adulto já não cabem mais no mundo da criança. Não só o texto visual, mas também o
texto verbal evidenciam que as atitudes do pai-dragão estão atrapalhando a vida social
da filha. “Para a garota, aquilo tudo soava muito estranho: se não era o pai que estava
sumido, eram os seus amigos!” (ALPEN, 2012, p. 40).
Figura 3: à esquerda, a ilustração mostra o dragão enorme derrubando postes e apoiando a causa sobre uma casa. À
direita, quando ele incendeia a escola da bruxinha, pois espirrou por causa de um resfriado. Fonte: ALPEN (2012), p.
26 e p. 34.
Ademais, o autor deste livro utiliza-se, para a construção do humor, de figuras
de linguagem como comparações, metáforas popularmente conhecidas e explora os
ícones comuns no âmbito do cotidiano infantil. O texto mostra que o dragão, mesmo
tendo se tornado gigantesco e desproporcional ao mundo da criança, continuava se
esforçando para participar da sua rotina, de maneira cômica, conforme mostra o texto
visual.
Figura 4: à esquerda, a imagem ilustra quando a menina desconfia do bafo de dragão do pai, à direita, o dragão faz as
refeições à mesa junto da bruxinha e tenta se adequar ao seu mundo. Fonte: (ALPEN, 2012), p. 29 e p. 32.
O texto deste livro deixa transparecer a suposta ingenuidade atribuída às crianças
nas culturas ocidentais, já que a Bruxinha só se dá conta que o dragão e o pai eram a
mesma pessoa na transição para a vida adulta, depois de vivenciar muitas situações
insólitas no enredo. Além disso, permite-se inferir da leitura desse texto alguns
fundamentos simbólicos que conduzem o percurso da criança em direção ao
amadurecimento psicológico e à quebra com dependência dela em relação ao adulto.
Para além de muitas questões que nos explicita o texto, a história fala
simbolicamente sobre situações análogas às que ocorrem nas sociedades
contemporâneas que envolvem as relações entre pais e filhos. Dentre essas, os
sacrifícios a que se submetem os pais para manter a aura de proteção em torno desta
infância almejada pelo projeto moderno, cercada de felicidade e proteção. O pai da
bruxinha se transforma no próprio dragão de estimação com as características almejadas
pela filha e passa a alternar os papéis, o que visivelmente lhe causa transtorno e
cansaço. Além disso, também subjaz no texto a dificuldade por parte dos adultos em
desenvolver a autonomia das crianças e a aceitar a independência e o amadurecimento
dos filhos na passagem para a vida adulta. No ato de se transformar em dragão, o pai da
bruxinha a segue em todas as suas ações e a “protege” de seus pretendentes, quando ela
cresce e passa a se interessar por relacionamentos afetivos. Por fim, acaba ocorrendo um
embate entre os “dragões” que simbolizam o pai e a filha para que haja o rompimento
desta relação de interdependência entre o adulto e a criança. Desta forma, o enredo nos
permite também a leitura na perspectiva que vê a criança com um ser incompleto,
passível de correção, carente de proteção de certos perigos e lhe impõe, conforme Bonin
(2015) a “modificação dos hábitos adultos” e a “separação dos corpos e dos espaços
físicos”. Dessa maneira, justifica-se a necessidade de intervenção e de governo da
infância. Nesta história (ALPEN, 2012) a Bruxinha é colocada em uma torre e o dragão-
pai passa a vigiá-la. Por outro lado, o texto pode estar criticando o modo como são
representadas essas relações entre pais e filhos na contemporaneidade, para subvertê-las.
A criança, sob este prisma, somente está autorizada a desfazer a relação de
dependência para com o adulto quando é considerada por ele capaz de se autogerir,
conforme nos possibilita o entendimento a partir da leitura do desfecho do texto neste
livro, no qual a relação de cuidado e de dependência é figurativizada em um dragão:
E assim termina esta história de amizade entre uma bruxinha e um dragão,
porque naquele tempo pra lá de antigo, toda feiticeira que completasse
dezoito anos soltava seu dragão de estimação, mesmo sendo ele o maior de
todos, o mais feroz, o mais colorido, o que voasse mais alto e o que tivesse
mais chifres... (ALPHEN, 2012, p. 49)
Com Trudi e Kiki, Eva Furnari (2010) cria uma bruxinha infantil ao lado de
outra personagem não bruxa, e estas vivem o cotidiano de garotas comuns, cada qual em
universos ficcionais paralelos, cidades separadas geograficamente por uma montanha.
A representação da bruxinha Trudi, nas ilustrações da autora, rompe com uma
tendência da literatura infantil, como já mencionado, que busca desviar-se dos
estereótipos de feiura para representar personagens crianças, mesmo quando estas são
bruxas. Trudi é ilustrada como uma bruxinha de pele esverdeada, coberta por verrugas e
pelos no corpo, dentes proeminentes, nariz arrendondado e rosto disforme.
A voz narrativa, ao descrever as personagens, não faz nenhuma menção, no texto
verbal, às distinções físicas das meninas tampouco emite qualquer tipo de julgamento
explícito: “Apesar de tantas coisas parecidas, as meninas tinham grandes diferenças, e a
mais importante de todas é que uma era bruxa e a outra não” (FURNARI, 2010, p. 5).
Apenas, nas falas das mães (e das crianças), essas diferenças são referenciadas: “- Seu
nariz está gordo, inchado, Kiki-Lili! Céus! Você foi picada pelas abelhas!!!”
(FURNARI, 2010, p. 26). Ou na fala da bruxinha Trudi, ao se deparar com a mãe não
bruxa: “- Buá! Estou com medo! A senhora é muito feia!” (FURNARI, 2010, p. 26).
Todavia, estas diferenças, físicas e culturais, ficam evidentes nas ilustrações que
dispõem em paralelo as duas meninas, ao longo da narrativa, bem como os objetos que
fazem parte de seus mundos. É importante destacar que os ícones que as identificam nas
ilustrações recuperam a estereotipia de certas concepções culturais sobre animais e
plantas. A lesma, a lagarta, a aranha e o cacto, seres usualmente tidos como “feios” e
“repulsivos”, identificam a bruxa, ao passo que flores, borboletas e joaninhas se
relacionam ao universo da menina não-bruxa. Todavia, os corações e florzinhas
aparecem nas duas imagens, o que reitera o que diz o texto verbal sobre as semelhanças
e diferenças entre as meninas e também contesta a vinculação cultural desses ícones aos
universos de cada personagem:
Figura 5: ilustração mostra Trudi, a bruxinha, à esquerda e Kiki, a menina não-bruxa, à direita. Fonte: FURNARI
(2010), p. 5.
Do mesmo modo, à medida que o enredo se desenvolve, as ações das duas
personagens vão sendo mostradas simultaneamente para evidenciar as semelhanças e
diferenças entre as personagens centrais e os respectivos universos ficcionais criados
pela autora.
Furnari (2010) explora, nesse texto, vários recursos composicionais,
especialmente a inversão, a intertextualidade, a intermediabilidade, a ironia e a
metalinguagem. Em Trudi e Kiki, Furnari (2010) inventa até mesmo idiomas próprios
para cada uma das cidades fictícias em que a história ocorre: o biribês em Biribin e o
buruxês em Burux. Para nomear a cidade da bruxa, a autora brinca com as sílabas das
palavras deste campo lexical. Algumas partes do texto são apresentadas nesses idiomas
ficcionais das personagens bruxas e não bruxas, com as respectivas traduções para o
português, nas quais a brincadeira lexical continua.
Figura 6: O convite para a festa das bruxas em Biribin, escrito em biribês e a respectiva tradução e o convite para a
festa beneficente dos morceguinhos carentes em Burux, escrito em buruxês e traduzido para o português. Fonte:
FURNARI (2010), p. 8 e p. 15.
A disposição dos convites no texto em uma língua inventada e a respectiva
tradução para a língua do leitor constituem recursos de metalinguagem na medida em
que autora cria outros textos dentro da narrativa utilizando a língua como recurso
estético e composicional. Além dos convites, a narrativa também utiliza vários outros
elementos de intermediabilidade no texto visual como cartazes e quadros na parede,
álbum de fotografias, etc.
Nesta obra, a autora aborda a questão da diferença, comparando os dois mundos
e os modos como vivem as meninas, articulando as distinções e as semelhanças entre
elas ao longo do texto. Durante o desenvolvimento do enredo, as meninas acabam
trocando de lugar e a narrativa deixa transparecer o argumento de que o modo como
lidamos com a diferença depende do lugar que ocupamos no mundo. Ou seja, do mesmo
modo que a mãe de Kiki se assusta com a aparência da suposta filha, quando as meninas
são trocadas, a Dona Bruxa, mãe de Trudi, pensa que a filha foi enfeitiçada por estar
com uma “pele horrível”. As crianças também se assustam com os aspectos físicos das
mães. Do mesmo modo, as personagens, quando trocadas, não conseguem se adaptar
aos novos brinquedos ou comidas que lhes são apresentados. Tudo isso reforça o
entendimento das concepções de belo e feio como construções culturais, delineadas por
significados instáveis que se subordinam aos códigos culturais acionados pelo leitor,
conforme argumenta Kirchof (2013) com base nas compreensões de Hall (1997).
Segundo o autor:
[...] a cultura tem o poder de constituir identidades e
subjetividades, pois é a partir dos sistemas classificatórios
disponíveis nas mais diversas culturas em que estamos inseridos
que definimos quem somos e quem podemos ser... (KIRCHOF,
2013, p. 1073)
Os estudos de Kirchof, Bonin e Silveira (2013) que tratam da diferença na
literatura infantil afirmam que, com a popularização das concepções multiculturalistas
nas últimas décadas, a temática das diferenças tem se manifestado sobremaneira nos
livros para crianças.
Azevedo (2014), com base nas análises de Stephens (1992), afirma que os textos
para crianças buscam frequentemente incentivá-las para uma percepção positiva dos
valores socioculturais que se pressupõem como partilháveis entre as instâncias
produtoras e as suas receptoras, no caso os jovens leitores. Dentre esses valores
comumente aceitos nas comunidades das quais fazemos parte, tem se sobressaído,
segundo o autor, “a explicitação da presença do Outro, o reconhecimento da sua
natureza potencialmente polifônica, o respeito por ele e a sua aceitação...” (AZEVEDO,
2014, p. 35).
Em Trudi e Kiki (FURNARI, 2010), a autora explora os estereótipos de feiura e
modos de viver “diferentes” vistos como típicos de uma bruxa, de modo simbólico, para
abordar as diferenças em relação a um padrão de infância idealizado por um segmento
social. Esta história mostra que as infâncias e as crianças podem ser múltiplas, porém
muitos elementos e hábitos são comuns ao universo infantil e se repetem ou se
assemelham em ambos os lugares.
Elas tinham gostos e desgostos parecidos. Gostavam de pintar as
unhas de cores chocantes, adoravam brincar de mímica com o
pai, amavam ouvir a mãe contar histórias. Detestavam ter que
apagar a luz na hora de dormir e odiavam roupa que pinicava.
(FURNARI, 2010, p.5)
No momento em que as meninas trocam de lugar, as mães tentam consolar as
crianças e lhes oferecem brinquedos que são imediatamente refutados por ambas as
personagens. Nesse momento, a voz narrativa emite julgamentos e busca relativizar os
conceitos de belo e feio, pois chama de “bonecas pavorosas e bichinhos medonhos” os
brinquedos “fofinhos” de Kiki, a menina não-bruxa, e diz que são “fofos e bonitinhos”
os brinquedos “monstruosos” da bruxinha Trudi.
Figura 7: ilustrações das “bonecas pavorosas e bichinhos medonhos” de Kiki, a menina não bruxa. Fonte: FURNARI
(2010), p. 28.
Figura 8: ilustrações dos “bonecos fofos e bonitinhos” da menina bruxa, Trudi. FURNARI (2010), p. 28.
Além disso, a narrativa deste livro ironiza a separação que a sociedade impõe
entre os diferentes, por meio de barreiras físicas e simbólicas, ao construir duas cidades
fictícias distintas, separadas por uma montanha. E mesmo com a separação física,
situações ocorrem no enredo que fogem ao controle e colocam os dois mundos em
contato, desse modo, um acaba se articulando ao outro.
Para além das barreiras físicas e das delimitações geográficas, Hall (1997) alega
que, em face da diferença, somos conduzidos a construir fronteiras simbólicas tidas
como centrais para toda a cultura. Com isso, tendemos a estigmatizar e a refutar
qualquer coisa que seja tida como “anormal”. Assim, gera-se um paradoxo, pois a
diferença adquire poderes atrativos, justamente por se tornar um tabu e ameaçar a ordem
cultural. O texto de Furnari (2010) menciona, de modo irônico, que as pessoas, mesmo
não sendo bruxas, comemoram anualmente o dia das bruxas e se vestem como tal:
Apesar de não haver bruxas em Biribin, uma vez por ano a cidade
comemorava o dia delas. Os habitantes faziam festas, se fantasiavam,
punham roupas pretas e roxas, colocavam narizes falsos e chapéus pontudos
de papelão.
(FURNARI, 2010, p. 8)
Hall (1997), ao falar sobre representação e diferenças, diz que as pessoas
significativamente diferentes da maioria são vistos como “outros” e, frequentemente,
representados de maneira binária em seus extremos: “bom/ruim, civilizado/primitivo,
feio/excessivamente atraente, desagradável por ser diferente/coativo por se estranho e
exótico” (HALL, 1997, p. 229). O narrador do livro de Furnari (2010) não coloca em
oposição as personagens Trudi e Kiki, mas as compara e as distingue quando diz que a
diferença mais importante entre elas era o fato de uma ser bruxa e a outra não. O texto
não as adjetiva explicitamente como feias/belas, más/boas. Apenas as descreve e as
compara, mas a ideia de oposição está implícita, uma vez que as suas diferenciações
delimitam o que uma personagem é (bruxa), em relação ao que a outra não é (não
bruxa). Dessa forma, o texto as classifica. Hall (1997) traz os argumentos de Mary
Douglas para afirmar que os sistemas classificatórios podem conduzir a sentimentos e
práticas negativas, uma vez que a ordem cultural é perturbada quando as coisas acabam
em categorias erradas.
Neste livro (FURNARI, 2010), quando as personagens trocam de mundo, o
comportamento delas e das mães se desestabiliza e elas tentam agir para “restaurar a
ordem do lugar, recuperar o estado normal das coisas” (HALL, 1997, p. 236).
Três horas depois, Dona Bruxa teve uma crise de nervos. Vestiu a pequena
com um vestido branco especial e embaraçou-lhe os cabelos para levá-la ao
Bruxo Úrgulo. Só ele poderia desfazer o feitiço.
Em Biribin, a outra mãe estava se descabelando de aflição. Resolveu ir ao
médico, mas, antes, deu um banho na menina e vestiu-a com um lindo
vestido de renda para melhorar seu aspecto.
(FURNARI, 2010, p. 29)
Hall (1997), com base nos argumentos de Jaques Derrida, diz que raramente as
oposições binárias são neutras, pois geralmente existe uma relação de hierarquia entre
elas, onde um dos polos quase sempre é dominante sobre o outro. Sob esta ótica, é
possível dizer que Furnari (2010) inverte, de certa forma, essa lógica binária na medida
em que posiciona, primeiramente a bruxa, na composição do título da obra Trudi
(bruxa) e Kiki (não bruxa) e na posição das personagens que ilustram a capa do livro.
Isto é, a história coloca em primeiro plano a personagem marcada pela diferença,
conforme padrões estabelecidos pelas culturas ocidentais, em oposição à não diferente.
O outro ponto de vista linguístico discutido por Hall (1997) se baseia nas
concepções de Bakhtin, o qual entende a diferença como necessária para a construção
do significado e este só é construído, segundo o autor, por meio do diálogo com o outro,
por isso é dialógico. Ou seja, para esse linguista, o significado surge através do diálogo
entre os diferentes falantes, portanto, é estabelecido e modificado pela interação com
outra(s) pessoa(s). No início da história do livro de Furnari (2010), quando as
personagens vivem cada qual no seu mundo, elas ainda não têm ciência das possíveis
diferenças entre seus mundos. De fato, elas nem sequer sabiam da existência uma da
outra. “As garotas não se conheciam” (FURNARI, 2010, p. 6). As personagens somente
se dão conta das diferenças quando trocam de lugar e vão parar uma no mundo da outra.
A partir do diálogo entre as personagens, as diferenças, tanto físicas quanto culturais,
tornam-se evidentes. Desta forma, com o choque do encontro, cada personagem passa a
construir seus significados do ponto de vista de suas concepções culturais e
posicionamentos sociais: a mãe não bruxa busca uma explicação racional para a
mudança no aspecto físico da filha e diz que ela deve ter sido picada pelas abelhas. Para
solucionar o problema, procura ajuda em um método científico, lhe dá um xarope
antialérgico e resolve levá-la ao médico. Enquanto isso, a mãe bruxa se apoia em
crenças populares, pensa que a filha foi enfeitiçada e decide levá-la a um bruxo para que
este desfaça o feitiço. E as meninas, atreladas por atitudes consideradas infantis e vistas
como incapazes de buscar uma solução, apenas choram perante o conflito criado pela
troca de lugar.
Retomando os argumentos iniciais deste estudo, faz-se necessário pensar sobre o
que uma personagem bruxa investida na representação de uma criança, comparada a
outra personagem, não bruxa, pode nos dizer sobre questões pertinentes às infâncias
contemporâneas. Tendo em vista as diversas transformações culturais, políticas e sociais
das últimas décadas e o modo como essas mudanças têm refletido na produção literária
para crianças, alargou-se a necessidade de apresentar o outro à criança para, com isso,
questionar a polaridade vinculada culturalmente às diferenças.
Nesta obra, Furnari (2010) explora uma gama de recursos linguísticos como o
intertexto, a metalinguagem e metaficção, a inversão, o humor, para explicitar o outro
ao leitor infantil e para desconstruir representações estereotipadas sobre as diferenças.
As demais obras (Alphen, 2012, e Baeten, 2015), mostram as personagens bruxas
crianças em perspectivas adultocêntricas e suas representações se articulam a algumas
concepções modernas e contemporâneas de infância. Para além disso, esses livros
também apresentam outros recursos estéticos como a comicidade, a polissemia, o que
contribui para uma ampliação estética. Ainda, quando considerados os recursos como a
inovação em seus projetos gráficos, a elaboração dos textos visuais, a fuga de discursos
prontos e lições de moral pelo narrador, é possível dizer que esses atributos lhes
expandem as possibilidades de leitura.
No que concerne às representações das personagens como bruxas, é possível
dizer que as obras analisadas as distanciam das características da bruxa tradicional dos
contos de fadas. Em nenhuma das histórias, há a menção da prática de magia pelas
bruxinhas ou de relação delas com a maldade. São crianças, representadas
simbolicamente como bruxas, que transitam entre o universo fantástico da ficção e o
cotidiano de crianças comuns. Ou seja, apesar de as representações reportarem a alguns
ícones da magia/bruxaria, há nas histórias o predomínio de concepções culturais de
infância que se intensificaram a partir da Modernidade e que ainda prevalecem na
contemporaneidade.
REFERÊNCIAS
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Press, Raleigh, N. C., 2014.
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literatura brasileira contemporânea, n. 46, p. 21-47, jul./dez. 2015.
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MOMO, Mariangela e COSTA, Marisa V. Crianças escolares do século XXI: para se
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SILVEIRA, Rosa M. H.; KIRCHOF, Edgar R.; BONIN, Iara T.; O Patinho Feio para
crianças contemporâneas – análise de adaptações em livros impressos e digitais.
ANPED SUL 2016 - Reunião Científica Regional da ANPED, UFPR, Curitiba / PR.
ZILBERMAN, Regina. A literatura infantil na escola. 11.ª Ed. São Paulo: Global,
2003.
OBRAS INFANTIS ANALISADAS
ALPHEN, Jean-Claude R. A bruxinha e o dragão. São Paulo: Companhia das
Letrinhas, 2012.
BAETEN, Lieve. A bruxinha curiosa. Trad. Gilda Aquino. São Paulo: Brinque-Book,
2015.
FURNARI, Eva. Trudi e Kiki. São Paulo: Moderna, 2010.