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UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL – ULBRA PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO Representações racializadas do “outro” afro- brasileiro: o que as tiras cômicas ensinam. Dissertação de Mestrado Sônia Regina Pacheco Goldoni Canoas, 2007.

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UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL – ULBRA PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

Representações racializadas do “outro” afro-brasileiro: o que as tiras cômicas ensinam.

Dissertação de Mestrado

Sônia Regina Pacheco Goldoni

Canoas, 2007.

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Sônia Regina Pacheco Goldoni

Representações racializadas do “outro” afro-brasileiro: o que as tiras cômicas ensinam.

Dissertação apresentada à banca avaliadora como parte das exigências do curso de Mestrado em Educação do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Luterana do Brasil. Orientadora: Profª. Dra. Maria Angélica Zubaran

Canoas

2007

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Eu tenho um sonho de que um dia meus filhos viverão em uma

nação em que eles não serão julgados pela cor de sua pele, mas

pelo conteúdo do seu caráter!

Martin Luther King

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AGRADECIMENTOS

A Deus, por tudo.

Aos amigos, que acompanharam e torceram.

Aos colegas, pelas boas conversas, pelos estímulos e dicas preciosas.

Aos professores, sempre amigos, prestativos e pacientes.

À colega e amiga Sandra, pelo carinho e companheirismo nesta trajetória.

À minha orientadora Maria Angélica Zubaran, pela amizade, competência e rigor

carinhoso com que conduziu a produção deste trabalho.

À minha família, por estar junto nesta caminhada, pelo carinho e compreensão. Ao

David, pela força do amor incondicional, à Adriane e à Angélica, pelo suporte

técnico, pelas traduções e por entenderem as ausências.

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RESUMO

Esta dissertação realiza uma leitura das representações estereotipadas sobre o negro em tiras cômicas que foram publicadas no Jornal NH, entre os anos de 1979 e 1980, em Novo Hamburgo/RS. Especificamente, visa explorar o caráter produtivo das tiras do personagem Giba na constituição de identidades étnico-raciais para os afro-descendentes. Utiliza o aporte teórico dos Estudos Culturais, que permite compreender a cultura como um campo onde os diferentes grupos sociais, situados em posições desiguais de poder, produzem e tentam impor seus significados à sociedade mais ampla (SILVA, 1999). Utiliza a noção de pedagogias culturais conforme proposta por Henry Giroux e Peter McLaren (2004:144), que consideram existir pedagogia “em qualquer lugar em que o conhecimento é produzido, em qualquer lugar em que existe a possibilidade de traduzir a experiência e construir verdades”. Toma as representações como estratégias discursivas utilizadas para narrar o “outro” negro atribuindo-lhe qualidades inferiorizadas e fixadas como naturais. Como artefatos da cultura que são, as tiras disseminaram conhecimentos e supostas verdades, fazendo circular significados sobre os sujeitos negros, posicionando-os, em relação ao branco de origem européia, no patamar inferior de uma suposta escala hierárquica de valor. O trabalho justifica-se ao provocar a problematização dessas representações estereotipadas, possibilitando uma reflexão e uma melhor compreensão das práticas preconceituosas imbricadas na sociedade, as quais acabam marcando e aprisionando os “outros” racializados de modo a deixá-los permanentemente à margem. Salienta-se que as representações estereotipadas dos personagens negros nas tiras cômicas do Giba criaram, recriaram e inventaram significados sobre o que é ser negro, atribuindo a esses personagens um amplo repertório de qualidades negativas e depreciativas. Palavras-chave: representação – pedagogias culturais – significados raciais.

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ABSTRACT

This work builds an analysis of stereotyped representation of the afro-descendent in comics that were published in Jornal NH, in 1979 and 1980, in the city of Novo Hamburgo/RS. Specifically, this study intends to explore the productive nature of the comics of the character Giba in the constitution of ethnical-racial identities for afro-descendents. The work is based upon the theoretical approach of Cultural Studies, which allows the comprehension of culture as a field where different social groups, located in unequal positions of power, produce and try to impose their order of meanings on broader society (SILVA, 1999). Therefore, this study uses the notion of cultural pedagogies as proposed by authors Henry Giroux and Peter McLaren (2004:144), who consider the existence of pedagogy anywhere knowledge is produced, anywhere there is the possibility of translating experience and building truths. Also, the work takes representations as discursive strategies used to narrate the “others” afro-descendents assigning them with qualities of inferiority that are fixed as natural. Being cultural artifacts, the comics have disseminated knowledges and supposed truths, circulating meanings about the afro-descendent subjects, positioning them, in relation to the white and of European origin, in the lower level of a supposed hierarchical value scale. This study is justified once it provokes the discussion of these stereotyped representations, allowing reflection and comprehension about prejudice practices within society. These representations mark and imprison the racialized “others”, in a way to permanently keep them marginal. The stereotyped representations of the afro-descendent characters in Giba’s comics created, recreated and invented meanings about what it is to be afro-descendent, attributing to these characters a broad repertory of negative and depreciating qualities. Key-words: representation – cultural pedagogies – racial meanings.

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Lista de Ilustrações

Figura 1: Jornal NH, 12/05/1980.............................................................. p. 69

Figura 2: Jornal NH, 29/04/1980.............................................................. p. 70

Figura 3: Jornal NH, 16/06/1980.............................................................. p. 70

Figura 4: Jornal NH, 31/03/1980.............................................................. p. 71

Figura 5: Jornal NH, 05/11/1979.............................................................. p. 71

Figura 6: Jornal NH, 16/11/1979.............................................................. p. 72

Figura 7: Jornal NH, 04/02/1980.............................................................. p. 73

Figura 8: Jornal NH, 29/02/1980.............................................................. p. 73

Figura 9: Jornal NH, 19/12/1979.............................................................. p. 74

Figura 10: Jornal NH, 21/09/1979............................................................. p. 74

Figura 11: Jornal NH, 08/10/1979............................................................. p. 75

Figura 12: Jornal NH, 29/05/1980............................................................. p. 75

Figura 13: Jornal NH, 29/08/1979............................................................. p. 76

Figura 14: Jornal NH, 11/07/1979............................................................. p. 76

Figura 15: Jornal NH, 09/08/1979............................................................. p. 77

Figura 16: Jornal NH, 25/03/1980............................................................. p. 81

Figura 17: Jornal NH, 16/05/1980............................................................. p. 83

Figura 18: Jornal NH, 18/09/1979............................................................. p. 83

Figura 19: Jornal NH, 23/08/1979............................................................. p. 84

Figura 20: Jornal NH, 15/01/1980............................................................. p. 85

Figura 21: Jornal NH, 24/01/1980............................................................. p. 85

Figura 22: Jornal NH, 27/12/1979............................................................. p. 86

Figura 23: Jornal NH, 14/05/1980............................................................. p. 87

Figura 24: Jornal NH, 17/09/1979............................................................. p. 87

Figura 25: Jornal NH, 05/09/1979............................................................. p. 88

Figura 26: Jornal NH, 28/12/1979............................................................. p. 89

Figura 27: Jornal NH, 05/04/1980............................................................. p.89

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Figura 28: Jornal NH, 06/12/1979............................................................. p.90

Figura 29: Jornal NH, 06/05/1980............................................................. p.90

Figura 30: Jornal NH, 26/02/1980............................................................. p.90

Figura 31: Jornal NH, 14/04/1980............................................................. p.91

Figura 32: Jornal NH, 13/08/1979............................................................. p.92

Figura 33: Jornal NH, 27/09/1979............................................................. p.92

Figura 34: Jornal NH, 10/10/1979............................................................. p.93

Figura 35: Jornal NH, 19/11/1979............................................................. p.93

Figura 36: Jornal NH, 21/05/1980............................................................. p.93

Figura 37: Jornal NH, 29/01/1980............................................................. p.94

Figura 38: Jornal NH, 08/04/1980............................................................. p.94

Figura 39: Jornal NH, 21/12/1979............................................................. p.94

Figura 40: Jornal NH, 17/01/1980............................................................. p.95

Figura 41: Jornal NH, 09/04/1980............................................................. p.96

Figura 42: Jornal NH, 21/11/1979............................................................. p.97

Figura 43: Jornal NH, 27/02/1980............................................................. p.97

Figura 44: Jornal NH, 04/10/1979............................................................. p.98

Figura 45: Jornal NH, 31/08/1979............................................................. p.98

Figura 46: Jornal NH, 10/04/1980............................................................. p.99

Figura 47: Jornal NH, 12/03/1980............................................................. p.99

Figura 48: Jornal NH, 21/03/1980............................................................. p.100

Figura 49: Jornal NH, 11/10/1979............................................................. p.100

Figura 50: Jornal NH, 11/01/1980............................................................. p.101

Figura 51: Jornal NH, 31/01/1980............................................................. p.101

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SUMÁRIO Resumo.............................................................................................. 05 Abstract.............................................................................................. Lista de ilustrações.............................................................................

06 07

INTRODUÇÃO................................................................................... 10 O pertencimento ao tema................................................................... 11 O contexto histórico e social..............................................................

15

I – ÓTICAS E PERSPECTIVAS Os Estudos Culturais e as Pedagogias Culturais...............................

29

II – APONTAMENTOS SOBRE A QUESTÃO RACIAL NO BRASIL Discutindo conceitos de raça e etnia.................................................. Reflexões sobre o racismo no Brasil.................................................. O desejo de branquear o povo brasileiro...........................................

40 43 44

III – É BRINCANDO QUE SE DIZEM VERDADES?

Tira Cômica e HQ: Artefatos culturais que produzem significado..................................... O Humor e o Riso nas Tiras e Quadrinhos.........................................

47 56

IV – A INVENÇÃO DO “OUTRO” NEGRO: O QUE AS TIRAS CÔMICAS ENSINAM?

Galeria dos personagens negros nas tiras cômicas........................... Estratégias discursivas de representação do “outro” negro nas tiras do Giba no Jornal NH: possíveis leituras........................................... Representação, diferença e poder...................................................... Tornando o “outro” racializado............................................................

58 60 65 66

CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................

103

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...................................................

106

ANEXOS............................................................................................ 113

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INTRODUÇÃO

Esta pesquisa investiga as representações racializadas do outro afro-

descendente1 na imprensa local da cidade de Novo Hamburgo, entre os anos de

1979 e 1980. A análise preocupa-se particularmente com as representações do

“outro” racializado nas tiras de humor2 do personagem Giba3, publicadas no Jornal

NH, principal periódico da cidade de Novo Hamburgo no Rio Grande do Sul. A

intenção é explorar o caráter produtivo das tiras do Giba na constituição de

identidades étnico-raciais para os afro-descendentes. Essas tiras serão

interpretadas como artefatos culturais de acordo com o entendimento de Stuart Hall

que considera como artefato cultural tudo que é produzido socialmente, criando

significados que instauram políticas de identidade (HALL, 1997).

A preocupação central deste estudo é a produtividade pedagógica das tiras

do Giba, reproduzidas no Jornal NH, que, ao fazerem circular na cultura

representações racializadas do outro, contribuiram na construção de identidades e

subjetividades. A partir da perspectiva teórica dos Estudos Culturais, utilizo a noção

de pedagogias culturais conforme proposta por Henry Giroux e Peter McLaren

(2004, p. 144) que consideram existir pedagogia “em qualquer lugar em que o

conhecimento é produzido, em qualquer lugar em que existe a possibilidade de

traduzir a experiência e construir verdades”. Henry Giroux destaca que:

Ao analisarmos toda a gama dos lugares diversificados e densamente estratificados de aprendizagem, tais como a mídia, a cultura popular, o cinema, a publicidade, as comunicações de massa e as organizações religiosas, entre outras, os Estudos Culturais ampliam nossa noção do pedagógico e de seu papel fora da escola como o local tradicional de aprendizagem. (GIROUX, 1995, p. 90)

1 Afro-descendente, afro-brasileiro e negro são termos de sentido equivalente neste estudo. 2 Tira de humor é sinônimo de tira cômica, uma variação do gênero História em Quadrinhos, portanto, estes termos serão utilizados com o mesmo sentido para referir o corpus contemplado neste estudo. Sobre o assunto, tratarei em capítulo específico neste trabalho. 3 Criação dos cartunistas Henrique Farias e Paulo Paiva.

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Nesse sentido, entendo que o processo de ensino e aprendizagem pode

ocorrer em várias instâncias do âmbito social e não apenas na escola. Portanto,

alinho-me a Dagmar Meyer quando afirma que “há uma multiplicidade de outros

espaços e meios, além da escola, que estão enredados com a produção daquilo

que nós somos e daquilo que nós sabemos, ou daquilo que nós pensamos ser e

pensamos saber” (MEYER, 2002, p.55).

Parto do princípio que as tiras veiculadas no Jornal NH ensinaram, de muitas

maneiras, sobre as identidades étnico-raciais4 dos afro-descendentes e que, de

forma relacional, contribuiram também para a constituição das identidades dos

teuto-hamburguenses5. Ao disseminarem um conhecimento, uma suposta verdade,

os textos e imagens das tiras do Giba produziram e fizeram circular significados

sobre os sujeitos, marcando e naturalizando modos de ser e estar no mundo.

O Pertencimento ao Tema

Pedagoga por formação, via minha prática de professora como a mais nobre

das tarefas. Idealizava um mundo melhor e pensava que seria pela educação que

se efetivaria meu desejo. Acompanhava-me a certeza de que só o conhecimento

possibilitaria aos meus alunos o pronto e correto desvelamento do mundo.

Enquanto educadora, situada na lógica moderna, minha pretensão era “modelar” os

sujeitos de modo que atendessem aos requisitos necessários à emancipação, à

cidadania, à liberdade pelo bom uso da razão e pelo trabalho qualificado. Eu

entendia que, pela educação escolarizada, as crianças e os jovens poderiam,

realmente, vir a “ser alguém na vida”. Acreditava que, ao proporcionar o acesso à

cultura, incutindo-lhes as noções comumente aceitas como sendo o que de melhor

a humanidade produziu, minha missão junto aos educandos estaria completa.

Entretanto, percebi que nas práticas6 cotidianas da escola onde atuava

produzia-se uma gradativa exclusão dos sujeitos diferentes do grupo hegemônico.

4 O termo étnico será usado como referência às questões culturais, enquanto o termo raça possui referência aos traços fenotípicos. 5 Teuto-hamburguense é o termo usado para referir o grupo hegemônico da cidade de Novo Hamburgo. Sobre a cidade e seus habitantes, tratarei posteriormente. 6Muitos professores justificavam o fracasso escolar de alguns alunos referenciando a raça a que pertenciam. Era comum ouvir piadas (e seus efeitos sonoros) desqualificando alunos negros. Também raramente se observava a presença de alunos negros nas turmas consideradas ideais (as turmas eram formadas obedecendo a critérios como: alunos em idade própria para a série; desempenho escolar na média ou acima).

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O currículo seletivo, excludente e, sob minha ótica, perverso, vivenciado por alguns

jovens, que por um motivo ou outro diferiam dos alunos “idealizados” pelos

educadores, desencadeou um movimento de deslocamento em minhas crenças

sobre a educação institucionalizada. Passei a ter a sensação de que meu fazer

pedagógico, além de ingênuo, era também ineficaz para atender minha expectativa

idealista de que a educação escolarizada poderia ser o mecanismo que efetivaria a

revolução social. Pretensamente, via meu trabalho voltado para a formação,

conscientização, emancipação de sujeitos capazes de governarem-se e, assim,

tornarem-se “alguém na vida”, donos dos próprios destinos, pessoas felizes que,

pela educação, conseguiriam seu lugar ao sol, ou melhor, uma posição digna na

esfera social. Porém, ao dar-me conta de que as notas vermelhas da “Ata de

Resultados Finais” de uma determinada turma da escola sentenciavam a

reprovação de todos os alunos negros desta turma7 no final do ano letivo, comecei

a olhar de um modo diferente para as práticas escolares nas quais eu também

estava implicada. Constatei que os excluídos eram particularmente os afro-

descendentes, cuja invisibilidade no currículo escolar tem sido objeto de vários

estudos, dentre os quais podemos citar o de Ana Célia da Silva (2005) que, ao

estudar a discriminação no livro didático, procura refletir até que ponto as culturas

oriundas de grupos subordinados na sociedade são invisibilizadas e minimizadas

nos currículos escolares. Igualmente, o estudo de Antônio Olímpio de Sant’Ana

(2005) que detecta a manifestação de preconceito anti-negro nas escolas nas

brincadeiras, nos apelidos alusivos à cor e na postura do professor que, muitas

vezes, mantém preconceitos e estereótipos seja por omissão, expectativa de menor

rendimento do aluno negro ou ainda por não dar importância aos conflitos raciais

que surgem no âmbito escolar. Heloisa Pires Lima (2005) também aponta que, na

literatura infanto-juvenil, a visibilidade dos personagens negros geralmente está

associada à escravidão, à dor e à inferioridade em relação ao personagem branco.

Definitivamente, ao mudar a perspectiva do olhar e perceber que relações e

práticas preconceituosas permeavam o cotidiano da escola em que eu trabalhava,

aumentou meu interesse em olhar mais de perto para as representações

construídas sobre o “outro” racializado. Parecia que essas representações

racializadas sedimentavam valores e significados que estavam naturalizando

exclusões, distinções, segregações e que também estavam dando sentido de 7 Vide documentos em anexo 1.

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pertencimento identitário a esses alunos afro-descendentes que, supostamente,

carregavam a marca da inferioridade.

A escola estava atrelada a uma concepção de cultura vista como

conhecimento legítimo, universal e amparado nas categorias do homem branco

letrado e de formação judaico-cristã. Todavia, conforme descreve Marisa Vorraber

Costa, o conceito de cultura como “patrimônio da humanidade [...] não tem dado

conta da diversidade de posições no mundo” (COSTA, 1999, p.39). Desse modo, o

patrimônio supostamente pertencente à humanidade restringia-se/ restringe-se

àqueles grupos que podiam/ podem criar e perpetuar as “verdades”. Foi essa

narrativa étnico-racial hegemônica, amparada na suposta cultura legítima, que me

instigou a prestar mais atenção nas práticas que representavam o afro-descendente

não apenas na escola, mas também em outras instâncias8 da cidade de Novo

Hamburgo.

Nesse sentido, busquei compreender os mecanismos de exclusão desse

"outro" racializado a partir de uma outra perspectiva, especialmente das leituras do

campo dos Estudos Culturais. A partir dessa abordagem, passei a entender que

nossas relações sociais estão permeadas por relações de poder e que é na cultura,

enquanto um campo de luta e disputa pelo significado, que se definem e se

legitimam posições de sujeito (HALL, 1997). Portanto, o conceito de cultura passou

a ter outros significados, não apenas o que de melhor se havia pensado e

produzido, mas também, e principalmente, cultura seria “o terreno real, sólido, das

práticas, representações, línguas e costumes de qualquer sociedade histórica

específica” (HALL apud COSTA1999, p. 40).

Desse modo, ingressei no Curso de Mestrado em Educação na Universidade

Luterana do Brasil, com a intenção de desenvolver uma pesquisa no interior da

escola, onde poderia avaliar tanto as representações étnico-raciais no currículo

escolar, como também as práticas discriminatórias que ali se davam. Porém, numa

primeira investida junto ao corpo docente, sondando a possibilidade de obter

entrevistas sobre o assunto “preconceito racial”, vi-me frustrada com as negativas

dos professores. Na comunidade escolar, ninguém queria aprofundar o tema,

ninguém queria comprometer-se. O constrangimento instalava-se no momento em

que meus interlocutores ficavam sabendo que a temática a ser tratada era o

8Passei a prestar maior atenção ao cotidiano social: supermercados, clubes, restaurantes, propagandas, Igreja; Shopping, jornais, etc.

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preconceito racial. Falar que existe preconceito racial parecia fácil, mas discutir

sobre o assunto e muitas vezes ter que assumir o papel de preconceituoso era

outra história. As posturas esquivas em relação às perguntas sobre racismo e

discriminação iam ao encontro da conhecida noção de Florestan Fernandes do

preconceito retroativo, ou seja, do preconceito de ter preconceito (FERNANDES

apud SCHWARCZ, 1996). Diante da recusa em colaborar com uma pesquisa que

tratasse do racismo, precisei ampliar meu olhar, e foi então que percebi que as

representações e significados sobre os afro-descendentes que circulavam na escola

também estavam presentes em muitos outros textos culturais que estavam

presentes na cidade de Novo Hamburgo. Entre essas produções culturais que

carregam e produzem significados, chamou-me a atenção o discurso

preconceituoso das piadas e provérbios. O humor e o riso passaram a ser vistos por

mim como uma das estratégias de significação e de marcação de posições de

sujeitos. Porém, novamente, ao solicitar que piadas racistas fossem gravadas ou

escritas pareceu-me que um muro erguia-se e a memória se apagava. Na intenção

de obter uma forma palpável que pudesse amparar a discussão que eu almejava,

passei a investigar os jornais da cidade, dirigi-me ao Arquivo Municipal na busca de

documentos que pudessem dar-me uma idéia sobre a circulação ou não de

representações étnico-raciais no cotidiano dos teuto-hamburguenses. Foi a partir

dessa pesquisa, no principal periódico da cidade, o Jornal NH, que me deparei com

as tiras cômicas assinadas por Farias e Paiva, veiculadas entre os anos de 1979 e

1980. As representações dos afro-descendentes apareciam estereotipadas,

reafirmando óticas de exclusão. Diante disso, foi possível perceber que os

estereótipos raciais contidos nas tiras permaneciam (permanecem) atuais nas

piadas e nos provérbios racistas que são propagados aparentemente de forma

inocente na esfera social, reforçando a imagem estereotipada e inferiorizada dos

negros.

Entendendo que a identidade é marcada pela diferença, ocorreu-me que as

representações dos afro-descendentes que as tiras veicularam nos anos de 1979 e

de 1980, assim como as piadas e provérbios9 racistas da atualidade, não só

traduziam e traduzem uma visão estereotipada que posiciona os afro-descendentes

como racial e culturalmente inferiores, como também, por contraste, contribuíam

para a construção e afirmação da identidade hegemônica dos teuto- 9 Cito exemplos de piadas e provérbios em anexo 2.

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hamburguenses, reafirmando sua suposta superioridade étnico-racial. Foi assim

que se deu a escolha do material de análise, e, com o auxílio valioso de minha

orientadora, Maria Angélica Zubaran, foi possível empreender esta pesquisa. Este

trabalho busca atender não apenas aos requisitos para a minha obtenção do título

de mestre, mas também propiciar uma melhor compreensão das práticas

preconceituosas imbricadas na escola, que parecem constituir-se em um

microcosmo da sociedade hamburguense. Neste sentido, acredito que a

importância deste estudo está em provocar a discussão e problematização do

quanto as situações cômicas ou de humor podem, de maneira dissimulada e

supostamente inocente, constituir identidades e marcar posições excludentes para o

“outro”, neste caso particular, para os afro-descendentes. Como afirma Sandra

Pesavento:

[...] a caricatura acena com a possibilidade de uma outra recuperação do passado. Não mais sob o prisma monocórdio de um discurso oficial, mas fazendo chegar até o presente uma visão alternativa e dissonante, nos permitindo enxergar a nossa própria época, visualizando na sátira de ontem os dilemas da sociedade contemporânea. (PESAVENTO, 1994, p.15)

Acredito que a abordagem do tema dos estereótipos étnico-raciais presente

nas tiras de Farias e Paiva possa provocar a reflexão sobre os modos como

marcamos e aprisionamos os “outros” racializados de modo a deixá-los

permanentemente à margem. Nesse sentido, passo a estabelecer algumas

coordenadas que auxiliam no encadeamento das discussões que o trabalho

promove. Uma dessas coordenadas diz respeito ao contexto em que aparecem as

tiras, e é dele que trato a seguir.

O Contexto Histórico e Social

Concordo com Richard Johnson (2000, p.74), quando diz que “o contexto é

crucial na produção do significado”, por isso, ao discutir as representações étnico-

raciais presentes nas tiras que foram publicadas no Jornal NH em Novo Hamburgo,

é pertinente apontar alguns elementos que compõem o cenário onde estas

representações circularam. Desse modo, torna-se relevante destacar que,

oficialmente, foram os imigrantes alemães os fundadores da cidade e que são os

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seus descendentes que detêm a hegemonia local. São eles também que constituem

a elite econômica, social e cultural de Novo Hamburgo. De acordo com Maria

Angélica Zubaran:

No caso do Rio Grande do Sul, é importante lembrar que o estabelecimento de imigrantes teutos, a partir de 1824, não visou a substituição do trabalho escravo, mas sim a colonização das terras meridionais através do estabelecimento de núcleos coloniais onde os imigrantes se tornariam pequenos proprietários dedicados a uma agricultura policultora. Foi a possibilidade de tornarem-se proprietários de terras que motivou um grande número de agricultores e artífices alemães a imigrarem para o Rio Grande do Sul na primeira metade do século XIX. (ZUBARAN, 1994, p.65).

Torna-se importante destacar, ainda, dois fatos relevantes ocorridos na

mesma época em que as tiras do personagem Giba foram veiculadas no Jornal NH.

O primeiro deles, diz respeito ao significativo desenvolvimento econômico da cidade

na década de 1970, particularmente do setor coureiro-calçadista, o que provocou

um aumento populacional e resultou também em uma maior diversidade étnico-

racial na cidade. Conforme Luís Henrique Sommer, Novo Hamburgo teve um

desenvolvimento econômico expressivo na produção coureiro-calçadista a partir da

década de 1960, quando a produção voltou-se para o mercado externo (SOMMER,

2003, p.75). Decorre daí o afluxo de um considerável contingente de trabalhadores

oriundos do campo em busca de melhores condições de vida. A partir dos dados do

IBGE10, constata-se um grande crescimento populacional da cidade de Novo

Hamburgo a partir da década de 1960. Conforme o quadro abaixo, é possível

visualizar que o número de habitantes de Novo Hamburgo mais que duplicou entre

as décadas de 1960 e 1980.

Pequena Amostra do Crescimento Populacional em Novo Hamburgo

Década 1950 1960 1970 1980

População em NH 29.447 53.776 85.364 136.494

Dados obtido no IBGE/RS – resultados das respectivas décadas apontadas.

No início do período de desenvolvimento econômico industrial de Novo

Hamburgo, a classe empresarial hamburguense tentou controlar a vinda desses

10Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.

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trabalhadores. Empresários locais empreendiam viagens para a divulgação de

ofertas de empregos e recrutamento de mão-de-obra para regiões onde

reconhecidamente estabeleceram-se descendentes de imigrantes alemães, como,

por exemplo, Santa Rosa, Ijuí e Erechim (BAZAN, 1997). Era comum a oferta de

um salário mínimo extra a todo empregado que pudesse convencer um parente de

outra localidade a aderir a uma das vagas oferecidas pela fábrica. Nessa tentativa

de controlar o tipo étnico que ocuparia os postos de trabalho oferecidos, é possível

vislumbrar uma necessidade de manter a homogeneidade étnico-racial. Ao mesmo

tempo em que se necessitava uma maior quantidade de mão-de-obra, tentava-se

manter a característica étnico-racial dominante entre aqueles novos trabalhadores

que migrariam para Novo Hamburgo. Desta maneira, tentava-se garantir a suposta

homogeneidade identitária da população hamburguense. Stuart Hall (1999),

discutindo sobre os fluxos culturais globais, permite-nos melhor entender o

processo ocorrido em Novo Hamburgo por ocasião do boom econômico e das

mudanças sociais que estava acarretando.Diz o autor:

A medida em que as culturas nacionais tornam-se mais expostas a influências externas, é difícil conservar as identidades culturais intactas ou impedir que elas se tornem enfraquecidas através do bombardeamento e da infiltração cultural. (HALL, 1999, p.74).

Nesse sentido, acredito que o desenvolvimento econômico da cidade foi

marcado também por novos desafios ligados às identidades dos “insiders” e dos

forasteiros que passaram a fazer parte desta comunidade. Desse modo, argumento

que a afirmação de fronteiras de pertencimento e de exclusão foram características

marcantes do processo de industrialização em Novo Hamburgo. Autores

hamburguenses apontam que, se por um lado esse processo resultou no

desenvolvimento econômico da cidade, por outro lado, conforme relata Liene

Schütz, tal situação

acarretou, para o município, um contingente humano flutuante, grande parte de mestiços, que vieram em busca de trabalho, ingressando no grande número de indústrias do município como operários. Esta gama da população, não sendo muitas vezes fixa, alimentando outros princípios e tradições e, muitas vezes, desconhecendo as suas próprias origens, pelo baixo padrão cultural, conviveu e convive na comunidade, influenciando-a profundamente. ( SCHÜTZ, 1992, p.98).

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Outro acontecimento que parece ter influenciado na apropriação cultural das

tiras de Farias e Paiva no Jornal NH foi a revitalização do Movimento Negro em

nível nacional e estadual no final dos anos setenta. Conforme João Batista de Jesus

Félix (1996), a Frente Negra Brasileira (FNB), surgida em 1931 e caracterizada

como a primeira grande expressão contra as condições de vida a que foi relegada a

imensa maioria dos negros brasileiros, foi fechada no Estado Novo de Getúlio

Vargas junto com todas as associações e partidos políticos existentes no Brasil

naquela época. Segundo George Reid Andrews, esse golpe sobre a FNB começou

a ser superado quando:

Em meados de 1970, um número crescente de aspirantes negros ao status de classe média tornou-se cada vez mais consciente das barreiras – e por elas exasperado – que o impediam de receber sua parcela justa dos benefícios do rápido crescimento econômico. Foi nesse ponto que teve início uma nova onda de mobilização política negra, quando, em um movimento que fez parte do processo mais amplo da abertura, estes negros em ascensão começaram a debater e discutir entre si os dilemas colocados por sua posição na sociedade, que não era uma democracia política nem – como iriam concluir – uma democracia racial. (ANDREWS,1998, p.299)

Esse inconformismo dos grupos negros em meados de 1970 provocou uma

mobilização do movimento negro para valorizar a cultura negra e combater os

preconceitos e as exclusões no mercado de trabalho. Promoviam-se debates e

discussões e reivindicavam-se condições de igualdade na esfera ocupacional de

maior prestigio social. A discriminação que os negros sofriam no âmbito profissional

deflagrou manifestações de repúdio à situação em que viviam:

Enquanto os trabalhadores industriais, da construção, da prestação de serviços e da agricultura viram-se mais ou menos no mesmo barco de seus colegas brancos, os profissionais liberais e funcionários de escritório negros experimentaram um abismo substancial separando-os de seus contrapartes brancos. (ANDREWS, 1998, p.298)

A mobilização dos grupos negros foi ganhando visibilidade através de suas

ações como a formação de grupos de teatro compostos por negros em Campinas e

em São Paulo, e a publicação de produções literárias de autores negros.

Promoviam-se conferências e seminários públicos, organizavam-se exposições e

mostras cinematográficas que visavam a difundir a cultura e a arte negra

(ANDREWS, 1998).

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Eventos internacionais11, nas décadas de 1960 e 1970, também contribuíram

para a mobilização dos negros no Brasil. No final da década de 1970 e início da

década de 1980, o inconformismo negro aliou-se à luta contra a ditadura militar no

Brasil (NABARRO, 2000).

É importante ressaltar que “o avanço das lutas pelos direitos civis dos negros

norte-americanos nos anos 60 foram decisivos para chamar a atenção dos

brasileiros para a importância da mobilização em linhas raciais” (GUIMARÃES,

2002, p.98). Tornava-se visível a mobilização do grupo negro para reverter o quadro

degradante que resultou de séculos de escravização. Em 1978, surge no Brasil o

Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (MNUCDR), cuja

principal finalidade era lutar contra o racismo. Em 1979, no seu primeiro congresso

nacional, o movimento decide que sua luta deveria ser mais abrangente e passa a

chamar-se Movimento Negro Unificado (MNU). A característica do MNU passaria a

ser a defesa de uma sociedade mais justa e igualitária, e uma de suas bandeiras

era a luta por uma verdadeira democracia racial (FÉLIX, 1996). Com a criação do

MNU, os negros pretendiam conscientizar e organizar seus pares para lutar contra

a discriminação racial instalada na sociedade brasileira.

No Rio Grande do Sul, a mobilização de grupos negros seguia a lógica das

ações do movimento nacional. Conforme Edilson Nabarro, devido ao fato de o Rio

Grande do Sul ter recebido um número inferior de escravos em comparação com o

centro e o nordeste do País, bem como a vinda significativa de imigrantes europeus

para a região, ocorreu uma maior visibilidade de diferenças étnico-raciais e dos

limites que estabeleciam o lugar ocupado pelos brancos, como também definia o

“lugar do negro” (NABARRO, 2000). O modo de produção baseado na economia

agrária não apenas dificultava aos negros o acesso à terra, como consolidava a

hegemonia do grupo branco, uma situação que permitiu o desenvolvimento da

conscientização e a produção de mecanismos de resistência do grupo negro.

Criaram-se laços de solidariedade e “surgiram as sociedades recreativas

exclusivamente organizadas e freqüentadas por negros” (NABARRO, 2000, p. 30),

às quais são atribuídos os méritos pela produção e fortalecimento da identidade

negra. Essas associações recreativas negras tornaram-se espaços de solidariedade

e campo da ação política do Movimento Negro.

11Protestos de negros norte-americanos e independências das ex-colônias africanas Angola, Cabo-Verde e Moçambique.

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Segundo Edílson Nabarro (2000), o início da fase contemporânea do

Movimento Negro no Rio Grande do Sul relaciona-se ao surgimento do Grupo

Palmares de Porto Alegre, em 1971. É importante citar também que foi do poeta

riograndense Oliveira Silveira a iniciativa de celebração do 20 de novembro como

dia da consciência negra. Substituindo o 13 de maio, o 20 de novembro foi

legitimado pela adesão de outros grupos negros nacionais que preferiam celebrar o

aniversário de morte de Zumbi dos Palmares ao invés de homenagear a princesa

Isabel.

Conforme Roberto dos Santos (2007), no contexto do renascimento do

Movimento Negro em 1978, ressurge a imprensa negra em Porto Alegre. É possível

estabelecer uma relação entre os objetivos do Movimento Negro em nível nacional

com as demandas da imprensa negra no Rio Grande do Sul. Ambos preocupavam-

se com questões da cultura negra e com os problemas da discriminação racial.

Roberto dos Santos (2007) refere ainda que, no contexto da redemocratização do

Brasil, houve uma mobilização política dos grupos negros que passaram a

organizar-se em partidos políticos12, o que sugere uma organização da comunidade

negra no sentido de conseguir e manter um espaço de representatividade efetiva no

cenário político e no contexto social.

Em Novo Hamburgo, desde longa data, registra-se a existência de

associações negras atuando como centros de integração da comunidade negra

hamburguense, e permitindo “a sociabilidade e a convivência de sujeitos que

enfrentam os mesmos problemas e são iguais, ou seja, negros” (MAGALHÃES,

2007). Dentre as associações mais expressivas, destaca-se a Sociedade Cruzeiro

do Sul. Nascida nos anos vinte do século passado, a “Cruzeiro” surgiu pela vontade

de um grupo de sujeitos negros de organizar um time de futebol, uma vez que eles

dificilmente podiam participar de atividades esportivas nos clubes de brancos

(MAGALHÃES, 2005). Conforme Magna Lima Magalhães (2005), o “Sport Club

Cruzeiro do Sul”, junto ao bloco carnavalesco “Os Leões”, formou a Associação

Cruzeiro do Sul, que, ainda hoje, continua atuando, apesar das inúmeras

dificuldades, para promover ações afirmativas13 voltadas ao segmento da

comunidade negra hamburguense.

12Conforme Santos (2007), no PDT foi criado um núcleo denominado Movimento Trabalhista da Raça Negra (MOTIRAM). 13Cabe destacar a parceria firmada com o Centro Universitário FEEVALE, especificamente o grupo NIGERIA, visando à valorização da comunidade negra de Novo Hamburgo.

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Diante do que foi relatado, é pertinente destacar o que aponta Gislene dos

Santos (2002, p.130) quando afirma que “a visão negativa sobre o negro emerge

com toda a força quando se faz qualquer tipo de ameaça à supremacia branca”.

Portanto, o renascimento do movimento negro no final da década de 1970 na

comunidade hamburguense pode ser interpretado como um dos fatores de ameaça

à homogeneidade étnico-racial dos descendentes alemães no Rio Grande do Sul.

Nesse sentido, aponto algumas representações produzidas pelos teuto-

descendentes para narrar a si próprios, que se referem a significados

compartilhados na cultura e que parecem reafirmar construções identitárias na

comunidade. Minha intenção é apurar os significados que foram dando forma a um

modo específico de ser alemão e de identificar seus descendentes, em detrimento

dos “outros”. Destaco, ainda, algumas estratégias discursivas que contribuíram para

a construção dos significados de superioridade étnica dos imigrantes alemães e

seus descendentes.

Se as identidades são produzidas no confronto com a diferença,

configurando “uma relação de estreita dependência” (SILVA, 2000, p. 74), torna-se

importante, para as análises e discussões que seguem, conhecer como os teuto-

hamburguenses auto-representavam-se e eram representados. Stuart Hall (1997a)

auxilia na compreensão do papel das representações na construção das

identidades quando diz que:

Nós damos significados às coisas pela maneira que as representamos – as palavras que usamos sobre elas, as histórias que contamos sobre elas, as imagens delas que nós produzimos, as emoções que associamos a elas, as maneiras que nós as classificamos e as contextualizamos, os valores que colocamos nelas. (HALL, 1997a, p.3)

Portanto, acredito que, nos encontros étnico-raciais entre os descendentes

de alemães e os afro-descendentes em Novo Hamburgo, foram produzidos

discursos para manter a “mesmidade”, valorizando-se significados que garantissem

o pertencimento identitário aos de “raça branca”. Nessa direção, destacarei alguns

estudos que mostram como foram-se constituindo os modos dos alemães de

perceber a si mesmos como uma “raça superior”, destinada a promover o

desenvolvimento do Brasil e a colocá-lo no patamar da civilização.

Em seu estudo sobre as comemorações da imigração alemã no Rio Grande

do Sul, Roswithia Weber (2004) ressalta o caráter construcionista da identidade

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alemã, fortalecida por supostos vínculos com um passado comum que deveria ser

constantemente recriado na intenção de manter a germanidade do grupo. As

comemorações do “25 de julho” – festas jubilares do início da imigração alemã –

caracterizaram-se pela construção de um imaginário que (re)atualizava

representações simbólicas importantes para a demarcação étnica da identidade

alemã, entre as quais podemos citar a suposta origem comum, que “integrou o

ideário de superioridade racial acionado também para estereotipar o imigrante

alemão como trabalhador ideal” (WEBER, 2004, p. 48).

Novo Hamburgo originalmente fazia parte da cidade de São Leopoldo,

representada como o “berço da colonização alemã no Brasil”, da qual se emancipou

em 1927. A cidade hoje pertence à região metropolitana de Porto Alegre, possui

uma área de 224 Km² e sua população é de 255.315 habitantes. Originariamente

era uma vila de imigrantes alemães que se estabeleceram onde hoje se localiza o

bairro de Hamburgo Velho, entre os anos de 1824 e 1830. Conforme afirma Luís

Henrique Sommer (2003, p.74), “a imigração alemã fazia parte de um projeto mais

amplo do primeiro governo imperial que pretendia colonizar as terras do sul do

Brasil”. O projeto de colonização do governo brasileiro, além de ocupar as terras

brasileiras, também atenderia a um provável e “bem intencionado” branqueamento

da raça brasileira. Na monografia de Liene M. Shütz (1992), sobre Novo Hamburgo

e sua população, pode-se ler a construção do branqueamento ou “melhoria da raça”

através da imigração de alemães:

A ocupação efetiva do território do sul do Brasil, a melhoria da raça e a utilização do trabalho livre, foram as principais causas que levaram o governo de D. Pedro I a oficializar, em 16 de março de 1824, a vinda de imigrantes alemães para o Brasil. (SCHÜTZ, 1992, p. 33)∗

A autora destaca várias representações que fazem parte deste discurso que

se caracteriza pela atribuição de qualidades excepcionais aos imigrantes teutos:

As virtudes dos desbravadores teutos, como o senso decidido, ordeiro, pacífico, forte e empreendedor, são visíveis na população hamburguense. É do colono alemão a herança do espírito comunitário que se faz sentir marcadamente em Novo Hamburgo pois os colonizadores trabalhavam de forma cooperativa (SCHÜTZ, 1992, p. 97)

∗grifo meu

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Não foram poucos os estudos que discorreram sobre os aspectos positivos

da imigração européia para o Brasil. Ainda que o pauperismo tenha sido o principal

motivo para a imigração, de acordo com Dagmar Meyer “essas populações que

partiam da Europa como excluídos sociais eram recebidas, nos países do novo

mundo, como elementos superiores e civilizadores que, deveriam neles, impulsionar

o progresso e o desenvolvimento” (MEYER, 2000, p. 25). Ao citar um fragmento do

jornal Deutsche Post, Dagmar Meyer revela a preocupação da comunidade alemã

com a construção de uma cultura comum e compartilhada. O jornal citado diz o

seguinte ao referir-se à manutenção das características da cultura germânica:

[...] para isso existem as comunidades eclesiásticas e escolares. É um dos objetivos delas: aproximar os alemães de diferentes regiões e procedências com suas peculiaridades, fazer esquecer o não comum, enfatizar, cuidar e incentivar o senso comum, e com isso juntar, conservar e cuidar das qualidades compartilhadas em língua, costumes. (apud MEYER, 2000, p. 52).

O cuidado em destacar as pretensas qualidades étnicas e raciais do

descendente do alemão imigrante pode ser vista no registro de várias situações.

Por ocasião das comemorações de aniversário de emancipação do município de

Novo Hamburgo, são freqüentes as manifestações que destacam a positividade

“natural” do elemento de origem germânica. Roswithia Weber (2006) indica essa

produtividade discursiva enaltecedora do valor étnico germânico presente no

discurso veiculado em 1967, ocasião de comemoração dos 40 anos da cidade:

Apesar do afluxo constante de pessoas de diversas origens (hoje não se ouve mais a língua alemã em público), e o fichário eleitoral afirmar que existem mais criaturas de nomes lusos do que germânicos em Novo Hamburgo, o teuto-brasileiro domina em todos os setores locais, ou em quase todos. (Jornal Correio do Povo apud WEBER, 2006, p. 112).

Manter características germânicas e preservar uma suposta “bagagem

cultural comum” era uma preocupação constante das lideranças alemãs. Tal

preocupação é percebida ainda hoje nos esforços das lideranças locais para

reforçar o sentimento de pertencerem à cultura alemã, cujas qualidades continuam

sendo enfatizadas. É possível apontar essa preocupação no discurso de

apresentação da cidade encontrado no site da Prefeitura Municipal14:

14 www.novohamburgo.rs.gov.br

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Exemplo de educação no país, Novo Hamburgo conta com mão-de-obra qualificada, infra-estrutura completa e localização privilegiada frente ao Mercosul. Tem uma população profundamente marcada pela origem germânica. Uma cidade onde não falta seriedade, dedicação e gosto pelo trabalho.

Assim, pode-se dizer que muitos discursos empenharam-se em valorizar o

pertencimento étnico-racial germânico e contribuíram para creditar à cidade de

Novo Hamburgo a posição de exemplo de vigor de uma coletividade trabalhadora

tendo a indústria como destaque (SELBACH, 1999). Entretanto, como foi dito

anteriormente, tal desenvolvimento atraiu migrantes de todo o Estado e até de fora

dele. A grande oferta de empregos a partir da década de 1960 fez a população de

Novo Hamburgo crescer e diversificar-se cultural e racialmente. De acordo com

Stuart Hall, “num mundo de fronteiras dissolvidas e de continuidades rompidas, as

velhas certezas e hierarquias da identidade [...] têm sido postas em questão” (HALL,

1999, p.84). Nesse sentido, como já referi, é possível entender a preocupação da

elite hamburguense em manter a fronteira étnica que os separava daquele grupo

que não possuía a suposta origem comum. Luís Henrique Sommer também afirma

que é notório e recorrente a permanência de investimentos quanto à “produção

discursiva acerca do pertencimento à etnia alemã” (SOMMER, 2003, p.79). O

orgulho de pertencer a uma cultura supostamente superior, a uma “branquitude”

requisitada por um país que desejava “melhorar” a condição racial de seu povo

(SKIDMORE, 1976), fazia com que a população estabelecida na cidade se

percebesse como “legítimos herdeiros de uma cultura ancestral” (SOMMER, 2003,

p.82), gente trabalhadora que poderia viabilizar o desenvolvimento do Brasil.

As representações da elite, como, por exemplo, o suposto sentimento de um

espírito alemão empreendedor, era apresentado como principal fator a impulsionar

Novo Hamburgo rumo ao progresso, numa típica representação das aspirações da

modernidade. Assim posiciona-se Jéferson Selbach:

O discurso vendido a público fora sem dúvida de que em Novo Hamburgo as pessoas trabalhavam muito e que a preguiça não encontrava espaço. Todos acordavam cedo e seguiam suas jornadas até tarde em prazerosos serões; tudo para fazer crescer a produção calçadista, semelhante à cena do épico “Como era verde meu vale”, ou algo parecido, com operários felizes e contentes nas linhas de produção. (SELBACH, 1999, p. 93)

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Nessa empreitada em apresentar a cidade como “um exemplo de pujança de

uma coletividade voltada ao trabalho” (SELBACH,1999, p.125), destaca-se a

participação do Jornal NH de Novo Hamburgo como um veículo da mídia dirigido

por representantes da elite hamburguense. Circulando pela primeira vez no ínicio

de 1960, o Jornal NH, conforme as palavras15 de Mário Alberto de Paula Gusmão –

diretor e presidente do Grupo Editorial Sinos –, foi criado e inseriu-se na

comunidade com o propósito de participar do desenvolvimento da sociedade

hamburguense. O “NH” tornou-se uma ferramenta importante na fabricação de uma

identidade hamburguense voltada para o progresso industrial, resultado da

inabalável disposição para o trabalho dos descendentes de alemães. O Sr. Gusmão

relata ainda que, “pela importância da indústria calçadista, ela teria que ser mais

divulgada. Até em nível nacional e, quem sabe, internacional. Esse foi o propósito

que o jornal assumiu e que cumpriu” (apud SCHEMES, 2005, p.124).

Fundado em 19 de março de 1960, o Jornal NH, editado pelo Grupo Editorial

Sinos, circula em Novo Hamburgo e cidades vizinhas e é visto como veículo

preocupado com causas comunitárias e com o incentivo do desenvolvimento

econômico regional. Grande promotor e divulgador de campanhas, o Jornal NH

liderou a criação da Festa Nacional do Calçado – FENAC, dedicou-se à implantação

da telefonia automática em Novo Hamburgo e à criação da Associação Pró-Ensino

Superior em Novo Hamburgo (Aspeur), mantenedora do Centro Universitário

Feevale. Vale destacar, ainda, o empenho na criação da Associação dos Municípios

do Vale; o processo pela municipalização da água em Novo Hamburgo; o Projeto

Agora, que visava a disseminação do computador no início dos anos 80; a Cruzada

Anti-Drogas, voltada ao combate ao uso de drogas lícitas e ilícitas; o Ação 21,

programa dedicado ao desenvolvimento econômico de Novo Hamburgo; o projeto

da Rodovia do Progresso, que busca uma via alternativa entre o Vale do Sinos e

Porto Alegre e o ABC Alfabetizando, que visa à erradicação do analfabetismo. De

acordo com Luís Henrique Sommer:

No seio de uma tradição de campanhas, desenvolvidas sob a tutela do Jornal NH, o discurso identitário é encapsulado no objeto comunidade, recorrentemente invocado nos textos jornalísticos. Pode-se afirmar que o discurso hegemônico que enunciava os vínculos identitários dos habitantes de Novo Hamburgo, objetivando os sujeitos hamburguenses, é

15Entrevista concedida à Cláudia Schemes e Ida Helena Thön para a pesquisa que deu origem ao livro “Memória do setor coureiro-calçadista”.

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reorganizado pelo Jornal nos discursos das campanhas que instituem o objeto comunidade. E mesmo quando o Jornal passa em revista uma história de campanhas, cujo marco inicial seria o movimento pela conquista de telefones automáticos no início dos anos sessenta, o faz como se, desde sempre, a noção de comunidade estivesse presente. (SOMMER, (2003, p.100)

Portanto, o Jornal NH torna-se um veículo importante na vida social dos

moradores de sua área de abrangência, assumindo papel não apenas informativo,

mas também desenvolvendo e incentivando campanhas em prol do

desenvolvimento da cidade e da região próxima. O Jornal NH nasceu com um

propósito de participação na vida da comunidade e, efetivamente, agregou-se ao

movimento social de Novo Hamburgo e, por conseqüência, de toda a região do Vale

dos Sinos.

O Jornal NH, desde a sua origem, esteve integrado à sociedade

hamburguense, não apenas publicando notícias, mas participando ativamente da

constituição e fortalecimento de uma identidade marcada pelo empreendedorismo e

pelas conquistas comunitárias. Nesse sentido, destaco e concordo com o

entendimento que Sarai Schmidt (1999) tem do texto jornalístico:

O texto jornalístico não trabalha com simples letras, papéis, imagens, cores, mas que todos estes elementos são conformados numa complexa textualidade aberta e produtiva. Isto quer dizer que os significados que a mídia institui são produzidos desta forma e colocados em circulação na arena cultural, redundando em múltiplos efeitos (SCHMIDT, 1999, p.16)

A autora salienta o papel pedagógico dos jornais ao referir-se à importância

desse recurso midiático na produção e disseminação de saberes que vão

conformando as coisas das quais falam. É neste sentido que esta dissertação

interpreta as representações do “outro” afro-descendente, veiculadas entre 1979 e

1980 nas tiras cômicas do Jornal NH. Ressalto que as tiras do personagem Giba

não foram mais publicadas nesse jornal e deixaram de circular repentinamente.

Talvez essa abrupta interrupção se relacione à denúncia de racismo contra a

jornalista Glória Maria veiculada no Jornal NH na mesma época16.

Acredito que persiste até hoje na cidade de Novo Hamburgo uma constante

reatualização de um discurso que destaca o espírito empreendedor, a vocação para

o trabalho e a tendência ordeira do descendente alemão, ou seja, um discurso que

16 Ver anexo 3.

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busca destacar uma suposta superioridade natural inerente à condição da “raça

branca”. Neste sentido, fui provocada a olhar para as narrativas étnico-raciais sobre

o “outro” negro nas tiras do personagem Giba, que aparecia representado pelos

cartunistas como possuindo uma série de atributos opostos àqueles atribuídos aos

descendentes de imigrantes alemães. Como refere Kathryn Woodward (2000, p.39),

“a marcação da diferença é crucial no processo de construção das posições de

identidade” (WOODWARD, 2000), isso leva a supor que as representações contidas

nas tiras do personagem Giba, ao narrar o “outro” afro-descendente negativamente

e construí-lo como detentor de “marcas inferiores”, em contrapartida constituem a

identidade do “nós”, os brancos de origem européia, como superiores.

As tiras do personagem Giba, apropriadas pelo Jornal NH, não foram

produzidas por cartunistas ligados ao jornal, mas resultaram de um projeto da

Editora Abril, chamado “Projeto Tiras”, que, em 1978, convidou desenhistas e

roteiristas de histórias em quadrinhos para participarem de um concurso cujo

objetivo era testar personagens através de tiras de jornal. Os cartunistas

selecionados seriam premiados com uma revista própria, obviamente, publicada

pela Editora Abril. Sempre dispostos a aproveitar as raras oportunidades, vários

autores atenderam, imediatamente, ao "chamado”. Henrique Farias e Paulo Paiva,

criadores do personagem Giba, também aderiram ao projeto e disponibilizaram

suas tiras para serem distribuídas, junto com várias outras tiras, quadrinhos,

charges, cartuns e caricaturas, para todo o Brasil. Em menos de seis meses, boa

parte daqueles personagens já estavam sendo publicados em mais de 20

periódicos nacionais.

Vale citar que esse era o sistema usado, comumente, pelos grandes

Sindicatos da América do Norte, distribuidores de tiras para jornal. Em primeiro

lugar, eles testavam a aceitação do personagem através de sua publicação em

tiras. Em seguida (dependendo da aceitação do público), lançavam o personagem

em uma revista em quadrinhos. E, por fim, sempre em função do sucesso obtido, o

personagem podia até se tornar astro de desenho animado e longa metragem para

cinema (vide Garfield, Snoopy...)

Entendi, ainda, que seria importante obter informações a respeito dos

criadores do Giba e das suas intenções na produção das narrativas do personagem.

Lancei-me, assim, na busca desses dados. Primeiramente, solicitei informações

junto à Editora Abril que informou não ter dados disponíveis sobre os autores em

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seu acervo. Após uma busca na rede, e com a ajuda do colega Áureo, rastreei

outros participantes do Projeto Tiras e entrei em contato com um deles, o cartunista

Carlos Avalone, que me passou o endereço eletrônico de um dos autores do

personagem Giba. Após várias tentativas frustradas via rede, voltei a comunicar-me

com Avalone que se prontificou a buscar informações sobre os autores e, dias

depois, forneceu-me o número do telefone de Paulo Paiva. Através do contato por

telefone, fiquei sabendo que o personagem em questão foi criado especialmente

para o projeto da Editora Abril, e que a idéia de um personagem negro foi do

parceiro Henrique Farias. Segundo Paulo Paiva, Henrique Farias é carioca e, na

época em que trabalharam juntos, morava perto de uma favela no Rio de Janeiro.

Foi justamente nessa favela que Henrique Farias inspirou-se para criar um

“moleque negro” e fez nascer, junto com Paulo Paiva, o personagem Giba. Quando

perguntei sobre as representações estereotipadas do negro, Paulo Paiva afirmou

que a intenção era mostrar, através das tiras do Giba e do humor crítico, os

estereótipos recorrentes sobre o negro no Brasil. Vale destacar que o criador do

personagem, Henrique Farias é negro17.

A busca de informações sobre os cartunistas foi relevante, mesmo que a

intenção desta pesquisa seja ater-me à polifonia do objeto de estudo. Minha

prioridade é atentar para o caráter construcionista das representações

estereotipadas, racializadas do “outro” negro. Destaco aqui o que diz Michel

Foucault (2002, p.34-35) quando, referindo-se a Beckett, questiona “que importa

quem fala, a escrita se refere a si própria, identifica-se com a sua própria

exterioridade manifesta”. Portanto, na intenção de perceber os sentidos e

significações que foram culturalmente produzidas a partir das tiras sobre o “outro”

racializado em Novo Hamburgo, identificarei quais foram as representações

recorrentes nas tiras do Giba.

Para realizar a pesquisa, contemplei a abordagem teórica dos Estudos

Culturais, pois entendo que, neste campo investigativo, encontro subsídios para

problematizar questões relativas aos modos como são colocadas na arena cultural

estratégias discursivas, que, por sua vez, estabelecem práticas de significação.

17Vide foto em anexo 4.

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I – Óticas e Perspectivas

Os Estudos Culturais e as Pedagogias Culturais

Este estudo está diretamente articulado ao campo de investigação e

teorização dos Estudos Culturais, particularmente na área da Educação que

contempla e amplia a possibilidade de estudos sobre a construção das identidades

e das diferenças. Os Estudos Culturais utilizam-se de um campo interdisciplinar de

estudos como a Antropologia, a Sociologia, a História, entre outros, permitindo, por

esse cruzamento de saberes e pela centralidade da cultura, as análises dos

aspectos culturais da sociedade. Os Estudos Culturais tomam cultura como “um

campo de produção de significados no qual os diferentes grupos sociais, situados

em posições diferenciais de poder, lutam pela imposição de seus significados à

sociedade mais ampla” (SILVA, 1999, p.133). Nesse sentido, penso que a utilização

desse referencial para esta pesquisa é de vital importância, pois possibilita o exame

de práticas culturais – como as representações do “outro” racializado nas tiras

cômicas do jornal – tendo como amparo uma teorização que se preocupa com

questões situadas numa “conexão entre cultura, significação, identidade e poder”

(SILVA, 1999, p.134).

Os Estudos Culturais podem ser considerados como um campo de produção

de conhecimento instigante uma vez que coloca em xeque e desestabiliza nossas

certezas sedimentadas em referenciais da ciência moderna. É preciso dizer que a

ótica dos Estudos Culturais permite um novo ajuste de foco para a elaboração deste

trabalho, bem como possibilita o estudo de um objeto que, à primeira vista, parecia

não pertencer ao campo da educação formal – as tiras cômicas. É justamente essa

noção ampliada do campo de visão sobre as coisas e sobre as instâncias onde

pode acontecer a educação e a produção de conhecimento que faz dos Estudos

Culturais um terreno tanto movediço quanto sedutor e instigante para o

desenvolvimento de trabalhos investigativos.

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Os Estudos Culturais tomam a cultura como tema central e preocupam-se

com a investigação de “instâncias, instituições e processos culturais aparentemente

tão diversos quanto exibições de museus, filmes, livros de ficção, turismo, ciência,

televisão, publicidade, medicina, artes visuais, música...” (SILVA, 1999, p.139).

Estas instâncias, assim como as tiras cômicas, são práticas culturais que

expressam, comunicam e divulgam significados, constituindo-se, portanto, em

práticas de significação que instituem sentidos tanto para os que as praticam quanto

para os que as observam (HALL, 1997).

Cary Nelson, Paula A. Treichler e Lawrence Grossberg (1995) apontam que o

conceito de cultura pode ser entendido:

Tanto como uma forma de vida – compreendendo idéias, atitudes, linguagens, práticas, instituições e estruturas de poder – quanto toda uma gama de práticas culturais: formas, textos, cânones, arquitetura, mercadorias produzidas em massa e assim por diante. (NELSON; TREICHLER & GROSSBERG, 1995, p.14).

Percebe-se, portanto, um deslocamento na concepção de cultura, isto é, o

entendimento de cultura inspirada na tradição arnoldiana passa a ser questionado

na sua pretensão de ser o que de melhor se tenha pensado e dito no mundo

(COSTA, 2000). Ao discutir a centralidade da cultura na contemporaneidade, Stuart

Hall (1997) mostra a penetração da cultura em todos os recantos da vida social.

Esse entendimento ampliado de cultura está relacionado ao movimento chamado

“virada cultural”, que interpreta a cultura como constitutiva da vida social. Tal

movimento desencadeou um maior “interesse na linguagem como termo geral para

as práticas de representação, sendo dada a [ela] uma posição privilegiada na

construção e circulação do significado” (HALL, 1997, p.28). Desse modo, mais do

que a função de narrar, confere-se à linguagem o status de constituidora dos fatos e

de produtora de sentidos sobre as coisas.

Tomaz Tadeu da Silva (1999, p.139) refere ainda que, “tanto a educação

quanto a cultura em geral estão envolvidas em processos de transformação da

identidade e da subjetividade”. Desse modo, a cultura assume um caráter

pedagógico, como também a pedagogia passa a adquirir um status cultural. É esse

entendimento que utilizo para este trabalho, de que existe uma produção

pedagógica circulando no amplo âmbito da esfera social. O autor destaca também

que, “sob a ótica dos Estudos Culturais, todo conhecimento, na medida em que se

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constitui num sistema de significação, é cultural” (SILVA, 1999, p. 139), e, como tal,

penso que, nas tiras analisadas, há uma produtividade pedagógica, uma vez que

elas fazem parte de um currículo cultural que opera na produção da diferença, na

constituição/conformação das subjetividades. O entendimento de pedagogia

cultural que aqui se aplica concorda com o argumento utilizado por Henry Giroux e

Peter McLaren (1995) quando afirmam que o conhecimento é produzido em muitas

outras instâncias além da escola, e, portanto, nesses espaços produtivos de saber

e “verdades”, como a mídia, são conformados e postos em circulação muitos

saberes que, indelevelmente, vão produzindo significados e constituindo

subjetividades.

Shirley Steinberg (1997), no seu estudo sobre a construção da infância pelas

grandes corporações, esclarece o entendimento do que seja uma pedagogia

cultural ao dizer que:

O termo “pedagogia cultural” refere-se à idéia de que a educação ocorre numa variedade de locais sociais, incluindo a escola, mas não se limitando a ela. Locais pedagógicos são aqueles onde o poder se organiza e se exercita, tais como bibliotecas, TV, filmes, jornais, revistas, brinquedos, anúncios, videogames, livros, esportes, etc... (STEINBERG, 1997 p. 101/102).

Shirley Steinberg e Joe Kincheloe (2001), estudando a cultura infantil,

afirmam que seu trabalho inscreve-se:

No âmbito da abrangente expressão pedagogia cultural, que

enquadra a educação numa variedade de áreas sociais, incluindo mas não limitando à escolar. Áreas pedagógicas são aqueles lugares onde o poder é organizado e difundido, incluindo-se bibliotecas, TV, cinemas, jornais, revistas, brinquedos, propagandas, videogames, livros, esportes, etc.... (STEINBERG e KINCHELOE, 2001, p.14)

Diante disso, é possível constatar que os saberes ultrapassam os limites da

escola e, de alguma forma, interpelam e educam os sujeitos, conformando

subjetividades. Neste sentido, concordo com Tomaz Tadeu da Silva quando afirma

que, “da perspectiva da teoria curricular, poderíamos dizer que as instituições e

instâncias culturais mais amplas também têm um currículo” (SILVA, 1999, p.139),

que podemos chamar de currículo cultural. Tal currículo, por sua vez, também é

eficiente na produção de sujeitos particulares, específicos, pois:

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[...] o currículo pode ser visto como um discurso que, ao corporificar narrativas particulares sobre o individuo e a sociedade, nos constitui como sujeitos – e sujeitos também muito particulares. Pode-se dizer, assim, que o currículo não está envolvido num processo de transmissão ou de revelação, mas num processo de constituição e de posicionamento: de constituição do indivíduo como sujeito de um determinado tipo e de seu múltiplo posicionamento no interior das diversas divisões sociais. (SILVA, 1995, p. 195).

Marisa Vorraber Costa, Rosa Hessel Silveira e Luis Henrique Sommer

(2003), colaboram para o entendimento de que estamos imersos em uma eterna

aprendizagem de coisas que nos atravessam e nos educam cotidianamente.

Segundo estes autores podemos afirmar:

Que a educação se dá em diferentes espaços do mundo contemporâneo, sendo a escola apenas um deles. Quer dizer, somos também educados por imagens, filmes, textos escritos, pela propaganda, pelas charges, pelos jornais e pela televisão, seja onde for que estes artefatos se exponham. Particulares visões de mundo, de gênero, de sexualidade, de cidadania entram em nossas vidas diariamente. É a isto que nos referimos quando usamos as expressões currículo cultural e pedagogia da mídia. Currículo cultural diz respeito às representações de mundo, de sociedade, do eu, que a mídia e outras maquinarias produzem e colocam em circulação, o conjunto de saberes, valores, formas de ver e conhecer que está sendo ensinado por elas. Pedagogia da mídia refere-se à prática cultural que vem sendo problematizada para ressaltar essa dimensão formativa dos artefatos de comunicação e informação na vida contemporânea, com efeitos na política cultural que ultrapassam e/ou produzem as barreiras de classe, gênero sexual, modo de vida, etnia e tantas outras. (COSTA; SILVEIRA & SOMMER, 2003, p.57)

Nesse sentido, concordando com os autores acima, considero que as tiras

do personagem Giba compõem um currículo cultural que veicula saberes, que

constituem identidades e subjetividades. Compartilho também com Tomaz Tadeu

da Silva (1999a, p.10) o entendimento de que o “currículo está no centro da relação

educativa, que o currículo corporifica os nexos entre saber, poder e identidade”.

Podemos dizer que existe um currículo cultural operando na cultura fotocêntrica,

auditiva e televisual em que vivemos, e as imagens que aí são publicadas/

divulgadas corroboram para a codificação e decodificação daquilo que entendemos

como verdade, pois elas contribuem para a produção de significados a partir dos

códigos culturais que fazem circular. Considero, então, importante a abordagem e

problematização das representações veiculadas pela mídia – neste caso as tiras do

personagem Giba veiculadas no Jornal NH – como narrativas étnico-raciais que

produziram significados e legitimaram verdades as quais contribuíram para a

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formação de subjetividades na tentativa de naturalizar identidades sociais. Portanto,

ressalto que os conhecimentos veiculados pelo humor caricato das tiras, ainda que

não tivessem o objetivo explícito de ensinar, acabaram construindo e divulgando

representações que, justamente por seu caráter sedutor e naturalizador, foram/são

vitais na formação de identidades e de subjetividades e por um modo específico de

ser e estar no mundo.

Desta forma, reafirmo que a pesquisa realizada parte do entendimento de

que existe uma pedagogia acontecendo em muitos outros lugares e não somente

no espaço oficial da escola. Como Henry Giroux e Peter McLaren (2004, p.144),

acredito que a pedagogia acontece “em qualquer lugar em que o conhecimento é

produzido”. A partir da perspectiva teórica dos Estudos Culturais, examino os

significados produzidos nas representações do “outro” racializado nas tiras

veiculadas no Jornal NH entre os anos de 1979 e 1980. Na direção da concepção

de cultura a partir da concepção da “virada cultural”, que permite ver a cultura como

uma condição constitutiva da vida social (HALL, 1997), foi possível cruzar as

leituras e discussões provenientes do campo dos Estudos Culturais com o que as

tiras apontavam na imprensa. Entendendo que “a cultura diz respeito, sobretudo, à

produção de sentido” (SILVA, 1999a, p17), considero que as representações acerca

do “outro”, o diferente em Novo Hamburgo, aqui especificamente o afro-

descendente, configuraram lutas pela imposição de significados, numa correlação

de forças desiguais que acabaram reproduzindo velhos estereótipos que

mantiveram a inferioridade desse “outro” racializado. Nesse sentido, pretendo, com

este trabalho, entender de que forma textos e imagens articularam-se para manter

relações assimétricas de poder, demarcar limites étnico-culturais e excluir o outro

do discurso dominante da cidade ideal de Novo Hamburgo.

Somos constantemente interpelados por significados e, nesse processo,

assumimos posições de sujeito construídas a partir de discursos e de

representações que circulam na cultura (HALL, 1997). A representação cultural

produz significados através da linguagem, que, nesta ótica de pesquisa, assume um

caráter construcionista, ou seja, “a linguagem constitui os fatos e não apenas os

relata” (DU GAY apud HALL, 1997, p.28). A “virada cultural” iniciou a mudança em

relação à linguagem, pois a cultura é o conjunto de sistemas de classificação e

formações discursivas de que a linguagem utiliza-se para dar significação às coisas

(HALL, 1997). Como sugere Maria Lúcia Wortmann:

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[...] as linguagens são centrais para o significado e para a cultura, por serem os repositórios chaves de valores e de códigos que dão sustentação aos diálogos, permitindo a construção de entendimentos partilhados, que possibilitam aos sujeitos interpretarem o mundo de maneira mais ou menos parecida e a se tornarem membros de uma cultura. (WORTMANN, 2002, p.81)

Neste caso, entendo que o sentido é produzido pela linguagem ao

representar algo ou alguém e que as tiras do personagem Giba, ao articularem o

texto escrito ao texto imagético, criaram uma linguagem eficiente para materializar

representações sobre as identidades do grupo afro-descendente, marcando-o como

racialmente inferior ao branco. Segundo Dagmar Meyer (2002, p.59), “existem

sistemas de códigos sociais, que organizam os signos com os quais produzimos

sentidos que são compartilhados nas diferentes culturas”, isto é, entendemos as

coisas do mundo a partir de referências contempladas, ou inventadas, para “nos

dizer” e nos fazer entender os códigos que orientam nossa vida. Portanto, é

possível, pela “leitura” do texto das tiras do Giba, inferirmos sentidos das

representações acerca do grupo negro, pois um determinado grupo social – neste

caso os brancos descendentes de imigrantes alemães – que partilha da mesma

linguagem e dos mesmos códigos culturais, compreende os significados de forma

semelhante. Na linguagem não há apenas a compreensão dos significados, mas,

através dela, os significados são também produzidos e postos em circulação. De

acordo com Stuart Hall, “Na linguagem nós usamos sinais e símbolos – sendo eles

sons, palavras escritas, imagens produzidas eletronicamente, notas musicais ou até

objetos – para representar para outras pessoas nossos conceitos, idéias e

sentimentos” (HALL, 1997a, p.1). Colocar em circulação no âmbito social as

representações que fazemos acerca do “outro” racializado nada mais é do que

travar uma disputa pela imposição de significados, uma tentativa de marcar as

posições de sujeitos e grupos, uma forma de garantir a sustentação de posições

privilegiadas. Ao narrar o “outro” negro nas tiras através de estereótipos, não se

está dizendo somente o que esse “outro”, o negro, é ou pode ser, mas também se

está afirmando aquilo que eles não são. Desta forma, de maneira supostamente

“divertida e insuspeitável”, através das representações estereotipadas, foram-se

estabelecendo “verdades” que conformaram/conformam modos de ver e significar o

“outro” negro em Novo Hamburgo.

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Alguns estudos têm apontado para a importância da discussão sobre as

representações étnico-raciais no currículo escolar e extra-escolar. Também há

preocupação quanto às implicações de estratégias de exclusão na construção das

identidades hegemônicas e não-hegemônicas, como um conceito relacional com

repercussões para ambos os processos identitários. Dagmar Meyer (2001), ao falar

sobre etnia e raça, nos diz que:

[...] são marcadores sociais que estão profundamente envolvidos com estes processos de construção de diferenças e identidades culturais. São concepções que estão relacionadas com a produção de sentidos e critérios de pertencimento e se constituem como importantes suportes dos processos através dos quais se constroem fronteiras entre aqueles/as que pertencem e aqueles/as que não pertencem a determinados grupos/populações. Estas fronteiras não apenas relacionam, aproximam, separam e/ou diferenciam grupos entre si, elas agem de forma a posicionar socialmente os grupos representados, numa operação em que as características de diversas ordens são transformadas em privilégios, vantagens, desigualdades e desvantagens sociais. (MEYER, 2001, p.371).

Definir, delimitar, diferenciar modos de ser e estar no mundo está relacionado

a significados que constroem posições de sujeitos e que fabricam identidades. De

acordo com Ruth Sabat (2005, p.175), “diferentes grupos sociais estão envolvidos

em meio à produção de significados, em meio a narrativas que explicam o mundo e

representam seus modos de existir”. Esses significados possibilitam certo

reconhecimento identitário “legítimo”, “verdadeiro”, que garante o pertencimento ou

a exclusão. Nas representações que um grupo faz sobre outro estão imbricadas a

marcações de fronteiras, com os posicionamentos permitidos ou não dentro de

contextos hegemônicos. De acordo com Tomaz Tadeu da Silva, “A questão da

representação ocupa um lugar central na política de identidade” (SILVA 1995: 198),

desse modo, ao colocarmos em discussão as representações sobre o “outro”

racializado, que são veiculadas nas tiras, possibilita-se apontar os modos e

estratégias utilizados para impor sentidos e posições de sujeitos hegemônicos aos

grupos não-hegemônicos.

O conhecimento e a realidade têm sido configurados e percebidos de uma

maneira nova nestes tempos pós-modernos. Afirmar que vivemos em um império

visual não é exagero. Somos bombardeados, a todo momento, por discursos/

recursos midiáticos que nos formam, reformam e transformam. Ao sermos

interpelados por discursos visuais, falados e escritos, vamos subjetivando-nos e

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constituindo nossas identidades, assim como vamos construindo noções acerca das

identidades daqueles que são diferentes de nós. Analisar o que se passa conosco

através daquilo que experenciamos é fundamental para que possamos

desnaturalizar as verdades que nos atingem.

Entendo que há um caráter pedagógico nas tiras, assim como ressalto que

elas fazem parte de um currículo cultural implicado na manutenção de identidades

hegemônicas e não hegemônicas. Aprendemos a ser quem somos ao sermos

interpelados pelas inúmeras narrativas que circulam no currículo cultural inserido

em nosso cotidiano, um currículo recheado de representações que tentam

naturalizar modos de ser e estar no mundo. Como Tomaz Tadeu da Silva afirma,

[...] as narrativas contidas no currículo trazem embutidas noções sobre quais grupos sociais podem representar a si e aos outros e quais grupos sociais podem apenas ser representados ou até mesmo serem totalmente excluídos de qualquer representação. (SILVA, 1995, p.195)

Nessa correlação de forças e na disputa por imposição de significados de

uma política identitária, me apoio nos estudos de Marisa Vorraber Costa para

afirmar que a tira cômica do personagem Giba pode ser considerada como um

“território de produção, circulação e consolidação de significados, como espaço

privilegiado de concretização da política de identidade” (COSTA, 1999, p.38). É

interessante e pertinente ressaltar que os processos de produção da identidade

estão estreitamente imbricados à marcação da diferença. Nessa direção, destaco a

afirmação de Tomaz Tadeu da Silva:

A identidade cultural e social é o conjunto daquelas características pelas quais os grupos se definem como grupos: aquilo que eles são. Aquilo que eles são, entretanto, é inseparável daquilo que eles não são, daquelas características que os fazem diferentes de outros grupos. Identidade e diferença são, pois, processos inseparáveis [...] Tanto a nossa identidade quanto a identidade dos outros (a diferença) aparecem como absolutas, como essências, como experiências originais, primordiais. A identidade só faz sentido numa cadeia discursiva de diferenças: aquilo que “é” é inteiramente dependente daquilo que “não é”. Em outras palavras, a identidade e a diferença são construídas na e pela representação: não existem fora dela. (SILVA, 1999a, p.46).

Stuart Hall (1997b) ajuda-nos a entender que não podemos ler imagens,

como as veiculadas nas charges do personagem Giba, sem percebermos que elas,

além de dizerem algo sobre as pessoas e as coisas, dizem muito a respeito das

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diferenças entre as pessoas. Cada imagem também é lida em termos de sua

diferença cultural (HALL, 1997b). A diferença é inseparável da identidade e ambas

podem ser “vistas como mutuamente determinadas” (SILVA, 2000, p. 76). Há uma

estreita relação de dependência entre ambas. A afirmação da identidade e a

marcação da diferença estão ligadas a um processo de incluir e excluir, definindo o

que somos e também o que não somos, determinando posições a serem ocupadas

na teia social. Sistemas classificatórios são acionados numa tentativa de perpetuar

a ordem estabelecida.

As fronteiras simbólicas são centrais para toda a cultura. A marca da

“diferença” leva-nos simbolicamente a cerrar as fileiras, estear a cultura e estigmatizar e expulsar qualquer coisa que seja definida como impura, anormal. Todavia, paradoxalmente, também torna a “diferença” poderosa, estranhamente atrativa precisamente por ser proibida, um tabu, uma ameaça à ordem cultural. (HALL, 1997b, p.237)

A demarcação de fronteiras reafirma relações de poder, classificação e

divisão do mundo social que implicam uma luta constante pela imposição de

significados. De acordo com Ruth Sabat, “o ato de nomear uma diferença está

diretamente relacionado a um ato de poder já que, no momento em que nomeio

algo ou alguém, estou produzindo uma referência construída de modo hierárquico”

(SABAT, 2003, p.93). Aquele que possui o poder de narrar o outro também está

capacitado a imprimir, valorativamente, as marcas da diferença. Porém, é preciso

investir esforços para manter a ordem e o padrão social e cultural uma vez que “os

significados flutuam e não podem ser definitivamente estabelecidos” (HALL 1997b).

Segundo Tomaz Tadeu da Silva,

A identidade e a diferença têm que ser ativamente produzidas. Elas não são criaturas do mundo natural ou de um mundo transcendental, mas do mundo cultural e social. Somos nós que as fabricamos, no contexto das relações culturais e sociais. A identidade e a diferença são criações sociais e culturais. (SILVA, 2000, p.76)

No interesse deste trabalho, é de fundamental importância o estudo de Stuart

Hall acerca das representações do “outro racializado”. No texto “O espetáculo do

outro” (1997b), Stuart Hall vai demonstrando o modo como as representações da

diferença do negro em relação ao branco vão-se perpetuando com o passar dos

anos. O autor examina tanto as práticas representacionais, conhecidas como

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estereótipos que se constituíram desde o encontro do branco europeu com o negro

africano no século XVI, como também examina as representações que a mídia (re)

produz acerca do grupo negro na contemporaneidade. Stuart Hall questiona se os

repertórios representacionais mudaram ou se permanecem intactos desde a

escravidão moderna até os dias de hoje.

Saliento que o trabalho realizado por Stuart Hall no “O espetáculo do outro”

muito contribuiu para as discussões que se desenvolvem a respeito das tiras do

personagem Giba, uma vez que o foco deste estudo é a marcação da diferença

através das representações estereotipadas do “outro” negro em Novo Hamburgo.

Busco detectar quais são as estratégias discursivas utilizadas para representar o

“outro” racializado, e como a diferença entre grupos sociais é essencializada

através dos estereótipos étnico-raciais. Maria Lúcia Wortmann (2005), interpretando

Stuart Hall, lembra que:

[...] a noção de estereótipo abrange características simples, vividas e facilmente guardadas na memória, apreendidas e amplamente reconhecidas [...] os estereótipos reduzem tudo a poucos traços exagerando-os, simplificando-os e, dessa forma, também, naturalizando-os. [...] os estereótipos atuam como um dos mecanismos de manutenção de limites – esses são caracteristicamente fixos, bem delineados, inalteráveis. Neles se assumem práticas de clausura e de exclusão, especialmente do que é diferente, ao mesmo tempo em que se estabelece o que é normal para uma cultura. [...] o estereótipo faz parte da ordem social e simbólica. Ele estabelece fronteiras entre o normal e o desviante, o incluído e o outro, o normal e o patológico, o aceitável e o inaceitável, os insiders e os outsiders e entre Nós e Eles. (WORTMANN, 2005, p.62)

Portanto, supondo que as narrativas e imagens têm um papel fundamental na

representação e na vida social, este estudo justifica-se, pois pretende responder às

seguintes questões: Como o “outro” negro é representado na articulação entre o

texto imagético e o texto escrito nas tiras do personagem Giba? O que as

representações étnico-raciais contidas nas tiras ensinam sobre o “outro”

racializado? De que modo as representações e significados presentes nas tiras

estabeleceram fronteiras demarcando pertencimentos da identidade e da diferença?

Como as representações do “outro” racializado (re)produziram estereótipos étnico-

raciais que marcaram posições de sujeito e produziram “verdades” sobre os afro-

descendentes?

Este estudo implica uma reflexão acerca das distinções, das

inclusões/exclusões que se processam nas representações daqueles considerados

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diferentes de “nós”. As imagens e diálogos das tiras contempladas, ao reproduzirem

estereótipos que marcaram os “outros”, os diferentes em Novo Hamburgo, também

estabeleceram fronteiras que excluíam esse “outro” do projeto de cidade ideal

construída pelos imigrantes alemães e por seus descendentes. Neste sentido,

afirma Jéferson Selbach:

Como terra de gente trabalhadora, Novo Hamburgo primava pelo operário ordeiro e disciplinado. Entretanto, o aumento da produção trouxe migrantes de todas as partes em busca do Eldorado calçadista e fez revelar a mentalidade racial. Ameaçando a sociedade dita civilizada, os de “cor” seriam responsabilizados pela miséria nos limites urbanos. (SELBACH, 1999, p.91)

Partindo do pressuposto de que educação e pedagogia também acontecem

em espaços não propriamente escolares como, por exemplo, os filmes, a

publicidade, e as novelas de televisão, e que o currículo aí imbricado privilegia

modos distintos de ser e estar no mundo, enfatizo a importância deste estudo, uma

vez que ele investiga que representações sobre o outro são ensinadas através das

estratégias representacionais visuais e escritas das tiras, bem como discute os

significados dessas representações na constituição das identidades étnico-raciais.

Se, como referem Henry Giroux e Peter McLaren (2004), “a cultura deve ser vista

como uma luta em torno de significados, identidades e narrativas”, é como um

artefato da cultura, como um componente de um currículo cultural que interpreto as

tiras do Giba, para avaliar a produtividade das suas representações e os possíveis

significados que fizeram circular. Neste sentido, busco problematizar os saberes e

verdades que, como pedagogias culturais impregnadas por disputas de poder,

visam a moldar o “outro” negro e conformá-lo a certas condutas e padrões de

comportamento.

A seguir, discutirei alguns conceitos relacionados à questão racial no Brasil e

o humor enquanto estratégia representacional, para melhor situar as análises das

estratégias discursivas presentes nas tiras do personagem Giba reproduzidas no

Jornal NH em Novo Hamburgo.

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II – APONTAMENTOS SOBRE A QUESTÃO RACIAL NO BRASIL

Discutindo Conceitos de Raça e Etnia

A Modernidade foi, sem dúvida, uma época de grandes realizações. É

incontestável o avanço científico e tecnológico que propiciou o desenvolvimento do

bem estar de grande parte da humanidade. Entretanto, também é inconteste, e até

lamentável, que os feitos louváveis da era moderna não se estenderam à maioria

das populações. Pelo contrário, alguns grupos humanos foram posicionados de tal

modo pelas teorias raciais européias no final do século XIX, que se acabou por

concluir pela superioridade biológica dos europeus, e conseqüentemente, pela

inferioridade dos povos não-europeus, considerados biologicamente indignos de

usufruírem dos benefícios da Modernidade.

O século XIX foi o marco do progresso científico e do fortalecimento das

idéias liberais. O liberalismo, com sua defesa à universalização dos direitos,

propiciou a muitos grupos minoritários integrarem-se à sociedade ocidental. Na

mesma época, os cientistas europeus dedicaram-se a estudar os povos africanos e

asiáticos, numa tentativa de entender e explicar as diferenças culturais.

(CARNEIRO, 2002). Porém, apesar do grande desenvolvimento científico da época,

o homem branco não aceitou a diversidade cultural e racial e negou-se a conviver

com ela. Desse modo, o progresso da ciência acabou por reforçar as atitudes

racistas intolerantes ao essencializar o “outro” como racialmente inferior.

A invenção do povo negro como categoria racialmente inferior permitiu não

apenas a escravidão e o imperialismo europeu na África e na Ásia, como também

perpetuou a hierarquização e a discriminação na modernidade. O racismo biológico

ainda está presente nos dias atuais, como é possível constatar pelo discurso do

vice-presidente do senado italiano por ocasião da comemoração da conquista da

Copa do Mundo de futebol sobre a França, quando afirma: “Foi uma vitória da

nossa identidade, onde lombardos, calabreses e napolitanos venceram uma

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seleção que sacrificou sua identidade ao escalar negros, mulçumanos e

comunistas” (Zero Hora, 11 de julho de 2006, p. 39).

Segundo Marisa Vorraber Costa (2004), a Modernidade gestou variedades

próprias de racismo, nas quais as culturas não-européias foram desprezadas,

consideradas inferiores, incapazes de desenvolvimento e progresso, e propícias à

exploração. O encontro de culturas diferentes tem constituído, ao longo do tempo,

muito mais situações de desprezo pelos outros modos de ser e estar no mundo, do

que um aprendizado e enriquecimento que a troca cultural pode proporcionar.

Conforme Stuart Hall (1997a), foram três os principais momentos em que o

“ocidente” encontrou o povo negro e que facilitaram o surgimento do racismo. O

primeiro deles aconteceu no século XVI com o contato entre os comerciantes

europeus e os povos africanos e resultou na escravização. O tráfico negreiro

tornou-se atividade sistemática e lucrativa, destinada a fornecer escravos para o

trabalho nas colônias. Declarados descendentes de Cam, amaldiçoado na Bíblia, os

negros africanos também foram condenados a ser eternamente servos dos servos

do Senhor. O africano escravizado não era considerado um ser humano, mas sim

mercadoria valiosa. O segundo momento caracterizou-se pela luta entre as “nações

civilizadas” pela partilha e rapinagem do território africano. Esse momento deu-se

na fase imperialista, ou seja, quando as potências européias apropriaram-se de

territórios africanos e asiáticos com o surgimento do racismo biológico no final do

século XIX. O terceiro momento aconteceu com as imigrações pós-segunda grande

guerra, quando os nativos das antigas colônias resolveram seguir para “suas”

metrópoles na busca por melhores condições de vida. Estes três momentos foram,

segundo Hall, os responsáveis pelo surgimento e solidificação das idéias ocidentais

sobre “raça” e diferença racial (HALL, 1997b).

No final do século XIX e início do século XX, as teorias raciais européias vão

estabelecer uma hierarquia racial entre as “raças”. Entre os teóricos, destaca-se o

francês Arthur de Gobineau, que defendia que a raça ariana era superior às outras

e que a miscigenação era a causa da decadência dos povos. Suas idéias foram

retomadas por Houston Chamberlain, fervoroso defensor da superioridade

germânica. Destacou-se também a doutrina racista do inglês Herbert Spencer,

conhecida por darwinismo social (Carneiro, 2002). Nessa doutrina, a teoria da

evolução de Darwin foi adaptada à evolução da sociedade, isto é, assim como

existia uma seleção natural entre as espécies, com o predomínio do mais capaz

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sobre os mais fracos, também na vida social o mais forte dominaria os incapazes.

Essas idéias permitiram que as diferenças físicas fossem utilizadas na classificação

dos seres humanos. Tornou-se possível, a partir das teorias raciais do final do

século XIX, atribuir qualidades ou defeitos aos seres humanos baseados nas suas

características físicas.

De acordo com os estudos de Stuart Hall e Antonio Sérgio Guimarães é

sabido que a categoria “raça” é uma construção política e social (HALL, 2003) que

foi usada para legitimar processos de segregação e marcar posições sociais, bem

como valorizar hierarquicamente determinados grupos humanos. Ainda assim,

como afirma Petronilha B. Gonçalves da Silva e Nilma Nilo Gomes, apesar da

diversidade étnico-racial ser uma característica marcante em qualquer sociedade, o

trato não segregador das diferenças ainda é uma postura política e profissional

ausente em muitas práticas pedagógicas (SILVA & GOMES, 2002, p.24). Ainda se

pensa em termos de diferenças raciais, e também se age de acordo com elas,

portanto, o conceito de “raça” não pode ser desconsiderado uma vez que

permanece como uma categoria de exclusão e dominação. Antônio Sérgio

Guimarães afirma que “continuamos a nos classificar em raças, independente do

que nos diga a genética” (GUIMARÃES, 2002). Neste sentido, também Marisa

Vorraber Costa reconhece a continuidade do conceito de “raça” na justificação das

desigualdades sociais:

Embora hoje saibamos que as diferenças biológicas relativas à composição genética das várias raças não dão sustentação às características comportamentais a elas atribuídas, e já seja amplamente reconhecido que raça é um conceito construído na cultura, as diferenças associadas predominantemente às configurações físicas, aos atributos externos das pessoas, continuam sendo referência para a produção e manutenção de um conjunto alentado de significados, que têm sido utilizados para justificar as desigualdades e abonar as injustiças sociais. (COSTA, 2004, p.386).

De acordo com Verena Stolke (1991), o conceito de raça foi substituido pelo

de etnia “para caracterizar uma categoria de pessoas ligadas por traços comuns”

(p.106). O termo “étnico” foi eleito para uso acadêmico devido à repugnância

provocada pelas doutrinas raciais nazistas que desencadearam o holocausto.

Tratava-se de enfatizar que os fenômenos históricos e sociais sobrepõem-se ao

biológico na constituição dos grupos humanos. No entanto, como salienta Dagmar

Meyer, a substituição do conceito de raça pelo de etnia não deu conta de atender à

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pretensa diminuição do preconceito, da discriminação e do racismo. Segundo a

autora,

[...] a opção pelo uso de “etnia’ no lugar de “raça” [...] ao deslocar a diferença que a raça situava na biologia para o terreno da cultura [...] acabou sustentando um novo racismo no qual as discriminações operam tomando como base supostas incompatibilidades de caráter cultural. (MEYER, 2002, p. 64,65).

Reflexões sobre o racismo no Brasil

Conforme Elisa Larkin Nascimento (2003), “durante quatro quintos da

existência do Brasil, os afrodescendentes constituíram a imensa maioria da

população. Em 1872 o censo registra mais de seis milhões de pretos e pardos

contra 3,8 milhões de brancos”. Escravizados, os negros foram a mão-de-obra

fundamental para produzir a riqueza no Brasil entre os séculos XV e XIX.

Somente no final do século XIX, parte da elite intelectual brasileira, adepta

dos ideais iluministas, passou a condenar o sistema colonial e o trabalho escravo

pressionada pelas demais nações européias, particularmente a Inglaterra (Santos,

2002). A preocupação principal era provar que a escravidão violava o direito natural,

uma vez que as investigações biológicas comprovavam a humanidade dos negros

africanos. Entretanto, pertencer à categoria humana não significava deter posição

igualitária. Junto com o desejo de emancipação dos escravos, estava colado o

aspecto da diferença e hierarquia entre as raças. Para as elites intelectuais

nacionais, juntamente com a questão da abolição, estava o problema da suposta

inferioridade biológica inerente à raça negra. Como conciliar a ambição de tornar o

Brasil semelhante às nações européias se o povo brasileiro constituia-se de uma

maioria de mestiços e negros?

Os discursos dos visitantes estrangeiros que circulavam no Brasil na primeira

metade do século XIX defendiam a amenidade da escravidão brasileira e a

ausência de preconceito, e reforçavam a incapacidade da população negra. Nesta

literatura, a precariedade das condições de vida dos negros devia-se a sua própria

inabilidade em progredir, o negro era culpado de sua própria desgraça. Ao estudar

os relatos de viagem de europeus que estiveram no Rio Grande do Sul no século

XIX, Maria Angélica Zubaran (1999) resgata as imagens que esses viajantes faziam

do sul do Brasil para o imaginário europeu. Dentre essas construções podemos

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destacar, além da imagem da democracia racial, representada pelas relações

“cordiais” e “harmônicas” entre senhores e escravos, uma visão paternalista da

relação senhor-escravo, em que os negros eram “representados como escravos-

criança”, dependentes dos cuidados e sob o controle dos senhores paternalistas.

Colocaram-se em circulação discursos que serviam para marcar a “distância cultural

entre o europeu e o afro-brasileiro” (ZUBARAN,1999).

De acordo com Gislene dos Santos (2002), a abolição da escravidão deu ao

negro a posse sobre si, mas eles continuaram a ser vistos como um entrave para o

progresso do país. De acordo com a autora, a partir de então a imigração passou a

ser apontada pelas elites como a solução para o país.

A preocupação com o futuro do país, com um progresso que seria bem-vindo, colocava em destaque as teses racistas de então, que, com todo vigor, tomavam as falas dos parlamentares e intelectuais brasileiros. Eles passavam a encarar o negro como signo de atraso do país e a considerar a imigração como única saída honrosa. (SANTOS, 2002, p.83).

O Desejo de Branquear o Povo Brasileiro

As teorias racistas européias do final do século XIX foram incorporadas pela

elite intelectual nacional. Membro dessa elite, o médico Nina Rodrigues defendeu a

idéia de diferenças naturais entre os grupos humanos e aplicou “a teoria da

inferioridade racial diretamente no seu trabalho de medicina-legal”(SKIDMORE,

1976, p.75). Para ele as características raciais inatas afetavam o comportamento

social e deveriam ser levadas em conta por legisladores e autoridades policiais.

Pregava ainda que a influência do negro era um dos fatores da degradação do povo

brasileiro. Inúmeros eram os homens de ciência brasileiros que, no final do século

XIX, diziam que a "mestiçagem" contaminava o povo brasileiro com características

morais e intelectuais indesejáveis. Para Nina Rodrigues “a influência do negro

constituiria sempre um dos fatores da inferioridade do povo brasileiro” (SKIDMORE,

1976).

A solução encontrada pelas elites para o dilema racial brasileiro estava na

esperança de branqueamento gradual da população. Era preciso “melhorar” a raça.

A tese do branqueamento baseava-se na presunção da superioridade branca e

preconizava que “a miscigenação não produzia inevitavelmente ‘degenerados’, mas

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uma população mestiça sadia capaz de tornar-se sempre mais branca, tanto cultural

quanto fisicamente” (SKIDMORE, 1976, p.81). A mistura dos negros com os

brancos poderia, em cinco gerações de cruzamento sucessivos com europeus,

promover o branqueamento da raça.

A questão que se colocava em fins do século XIX era, portanto, encontrar

uma forma de afastar os prejuízos que o negro trazia para o Brasil (CARNEIRO,

2002). Nesse sentido, é fácil entender as campanhas pró-imigração branca

européia que preconizavam o desenvolvimento do Brasil nos moldes das nações

européias, e, para tanto, tornou-se fundamental a importação dos europeus

nórdicos bem como de sua “cultura civilizada”.

Nos anos 1930, Gilberto Freyre em “Casagrande & Senzala”, opera um

milagre e transforma a “degradante miscigenação brasileira” numa condição positiva

e peculiar do povo brasileiro. Freyre divulgou também a imagem de uma

“escravização amena no Brasil”, em que os senhores seriam paternais e os cativos

amigos fiéis (SCHWARCZ, 1996). A tese de Freyre defendia que a mestiçagem

brasileira era um bom modelo de civilização, que deveria ser reconhecida e até

tomada como exemplo de convivência pacífica entre a diversidade, afinal, era uma

“verdadeira democracia racial”. Segundo Gislene Santos (2002), ao construir a tese

da democracia racial no Brasil, Gilberto Freyre positivou a mestiçagem:

O ponto de equilíbrio da sociedade brasileira passaria a ser o mestiço e o caráter miscigenado de nossa população é posto em foco como meio de um engrandecimento inigualável. O Brasil seria o solo propício para uma sociedade mais democrática em termos raciais, visto ser fundada sobre a mestiçagem.(SANTOS, 2002, p.150).

Ao fazer a crítica aos modelos raciais evolucionistas, com base na

abordagem culturalista, Gilberto Freyre não deixou de hierarquizar as raças. O

grupo branco continuou sendo o modelo civilizatório, seguido do índio, com seus

hábitos de higiene, e por fim do negro com sua “religiosidade lúbrica” (SCHWARCZ,

1996, p.164). Entretanto, apesar da grande difusão das idéias de Freyre, e mesmo

da adoção da miscigenação como símbolo de identidade brasileira por parte do

Estado Novo, autores da chamada Escola Paulista constataram, na década de

1950, que a alentada “democracia racial” disfarçava e dissimulava uma evidente

discriminação racial. Florestan Fernandes e seu grupo de pesquisadores defendiam

a idéia de que a sociedade brasileira não se explicava pela raça, segundo as teorias

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do século XIX, mas também não era uma cultura particular como defendiam os

culturalistas. Para Florestan Fernandes, a sociedade brasileira consistia em uma

luta de classes de total assimetria. Sob a influência das análises marxistas da

época, a pesquisa desse estudioso revelava as características discriminatórias da

sociedade brasileira. Como vimos, desde as teorias raciais do final do século XIX,

as representações sobre o negro brasileiro têm funcionado para marcá-los como

sujeito de menor valor, como cidadãos de segunda classe. O branco europeu foi

escolhido pelas elites brasileiras para substituir os libertos e livres pobres no

mercado de trabalho porque supostamente possuíam as qualidades necessárias

para fazer do Brasil um país onde a ordem e o progresso imperassem, colocando-o

no mesmo patamar das nações desenvolvidas.

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III - É BRINCANDO QUE SE DIZEM VERDADES?

Tira Cômica e HQ18 – artefatos culturais que produzem significados

É inegável a sedução que as histórias em quadrinhos exercem sobre o

público infanto-juvenil e, por que não dizer, adulto também. Seja pela combinação

de texto e desenho, seja pelos tipos de histórias narradas (aventuras, comédias,

drama, suspense, etc.). Nesse sentido, é possível afirmar que as HQs tornaram-se

poderosos instrumentos pedagógicos, artefatos culturais implicados em modos de

narrar o mundo e as coisas do mundo. As “tiras cômicas”19, objeto de investigação

desta pesquisa, estão em estrita relação com a forma de comunicação denominada

história em quadrinhos. Aliás, as histórias em quadrinhos surgiram a partir das tiras

publicadas nos jornais. Cabe então traçar algumas considerações acerca desse

gênero discursivo para melhor compreendermos o material com que estamos

lidando. É importante ressaltar que há uma considerável semelhança entre os tipos

de linguagem gráfica que podem ser, lato sensu, denominadas de “quadrinhos”, o

que gera certa dificuldade na conceituação precisa do material em estudo. Para

apresentar algumas possíveis diferenças entre os vários tipos de artefatos deste

gênero textual, amparo-me nas definições de Fernando Moretti20.

Das linguagens gráficas mais comuns no mundo dos desenhos podemos

citar os cartuns, as charges, as caricaturas, as tiras e as HQs propriamente ditas.

Conforme Fernando Moretti, a caricatura pode ter-se originado no momento em que

nossos ancestrais pré-históricos aprenderam a rabiscar nas paredes das cavernas,

isto é, quando o homem inventou um modo de “manifestar sua imaginação em

relação ao mundo que o cercava” (MORETTI). Para o autor, caricaturar consiste em

“deformar as características marcantes de uma pessoa, animal, coisa, fato, 18 Redução do termo História em Quadrinho. 19 É comum o uso dos termos “tira cômica”, “tira de humor” e “tira diária” para fazer referência às histórias em quadrinhos que circulam nos jornais. 20 Informações obtidas através do site www.ccqhumor.com.br/EXPOHUMOR.htm.

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mantendo-as próximas do original para haver referência na identificação”. Pode-se

usar a caricatura para ilustrar uma matéria ou fato determinado, porém, se esse

“fato” puder ser contado apenas com o uso da caricatura, a forma gráfica passará a

se chamar “charge” (MORETTI). Logo, pode-se dizer que a charge nasceu da

caricatura. Para melhor compreendermos o sentido de caricatura, vale citar o que

aponta Maria Angélica Zubaran. Sobre a etimologia desta palavra, a autora diz que

o termo origina-se

[...] do verbo caricare que no século XVII significa carregar, sobrecarregar, exagerar, acentuar, de forma cômica certos aspectos da pessoa retratada. Na escolha do verbo caricare existe a influência de carattere (caráter, em italiano), ou mesmo de cara (rosto em espanhol) (ZUBARAN, 2001).

Desse modo, o sentido da expressão caricatura – que, etimologicamente,

vem do italiano caricare e corresponde a ridicularizar, satirizar, criticar – antecede a

ilustração gráfica. Conforme Ana Maria Belluzzo (1992), caricatura é um modo de

representação que se define a partir do século XVII. A invenção do retrato caricato,

atribuída aos irmãos Carraci, estabelece o sentido da palavra caricatura como arte

de deformar e ridicularizar. Citando Rubio, Belluzzo afirma que:

[...] caricatura significa um método de fazer retratos, no qual procura-se manter a maior semelhança possível com a pessoa retratada, se bem que, com intenção jocosa e algumas vezes com sentido de zombaria, acentuando-se desproporcionalmente os defeitos da figura copiada, de forma que o retrato resultante pareça idêntico ao modelo, por mais que os detalhes tenham sido alterados (BELLUZZO, 1992, p.12).

Na França, a palavra correlata é charge, que igualmente quer dizer fazer

carga e até hoje é empregada para denominar o desenho humorístico (SILVEIRA,

1996, p. 24). A charge logo assumiu um papel de destaque para veicular notícias

de áreas como a política e os esportes na mídia impressa, transformando-se em

uma forma de expressão significativa que teve grande aceitação por parte do

público. Uma charge pode ter a forma gráfica de apenas um quadro, seu modo

mais comum de apresentação. Mas pode ainda ser elaborada contendo uma

seqüência de quadrinhos. É importante frisar que a característica mais importante

de uma charge é a sua necessária ligação com os costumes de uma época e

região. Deslocada para outro ambiente e contexto, “perde o impacto, pois é feita

para compreensão imediata daqueles que conhecem os símbolos e costumes

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usados na referência” (MORETTI). Desse modo podemos concluir que uma charge

tem vida útil restrita a determinado tempo e lugar, porém possui um poder de

informação que pode inclusive substituir matéria ou artigo, o que lhe confere o

status de ser um “artigo assinado” (MORETTI).

Zuenir Ventura (1999), ao falar sobre “os nossos caricaturistas” no prefácio

do livro de Pedro Corrêa do Lago “Caricaturistas Brasileiros: 1836 – 1999”, salienta

que:

[...] eles escrevem certo por linhas tortas [...] apesar da aparente deformação dos traços, a história que contam, os personagens que descrevem costumam estar mais próximos da verdade do que a História oficial. Não se deixe iludir pelas aparências: as distorções não mentem. Podem hiperbolizar, em geral acentuam ou exageram, daí a graça, mas não inventam ou criam a partir do nada, daí a eficiência do gênero. (VENTURA apud LAGO, 1999)

Entretanto, de acordo com Sandra Pesavento, é importante considerar que,

se por um lado a caricatura “é fruto de uma irreverência, de um olhar que revela

intenções, desmascara aparências, desafia a ordem estabelecida [....], por outro

lado, ela pode ser também um chamamento à ordem, um alerta sobre

comportamentos desviantes, uma exigência de normas e regras que são

desrespeitadas” podendo, inclusive, ser um poderoso instrumento na construção de

estereótipos (PESAVENTO, 1994: 17).

Segundo Mauro César Silveira (1996), que estudou a Guerra do Paraguai

através das caricaturas de sete jornais satíricos, a caricatura adquiriu a condição de

fonte documental na História Cultural e permite que seja desvelada uma instigadora

faceta da composição do imaginário social de uma época. Citando Peter Burke, o

autor destaca que o estudo do desenho de humor ganha importância por ser

justamente um olhar sobre as “histórias menores” que fazem parte da vida social, e

que, nas suas representações, vão constituindo identidades (SILVEIRA, 1994).

Carlos Rabaça e Gustavo Barbosa (1998, p.729) definem a tira como uma

“historieta ou fragmento de história em quadrinho”. Esses autores entendem que a

história em quadrinho é uma seqüência de desenhos e textos sintéticos, com ação

contínua e lógica, que possibilita uma rapidez na compreensão de sua mensagem.

Os autores definem a charge como sendo um cartum cujo objetivo é a crítica

humorística. Por sua vez, o cartum é definido como sendo uma “narrativa

humorística, expressa através da caricatura e normalmente destinada à publicação

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em jornais e revistas” (RABAÇA & BARBOSA, 1998, p.114). Joaquim da Fonseca

entende que cartum é um desenho humorístico, no qual “podem ser inseridos

elementos da história em quadrinhos, como balões de fala, subtítulos,

onomatopéias e até mesmo divisão de cenas em quadrinhos “. Ele diz ainda que o

cartum, ao contrário da charge, “é atemporal e é universal, pois não se prende

necessariamente aos acontecimentos do momento” (FONSECA, 1999, p. 26).

Sobre o cartum, Fernando Moretti aponta que também é uma forma de

expressar idéias e opiniões, porém, utiliza uma linguagem universal e não-

perecível. Em qualquer lugar do mundo o seu leitor poderá entendê-lo, ao contrário

da charge que deverá ser lida num contexto específico. O autor diz ainda que “a

seqüência narrativa do cartum está próxima à dos quadrinhos – principalmente

quando se desenrola em várias cenas –, mas isso não o torna quadrinho, pois falta-

lhe personagem fixo e elenco. Por outro lado, pode ser feito com apenas um quadro

(cena) (MORETTI). Ele pode ser utilizado para satirizar figuras históricas e também

conter caricaturas e, em jornais, pode até ser usado para ilustrar uma matéria.

Entretanto, dificilmente “ocupará o lugar de um artigo assinado como a ferina e

combativa charge” (MORETTI).

Já os quadrinhos – ou histórias em quadrinhos, ou ainda HQs – apresentam

uma seqüência ordenada que utiliza quadros no desenvolvimento da história que é

narrada através de legendas e balões. Dentre as suas características podemos citar

as seguintes: as histórias têm personagens e elenco fixos, possuem narrativa

seqüencial em quadros ordenados temporalmente, e que se desenrola através de

legendas e balões com texto associado à imagem de cada quadrinho. Ainda

conforme Fernando Moretti, “a história em quadrinhos pode se desenvolver numa

tira, numa página, ou em duas, ou em várias páginas (revista ou álbum). É óbvio

que, para uma história ser em quadrinhos, ela precisa ter no mínimo dois

quadrinhos (ou cenas)” (MORETTI).

Em relação à tira diária, Fernando Moretti destaca que ela “é uma exceção,

pois, às vezes, a história pode ser muito bem contada em um (1) só ‘quadrinho’ (o

espaço da própria tira), mas isso não a torna um cartum, apesar da proximidade”

(MORETTI). No entanto, há quem considere possível referenciar apenas um desses

gêneros textuais (charge, cartum, tira e HQ), mesmo reconhecendo que cada um

deles possua peculiaridades próprias. É o caso de Márcia Castiglio da Silveira em

sua dissertação de mestrado sobre os significados da matemática nos cartuns. A

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autora assume que utilizará o termo cartum ainda que no corpus de análise de sua

pesquisa estejam contemplados exemplos de charges, histórias em quadrinhos,

tiras e outros similares. Portanto, de modo semelhante ao uso feito pela autora

citada, e ainda que eu reconheça haver elementos próprios que diferenciam esses

tipos textuais, ressalto que utilizo o termo “tira”, enfatizando que a vejo como similar

à história em quadrinho, que, por sua vez, utiliza figuras humanas distorcidas ou

caricaturadas. Nesse sentido, amparo-me em Fernando Moretti quando diz que

uma História em Quadrinhos é ampla e maleável. Pode ser temporal, atemporal, regional, política, policial, científica, social, erótica, esportiva, esotérica, histórica, infantil, adulta, underground, terror e de humor. Utiliza figuras humanas perfeitas ou distorcidas (caricaturadas), animais humanizados, homens animalizados, bonecos, objetos, etc (MORETTI).

Novamente, para destacar as peculiaridades e semelhanças de cada gênero,

apoio-me na obra de DJota Carvalho “A Educação está no Gibi”21. Concordando

com Fernando Moretti, DJota Carvalho (2006) também aponta que os cartuns

caracterizam-se por apresentar um humor que pode ser entendido universalmente.

Eles são marcados por não estarem vinculados à época em que foram produzidos,

o que os qualifica como atemporais. Já a charge é interpretada pelo autor como um

desenho de caráter crítico exagerado, que se refere a uma situação específica no

âmbito social, cultural ou político, como um importante elemento histórico que está

atrelado a determinada época ou acontecimento. DJota classifica a charge como

um gênero textual considerado uma forma de jornalismo opinativo. Já as tiras de

quadrinhos são consideradas histórias curtas, com começo meio e fim, que

geralmente contam com personagens fixos. Usando desenho e texto, as tiras

contam histórias dos mais diversos tipos: humor, ação, heroísmos etc. Segundo

DJota Carvalho, podemos considerar as tiras como a matriz das histórias em

quadrinhos, que, por sua vez, são uma evolução das tiras. As tiras que hoje

encontramos nos jornais têm grande ênfase no humor e na crítica. Em geral elas

vêm desenhadas em um, dois ou três quadros, e exigem de seus autores um

grande poder de concisão, pois é nesse espaço que a história precisa ser iniciada e

concluída, e o leitor precisa compreendê-las individualmente, já que ele não

21Essa é uma produção destinada a professores que desejam trabalhar conteúdos curriculares através de histórias em quadrinhos ou arte seqüencial. Ver referência na bibliografia utilizada.

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necessariamente leu o jornal do dia anterior ou lerá o do dia seguinte (CARVALHO,

2006).

Ao buscar uma conceituação precisa acerca desses gêneros textuais

(cartum, charge, tiras e HQs), no sentido de sedimentar o campo em que escolhi

me movimentar, percebi a dificuldade em estabelecer “o que é exatamente” cada

um desses artefatos culturais. Parece-me então pertinente utilizar o sentido de tira e

quadrinho como anteriormente referi, pois acredito que estes dois artefatos culturais

comportam os entendimentos que mais se aproximam do corpus que contemplei

para estudar nesta pesquisa.

Sobre o nascimento da HQ há controvérsias. Conforme DJota Carvalho, há

quem afirme que ela foi criada por Ângelo Agostini em 30 de janeiro de 1869. Ao

criar “As aventuras de Nhô Quim”, com todos os elementos dos quadrinhos

modernos, Ângelo Agostini pode ter sido o primeiro a publicar este gênero textual.

Já os norte-americanos garantem que o pioneiro é um norte americano chamado

Richard Outcaut que, em 1895, publicava em um dos maiores jornais de Nova York.

A bem da verdade, se olharmos para o Oriente, veremos que os japoneses, bem

antes de brasileiros ou norte americanos, dedicavam-se aos mangás (no ocidente

HQs). No entanto, independentemente de quando e onde surgiram, é possível

afirmar que os quadrinhos fixaram-se em todo o mundo por meio das tiras de jornal.

As revistas que trariam apenas quadrinho surgiram na década de 1930, nos

Estados Unidos (CARVALHO, 2006).

No Brasil, a primeira revista em quadrinhos foi lançada em 1939 pelo

jornalista Adolfo Eizen, que também havia lançado o primeiro suplemento juvenil

nos jornais. Ainda em 1939, Roberto Marinho lançou “o Gibi”22, cujo sucesso foi

tanto que, ainda hoje, o nome da publicação é sinônimo de história em quadrinho.

Cabe destacar, conforme DJota Carvalho (2006), que, nos anos posteriores,

surgiram diversos quadrinhos independentes chamados de udigrudis, hoje

chamados fanzines. Também se destacaram os Catecismos, de Carlos Zéfiro, que

se configuravam em pequenas revistas em quadrinhos eróticas. Nos anos 60,

Maurício de Souza cria seus personagens, incluindo a Mônica que seria sua marca

registrada. Também é importante lembrar de publicações como o Pasquim, de

1969. Na década de 80, destacam-se os quadrinhos de Angeli, Laerte, Glauco e 22Originalmente a palavra “gibi” significava “moleque” e refere-se ao menininho negro símbolo da revista

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revistas como Circo, Chiclete com Banana, Udigrudi, Porrada, Nocaute, Tralha e

Animal. Nos anos 1990, destaca-se a revista Holy Avenger. Neste início dos anos

2000, a força dos gibis pode ser conferida numa visita rápida a qualquer banca de

jornal. Os números de exemplares vendidos impressionam. Maurício de Souza, no

início dos anos 2000, vendia sozinho 2,5 milhões de exemplares mensais.

Entretanto, o valor dos quadrinhos é muito maior do que seu número de vendas.

Como meio de comunicação de massa, podem ser vistos como um excelente

instrumento pedagógico operando na cultura. Não são casuais as publicações,

como o livro de DJota Carvalho, que direcionam-se a auxiliar professores

interessados em usar as HQs como instrumento didático. Também o encarte “NH

na Escola”23 número 17, de 9 de dezembro de 2006, traz o relato da experiência de

produção de fanzines utilizados para abordar os temas trabalhados nas disciplinas

de Português, História e Geografia na sala de aula em escolas dos município de

Novo Hamburgo.

É importante ressaltar que os estudos sobre a importância de artefatos

culturais como o cartum, a charge, a caricatura, a tira e os quadrinhos têm

contribuído para impedir que sejam vistos como uma “arte menor”, e para isso

muito contribuíram os estudos pioneiros de Herman Lima com sua “História da

Caricatura no Brasil”, publicada em 1963. Também as obras de Joaquim da

Fonseca, “Caricatura, a Imagem Gráfica do Humor”, e de Pedro Corrêa do Lago,

“Caricaturistas Brasileiros (1836-1999)”, ambas publicadas em 1999, permitem aos

pesquisadores uma incursão neste tema. Pedro Corrêa do Lago apresenta um

panorama da História da caricatura no Brasil a partir da análise da obra dos

quarenta maiores caricaturistas brasileiros. Seu trabalho complementa o trabalho

pioneiro de Herman Lima, porém, como Pedro Corrêa do Lago mesmo reconhece,

é preciso que novos pesquisadores dediquem-se a este tema para que se faça

justiça ao talento dos artistas brasileiros.

De acordo com Pedro Corrêa do Lago (1999), a primeira caricatura impressa

no Brasil surgiu em 1837, a partir de um desenho de Manoel de Araújo Porto

Alegre, discípulo de Debret na Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro.

Portanto, é só a partir de 1837, data da primeira caricatura de Manoel de Araújo

Porto Alegre e, sobretudo, a partir de 1844, quando o mesmo fundou a Lanterna

Mágica, que a História da caricatura passou a confundir-se com a história da 23O NH na Escola é um encarte do Jornal NH que publica matérias relacionadas à educação.

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imprensa no Brasil. A caricatura do final do século XIX fez o que a ilustração

fotográfica faz nos dias atuais, “tornou a notícia mais atraente e popularizou as

feições das principais personalidades do tempo” (LAGO, 1999, p.12). O desenho de

humor também toma outro caráter depois da Segunda Grande Guerra, quando

perde a “inocência”. Após 1950, o desenho de humor continua presente na

imprensa brasileira, e, na década de 1970, assume outra etapa de grande

importância num Brasil dominado pela ditadura militar.

Em 160 anos da evolução da caricatura no Brasil é possível destacar que a

primeira grande fase é dominada por Ângelo Agostini, na sua Revista Ilustrada no

Rio de Janeiro (últimas quatro décadas do século XIX). A segunda fase é

inaugurada por Julião Machado, que foi seguido nos 30 anos subseqüentes pelos

maiores desenhistas de humor no Brasil. No pós-guerra há influência da arte de

cartunistas americanos e franceses, bem como de desenhistas brasileiros liderados

por Millôr Fernandes. Estes artistas orientam o estilo do desenho de humor

brasileiro nos anos 1950 e 1960. A partir de 1970, a caricatura evolui sob a

influência do inglês Gerald Scarf. Nos anos seguintes, a caricatura desenvolve-se

extraordinariamente como atestam os vários salões de humor, principalmente o de

Piracicaba.

Sobre a caricatura no Rio Grande do Sul cabe citar o trabalho de Athos

Damasceno “Imprensa caricata do Rio Grande do Sul no Século XIX (1962)”, em

que o autor traz a público a história do surgimento e desenvolvimento da caricatura

no Rio Grande do Sul, bem como caracteriza cada um dos veículos impressos que

faziam a divulgação dessas caricaturas. Segundo Athos Damasceno, foi no final

dos anos 1860 que apareceram, no Rio Grande do Sul, os primeiros periódicos

humorísticos. O primeiro semanário chamava-se “A Sentinela do Sul” e circulou

pela primeira vez em sete de julho de 1867. Damasceno destaca a qualidade da

imprensa ilustrada gaúcha dizendo o seguinte:

A Sentinela do Sul e outros periódicos de igual gênero, ao tempo em

circulação na Corte e alhures, verificaríamos para orgulho nosso, que a mercadoria cá de casa não se apequenava, em qualidade, diante da que nos vinha de fora. (DAMASCENO, 1962, p.15)

Athos Damasceno (1962), ao longo de seu livro, vai citando os

hebdomadários e relatando seus modos de funcionamento. O autor também tece

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comentários e críticas sobre os conteúdos desses periódicos ilustrados que, no

século XIX, contribuíram na formação da opinião dos riograndenses.

Joaquim da Fonseca (1999, p.271) refere que “se considerarmos os

cartunistas gaúchos, o Rio Grande do Sul parece ser um Estado muito engraçado”.

Para ele, que dedica um espaço especial em seu livro para falar sobre a caricatura

dos autores riograndenses, parece estranho que os gaúchos tenham tanto

interesse pelo humor uma vez que sua imagem está ligada a um comportamento

sério e contido. Joaquim da Fonseca (1999) destaca a produção intensa de uma

imprensa ilustrada e humorística em Rio Grande e Pelotas, cidades importantes do

Estado do Rio Grande do Sul. Estas cidades, segundo Athos Damasceno (1962),

também gozaram de uma imprensa de humor ilustrado de boa qualidade. Aristeu

Lopes (2006), em um estudo comparativo entre a “Revista Ilustrada”, periódico que

circulou no Rio de Janeiro no século XIX e “A Ventarola”, periódico que circulou na

cidade de Pelotas no mesmo período, tenta averiguar as semelhanças entre

ambas, assim como a possibilidade de uma ter servido de modelo para a outra. O

poder de sedução do desenho de humor tem instigado muitos estudiosos a analisar

as dimensões sociais e culturais desse artefato comunicativo. Talvez não seja

errado afirmar que o cartum, a charge, a tira e a HQ, muito mais que divertir e

distrair, acabam traduzindo sentidos do imaginário coletivo. Tomar os desenhos de

humor como documentos de análise pode possibilitar o conhecimento da cultura de

uma época e lugar, das suas relações sociais e dos valores legitimados e

autorizados por determinada sociedade, pois “recentemente historiadores tem

considerado o humor como uma chave para compreender os códigos culturais e as

percepções do passado” (BREMMER & ROODENBURG, 2000, p.11).

Sandra Pesavento (1994) revela que, através da História Cultural, as

imagens visuais do humor tornaram-se objetos de estudos dos historiadores e

passaram a ser abordadas na sua faceta de representação do mundo social e de

elementos integrantes do imaginário coletivo. A arte do cômico recebeu estatuto de

fonte documental e, através de um olhar enviesado, permite enxergar a época em

que vivemos, reconstituindo uma comunidade de sentidos e visualizando na sátira

de ontem os dilemas da sociedade contemporânea. No caso da representação do

“outro”, particularmente dos mestiços e negros nas charges do personagem GIBA

no Jornal NH de Novo Hamburgo, podemos resgatar parte do imaginário das elites

teuto-hamburguenses sobre a diversidade étnico-racial presente naquela

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comunidade. É o humor caricato e estereotipado presente nas tiras que faz delas

um artefato cultural significativo na constituição de identidades. Com seu poder de

sedução, o humor dos traços exagerados vai inventando representações e

significados através do divertimento aparentemente inocente, ressalvados aqui o

entendimento de que a posição de onde se olha é que vai definir se a narrativa de

uma determinada tira é divertida ou não.

O Humor e o Riso das Tiras e Quadrinhos

As tiras cômicas, assim como as piadas, são uma forma de narrativa que tem

por finalidade fazer rir. Através do desenho e das falas dos personagens, a tira

veicula estratégias representacionais que, apelando para o humor e o riso, vão

estabelecendo marcas que afirmam diferenças e constituem identidades. Ao

refererir-se à dimensão cômica, inerente à caricatura, Maria Angélica Zubaran

(2000, p. 83) ressalta que o humor é um fenômeno eminentemente social, e que o

riso é um ato para ser compartilhado em grupo, revelando muitas vezes os

costumes e sentidos culturais de uma sociedade. A autora apropria-se de Bergson,

para observar que o riso implica cumplicidade com outros ridentes e que é

fundamental um certo senso de comunidade para o entendimento da graça da

piada. Na mesma direção, o historiador Elias Thomas Saliba, citando Henri

Bergson, afirma:

Para compreender o riso, impõe-se colocá-lo no seu ambiente natural, que é a sociedade; impõe-se sobretudo determinar-lhe a função útil, que é uma função social. Digamo-lo desde já: essa será a idéia diretriz de todas as nossas reflexões. O riso deve corresponder a certas exigências da vida em comum. O riso deve ter uma significação social. (BERGSON apud SALIBA 2002, p. 22)

Elias Saliba destaca ainda que a representação humorística forja suas

línguas peculiares e suas falas cômicas, que se expressam nos estereótipos

concisos, sintéticos e rapidamente inteligíveis, mas também cheios de

subentendidos, de omissões, de silêncios e de “não-ditos”. (SALIBA, 2002, p.31).

Também Sírio Possenti (1998, p. 49) afirma que o humor caracteriza-se pela

possibilidade de “permitir dizer alguma coisa mais ou menos proibida”, porém não

num sentido constestatório. Para o autor, “o humor pode ser extremamente

reacionário, quando é uma forma de manifestação de um discurso veiculador de

preconceitos”. Nesta direção, entendo que o humor das tiras do Giba, na sua

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apropriação pelo Jornal NH, divulgando estereótipos que inferiorizam os afro-

descendentes, produziram e reproduziram discursos racistas. Nesse sentido, vale

destacar o que aponta Rosa Hessel Silveira sobre os discursos veiculados nos mais

variados artefatos humorísticos. Diz a autora:

Não é difícil nos lembrarmos do caráter preconceituoso de grande parte das piadas, das situações cômicas da TV, das anedotas... Os estereótipos ali encontram seu solo fértil, sob o álibi de que não se trata de um discurso sério – estamos, apenas, “brincando”... A mulher, a loira burra, o cearense, o português, o homossexual, o judeu, o careca, a feia, o surdo, a freira, o velho, o impotente, o pouco inteligente [...] fazem-nos rir desavergonhadamente e até já houve quem dissesse que o politicamente correto é o “deserto do humor”. (SILVEIRA, 2004)

Diante do que foi exposto, acredito ser importante destacar que o texto de

humor – seja a caricatura, a charge, a tira ou o cartum –, como texto cultural, cria e

recria uma série de significados sociais através da ironia, da sátira e de outras

figuras de linguagem que vão fixando maneiras supostamente verdadeiras de

entender os objetos dos quais falam, aquilo que eles representam.

Portanto, em que pese o prazer do riso provocado pela piada contida nas

tiras ou HQs, é importante que se perceba os múltiplos efeitos que podem ser

produzidos. As representações contidas nas tiras, caricaturas e piadas podem

agradar e divertir como podem também construir imagens negativas e

estereotipadas do “outro”, ridicularizá-lo e estigmatizá-lo. Na direção do que afirma

Maria Lúcia Wortman (2002), para a literatura infanto-juvenil, entendo que os textos

de humor não contam histórias sem compromisso, mas produzem e reproduzem

valores culturais e articulam/rearticulam identidades. Ainda, as representações

produzidas nestes textos não são peculiares a este tipo de texto cultural, mas

circulam na cultura e são divulgados em muitos outros artefatos culturais, como

livros didáticos, romances, crônicas e outros.

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IV- A INVENÇÃO DO “OUTRO” NEGRO: O QUE AS TIRAS CÔMICAS ENSINAM?

Galeria de Personagens Negros das Tiras Cômicas de Farias e Paiva

Cidinha – amiga de Giba

Tubiba – amigo de Giba

Fedo – amigo de Giba

Cheiroso – amigo de Giba

Muringa – amigo de Giba

Giba – Personagem principal

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Chico Lanterna Quebrada

Mãe do Giba

Pai Gereba – Pai de Santo

Pai do Giba

Pé – de – cana

Henrique

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Estratégias discursivas de representação do “outro” afro-brasileiro nas tiras de Paiva e Farias no Jornal NH: possíveis leituras.

Piadas envolvendo temas raciais são freqüentes, revelando

que quem ri não ri à toa, mas antes revela um universo de alusões. (SCHWARCZ, 1996)

Neste capítulo, trato da análise de algumas estratégias discursivas presentes

nas tiras cômicas de quadrinhos publicadas no Jornal NH, entre os anos de 1979 e

1980. Torna-se importante esclarecer que esta interpretação é situada temporal e

socialmente e está vinculada à própria construção desse estudo, ou seja, as

discussões que seguem não partem de uma visão neutra e desinteressada, mas da

perspectiva de ser apenas mais uma das muitas versões que possivelmente

venham a ser contadas.

As tiras de Farias e Paiva, publicadas no Jornal NH, podem ser lidas a partir

de diversas perspectivas, entre as quais destaco duas possibilidades. Uma

possibilidade de leitura é interpretá-las a partir de uma política de representação

dos teuto-brasileiros que, como afirma Giralda Seyferth, “passam a agir como

grupos étnicos organizados no momento em que a urbanização e a industrialização

das cidades atraem brasileiros de outras regiões” (SEYFERTH, 1990, p. 81). De

acordo com a autora, é através dos jornais, da literatura e dos almanaques, que

surgem entre os teuto-brasileiros, que se reforçam os valores culturais desses

grupos. Nesse sentido, podemos dizer que o Jornal NH funciona como um dos

porta-vozes da etnicidade teuto-brasileira. Na mesma direção, Dagmar Meyer

(2000) argumenta que marcadores sociais tais como raça/ etnia, religião, gênero e

classe estão relacionados à construção de fronteiras para delimitar aqueles (as) que

pertencem e os que não pertencem a estes grupos, legitimando práticas de

privilegiamento, exclusão e subordinação social. Neste processo, Dagmar Meyer

destaca a importância da imprensa, assim como da Igreja e das escolas

evangélicas para a preservação das especificidades culturais que caracterizam os

teuto-brasileiros. Portanto, acredito que o Jornal NH, ao apropriar-se das “tiras” do

personagem Giba, produziu e fez circular significados sobre os afro-brasileiros

freqüentemente interpretados como próprios e “naturais” a este grupo, e, por

contraste/oposição, fortaleceu os significados atribuídos ao grupo dos teuto-

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brasileiros. Segundo Giralda Seyferth, “a formulação ideológica da comunidade

étnica teuto-brasileira partiu, pois, da própria visibilidade das diferenças sociais e

culturais em relação à sociedade brasileira mais ampla” (SEYFERTH,1994, p.15).

Também Luís Fernando Beneduzi (2004) destaca que o processo da

formação etnocêntrica do grupo teuto-brasileiro iniciou com o crescente contato

desse grupo com outros grupos de bases culturais diferentes. Conforme o autor, “a

procura por um conjunto comum de pontos de referência torna-se importante na

manutenção do sentimento de pertença a alguma coisa, a algum lugar, a algum

grupo originário” (BENEDUZI, 2004, p.12). Portanto, é no contato com outros

grupos que as especificidades étnicas adquirem visibilidade e tornam-se fontes de

mobilização, como também a idéia de pertencimento a uma identidade começa a

ser construída e solidificada. Desse modo, é possível afirmar que a interação entre

diferentes etnias possibilita a formação de uma percepção acerca da pertença, ou

da identidade grupal e passa-se a destacar a crença numa origem comum.

Giralda Seyferth (1994) destaca que a etnicidade teuto-brasileira tem sido

reafirmada de diferentes formas, destacando sempre um modo peculiar, diferente

de ser brasileiro. Desde a época da imigração alemã para o Brasil, havia a

preocupação em manter vínculos com a origem e com os “legados culturais”

trazidos de além mar, assim como a necessidade de uma constante renovação de

crenças, valores hábitos e comportamentos, condição fundamental na união e

preservação dos laços que uniam os emigrados à cultura de origem. Conforme

Dagmar Meyer (2000), foi forte a resistência da Igreja e escola teuta por ocasião da

implantação de escolas públicas nos núcleos coloniais tão logo se instaurou a

República no País. A imprensa, que apoiava essa resistência, também se

manifestava contra as intenções do governo. Nesse sentido, vale reproduzir aqui o

fragmento de um artigo destacado por Dagmar Meyer cujo título é “Suicídio”:

[...] Os pais não percebem que as escolas públicas são os mais ferozes inimigos da germanidade, que elas nos tiram a nossa língua e, com ela, a nossa força de espírito e a nossa energia, que elas fecham para as crianças as ricas fontes que, pela escolarização alemã, fluem para a cabeça e o coração, para a razão e para o sentimento (...) (Deutsche Post apud MEYER, 2000, p. 42)

Luís Henrique Sommer destaca que é possível detectar uma certa ansiedade

em preservar e fortalecer o “espírito germânico”, em manter “o conjunto de virtudes

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pretensamente herdados” daqueles “corajosos” imigrantes que vieram para o Brasil

(SOMMER, 2003 p.89). Parece que os teuto-brasileiros não queriam ser

equiparados aos “brasileiros”, afinal, no discurso imigrantista, os imigrantes tinham

vindo para o Brasil com a finalidade de melhorar a raça e civilizar o País. Se fossem

colocados no mesmo caldeirão cultural, corriam o risco de ver sua “preciosa

herança européia” desvanecer-se. Portanto, era preciso continuar estabelecendo

marcações que pudessem preservar a suposta superioridade do branco europeu.

Nesse sentido, foram colocados em discurso muitos aspectos da pretensa

identidade teuto-brasileira. Aproprio-me do trabalho de Luís Henrique Sommer

(2003) para destacar um desses discursos a fim de demonstrar o modo como os

teuto-brasileiros percebiam-se:

Os teutos têm o instinto da ordem e da prosperidade, infiltrando naqueles que o rodeiam o exemplo dignificante, buscando, como numa fonte maravilhosa, a independência no labor de cada dia, tal o beduíno que procura no Alcorão a redenção e a glória da espécie mesma. (Jornal O 5 de abril, citado por SOMMER, 2003, p.84)

Giralda Seyferth (1994), como Dagmar Meyer (2000), destaca o papel da

imprensa como importante instrumento na positivação da imagem do teuto-

brasileiro bem como da reafirmação dos valores étnicos deste grupo. Assim, é

possível estabelecer relação entre o processo de (re)afirmação do sentimento

étnico do grupo teuto com o processo discursivo que narra o “outro” negro como

sendo o seu oposto, aquele que detém a marca da negatividade em relação a um

“nós” superior. Dizendo de outro modo, é a partir das diferenças do “outro”,

especialmente da marcação dos supostos defeitos do “outro” afro-descendente, que

se dá maior visibilidade às supostas virtudes do mesmo.

Stuart Hall (1997a), ao tratar das práticas de representação da diferença

étnico-racial, aponta para a produção de um “outro racializado”. Para o autor, as

representações estereotipadas do “outro” de forma negativa produziram o que

chamamos de racismo moderno. Para Ella Shohat e Robert Stam (2006), o racismo

configura-se, historicamente, como produto e aliado do colonialismo. Dentre suas

vítimas podemos citar os negros, cujas identidades “foram forjadas no caldeirão

colonial” (SHOHAT & STAM, 2006, p.45). De acordo com os autores, foi a cultura

do colonialismo que produziu o sentimento de superioridade da Europa em relação

à periferia colonial. Desta forma, como salienta Maria Luiza Tucci Carneiro (2002),

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interessava às grandes potências européias o endosso do racismo como

justificativa para a anexação de outros territórios e a submissão e a exploração das

suas populações, apontadas como inferiores. De acordo com a autora, o orgulho de

ser alemão emerge na segunda metade do século XIX no tempo das reformas de

Bismarck, como fórmula para isolar e afastar os judeus. Os autores, Ella Shohat e

Robert Stam apropriam-se de Memmi, para entender o racismo como “uma

atribuição generalizada de valor a diferenças reais ou imaginárias para o benefício

do acusador sobre a vítima, com a finalidade de justificar o privilégio e a agressão

do primeiro” (MEMMI apud SHOHAT & STAM, 2006, p. 45). Nesse sentido, Ella

Shohat e Robert Stam salientam que o racismo moderno envolve tanto um

movimento de agressão e insulto ao acusado quanto um elogio àquele que acusa.

Os autores caracterizam o pensamento racista como: circular, essencialista, a-

histórico e metafísico, pois projeta a diferença independentemente da temporalidade

histórica “eles são todos assim, e assim continuarão sendo” (SHOHAT & STAM,

2006, p. 45). Nesse sentido, é possível entender o racismo como uma forma de

estigmatizar a diferença na intenção de justificar vantagens ou abusos de poder, ou

seja, podemos tomar o racismo como sendo a expressão ou exercício de poder de

determinado grupo étnico sobre outro. (SHOHAT & STAM, 2006).

Stuart Hall (1997b) discute a complexidade da construção da “diferença” e

aponta alguns relatos teóricos que permitem melhor compreender este processo. O

autor destaca que, na lingüística, “a ‘diferença’ é importante porque é essencial ao

significado; sem ela o significado não teria como existir” (HALL, 1997b, p.234).

Utilizando argumentos de Saussure, Stuart Hall afirma que “o negro tem significado

não por haver alguma essência na negritude, mas por podermos contrastá-lo com o

seu oposto, o branco. “O significado depende da diferença entre os opostos” (HALL,

1997b, p.234). Referenciando Bakhtin, Stuart Hall explica que “precisamos da

diferença porque só conseguimos significação através do diálogo com o ‘outro’”

(HALL, 1997a, p.235). De acordo com o autor, “ser britânico” está sempre sendo

negociado no diálogo entre esta cultura nacional e seus “outros” (HALL, 1997b, p.

236). Do relato psicanalítico, Stuart Hall aponta o argumento de Frantz Fanon

quando este afirma que “boa parte dos estereótipos e violências raciais surgiram da

recusa do ‘Outro’ branco de reconhecer ‘a partir do lugar do outro’ a pessoa negra”

(FANON apud HALL, 1997b, p238). Do enfoque teórico antropológico, Stuart Hall

destaca que, pela cultura, dá-se significado às coisas, por meio dela é possível

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atribuirmos posições específicas às coisas e aos outros conforme um sistema de

classificação (HALL, 1997b). O autor afirma ainda que:

Segundo este argumento [antropológico], então, as fronteiras simbólicas são centrais para toda a cultura. A marca da “diferença” leva-nos simbolicamente a cerrar fileiras, estear a cultura e estigmatizar e expulsar qualquer coisa que seja definida como impura, anormal. Todavia, paradoxalmente, também torna a “diferença” poderosa, estranhamente atrativa precisamente por ser proibida, um tabu, uma ameaça à ordem cultural. (HALL, 1997b, p.237).

Nesse sentido, é possível argumentar que a reprodução das tiras do

personagem Giba no Jornal NH colocaram em circulação uma série de

representações estereotipadas que marcaram o “outro” afro-brasileiro

negativamente e, por contraste e oposição, contribuíram para fortalecer e positivar

as identidades hegemônicas. Nesse sentido, entendo que os teuto-hamburguenses

apropriaram-se das tiras de Farias e Paiva para produzir os seus “outros”, para

separar e diferenciar grupos étnicos e produzir fronteiras étnico-raciais que

contribuíram para reafirmar e manter a ordem social e simbólica vigente na

comunidade local naquele momento histórico.

Outra possibilidade de leitura é interpretarmos as representações presentes

nas tiras de quadrinhos de Farias e Paiva a partir das novas relações de poder e de

produção de significados criadas com o Movimento Negro no final dos anos setenta,

particularmente, levando em consideração o fato de um dos autores, Henrique

Farias, ser negro. Nesse sentido, as tiras podem ser interpretadas a partir de uma

cultura da negritude que começava a esboçar-se no final da década de 1970 no

Brasil e que veiculou na imprensa da época, particularmente na imprensa negra,

críticas às representações hegemônicas que inferiorizavam os negros. Neste caso,

o cartunista Henrique Farias estaria utilizando-se do riso e do humor caricato para

ridicularizar estereótipos racistas que circulavam na cultura branca hegemônica. O

principal personagem dessas tiras, um menino negro chamado Giba, segundo

declararam seus criadores, Henrique Farias e Paulo Paiva, teria a função de criticar

alguns dos estereótipos recorrentes sobre o negro na cultura brasileira. De acordo

com Thomas Skidmore (1994), no final da década de 1970, surgiu um novo grupo

de militantes afro-brasileiros que contestavam a tese de Gilberto Freyre de que no

Brasil vigorava uma democracia racial. Nesta perspectiva, as tiras criadas por

Farias e Paiva podem ser interpretadas como um texto de humor crítico que, ao

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reproduzir representações estereotipadas que circulam na cultura, estaria

questionando a existência da democracia racial brasileira, em sintonia com as

direções do movimento negro nesta época.

No entanto, este estudo faz a leitura das tiras de Farias e Paiva a partir da

sua apropriação no Jornal NH e, neste sentido, as interpreta a partir do contexto de

uma política de representação local em que classificações e representações étnico-

raciais hegemônicas operaram produzindo um “outro” racializado, inferiorizado

culturalmente e socialmente em contrapartida a um “nós” constituído como superior.

Entendo a noção de apropriação de acordo com Roger Chartier (apud

ZUBARAN, 2002) que a considera fundamental no entendimento das práticas

culturais, evitando descrever visões e crenças como sendo próprias de um grupo,

mas, ao contrário, como possíveis de serem compartilhadas por diferentes grupos

sociais e com usos e significados diversos. É precisamente neste sentido dos

diferentes usos que os vários grupos sociais e étnicos podem dar às formas

culturais que entendo a apropriação das tiras de Farias e Paiva no Jornal NH.

De acordo com Stuart Hall, a inferioridade do povo negro foi construída

discursivamente através de uma política de representação colonialista preocupada

em destacar a marcação das diferenças étnico-raciais, bem como em divulgar

representações racializadas do “outro” no aparato publicitário do projeto imperialista

do século XIX (HALL, 1997b). Nesse sentido, ao analisar as tiras de Farias e Paiva

publicadas no Jornal NH nos anos de 1979 e 1980, minha intenção é apontar as

estratégias discursivas mais recorrentes na produção racializada do “outro” afro-

brasileiro. Interessa-me examinar como as tiras do personagem Giba foram

apropriadas culturalmente pelo Jornal NH, quais os significados que produziram e

fizeram circular sobre os personagens negros e como constituíram esses sujeitos e

contribuíram na produção de identidades negras, assim como serviram para

legitimar identidades étnico-raciais hegemônicas.

Representação, diferença e poder.

Conforme Stuart Hall, muitas estratégias discursivas foram típicas de um

regime racializado de representação que reduziu as culturas dos povos negros à

natureza, naturalizando as diferenças culturais. De acordo com o autor, a lógica da

naturalização era fixar a diferença e torná-la permanente:

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A lógica por detrás da naturalização é simples. Se as diferenças entre brancos e negros são “culturais”, então eles são receptivos à modificação e mudança. Se, no entanto, são naturais – como acreditavam os proprietários de escravos – então eles estão além da história, são permanentes e fixos. A “naturalização” é, portanto, uma estratégia representacional destinada a fixar a “diferença” e assim garanti-la para sempre. (HALL, 1997a, p.244-245)

Desse modo, entendo que as representações estereotipadas dos afro-

brasileiros nas tiras do personagem Giba produziram significados específicos no

contexto local de sua publicação – em Novo Hamburgo/RS –, e funcionaram tanto

como um marcador da diferença, quanto um operador identitário que, ao mesmo

tempo em que atribuiu qualidades inferiores aos afro-brasileiros inferiu aos teuto-

brasileiros marcas de superioridade.

Stuart Hall (1997), ao enfatizar que representação é a produção de sentido

através da linguagem, afirma também que o significado surge a partir dos jogos de

linguagem e dos sistemas de classificação nos quais as coisas são inseridas. Nesse

sentido, torna-se importante observar tanto a produção de significados nas

representações dos personagens negros das tiras, quanto a produção discursiva do

seu contrário, o branco teuto-brasileiro. A prática cultural de narrar o branco como o

sujeito ideal, detentor da marca da ordem, do trabalho e do progresso é um dos

pólos de uma relação de poder em que o sujeito negro aparece significado como o

seu contrário, desqualificado e inferiorizado. As relações de poder permitem que

aquele a quem é atribuída a marca da diferença seja avaliado negativamente em

relação ao não diferente (SILVA, 1999). Desse modo, torna-se possível articular

representação, diferença e poder nos estereótipos sobre os afro-brasileiros que o

Jornal NH fez circular em Novo Hamburgo.

Tornando o “outro” racializado.

Na perspectiva de Stuart Hall (1997b), entendo por representações

estereotipadas aquelas práticas significantes que são centrais para a representação

da diferença racial e que instituem, constituem o outro. Para os propósitos deste

trabalho, é pertinente e importante o entendimento das discussões que seguem,

uma vez que estarei lidando com representações que estabelecem marcas de

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diferenças étnico-raciais, as quais posicionam os sujeitos numa pretensa escala

hierárquica de valor. Portanto, concordo com Stuart Hall quando afirma que:

[...] o estereótipo faz parte da manutenção da ordem social e simbólica. Ele estabelece uma fronteira simbólica entre o “normal” e o “patológico”, o “aceitável” e o “inaceitável”, o que “pertence” e o que “não pertence” ou o “Outro”, entre “os de casa” e “os de fora” (insiders e outsiders), Nós e Eles. Ele facilita a união, o vínculo de todos nós que somos normais em uma “comunidade imaginada”; e põe num exílio simbólico todos eles – os outros – que de alguma forma são diferentes – “fora dos limites”. (HALL, 1997b, p.258)

Stuart Hall (1997b) estabelece o conceito de estereótipo a partir de três

argumentos. No primeiro, Hall considera que o estereótipo “reduz, essencializa,

naturaliza e estabelece a ‘diferença’” (HALL, 1997b, p.258). O estereótipo funciona

ainda para separar o que é considerado normal daquilo que se considera anormal,

ou seja, enquanto os “tipos” indicam os que se situam na dimensão da normalidade,

os estereótipos indicam aqueles que devem ser excluídos, colocados do outro lado

da fronteira uma vez que não condizem com o padrão da normalidade. Assim,

“outro traço do estereótipo é sua prática de ‘clausura’ e exclusão. Ele

simbolicamente estabelece limites e exclui tudo que não lhe pertence”, este,

conforme Stuart Hall (1997b, p. 258), seria o segundo argumento.

Já o terceiro argumento de Stuart Hall (1997b) está relacionado ao poder.

Isto é, o estereótipo ocorre mais freqüentemente onde existem posições desiguais

de poder. O etnocentrismo, ou a imposição de uma cultura em detrimento de outra,

faz uma classificação conforme a norma do grupo hegemônico.

Importa ainda destacar que as representações estereotipadas, ao circularem

por diferentes instâncias culturais, deixam de ser questionadas e são naturalizadas,

transformadas em “verdades”. Portanto, a partir da seleção de algumas estratégias

discursivas presentes tanto no texto verbal quanto imagético das tiras, quero

salientar os modos como estas características atribuídas aos afro-brasileiros, que

aparentemente são fixas, foram produzidas em discursos culturalmente

impregnados. Como afirma Maria Lúcia Wortmann, “tais representações têm sido

difundidas, naturalizadas e, também cunhadas, participando/atuando na construção

discursiva da identidade social desse grupo de sujeitos” (WORTMANN, 2002, p.

14). Nesse sentido, conforme sinaliza esta autora, acredito que os textos das

histórias em quadrinhos ensinaram aos/às leitores/as como estes sujeitos são, a

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partir dos significados que produziram e fizeram circular. Ou seja, importa destacar

a leitura das tiras como pedagogias culturais, como artefatos culturais que

ensinaram “coisas”. Interessa-me, com este estudo, apontar a produtividade

pedagógica das tiras de Farias e Paiva.

A seguir discutirei algumas das estratégias discursivas recorrentes nas tiras

cômicas, tais como: a afirmação de uma ausência, a animalização e infantilização

do outro racializado, a culpabilização da vítima, a passividade “natural” dos negros e

a demonização do outro racializado.

Cabe indicar que é na direção de Maria Lúcia Wortmann (2005) que tomo os

discursos como práticas que formam os objetos dos quais falam. De acordo com a

apropriação que a autora faz de Stuart Hall, “os discursos agrupam idéias, imagens

e práticas, que propiciam formas de se falar, de se conhecer e de se produzir

condutas associadas a tópicos particulares, a atividades sociais, bem como a

modos de se localizar os sujeitos nas sociedades” (WORTMANN, 2005, p. 50).

Neste sentido, me alinho com esta autora no uso mais geral do papel que o

discurso tem na cultura e busco apontar algumas estratégias discursivas

recorrentes nas tiras analisadas e que também estão presentes em outros artefatos

culturais.

Estratégia Discursiva I – A Afirmação de Uma Ausência

De acordo com Ella Shohat e Robert Stam (2006), o discurso imperial e

racista é marcado por uma série de operações de caráter tropológico. Os tropos

funcionam no sentido de qualificar os africanos e seus descendentes como sendo

dotados de uma série de ausências. De acordo com os autores, a afirmação de uma

ausência pode ser entendida também como a projeção de uma raça como

deficiente em relação às normas européias, isto é, os “outros” racializados são

representados como um grupo sem ordem, inteligência, decoro sexual, civilização

ou mesmo história” (SHOHAT e STAM, 2006, p.52). Esta estratégia discursiva

funciona no sentido de qualificar os africanos e/ou seus descendentes como sendo

constituídos de uma multiplicidade de ausências, desqualificando-os e

inferiorizando-os. Nas tiras selecionadas e apresentadas abaixo os personagens

negros aparecem marcados por essas ausências, desqualificados, não apenas

econômica, social e moralmente, como também lhes são atribuídas características

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animalescas que os constituem como privados de humanidade. Entre as ausências

atribuídas aos personagens negros nas tiras destaca-se: a falta de comida, a falta

de humanidade, a falta de asseio, a falta de educação e decoro.

Falta comida – Falta humanidade

Na tira abaixo (fig. 1), tanto o texto imagético quanto o verbal remetem à

situação de “falta”. Nas imagens, os traços do rosto da professora negra e os do

rosto de Giba associa-os aos macacos, animaliza-os e os priva de humanidade. No

diálogo entre a professora e seu aluno Giba, a comida aparece como algo que está

fora de alcance, algo “abstrato”, que ele não pode tocar ou pegar. A resposta de

Giba surpreende a professora que fica de boca aberta o que dá o tom cômico da

tira.

Figura 1 – Jornal NH, 12/05/1980.

Na tira que segue (fig. 2), o diálogo travado entre Giba e sua mãe surpreende

porque parece que não há nada de errado no fato do menino achar uma mosca na

sua sopa, ele parece estar acostumado a alimentar-se delas. O negro, através do

personagem Giba, é representado comendo “coisas” que os humanos “normais”

não comem e que está associada à sujeira. Indiretamente, o discurso da ausência

imputa ao negro dois atributos, ele não tem higiene e não é humano. A

representação gráfica da mãe de Giba a associa à imagem da empregada

doméstica, em frente ao fogão, com lenço na cabeça, gorda, com pés grandes e

desproporcionais como a empregada negra do Walt Disney nas histórias de Tom e

Jerry. Ou ainda, representada como as Mammies do cinema norte-americano que,

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como aponta Stuart Hall, configuram “o protótipo da empregada doméstica,

geralmente grande, gorda, mandona e birrenta [...], com sua clara devoção aos

brancos e sua subserviência inquestionável no trabalho” (HALL, 1997b, p.251).

Figura 2 – Jornal NH, 29/04/1980.

A fala de Giba presente na tira abaixo (fig. 3) nomeia a mesa farta e a

imagem seguinte surpreende com a mesa vazia. No “português” de Giba a palavra

farta está significando o seu contrário, a ausência de comida. Ao “falar errado”, o

negro é representado como sem instrução, falta-lhe o conhecimento correto da

língua portuguesa. Por outro lado a representação gráfica da mãe é de alguém

impotente, sem poder diante da miséria. Essa forma de estereotipação funciona

para fixar a carência e a falta como algo natural na vida dos negros.

Figura 3 – Jornal NH, 16/06/1980.

Conforme podemos observar na tira a seguir (fig. 4), para Giba a greve dos

lixeiros é boa e deve continuar porque ele, diferente dos “outros”, alimenta-se dos

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restos e sobras que vão parar no lixo. Os atributos associados a ele e a seu amigo,

o personagem Tubiba, que, pela expressão do rosto, mostra-se resignado, marca-

os como diferentes.

Figura 4 – Jornal NH, 31/03/1980.

Na tira abaixo (fig. 5), o tema é novamente a falta de comida, desta vez

associada a um espaço específico, o morro, a favela, que aparece produzida como

um território do “outro” negro. A imagem gráfica do repórter branco bem vestido

contrasta e estabelece fronteiras com a representação de Giba, descalço, de

calção, camiseta e faminto. Por outro lado, a imagem gráfica de Giba comendo o

microfone o reduz ao instinto de sobrevivência e o distancia do conhecimento da

tecnologia do branco.

Figura 5 – Jornal NH 05/11/1979.

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Falta asseio

A falta de asseio é outra das ausências recorrentes na representação

estereotipada das tiras de Giba. Na tira abaixo (fig.6), o atributo da sujeira

(des)qualifica o personagem Giba. Esta estratégia discursiva de representar os afro-

descendentes como sujos está também presente em outros artefatos culturais.

Gládis Kaercher (2002), ao analisar obras da literatura infanto-juvenil, destacou

várias estratégias de representação estereotipadas do negro, entre elas, “uma

narrativa naturalista [...] que, sustentada pelo conceito de raça, imputa ao/à negro/a

um componente animalizante: ele fede, mama de pé (como alguns quadrúpedes),

tem carapinha...” (KAERCHER, 2002, p.99). Florestan Fernandes (1972), ao

estudar as representações sobre o negro na tradição oral, aponta que, nas

representações populares, o negro aparece como detentor de “catinga”

(FERNANDES, 1972, p. 207). Patrícia de Santana Pinho (2004) salienta que

imagens negativas têm sido associadas historicamente ao corpo negro,

representado associado à feiúra, à sujeira e ao mau-cheiro. De acordo com a

autora, o “o cheiro do corpo escravo tornou-se uma desculpa a mais para classificá-

lo como estando mais próximo dos animais do que aos homens. A palavra catinga,

de origem Tupi, era o termo usado para descrever o odor que seria característico

dos negros, dos índios e dos animais” (PINHO, 2004, p. 113).

Figura 6 – Jornal NH 16/11/1979.

A tira abaixo (fig. 7) posiciona o negro Giba como um indivíduo que come

micróbios, faltam-lhe cuidados de higiene na sua alimentação, na mesma direção

da tira que representa o Giba reclamando mais uma mosca na sua sopa (fig.2).

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Figura 7 – Jornal NH, 04/02/1980.

Falta Educação/ Decoro

Na tira abaixo (fig. 8), o diálogo entre a diretora da escola e a mãe de Giba

produz o personagem negro como travesso. A forma com que a mãe condena a

“travessura” de Giba é ambígua, ao mesmo tempo em que reprova, parece aceitar

que seu filho use o banheiro das meninas. Neste sentido, o diálogo constrói a mãe

de Giba como diferente das outras mães, seus padrões disciplinares são diferentes

das mães “normais”.

Figura 8 – Jornal NH, 29/02/1980.

Na tira seguinte (fig. 9), o diálogo e a representação gráfica complementam-

se na produção da falta de conduta de Giba e na falta de capacidade de sua mãe,

dona Conceição, para educá-lo. A mãe não se indigna com a falta de compostura

de seu filho e inclusive organiza a fila para atender às reclamações contra ele que já

somam 214. Que mãe é essa que naturaliza o mau comportamento do filho?

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Figura 9 – Jornal NH 19/12/1979.

Logo abaixo, tanto na primeira (fig. 10), quanto na segunda tira (fig. 11), joga-

se com o duplo sentido de palavras relacionadas ao futebol, esfera importante de

práticas negras. Na primeira tira é o duplo sentido da palavra ofensivo que faz a

graça da piada e produz Giba como um menino sem decoro, que diz palavrões, que

ofende verbalmente as pessoas. Já na tira seguinte, joga-se com o duplo significado

da palavra milésimo para mostrar que Giba é o maior, não nos gols, mas nos

palavrões, no que é saudado por seus amigos, todos com traços negros, que

parecem compartilhar com ele o gosto por palavrões.

Figura 10 – Jornal NH 21/09/1979.

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Figura 11 – Jornal NH 08/10/1979.

Falta honestidade

No diálogo entre os amigos de Giba e sua mãe, presente na figura 12, o

personagem Giba é produzido como mentiroso. Ele engana seus amigos e é

representado como alguém em que não se pode confiar. O texto contido na tira

ensina a desconfiar do personagem negro.

Figura 12 – Jornal NH, 29/05/1980.

Na figura 13, o texto escrito e as imagens complementam-se para mostrar

que o próprio Giba julga-se mentiroso e que assume esse comportamento sem

problemas. A tira parece ensinar que para o personagem negro mentir não é

vergonhoso.

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Figura 13 – Jornal NH 29/08/1979.

Estratégia Discursiva II – A Animalização do Outro Racializado

Na figura abaixo (fig.14), o anúncio de lançamento das tiras do personagem

Giba no Jornal NH, em julho de 1979, a representação gráfica do personagem o

constrói semelhante a um macaco. A cabeça grande e arredondada, orelhas

também arredondadas, olhos esbugalhados, lábios ou “beiços” grossos e

proeminentes fazem alusão aos símios. Semelhante à estratégia discursiva da falta

de humanidade percebidas na figura 1, e também referida no estudo de Gládis

Kaercher, essa representação imagética animalizante está presente na maioria dos

quadrinhos publicados. Como personagem principal desse conjunto de histórias em

quadrinhos ou tiras, a imagem do personagem Giba é constante, bem como a de

outros personagens negros que também aparecem desenhados com traços

caracteristicamente como sendo de animais.

Figura 14 – Jornal NH 11/07/1979.

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De acordo com Ella Shohat e Robert Stam, o tropo que animaliza seres

humanos foi gestado no período colonial e aparece associado à cor da pele que

atribuía aos sujeitos mais escuros a proximidade aos animais e aos mais claros as

qualidades intelectuais. Os autores destacam que o colonizado era representado

como besta selvagem e sublinham que se tratava de uma estratégia de

naturalização das diferenças étnico-raciais:

O processo de animalização faz parte do mecanismo mais amplo e difuso da naturalização, ou seja, a redução do elemento cultural ao biológico, associando assim o colonizado a fatores vegetativos e instintivos em vez de associá-lo a aspectos culturais e intelectuais. (SHOHAT & STAM, 2006, p.2001)

Maria Angélica Zubaran (1999) aponta a presença da estratégia

representacional da animalização dos negros nos relatos de viajantes estrangeiros

no Rio Grande do Sul, que, no século XIX, representaram os escravos como

animais, como bestas de carga, marcando assim a supremacia do branco europeu

e o seu distanciamento cultural do outro afro-brasileiro (ZUBARAN, 1999, p. 22).

Essa mesma estratégia discursiva da (des)humanização do “outro” negro

aparece de forma implícita, no diálogo que o personagem Giba tem com a sua mãe,

na tira abaixo (fig.15).

Figura 15 – Jornal NH, 09/08/1979. Quadro 1: Mãe, é verdade que tem gente que não tem cobertor? Quadro 2: Se gente não tem cobertor eu não sei, mas nós não temos.

De acordo com os historiadores Mary Del Priore e Renato Pinto Venâncio, foi

a experiência da escravidão africana no Novo Mundo, quando os negros africanos

foram violentamente capturados e apartados das suas comunidades na África, que

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converteu os negros em mercadorias, coisificando-os e reificando-os como efeito da

sociedade escravista (Del PRIORE & VENÂNCIO, 2004, p. 38). É, portanto, a partir

da experiência da escravidão moderna que este tipo de imagem dos negros como

bestas selvagens tem circulado nos mais variados artefatos culturais e tem sido

apropriado e utilizado conforme as situações circunstanciais de poder.

Estratégia Discursiva III – A Infantilização do Outro Racializado

De acordo com Ella Shohat e Robert Stam, muitos teóricos racistas “tentaram

‘provar’ que negros adultos eram, anatômica e intelectualmente, idênticos às

crianças brancas” (SHOHAT & STAM, 2006, p. 203). Essa representação constituía

o afro-brasileiro como uma criança, que necessitava ser tutelado por um adulto

branco. A qualidade de “garotinho” atribuída ao personagem Giba no texto do

anúncio abaixo, remete a estratégia discursiva de infantilização do negro acionada

na construção do caráter supostamente infantil dos afro-brasileiros desde os

remotos tempos da escravidão, corporificando seu estágio primitivo no

desenvolvimento humano.

Conforme Stuart Hall (1997b), durante a escravidão no sul dos Estados

Unidos, os donos de escravos exerciam sua autoridade tratando os negros como

crianças, subtraindo todos os seus atributos de responsabilidade e autoridade.

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(HALL, 1997b). Referindo-se ao contexto norte-americano, Stuart Hall relata que,

ainda no século XIX,

[...] em oposição às representações estereotipadas da diferença racializada, os abolicionistas adotaram um slogan diferente sobre o escravo negro [...] enfatizando, não a diferença, mas a humanidade em comum, [porém, apesar da mudança], os negros ainda [eram] vistos como infantis, simples e dependentes, embora capazes e prestes (após um aprendizado paternalista) a algo mais parecido com a igualdade com os brancos. (HALL, 1997b, p 249).

Maria Angélica Zubaran destaca também, no relato de viajantes que

percorreram o Rio Grande do Sul, a representação do escravo infantilizado,

representado como criança, imprevisível e pouco confiável. (ZUBARAN, 1999, p.

22).

Estratégia Discursiva IV – A Culpabilização da Vítima A estratégia de culpabilização da vítima foi apontada por Ella Shohat e

Robert Stam (2006) como mais uma das estratégias do racismo moderno. Entre

essas estratégias de culpabilização da vítima uma das mais recorrentes nas tiras do

personagem Giba é sua produção como vadio e incapaz para o trabalho. Hall

(1997b) lembra que a “preguiça inata” dos negros foi um dos principais temas da

representação da diferença racial no período da escravidão no sul dos Estados

Unidos. Também nas campanhas imigrantistas no Brasil eram freqüentes as

manifestações discursivas que associavam os imigrantes alemães e seus

descendentes ao trabalho disciplinado e ao desenvolvimento material,

representando-os como povo ordeiro, decidido e empreendedor enquanto os

libertos eram vistos como inaptos para o trabalho. Também George Reid Andrews

(1998) destacou que a doutrina da democracia racial isentava o Estado de qualquer

responsabilidade pela situação da população negra e culpava os próprios negros

afro-brasileiros pela sua miséria.

Se os negros fracassaram em sua ascensão na sociedade brasileira, evidentemente isso foi por sua própria culpa, pois essa sociedade não reprimiu nem obstruiu de modo algum o seu progresso. A realidade continuada da pobreza e da marginalização dos negros não era vista como uma refutação da idéia da democracia racial, mas sim como uma confirmação da preguiça, ignorância, estupidez, incapacidade, o que impedia os negros de aproveitarem as oportunidades a eles oferecidas pela sociedade brasileira – em suma, um restabelecimento da ideologia da vadiagem (ANDREWS, 1998, p. 316).

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Para o historiador George Reid Andrews (1998) o estereótipo do negro

preguiçoso foi construído pelas elites brancas no século XIX e ficou conhecido

como a ideologia da vadiagem. De acordo com o autor, os fazendeiros acreditavam

que os negros não trabalhariam sem o emprego da força (ANDREWS, 1998).

Influenciados pelo racismo científico, que “legitimava” a inferioridade dos negros, os

fazendeiros acolhiam como verdade o suposto caráter natural indolente e

irresponsável do negro. Tal pressuposto reforçava a ”ideologia da vadiagem” que

preconizava a irreparável preguiça dos negros escravos que, junto com

trabalhadores livres, eram tidos como “vadios, imprestáveis e vagabundos, que só

trabalhavam sob a ameaça de extrema força” (ANDREWS, 1998, p.85).

Em seu livro, “A invenção do ser negro”, Gislene dos Santos (2002) destaca

como vários representantes da elite nacional, e também estrangeiros ilustres,

durante o século XIX defenderam a idéia da preguiça inata dos afro-brasileiros.

Louis Couty, médico francês que veio para o Brasil lecionar na Escola Politécnica

em 1874, defensor da imigração européia, não vislumbrava a utilidade da

transformação do negro escravo em homem livre útil para o trabalho. Nas palavras

desse autor “o negro, no Brasil, não quer senão uma facilidade, senão um direito

que é o de não fazer nada [...] o negro escravo é sempre um grande preguiçoso e

esta preguiça faz o insucesso de todas as relações individuais e sociais” (COUTY

apud SANTOS, 2002, p.95). Também José Bonifácio, importante político do império,

afirmava que a lavoura do Brasil era produto de “negros boçais e preguiçosos”.

(SANTOS, 2002).

Para o historiador Lúcio Kowarick, o que afastava o liberto e o livre pobre do

trabalho eram as relações de produção marcadas pelos rigores e horrores do

regime escravista que produziram uma aversão ao trabalho manual, particularmente

na lavoura. De acordo com o autor:

[...] nada mais natural que a população livre encarasse o trabalho como alternativa mais degradada da existência. Os livres transformaram-se em ralé, antes de se submeterem às modalidades de exploração, cujos paradigmas estavam alicerçados nos grilhões e chibatas das senzalas. Antes a sobrevivência autônoma, numa espécie de economia natural de subsistência, do que a sujeição a regras de obediência e disciplina, nas quais prevalece um arbítrio, que está contaminado pelo uso e abuso inerente ao cativeiro. (KOWARICK, 1994, p.55)

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Cabe destacar ainda, de acordo com a historiadora Célia Azevedo, que o

discurso dos imigrantistas relacionava a ociosidade dos libertos à sua suposta

inferioridade racial. No discurso do imigrantistas, a mão-de-obra dos trabalhadores

nacionais era descartada pelos proprietários devido a suas reivindicações por

“altos” salários (AZEVEDO, 1987). Ainda segundo a autora, os adeptos do

imigrantismo consideravam urgente a implementação da vinda dos estrangeiros,

pois era preciso aumentar a oferta de mão-de-obra não só para baratear o seu

custo, como também, para expandir a indústria e diversificar a produção

(AZEVEDO, 1987). Célia Azevedo ressalta também que o discurso imigrantista

defendia ainda que “era preciso tratar bem os imigrantes, porque somente assim

este elemento de progresso e prosperidade permaneceria aqui, misturando-se a

uma população desmoralizada e incapaz por si só de se levantar e desenvolver”

(AZEVEDO, 1987, p. 140).

Na figura abaixo (fig. 16), no diálogo com o amigo, Giba é indiretamente

representado como avesso ao trabalho e o trabalho aparece associado à doença.

Reforça-se assim a imagem do negro como contrário à disciplina do trabalho

regular. Também a representação gráfica do personagem Giba, deitado, encostado

em uma pedra reforça a noção do afro-brasileiro preguiçoso.

Figura 16 – Jornal NH, 25/03/1980.

Se compararmos as representações contidas nas tiras acima – que se

referem ao negro – com as narrativas que circularam e circulam na cidade de Novo

Hamburgo – que se referem aos descendentes de imigrantes alemães –

perceberemos o contraste e a oposição dos significados. Enquanto o negro carrega

a marca da negatividade, dos “defeitos” sociais, atribui-se ao branco, descendente

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de europeus, qualidades valorizadas socialmente. O fato é que a ideologia da

vadiagem, gestada no século XIX, constituiu uma poderosa estratégia discursiva

que contribuiu para uma construção negativa e estereotipada da identidade do afro-

brasileiro.

Estratégia Discursiva V – A Passividade “natural” dos negros

Esta estratégia discursiva representa o afro-brasileiro como conformado e

resignado com suas dificuldades econômicas e sociais e sem iniciativa para mudar

seu destino. As imagens de passividade dos personagens negros referenciadas nas

figuras abaixo nos remetem aos discursos que circularam desde a época da

escravidão e por ocasião das campanhas imigrantistas no final do século XIX.

Conforme afirma Gislene dos Santos, naquela época, intelectuais advertiam sobre o

suposto caráter primitivo e infantil do negro, enfatizando que ele só seria útil pela

sua qualidade de querer imitar o seu senhor, como mero espectador das

realizações do branco (SANTOS, 2002).

Observa-se que as representações articuladas nas imagens e nos textos das

tiras abaixo (figuras 17 e 18) constroem, através dos personagens, os sujeitos

negros como passivos e conformados com as condições miseráveis de sua

existência. Luciana Maria Crestani (2003), ao trabalhar as representações sobre o

negro nos livros didáticos24, salientou a presença do discurso da passividade dos

afro-brasileiros em muitos dos textos analisados. A autora destaca nestes textos

didáticos a estratégia de designar aos sujeitos negros papéis passivos que se

contrapõem aos sujeitos ativos das representações dos brancos. Luciana Maria

Crestani salienta que:

[...] os sujeitos negros, na maioria dos casos, mostram-se passivos nas narrativas, sem realizar nenhuma transformação e, pior do que isso, sem expressar nenhum desejo, nenhuma intenção de transformar qualquer situação [...], o negro, além de ser representado geralmente como um sujeito em disjunção com objetos-valores, aparece ainda como acomodado, conformado com sua situação de privação, ou, mesmo, impotente diante dela. (CRESTANI, 2003, p.84)

24 Luciana Maria Crestani analisou textos verbais em cinco coleções de livros didáticos de língua portuguesa, destinados a alunos de 5ª a 8ª série.

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A autora demonstra que as representações dos afro-brasileiros como

passivos e conformados estão presentes nos livros didáticos reconhecidos pelo

Ministério da Educação e Cultura. Esses livros são escolhidos de acordo com

critérios estabelecidos pelo PNLD25, e, neste sentido, estariam isentos de

preconceitos.

Nas tiras do Giba, é freqüente a representação estereotipada do personagem

como acomodado e passivo frente à situação de pobreza. Nas tiras, os

personagens negros são constantemente associados à pobreza, quase

naturalizando, “essencializando” esta condição como intrínseca aos negros. Nas

figuras 17 e 18, o texto escrito constrói personagens negros que parecem

conformados com sua condição de miséria.

Figura 17 – Jornal NH, 16/05/1980.

Figura 18 – Jornal NH, 18/09/1979.

25 Programa Nacional do Livro Didático.

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É possível perceber que estas construções discursivas do “outro” afro-

brasileiro como passivo e sem iniciativa, contrapõem-se aos atributos dos teuto-

brasileiros narrados como industriosos, incansáveis e empreendedores. Conforme

destaquei anteriormente, Luís Henrique Sommer (2003) mostra este tipo de

construção discursiva sobre os teuto-brasileiros no jornal o 5 de Abril26.

Em contraste às representações do teuto-brasileiro, as imagens e os textos

escritos das tiras acima e abaixo (figuras 17, 18 e 19) enfatizam as estratégias

discursivas que representam o negro como um sujeito apático frente à miséria.

Figura 19 – Jornal NH 23/08/1979.

Também nos diálogos das tiras abaixo (figuras 20 e 21), os personagens

negros parecem aceitar passivamente a sua condição de pobreza. A miséria e os

“baixos e mais baixos” aparecem como condições “naturais” dos personagens

negros. Novamente a representação estereotipada essencializa os atributos do

“outro” e, parecem ensinar que os negros não se interessam em mudar as

condições de pobreza em que vivem, contrastando com a representação da

“vontade férrea” dos imigrantes alemães e seus descendentes.

26 Vide citação página 62.

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Figura 20 – Jornal NH, 15/01/1980.

Figura 21 – Jornal NH, 24/01/1980.

Estratégia discursiva VI – A demonização do outro racializado

De acordo com Silvia Duschatzky e Carlos Skliar (2001), entre as estratégias

de regulação da alteridade que a Modernidade construiu, podemos citar a

demonização do “outro” que posiciona a diferença através de uma lógica binária,

sujeita a estereótipos utilizados para assegurar e garantir identidades homogêneas

que, por uma regulação constante e um controle eficiente define quem são e como

são os “outros”. Nesta ótica binária, a estratégia discursiva de demonização do

outro constrói a diferença através da oposição entre natureza e cultura,

naturalizando e essencializando o “outro” negro. Segundo os autores “o outro

diferente funciona como depositário de todos os males, como portador das falhas

sociais. Este tipo de pensamento supõe que a pobreza é do pobre; a deficiência do

deficiente; e a exclusão do excluído” (DUSCHATZKY & SKLIAR, 2001, p. 124).

Entre as falhas sociais e culturais que demonizam o “outro” negro nas tiras cômicas

destacamos as seguintes representações: o negro como transgressor, a família

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negra desestruturada, o negro como portador de vícios, o negro como

hipersexualizado, o negro como malandro, a cultura negra como primitiva e bárbara.

O negro como transgressor

Uma das estratégias discursivas de demonização recorrente nas tiras do

Giba é a descrição dos personagens negros como contraventores que transgridem

regras sociais e leis para realizar “atos criminosos”. As figuras 22, 23, 24 e 25

representam os personagens negros como sujeitos perigosos, envolvidos com a

criminalidade e a violência. As representações contidas nas tiras parecem ensinar

que os negros ameaçam a segurança dos brancos e que a condição de

contraventor é intrínseca ao grupo negro, como está explícito na frase da figura 22

abaixo: “Ele não é o único que faz isso”. Este tipo de construção reforça a noção

amplamente divulgada de que o “negro é sempre suspeito” e precisa ser vigiado e

controlado pelos brancos.

Figura 22 – Jornal NH, 27/12/1979.

Na tira abaixo (fig. 23), joga-se com o duplo significado da palavra bolsa para

produzir a representação estereotipada do “negro ladrão”. O diálogo do primeiro

quadro dá a idéia de que há um projeto de vida para os personagens negros, porém

o fechamento da narrativa culmina com os meninos correndo ou “fugindo”, após

terem “roubado” a bolsa da terceira personagem que, note-se, é uma mulher

branca.

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Figura 23 – Jornal NH, 14/05/1980.

A estratégia discursiva presente na tira abaixo (fig. 24) apresenta certa

ambigüidade. É possível perceber que Tubiba e Muringa, que também são

personagens negros, vêem-se em um dilema de consciência, ambos têm dúvidas

quanto a pegar ou não o dinheiro que, note-se, o branco perdeu. De outro lado,

Giba, que é o personagem principal, ao contrário de Tubiba e Muringa, é encorajado

por sua consciência (representada apenas por diabinhos) a pegar o dinheiro, sem

dilemas sobre a sua possível ação.

Figura 24 – Jornal NH, 17/09/1979.

Entre as estratégias de demonização do “outro” negro, o estereótipo do

“negro ladrão” é usado recorrentemente nas tiras. Até mesmo quando dorme, o

personagem Giba, no lugar de contar ovelhas, sonha que as rouba (novamente de

um sujeito branco) sugerindo que roubar é algo constante em seus pensamentos.

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Figura 25 – Jornal NH, 05/09/1979.

Como salienta Lilia Schwarcz (1987) no seu estudo sobre a imagem dos

negros na imprensa paulista nas últimas décadas do século XIX, o negro era

representado como violento, perigoso, ameaçador da segurança e dos bens dos

brancos. A autora relata que a maioria das notícias sobre os negros os associava à

violência. Segundo a autora, com a proximidade da abolição, essas imagens

contribuíam para marcar fronteiras de pertencimento identitário e “o negro

‘alienado’, ‘bêbado’, ‘imoral’ e de ‘práticas bárbaras’ tornava-se cada vez mais

freqüente nas diferentes seções dos jornais” (SCHWARCZ, 1987, p.224).

Família negra desorganizada

A estratégia discursiva de demonização do outro racializado está presente

também nas representações da família negra desorganizada, reproduzindo

estereótipos construídos desde a época da escravidão. O francês Louis Couty,

quando no Brasil no século XIX, costumava dizer que ”nas senzalas não há

famílias, apenas ninhadas”, que “as negras não sabiam o número de seus filhos” e

não se inquietavam para saber onde seus filhos andavam, “esses infelizes vendem

suas crianças por algumas tirinhas de pano espalhafatoso” (apud SLENES, 1999,

p.135, 137). De acordo com o historiador norte-americano Robert Slenes (1999), os

viajantes estrangeiros que escreveram sobre o Brasil no século XIX “criaram a

imagem da devassidão que marcou até recentemente o comportamento sexual e a

vida familiar dos escravos na maioria dos livros de história” (SLENES, 1999, p. 136).

Segundo Robert Slenes, preconceitos raciais e culturais aliaram-se, no século XIX,

para descrever que “a família dos africanos e de seus descendentes eram

totalmente diferentes daquelas dos europeus ou dos brasileiros de extração

européia” (SLENES, 1999, p. 139). Nas representações de família do Giba,

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geralmente a figura do pai está ausente, mas, quando ele é citado ou representado,

é descrito negativamente, como presidiário ou desempregado. A família negra é

representada como socialmente desestruturada.

Figura 26 – Jornal NH, 28/12/1979.

Figura 27 – Jornal NH, 05/04/1980.

Negro como propenso aos vícios

Nas tiras que seguem (figuras 28, 29, 30 e 31), a imagem que predomina é a

que atribui aos personagens negros os vícios do fumo e do álcool e, desta forma,

fixa-os como “intrinsicamente” propensos aos vícios do fumo e da embriaguês. Na

primeira tira (fig. 28), a imagem da criança negra que aparece fumando constrói a

ligação entre o negro e o fumo já precocemente. Nas tiras seguintes (fig. 29, 30 e

31), é constante a presença de um homem negro bêbado. Há até mesmo um

personagem cujo nome “pé-de-cana” contribui para constituí-lo como um alcoólatra.

Demoniza-se o comportamento do personagem negro constituindo-o como viciado.

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Figura 28 – Jornal NH, 06/12/1979.

Figura 29 – Jornal NH, 06/05/1980.

Figura 30 – Jornal NH, 26/02/1980.

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Figura 31 – Jornal NH, 14/04/1980.

Penso ser importante apontar uma certa ambigüidade na representação de

Giba na figura 28, quando sua expressão facial parece condenar o comportamento

do moleque. Já nas figuras 29 e 31, a expressão facial de Giba revela uma certa

resignação com a situação do excessivo consumo de álcool.

O negro como hipersexualizado

A estratégia de representar negros como hipersexualizados e erotizados foi

destacada por Stuart Hall ao discutir os modos como a diferença é marcada através

de estereótipos raciais relacionados aos corpos negros. Citando o escritor francês

negro Frantz Fanon, Stuart Hall destaca que “é uma fantasia difundida [...] que fixa

o homem negro no nível dos órgãos genitais” (HALL, 1997b, p. 230). O autor

argumenta que parece que os brancos têm uma obsessão pela sexualidade dos

negros. A difusão dos estereótipos que marcam uma potencialidade excessiva dos

corpos negros faz parte de um processo representacional estrategicamente criado

para fixar a diferença. Este é um processo iniciado no confronto da civilização

européia com a civilização africana, quando começa a ser gestada a idéia do negro

associado ao primitivo, dominado pelos instintos, erotizado e novamente

animalizado, como já foi apontado anteriormente. Atribuir a qualidade de

hipersexualizado aos negros configura-se em um dos modos de operação do

estereótipo que funciona para fazer a partição do que é normal e do que é

patológico.

Na tira abaixo (fig. 32), a ausência do texto escrito não faz falta na

representação estereotipada de Giba como excessivamente erotizado. Mais uma

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vez trata-se de uma mulher branca que está sendo ameaçada pelo personagem

negro.

Figura 32 – Jornal NH, 13/08/1979. Na tira abaixo (fig.33), o sonho de Giba aparece numa seqüência que

inicialmente representa-o como um herói que salva a mocinha do macaco para, em

seguida, construí-lo como excessivamente sexualizado e mais uma vez associado

aos instintos animais, ele substitui o macaco em cena.

Figura 33 – Jornal NH, 27/09/1979. As representações contidas nas tiras que seguem (figuras 34, 35, 36,37 e 38)

constroem o personagem Giba como um menino que se vale dos mais variados

artifícios para abusar das meninas, tanto das meninas brancas como das negras,

que ora fogem ora enfrentam as investidas do menino(s) negro(s). O que as tiras

parecem ensinar é que os meninos negros são desrespeitosos e abusam da

ingenuidade das meninas.

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Figura 34 – Jornal NH, 10/10/1979.

Figura 35 – Jornal NH, 19/11/1979.

Figura 36 – Jornal NH, 21/05/1980.

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Figura 37 – Jornal NH, 29/01/1980.

Figura 38 – Jornal NH, 08/04/1980. A tira abaixo (fig.39) novamente atribui a Giba um comportamento

desrespeitoso no trato com as meninas e fixa esse atributo como sendo intrínseco

ao menino negro, na medida em que impede que a expectativa da Cidinha se

concretize. Afinal, ela achava que ele estava deixando de ser sem-vergonha,

porém, no último quadro, no desfecho da história, Giba não apenas continuou “sem-

vergonha” como ainda trouxe outros meninos para olhar debaixo da saia da

Cidinha.

Figura 39 – Jornal NH, 21/12/1979.

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Na tira abaixo (fig.40), o diálogo entre o menino nordestino e Giba explora o

duplo sentido atribuído à expressão “carne-de-sol” para se referir às mulheres que

tomam sol na praia e produzir a comicidade da tira. Por outro lado, a imagem visual

representa o personagem “boquiaberto” com o olhar fixo nas mulheres, mais uma

vez construindo-o como excessivamente erotizado.

Figura 40 – Jornal NH, 17/01/1980.

A cultura negra como primitiva e bárbara

As práticas religiosas negras foram freqüentemente representadas como

bárbaras, como feitiçaria, como mandinga, coisa de gente ignorante e até mesmo

vistas como pacto com o diabo. As manifestações da religiosidade negra, ou de

matriz afro-brasileira eram consideradas “casos de polícia” no final do século XIX e,

após o Código Penal de 1890, foram perseguidas sob a acusação de

curandeirismo. Só recentemente os cultos afro saíram da ilegalidade. A antropóloga

Letícia Vidor de Souza Reis (1996), em seu estudo sobre a reinvenção da

identidade do negro em terras brasileiras, destaca que a religião afro foi uma das

formas de resistência cultural dos escravos, na tentativa de reconstruírem e

afirmarem sua autonomia cultural. (REIS, 1996, p. 34). De acordo com a autora, o

candomblé, símbolo étnico e um dos elementos fortes da presença africana no

Brasil, reconhecido como patrimônio da cultura afro-brasileira, é fruto da

organização e luta dos negros por autonomia, uma mostra de que não ficaram

passivos frente à condição de escravos que lhes foi imposta. O antropólogo Vagner

Gonçalves da Silva (1996) também aponta que, até o começo do século XX, o

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candomblé foi proibido, pois era visto como uma prática de magia “negra”, feitiçaria

e coisa de ignorantes. Nas representações estereotipadas das tiras do Giba, as

práticas religiosas negras são significadas como superstição e a religiosidade de

matriz africana é fixada como desqualificada e bárbara.

Nas figuras 41, 42 e 43, os textos escritos e as imagens complementam-se

para produzir a representação estereotipada dos personagens e das práticas

culturais negras. Os personagens são representados como supersticiosos, com

raminhos de arruda atrás da orelha (fig 41) e amuletos da sorte (fig. 43). Por outro

lado, a imagem do “pai Gereba” (fig.41) fumando cachimbo e com uma garrafa ao

seu lado, reduz as religiões afro-brasileiras a uns poucos traços, que as distancia

das tradições religiosas européias e as remete à noção de práticas primitivas e

inferiores, como outros autores assinalaram em outros artefatos culturais. Cabe

destacar que, quando o personagem Giba pergunta sobre os livros que ensinam a

“bater carteira”, sugere-se que ele, diferentemente dos outros, só quer aprender o

que é errado.

Figura 41 – Jornal NH, 09/04/1980.

Na figura 42, O texto escrito explora o duplo sentido da palavra guia para

ridicularizar a crença na possessão espiritual que integra os rituais dos cultos afros

e mais uma vez reduz essas práticas religiosas a poucos traços, neste caso, às

velas acesas e aos colares no pescoço.

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Figura 42 – Jornal NH, 21/11/1979.

Figura 43 – Jornal NH, 21/11/1980.

De acordo com Lília Schwarcz, no período pós-abolição foram acionadas

estratégias de desqualificação dos cultos afros, cujos líderes religiosos passaram a

ser chamados pelas elites brancas de feiticeiros e suas práticas representadas

como bárbaras. (SCHWARCZ, 1987). Marisa Costa lembra que, na modernidade,

as culturas não européias foram freqüentemente vistas como obstáculo ao

desenvolvimento e ao progresso e passaram a ser consideradas anti-modernas.

(COSTA, 2004, p. 395)

O negro é um sambista nato O samba aparece nas tiras como a música “natural” e “inerente” aos

personagens negros, aliás, nenhum outro gênero musical aparece representado

neste artefato cultural. Hermano Vianna, no livro “O Mistério do Samba” (2004),

traça a trajetória desse ritmo e demonstra como, de uma prática maldita, o samba

transformou-se num símbolo nacional. Também a antropóloga Letícia Vidor de

Sousa Reis (1996) estuda o samba para mostrar a metamorfose deste símbolo

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étnico em símbolo nacional. No caso das tiras do Giba, os personagens cantam e

dançam sambas bem conhecidos e que aparecem associados ao morro e à cadeia.

Na figura 44, o ritmo do samba está representado de forma estereotipada, como

excessivamente barulhento, e atrapalhando o sossego da vizinhança.

Figura 44 – Jornal NH, 04/10/1979. Na tira abaixo (fig.45), os amigos aparecem cantando e tocando outro samba

famoso, mas os quadros seguintes revelam que, assim como na letra do samba,

eles também foram parar na cadeia. Cabe destacar que, no Brasil, a cultura negra

e, particularmente o samba, foi considerado caso de polícia e que muitos sambistas

foram presos e tratados como marginais. Como afirma o antropólogo Peter Fry,

antes de atingir o gosto musical da elite brasileira, o samba “produzido e consumido

pelo povo do morro era severamente reprimido pela polícia e forçado a se esconder

no candomblé” (PETER FRY apud VIANNA, 2004). Podemos apontar que esta

mesma representação estereotipada dos sambistas está presente em alguns filmes

da filmografia nacional.

Figura 45 – Jornal NH, 31/08/1979.

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Na tira que segue (fig.46), o personagem negro adulto parece não ter

controle sobre seu corpo ao ouvir a batucada do samba. Ele implora para as

crianças pararem de tocar, pois não resiste ao som da batucada, reforçando o

estereótipo do “negro que tem o samba no sangue”.

Figura 46 – Jornal NH, 10/04/1980. As tiras seguintes (figuras 47 e 48) fazem referência à escola. Porém a

escola associada aos personagens negros não é a escola convencional, que possui

autoridade para ensinar os conhecimentos válidos, legitimados pela cultura

entendida como patrimônio universal da humanidade. A escola que os personagens

negros freqüentam nas tiras de Farias e Paiva é a escola de samba, que ensina a

batucar e onde “o pessoal quebra pau”, numa típica alusão de que são comuns

brigas nesses locais de convívio. Na tira seguinte, figura 48, no primeiro quadro, a

mãe de Giba, numa atitude aparentemente disciplinar, ameaça castigar o filho se

ele “matar aula”, porém o quadro seguinte mostra que a escola é a escola de samba

onde se aprende a batucar, o que dá o tom da comicidade. Texto e ilustração

complementam-se para constituir a escola e a educação dos negros como diferente

da escola e da educação oficial. Nesta lógica discursiva, a única escola que o negro

freqüenta é a escola de samba, onde o pessoal só aprende batucada.

Figura 47 – Jornal NH, 12/03/1980.

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Figura 48 – Jornal NH, 21/03/1980. O negro como malandro Nas tiras abaixo, Giba é representado associado a um atributo que foi

construído como pertencendo à identidade nacional, a malandragem, naturalizada

como “qualidade” inerente ao brasileiro. Quando o Jornal NH anuncia o lançamento

do Giba apresenta-o como detentor do “mais fino espírito da malandragem

brasileira” naturalizando esse atributo como sendo próprio dos afro-brasileiros. Vale

destacar o que salienta André Dantas (2003), quando refere que a imagem do

malandro “constitui-se na própria representação do desprestígio social do trabalho

em função da forte marca de um passado escravocrata de quase quatro séculos”

(DANTAS, 2003, p. 01). O malandro não gosta de trabalhar e, como representado

nas tiras abaixo (figuras 49, 50 e 51), vive às custas do trabalho dos outros.

Figura 49 – Jornal NH, 11/10/1979.

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Figura 50 – Jornal NH, 11/01/1980.

Figura 51 – Jornal NH, 31/01/1980.

É importante destacar que, no conjunto das tiras cômicas de Farias e Paiva,

o personagem Tubiba aparece na posição daquele que está sempre caindo em

desgraça devido às artimanhas do personagem Giba. Cabe ressaltar que Tubiba,

na sua representação gráfica, é um menino todo arrumadinho que usa gravata,

chapéu e calça sapatos. A imagem de Tubiba como um menino negro que

aparentemente possui melhores condições econômicas que Giba, representado

sempre descalço, de calções e camiseta, produz uma certa nuance na

representação do “outro” negro, abrindo um espaço para possíveis diferenças

dentro da comunidade negra.

Enfatizo que as análises desenvolvidas neste capítulo apresentam apenas

uma entre as múltiplas leituras possíveis. Na verdade, o artefato cultural aqui

estudado propicia variadas interpretações, particularmente, por se tratarem de

textos humorísticos marcados pela ambigüidade dos significados. Nesta leitura,

apontei algumas estratégias discursivas que produziram os sujeitos negros como

diferentes e inferiorizados. Essa representação racializada do outro foi construída

através de múltiplas estratégias discursivas. Entre elas podemos citar: a

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submissão/ passividade do outro, a infantilização e animalização do outro, o outro

como fonte de todo mal, o outro demonizado e a estratégia da afirmação de uma

ausência. Como argumentou Hall (1997b), estas representações racializadas do

“outro” negro fazem parte de discursos que se vêm perpetuando desde a época em

que o branco europeu encontrou e subjugou as populações africanas para obter

vantagens materiais. Como salienta Hall (1997b), as representações estereotipadas

do “outro” negro a partir de uma ótica binária e excludente fixaram e naturalizaram

atributos construídos culturalmente e contribuíram de forma relacional tanto para a

construção inferiorizada da identidade negra como para a afirmação e

fortalecimento da identidade das elites brancas.

Vale destacar a positividade pedagógica das tiras cômicas do personagem

Giba no que se refere aos efeitos de verdade que produzem, descrevendo e

marcando o outro negro como inferior e ensinando aos /às leitores/as destas tiras

como estes sujeitos são, a partir de um “leque” de representações que produzem e

reproduzem significados sociais sobre os afro-brasileiros. O humor é utilizado nas

tiras do Giba como uma ferramenta que, de certa forma, “ameniza” preconceitos e

estereótipos raciais. É possível afirmar que as representações estereotipadas

presentes nas tiras veiculadas no Jornal NH operaram no sentido de divulgar

atributos depreciativos que constituem e fixam o “outro” negro como diferente e

desqualificado social e culturalmente, posicionando-os como inferiores em relação

aos teuto-hamburguenses.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste trabalho, analisei as representações racializadas do “outro” negro nas

tiras cômicas do Giba publicadas no Jornal NH entre os anos de 1979 e 1980.

Apontei as estratégias discursivas e representações mais recorrentes que

produziram e descreveram os personagens negros neste texto cultural. É

importante ressaltar novamente que esta é uma leitura interessada, que não se

pretende denuncista, mas que busca apontar o caráter construcionista de supostas

verdades veiculadas nas tiras cômicas do Giba e também difundidas e

naturalizadas em outros artefatos culturais. Parto do pressuposto teórico dos

Estudos Culturais, particularmente dos estudos sobre a construção das identidades

e das diferenças, centrando-me nos textos de Stuart Hall (1997, 1997a, 1997b), Ella

Shohat e Robert Stam (2006) e Sílvia Duschatzky e Carlos Skliar (2001). Estes

teóricos salientam a importância de nos interrogarmos acerca das representações

do “outro” na modernidade e apontam uma série de estratégias discursivas de

fixação e controle da alteridade. Entre estas várias estratégias discursivas, aponto

seis que foram as mais recorrentes nas tiras cômicas do personagem Giba – a

afirmação de uma ausência, a animalização do outro, a infantilização do outro, a

culpabilização da vítima, a passividade “natural” dos negros e a demonização do

outro racializado.

Através da estratégia discursiva da afirmação de uma ausência, imagens e

textos escritos complementaram-se para marcar o outro negro como despossuído

tanto econômica como culturalmente. Falta alimentação, moradia adequada, asseio,

educação e decoro aos personagens negros das tiras do Giba. Na lógica binária de

construção da diferença, os personagens negros carecem de uma série de atributos

positivos que, por oposição, são aqueles associados aos brancos europeus e seus

descendentes. Nesta mesma direção, a estratégia discursiva da animalização

marca os corpos dos personagens negros associando-os aos animais, à natureza,

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em oposição à cultura construída como atributo dos brancos europeus. Por outro

lado, aponto a presença da estratégia discursiva da infantilização no tratamento dos

personagens negros como moleques, descrevendo-os como crianças e produzindo-

os como dependes do branco e incapazes de tomar decisões.

Umas das estratégias discursivas mais recorrentes nas tiras do Giba é a

culpabilização da vítima, que funciona no sentido de atribuir ao próprio negro a

culpa pelos seus problemas. Nesta estratégia discursiva, a representação mais

recorrente é descrição dos personagens negros como vadios e sem aptidão para o

trabalho. A culpa pela miséria negra é atribuída ao próprio negro que é

representado como “naturalmente”, “intrinsecamente” preguiçoso. Por outro lado, a

estratégia que naturaliza os negros como sujeitos passivos, os constitui como

apáticos e conformados com a miséria e as dificuldades, como sujeitos que não se

esforçam para melhorar suas condições de vida. Outra estratégia discursiva

recorrente é a da demonização do “outro” racializado, que é nomeado, instituído

como “naturalmente” transgressor das regras sociais e das leis, como ameaçador

da segurança e da moral dos brancos, como propenso aos vícios do fumo e da

embriaguês, como o malandro que vive às custas do trabalho dos outros e cuja

família é socialmente desestruturada e a cultura é nomeada como bárbara e

primitiva.

Por outro lado, é fundamental enfatizar o potencial pedagógico das tiras

cômicas na constituição de identidades e subjetividades. A partir das leituras de

Henry Giroux e Peter McLaren (1995) e Shirley Steinberg (1997) foi possível ler as

tiras do Giba na sua produtividade pedagógica buscando entender o que elas

ensinavam aos leitores/as sobre os afro-descendentes e sobre os teuto-

hamburguenses. De acordo com estes autores, são muitos e variados os lugares

onde podem ocorrer situações de ensino e aprendizagem, temos que levar em

conta que a produção e circulação de saberes ultrapassam os modos educativos

convencionais, isto é, não se pode mais afirmar que a escola seja o único espaço

onde se desenvolve a pedagogia, onde podem ocorrer aprendizagens.

Vale salientar que as representações estereotipadas dos personagens

negros nas tiras cômicas do Giba criaram, recriaram e inventaram significados

sobre o que é ser negro atribuindo a esses personagens um amplo repertório de

atributos negativos e depreciativos que, além de mostrá-los inferiores por seus

caracteres externos os construíram como deficitários em relação a uma série de

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atributos, entre eles a capacidade de raciocínio, a aptidão para o trabalho e a

humanidade, numa cruel tática de culpabilização da vítima. Neste sentido, a

apropriação dessas tiras no Jornal NH se apresenta como uma estratégia identitária

conservadora, dedicada a promover uma visão demonizada do “outro” negro que se

constitui em contraposição a uma outra identidade regrada e normal; a saber,

aquela dos imigrantes teutos em Novo Hamburgo. Como salienta Marisa Costa

(2004), estas representações estreotipadas do “outro” possuem acentuado caráter

pedagógico dirigido à “coordenação das condutas sociais dessas pessoas com

vistas a correspondência ou encaixe adequados aos desígnios das sociedades

neoliberais. Nelas o sucesso ou o fracasso são vistos como resultantes do esforço

individual, ou da falta deste, isentando-se de culpa a conjuntura social, política e

econômica” (COSTA, 2004, p. 394). As representações estereotipadas das tiras do

Giba, articulando discurso verbal e ilustrações, parecem contribuir para a

constituição de discursos excludentes e racistas e para a formação de estigmas e

baixa auto-estima entre os negros. A mídia, e, no caso deste estudo, as tiras

cômicas publicadas no jornal, respondem por uma parcela considerável de

ensinamentos que, através de discursos sedutores, acabam enquadrando condutas

e, neste caso, ensinando os jovens negros a auto-rejeitarem a sua própria

identidade negra a fim de negar o estereótipo.

Portanto, fica um alerta para nós educadoras e educadores que também

somos interpelados pelas supostas “verdades” inventadas pelos artefatos culturais,

como nas tiras cômicas e histórias em quadrinhos que circulam em nosso cotidiano.

Como diz Gládis Kaercher (2002, p. 100), é necessário “indagar sobre estas

representações e desarranjar os fios que as formaram...” ou ainda, na direção

apontada por Marisa Costa (2004), é preciso encher o mundo de histórias que falem

sobre as diferenças de forma positiva e que descrevam infinitas posições e

possibilidades de ser e estar no mundo. Precisamos ter sempre em mente que é na

cultura que se negociam esses modos de ser e estar no mundo, e, como elementos

desse processo, talvez possamos participar como narradores na política cultural de

representação, dentro de uma perspectiva que valorize as diferenças e possibilite a

afirmação das identidades negadas, silenciadas e demonizadas.

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ANEXOS

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ANEXO 1- A Turma 76 e a Ata de Resultados Finais.

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ANEXO 2 – Piadas e provérbios racistas Negro parado é suspeito. Negro correndo é ladrão. ****************************************************************************** Negro se não suja na entrada, suja na saída. ****************************************************************************** _Negro não presta para nada. Nem para fazer pneu. _Errado, existem muitos negro bons. _Com estes podemos fazer pneu radial. ****************************************************************************** Quando negro toma laranjada? Quando sai briga na feira. ****************************************************************************** Qual a semelhança entre um carro com pneu furado e uma crioula grávida? Os dois estão esperando macaco. ******************************************************************************

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ANEXO 3

2 Jornal NH, 06/06/1980.

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ANEXO 4

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