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1 REPRESENTAÇÕES DO COTIDIANO ESCOLAR: UMA LEITURA DA MEMÓRIA POR MEIO DA IMAGEM (1890/1940) Maria de Fatima da Silva Costa Garcia de Mattos Centro Universitário Moura Lacerda/Ribeirão Preto (SP) [email protected] Palavras Chave: Cultura Material, Imagem e Representação Nas últimas décadas do século XIX, as antigas cidades brasileiras, principalmente, as que viviam em função da economia cafeeira, apontavam para o estrangulamento da sua estrutura urbana, dadas as novas exigências econômicas do momento. As cidades almejavam o crescimento, mesmo considerando, o medo pela miserabilidade e o desmoronamento da ordem, que o fato traria. Contudo, foram os seus marcos referenciais que ao mesmo tempo em que identificavam, estabeleciam também, suas diferenças em relação às demais cidades. Nesse contexto, a educação exerceu um papel fundamental no projeto de modernidade republicana. A regeneração do indivíduo e da sociedade, que os colocaria nos trilhos do progresso e da civilização, trazia em seu bojo o ensino como parte do projeto da Nação, e a materialidade da sua identificação, o edifício escolar, era o lócus do saber centrado na competência e respeito ao professor, cuja imagem era a representação do importante papel de agente transformador da Nação. A visibilidade desse projeto prospectava o imaginário fin-du-siécle. Edificar era perpetuar a memória e o poder por meio da linguagem das pedras, no ideário republicano. Os edifícios escolares abrigaram relações de espaço-tempo-lugar, guardando ainda hoje, uma forma de representação permeada por lembranças, de grupos que ali contidos, ao preencherem o vazio do espaço, permitem-nos, “identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler”, (CHARTIER, 2002, p.17). Bencostta (2005, p.97) comenta que, a construção de edifícios específicos para os grupos escolares foi uma preocupação das administrações de estado que tinham no produto urbano o espaço privilegiado para a sua edificação, em especial, nas capitais e cidades economicamente prósperas. A localização dos edifícios escolares deveria funcionar como ponto de destaque da cena urbana, de modo a se tornar visível, como

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REPRESENTAÇÕES DO COTIDIANO ESCOLAR: UMA LEITURA DA MEMÓRIA POR MEIO DA IMAGEM (1890/1940)

Maria de Fatima da Silva Costa Garcia de Mattos Centro Universitário Moura Lacerda/Ribeirão Preto (SP)

[email protected]

Palavras Chave: Cultura Material, Imagem e Representação

Nas últimas décadas do século XIX, as antigas cidades brasileiras,

principalmente, as que viviam em função da economia cafeeira, apontavam para o

estrangulamento da sua estrutura urbana, dadas as novas exigências econômicas do

momento. As cidades almejavam o crescimento, mesmo considerando, o medo pela

miserabilidade e o desmoronamento da ordem, que o fato traria. Contudo, foram os seus

marcos referenciais que ao mesmo tempo em que identificavam, estabeleciam também,

suas diferenças em relação às demais cidades.

Nesse contexto, a educação exerceu um papel fundamental no projeto de

modernidade republicana. A regeneração do indivíduo e da sociedade, que os colocaria

nos trilhos do progresso e da civilização, trazia em seu bojo o ensino como parte do

projeto da Nação, e a materialidade da sua identificação, o edifício escolar, era o lócus

do saber centrado na competência e respeito ao professor, cuja imagem era a

representação do importante papel de agente transformador da Nação.

A visibilidade desse projeto prospectava o imaginário fin-du-siécle. Edificar era

perpetuar a memória e o poder por meio da linguagem das pedras, no ideário

republicano. Os edifícios escolares abrigaram relações de espaço-tempo-lugar,

guardando ainda hoje, uma forma de representação permeada por lembranças, de grupos

que ali contidos, ao preencherem o vazio do espaço, permitem-nos, “identificar o modo

como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é

construída, pensada, dada a ler”, (CHARTIER, 2002, p.17).

Bencostta (2005, p.97) comenta que, a construção de edifícios específicos para

os grupos escolares foi uma preocupação das administrações de estado que tinham no

produto urbano o espaço privilegiado para a sua edificação, em especial, nas capitais e

cidades economicamente prósperas. A localização dos edifícios escolares deveria

funcionar como ponto de destaque da cena urbana, de modo a se tornar visível, como

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signo de um ideal republicano, uma gramática discursiva arquitetônica enaltecedora do

novo regime.

A escola assim se apresentava, como o lugar privilegiado para o entendimento

do esforço civilizador da sociedade brasileira, tornando-se também um espaço

fundamental para a compreensão dos sinais de competência que nele a sociedade

deveria reconhecer, a importância da instrução escolar e a outorga do diploma,

colocados num patamar de hierarquia social responsável pela construção da elite

educacional.

Essa produção de memória apresentada por meio do documento escrito, visual,

identificado ou vestido (uniformes), desenhado ou construído (mobiliário), constituem-

se em fonte de leitura para esta pesquisa. Tais fontes nos levam, ainda, a exercitar o

olhar e os sentidos para além do que se vê, lendo nas suas entrelinhas e ouvindo nos

relatos os chamados silenciosos dos espaços lacunares.

Especificamente, investigamos, dois projetos escolares: o primeiro, uma escola

confessional católica, de ordem feminina, modelo de costumes e formação educacional;

o segundo, uma escola pública tradicional, dentro do mesmo modelo e rigor de época,

cuja semelhança de projeto arquitetônico entre ambas, nos instigou a pesquisar seus

hábitos e mentalidades, no cotidiano da comunidade onde se encontram, apontando para

uma interessante cultura material escolar no interior do estado de São Paulo.

Metodologicamente, foram a leitura dos documentos escolares, plantas, livros de

registros, fotos de época e comemorações cívicas, sobretudo, o comportamento

feminino de época, que nos permitiu o esboço de um imaginário que viria a atender, à

guisa de conclusão, esta pesquisa. Ao tratar da questão espaço escolar, temos que nos haver com dois estados da história (ou do social): a história, no seu estado objetivado, quer dizer, a história que se acumulou ao longo do tempo nas coisas, máquinas, edifícios, monumentos, livros, teorias, costumes, direito, etc. e a história no seu estado incorporado, que se tornou habitus. (BOURDIEU, 1989, p.82)

A importância do ambiente escolar pode ser conferida numa experiência simples

e corriqueira: quando levamos uma criança pela primeira vez à escola, ela normalmente

reage de forma imediata, demonstrando o impacto agradável ou não, que o "espaço" lhe

causou, a estrutura, as cores, enfim, o conjunto físico do colégio.

Já na alta Idade Média, quando surge a escola cenobial, ocorreram mudanças

importantes na área pedagógica: o aprimoramento de conteúdos como canto, música,

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cálculo e gramática. Manacorda descreve a experiência de um monge que relembra a

primeira impressão de quando chegou na escola de Walfried Strabo, abade de

Reichenau, no segundo decênio do século IX: “Eu era totalmente ignorante e fiquei

muito maravilhado quando vi os grandes edifícios do convento, nos quais deveria

morar daquele momento em diante...” (MANACORDA, 2000, p.134).

Foucault também se refere a isso:

[...] a arquitetura não é mais simplesmente para ser vista (fausto dos palácios), ou para vigiar o espaço exterior (geometria das fortalezas), mas para permitir um controle interior, articulado e detalhado — para tornar mais visíveis os que nela se encontram; mais geralmente, a de uma arquitetura que seria um operador para a transformação dos indivíduos: agir sobre aquele que se abriga, dar domínio sobre seu comportamento, reconduzir até eles os efeitos do poder, oferecê-losa um conhecimento, modificá-los. As pedras podem tornar dócil e conhecível. O velho esquema simples do encarceramento e do fechamento — do muro espesso, da porta sólida que impedem de entrar ou de sair — começa a ser substituído pelo cálculo das aberturas, dos cheios e dos vazios, das passagens e das transparências... (FOUCAULT, 1997, p.44)

O próprio edifício da escola devia ser um aparelho de vigiar, como compara o

autor em Vigiar e punir, entre escolas, hospitais e prisões. O quartos eram repartidos ao

longo de um corredor como uma série de pequenas celas; a intervalos regulares,

encontrava-se um alojamento oficial, de maneira que cada dezena de alunos tivesse um oficial à direita e à esquerda [os alunos aí ficavam trancados durante toda a noite; e Páris insistira para que fosse envidraçada] a parede de cada quarto do lado do corredor desde a altura de apoio até um ou dois pés do teto. Além disso a vista dessas vidraças só pode ser agradável, ousamos dizer que é útil sob vários pontos de vista, sem falar das razões de disciplinas que podem determinar essa disposição. (FOUCAULT, 1997, p.145)

A interferência do poder nas instituições educacionais aparece de modo mais

nítido, segundo os autores, quando surgem as escolas jesuítas, transformadoras no

processo de educação, principalmente ao separar os colégios de formação para médicos,

engenheiros, arquitetos e artes e os dos nobres. Varela e Úria comentam a

transformação da sociedade soberana para a disciplinar, quando novas instituições

foram montadas. Eles vão mais adiante: A formação das crianças para a qual contribuíram de forma especial os colégios, teria como contrapartida a submissão dos corpos e a educação das vontades em que tanto insistem os educadores religiosos. Com razão afirma Michael Foucault, que a cantilena humanista consiste em fazer-nos crer que somos mais livres quando submetidos estamos: de paixões à razão, submetimento do corpo ao espírito, submetimento da liberdade à obediência, submetimento da consciência ao confessor e

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diretor espiritual, dos filhos aos pais, da mulher ao marido, e dos súditos ao monarca. (VARELA E ÚRIA, 1992, p.85)

Com o passar dos anos, novos tipos de prédios foram construídos e ocorreram

outras transformações. A vigia se tornou mais difícil e admitia-se que talvez a escola

não devesse funcionar como maquinaria escolar. Foucault faz uma interessante

abordagem ao mostrar o novo olhar do arquiteto durante as mudanças havidas no

século XVIII por pressão não só do poder, mas da sociedade como um todo, que seria o

panóptico: O Panóptico de Bentham é a figura arquitetural dessa composição. O princípio é conhecido: na periferia uma construção em anel; no centro, uma torre; esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é dividida em celas, cada uma atravessando toda a espessura da construção; elas têm duas janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra, que dá para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado. Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada sela trancar um louco, um doente, um condenado, um operário ou um escolar. Pelo efeito da contraluz, pode-se perceber da torre, recortando-se exatamente sobre a claridade, as pequenas silhuetas cativas nas celas da periferia. Tantas jaulas, tantos pequenos teatros, em que cada ator está sozinho, perfeitamente individualizado e constantemente visível. O dispositivo panóptico organiza unidades espaciais que permitem ver sem parar e reconhecer imediatamente. Em suma, o princípio da masmorra é invertido; ou antes, de suas três funções — trancar, privar de luz e esconder — só se conserva a primeira e suprimem-se as outras duas. A plena luz e o olhar de um vigia captam melhor que a sombra, que finalmente protegia. A visibilidade é uma armadilha. (FOUCAULT, 1997, p.165)

Este conceito — ordem sem repressão — pode ser verificado nas construções

escolares atuais, mas o ser vigiado é um dos questionamentos frequentes dos alunos.

No início da urbanização, as escolas estaduais paulistas eram na sua maioria

prédios de dois andares, aproveitando o máximo de espaço possível, com somente uma

sala para administração (posicionada estrategicamente), e ali ficavam os professores.

Outra curiosidade era a separação por sexo: de um lado, meninos; de outro, meninas.

Somente depois de 1900 é que surgem espaços para as bibliotecas.

Normalmente, o partido arquitetônico era caracterizado pela existência de um

pátio interno, em torno do qual se desenvolvia a circulação coberta que permite a

interligação com as salas. Com plantas simétricas, muitas vezes, assim reservava uma

das alas à seção masculina e outra à feminina. Bem no eixo simétrico está localizado o

acesso central ao prédio, que dá para um vestíbulo ou portaria, antes de se atingir a

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galeria de circulação. Escolano (apud Bencosta, 2005) mostrou bem como esta

espacialização disciplinar compõem a arquitetura escolar ao observar, dentre outros

detalhes como a divisão das salas de aula por idade e sexo e a disposição das carteiras

enquanto elementos da planificação panóptica do espaço. “ Tais dispositivos são além

do mais, coerentes com as teorias arquitetônicas modernas que sustentam, que as

pessoas e os objetos se relacionam precisamente através de sua separação no e pelo

espaço” (Escolano, 1993-4, p. 101, apud BENCOSTA, 2005, p. 112)

Assim, encontramos escolas desenhadas em formato retangular com pátios

centrais, fechados, com salas por todos os lados, ou em formato de U, destinando

espaços para a administração ou diretoria em locais estratégicos, “para vigiar”. Até

1920, com frequência, todas tinham portões altos, salas de aula com carteiras

enfileiradas, com pisos de madeira, cores pálidas, porém, com fachadas

arquitetonicamente elaboradas, razão da restauração de várias delas no final dos anos

noventa.

Essa elaboração, muitas vezes oriunda de determinações prescritas pela

legislação do estado, como encontramos em vários deles no país, eram sintomas da

construção de um espaço simbólico e funcional, que na Europa já não era nenhuma

novidade desde 1868, na França da Terceira República, pela ação de Jules Ferry, que

proclamava ser inadmissível uma sala de aula de uma instituição pública, sem material,

mobiliário e distribuição do espaço, de forma específica, atendendo à medidas entre

carteiras, circulação e piso paquet de madeira resistente.

As duas escolas que cotejamos neste artigo, possuem uma distribuição de

espaços semelhantes, em dois pavimentos, cuja distribuição funcional marcou o

imaginário dos estudantes que por lá passaram. Jaboticabalenses ilustres, hoje políticos,

literatos, professores eméritos, juristas, que o País conheceu e que nas primeiras décadas

do século XX, formavam uma elite educacional que experenciava esse espaço

disciplinador das escolas, difundindo práticas higienistas além de ensinamentos sobre a

moral e os bons costumes.

Na década de 1920, afirma Marques (1994, p.101), não só aperfeiçoavam o

espírito como também conformavam o corpo, faziam ver como indispensável a presença

dos novos saberes a compor o universo da escola.

Abaixo a fachada atual Colégio Santo André (Fig.1) e EEPSG Aurélio Arrôbas Martins (Fig.2)

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Na cidade de Jaboticabal (SP), pensar a história do Colégio Santo André é antes

lembrar a história das Irmãs de Santo André. Essa história hoje partilhada com todo que

por lá passaram ou se interessaram em conhecê-la, (conforme transcrevo do site da

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escola), nos dá numa rápida visão, um panorama da vinda dessas pioneiras religiosas à

serviço da educação, para a cidade de Jaboticabal(SP).

Sua origem, a cidade de Tournai, na França (hoje Bélgica), em 1231. Duas

jovens irmãs decidem consagrar-se a Deus colocando-se – em pessoa e bens - a serviço

dos necessitados; outras jovens juntaram-se a elas, e o bem foi se realizando em

diferentes e sucessivas atividades: acolhimento aos peregrinos, tratamento de enfermos,

ensino infantil, educação de jovens, tudo animado pela fé, esclarecido na oração,

buscando viver o Evangelho.

No século XIX, sem deixar Tournai, vão atuar em outras regiões. No ano de

1913, na Bélgica, a Superiora Geral das Religiosas de Santo André e seu Conselho

cogitavam a fundação de uma ou duas casas em Bruxelas, Antuérpia ou em país de

Missão. Coincidentemente, no dia da reunião para a tomada de decisão, chega uma

carta da parte de D. José Marcondes Homem de Mello, bispo de São Carlos do Pinhal

(SP), solicitando a abertura de colégios em sua diocese. Era a resposta de Deus.

Cinco religiosas: Madre Lúcia Maria Doyle (Irlandesa) e as Irmãs Francisca

Peeters (Belga), Ana Schockaert (Belga), Alice Coradini (Belga) e Lucy Chopinet

(Francesa), no dia 23 de janeiro de 1914, deixam o porto de Southampton, a bordo do

navio "Araguaya" e chegam ao porto de Santos (SP) no dia 11 de fevereiro desse

mesmo ano.

No dia 16 de fevereiro de 1914, foram festivamente recebidas em Jaboticabal

(SP) por grande número de pessoas na estação da estrada de ferro. Meninas vestidas de

branco, seus pais, demais autoridades, o juiz de direito, Dr. Joaquim de Oliveira Neves e

sua esposa, Ernestina de Melo Cabral, hospedaram as recém-chegadas, que iniciaram

corajosamente seu trabalho de educadoras. No dia seguinte entram nas três casinhas da

rua Barão do Rio Branco onde acolherão as primeiras alunas no dia dois de março. E na

simplicidade, no acolhimento caloroso são lançadas as primeiras sementes do Colégio

Santo André, que no dinamismo da educação, foi sempre se atualizando.

Em 1920 iniciaram a construção de um prédio próprio (atual colégio) para onde

se mudaram em 1923, com grande número de alunas. Outras Irmãs chegam da Europa

no final do ano, e nos anos seguintes. Jovens brasileiras, descobrindo sua vocação

religiosa, pediram a sua admissão. Ir. Carolina Lacorte, Ir. Lavínia Camargo, Ir. Ondina

Bittencourt, Ir. Isabel de Melo foram as primeiras.

Como as primeiras Irmãs do século XIII na Europa, as missionárias do início do

século XX no Brasil, as atuais Irmãs de Santo André buscam viver e lançar sementes do

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Evangelho para a Maior Glória de Deus (AMDG), isto é, para que o ser humano

desenvolva todas as suas potencialidades e viva de maneira digna, livre, responsável,

colaborando na transformação que o mundo atual requer.

Hoje, no século XXI, as Irmãs de Santo André são todas brasileiras, mantendo

estreita união com as Irmãs na Europa e no Congo. Permanecem educadoras,

diversificando suas atividades nas escolas, nos retiros espirituais, no ministério da

escuta, na presença junto aos pobres, na busca pela unidade.

O edifício mantém a imponência dos colégios tradicionais e escolas

confessionais, sendo esta, a que educou a elite jaboticabalense e da região modelando

almas, costumes e hábitos, normas de moral e boa conduta, principalmente, preparando

moças de “boa família” para a exercerem o seu papel social de esposa, mãe, e quando

possível, professora. Para isso a matriz curricular que nessa época preocupava-se com

conhecimentos de puericultura, costura e bordado, até o início da década de 1960

manteve disciplinas de trabalhos manuais, canto orfeônico, ensino religioso, e uma

“gloriosa” fanfarra feminina, orgulho das “andrelinas”, visto que ainda era um colégio

feminino.

Seu edifício, dotado de entrada principal que o divide ao meio destinando as

salas de aula, diretoria e biblioteca para a direita, e capela para a esquerda, foi

construído em dois pavimentos com piso em largas tábuas de madeira cuidadosamente

enceradas, bem como, as escadas de acesso entre os pavimentos. Distribuído em amplas

salas de aula arejadas e ventiladas, com pelo menos três a quatro janelas por sala, que

eram abertas pelas religiosas logo na entrada pela manhã para o inicio das aulas. O

mobiliário era individual e em madeira, com mesinha (carteira) separada da cadeira, na

segunda metade do século. O amplo sanitários no pavimento térreo sempre chamava a

atenção pela higiene e limpeza, mas, também, pela vigilância, uma inspetora de aluno

que sempre estava presente nos horários de recreio, quando o acesso a ele era coletivo.

O sanitário era próximo ao pátio interno com bebedouros e lavabos externos a ele, que

permitiam que os alunos ao final da recreação por ali passassem para se higienizarem e

tomar água, antes de retornarem apara a sala de aula.

Esse pátio interno, característico nas escolas ainda na primeira metade do século

XX, por terem as mesmas dois pavimentos, dava margem a uma liberdade vigiada,

“acompanhada”, possuía no formato da em L (letra) uma passagem coberta que levava a

todos para o portão de entrada/saída dos alunos, e entrada para o Salão Nobre, palco das

festas e apresentações juvenis.

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A capela por sua vez, situava-se no outro extremo, mas, com entrada também

pela rua além da entrada pela porta principal, dobrando-se à esquerda e seguindo um

expressivo corredor que conduzia até ela, passando por uma cobertura na área externa.

Foi também usada, com regular frequência, para casamentos e celebrações especiais.

Com amplos vitrais góticos, coloridos, vindos da França, as religiosas ali também

faziam sala de aula para os ensinamentos da doutrina e da fé por meio das pinturas dos

vitrais e das imagens (esculturas) dos santos.

Atualmente, mesmo com as salas e laboratórios ampliados e reformados para

atendimento das necessidades e exigências da educação na contemporaneidade, o

edifício e seu interior não perderam a beleza do tempo de memórias sempre lembradas.

(Fig.3). Este mesmo pátio, em foto recente, atualmente não atende mais a função de

“recreio” (fig.4) e ao lado, na lateral e continuidade da área, o pátio onde ficam os

alunos nos intervalos de recreio e ao fundo vemos a passagem coberta que o contorna

( Fig.5).

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A EEPSG “Aurélio Arrobas Martins” carinhosamente chamado de “Estadão”

foi oficialmente fundado em 21/06/ 1917, pelo Prof. Aurélio Arrobas Martins ,

português de Cabo Verde, sob o nome de Gymnasio São Luiz, sendo seus estatutos

levados no mesmo dia ao conhecimento publico. “Deverá ele funcionar, brevemente, em

prédio localizado Rua Juca Quito n 47, até a edificação de prédio próprio. A base de

educação desse Colégio será a moral cristã.” No dia 30 de junho foi divulgado o nome

dos professores que comporiam o quadro docente e no dia 06 de julho tiveram início as

aulas (CAPALBO, 1993, p.120). recebeu a visita do Arcebispo e Bispo de Vila Real,

Portugal, D. João Evangelista de Lima Vidal, em 1926. (Fig.6)

2

PATIO INTERNO ATUAL (1 e 2) Colégio Santo André

3

1

PATEO

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Contudo, no dia 26 de agosto de 1933 o Prof. Aurélio Arrobas Martins afasta-se

da direção por motivo de mudança para São Paulo, pois fora convidado para dirigir o

Liceu Franco-Brasileiro. Assume então a direção Gymnasio, Dr. Olavo Lima

Guimarães.

O Ginásio São Luiz, teve vida efêmera, em fevereiro de 1934 a Prefeitura

Municipal assumiu a responsabilidade pela sua direção, nomeando o Prof. Celino

Pimentel para conduzir, quando em 12 de agosto, chega a notícia, em nossa cidade, que

através do decreto n 6.601 de 11/8/1934 o Ginásio São Luiz passava oficialmente a

pertencer ao (governo do) Estado. Durante o ano em curso e em 1935, a direção ficará a cargo do município que atenderá a linha traçada pelo Estado, com recursos da municipalidade. Nos anos de 1936 e 1937, proverá o estado as necessidades do Instituto, pagando, no entanto o corpo docente e funcionários com relativo abatimento. De 1938 em diante, o Ginásio entrará no regime de completa estadualização” (CAPALBO, 1993, p.200).

Um edifício construído sob as normas do gosto eclético da época, dois

pavimentos mais porão, contudo, dotado da majestosa imponência Neoclássica dos

grandes liceus. Possuía amplas salas arejadas e ventiladas, com grandes janelões que

abriam para a rua como se pode observar na sua lateral, repetindo-se do outro lado. Os

espaços destinados à diretoria e biblioteca eram centralizados no corredor do segundo

piso. Em piso de ladrilho hidráulico, sempre limpo e rigorosamente cuidado nos dois

pavimentos, a escola exibia (e ainda o faz) um pátio interno destinado a atividades de

convivência social e diversão nos horários do “recreio”, severamente controlado através

das sacadas do pavimento superior que para ele davam acesso visual. Durante algum

tempo, houveram salas de aula no chamado “porão”, que apesar de tudo, foi um decente

pavimento térreo que abrigou classes de alfabetização, classes especiais, dentre outras.

Atualmente, a Escola de Primeiro e Segundo Graus (EEPSG) Prof. Aurélio

Arrobas Martins, em Jaboticabal (SP), conhecida carinhosamente por “estadão” ,

continua a cumprir o seu importante papel formador de cidadãos críticos e reflexivos na

cidade de Jaboticabal.

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Seu espaço central, hoje, ladeado por iluminação moderna (Fig.7), foi destinado

à quadra de esportes simulando um ginásio de esportes, onde nas suas arquibancadas

(escadas na lateral da quadra) reuniu a juventude da cidade nos anos de 1950 a 1970

para grandes torneios de futebol, basquetebol e voleibol, pontos fortes dos “rapazes do

estadão”. Da mesma forma, exibiu até uma década atrás, sua não menos gloriosa

fanfarra para deleite da comunidade local.

Ambos os edifícios construídos no início do século passado assemelham-se na

sua distribuição espacial e funcional marcam uma época da sociedade jaboticabalense,

na qual formaram uma elite profissional e intelectual da cidade. As normalistas do

“estadão” sempre foram o orgulho da cidade e região, e assim, devotadas professoras

que foram são lembradas nominalmente até hoje. Eram escolas grandes para a época,

segundo os dados locais, no ano de 1928 data do centenário da cidade o Ginásio São

Luiz possui 510 alunos, mais 148 da Escola Normal Anexa e, o Colégio Santo André

470 alunas mais 48 da Escola Normal Anexa, dentre os vinte um estabelecimentos de

ensino regulares e livres( como escola de caligrafia, datilografia, corte e costura..) que a

cidade possuía.

Contudo, é bom ressaltar, que eram ambos distinguiam-se por gênero, o São

Luiz abrigava o sexo masculino e o Santo André, somente elementos femininos, que

também, nessa época poderiam membros do internato, um dos melhores do interior do

estado. Porém, na escola normal anexa, no Santo André obedeciam a regra geral, mas,

no São Luiz a escola era mista.(CAPALBO, 1993)

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O rigor dos uniformes, mesmo que diferenciados pela própria orientação

primeira, religiosa ou laica, até os anos de 1950 foram a representação da sociedade que

se valorizava, elegância no traje, “bons modos” e cortesia no tratamento pessoal, pudor

e recato na vestimenta feminina, que reunidos eram exemplo do modelo da figura

ilibada, intelectual e profissional que o(a) professor(a), o(a) Médico(a) ou o bacharel em

Direito, deveriam ser.

No depoimento do Sr. Euclides Ferreira Guarita, jaboticabalense nato e ex-aluno

do Ginásio São Luiz, ele ilustra essa época, em grande parte a documentação levantada

para este artigo com as palavras de Casemiro de Abreu: “Oh! Que saudades que tenho,

da aurora da minha vida, daminha infância querida, que os anos não trazem mais!”

FIGURAS:

1)http://www.csajaboticabal.org.br/oColegio/10/7-Maravilhas-do-Colegio-Santo-

Andre.html.

2) http://www.panoramio.com/photo/2560325

3) http://www.csajaboticabal.org.br/oColegio/2/Historia.html

4)http://www.csajaboticabal.org.br/oColegio/10/7-Maravilhas-do-Colegio-Santo-

Andre.html

5)http://www.csajaboticabal.org.br/oColegio/10/7-Maravilhas-do-Colegio-Santo-

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6) CAPALBO.C. Memoria Fotográfica. 1890-1978, p. 33.

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