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Resenha: Ginzburg, Carlo. Andarilhos do Bem: Feitiçaria e cultos agrários nos séculos XVI e XVII. São Paulo: Schwarcz. 1988, 213p. Graduando: Marcos Tadeu Vieira Macedo Disciplina: História e Interdisciplinaridade Carlo Ginzburg nasceu em Turim, em 1939, filho do professor e tradutor Leone Ginzburg e da romancista Natalia Ginzburg. Durante duas décadas, foi professor de história moderna na Universidade da Califórnia em Los Angeles; em 2006 voltou à Itália para lecionar na Scuola Normale Superiore de Pisa¹. A presente edição do livro “Andarilhos do Bem: Feitiçarias e cultos agrários nos séculos XVI e XVII” de Carlo Ginzburg é encabeçada por um prefácio, escrito em 1965, e algumas considerações escritas posteriormente intituladas “Pós- escritos de 1972”. Basicamente, no prefácio, o autor, como é de praxe, expõe os motivos e personalidades que o influenciaram em seu estudo, além de expor as propostas de tal trabalho, como a reconstrução da mentalidade camponesa da época. Ele deixa claro seu enfoque nos cultos pagãos dos camponeses, um campo de pesquisa pouco explorado, já que a maioria dos estudos nesse contexto voltam-se para a igreja e principalmente para inquisição, criando-se uma visão no mínimo depreciativa dessas crenças. Ginzburg procura quebrar esse pensamento, mostrando para o meio acadêmico que a bruxaria popular é fruto de um antigo culto de vegetação e fertilidade, até mais antigo que o próprio cristianismo, e não simples “superstições genéricas que não poderiam ser reduzidas a um culto preciso”. O que não é uma tarefa fácil como assinala o mesmo. Muitos dos documentos, interrogatórios orquestrados pela inquisição, possuem depoimentos deturpados pelos métodos sugestivos dos inquisidores transformando tradições antigas em artes diabólicas. Os próprios benandanti, objeto de estudo de Ginzburg, sofreram com esses métodos: “No decorrer de um século, os benandanti se tornam, como veremos, feiticeiros; e suas reuniões noturnas, que têm como objetivo proporcionar fertilidade, transformam-se no sabá diabólico...”. No final dessa introdução ele se propõe a analise minuciosa dos benandanti, não como feiticeiros, como foram erroneamente nomeados por G. Marcotti, E. Fabris, V. Ostermann e outros, mas sim como um organizado núcleo de crenças sólidas derivadas de um culto mais antigo. E termina seu prefácio com os agradecimentos às pessoas que lhe ajudaram em sua pesquisa. ¹: Retirado de http://www.companhiadasletras.com.br/autor.php? codigo=00189

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Resenha do livro Andarilhos do Bem de Carlo Ginzburg

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Resenha: Ginzburg, Carlo. Andarilhos do Bem: Feitiçaria e cultos agrários nos séculos XVI e XVII. São Paulo: Schwarcz. 1988, 213p.

Graduando: Marcos Tadeu Vieira Macedo Disciplina: História e Interdisciplinaridade

Carlo Ginzburg nasceu em Turim, em 1939, filho do professor e tradutor Leone Ginzburg e da romancista Natalia Ginzburg. Durante duas décadas, foi professor de história moderna na Universidade da Califórnia em Los Angeles; em 2006 voltou à Itália para lecionar na Scuola Normale Superiore de Pisa¹.

A presente edição do livro “Andarilhos do Bem: Feitiçarias e cultos agrários nos séculos XVI e XVII” de Carlo Ginzburg é encabeçada por um prefácio, escrito em 1965, e algumas considerações escritas posteriormente intituladas “Pós- escritos de 1972”. Basicamente, no prefácio, o autor, como é de praxe, expõe os motivos e personalidades que o influenciaram em seu estudo, além de expor as propostas de tal trabalho, como a reconstrução da mentalidade camponesa da época. Ele deixa claro seu enfoque nos cultos pagãos dos camponeses, um campo de pesquisa pouco explorado, já que a maioria dos estudos nesse contexto voltam-se para a igreja e principalmente para inquisição, criando-se uma visão no mínimo depreciativa dessas crenças. Ginzburg procura quebrar esse pensamento, mostrando para o meio acadêmico que a bruxaria popular é fruto de um antigo culto de vegetação e fertilidade, até mais antigo que o próprio cristianismo, e não simples “superstições genéricas que não poderiam ser reduzidas a um culto preciso”.

O que não é uma tarefa fácil como assinala o mesmo. Muitos dos documentos, interrogatórios orquestrados pela inquisição, possuem depoimentos deturpados pelos métodos sugestivos dos inquisidores transformando tradições antigas em artes diabólicas. Os próprios benandanti, objeto de estudo de Ginzburg, sofreram com esses métodos: “No decorrer de um século, os benandanti se tornam, como veremos, feiticeiros; e suas reuniões noturnas, que têm como objetivo proporcionar fertilidade, transformam-se no sabá diabólico...”. No final dessa introdução ele se propõe a analise minuciosa dos benandanti, não como feiticeiros, como foram erroneamente nomeados por G. Marcotti, E. Fabris, V. Ostermann e outros, mas sim como um organizado núcleo de crenças sólidas derivadas de um culto mais antigo. E termina seu prefácio com os agradecimentos às pessoas que lhe ajudaram em sua pesquisa.

No “Pós- escritos de 1972”, Ginzburg aparece com um discurso corretivo sobre seu estudo anterior, já que em sete anos muitas outras pesquisas sobre feitiçaria foram escritas, deixando claro que tinha de reelaborar o livro se fosse levar em conta todas essas pesquisas. Deixando claro que esses escritos posteriores tratam-se de uma espécie de errata com algumas correções e acréscimos esporádicos que foram acrescentados.

O primeiro capítulo de seu trabalho, intitulado “As batalhas noturnas”, se constrói a partir da analise dos “hábitos” de dois indivíduos do Friul, uma região italiana, no século XVI. São eles Paolo Gasparutto e Battista Moduco, por meio de interrogatórios aos quais foram submetidos, o autor procura reconstruir e analisar as crenças, hábitos e talvez conjecturar sobre o culto progenitor dos benandanti. Paolo Gasparutto abre o capítulo, com sua, no mínimo instigante, história que leva o leitor para o mundo de crenças da região e época estudadas pelo autor, mais precisamente as crenças benandanti. Com os vários relatos e interrogatórios de pessoas como o pároco Bartolomeo Sgabarizza e o frei Felice da Montefalco abre-se uma fascinante janela que nos permite visualizar o pensamento e os hábitos desses indivíduos, revelando-nos uma rica “cultura alternativa” àquela vigente na época. O próximo personagem, também chave para se conhecer um pouco mais sobre os benandanti, é Bastista Moduco, seus relatos são caros ao estudo, pois é o primeiro, na seqüência do livro, a revelar aspectos da

¹: Retirado de http://www.companhiadasletras.com.br/autor.php?codigo=00189

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religião cristã assimilados pelos benandanti: “... e nós (benandanti) andamos em favor de Cristo, e os feiticeiros, do diabo...” e “... porque nós combatemos pela fé cristã...”, é Moduco quem explicita minuciosamente os hábitos, hierarquia, missão, enfim uma série de elementos que formam esse complexo de crenças. O segundo relato de Gasparutto ao frei Felice, reforça e adiciona alguns novos elementos ao rico relato de Moduco. Outro personagem interessante é o velho Thiess que, com seus relatos dos lobisomens, os “cães de Deus”, que combatiam feiticeiros servos do diabo para que o ano fosse próspero e abundante, nos faz pensar num complexo de crenças difundido por toda a Europa central, Thiess era lituano, ou também , na possibilidade dessa “cultura alternativa” ser fruto de um único culto agrário que no passado foi difundido por essa região. Com todo esse material Ginzburg também discursa sobre um importante aspecto dos juízes interrogadores desses indivíduos : a habilidade de deturpar os relatos e crenças, com base em outras como as bruxas, para que sejam associados ao diabo e a cultos do mesmo, desse modo as reuniões dos benandanti fazem analogia aos sabás diabólicos das bruxas e os lobisomens, os “cães de Deus”, transformaram-se em “homens lobos devastadores de rebanhos”.

O cerne do segundo capítulo, “As procissões dos mortos”, está em um aspecto, apenas vislumbrado no primeiro, a hipótese de que vários elementos dessa “cultura alternativa” estão ligados entre si. Para que o leitor possa ter um panorama maior dessa idéia Ginzburg se utiliza de casos como os de Ana, “a Ruiva”, o primeiro apresentado nesse capítulo, e Aquilina que introduzem um novo elemento no conjunto de crenças dos benandanti: a habilidade de ver os mortos. De acordo com os documentos que nos permitem reconstruir esses personagens eles diziam-se possuidores dessa habilidade e se utilizavam dela como fonte de sobrevivência, algo que poderia ser tomado como um típico caso de embuste, uma estratégia para a sobrevivência dos indivíduos daquela época. Poderia... se não fossem alguns elementos contidos nesses relatos que nos lembre, mesmo que vagamente, os cultos benandanti, vejamos algumas citações para que esses elementos fiquem evidentes: “Ana ‘dizia saber muitas coisas que os mortos lhe contavam, mas que, quando revelava algo, era espancada fortemente por eles com os caules de sogro...’” e “Ela explicava que o espírito partira em viagem e que, dessa forma, o corpo ficara como morto...”, bem, no capítulo 1 foi dito que os benandanti que revelassem sobre suas ações ou o nome daqueles que delas participavam eram espancados pelos feiticeiros em posse de caules de sogro, além disso eles também caíam em uma espécie de sono profundo no qual seus espíritos deixavam seus corpos para se dirigirem para as batalhas noturnas contra os feiticeiros e bruxas.

Nos depoimentos a respeito de Aquilina e de uma certa Caterina, a Vesga, Ginzburg consegue captar elementos chave que tornam a conexão entre os benandanti e aqueles que se diziam conseguir ver os mortos tão forte que estes tornam-se uma categoria de benandanti: o fato de só conseguiam ver os mortos aqueles que nasciam empelicados, pré-requisito obrigatório para ser benandante e o depoimento de Caterina que diz: “...eu não sou benandante. Mas o meu marido era, ele andava em procissão com os mortos.”. E este é o depoimento mais importante para se consolidar a conexão entre esses dois elementos , ou seja, quem vê e quem caminha com os mortos é benandante. A partir desse pressuposto o autor toma aqueles que viam os mortos como uma outra categoria de benandanti, como se existissem duas ramificações de uma crença engendrada num passado longínquo.

As próximas crenças a serem analisadas por Carlo Ginzburg são sobre as cavalgadas noturnas dirigidas por uma divindade pagã chamada Diana, algumas vezes Holda pelos germânicos, e seguida por mulheres seduzidas pelo demônio. O ponto interessante desse relato é que a divindade que preside essas cavalgadas é dotada de atributos referentes à vida e à morte e, mais precisamente, Holda é ao mesmo tempo deusa da vegetação e consequentemente da fertilidade, o que nos sugere uma conexão com os benandanti “agrários”, como são denominados pelo autor aqueles benandanti que lutavam pelas colheitas

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prósperas. Além disso, Holda também é guia do “exército furioso” ou da “caça selvagem”, que seria um bando de mortos prematuros, como os mortos em combate, que percorreriam à noite aterrorizando as ruas das aldeias, outra semelhança só que agora com os benandanti que viam os mortos. Diana também é ligada de alguma forma aos benandanti, pois além de Ginzburg salientar que as cavalgadas noturnas das mulheres adeptas de Diana fossem uma variante da “caça selvagem”, a deusa também é seguida em suas peregrinações noturnas por um grupo de mortos que não encontraram a paz, como os mortos prematuros. O historiador observa habilmente esses e outros vínculos entre essas divindades populares, ou uma com vários nomes, com o complexo de crenças que envolvem os benandanti e as mutações que esses mitos sofreram ao longo do tempo. Ressalto, ainda, que no decorrer de todo o capítulo o autor continuou a frisar o papel da Igreja em resposta a influencia dessa “cultura alternativa” no pensamento dos camponeses da época: as divindades pagãs acabam por se tornar servos, ou até mesmo facetas, do diabo que seduz aqueles que compactuam com ele e os vários aspectos dessa crença sofrem várias tentativas de cristianização. E nomes como J. Nider, Geiler Von Kaiserberg e Orderico Vital são citados como pessoas do clero que trabalharam para essa manipulação do pensamento da massa e deturpação desse conjunto de crenças, sendo ressaltado também que essa cultura não se relaciona com o mundo culto, mas estava enraizada no pensamento coletivo do camponês que assimilavam alguns resquícios, ou recriava-as, como é o caso de Giuliano Verdana. Mas foram as crenças dos benandanti que viam os mortos que mais sofreram com essas deturpações e por isso todo o conjunto de mitos relacionados a esses benandanti é muito mais frágil, menos difuso e menos persistente, pelo menos ao que diz respeito à região do Friul, como diz Ginzburg. Isso porque esses mitos vagam na margem do núcleo principal, assim sendo no século XVII as procissões dos mortos aparecem apenas como ecos daquelas antigas descritas por pessoas como Oderico Vital.

Já o mito agrário persiste com grande força, apesar de algumas variações, e é retomado no capítulo três, “Os ‘benandanti’ entre inquisidores e bruxas”, porém o ponto central desse capítulo é a visão que os inquisidores tinham a respeito dos benandanti e a pressão exercida para que essas crenças fossem fundidas na categoria de feiticeiros. Ginzburg deixa claro que em um primeiro momento os inquisidores agiam com indiferença, como observa o autor: “... num arco de quase cinqüenta anos (1575 – 1619), nenhum processo contra benandanti tenha sido levado até o fim, com exceção do primeiro que conhecemos, o de Gasparutto e Moduco, condenados como feiticeiros”, e que após falharem no esforço de fazer com que os benandanti assumissem-se feiticeiros havia a perda de interesse pelo caso. Mas esse quadro começa a mudar mais ou menos em meados do século XVII, quando finalmente os benandanti começam a ser vistos como feiticeiros participantes do sabá, então a postura dos inquisidores também se torna um pouco mais rigorosa e dura. Ginzburg revela como as crenças dos benandanti agrários caíram em decadência, já que o significado de suas batalhas como ritos de fertilidade não são reconhecidas fora do círculo dos próprios benandanti e eles não passavam de curandeiros dos encantamentos e reconhecedores das bruxas para a sua clientela, o que lhes expunham ao Santo Ofício, já que com isso assemelhavam-se aos curandeiros, feiticeiros e encantadoras que fervilhavam nos campos europeus da época. Com isso a transformação desse complexo de crenças tonou-se deveras acentuada, se por um lado os benandanti começaram a ser vistos como feiticeiros, em contrapartida as motivações cristãs estavam cada vez mais acentuadas na crença com o intuito de se escapar dessa fusão com seus rivais. E é nesse turbilhão de modificações que os benandanti chegam em um ponto insustentável onde começam a ser vistos como vagabundos perturbadores da ordem e da paz familiar e então se deparam com um duro dilema: ou se enquadram nessa primeira visão ou se declaram feiticeiros servos do diabo. O autor conclui o capítulo explicitando que num período de cinqüenta anos as crenças dos benandanti, distorcidas ou não, foram difundidas por quase todo o Friul, chegando a Isonzo e Istria e que, apesar dos pesares, essas crenças tornaram-se intrínsecas aos jovens camponeses friulanos.

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O quarto capítulo, “Os ‘benandanti’ no Sabá”, tem por finalidade analisar a conclusão do processo de decadência do mito dos benandanti, ou seja, a completa assimilação deles à categoria de feiticeiros, mostrar como as questões de feitiçaria substituíram essas antigas crenças em todo o Friul. Podemos observar que nessa etapa, correspondente a meados do século XVII, os próprios benandanti já tinham adquirido essa visão de si próprios, percebemos essa drástica mudança de pensamento nos depoimentos de benandanti como Maria Panzona, que os coloca entre os inimigos tradicionais, as bruxas e feiticeiros, Giovanni Sion, que se diz benandanti e age como lhe convém, às vezes fazendo coisas horrendas típicas de feiticeiros, Michele Soppe e Olivo Caldo. Como ressalta Ginzburg esse comportamento, que não é regra geral, é derivado da vida miserável que esses indivíduos levavam e é devido a essa atitude que os camponeses começam a ver os benandanti como feiticeiros. Em todos os relatos analisados há um novo elemento presente: a participação dos benandanti no sabá, o que foi fruto dos constantes esforços dos inquisidores para que houvesse essa união dos benandanti com o sabá. Porém essa união ainda não é total e por isso um pouco confusa, já que os benandanti vão a essas reuniões diabólicas, mas não participam de seus ritos. Pela primeira vez em todo o decorrer da obra Ginzburg toca na questão da sinceridade dos benandanti, já que seus relatos são confusos e cheios de contradições, aparecendo até mesmo elementos antigos advindos dos primórdios do mito, além disso, as confissões dependiam cada vez mais das intervenções dos inquisidores. Outro aspecto importante tocado por Carlo Ginzburg é que quando ocorre essa transformação é tarde demais para os benandanti serem perseguidos pelo Santo Ofício.

O livro termina com um interessante apêndice que nos mostra os interrogatórios de Gasparutto e Moduco o que nos permite analisar mais profundamente a mentalidade desses indivíduos, as peculiaridades de suas falas, como agiam sobre pressão e outros aspectos peculiares. Conclui-se que essa é uma obra de extrema importância para as galerias historiográficas, pois nos transporta para o pensamento da época e nos permite observar as várias transformações que a mentalidade dos indivíduos daquela época sofreu, além da importância e mudanças que o complexo de crenças observado sofreu, sem falar do poder que a mesma exerceu naquela sociedade. Com um tema que gera certo desconforto em alguns historiadores, a questão do misticismo na História, Carlo Ginzburg conseguiu criar uma obra séria de cunho científico e ao mesmo tempo interessante para os leigos que apreciam uma boa leitura.