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Responsabilidade Civil é a obrigação imposta a alguém de reparar os danos sofridos por terceiro. Contratual - é a proveniente da falta de cumprimento das obrigações emergentes dos contratos, de negócios unilaterais ou da lei , quando as obrigações em sentido técnico provêm da lei. Extracontratual - resulta da violação de direitos absolutos ou da prática de actos que, embora lícitos, causam prejuízo a outrem. Na responsabilidade extracontratual, a obrigação de indemnizar nasce, em regra, da violação de uma disposição legal ou de um direito absoluto que é inteiramente distinto dela. A responsabilidade contratual vem regulada nos art. 798º e ss, no campo do incumprimento e mora, enquanto que a extracontratual encontra guarida própria no Capítulo fontes das obrigações, art. 483º e ss. Para além de os efeitos serem comuns (art. 562º) e de a culpa ser apreciada nos mesmos termos, os da responsabilidade civil (799º, 2 e 487º, 2, bom pai de família, embora na contratual o ónus da prova recaia sobre o devedor - 799º, 1 e na extracontratual caiba ao lesado, salvo beneficiando de presunção legal de culpa, provar a culpa do autor da lesão - 487º, n.º 1) - o que leva a que se reúna na obrigação de indemnizar - 562º e ss - as regras comuns da causalidade entre o facto e o dano, cálculo e formas de indemnização, também o mesmo acto pode envolver para o agente, simultaneamente, responsabilidade contratual (por violar uma obrigação) e responsabilidade extracontratual (por infringir ao mesmo tempo um dever geral de abstenção ou o direito absoluto correspondente). Será o caso do motorista que, com culpa e no mesmo acidente, provoca ferimentos nos passageiros que contratualmente transporta - contratual - e nos transeuntes que atropela - extracontratual. 1

Responsabilidade Civil CEJ Curso 06-07

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Responsabilidade Civil

é a obrigação imposta a alguém de reparar os danos sofridos por terceiro.

Contratual - é a proveniente da falta de cumprimento das obrigações emergentes dos contratos, de negócios unilaterais ou da lei, quando as obrigações em sentido técnico provêm da lei.

Extracontratual - resulta da violação de direitos absolutos ou da prática de actos que, embora lícitos, causam prejuízo a outrem. Na responsabilidade extracontratual, a obrigação de indemnizar nasce, em regra, da violação de uma disposição legal ou de um direito absoluto que é inteiramente distinto dela.

A responsabilidade contratual vem regulada nos art. 798º e ss, no campo do incumprimento e mora, enquanto que a extracontratual encontra guarida própria no Capítulo fontes das obrigações, art. 483º e ss.

Para além de os efeitos serem comuns (art. 562º) e de a culpa ser apreciada nos mesmos termos, os da responsabilidade civil (799º, 2 e 487º, 2, bom pai de família, embora na contratual o ónus da prova recaia sobre o devedor - 799º, 1 e na extracontratual caiba ao lesado, salvo beneficiando de presunção legal de culpa, provar a culpa do autor da lesão - 487º, n.º 1) - o que leva a que se reúna na obrigação de indemnizar - 562º e ss - as regras comuns da causalidade entre o facto e o dano, cálculo e formas de indemnização, também o mesmo acto pode envolver para o agente, simultaneamente, responsabilidade contratual (por violar uma obrigação) e responsabilidade extracontratual (por infringir ao mesmo tempo um dever geral de abstenção ou o direito absoluto correspondente). Será o caso do motorista que, com culpa e no mesmo acidente, provoca ferimentos nos passageiros que contratualmente transporta - contratual - e nos transeuntes que atropela - extracontratual.

... parece que perante uma situação concreta, sendo aplicáveis paralelamente as duas espécies de responsabilidade civil, de harmonia com o assinalado princípio, o facto tenha, em primeira linha, de considerar-se ilícito contratual. Sintetizando: de um prisma dogmático o regime da responsabilidade contratual «consome» o da extracontratual. Nisto se traduz o princípio da consumpção - BMJ 468-407.

Vaz Serra (RLJ 102-312 e 313) ensina: «a solução que se afigura preferível é a de que são aplicáveis as regras de ambas as responsabilidades, à escolha do lesado, pois a solução contrária representaria para este um prejuízo grave quando as normas da responsabilidade extracontratual lhe fossem favoráveis, e não é de presumir que ele tenha querido, com o contrato, afastá-las, não sendo mesmo válida uma convenção prévia de exclusão de algumas delas... A responsabilidade contratual não exclui a delitual».

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Exemplos - Rebentamento de cilindro solar que provoca danos na casa: duas indemnizações (uma referente ao equipamento danificado e outra aos danos na habitação), duas responsabilidades (contratual e extra contratual) e dois prazos de prescrição ou caducidade (prazo ordinário de 20 anos pelos danos na habitação e do art. 921º, nº 3, do CC, quanto à venda, podendo esta ser impedida pelo reconhecimento do direito pelo obrigado – 325º, nº 1 e 331º, nº 2 CC - 92-I-237; de garrafa de gás doméstico (Ac. STJ 8.5.2003, P.º 03B1021) Resp. contratual e extra contratual em contrato de empreitada para construção de muro de suporte que, por violação das normas de segurança na construção (RGEU ou impostas pelas autarquias) acaba por ruir e provocar danos - BMJ 370-529. Julgou-se não ocorrer caducidade (1220º e 1225º, na redacção então vigente) pela empreitada mas ser, antes, aplicável a prescrição do nº 1 do art. 498º cujo prazo ainda não decorrera.

I - O facto de se celebrar um contrato de transporte em navio não significa que todo e qualquer dano causado ao transportado na ocasião do transporte deva ter solução jurídica com base nas normas da responsabilidade contratual.

II - A circunstância de ter ocorrido lesão do direito à saúde (os direitos absolutos, como a saúde e a vida, gozam de protecção legal, não necessitando de contrato para a sua protecção) do transportado na fase do cumprimento do contrato de transporte (por o navio, indo das Berlengas para Peniche ter colidido com uma traineira, de tal colisão resultando danos para o passageiro autor na acção) não é suficiente para descaracterizar o tipo de responsabilidade civil que recai sobre o transportador nem impede a aplicação das regras relativas à responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, incluindo as relativas à prescrição - STJ, 13.2.01, Col. STJ 01-I-117.

O mesmo se passa com a responsabilidade civil e criminal resultantes de facto ilícito, do mesmo acidente: o condutor será condenado em pena criminal e em indemnização (aqui acompanhado pelos responsáveis meramente civis, substituídos pela Seguradora, nos termos da lei do seguro obrigatório), correspondendo cada uma à respectiva responsabilidade.

A responsabilidade extracontratual funda-se- em geral na culpa (483º,1),- excepcionalmente (483º, 2) no risco (499º a 510º), preocupação social de

indemnização de lesados sem culpa destes e,- em casos residuais, em factos lícitos:

- (1348º, 2 - obrigação de indemnizar os donos dos prédios vizinhos por danos causados por escavações;

- por acto praticado em estado de necessidade - 339º, nº 2;- por passagem forçada momentânea - 1349º, 3; - por expropriações - 1310º).

Outras diferenças

a) - a responsabilidade delitual é menos exigente, quanto a alguns dos seus pressupostos, quando por facto de terceiro. Porém, compare-se o disposto no art. 500º - independentemente de culpa, responsabilidade puramente objectiva, na comissão, na resp. extracontratual, em paralelo com o estatuído no art. 800º para os simples auxiliares do devedor na resp. contratual;

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b) - a mora é necessária na responsabilidade contratual (804º e 805º), não na responsabilidade delitual que tem um especial regime de mora (805º, 3, parte final) e de indemnização suplementar para além dos juros (806º, 3, in fine);

c) - as convenções de irresponsabilidade seriam nulas na responsabilidade delitual, mas não na contratual (800º, 2);

d) - a solidariedade constitui a regra na responsabilidade delitual (497º), ao passo que na responsabilidade contratual o regime normal é o da conjunção (513º), pois a solidariedade de devedores só existe se resultar da lei ou da vontade das partes;

e) - só a responsabilidade delitual está sujeita a prescrição de curto prazo (498º e 309º).

f) - graduação da indemnização na resp. extracontratual (494º), salvo P. Jorge que aplica esta norma à responsabilidade contratual.

g) - Onus da prova a cargo do lesado da resp. extracontratual - 487º - e presunção de culpa do devedor na contratual - 799º. Também na Resp. extracontratual consagra a lei casos de presunção de culpa, como nos art. 491º a 493º e 503º, nº 3.

A tendência actual da doutrina vai no sentido da unificação das duas espécies de responsabilidades - Calvão da Silva, Pedro Albuquerque e Meneses Cordeiro, citados no BMJ 445-492.

Funções da resp. civil:

- reparadora ou compensatória - em regra a indemnização não excede o dano sofrido – 562º ;- punitiva, sancionatória - o montante da indemnização varia consoante o grau de culpa - 494º e 497º, 2 ; 570º.

Resp. Ext. por FACTOS ILÍCITOS - PRESSUPOSTOS - 483º

A) - Por Culpa

I - Facto voluntário - no sentido de dominável, controlável pela vontade humana; só em relação a factos assim pode falar-se de ilicitude e de culpa. Mas não tem o acto que ser querido: negligência inconsciente, distracção, actos de incapazes - 488º,1 e 489º, 1 e 2. Motorista que adormece - BMJ 279-160 – ou que, sentindo-se doente, insiste em conduzir e causa danos em consequência de acidente vascular cerebral que o acometeu.

Tanto pode ser um facto positivo, acção, como traduzir-se num facto negativo, abstenção ou omissão. Mas neste caso, só quando havia, por força da lei ou do negócio jurídico, o dever de praticar o acto omitido - 486º.

É o caso do doido que foge do hospital - que o devia vigiar - em que estava internado e é atropelado (Bol. 349-516), da falta de vedação em obra de construção civil (BMJ 300-391), da empresa de alarmes que não providenciou em caso de assalto (Col. 94-5-223) do cão que, atropelado na auto-estrada, provoca danos no

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automóvel (Ac. do STJ, na Col. Jur. STJ 2004-II-96 e 2006-I-56), por pedras ou areia (Col. 96-4-149 e 197), por poça de água e consequente despiste do carro (Col. 97-2-32). Sendo a notícia veiculada por um órgão de informação audiovisual (televisão), são igualmente responsáveis por ela o produtor do programa e o director de informação, apesar de não terem conhecimento da notícia por, ao contrário do que deviam, não terem pré-visionado a informação – Col. STJ 01-III-21 (caso Subtil).

Todos os incumprimentos contratuais, mesmo considerando unicamente aqueles que resultam da omissão de uma prestação de facere ou de dare são susceptíveis de fundamentar a responsabilidade delitual do devedor perante terceiros. É necessário, porém, que a prestação omitida (ou cumprida defeituosamente), vise a protecção de terceiros perante determinados riscos ou perigos.

«Não são, portanto, todas as omissões de deveres contratuais que podem originar a responsabilidade delitual do devedor perante terceiros prejudicados, mas apenas aquelas que ocasionam os prejuízos que o cumprimento da prestação visa evitar» ... «o contrato cuja eficácia fundamenta uma responsabilidade delitual do devedor perante terceiros prejudicados com o seu incumprimento exige que o cumprimento da prestação vise a preservação de certos riscos ou perigos»

«Do princípio de neminem laedere pode deduzir-se um dever geral de abstenção de actos lesivos, mas a omissão de um dever de actuação só releva quando este dever de agir for imposto, por lei ou convenção, a alguém que se coloca, relativamente a um certo resultado, numa posição de garante do artigo 486º do Código Civil» (O Concurso de Títulos de Aquisição da Prestação, págs. 323 a 324).

Fora do domínio da responsabilidade civil ficam apenas os danos causados por causas de força maior ou pela actuação irresistível de circunstâncias fortuitas ou forças naturais invencíveis.

II - Ilicitude - é a reprovação da conduta do agente no plano geral e abstracto da lei, [agir objectivamente mal (Col. STJ 2006-I-85)], antes da culpa que se reporta a um comportamento concreto, que significa agir em termos que, naquele concreto circunstancialismo, são merecedores de censura)

a) - Violação de um direito de outrem: direitos absolutos, direitos reais, de personalidade, de autor.

São os casos de inclusão de nome na lista telefónica quando fora contratada a confidencialidade (Col. 93-3-132 STJ); de nome de médico, nas páginas amarelas, com deficiências (Col. 93-I-17), publicação de anúncio de massagens, em jornal, com telefone de outrem, sem que o jornal tenha averiguado a identidade do autor do anúncio (Col. 89-2-139), abuso de liberdade de imprensa e ruídos ou actividades que não permitem dormir, já aflorados a propósito dos direitos de personalidade - art. 70º - e de que é exemplar o ac. no BMJ 453-417 que trata do direito à vida, direitos de personalidade, colisão de direitos do dono do talho barulhento e dos habitantes dos andares superiores:

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«Segundo a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10 de Dezembro de 1948, «todo o indivíduo tem direito à vida [...]» (artigo 3.°) e «toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto [...] ao alojamento […]» (artigo 25.°, n.º 1), e, como resulta do disposto no artigo 16.° (hoje, art. 8º) da Constituição da República Portuguesa, estes textos estão integrados no ordenamento jurídico português, o mesmo acontecendo com a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, aprovada pela Lei n.º 65/78, de 13 de Outubro, cujo artigo 2.°, n.º 1, dispõe que «o direito de qualquer pessoa à vida é protegido por lei [...]».

Mas também a nossa Constituição preceitua que a integridade moral e física das pessoas é inviolável (artigo 215.°, n.º 1), que todos têm direito à protecção da saúde (artigo 64.°, nº 1) e que todos têm direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado (artigo 66.°, n.º 1).

Estamos perante direitos fundamentais, porque figuram entre os direitos, liberdades e garantias (capítulo I do título II da parte I) ou porque são direitos fundamentais de natureza análoga (artigo 17.° da Constituição), de natureza social (capítulo II do título III); e é indiscutível que o direito ao repouso, à tranquilidade e ao sono se insere no direito à integridade física e a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado, enfim ao direito à saúde e à qualidade de vida.

Por sua vez, no artigo 70.°, n.º 1, do Código Civil a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral.

E também a Lei n.º 11/87, de 7 de Abril (Lei de Bases do Ambiente), estabelece que todos os cidadãos têm direito a um ambiente humano e ecologicamente equilibrado (artigo 2.°, n.º 1), que a luta contra o ruído visa a salvaguarda da saúde e bem-estar das populações e se faz, além de outras medidas, através da adopção de medidas preventivas para a eliminação da propagação do ruído exterior e interior, bem como das trepidações [artigo 22.°, n.º 1, alínea f)], e ainda que existe obrigação de indemnização, independentemente de culpa, sempre que o agente tenha causado danos significativos no ambiente, em virtude de uma acção especialmente perigosa, muito embora com respeito do normativo aplicável (artigo 41.°, n.º 1).

E não pode, finalmente, esquecer-se o artigo 483.° do Código Civil, segundo o qual aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.

Tanto a doutrina como a jurisprudência têm convergido nesta orientação (ver, quanto aos direitos fundamentais constitucionalmente consagrados, Castro Mendes, Estudos Sobre a Constituição, vol. I, págs. 103 e segs.; Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo IV, págs. 55, 56, 136 e segs. e 471 e segs.; J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, edição de 1991, págs. 532 e segs. e 565 e segs.; quanto aos direitos de personalidade e sua ofensa através do ruído, ver Vaz Serra, Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 103.°, págs. 374 e segs.; Heinrich Ewald Horster, Teoria Geral do Direito Civil, págs. 257 e segs.; Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª ed., pág. 104; acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Abril de 1995, de 17 de Março de 1994, de 21 de Setembro de 1993, de 16 de Abril de 1991, de 13 de Março de 1986, de 4 de Julho de 1978 de 28 de Abril de 1977, em respectivamente Colectânea de Jurisprudência - Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, 1995, tomo I, pág. 155, Novos Estilos, Março de 1994, pág. 61, Colectânea de Jurisprudência, 1993, tomo III, pág. 26; Boletim do Ministério da Justiça, n.º 406, pág. 623, n.º 355, pág. 356, n.º 279, pág. 124, n.º 266 pág. 124).

Há, frequentemente, colisão ou conflito de direitos fundamentais que importa solucionar.Pois bem, muito embora não exista um modelo de solução, um critério de solução válido em

termos gerais e abstractos [com base, por exemplo, numa ordem de valores ou na distinção entre os direitos sujeitos a leis restritivas e direitos não sujeitos a leis limitadas (J. J. Gomes Canotilho, Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 125.°, págs. 293 e segs.), claro está que é preciso decidir os casos concretos e a via indicada parece ser a que harmonize os direitos em conflito ou, se necessário, dê prevalência a um deles, de acordo com as circunstâncias concretas e à luz de uma hierarquia decorrente das próprias normas constitucionais - na verdade, a Constituição concede maior protecção aos direitos, liberdades e garantias do que aos direitos económicos, sociais e culturais e há uma ordem decrescente de consistência, de protecção jurídica, de densidade subjectiva daqueles para estes - ou de aplicação de critérios metódicos abstractos que orientem a tarefa de ponderação e ou harmonização concretas, tais como «o princípio da concordância prática», «a ideia do melhor

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equilíbrio possível entre os direitos colidentes» (Jorge Miranda, ob. cit., págs. 135, 145,146 e 301; J. J. Gomes Canotilho, ob. cit., págs. 660, 661 e 538).

De qualquer modo, no campo da lei ordinária, há um texto atinente à colisão de direitos, o artigo 335.° do Código Civil, que dispõe:

1 - Havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os direitos ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes.

2 - Se os direitos forem desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deva considerar-se superior.

Ora, no nosso caso, temos, de um lado, um direito à integridade física, à saúde, ao repouso, ao sono, e, de outro, um direito de propriedade ou, se se quiser, um direito ao exercício de uma actividade comercial e não temos dúvida que aquele primeiro direito, gozando da plenitude do regime dos direitos, liberdades e garantias (artigo 19.°, n.º 6, da Constituição), é de espécie e de valor superior aos segundos, os quais são direitos fundamentais que apenas beneficiam do regime material dos direitos, liberdades e garantias (Jorge Miranda, ob. cit., págs. 145 e 146; J. J. Gomes Canotilho, ob. cit., pág. 538).

Assim, há que dar prevalência ao direito à integridade física, ao repouso, à tranquilidade, ao sono, como, de resto, a doutrina e a jurisprudência vêm defendendo (Vaz Serra, Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 103.°, págs. 374 e segs.; Cunha de Sá, Abuso de Direito, págs. 528 e 529; Pessoa Jorge, Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil, pág. 201; os já citados acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Julho de 1978, de 13 de Março de 1986, de 17 de Março de 1994 e de 26 de Abril de 1995).

À luz do que se acaba de dizer e atentos os factos provados, nomeadamente os supra-incluídos nos n.os 2, 4, 5, 6, 7, 9 e 10, afigura-se-nos indiscutível a obrigação de o réu indemnizar os autores, por se terem provado, contrariamente ao afirmado pelo recorrente, os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, a saber: o facto, a ilicitude, a imputação do facto ao lesante sob a forma culposa, o nexo de causalidade entre o facto e o dano».

b) - Violação de lei que protege interesses alheios, de leis que não conferem um direito subjectivo a essa tutela - leis penais, de trânsito, de certas actividades como a construção civil, electricidade, elevadores cuja porta abre sem que o elevador se encontre nesse patamar (BMJ 412-438), leis administrativas - que visam principalmente a protecção de interesses colectivos, como a concorrência, a saúde pública, mas não deixam, também, de atender aos interesses particulares de indivíduos ou de grupos e visam prevenir o simples perigo de dano, em abstracto.

Neste concreto tipo de ilicitude é indispensável que se verifiquem três requisitos:

1º - Que à lesão dos interesses do particular corresponda a violação de uma norma legal. O agressor do artista não terá que indemnizar o empresário prejudicado pelo cancelamento do espectáculo (?).

2º - Que a tutela dos interesses particulares figure entre os fins da norma violada, não seja mero reflexo dos interesses colectivos. Será este o caso de um electricista que morre electrocutado quando fazia uma ligação eléctrica e os familiares pretendiam valer-se do Regulamento de Segurança das I. U. E. (BMJ 453-484).

3º - Que o dano se tenha registado no círculo de interesses privados que a lei visa tutelar. Não haverá responsabilidade se o ilícito - queda de cimento - ocorre em espaço vedado ao público ou reservado a certas pessoas que não o lesado - estacionamento de médico em lugar reservado à direcção da clínica.

Factos ilícitos especialmente previstos na lei

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484º - Imprensa - Caso Cadilhe - 94-I-106 e os fornecidos aquando do estudo do art. 70º, designadamente o BMJ 448-384 e notas;

Col. STJ 99-I-120 a 122, com estudo da ofensa do direito de personalidade através de imprensa, direito ao bom nome e dever de informar, direito de liberdade de imprensa:

«7 - Os RR. atingiram, assim, o honra do A.O valor pessoal de cada homem constituído ao longo dos seus anos de vida por tudo aquilo

que fez ao ser recebido pela sociedade, representa a sua honra - Ac. S.T.J. 26/06/95 e 03/10/95, respectivamente, Bol. 448, págs. 378 e 450, pág. 424.

Como ensinava Dr. Capelo de Sousa - Direito Geral de Personalidade, 1995, págs. 303 e 304:

"A honra juscivilisticamente tutelada abrange desde logo a projecção do valor da dignidade humana, que é inata, ofertada pela natureza igualmente a todos os seres humanos, insusceptível de ser perdida por qualquer homem em qualquer circunstância.

Em sentido amplo inclui também o bom-nome e reputação, enquanto sínteses do apreço social pelas qualidades determinantes da unicidade de cada indivíduo e pelos demais valores pessoais adquiridos pelo indivíduo no plano moral, intelectual, sexual, familiar, profissional ou político".

Pretende-se proteger o homem em face do que ele é não do que ele tem, como afirma De Cupis.

Daí a sua dignidade constitucional tutelada pelo art. 26º, n˚ 1, da Lei Fundamental, ex vi art. 1º e 2º: a pessoa humana, é o bem supremo da nossa ordem jurídica, o seu fundamento e o seu fim — ver Ac. Tribunal Constitucional de 05/02/97, D.R. de 15/04/97, págs. 21, 478 e segs.

Embora a nossa Constituição não contenha expressamente uma cláusula geral de tutela da personalidade, ao contrário da República Federal da Alemanha — art. 2 n˚ 1.

8 - O art. 70º do C.C. estatui, no seu n˚ 1: "A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral".

E no seu n˚ 2 inclui expressamente a responsabilidade civil entre os meios gerais de tutela de personalidade física ou moral — sobre a fonte deste artigo, ver os citados Ac. S.T.J., Bol. 448 e 450, por nós relatados.

O nosso legislador recorreu à "cláusula geral" — personalidade física ou moral — para a protecção de cada indivíduo encontrar apoio legal, dada a crescente e imprevisível mutação de vida, em face da visão actualista inserida no art. 9º, n˚ 1, do C. C.

A personalidade é o bem jurídico, unitário e globalizante, protegido pelo art. 70º.Diremos com o Dr. Capelo de Sousa — ob. cit., pág. 117:"Poderemos definir positivamente o bem de personalidade humana juscivilisticamente

tutelado, como o real e potencial físico e espiritual de cada homem em concreto, ou seja, o conjunto autónomo, unificado, dinâmico e evolutivo dos bens integrantes da sua materialidade física e do seu espírito reflexivo, sócio-ambientalmente integrado".

O objecto do direito geral de personalidade é a personalidade de titular desse direito.Estamos frente a um bem jurídico global, unitário, complexo e coerente.O seu conteúdo traduz-se naquele conjunto de faculdades contidas no poder jurídico,

veiculadas por meios jurídicos de agir postos na disponibilidade do sujeito, visando a realização do seu interesse.

Poder projectado no uso e fruição da sua personalidade, exigindo dos outros sujeitos oriundos da relação jurídica — como conjunto de faculdades unificadas — a abstenção de praticar actos que ilicitamente ofendem ou ameacem aquela personalidade, sob pena de aplicabilidade do estatuído no n˚ 2 do art. 70º.

Não estamos perante um conceito superior, com mera função de ordenação, como sustenta Esser.

Mas sim perante um direito geral de personalidade recebido no art. 70º, como lex generalis.Aí se recebe e protege o homem com o seu direito à diferença, projectada em concepções e

daí actuações próprias.O seu conteúdo normativo está delimitado "pelos efeitos de negócios jurídicos emergentes da

autonomia privada, por direito de outrem, por deveres do seu titular, pelas regras da colisão de direito,

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pela ponderação das causas justificativas de ilicitude e de culpa e pela não indemnizabilidade dos danos não patrimoniais sem gravidade" - Dr. Capelo e Sousa, ob. cit. pág. 607, em nota.

O objecto do direito geral de personalidade é a personalidade de titular desse direito.Estamos frente a um bem jurídico global, unitário, complexo e coerente.O seu conteúdo traduz-se naquele conjunto de faculdades contidas no poder jurídico,

veiculadas por meios jurídicos de agir postos na disponibilidade do sujeito, visando a realização do seu interesse.

Poder projectado no uso e fruição da sua personalidade, exigindo dos outros sujeitos oriundos da relação jurídica — como conjunto de faculdades unificadas — a abstenção de praticar actos que ilicitamente ofendem ou ameacem aquela personalidade, sob pena de aplicabilidade do estatuído no n˚ 2 art. 70º.

9 - A noção de direito subjectivo já se encontrava implicitamente no Direito Romano, sem que este a tenha teorizado Puig Brutau, Introducción al Dereccho Civil, 1980, pág. 259.

Por exaltação renascentista da pessoa humana e impulso dos jusnaturalistas, plasmou-se nas doutrinas liberais que inspiraram o Código Napoleónico.

O nosso C.C. de 1867, na esteira da teoria da vontade de Savigny, definiu-o, no art. 2º como "a faculdade moral de praticar ou deixar de praticar certo facto".

O actual de 66º não define direito subjectivo.E bem.Com efeito, a definição como noção geral de cada instituto ou figura, constituindo preceitos

vinculativos do "operador" do direito, ao delimitar o âmbito de aplicação dos respectivos regimes legais, toma o aspecto de texto didáctico, que não se compatibiliza com a dinâmica da vida.

E com maior gravidade vai apresentar uma teorização, que compete prima facie à jurisprudência e à doutrina.

Doutrina que está profundamente dividida quanto à noção de direito subjectivo — Ver Dr. Capelo de Sousa, ob. cit., págs. 606 a 619.

Facilmente poderemos aderir à dada pelo Prof. Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, 1996, Vol II, pág. 457 — ali não referida, até por ser de data posterior — como "o poder jurídico de realização de um fim de determinada pessoa, mediante a afectação jurídica de um bem".

Estamos perante um poder do respectivo titular de se "dirigir ao juiz para obter o seu reconhecimento e obrigar terceiros a adoptar um comportamento que o respeite".

Foi isto que fez o A, em defesa da sua dignidade, da sua honra.A honra é o bem jurídico afectado pelo art. 70º do C.C. à tutela jurídica civilística, dando-lhe

intenção axiológico-normativa própria e válida.Sem que haja taxatividade de modos típicos da sua violação: "qualquer ofensa" - n˚ 1 art. 70º.O que se projecta numa especial ponderação por parte do juiz ao apreciar a matéria fáctica,

dada a sua intrínseca maior complexidade valorativa.

10 - A tutela civil incorporada neste art. 70º consubstancia-se no direito de exigir do R. infractor responsabilidade civil, nos termos dos arts. 483º e 484º.

Precisamente por o direito geral de personalidade ser um direito subjectivo, pessoal absoluto.Para além dos dois tipos de situação de responsabilidade civil enumerados no n˚ 1 do art.

483º (grundbstände) — violação dos direitos de outrem e violação de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios (em recepção diferente art. 1.382º do C.C. Francês e 2.043º do C.C. Italiano, sistema de dupla cláusula geral e § 823 do C.C. Alemão — sistema (de tatbestände), o nosso legislador recebeu uma série de previsões particulares (Sondertsbestände).

Estas concretizam ou completam aquelas.São as insertas nos arts. 484º, 485º e 486º - Prof. A. Varela, Obrigações I, 9ª ed., pág. 508 e

P. Jorge - Ensaio sobre os Pressupostos de Responsabilidade Civil, pág. 308 e ainda nos arts. 491, 492 e 493 - Prof. M. Cordeiro, Obrigações II, págs. 351 e 352.

Assim, a ofensa ao bom-nome prevista no art. 484º é um caso especial de facto antijurídico definido no art. 483º.

Daí a sua subordinação ao princípio geral inserto no art. 483º.

11 - Foi na 2ª Revisão Ministerial que no art. 483º se introduziu a palavra "ilicitamente", hoje incluída no art. 483º.

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É que, anteriormente, quer no Anteprojecto do Prof. Vaz Serra, Bol. 92, pág. 37 — onde se empregava o advérbio "antijuridicamente", quer na 1ª Revisão — onde este desapareceu — não se fazia referência ao carácter "ilícito" da conduta.

A antijuridicidade decorre da violação do direito de outrem, ou de qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios.

"É antijurídica a conduta que ameace lesar o crédito e o bom nome" — Prof. A. Varela, ob. cit., vol. I, pág. 567 e Prof. Pires Lima e A. Varela — Anotado, 4ª ed., pág. 486.

A ilicitude circunscreve-se mais directamente à ausência de uma causa de justificação.Traduzida em comportamento que vai de encontro ao estatuído numa norma jurídica.Com a ressalva de eventual existência de uma causa de justificação — art. 483º, n˚ 1 — Ac.

S.T.J. de 98/09/03, Proc. 803/98, por nós relatado.Ou seja, a "ilicitude traduz a reprovação da conduta do agente, embora no plano geral e

abstracto em que a lei se coloca, uma aproximação da realidade" — Prof. A. Varela, Obrigações, vol. I, 9ª ed., pág. 562.

A violação do direito de personalidade, com efeito, pode ser afastada quando o facto do lesante é praticado no exercício regular de um direito, no cumprimento de um dever, em acção directa, em legítima defesa ou com o consentimento do lesado — Ac. do S.T.J. já citado, Bol. 450, pág. 429.

Os RR. sempre sustentaram que na elaboração do programa do Telejornal em apreço foram respeitadas todas as regras deontológicas da profissão de jornalista, não havendo outra finalidade que não fosse a de informar, com verdade e isenção.

Levantaram o melindroso problema prático e actual da difícil convivência entre o direito da liberdade da comunicação social e o constitucional e absoluto direito ao bom-nome e reputação — ver Ac. do S.T.J. de 26/04/94; Col. Jur. do S.T.J., 1994, Ano II, Tomo II, pág. 54; de 29/10/96, Col. Jur., S.T.J, 1996, Ano IV, Tomo 111, pág. 80 e de 27/05/97, Col. Jur., S.T.J., 1997, Ano V, Tomo II, pág. 102.

No sumário daquele acórdão de 29/10/96 escreveu-se "o direito de liberdade de expressão e informação, não pode, ao menos em princípio, atentar contra o bom-nome e reputação de outrem, sem prejuízo, porém, de em certos casos, ponderados os valores jurídicos em confronto, o princípio da proporcionalidade conjugado com os ditames da necessidade e da alegação e todo o circunstancialismo concorrente, tal direito pode prevalecer sobre o direito ao bom nome e reputação".

Correcto.Só que no caso em apreço a matéria fáctica provada atrás descrita, não só não favorece a

tese dos recorrentes, que encontraria apoio naquele aresto, como, pelo contrário, até comprova o alegado pelo A.

Efectivamente o que muito sinteticamente se provou é que os RR. quiseram transmitir informação com identificação dos detidos e dos proprietários dos "stands") não contida em comunicado oficial, que já oportunamente conheciam (onde havia omissão de identificação dos detidos e dos proprietários dos "stands", estabelecendo, desta forma, uma conexão não verdadeira entre o A. como proprietário dos "stands" e os factos relatados.

12 - Sendo pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos:- facto voluntário do agente,- ilicitude,- imputação do facto ao lesante,- dano,- Nexo de causalidade entre o facto e o danohá que apurar finalmente os danos.O invocado dano patrimonial não está provado.Com efeito, o tribunal — fls. 371/v — respondeu "não provado" à matéria do quesito 15, onde

se perguntava se o A. sofreu uma paragem na evolução, até então sempre crescente, da sua clientela por causa da actuação dos RR.

O dano não patrimonial está provado — respostas aos quesitos 7-8-10-11-12 e 13.A honra do A foi profundamente ofendida, aferida objectivamente a sua gravidade, pelo que a

sua reparação merece a tutela do direito — art. 496º, n˚ 1.Nos termos do n˚ 3 do art. 496º, o montante de indemnização por danos não patrimoniais

será fixada equitativamente, tendo em atenção os índices circunstanciais referidos no art. 494º.

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Ou seja, o grau de culpabilidade do responsável, a situação económica do lesante e do lesado e as demais circunstâncias do caso.

E de acordo com a corrente jurisprudência.Os RR. agiram com dolo, dolo directo, na medida em que quiseram directamente realizar o

facto ilícito.Na esteira do Prof. A. Varela, Obrigações, 9ª ed., vol I, pág. 590 "o jornalista sabe que

narrando certo facto, atinge a honra ou o bom-nome de outrem e é esse preciso efeito que pretende atingir".

A relevância do Telejornal da RTP das 19h30, na formação da opinião pública, é enorme, não só em face da sua inerente publicidade, como pelo cunho da seriedade e veracidade que se manifesta imanente, visando uma natural convivência cívica.

O A. foi vexado, como homem, como docente universitário, no exercício das elevadas funções públicas que exerceu e como profissional liberal.

É conhecida a situação económica da R.T.P.Os casos mais recentes e que podem apresentar algum paralelismo com o dos autos foram

os julgados nos já referidos Ac. S.T.J., Bol. 448, pág. 378, Col. Jur., S.T.J., 1994, Ano II, Tomo II, pág. 54; e 1997, Ano V, Tomo II, pág. 102; e 17/06/98, Proc. 612/98 — 1ª secção.

Daí que se repute equilibrado o montante de 3.000.000$00 com quantum indemnizatório pelos danos não patrimoniais sofridos pelo A.

13 — Termos em que, concedendo-se em parte a revista, condena-se os RR. a pagar ao A. a indemnização no montante de 3.000.000$00 pelos danos não patrimoniais sofridos pelo A., acrescida de juros moratórios desde a citação e bem assim à publicação desta decisão, nos termos do art. 54º da Lei de Imprensa, absolvendo-os quanto ao pedido referente aos peticionados danos patrimoniais.

Custas por A. e RR., respectivamente, na proporção de 2/5 e 3/5.

Lisboa, 24 de Fevereiro de 1999.Torres PauloAragão SeiaLopes Pinto»

«1 - O direito à imagem e direito à reserva sobre a intimidade da vida privada, enquanto direitos fundamentais de personalidade, são inatos, inalienáveis, irrenunciáveis e absolutos, no sentido de que se impõem, por definição, ao respeito de todas as pessoas.

2 - O que se passa no interior da residência de cada pessoa e na área, privada, que a circunda, integra o núcleo duro da reserva da intimidade da vida privada legalmente protegida.

3 - A publicação numa revista pertencente à ré de uma reportagem fotográfica legendada divulgando, sem consentimento do autor, uma visita por ele feita na companhia da mulher à residência familiar então em fase de construção na cidade de Madrid, integra a violação simultânea dos seus direitos à imagem e à reserva da intimidade da vida privada.

4 - A ilicitude desta conduta não é afastada, nem pelo facto de o autor ser uma pessoa de grande notoriedade, adquirida graças à sua condição de futebolista profissional mundialmente reconhecido (figura pública), nem pela circunstância de as fotografias mostrarem apenas a entrada da casa e de esta se encontrar em fase de construção.

5 - O direito da liberdade de imprensa tem como limite intransponível, entre outros, a salvaguarda do direito à reserva da intimidade da vida privada e à imagem dos cidadãos.6 - De igual modo, também a invocação do direito de informar consagrado no art.º 37º, nº 1, da Constituição não legitima a conduta do lesante se não houver qualquer conexão entre as imagens ou factos divulgados pertencentes ao foro privado do lesado e a actividade profissional por ele desempenhada que originou a sua notoriedade pública – Ac. do STJ (Cons.º Nuno Cameira), de 14.6.2005, no P.º 05A945.

No mesmo sentido e versando pedido indemnizatório formulado por Valle e Azevedo pode ver-se a Col. 01-II-103; Informação anotada em ficha de Banco - 93-II-171 STJ; em carta dirigida a autoridades - BMJ 406-623.

Não se exige animus iniuriandi vel difamandi - BMJ 467-577.

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Ainda sobre violação do bom nome através da imprensa (Televisão) pode ver-se o caso Subtil na Col. Jur. (STJ) 2001-III-21 e através do exercício do direito de queixa na mesma Col. (STJ) 2001-III-122: A ofensa do crédito ou do bom-nome de uma pessoa está subordinada aos princípios gerais da responsabilidade delitual; a afirmação ou divulgação de um facto pode não ser ilícita se corresponder ao exercício regular de um direito, faculdade ou dever.

Por último, sobre a liberdade de imprensa, direito à honra e à reserva da intimidade da vida privada, deve analisar-se o Ac. do STJ (Cons.º Araújo Barros), de 26.2.2004, na Col. Jur. STJ 2004-I-74 a 80, assim transcrito:

«Sem grande preocupação com a análise do comportamento dos réus - e respectiva qualificação - as decisões das instâncias fundamentam, no essencial, a absolvição dos recorridos no facto de o recorrente não haver sido directamente atingido na sua imagem, honra e reputação (que assim não foram violados), porquanto as notas publicadas apenas se referiram a um eventual relacionamento entre a sua mulher e E.

Citando até o acórdão recorrido o Prof. Antunes Varela quando defende que apenas tem direito à indemnização, salvo nas situações excepcionais do art. 495º do C.Civil, o titular do direito violado ou do interesse imediatamente lesado com a violação de disposição legal e já não o reflexa ou indirectamente prejudicado. (1)

E afirma, depois, em jeito de conclusão, que "tais notícias referem-se a comportamento menos honroso da mulher do ora apelante: será ela, portanto, que terá de se mover com vista à ofensa da sua honra se, na verdade, a considera ofendida. Porém, uma coisa é certa: a honra do apelante não foi ofendida com as notícias publicadas no D a respeito da sua mulher. Não há nenhuma razão para considerar que, com a publicação de tais notícias, a honra do apelante, o seu bom nome, a sua reputação, foram afectados: se ele era até então homem sério e honesto, não o deixou de ser com a publicação de tais notícias" (fls. 197).

Parece-nos, no entanto, que se procedeu a uma subsunção demasiado simplista do direito aos factos provados, a qual, por isso mesmo, não podemos sufragar.

E, antes de mais, importa saber se com a publicação das expressões acima mencionadas - e porque as decisões das instâncias assim o impõem - se pode considerar que foi concreta e directamente violado algum direito absoluto do aqui autor, situação que permitiria qualificar a conduta dos réus como antijurídica (pelo menos objectivamente).

A antijuridicidade do comportamento situa-se na violação de um direito absoluto de outrem - como tal qualquer direito de personalidade, designadamente o direito à honra e ao bom nome, ou mesmo o direito à reserva da intimidade privada.

Na verdade, os direitos de personalidade (como hão-de qualificar-se os direitos à honra e ao bom nome) pertencem à categoria dos direitos absolutos, como direitos de exclusão, oponíveis a todos os terceiros, que os têm que respeitar.

"Estes direitos emanam da própria pessoa cuja protecção visam garantir. Resulta isto do nº 1 do art. 70º CC, que protege os indivíduos - independentemente de culpa - contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral. A protecção assim garantida abrange o homem naquilo que ele é e não naquilo ele tem. Contudo, objecto da respectiva relação jurídica nunca é o indivíduo ou a pessoa ou a sua personalidade, mas sempre o direito de personalidade que incide sobre certas manifestações ou objectivações da mesma". (2)

A ideia da protecção da pessoa humana, da sua personalidade e dignidade, encontra expressão jurídica em vários preceitos da Constituição da República Portuguesa (3) (o art. 1º fala da dignidade da pessoa humana como fundamento da sociedade e do Estado; o art. 13º, nº 1, refere-se à igual dignidade social dos cidadãos; o art. 24º, nº 1, declara que a vida humana é inviolável; o art. 25º garante o direito à integridade moral e física da pessoa; o art. 26º consagra outros direitos pessoais, nomeadamente respeitantes à identidade, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação).

Em sintonia com estes preceitos encontram-se os arts. 70º a 81º do C.Civil que transpõem a ideia constitucionalizada da protecção à pessoa humana para o campo do direito civil.

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O Código Civil, não contendo uma definição geral ou uma definição de direito de personalidade (apenas o art. 70º consagra o direito geral de personalidade), abrange, na sua protecção, no âmbito do direito civil, todos aqueles "direitos subjectivos, privados, absolutos, gerais, extra-patrimoniais, inatos, perpétuos, intransmissíveis, relativamente indisponíveis, tendo por objecto os bens e as manifestações interiores da pessoa humana, visando tutelar a integridade e o desenvolvimento físico e moral dos indivíduos e obrigando todos os sujeitos de direito a absterem-se de praticar ou de deixar de praticar actos que ilicitamente ofendam ou ameacem ofender a personalidade alheia sem o que incorrerão em responsabilidade civil e/ou na sujeição às providências cíveis adequadas a evitar a ameaça ou a atenuar os efeitos da ofensa cometida". (4)

Segundo o mencionado Prof. Capelo de Sousa, "poderemos definir positivamente o bem da personalidade humana juscivilisticamente tutelado como o real e potencial físico e espiritual de cada homem em concreto, ou seja, o conjunto autónomo, unificado, dinâmico e evolutivo dos bens integrantes da sua materialidade física e do seu espírito reflexivo, sócio-ambientalmente integrado". (5)

Assim, tendo ocorrido uma ofensa ilícita, a lei admite que possa, além das providências adequadas à situação, haver lugar à responsabilidade civil caso se verifiquem os pressupostos da responsabilidade por factos ilícitos, designadamente a culpa e a existência de um dano (art. 70º, nº 2, em ligação com o art. 483º do C.Civil) ou os pressupostos da responsabilidade pelo risco, ou seja, a concretização do risco e a existência de um dano (art. 70º, nº 2, em ligação com o art. 499º do citado diploma).

A questão está agora em saber se os factos apurados assumem carácter ilícito, ou seja, em palavras claras, se violam, por acção ou por omissão, qualquer comportamento que a lei justamente proíba (designadamente se violam ou não o direito de personalidade do recorrente).

E, analisados os factos provados, parece-nos que a resposta não pode deixar de ser afirmativa.

É perfeitamente irrelevante o facto de nas notas publicadas pelo D apenas se referir a F, mulher do autor: daí não pode extrair-se a ilação de que só esta pode ter sido ofendida na sua honra pessoal. É que, se calhar, por aquilo que na sequência se deixa adivinhar - teor de vida livre - a mesma poderá nem sequer se ter sentido ofendida.

O que é decisivo, e indubitável é que a veiculação das directas insinuações feitas à mulher do autor - no mínimo tratando-a como mulher leviana e imputando-lhe a prática de adultério - sendo aquele homem conhecido e publicamente relacionado, objecto de chacota da parte de amigos e conhecidos, o atingiu directa e objectivamente na sua honra e consideração.

Não se encontra, assim, o autor, ao contrário do que entendeu o acórdão recorrido, numa situação de prejudicado reflexa ou indirectamente. O que manifestamente acontece - e aqui o acórdão impugnado confundiu a pessoa atingida com a forma como foi atingida - é que o autor foi directamente prejudicado no seu direito ao bom nome, honra e consideração social, embora de modo indirecto, através da referência a um comportamento, no mínimo, leviano da sua mulher.

Afigurando-se-nos, mesmo, completamente desinserida da realidade social a conclusão do citado acórdão, referindo-se ao autor, de que "se ele era até então homem sério e honesto, não o deixou de ser com a publicação de tais notícias". Não está, na realidade em causa a seriedade e honestidade do autor. O que tem que ser tido em conta é a sua honra, bom nome e reputação social, que, sem qualquer dúvida, foram violados (sem falar já da violação do direito à intimidade da sua vida conjugal privada) na medida em que, como é sabido - e o autor demonstrou - o marido traído deixa de gozar da consideração social que lhe era concedida, passa a ser desprezado e objecto de comentários pouco abonatórios.

Impõe-se, pelo exposto, concluir que, ao contrário do que entenderam as instâncias, o autor foi directamente atingido na sua honra, consideração, bom nome e intimidade da vida privada, direitos estes que pertencem à categoria dos direitos absolutos, como direitos de exclusão, oponíveis a todos os terceiros, que os têm que respeitar, e juridicamente tutelados contra qualquer ofensa.

Apreciando, agora, o comportamento dos réus quanto à ocorrência ou não de ilicitude subjectiva e à natureza do nexo da sua imputação àqueles (mera culpa ou dolo) - já que a voluntariedade da conduta deles se encontra claramente demonstrada nos autos - começaremos por indicar as disposições que podem justificar a obrigação de indemnizar resultante da responsabilidade civil extracontratual.

Assim, dispõe o art. 483º, nº 1, do C. Civil, que "aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem... fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos decorrentes da

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violação". Acrescentando o nº 2 que "só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei".

Por seu turno, estabelece o art. 484º do mesmo diploma que "quem afirmar ou difundir um facto capaz de prejudicar o crédito ou o bom nome de qualquer pessoa, singular ou colectiva, responde pelos danos causados".

A questão está agora em saber se os factos apurados assumem subjectivamente carácter ilícito, ou seja, em palavras claras, se violam, por acção ou por omissão, qualquer comportamento que a lei justamente proíba.

Os factos ocorreram em 1996.Na parte que importa, regem-se pelas disposições conjugadas, ressalvada a respectiva

hierarquia, da Constituição da República, da Lei de Imprensa (6), bem como do Estatuto do Jornalista (7).

O artigo 37º, nº 1, da Constituição estabelece que "todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento, pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações".

E o nº 4 do mesmo preceito assegura a todas as pessoas, singulares ou colectivas, o direito a indemnização pelos danos sofridos em resultado de infracções cometidas no exercício do direito de liberdade de expressão e informação, garantindo o artigo 38º, nº 1, a liberdade de imprensa, que implica, além do mais, a liberdade de expressão e criação dos jornalistas (al. a) do nº 2).

A Lei de Imprensa formula idênticos princípios, ou valores (arts. 1º, 4º e 5º).Por sua vez, o Estatuto do Jornalista assinala, que os jornalistas "devem respeitar

escrupulosamente o rigor e objectividade da informação", assim como "os limites ao exercício da liberdade de imprensa, nos termos da Constituição e da Lei" (als. b) e c) do art. 1º).

Tão importante, assim, vem a ser assegurar o livre exercício dos direitos de informação e de livre expressão do pensamento, de que a liberdade de imprensa constitui modo qualificado (8), enquanto "elemento imprescindível ao funcionamento e aperfeiçoamento das instituições democráticas" (9), como garantir o respeito pelos demais direitos, liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos, em que, em idêntico plano constitucional, se inclui a da dignidade da pessoa humana (citado art. 1º) e dos direitos à integridade moral (art. 25º, nº 1º) e ao bom nome e reputação (art. 26º, nº 1º).

Exposto o quadro legal de referência, importa, então, saber como conjugar, em caso de conflito, estes dois direitos fundamentais: o direito/dever de informação e o direito à honra, ao bom nome e à reputação social.

Quer a Constituição, quer as leis ordinárias mencionadas, não estabelecem, neste domínio, qualquer regime especial relativamente à ilicitude em matéria civil e, naturalmente, à respectiva obrigação de indemnizar, quando ocorrer, por responsabilidade civil extracontratual, limitando-se a remeter, expressa ou tacitamente, para os princípios gerais e normas do Código Civil (arts. 37º, nº 4, da Constituição e 24º da Lei da Imprensa).

Será, pois, com base nas normas da sistemática civilística (designadamente arts. 70º, 483º, nº 1, 484º, 487º e 497º, nº 1, do C. Civil), que deve ser avaliada a ilicitude (e, eventualmente, a culpa) como pressuposto da obrigação de indemnizar fundamentada na responsabilidade civil extracontratual.

De um modo geral, "o homem é definido pela liberdade que pode exercer, face a um coeficiente naturalmente humano de adversidade que resulta da presença dos outros. Se a existência de um outro homem se afirma ela mesma, como necessidade de facto, na relação fundamental entre mim e o outro, o cogito da existência do outro confunde-se com o meu próprio cogito, pelo que a existência do outro é o limite à minha própria liberdade".

Em sentido amplo o direito geral de personalidade "inclui também o bom nome e a reputação, enquanto sínteses do apreço social pelas qualidades determinantes de unicidade de cada indivíduo e pelos demais valores pessoais adquiridos pelo indivíduo no plano moral, intelectual, sexual, familiar, profissional ou político". (11)

O direito ao bom nome e reputação "consiste essencialmente no direito a não ser ofendido ou lesado na sua honra, dignidade ou consideração social mediante imputação feita por outrem, bem como no direito a defender-se dessa ofensa e a obter a competente reparação" (12).

A honra abrange desde logo a projecção do valor da dignidade humana, que é inata, ofertada pela natureza igualmente para todos os seres humanos, insusceptível de ser perdida por qualquer homem em qualquer circunstância". (13).

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É a honra um "bem da personalidade e imaterial, que se traduz numa pretensão ou direito do indivíduo a não ser vilipendiado no seu valor aos olhos da sociedade e que constitui modalidade do livre desenvolvimento da dignidade humana, valor a que a Constituição atribui a relevância de fundamento do Estado Português; enquanto bem da personalidade e nesta sua vertente externa, trata-se de um bem relacional, atingindo o sujeito enquanto protagonista de uma actividade económica, com repercussões no campo social, profissional e familiar e mesmo religioso". (14)

Ora, como atrás referimos, prevê o art. 484º do C. Civil uma possibilidade de indemnização desde que, sublinhe-se, se verifiquem os pressupostos definidos no artigo 483º.

Na verdade, a ofensa prevista no artigo 484º mais não é que um caso especial de facto antijurídico definido no artigo precedente que, por isso, se deve ter por subordinada ao princípio geral consignado nesse artigo 483º, não só quanto aos requisitos fundamentais da ilicitude, mas também relativamente à culpabilidade. (15)

Ou seja, para além das duas disposições básicas de responsabilidade civil constantes do artigo 483º, o nosso legislador recebeu uma série de previsões particulares que concretizam ou complementam aquelas, entre elas, e desde logo, a do artigo 484º.

Assim, Almeida Costa (16), após considerar que um dos casos especiais de ilicitude previstos no Código Civil é o da ofensa do crédito ou do bom nome, conclui que "parece indiferente... que o facto afirmado ou difundido seja verdadeiro ou não. Apenas interessa que, dadas as circunstâncias concretas, se mostre susceptível de afectar o crédito ou a reputação da pessoa visada".

Também Menezes Cordeiro (17) entende que a ofensa do crédito ou do bom nome está sujeita às regras gerais dos delitos, concluindo pela responsabilidade de quem, com dolo ou mera culpa, viola o direito ao bom nome e reputação de outrem, após o que afirma que "é indubitável que a divulgação de um facto verdadeiro pode, em certo contexto, atentar contra o bom nome e a reputação de uma pessoa. Por outro lado, a divulgação de um facto falso atentatório pode não constituir um delito - por carência, por exemplo, de elemento voluntário. Por isso, a solução deve resultar do funcionamento global das regras da imputação delitual".

Segundo Antunes Varela (18), além das duas grandes directrizes de ordem geral fixadas no artigo 483º, o Código trata de modo especial alguns casos de factos antijurídicos, o primeiro dos quais é o da afirmação ou divulgação de factos capazes de prejudicarem o crédito ou o bom nome de qualquer pessoa (artigo 484º).

Autor que prossegue (19) dizendo que "pouco importa que o facto afirmado ou divulgado seja ou não verdadeiro - contanto que seja susceptível, ponderadas circunstâncias do caso, de diminuir a confiança na capacidade e na vontade da pessoa para cumprir as suas obrigações (prejuízo do crédito) ou de abalar o prestígio de que a pessoa goze ou o bom conceito em que ela seja tida (prejuízo do bom nome) no meio social em que vive ou exerce a sua actividade"

"A tutela do direito à intimidade da vida privada desdobra-se em duas vertentes: a protecção contra a intromissão na esfera privada e a proibição de revelações a ela relativas". (20)

Há, por conseguinte, que procurar, antes de mais, a concordância prática desses direitos, de informação e livre expressão, por um lado, e à integridade moral e ao bom nome e reputação, por outro, mediante o sacrifício indispensável de ambos. (21)

Em último termo, o reconhecimento da dignidade humana como valor supremo da ordenação constitucional democrática impõe que a colisão desses direitos deva, em princípio, resolver-se pela prevalência daquele direito de personalidade (nº 2 do art. 335º do C. Civil). (22)

Podendo dizer-se que o simples facto de "atribuir a alguém uma conduta contrária e oposta àquela que o sentimento da generalidade das pessoas exige do homem medianamente leal e honrado é atentar contra o seu bom nome, reputação e integridade moral". (23)

A liberdade de imprensa, e com ela a faculdade de livre expressão e divulgação da informação e dos meios da comunicação social (arts. 37º e 38º da Constituição) é uma liberdade responsável e, por isso, neste particular, em que atinge ou pode atingir o direito à honra e reputação social também constitucionalmente consagrado (arts. 25º e 26º do mesmo diploma constitucional), há-de corresponder ao fim para que é concedida e não prosseguir, ainda que indirectamente, outros fins.

Se, por um lado, se reconhece ser direito fundamental dos jornalistas a liberdade de criação, expressão e divulgação, a qual não está sujeita a impedimentos ou discriminações, nem subordinada a qualquer forma de censura, autorização, caução ou habilitação prévia e acesso às fontes (arts. 5º, 6º, 7º, 8º e 9º do Estatuto do Jornalista), certo é, também, constituir dever desses profissionais respeitar os limites ao exercício da liberdade de imprensa nos termos da Constituição e da Lei (citado art. 1º, nº 1, al. c), do mesmo Estatuto).

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Na delimitação do direito à informação intervêm princípios éticos, pelos quais o jornalista responde em primeiro lugar (24), constituindo dever de quem informa esforçar-se por contribuir para a formação da consciência cívica e para o desenvolvimento da cultural sobretudo pela elevação do grau de convivialidade como factor de cidadania, e não fomentar reacções primárias, sementes de violência, ou sentimentos injustificados de indignação e de revolta, tratando assuntos com desrespeito pela consciência moral das gentes, contribuindo negativamente para a desejável e salutar relação de convivialidade entre elas. O princípio norteador da informação jornalística deve ser o de causar o menor mal possível, pelo que quando se ultrapassam os limites da necessidade ou quando os processos são, de per si, injuriosos, a conduta é ilegítima. (25)

Pode, aliás, na sequência do exposto, concluir-se que o direito à informação comporta três limites essenciais: o valor socialmente relevante da notícia; a moderação da forma de a veicular; e a verdade, medida esta pela objectividade, pela seriedade das fontes, pela isenção e pela imparcialidade do autor, evitando manipulações que a deontologia profissional, antes das leis do Estado, condena.

Ora, o conflito entre os dois direitos constitucionalmente garantidos - o direito de liberdade de informação e o direito à honra e ao bom nome - terá que ser resolvido, nos termos do art. 335º do C.Civil, pela cedência, em casos de direitos iguais ou da mesma espécie, na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes (nº 1), ou pela prevalência do que deva considerar-se superior quando os direitos forem desiguais ou de espécie diferente (nº 2).

Sendo ambos os direitos enunciados, pelo menos em teoria, de igual hierarquia constitucional, o primeiro não pode, em princípio, atentar contra o segundo, devendo procurar-se "a harmonização ou concordância pública dos interesses em jogo, por forma a atribuir a cada um deles a máxima eficácia possível", (26) "em obediência ao princípio jurídico-constitucional da proporcionalidade, vinculante em matéria de direitos fundamentais". (27)

Nesta conflitualidade, "sendo embora os dois direitos de igual hierarquia constitucional, é indiscutível que o direito de liberdade de expressão e informação, pelas restrições e limites a que está sujeito, não pode, ao menos em princípio, atentar contra o bom nome e reputação de outrem, sem prejuízo, porém, de em certos casos, ponderados os valores jurídicos em confronto, o princípio da proporcionalidade conjugado com os ditames da necessidade e da adequação e todo o circunstancialismo concorrente, tal direito poder prevalecer sobre o direito ao bom nome e reputação". (28)

Designadamente assim sucede nos casos em que "estiver em causa um interesse público que se sobreponha àqueles e a divulgação seja feita de forma a não exceder o necessário a tal divulgação", (29) sendo exigível que a informação veiculada se cinja à estrita verdade dos factos. (30)

Apreciando o comportamento dos réus face ao exposto - em ordem a qualificá-lo quanto à sua natureza ilícita ou/e culposa - cumpre, desde já, afirmar que "uma conduta é ilícita quando ofende um direito subjectivo... sendo certo que "os direitos subjectivos de que nos fala o art. 483º do C.Civil são, fundamentalmente, os direitos absolutos - e nestes, os direitos de propriedade, os direitos de personalidade e os chamados direitos familiares patrimoniais". (31)

Assim, é manifesto que a "ilicitude se reporta ao facto do agente, à sua actuação, não ao efeito (danoso) que dele promana, embora a ilicitude do facto possa provir (e provenha até as mais das vezes) do resultado (lesão ou ameaça de lesão de certos valores tutelados pelo direito) que ele produz". (32)

Facto esse que "constitui a violação de um dever, o que implica: em primeiro lugar, a existência desse dever e, portanto, a destinação dum comando a seres inteligentes e livres que podem conhecê-lo e obedecer-lhe; em segundo lugar, a prática contrária de conduta diferente da devida". (33)

E, nesta medida, pode dizer-se que a ofensa ao crédito e ao bom nome prevista no art. 484º do C.Civil (que constitui um dos factos antijurídicos especialmente previstos na lei) não é mais que um caso especial de facto anti-jurídico definido no art. 483º precedente, pelo que se deve considerar subordinada ao processo geral deste art. 483º. (34)

Donde, a mera violação do direito ao bom nome de alguém (na medida em que este direito se impõe a todas as pessoas) contém, já em si, a antijuridicidade do comportamento dos agentes, sendo necessariamente ilícito, salvo se tal ilicitude estiver afastada por qualquer circunstância justificativa do facto praticado e da violação ocorrida.

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O que poderia acontecer apenas se, in casu, e como acima referimos, estivesse em causa um interesse público sobreponível aos direitos violados, a divulgação houvesse sido feita por forma adequada aos interesses em jogo, e, sobretudo, se a informação veiculada correspondesse, no essencial, à verdade dos factos ocorridos (ou só muito excepcionalmente embora com ela se não compaginasse, desde que na séria convicção de serem verdadeiros). (35)

No caso sub judice não pode considerar-se demonstrado o interesse público da notícia elaborada e veiculada pelos réus (é mesmo duvidoso que se trate de uma notícia). Encontramo-nos perante um daqueles típicos casos de aproveitamento de colunas criadas nos jornais, supostamente para divertir os leitores à custa de insinuações, maledicência, fofocas, sensacionalismo barato e, quantas vezes, sem qualquer interesse objectivo de informar a comunidade.

Assim é inequívoca a antijuridicidade da conduta dos réus, posto que, em derradeira análise, violou direitos de personalidade do autor.

E na justa medida em que, em jornal de larga dimensão, divulgaram factos que sabiam contender com o bom nome, honra e intimidade da vida privada das pessoas atingidas, de mais a mais de forma a serem reproduzidos por outra publicação nacional, há-de considerar-se, no mínimo, que agiram com falta de rigor e de objectividade, não havendo, assim, qualquer causa justificativa do seu comportamento, capaz de afastar a sua aparente ilicitude: donde, a actuação deles é certamente culposa.

Na verdade, "agir com culpa significa actuar em termos de a conduta do lesante merecer a reprovação ou censura do direito. E a conduta do lesante é reprovável, quando, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, se concluir que ele podia e devia agir de outro modo" (36), modo esse pelo qual agiria um bom pai de família perante as mesmas circunstâncias (art. 487º, nº 2, do C. Civil).

Ora, a divulgação dos factos acima descritos mostra-se desajustada do comportamento que qualquer pessoa normalmente diligente adoptaria, tornando-se, dessa forma, censurável e culposa, tanto mais quanto é certo que o dever de indemnizar não está dependente de intencionalidade ofensiva, bastando a simples reprobabilidade da actuação (mera negligência).

Assim é natural a conclusão, face à disposição do art. 487º, nº 2, do C.Civil, de que agiram culposamente.

Sendo indubitável que o fizeram dolosamente. Com efeito, age com dolo - actualmente, aliás, considerado simplesmente como uma graduação da culpa em sentido amplo - aquele que procede voluntariamente contra a norma jurídica cuja violação acarreta o dano (37), ou com intenção de ofender o direito, legalmente tutelado, de outrem. Por exemplo, "o jornalista que sabe que, narrando certo facto, atinge a honra ou o bom nome de outrem; e é esse preciso efeito que ele pretende atingir". (38)

Sendo que, no caso em apreço, não custa aceitar a existência de dolo, na modalidade de dolo necessário - reconhecendo, para tanto, que os recorridos (incluído o próprio D) não podiam deixar de ter previsto o facto ilícito como consequência necessária da sua conduta, de tal modo o resultado se apresentava intrínseca e indissoluvelmente ligado ao resultado.

Ou, pelo menos, dolo eventual, porquanto é possível, ao lado dos casos em que é patente uma intencionalidade dirigida (dolo directo), englobar, ainda, qualificáveis como dolosos, outros actos em que o agente, não querendo directamente o facto ilícito, todavia o previu como uma consequência necessária, segura, da sua conduta (dolo necessário), ou prevendo-o apenas como um seu efeito possível, se quedou insensível ante a possibilidade da respectiva verificação (dolo eventual).

Ora, conhecendo os réus, como era seu especial dever, a natureza melindrosa e difamatória dos seus escritos, tinham também o dever de ter impedido a sua divulgação - ao não o fazer, apesar de terem previsto a produção do facto ilícito como efeito possível ou eventual dessa sua conduta, conformaram-se com ele, aceitando-o.

Sendo seguro que, ao assim agirem, quiseram intencionalmente atingir os visados ou mesmo que, prevendo a ofensa ao bom nome, foram muito além do direito que lhes assistia de livremente informar (é, aliás, duvidoso que uma coluna de que constam insinuações mais ou menos malévolas, possa ser integrada no âmbito do direito de informar).

Concluindo: o comportamento dos réus é ilícito e violador do direito ao bom nome do autor, e qualificável como doloso.

Vejamos agora, configurada a obrigação de indemnizar dos réus pela violação do direito à intimidade da vida privada, à honra e ao bom nome do autor, a questão do montante da indemnização.

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Estabelece, neste domínio, o art. 496º, nº 1 do C.Civil, que "na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito. Acrescentando o nº 3 que "o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no art. 494º". Sendo que este art. 494º manda atender, na fixação da indemnização, ao grau de culpa do agente, à situação económica deste e do lesado e às demais circunstâncias do caso que o justifiquem.

Assim, o montante da reparação há-de ser proporcionado à gravidade do dano, devendo ter-se em conta na sua fixação todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida. (39)

"Nos crimes contra a honra, para a reparação do dano não patrimonial, haverá que considerar a natureza, a gravidade e o reflexo social da ofensa em função do grau de difusão do escrito, do sofrimento do ofendido e da sua situação social e política". (40)

No caso sub judice interessa ainda ponderar que a divulgação teve lugar através da imprensa, que tem como destinatário um universo mais ou menos indeterminado de pessoas, meio de difusão com uma particular aptidão potenciadora do dano, "seja pelo elevado número de pessoas que tiveram acesso à notícia, seja pela activação da engrenagem social que em consequência da notícia se produz (retransmitindo-a, ampliando-a, deformando-a), seja pelo grau de credibilidade que o acontecimento impresso tem no público". (41)

Assim, na busca da solução mais ajustada às circunstâncias, importa agora concluir sobre o valor pecuniário que se considera justo para, no caso concreto, compensar o lesado pelos danos não patrimoniais que sofreu - tendo sempre presente e atentando, com bom senso e prudência, nas especificidades do circunstancialismo que concorre na situação sub judice e que fazem dela uma situação circunstancial própria e diferente.

Posto o que, interessa recortar alguns dos pontos mais significativos: o jornal D é uma publicação que se vende em todo o território nacional; a partir da data da publicação dos artigos o autor passou a ser alvo de observações jocosas dos seus colegas de trabalho e de alguns passageiros da TAP que o conheciam devido à vida pública que levava; o autor, em consequência da publicação dos artigos referidos pediu uma licença de vencimento como única forma de se furtar aos incómodos e ultrajes de que foi alvo; o casal constituído pelo autor e a mencionada F acabou por se separar devido às discussões e aos embaraços que tais artigos provocaram em ambos; os réus agiram culposamente, com dolo directo dos primeiros e necessário (ou eventual) do D.

Desconhece-se a situação económica concreta das partes, se bem que se possa intuir que a do autor, atenta a actividade que exercia e a vida pública que levava, assim como a do D, empresa jornalística sobejamente conhecida, são razoáveis.

Ora, conjugando o descrito quadro factual com os elementos doutrinais e jurisprudenciais antes recenseados, tudo sopesando e valorando com o equilíbrio e ponderação que se exige, entendemos como justa, criteriosa e adequada às circunstâncias do caso a quantia, calculada nesta data, nos termos do art. 566º, nº 2, do C.Civil, actualizada, de 5.000.000$00 (ou seja, 24.939,99 Euros) para compensar os danos não patrimoniais sofridos pelo autor.

Quantia sobre a qual hão-de incidir juros de mora, à taxa legal de 4%, (42) desde a data da prolação desta decisão e até pagamento integral, em conformidade com o entendimento do Ac. STJ (Uniformizador de Jurisprudência) nº 4/2002, de 9 de Maio. (43)

Pelo exposto, decide-se:a) - julgar procedente o recurso de revista interposto pelo autor A;b) - revogar o acórdão recorrido e, em consequência, julgando a acção procedente, condenar

os réus B, C, e "D - Sociedade Editora, SA", solidariamente, a pagarem ao autor a quantia de 24.939,99 Euros, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, desde a data da prolação deste acórdão e até pagamento integral;

c) - condenar os recorridos nas custas da revista, assim como a suportarem o pagamento das custas devidas nas instâncias.

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Lisboa, 26 de Fevereiro de 2004Araújo BarrosOliveira BarrosSalvador da Costa------------------------------(1) O mesmo autor refere, a propósito ("Das Obrigações em Geral", vol. I, 6ª edição, Coimbra,

1989, pág. 591) que "tem direito à indemnização o titular do direito violado" situação que, como adiante veremos, é a que aqui está em causa.

(2) Heinrich Horster, in "A Parte Geral do Código Civil Português", Coimbra, 1992, pág. 258.(3) Redacção advinda da 5ª Revisão (Lei Constitucional nº 1/2001, de 12 de Dezembro).(4) Rabindranath Capelo de Sousa, in "A Constituição e os Direitos de Personalidade", in

Estudos sobre a Constituição, vol. 2º, Lisboa, 1878, pág. 93.(5) In "O Direito Geral de Personalidade", Coimbra, 1995, pág. 117. (6) Dec.lei nº 85-C/79, de 29 de Novembro (revogado apenas pela Lei nº 2/99, de 13 de

Janeiro).(7) Lei nº 62/79, de 20 de Setembro (revogada, a nosso ver, tacitamente, pela Lei nº 1/99, de

13 de Janeiro).(8) Ac. TC nº 113/97, de 05/02/97, in BMJ nº 464, pág. 119 (relator Bravo Serra).(9) Costa Andrade, in "Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal", Coimbra, 1996, 39-

B) ss.(10) Cfr. Acs. STJ de 12/07/2001, no Proc. 2103/01 da 7ª secção (relator Neves Ribeiro); de

14/05/2002, no Proc. 267/0 da 1ª secção (relator Ferreira Ramos); de 10/10/2002, no Proc. 2751/02 da 7ª secção (relator Oliveira Barros); e de 05/12/02, no Proc. 3553/02 da 7ª secção (relator Araújo Barros), os quais, nesta parte, seguiremos de perto.

(11) Rabindranath Capelo de Sousa, in "O Direito Geral de Personalidade", citado pelo Ac. STJ de 27/06/95, in BMJ nº 448, pág. 378 - relator Torres Paulo (maxime 386).

(12) Gomes Canotilho e Vital Moreira, in "Constituição da República Portuguesa Anotada", 3ª edição, págs. 180 e 181.

(13) R. Capelo de Sousa, in "O Direito Geral da Personalidade", Coimbra, 1995, págs. 303 e 304.

(14) Maria Paula G. Andrade, in "Da ofensa do crédito e do bom nome", 1996, pág. 97.(15) Cfr. Acs. STJ de 14/05/76, in BMJ, nº 257, pág. 131 (relator Miguel Caeiro); e de

17/10/2000, no Proc. 372/00 da 6ª secção (relator Azevedo Ramos).(16) "Direito das Obrigações", 5ª edição, Coimbra, 1991, pág. 453.(17) "Direito das Obrigações", vol. II, Lisboa, 1990, pág. 349.(18) "Das Obrigações em Geral", vol. I, 9ª edição, pág. 567.(19) Obra e volume citados, págs. 567 e 568).(20) Ac. STJ de 25/09/2003, no Proc. 2361/03 da 7ª secção (relator Oliveira Barros).(21) Cfr. Figueiredo Dias, in RLJ, Ano 115°, pág. 102; bem como Cardoso da Costa, in "A

Hierarquia das Normas Constitucionais e a sua Função na Protecção dos Direitos Fundamentais", in BMJ nº 396, págs. 6 e 17, referindo-se ao apelo a um paradigma normativo assente no princípio da concordância prática ou do schonendsten Ausgleich (menor comprometimento possível dos direitos). Cfr. Costa Andrade, obra citada, pág. 34.

(22) Brito Correia, in "Direito da Comunicação Social", 2000, págs. 574-3, 575 e 587 ss. Como assinala Nuno e Sousa, in "A Liberdade de Imprensa", 1984, págs. 290 ss. (antes publicado no suplemento ao BFDUC, XXVI, 1983, págs. 179 ss), decorre, inclusivamente, dos n° s 2 e 3 do art. 18° da Constituição que "os direitos de liberdade não garantem âmbitos absolutos de liberdade, incluindo-se num ordenamento jurídico que intervém no caso de conflitos entre direitos". Encontram-se sujeitos - apenas - "aos limites estritamente necessários à salvaguarda de outros interesses do Estado democrático"; mas a própria Constituição indica "vários interesses dos particulares, considerados como interesses públicos, que têm primazia sobre a liberdade de opinião: os direitos ao bom nome, reputação, imagem e reserva da intimidade da vida privada e familiar". Afirmando que o direito de informar cessa quando se puser em perigo o direito à honra, ver Faria e Costa, "O círculo e a circunferência em redor do direito penal da comunicação", in "Direito Penal da Comunicação (alguns escritos)", 1998, apud Ac.TC n° 67/99, no Proc. n° 609/96, de 03/02/99, in DR, II S, de 05/04/99. Ver ainda Figueiredo Dias, in RLJ, Ano 115°, págs. 135, 137, 170 e 172, e Rabindranath Capelo de Sousa, "O Direito Geral de Personalidade", 1995, págs. 533 ss. e 552-2.2., ss.

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(23) Ac. STJ de 20/03/73, in BMJ nº 225, pág. 222 (relator Bogarim Guedes).(24) Cfr. Preâmbulo do Código Deontológico dos Jornalistas, aprovado em 4 de Maio de

1993.(25) Ver, com o sentido apontado, o estudo de Beleza dos Santos, in RLJ Ano 92º, págs. 165

ss.(26) Ac. STJ de 29/10/96, in BMJ nº 460, pág. 686 (relator Aragão Seia).(27) Figueiredo Dias, "Direito de Informação e Tutela da Honra no Direito Penal da Imprensa

Português", in RLJ Ano 115º, pág. 102.(28) Ac. STJ de 05/03/96, in CJSTJ Ano IV, 1, pág. 122 (relator Fernando Fabião).(29) Ac. STJ de 26/09/2000, in CJSTJ Ano VIII, 3, pág. 42 (relator Silva Salazar).(30) Há, mesmo, quem considere que a violação é ilícita, embora relate factos verídicos -

opinião de que, em certa medida, discordamos - "contanto que seja susceptível de, ponderadas as circunstâncias do caso, diminuir a confiança na capacidade e na vontade da pessoa ou de abalar o prestígio de que a pessoa goze ou o bom conceito em que vive ou exerce a sua actividade" (Acs. STJ de 03/10/95, in BMJ nº 450, pág. 424 - relator Torres Paulo).

(31) Jorge Ribeiro de Faria, in "Direito das Obrigações", vol. I, Coimbra, 1990, págs. 416 e 417.

(32) Antunes Varela, in "Das Obrigações em Geral", vol. I, 6ª edição, Coimbra, 1989, pág. 502.

(33) Fernando Pessoa Jorge, "Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil", in Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, nº 80, Lisboa, 1972, pág. 68.

(34) Cfr. Ac. STJ de 14/05/76, in BMJ nº 257, pág. 131 (relator Miguel Caeiro).(35) Ac. STJ de 26/09/2000 (in CJSTJ Ano VIII, 3, pág. 42), acima citado.(36) Antunes Varela, ob. e vol. cits., pág. 531.(37) Menezes Cordeiro, in "Direito das Obrigações", 2º vol., Lisboa, 1990, pág. 314.(38) Antunes Varela, ob. e vol. cits., pág. 539.(39) Antunes Varela, in "Das Obrigações em Geral", vol. I, 9ª edição, pág. 627, nota (4). Cfr.

Acs. STJ de 25/11/93, in CJSTJ, Ano I, 3, pág. 143 (relator Folque de Gouveia); e de 05/11/98, no Proc. 957/98 da 1ª secção (relator Ribeiro Coelho).

(40) Nuno de Sousa, in "A Liberdade de Imprensa", Coimbra, 1984, págs. 269 e 270. (41) João Luís de Moraes Rocha, in "Lei de Imprensa", 1996, pág. 100.(42) Portaria nº 291/2003, de 9 de Abril.(43) In DR IS-A, de 27/06/2002.

485º - dever de informação de Banco BMJ 411-527 (sobre a natureza e

consequências de certa operação bancária) e Parecer de F. Correia sobre informação em OPV na Col. 93-4-25.

486º - Os atrás referidos, doido que foge do hospital; criança gravemente queimada em infantário, caso este decidido pelo STJ por Ac. de 25.11.98, no BMJ 481-470 tratando de forma exaustiva as questões assim sumariadas:

RESPONSABILIDADE CIVIL CONTRATUALE POR FACTOS ILÍCITOS

DANO NÃO PATRIMONIALDANOS FUTUROS

EQUIDADECULPA IN VIGIIANDO

QUEIMADURAS DE 3º GRAU EM CRIANÇANUM INFANTÁRIO

INDEMNIZAÇÃO A FAVOR DOS PROGENITORES

I - A omissão dos deveres de socorro e de prevenção do perigo, derivados das obrigações contratuais de vigilância e de assistência assumidas pela ré, sobre as crianças recolhidas num seu infantário, omissão que foi causadora de lesões de direitos absolutos daquelas, implica responsa-bilidade, quer contratual quer extra-contratual, para com os respectivos pais.

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II - Na noção geral de dano não patrimonial, acolhida pelo nº 1 do artigo 496º do Código Civil, cabem a dor física e moral, a perda do sentimento de auto-estima e a amputação da alegria de viver, devendo a compensação monetária de um tão grande desvalor ser feita com recurso à equidade, nos termos do nº 3 do mesmo normativo.

III - Os prejuízos irreversíveis sofridos por bebé de 7 meses de idade resultantes de aleijões nas mãos e da desfiguração da face, implicando privação de uma parte importante da futura capacidade de ganho, são susceptíveis de indemnização (564º, nº 2, equidade - 566º, nº 3), não valendo contra-argumentar que, face à tenra idade do lesado, dar como assente o lucro cessante ou o respectivo montante constitui um exercício de futurologia.

IV - Enquanto titulares do poder paternal, os pais têm o direito de ver o filho menor crescer e desenvolver-se em saúde, por força do nº 1 do artigo 68º da Constituição da República Portuguesa. A directa violação de tal direito, absoluto, pela grave omissão dos funcionários da ré, de que resultaram danos pessoais para o menor implica indemnização, por danos não patrimoniais, a favor dos progenitores.

Alusão às causas justificativas ou de exclusão de ilicitude - acção directa (336º), Legítima defesa (337º), estado de necessidade (339º) e consentimento do lesado (340º), também referidas naquele ac. na Col. STJ 99-I-120 a 122.

III - Culpa ou Nexo de imputação do facto ao lesante - Só pode dizer-se que alguém agiu com culpa quando esse alguém é imputável e no caso concreto podia e devia ter agido de outro modo. Só então é possível formular um juízo de censura, de reprovação, de culpa.

Imputabilidade - capacidade de entender e querer - 488º- Inimputáveis presumidos - nº 2 do 488º.

Responsabilidade das pessoas obrigadas à sua vigilância - 491º (BMJ 451-39) - cópia - e dos próprios inimputáveis - 489º (equidade e impossibilidade de obter a reparação das pessoas a quem incumbe a vigilância - BMJ 436-168: maior criminalmente inimputável, sem vigilante por não interdito ou com vigilante mas este sem bens, deve indemnizar:

Depois de fixar o princípio da irresponsabilidade civil do inimputável, o legislador veio admitir a sua condenação por danos resultantes de factos ilícitos que cometa, isto por motivos de equidade, verificado que seja todo um requisitório que o Professor Antunes Varela assim articula:

a) - Que haja um facto ilícito;b) - Que esse facto tenha causado danos a alguém;c) - Que o facto tenha sido praticado em condições de ser considerado culposo;d) - Que haja entre o facto e o dano o necessário nexo de causalidade;e) - Que a reparação não possa ser obtida à custa do vigilante do inimputável;f) - Que a equidade justifique a responsabilidade total ou parcial do autor, em face das

circunstâncias concretas do caso;g) - Que a obrigação de indemnizar seja fixada em termos de não privar o inimputável dos

meios necessários aos seus alimentos ou ao cumprimento dos seus deveres legais de alimentos.Simplesmente, a esta impossibilidade económica de o vigilante poder reparar os danos

produzidos pelo inimputável é inteiramente equiparável aquela outra hipótese de este último ser maior, de não estar interditado e de, portanto, não ter representante legal. A circunstância de a lei não contemplar expressamente a situação concreta que se nos depara não é intransponível, tudo depen-dendo de se poder ou não recorrer à analogia como processo de preencher a lacuna encontrada.

Culpa - é fundamental neste tipo de responsabilidade que se possa estabelecer um nexo psicológico entre o facto e a vontade do lesante, que esse

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nexo seja passível de um juízo de censura. Nos termos do art. 483º, n.os 1 e 2 - só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei.

Este juízo de censura pode revestir as modalidades de dolo e negligência ou mera culpa.

No caso de dolo, juízo de censura mais intenso, a indemnização não pode ser inferior ao valor dos danos. Não já no caso de mera culpa - 494º e 497º, 2 e 570º

Modalidades da culpa em sentido lato: - 483º - dolo e mera culpa.

DOLO - 1 . Directo - o lesante representa e quer o resultado, apesar de conhecer a ilicitude desse resultado;

2 . Necessário - não querendo directamente o facto ilícito, o agente todavia previu-o como uma consequência necessária, segura, da sua conduta.

3 . Eventual - sempre que o agente, ao actuar, não confiou em que o efeito possível da sua actividade se não verificaria;

Mera culpa, negligência consciente - o agente só actuou porque confiou em que o resultado não se produziria, o agente previu (como possível) a produção do facto e não tomou as medidas necessárias para o evitar.

Mera culpa ou negligência inconsciente - imprevidência, descuido, imperícia ou inaptidão, omissão do dever de diligência.

A Culpa é apreciada em abstracto - 487º, 2 - diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso.

Prova da culpa

Nos termos do art. 342º, 1, sendo a culpa elemento constitutivo do direito à indemnização, cabe ao A. fazer a prova dela - 487º, 1 - a menos que beneficie de presunção; não assim na responsabilidade contratual, onde a falta de culpa funciona como excepção e, por isso, cumpre ao devedor provar que o incumprimento não se deve a culpa sua - 342º, 2 e 799º1.

Presunções de culpa - 487º, 1 – (não são casos de responsabilidade objectiva)

Presunção judicial por violação de norma - Nas acções de indemnização por facto ilícito, embora caiba ao lesado a prova da culpa do lesante, a posição daquele será frequentemente aliviada por intervir aqui, facilitando-lhe a tarefa, a chamada prova de primeira aparência (presunção simples): se a prova prima facie ou por presunção judicial produzida pelo lesado, apontar no sentido da culpa do lesante, cabe a este o ónus da contraprova; em princípio, procede com culpa o condutor que, em contravenção aos preceitos estradais, causar danos.

Provado que a condução do automóvel era feita em manifesta violação da regra enunciada no artigo 13º, n.° 1, do Código da Estrada (fora de mão), demonstrada ficou, em princípio, a culpa do réu condutor, culpa presumida que só resultaria afastada se os réus tivessem provado que aquela condução pela esquerda da meia faixa de rodagem à direita do condutor se encontrava justificada por ocorrer situação de facto subsumível a qualquer das excepções previstas naquele artigo 13º - antigo art. 5º - do Código da Estrada - BMJ 414 -533, com muita informação.

No mesmo sentido decidiu o mesmo STJ em 9.7.98, por Ac. no BMJ 479-592:

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Existe inobservância do direito estradal quando se realiza a ultrapassagem de outro veículo sem que se respeite uma prudente distância relativamente a ele, o que faz presumir a culpa na produção dos danos dela decorrentes.

A responsabilidade fundada na culpa - culpa presumida é o mesmo que culpa efectivamente provada - permite formular uma pretensão indemnizatória que ultrapassa os limites fixados para a que se baseia no risco, caso em que não há lugar à aplicação do nº l do artigo 508º do Código Civil.

Mais recentemente - ac. de 8.6.99, no BMJ 488-323 - afirmou-se que tem sido orientação praticamente constante do Supremo Tribunal de Justiça aquela segundo a qual a prova da inobservância das leis e regulamentos faz presumir a culpa na produção dos danos dela decorrentes, dispensando a prova em concreto da falta de diligência.

Igualmente assim decidiu o STJ em Ac. de 20.11.2003, na Col. STJ 2003-III-149:

«Como tem sido, maioritariamente, considerado pela jurisprudência do STJ, a prova da inobservância de leis ou regulamentos faz presumir a culpa na produção dos danos decorrentes de tal inobservância, dispensando a concreta comprovação da falta de diligência (Acs. de 28/05/74, in BMJ 2372-231, de 20/12/90, in BMJ 402-558, de 10/01/91, in BMJ 403-334, de 26/02/92, in BMJ 414-533, de 10/03/98, in BMJ 475-635, ou de 09/07/98, in BMJ 479-592). É que, embora em matéria de responsabilidade civil extra-contratual a culpa do autor da lesão em princípio não se presuma, tendo de ser provada pelo lesado (art. 487º, nº 1, do Cód. Civil), a posição deste é frequentemente aliviada por intervir aqui, facilitando-lhe a tarefa, a chamada prova de primeira aparência (presunção simples): se esta prova aponta no sentido da culpa do lesante, passa a caber a este o ónus da contraprova. Para provar a culpa, basta assim que o prejudicado possa estabelecer factos que, segundo os princípios da experiência geral, a tornem muito verosímil, cabendo ao lesante fazer a contraprova, no sentido de demonstrar que a actuação foi estranha à sua vontade ou que não foi determinante para o desencadeamento do facto danoso. Isto não está sequer em contradição com o disposto no art. 342º do Cód. Civil, que consagra um critério de normalidade no que respeita à repartição do ónus da prova, no sentido de que aquele que invoca determinado direito tem de provar os factos que normalmente o integram, tendo a parte contrária de provar, por seu turno, os factos anormais que excluem ou impedem a eficácia dos elementos constitutivos do direito.

Assim sendo, no caso dos autos, a Ré Seguradora, e ora recorrente, teria de provar que o facto de o condutor da viatura em si segura circular fora da sua faixa de rodagem não teria sido determinante para o evento ou que esse facto foi causado por factores estranhos à sua vontade.

Como essa prova não foi feita, nenhum tipo de censura merece a sentença recorrida".Concordando-se inteiramente com esta posição, fica assente que houve culpa do condutor do

veículo.»

Presunções legais de culpa - ... responde ... Salvo se... 350º, 2491º - pessoas obrigadas, por lei ou negócio jurídico, à vigilância de

incapazes naturais. Respondem por facto próprio, por culpa in vigilando – Estudar aquele Bol. 451-39, com voto de vencido.

Ciclista menor que atropela peão - responsabilidade dos pais - BMJ 421-420, também referido no voto de vencido agora visto.

Menor que mata o amigo: relacionar este art. 491º com os art. 122º, 123º, 1878º, nº 1 e 1881º, nº 1, conforme decidido pelo STJ, em 28.10.92, no BMJ 420-565:

CULPA IN VIGILANDODEVER DE VIGILÂNCIA DE MENORES

INDEMNIZAÇÃORESPONSABILIDADE DOS PAIS

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I - A responsabilidade que recai sobre os pais e encarregados da vigilância de menores funda-se na culpa, resultante de, nessa vigilância, terem descurado os deveres próprios do exercício de tal função.

II - Essa culpa deve ser apreciada pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso (artigo 487º nº 2, do Código Civil), recaindo sobre o eventual responsável a obrigação de provar ter cumprido o seu dever de vigilância ou que os danos se teriam produzido ainda que o tivesse cumprido (artigo 491º do Código Civil).

III - Um vulgar pai de família não está obrigado a um dever de vigilância que preveja que dois rapazes amigos, considerados pelos conhecidos como especialmente bem comportados, em passeio mais ou menos habitual de exploração das matas da zona, se envolvam em confronto físico, em resultado de observações desprimorosas para a família feitas pelo que veio a ter a posição de vítima.

IV - A circunstância de ambos, numa exploração daquele tipo, serem portadores de armas cortantes não é, sequer, factor que justifique uma obrigação acrescida de vigilância e cuidado, por se configurar como normal o respectivo transporte no concreto circunstancialismo do caso, atendendo à idade de ambos e à natureza da deslocação que empreendiam, em espírito de aventura, e sem que, em outras ocasiões anteriores, tivessem sido criadas quaisquer dúvidas sobre a idoneidade dos mesmos para se fazerem acompanhar da referida espécie de armas.

492º - Danos causados por edifícios ou obras - embora o artigo 492º C.C. estabeleça uma presunção de culpa que favorece o lesado, tal presunção só funciona após a prova, onus do lesado, de o evento se ter ficado a dever a vício de construção ou defeito de conservação. O lesado apenas tem de provar o facto que serve de base à presunção. A presunção onera tanto o proprietário como o possuidor, devendo considerar-se possuidor quem (o empreiteiro, p. ex.,) leva a cabo a obra, quem tem a coisa à sua guarda - Col. STJ 01-I-39 e BMJ 493-367; queda de muro sobre automóvel estacionado – Col. Jur. (STJ) 02-III-51.

Col. STJ 96-I-77 e III-122 - Ruptura de cano da EPAL.Este caso de ruptura de cano da Epal com inundação e danos a terceiros foi

decidido pelo STJ, por Ac. na Col. STJ 98-I-138, como actividade perigosa subsumida à previsão do nº 2 do art. 493º do CC. Longo voto de vencido entende que não se trata de actividade perigosa mas antes de obra com o regime do art. 492º, nº 1, cabendo ao lesado provar os pressupostos de presunção de culpa ali consagrada:

«Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação, só existindo obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados da lei. É o que resulta do art. 483º do C. Civil.

Mas é ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa - nº 1 do art. 487º do C. Civil.

De tudo decorre que, na responsabilidade civil extra-contratual por factos ilícitos culposos, é ao lesado que incumbe o ónus da prova da materialidade fáctica demonstrativa da culpa do autor da lesão.

Por vezes, contudo, a lei determina que o ónus da prova se inverta, como sucede na responsabilidade civil extra-contratual por danos causados por edifícios ou outras obras ou por coisas, animais ou actividades. Assim está disposto nos arts. 492º e 493º do C. Civil, que prevêem uma actividade delitual e não objectiva.

Quer dizer, o ónus de prova do lesado respeita aos pressupostos da presunção de culpa; provados estes, incumbe ao apontado causador da lesão demonstrar a ausência da sua culpa.

Como tem sido jurisprudência uniforme deste Tribunal - cfr. Acs. de 9/5/1991, Proc. nº 80.456, da 2ª Secção, de 6/2/1996, Bol. 454, 697, de 4/12/1996, Col. Jur. STJ, III, 3, 122 e de 18/2/1997, Bol. 502, 464 - tem que se concluir que uma conduta de água, resguardada e sem

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evidência de erros técnicos de construção ou montagem, é algo que, pela sua própria natureza não pode ser havido como perigoso, de modo a poder ser enquadrado no nº 2 do citado art. 493º.

Cai, assim, na previsão do nº 1 do também referido art. 492º, que prescreve: O proprietário ou possuidor de edifício ou outra obra que ruir, no todo ou em parte, por vício de construção ou defeito de conservação, responde pelos danos causados, salvo se se provar que não houve culpa da sua parte ou que, mesmo com a diligência devida, se não teriam evitado os danos.

Como se diz no citado Ac. de 6/2/1996 no tatbstand do art. 492º está uma perigosidade não tanto de actividade ou meio, mas de anomalia, como, por natureza, será o ruir de edifício ou outra obra, ou, como dizem os Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, C. CIVIL Anotado I vol., 4ª ed., 494º por vício de construção ou defeito de conservação.

Os mesmos Profs. a fls. 493º opinam que, quando o preceito se refere a edifícios ou outras obras, inclui os muros ou paredes divisórias dos prédios, as pontes, os aquedutos, os anais, as albufeiras, uma coluna, um poste, uma antena, um andaime, etc. O que é necessário é que a obra esteja unida ao prédio ou ao solo e não se trate de uma coisa móvel.

Também o Prof. Vaz Serra, Responsabilidade Pelos Danos Causados Por Edifícios ou Outras Obras, Bol. 88,13, depois de fazer uma incursão pelo direito comparado, acaba por se fixar na análise das três orientações fundamentais:

a) responsabilidade independente de culpa pelos danos devidos a defeito de manutenção ou vício de construção (Códigos francês, italiano, suíço);

b) responsabilidade com culpa presumida pelos danos resultantes do vício de construção ou de defeito de manutenção (Código alemão);

c) responsabilidade dependente de culpa provada (Código português então vigente). Acaba por se inclinar para a presunção de culpa e diz: a doutrina legal seria, portanto,

aplicável, também a muros de tapagem ou de suporte, a diques, a monumentos, a pontes, a aquedutos, a pilares, a máquinas unidas ao prédio, a andaimes, a tendas, a poços, a passeios, a pontes, a canalizações, etc.

Por tudo o exposto, em outras obras, devem incluir-se, também, as condutas de água que atravessam as ruas e os seus ramais exteriores de ligação para abastecimento dos prédios.

A EPAL é a concessionária do abastecimento público de água a Lisboa e localidades limítrofes, como vem decorrendo da Portaria nº 10.367, de 147471943, e dos Decs.Leis nºs. 553-A/74, de 30/10, nº 190/81, de 4/7 e nº 230/91, de 21/6.

Para tanto, tem de observar as prescrições administrativas e técnicas aplicáveis, de modo a construir e a conservar em bom estado as condutas que constituem a rede de abastecimento de água.

Não se provou, como alegara a A., que a ruptura da conduta se desse pelo facto de ser insuficiente para o volume do caudal e pressão de água que nela se transportava, nem que se tivesse constatado anteriormente que fosse inadequada funcionalmente, quer dizer, não se provou qualquer relação de causalidade entre determinada deficiência do material e o evento danoso.

Demonstrado não ficou, pois, qual a causa da ruptura, não se tendo a A. desincumbido do ónus de provar que a EPAL não tenha cumprido as prescrições técnicas adequadas, ficando-se sem se saber o porquê concreto do evento.

Provou-se, sim, que a ruptura não foi antecedida de qualquer sinal prévio, sendo instantânea e súbita, que se localizou num segmento diferente daquele em que ocorreu o sinistro anterior e que o piquete da EPAL demorou apenas dez minutos a comparecer no local, tendo procedido à interrupção do abastecimento e iniciado a reparação.

E era à A. que incumbia provar, como se viu, os pressupostos da presunção da culpa da EPAL.

Não se tendo provado que a EPAL não tivesse vindo a fazer a vigilância necessária e a conservação indispensável do material utilizado na distribuição da água, substituindo o que se encontrasse deteriorado, não se pode concluir haver vício de construção ou defeito de conservação, mas que se ignoram as causas da ruptura, não só porque não há factos demonstrativos da culpa da EPAL, como também porque a materialidade provada torna irrelevante a falta da prova da inexistência da sua culpa».

Também o STJ decidiu, em 12.5.2005 – Revista 932/05 – que:

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I - Uma conduta de água sem evidência de erros técnicos de construção ou montagem não é algo que possa ser havido como perigoso em termos de preencher a previsão do nº 2 do art. 493° C. Civ.

II - Por sua vez, a presunção de culpa do art. 492° C. Civ. só funciona uma vez provados os seus pressupostos, isto é quando se mostre ocorrer efectivamente a situação de facto que integra a sua previsão (Tatbestand), dependendo, pois, da demonstração de que na realidade houve vício de construção ou defeito de conservação ou manutenção determinante do evento danoso.

493º, 1 - Coisas ou animais - responsabilidade de quem detém a coisa (baliza não devidamente fixada que cai em cima da criança que se dependura nela, responsabilidade do dono do campo de futebol – Col. Jur. STJ 2006-I-95) ou animal com o dever de vigilância. Trata-se aqui de sancionar a presunção de que o detentor - proprietário, comodatário, depositário, pastor - não tomou as medidas necessárias para evitar o dano. Presunção ilidível, nos termos dos art. 350º, 2 e parte final do nº 1 do art. 493º.

O proprietário ou quem utilize o animal no seu próprio interesse pode ainda responder pelo risco quando os danos resultem do perigo especial que a utilização dos animais envolve - 502º.

Exemplos: - toiro na feira que ataca um vitelo e a pessoa que segurava este - Col. 82-II-361; cavalos que fogem do cercado e colidem com automóvel - BMJ 369-693; bois que invadem a estrada e provocam acidente - Col. STJ 00-III-169; ovelhas imobilizadas nos carris originam descarrilamento do comboio – Col. STJ 2003-II-115; águas vindas do andar superior, desabitado, que danificam o andar inferior - Col. 97-I-48; árvore que cai em cima do automóvel - Col. 89-III-74; morro que desaba sobre a via férrea - BMJ 320-145; Câmara que deixa obstáculo na via pública, uma tampa de saneamento elevada em relação ao piso, vala não sinalizada - Ac. Doutrinais do STA, Ano XXXIV - nº 30.

493º, 2 - actividades perigosas - Há obrigação de reparar os danos, excepto se o lesante mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir. Não basta provar, como nos casos anteriores, que os danos se teriam produzido por outra causa, mesmo que o agente tivesse adoptado todas as providências exigidas pelas circunstâncias.

A actividade pode ser perigosa tanto pela sua natureza como pelos meios utilizados.

Exemplos : exercícios militares - BMJ 407-234; construção civil - BMJ 446-217; monda química por avião - Col. 85-IV-293; transporte de produtos inflamáveis - Col. 80-II-183; lançamento de foguetes - STJ 94-III-47; Ralye automóvel - BMJ 411-647; oficina de pirotecnia Col. 90-V-49; uso de Caterpillar que danifica cabos telefónicos - STJ 95-III-153; locomotiva a carvão e incêndios que provoca - RLJ 112-268; ruptura de cano da Epal quando se entenda a condução subterrânea de água como actividade perigosa (vista Col. STJ 98-I-138); escavações em trincheira - BMJ 493-367; armazenamento e transporte de resinas e materiais inflamáveis – Col. STJ 02-I-114; karting – Col. 01-V-251; motas de água – Col. STJ 04-III-127; lançamento de fogo de artifício – Col. STJ 2004-II-92:

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Dispõe o nº 2 do artigo 493º do Código Civil que quem causar danos a outrem no exercício de uma actividade, perigosa por sua natureza ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, excepto se mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir.

Esta norma consubstancia um dos casos de presunção legal estabelecida no âmbito da responsabilidade civil extracontratual.

Como é sabido, quem tem a seu favor a presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz – nº 1 do artigo 350º do Código Civil " competindo-lhe apenas alegar e provar o facto que serve de base à presunção, como ensina Antunes Varela na RLJ 122 - 217, onde, com a habitual clareza, dá resposta directa à questão que nos é colocada nos seguintes termos:

«Desde ... que o queixoso alegue e prove que os danos foram causados no exercício de uma actividade perigosa (por sua natureza ou pela natureza dos meios utilizados), a lei (art. 493º, nº 2, do Cód. Civil) presume, a partir desse facto (base de presunção), que o acidente foi devido a culpa do agente.

Para exigir a indemnização, não se torna, por conseguinte, necessário ao queixoso alegar nem provar as circunstâncias concretas do acidente, para convencer o tribunal de que o agente procedeu com culpa e é, consequentemente, obrigado a reparar o dano causado.

Ao demandado é que cabe, pelo contrário, se quiser liberar-se da obrigação de indemnizar, o ónus de alegar e provar, nos termos da disposição legal citada, que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias para prevenir os danos ou que o acidente se deveu a culpa do lesado ou de terceiro.» (sublinhado nosso).

Ora, a recorrida autora alegou e provou o facto (o lançamento do fogo de artifício, considerado actividade perigosa) e as lesões que ele, directa e necessariamente, lhe causou, bem como as consequências danosas que daí lhe advieram.

Tanto basta para fazer funcionar a presunção legal estabelecida no nº 2 do artigo 493º do Código Civil no sentido de a culpa, o outro fundamental pressuposto da obrigação de indemnizar por responsabilidade extracontratual (artigos 483º e 487º do Código Civil) - ser atribuída ao fogueteiro, quem quer que tenha sido.

Essencial é que, conforme ficou provado (supra 7º), o fogo de artifício tenha sido realizado (através desse anónimo fogueteiro) por conta, ordem e no interesse da ré irmandade de S. Bento da Porta Aberta, uma vez que, assim e como bem decidiram as instâncias nos termos do artigo 165º, referido ao artigo 500.º, nº 1, ambos do Código Civil, é esta entidade que responde pela indemnização, em solidariedade com a recorrente Império, por força do contrato de seguro identificado nos autos e supra referenciado em 42.

Só não seria assim se as rés tivessem destruído a presunção legal em apreço, alegando e provando que, no lançamento do fogo, tinham sido empregues todas as providências exigidas pelas circunstâncias para prevenir os danos, ou que o acidente se ficou a dever a culpa da própria autora, ou de terceiro.

O que não sucedeu».

ASSENTO de 21.11.79, no D.R. de 29.1.80: o disposto no artigo 493º, n.° 2, do Código Civil, não tem aplicação em matéria de acidentes de circulação terrestre».

Em matéria de culpa é importante notar que a culpa concorrente do lesado na produção ou agravamento dos danos pode levar à redução ou, até, à exclusão da indemnização - art. 570º:

RESPONSABILIDADE CIVILACIDENTE DE VIAÇÃO

NEXO DE CAUSALIDADECONCULPABILIDADE DO LESADO

I - Constituem pressupostos da responsabilidade civil, nos termos dos artigos 483º e 487º, nº 2 do Código Civil, a prática de um acto ilícito, a existência de um nexo de causalidade entre

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este e determinado dano e a imputação do acto ao agente em termos de culpa, apreciada como regra em abstracto, segundo a diligência de um «bom pai de família».

II - A causa juridicamente relevante de um dano é - de acordo com a doutrina da causalidade adequada adoptada pelo artigo 563º do Código Civil aquela que, em abstracto, se revele adequada ou apropriada à produção desse dano, segundo regras da experiência comum ou conhecidas do lesante.

III - Ocorrendo a violação de normas de perigo abstracto, tendentes a proteger determinados interesses - como o são as regras do Código da Estrada definidoras de infracções em matéria de trânsito rodoviário - a investigação de um nexo de causalidade adequada entre a conduta e o dano serve para excluir da responsabilidade decorrente de certo facto as consequências que não sejam típicas ou normais.

IV - A prova da inobservância de leis ou regulamentos faz presumir a culpa na produção dos danos dela decorrentes, dispensando a correcta comprovação da falta de diligência.

V - Para que se verifique conculpabilidade do lesado, justificativa de eventual redução ou exclusão da indemnização nos termos do artigo 570º, nº 1, do Código Civil, é necessário que a conduta daquele possa considerar-se uma concausa do dano, em concorrência com o facto do responsável.

VI - Tendo um veículo pesado de mercadorias invadido a faixa de rodagem oposta, ao descrever uma curva a pelo menos 60 km/h, e em consequência embatido num velocípede a motor a menos de 50 cm do eixo da via, é de entender que, para além da responsabilidade do condutor daquele veículo, existiu conculpabilidade do condutor do velocípede, na medida em que não respeitara a regra do Código da Estrada que manda transitar «o mais próximo possível das bermas e passeios» mas não já, porque não adequada à causação do acidente, em função da violação, também cometida, da regra concernente à distância a manter em relação ao veículo que o precedia.

VII - É adequada em relação ao acidente assim descrito a repartição de responsabilidade entre o condutor do veículo pesado de mercadorias e o do velocípede a motor nas percentagens de 80% e 20%, respectivamente - STJ, Ac. de 10.3.98, BMJ 475-635

«A Relação entendeu que a questão da relevância ou não da circunstância de as AA, A e C e F não usarem cinto de segurança, na altura do acidente, foi correctamente analisada na sentença do tribunal de 1ª instância.

Controvérsia que logo relevaria para os efeitos da estatuição-previsão do nº 1 do artº 570° do C. Civil, que reza pela forma seguinte:

«Quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída».

O D - ora recorrente - aquando da dedução do articulado superveniente, sustentara que a jurisprudência dos tribunais superiores teria vindo a pronunciar-se no sentido da inversão do ónus da prova, quando não utilizados os equipamentos de segurança, (cinto de segurança e/ou capacete de protecção), assim devendo recair sobre o lesado (alegante das lesões) o ónus de demonstrar que essas lesões ainda se teriam (mesmo assim) produzido, e da mesma forma e com a mesma intensidade, se não houvesse sido omitida aquela utilização.

No Ac do STJ de 15-12-98, in CJSTJ, Tomo III, pág. 156, tirado a partir de uma hipótese de «falta de capacete de protecção», considerou-se que tal falta só relevaria, para os efeitos do nº 1 do artº 570° do C. Civil, quando o acidente fosse imputável ao condutor do veículo de duas rodas (e já não quando o mesmo fosse da responsabilidade de terceiro) e que, nesses casos, seria «sobre a vítima-autora que impenderia o ónus de alegar e provar que, não obstante a sua falta de capacete, as lesões por si sofridas, e com a gravidade atingida, teriam, na mesma ocorrido, caso levasse o capacete protector».

E, na realidade, «se a culpa pela verificação do evento danoso (acidente) couber a terceiro, isto é, a um estranho ao veículo de duas rodas (v.g. um condutor de um automóvel que o abalroou) não haveria então razões para excluir ou, sequer, reduzir o montante indemnizatório em atenção à falta do capacete, pois não faria sentido que esse terceiro beneficiasse da estatuição normativa destinada à protecção da vítima; esta não estaria, nessas circunstâncias, em situação diferente da de um condutor de velocípede simples, ao qual a lei não impõe o uso de capacete protector (cfr., neste sentido, o acórdão deste mesmo Supremo Tribunal de 6-10-82, in BMJ, nº 320°, pág. 319).

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Já, porém, se o acidente fosse imputável ao condutor do veículo de duas rodas, aí já não se poderia olvidar a componente de culpa introduzida pelo passageiro/tripulante, na medida em que se teria exposto voluntariamente não só aos riscos próprios de circulação do veículo, como, também, às consequências da imperícia, da desatenção, ou seja da conduta culposa/negligente do respectivo condutor. Nesta eventualidade, já seria lógico impender sobre o autor o ónus de provar que, em tal quadro circunstancial, o capacete, mesmo que usado, não teria tido qualquer utilidade protectora. E se não satisfizesse tal encargo considerar-se-ia ter também contribuído para a produção dos danos.

De qualquer modo, obrigar os lesados a provarem que o facto de não usarem o cinto de segurança em nada contribuiu para as lesões ou seu agravamento será, as mais das vezes, coonestar uma prova diabólica, como tal muito difícil de produzir.

Volvendo à hipótese dos autos, vem assente que as AA. A, C e F viajavam no banco traseiro do veículo sinistrado, sem que trouxessem colocado os respectivos cintos de segurança, com que o veículo se encontrava equipado.

A A. A e a vítima/falecido F foram projectados para fora do automóvel, no decurso do despiste, tendo ficado prostrados na estrada, tendo sofrido ambos, em consequência do sinistro, lesões que determinaram o internamento e exames médicos à primeira e a morte ao segundo.

Esses passageiros não tiveram qualquer interferência no desencadear do acidente, e não vem provado que ainda que trouxessem colocado o cinto de segurança o resultado tivesse sido exactamente o mesmo, mas não se poderá deixar de ter em conta as circunstâncias particularmente aparatosas do acidente, nelas incluídas o capotamento do veículo, com a consequente potencialidade para a produção de lesões graves - tal como a Relação bem observou» - Acórdão STJ (Cons.º Ferreira de Almeida) de 06-05-2004 Processo 04B1217, nº Convencional JSTJ000, na base de dados do ITIJ.

IV - DANO - dano real - morte, ferimentos, amolgadela do carro, destruição da coisa; É a lesão causada no interesse juridicamente tutelado.

- dano patrimonial - reflexo deste dano real sobre a situação patrimonial do lesado: despesas e prejuízos causados pelo dano real. Abrange tanto o dano emergente - prejuízos causados em bens ou direitos já existentes à data da lesão - como o lucro cessante - benefícios que o lesado deixou de obter, mas a que ainda não tinha direito à data da lesão.

- dano não patrimonial - insusceptível de avaliação pecuniária, atinge bens que não fazem parte do património do lesado; tais danos apenas podem ser compensados, mais que indemnizados - dor física ou moral, honra, bom nome, beleza, perfeição física e estética, disfunção sexual, impotência ...

Sobre as várias espécies de danos e métodos de cálculo dos danos futuros pode ver-se a longa anotação no BMJ 451-39 e ss, maxime 50 e 51, e recente estudo do Cons.º Sousa Dinis, na Col. STJ 01-I-5 a 12:

«Os danos indemnizáveis são, como se sabe, patrimoniais e não patrimoniais. Mas a realidade "dano" ou "prejuízo", consagrada desde logo no art. 564º do CC, aparentemente simples, aparece, na prática, sob vários aspectos ou sub-realidades, por vezes confundidas.

I - Os vários aspectos da realidade "dano".Com efeito, na norma legal o dano compreende o prejuízo causado (dano emergente) e os

benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão (lucro cessante) - art. 564º nº 1 - para além dos danos futuros (nº 2). No entanto, há uma clara omissão sobre o dano corporal em si.

…Todavia, se fizermos um "zoom", como o fez o Ac. do ST J de 28/10/92 (CJ, Ano XVII, T4, p.

28 e ss.), verificamos que, na realidade "dano", podemos encontrar:- danos emergentes, os quais incluem os prejuízos directos e as despesas directas, imediatas

ou necessárias;

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- ganhos cessantes;- lucros cessantes;- custos de reconstituição ou de reparação;- danos futuros;- prejuízos de ordem não patrimonial.- Os prejuízos directos traduzem-se na perda, destruição ou danificação de um bem, o qual

tanto pode ser um objecto como um animal, ou uma parte do corpo do lesado ou o próprio direito à vida deste; as despesas necessárias ou imediatas correspondem ao custo de prestação dos serviços alheios necessários quer para a prestação de auxílio ou de assistência, quer para a eliminação de aspectos colaterais decorrentes do acto ilícito, aspectos estes que abrangem realidades tão diversificadas como a limpeza do local, reboques de viaturas ou o enterro de quem tenha falecido.

- Os ganhos cessantes correspondem à perda da possibilidade de ganhos concretos do lesado, incluindo-se na categoria de lucros cessantes.

Mas esta perda não deve ser confundida:- a) com a perda de capacidade de trabalho, que é, nitidamente, um dano directo, que se

pode aferir em função da tabela nacional de incapacidades,- b) nem com a perda da capacidade de ganho, que é o efeito danoso, de natureza

temporária ou definitiva, que resulta para o ofendido do facto de ter sofrido uma dada lesão impeditiva da obtenção normal de determinados proventos certos, em regra até ao momento da reforma ou da cessação da actividade como paga do seu trabalho, e que se inclui na categoria dos prejuízos directos, embora com uma importante vertente de danos futuros,

- c) nem ainda com a perda efectiva de proventos futuros de natureza eventual, ainda que em vias de concretização, que se inclui na categoria de lucros cessantes,

- d) nem com a perda que possa resultar do eventual desaparecimento de uma situação de trabalho, produtora ou potencialmente produtora de ganhos, que também se inclui na categoria de lucros cessantes.

- Os custos de reconstituição ou de reparação correspondem ao preço dos bens ou serviços necessários para proceder a uma correcta reparação, quando tal seja possível, do objecto, animal, ou da parte do corpo ou órgão destruídos ou danificados, e compreende, por ex. os preços de oficina, de hospitalização, de operações cirúrgicas e até de eventuais próteses que se torne necessário efectuar, motivo pelo qual existe uma estreita relação entre eles e o campo dos danos ou prejuízos directos, mas sem que as duas realidades se confundam.

- Os danos futuros compreendem os prejuízos que, em termos de causalidade adequada, resultaram para o lesado (ou resultarão de acordo com os dados previsíveis da experiência comum) em consequência do acto ilícito que foi obrigado a sofrer, ou, para os chamados "lesados em 2º grau", da ocorrência da morte do ofendido em resultado de tal acto ilícito, e ainda os que poderiam resultar da hipotética manutenção de uma situação produtora de ganhos durante um tempo mais ou menos prolongado, e que poderá corresponder, nalguns casos, ao tempo de vida laboral útil do lesado, e compreendem, ainda, determinadas despesas certas, mas que só se concretizarão em tempo incerto (ex. substituição de uma prótese ou futuras operações cirúrgicas).

- Os danos morais ou prejuízos de ordem não patrimonial são prejuízos insusceptíveis de avaliação pecuniária, porque atingem bens que não integram o património do lesado (ex. a vida, a saúde, a liberdade, a beleza). Não devem confundir-se com os danos patrimoniais indirectos, isto é, aqueles danos morais que se repercutem no património do lesado, como o desgosto que se reflecte na capacidade de ganho diminuindo-a (pois esta constitui um bem redutível a uma soma pecuniária).

Porque estes danos não atingem o património do lesado, a obrigação de os ressarcir tem mais uma natureza compensatória do que indemnizatória, sem esquecer, contudo que não pode deixar de estar presente a vertente sancionatória (Prof. A. Varela, Das Obrigações em Geral, I vol., p. 630, 9ª ed.). Com efeito, em termos de dinheiro, em quanto se pode avaliar a vida, as dores físicas, o desgosto, a perda da alegria de viver, uma cicatriz que desfeia?

O chamado dano de cálculo não serve para aqui. Por isso, a lei lançou mão de uma forma genérica, mandando atender só àqueles danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a

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tutela do direito (art. 496º nº 1 do CC). Gravidade que deve ser apreciada objectivamente, como ensina o Prof. A. Varela (obra cit. p. 628). Por outro lado, a lei remete a fixação do montante indemnizatório por estes danos para juízos de equidade, haja culpa ou dolo (art. 496º nº 3 do CC), tendo em atenção os factores referidos no art. 494º (grau de culpabilidade do agente, situação económica deste e do lesado e quaisquer outras circunstâncias).

Assim, o julgador deve ter em conta todas as regras de boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida, sem esquecer a natureza mista da reparação, pois visa-se reparar o dano e também punir a conduta, como atrás se disse. Cumpre aqui, ainda, salientar que a velha distinção feita por M. Andrade entre culpa lata, leve e levíssima (Teoria Geral das Obrigações, 2ª ed. p. 341-342) mantém actualidade e tem aqui cabimento (P. Lima e A. Varela, CC anot. I, p. 497). Entre as "quaisquer outras circunstâncias" referidas no art. 494º, costumam a doutrina e jurisprudência francesas, perante referência igual, apontar a idade e sexo da vítima, a natureza das suas actividades, as incidências financeiras reais, possibilidades de melhoramento, de reeducação e de reclassificação (Françoise Cocral, Les responsabilités diverses et le contrat d'assurance)».

Hoje não sofre dúvida a indemnizabilidade do dano não patrimonial, como claramente resulta do art. 496º. Ponto é que pela sua gravidade, medida por padrões objectivos, tal dano mereça a tutela do direito.

Na fixação do montante da indemnização ganha particular relevo a equidade, aliada às circunstâncias referidas no art. 494º - 1ª parte do nº 3 do art. 496º.

DNP na responsabilidade contratual?

Ver divergências doutrinais e jurisprudência dominante em sentido afirmativo, tudo no acórdão do STJ, de 21.3.95, no BMJ 445-487, assim sumariado:

I - Os danos não patrimoniais são ressarcíveis no âmbito da responsabilidade contratual, além do mais porque os artigos 798º e 804º, nº 1, do Código Civil não estabelecem qualquer restrição ou limitação relativa aos prejuízos indemnizáveis com esse fundamento.

II - O simples incumprimento de contrato não origina, todavia, por si só, o ressarcimento dos danos não patrimoniais dele resultantes.

III – Essa reparação só se justifica, face ao disposto no art. 496º, nº 1, do CC - que reflecte um princípio geral válido para toda a responsabilidade civil -, quando a especial natureza da prestação o exigir, ou se as circunstâncias que acompanhem a violação do contrato contribuírem decisivamente para uma grave lesão de bens ou valores não patrimoniais.

IV – São ressarcíveis, a título de danos não patrimoniais, a preocupação, a angústia, o incómodo e o desgosto causados aos compradores de uma parcela de terreno em empreendimento turístico que se viram impossibilitados de utilizar a casa que nele construíram por a sociedade vendedora e promotora do empreendimento não ter, ao contrário daquilo a que contratualmente se obrigara, criado as infra-estruturas (estradas de acesso, fornecimento de água e electricidade) necessárias à respectiva habitabilidade.

Neste sentido decidiu o STJ em Ac. de 29.4.2003, na Col. Jur. STJ 2003-II-

30, maxime 34:

«A ressarcibilidade (rectius, a compensação por…) de danos não-patrimoniais não se limita, não é exclusiva do domínio da responsabilidade delitual, ocorre também na contratual.

As pessoas colectivas podem ser atingidas nos seus valores ou interesses de ordem não patrimonial e a infracção pode, inclusive, merecer protecção criminal (CP - 187).

Para os sinais distintivos do comércio organizou, desde longa data, a lei, face à função social da propriedade industrial, um regime jurídico próprio na defesa dos direitos privativos, na garantia da lealdade da concorrência e na repressão da concorrência desleal (CPI-1).

Nos contratos de franchising a utilização, pelo franquiado, dos sinais distintivos do comércio do franquiador não só é obrigatória como assume uma relevância fundamental na distribuição em que

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este tipo de contratos se integra como ainda no seu desenvolvimento e execução para penetração dos mercados.

A ré, como distribuidora e actuando com a imagem comercial da 2ª autora, negociava os produtos desta, a qual tinha o direito de exclusividade do fornecimento.

Negociando produtos de outra marca num posto de abastecimento da “BP”, facilmente identificável como tal, mesmo se tapado o logotipo desta, situado em localidade onde a concorrência local e regional entre as diversas marcas de combustíveis e lubrificantes é forte, é evidente que lesou o direito de imagem e o prestígio da 2ª autora».

Contra: Antunes Varela, na RLJ 123-254 a 256:

«A ressarcibilidade dos danos não patrimoniais não aparece consagrada na área comunitária da obrigação de indemnização, não, porque o legislador tenha omitido a questão, visto tratar dela no artigo 496º do Código. Mas vem expressamente regulada na zona privativa da responsabilidade extracontratual, neste artigo 496º, com a intenção manifesta de a restringir a esta área da responsabilidade civil.

Quando, no texto do nº 1 do artigo 496º do Código Civil, se prescreve que na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, não se faz menção da indemnização em termos gerais (como sucederia se a disposição estivesse implantada na secção - arts 562º e seguintes - que trata da obrigação de indemnização), mas da indemnização referida no artigo anterior, ou seja, da indemnização dos danos provenientes da lesão corporal.

6. Sabido que a lei afasta, em termos inequívocos, a ressarcibilidade dos danos não patrimoniais no domínio da responsabilidade contratual, interessará agora naturalmente conhecer as razões por que o legislador o faz.

São razões que não divergem, no fundo, das que têm sido desenvolvidas na doutrina germânica em defesa da solução idêntica adoptada no direito alemão.

Como se sabe, o § 253 do Código civilalemão, sempre que haja danos sem carácter patrimonial, só permite que o lesado exija indemnização (Entschüdigung) em dinheiro nos casos determinados por lei.

E entre os raros casos que a legislação (alemã) admite essa indemnização dos immaterieller Schaden figura o § 847 do Código civil, aplicável às lesões corporais ou da saúde e às privações da liberdade (Freiheitsentziehung), desde que haja qualquer agressão ilícita desses bens, nos termos do§ 823.

Ficam, assim, intencionalmente fora do seio de acção deste preceito muitas das violações de direitos ou de interesses abrangidas pela responsabilidade extracontratual, como as violações do direito de propriedade e, na área dos direitos de personalidade, a ofensa do direito à honra ou ao bom nome da Pessoa, mas também todos os danos imateriais situados na área da responsabilidade contratual.

É uma limitação hoje em dia frequentes vezes acusada de excessiva. Mas não deixa de reconhecer-se ao mesmo tempo que, relativamente à responsabilidade contratual, a atitude restritiva da lei tem plena justificação.

Por um lado, atentas a vastíssima área do comércio jurídico coberta pelos contratos e a extraordinária frequência das violações contratuais, seria seriamente de recear um aumento extraordinário das pretensões de indemnização de danos dessa ordem se a sua admissibilidade fosse reconhecida.

Por outro lado, essa solução não deixaria de constituir uma poderosa tentação para os contraentes, no sentido de exagerarem todos os incómodos, preocupações, afectações, do bom nome e do prestigio da firma que a falta de cumprimento ou a mora no cumprimento por parte do outro contraente lhe tivesse causado.

Por fim, seria real e bastante sério o perigo da comercialização dos valores morais, estimulando os contraentes a tirarem partido de todas as faltas que de perto ou de longe tivessem ligação com a sua personalidade».

Notar que desde a Lei n.º 24/96, de 31 de Julho (Lei de defesa do consumidor, art. 12.º, n.º 4, n.º 1 do mesmo art. 12.º na redacção dada pelo Dec-lei

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n.º 67/2003, de 8 de Abril (venda de bens de consumo) o consumidor tem direito à indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do fornecimento de bens ou prestações de serviços defeituosos.

Também pode ser devida indemnização por DNP na responsabilidade extracontratual por factos lícitos - BMJ 457-317:

I - O proprietário que procede a escavações no seu prédio responde civilmente pelos danos produzidos nos prédios vizinhos, nos termos do artigo 1348º, nº 2, do Código Civil, ainda que aquelas escavações tenham sido efectuadas por empreiteiro, mediante contrato de empreitada celebrado com o dono da obra.

III - A admissibilidade da reparação dos danos não patrimoniais corresponde a um princípio imanente no nosso direito, havendo lugar a indemnização por tais danos quando se trate de responsabilidade civil extracontratual emergente quer de actos lícitos quer de actos ilícitos.

Danos por MORTE da vítima

É jurisprudência uniforme do Supremo Tribunal de Justiça que a lesão do direito à vida - sendo a vida o bem supremo do homem e origem da sua personalidade - é indemnizável - BMJ 404 - 454.

Em caso de morte da vítima há, normalmente, vários danos a ressarcir, tanto patrimoniais como não patrimoniais, e várias pessoas com direito a indemnização.

Por isso convém, na fixação da indemnização, discriminar uns e outros danos, tanto na origem deles como nos destinatários da correspondente indemnização.

Assim:

Danos patrimoniais - despesas médicas, de assistência e socorro, hospitalares, de funeral, como previsto nos nº 1 e 2 do art. 495º;

- de alimentos a quem o lesado os prestava, tanto em cumprimento de obrigação natural como legal (2009º) - nº 3 do art. 495º. Compreendem-se aqui os alimentos prestados pelo falecido à pessoa que com ele vivia em união de facto – Col. STJ 97-III-61 - ideia agora reforçada pela Lei nº 7/2001, ou casada em regime de separação – Col. STJ 03-II-145.

- outros, a tratar a propósito da obrigação de indem-nizar, designadamente salários e rendimentos perdidos, por incapaci-dade parcial ou total permanente, com ou sem perda de salários.

Danos não patrimoniais - a) - sofridos pelo falecido, enquanto vivo,

como as dores físicas ou morais, a angústia da proximidade da morte, o internamento hospitalar e respectivos tratamentos.

Radicaram-se na esfera jurídica do falecido e, de acordo com certa corrente doutrinária e jurisprudencial, são transmissíveis por via sucessória de acordo com as regras respectivas - 496º, 3, início da parte final.

b) - sofridos pelas pessoas referidas no nº 2, especialmente chegadas ao finado - 496º, 3, in fine. Não está aqui incluído o

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companheiro, o cônjuge na união de facto – Ac. STJ, de 4.11.2003, na Col. Jur. (STJ) 2003-III-133 c) - Dano da própria morte, pela supressão do direito à vida - 496º, 2 - é indemnizável e cabe, jure proprio, originário, não por via sucessória, aos familiares referidos no nº 2 do art. 496º e pela ordem aí indicada.

Esta questão tem sido objecto de forte polémica, como se vê do Ac. do STJ, de 9.5.96, no BMJ 457-280:

O artigo 496º, nº 2, do Código Civil, refere-se aos titulares activos dos direitos de indemnização por danos não patrimoniais sofridos pelo de cujus em caso de lesão de que proveio a morte.

A este respeito, a doutrina tem-se dividido, defendendo: uns, que tais direitos de indemnização cabem primeiramente ao de cujus e depois se

transmitem sucessoriamente para os seus herdeiros legais ou testamentários (Galvão Telles, Direito das Sucessões, 1971, págs. 83 a 87);

outros, que tais direitos após terem cabido ao de cujus se transmitem sucessoriamente para

as pessoas mencionada no nº 2 do artigo 496º do Código Civil (Vaz Serra, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 103º, pág. 172; Leite Campos, A Indemnização do Dano da Morte, 1980, pág. 54), e

ainda outros que esses direitos de indemnização são adquiridos directa e origina-riamente

pelas pessoas indicadas no nº 2 do artigo 496º do Código, não havendo lugar por isso a transmissão sucessória (Antunes Varela, Direito das Obrigações, vol. I, 6.ª ed., pág. 583; Pires de Lima e Antunes Vareja, Código Civil Anotado, vol. I, 4ª ed., pág. 500.

Nesta polémica doutrinal (e também jurisprudencial, cfr. acórdãos deste Supremo Tribunal

de 16 de Março de 1973, Boletim do Ministério da Justiça nº 225, pág. 216, e de 13 de Novembro de

1974, Boletim do Ministério da Justiça, nº 241, pág. 204), propendemos para a orientação que os danos não patrimoniais sofridos pelo morto nascem, por direito próprio, na titularidade da pessoas

designadas no nº 2 do artigo 496º, segundo a ordem e nos termos em que nesta disposição legal são chamadas. Esta adesão radica-se na argumentação utilizada quer por Antunes Varela - ob. cit., pág. 585 - quer por Capelo de Sousa - Lições de Direito das Sucessões, vol. I, 3ª ed., págs. 298 a 304 - argumentação esta sólida no que se refere aos trabalhos preparatórios do Código, os quais revelam, em termos inequívocos, que o artigo 496º, na sua redacção definitiva, tem a intenção de afastar a natureza hereditária do direito a indemnização pelos danos morais sofridos pela própria vítima (Capelo de Sousa, op. cit., 298, nota 433).

Basta ver que o cônjuge aparece aqui como beneficiário da indemnização desde a redacção original do preceito, quando só com a reforma de 1977 ele passou a ser herdeiro.

Sobre esta matéria convém ler as Lições de Família e Sucessões, de Leite de Campos, as Sucessões, de Capelo de Sousa, de P. Coelho, as Obrigações (8ª ed. 619 e ss) e Comentário de A. Varela na RLJ 123 - 185 e ss, citado no BMJ 466-450 e do seguinte teor:

“Quem acompanhar atentamente os trabalhos preparatórios do Código Civil, sem nenhuma ideia preconcebida afivelada à cabeça, não poderá deixar de reconhecer que entre a tese da indemnização nascida no património da vítima e transmitida por via sucessória a alguns dos seus herdeiros e a concepção da indemnização como direito próprio, originário, directamente atribuído ao cônjuge e aos parentes mais próximos, à margem do fenómeno sucessório da herança da vítima, a lei adoptou deliberadamente a segunda posição.

No artigo 759º do Anteprojecto geral de Vaz Serra sobre o «Direito das obrigações», ao regular-se a questão da «satisfação do dano não patrimonial», e depois de no n.º 2 dessa disposição se atribuir aos parentes, afins ou cônjuge da pessoa morta por culpa de outrem uma satisfação (pecu-

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niária, é evidente) pelo dano não patrimonial que o facto lhes tivesse causado, prescrevia-se no n.º 4, relativamente aos danos não patrimoniais causados ao próprio lesado, o seguinte:

«O direito de satisfação por danos não patrimoniais causados à vítima transmite-se aos herdeiros desta, mesmo que o facto lesivo tenha causado a sua morte e esta tenha sido instantânea.»

Era a consagração inequívoca, na hora de ponta (ou seja, no caso extremo da morte instantânea) da aquisição derivada do direito à indemnização pelo dano da morte, através do puro canal da devolução sucessória.

Na 1ª revisão ministerial dos diversos anteprojectos, que foi, como todos sabem, mais uma tarefa de redução, expurgação e reordenação sistemática de textos do que um reexame substancial de afinação e uniformização de soluções, o artigo 476º (do Livro das Obrigações) continuava ainda a distinguir nos n.os 2 e 3 entre os danos não patrimoniais causados à vítima da lesão e os danos não patrimoniais sofridos pelos familiares da vítima. E, quanto aos primeiros, o texto da disposição mantinha de igual modo, com suficiente clareza, a tese transmitida pelo Anteprojecto de Vaz Serra.

«O direito de satisfação por danos não patrimoniais causados à vítima, dizia efectivamente o n.º 2 desse artigo (476º), transmite-se aos herdeiros desta, ainda que o facto lesivo tenha causado a sua morte imediata», numa clara aceitação da tese da aquisição derivada do direito à indemnização, por via hereditária, mesmo no caso de morte instantânea.

Porém, na 2ª revisão ministerial, na qual todas as normas seleccionadas pela 1ª revisão foram como que passadas a pente fino, com vista ao aperfeiçoamento substancial das soluções e à uniformização de critérios própria de toda a legislação codificada, a posição da lei perante a indemnização da morte da vítima sofreu uma alteração radical.

No artigo 498º saído dessa revisão (correspondente ao art. 496º da versão definitiva do Código) deixa de falar-se na transmissão do direito à indemnização (pelo dano da morte), não se alude mais à hipótese da morte instantânea e não se chamam sequer os herdeiros a recolher a indemnização colada à herança da vítima.

Tal como na versão final do n.º 2 do artigo 496º do Código, passou antes a dizer-se que, por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes, e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem.

Com esta eliminação da referência à transmissão do direito à indemnização, com a substituição dos herdeiros, na titularidade da indemnização, pelo cônjuge e familiares mais próximos da vitima, à margem da sucessão legítima, em termos diferentes da ordem normal da vocação sucessória, o legislador quis manifestamente chamar estas pessoas, por direito próprio , a receberem, como titulares originários do direito, a indemnização dos danos não patrimoniais causados à vitima da lesão mortal - e que a esta competiria, se viva fosse. E é confrangedor verificar que ainda hoje há julgadores – e julgadores qualificados - que interpretam e aplicam o disposto no n.º 2 do artigo 496º do Código Civil, como se o preceito legal não tivesse história ou o intérprete desdenhosamente fizesse gala de a ignorar ou como se o texto da versão definitiva da disposição coincidisse integralmente com a redacção das normas correspondentes, quer do Anteprojecto de Vaz Serra, quer da 1ª revisão ministerial».

Não obstante não se encontrarem na acção todas as pessoas com direito a

indemnização a que alude o art. 496º, nº 2, do CC, tal não obsta a que o Tribunal fixe, desde logo, a quota indemnizatória dos presentes.

É que apesar da lei, naquele artigo, usar a expressão «em conjunto», tal não significa que o Tribunal não deva descriminar a parte que concretamente cabe a cada um dos beneficiários, de acordo com os danos por eles sofridos, já que «terem direito à indemnização em conjunto» significa que os descendentes não são chamados só na falta do cônjuge, como sucede com os beneficiários do 2º e 3º grupos indicados no mesmo nº 2, para os quais vigora o principio do chama-mento sucessivo – Col. STJ 97-III-61.

A expressão usada no nº 2 do art. 496º ... filhos ou outros descendentes não significa que os descendentes que não sejam filhos (netos ou bisnetos) concorrem com o cônjuge e filhos. Deve entender-se que o direito à indemnização

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caberá pois em conjunto, não ao cônjuge, aos filhos «e» outros descendentes, mas sim ao cônjuge e aos filhos e também (ou) a outros descendentes que eventualmente hajam sucedido a algum desses filhos, pré-falecidos, por direito de representação - BMJ 485-393.

Pelo que esta decisão negou legitimidade e indemnização quer por perda de alimentos quer por danos não patrimoniais ao neto que vivia com o falecido avô mas tendo este deixado cônjuge e filhos.

Pelo Acórdão nº 275/2002, de 19.6.2002, no DR, II, de 24.7.02, o Tribunal Constitucional julgou inconstitucional, por violação do n.º 2 do art. 36º da Constituição, conjugado com o princípio da proporcionalidade, a norma do n.º 2 do art. 496º do CC na parte em que, em caso de morte da vítima de um crime doloso, exclui a atribuição de um direito de indemnização por danos não patrimoniais pessoalmente sofridos pela pessoa que convivia com a vítima em situação de união de facto, estável e duradoura, em condições análogas às dos cônjuges.

Em 4.11.2003 por Ac. na Col. Jur. (STJ) 2003-III-133 o STJ decidiu não ser inconstitucional a norma do art. 496º, nº 2, do CC, na medida em que afasta da sua previsão de indemnização por danos não patrimoniais o cônjuge de facto:

«Sob tal perspectiva, não há como não concluir que a dita norma nem vai contra o art. 13º (princípio da igualdade), nem contra o art. 36º, 1 (família, casamento e filiação), conjugado com o princípio da proporcionalidade, nem contra o art. 67° (família), todos da Constituição da República, porque, na verdade, a distinção que estabelece tem respaldo numa prioridade de valores e num programa de protecção que ela própria adoptou, e, por isso, não é injustificadamente arbitrária nem discriminatória, nem desprotege a família de facto.

Trata diferentemente, para aquele efeito indemnizatório, o cônjuge legal e o cônjuge de facto, tendo boas razões para distinguir, aí, o que distinto é, sem, por outro lado, ao negar o direito ao cônjuge de facto passar dos limites da necessidade, da adequação e da racionalidade, que dão corpo à ideia de proporcionalidade.

É de dizer, nesta última perspectiva, que o direito previsto no nº 2, do art. 496º, CC, não constitui, na óptica da proporcionalidade, como princípio de direito constitucional inspirador dos direitos fundamentais, uma medida necessária à protecção do direito fundamental a constituir família, porque não implica com a protecção minimamente exigível àquele elemento base da sociedade, e que, nessa medida, atribuir tal direito ao cônjuge de direito e não ao cônjuge de facto não constitui defeito de protecção deste último.

O direito que o nº 2, do art. 496º, CC, confere ao cônjuge de direito e nega ao cônjuge de facto (e porque não, então, ao companheiro da união de facto homossexual?) tem uma justificação que passa muito para além do amor e da compaixão, porque tem, igualmente, raízes na subordinação a deveres menos próximos do prazer, mas que cimentam a união, como sejam o auxílio, a cooperação a fidelidade, a entrega total que a união de facto, que se extingue num simples querer (art. 8º, 1, b, Lei 7/01), decididamente não garante.

O único acórdão do Tribunal Constitucional que, até ao momento, abordou o problema (nº 275/02, no D. R., 2ª série, nº 169, de 24.07.02, pág. 12.896 e ss.), foi tirado sobre um caso de homicídio doloso e a solução nele encontrada, diferente da aqui defendida, tem, confessadamente, a marca da gravidade extrema do ilícito.

Vem, pois, com uma faceta de casuísmo que o debilita como precedente jurisprudencial».

Titulares do direito a indemnização - o lesado; os terceiros – (só?) nos casos vistos (495º e 496º, nº 3, in fine) de responsabilidade extracontratual.

Enquanto que o Ac. do STJ, de 2.11.95 decidiu que apenas são passíveis de tutela os danos não patrimoniais sofridos pelo próprio ofendido, outras decisões

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atenderam aos DNP sofridos por terceiro, danos que, de acordo com as regras gerais (496º, nº 1 e 563º CC), são claramente indemnizáveis.

A Relação do Porto, por ac. de 30.3.2000, na Col. 00-II-209 - entendeu ser devida ao nascituro indemnização pela perda do pai, caso aquele venha a nascer - 66º, n.os 1 e 2, CC.

O Ac. no BMJ 347-398, desfavoravelmente comentado na RLJ 123-185 indemnizou ambos os pais pela perda de feto (nascituro, sem personalidade jurídica - art. 66º CC) em acidente de viação, como direito próprio, do n.º 1 e não dos n.os 2 e 3 do art. 496º do CC.

O notável Ac. do STJ, de 25.11.98, já atrás sumariado, foi mais longe e julgou indemnizável o dano não patrimonial sofrido pelos pais de uma criança gravemente queimada, mas em que não ocorreu a morte, com base nos art. 496º, nº 1, do CC e 68º, nº 1, da Constituição.

Pode ler-se no texto do acórdão e no tocante a este assunto:

Danos não patrimoniais sofridos pelos pais do menor.Não é difícil imaginar o seu sofrimento moral.Diz o processo que «o acidente e suas sequelas causaram aos autores um desgosto e uma

dor moral de proporções máximas».Nem era preciso dizê-lo.Mas, apesar de tudo, não é apodíctico que seja um dano indemnizável.Salva a hipótese de morte da vítima, o direito de indemnização por danos não patrimoniais

apenas cabe ao directamente lesado com o facto ilícito. Di-lo-no, desde logo, o nº 1 do artigo 483º do Código Civil.

Em sede de responsabilidade civil por factos ilícitos e pelo risco, o correspondente crédito de indemnização, tanto do dano patrimonial como do dano não patrimonial, entronca no titular do direito ou do interesse imediatamente violados, só excepcionalmente se estendendo a terceiros.

Estão neste último caso as hipóteses consideradas nos diferentes números do artigo 495º do Código Civil (cuja epígrafe fala, precisamente, em «indemnização a terceiros em caso de morte ou

lesão corporal») e no nº 2 e na segunda parte do nº 3, ambos do artigo 496º do mesmo Código.Estender, por argumento de analogia, o comando do nº 2 do artigo 496º a situações como a

dos autos carece de validade, visto que não procede, neste, a razão justificativa da extensão a terceiros do direito de indemnização pelo dano não patrimonial, e que é, precisamente, a morte da vítima; como norma excepcional, ela seria, aliás, insusceptível de aplicação analógica, nos termos do artigo 11º do Código Civil.

Não há, na hipótese, caso omisso, carecido de integração, nos termos do artigo 10º do Código Civil, mas, tão-só, um caso deliberadamente não regulado.

Por mais intensas e atrozes que tenham sido as dores morais dos pais, elas não deixam de ser uma consequência indirecta, reflexa, do acto lesivo da integridade física do menor.

Porém, a omissão causadora dos danos implicou directamente com o poder-dever legal dos pais de velarem pela segurança e saúde do filho (artigo 1878º, nº 1, do Código Civil).

Se do incumprimento do dever contratual da Santa Casa resultaram danos corporais para o menor, então não foi só o direito absoluto deste à integridade física que ficou directamente violado, mas, também, e directamente, o, também absoluto, direito (que também é dever) dos pais ao são e harmonioso desenvolvimento físico do seu filho menor, direito que a lei lhes garante e reconhece através da atribuição/imposição do poder paternal e do reconhecimento da paternidade e da maternidade como valores fundamentais, de matriz constitucional.

Enquanto titular do poder paternal, o progenitor tem não só o dever de garantir a segurança e a saúde do filho como, também, o direito de o ver crescer e desenvolver-se em saúde, por força

do nº 1 do artigo 68º da Constituição.

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Tal direito, como direito absoluto, é violado directamente pela acção ou pela omissão de que

resultam danos pessoais para o filho menor, e, por isso, a sua violação pode implicar, ao abrigo do nº 1 do artigo 496º do Código Civil, indemnização por danos não patrimoniais; sem necessidade, pois,

do recurso espúrio ao argumento de analogia tirado da norma do nº 2 do mesmo artigo.No caso dos autos, a grave omissão (artigo 486º do Código Civil) dos funcionários da Santa

Casa (165º e 500º, nº 1) causou directamente dano ao referido direito dos autores maiores e os danos não patrimoniais resultantes são de gravidade indiscutível, na perspectiva indemnizatória.

Tomando agora em conta todos os factores que, supra, foram relevados para efeitos de determinação do montante indemnizatório devido ao menor, e considerando, ainda, que os autores (pais) sofreram «um desgosto e uma dor moral de proporções máximas», «de par com enorme preocupação pelas consequências das lesões e pelas hipóteses de um mínimo de recuperação», entendem que tais danos não patrimoniais dos progenitores devem ser compensados com a quantia de 1.000 000$00, para cada um.

A esta questão de saber se serão ressarcíveis, no âmbito da responsa-bilidade civil extracontratual, os danos de natureza não patrimonial suportados por pessoas diversas do lesado directo (pais cujo filho fica tetraplégico ou psiquicamente afectado, a exigir permanentes cuidados, marido que fica impotente) Abrantes Geraldes1 responde afirmativamente, contra o ensino do Professor Antunes Varela na RLJ 123-255, 256 e 281:

«… o reconhecimento do direito pode assentar no preceituado nos arts. 483.° e 496º, n° 1, normas capazes de conferir os requisitos formais mínimos exigidos pelo art. 9º, nº 2, para delas arrancar o ressarcimento dos danos não patrimoniais invocados por quem ainda esteja a coberto da respectiva protecção normativa.

Assim, sem prejuízo dos argumentos de ordem racional referidos por Vaz Serra, pode concluir-se, com Américo Marcelino, que "o grande princípio consagrado no nº 1 do art. 496.° não põe outras reservas, outras condições, que não sejam tratar-se de danos tais que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito".

Com efeito, tal preceito consagra o princípio geral da ressarcibilidade dos danos de natureza não patrimonial, sem que dele resulte a intenção declarada do legislador de apenas tutelar os prejuízos que ocorrem na esfera jurídica do lesado directo ou os que decorrem da sua morte. Por outro lado, tal como se verifica quando a jurisprudência francesa se defronta com o art. 1382.° do Code Civil, está por demonstrar que o legislador, através do preceituado no art. 483.°, tenha pretendido restringir ao lesado directo o direito de indemnização. A referência à "violação do direito de outrem", a par da protecção dos "interesses alheios" deixa ao intérprete suficiente campo de manobra capaz de integrar danos que, posto que verificados na esfera jurídica de terceiros, ainda sejam imputáveis ao facto ilícito.

Essa imputação verifica-se de forma directa nos casos em que as lesões corporais na pessoa do sinistrado se repercutem imediatamente noutras pessoas que em simultâneo são afectadas, como ocorre quando se verifica uma situação de impotência do lesado que logicamente prejudica o relacionamento sexual no âmbito do casamento, consequência que, assumindo uma especial gravidade, confere ao outro cônjuge o direito de indemnização por danos próprios.

Já não é tão directa noutras situações. Ainda assim, desde que as lesões físicas ou psíquicas assumam uma gravidade que impliquem para os familiares próximos uma situação de angústia ou um elevado encargo pessoal ou emocional, deve ser-lhes reconhecido um direito de indemnização autónomo enquanto interessados inscritos no âmbito de protecção das normas definidoras da responsabilidade civil extra-contratual».

E conclui:«São ressarcíveis os danos não patrimoniais suportados por pessoas diversas daquela que é directamente atingida por lesões de natureza física ou psíquica graves, nos termos gerais do art. 496.°, nº 1, designadamente quando fique gravemente

1 - Estudos em Homenagem ao Professor I. Galvão Telles, Volume IV, pág. 263 e ss

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prejudicada a sua relação com o lesado ou quando as lesões causem neste grave dependência ou perda de autonomia do lesado;Tal direito de indemnização deve ser circunscrito às pessoas indicadas no nº 2 do art. 496.°».

V - NEXO DE CAUSALIDADE entre o facto e o dano - 563º.

Causa virtual é o facto real ou hipotético (veneno) que tenderia a produzir certo dano (morte) se este não tivesse sido causado por um outro facto que é a causa real (tiro). Salvo em casos excepcionais - 491º, 492º e 493º, nº 1 - irreleva a causa virtual. Ver A. Varela, Obrigações, 9ª ed., I, 639 a 643.

Alude-se a causalidade interrompida ou interrupção do nexo causal, quando um facto (causa virtual), adequado a provocar determinado dano, não chega todavia a ocasioná-lo, porque, entretanto, um outro facto (causa operante), autónomo do primeiro - quer dizer, não sua consequência adequada - e independentemente dele, produziu o mesmo resultado danoso. Exemplo: A ministra ao cavalo X de B uma dose mortal de veneno, acontecendo, porém, que, antes de se consumarem os seus efeitos, o cavalo é morto a tiro por C.

A esta figura costuma contrapor-se a da causalidade antecipada ou prematura, que se verifica quando o dano, provocado por certo facto, se teria produzido mais tarde, em consequência de um outro. Exemplo: E destrói uma tela famosa de F que pereceria no dia imediato, num incêndio do edifício em que se encontrava, se aquela destruição não houvesse ocorrido.

Evidencia-se nos dois casos o mesmo fenómeno de causalidade hipotética, embora enca-rado, respectivamente, sob o ângulo da causa virtual e da causa operante. Os problemas que se põem são os seguintes: por um lado, o de saber se a causa virtual ou hipotética do dano pode fundamentar uma obrigação de indemnização do seu autor - o problema da relevância positiva da causa virtual; por outro lado, o de saber se pode invocá-la o autor da causa operante ou real, para excluir ou reduzir a obrigação de indemnização que sobre ele impende - o problema da relevância negativa da causa virtual.

Ora, entende-se que a causa hipotética ou virtual não constitui fundamento de uma obrigação de indemnização, devendo considerar-se o dano como consequência do facto interruptivo. O autor da causa virtual apenas estará obrigado a reparar o «efeito parcial», porventura produzido, de que o seu facto foi, na verdade, causa real ou operante.

Atente-se em que consiste a responsabilidade pelo referido «efeito parcial», retomando o exemplo do cavalo de B envenenado por A e que, entretanto, C abate a tiro. A morte do cavalo foi produzida pelo tiro de C, mas não pode pretender-se que este tenha causado juridicamente qualquer dano a B, pois o cavalo envenenado, porque morreria logo em seguida, já nada significava no seu património. Portanto, o dano que corresponde ao valor do cavalo operou-se, efectivamente, em consequência do facto de A e não do facto de C.

Daí que a responsabilidade de A não resulte de se atribuir relevância positiva à causa virtual, mas tão-só de ele dever ser responsabilizado pela diminuição do valor do bem - na hipótese equivalendo praticamente à sua completa destruição - «que foi já consequência dos termos do processo causal hipotético decorridos antes do facto interruptivo». Apura-se, em suma, «que muitas vezes o princípio, correctamente aplicado, da responsabilidade pelo “efeito parcial” realmente pro-duzido, envolverá praticamente as mesmas consequências a que levaria a ideia de responsabilizar o autor da série causal interrompida (dando relevância positiva à causa hipotética) pelo dano que teria causado».

Mas possuirá a causa virtual relevância negativa, isto é, o autor da causa real pode exonerar-se da obrigação de indemnização, no todo ou em parte, invocando a causa virtual que originaria o mesmo dano?

Reconduzindo o problema a uma questão de causalidade, há que apurar se a causa real pode considerar-se efectivamente causa do dano, sendo certo que ele sempre se produziria em resultado da causa virtual. E a resposta é a de que a referida causalidade existe.

A causa virtual não possui a relevância negativa de exclui-la, dado que em nada afecta o nexo causal entre o facto operante e o dano: sem o facto operante o lesado teria um dano idêntico, mas não aquele preciso dano. Assim, existe, em princípio, a obrigação de indemnizar.

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Eis o que se infere no domínio da causalidade. Todavia, encarando o problema noutro plano, o da isenção ou atenuação da obrigação indemnizatória, verifica-se que pode, excepcionalmente, ser tomada em linha de conta a circunstância de que o dano viria a produzir-se como consequência da causa virtual ou hipotética - que, nessa medida, apresenta relevância negativa.

Vários preceitos do Código Civil português expressam a referida posição. Tal sucede nos artigos 491.°, 492.°, nº 1, 493.°, nº 1, 616.°, nº 2, 807.°, nº 2, e 1136.°, nº 2. Observa-se que todos eles patenteiam o traço comum de o beneficiário da relevância negativa da causa virtual ou hipotética se encontrar numa posição de responsabilidade agravada.

Apreciemos o artigo 491.°, que responsabiliza as pessoas obrigadas à vigilância de incapazes naturais pelos danos que estes causem a terceiro, «salvo se mostrarem que cumpriram o seu dever de vigilância ou que os danos se teriam produzido ainda que o tivessem cumprido». O agravamento da responsabilidade resulta, desde logo, de se tratar de um «casus mixtus» (fortuito e de culpa), pois os danos derivam directamente do acto do incapaz e só indirectamente, quando derivam, do incumprimento do dever de vigilância. Acresce um outro aspecto: o do agravamento que decorre da presunção de culpa, que excepciona a regra da responsabilidade extracontratual (art. 487.°, nº 1).

É diante do aludido agravamento duplo da posição do responsável que a lei entende justo admitir a relevância negativa da causa virtual. Esta opera mesmo em face de culpa provada do responsável.

Valem reflexões similares a respeito dos artigos 492.°, nº 1, e 493.°, nº 1, que se ocupam, respectivamente, da responsabilidade do «proprietário ou possuidor de edifício ou de outra obra que ruir, no todo ou em parte, por vício de construção ou defeito de conservação» e da responsabilidade de «quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel com o dever de a vigiar, e bem assim quem tiver assumido o encargo de vigilância de quaisquer animais». A mesma responsabilidade pelos danos causados a terceiro e as paralelas presunções de culpa e relevância negativa da causa virtual.

O artigo 807.°, nº 2, prevê uma situação concernente à mora debitória, entrando-se na esfera da responsabilidade contratual, onde a culpa do devedor se presume (art. 799.°, nº 1). Portanto, o agravamento da responsabilidade terá de procurar-se noutro aspecto. Reside ele no facto de a lei colocar a cargo do devedor moroso o risco da perda ou deterioração fortuita da coisa, impondo-lhe a indemnização dos prejuízos causados ao credor por essa perda ou deterioração, ainda que não lhe sejam imputáveis. Em contrapartida deste agravamento, faculta-se «ao devedor a possibilidade de provar que o credor teria sofrido igualmente os danos se a obrigação tivesse sido cumprida em tempo».

Caso semelhante patenteia o artigo 1136.°, nº 2, em que a lei agrava a posição do como-datário, enquanto o responsabiliza pela perda ou deterioração fortuita da coisa comodada que aplicou a fim diverso daquele a que a mesma se destina ou consentiu que terceiro a usasse sem para isso estar autorizado. Isenta-se, porém, o comodatário da responsabilidade, desde que prove que a perda ou deterioração «teria igualmente ocorrido sem a sua conduta ilegal».

Uma derradeira situação resulta do artigo 616.°, nº 2, relativo à impugnação pauliana (a «acção pauliana» do direito brasileiro). É assim: julgada procedente a impugnação pauliana de um acto de alienação, o adquirente de má fé toma-se responsável pelo valor tanto dos bens que tenha alienado como dos que hajam perecido ou se hajam deteriorado por caso fortuito. Mais uma vez, todavia, a lei tempera a solução, admitindo a prova de que «a perda ou deterioração se teriam igualmente verificado no caso de os bens se encontrarem no poder do devedor» - Almeida Costa, na RLJ 134-294/296.

Embora a causalidade adequada vá ser mais profundamente analisada no âmbito da obrigação de indemnizar, deixa-se transcrito o sumário de Ac. do STJ (Cons.º Noronha Nascimento), de 3.12.98, no BMJ 482-207:

«IV - A nossa lei civil (artigo 563º do Código Civil) consagra a teoria da causalidade adequada, teoria esta que admite duas variantes: a positiva e a negativa.

Na variante positiva, que é mais restritiva e mais conexionada com a valoração ética do facto (pelo que é utilizada para a fixação do nexo causal no âmbito do direito criminal) a previsibilidade do agente tem que se referir ao facto e à amplitude dos danos que dele emergem; ou seja, o agente só é culpado do que previu, quanto ao facto que praticou e quanto aos danos que perspectivou.

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Na variante negativa - a que está consagrada no artigo 563º do Código Civil - que é mais ampla e que tem um sentido ético da culpa menos restrito (por isso que é mais utilizada no direito civil, na teoria da responsabilidade), a previsibilidade do agente reporta-se ao facto e não aos danos, o que significa que o agente será sempre responsável por danos que jamais previu, desde que provenham de um facto - condição deles - que ele praticou e que visualisou. Assim, um facto é causal de um dano quando é uma de entre várias condições sem as quais o dano não se teria produzido.

V - Não há nexo causal entre o acidente e a morte do acidentado quando não há qualquer facto provado que permita considerar o acidente como condição causal da morte, sendo certo que a causalidade entre facto e dano tem de ser provada pelo autor porque é um facto constitutivo (artigo

342º, nº 1, do Código Civil) que, se essa prova se não fizer, quem sofre o respectivo ónus é a parte a quem incumbia essa prova (artigo 346º, in fine, do Código Civil).

O assim decidido é jurisprudência constante do STJ, como pode ver-se dos seguintes sumários:

O art.º 563 do CC consagra a doutrina da causalidade adequada na sua formulação negativa, que não pressupõe a exclusividade do facto condicionante do dano, nem exige que a causalidade tenha de ser directa e imediata, pelo que admite:

- não só a ocorrência de outros factos condicionantes, contemporâneos ou não;- como ainda a causalidade indirecta, bastando que o facto condicionante desencadeie outro

que directamente suscite o dano.Ac. de 07-04-2005, na Revista n.º 294/05 - 2.ª Secção

I - Na concepção mais criteriosa da doutrina da causalidade adequada, para os casos em que a obrigação de indemnização procede de facto ilícito culposo, quer se trate de responsabilidade extracontratual, quer contratual - a "formulação negativa", acolhida no art.º 563 do CC segundo a jurisprudência dominante do STJ - o facto que actuou como condição do dano só deixará de ser considerado como causa adequada se, dada a sua natureza geral, se mostrar de todo indiferente para a verificação do mesmo, tendo-o provocado só por virtude das circunstâncias excepcionais, anormais, extraordinárias ou anómalas que intercederam no caso concreto.

II - Para que um dano seja considerado efeito adequado de certo facto, em corolário da teoria sumariada em I, não tem que se tornar previsível para o seu autor. A previsibilidade é decerto exigível relativamente, v. g., ao requisito da culpa, visto constituir um elemento (intelectual) desta em qualquer das suas modalidades, mas não em relação aos danos.

III - Formulados pedidos de indemnização pela perda integral do lucro de comercialização de um lote de vinhos, que se deterioraram por facto ilícito e culposo da transportadora Ré, e pela indemnização das despesas inutilizadas no lugar de destino concernentes a essa comercialização, é inconciliável o ressarcimento cumulativo das duas sortes de danos, uma vez que o lucro esperado não podia ser auferido sem que tais despesas fossem realizadas.

IV - A procedência, por conseguinte, do pedido de indemnização da perda do lucro, esgota e consome a protecção do interesse do lesado mediante a indemnização das despesas de comercialização, determinando a improcedência deste outro pedido - Ac. de 07-04-2005, na Revista n.º 4474/03 - 2.ª Secção

…VII - O art.º 563 do CC consagrou, quanto ao nexo de causalidade, a doutrina da causalidade

adequada, na formulação negativa de Enneccerus-Lehman, nos termos da qual a inadequação de uma dada causa para um resultado deriva da sua total indiferença para a produção dele, que, por isso mesmo, só ocorreu por circunstâncias excepcionais ou extraordinárias.

VIII - Esta doutrina, nomeadamente no que concerne à responsabilidade por facto ilícito culposo - contratual ou extracontratual - deve interpretar-se, de forma mais ampla, com o sentido de que

- o facto que actua como condição só deixará de ser causa do dano desde que se mostre por sua natureza de todo inadequado e o haja produzido apenas em consequência de circunstâncias anómalas ou excepcionais e de que

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- a citada doutrina da causalidade adequada não pressupõe a exclusividade da condição, no sentido de que esta tenha só por si determinado o dano - 03-03-2005, na Revista n.º 4249/04 - 7.ª Secção

IV - O facto é causa adequada do dano quando, considerando a sua natureza intrínseca e as circunstâncias conhecidas ou cognoscíveis do agente, se mostra idóneo, do ponto de vista do direito, para aumentar o risco de produção do prejuízo - Ac. de 15-03-2005, na Revista n.º 4808/04 - 6.ª Secção

Na Revista 1564.03 – 6ª secção, escrevi:

«Nos termos do art. 483º, n.º 1, do CC, aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem, ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.

Dispõe conformemente o art. 563º do CC que a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.

Nos termos do n.º 1 do art. 570º do mesmo diploma, quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída.

No ensinamento dos Prof. Pires de Lima e Antunes Varela2, a obrigação de reparar um dano supõe a existência de um nexo causal entre o facto e o prejuízo; o facto, lícito ou ilícito, causador da obrigação de indemnizar deve ser a causa do dano, tomada esta expressão agora no sentido preciso de dano real e não de mero dano de cálculo. A disposição deste artigo, pondo a solução do problema na probabilidade de não ter havido prejuízo se não fosse a lesão, mostra que se aceitou a doutrina mais generalizada entre os autores - a doutrina da causalidade adequada -, que Galvão Telles formulou nos seguintes termos: «Determinada acção ou omissão será causa de certo prejuízo se, tomadas em conta todas as circunstâncias conhecidas do agente e as mais que um homem normal poderia conhecer, essa acção ou omissão se mostrava, à face da experiência comum, como adequada à produção do referido prejuízo, havendo fortes probabilidades de o originar» (Manual de Direito das Obrigações, n.º 229).

Vaz Serra, depois de referir alguns casos em que não há uma causa adequada, afirma igualmente: «Não podendo considerar-se como causa em sentido jurídico toda e qualquer condição, há que restringir a causa àquela ou àquelas condições que se encontrem para com o resultado numa relação mais estreita, isto é, numa relação tal que seja razoável impor ao agente responsabilidade por esse mesmo resultado. O problema não é um problema de ordem física ou, de um modo geral, um problema de causalidade tal como pode ser havido nas ciências da natureza, mas um problema de política legislativa: saber quando é que a conduta do agente deve ser tida como causa do resultado, a ponto de ele ser obrigado a indemnizar. Ora, sendo assim, parece razoável que o agente só responda pelos resultados para cuja produção a sua conduta era adequada, e não por aqueles que tal conduta, de acordo com a sua natureza geral e o curso normal das coisas, não era apta para produzir e que só se produziram em virtude de uma circunstância extraordinária» (est. cit., n.º 5, no BMJ n.º 84).

O Professor Antunes Varela3 ensina que a «resposta ao problema da causalidade (ou seja, do nexo exigível entre o facto e o dano, para que este seja indemnizável) vem dada no artigo 563º cujo texto é o seguinte: «A obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão».

Os trabalhos preparatórios do Código, na parte referente a este preceito, revelam de modo inequívoco que com ele se quis consagrar a teoria da causalidade adequada. Faz-se aí apelo ao prognóstico objectivo que, ao tempo da lesão (ou do facto), em face das circunstâncias então reconhecíveis ou conhecidas pelo lesante, seria razoável emitir quanto à verificação do dano. A indemnização só cobrirá aqueles danos cuja verificação era lícito nessa altura prever que não ocorressem, se não fosse a lesão. Ou, por outras palavras: o autor do facto só será obrigado a reparar aqueles danos que não se teriam verificado sem esse facto e que, abstraindo deste, seria de prever que não se tivessem produzido.

2 - CC Anotado, I, 4ª ed., notas aos art. 562º e 563.3 - Das Obrigações em Geral, I, 9ª ed., 928.

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A fórmula adoptada não é, todavia, inteiramente feliz para exprimir o pensamento do legislador.

Há, com efeito, danos que o lesado muito provavelmente não teria sofrido se não fosse o facto ilícito imputável ao agente, e que, no entanto, não podem ser incluídos na obrigação de indemnização, porque isso repugnaria ao pensamento da causalidade adequada que o artigo 563º indubitavelmente quis perfilhar.

Tomado ao pé da letra, o texto do artigo 563º dir-se-ia consagrar a tese da pura condicionalidade, assente na teoria da equivalência das condições. Pelo seu espírito, colhido principalmente através dos trabalhos preparatórios do Código, a disposição quer sem dúvida consagrar o recurso ao prognóstico objectivo, nos termos em que o recomenda a doutrina da causalidade adequada.

Deste modo, para que um dano seja reparável pelo autor do facto, é necessário que o acto tenha actuado como condição do dano. Mas não basta a relação de condicionalidade concreta entre o facto e o dano. É preciso ainda que, em abstracto, o facto seja uma causa adequada (hoc sensu) desse dano».

«Pode-se, assim, afirmar que a causa juridicamente relevante será a causa em abstracto adequada ou apropriada à produção desse dano segundo regras da experiência comum ou conhecidas do lesante e que pode ainda ser vista, numa formulação positiva, como a condição apropriada à produção do efeito segundo um critério de normalidade, ou, numa formulação negativa, que apenas exclui a condição inadequada, pela sua indiferença ou irrelevância, verificando-se então o efeito por força de circunstâncias excepcionais ou extraordinárias4».

B ) - R. Ext. RISCO

Este tipo de responsabilidade nasceu da necessidade de reparar danos reconhecidamente indemnizáveis mas produzidos sem culpa, antes resultantes da forma de organização do trabalho e da utilização de máquinas com consequente diluir de responsabilidades; assenta na ideia ubi commoda ibi incommoda. Também a responsabilidade sem culpa estimulará o empresário a aperfeiçoar a organização e por aí diminuir a sinistralidade.

Esta mesma ideia de socialização do risco levou a alargar a responsabilidade sem culpa à circulação rodoviária, criando-se o seguro obrigatório e até o Fundo de Garantia Automóvel para os casos de falta de seguro ou de seguro ineficaz.

A responsabilidade pelo risco prescinde da culpa e, por vezes, da própria ilicitude, como acontece na responsabilidade por factos naturais, de terceiro ou do próprio lesado.

Mas na regulação desta responsabilidade faz-se frequente apelo às regras da resp. por culpa, pois é a lei - 499º - que determina a aplicabilidade à responsabilidade pelo risco das normas da responsabilidade por factos ilícitos.

I - Comitente - 500º

É claro caso de responsabilidade objectiva, pois o comitente responde independentemente de culpa e mesmo que o comissário tenha agido contra as instruções recebidas. Restar-lhe-á o reembolso pelo comissário, de duvidosa solvabilidade.

Mas são necessários três requisitos:

4 - Ac. do STJ (Garcia Marques), de 10.3.98, no BMJ 475-641; no mesmo sentido, o Ac. do mesmo STJ (Silva Paixão), de 15.1.2002, na Col. Jur. (STJ) 2002-I-38.

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a) - Comissão - que implica liberdade de escolha (?) pelo comitente e subordinação do comissário ao comitente, que tem o poder de direcção, de dar instruções ou ordens - nº 1.

b) - exercício da função - nº 2, in fine - com a fórmula legal quis-se afastar da responsabilidade do comitente os actos que apenas têm um nexo temporal ou local com a comissão.

c) - responsabilidade do comissário. Em princípio o comitente só responde, se tiver havido culpa do comissário.

Por comitente, entende-se a pessoa que, por livre nomeação ou mera designação de facto, encarrega outra de um serviço ou comissão, quer gratuita, quer retribuída, no seu próprio interesse, permanente ou ocasional (pressupõe uma relação de autoridade).

Por comissário, entende-se aquele que aceita voluntariamente o encargo, ficando sob as ordens ou instruções do comitente, mesmo que este se proponha utilizar os conhecimentos ou melhor preparação técnica daquele (pressupõe sempre uma relação de subordinação, a apreciar no caso concreto, segundo as circunstâncias).

No “Código civil Anotado”, 4ª ed., pág. 507, dos Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, lê-se que o termo «comissão» não tem aqui o sentido técnico preciso, que reveste nos arts. 266º e segs., do Cód. Comercial, mas o sentido amplo de serviço ou actividade realizada por conta e sob a direcção de outrem, podendo essa actividade traduzir-se num acto isolado ou numa função duradoura, ter carácter gratuito ou oneroso, manual ou intelectual.

O Prof. Menezes Cordeiro entende que a comissão abrange toda a tarefa de que o comissário foi incumbido pelo comitente e surge para efeitos de responsa-bilidade desde que exista uma escolha de comissário, o comissário actue por conta do comitente e se estabeleça uma relação de subordinação do primeiro para com o segundo - Col. STJ 01-I-130.

Mantém-se a responsabilidade do comitente: o facto danoso deve estar numa relação de causalidade ou conexão com a função», «deve ser praticado com os meios postos à disposição do comissário em razão das suas funções», «deve ser inspirado pelo interesse do comitente», «a incumbência feita ao comissário deve ser pressuposto indispensável do dano, de tal sorte que o comissário não teria praticado o facto fora da comissão» - BMJ 413- 496: - gerente de banco que angariava aceites de favor para encobrir financiamentos que o Banco de outra forma não faria; Col. Jur. (STJ) 01-III-27: sociedade dona de discoteca não é responsável por agressão dos seus seguranças a terceiros se praticada a agressão, ainda que na discoteca, por razões pessoais e por vingança de anteriores agressões dos clientes da discoteca aos agora seguranças.

O gerente de uma sociedade por quotas que conduz um veículo da sociedade é comissário desta – Col. STJ 2001-II-23.

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Sobre responsabilidade da pessoa colectiva por actos ou omissões de seus agentes, representantes ou mandatários (art. 165º e 500º) pode ver-se o Ac. do STJ de 18 de Junho de 1996, na Col. STJ 96-II-142:

«Dispõe o mencionado art. 165º que "as pessoas colectivas respondem civilmente pelos actos ou omissões dos seus representantes, agentes ou mandatários nos mesmos termos em que os comitentes respondem pelos actos ou omissões dos seus comissários".

Decorre do mesmo artigo que o regime de responsabilidade civil das pessoas colectivas é afinal idêntico ao previsto no artigo 500º do já aludido Código no que tange à responsabilidade do comitente.

Como ensina Mota Pinto, in ob. e loc. citados, para que a pessoa colectiva responda civilmente devem verificar-se os pressupostos seguintes:

"1) - Que sobre o órgão, agente ou mandatário recaia igualmente a obrigação de indemnizar…".

"2) - Que o acto danoso haja sido praticado pelo órgão, agente ou mandatário no exercício da função que lhe foi confiada".

3) - Que "ao lado da pessoa colectiva fique igualmente adstrito à obrigação de indemnizar o órgão, agente ou mandatário (artigo 500º, nº 1)".

4) - Que "a pessoa colectiva que tiver satisfeito a indemnização ao lesado tenha direito de regresso contra o órgão, agente ou mandatário, podendo exigir-lhe o reembolso de tudo quanto haja pago, desde que tenha havido culpa deste no plano das relações internas" e isso em face da responsabilidade contratual do órgão, agente ou mandatário para com a pessoa representada.

5) - Que, de igual modo, "o órgão, agente ou mandatário, desde que tenha satisfeito a indemnização à vítima possa exercer o direito de regresso ou recursória contra a pessoa colectiva", se não houver da sua parte culpa que o responsabilize no plano das relações internas.

Mas, para lá da autorizada opinião de Mota Pinto nos termos que antes se deixaram expressos, não pode esquecer-se o ensinamento, em sentido idêntico, de outros ilustres autores como Almeida Costa, in "Direito das Obrigações", 1994, 6ª edição, págs. 516-521, Menezes Cordeiro, in "Direito das Obrigações", 1991, 2ª edição, vol. II, págs. 373 e segs., Pessoa Jorge, in "Ensaio sobre os pressupostos da Responsabilidade Civil", 1968, págs. 147e segs., e, ainda, Calvão da Silva, in "Responsabilidade Civil do Produtor, págs. 366 e segs.

De salientar ainda o que referem, acerca da temática da responsabilidade das pessoas colectivas e dos comitentes, Pires de Lima e Antunes Varela, nos comentários relativos aos artºs 165º, 493º e 500º, in "C. C. Anotado", 1987, 4ª edição, vol. I, a págs 167 e 168, 495 e 496 e, ainda, 507 a 510. E do mesmo modo não é de esquecer o artigo 998º do C. Civil relativo à responsabilidade por factos ilícitos das sociedades, que com aqueles normativos deve concatenar-se, sendo oportuno o comentário inserto no aludido "C. C. Anotado", 1968, 1ª edição, vol. II, págs. 249 e 250.

Também a jurisprudência tem tomado posição convergente no sentido da existência da responsabilidade civil das pessoas colectivas por acto ou omissão dos respectivos órgãos, agentes ou mandatários, como se alcança dos Acórdãos deste Supremo, de 11/01/1972, in BMJ, 213-203, de 10/01/1975, in BMJ. 243-240, de 11/06/1975, in BMJ. 248-406, de 19/10/1976, in BMJ. 260-155, de 17/11/1977, in BMJ. 271-201, de 26/10/1978, in BMJ. 280-300, e de 14/11/1984, in BMJ. 351, 408.

Por último impõe-se lembrar o que diz Vaz Serra, a propósito da responsabilidade civil das pessoas colectivas, in BMJ. 85 -204. Refere este autor que "tratando-se de grandes ou médias empresas em que seja habitual o emprego de terceiros" … e em que "a complexidade dos trabalhos aumente o risco a que terceiros estão sujeitos pela acção desses auxiliares, ou de comissão especialmente perigosa para terceiros responde o comitente, independentemente de culpa sua, pelos danos que o comissário causar".

Pouco depois, citando Quagliariello, diz ainda que "é suficiente que o facto ilícito tenha sido ocasionado pela incumbência confiada. Não é preciso uma relação de causalidade entre a prestação do autor do facto ilícito e o mesmo facto, basta que o primeiro constitua um indispensável pressuposto do dano, quer dizer, que se o dependente não tivesse sido adstrito àquela actividade não se teria podido verificar o ilícito, mesmo que este tenha sido cometido contrariando as disposições impostas pelo dador do trabalho".

3) Dito isto vamos passar a focar a 2ª questão o que fazemos como se segue:

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Considerando o que vimos de explanar em 2) que antecede e a matéria de facto apurada e referida em A) Os Factos Provados, podemos desde já dizer que assiste razão à autora, ora recorrente.

a) Estabelece o artigo 493º, nº 2, do C. Civil, que "quem causar danos a outrem no exercício de uma actividade, perigosa por natureza ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, excepto se mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir".

Vê-se desta norma - onde na sua última parte está consagrada a inversão do ónus da prova - que impendia sobre a R. recorrida "ECE", na tese da A. a causadora dos danos, o dever de provar o emprego de todas as cautelas necessárias à boa execução dos trabalhos Ievados a cabo.

Da matéria fáctica apurada verifica-se que aquela R. não conseguiu fazer essa prova sendo certo que a actividade normal da R., se bem que ligada à construção civil, se configura como engenharia de alto risco, aliás assim qualificada pela própria R. seguradora, o que nos determina - e logicamente se impõe a que entendamos dever considerá-la como uma actividade perigosa nos termos e para os fins do mencionado arte 493º, nº 2.

Incumbia à "ECE", como produtora e usando a linguagem de Calvão da Silva, in ob.cit., págs. 390 e segs., convencer o Tribunal de que não incorrera "em qualquer culpa de organização, que o processo de produção fora bem organizado, e controlado sem lacunas, que as fontes de vício ou defeito eram inexistentes". Falhando nessa incumbência a "ECE" claudicou na defesa da sua tese e, assim, terá de arrostar com as consequências da sua omissiva conduta.

b) Para finalizar diremos apenas que a matéria provada é suficientemente clara e elucidativa no sentido de termos como configurado o condicionalismo previsto nas já mencionadas normas legais dos artigos 483º nº 2, 493º nº 2, 165º, 998º e 500º do C. Civil, normas essas de que manifestamente resulta a responsabilidade da "ECE" pelos actos e omissões dos seus agentes ou mandatários, responsabilidade essa geradora da obrigação de indemnizar mesmo sem culpa.

Essa responsabilidade deverá ser vista também no ângulo da responsabilidade pessoal dos gerentes, que embora não praticando os actos geradores do dano, actuaram como seus produtores pela escolha que fizeram do pessoal, equipamento e materiais, sem olvidar a correcta utilização do binómio homem-máquina e a salvaguarda das adequadas medidas de segurança e controle na execução dos trabalhos.

Demonstrado está também que os operários que procediam às obras em causa o faziam por conta, a mando e sob a direcção da "ECE", sendo por demais evidente que os trabalhos levados a cabo, se inseriam no âmbito da "comissão" que lhe fora conferida.

Está, pois, bem demonstrada a responsabilidade da "ECE" pelos actos dos seus agentes ou mandatários» -

bem como o Ac do STJ, na Col. STJ 99-I-127, com o seguinte sumário:

I - Para que o banco como pessoa colectiva responda por actos do seu funcionário, é necessário que sobre este recaia igualmente a obrigação de indemnizar e que o acto danoso tenha sido praticado no exercício da função confiada àquele mesmo funcionário.

II - A responsabilidade do banco não é afastada se os actos dolosos do agente, embora praticados em vista de fins pessoais, estiverem integrados formalmente no quadro geral da sua competência e o agente infiel aproveita uma aparência social que cria um estado de confiança do lesado na lisura do comportamento daquele.

III - O comissário responde a título de culpa e o comitente a título de responsabilidade objectiva, sendo este um dos casos em que existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa.

O STJ, por Ac. de 28.4.99, na Col. STJ 99-II-185, reafirmou esta doutrina, decidindo que

A responsabilidade do comitente prevista no art. 500º do CC só existe quando o acto do comissário é praticado no exercício das suas funções, bastando, no entanto, que ele esteja conexionado com o quadro geral da competência ou com os poderes que lhe são conferidos, sendo certo que o comitente apenas responde pelos actos ilícitos praticados pelo comissário, mesmo

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que cometidos intencionalmente ou contra as instruções daquele, desde que a comissão seja adequada ou idónea desses eventos.

Verifica-se essa responsabilidade objectiva de uma companhia de seguros quando um dos seus funcionários, enquanto técnico comercial, contacta um dos ofendidos propondo-lhe uma aplicação financeira naquela seguradora, com boas condições de rentabilidade, apresentando uma carta na qual escreveu o nome do gerente de uma delegação, simulando que fora escrita e assinada pelo mesmo, dando a aparência e criando a confiança de que os ofendidos estavam a contratar com a respectiva seguradora.

Não impede essa responsabilidade da companhia de seguros, ainda que o arguido tenha manifestamente excedido as instruções daquela, desde que o seu comportamento se insira no exercício das funções que então desempenhava na mesma.

Acórdão do STJ (Cons.º Oliveira Barros), de 2.3.2006, na Col. Jur. (STJ) 2006-I-97 a 100:

Sumário:I - Ao determinar, no seu nº 1º, que, desde que sobre o comissário recaia a obrigação

de indemnizar, aquele que encarrega outrem de qualquer comissão responde, independen-temente de culpa, pelos danos que o comissário causar, o art.500º C. Civ. institui uma situação de responsabilidade objectiva do comitente.

II - Consoante art.500º, nº 2º, C.Civ., essa responsabilidade do comitente depende da verificação de três requisitos:

a) - a existência de relação de comissão, que implica liberdade de escolha pelo comitente e se caracteriza pela subordinação do comissário ao comitente, que tem o poder de direcção, ou seja, de dar ordens ou instruções; b) - a responsabilidade do comissário, já que, em princípio, o comitente só responde se tiver havido culpa do comissário; c) - que o acto praticado pelo comissário o tenha sido no exercício da função que lhe foi confiada.

III - Com a fórmula restritiva adoptada nesse nº2º, a lei quis afastar da responsabilidade do comitente os actos que apenas têm um nexo temporal ou local com a comissão.

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

Em 3/6/98, AA e BB moveram à Empresa-A, acção declarativa com processo comum na forma ordinária, que foi distribuída à 1ª Secção do 6ª Juízo, depois Vara, Cível de Lisboa.

Pretendida nessa acção a condenação da demandada no pagamento de 2.543.288$00, com juros de mora, alegaram para tanto:

- serem titulares da conta n°212562011, do Empresa-B e portadores de um cartão magnético de débito, vulgo Multibanco, que estava guardado no escritório em que a A. exerce a sua actividade profissional ;

- que esse cartão foi dali retirado por uma empregada da Ré, CC, que fazia a limpeza dos escritórios ;

- e que, na posse desse cartão, esta fez levantamentos e despesas no montante pedido.

Saneado, condensado e instruído o processo, realizou-se o julgamento, vindo, depois, a ser proferida, em 19/3/2004, sentença que condenou a interveniente CC a pagar aos AA a quantia peticionada, absolvendo os restantes RR do pedido.

Por acórdão de 26/4/2005, o Tribunal da Relação de Lisboa negou provimento ao recurso de apelação que os AA interpuseram dessa sentença, que confirmou.

É dessa decisão que vem, agora, pedida revista.

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Convenientemente ordenada, a matéria de facto fixada pelas instâncias é como segue :

(a) - A sociedade administradora do empreendimento onde está instalado o escritório dos AA prestava-lhes serviço de recepção e encaminhamento dos clientes.

(b) - A Companhia Administradora Empresa-C, celebrou com a A. AA o acordo escrito junto por cópia a fls. 22 a 27 destes autos, que tinha como objecto a prestação dos serviços de apoio à actividade da A. identificados na cláusula 1ª desse acordo.

(c) - A Companhia Administradora Empresa-C. celebrou com a Empresa-D um contrato de seguro designado de " responsabilidade civil geral " titulado pela apólice n° 6553, e um contrato de seguro designado de " riscos múltiplos " titulado pela apólice n° 2502204, através dos quais transferiu para esta a responsabilidade civil que lhe pudesse ser imputada pelo exercício da sua actividade comercial.

(d) - A Empresa-A, celebrou com a Empresa-C, o acordo escrito junto por cópia a fls. 28 e 29 destes autos, que tinha por objecto a prestação de serviços de limpeza na Rua da Misericórdia, 76, entrada e sala de fotocópias no r/c, 1º, 2º, 3º, 4º, 5º e 6º.

(e) - No que respeitava às tarefas contratadas, a Empresa-A actuava com total autonomia e independência de meios e pessoal em relação àquela interveniente.

(f) - Era a Empresa-A que seleccionava e dirigia o pessoal que prestava, por sua conta e sob as suas ordens e direcção dos seus responsáveis, os serviços de limpeza contratados com a interveniente referida e que vigiava esse pessoal, quer através do seu corpo de inspectores, quer pelos encarregados das equipas de trabalhadores, que ela entendia necessário enviar para as instalações da interveniente.

(g) - A Ré CC era funcionária da Ré Empresa-A, com a categoria de trabalhadora de limpeza, tendo ficado encarregue da limpeza do escritório da Autora.

(h) - A Ré Empresa-A proporcionou àquela funcionária o ingresso nos escritórios de forma periódica, não controlando à entrada e saída os objectos que a mesma transportava consigo, nem a obrigando a permanecer nos escritórios em grupo, de forma a que existisse um controlo durante a permanência.

(i) - O acesso ao interior do escritório da Autora foi possibilitado à referida CC única e exclusivamente porque se tratava de uma funcionária da Ré Empresa-A.

(j) - Os AA são titulares da conta n° 212562011 do Empresa-B, sendo portadores de um cartão magnético de débito, que estava guardado dentro de uma gaveta no escritório em que a A. exerce a sua actividade profissional, na sala 502 do Centro Luxor, sito na Rua da Misericórdia, n° 76, em Lisboa.

(l) - Esse cartão foi retirado dessa gaveta pela empregada que fazia a limpeza do escritório, a Ré CC, que, agindo voluntariamente, se apoderou do cartão, bem sabendo que não podia abrir a gaveta, que o cartão não era seu, e que o seu comportamento não era permitido por lei.

(m) - Sabendo ( também ) que não devia mexer nos papéis, a mesma CC, empregada de limpeza, foi consultar uma agenda existente naquele escritório, procurando o código do referido cartão Multibanco, que efectivamente aí encontrou.

(n) - Estes factos foram praticados nas horas de serviço da CC.(o) - Na posse do cartão e do respectivo código de acesso, a Ré CC efectuou movimentos

para pagamento de compras e para levantamento de dinheiro, e, com o seu comportamento, retirou 2.543.288$00 da conta bancária que sabia ser dos AA.

(p) - Estes movimentos e levantamentos foram efectuados entre 19/12/97 e 7/1/98.(q) - O cartão foi retido por uma máquina ATM.(r) - Os AA emitiram e enviaram à Ré Empresa-A, que a recebeu, a carta junta por cópia a fls.

30 destes autos, de que consta no essencial: " ( ...) É pois nosso entendimento que, independentemente das consequências criminais que decorrem da queixa já apresentada contra aquela empregada, existe responsabilidade pecuniária dessa empresa pelas consequências do acto ilícito praticado por uma funcionária sua em exercício de funções. Solicitamos, assim, que com a maior brevidade possível e, no máximo, até ao final do corrente mês, procedam à regularização do referido prejuízo, no montante de 2.543.288$00, sendo que a ré nada pagou" ( D ).

Verificada a responsabilidade da interveniente CC, que foi condenada a pagar aos AA a quantia de 2.543.248$00, e afastada, sem oposição dos recorrentes, a responsabilidade civil das

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intervenientes Empresa-C, e Empresa-D, está agora em causa, apenas, a determinação da existência, ou não, de responsabilidade civil extracontratual da recorrida Empresa-A.

No acórdão recorrido considerou-se que, como geralmente reconhecido, a responsab-ilidade do comitente prevista no art. 500º, nº 2º, C. Civ., depende da verificação de três requisitos :

a) - a existência de relação de comissão, que implica liberdade de escolha pelo comitente e se caracteriza pela subordinação do comissário ao comitente, que tem o poder de direcção, ou seja, de dar ordens ou instruções ;

b) - a responsabilidade do comissário, já que, em princípio, o comitente só responde se tiver havido culpa do comissário ;

c) - que o acto praticado pelo comissário o tenha sido no exercício da função que lhe foi confiada.

Demonstrados, no caso, os dois primeiros, a absolvição da Ré Empresa-A deveu-se ao não preenchimento do terceiro dos requisitos referidos, tendo-se julgado que o comportamento da interveniente CC não estava intrinsecamente ligado às funções que lhe estavam confiadas.

É contrário o entendimento dos recorrentes a esse respeito: segundo sustentam, a responsabilidade da Ré Empresa-A resulta do facto de a Ré CC ter praticado o facto ilícito no exercício da função que aquela lhe confiou, e tal assim por encontrar-se numa posição especialmente adequada à prática de tal facto, em vista da natureza dos actos de que foi incumbida e dos objectos que lhe foram confiados, cujo acesso lhe foi possibilitado pela Ré Empresa-A, nas condições em que lhe ordenou que procedesse à limpeza.

O art. 500º C. Civ. institui uma situação de responsabilidade objectiva do comitente ao determinar, no seu nº1º, que, desde que sobre o comissário recaia a obrigação de indemnizar, aquele que encarrega outrem de qualquer comissão responde, independentemente de culpa, pelos danos que o comissário causar.

Porém, de harmonia com o seu nº 2º, a responsabilidade do comitente só existe se o facto danoso for praticado pelo comissário, ainda que intencionalmente ou contra as instruções daquele, no exercício da função que lhe foi confiada. Na verdade:

"Para efeitos do artigo 500º C. Civ., a comissão deve ser entendida como serviço ou actividade realizada por conta e sob a direcção de outrem, podendo traduzir-se num acto isolado ou numa função duradoura, gratuita ou onerosa, manual ou intelectual".

"A responsabilidade do comitente só existe se o facto danoso for praticado pelo comitido no exercício da função que lhe é confiada" (2) .

No entender de Antunes Varela (3), " com a fórmula restritiva adoptada (no nº 2) a lei quis afastar da responsabilidade do comitente os actos que apenas têm um nexo temporal ou local com a comissão. Mas, acentuando ao mesmo tempo que a responsabilidade do comitente subsiste, ainda que o comissário proceda intencionalmente contra as instruções dele, mostra-se que houve a intenção de abranger todos os actos compreendidos no quadro geral da competência ou dos poderes conferidos ao dito comissário. (...) Serão, assim, da responsabilidade do comitente os actos praticados pelo comissário com abuso de funções, ou seja, os actos formalmente compreendidos no âmbito da comissão, mas praticados com um fim estranho a ela ".

Preenchem, pois, o terceiro requisito referido os actos praticados pelo comissário "no quadro geral da competência ou dos poderes do dito comissário, que pertençam ao quadro da actividade adoptada para realizar o fim da comissão (Larenz) e que tenham sido praticados com o agente da sociedade agindo em tal veste ou qualidade, isto é, por causa das suas funções " (4) .

Já não assim os actos do comissário que, "praticados no lugar ou no tempo em que é executada a comissão, nada tenham com o desempenho desta, a não ser porventura a circunstância de o agente aproveitar as facilidades que o exercício da comissão lhe proporciona para consumar o acto" (5).

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Deste modo, " deverá entender-se que um facto ilícito foi praticado no exercício da função confiada ao comissário quando, quer pela natureza dos actos de que foi incumbido, quer pela dos instrumentos ou objectos que lhe foram confiados, ele se encontre numa posição especialmente adequada à prática de tal facto " (6).

Isto significa que "a lei abrange unicamente os actos ligados ao serviço, actividade ou cargo, embora exista apenas um nexo instrumental, excluindo os praticados por ocasião da comissão com um fim ou interesse que lhe seja estranho. E subsiste a responsabilidade do comitente, mesmo que o comissário, nesse quadro, tenha agido intencionalmente ou contra as suas instruções" (7).

Os factos provados na acção revelam que :

- a Ré CC era funcionária da Ré Empresa-A, com a categoria de trabalhadora de limpeza, tendo ficado encarregada da limpeza do escritório da Autora no âmbito de acordo celebrado por aquela e que tinha por objecto a prestação de serviços de limpeza ;

- a Empresa-A proporcionou à CC o ingresso nos escritórios de forma periódica, única e exclusivamente porque se tratava de uma sua funcionária, não controlando à entrada e saída os objectos que a mesma transportava consigo, nem a obrigando a permanecer nos escritórios, em grupo, de forma a que existisse um controlo durante a permanência ;

- era a Empresa-A que seleccionava e dirigia o pessoal que prestava por sua conta, e sob as suas ordens e direcção dos seus responsáveis, os serviços de limpeza contratados com a interveniente e era a Empresa-A que vigiava esse pessoal, quer através do seu corpo de inspectores, quer pelos encarregados das equipas de trabalhadores, que ela entendia necessário enviar para as instalações da interveniente ;

- a Ré CC, que fazia a limpeza do aludido escritório, durante as horas de serviço de limpeza, apoderou-se de um cartão Multibanco que se encontrava guardado dentro de uma gaveta, e foi, depois, consultar uma agenda existente naquele escritório, procurando e encontrando o código do referido cartão ;

- na posse do cartão e do respectivo código de acesso, a CC efectuou movimentos para pagamento de compras e para levantamento de dinheiro, retirando da conta bancária, que sabia ser dos autores, 2.543.288$00.

É perante esta situação de facto que há que determinar se a actuação ilícita e dolosa da CC se situa ou não no âmbito do exercício das suas funções de comissária, com a consequência de a Ré Empresa-A, comitente, poder ser responsabilizada pelos actos praticados por essa sua empregada, conforme arts.165º e 500º C. Civ. Ora :

Não parece que se deva discordar das instâncias, levando os princípios e fundamentos da teoria do risco além do que a doutrina já adiantada refere (8). Com efeito:

Esse tipo de responsabilidade, assente na ideia de que ubi commoda, ibi incommoda, nasceu da necessidade de reparar danos reconhecidamente indemnizáveis, mas produzidos sem culpa, antes resultantes da forma de organização do trabalho, da delegação de tarefas e da utilização de máquinas com a consequente diluição de responsabilidades. E também a responsabilidade sem culpa estimulará o empresário a aperfeiçoar a organização e a diminuir, por esse modo, a sinistralidade.

Por isso, "deve considerar-se justo que, alargadas por meio do concurso de terceiros as potencialidades do comitente de satisfação dos próprios interesses, lhes deva corresponder, numa espécie de equilíbrio jurídico, a responsabilidade pelos danos provenientes da actuação do comitido. (...) O comitente apresenta-se, deste modo, como garante da responsabilidade em que incorre a pessoa que actua sob a sua direcção. Porque tudo se passa, afinal, como se ele próprio agisse. E, sendo assim, o risco da insuficiência do património do comissário deve suportá-lo ele e não o lesado." (9).

A responsabilidade pelo risco prescinde da culpa e, por vezes, da própria ilicitude, como acontece na responsabilidade por factos naturais, de terceiro ou do próprio lesado.

Mas, por outro lado, a apreciação da questão está intrinsecamente ligada à autoridade do comitente sobre o comitido, ao poder de vigilância e direcção que a comissão importa e, sobretudo, à confiança que é, em princípio, transmitida aos terceiros com quem se relaciona, mormente através do comissário, de que os actos compreendidos na comissão serão efectuados adequada-mente (sem desvios).

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Em último termo, "será de responsabilizar a pessoa colectiva (comitente) pelos actos dos seus representantes, mandatários ou agentes que, da perspectiva do lesado, tenham com as funções destes uma conexão adequada, uma vez que foi a pessoa colectiva quem os escolheu ..." (10).

Por essas razões, considerou-se já que "o exercício da função que deve acompanhar a prática do acto pelo comissário, para que se considere verificada a responsabilidade do comitente, não exige o rigoroso cumprimento do encargo proposto ao comissário, bastando um certo nexo de causalidade adequada entre o facto praticado e a função do comissário " (11).

Ou que "a responsabilidade do comitente pelos actos dos comitidos não deve existir apenas quando o acto seja praticado rigorosamente na execução do encargo, pois, se assim fosse, tal responsabilidade desaparecia praticamente ou, pelo menos, reduzir-se-ia a bem pouco, dado que os actos ilícitos dos comitidos constituem sempre ou em regra uma evasão das funções" (12).

Assim, "para que se verifique a responsabilidade do comitente nos termos do art. 500º C. Civ. é preciso que o comissário - que pode ser um simples serviçal, um assalariado ou qualquer encarregado da prestação de um serviço - tenha sido escolhido pelo comitente e que o facto danoso haja sido praticado no exercício de função àquele confiada, bastando, para caracterizar este vínculo, que o facto esteja devidamente relacionado com o serviço executado" (13) .

A imputação ao comitente, nos termos do art. 500º, nº 2, C. Civ., mantém-se ainda que o comissário actue ilicitamente (voluntariamente) ou aja contra as instruções ou a vontade (explícitas ou mesmo implícitas) do comitente, desde, naturalmente, que tudo se passe no âmbito da competência material da incumbência feita ao comissário (14).

Desta sorte (15):

No momento dos factos praticados, a Ré CC encontrava-se, de facto, no exercício das funções que lhe haviam sido confiadas de proceder à limpeza do escritório da autora, sendo, desse modo, utilizada pela Ré Empresa-A para cumprir o encargo que esta assumira.

Cometida a subtracção em seu proveito dum cartão Multibanco e respectivo código de acesso por ocasião do exercício das funções, é, no entanto, indiscutível que, ao fazê-lo, não actuou no exercício dessas funções, com o qual esse acto não tem qualquer relação de causalidade adequada, passando ao furto de objecto que se encontrava no local em que prestava o serviço.

É acto que só um nexo temporal e local liga à comissão, claramente fora do quadro geral da competência da comissária, que, designadamente, sabia bem, consoante (l) e (m), supra, que não podia abrir gavetas, nem devia mexer nos papéis - e ainda menos, apoderar-se do que lhe não pertencia.

Trata-se, enfim, de acto que, praticado no lugar e no tempo em que era executada a comissão, nada, no entanto, tinha a ver com o desempenho da função cometida, a não ser a circunstância de a comissária ter aproveitado as facilidades que o exercício da comissão lhe proporcionava para o consumar.

Esse desvio da actividade de que tinha sido incumbida - era para tal que lhe tinha sido proporcionado pela comitente o acesso ao escritório da Autora que, naturalmente, confiou na concretização, em situação de normalidade, dos serviços prestados -, não tem relação directa com o exercício das funções que lhe competiam.

Não existe nexo de causalidade adequada entre o facto praticado e a função da comissária.Não obstante o falado nexo temporal e local, não parece que se possa dizer que se está

efectivamente perante factos ilícitos praticados no exercício ou por causa do exercício das funções da empregada de limpeza aludida.

Não pode, por isso, a nosso ver, responsabilizar-se a comitente pelos actos da comissária.

Como notado no projecto primitivo, já, por exemplo, se julgou que "não é praticado no exercício de funções o acto do vigilante de empresa que participa na subtracção fraudulenta de cheques da própria empresa " (16).

Referível o disposto no art. 500º ao nº 2 do art. 483º, adita-se o que segue, com referência ao outrossim invocado nº 1 deste último, previsão relativamente à qual consabidamente vale o disposto no nº 1 dos arts. 342º e 487º (cfr. também nº 2 deste último), todos do C. Civ. :

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No plano da responsabilidade subjectiva por culpa in eligendo a que aparentemente se alude nas conclusões 12ª a 14ª (17) , bastará notar que, sem cabimento, nesse âmbito, sempre fácil juízo ex post facto, em todo o caso, não constam do elenco dos factos provados elementos susceptíveis de servir de base a fundado juízo ou conclusão a esse respeito. O mesmo vem, em último termo, a valer em relação à igualmente arguida omissão de cuidados que, ao contrário do que em geral sucede em relação à guarda dos cartões de débito e à reserva ou segredo do competente código, nada especialmente fazia prever que fossem necessários, por forma a justificar-se juízo de ou conclusão por culpa in vigilando, outrossim aludida nas conclusões 15ª e 16ª.

Presente o princípio da eficácia relativa dos contratos que decorre do art. 406º, nº 2, C. Civ., nada, por fim, se vê que adiante ou atrase à resolução da causa a consideração de eventual responsabilidade contratual perante terceiro a que alude a conclusão 17ª.

Alcança-se, na conformidade do exposto, a decisão que segue :

Nega-se a revista, com custas pelos recorrentes.

Lisboa, 2 de Março de 2006Oliveira Barros (relator por vencimento)Araújo de Barros (voto de vencido) Revogaria o acórdão recorrido porque considero, como

aliás defendi no projecto que, como relator, tinha elaborado que deve entender-se que a funcionária da ré, com a categoria de trabalhadora de limpeza, encarregada da limpeza do escritório da autora, e a quem aquela proporcionou o ingresso no referido escritório de forma periódica, que, durante as horas de serviço de limpeza, se apoderou de um cartão Multibanco que se encontrava guardado dentro de uma gaveta e do código do referido cartão, utilizando-o para efectuar movimentos para pagamento de compras e para levantamento de dinheiro, retirando da conta bancária, praticou tais factos ilícitos no exercício ou por causa do exercício das suas funções, ocorrendo, pois, em tal caso, a responsabilização da comitente, nos termos do art. 500º, nº 2, do C.Civil.

Salvador da Costa-----------------------------------------------------------------------------

(1) Se a actividade do comissário lhe aproveita in utilibus, deve também sofrer-lhe as consequências in damnosis. Trata-se, afinal, de uma aplicação do princípio fundamental de justiça que se exprime na máxima ubi commoda, ibi incommoda.

(2) Ac. STJ de 12/7/2001, no Proc.nº 1981/01 da 6ª Secção (relator Silva Salazar ).3) " Das Obrigações em Geral ", I, 6ª ed. (1989), 611 e 612.(4)Mota Pinto, " Teoria Geral do Direito Civil " (1980), 207 e 208.(5) Antunes Varela, ob., vol., e ed.cits, 611, nota 2.(6) Pires de Lima e Antunes Varela, " Código Civil Anotado ", I, 4ª ed. (1987), com a

colaboração de M. Henrique Mesquita, 509.(7) Almeida Costa, " Direito das Obrigações ", 5ª ed. (1991), 500.(8) Face ao regime instituído pelo art. 500º do C.Civil, que afastou a doutrina da culpa in

eligendo, o comitente não é visado por qualquer presunção de culpa : ele é, pura e simplesmente, responsável. Cfr. Menezes Cordeiro, " Direito das Obrigações ", 2º ( 1990 ), 377.

(9) Jorge Ribeiro de Faria, " Direito das Obrigações ", II ( 1990 ), 11 e 19/20.(10) Heinrich Hörster, " A Parte Geral do Código Civil Português " ( 1992 ), 395.(11) Ac. STJ de 25/02/93, no Proc.nº 82071 da 1ª Secção (relator Dionísio Pinho ).(12) Ac. STJ de 19/10/76, BMJ 260/155 ( relator Ferreira da Costa ).(13) Ac. STJ de 25/11/75, BMJ 251/167 ( relator Acácio de Carvalho ).(14) Ut Menezes Cordeiro, ob., vol. e ed,cits,. 372 e 373.(15) Ligeiras, no geral, de mera forma ou estilo, as alterações introduzidas, só daqui em

diante se deixa de praticamente transcrever o adiantado no projecto do primitivo relator.(16) Ac. STJ de 31/1/2002, no Proc.nº 701/01 da 2ª Secção (relator Moura Cruz ).(17) E que, como visto - cfr. nota 8, não se presume.

Culpa do comissário - 500º, nº 1, in fine. Mas esta culpa do comissário pode ser a simples culpa presumida, por não ilidida a presunção do 503º, nº 3, 1ª parte e 506º, 1.

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Assim e na análise do art. 503º, conjugado com este 500º, temos que:- acidente sem culpa (provada ou presumida) do comissário - responde

só o comitente - 503º, 1;- comissário fora do exercício da comissão - só ele, comissário,

responde - 503, nº 3, 2ª parte.O comitente é essencialmente um garante da indemnização perante o

lesado, sendo o comissário subordinado dele e economicamente débil.

«O artigo 503º do Código Civil, a primeira das disposições compreendidas na área da responsabilidade pelo risco proveniente dos acidentes de viação, trata em três proposições normativas distintas da principal questão que a matéria suscita: a determinação das pessoas responsáveis pela indemnização dos danos causados pelo acidente.

No n.º 1 define-se a responsabilidade do detentor do veículo (da tal pessoa que tendo a direcção efectiva do veículo e o utiliza no seu próprio interesse, no momento em que o acidente ocorre), impondo-lhe uma responsabilidade marcadamente objectiva (ele responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veiculo, mesmo que este não se encontre em circulação).

No n.º 2 determina-se, por sua vez, os termos em que respondem, nesta zona especial do risco da circulação terrestre, as pessoas não imputáveis, sujeitando-as ao mesmo regime do equidade e de culpa objectiva aplicável a sua responsabilidade por factos ilícitos.

Por fim, no n.º 3, estabelecem-se as regras a que obedece, em termos perfeitamente autónomos, a responsabilidade dos comissários (daqueles que conduzem o veículo por conta de outrem), distinguindo para o efeito dois tipos de situações:

- o primeiro, constituído pelos casos em que o causador dos danos conduzia por conta de outrem no momento em que o acidente ocorreu, para os quais a lei (1ª parte do n.º 3 do art. 503º) estabelece a presunção de culpa do condutor ;

- o segundo, formado pelos casos em que o causador do acidente conduzia fora do exercício das suas funções de comissário, aos quais a lei (2ª parte do nº 3 do art. 503º) manda aplicar o princípio da responsabilidade objectiva (pelos riscos próprios do veículo) consagrado no nº 1 do mesmo artigo 503º.

Por força da consideração autónoma dos três números em que o corpo do artigo 503º do Código Civil se divide, o comissário responde por todos os danos que causar através do acidente de viação, desde que não consiga elidir a presunção de culpa que a lei faz incidir sobre ele. O detentor do veículo, por conta de quem este seja conduzido, responde nesse caso, não por forca do disposto no nº 1 do artigo 503º, mas em obediência à doutrina que o artigo 500.º do Código Civil estabelece para a responsabilidade do comitente pelos danos que o comitido causar» - Prof. Antunes Varela, na RLJ 121-46/47.

IIEstado e outras pessoas col. públicas - 501º

Estas pessoas colectivas respondem tanto por actos de gestão pública como por actos de gestão privada.

A doutrina e a jurisprudência estabeleceram o critério de que a distinção entre actos de gestão pública e privada se deve orientar pela natureza funcional ou não do acto ou da omissão do exercício de um poder público, sendo que nos actos de gestão pública há o exercício de um jus imperii – Ac. do STJ, de 17.3.93, BMJ 425-463, com muita doutrina e jurisprudência.

A responsabilidade do Estado e de outras pessoas colectivas públicas, por actos de gestão privada, está regulada no art. 501º do CC, nos termos em que os comitentes respondem pelos danos causados pelos seus comissários, ou seja, respondem como as pessoas colectivas privadas (art. 165º do CC).

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A Responsabilidade civil extracontratual do Estado por actos de gestão pública e por danos decorrentes das funções política, legislativa e jurisdicional, bem como dos seus funcionários e agentes , tem assento constitucional e na lei ordinária.

Começando pela Constituição e sem prejuízo de outras normas que em pormenor se verão, tal responsabilidade resulta do disposto nos art. 22º e 271º.

art. 22º

O Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte a violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem.

Segundo G. Canotilho e Vital Moreira5, deste art. 22º resulta:

- a consagração do princípio da responsabilidade patrimonial directa das entidades públicas (todas as administrações, estadual, local, autónoma e institucional, sem excepção) por danos causados aos cidadãos;

- da imputação a título directo às entidades públicas, da responsa-bilidade por danos causados pelos titulares dos seus órgãos ou pelos seus funcionários ou agentes e da forma solidária perante o cidadão lesado resulta que o cidadão pode demandar quer o Estado, quer os funcionários ou agentes, quer ambos conjuntamente.

- o teor literal deste artigo leva a considerar a responsabilidade do Estado por actos legislativos, bem como por actos jurisdicionais, ainda que os titulares desses órgãos legislativos ou jurisdicionais possam não ser civilmente responsáveis, como acontece com os Deputados (arts. 157º, nº 1) e com os Juizes (216º, nº 2).

A responsabilidade dos funcionários e agentes vem regulada no

art. 271º

1. Os funcionários e agentes do Estado e das demais entidades públicas são responsáveis civil, criminal e disciplinarmente pelas acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício de que resulte violação dos direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos, não dependendo a acção ou procedimento, em qualquer fase, de autorização hierárquica.

2. É excluída a responsabilidade do funcionário ou agente que actue no cumprimento de ordens ou instruções emanadas de legítimo superior hierárquico e em matéria de serviço, se previamente delas tiver reclamado ou tiver exigido a sua transmissão ou confirmação por escrito.

3. Cessa o dever de obediência sempre que o cumprimento das ordens ou instruções implique a prática de qualquer crime.

5 - Constituição da República Portuguesa, Notas ao art. 22º, de que vai cópia.

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4. A lei regula os termos em que o Estado e as demais entidades públicas têm direito de regresso contra os titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes.

Na lei ordinária e por actos de gestão pública, ainda hoje a responsabilidade do Estado e outras pessoas colectivas públicas (e, em certos termos, dos seus agentes) é regulada pelo Dec-lei nº 48051, de 21.11.1967 e foi estudada no

Acórdão nº 236/Tribunal Constitucional/2004 - Processo nº 92/2003

Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:

1 - Osvaldo Jesus Paulino dos Reis e o Estado Português foram condenados, por sentença de 29 de Novembro de 2002 do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, a pagar uma indemnização a Maria José Henriques Jacinto Tomás e a Mafalda Sofia Jacinto Tomás, respectivamente viúva e filha de Armindo dos Reis Tomás, por danos patrimoniais e não patrimoniais, em virtude da morte deste causada por disparos de arma de fogo feitos pelo referido Osvaldo Reis no exercício das suas funções como agente da extinta Guarda Fiscal, actualmente GNR - Guarda Nacional Republicana.

Inconformado, o réu Osvaldo Jesus Paulino dos Reis interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, tendo dito no requerimento de interposição de recurso que, «notificado da sentença de 29 de Novembro de 2002 e verificando que a mesma recusou a aplicação do regime resultante do artigo 2º e artigo 3º, nº 1 e nº 2, do Decreto-Lei nº 48 051/1967, de 21 de Novembro, na medida em que de tal regime resulta que o agente administrativo do Estado não responde civilmente perante terceiros por actos ilícitos meramente culposos praticados dentro dos limites das suas funções e no exercício destas, com fundamento em inconstitucionalidade (ou caducidade, por violação de norma constitucional) de tal regime, em função do disposto no artigo 271º, nº 1, da Constituição, vem interpor recurso para o Tribunal Constitucional, em secção [artigo 70º, nº 1, alínea a), da Lei nº 28/1982, de 15 de Novembro], restrito à questão da inconstitucionalidade em causa (artigo 71º da mesma lei), ou seja, a não aplicação do regime resultante das disposições combinadas do artigo 2º e artigo 3º, nº 1 e nº 2, do Decreto-Lei nº 48 051/1967, de 21 de Novembro, na medida em que de tal regime resulta que o agente administrativo do Estado não responde civilmente perante terceiros por actos ilícitos meramente culposos praticados dentro dos limites das suas funções e no exercício destas, em função do disposto no artigo 271º, nº 1, da Constituição, requerendo a sua admissão, com efeito e processamento legais».

Admitido o recurso, o réu Osvaldo de Jesus Paulino dos Reis apresentou as suas alegações, que concluiu como segue:

«1 - O regime do disposto no artigo 2º e artigo 3º, nº 1 e nº 2, do Decreto-Lei nº 48 051, de 21 de Novembro de 1967, de que resulta a não responsabilização civil do titular de órgão, funcionário ou agente pelos prejuízos causados por acto ilícito cometido no exercício de funções e por causa delas de forma meramente negligente não é inconstitucional, pois não viola o disposto no artigo 271º, nº 1, da Constituição.

2 - Aliás, é o próprio nº 2 desta norma que prevê expressamente uma situação de exclusão de responsabilidade do funcionário ou agente.

3 - O artigo 22º da Constituição apenas impõe que, sempre que haja acto ilícito ou mesmo simples acto gerador de prejuízos (ainda que lícito), haja responsabilidade civil da pessoa colectiva pública, a qual será solidária com a do titular de órgão, funcionário ou agente, quando esta exista.

4 - É o próprio nº 4 do artigo 271º da Constituição que admite que, se ‘a lei regula os termos em que o Estado e as demais entidades públicas têm o direito de regresso contra os titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes’, então a lei pode regular as situações em que não existe direito de regresso, isto é, não há responsabilidade solidária.

5 - O objectivo do nº 1 do artigo 271º da Constituição é tão-só impedir a existência de um regime de ‘privilégio administrativo’ ou ‘garantia administrativa’, em que a responsabilização civil, penal ou disciplinar de titular de órgão, funcionário ou agente possa depender de autorização.

6 - O artigo 271º da Constituição deixa ao legislador ordinário o poder de definir as condições e situações em que, sem prejuízo da responsabilidade da pessoa colectiva pública, há também, solidária com esta, responsabilidade do titular de órgão, funcionário ou agente e, designadamente, o

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de isentar desta o titular do órgão, funcionário ou agente que agiu no exercício de funções e por causa delas de forma meramente negligente.

Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso e declarada a não inconstitucionalidade do regime do disposto no artigo 2º e artigo 3º, nº 1 e nº 2, do Decreto-Lei nº 48 051/1967, de 21 de Novembro, de que resulta a não responsabilização civil do titular de órgão, funcionário ou agente pelos prejuízos causados por acto ilícito cometido no exercício de funções e por causa delas de forma meramente negligente, com consequente baixa dos autos ao tribunal recorrido para reforma da decisão recorrida, que deve ser reformulada em função do juízo de não inconstitucionalidade do regime legal que recusou aplicar.»

As recorridas contra-alegaram, concluindo:«1 - As ora recorridas intentaram acção declarativa contra o ora recorrente e o Estado

Português, pedindo a condenação destes no pagamento de uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais.

2 - A causa de pedir dessa acção residiu no facto de o ora recorrente (agente da Guarda Fiscal, hoje GNR) ter disparado seis tiros, quando se encontrava em exercício de funções, que atingiram, respectivamente, o marido e pai das recorridas, vindo o mesmo a falecer.

3 - O ora recorrente respondeu pelo crime que cometeu no 1º Tribunal Militar Territorial de Lisboa (processo Nº 99/1993), tendo sido condenado pelo crime previsto e punido pelas disposições conjugadas do artigo 207º, nº 1, alínea a), do Código de Justiça Militar (CJM) e artigo 136º, nº 2 (negligência grosseira), do Código Penal, aplicável ex vi do artigo 5º do CJM, a cumprir uma pena de 18 meses de presídio militar.

4 - Os tribunais militares não são competentes para apreciar os pedidos de indemnização emergente dos processo-crime de que vierem a conhecer, pelo que as ora recorridas tiveram de intentar essa acção no Tribunal Administrativo de Círculo da Comarca de Lisboa.

5 - No âmbito desses autos (processo nº 1072/1999, 4ª Secção), foi proferida, em 29 de Novembro de 2002, decisão que, não obstante considerar que o ora recorrente agiu com negligência, determinou que o mesmo deveria ser responsabilizado pelo seu acto ilícito, solidariamente com o Estado, condenando-o no pagamento às ora recorridas dos danos patrimoniais e não patrimoniais por estas sofridos.

6 - Para tal, o Mmo Juiz a quo considerou que com a entrada em vigor da Constituição da República Portuguesa de 1976 e face ao teor do seu artigo 22º (na redacção que lhe foi dada pela RC/1982) e artigo 271º (na redacção que lhe foi dada pela RC/1989) a responsabilidade civil dos titulares dos órgãos das entidades públicas e dos funcionários e agentes perante terceiros deixou de se circunscrever aos casos em que tivessem excedido os limites das sua funções ou que no exercício de tais funções tivessem procedido dolosamente.

7 - Pelo que os titulares e agentes do Estado e as demais entidades públicas respondem civilmente perante terceiros pelas acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício de que resulte a violação dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, não só nos actos dolosos mas também nos actos negligentes, consciente ou inconsciente.

8 - Existindo por isso uma divergência sobre a compatibilidade do artigo 2º e artigo 3º, nº 1 e nº 2, do Decreto-Lei Nº 48 051/1967, de 21 de Novembro , com o disposto no artigo 22º (na redacção que lhe foi dada pela RC/1982) e artigo 271º (na redacção que lhe foi dada pela RC/1989), ambos da Constituição da República Portuguesa.

9 - E, sendo os preceitos constitucionais de aplicabilidade directa e de valor hierárquico superior aos consagrados no direito ordinário, recai sobre o artigo 2º e artigo 3º, nº 1 e nº 2, do Decreto-Lei Nº 48 051/1967, de 21 de Novembro, uma inconstitucionalidade superveniente de acordo com o plasmado no nº 2 do artigo 290º (na redacção que lhe foi dada pela RC/1989) da Constituição da República Portuguesa.

10 - Termos em que deve ser negado provimento ao presente recurso e, consequentemente, declarada a inconstitucionalidade superveniente do regime disposto no artigo 2º e artigo 3º, nº 1 e nº 2, do Decreto-Lei Nº 48 051/1967, de 21 de Novembro, por contrariarem o conteúdo e o alcance do artigo 22º (na redacção que lhe foi dada pela RC/1982), artigo 271º (na redacção que lhe foi dada pela RC/1989) e artigo 290º, Nº 2 (na redacção que lhe foi dada pela RC/1989), todos da Constituição da República Portuguesa, mantendo-se a decisão ora recorrida, seguindo-se os ulteriores termos até final.»

O Ex.mo Procurador-Geral-Adjunto em exercício neste Tribunal contra-alegou, concluindo:

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«1º Com a entrada em vigor da actual Constituição e face ao teor do seu artigo 22º e artigo 271º - que estabelecem categoricamente a regra da solidariedade passiva - a responsabilidade civil dos titulares dos órgãos, funcionários e agentes das pessoas colectivas públicas deixou de se circunscrever aos casos em que hajam excedido os limites das suas funções ou, no exercício destas, tenham procedido com dolo, podendo fundar-se na referida norma constitucional - directamente aplicável - o regime de solidariedade no caso dos actos funcionais ilícitos, praticados com negligência do agente.

2º Ocorrendo, deste modo, uma equiparação - quanto a este aspecto específico - entre o regime da efectivação da responsabilidade por actos de ‘gestão pública’ administrativa e de ‘gestão privada’ do Estado, face ao estatuído no artigo 501º do Código Civil.

3º Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade superveniente constante da decisão recorrida.»

Cumpre apreciar e decidir.2 - A sentença recorrida resolve a questão de saber se na acção proposta contra o Estado e

um seu agente para efectivação da responsabilidade civil extracontratual do Estado por facto ilícito e culposo praticado pelo agente no exercício das suas funções este deve, ou não, responder.

Sustentou, com efeito, o réu não poder ser ele demandado na acção uma vez que o facto danoso lhe era imputado a título de negligência, pelo que, nos termos do regime definido no artigo 2º e artigo 3º do Decreto-Lei nº 48 051, não era civilmente responsável perante terceiros pelo ilícito cometido.

Não se põe em causa na sentença a tese de que, de acordo com tal regime, o agente não responde perante o lesado pelos danos causados por facto ilícito e meramente culposo praticado no exercício das suas funções.

Mas depois de se sintetizar esse regime, resultante do artigo 2º, nº 1, e artigo 3º, nº 1 e nº 2, do Decreto-Lei nº 48 051, acrescenta-se:

Contudo, este diploma há-de compatibilizar-se com a Constituição da República Portuguesa.E é nesse labor de compatibilização do Decreto-Lei nº 48 051 com a Constituição que a

decisão recorrida conclui que, por aplicação directa do artigo 22º da Constituição da República Portuguesa e decorrendo efeitos derrogatórios imediatos sobre o direito ordinário que com tal preceito constitucional seja incompatível, se impõe a responsabilidade do agente ou funcionário, não apenas nos casos de actos funcionais dolosos a que se refere o artigo 3º daquele diploma legal mas também nos de negligência, consciente ou inconsciente.

O que, em direitas contas, se faz na sentença recorrida é, afinal, desaplicar o regime instituído pelo Decreto-Lei nº 48 051 (maxime o artigo 2º e artigo 3º, nº 1) no ponto em que dele resulta a irresponsabilidade do agente, face ao lesado, por danos causados por acto funcional ilícito praticado com negligência.

Muito embora a desaplicação derive da caducidade da norma por incompatível com a Constituição, tal não impede que o Tribunal Constitucional conheça do recurso interposto ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, como é jurisprudência consolidada deste Tribunal (cf., de entre outros, o Acórdão Nº 2/1984, Acórdão Nº 20/1984, Acórdão Nº 29/1984 e Acórdão Nº 31/1984, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 2º vol., pp. 198, 385, 431 e 123, respectivamente).

E a questão a decidir é, pois, a de saber se a Constituição impõe que o agente do Estado responda directamente perante o lesado por actos ilícitos praticados no exercício das suas funções, com negligência, devendo considerar-se caducado o regime definido pelo artigo 2º e artigo 3º, nº 1 e nº 2, do Decreto-Lei nº 48 051 por afrontar aquela imposição.

3 - São do seguinte teor as normas em apreço, constantes do Decreto-Lei nº 48 051/1967, de 21 de Novembro:

«Artigo 2º1 - O Estado e as demais pessoas colectivas públicas respondem civilmente perante terceiros

pelas ofensas dos direitos destes ou das disposições legais destinadas a proteger os seus interesses resultantes de actos ilícitos culposamente praticados pelos respectivos órgãos ou agentes administrativos no exercício das suas funções e por causa desse exercício.

[2 - Quando satisfizerem qualquer indemnização nos termos do número anterior, o Estado e as demais pessoas colectivas públicas gozam do direito de regresso contra os titulares do órgão ou

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os agentes culpados, se estes houverem procedido com diligência ou zelo manifestamente inferiores àqueles a que se achavam obrigados em razão do cargo.]

Artigo 3º1 - Os titulares do órgão e os agentes administrativos do Estado e as demais pessoas

colectivas públicas respondem civilmente perante terceiros pela prática de actos ilícitos que ofendam os direitos destes ou as disposições legais destinadas a proteger os seus interesses se tiverem excedido os limites das suas funções ou se, no desempenho destas e por sua causa, tiverem procedido dolosamente.

2 - Em caso de procedimento doloso, a pessoa colectiva é sempre solidariamente responsável com os titulares do órgão ou agente.»

4 - Antes de se apreciar a questão de constitucionalidade em causa, importa tecer algumas considerações, necessariamente breves, sobre a responsabilidade da Administração no nosso ordenamento jurídico, quer no plano constitucional quer no plano do direito infraconstitucional.

No domínio do direito público, começou por afirmar-se o princípio da irresponsabilidade do Estado «enquanto corolário directo da ideia de soberania e de uma inerente ausência de responsabilidade do rei», embora se admitisse que o particular prejudicado pudesse, em certos casos, ser ressarcido no âmbito do direito privado (cf. Paulo Otero, «Responsabilidade civil pessoal dos titulares de órgãos, funcionários e agentes da Administração do Estado», in La responsabilidad patrimonial de los poderes públicos, III Coloquio Hispano-Luso de Derecho Administrativo, Marcial Pons, 1999, p. 490).

Vieira de Andrade sintetiza este regime como de «irresponsabilidade pública, responsa-bilidade privada» (cf. «Panorama geral do direito da responsabilidade civil da Administração Pública em Portugal», in La responsabilidad patrimonial de los poderes públicos, III Coloquio Hispano-Luso de Derecho Administrativo, Marcial Pons, 1999, p. 40).

Com a evolução histórica e, em especial, à medida que se foi evoluindo para um Estado de direito social, com uma interpenetração crescente entre Estado e sociedade civil, manifestada na descentralização administrativa, na multiplicação de poderes públicos e na política intervencionista em matéria de relações sociais, esta dicotomia viria a tornar-se insustentável na «sociedade técnica de massas» (cf. Rogério Ehrhardt Soares, in Direito Público e Sociedade Técnica, citado por Vieira de Andrade, loc. cit. e ob. cit.).

Já na Constituição de 23 de Setembro de 1822, embora se não consagrasse o princípio da responsabilidade directa ou indirecta da Administração por danos causados aos particulares em virtude do exercício das funções que lhe são próprias, não deixava de se estabelecer no artigo 14º, integrado no título I, com a epígrafe «Dos direitos e deveres individuais dos Portugueses», que «todos os empregados públicos serão estritamente responsáveis pelos erros de ofício e abusos do poder, na conformidade da Constituição e da lei».

A Carta Constitucional de 29 de Abril de 1826 manteve no essencial este princípio constitucional de responsabilidade dos funcionários públicos por «abusos e omissões» praticados no exercício das suas funções - é o que resulta do artigo 145º, § 27, constante do título VIII da Carta.

A Constituição de 4 de Abril de 1838, no título III, artigo 26º, manteve inalterado aquele princípio geral.

Com a implantação da I República, diferentemente do que vinha acontecendo no constitu-cionalismo monárquico, a Constituição de 21 de Agosto de 1911 não consagrou o princípio geral de responsabilidade dos funcionários públicos por actos ilícitos praticados no exercício das respectivas funções. Estatuía, porém, o artigo 3º, § 30, que «todo o cidadão poderá apresentar aos poderes do Estado reclamações, queixas e petições, expor qualquer infracção à Constituição e, sem necessidade de prévia autorização, requerer perante a autoridade competente a efectiva responsabilidade dos infractores».

Da Constituição de 11 de Abril de 1933 não consta qualquer referência à responsabilidade dos funcionários/empregados públicos por actos ilícitos praticados no exercício das suas funções nem tão-pouco à efectivação da responsabilidade do autor de infracção à Constituição, estabelecendo-se, no entanto, quanto à reparação dos danos causados a outrem, que o cidadão português tem «o direito de reparação de toda a lesão efectiva conforme dispuser a lei, podendo esta, quanto a lesões de ordem moral, prescrever que a reparação seja pecuniária» (cf. o artigo 8º, Nº 17).

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A Constituição de 1976 consagrou pela primeira vez o princípio da responsabilidade das entidades públicas, contendo vários e importantes artigos em matéria de responsabilidade da Administração (por virtude do exercício da actividade administrativa) e do Estado em geral, atinentes ao exercício das outras funções que lhe incumbem (cf., para o último caso, o artigo 27º, nº 5, responsabilidade do Estado por privação da liberdade, artigo 29º, nº 6, responsabilidade por danos causados por condenações injustas, artigo 62º, nº 2, responsabilidade por requisição e expropriação por utilidade pública, artigo 66º, nº 3, responsabilidade por lesão do direito ao ambiente, e artigo 120º, nº 1, responsabilidade dos titulares dos cargos políticos).

As disposições constitucionais relevantes em matéria de responsabilidade da Administração constam do artigo 22º e artigo 271º da lei fundamental, a que mais adiante voltaremos.

No plano do direito infraconstitucional, começa por se salientar que o Código Civil de Seabra (1867) consagrou o princípio da irresponsabilidade do Estado no artigo 2399º e artigo 2400º, onde se dispunha que nem o Estado nem os funcionários eram responsáveis pelas perdas e pelos danos que causassem no desempenho das obrigações que lhes fossem impostas por lei, excepto se excedessem ou não cumprissem as disposições da mesma lei, caso em que responderiam pessoalmente como qualquer cidadão.

Relativamente aos actos de gestão privada, a doutrina e a jurisprudência da época entendiam que eles eram susceptíveis de gerar responsabilidade do Estado.

Com a importante revisão de 1930, o Código Civil, não deixando de manter o princípio da irresponsabilidade dos «empregados públicos» pelas perdas e pelos danos causados no desempenho das obrigações que lhes são impostas por lei, com a referida ressalva, estabeleceu, pela primeira vez, a responsabilidade solidária das «entidades» de que aqueles eram «serventuários» nos casos em que os «empregados públicos» respondessem.

No âmbito do direito público, o Código Administrativo de 1936-1940 estabeleceu a responsabilidade civil das autarquias locais por actos praticados com ofensa de lei pelos seus órgãos e agentes no âmbito das respectivas atribuições e competências, com observância das formalidades essenciais e para a realização dos fins legais (cf. o artigo 310º do Código Administrativo de 1936 e artigo 366º do Código Administrativo de 1940).

O Código previa ainda a responsabilidade pessoal dos titulares dos órgãos, agentes ou funcionários das autarquias locais por actos geradores de prejuízo que não tivessem sido praticados no âmbito das respectivas atribuições e competências, com observância das formalidades essenciais e para a realização dos fins legais (cf. o artigo 311º do Código Administrativo de 1936 e artigo 367º do Código Administrativo de 1940).

Importante marco na evolução do regime da responsabilidade civil da Administração no nosso ordenamento jurídico foi, sem margem para dúvidas, o Código Civil de 1966.

Como revelam os respectivos trabalhos preparatórios, o legislador tinha a intenção de regular toda a matéria da responsabilidade extracontratual da Administração Pública, mas a orientação que acabou por prevalecer foi a de regular apenas a responsabilidade por danos causados no «exercício da actividade de gestão privada» (cf. o artigo 501º), deixando para as leis administrativas a disciplina da responsabilidade da Administração no «domínio dos actos de gestão pública». Foi o que veio a acontecer, pouco tempo depois, com a publicação do Decreto-Lei nº 48051/1967, de 21 de Novembro, que ainda hoje se mantém em vigor.

Com efeito, no seu artigo 1º, este decreto-lei determina que a responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas públicas no domínio dos actos de gestão pública se passa a reger pelo que nele se dispõe.

Na parte que nos interessa - responsabilidade por facto ilícito -, o regime então instituído (que exclui implicitamente a matéria relativa aos danos causados por actos pessoais dos funcionários) pode sintetizar-se nos seguintes termos:

Pelos danos causados por actos ilícitos e culposos (negligência) praticados pelos titulares dos órgãos e pelos agentes administrativos do Estado e pelas demais pessoas colectivas públicas no exercício das suas funções e por causa desse exercício respondem, directa e exclusivamente, perante o lesado, o Estado ou as demais pessoas colectivas públicas (artigo 2º, nº 1);

Pelos danos causados por actos praticados por aqueles mesmos entes (titulares de órgãos ou agentes administrativos) nas mesmas condições (no exercício das suas funções e por causa destas), mas cometidos com dolo, respondem, solidariamente, perante o lesado, o Estado ou as demais pessoas colectivas públicas e o lesante (artigo 3º, nº 1 e nº 2);

Pelos actos praticados ainda pelos mesmos entes «se tiverem excedido os limites das suas funções» responde, exclusivamente, perante o lesado, o lesante (artigo 3º, nº 1).

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No âmbito das relações internas, o Estado e as demais pessoas colectivas públicas que tiverem satisfeito qualquer indemnização gozam de direito de regresso contra os lesantes, nos casos em que estes agiram «com diligência e zelo manifestamente inferiores àqueles a que se achavam obrigados em razão do cargo» (artigo 2º, Nº 2).

Como refere Carlos Cadilha (intervenção produzida em conferência sobre «responsabili-dade civil extracontratual do Estado», publicada pelo Ministério da Justiça, sob o título A Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado, p. 238), configuram-se, assim, as seguintes situações:

«a) Responsabilidade exclusiva da Administração (actos praticados com culpa leve);b) Responsabilidade exclusiva da Administração com direito de regresso (actos

praticados com negligência grave);c) Responsabilidade solidária da Administração (actos praticados com dolo);d) Responsabilidade exclusiva dos titulares dos órgãos, funcionários ou agentes (actos

que excedam os limites das funções).»

É a conformidade à Constituição deste regime que tem vindo a ser objecto de controvérsia na doutrina e na jurisprudência, sendo que, para o caso, nos importa exclusivamente o que concerne à responsabilidade do funcionário por acto funcional ilícito e negligente.

E isto porque a sentença recorrida - disse-se já - resolve a questão de constitucionalidade ponderando apenas a situação, que entende em causa, da responsabilidade do funcionário perante o lesado, no âmbito das relações externas, por danos causados por acto funcional ilícito e culposo, sendo certo que ela não distingue o grau de culpa (grave ou leve) imputado ao agente e não o qualifica no caso.

5 - É a primeira vez que o Tribunal Constitucional se confronta, directamente, com a questão (a Comissão Constitucional afrontou lateralmente a questão no seu parecer nº 22/1979, in Pareceres da Comissão Constitucional, vol. 9º, p. 40), o que não pode deixar de significar - considerando a obrigatoriedade do recurso para o Tribunal Constitucional por parte do Ministério Público em caso de recusa de aplicação de norma com fundamento na sua inconstitucionalidade - que ou os autores não têm demandado, nas pertinentes acções, os funcionários e agentes ou os nossos tribunais não têm geralmente julgado contrário à Constituição o regime instituído pelo Decreto-Lei nº 48 051, enquanto prescreve a irresponsabilidade dos titulares dos órgãos, funcionários ou agentes do Estado por actos funcionais ilícitos e culposos no âmbito das relações externas.

E, com efeito, da jurisprudência conhecida dos nossos tribunais superiores dá-se apenas nota de dois arestos que, no aspecto em causa, julgaram inconstitucional o referido regime, por a Constituição ter passado a impor a responsabilidade directa do lesante: um proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 6 de Maio de 1986, in Boletim do Ministério da Justiça, ano 357, p. 392, e o outro prolatado pelo Supremo Tribunal Administrativo em 3 de Maio de 2001 (processo Nº 47 084).

A verdade é que, ao menos na jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, o citado acórdão mantém-se isolado na doutrina que professa. Com doutrina oposta - no sentido de que a Constituição não fez caducar aquele regime - v. os Acórdãos de 22 de Maio de 1990 (processo Nº 28 120), de 29 de Outubro de 1992 (processo Nº 29 994), de 29 de Abril de 1999 (processo Nº 40 503) e, como mais recente, o de 28 de Fevereiro de 2002 (processo Nº 48 178).

Na doutrina, a divergência é mais acentuada, com clara dominância da tese em que assentou a sentença recorrida.

Não sendo inteiramente líquida a posição adoptada quanto à questão que ora nos ocupa, Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Português Anotada, 3ª ed., p. 22) parecem, no entanto, apontar para a incompatibilidade do regime do Decreto-Lei nº 48 051 com o artigo 22º da Constituição, uma vez que, depois de acentuarem, relativamente ao problema da imputação, «a atribuição, a título directo, às entidades públicas da responsabilidade por danos causados pelos titulares dos seus órgãos ou pelos funcionários ou agentes», entendem que «daqui deriva também a forma solidária da responsabilidade, podendo o cidadão lesado demandar quer o Estado, quer os funcionários ou agentes, quer ambos conjuntamente», o que implicará o afastamento das normas do Decreto-Lei nº 48 051 que isentam de responsabilidade, nas relações externas, o titular do órgão, funcionário ou agente que aja com culpa.

Por seu turno, Freitas do Amaral (intervenção produzida na citada conferência sobre «Responsabilidade civil extracontratual do Estado», pp. 44 e segs.) afirma categoricamente que o Decreto-Lei nº 48 051 se tornou «em parte inconstitucional quando a Constituição, no artigo 22º, veio

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estabelecer o princípio geral da responsabilidade solidária entre o Estado e os seus órgãos, agentes ou representantes.

Como todos sabemos, o artigo 2º e artigo 3º do Decreto-Lei nº 48 051 não previam para todos os casos de responsabilidade o regime de solidariedade, e agora a Constituição obriga a rever essa matéria».

Quando, porém, prefigura o quadro de alternativas que se abrem ao legislador ordinário, admite que se mantenha «um sistema de responsabilidade exclusiva do agente em certos casos e de responsabilidade solidária em todos os demais» ou uma «ideia [...] de uma responsabilidade exclusiva do Estado em caso de culpa leve, apenas com responsabilidade solidária propriamente dita para os casos de culpa grave e dolo», reconhecendo que tal pode não resultar do artigo 22º da Constituição mas, sim, do artigo 271º da Constituição da República Portuguesa.

Para Rui de Medeiros (Acções de Responsabilidade, p. 37), o artigo 2º, nº 2, do Decreto-Lei nº 48 051 consagra uma solução «num contexto hoje já inexistente de responsabilidade exclusiva da pessoa colectiva pública perante o terceiro lesado»; no seu «Ensaio sobre a responsabilidade civil do Estado por actos legislativos» escreve que «a crítica mais certeira que podia fazer-se ao regime consagrado no artigo 2º do Decreto-Lei nº 48 051 era a de que a irresponsabilidade do funcionário perante o lesado, nos casos de negligência, não se harmonizava com a função pedagógico-educativa da responsabilidade civil e, sobretudo, não protegia o direito de indemnização dos particulares. Por isso, correctamente, a Constituição de 1976 estabelece a regra da solidariedade» (p. 93); e, mais adiante, diz que o artigo 22º da Constituição, «ao recusar uma responsabilidade exclusiva do Estado, visa tornar mais efectivo o direito à reparação dos danos e, indirectamente, estimular a diligência dos servidores do Estado» (p. 98). Em suma, o artigo 2º do Decreto-Lei nº 48 051 ter-se-ia tornado inconstitucional (p. 99).

Jorge Miranda afirma que o Decreto-Lei nº 48 051 continua em vigor, «salvo, porventura, na parte caducada por inconstitucionalidade superveniente (por não estender a todas as formas de actuação ilícita com culpa a regra da solidariedade» («A Constituição e a responsabilidade civil do Estado», in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Rogério Soares, p. 932).

Para Fausto Quadros (intervenção produzida na citada conferência sobre «Responsabilidade civil extracontratual. . .», cit., pp. 59 e 60), «deve pôr-se termo à inconstitucionalidade por omissão do Decreto-Lei nº 48 051/1967, de 21 de Novembro, resultante da violação ao artigo 22º da Constituição, acolhendo-se formalmente o princípio da responsabilidade solidária entre a Administração e os funcionários ou agentes. Nesse caso, deve, porém, assegurar-se o dever de regresso da Administração, e não apenas o seu direito de regresso, sempre que o agente tenha agido com culpa grave ou dolo».

Carlos Cadilha (intervenção cit., p. 239), assinalando a «impossibilidade que directamente decorre da directiva constitucional de fazer incidir sobre os funcionários ou agentes uma responsabilidade pessoal exclusiva, mesmo em relação a danos que resultem de actos em que estes tenham excedido os limites das suas funções», entende que «a alternativa que se depara ao legislador ordinário é a de estender a esses casos o regime do direito de regresso por parte da Administração, em paralelo com o que já hoje sucede com os danos derivados de actos funcionais praticados com diligência grave ou dolo»; na nota (8), deixa claro que «as entidades públicas, em virtude da sua responsabilidade solidária, funcionam como garante do pagamento da indemnização, independentemente do grau de culpa que possa imputar-se à conduta lesiva do funcionário ou agente. Daí que o credor possa exigir a prestação integral à Administração ou ao seu servidor, ou contra ambos conjuntamente, cabendo o direito de regresso, por parte do demandado, nos termos que vierem a ser fixados na lei regulamentadora».

Para Paulo Otero («Responsabilidade civil pessoal dos titulares dos órgãos, funcionários e agentes da Administração do Estado», in La responsabilidad patrimonial de los poderes públicos, cit., pp. 489 e segs.), «o princípio da solidariedade na responsabilidade civil permite ao administrado que tenha sido lesado intentar uma acção administrativa de responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito contra a entidade pública integrante da Administração Pública, contra o autor do facto ou contra ambos, solicitando em qualquer das três hipóteses (dolo e negligência consciente ou inconsciente) o ressarcimento integral do prejuízo sofrido. Quando for demandado por culpa leve, o funcionário pode exercer o direito de regresso».

Pode dizer-se que toda esta orientação doutrinária se constrói, no essencial, com base no segmento normativo do artigo 22º da Constituição, que se refere à «forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes» em que o Estado e as demais entidades públicas respondem civilmente perante os lesados.

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Com efeito, no âmbito dos actos ou omissões ilícitos e culposos praticados no exercício das funções e por causa desse exercício - e só estes agora nos interessam -, o Decreto-Lei nº 48 051 estabelece a irresponsabilidade dos funcionários, no plano das relações externas, em todos os casos de culpa (grave ou leve), só respondendo, nesse mesmo plano, se tiverem excedido os limites das suas funções ou tiverem procedido com dolo.

Por outro lado, o Estado, neste mesmo plano, ou responde exclusivamente, em caso de culpa dos funcionários, gozando, porém, de direito de regresso quando se tratar de culpa grave, ou solidariamente, em caso de dolo.

Ou seja: no regime do diploma de 1967, por actos praticados no exercício das funções ou por causa desse exercício, nem o Estado responde solidariamente em todos os casos nem os funcionários podem ser directamente demandados também em todos os casos (só, aliás, podem sê-lo por terem excedido os limites das funções ou por terem procedido com dolo).

Daí que - aceite que a norma constitucional atribui ao Estado, a título directo, a responsabilidade por danos causados pelos seus funcionários - a interpretação daquele segmento da norma constitucional, no sentido de que a utilização do conceito de solidariedade visa designar as pessoas responsáveis, conduza à conclusão de que os funcionários passam a responder, sempre, perante o lesado, qualquer que seja o grau de culpa com que tenham agido; e é assim que se considera supervenientemente inconstitucional a norma, ou o complexo normativo, do Decreto-Lei nº 48 051 de que resulta a irresponsabilidade dos funcionários, no plano das relações externas, por conduta culposa.

É, aliás, nesta linha que se insere a doutrina da decisão recorrida ao recusar a aplicação do artigo 2º e artigo 3º, nº 1 e nº 2, do Decreto-Lei Nº 48 051, como também a tese sustentada pelos recorridos, chamando ainda à colação o disposto no artigo 271º da Constituição da República Portuguesa.

Vejamos se é assim, não deixando de reconhecer que a Comissão Constitucional, como se referiu já, no seu parecer nº 22/1979 (que é a única pronúncia sobre a matéria na jurisprudência constitucional) não deu por inquestionável e adquirida aquela tese, afirmando que «não será de todo impossível compatibilizar as referidas normas do Decreto-Lei nº 48 051 com o disposto no artigo 21º, nº 1, da Constituição (preceito a que actualmente corresponde o artigo 22º): quando este fala da “forma solidária” sob a qual responderão o Estado e os seus agentes, não é absolutamente necessário a adopção do estrito esquema das “obrigações solidárias” do direito civil, antes será porventura possível entender que a responsabilidade, sem deixar de ser solidária, pode depender de diferentes pressupostos, consoante ela se afira em relação ao Estado ou aos seus agentes».

6 - A norma do artigo 22º da Constituição de 1976 constitui uma inovação relativamente aos textos constitucionais anteriores, elevando ao nível supralegal (constitucional) princípios que até então haviam apenas sido acolhidos no direito infraconstitucional, máxime no Decreto-Lei nº 48 051.

Ela veio a ser inscrita na parte I da Constituição da República Portuguesa, referente aos «Direitos e deveres fundamentais», e no título I, que contempla os «Princípios gerais» sobre a matéria.

Trata-se, pois, de uma norma que respeita aos direitos, liberdades e garantias, o que, obviamente, não basta - como não basta a sua qualificação como princípio geral - para uma caracterização rigorosa do tipo de norma em causa. Com efeito, como assinala Maria Lúcia Amaral (Responsabilidade do Estado e Dever de Indemnizar do Legislador, p. 430), «estas mesmas normas podem ser ainda de tipos diversos, consoante atribuem ou não atribuem verdadeiros direitos subjectivos aos particulares».

Certo é que, antes mesmo desta operação qualificativa, o que, desde logo, se impõe ao intérprete é a circunstância de se tratar de uma norma com uma previsão inequívoca (e não só pela expressão da epígrafe, «Responsabilidade das entidades públicas»): «o Estado e as demais entidades públicas [...]»; o que se torna ainda mais impressivo pelo facto de outra norma constitucional, já não inserida na parte referente aos «direitos fundamentais» - o artigo 271º -, dispor directamente sobre a «responsabilidade dos funcionários e agentes».

Isto desde logo legitima a «circunspecção» de Sinde Monteiro («Aspectos particulares da responsabilidade médica», in Direito de Saúde e Bioética, pp. 133 e segs.) face a interpretações da mesma norma que dela retiram regras precisas sobre a responsabilidade de funcionários e agentes, quando escreve: «deverá ser-se em extremo prudente, ou mesmo circunspecto, na leitura desta disposição de uma forma tal que resultem afinal disciplinados os pressupostos do dever de responder dos próprios funcionários, que já não somente das “entidades públicas”. Tecnicamente, isso equivale

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a encontrar uma estatuição para algo (uma hipótese de facto) que não aparece incluído na previsão da norma».

Sucede, na verdade, que a interpretação em causa vai buscar à estatuição da norma - responsabilidade das entidades públicas, em forma solidária, pelos danos - um alargamento da previsão, apenas pela razão da «solidariedade» (que é sempre uma modalidade das obrigações em que cada um dos devedores responde pela totalidade da dívida, supondo a existência de mais de um devedor), e esquece que o preceito dispõe sobre a responsabilidade das entidades públicas com os titulares de órgãos, funcionários ou agentes, e não destes com aquelas, sendo certo que ele pode obrigar as primeiras a responder civilmente sempre que os segundos responderem, mas já não impor a responsabilidade directa dos segundos em todos os casos em que as entidades públicas devam responder.

Trata-se, aliás, de um entendimento que causa sérios embaraços a quem queira ver consagrada na norma também a responsabilidade das entidades públicas por actos lícitos, ou pelo risco, onde seria de todo desrazoável, ou mesmo absurdo, co-responsabilizar os titulares de órgãos, funcionários e agentes (cf., neste sentido, Vieira de Andrade, Panorama Geral do Direito da Responsabilidade da Administração Pública em Portugal, cit., p. 54).

Para além de que, seguindo o mesmo entendimento, e - repete-se - numa norma que visa consagrar um princípio geral de responsabilidade das entidades públicas, acabaria por se estabelecer, de uma forma insidiosa, o agravamento automático da responsabilidade dos titulares dos órgãos, funcionários e agentes, no plano das relações externas, o que, a ser essa a intenção do legislador constituinte, teria o seu lugar próprio no artigo 271º da Constituição da República Portuguesa (cf. a intervenção de Margarida Cortez in conferência sobre «A responsabilidade civil extracontratual do Estado», cit., p. 259, e «Responsabilidade civil da Administração por actos administrativos ilegais e concurso de omissão culposa do lesado», p. 30), o que, como se verá, não acontece neste último preceito (Sinde Monteiro, ob. cit. e loc. cit., p. 144).

A verdade é que, ao estabelecer apenas um regime de solidariedade, não é inevitável que a norma do artigo 22º da Constituição seja lida em termos de designar os responsáveis, independentemente dos pressupostos da obrigação de indemnizar de cada um dos obrigados.

Escreve, a este respeito, Sinde Monteiro (loc. cit., p. 142): «A expressão “em forma solidária” conota sem dúvida uma certa modalidade das obrigações, caracterizada (a pars debitoris) principalmente pela responsabilidade de cada um dos devedores pela prestação integral (artigo 512º e segs. do Código Civil). Mas uma coisa é a modalidade (regime) da obrigação, e coisa diferente a fonte do vínculo obrigacional. Normalmente, quando a lei civil declara vários sujeitos solidariamente responsáveis, está a pressupor que na pessoa de cada um deles se reúnem os requisitos do dever de indemnizar, quer de carácter geral quer os particularmente atinentes à fattispecie em causa.»

Por isto, diz o mesmo autor - e com razão -que «faz pois sentido ler o texto do artigo 22º da Constituição deste modo: ‘o Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares [...]’, desde que sobre estes recaia a obrigação de indemnizar». E, sendo a norma omissa quanto aos pressupostos desta obrigação, é à legislação ordinária - no caso, ao Decreto-Lei nº 48 051 (artigo 2º e artigo 3º) que deve apelar-se para saber em que condições respondem, directamente, os funcionários e agentes por actos ilícitos e culposos praticados no exercício e por causa das suas funções, estendendo-se, então, às entidades públicas (em termos solidários) a mesma responsabilidade.

É, alias, esta incompletude da norma do artigo 22º da Constituição da República Portuguesa [«Que pressupostos devem estar reunidos para que possamos afirmar esta mesma existência (a existência do direito à indemnização)? Que condições devem ser verificadas para que possamos anuir quanto à sua titularidade concreta? Que parâmetros de decisão devem ser utilizados para que possamos condenar o Estado a indemnizar danos que os seus actos tenham provocado?») uma das principais razões que leva Maria Lúcia Amaral (ob. cit., p. 439) a concluir que ela não é uma norma atributiva de um direito, entendendo que as normas constitucionais que atribuem direitos, liberdades e garantias, com o regime próprio constante do artigo 18º da Constituição, «não podem deixar de ser dotadas de uma particular densidade de estrutura», e escrevendo a propósito:

«Por causa das imposições de vinculatividade e de aplicabilidade directa fixadas no nº 1 do artigo 18º, as normas atributivas de direitos, liberdades e garantias têm de ser, no que diz respeito à atribuição do direito, normas dotadas daquele tipo de eficácia máxima que é próprio das chamadas regras self-executing.»

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Reconhece-se, com a mesma autora, que a configuração do instituto da responsabilidade civil extracontratual da Administração, com a consagração do dever público de indemnizar e os respectivos pressupostos, foi obra do Decreto-Lei nº 48 051, no termo de uma evolução feita ao nível do direito infraconstitucional, e que o artigo 22º da Constituição acaba por acolher o instituto que a legislação ordinária modelara, conferindo-lhe dignidade constitucional.

Tal constitucionalização garantiu o instituto (ou o seu núcleo essencial - o princípio da imputação directa ao Estado dos ilícitos cometidos pelos titulares dos órgãos, funcionários e agentes), condicionando o legislador ordinário a não retroceder «até àquele nível histórico de desenvolvimento em que se desconhecia o instituto e em que se recusava ao particular a titularidade do direito subjectivo» (Maria Lúcia Amaral, ob. cit., p. 449).

A norma do artigo 22º da Constituição da República Portuguesa - dirigindo-se ao legislador, com vista a garantir o instituto, e implicando limites à sua conformação pela lei ordinária - parece, assim, justificar a qualificação de norma de garantia institucional que a mesma autora lhe atribui (no mesmo sentido, Vieira de Andrade, loc. cit., p. 53, e Manuel Afonso Vaz, «A responsabilidade civil do Estado. Considerações gerais sobre o seu estatuto constitucional», nº 14, p. 9, ao afirmar que adoptaria tal qualificação, «não fosse o facto da figura da garantia institucional não merecer o consenso da doutrina quanto à sua aplicabilidade directa»).

Nesta conformidade, as situações de responsabilidade exclusiva do Estado e das entidades públicas, no plano das relações externas, que o Decreto-Lei nº 48 051 consagra, no ponto em que cumprem princípios de justiça (formal e substancial) não ficam comprometidas com o disposto no artigo 22º da Constituição. E o que esta norma impõe será apenas que o Estado e as demais entidades públicas respondam sempre ao lado dos titulares dos órgãos, funcionários e agentes por actos funcionais, quando a lei impuser a responsabilidade directa destes (é o caso, por exemplo, do disposto na primeira parte do artigo 3º, Nº 1, do Decreto-Lei nº 48 051), sem, contudo, contender - repete-se - com as imposições normativas (de lei ordinária) de responsabilidade exclusiva do Estado.

Cumpre-se, deste modo, a principal função do instituto da responsabilidade civil - a função reparadora que especialmente garante aos particulares o ressarcimento dos danos causados pelos actos praticados pelos titulares dos órgãos, funcionários e agentes do Estado e de entidades públicas.

Não seria, com efeito, a responsabilidade directa destes últimos, em todos os casos - como resulta da tese da decisão recorrida -, que iria reforçar, de modo relevante (a ponto de merecer a tutela constitucional), a garantia dos particulares. Tal reforço só poderia admitir-se pelas supostas dificuldades burocráticas na execução das decisões condenatórias do Estado e entidades públicas – pressuposto que seria inadmissível na Constituição de um Estado de direito -, sendo certo que é ao legislador ordinário que cumpre obviar a esses constrangimentos, como de resto sucedeu já com a recente reforma do contencioso administrativo.

Dir-se-ia, em contrário, que a exigência da responsabilização dos titulares de órgãos, funcionários e agentes, nas relações externas, decorre da função preventiva do instituto e da garantia dos princípios da legalidade e da eficiência administrativa.

Certo é, porém, que, e em primeiro lugar, não resulta necessariamente da responsabilidade exclusiva da Administração, no plano das relações externas, a irresponsabilização dos titulares de órgãos, funcionários e agentes; a responsabilidade destes pode ser accionada por via do direito de regresso, como desde logo o demonstra o disposto no artigo 2º, nº 2, do Decreto-Lei nº 48 051, abrindo-se ainda ao legislador, a coberto do disposto no artigo 271º, nº 4, da Constituição, a possibilidade de regular esse direito em termos de abranger outras situações.

Por outro lado, se ainda for rigorosamente efectivada a responsabilidade penal e disciplinar a que se refere o disposto no artigo 271º, nº 1, da Constituição, não deixa de se assegurar o sancionamento de condutas ilegais e culposas, com o inerente efeito de compelir os titulares dos órgãos, funcionários e agentes à observância do princípio da legalidade a que estão constitucio-nalmente sujeitos na sua actuação funcional.

Por último, não deixa de se assinalar que o acolhimento da tese segundo a qual o artigo 22º da Constituição impõe, em todos os casos, a responsabilidade directa dos titulares dos órgãos, funcionários e agentes, por actos ilícitos e culposos praticados no exercício e por causa das suas funções, gera problemas graves na regulação de situações de culpa leve, onde, para a generalidade da doutrina, se reconhece a inconveniência de tal responsabilidade.

Com efeito, a dispor-se nesse sentido - irresponsabilidade em caso de culpa leve, como acontece na proposta de lei Nº 88/IX, in Diário da Assembleia da República, IIª série-A, Nº 2, de 20 de Setembro de 2003, que retoma a proposta Nº 95/VIII, do anterior Governo, in Diário da Assembleia da

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República, IIª série-A, de 18 de Julho de 2001 -, e na consideração de que o artigo 22º da Constituição da República Portuguesa consagraria um direito fundamental do particular com aquele alcance, sempre se introduziria uma restrição desse direito que dificilmente encontrará justificação na tutela constitucional de outros direitos, bens ou valores.

Resta acrescentar - sem que, no entanto, se considere relevante para a resolução da questão de constitucionalidade - o que alguns autores têm salientado (cf. Margarida Cortês, ob. cit., p. 29, e Sinde Monteiro, ob. cit., p. 145): o Decreto-Lei nº 100/1984, de 29 de Março (muito posterior, portanto, à Constituição), definiu a responsabilidade dos titulares dos órgãos, funcionários e agentes das autarquias em termos muito idênticos aos do Decreto-Lei nº 48 051, o que implicitamente revela que a tal se não opuseram vinculações constitucionais.

Em suma, pois, nada se retira do artigo 22º da Constituição que imponha a inconstitu-cionalidade superveniente das normas do Decreto-Lei nº 48 051 de que resulta a irresponsabilidade dos funcionários do Estado, no plano das relações externas, por danos causados por actos ilícitos e culposos (culpa leve ou grave) praticados no exercício das suas funções e por causa desse exercício (artigo 2º e artigo 3º, Nº 1 e Nº 2).

7 - Mas se isto é assim tendo como parâmetro de constitucionalidade o disposto no citado artigo 22º da Constituição da República Portuguesa, nada a este propósito se altera considerando o que consagra o artigo 271º, nº 1, da mesma lei fundamental.

É esta a posição de Sinde Monteiro quando afirma que o artigo 271º «não estabelece expressis verbis uma regulação incompatível com o direito anterior», embora condescenda em que a letra do nº 1 «é compatível com um sistema diferente» (ob. cit., p. 145, e Nº 24).

E é também o que defende Margarida Cortez («Responsabilidade civil da Administração.....», cit., p. 30) ao dizer que «o legislador podia, por ocasião da regulação da responsabilidade dos funcionários e agentes (artigo 271º), ter agravado a posição destes face ao lesado, mas não o fez».

Trata-se, com efeito, de uma norma que se limita a estabelecer a responsabilidade civil, criminal e disciplinar dos funcionários e agentes do Estado e das demais entidades públicas por actos e omissões praticados no exercício das suas funções.

Mas, tal como acontecia com o artigo 22º da Constituição da República Portuguesa, também aqui o preceito deixa, desde logo, em aberto a questão de saber quais os pressupostos do dever de indemnizar e perante quem é efectivada a responsabilidade (o Estado e as entidades públicas, por via de regresso, ou os particulares lesados?), elementos que estão, por agora, concretizados no Decreto-Lei nº 48 051.

Com tal abertura, o preceito deve ser interpretado em termos de deixar para o legislador um espaço que permite adaptar o instituto às necessidades e exigências de momento - nomeadamente o de prever a responsabilidade dos funcionários e agentes em casos de culpa (leve ou grave) -, garantindo, de qualquer modo e sempre, o direito de o particular ver ressarcidos os danos sofridos por actos ilícitos e culposos cometidos no exercício da função administrativa.

E não deixará de dizer-se, como acentua Sinde Monteiro (loc. cit., p. 145), que o direito de regresso previsto no nº 4 do mesmo artigo 271º da Constituição da República Portuguesa «se compatibiliza mal com um regime regra de responsabilidade directa dos agentes, só fazendo plenamente sentido num sistema de condenação prévia do Estado».

8 - Decisão Pelo exposto, e em conclusão, decide-se:a) - Não julgar supervenientemente inconstitucionais as normas do artigo 2º e artigo 3º,

nº 1 e nº 2, do Decreto-Lei nº 48 051, enquanto eximem de responsabilidade, no plano das relações externas, os titulares de órgãos, funcionários e agentes do Estado e as demais entidades públicas por danos causados pela prática de actos ilícitos e culposos (culpa leve ou grave) no exercício das suas funções e por causa delas;

b) - Conceder, consequentemente, provimento ao recurso, devendo a decisão recorrida ser reformada de acordo com o presente juízo de constitucionalidade.

Lisboa, 13 de Abril de 2004. - Artur Maurício (relator) - Rui Manuel Moura Ramos - Carlos Pamplona de Oliveira - Maria Helena Brito - Luís Nunes de Almeida.

Caso de responsabilidade civil pelo exercício da função legislativa pode ver-se no Ac. do STJ, de 24.2.94, no BMJ 434-396 e ss, (militares saneados pelo Dec-

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lei nº 309/74, de 8 de Julho) e por leis de arrendamento que congelaram as rendas, adiante referido.

Responsabilidade civil extracontratual do Estado por actos legislativos: pressupostos Extinção de contrato de trabalho, despedimento sem justa causa e inconstitucionalidade de

norma legal

I - A emissão de uma norma viciada de inconstitucionalidade, quer orgânica, quer formal, é susceptível de gerar responsabilidade civil do Estado, não dependendo o direito à indemnização de lei ordinária.

II - Havida como despedimento sem justa causa a extinção de um contrato de trabalho fundada na norma do artigo 398º, n.º 2, do Código das Sociedades Comerciais, ulteriormente julgada inconstitucional, e tendo a entidade patronal sido condenada no pagamento de indemnização, por causa do despedimento, estão reunidos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual do Estado: o facto é ilícito, os titulares do órgão legislativo agiram com negligência grave, há dano e verifica-se nexo de causalidade indirecta - S. T. J., Ac. de 26.9. 2000, BMJ 499-323

Por omissão de oportuno e capaz exercício da função legislativa, extinção de fronteiras pela adesão à EU e prejuízos para a actividade de despachantes oficiais, mas tratando a questão em termos mais amplos e com muita informação, veja-se o Ac. do STJ (Ex.mo Cons.º Araújo Barros), de 25.9.2003, na Col. Jur. (STJ) 2003-III-57 a 63:

Sumário:1. O artigo 22º da Constituição da República Portuguesa confere aos cidadãos o direito

de fazerem valer contra o Estado uma pretensão indemnizatória por omissão de oportuno exercício de actividade legislativa.

2. Tal pretensão só pode, porém, fundamentar-se na omissão legislativa ilícita e culposa do Estado.

3. Existe actuação ilícita do legislador sempre que este viole normas a que está vinculado (normas constitucionais, internacionais, comunitárias ou leis de valor reforçado).

4. O facto de o Estado Português, não obstante poder gozar de benefícios alfandegários até 1995, haver antecipadamente, em 1993, pedido a sua supressão, insere-se na política estratégica global de adesão à UE, inquestionável sob o ponto de vista de omissão legislativa.

5. Demonstrado que, na sequência desse acto político, o Estado fez publicar diversos diplomas destinados a mitigar o impacto negativo daquela medida política no sector dos despachantes oficiais, há que concluir que não ocorre uma total omissão do dever de legislar.

6. A eventual insuficiência das medidas legislativas adoptadas tem que ser, nos termos do artº. 342º, nº. 1, do C. Civil, provada pela invocada titular da pretensão indemnizatória.

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

"A, Lda." intentou, na 9ª Vara Cível do Tribunal de Lisboa, acção declarativa, com processo ordinário, contra o Estado Português, peticionando a condenação deste no pagamento da quantia de 65.111.769$00.

Fundou-se, para tanto, na omissão por parte do Estado na adopção de medidas politico-legislativas necessárias para a protecção da categoria profissional dos despachantes oficiais portugueses, directamente afectados com a abolição das fronteiras intracomunitárias a partir de 1 de Janeiro de 1993 e, sobretudo, com a supressão dos direitos aduaneiros e dos elementos fixos nas trocas intracomunitárias, relativamente aos produtos sujeitos a transição por etapas até ao dia 31 de Dezembro de 1995, omissão que considera ofender ostensivamente o princípio do Estado de Direito, na vertente da protecção e confiança dos cidadãos na actuação do Estado e protecção dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. Omissão em consequência da qual a autora sofreu prejuízos que concretizou e que atingem o montante do valor peticionado.

Citado o Estado Português apresentou este contestação em que concluiu pela sua absolvição do pedido, alegando, em suma, que nunca o estatuto ou condição de despachante foi impeditivo do

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livre exercício de outras actividades profissionais, apenas acautelando a sua qualidade enquanto agente no sector, tendo as opções legislativas para a supressão de direitos aduaneiros e taxas fixas sido políticas e constitucionais e só como tal sufragáveis, sendo certo que as acções de apoio aos agentes e às empresas foram qualitativa e quantitativamente suficientes, e a sua eficácia apenas dependeu do aproveitamento dos seus destinatários.

Exarado despacho saneador, condensados e instruídos os autos, e após audiência de julgamento, com decisão acerca da matéria de facto controvertida, veio a ser proferida sentença que, julgando a acção parcialmente procedente, condenou o réu no pagamento à autora da quantia de 38.000.000$00, com juros de mora, à taxa legal, desde a citação.

Apelou o réu da sentença, vindo, na sequência, o Tribunal da Relação de Lisboa, em acórdão de 8 de Março de 2001, a julgar procedente o recurso e a revogar aquela sentença, anulando a decisão sobre matéria de facto, com elaboração de novos quesitos se necessário, para esclarecer as deficiências que apontou.

Aditados novos quesitos, em cumprimento do referido acórdão, e depois de nova audiência de julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente, absolvendo o réu do pedido.

Inconformada apelou, então, a autora, sem êxito embora, porquanto o Tribunal da Relação de Lisboa, em acórdão de 5 de Dezembro de 2002, julgou improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.

Interpôs, agora, a mesma autora recurso de revista, pretendendo que seja anulado o acórdão recorrido e condenado o Estado Português a indemnizá-la dos prejuízos causados nos montantes dados como provados.

Em contra-alegações pugnou o recorrido pela confirmação do acórdão em crise.….…Entrando, agora, propriamente no conhecimento de mérito do recurso, começaremos por

transcrever o artº. 22º da Constituição da República Portuguesa, por muitos considerado sede principal do instituto da responsabilidade civil extracontratual do Estado perante os particulares afectados ou prejudicados pela actuação pública (3): "o Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem".

Importa salientar, desde logo, que "conferindo dignidade constitucional ao princípio da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas, o artº. 22º da Constituição não especifica se os actos que podem dar origem a essa responsabilidade do Estado são apenas os actos de administração ou também actos legislativos e actos judiciais. Assim, deixada à lei ordinária eventual concretização de diferentes tipos dessa responsabilidade e a fixação dos especiais pressupostos de cada um deles, tem-se, no entanto, aceite a aplicação directa e imediata desse preceito em relação a todos os actos supramencionados" (4).

Certo é, no entanto, como entendeu o acórdão em crise (5), que o acto ou a omissão legislativa do Estado só será elemento para fundamentar qualquer pretensão indemnizatória quando seja ilícito e culposo.

É essa, sem dúvida, a conclusão a que se chega da análise cuidada do referido artº. 22º da Constituição, que prescreve, em geral, uma responsabilidade solidária do Estado com os titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes. "Não é certamente propósito do legislador constitucional consagrar um regime prejudicial para os servidores do Estado, através da imposição de uma responsabilidade solidária mesmo nos casos em que os titulares dos seus órgãos e agentes actuaram sem culpa ou, eventualmente, de forma lícita. Mal se compreenderia que a Constituição de 1976 afirmasse um princípio geral de responsabilidade objectiva do Estado e, ao mesmo tempo, impusesse uma responsabilidade solidária dos titulares dos órgãos, funcionários ou agentes: a responsabilidade dos autores materiais do facto que causa um prejuízo especial e anormal, independentemente da ilicitude e da culpa, constituiria, para eles, um encargo insuportável e totalmente injustificado. A referência do artº. 22º à obrigação solidária dispensa, por isso, uma alusão expressa à culpa, pois este requisito está implícito na previsão da responsabilidade dos titulares dos órgãos, funcionários ou agentes do Estado que praticaram o facto" (6).

Além do mais, "a Constituição que nos rege, quer no artº. 22º, quer no artº. 271º, nºs. 1, 2 e 3, é tributária da visão hoje mais clássica, ainda que democrática, de relacionamento entre responsabilidades. Do facto decorre que não cabe no artº. 22º a responsabilidade de entidades públicas que não suponha responsabilidade dos seus agentes (7). Como a responsabilidade destes

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supõe sempre a ilicitude, o artº. 22º não comporta a responsabilidade civil de entidades públicas por acto lícito. A sua expressão final prejuízo de outrem visa englobar todos os casos de ilicitude que não se reconduzem a violação de direitos, liberdades e garantias, a saber a violação de outros direitos e interesses legitimamente protegidos, ou interesses legítimos" (8).

Donde, o artº. 22º da Constituição prevê apenas a responsabilidade civil do Estado assente na culpa, quando ocorra violação de um direito subjectivo constitucionalmente protegido ou quando, por acção ou omissão, resulte prejuízo para os cidadãos. Só mesmo "com uma interpretação abrogante do preceito nos pareceria possível incluir nele a responsabilização por danos decorrentes da prática de actos lícitos danosos e de actividades portadoras de risco ou excluir a responsabilidade dos agentes em casos de mera culpa, quando a norma, explicitamente, consagra a responsabilidade solidária" (9).

Em suma, "a única questão de verdadeira e própria responsabilidade que o artº. 22º coloca é a da chamada responsabilidade do Estado por actos legislativos ilícitos" (10).

A responsabilidade civil do Estado legislador - responsabilidade extracontratual por acto ilícito - porque, como tal, assenta na disposição geral do artº. 483º do C. Civil, ocorre apenas quando verificados os pressupostos da obrigação de indemnizar: facto voluntário do agente, ilicitude do facto, imputação do facto ao lesante (culpa), dano e nexo de causalidade entre o facto e os danos causados (11).

Está, in casu, essencialmente em questão a eventual caracterização do acto legislativo do Estado (omissão de legislação) como acto ilícito. Ora, "o acto ilícito é o acto contrário ao direito. No contexto do instituto da responsabilidade civil, o conceito da ilicitude tem um significado bem preciso: indica ele aquela forma particular de contraditoriedade ao direito que fornece um pressuposto típico da génese de um dever de indemnizar; que contém em si mesma força suficiente para dar vida a uma relação obrigacional nos termos da qual o autor do acto ilícito se constitui em dever de ressarcir" (12).

No exercício do poder legislativo, sem dúvida que ao Estado "está vedada a emanação de leis inconstitucionais lesivas de direitos, liberdades e garantias (dimensão proibitiva da cláusula de vinculação); por outro lado, incumbe-lhe o dever de conformar as relações da vida, as relações entre o Estado e os cidadãos e as relações entre os indivíduos segundo as normas garantidoras daqueles direitos, liberdades e garantias (dimensão positiva da vinculação do legislador). Apontando a Constituição para a vinculação de todos os actos normativos (leis, regulamentos, estatutos, contratos colectivos de trabalho ...), isto significa que a cláusula de vinculação se refere a legislador em sentido extensivo" (13).

A vinculação do Estado ao direito internacional está consagrada, como princípio, no artº. 8º da Constituição.

Tal vinculação é mais íntima quando está em causa o direito comunitário. Na verdade, no relacionamento instituído entre esta ordem jurídica e as ordens jurídicas internas dos Estados membros vigoram, entre outros, o princípio da aplicabilidade directa do direito comunitário na ordem jurídica dos Estados membros (sempre que a sua execução não careça de uma intervenção legislativa dos Estados) e o princípio do primado do Direito Comunitário face a toda e qualquer norma nacional.

As leis de valor reforçado aparecem concretizadas no artº. 112º, nº. 3, da Constituição (nesta norma alude-se a quatro categorias de leis reforçadas: as leis orgânicas, as leis que carecem de aprovação por maioria de dois terços, as leis que por força da Constituição sejam pressuposto normativo necessário de outras leis, as leis que por outras devem ser respeitadas).

Donde, no caso sub judice, porque o Estado se encontra vinculado à Constituição, a ilicitude do comportamento, gerador de responsabilidade, apenas se pode configurar quando sejam violadas normas constitucionais, internacionais, comunitárias ou leis de valor reforçado, leis estas no âmbito dos direitos fundamentais.

É certo que o Tribunal Constitucional tem invocado, também, com alguma frequência o princípio da confiança legítima ou da protecção da confiança como parâmetro constitucional de controlo das acções do Estado, particularmente do legislador. De todas as vezes que tal acontece, a ideia aparece sempre associada à de Estado de Direito. Num Estado como este, diz-se, os cidadãos têm de poder saber com o que contam. E tal significa poder confiar, de algum modo, na previsibilidade do direito, como forma de orientação de vida, de modo que a lei, no seu devir, nunca

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afecte aquele mínimo de certeza ou segurança que as pessoas devem poder depositar na ordem jurídica" (14).

No entanto, "para que tal princípio possa, em direito público, dispensar a protecção devida, necessário é que nos casos concretos se reúnam cumulativamente três pressupostos. Em primeiro lugar, importa que neles o Estado tenha efectivamente tomado uma decisão, ou encetado um comportamento, que seja susceptível de gerar nos privados expectativas de continuidade. Depois, é necessário que as expectativas privadas quanto à estabilidade da acção estadual surjam legitimamente fundadas ou justificadas por boas razões. Finalmente - e porque estamos aqui no universo particular das relações jurídico-públicas e não já no mundo das relações entre iguais - fundamental é também que o desvio, inesperado, não tenha a justificá-lo motivos impostergáveis de interesse público" (15).

Vejamos, pois, à luz dos princípios expostos, a questão em apreço no recurso, para já e especificamente quanto à eventual ilicitude da omissão de legislação imputada ao Estado.

Da matéria de facto resulta, prima facie, que a autora desenvolveu, durante vários anos, a actividade de despachante aduaneira a coberto do regime instituído na Reforma Aduaneira, aprovada pelo Dec.lei nº. 46.311 de 27 de Abril de 1965, com as alterações posteriores, e no Dec.lei nº. 513-F 1/79 de 27 de Dezembro, relativo às Sociedades de Despachantes Oficiais.

Ora, por despacho de mercadorias deve entende-se "o conjunto de formalidades a cumprir para que as mercadorias sujeitas à acção aduaneira possam seguir o seu ulterior destino" (artº. 869º da Reforma Aduaneira).

O desenvolvimento desta actividade estava condicionado a fortes medidas de restrição, com apertadas normas de acesso e em regime de exclusividade, o que impediu a autora de se dedicar a outro tipo de funções que não as aduaneiras, funções estas que dependiam da tutela do Estado para cujo exercício se exigia a prestação de concurso de provas públicas e consequente concessão do alvará emitido pelo Director Geral das Alfândegas com repercussão a nível de responsabilidade disciplinar e penal, em perfeito paralelismo com os funcionários públicos.

Com efeito, o exercício da profissão de despachante oficial depende de inscrição na Câmara dos Despachantes Oficiais que é uma pessoa colectiva de direito público a quem cabe colaborar no exercício da função alfandegária, sob a superintendência do Ministro das Finanças e do Plano (artº. 12º do Estatuto da Câmara dos Despachantes Oficiais aprovado pelo Dec.lei nº. 450/80, de 7 de Outubro, diploma que também alterou a Reforma Aduaneira).

Sendo o despachante oficial - tal como o define o artº. 38º, nº. 1, do citado Estatuto - um técnico especializado em matéria aduaneira, procedendo às formalidades necessárias ao desembaraço, por conta de outrem, de mercadorias e meios de transporte.

Era no artº. 426º da Reforma Aduaneira (original redacção) que se indicavam as entidades com competência para solicitar qualquer modalidade de despacho de mercadorias, bem como promover quaisquer documentos que lhe dissessem respeito, já aí se constatando que os despachantes oficiais não detinham o exclusivo das tarefas referidas, porquanto resultava do artº. 502º do Regulamento das Alfândegas, aprovado pelo Decreto nº. 31.730 de 15 de Dezembro de 1941, que se consideravam despachantes todos os que podiam despachar nas Alfândegas, ou seja, os despachantes oficiais, os negociantes que despacham directamente, os agentes aduaneiros e os despachantes privativos. Figuravam, pois, os despachantes oficiais ao lado dos donos ou consignatários das mercadorias (que tinham competência para o despacho destas, por si ou por procurador), dos empregados dos donos ou consignatário das mercadorias, denominados por "despachantes privativos" (em relação aos despachos em que podiam intervir as entidades de que eram empregados) e dos agentes aduaneiros das empresas de caminhos de ferro e de navegação aérea (em relação às mercadorias pertencentes às mesmas empresas e nos casos mencionados no artigo seguinte).

Ademais, o Regulamento (CEE) nº. 3632/85, do Conselho, de 12 de Dezembro, veio consagrar o princípio de que qualquer pessoa pode exercer, a título profissional, a actividade que consiste em fazer declarações aduaneiras em nome e por conta de outrem.

Na sequência, e porque Portugal manteve em vigor disposições do direito interno contrárias a este Regulamento, entre elas o citado artº. 426º, o Tribunal das Comunidades, por acórdão de 11 de Março de 1992, decidiu que "a República Portuguesa, ao manter em vigor ... (tais disposições), não cumpriu as obrigações que lhe incumbiam por força do Regulamento (CEE) nº. 3632/85 do Conselho que define as condições segundo as quais uma pessoa é admitida a fazer declaração aduaneira" (16).

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Aquele princípio, emergente do Regulamento nº. 3262/85, veio a ter tradução na lei portuguesa com a publicação do Dec. lei nº. 89/92, de 21 de Maio e do Dec. lei nº. 280/92, de 18 de Dezembro, este para adequar a legislação aduaneira no sentido de possibilitar uma maior igualdade entre todos os que faziam declarações aduaneiras, o que reflexamente também implicou "a retirada de certos ónus, limitações e controlos que exclusivamente recaíam sobre os despachantes oficiais" (Cfr. o Preâmbulo do Dec. lei nº. 280/92).

Assim, no artº. 439º da Reforma Aduaneira (na redacção introduzida por este diploma) estabeleceu-se que "é atribuição da Câmara dos Despachantes Oficiais determinar a forma, os requisitos e a organização da profissão de despachante oficial".

Fazendo-se, ainda, constar que a profissão de despachante oficial regular-se-á, em tudo o que não estiver aí previsto, pelas disposições da lei geral sobre mandato e prestação de serviços no exercício das profissões liberais (artº. 461º).

O objecto da sociedade autora insere-se precisamente no exercício da actividade permitida a despachantes oficiais, nos termos da Reforma Aduaneira, aliás na medida em que o Dec. lei nº. 513-F 1/79, de 27 de Dezembro, que, aprovando o Regulamento das Sociedades de Despachantes Oficiais e seus Empregados e alterando a Reforma Aduaneira, veio permitir a constituição de sociedades com aquele objecto.

Como atrás se explicou, in casu, o invocado facto ilícito do Estado consistiria numa omissão legislativa consubstanciada na ausência de produção legislativa que se lhe impunha, nos termos da Constituição, para regular uma situação factual conhecida, implicando violação de direitos, liberdades e garantias ou ofensa de direitos ou interesses juridicamente protegidos de outrem. E que seria, no caso concreto, a de regulamentar compensando a redução da actividade de despachante oficial decorrente da abolição dos direitos aduaneiros intracomunitários antecipada para 1993.

Sustenta a recorrente que, tendo em conta a antecipada liberalização, em 1993 (que estava, em face dos artºs. 259º e 260º do Tratado de Adesão de Portugal à Comunidade Europeia sujeita a um regime de transição até 1995) dos produtos agrícolas (17) a troco de uma compensação financeira, suprimindo as formalidades aduaneiras, a omissão legislativa ilícita do Estado traduziu-se na ausência de legislação que compensasse os prejuízos daí decorrentes para as empresas do sector, designadamente através da canalização da compensação obtida (cerca de cem milhões de contos) para o sector dos despachantes oficiais, a fim diminuir o impacto advindo daquele acto político e permitir a subsistência das empresas que se dedicavam àquela actividade. Entende, neste âmbito, que o Estado estava obrigado a produzir um conjunto de leis e medidas que salvaguardassem os interesses patrimoniais dos despachantes oficiais, consistindo o ilícito legislativo na insuficiência de medidas tomadas pelo Estado Português para fazer face aos impactos negativos dessa supressão de barreiras no sector dos despachantes.

Situando os danos que alegadamente sofreu e decorrentes desta omissão na perda de honorários usualmente pagos pelos clientes (10.000.000$00), nas despesas que efectuou com a sua informatização (4.042.160$00) e no pagamento de indemnização a trabalhadores despedidos (4.000.000$00), configurou, ainda, por lucros cessantes advindos do seu encerramento, um prejuízo de 30.000.000$00.

Antes de mais, na apreciação do pressuposto da ilicitude, quando está em causa a função legislativa do Estado, há que usar de grandes cautelas. Trata-se duma área de grande melindre, como facilmente se intui, tendo presentes os princípios fundamentais do "Estado de Direito Democrático" (artº. 22º da CRP), bem como da "soberania e da legalidade" (artº. 3º do mesmo diploma). A este propósito Diogo Freitas do Amaral e Rui Medeiros, em Parecer ainda não publicado (18), alertam para os perigos duma generalização da responsabilidade civil do Estado por danos resultantes da função legislativa, sobretudo porque "não parece acertado construir uma sociedade livre e pluralista na base da transferência de todos os riscos da vida social dos indivíduos e das empresas para o Estado".

Como refere Castanheira Neves, o Estado de Direito social não se confunde com o welfare state e "em nome da sua dimensão social não é lícito anular a sua também específica dimensão de direito, nem esta se reduz àquela. O Estado de Direito social, porque indefectivelmente também Estado de Direito, não poderá transformar-se numa gigantesca empresa de seguros ou dispensador amoral de benefícios de uma gratuitidade sem dor, sem deveres nem responsabilidade" (19).

O reconhecimento de um critério objectivo de imputação de danos não nos deve fazer esquecer que, tal como sucede em Direito privado, res perit domino: também nas relações com o Estado, os titulares dos direitos ou interesses devem suportar, em muitos casos, a destruição ou

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desvalorização dos respectivos bens jurídicos. Por outro lado, a aceitação generalizada e sem limites de uma obrigação de indemnizar pode constituir um encargo financeiro muito pesado e atingir a liberdade de conformação do legislador, obrigando-o a renunciar à satisfação de necessidades porventura mais prementes e a consignar parte importante das suas receitas ao pagamento de indemnizações. Uma concepção muito ampla e exigente do dever de indemnizar por parte do Legislador apresenta, por isso, "o perigo de desvirtuamento funcional da lei como instrumento normativo de uma decisão política determinada pela representação do interesse geral. Ao exercício da função legislativa é inerente uma margem de discricionaridade e de possibilidade de escolha de meios alternativos. Dentro de certos limites, justifica-se o sacrifício patrimonial de interesses individuais como consequência normal do risco que qualquer pessoa deve suportar a título de contrapartida da sua integração numa comunidade política organizada" (20).

Tais preocupações tornam-se particularmente pertinentes quando se observa que a sociedade actual, extremamente complexa constitui uma sociedade de risco.

E se é verdade que com o aumento dos riscos surge crescentemente um anseio legítimo de segurança, não é menos verdade que, numa sociedade de risco, tal pretensão de segurança não pode aniquilar a liberdade de conformação que, num Estado democrático, deve caber ao legislador legitimado democraticamente.

Doutro passo, cumpre referir que, entendida a omissão de legislação como "a abstenção voluntária de uma acção socialmente esperada" (21), nem sempre o silêncio do legislador é ilícito. Não pode olvidar-se que cabe, em principio, na liberdade de conformação do Legislador legitimado democraticamente decidir se, como e quando adopta uma medida legislativa. Os limites a esta liberdade decorrem do facto de o legislador ordinário estar subordinado à Constituição, ao Direito Internacional e Comunitário e à legislação de valor reforçado. Daqui resultando que a omissão só é ilícita quando represente o incumprimento de um dever de legislar, nos limites daquela subordinação.

Como é sabido, o pedido de adesão de Portugal às Comunidades Europeias foi o resultado duma opção política do Estado Português. Esse pedido foi apresentado a 28 de Maio de 1977 e na sequência de parecer positivo da Comissão, o Conselho, a 11 de Junho de 1985, decidiu aceitar o pedido de admissão de Portugal à CECA, CEE e CEEA. O Tratado de Adesão de Portugal às Comunidades Europeias foi assinado em Lisboa, a 12 de Junho de 1985, com início de vigência em 1 de Janeiro de 1986.

Em consequência, em 1986, ao entrar para a Comunidade Europeia, Portugal sabia (e os despachantes oficiais também) que a supressão das barreiras alfandegárias, no mercado interno, seria em 1 de Janeiro de 1993 o culminar dum processo com etapas perfeitamente definidas e calendarizadas.

É certo que o Estado Português, no âmbito da sua capacidade de definição estratégica para o desenvolvimento do país, antecipou a liberalização das fronteiras intracomunitárias, com a supressão dos direitos aduaneiros e dos elementos fixos nas trocas intracomunitárias, relativamente aos produtos sujeitos a transição por etapas até 31 de Dezembro 1995, com efeitos retroactivos a 1 de Abril de 1993, a troco de uma compensação de cerca de cem milhões de contos.

Só que, e desde logo, parece evidente que não está em causa a opção política do Estado Português em aderir às Comunidades Europeias (hoje, União Europeia), nem o estabelecimento da livre circulação de mercadorias no espaço comunitário.

No que concerne à abolição antecipada de eventuais benefícios (pensamos que a compensação entre as vantagens e desvantagens do acto político realizado sempre se situará no âmbito da estratégia global de Governo) importa também frisar que o Estado pôs à disposição da actividade em causa diversos mecanismos de atenuação dos efeitos decorrentes da supressão de direitos aduaneiros, facto que, desde logo afasta a situação de total omissão legislativa acerca da matéria.

Poderia, porventura, pretender vislumbrar-se omissão ilícita na falta de lei ou regulamento que canalizasse para a autora e demais empresas do sector parte da verba de cem milhões de contos recebida como contrapartida da antecipação da supressão dos direitos aduaneiros. Todavia, não pode, também neste caso, considerar-se que tal ocorreu, já que não decorre da matéria de facto provada nos autos que essa verba se lhes destinasse, motivo pelo qual se não poderá considerar que a sua não canalização para os despachantes consubstancia uma omissão ilícita.

E, em contrapartida, não podemos deixar de constatar que, por forma a afastar a possibilidade de uma responsabilidade por omissão de legislar, o Estado publicou diversos diplomas tendentes a diminuir o impacto negativo da supressão de barreiras nas trocas comunitárias.

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…O conjunto dessas medidas legislativas com vista à redução dos prejuízos decorrentes da

aludida supressão de fronteiras para os profissionais e empresas mais directamente afectadas obedeceu ao cumprimento das imposições constitucionais, nomeadamente para obter a garantia aos trabalhadores da segurança no emprego (artº. 53º da Constituição) e do direito ao trabalho (artº. 58º nº. 1, da mesma), bem como do livre exercício da iniciativa económica privada pelas empresas (seus artºs. 61º e 86º).

Se tais medidas eram insuficientes face ao dever de agir por parte do Estado (artº. 22º da Constituição) incumbia à autora prová-lo (artº. 342º, nº. 1, do C. Civil), o que não conseguiu.

Sendo, além do mais, que importa não esquecer que a previsibilidade do que veio a suceder, era total, pois, desde 1977 (quando Portugal pediu a adesão às Comunidades Europeias) e, sobretudo, desde 1985 (data do Tratado de Adesão de Portugal às Comunidades), era sabido que iriam desaparecer as barreiras alfandegárias, o que deu tempo mais do que suficiente para permitir aos visados reequacionar expectativas, projectos e previsões, sendo certo que não resulta ter havido por parte da autora um qualquer esforço para reconverter a sua actividade, nem que lhe tenha sido recusado um qualquer apoio da parte do Estado.

Não deixa de constituir um facto que numa altura em que actividade dos despachantes oficiais, se encontrava significativamente reduzida, o Estado Português acordou na supressão dos direitos aduaneiros quanto a produtos agrícolas cerca de dois anos antes do previsto, emitindo o Conselho o Regulamento (CEE) nº. 1380/93, de 4 de Junho de 1993, com efeitos retroactivos a 1 de Abril de 1993, recebendo o pagamento de cerca de cem milhões de contos. Só que, para além de ter feito publicar os já atrás aludidos diplomas legais, a faculdade de suprimir tais direitos antes do prazo inicialmente acordado, era também uma possibilidade que estava prevista.

No entanto, pretender que os aludidos cem milhões de contos fossem distribuídos aos despachantes (quando se destinavam aos operadores económicos do sector agrícola - cfr. Jornal Oficial das Comunidades Europeias, de 31/03/93) seria não somente excessivo como abusivo, sendo certo ainda que, querer julgar através deste processo as opções políticas e estratégicas do Governo quanto à integração de Portugal nas Comunidades Europeias, designadamente no que concerne aos efeitos sobre a agricultura não faz qualquer sentido.

Se os aludidos cem milhões de contos, tivessem sido desviados dos operadores económicos do sector agrícola (despachantes oficiais incluídos) para fins diversos, ainda a situação poderia ser distinta: não foi, todavia, isso que ocorreu (ou, pelo menos, não foi isso que se provou).

Finalmente, não é lícito vir a Autora considerar insuficientes os apoios fornecidos pelo Estado (e insuficiente a legislação produzida), já que simultaneamente não refere aquilo que, em que termos, e como, mais poderia ter sido feito.

Tanto mais quanto ela própria não demonstrou algo ter feito no sentido de minimizar as consequências negativas claramente previsíveis para a sua actividade, limitando-se na prática a despedir os trabalhadores e encerrar a actividade.

Sem esquecermos que, como provado ficou, a autora se mostrava já preparada para, em 1 de Janeiro de 1993, com a entrada em vigor do Mercado Interno, reduzir em 80% a sua actividade.

Indubitável, porém, é que lhe competiria adaptar a sua oferta a um mercado cuja evolução já era antecipadamente previsível. "As dificuldades desse sector em consequência da supressão das barreiras alfandegárias constituíram, na realidade, cries de há muito anunciada; de facto, não parece acertado construir uma sociedade livre e pluralista na base da transferência de todos os riscos da vida social dos indivíduos e das empresas para o Estado" (22).

Também se nos não afigura adequada a alusão ao facto de se não encontrar preparada para o que veio a ocorrer (se bem que tal haja sido tido como provado), porquanto restaria sempre saber das razões por que o não estava, já que não apenas medidas legislativas foram tomadas, mas ainda porquanto existem "ónus naturais decorrentes da vida em sociedade, mesmo no âmbito de um Estado intervencionista como Estado moderno. Aceita-se que o cidadão suporte pequenos constrangimentos, contrapartida natural dos benefícios que recebe, mas já não se aceita que cruze os braços em face dos danos anormalmente onerosos provocados pela actuação estadual" (23).

É que a iniciativa económica privada, consagrada constitucionalmente tendo em conta o interesse geral (artº. 61º da Constituição), implica por definição o assumir de riscos e a tomada oportuna de opções que permitam obviá-los, por isso que, sabendo ou devendo prever o que vai ocorrer, não pode o cidadão situar-se passivamente, optando pelo caminho do conformismo, ou da subsidiodependência.

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Ora, a integração europeia de Portugal é algo que pela sua relevância para a economia e o desenvolvimento, não apenas económico-financeiro, mas também social e cultural, tem necessariamente de ser entendido como mais relevante que os eventuais prejuízos sofridos por determinadas entidades (que desses prejuízos estavam cientes), as quais, por outro lado, foram também apoiadas através de mecanismos, legislação e programas concretos (acima mencionados).

Certo que resulta dos autos e está comprovado que a abolição na Comunidade Europeia das fronteiras, com a suspensão dos direitos e dos elementos fixos relativamente aos produtos sujeitos a transição por etapas até 31 de Dezembro de 1995, levou à extinção da actividade desenvolvida pela autora (que teve de suportar os encargos resultantes das indemnizações com os despedimentos do seu pessoal, embora dispusesse de apoios financeiros para isso), mas não se nos afigura que tal justifique uma qualquer indemnização.

Posta a situação nestes termos, afigura-se não haver dúvidas de que os direitos ou interesses alegadamente afectados pelo comportamento omissivo do legislador se situam no plano económico e na área do trabalho.

É um facto que a diminuição drástica da actividade dos despachantes oficiais pode afectar garantias constitucionais, como a segurança no emprego (artº. 53º da Constituição), o direito ao trabalho (artº. 58º, nº. 1) e a actividade empresarial das sociedades de despachantes oficiais (artºs. 61º e 86º da Constituição).

No entanto, também há que ter presente que, não obstante aqueles direitos e garantias terem assento na constituição, a sua protecção não é absoluta. Tanto assim, que a lei fundamental não proíbe os despedimentos, mas apenas os despedimentos sem justa causa ou por motivos políticos ou ideológicos (citado artº. 53º). Por outro lado, a iniciativa privada tem limitações: exerce-se livremente, mas nos quadros definidos pela constituição, pela lei e tendo em conta o interesse geral (citado artº. 61º). O direito de iniciativa económica privada não é um direito absoluto e nem mesmo os seus limites estão constitucionalmente garantidos, "salvo no que respeita ao conteúdo útil constitucionalmente relevante, que a lei não pode aniquilar... (garantia constitucional de um sector económico privado - artº. 83º, nº. 3, da CRP)" (24).

Daí que (e sendo a autora uma sociedade no âmbito da actividade empresarial) temos que convir em que a protecção na área do direito da iniciativa económica privada não é absoluta (longe disso). Podemos dizer que o texto fundamental se preocupa mais em impor limitações do que em afirmar garantias e liberdades. Doutro passo, o empresário é visto, sobretudo na perspectiva do empregador.

E também é verdade que os direitos e liberdades eventualmente afectados pela supressão das barreiras alfandegárias, não obstante terem assento constitucional (artºs. 53º, 58º, nº. 1 e 61º, nº. 1), não gozam de protecção absoluta.

Acresce que é ao legislador, democraticamente legitimado, que cumpre decidir se, como e quando adopta uma medida legislativa, sem embargo da necessidade de respeito pelo princípio da confiança, inerente na vigência de um Estado de Direito democrático (artº. 2º da Constituição).

O que não deriva, todavia, do conteúdo deste princípio, é a obrigação de emissão de legislação específica. Sendo certo que, ao lado do direito de ordenar estavelmente os projectos de vida dos cidadãos, sem abusivas intromissões sociais ou estaduais (artº. 26º. nº. 1, da Constituição), aquele princípio confere "o direito a uma razoável previsibilidade das alterações que poderão vir a ocorrer nesse quadro externo do constrangimento da nossa acção livre que é a ordem jurídica. Mas o princípio, assim intimamente fundado na cláusula geral de liberdade individual, não nos diz que devamos ou possamos transferir para o direito decisões ou responsabilidades que em última análise a cada um pertencem. A ordem jurídica nunca regula tudo, nunca previne todos os riscos, nunca esgota de forma completa o espaço de autonomia que é deixado a cada um na livre (e responsável) condução da sua vida. O princípio da protecção da confiança é, por isso, um princípio meramente defensivo, que se destina a garantir o razoável enquadramento externo que condiciona a livre acção individual, e que apenas proíbe alterações incalculáveis e imprevisíveis da ordem do Direito. Dele é impossível extrair um conteúdo activo ou prestativo que leve o Estado a uma obrigação ou dever de legislar (25).

Ora, tendo presente as datas, respectivamente, do pedido de adesão de Portugal às Comunidades Europeias (1977), do Tratado de Adesão (1985), do estabelecimento do mercado único comunitário (1993), não se pode sustentar que fosse imprevisível o desaparecimento das barreiras alfandegárias ou que não tivesse sido assegurado um regime de transição suficientemente longo para permitir aos visados (autora incluída) reequacionar expectativas, projectos e previsões.

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Em conclusão, é de entender que, no caso concreto, não estamos (certamente porque não ficou demonstrado) perante um comportamento ilícito do Estado Português no exercício da função legislativa, pelo que, faltando o pressuposto da ilicitude, afastada fica, a título do artº. 22º da CRP, a responsabilidade civil do Estado.

Desta forma improcede a pretensão da recorrente, pois nada existe de censurável no acórdão impugnado.

Pelo exposto, decide-se:a) - julgar improcedente o recurso de revista interposto pela autora "A, Lda.";b) - confirmar inteiramente o acórdão recorrido;c) - condenar a recorrente nas custas da revista.

Lisboa, 25 de Setembro de 2003Araújo BarrosOliveira BarrosSalvador da Costa_____________(1) Rodrigues Bastos, in "Notas ao Código de Processo Civil", vol. III, Lisboa, 1992, pág. 247.(2) Ora, "se na decisão se partiu do princípio de que só existe responsabilidade do Estado

pela prática de actos ilícitos, e não se analisou a hipótese da responsabilidade por factos lícitos, em termos gerais, não existe propriamente nulidade por omissão de questão de que se devia conhecer, mas eventual erro de julgamento" (Cfr. Ac. STJ de 14/11/96, no Proc. 156/96 da 2ª secção - relator Figueiredo de Sousa).

(3) Jorge Miranda, in "Manual de Direito Constitucional", vol. II, 3ª edição, Coimbra, 1996, pág. 375; Vieira de Andrade, in "Os Direitos Fundamentais na Constituição da República de 1976", Coimbra, 1983, pág. 337; Gomes Canotilho e Vital Moreira, in "Constituição da República Portuguesa Anotada", 3ª edição, Coimbra, 1993, pág. 168.

(4) Ac. STJ de 07/02/2002, in CJSTJ Ano X, 1, pág. 86 (relator Oliveira Barros). Neste sentido, Gomes Canotilho, in "Direito Constitucional e Teoria da Constituição", Coimbra, 2ª edição, 1988, pág. 464; Jorge Miranda, in "Manual de Direito Constitucional", vol. IV, Coimbra, 2000, pág. 289; Rui Medeiros, in "Ensaio sobre a Responsabilidade Civil do Estado por Actos Legislativos", Coimbra, 1992, pág. 86; Acs. STJ de 24/02/94, in BMJ nº. 434, pág. 396 (relator Mário Cancela); de 30/01/97, in CJSTJ Ano IV, 1, pág. 107 (relator Nascimento Gomes); e de 23/09/99, in BMJ nº. 489, pág. 320 (relator Herculano Namora).

(5) Em conformidade com doutrina e jurisprudência que da norma do artº. 22º da Constituição fazem, em nossa opinião, a mais correcta interpretação (Dimas de Lacerda, "Alguns Aspectos da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado", in Revista do Ministério Público, Ano VI, nº. 21, págs. 73 ss.; Rui Medeiros, "Ensaio ...", págs. 92 a 109; Acs. STJ de 30/10/96, in CJSTJ Ano IV, 3, pág. 85 (relator Nascimento Costa); de 26/09/2000, in BMJ nº. 499, pág. 323 (relator Lopes Pinto); e de 07/02/2002 acima citado; Ac. RL de 20/05/97, in CJ Ano XXII, 3, pág. 91 (relator Lopes Bento); Ac. RL de 18/04/91, in CJ Ano XVI, 2, pág. 187 (relator Peixe Pelica); e Ac. RE de 24/05/2001, in CJ Ano XXVI, 3, pág. 273 (relatora Maria Laura Leonardo).

(6) Rui Medeiros, "Ensaio ...", pág. 93.(7) Exceptuados, naturalmente, os casos em que é a própria Constituição que exclui a

responsabilidade civil dos titulares de certos órgãos (artº. 216º, nº. 1 - juízes; artº. 157º, nº. 1 - deputados).

(8) Marcelo Rebelo de Sousa, "Responsabilidade dos Estabelecimentos Públicos de Saúde: Culpa do Agente ou Culpa da Organização?", in Direito da Saúde e Bioética, Lisboa, 1996, págs. 161 e 162.

(9) Dimas de Lacerda, ob. cit., pág. 75.(10) Maria Lúcia Pinto Correia, in "Responsabilidade do Estado e Dever de Indemnizar do

Legislador", Coimbra, 1998, pág. 423.(11) Antunes Varela, in "Das Obrigações em Geral", vol. I, 6ª edição, Coimbra, 1989, pág.

495.(12) Maria Lúcia Pinto Correia, ob.e loc. citados.(13) Gomes Canotilho, "Direito Constitucional e Teoria da Constituição" citado acima, págs.

401 e 403, mencionado nos Acs. RE de 24/05/2001 e STJ de 07/02/2002, arestos que, por se terem debruçado sobre questão idêntica à destes autos, de muito perto seguiremos.

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(14) Maria Lúcia Amaral, "Dever de Legislar e Dever de Indemnizar a propósito do caso Aquaparque do Restelo", in Themis, Revista da Faculdade de Direito da UNL, Ano I, nº. 2, 2000, pág. 93, citando os Acs. TC nºs. 1/97, 330/97 e 517/99.

(15) Maria Lúcia Amaral, ibidem, pág. 93.(16) In RLJ Ano 125º, pág. 25.(17) Entre os quais se encontram os disciplinados pelo Regulamento CEE nº. 805/68, que

"estabelece a organização comum no sector da carne de bovino" e pelo Regulamento CEE nº. 2759/75, que "estabelece a organização comum do sector da carne de suíno".

(18) Ao qual alude o Ac. RE de 24/05/2001 supra referido.(19) "Nótula a propósito do Estudo sobre a responsabilidade civil de Guilherme Moreira", in

BFDUC, Coimbra, 1977, págs. 388 e 389.(20) Maria Luísa Duarte, in "A Cidadania da União e a Responsabilidade dos Estados por

Violação do Direito Comunitário", Lisboa, 1994, págs. 77 e 78.(21) Pedro Pitta e Cunha Nunes de Carvalho, in "Omissão e Dever de Agir em Direito Civil",

Coimbra, 1999, pág. 128.(22) Ac. STJ de 07/02/2002, a que acima se aludiu, citando Freitas do Amaral, in "Direito

Administrativo", vol. III, pág. 511.(23) António Dias Garcia, "Da Responsabilidade Civil Objectiva do Estado e demais Entidades

Públicas", in "Responsabilidade Civil Extracontratual da Administração Pública", obra colectiva coordenada por Fausto de Quadros, Coimbra, 1995, pág. 208.

(24) Gomes Canotilho e Vital Moreira, "Constituição ...", pág. 327.(25) Jorge Manuel Coutinho de Abreu, "Limites Constitucionais à Iniciativa Privada", in

Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor A. Ferrer Correia, 111, Coimbra, 1984, págs. 413 e 414.

Por omissão de legislação pode ler-se, ainda, o caso do Aquaparque na Col. 97-I-107, comentado na RLJ 134-224 pelo Professor Gomes Canotilho:

…«7. Qual ou quais as razões justificativas de nossa crítica relativamente ao rigor jurídico-

dogmático da sentença? A primeira, como se irá ver, reside no passe de mágica em torno do nexo de causalidade. É este passe de mágica que justifica a ruptura lógica na argumentação, quando, depois de se reconhecer que o agente real, provocador do dano de morte, era a empresa Aquaparque, que "primou" pela retirada das grelhas protectoras na zona perigosíssima de sucção e pela negligência grosseira nos serviços de vigilância, se transita para uma causa virtual - a do legislador omissivo. Mais do que isso: dá-se tal relevância a tal causa que quase se pode concluir (ou, pelo menos, per-mitir-se a ilação) pela desoneração do agente realmente causador do dano!

A segunda ordem de considerações críticas prende-se com o recorte dogmático da categoria de omissões legislativas. É possível que a retórica argumentativa do Tribunal se tenha deixado influenciar pela jurisprudência comunitária iniciada pelo célebre caso Francovici.

Neste célebre acórdão, o Tribunal de Justiça das Comunidades "criou" um mecanismo sancionatório de não transposição de directivas que passou a ser conhecido pela responsabilidade jurídico-comunitária do Estado-membro por omissão de transposição de directivas.

8. Regressemos ao nexo de causalidade. A sentença insiste em dar como demonstrado o que é preciso demonstrar - que a omissão de medidas legislativas sobre parques aquáticos foi a causa adequada da morte. A doutrina mais representativa sublinha que só existe causalidade, no caso de omissão normativa, quando o exercício atempado do dever de legislar (ou de melhorar a legislação existente) teria impedido, com alto grau de probabilidade, a causação do dano de morte. Por outras palavras: só pode afirmar-se existir um nexo de causalidade quando, a verificar-se uma actuação positiva e constitucionalmente exigida do poder legislativo, o dano, segundo um juízo de probabilidade próximo da certeza, não se teria produzido. Compreendem- -se as cautelas na formulação do princípio da causalidade adequada. Desde logo, porque a violação do dever funcional de legislar não é causa adequada do dano quando este também se produziria no caso de actuação juridicamente incensurável dos poderes públicos. Não há lei que valha perante omissões dolosas como as que se verificaram no caso dos autos - não colocação das grelhas de protecção e inexistência de vigilância adequada. Esta conclusão pode reiterar-se quando se coloca o problema em termos da exigência de deveres de protecção por parte do Estado (Schutz-pjlicht). Segundo se pode depreender do teor argumentativo da sentença, estaríamos perante uma exigência

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de actuação reclamada por normas garantidoras dos direitos fundamentais (grundrechtliche Handlungsgebote). Mas qual é a estrutura lógica desta exigência de um dever de actuação? A nosso ver, trata-se de uma estrutura teleológica que se reconduz fundamentalmente, tendo em consideração o dever de protecção da vida, este esquema:

1) - alcançar e promover a protecção do bem da vida é uma exigência de actuação dirigida ao poder legislativo pelas normas constitucionais garantidoras do direito à vida (fim da norma = V);

2) - se a medida legislativa (ML) não é editada deixa de poder ser alcançado e promovido o fim da norma (V);

3) - logo, exige-se a adopção de uma medida legislativa (ML)

Como facilmente se conclui, trata-se de uma estrutura teleológica típica de normas principiais que, numa primeira visão das coisas (prima facie), exigem todas as medidas possíveis para a protecção do bem da vida. No caso dos parques aquáticos, dir-se-ia que seria exigível a adopção de medidas legislativas adequadas para proteger o bem da vida daqueles que neles gastam momentos lúdicos e de prazer. Mas só isso. Coisa completamente diferente é afirmar que a não existência de medidas legislativas "adequadas" foi a causa adequada da morte de um jovem.

9. É patente a falta de clareza da sentença na articulação do requisito da ilicitude da omissão legislativa com a pretensão de protecção subjectiva do particular. O exemplo trágico do caso sub judice mostra que o dever geral de protecção de um bem tão fundamental, como é o bem da vida, não conduz necessariamente à existência de uma pretensão de protecção subjectiva do particular. É necessário recortar três graus ou três momentos:

1) dever de protecção potencial: em qualquer norma garantidora de um direito fundamental localiza-se um valor (bem) objectivo, incumbindo aos poderes públicos a respectiva protecção;

2) dever de protecção actual: a tarefa de protecção transforma-se, perante determinadas circunstâncias de facto, num dever concreto de protecção;

3) o dever concreto de protecção implica a existência de um dever de legislação.

Vamos admitir que estavam preenchidos os três momentos: a existência de uma tarefa estadual de protecção, a transmutação dessa tarefa em dever de protecção actual e a indis-pensabilidade de uma medida legislativa para dar cumprimento a esse dever. Por outras palavras: seriam exigíveis medidas legislativas de protecção, no caso concreto dos parques aquáticos, porque só elas são adequadas e eficazes para assegurarem, neste caso, a protecção do bem da vida. Mas como derivar daqui um dever secundário de protecção, de natureza jurídico-subjectiva? E, no caso de não cumprimento do dever de legislação, como justificar uma pretensão de protecção subjectiva do particular?

No fundo, a ideia subjacente aos considerandos da sentença em apreço é esta: aos deveres de protecção correspondem direitos de protecção. Haveria, pois, direitos de protecção dos titulares de direitos fundamentais, a serem protegidos pelo Estado perante agressões ou ameaças de agressões, por parte de privados, desses mesmos directivos. Como reconhece a doutrina, a fundamentação dogmática destes direitos de protecção é marcada por uma assinalável margem de indeterminação e insegurança. Mesmo quando se reconhece a existência de um direito subjectivo, isso não implicará uma accionabilidade judicial imediata contra qualquer poder público. A afirmação de um direito subjectivo dependerá da situação de agressão ou de perigo concretamente existentes.

No caso dos autos, parece dar-se como demonstrada a existência dessa situação, mas não fica provado como é que os utentes de parques aquáticos têm, por este motivo, um direito especial de protecção. A radicalização de um discurso subjectivizador acabará numa universa-lização dissolvente dos deveres de protecção. A morte de frequentadores de discotecas - também reconhecidos como locais de risco - seria devida à inexistência de legislação mais adequada. A morte de espectadores nos estádios imputar-se-ia à ausência de legislação protectora. A morte por acidentes na estrada teria como responsável o Estado "dono" das estradas. Compreende-se, assim, que a doutrina dos "deveres de protecção" e dos correspondentes "direitos de protecção" não possa dispensar uma dogmática específica em sede dos pressupostos da responsabilidade por omissão legislativa. Foi o que tentámos demonstrar a propósito do princípio da causalidade adequada.

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10. Uma última consideração diz respeito à prova da culpa e distribuição das responsa-bilidades. Deu-se como provado que, já em Agosto de 1991, o Aquaparque fora citado na comunicação social, a propósito de um estudo desenvolvido pelo Instituto Nacional de Defesa do Consumidor. Deu-se como provado que este estudo esteve na base de comunicações e avisos diversos dirigidos quer aos "proprietários e Agentes exploradores de Parques de Diversões Aquáticos" quer ao "público". Deu-se como provado que o trabalho desenvolvido pelo Instituto Nacional de Defesa do Consumidor "foi larga e amplamente divulgado em órgãos de comunicação social". A Deco, num número publicado precisamente um mês antes da morte do jovem identificado nos autos (Junho de 1993), divulgou um estudo em que alertava para os riscos dos parques aquáticos em funcionamento em Portugal. A pergunta a fazer é esta: porquê responsabilizar apenas o Estado por falta de legislação e de outras medidas preventivas dos perigos dos parques aquáticos? Em que medida os representantes legais do lesado não deveriam ser responsabilizados pela não adopção de medidas de cautela relativamente à frequência de parques aquáticos pública e notoriamente perigosos? Em que medida os pais, na qualidade de tutores do filho menor, não devem assumir aqui uma quota (pequena ou grande) de responsabilidade pela morte do filho?

Como se vê, o instituto da responsabilidade tem ainda potencialidades bastantes para descobrir os culpados. Entre o empresário dolosamente desleixado e negligente e o Estado ilicitamente inactivo, está o cidadão responsável por condutas e omissões. A responsabilidade é, também, um "problema de obrigações" do cidadão responsável num Estado de direito democrático. "Há mar e mar, há ir e voltar"!

Por pretensos danos resultantes das restritivas leis de arrendamento que mantiveram as rendas congeladas, leia-se o Ac. da R.ão de Lisboa, de 20.5.1997, na Col. 97-III-91:

«O art. 22º da Constituição da República Portuguesa (CRP) dispõe expressis verbis:

"O Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte a violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem".

"Na sua vertente de Estado de Direito, o princípio do Estado de Direito democrático, mais do que constitutivo de preceitos jurídicos, é sobretudo conglobador e integrador de um amplo conjunto de regras e princípios dispersos pelo texto constitucional, que densificam a ideia da sujeição do poder a princípios e regras jurídicas" - escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira na CRP anotada, 3ª ed. pag. 63.

Ele abrange, inter alia, a responsabilidade do Estado pelos danos causados aos cidadãos (art. 22º da CRP).

Este artigo estatui o princípio da responsabilidade patrimonial directa das entidades públicas por danos causados aos cidadãos.

O princípio da responsabilidade do Estado é um dos princípios estruturantes do Estado de Direito democrático, enquanto elemento do direito geral das pessoas à excepção dos danos causados por outrem.

O teor literal do artigo em epígrafe da Lei Fundamental leva a considerar a responsabilidade do Estado por actos legislativos.

No concernente à responsabilidade por facto das leis, esta deve admitir-se sempre que haja violação de direitos, liberdades e garantias ou prejuízos para o cidadão derivados directamente das leis - maxime quando, por facto das leis, se impõem sacrifícios e encargos especiais aos cidadãos claramente ofensivos do princípio da igualdade.

A Constituição de 1933, em cuja vigência foi produzida a maioria da legislação apontada pelo recorrente como lesiva dos seus legítimos interesses, não continha princípio análogo ao que dimana do art. 22º da actual Constituição.

Defendia-se, naquela altura que não se divisava um prejuízo especial e particular a um carácter geral da lei.

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Escreveu, a tal respeito, Fezas Vital - "Se a lei é por essência uma regra geral e impessoal, nunca pode ser causa de um prejuízo especial e individualizado pois isso repugnaria à sua própria natureza" - B.F.D.C., Ano II, pag. 275.

Sufragamos, por inteiro, a opinião inserida no estudo - "Ensaio sobre a Responsabilidade Civil do Estado por Actos Legislativos" de Rui Medeiros, segundo a qual o art. 22º da CRP se refere unicamente à responsabilidade por factos ilícitos e culposos por parte do Estado.

Consagra, aliás, aquele dispositivo da nossa Lei Fundamental, um direito fundamental de natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias e, por consequência, é directamente aplicável e pode ser invocado pelos particulares para fazer valer uma pretensão de indemnização contra o Estado legislador.

O inciso no art. 22º, em análise, configura em súmula, tão só a responsabilidade civil do Estado ancorada na culpa e quando se constate violação de um direito subjectivo constitucionalmente protegido ou na eventualidade da acção ou omissão de que dimane prejuízo para o cidadão.

Circunscrito o contexto do art. 22º da CRP às situações de responsabilidade civil por facto ilícito impõe-se a análise da verificação, no caso sub judicio, dos pressupostos decorrentes da lei geral - art. 483º do CC - ínsitos ao dever de indemnizar.

A saber, a ilicitude; a culpa; o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.É communis opinio doutrinal que é condição sine qua non de existência de um facto ilícito

legislativo a aprovação de lei violadora da Lei Fundamental ou da legislação vigente no momento que ofenda direitos, liberdades e garantias ou interesses legalmente protegidos.

O Direito de propriedade, que o recorrente afirma ter sido ferido pela actuação do Estado legislador materializada nos diplomas de que emanou (mencionados no art. 7º do petitório), esteve e está garantido constitucionalmente - art. 8º nº.15 da Constituição de 1933 e art. 62º da vigente.

Teoricamente, o direito de propriedade abrange pelo menos quatro componentes: a) O direito de adquirir bens; b) O direito de usar e fruir dos bens de que se é proprietário; c) o direito de os transmitir; d) o direito de não ser privado deles.

Só o segundo aspecto não está contemplado de forma explícita no art. 62º citado.De uma forma geral, o próprio projecto económico, social e político da Constituição implica

um estreitamento do âmbito dos poderes tradicionalmente associados à propriedade privada e a admissão de restrições (quer a favor do Estado e da colectividade, quer a favor de terceiros) das liberdades de uso, fruição e disposição.

Sem obstaculizar a protecção constitucional do direito de propriedade há muito o legislador ordinário teve uma actuação interventiva na regulamentação locatícia, com restrições limitativas dos direitos dos locadores, estreitando-se no interesse social subjacente ao contrato de arrendamento.

Nunca se pôs em causa esse poder interventivo do legislador nem a prevalência do interesse da colectividade, em desabono do dos particulares - senhorios, com o tratamento mais favorável para o contraente em posição mais frágil no contrato - o locatário.

Aliás, esse poder de intervenção - de cariz social - tem matéria constitucional que emana do art. 65º da C.R.P.

O Direito à habitação é um direito complexo e multifacetado.Não havendo na Constituição qualquer apoio para um princípio de subsidiariedade, a

iniciativa pública não deve ter-se por subsidiária da iniciativa privada; pelo contrário, cabendo ao Estado a satisfação do direito à habitação, incumbe-lhe igualmente a principal responsabilidade na construção de habitações para pessoas carenciadas.

Em segundo lugar, a garantia do direito à habitação implica o direito de acesso dos cidadãos às habitações, incumbindo ao Estado promover o acesso à habitação própria e estabelecer um regime de arrendamento que tenha em conta os rendimentos familiares (nº.3 do art. 65º da CRP), o que por si mesmo exige que a construção não esteja exclusivamente submetida a uma lógica de rentabilidade capitalista.

Este direito inclui o direito à segurança na habitação, com salvaguarda das garantias legais adquiridas, sendo, por exemplo, inconstitucional a submissão do arrendamento, das rendas e dos despejos à liberdade contratual: o direito à habitação deve prevalecer sobre o direito de uso e disposição da propriedade privada.

O direito à habitação não terá um mínimo de garantia se as pessoas não tiverem possibilidade de conseguir habitação própria ou de obter uma por arrendamento em condições compatíveis com os rendimentos familiares.

Cumpre ao Estado, no cumprimento desta imposição constitucional, inter alia, o controlo e limitação das rendas (tabelamento das rendas, subsídios públicos às famílias mais carecidas, criação

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de um parque imobiliário público com rendas limitadas, etc.) - vidé CRP Anotada, 3ª ed., de Gomes Canotilho e Vital Moreira, pag. 346.

É óbvio assim, concluir que a legislação aprovada e aplicada pelo Estado se mostra conforme com tal imposição constitucional e não viola quer os princípios da igualdade e da iniciativa privada, quer o direito de propriedade, como pretende o recorrente, estando isenta dos vícios que lhe são assacados por este.

A responsabilidade civil do Estado pelos danos resultantes do exercício da função legislativa pressupõe, ex vi do art. 22º da CRP, a existência de culpa.

O problema da culpa do legislador só adquiriu verdadeira relevância no momento em que se começou a discutir, sobretudo no direito alemão, a problemática da responsabilidade do Estado pelo ilícito legislativo - vide "Ensaio sobre a Responsabilidade Civil do Estado por Actos Legislativos" de Rui Medeiros - Livraria Almedina, Coimbra 1992, pag. 175 e doutrina alemã ali referenciada.

Agir com culpa significa actuar em termos de a conduta do agente merecer a reprovação ou a censura do direito.

E a conduta do lesante é reprovável quando, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, se concluir que ele podia e devia ter agido de outro modo - vide A. Varela. "Das Obrigações em geral" - vol. I, pág. 531.

De jure constituto o art. 487º n.º 2 do CC estatui que a culpa é apreciada pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso - ob. cit. pag. 543 e segs.

Para o predito autor a letra do artigo supra não é decisiva e o padrão, por que se deve aferir a conduta do agente, não é apenas o do homem diligente, cuidadoso, zeloso (culpa como deficiência de vontade), mas também o do homem medianamente sensato, avisado, razoável e capaz (culpa como conduta deficiente) - ob. cit. pág. 547 e segs.

A Culpa do Legislador.A análise do conceito de culpa na responsabilidade civil em geral facilita-nos a compreensão

do significado da culpa do legislador maxime nas hipóteses em que se manifeste erro sobre a ilicitude.

Há culpa do legislador quando este podia e devia ter evitado a aprovação da lei inconstitucional.

O erro do legislador só exclui a culpa quando for desculpável.Entendemos que a culpa do legislador deve ser apreciada a partir do caso concreto, tendo

em consideração as circunstâncias que rodearam a aprovação da lei e a gravidade da agressão legal.Há quem defenda que a aprovação de uma lei inconstitucional revela, per si, uma actuação

negligente do órgão legislativo.Outros subscrevem a posição, que nos parece a mais correcta -, que inexiste culpa nos casos

de inexigibilidade do conhecimento da inconstitucionalidade da lei ancorando-se no acento tónico da desculpabilidade do erro inerente à aferição da culpa do legislador.

"A inconstitucionalidade duma lei não revela, por si só, a existência de uma negligência do legislador e nem sempre um exame suficientemente cuidadoso das normas constitucionais evita a aprovação da lei contrária à Constituição" - cf. Rui Medeiros, ob. cit., pág. 190.

Uma das situações em que a atitude do legislador está isenta de censura è aquela em que este resolve uma questão controversa, em relação à qual inexiste Jurisprudência uniforme, mesmo que, a posteriori o Tribunal Constitucional declare a inconstitucionalidade do inciso legal.

A fortiori, no concernente aos diplomas a que os autos se reportam, emanentes ao poder interventivo, de matriz constitucional (vidé art. 65º da CRP e o que se escreveu em 2.3.4 para onde se remete) da competência do Estado a restrição dos direitos dos senhorios nenhuma censura pode merecer, pois aquela não é de configurar como arbitrária ou inadmissível sendo, até, bem aceite no plano social.

Aliás todos os senhorios estavam e estão em igual situação e não houve assim um particular prejuízo para o cidadão A.

Ao fim e ao cabo a ser satisfeita a pretensão do A., que já vimos carecer de cobertura legal, isso é que seria factor gerador de desigualdade, pois o A. receberia o que teria recebido se a Lei não existisse, com os contornos interventivos no plano habitacional; colocando-se, ipso facto, numa situação de privilégio relativamente ao comum dos senhorios.

A lei é, por natureza, geral e abstracta e aplica-se a todas as situações idênticas, por igual.

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Aliás, só por si, a inexistência de ilicitude e de culpa (como já se demonstrou) obstaculariam o dever de indemnização do Estado fundado em acto legislativo ilícito.

Impõe-se agora, como dito foi, dilucidar a questão da Responsabilidade Civil do Estado por factos lícitos - Danos resultantes da Função Legislativa como nos é imposto face ao teor do decidido no Ac. de fls. 306 verso.

No domínio da nossa Constituição de 1933, na vigência da qual veio à luz diversa legislação que o A.- ora apelante invoca como lesiva dos seus legítimos interesses, inexistia qualquer princípio idêntico ao consagrado no art. 22º da nossa Lei Fundamental actual.

Assim, antes que a nossa hodierna Constituição entrasse em vigor, opinavam a generalidade dos autores que duma lei nunca poderia derivar um especial e particular prejuízo dado que tal situação estaria afastada pelo carácter geral da Lei - sua essencial característica.

Para Fezas Vital, in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, ano II, pag. 275 - "se a lei é por essência uma regra geral e impessoal, nunca pode ser causa de um prejuízo especial e individualizado, pois isso repugnaria à sua própria natureza".

Face ao teor do art. 22º da CRP actual geraram-se opiniões diversas.Para alguns constitucionalistas houve uma posição de recusa em admitir que o predito inciso

da Lei Fundamental estatuisse uma obrigação de indemnização por violação pelo Estado, no exercício da função legislativa, de direitos, liberdades e garantias.

Em tal sentido se pronunciou Maria da Assunção Esteves - "A violação por virtude de actos lesivos, através da função legislativa, de direitos, liberdades e garantias parece-me um tanto ou quanto difícil de configurar" - vidé Diário da Assembleia da República de 21.4.88, nº.7, pag. 154.

No mesmo tom opinou Almeida Santos no Diário da Assembleia da República de 20.4.89, nº.66, pag. 2304.

Contudo é hoje profusa a Doutrina e Jurisprudência que ancoram no art. 22º da CRP o direito do particular à reparação por virtude da prática de acto legislativo lesivo dos seus direitos, liberdades e garantias - vidé Acs. do STJ de 1.6.94 prolatado no proc. 85349 e desta Relação de 18.4.91 na CJ Ano XVIU, 2, 187; e " O Problema da Responsabilidade do Estado por Actos Lícitos" de Gomes Canotilho e bem assim Rui Medeiros no "Ensaio sobre a Responsabilidade Civil do Estado por Actos Legislativos".

A Discussão surge, porém, quanto a saber se no predito art. 22º estão englobadas quer a responsabilidade civil por actos legislativos ilícitos quer a responsabilidade civil objectiva do Estado.

Propendemos a defender, acentua-se desde já, que aquele inciso legal apenas consagra a responsabilidade por factos ilícitos e culposos.

É esta a posição assumida por Rui Medeiros na ob. cit. e que merece o nosso pleno assentimento.

Segundo o dito autor o princípio do Estado de Direito não permite concluir que o art. 22º preveja a responsabilidade civil objectiva do Estado porquanto aquele preceito pressupõe uma acção ou omissão ilícita e culposa e apenas consagra um direito fundamental de natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias.

Diz ainda Rui Medeiros na ob. cit., pág. 93 e segs. - "O art. 22º da CRP prescreve uma responsabilidade solidária do Estado com os titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes.

Ora mal se compreenderia que a Constituição afirmasse um princípio geral de responsabilidade objectiva do Estado e, ao mesmo tempo, impusesse uma responsabilidade solidária dos titulares dos órgãos, funcionários ou agentes: a responsabilização dos autores materiais do facto que causa um prejuízo especial e anormal, independentememnte da ilicitude e da culpa, constituiria, para eles, um encargo insuportável e totalmente injustificado.

A responsabilidade solidária consagrada no art. 22º depende, portanto, da existência de um facto ilícito e culposo".

À afirmação de Gomes Canotilho e Vital Moreira de que o art. 22º não pode deixar de abranger a responsabilidade por actos lícitos e pelo risco pois, caso contrário, ficaria lesado o princípio geral da reparação de danos causados a outrem, responde aquele autor que - "Em primeiro lugar, alguns dos casos mais graves de danos resultantes de factos não culposos, seja no domínio do direito à liberdade, seja no vasto campo dos direitos patrimoniais, são expressamente previstos pela Constituição, e em segundo lugar, que o princípio do Estado de Direito pode, excepcionalmente, fundamentar uma pretensão autónoma de indemnização não expressamente prevista na Constituição, designadamente em relação a danos graves resultantes da violação não culposa de

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direitos, liberdades e garantias, não sendo por isso necessário o alargamento do âmbito do art. 22º da CRP".

Remata o transcrito autor - "O Estado de Direito não postula a aceitação generalizada da responsabilidade objectiva. A Lei Constitucional e a lei ordinária poderão alargar o âmbito do direito de indemnização por danos resultantes de acções ou omissões não culposas, mas o art. 22º na sua redacção actual não impõe esse alargamento".

Em súmula o art. 22º da CRP prevê tão só a responsabilidade civil do Estado assente na culpa, quando ocorra violação de um direito subjectivo constitucionalmente protegido ou quando de acção ou omissão resulte prejuízo para o cidadão.

Fica assim delimitado o conteúdo do art. 22º da CRP aos casos de responsabilidade civil por facto ilícito cujos pressupostos indemnizatóprios já vimos acima serem de ter por inverificados no caso sub judice.

Impõe-se ainda frisar, no contexto que agora nos ocupa, que o direito de propriedade flui na Constituição vigente como um direito fundamental do qual o particular não pode ser privado sem uma compensação pecuniária - art. 62º da Lei Fundamental.

Em matriz constitucional apenas está garantido o direito à titularidade e à transmissibilidade da propriedade (com ditames precisos no que concerne à expropriação e nacionalização).

O conteúdo do predito direito não tem assento constitucional pelo que o legislador ordinário pode com liberdade limitar a respectiva faculdade de uso e fruição.

Opinam, em tal sentido, inter alia Vital Moreira e Gomes Canotilho in Constituição da República Portuguesa Anotada e Ana Prata in A Tutela Constitucional da Autonomia Privada.

Como já dito foi, o direito de propriedade não é um direito absoluto, inviolável, intocável ou ilimitado antes tem ínsitas limitações legais ancoradas no interesse público.

Daqui decorre que a indemnização só é devida quando, através de acto legislativo, é atingida a titularidade do direito de propriedade mas não, como no caso sub judicio, quando se atinge o respectivo direito de uso e fruição.

É por isso que o art. 62º da CRP apenas obriga à reparação por actos legislativos conformes com a Constituição nas situações delineadas no seu nº.2 - nacionalização e expropriação - que afectam a titularidade e transmissibilidade em vida e por morte do direito que com o nº.1 do inciso apontado se visa proteger.

É mister concluir que as limitações a que o direito de propriedade do A. - ora apelante tem estado submetido, face à legislação que impediu o livre aumento das rendas e a livre denúncia da relação locatícia não fazem incorrer o Estado no dever de indemnizar porquanto os direitos de gozo e fruição restringidos não usufruem de protecção emergente da garantia constitucional da propriedade privada.

Ao invés, compete à lei ordinária definir os termos e a extensão em que a ordem jurídica há-de proteger, num dado momento, os particulares lesados acidentalmente pelo Estado.

Na palavra de Barbosa de Melo - "O art. 22º limita-se a constitucionalizar o princípio geral de responsabilidade civil das entidades públicas deixando ao legislador ordinário o poder de estabelecer diferentes tipos de responsabilidade e de fixar os especiais pressupostos de cada um deles. A ser assim, a lei ordinária é que definirá a extensão em que há-de proteger em cada tempo as pessoas lesadas por actos ou factos das autoridades públicas.

Inexistindo, como é vítreo, lei concretizadora que configure os pressupostos do dever de indemnizar e a medida da indemnização no caso dos autos, lógico é concluir que o pretendido pelo recorrente carece de suporte legal.

…Lisboa, 20 de Maio de 1997

Lopes BentoEduardo BaptistaPereira da Silva»,

decisão confirmada pelo STJ, no BMJ 489-320, maxime 324 a 328.

Exemplos de omissão podem ver-se naqueles casos em que a Polícia não defende os direitos do cidadão ameaçado por uma multidão enfurecida, como aconteceu numa manifestação alegadamente anticomunista em Famalicão, omissão

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de que resultou o saque e destruição do escritório dum conhecido advogado e político local, o Dr. Lino Lima - BMJ 333-284; da criança que é deixada sozinha, com os colegas, na sala de aula, sem qualquer vigilância e que aí sofre acidente - Col. 99-III-261; do doido internado que, por falta de vigilância, foge do hospital e é atropelado.

Ou naqueloutro caso em que o Ministro da Justiça, com violação do dever jurídico-funcional de um comportamento consequente, não nomeou para o STA um Juiz, como lhe fora proposto - Comentário do Prof. Canotilho, na RLJ 125-74 e ss, com estudo dos pressupostos da responsabilidade civil do Estado, em geral (facto, ilicitude, culpa, dano e nexo de causalidade entre a conduta e dano).

Exigindo que as acções ou omissões lesivas tenham sido praticadas no exercício de funções e por causa desse exercício, requer-se que o acto caiba no âmbito do escopo funcional ou que, pelo menos, se verifique uma aparência de relação funcional justificativa da boa-fé e confiança do cidadão lesado. Exclui-se, assim, o «critério do mera ocasionalidade» e o «critério da ocasionalidade necessária».

Exemplo de responsabilidade civil do Estado por danos provenientes da função jurisdicional - atraso de processos ou demora anormal em proferir sentença - comentário pelo prof. Canotilho a Ac. do STA, de 7 de Março de 1989, na RLJ ano 123, pág. 293 e ss - cópia - cujo estudo se aconselha vivamente.

Quanto a decisões alegadamente erradas e por isso geradoras de danos para os particulares pode ver-se o Ac. do STJ de 8.7.97, no BMJ 469-395, assim sumariado:

I - São da competência dos tribunais comuns as acções para apuramento de res-ponsabilidade do Estado por actividade jurisdicional

II - A responsabilidade civil por exercício de função jurisdicional só vem expressamente concebida, quanto ao Estado, nos artigos 27º, nº 5, e 29º, nº 6, ambos da Constituição da República Portuguesa.

III - O artigo 22º da Constituição da República Portuguesa abrange manifestamente a responsabilidade civil da actividade administrativa, também consagra idêntica responsabilidade com referência a prejuízos causados pela actividade jurisdicional, para além dos casos específicos em que é prevista.

IV - No reconhecimento, em concreto, de uma obrigação de indemnizar, por parte do Estado, por facto do exercício da função jurisdicional, não basta a discordância da parte que se diz lesada, nem sequer a convicção, que em processo como o presente sempre será possível formar, de que não foi justa ou a melhor a solução encontrada no julgamento que vier questionado.

Impõe-se que haja a certeza de que um juiz normal e exigivelmente preparado e cuidadoso não teria nunca julgado pela forma a que se tiver chegado, sendo esta inadmissível e fora dos cânones minimamente aceitáveis.

Ou o do STJ (Cons.º Nuno Cameira), de 31.3.2004, na Col. Jur. do STJ 2004-I-157 e ss:

Sumário:

1) Para além dos dois casos específicos expressamente mencionados nos art.ºs 27º, nº 5, e 29º, nº 6 (prisão ilegal e condenação penal injusta), o art.º 22º da Constituição abrange na

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sua previsão a responsabilidade civil extra-contratual do Estado decorrente da actividade jurisdicional.

2) Independentemente da existência de lei ordinária que o concretize, o direito reconhecido pelo art.º 22º da Constituição beneficia do regime estabelecido no seu art.º 18º para os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias, designadamente quanto à sua aplicação directa.

3) A autonomia na interpretação do direito e a sujeição exclusiva às fontes de direito jurídico-constitucionalmente reconhecidas são manifestações essenciais do princípio da independência dos juízes.

4) Os actos jurisdicionais de interpretação de normas de direito e de valoração jurídica dos factos e das provas, núcleo da função jurisdicional, são insindicáveis

5) O erro de direito praticado pelo juiz só poderá constituir fundamento de responsabilidade civil na jurisdição cível quando, salvaguardada a essência da função jurisdicional referida no ponto 4), seja grosseiro, evidente, crasso, palmar, indiscutível, e de tal modo grave que torne a decisão judicial numa decisão claramente arbitrária, assente em conclusões absurdas.

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I. Alegando ter proposto uma acção de despejo decidida na 1ª instância e na Relação contra lei expressa, o que lhe causou prejuízos de vária ordem, A demandou o Estado Português, pedindo a sua condenação no pagamento de 99.759,50 € e juros legais desde a citação.

O réu contestou, dizendo em resumo que as duas decisões postas em causa não foram ditadas contra lei expressa, já que "interpretaram e aplicaram criteriosamente o direito, optando pela decisão mais justa e adequada aos interesses em presença, ponderando e sopesando as posições doutrinais e as correntes jurisprudenciais mais qualificadas", e que não há qualquer nexo causal entre os prejuízos alegadamente sofridos e os actos jurisdicionais questionados.

Foi proferido despacho saneador-sentença que julgou a acção improcedente e condenou a autora na multa de 20 UCCs como litigante de má fé.

Sob apelação da autora a Relação confirmou a sentença, excepto no tocante à condenação a título de má fé, que foi revogada.

Mantendo-se inconformada a autora pede revista, sustentando que, ao não condenar o réu na indemnização pedida, o acórdão recorrido violou o artº 22º da Constituição, o disposto no DL 48.051, de 21.10.67, e o artº 115º do RAU, devendo, por isso, ser revogado.

…III. A questão posta no recurso tem a ver com a responsabilidade civil extra-contratual do

Estado e está na ordem do dia, quer nos restantes países europeus, quer entre nós.Na situação ajuizada, concretamente, o facto ilícito gerador da responsabilidade do Estado

foi, segundo a recorrente, o erro de direito cometido nas duas sucessivas decisões proferidas na acção de despejo mencionada no facto nº 9. Na sua tese, ambas as sentenças - a da 1ª instância e a da Relação que a confirmou - foram pronunciadas contra legem: violaram ostensiva e grosseiramente a lei (art.º 115º, nº 2, a), do RAU) ao considerar "ter havido trespasse de estabelecimento comercial quando se operou tão somente uma cedência ilícita do direito ao arrendamento"; assim, conclui ainda, "parece irrefutável estarmos em presença de um erro grosseiro do juiz, que agiu com culpa grave ao qualificar o negócio realizado como trespasse, não podendo dizer-se, para sua defesa, que a matéria sobre que incidiu a sua decisão é controvertida ou que cai no âmbito da livre apreciação do julgador. Porque efectivamente não cai. Face a um dado objectivo, a transmissão do espaço apenas, sem mais valores, o tribunal entendeu haver trespasse. E errou"; "deste modo, - afirma a finalizar - "não poderemos senão considerar que se preenchem os pressupostos da responsabilidade do Estado por actos da administração da justiça, uma vez que as decisões proferidas (facto), enfermando de um erro grosseiro (culpa), redundaram numa violação de lei (ilicitude) que causou (nexo) avultados danos (dano) na esfera jurídica da recorrente, que têm que ser reparados".

Como se vê, está em causa a chamada responsabilidade do Estado-Juiz, por facto do poder jurisdicional.

A actualidade e premência do problema resulta do enorme desenvolvimento do poder judicial nas últimas décadas. Este fenómeno encontra-se associado a múltiplos factores, de que destacaríamos a título meramente ilustrativo apenas três, todos intimamente relacionados entre si:

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Em primeiro lugar a projecção, o aprofundamento e a sofisticação do Estado Social, que, levando-o a intervir em sectores da vida social de que estava ausente há poucas décadas, aumentou exponencialmente o papel de controle que cabe ao poder judicial, designadamente à jurisdição administrativa e constitucional;

Em segundo lugar a proliferação de leis que, visando justamente assegurar os novos direitos e as novas garantias reclamados com veemência crescente por todos os sectores da sociedade, apelam a cada passo para a utilização de conceitos indeterminados e cláusulas gerais como instrumento de realização da justiça por parte dos tribunais, assim atribuindo aos juízes um papel cada vez mais significativo no aperfeiçoamento do Estado de Direito (adequação das leis às necessidades da vida prática, sempre em acelerada mutação);

Em terceiro lugar, a acentuação da tendência para cada qual afirmar os seus direitos por via judicial (1), o que tem aumentado de forma impressionante a litigiosidade e o grau de exigência a que os juízes ficam submetidos, por terem de resolver toda a sorte de questões, mesmo aquelas que até há bem pouco tempo se decidiam no âmbito da acção cívica, da actividade política, ou de sectores específicos da administração.

Está claro que neste ambiente de verdadeira transformação da natureza do poder judicial o juiz vai dispondo progressivamente, mesmo sem o querer, de novos poderes (ou, se se quiser, de novas e diversificadas competências), o que lhe confere um papel mais activo, mais próximo e mais determinante na evolução da sociedade.

Só que isto, logicamente, tem reflexos a dois níveis.Por um lado, a mais poder - e, no sentido exposto, a maior liberdade decisória - corresponde

uma maior responsabilização; por isso é que, como escreveu Mauro Cappelletti (2), existe hoje em todo o mundo uma tendência para submeter os juízes a controle, tendo em vista melhorar o seu desempenho e eficácia e reconhecer a sua responsabilidade, sem diminuir todavia de modo excessivo o seu isolamento em relação ao poder político, que garante a respectiva independência. Em sentido idêntico, Pedro Bacelar de Vasconcelos ponderou o seguinte: "Só por inaceitável atavismo ou reverência corporativa se pode explicar, numa época em que o judicial acabou por partilhar o destino interventor dos restantes poderes públicos e se revela capaz de produzir os mais duros e imprevisíveis estragos na esfera pessoal e patrimonial dos particulares, que a responsabilidade do Estado por exercício da função jurisdicional permaneça circunscrita, no essencial, às hipóteses de privação de liberdade. Em matéria de responsabilidade nada justifica que quaisquer lesões devidas a erro judiciário - seja por dolo, negligência, erro grosseiro - ou resultantes, em geral, do funcionamento anormal da administração da justiça, não constituam o lesado no direito a uma compensação, fundado na lesão simultânea do interesse particular e do próprio interesse público, a patentear aqui a inviabilidade de uma bipartição radical entre actos lícitos e ilícitos" (3).

Por outro lado, a mais e mais variadas competências, e a maior pressão social no sentido de resolver os litígios em tempo razoável e com justiça, corresponde um risco acrescido de errar.

Era a este ponto, justamente - o do erro judiciário - que, feito o breve enquadramento geral que antecede, pretendíamos chegar, pois é nele, como já vimos, que se situa o âmago do presente litígio.

Segundo o artº 22º da Constituição o Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte a violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem.

De acordo com a generalidade da doutrina nacional, este preceito constitucional abrange na sua previsão a responsabilidade civil decorrente da actividade jurisdicional, para além dos dois casos específicos expressamente mencionados nos seus artºs 27º, nº 5 e 29º, nº 6 (prisão ilegal e condenação penal injusta). Isto porque, sem qualquer dúvida, o poder judicial é um poder do Estado, sendo certo que o vocábulo funções utilizado nesta norma da Constituição abrange todas as funções estaduais, incluindo, naturalmente, a jurisdicional. Além disso, como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de 8.7.97 (CJSTJ, V, II, 153), embora este preceito não se inclua no Título II - Direitos, Liberdades e Garantias - o direito nele reconhecido deve ser visto em paralelo com as obrigações de indemnizar que podem derivar para o Estado do que se dispõe nos artºs 52º, nº 3, e 62º, nº 2, da Constituição, estendendo-se-lhe, por isso, o regime ditado pelo artº 18º, nº 3, em particular a sua aplicação directa, independentemente da existência de lei ordinária que o concretize (4).

Em qualquer caso, seria sempre defensável o entendimento de que, não tendo o legislador ordinário, na sequência desta norma constitucional, regulado a efectivação do direito de

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indemnização - delimitação do seu âmbito, caracterização do dano indemnizável, pressupostos e condições da acção respectiva, fixação do tribunal competente, etc - subsistiria em vigor o diploma que anteriormente regulava a responsabilidade civil extracontratual do Estado e das restantes pessoas colectivas públicas por actos de gestão pública (o DL 48.051, de 21.11.67), na medida em que não contrarie os princípios constitucionais.

Certo é que, estando em causa conceber e caracterizar a responsabilidade civil do Estado numa situação como a presente - sentença proferida no âmbito da jurisdição cível alegadamente eivada de erro de direito - é imperioso ter em conta as normas e princípios constitucionais, todos eles concretizados na lei ordinária, que definem a estrutura do poder judicial, a organização dos tribunais e o estatuto dos juízes.

Assim, com interesse para o caso, é de referir que:Os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em

nome do povo (art.º 202º, nº 1, CRP).Na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e

interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados (art.º 202º, nº2, CRP).

Os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei (art.º 203º CRP).Os juízes não podem ser responsabilizados pelas suas decisões, salvas as excepções

consignadas na lei (art.º 216º, nº 2, CRP).Os magistrados judiciais não podem abster-se de julgar com fundamento na falta,

obscuridade ou ambiguidade da lei, ou em dúvida insanável sobre o caso em litígio, desde que este deva ser juridicamente regulado (art.º 3º, nº 2, do EMJ - Lei 21/85);

Os magistrados judiciais julgam apenas segundo a Constituição e a lei e não estão sujeitos a ordens ou instruções, salvo o dever de acatamento pelos tribunais inferiores das decisões proferidas, em via de recurso, pelos tribunais superiores (art.º 4º, nº 1, do EMJ);

O dever de obediência à lei compreende o de respeitar os juízos de valor legais, mesmo quando se trate de resolver hipóteses não especialmente previstas (art.º 4º, nº 2, do EMJ);

Os magistrados judiciais não podem ser responsabilizados pelas suas decisões (art.º 5º, nº 1, do EMJ);

Só nos casos especialmente previstos na lei os magistrados judiciais podem ser sujeitos, em razão do exercício das suas funções, a responsabilidade civil, criminal ou disciplinar (art.º 5º, nº 2, do EMJ);

Fora dos casos em que a falta constitua crime, a responsabilidade civil apenas pode ser efectivada mediante acção de regresso do Estado contra o respectivo magistrado, com fundamento em dolo ou culpa grave (art.º 5º, nº 3, do EMJ).

Perante as normas transcritas, já se vê como se torna difícil e delicado concretizar o comando do art.º 22º da Constituição, criando a tal "norma de decisão" a que os autores citados na nota 4) aludem, quando se trate de avaliar acerca da existência de um erro de direito cometido em acto jurisdicional e da sua relevância enquanto facto gerador de responsabilidade civil.

Com efeito, e desde logo, manifestação essencial do princípio da independência é a autonomia na interpretação do direito (5), ou, como refere o Prof. Gomes Canotilho, no exercício da jurisdição. Segundo este autor, "qualquer relação hierárquica no plano da organização judicial não poderá ter incidência sobre o exercício da função jurisdicional. A existência de tribunais de hierarquia diferente e a consagração de órgãos de disciplina (Conselhos Superiores) também não perturba o princípio da independência do juiz no exercício da jurisdictio (Cfr. Ac. TC 257/98)". Corolário de igual modo essencial do mesmo princípio é a independência funcional do juiz, que não significa outra coisa senão que no exercício da sua função jurisdicional ele apenas está sujeito às fontes de direito jurídico-constitucionalmente reconhecidas. Por outro lado, o princípio da irresponsabilidade (cit. Art.º 216º, nº 2, CRP) tem por finalidade assegurar a independência: como observa o autor acima citado, tal princípio transporta a ideia de que o juiz não pode ser condicionado na sua função pelo medo de uma punição ou pela esperança de um prémio.

A isto acresce que a ciência do Direito não é exacta: faz parte da sua essência a controvérsia, a argumentação e a interpretação. Por outro lado, como alguém já lembrou, o número de casos excederá sempre o número de leis; e como não vivemos num mundo ideal, perfeito, nem o legislador é capaz de prever todas as hipóteses possíveis, nem os tribunais conseguem sempre, na prática, adequar sem distorções as leis às situações da vida que lhes compete apreciar. Enfim, a verdade absoluta é inatingível: tem de admitir-se a hipótese de ocorrência de erros na decisão jurisdicional, quer de facto, quer de direito, porque nenhum dos intervenientes processuais, começando pelas

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partes e seus advogados, passando pelas testemunhas e peritos, e terminando nos juízes, tem o dom da infalibilidade; todos estão sujeitos a errar e a induzir em erro.

Por tudo isto, subscrevemos por inteiro as considerações que se seguem, inseridas no acórdão deste tribunal a que atrás fizemos referência e cuja pertinência ao caso sub judice é patente:

"Sabido, como é, que as suas características de generalidade e abstracção distanciam cada vez mais a lei dos casos da vida, e considerando a multiplicidade de factores, endógenos e exógenos, determinantes da opção final que o juiz toma - atentemos, desde logo, na variedade de critérios, por vezes de sentido divergente, que o próprio art. 9º do CC nos dá sobre a interpretação da lei -, bem se compreende que seja com grande frequência que se manifestam sobre a mesma questão opiniões diversas, cada uma delas capaz de polarizar larga adesão, e com isso se formando correntes jurisprudenciais das quais, se se pode ter a certeza de que não estão ambas certas, já difícil ou impossível será assentar em qual está errada.

Daí que a própria reapreciação de decisões judiciais pela via do recurso não signifique, em caso de revogação da decisão recorrida, que esta estava errada; apenas significa que o julgamento da questão foi deferido a um tribunal hierarquicamente superior e que este, sobrepondo-se ao primeiro, decidiu de modo diverso.

Dentro deste quadro, a culpa do juiz só pode ser reconhecida, no tocante ao conteúdo da decisão que proferiu, quando esta é de todo desrazoável, evidenciando um desconhecimento do Direito ou uma falta de cuidado ao percorrer o "iter" decisório que a levem para fora do campo dentro do qual é natural a incerteza sobre qual vai ser o comando emitido.

A circunstância de dois juízes decidirem em sentidos opostos a mesma questão de direito não significa necessariamente, face à problemática da responsabilidade extracontratual do Estado, que um deles terá agido com culpa, embora se não saiba qual; as mais das vezes, significará apenas que em ambos os casos funcionou, de modo correcto, a independência dos tribunais e dos juízes, contribuindo para o progresso do Direito através da dialéctica estabelecida entre opiniões e modos de ver que se confrontam e interinfluenciam, a exemplo do que se dá na doutrina.

Por isso as legislações estrangeiras e as posições doutrinárias vêm exigindo uma culpa grave para permitir a formulação do necessário juízo de crítica sobre o decidido. E, designadamente, a Lei italiana n° 117/88 qualifica como culpa grave a grave violação da lei e a afirmação ou a negação de um facto que esteja, respectivamente, excluído ou assente de modo incontestável em face dos autos, quando isso se deva a negligência indesculpável do juiz - cfr. Álvaro de Sousa Reis Figueira, Estatuto do Juiz/Garantias do Cidadão, Col. Jur. 1991-11-56.

Com interesse para acentuar esta vertente do problema é de referir que já em 1979 Nótula sobre o Artigo 208° da Constituição Independência dos Juízes, in Estudos sobre a Constituição, 3° Volume, pg. 657 - Castro Mendes escrevia: "Merecem, além disso, neste momento uma referência particular dois elementos especialmente nocivos - e em Portugal a epidemia é grave e geral - ao processo decisório: a sobrecarga de trabalho e a pressa. Estamos aqui de novo, perante factores impeditivos de uma decisão boa (ou largamente impeditivos, transformando a decisão justa em produto muitas vezes da sorte), embora não constitutivos de uma decisão má.

E é notório o agravamento dramático que desde então se tem sentido neste campo".Fique, pois, claro que para o reconhecimento, em concreto, de uma obrigação de indemnizar,

por parte do Estado, por facto do exercício da função jurisdicional não basta a discordância da parte que se diz lesada, nem sequer a convicção, que em processo como o presente sempre será possível formar, de que não foi justa ou a melhor a solução encontrada no julgamento que vier questionado.

Impõe-se que haja a certeza de que um juiz normal e exigivelmente preparado e cuidadoso não teria nunca julgado pela forma a que se tiver chegado, sendo esta inadmissível e fora dos cânones minimamente aceitáveis".

A isto permitimo-nos acrescentar tão somente o seguinte:Os juízes não podem abster-se de julgar, invocando a falta ou a obscuridade da lei ou

alegando dúvida insanável acerca dos factos em litígio. Mais: o dever de obediência à lei não pode ser afastado sob o pretexto de que é injusto ou imoral o conteúdo do preceito legislativo (art.º 8º do CC). Pode suceder, deste modo, que o juiz se veja na contingência de aplicar um preceito legal a determinados factos em consequência duma interpretação da lei que não é, na sua perspectiva pessoal, a mais adequada, ou cujo sentido não lhe surge como unívoco. Em tais casos, que decerto não serão tão poucos quanto isso, com que propriedade poderá falar-se em erros de direito imputáveis ao juiz? Como discernir claramente, nessas e noutras hipóteses, onde começa e onde acaba a valoração dos factos e a interpretação das leis que constitui o cerne da função de julgar, constitucionalmente protegida de qualquer interferência?

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Tudo quanto se disse até ao momento demonstra a dificuldade a que nos referimos de início - a dificuldade, no fundo, de conciliar o princípio da independência dos tribunais, necessária ao desempenho imparcial da sua função soberana, com o princípio da responsabilidade do Estado por actos ilícitos dos juízes, hoje aceite nos ordenamentos jurídicos mais avançados (6).

Talvez por isso, encontramos uma assinalável convergência de pontos de vista quando o facto ilícito em causa é aquele que nos interessa no caso sub judice - erro de direito praticado num acto jurisdicional.

Podemos resumi-la nas seguintes proposições essenciais:a) - Os actos de interpretação de normas de direito e de valoração jurídica dos factos e das

provas, núcleo da função jurisdicional, são insindicáveis;b) - Por tal motivo, o erro de direito - que pode respeitar à aplicação (lei a aplicar), à

interpretação (sentido da lei aplicada), ou à qualificação (dos factos) - é eliminado, em princípio, pelo sistema de recursos ordinários previstos na lei, que permite a correcção de sentenças viciadas por um tribunal superior antes que se tornem irrecorríveis (art.ºs 676º a 761º do CPC);

c) - Na jurisdição cível, estão ainda previstos os recursos extraordinários de revisão e de oposição de terceiro, que contemplam vários fundamentos de impugnação de decisões transitadas em julgado (art.ºs 771º a 782º do CPC);

d) - O erro de direito só será fundamento de responsabilidade civil quando, salvaguardada a essência da função judicial referida em a), seja grosseiro, evidente, crasso, palmar, indiscutível, e de tal modo grave que transforme a decisão judicial numa decisão claramente arbitrária, assente em conclusões absurdas.

Na última edição da sua monumental obra Direito Constitucional e Teoria da Constituição (7ª edição, pág. 509) o Prof. Gomes Canotilho resumiu o estado da questão no nosso país, escrevendo o seguinte:

"Não obstante as reticências da jurisprudência portuguesa, a orientação mais recente de alguns países vai no sentido de consagrar a responsabilidade dos magistrados (de tribunais singulares ou colectivos) quando a sua actividade dolosa ou gravemente negligente provoca um dano injusto aos particulares. Sob pena de se paralisar o funcionamento da justiça e perturbar a independência dos juízes, impõe-se aqui um regime particularmente cauteloso, afastando, desde logo, qualquer hipótese de responsabilidade por actos de interpretação das normas de direito e pela valoração dos factos e da prova. Por outro lado, é duvidoso que, fora dos casos de responsabilidade penal e disciplinar do juiz, se possa admitir a responsabilidade civil do juiz com a consequente possibilidade de direito de regresso por parte do Estado.

No entanto, podem descortinar-se hipóteses de responsabilidade do Estado por actos ilícitos dos juízes e outros magistrados quando: (1) houver grave violação da lei resultante de negligência grosseira; (2) afirmação de factos cuja inexistência é manifestamente comprovada pelo processo; (3) negação de factos, cuja existência resulta indesmentivelmente dos actos do processo; (4) adopção de medidas privativas da liberdade for a dos casos previstos na lei; (5) denegação de justiça resultante da recusa, omissão ou atraso do magistrado no cumprimento dos seus deveres funcionais" (o sublinhado é nosso).

Na situação ajuizada, porém, está de todo em todo excluída a possibilidade de formular tais juízos de valor.

Vejamos porquê.Sucedeu que numa acção de despejo intentada pela autora contra a massa falida de

Supermercados "B, Ldª", quer o tribunal da 1ª instância, quer Relação, aplicando aos factos da causa a norma do art.º 115º, nº 2, al. a), do RAU, decidiram:

A 1ª instância: "O que releva para se concluir que determinada organização constitui um estabelecimento comercial é a prova das condições para que possa entrar em funcionamento, a fim de ali serem desenvolvidas as actividades que preencham os seus fins.

Para que exista um estabelecimento comercial não se torna necessário "que a respectiva organização económica que serve de suporte ao ente jurídico esteja a funcionar e em movimento; basta que esteja apto para entrar em movimento" - sentença citada no Ac. Da Relação de Lisboa de 8.3.04, na CJ XIX, II, 73.

Como se viu, após a realização das obras que o trespassário entendeu levar a cabo, o estabelecimento estava apto para abrir as portas e recomeçar a funcionar, que foi o que aconteceu, o que mostra que o facto de ter estado fechado e sem mercadorias ou outro tipo de bens não levou ao desaparecimento do estabelecimento comercial como realidade económica, nem como realidade jurídica, susceptível de ser trespassado" (fls 87).

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A Relação: "No que concerne à segunda questão, a da inexistência de trespasse por inexistência de elementos mínimos para caracterizarem o estabelecimento comercial, a autora alegou, para além do encerramento do estabelecimento em questão, que o mesmo estava vazio de mercadorias.

Esta alegação foi entendida como insuficiente para integração de um quadro de impossibilidade de trespasse por inexistência de estabelecimento na decisão recorrida, e bem.

Com efeito, o que se exige no art.º 115º, nºs 1 e 2, b), do RAU, é que se transmita o que integre, no caso, o estabelecimento, não tendo a alusão a mercadorias o significado de ser imprescindível a transmissão desse elemento se, na circunstância, não existir.

Relevante, sim, é que o conjunto que se transmita seja adequado a funcionar como determinado estabelecimento comercial, nomeadamente tendo em conta o ramo, como resulta do disposto no art.º 115º, nº 2, b), do RAU.

A essa luz é acertado o entendimento expresso na sentença recorrida, no sentido de que saber-se que realizadas obras pela 2ª ré, concretamente reparação de canalizações, substituição de vidros, substituição do pavimento e pintura das paredes, o conjunto transmitido pôde reiniciar o seu giro. É que não se tratando sequer de obras que revelem reestruturação do local, nem implicando reequipamento ou semelhante, há que se concluir que o conjunto que se vem referindo se manteve adequado a prosseguir os fins próprios do estabelecimento comercial primitivamente ali instalado.

Improcedem, assim, as correspondentes conclusões da apelante".Convém notar que no processo em que estas decisões foram tomadas ficou provado, além

dos factos atrás relatados (secção II) que logo após o trespasse a ré "B, Ldª", iniciou obras no arrendado e abriu-o ao público no dia 6.12.99.

Ora, a simples leitura dos passos transcritos mostra à evidência, cremos nós, que os tribunais proferiram as decisões questionadas no puro e simples cumprimento do seu dever legal de julgar, a que não poderiam eximir-se, e movendo-se, no caso, dentro do círculo, verdadeiramente inexpugnável, em que podem actuar com inteira independência: enquadramento jurídico dos factos, sua valoração à luz do direito tido por aplicável e selecção e interpretação da norma jurídica isolada para resolver o litígio.

E como resulta de tudo quanto se expôs, isto, por si só, é já determinante para a improcedência do recurso.

Mas pode ir-se mais longe.Na realidade, analisando as coisas com o necessário distanciamento, logo se constata que

representa uma afirmação no mínimo temerária dizer, como diz a recorrente, que os tribunais decidiram manifestamente contra legem ao aplicar o art.º 115º, nº 2, a), do RAU do modo como o fizeram.

Na verdade, semelhante aplicação da lei nada tem de extraordinário, assentando numa interpretação daquele preceito que não é original nem sequer isolada. Considerar que um estabelecimento comercial sem mercadorias continua a sê-lo, e, por isso, é susceptível de trespasse, não pode de forma alguma reputar-se como uma aberração, uma decisão completa-mente absurda e irrazoável, reveladora de grosseira e indesculpável ignorância do direito vigente. Face à multiplicidade de elementos, corpóreos e incorpóreos, que compõem um estabelecimento comercial, e tendo em conta que o trespasse, conforme é entendimento unânime, implica uma sua transferência global, unitária, alguns conceituados autores defendem que as hipóteses tipificadas no nº 2 do art.º 115º do RAU são meras presunções de inexistência de trespasse (cfr. Manuel Januário Gomes, Arrendamentos Comerciais, 2ª edição, pág. 171), ou índices semióticos da não transmissão do estabelecimento (Orlando de Carvalho, RLJ 110º, pág. 111). Por isso, o arrendatário poderá demonstrar que se realizou de facto um trespasse (Pereira Coelho, Arrendamento, 1988, pág. 215). O Conselheiro Pinto Furtado não perfilha este entendimento do texto legal em análise (cfr. Manual do Arrendamento Urbano, pág. 496 e seguintes). Em todo o caso, não deixa de reconhecer, referindo-se à construção dos autores citados, que é "brilhante, de indesmentível apuro técnico" (pág. 497); e mais adiante acaba por afirmar o seguinte (pág. 502): "Acentuemos aqui, uma vez mais, que a transmissão tem de ser global e em conjunto, sem impor que tenha de ser total. A distracção à unidade global de certos bens, de certas relações contratuais, certas unidades globais menores, que não roubem a identidade do estabelecimento, são legítimas e não descaracterizam o trespasse" (o sublinhado é nosso). Pela nossa parte, diríamos até que a própria letra do preceito, em especial a utilização da adversativa "ou ", reforça de algum modo o acerto, ou, pelo menos, a razoabilidade da interpretação censurada pela recorrente: afigura-se que, segundo o legislador, não é essencial à existência de trespasse a transferência de todos os elementos que integram o estabelecimento, mas apenas a

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daqueles que formam, digamos assim, o seu núcleo irredutível. Ora, na situação apreciada na acção de despejo posta pela autora tudo indica que foi precisamente isto que sucedeu: a ausência de mercadorias (e é preciso não esquecer que o locatário era um supermercado declarado falido) não impediu que, sete meses decorridos sobre o trespasse, e concluídas obras que não foram de reestruturação do local, a trespassária abrisse ao público o estabelecimento instalado no arrendado.

Somos assim levados a concluir que no caso presente não se verifica nenhum dos pressupostos legais da responsabilidade civil do réu, designadamente, e em especial, a prática de facto ilícito, o que deita por terra a pretensão da autora.

IV - Nestes termos, nega-se a revista e condena-se a autora nas custas.

Lisboa, 31 de Março de 2003Nuno CameiraSousa LeiteAfonso de Melo-----------------------(1) E, note-se, já não apenas direitos subjectivos em sentido estricto, senão também

interesses difusos e interesses individuais, homogéneos ou não (cfr. a Lei 83/95, de 20 de Agosto - Lei de Acção Popular).

(2) Autor citado pelo Cons. Rui Pinheiro em "Democracia, Poder Judicial e Responsabilidade dos Juízes", trabalho incluído na obra Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado - Trabalhos preparatórios da Reforma, edição da Coimbra Editora (pág. 68 e sgs, maxime pág. 77)

(3) Em "A crise da justiça em Portugal", pág. 37, edição Gradiva.(4) Neste sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição Anotada, 3ª edição, pág.

170: segundo estes autores cabe aos tribunais, na falta de lei concretizadora, criar uma "norma de decisão" tendente a reparação de danos resultantes de actos lesivos de direitos, liberdades e garantias ou dos interesses juridicamente protegidos dos cidadãos.

(5) Neste exacto sentido, cfr. obra cit. na nota anterior, pág. 795.(6) Note-se que o Supremo já decidiu, em acordão relatado pelo 1º adjunto deste (acórdão de

3.12.98, Processo 98A644) que é admissível acção de indemnização contra o Estado por negligência grosseira no exercício da função judicial.

Comentário desfavorável de G. Canotilho a decisão do STA e com bons ensinamentos na matéria pode ver-se na RLJ 124-83 e ss

- Embora a referência do art. 22º à responsabilidade solidária das entidades públicas e titulares de seus órgãos, agentes ou funcionários aponte, em primeiro lugar, para acções ou omissões ilícitas - só nesse caso se justifica a responsabilidade solidária - o âmbito normativo-material do preceito não pode deixar de abranger também as hipóteses de responsabilidade do Estado por actos lícitos e de responsabilidade por risco, podendo apenas a lei exigir certos requisitos quanto ao prejuízo ressarcível (ex.: exigência de um dano especial e grave). De outro modo, ficaria lesado o princípio geral da reparação dos danos causados a outrem.

- Não distingue a lei entre acto e omissão, que tanto um como outra podem ser lesivos de direitos dos cidadãos.

O art. 22º está integrado na Parte I, Direitos e Deveres Fundamentais, pelo que não pode deixar de ser considerado como um direito de natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias, constantes do Título II, com o regime de aplicação directa característica destas - art. 18º - e pode ser invocado pelos particulares para fazer valer uma pretensão de indemnização contra o Estado.

Nos termos do art. 266º, nº 1, a Administração Pública visa a prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos.

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Por isso, abrange este art. 22º a chamada faute du service: Se determinado serviço administrativo funcionou mal (ou seja, não funcionou como seria legítimo esperar de um serviço administrativo moderno que se pretende justo e eficiente), e o facto lesivo que causa danos ao particular não é imputável a um funcionário ou agente individualizável mas sim ao próprio serviço, é justo que se admita a responsabilidade da própria Administração e o correspondente dever de indemnizar os danos causados ao particular. De outro modo, deixar-se-ia o particular sem tutela de um dos seus direitos fundamentais: o direito ao ressarcimento de danos causados por outrem. Tal direito deve ser respeitado quer a violação seja imputável a um qualquer particular, quer à própria Administração6.

Rui de Medeiros7 aponta variadas (cinco) razões, inclusive de história parlamentar do art. 22º para, em contrário do Parecer nº 54/82 da PGR, considerar aplicável esta norma à responsabilidade do Estado por facto de leis.

Ao contrário de Canotilho e Vital Moreira, entende este Autor que o art. 22º, ao consagrar a responsabilidade solidária, pressupõe unicamente a responsa-bilidade do Estado por factos ilícitos e culposos e não responsabilidade por factos lícitos ou pelo risco.

Mas na indemnização incluem-se os danos não patrimoniais.

Nos termos do art. 271º, nº 1, da Constituição,(Responsabilidade dos funcionários e agentes)

1. Os funcionários e agentes do Estado e das demais entidades públicas são responsáveis civil, criminal e disciplinarmente pelas acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício de que resulte violação dos direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos, não dependendo a acção ou procedimento, em qualquer fase, de autorização hierárquica.

2. É excluída a responsabilidade do funcionário ou agente que actue no cumprimento de ordens ou instruções emanadas de legítimo superior hierárquico e em matéria de serviço, se previamente delas tiver reclamado ou tiver exigido a sua transmissão ou confirmação por escrito.

3. Cessa o dever de obediência sempre que o cumprimento das ordens ou instruções implique a prática de qualquer crime.

4. A lei regula os termos em que o Estado e as demais entidades públicas têm direito de regresso contra os titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes.

O direito de regresso das entidades públicas contra os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, previsto no nº 4 deste art. 271º efectiva-se perante os Tribunais Administrativos e de acordo com o Dec-lei nº 48051.

O âmbito normativo deste preceito é mais vasto do que o nº 1, visto que regula o direito de regresso do Estado e demais entidades públicas não apenas contra os funcionários e agentes, mas também contra os titulares de cargos políticos prevista no art. 117º, nº 1, caso em que o Estado e demais entidades públicas também respondem solidariamente, quanto à responsabilidade civil.

Os casos e condições de exclusão de responsabilidade do funcionário por dever de obediência vêm regulados nos n.os 2 e 3, em termos que não suscitam dúvidas.

6 - Obra citada em nota 4, 112.7 - Ensaio sobre a Resp. Civil do Estado por Actos Legislativos, 86 e ss.

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Para além destes duas fundamentais normas constitucionais - 22º e 271º - outras - algumas já referidas - há dispersas pela Constituição, referidas em Estudo de Maria José Rangel de Mesquita, na obra coordenada pelo Prof. Fausto de Quadros8, de que se destaca:

1 - Responsabilidade do Estado por privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na Lei: artigo 27º, nº 5. Desenvolvem o regime aplicável os art. 225º e 226º do CPP.

2 - Responsabilidade por danos causados por condenações injustas: artigo 29.°, n.° 6. Interessam aqui os art. 449º e ss, designadamente o art. 462º, todos do CPP.

Nos termos do art. 216º, nº 2, da Constituição, os juizes não podem ser responsabilizados pelas suas decisões, salvas as excepções consignadas na lei. O mesmo se diz no art. 5º da Lei nº 21/85, de 30 de Julho, o E.M.J.

As excepções consignadas na lei são as constantes do art. 1083º do CPC: condenação por crime de peita, suborno, concussão ou prevaricação, casos de dolo, imposição por lei expressa e denegação de justiça.

3 - Responsabilidade por (actos lícitos) requisição e expropriação por utilidade pública - 62º, nº 2, da Constituição.

4 - Responsabilidade por lesão dos direitos dos consumidores (art. 60º), saúde pública (64º), qualidade de vida, ambiente (art. 66º) e património cultural (73º e 78º da Constituição) - .

São conhecidas as leis de defesa do consumidor (Lei nº 24/96, de 31 de Julho, alterada pelo Dec-lei nº 67/2003, de 8 de Abril, comentado por Calvão da Silva, em Compra e Venda de Bens de Consumo), do ambiente (Lei nº 11/87, de 7 de Abril) e de defesa do património cultural (por último, a Lei nº 107/2001, de 8 de Setembro), tendo esta, em conjugação com os art. 308º e 309º, 3, a) do C. P. de 1982 e 213º, nº 1, d) do Cód. de 1995, levado à condenação de particular que destruiu uma estação arqueológica.

5 - Responsabilidade dos titulares de cargos políticos - 117º, nº 1, da Constituição: é a concretização do princípio geral de responsabilidade civil previsto no artigo 22º, na medida em que os titulares dos cargos políticos devem responder civilmente pelos danos causados a terceiros por acções ou omissões praticados no exercício das suas funções e por causa desse exercício, nos termos de qualquer titular de um órgão do Estado ou entidade publica.

Extremamente difícil é definir os termos em que se pode admitir a responsabilidade civil do Estado por actos políticos ou de governo.

Convém começar por precisar que o conceito de acto político não deve ser recortado a partir da lei, mas deve resultar da Constituição. A noção de acto político “há-de encontrar-se na síntese das competências dos órgãos políticos de soberania e das regiões autónomas.

A função administrativa não cobre "actos que definam relações de Direito Constitucional entre os órgãos de soberania. E o mesmo se diga de actos pelos quais o Estado entra em relações de

8 - Resp. Civil Ext. da Administração Pública, Almedina, 1995, 95 e ss.

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Direito Internacional Público com outros Estados”. Em contrapartida, os pretensos restantes "actos de governo" são verdadeiros actos administrativos.

Nos termos do art. 22 CRP, os actos políticos, definidos de acordo com a Constituição, também podem fazer incorrer o Estado em responsabilidade. Deve, no entanto, reconhecer-se que a obrigação de indemnizar do Estado fracassará, em muitos casos, por não verificação dos pressupostos da responsabilidade civil.

Por um lado, não existe, no actual estádio do Direito português, forma de tutela jurisdicional oponível a esta categoria de actos juridico-públicos.

Por outro lado, mesmo que se entenda, com José Carlos Soares, que "da insusceptibilidade de anulação contenciosa não resulta - porque são duas categorias jurídicas absolutamente distintas e independentes - a impossibilidade de exigir responsabilidade por esses actos, quando ilegais e causadores de prejuízos", a ampla discricionariedade na prática de actos políticos reduz enormemente os casos de actuação ilícita.

Por último, numerosos actos políticos são insusceptíveis de violar direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos dos particulares e, nessa medida, os danos que possam causar não têm de ser ressarcidos9.

Há quem pretenda afastar a obrigação de indemnizar por acto ilícito legislativo sempre que a lei é julgada (com efeitos ex tunc - art. 282º da Constituição) inconstitucional porque destruída fica a eficácia da lei inconstitucional desde a data da sua entrada em vigor. Mas não é assim, porque

1. Os efeitos da inconstitucionalidade não se esgotam na desvalorização da conduta inconstitucional. A obrigação de indemnizar é um efeito secundário da inconstitucionalidade.

2. a) O direito de indemnização distingue-se da realização específica do direito ou interesse violado e, por isso, a extinção do direito ou interesse "principal" não impede o nascimento de um direito de indemnização autónomo, desde que se verifiquem os pressupostos específicos da responsabilidade civil;b) A indemnização cobre, não só a falta do próprio bem devido, mas também os outros danos patrimoniais e os danos morais causados pelo facto ilícito.

3. a) - A eficácia ex tunc da decisão de inconstitucionalidade implica a destruição dos efeitos jurídicos da norma legislativa inconstitucional; não elimina, ao invés, o problema da responsabilidade civil do Estado legislador pelos danos causados directamente pela lei, sem dependência de um acto de execução;

b) - A invalidade originária da lei inconstitucional determina a anulação retroactiva dos actos administrativos nela baseados: a Administração deve, na execução da sentença anulatória, reintegrar o direito ou interesse violado ou reconstituir in natura a situação do particular; havendo uma causa legítima de inexecução, o lesado pode exigir uma indemnização que cubra o valor objectivo do bem sacrificado. A restituição do bem devido ou a atribuição de um bem equivalente não repara os outros danos patrimoniais e os danos morais causados pelo acto ilegal e, por isso, não afasta o problema da responsabilidade subjectiva do Estado.

4. - A retroactividade da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral não atinge, em princípio, as situações consolidadas. Mas o direito de indemnização, efeito secundário da inconstitucionalidade, não é posto em causa nos casos em que a lei inválida produz os seus efeitos principais.

5. a) - A limitação dos efeitos de inconstitucionalidade, prevista no art. 282º, nº 4 CRP, mesmo na sua modalidade mais radical de destruição da norma com eficácia ex nunc, não afecta, em princípio, a responsabilidade civil do Estado pelo ilícito legislativo;

b) - Todavia, o interesse público de excepcional relevo pode exigir a limitação do direito à reparação dos danos causados por uma lei inconstitucional. Esta limitação é compatível com a natureza do direito de indemnização, direito fundamental de natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias;

9 - Rui de Medeiros, op. cit., 125.

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c) - A possibilidade de limitar a indemnização dos danos causados por actos legislativos contrários à Constituição vale igualmente no domínio da fiscalização concreta, difusa ou concentrada. O art. 282º, nº 4, CRP permite, assim, ultrapassar os receios de que a admissibilidade duma responsabilidade do Estado legislador se tome um encargo insuportável para as finanças públicas.

Veja-se, a propósito desta matéria, o Ac. do STJ, no BMJ 499-323, acima referido.

Sobre pressupostos da obrigação de indemnizar por actos legislativos formula o Autor que vimos citando as seguintes

CONCLUSÕES

1 - Pressupostos da responsabilidade civil do Estado por actos legislativos são, nos termos do

art. 22 CRP, o facto ilícito, a culpa do legislador e o dano indemnizável.

2. a) - O facto ilícito não equivale à existência de uma lei inconstitucional.

b) - Por um lado, o dever jurídico violado pode constar de normas infracons-

titucionais. c) - Por outro lado, não basta a inconstitucionalidade (ou ilegalidade) para estar

verificado o pressuposto da ilicitude.Assim, desde logo, não há facto ilícito legislativo nos casos de inconstitucionalidade (ou

ilegalidade) superveniente: a essência do ilícito civil está na acção e o legislador, no momento em que aprova a lei, não viola nenhum dever jurídico a que esteja adstrito.

Além disso, a ilicitude, pressuposto da responsabilidade civil, não se reconduz à violação de qualquer norma jurídica em vigor no momento da prática do facto: o facto ilícito pressupõe a violação de um direito ou interesse legalmente protegido dos particulares, independentemente de terem ou não natureza patrimonial; a violação de normas orgânicas ou formais também pode constituir um facto ilícito.

d) - Se ilicitude não é sinónimo de inconstitucionalidade (ou de ilegalidade), a verdade é que pressupõe a violação de uma disposição ou princípio constitucional (ou infraconstitucional). Da decisão do tribunal que concede uma indemnização, porque considera a lei inconstitucional (ou ilegal), cabe recurso para o Tribunal Constitucional, nos casos e nos termos previstos pelo art. 280 CRP.

3. a) - A análise da culpa nos vários domínios em que opera a responsabilidade civil revela que a crescente objectivação da culpa facilita a formulação de um juízo de reprovação mas não equivale à consagração de uma responsabilidade objectiva: a culpa continua a pressupor que o autor do facto ilícito, em face das circunstâncias concretas da situação, podia e devia ter agido de outro modo.

b) - Não se podem aceitar as concepções que sustentam que a inconstitucionalidade consubstancia in re ipsa a culpa. Tão-pouco se aceitam as afirmações de que só em hipóteses excepcionais haverá culpa do legislador. c) - Verifica-se a culpa do legislador quando este podia e devia ter evitado a aprovação da lei inconstitucional. Há casos nítidos em que a aprovação da lei inconstitucional não é censurável, mas, em contrapartida, são frequentes os erros indesculpáveis do legislador.

4. - O artigo 22º da Constituição garante o direito à reparação de todos os danos patrimoniais danos emergentes e lucros cessantes resultantes da violação ilícita de qualquer direito ou interesse legalmente protegido do particular, bem como, no caso de violação dos direitos, liberdades e garantias, o direito à compensação dos danos não patrimoniais sofridos pelo lesado.

5. a) - A ideia de que a lei não pode causar danos é inaceitável. Não admira, por isso, que a controvérsia se centre hoje na questão de saber se os danos imputáveis ao legislador são apenas os que decorrem directamente da lei ou igualmente os que resultam da concretização da norma legislativa inconstitucional.

b) - O problema da imputação ao Estado legislador dos danos causados por actos de aplicação de uma lei inconstitucional depende, em última análise, da existência de um nexo de

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causalidade entre o facto ilícito e o dano. Tudo se resume à questão de saber se, para o Direito, o acto de aplicação da lei é consequência da conduta do legislador e, nessa medida, se esta é causa dos danos suportados pelos particulares.

c) - Nos casos em que os órgãos e agentes administrativos são obrigados a cumprir a norma inconstitucional, a aprovação da lei contrária à Constituição é, seguramente, causa adequada dos danos que resultam imediatamente da execução da lei e a obrigação de indemnizar só poderá recair sobre o Estado legislador.

d) - Nos casos em que a entidade administrativa executa uma lei inconstitucional, apesar de a lei não ser obrigatória, actua ilicitamente e, havendo culpa, será responsável, em forma solidária com o autor material do facto ilícito. Mas, frequentemente, conseguir-se-á também demonstrar que, no caso concreto, a execução da norma legislativa nula (ou inexistente) constitui uma consequência previsível do comportamento do legislador e, por conseguinte, poder-se-á igualmente admitir uma responsabilidade civil do Estado por actos legislativos.

6. a) - A doutrina e a jurisprudência admitem, por vezes, que o Estado não é obrigado a indemnizar os danos causados por actos praticados em violação de normas orgânicas ou formais, porque ele poderia ter causado o mesmo dano através de uma actuação conforme com a Constituição e as leis.

b) - Ora, esta questão reconduz-se, no fundo, ao problema da relevância negativa da causa virtual, nos casos em que a causa virtual constitui um facto lícito do lesante.

c) - Para a eventual relevância negativa da causa virtual não basta afirmar que o Estado pode refazer a norma inválida; é necessário que ele aprove, de facto, uma nova norma de conteúdo idêntico à anterior, sem repetir o vício que determinou a invalidade.

d) - Mas a simples reaprovação da lei não exclui necessariamente o direito de indemnização. Há que distinguir: nos casos em que os danos sofridos pelo particular consistem no valor do bem, objecto do direito ou interesse, pode afirmar-se que para exonerar o Estado basta, nos termos gerais, que a nova lei só disponha para o futuro; nos casos em que os danos decorrem da falta de disponibilidade do bem durante o período em que vigorou a norma orgânica ou formalmente inconstitucional, a responsabilidade do Estado pelo ilícito legislativo só é excluída se a nova lei tiver eficácia retroactiva.

Também aqui tem aplicação o disposto no art. 570º do CC, sempre que o lesado concorreu para a produção ou agravamento dos danos: se não recorreu contenciosamente (268º, nº 4), embora o art. 7º, in fine, do Dec-lei nº 48051, seja incompatível com a Constituição na medida em que nega indemnização se o lesado não recorreu ou teve negligente conduta processual.

Ainda nesta parte e no tocante a prisão preventiva ilegal ou a que se seguiu absolvição pode ver-se o Bol. 453-405 (à luz dos art. 27º, nº 5, da Constituição e do C. P. Penal; no caso de revisão de sentença por condenação injusta, regem os art. 29º, nº 6, da Constituição e atinentes daquele Código) e o Ac. de 1 de Junho de 2004, relatado pelo Cons.º Azevedo Ramos, na Col. Jur. (STJ) 2004-II- 80 e 213, com o seguinte sumário (da DGSI):

I - O art. 22 da C.R.P. estabelece um princípio geral de directa responsabilidade civil do Estado.

II - Em alargamento dessa responsabilidade a factos ligados ao exercício da função jurisdicional, para além do clássico erro judiciário, o art. 27, nº 5, da Constituição da República impõe ao Estado, de modo especial, o dever de indemnizar quem for lesado por privação ilegal da liberdade, nos termos que a lei estabelecer.

III - Em cumprimento do preceituado no art. 27, nº 5, da Constituição, o art. 225 do C.P.P. veio regular as situações conducentes a indemnização, por privação da liberdade, ilegal ou injustificada.

IV - A previsão do art. 225, nº 2, do C. P. P. comporta também o acto manifestamente temerário.

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V - A prisão não é injustificada, e muito menos por erro grosseiro, só porque o interessado vem a ser absolvido.

VI - A circunstância de alguém ser sujeito a prisão preventiva, legal e judicialmente estabelecida, e depois vir a ser absolvido em julgamento, sendo então libertado, por não se considerarem provados os factos que lhe eram imputados e que basearam aquela prisão, só por si, não possibilita o direito a indemnização.

VII - O julgamento é realizado em prazo razoável quando é efectuado em prazo consentâneo com a gravidade, a complexidade dos factos e a observância dos prazos legais, sem dilações temporais indevidas»

e que na parte interessante se transcreve:

«A questão a decidir consiste em saber se ao Estado deve ser assacada responsabilidade civil pelos danos sofridos pelo autor, em virtude da prisão preventiva a que foi sujeito.

Vejamos:1. O autor pretende receber do Estado a quantia de 412.007,06 euros (82.600.000$00), como

indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais que sofreu em consequência da manutenção da prisão preventiva a que esteve submetido desde 11-5-97 até 13-7-98, de modo que considera injustificado, por ter sido absolvido, e ainda por o julgamento não ter sido efectuado em prazo razoável.

Baseia o seu pedido, designadamente, na suposta violação dos arts. 22º e 27º, nº 5 da Constituição da República, arts. 5° e 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, art. 9° do dec.-Iei 48.051, de 21-11-67, e art. 225 do C.P.P.

A primeira instância julgou a acção improcedente, por considerar que não assiste ao autor o direito de indemnização pelos danos sofridos com a privação da sua liberdade, no âmbito do invocado processo penal, por não se verificarem os respectivos pressupostos, já que:

- não sofreu prisão preventiva manifestamente ilegal (art. 225, nº 1, do C.P.P10.);- tendo sofrido prisão preventiva, que não foi ilegal, não se mostra que tal prisão se viesse a

revelar injustificada por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia (art. 225, n° 2, do C.P.P.);

- o julgamento foi realizado em prazo razoável.E com razão, diga-se, desde já.

Todos têm direito à liberdade e à segurança - art. 27, n° 1, da Constituição da República Portuguesa.

A liberdade do ser humano é um dos direitos estruturantes da personalidade.Mas como a generalidade dos direitos, o direito à liberdade sofre limitações, quando o seu

exercício colide com outros direitos também estruturantes da sociedade, como seja o direito à segurança.

Surge, assim, um conflito entre o direito à liberdade individual e o direito de perseguição criminal que o Estado deve exercer para salvaguarda dos princípios inalienáveis da defesa e da segurança.

O instituto da prisão preventiva alicerça-se em interesses societários de defesa interna de uma comunidade, que, tornando premente a sua existência no âmbito da repressão e combate ao crime, conflituam com o direito à liberdade pessoal.

Processualmente, encontramo-nos na intersecção de dois interesses processuais que o direito constitucional penal tem de satisfazer: a perseguição e punição dos criminosos e a tutela dos inocentes.

10 - Artigo 225º do CPP – Modalidades 1 – Quem tiver sofrido detenção ou prisão preventiva manifestamente ilegal pode requerer,

perante o tribunal competente, indemnização dos danos sofridos com a privação da liberdade.2 – O disposto no número anterior aplica-se a quem tiver sofrido prisão preventiva que, não

sendo ilegal, venha a revelar-se injustificada por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia. Ressalva-se o caso de o preso ter concorrido, por dolo ou negligência, para aquele erro.

(Redacção que lhe foi dada pelo artigo 1º da Lei nº 59/98, de 25 de Agosto)

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Numa época de assunção do direito à reparação do erro judiciário e da prisão preventiva ilegal, a grande questão que se coloca é a de definir como imputar tal reparação ao Estado.

Pois bem.Dispõe o art. 22 da Constituição da República:"O Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis em forma solidária

com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem".

Por sua vez, o art. 27, nº 5, da mesma Lei Fundamental preceitua:"A privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei constitui o Estado no dever

de indemnizar o lesado nos termos que a lei estabelecer”.

Ora, da conjugação destes normativos constitucionais, pode concluir-se o seguinte:- o art. 22 estabelece um principio geral de directa responsabilidade civil do Estado;- em alargamento dessa responsabilidade a factos ligados ao exercício da função

jurisdicional, para além do clássico erro judiciário, o art. 27, nº 5, impõe ao Estado, de modo especial, o dever de indemnizar quem for lesado por privação ilegal da liberdade, nos termos que a lei estabelecer.

É nestes termos que se mostra instituída uma responsabilidade directa do Estado por actos da função jurisdicional, por lesão grave do direito à liberdade, sendo em cumprimento da injunção final do citado art. 27º, n° 5, da Constituição, que o art. 225 do Cód. Proc. Penal veio regular e definir as situações conducentes a indemnização por privação da liberdade, ilegal ou injustificada.

O citado art. 225 é uma disposição inovadora, sem correspondência no Código de Processo Penal de 1929, de natureza claramente substantiva, apesar de inserida num diploma de carácter adjectivo.

Em anotação ao referido art. 225, escreve Maia Gonçalves (Código do Processo Penal, Anotado e Comentado, 11ª edição, pág. 464) "o disposto neste capítulo sobre indemnização por privação da liberdade ilegal ou injustificada resulta de Convenções a que Portugal aderiu, designada-mente da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, aprovada pela Lei 65/78, de 13 de Outubro, que no seu art. 52, nº 5, dá direito de indemnização a qualquer pessoa vítima de prisão ou detenção em condições contrárias às que nesse artigo se estabelecem, e que a nossa lei interna perfilhou. Resulta ainda do disposto no art. 2, nº 2, aI. 38) da Lei de Autorização Legislativa nº 43/86, de 26 de Setembro".

No nº 1, do art. 225 do C.P.P., prevêem-se as situações de detenção ou prisão preventiva manifestamente ilegais, ou seja, as levadas a cabo por quaisquer entidades administrativas ou policiais, como ainda por magistrados judiciais, agindo estes desprovidos da necessária competência legal ou fora do exercício do seu munus ou sem utilização do processo devido, ou mesmo, quando investidos da autoridade pública do cargo, se hajam determinado à margem dos princípios deontológicos e estatutários que regem o exercício da função judicial ou impulsionados por motivações com relevância penal, como por peita, suborno, concussão, prevaricação ou abuso de poder.

O nº 2, do mesmo art. 225, contempla as situações em que a prisão preventiva tenha cobertura legal, mas venha a revelar-se injustificada por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia (erro de facto relativo aos factos invocados para fundamentar a decisão de determinar a prisão ou de a manter, por não existirem ou não corresponderem à verdade.

Ressalva-se o caso do preso ter concorrido, por dolo ou negligência, para aquele erro.Há erro de facto quando o erro verse sobre qualquer outra circunstância que não a existência

ou conteúdo de uma norma jurídica (erro na interpretação ou ainda sobre a sua aplicação).É comum considerar que há erro grosseiro quando for indesculpável, no sentido de

escandaloso, crasso ou intolerável, em que não teria caído um agente dotado de normal inteligência e circunspecção e que não sucederia a um Juiz minimamente cuidadoso, dotado dos conhecimentos e cuidados técnico-deontológicos médios.

A apreciação dos factos que emolduram a conduta de um arguido sujeita a exame de um Juiz, para efeito de validação ou manutenção da sua prisão preventiva, contém em si própria a possibilidade de erro.

Daí que não seja qualquer erro que legitime a aplicação do art. 225, nº 2.

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Mas não poderá aceitar-se que só caiba no mencionado art. 225, nº 2, o erro tão grosseiramente patenteado que a previsão da norma acabe por nunca ser preenchida.

Por isso, deve entender-se, como já se decidiu no Acórdão deste S.T.J. de 12-10-00 (proferido na revista nº 2321/00, da 2ª secção), que a previsão do art. 225, nº 2, do C.P.P., comporta também o acto temerário, ou seja, "aquele que - perante a factualidade exposta aos olhos do jurista e contendo uma duplicidade tão grande no seu significado, uma ambiguidade tão saliente no seu lastro probatório indiciário - não justificava uma medida gravosa de privação da liberdade, mas sim uma outra mais consentânea com aquela duplicidade ambígua".

O acto manifestamente temerário, ou seja, aquele que as circunstâncias patentemente aconselhavam que tivesse sido substituído por outro, e que, ao ser praticado, lesou gravemente os direitos de personalidade do arguido, também deverá ser considerado englobado no conceito do art. 225, nº 2, designadamente, quando a lesão desses direitos, decorrente daquele acto, salta aos olhos ser desproporcionada em confronto com as vantagens ou desvantagens que ele proporcionou.

Para ser concedida indemnização ao abrigo do art. 225, nº 2, do C.P.P. era ainda necessário que a privação da liberdade tivesse causado ao lesado prejuízos anómalos e de particular gravidade, mas este requisito foi suprimido pela Lei 59/98, que alterou a redacção daquele preceito.

Debruçando-se sobre a constitucionalidade do art. 225 do C. P. P., o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 160/95, de 15-3-95, (publicado no B.M.J., Suplemento, Acórdãos do Tribunal Constitucional, Novembro de 1995 - Abril de 1995, págs. 584 e segs.) também já decidiu:

"... no quadro do mesmo instituto da responsabilidade civil do Estado o art. 22 (da C.R.P.) regula essa responsabilidade em geral, e o art. 27, nº 5 (da mesma L. F.) regula-a para a situação específica de privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei".

E mais adiante:"Como já ficou dito no Acórdão nº 90/84 (do Tribunal Constitucional), trata-se aqui de

situações em que a Constituição deixa deliberada e intencionalmente dependente do legislador - dito de outro modo: em que remete para o legislador - a efectivação de um certo princípio ou do direito por este reconhecido.

Ao fazê-lo o legislador constitucional não apenas atribui ao legislador ordinário um específico encargo, mas, verdadeiramente, lho reserva.

O legislador, portanto, cumpriu a directiva constitucional no nº 1, do art. 225, prevendo aí os casos de detenção ou prisão preventiva manifestamente ilegal e distinguindo no nº 2, os caos em que ela não é ilegal.

Não lhe estava vedado pelo legislador constitucional seguir esse caminho, pois o nº 5, do art. 27 limita-se a prever a privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei, derivando, no plano da responsabilidade civil, por parte do Estado, de actuações lícitas ou ilícitas dos órgãos intervenientes nessa privação da liberdade".

Assim, como a Constituição reserva ao legislador ordinário a tipificação dos casos em que é dever do Estado indemnizar um cidadão que sofreu prisão preventiva fora dos casos previstos na lei, não sofre de qualquer inconstitucionalidade o referido art. 225 do C.P.P., com a interpretação que aqui lhe foi dada.

Não se ignora o diverso entendimento de certa doutrina, que se pronuncia no sentido de que a Constituição confere o direito de indemnização independentemente de culpa e de que o legislador ordinário não pode limitar a responsabilidade do Estado aos casos típicos de prisão preventiva ilegal ou injustificada (Luís Guilherme Catarino, A Responsabilidade do Estado, pela Administração da Justiça, págs. 355 e 380; Rui Medeiros, Ensaio Sobre a Responsabilidade Civil do Estado por Actos Legislativos, pág. 105; João Aveiro Pereira, Responsabilidade Civil por Actos Jurisdicionais, pág. 215).

Mas tal entendimento não tem sido acolhido pela jurisprudência largamente dominante deste Supremo (orientação de que divergiu o Acórdão do S.T.J. de 12-11-98, publicado na Col. Ac. S.T.J., VI, 3º, pág. 112), sendo que encontra apoio na lição de Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa, Anotada, 3ª ed., pág. 187), donde resulta que o art. 225 do C.P.P. interpreta correctamente o sentido do preceito constitucional do art. 27, nº 5 (Ac. S.T.J. de 3-12-98, rev. 864/98, da 2ª secção; Ac. S.T.J. de 11-11-99, Rev. 743/99, da 2ª secção; Ac. S.T.J. de 9-12-99, Rev. 762/99, da 1ª secção; Ac. S.T.J. de 6-1-00, Rev. 1004/99, da 7ª secção; Ac. S.T.J. 4-4-00, Rev. 104/00, da 6ª secção; Ac. S.T.J. de 20-6-00, Rev. 433/00, da 6ª secção; Ac. de 19-9-02, Rev. 2282/02, da 7ª secção; Ac. S.T.J. de 13 -5-03, rev. 1018/03, da 6ª secção; Ac. S.T.J. de 27-11-03, rev. 3341/03, da 7ª secção).

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Consequentemente, face ao disposto nos arts. 27, nº 5 da C.R.P. e 225 do C.P.P., é de concluir não ser de aceitar "a imputação ao Estado, referida ao art. 22 da Constituição (de cuja previsão o art. 27, nº 5, constitui historicamente alargamento), de uma responsabilidade objectiva geral por actos lícitos praticados no exercício da função jurisdicional, em termos de abranger, para além do clássico erro judiciário, a legítima administração da justiça, em sede de detenção e de prisão preventiva legal e justificadamente efectuada e mantida; nem sequer a aplicação, sem outra exigência, nesta hipótese especial, que é a ocorrente, do regime geral ou comum da responsabilidade civil extra-contratual previsto nos arts. 483 e 562 do C. C., como se lê no citado Ac. deste S.T.J. de 27-11-03 (proferido na Rev. 3341/03, da 7ª Secção).

2. Expostos estes princípios, é bom de ver que a acção não podia proceder, em virtude do recorrente não ter provado os pressupostos fixados na lei para a existência do direito de ser indemnizado pelos danos sofridos em consequência da prisão preventiva a que foi sujeito.

Tal conclusão não colide com o princípio da presunção da inocência do arguido, que também não acarreta automaticamente o dever de indemnizar por parte do Estado a todo aquele que, mantido em prisão preventiva, vem, a final, a ser absolvido.

É que não se mostra que a prisão preventiva tivesse sido manifestamente ilegal, nem que tivesse havido erro grosseiro, ou sequer erro temerário, na apreciação dos pressupostos de facto que levaram à sua aplicação e respectiva manutenção até ao julgamento, como resulta dos factos provados e bem se evidencia na sentença recorrida.

A prisão preventiva não é injustificada, e muito menos por erro grosseiro, só porque o interessado vem a ser absolvido (Ac. S.T.J. de 17-10-95, Col. Ac. S.T.J., 1995, 3º, 65).

O juízo de condenação é necessariamente mais exigente que o juízo de indiciação ou acusação.

Apesar dos indícios recolhidos no processo criminal justificarem a prisão preventiva e levarem à suposição do arguido vir a ser condenado, ele não deixa de se presumir inocente - art. 32, nº 2, da Constituição.

Porque assim é, não se fazendo prova cabal dos factos integrantes do crime ou crimes pela qual a acusação foi recebida, o arguido terá necessariamente de ser absolvido.

As circunstâncias que antecederam e acompanharam a prisão preventiva do autor mostram que ela foi formalmente legal, oportuna e justificada, ab initio e até à realização do julgamento, onde veio a ser absolvido.

A prisão preventiva foi apreciada em momentos diferentes, por diversos juízes, cujas decisões foram mesmo objecto de dois recursos para a Relação, onde foi justificadamente mantida.

A absolvição ocorreu não porque tenha sido demonstrada, de forma positiva, a inocência do autor, mas porque não foi feita prova bastante da sua culpa, face ao silêncio a que, na audiência de julgamento, se remeteram os arguidos que anteriormente lhe haviam imputado actividade delituosa.

A Constituição consagra, como direito fundamental do cidadão, o direito à liberdade.Todavia, como já se salientou, não se trata de um direito absoluto e ilimitado, mas antes

sujeito a restrições.Ora, nesta base e desde que observadas as regras constitucionais e legais quanto a tempo e

condições, é evidente que a prisão preventiva não pode fazer nascer o direito a qualquer indemnização.

E, mesmo quando nasça um tal dever indemnizatório, será apenas o que resultar dos termos que a lei estabelecer.

3. Para fundamentar o seu pedido, o autor também alega o facto do processo criminal, em que foi arguido, não ter sido julgado e decidido em prazo razoável, daí resultando a privação da sua liberdade por um período de tempo excessivo.

Mas sem razão.O conceito de prazo razoável decorre directamente da estatuição constitucional do "due

process of law" constante do art. 14, nº 3, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de Nova lorque, que estabelecia que toda a pessoa acusada criminalmente tem direito a ser julgada em processo sem dilações temporais indevidas.

Entre nós, o art. 32, nº 2, da Constituição, também proclama que todo o arguido seja julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa.

Por sua vez, o art. 20, nº 4 da Lei Fundamental consagra: "Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo".

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Tal preceito está relacionado com a previsão dos arts. 5º e 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

O que deve entender-se por prazo razoável?Têm sido ponderados os seguintes critérios, através dos quais se pode materializar o referido

conceito:- circunstâncias do caso, tendo em atenção a complexidade do processo;- comportamento do recorrente e das autoridades com competência sobre o processo;- forma como o caso foi tratado pelas autoridades judiciais e administrativas;- consequências para as partes.

Para se avaliar da razoabilidade do prazo do julgamento, num determinado processo, há sempre que começar por atender aos prazos previstos na lei processual para a prática dos necessários actos.

No caso dos autos, o autor esteve preso preventivamente desde 11 de Maio de 1997 até 13 de Julho de 1998, sendo restituído à liberdade no decurso da audiência de julgamento.

Analisada a sequência dos actos processuais que o elenco dos factos provados evidencia e a necessidade de observância da tramitação legal do processo penal em que o autor era um dos seis co-arguidos e, em especial, dos tramites conexionados com o respeito pelas garantias de defesa das várias pessoas ali arguidas, não pode deixar de concluir-se que, apesar da natural complexidade do processo crime, o mesmo foi tratado com celeridade.

O julgamento foi realizado em prazo razoável, consentâneo com a gravidade, complexidade dos factos e a observância dos prazos legais, sem dilações temporais indevidas.

Improcedem, pois, as conclusões do recurso».

O Ac. do T. Constitucional nº 12/05 pronunciou-se pela não inconstitu-cionalidade do art. 225º do CPC, com votos de vencido. Pela importância do estudo sobre esta questão em especial, e, em geral, sobre a responsabilidade do Estado, transcreve-se a parte interessante:

B) Questão de constitucionalidade10. O recorrente entende que a norma em causa é inconstitucional, e invocando, nesse

sentido, para além de normas de instrumentos internacionais (o artigo 5º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e o artigo 9º, n.º 5, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos), os artigos 22º e 28º, n.º 2, da Constituição.

A alegada violação do artigo 28º da Constituição, sobre prisão preventiva, apenas poderia relevar, porém, no contexto da análise da legalidade dessa prisão – e não já, como se disse, para a questão da conformidade constitucional do n.º 2 do artigo 225º do Código de Processo Penal (que se refere apenas a prisão preventiva que não é ilegal, mas vem a revelar-se injustificada), ou, sequer, do n.º 1 do artigo 225º do Código de Processo Penal, pois para esta a conclusão sobre a legalidade (manifesta ou não) da prisão preventiva é um dado, relevante para a verificação da sua hipótese.

Pôr-se-á, pois, de lado aquele artigo 28º, como parâmetro de controlo da norma em questão, que é relativa à indemnização por prisão preventiva injustificada, e não às condições para o decretamento ou manutenção da prisão preventiva.

Por outro lado, e apesar da possibilidade de o Tribunal Constitucional atender, na apreciação da constitucionalidade da norma impugnada, a parâmetros diversos dos invocados pelo recorrente – nos termos do artigo 79º-C da Lei do Tribunal Constitucional, importa afastar, como parâmetro de controlo do artigo 225º do Código de Processo Penal, o artigo 29º, n.º 6, da Constituição, que reconhece aos “cidadãos injustamente condenados” o “direito, nas condições que a lei prescrever, à revisão da sentença e à indemnização pelos danos sofridos”. Na verdade, não é esta indemnização por condenação injusta – ou a indemnização em caso de erro judiciário, a que se reporta o artigo 3º do protocolo n.º 7 à Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, de 1984 –, prevista também já na Constituição de 1933 (artigo 8º, n.º 20, para o caso de revisão das sentenças criminais) e, hoje, no artigo 462º do Código de Processo Penal de 1987 (bem como, anteriormente, no artigo 126º, §§ 5º, 6º e 7º, do Código Penal de 1886) que é objecto da previsão do artigo 225º do Código de Processo Penal. Para o caso de revisão de uma decisão condenatória, o artigo 462º do Código de Processo Penal prevê que a sentença deve atribuir “ao arguido indemnização pelos danos sofridos”, paga pelo Estado. Diversamente, o artigo 225º do

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Código de Processo Penal refere-se à privação da liberdade ilegal ou injustificada causada por prisão preventiva (ou por detenção), a qual, como se sabe, constitui uma medida de coacção – a medida de coacção mais gravosa – aplicada no decurso do processo penal (normalmente logo nas fases de inquérito ou instrução), cuja fundamentação pode ser – e normalmente terá mesmo de ser – mais precária do que a da privação da liberdade aplicada em consequência de uma decisão condenatória em pena de prisão, proferida depois do julgamento, no termo de um processo com todas as garantias de defesa.

Para a privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei (sem pressupor já uma decisão de condenação), o legislador constitucional previu, antes, especificamente no artigo 27º, n.º 5, que ela “constitui o Estado no dever de indemnizar o lesado nos termos que a lei estabelecer”. É esta a norma constitucional que é directamente aplicável ao caso dos autos. Isto, porém, sem descurar, igualmente, a possibilidade de confronto, quer com princípios como os do respeito pela dignidade da pessoa humana e do Estado de Direito (artigos 1º e 2º da Constituição), quer com a garantia institucional consagrada no artigo 22º da Constituição, de responsabilidade civil do Estado “por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem.”

Como, porém, se encontra no artigo 27º, n.º 5, da Constituição uma previsão específica para a indemnização por privação da liberdade em processo penal “contra o disposto na Constituição e na lei”, começar-se-á pela apreciação da conformidade do artigo 225º, n.º 2, da Constituição com esta norma.

11. Antes de prosseguir, cumpre, ainda, porém, vincar um ponto que se afigura especialmente importante. É ele o de que não compete ao Tribunal Constitucional decidir qual é o regime da responsabilidade civil do Estado por detenção ou prisão preventiva injustificada que se afigura, em abstracto ou na hipótese dos autos, mais conveniente, ou, sequer, mais justo. Antes lhe cumpre apenas apreciar a conformidade com as normas e princípios constitucionais das soluções normativas sobre a obrigação de indemnização por prisão ou detenção injustificada, ainda que estas soluções possam, aos olhos de alguns ou mesmo de uma maioria, revelar-se menos convenientes ou, até, injustas.

É que, como se sabe, para a previsão e definição de um tal regime torna-se indispensável conciliar exigências de sinal contrário, para cuja avaliação, ponderação e satisfação, estabelecendo os indispensáveis compromissos político-legislativos, é o legislador quem está especialmente legitimado e apetrechado, e não este órgão de fiscalização concentrada da constitucionalidade. Assim, não compete, por exemplo, a este Tribunal decidir a questão, de política legislativa, de saber se a melhor solução é a de serem sempre suportados pelo Estado os danos resultantes de uma prisão preventiva cuja falta de justificação apenas se possa vir a revelar ex post – mas apenas se é exigida pela Constituição uma tal solução (aliás, também não excluída pela decisão recorrida, que se limitou a concluir que o recorrente não provou os pressupostos exigidos pelo artigo 225º do Código de Processo Penal). A ponderação de valores, a realizar para a decisão de política legislativa – questionando se a prisão preventiva de quem não veio a ser condenado pode ser justificada pelo interesse geral, e, designadamente, ajuizando sobre a conveniência de critérios como o da fonte dos indícios da prática de um facto criminoso (ou da sua aparência) –, não compete, pois, a este Tribunal, o qual apenas concretiza o quadro constitucional no qual tal ponderação (por natureza de política legislativa, e a realizar por órgãos legitimados e apetrechados para tal) se há-de realizar. E não é de excluir que, perante a solução final encontrada, se possa afirmar que outra melhor, ou até mais justa, seria pensável, tendo-se, porém, antolhado aquela solução (por exemplo, condicionadora da indemnização a certos pressupostos) mais conveniente ao legislador, por razões de segurança, de eficiência ou, mesmo, simplesmente de praticabilidade, sem que esta última seja, logo por esse facto, inconstitucional: podendo não corresponder ao melhor direito, ou ao direito mais justo, não terá, logo por isso, de ser fulminada como “não-direito”, constitucionalmente censurável.

12. O Tribunal Constitucional teve já ocasião de analisar o artigo 27º, n.º 5, da Constituição, confrontando com ele o artigo 225º da Constituição (no caso, o seu n.º 1) e explicitando o sentido e os limites que resultam, para o legislador, da consagração constitucional do dever do Estado de indemnizar o lesado, nos termos que a lei estabelecer, em caso de privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei. Fê-lo no acórdão n.º 160/95 (publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 30º vol., pág. 807), recordando igualmente o que se havia dito anteriormente, no

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acórdão n.º 90/84 (publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 4º vol., pág. 267), e considerando também o artigo 5º, n.º 5, da Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, nos termos seguintes:

«(…)A marcação do confronto passa pela consideração do afastamento do artigo 5º, n.º 5, da

Convenção Europeia dos Direitos do Homem (“Qualquer pessoa vítima de prisão ou detenção em condições contrárias às disposições deste artigo tem direito a indemnização” – é o seu texto), que o recorrente invoca, pois, como regista o Ministério Público, nada aditando aquela Convenção ao que já consta da Constituição, no seu artigo 27º, não interessa apreciar, no recurso de constitucionalidade, como é este, a eventual desconformidade entre norma de direito interno – aquele n.º 1 do artigo 225º – e a aludida Convenção.

Diga-se, em todo o caso, que a alínea c) do n.º 1 do mesmo artigo 5º da Convenção consente que qualquer pessoa seja presa ou detida “a fim de comparecer perante a autoridade judicial competente, quando houver suspeita razoável de ter cometido uma infracção, ou quando houver motivos razoáveis para crer que é necessário impedi-lo de cometer uma infracção ou de se pôr em fuga depois de a ter cometido”, o que cobre claramente as situações de prisão preventiva, em termos, aliás, menos rigorosos que os consagrados nos artigos 27º, n.º 3, alínea c), e 28º da nossa Constituição, pelo que, neste ponto, não é possível ofender aquela Convenção sem simultaneamente ofender a Constituição da República Portuguesa.

Por outro lado, o n.º 5 do artigo 27º desta Lei Fundamental garante indemnização por privação por liberdade contra o disposto “na lei”, e, para este efeito, a aludida Convenção cabe neste conceito de “lei” (neste sentido, cfr. Ireneu Cabral Barreto, “Nota sobre o Direito à Liberdade e à Segurança”, na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 2, fascículo 3, págs. 443 e seguintes, em especial pág. 473).

E a mesma marcação passa ainda pela consideração do afastamento do artigo 22º da Constituição, que, conjugando-se com o artigo 271º, consagra o princípio da responsabilidade civil do Estado e demais entes públicos, ponto em que o Ministério Público, nas suas alegações, se afadiga em demonstrar que o âmbito normativo-material daquele artigo 22º “não abrange a responsabilidade por actos lícitos da função jurisdicional” e não é, por isso, com base nele que “há que apreciar a constitucionalidade da norma questionada”.

É que, contrariamente ao trajecto seguido pelo Ministério Público, com judiciosas considerações, não é caso de chamar à colação a norma do artigo 22º da Constituição, desde logo porque o recorrente não o faz no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade nem nas conclusões das suas alegações, sendo meramente pontual e episódica no texto das mesmas alegações a referência àquela norma e ao regime constante do Decreto-Lei n.º 48051, de 21 de Novembro de 1967.

Depois porque, mesmo na óptica do artigo 79º-C, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, aditado pelo artigo 2º da Lei n.º 85/89, de 7 de Setembro, nunca seria caso de aferir a violação de tal norma pelo questionado n.º 1 do artigo 225º do Código de Processo Penal, pois se aí se consagra, em geral, o princípio da responsabilidade civil do Estado e demais entes públicos, “por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício”, também no artigo 27º, n.º 5, da Constituição, se consagra de igual modo o mesmo princípio da responsabilidade civil do Estado, mas por actos de “privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei” (como dizem Gomes Canotilho e Vital Moreira, aí se “consagra expressamente o princípio da indemnização de danos nos casos de privação inconstitucional ou ilegal da liberdade (ex.: prisão preventiva injustificada, prisão ordenada por autoridade judicial sem o ‘processo devido’), o que representa o alargamento da responsabilidade civil do Estado (cfr. art. 22º) a factos ligados ao exercício da função jurisdicional, não se limitando esta responsabilidade ao clássico erro judiciário (cfr. art. 29º-6)” – Constituição anotada, 3ª ed., pág. 187).

No quadro do mesmo instituto jurídico da responsabilidade civil do Estado, o artigo 22º regula essa responsabilidade, em geral, e o artigo 27º, n.º 5, regula-a para a situação específica de “privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei”. Daí que, de forma mais linear, se possa afirmar, como faz o Ministério Público, que não é com base naquele artigo 22º que “há que apreciar a constitucionalidade da norma questionada”, na medida, em que a hipótese sub judicio se localiza no plano de uma “privação da liberdade”, sofrida pelo recorrente.

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12. Feita, assim, a redução da controvérsia presente ao confronto entre o n.º 1 do artigo 225º do Código de Processo Penal e o n.º 5 do artigo 27º da Constituição, é bem de ver desde logo que este Tribunal Constitucional já se debruçou sobre esta norma constitucional.

E fê-lo nos termos que se seguem, quando ainda não era conhecido, nem estava em vigor aquele n.º 1 do artigo 225º:

“Simplesmente, ainda que em último termo deva entender-se que o princípio da responsabilidade do Estado consignado no artigo 27º, n.º 5, não pode efectivar-se, no tocante a actos jurisdicionais, enquanto não estiver legislativamente concretizado, não deixa esse princípio de incorporar o reconhecimento de um verdadeiro direito das pessoas prejudicadas por uma prisão inconstitucional ou ilegal. Ou seja: nesse preceito constitucional não se assina apenas uma tarefa ao legislador (uma ‘incumbência legislativa’); antes simultaneamente se reconhece um ‘direito fundamental’, a cuja efectivação essa incumbência se preordena.

Que é assim, resulta logo do teor do preceito – no qual se impõe ao Estado um ‘dever'’ cujo natural correlato será certamente um ‘direito’; e resulta, bem assim, da sua função ou finalidade normativa específica – pois que está aí em causa, manifestamente, não o reconhecimento de um qualquer objectivo interesse público, mas a tutela de um interesse subjectivado em determinadas pessoas: naquelas que foram concretamente atingidas por uma actuação do Estado que lesou, afinal, o seu ‘direito à liberdade’. Mas que no artigo 27º, n.º 5, da Constituição, se reconhece já um ‘direito’ dos cidadãos é corroborado ainda pela própria inserção sistemático-normativa do preceito no catálogo dos direitos fundamentais – isto é, naquela parte da lei fundamental funcionalmente votada à definição de ‘posições jurídicas subjectivas’ (à definição das ‘estruturas constitucionais subjectivas’, como também se diz), a qual nessa insuprível ‘dimensão subjectiva’ tem a sua marca característica, e a razão da sua especificidade no quadro global da Constituição (cf. sobre o ponto, Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 1983, especialmente pp. 84 e segs).

Significa isto que – continuando a pressupor a inviabilidade da concretização do princípio do artigo 27º, n.º 5, sem uma prévia intervenção legislativa – essa inviabilidade decorre, não da inexistência de um direito, e sim apenas da falta de uma condição da sua exequibilidade; temos já, pois, um direito, só que, não exequível, enquanto a lei não definir ‘os termos’ do seu exercício. Ora essa circunstância assume um decisivo relevo no respeitante à utilidade do prosseguimento do presente recurso” (acórdão n.º 90/84, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 4º vol. 1984, págs. 278/279).

Noutro passo, a propósito da situação de “uma privação ‘inconstitucional’ da liberdade”, que terá sido “produzida por um acto judicial (por acto de um juiz)”, pode ler-se no mesmo acórdão:

“(...) não perderá tal despacho (o acto de um juiz) o carácter de um acto judicial lícito – pois que proferido no uso de uma competência legal (...) e com respeito pelos princípios deontológicos que regem o exercício da função judicial (o que não está posto em causa). É que os recursos judiciais visam apenas o controlo ‘material’ do conteúdo das decisões, e não o controlo ‘funcional’ da conduta dos juízes. Ou seja: visam permitir que a questão contenciosa seja reapreciada por outro tribunal, suposto melhor qualificado ou habilitado para o seu julgamento, mas sem que tal reapreciação afecte a legitimidade ‘funcional’ da decisão do tribunal inferior (observadas que tenham sido as exigências deontológicas antes referidas): este tribunal, tal como o tribunal de recurso, não deixou de exercer a função que constitucionalmente lhe cabe de ‘administrar a justiça’ (artigo 205º) com plena e integral ‘independência’ (artigo 208º), isto é, a função de dizer o direito (tanto que, não fora o recurso, e a sua definição do direito do caso teria adquirido carácter definitivo). A revogação da decisão do tribunal inferior apenas significa que o tribunal de recurso emitiu sobre o facto ou sobre o direito um juízo diverso do daquele (...), e que este segundo juízo vai prevalecer, obviamente, sobre o primeiro” (mas, sendo assim – acrescenta-se ainda no acórdão – “o que teremos é a exigência ao Estado de uma indemnização por danos causados pelo acto de um juiz agindo licitamente em tal veste - ou seja, por um acto lícito do poder público, enquanto ‘poder’ ou ‘função’ judicial” – loc. cit., págs 274/275).

Por seu turno, quanto ao regime de indemnização por privação da liberdade fixado inovatoriamente no Código de Processo Penal vigente – o regime ainda não conhecido na data em

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que foi proferido o citado acórdão n.º 90/84 –, João Castro de Sousa (“Os Meios de Coacção no Novo Código de Processo Penal”, Centro de Estudos Judiciários, Jornadas de Direito Processual Penal – O Novo Código de Processo Penal) escreveu:

“...No Capítulo V do mesmo Título regula o Código a indemnização por privação da liberdade, distinguindo os pressupostos do respectivo arbitramento consoante esta seja ilegal ou injustificada.

O n.º 1 do art. 225º respeita à reparação devida quando a privação da liberdade tiver sido manifestamente ilegal, dando assim cumprimento à injunção constante do n.º 5 do art. 27º da Constituição e ao disposto no n.º 5 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966 e no n.º 5 do art. 5º da Convenção Europeia.

Por sua vez, o n.º 2 do mesmo art. 225º estabelece que a reparação a arbitrar é extensiva aos casos de prisão preventiva formalmente legal mas que se vem a revelar injustificada por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia. Todavia, em tal caso, a indemnização só será arbitrada caso a privação da liberdade tiver causado ao detido prejuízos anómalos e de particular gravidade, consagrando-se assim uma solução análoga à contida no art. 9º do Dec.-Lei n.º 48051, de 21 de Novembro de 1967, relativamente à responsabilidade do Estado pela prática de actos legais ou lícitos.”

E, no Parecer n.º 12/92, do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, de 30 de Março de 1992 (cuja doutrina foi tornada obrigatória para todos os Magistrados e Agentes do Ministério Público através da Circular n.º 5/92 da Procuradoria-Geral da República), concluiu-se:

“1ª A privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei constitui o Estado no dever de indemnizar o lesado nos termos que a lei estabelecer (artigo 27º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa);

2ª Os cidadãos que hajam sofrido detenção ou prisão preventiva manifestamente ilegal têm direito a exigir do Estado indemnização pelos danos decorrentes dessa privação da liberdade (artigo 225º, n.º 1, do Código de Processo Penal);

3ª Os cidadãos que hajam sofrido prisão preventiva legal que se venha a revelar supervenientemente injustificada por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto para que não hajam concorrido com dolo ou negligência, têm direito a indemnização pelo Estado se da privação da liberdade lhes advieram prejuízos anómalos e de particular gravidade (artigo 225º, n.º 2, do Código de Processo Penal);

4ª As causas que não sejam atribuídas por lei a jurisdição especial são da competência dos tribunais comuns (artigos 66º do Código de Processo Civil e 14º da Lei n.º 38/87, de 23 de Dezembro);

5ª Inscreve-se na competência do contencioso administrativo o conhecimento das acções de indemnização intentadas pelos particulares contra o Estado por danos decorrentes de actos de gestão pública (alínea b) do § 1º do artigo 815º do Código Administrativo);

6ª Concretamente, compete aos tribunais administrativos de círculo conhecer das acções referidas na conclusão anterior (artigo 51º, n.º 1, alínea b), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de Abril);

7ª O Estado realiza a actividade que lhe é própria no quadro das distintas funções política ou governamental, legislativa, jurisdicional e administrativa;

8ª O conceito “actos de gestão pública” a que se referem a alínea b) do § 1º do artigo 815º do Código Administrativo e a alínea h) do n.º 1 do artigo 51º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, reporta-se à actividade administrativa stricto sensu do Estado, portanto não incluindo os actos que integram a função jurisdicional;

9ª O conhecimento das acções relativas à indemnização dos danos decorrentes do exercício da função jurisdicional e parajurisdicional a que se reportam as conclusões 2ª e 3ª não compete, pois, aos tribunais administrativos;

10ª Compete aos tribunais comuns de jurisdição cível conhecer das acções de indemnização intentadas contra o Estado por danos decorrentes da prisão preventiva ou detenção ilegais ou da prisão preventiva injustificada.”

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Procedendo à análise do artigo 225º do Código de Processo Penal, e após transcrevê-lo, afirmou-se nesse Parecer.

“É manifesto o que é evidente, inequívoco ou claro, isto é, o que não deixa dúvidas.

Será prisão ou detenção manifestamente ilegal aquela cujo vício sobressai com evidência, em termos objectivos, da análise da situação fáctico-jurídica em causa, como é o caso da prisão preventiva com fundamento na indiciação da prática de um crime a que corresponda pena de prisão de máximo inferior a três anos, e da detenção com base na indiciação de uma infracção criminal apenas punível com pena de multa.

Trata-se da responsabilidade civil do Estado tendente à reparação dos prejuízos derivados de erros judiciários, configurando-se em termos de responsabilidade por actos lícitos.

Contraponto da referida obrigação de indemnizar por parte do Estado é o direito subjectivo dos cidadãos directamente lesados com a privação da liberdade ao ressarcimento.

O prejuízo reparável abrange, à míngua de distinção pela lei e de inexistência de motivação razoável para que o intérprete a ela proceda, a partir do tempo da prisão preventiva ilegal, os danos patrimoniais – emergentes e os lucros cessantes –, e os morais que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito, necessariamente resultantes da privação da liberdade.

O n.º 1 contém normação de amplitude e conteúdo diverso do n.º 2, pois ali prevê-se a privação de liberdade em razão de detenção ou de prisão preventiva, e aqui só em virtude da prisão preventiva.

Os pressupostos de indemnização a que alude o n.º 1 consubstanciam-se na privação da liberdade manifestamente ilegal, na existência de prejuízo reparável e de um nexo de causalidade adequada entre este e aquela.

A obrigação de indemnização – e o correspondente direito – a que se reporta o n.º 2 deste artigo depende, porém, da verificação dos seguintes elementos:

- prisão preventiva injustificada;- motivação na apreciação dos respectivos pressupostos fácticos com erro grosseiro;- não ocorrência para aquele erro do visado por dolo ou negligência;- verificação de prejuízos anómalos e de particular gravidade;- existência de nexo de casualidade adequada entre o dano reparável e a prisão preventiva.

No n.º 2 prevê-se o caso da prisão preventiva haver sido legal, mas posteriormente se haver revelado total ou parcialmente injustificada por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos fácticos.

O erro é o desconhecimento ou a falsa representação da realidade fáctica ou jurídica envolvente de uma determinada situação.

O erro grosseiro é o erro indesculpável, crasso ou palmar em que se cai por falta de conhecimento ou de diligência.

Tendo em consideração que a responsabilidade civil do Estado em apreço deriva de actos lícitos no exercício da actividade jurisdicional, nem todos os prejuízos derivados da prisão preventiva injustificada são reparáveis, mas só os anómalos e de particular gravidade.

A exigência, como pressuposto do direito ao ressarcimento, da anomalia e especial gravidade do prejuízo, aponta no sentido de que só são reparáveis os prejuízos excepcionalmente graves.

Ademais, com a limitação por via negativa do direito à indemnização no caso do arguido haver concorrido de modo censurável do ponto de vista ético-jurídico para o erro de apreciação dos pressupostos fácticos de cominação da prisão preventiva, faz-se apelo à sua acção ou omissão intencional ou culposa no quadro do esclarecimento dos factos relevantes para o efeito.”

13. A partir destes dados, tudo está em saber se a aplicação do n.º 1 do artigo 225º que é feita no acórdão recorrido, com a interpretação nele seguida de que aí se abrangem “não só as prisões ou detenções preventivas manifestamente ilegais levadas a cabo por quaisquer entidades

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administrativas ou policiais, como ainda por magistrados judiciais”, tipificando-se as condições em que estes podem agir ilegalmente, contraria o n.º 5 do artigo 27º da Constituição, quando este se reporta à “privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei.”

E parece que não.Como também ficou dito no citado acórdão n.º 90/84, trata-se aqui de “situações em que a

Constituição deixa deliberada e intencionalmente dependente do legislador – dito de outro modo: em que remete para o legislador – a efectivação de um certo princípio, ou do direito por este reconhecido. Trata-se de princípios relativamente aos quais, atentas as suas implicações e a complexidade da sua concretização, o legislador constitucional entende impor-se uma nova ponderação normativa – complementar da que ele próprio fez, mas da qual não quis tirar (ou permitir que se tirassem) logo todas as possíveis consequências. Ou seja: trata-se de hipóteses em que, pelo facto de a concreta conformação do princípio exigir a consideração de diferentes tópicos ou pontos de vista e uma delicada ponderação de soluções e resultados, a Constituição comete a respectiva incumbência ao órgão primariamente vocacionado e legitimado para a tarefa política de reelaborar e desenvolver a ordem jurídica. O que significa que, ao fazê-lo, o legislador constitucional não apenas atribui ao legislador ordinário um específico encargo, mas, verdadeiramente, lho reserva” - loc. cit., pág. 277.

O legislador, portanto, cumpriu a directiva constitucional no n.º 1 do artigo 225º, prevendo aí os casos de “detenção ou prisão preventiva manifestamente ilegal” e distinguindo no n.º 2 os casos em que ela não é ilegal. Não lhe estava vedado pelo legislador constitucional seguir esse caminho, pois o n.º 5 do artigo 27º limita-se a prever a “privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei”, derivando, no plano da responsabilidade civil, o dever de indemnizar por parte do Estado de actuações lícitas ou ilícitas dos órgãos intervenientes nessa privação da liberdade.

“O artigo 225º do novo Código de Processo Penal interpreta correctamente o sentido da norma constitucional ao estender o dever de indemnização aos casos de prisão preventiva que, não sendo ilegais, se revelaram injustificados por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia e se da privação da liberdade resultaram prejuízos anómalos e de particular gravidade. Haverá, pois, aqui uma responsabilidade directa do Estado por actos da função jurisdicional, por lesão grave do direito de liberdade” – é o entendimento de Gomes Canotilho e Vital Moreira, loc. cit., pág. 188.

De igual modo, não se vê como possa considerar-se violadora da norma constitucional a interpretação que, na tese já acolhida, teria sido seguida no acórdão recorrido, para se fazer aplicação do n.º 1 do artigo 225º, pois, reportando-se este preceito apenas a determinadas situações de prisões ou detenções preventivas manifestamente ilegais quando levadas a cabo por magistrados judiciais, está-se ainda no âmbito normativo constitucional do n.º 5 do artigo 27º.

Mesmo na óptica do recorrente de que “é constitucionalmente bastante para que a prisão preventiva tenha sido objectivamente, a se, contra o disposto na lei”, ou seja, é bastante “uma responsabilidade objectiva e não subjectiva”, a tipificação das hipóteses de “detenção ou prisão preventiva manifestamente ilegal”, quando se trata de actos de magistrados judiciais, como é feito no acórdão recorrido, assim se dando uma interpretação ao n.º 1 do artigo 225º, não briga com a norma constitucional do n.º 5 do artigo 27º. Aqui não se veda ao interprete uma tal tipificação, para alcançar o que é, no plano da privação da liberdade ilegal, atentar “contra o disposto na Constituição e na lei”: “não só as prisões ou detenções (...) levadas a cabo por quaisquer entidades administrativas ou policiais, como ainda por magistrados judiciais, agindo estes desprovidos da necessária competência legal ou fora do exercício do seu múnus ou, mesmo actuando investidos da autoridade própria do cargo, se hajam determinado à margem dos princípios deontológicos e estatutários que regem o exercício da função judicial ou impulsionados por motivações com relevância criminal, v. g. por peita, suborno e concussão.”

Daí que tenha o Supremo Tribunal Administrativo afirmado expressamente a legalidade da manutenção da prisão preventiva do recorrente, movendo-se então no campo de aplicação o n.º 2 do artigo 225º do Código de Processo Penal, por não caber a hipótese sub judicio nos tipos de conduta de privação da liberdade ilegal, à luz da interpretação feita do n.º 1 do mesmo artigo 225º.

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Com o que a “interpretação e aplicação que as instâncias fizeram da norma do n.º 1 do artigo 225º do Código de Processo Penal de 1987 em nada colidiu com o disposto no artigo 27º, n.º 5, da Constituição”, como também conclui o Ministério Público nas suas alegações.»

Concluiu-se, pois, neste aresto, que o artigo 225º, n.º 1, do Código de Processo Penal de 1987 não violava o artigo 27º, n.º 5, da Constituição, sendo esta a única decisão em que o confronto com este parâmetro foi analisado (diversamente, no citado acórdão n.º 116/2002, o Tribunal Constitucional não chegou a tomar conhecimento do recurso, por ter entendido que se não verificavam os respectivos pressupostos).

13. As considerações do aresto transcritas no número anterior são de acompanhar, desde logo, no que se refere à invocação do artigo 5º, n.º 5, da Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais.

Na verdade, este artigo 5º, n.º 5 consagra um direito de indemnização em caso de “prisão ou detenção em condições contrárias às disposições deste artigo”, nas quais se prevê, designadamente, a possibilidade de prisão quando houver suspeita razoável de a pessoa em causa ter cometido uma infracção, ou quando houver motivos razoáveis para crer que é necessário impedi-lo de cometer uma infracção ou de se pôr em fuga depois de a ter cometido, enquanto a Constituição se refere à privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei e prevê, no artigo 27º, n.º 1, alínea b), a possibilidade de prisão preventiva por fortes indícios “de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos”. Ora, ambos os textos limitam-se, pelo menos expressamente, a impor o ressarcimento em caso de falta de justificação formal da privação da liberdade (contrariedade às disposições da Convenção, da Constituição ou da lei), sendo certo que no presente caso o que está em questão é a sua falta de justificação material, por alegado erro de facto na avaliação dos respectivos pressupostos, que se vem a revelar posteriormente.

Pode, pois, dizer-se, que, para o aspecto ora em causa, a norma da Convenção nada acrescenta ao que já consta da Constituição (o mesmo podendo dizer-se do artigo 9º, n.º 5, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, igualmente invocado pelo recorrente). Aliás, atendendo ao seu valor na ordem jurídica interna, as próprias disposições convencionais são de considerar como “lei” (embora a elas correspondam também disposições de direito interno), para efeitos de preenchimento dos pressupostos para reconhecimento da indemnização imposta pela Convenção (neste sentido, o citado acórdão n.º 160/95, citando doutrina – sobre o valor da Convenção Europeia dos Direitos do Homem no direito português, veja-se Rui Moura Ramos, A Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Sua Posição Face ao Ordenamento Jurídico Português, in Da Comunidade Internacional e do seu Direito, Estudos de Direito Internacional Público e Relações Internacionais, Coimbra, 1996, págs. 39 e segs.).

Esta conclusão, relativamente à exigência de um “erro grosseiro” e de um prejuízo qualificado para a indemnização, não é, também, contrariada pela jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Não o é, designadamente, pelas decisões em que se censurou, como inconciliável com o artigo 5º, n.º 5, o entendimento restritivo da regularidade da prisão, exclusivamente em referência ao direito interno (assim, várias decisões relativas ao Reino Unido, entre as quais, por exemplo, o acórdão Brogan, e também, em certa medida, o acórdão Ciulla, pois que neste se discutia o valor relativo da Convenção na ordem interna), tendo aquele Tribunal salientado que aquele artigo da Convenção é respeitado logo que se possa pedir uma compensação por uma privação da liberdade verificada em condições contrárias às enunciadas no artigo 5º, n.ºs 1 a 4, da Convenção. Pressupõe, pois, que tal violação tenha sido provada (assim, por exemplo, a decisão no caso N.C. v. Itália, de 2001), e não proíbe que se exija a prova de um prejuízo pelo demandante (neste sentido, o acórdão Wassink). E também não é contrariada – como se salientou logo na decisão da 1ª instância – pela invocação da presunção de inocência, que estava em causa no acórdão Sekanina (num caso em que, apesar da existência de uma decisão absolutória, o tribunal austríaco ao qual fora dirigido o pedido de indemnização realizou uma apreciação da culpabilidade do demandante, tendo-se decidido que a expressão de suspeitas sobre a inocência, ainda que para efeitos indemnizatórios, depois de uma decisão de absolvição, viola a presunção de inocência), pois a decisão do tribunal a quo baseou-se, no presente caso, simplesmente na falta de prova dos requisitos de que dependia a indemnização, e não em quaisquer considerações sobre a inocência ou a

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culpabilidade do demandante. Antes foi logo a 1ª instância a preocupar-se em afirmar expressamente que a inocência do demandante era “inquestionável”, e que “não ocorre apenas após o acórdão do Supremo Tribunal, mas que se mantém desde o início de todo o processo”; simplesmente, não “basta no entanto essa inocência, já que nos termos da lei à qual os Tribunais devem obediência, só recairia sobre o Estado a obrigação de indemnizar o Autor se se verificassem os requisitos imperativos enunciados.”

14. Pode igualmente dizer-se, em segundo lugar, que a convocação do artigo 22º da Constituição não conduz a solução diversa da que resulta da consideração do seu artigo 27º, n.º 5, como se disse igualmente no citado acórdão n.º 160/95.

É certo que não se encontra, nas alegações do presente recurso, referência àquele artigo 22º da Constituição ou ao paralelo com o regime da responsabilidade do Estado por actos lícitos, seja em geral, nos termos do Decreto-Lei n.º 48051, de 21 de Novembro de 1967, seja em certas hipóteses especiais – como, por exemplo, no caso de expropriação por utilidade pública, nos termos do artigo 62º, n.º 2, da Constituição.

Mesmo considerando, porém, a possibilidade de o Tribunal Constitucional confrontar a norma impugnada com parâmetros constitucionais diversos dos invocados pelo recorrente (nos termos do artigo 79º-C, da Lei do Tribunal Constitucional), e mesmo admitindo que o âmbito normativo daquele artigo 22º possa abranger a responsabilidade por actos lícitos da função jurisdicional – questão que se deixa em aberto –, não se vê, porém, que esta norma imponha uma conclusão no sentido da inconstitucionalidade.

Desde logo, não pode deixar de notar-se que se consagra aí uma garantia de responsabilidade civil do Estado em geral, “por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício” – uma garantia institucional, como salienta a doutrina (assim José Carlos Vieira de Andrade, Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 2ª ed., Coimbra, 2001, pág. 140). Ora, encontra-se na Constituição uma norma – o artigo 27º, n.º 5 – sobre a responsabilidade civil do Estado especificamente pela “privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei”. Independentemente da questão de saber se assim se realiza um alargamento do princípio do artigo 22º a factos ligados ao exercício da função jurisdicional, para além do erro judiciário (assim, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, pág. 187), é seguro que as hipóteses de responsabilidade pela privação da liberdade haverão de ser confrontadas, em primeira linha, com as exigências resultantes do preceito que especialmente o legislador constitucional lhe dedicou – esse artigo 27º, n.º 5. E isto tanto mais quanto, mesmo admitindo a aplicabilidade do artigo 22º a actos jurisdicionais, nele se consagra uma garantia institucional que, como tem sido salientado (assim, J.C. Vieira de Andrade, ob. cit., págs. 141 e 221), admite “um espaço, maior ou menor, de liberdade de conformação legal” pelo legislador, “assegurando a Constituição apenas a preservação da essência da figura contra a sua destruição, desfiguração ou descaracterização”, isto é, a preservação do seu núcleo essencial. É, porém, justamente tal espaço de liberdade de conformação do legislador igualmente o que está em causa, nos mesmos termos, no artigo 27º, n.º 5, da Constituição, pois que este prevê um direito cujo conteúdo é juridicamente moldado, por remissão constitucional, pelo legislador.

Importa, pois, confrontar a norma em causa com este artigo 27º, n.º 5, da Constituição, que é o preceito que directamente comporta a hipótese regulada por aquela norma – assim igualmente se afastando a relevância decisiva de eventuais lugares paralelos sobre a responsabilidade por actos lícitos, quer não limitados a entes públicos e previstos no direito infra-constitucional (e podendo, assim, servir sobretudo para argumentar no plano da indesejabilidade ou incongruência do regime da indemnização por privação da liberdade, que não no da inconstitucionalidade), quer com assento constitucional, como é o caso do artigo 62º, n.º 2, para a expropriação por utilidade pública – cujo paralelismo com a hipótese do artigo 225º, porém, para além de não ser decisivo, se afigura bastante limitado, considerando, designadamente, quer a diversidade das funções do Estado prosseguidas, quer as possíveis divergências quanto à justificação do sacrifício imposto ao lesado (seja por este lhe ter dado causa, seja por a falta de justificação poder ser apenas objectiva ou subjectivamente superveniente).

15. Prevê o artigo 27º, n.º 5, da Constituição o dever do Estado de indemnizar o lesado nos termos que a lei estabelecer, em caso de privação da liberdade contra o disposto na Constituição e

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na lei. Consagra-se aqui um direito cuja conformação é, porém, remetida para o legislador ordinário, deixando a este, pois, um espaço de escolha autónoma da solução adequada, no quadro do exercício das suas opções políticas. Mais, porém, do que um mero espaço para concretização do direito em questão, o legislador constitucional não deixou, porém, a obrigação de indemnização – e, por conseguinte, o correspectivo direito – com os seus pressupostos e conteúdo definidos logo a nível constitucional. Antes devolveu ao legislador a incumbência de construir o conteúdo do próprio direito fundamental em causa. Ora, é claro que, nestes casos, o tipo de controlo de constitucionalidade a efectuar tem de conhecer limites – desde logo, pela diversidade de alcance do parâmetro – mais apertados do que quando está em causa, por exemplo, simplesmente uma lei concretizadora, condicionadora ou restritiva de direitos. Na verdade, no caso do artigo 27º, n.º 5, a intervenção legislativa, mais do que apenas uma concretização ou promoção do direito fundamental (e, assim, do que uma mera regulamentação da fixação da indemnização, na sua forma e quantum), é, por decisão do próprio legislador constitucional, constitutiva e conformadora do seu conteúdo, no exercício de uma liberdade que a Constituição quis deixar às opções de política legislativa.

Assim, é claro que o controlo judicial da conformidade com a Constituição se poderá aqui fazer apenas segundo um critério de evidência (isto é, destinado a apurar se é manifesta a inconstitucionalidade), e, designadamente, apenas quanto ao respeito pelo núcleo essencial do direito assegurado pelo artigo 27º, n.º 5, da Constituição, evitando que ele seja esvaziado ou aniquilado pelo concreto regime conformador.

Consultando a norma em causa – e independentemente do juízo sobre o mérito desta solução, repete-se – verifica-se que ela não diz respeito à privação da liberdade ilegal – ou em violação da Constituição –, isto é, que não prevê uma obrigação de indemnização para a “injustiça” formal, por ilegalidade, da prisão, mas antes um controlo material (para efeitos indemnizatórios) da prisão preventiva: a sua superveniente falta de justificação por erro grosseiro, apesar da legalidade. Isto, mesmo quando possa entender-se que tal sistema de controlo material da justificação da prisão, em termos de impor ao Estado uma responsabilidade pelo risco, é o mais desejável.

Pode, pois, duvidar-se que a Constituição – tal como a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que apenas se refere à contrariedade às disposições sobre a prisão – imponha mais do que um sistema de controlo do respeito pela legalidade (incluindo a constitucional) da prisão preventiva, para efeitos indemnizatórios. E, como é óbvio, se as hipóteses de falta de justificação material da prisão não aparecem contempladas naquele n.º 5, muito menos poderá entender-se que a limitação da indemnização nessas hipóteses afecta manifestamente o núcleo essencial da garantia, ou a desfigura.

Seja, porém, como for quanto à necessidade de estender a obrigação de indemnização também a hipóteses de falta de justificação material da prisão, independentemente da ilegalidade desta, é claro, porém, que a disposição constitucional não afasta a possibilidade de previsão de sistemas condicionadores da indemnização – e não de indemnização automática – por privação da liberdade, que possibilitem tomar em conta as diversas particularidades dos casos em que não tenha existido violação da lei.

Designadamente, se o legislador constitucional se referiu apenas à privação da liberdade em contrariedade à Constituição e à lei, e não à posteriormente verificada falta de justificação da prisão (independentemente da causa pela qual tal falta de justificação só então pode ser constatada), não parece que possa extrair-se do artigo 27º, n.º 5, a imposição de prever um dever de indemnizar sempre que o processo não finde com uma condenação, com fundamento numa comparação entre o juízo provisório sobre a culpabilidade do arguido e o juízo definitivo de absolvição. Esta última opção corresponderá – repisa-se – ao sistema mais desejável, impondo ao Estado, e não ao cidadão, o risco do erro, revelado posteriormente, sobre a justificação da prisão preventiva, risco que naturalmente sobre ele recai no exercício do jus puniendi. Mas não se afigura que ela seja uma imposição constitucional – tal como não é imposta pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem. É antes ao legislador, e não a este Tribunal, que, se o entender, cabe subscrever e impor esse tipo de opções de política legislativa, dentro dos limites constitucionalmente exigidos.

Não parece, aliás, que possa dizer-se que também a garantia institucional de responsabilidade do Estado “por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem” (artigo 22º da Constituição), ainda que seja aplicável a actos praticados no exercício da

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função jurisdicional, seja desfigurada ou descaracterizada, no seu núcleo essencial, pela previsão dos requisitos que constavam do artigo 225º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quanto à exigência de um “erro grosseiro” na actuação do tribunal – isto é, de uma manifesta incorrecção na apreciação dos pressupostos de facto da prisão.

Conclui-se, pois, pela inexistência de violação do artigo 27º, n.º 5, da Constituição pelo artigo 225º, n.º 2, do Código de Processo Penal, na parte em que exige um “erro grosseiro” para atribuição de indemnização por prisão preventiva que, não sendo ilegal, vem a revelar-se injustificada.

16. Alcançada a conclusão precedente em face da norma que o legislador constitucional destinou especificamente à indemnização por prisão preventiva, cumpre ainda notar que essa conclusão não pode considerar-se contrária a outros princípios ou normas constitucionais, que, pela sua amplitude e carácter genérico ou carecido de densificação (ou mesmo pela sua natureza reassuntiva de um conjunto de outras normas constitucionais), comportam diversas soluções do problema que nos ocupa.

É o caso – se não tanto do princípio da igualdade, cuja invocação no presente caso, designadamente, com referência ao desconto da prisão preventiva na pena do condenado, improcede, desde logo, pela falta de comparabilidade entre as situações de desconto numa pena a impor pelo Estado e de surgimento de uma obrigação de indemnização quando não existiu ilegalidade (a diferença, afinal, entre a consideração da prisão para diminuição de um sacrifício a impor e a sua consideração para impor uma nova obrigação ao Estado) – dos princípios do Estado de Direito e da protecção da dignidade da pessoa humana. Estes princípios são também compatíveis com sistemas não automáticos de indemnização por privação da liberdade, que, em caso de respeito pela lei, exijam condições objectivas ou subjectivas para tal ressarcimento.

Isto, sendo de notar, aliás, que a imposição da privação da liberdade, que se vem depois afinal a revelar injustificada, ocorre, justamente, no cumprimento da função do Estado de assegurar o respeito pela legalidade, designadamente com finalidades preventivas (as que justificam a imposição dessa medida de coacção) que, respeitando-se os preceitos legais e constitucionais, se enquadram na actuação do Estado como Estado de Direito, e visando a protecção de bens jurídicos cujo étimo fundante mais profundo é justamente a dignidade da pessoa humana.

Pelo que, concluindo-se pela não inconstitucionalidade do artigo 225º, n.º 2, do Código de Processo Penal de 1987, na parte em questão, há que negar provimento ao presente recurso.

III. Decisão

Com estes fundamentos, o Tribunal Constitucional decide:

a) - Não julgar inconstitucional o artigo 225º, n.º 2, do Código de Processo Penal de 1987, na parte em que faz depender a indemnização por “prisão preventiva que, não sendo ilegal, venha a revelar-se injustificada” da existência de um “erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia”;

b) - Em consequência, negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida, no que à questão de constitucionalidade respeita;

c) - Condenar o recorrente em custas, com 20 (vinte) unidades de conta de taxa de justiça.

Lisboa, 12 de Janeiro de 2005

Paulo Mota PintoBenjamim RodriguesMaria Fernanda Palma (vencida nos termos da declaração de voto junta).Mário José de Araújo Torres (vencido, nos termos da declaração de voto junta)Rui Manuel Moura Ramos

Declaração de voto

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Voto a inconstitucionalidade da interpretação normativa do artigo 225º do Código de Processo Penal questionada.

Reconheço que a Constituição não pode limitar o legislador ordinário quanto ao que ele venha a entender por prisão preventiva manifestamente ilegal e injustificada, na medida em que tais qualificativos dependem dos pressupostos legais da prisão preventiva que são definidos, com alguma amplitude, pelo legislador ordinário. Nesse sentido, do artigo 27º, nº 5, da Constituição, bem como dos preceitos constitucionais que regulam a prisão preventiva, não resulta, esgotantemente, um conceito de prisão preventiva manifestamente ilegal ou injustificada, pelo que não se extrai de tais normas uma exigência absoluta quanto aos limites de tais conceitos, mas apenas, quando muito, um núcleo essencial da ilegalidade ou da “injustificabilidade” da prisão preventiva de acordo com os parâmetros constitucionais.

Daqui resulta que não é óbvio, no plano do sentido das palavras, que uma prisão preventiva seja injustificada ou passe a ser manifestamente ilegal se, apesar de ser ex ante absolutamente legal e fundamentada, o arguido venha a ser absolvido.

Não há uma exigência constitucional do conteúdo de tais conceitos que se imponha ao legislador ordinário. Aliás, o sentido das palavras não é regulável, em absoluto, pela Constituição, mas há-de resultar da definição dos fundamentos da prisão preventiva pelo próprio legislador ordinário.

Assim, também no plano da constitucionalidade não surge como vinculativa uma interpretação lata do teor do artigo 225º do Código de Processo Penal pela via de um conceito pré-estabelecido constitucionalmente de ilegalidade ou de “injustificabilidade”.

É já, porém, uma opção constitucional indiscutível a que se relaciona com a resposta à questão de saber se o artigo 225º do Código de Processo Penal seria inconstitucional por não contemplar todos os casos possíveis em que o arguido venha a ser absolvido (da injustificabilidade da prisão preventiva constatada a posteriori) restringindo, por isso, as hipóteses de indemnização a certas situações determinadas segundo critérios ex ante, independentemente da futura absolvição do arguido.

Deste modo, só também na medida em que a prisão preventiva ilegal ou injustificada seja, exclusivamente, o pressuposto da obrigação de indemnização por parte do Estado é que haverá interferência das exigências constitucionais em tais conceitos.

A constitucionalidade de uma interpretação da norma em causa que não contemple senão a ilegalidade e “injustificabilidade” segundo um juízo prognóstico e técnico é, em primeira linha, sustentada por argumentos extraídos do texto constitucional.

Segundo tais argumentos, o artigo 27º, nº 5, da Constituição, não imporia uma obrigação de indemnização do Estado relativamente à prisão preventiva derivada de factos lícitos, quando o arguido viesse a ser absolvido, remetendo antes para os termos da lei os casos de privação da liberdade contra o disposto na Constituição [artigos 27º, nº 5, alínea b), e 28º]. Por outro lado, a indemnização pela prisão preventiva não poderia ser assimilada pela responsabilidade civil por factos lícitos do Estado que flui do artigo 22º da Constituição, não só porque tal preceito apenas se refere a entidades públicas e seus funcionários ou agentes, o que não abrangeria o exercício da função jurisdicional, mas também porque o artigo 27º, nº 5, é uma norma que especificamente regula a privação da liberdade contra a Constituição e, por isso, regularia em especial esse tipo de situações.

Assim, seguindo esta lógica argumentativa, o artigo 225º do Código de Processo Penal seria a concretização no direito ordinário do artigo 27º, nº 5, desenvolvendo os seus pressupostos, nomeadamente através da figura da prisão preventiva injustificada, que apenas pressuporia uma ponderação deficiente da aplicação de uma medida de coacção excepcional (artigo 28º, nº 2, da Constituição).

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A questão de atribuição de indemnização sobretudo em função da absolvição do arguido estaria, assim, num nível diferente do relativo ao pressuposto da contrariedade da prisão preventiva à Constituição, em que o referido artigo 27º, nº 5, se apoia.

A toda esta argumentação subjaz, porém, um enclausuramento da questão em apreço no preceito constitucional sobre a prisão preventiva.

A questão que este Tribunal, como intérprete dos valores constitucionais, cabe dilucidar é, todavia, a de saber se os danos pelo risco de uma inutilidade da prisão preventiva revelada ex post não devem ser suportados pelo Estado em vez de onerarem, exclusivamente, o arguido. Tal questão não é apenas atinente ao regime dos pressupostos da prisão preventiva e à sua legitimidade, mas antes um problema de justiça no relacionamento entre o Estado e os cidadãos, função de justiça que cabe ao Estado assegurar.

Estamos, sem dúvida, perante um problema de ponderação de valores em que se questiona em que medida e com que consequências é que a privação da liberdade (em prisão preventiva) de quem veio a ser absolvido é justificada pelo interesse geral em realizar a justiça e prevenir a criminalidade. Num outro modo de abordagem, a pergunta fundamental será a de saber se é legítimo exigir-se, em absoluto e sem condições, a cada cidadão o sacrifício da sua liberdade em nome da necessidade de realizar a justiça penal, quando tal cidadão venha a ser absolvido.

Ora, à colocação da questão neste ponto extremo terá que se responder negativamente, isto é, pela não exigência, sem limites, de um tal dever, pelo menos em todos os casos em que a pessoa em questão não tenha dado causa a uma suspeita sobre si própria, mas surja como vítima de uma inexorável lógica investigatória.

Não se tratará porém de um problema de verificação dos pressupostos ex ante da prisão preventiva e de uma avaliação da sua justificação, mas sim, num plano objectivo (e necessariamente ex post), da contemplação da “vitimização” do agente pelo próprio juízo de prognose correcto realizado pelo órgão de justiça penal.

Se o agente não foi, ele mesmo, fonte do risco da aparência de indícios da prática de um facto criminoso não poderá recair sobre si o ónus de suportar todos os custos da privação da liberdade sem qualquer posterior reparação.

Na tradição jurídica portuguesa, esta lógica subjaz ao princípio da indemnização pelo erro judiciário que foi consagrado no Código de Seabra e no artigo 126º, §§ 5º, 6º e 7º, do Código Penal de 1886 (em consequência de revisão de sentença condenatória) e que a Constituição de 1933 manteve (cf. Maria da Glória Garcia, A responsabilidade civil do Estado e demais pessoas colectivas públicas, 1997, p. 24).

Mas é também um afloramento da mesma ideia de ressarcibilidade o que subjaz à exigência da reparação de prejuízos característica do conflito de interesses manifestada no estado de necessidade (artigo 339º, nº 2, do Código Civil) e que preside, obviamente, à responsabilidade civil do Estado por factos lícitos (artigos 22º da Constituição e 8º do Decreto-Lei nº 48.051, de 21 de Novembro de 1967).

Tal contrapartida de uma ponderação de interesses que exige um dever de solidariedade manifesta-se na ordem jurídica como princípio geral, tanto pela exigência de reparação de danos como pelas limitações da própria justificação pelo estado de necessidade aos casos em que seja razoável exigir do terceiro inocente o sacrifício dos seus interesses (artigo 34º do Código Penal).

Esta ponderação não pode deixar de ter raiz constitucional inserir-se numa ordem constitucional de valores e exprimir uma tarefa do Estado Constitucional. Com efeito, se a Constituição admite em certos casos a sobreposição do interesse público ao individual, também tal princípio tem como geral contrapartida a ressarcibilidade da lesão dos interesses e direitos individuais. Assim acontece, de modo muito claro, na expropriação por utilidade pública (artigo 22º, nº 2, da Constituição) e se revela, igualmente, no âmbito da responsabilidade por actos lícitos das

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entidades públicas (artigo 62º, nº 2, e 22º, respectivamente, da Constituição). Manifestações deste princípio surgem, aliás, na jurisprudência dos tribunais superiores relativamente à própria função jurisdicional (cf. o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28 de Abril de 1998).

Tal princípio de reparação das lesões dos direitos individuais sacrificados num conflito de interesses em que o agente sacrificado não provocou a situação de conflito terá de valer inteiramente, por igualdade ou maioria de razão, quando o interesse sacrificado é o direito à liberdade.

São os fundamentos do Estado de Direito baseado na dignidade da pessoa humana que justificarão esta solução - artigos 1º, 2º, e 18º, nºs 2 e 3 da Constituição (cf. sobre a questão no sentido da inconstitucionalidade do artigo 253º do Código de Processo Penal, Rui Medeiros, Ensaio sobre a responsabilidade civil do Estado por actos legislativos, 1992, p. 105 e Luís Catarino, A responsabilidade do Estado pela administração da justiça, 1995, p. 350 e ss.).

Analisada a questão sub judicio nesta perspectiva não poderá ser aceitável um sistema de responsabilidade civil pela prisão preventiva, revelada injustificada ex post, devido à absolvição do arguido, que se baseie apenas na legalidade ex ante da sua aplicação em face dos elementos então disponíveis.

Mesmo a mais perfeita justificabilidade da prisão preventiva numa perspectiva ex ante não pode, em nome do carácter absoluto de uma necessidade processual, sobrepor-se ao direito do arguido - que não deu causa a essa situação por qualquer comportamento doloso ou negligente - a ser reparado dos prejuízos sofridos nos seus direitos fundamentais. Mas, muito menos será aceitável uma restrição da relevância ao erro grosseiro, deixando-se sem qualquer indemnização todos os casos de erro constatável ex ante (eventualmente por um jurista mais sagaz), mas que não atingem uma manifesta evidência.

Não deve, assim, em geral, um juízo provisório sobre a culpabilidade do arguido ser mais valioso do que um juízo definitivo de absolvição, e em particular quando haja erro susceptível de ser ex ante configurado, justificando, em absoluto, os danos sofridos nos seus direitos.

Isso limitaria, do ponto de vista das consequências, o valor da presunção de inocência (artigo 32º, nº 1, da Constituição; cf., nesse sentido, Delmas-Marty, Procédures Pénales d’Europe, 1995, p. 499 e, sobretudo, as decisões do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, nos casos Brogan, Ciulla e Sekanina, respectivamente de 29 de Novembro de 1988, Série A, nº 145-B, de 22 de Fevereiro de 1989, Série A, nº 181, e de 22 de Agosto de 1993, Série A, nº 266-A).

Não há, portanto, uma pura opção de sistema constitucional na reparação dos danos da prisão preventiva pelo legislador ordinário (note-se que o sistema de reparação abrangente é dominante no Direito europeu - cf. Luís Catarino, ob. cit., p. 350 e ss. e Delmas-Marty, ob.cit., p. 498 ss.) sobre aquilo que constitui uma prevalência de interesses de ordem constitucional e aquilo que constitui a expressão de uma função de justiça do Estado de Direito.

Não é, apenas, a interpretação literal do artigo 27º, nº 5, que se equaciona neste problema, mas um conjunto mais amplo de princípios que formam a coerência global do Estado de Direito democrático baseado na dignidade da pessoa humana.

A esta razão de fundo acresce a da inexplicável desigualdade entre aquele que, sendo condenado, viria a ser compensado pelo período em que cumpriu a prisão preventiva, mesmo em caso de perfeita justificabilidade ex ante de tal medida, através do desconto na pena de prisão em que seja condenado, e o arguido absolvido que não obteria qualquer compensação pela privação da liberdade se revelada ex post injustificada.

Maria Fernanda Palma

DECLARAÇÃO DE VOTO

Votei vencido por entender que é inconstitucional, por violação dos artigos 27.º, n.º 5, e 18.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição da República Portuguesa (CRP), a norma constante do n.º 2 do artigo

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225.º do Código de Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro (CPP), enquanto só prevê a concessão de indemnização pelos danos sofridos com a privação de liberdade “a quem tiver sofrido prisão preventiva que, não sendo ilegal, venha a revelar-se injustificada por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia” – única dimensão do preceito que constitui objecto do presente recurso, diversamente do que sucede no processo n.º 350/00, sobre que recaiu o Acórdão n.º 13/2005, desta mesma data, em que também estava em causa a restrição da concessão da indemnização aos casos em que a privação da liberdade tivesse causado ao lesado “prejuízos anómalos e de particular gravidade”, de acordo com a redacção do citado preceito anterior às alterações introduzidas pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, que eliminou este último condicionamento.

Entendo que o artigo 27.º, n.º 5, da CRP, ao proclamar que “a privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei constitui o Estado no dever de indemnizar o lesado nos termos que a lei estabelecer”, não reservou ao legislador ordinário a liberdade de optar entre a concessão, ou não, de indemnização pela privação ilegal da liberdade, mas tão-só a de concretizar os requisitos e condicionamentos da concessão da indemnização constitucionalmente garantida, sempre subordinado ao princípio da proporcionalidade (na tripla perspectiva de proporcionalidade em sentido estrito, adequação e necessidade) e jamais diminuindo a extensão e o alcance do conteúdo essencial do preceito constitucional (artigo 18.º, n.ºs 2 e 3, da CRP).

Ora, como o demonstrou Rui Medeiros (Ensaio sobre a Responsabilidade Civil do Estado por Actos Legislativos, Coimbra, 1992, págs. 105 e 106), “nada, nem na mens legis, nem nos trabalhos preparatórios, permite concluir que o preceito constitucional faça depender a responsabilidade do Estado da existência de culpa”, referindo-se o artigo 27.º, n.º 5, da CRP “apenas à privação de liberdade contra o disposto na Constituição e na lei e, por consequência, confer[indo] o direito à indemnização independentemente da culpa”, pelo que “o artigo 225.º do CPP não pode restringir a obrigação de indemnizar aos casos de privação ilícita e gravemente culposa da liberdade”.

Não cumpre, neste contexto, tomar posição sobre a questão, discutida no âmbito do direito administrativo, de saber se o “erro sobre os pressupostos de facto” é um vício do acto enquadrável na categoria do vício de “violação de lei”, com o argumento de que “a ideia falsa sobre os factos em que se fundamenta a decisão traduz violação da lei” na medida em que esta conferiu os poderes para serem exercidos verificada a existência de certas circunstâncias, que na realidade não ocorrem (neste sentido, Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, vol. I, 10.ª edição, Coimbra, 1982, pág. 504; contra, Diogo Freitas do Amaral, Direito Administrativo, vol. III, Lisboa, 1989, págs. 316 e 317). Mas é seguro que uma privação de liberdade é contrária à Constituição e à lei sempre que for imposta em situações em que a Constituição e a lei a não permitem, seja por “erro de direito” de quem a decretou (por directa infracção de prescrições constitucionais e legais vigentes), seja por “erro de facto” (erro na apreciação dos pressupostos de facto), pois também nesta última hipótese a privação da liberdade acabou por ser decretada numa situação em que a Constituição e a lei a não permitiam. Nesta perspectiva, surge como não inteiramente rigorosa a diferenciação, feita nos dois números do artigo 225.º do CPP, entre prisão “ilegal” (no n.º 1) e prisão “não ilegal” (no n.º 2), já que uma prisão preventiva decretada com base em errada representação dos pressupostos de facto acaba por ser também uma prisão preventiva decretada em situação não permitida por lei e, por isso, neste sentido, “ilegal”.

O fundamento do juízo de inconstitucionalidade que formulo radica em que considero não existir, no caso de danos causados pela privação ilegal (ou injustificada) da liberdade, nenhuma razão constitucionalmente válida para negar o direito de indemnização que seria devido de acordo com o regime geral de responsabilidade do Estado e demais entes públicos por acções ou omissões praticadas pelos titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízos para outrem (artigo 22.º da CRP e Decreto-Lei n.º 48 051, de 21 de Novembro de 1967), regime geral que não restringe esse direito indemnizatório aos casos em que o agente tenha actuado com erro grosseiro.

Não existe nenhuma razão válida para que a indemnização por privação injustificada da liberdade fique condicionada à natureza grosseira do erro cometido pelo agente do Estado, quando essa restrição não existe na indemnização por condenação injusta (condenação que pode não ser em

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pena privativa de liberdade), como resulta do artigo 462.º do CPP, em execução do artigo 29.º, n.º 6, da CRP, e, mais injustificadamente ainda, quando essa restrição não existe no caso de danos causados na propriedade por actos lícitos da Administração, como sucede na indemnização por requisição ou expropriação por utilidade pública (artigo 62.º, n.º 2, da CRP) ou na intervenção e apropriação pública dos meios de produção (artigo 83.º da CRP).

É incompreensível que a ofensa de um bem intimamente ligado à dignidade da pessoa humana, em que se baseia o Estado de direito (artigo 1.º), como é o direito à liberdade (artigo 27.º, n.º 1, da CRP), tenha uma tutela mais débil que a ofensa a bens materiais.

O argumento, por vezes usado para justificar estas restrições do direito à indemnização, da existência de um dever de cidadania, a cargo de todos os cidadãos, que os levaria a ter de suportar privações da sua liberdade e só em casos muito excepcionais teriam direito a ser ressarcidos, “para que não surgissem pedidos de indemnização indiscriminadamente, com o consequente enfraquecimento do instituto da prisão preventiva e o desgaste das respectivas decisões judiciais”, foi proficientemente rebatido por João Aveiro Pereira (A Responsabilidade Civil por Actos Jurisdicionais, Coimbra, 2001, págs. 215 a 219), que justamente salientou a iniquidade de “fazer suportar a um indivíduo, sem qualquer contrapartida, uma prisão sem fundamento válido, geradora de danos graves – mas irrelevantes face ao disposto no artigo 225.º, n.º 2, do CPP –, ainda que em benefício da realização do interesse público geral de eficácia da instrução criminal”, rematando:

“O princípio da repartição dos encargos públicos com a administração da justiça, aflorada neste último preceito da lei penal adjectiva, e o princípio da proporcionalidade na restrição de direitos, liberdades e garantias, consagrado no artigo 18.º da Constituição, impõem que ao lesado seja atribuído um direito de reparação dos danos causados por detenção ou prisão preventiva injusta, quer seja grosseiro ou não o erro verificado na apreciação dos pressupostos da sua aplicação ou manutenção. É certo que, como judiciosamente refere Maia Gonçalves, «os órgãos de polícia criminal e as autoridades judiciárias, por mais zelosos que procurem ser no cumprimento dos seus deveres, estão sempre sujeitos a alguma margem de erro». Porém, desde que para tal desacerto o preso não tenha contribuído (artigo 225.º, n.º 2, in fine), afigura-se-nos excessivo que seja ele a suportar definitivamente as consequências gravosas de actuações erróneas alheias.

O Estado não deverá, pois, nestas situações, deixar de indemnizar o lesado, nos termos dos artigos 22.º e 27.º, n.º 5, da Constituição. Basta, para o efeito, que a privação da liberdade tenha causado danos que, segundo os critérios civilísticos gerais, mereçam ser ressarcidos. Importa, sobretudo, ter presente que a circunstância de a Constituição deixar ao legislador ordinário a tarefa de estabelecer os termos da atribuição do direito de indemnização, por danos causados com prisão ou condenação injustas, não legitima a imposição de restrições tais que signifiquem, na prática, a negação desse direito.”

Subscrevo inteiramente as precedentes considerações, que, aliás, correspondem às soluções legislativas consagradas na generalidade dos países da nossa área civilizacional e se conformam à jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (cf. Luís Guilherme Catarino, A Responsabilidade do Estado pela Administração da Justiça – O Erro Judiciário e o Anormal Funcionamento, Coimbra, 1999, pág. 341 e seguintes; e Catarina Veiga, “Prisão preventiva, absolvição e responsabilidade do Estado”, Revista do Ministério Público, ano 25.º, n.º 97, Janeiro-Março 2004, págs. 31-59).

Pelas razões sumariamente expostas votei no sentido de ser julgada inconstitucional a norma do artigo 225.º, n.º 2, do CPP, enquanto só prevê a indemnização por prisão preventiva injustificada quando o erro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia, erro para cuja ocorrência o preso não concorreu nem por dolo nem por negligência, seja de qualificar como grosseiro.

Mário José de Araújo Torres

Sobre responsabilidade do Estado, em geral, mesmo por actos lícitos, convém ver o Ac. do STJ, de 28.4.98, BMJ 476-137, assim sumariado:

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I - O artigo 22º da Constituição da República Portuguesa abrange a responsabilidade do Estado por acções ou omissões praticadas no exercício da função jurisdicional de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem.

II - O direito de indemnização consagrado no artigo 22º da Constituição está sujeito ao regime dos direitos, liberdades e garantias (artigo 17º da Constituição da República Portuguesa), sendo nessa medida uma norma dotada de eficácia imediata, pelo que directamente aplicável, vinculando as entidades públicas e privadas e não dependendo de lei para poder ser invocado pelo lesado (artigo

18º, nº 1, da Constituição da Replica Portuguesa).III - No que concerne ao prejuízo causado a terceiros pelos órgãos, funcionários e gentes do

Estado ou das demais pessoas colectivas de direito público - responsabilidade extracontratual -

rege o Decreto-Lei nº 48 051, de 21 de Novembro de 1967, cujo regime é aplicável ao pedido de indemnização por actos praticados por órgãos do Estado, nomeadamente pelos tribunais.

IV - Nesta área de actividade de gestão pública, o Estado e as outras pessoas colectivas públicas respondem civilmente perante terceiros pelas ofensas dos direitos ou das disposições legais destinadas a proteger os seus interesses resultantes, não só de actos ilícitos culposamente praticados pelos respectivos órgãos ou agentes administrativos no exercício das suas funções e por

causa desse exercício (artigo 2º, nº 1, do Decreto - Lei nº 48 051), como também de factos lícitos praticados em idênticas circunstâncias (artigo 9º, nº 1, do mesmo diploma legal).

V - O meio processual adequado para formular o pedido de indemnização a título de desvalorização de viatura apreendida em processo crime e declarada perdida a favor do Estado, mas cuja restituição foi posteriormente ordenada, não é a acção cível, mas sim recurso aos mecanismos

previstos nos artigos 11º e 13º do Decreto-Lei nº 31/85, de 25 de Janeiro, onde é facultada aos eventuais lesados a possibilidade de composição judicial do litígio no próprio processo onde foi decretada a apreensão.

VI - Independentemente dessa desvalorização pode entender-se que a privação da viatura durante o período de apreensão implica, nos dias de hoje, para o seu proprietário, encargos ou prejuízos que, sendo considerados especiais ou anormais, envolvem a obrigação de indemnização por parte do Estado, a título de responsabilidade civil pela prática de actos lícitos, nos termos do

disposto pelos artigos 22º da Constituição da República Portuguesa e 9º, nº 1, do Decreto-Lei nº 48 051, de 21 de Novembro de 1967.

Está em discussão proposta de lei sobre responsabilidade civil extracon-tratual do Estado e demais pessoas colectivas públicas de que vai cópia.

Sobre responsabilidade civil emergente de acto médico pode ver-se os Ac. do STA, de 23.4.96 e 17.12.96, referidos em nota no BMJ 485-155 e cópia das notas da conferência do Prof. Costa Andrade, no âmbito de curso semelhante, na Universidade Portucalense, em 15.1.2003.

No Boletim 485, a págs. 173 publica-se Ac. do STA, de 24.3.99, que na parte interessante diz:

Conforme jurisprudência pacífica deste Supremo Tribunal, os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual da Administração por actos de gestão pública correspondem aos da responsabilidade civil de índole privatística, consagrada no artigo 483.° do Código Civil.

Assim, constituem requisitos da obrigação de indemnizar, a cargo das autarquias locais:a) - A prática por esta, através de um seu órgão ou agente, de um acto ilícito (positivo ou

omissivo), no exercício de funções públicas ou por causa delas (ilicitude);b) - Que esse acto lhe seja imputável, a título de dolo ou mera culpa (culpa);c) - Que dele tenham resultado prejuízos (dano).d) - Verificação de um nexo de causalidade entre esse acto e os prejuízos (nexo causal).

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A sentença recorrida considerou verificados in casu todos os referidos pressupostos e con-denou o réu município, ora recorrente, a pagar ao autor a quantia de 221148$00 a título de danos materiais, acrescida de juros desde a citação até integral pagamento, bem como na quantia de 120 000$00, a título de danos morais.

A discordância do ora recorrente em relação ao decidido radica em três pontos:- No montante atribuído a título de danos patrimoniais;- No reconhecimento da existência de danos morais;- Existência de culpa do autor na produção do acidente.

As partes estão, pois, de acordo relativamente à conduta ilícita do réu.Com efeito, incumbe ao réu, por força das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 28.º da

Lei n.º 2110, de 19 de Agosto de 1961, 46º, n.º 1 e 3, 151º, nº 1, alínea h), e nº 4, alíneas a) e e), do

Decreto-Lei nº 100/84, de 29 de Março, e ainda do artigo 3º, n.os 1 e 3, do Código da Estrada, então vigente, o dever de zelar pela conservação e reparação das estradas a seu cargo, para bem da respectiva segurança e comodidade de circulação, bem como sinalizar de forma visível todos os locais que possam oferecer perigo para a circulação rodoviária.

Ora, resultando provado dos autos que existia na faixa de rodagem um buraco com cerca de 1 m de diâmetro e cerca de 20 cm de profundidade, que não estava sinalizado, por causa do qual já haviam ocorrido anteriormente vários acidentes [n.os 3), 4) e 6) da matéria de facto], é indubitável a verificação do requisito da ilicitude, por violação dos deveres de manter as vias nas devidas condições de segurança e no de sinalizar os obstáculos nelas existentes (cfr. artigo 6º do Decreto-Lei

nº 48 051, de 2l de Novembro de 1967).E, face à definição ampla de ilicitude constante do citado artigo 6º do Decreto-Lei nº 48 051,

torna-se difícil estabelecer uma linha de fronteira entre os requisitos da ilicitude e da culpa, de tal modo que estando em causa a violação de deveres como os acima referidos, violação essa que se manifesta através de uma conduta omissiva ilegal, o elemento culpa dilui-se na ilicitude, isto é, a culpa assume o aspecto subjectivo da ilicitude que se traduz na culpabilidade do agente, ainda que no caso em apreço não seja possível a sua individualização, tratando-se da chamada culpa de serviço ou culpa administrativa - cfr. acórdãos deste Supremo Tribunal Administrativo de 10 de

Março de 1988, recurso nº 25 468, de 27 de Setembro de 1994, recurso nº 33 992, e de 17 de

Dezembro de 1996, recurso nº 38 481.Deste modo, os factos provados são suficientes para preencher os requisitos da ilicitude e da

culpa.Alega, porém, o recorrente, a este respeito, que o autor «foi o maior culpado, senão o único

culpado, na produção do acidente», pois «tinha obrigação de avistar o buraco e, se tal não sucedeu, foi porque conduzia sem a diligência a que era obrigado ou não teve a perícia, a que também era obrigado, para evitar cair nele com o seu veículo».

Todavia, dos factos provados não resulta qualquer elemento donde se possa concluir a falta de diligência ou a imperícia do autor, ou que a velocidade de 50 km/hora fosse excessiva para o local ou que o buraco em causa fosse visível por forma a que um condutor normal, naquelas circuns-tâncias, pudesse evitar o acidente.

Por outro lado, de acordo com a corrente maioritária da jurisprudência deste Supremo Tri-bunal Administrativo, é aplicável à responsabilidade civil extracontratual das autarquias locais

por acto ilícito de gestão pública a presunção de culpa estabelecida no artigo 493º nº 1, do Có-digo Civil - cfr., entre muitos, os acórdãos de 16 de Maio de 1996...

Com base nesta presunção, o município responde pelos danos provocados em consequência de acidente de viação ocorrido com veículo automóvel que caiu num buraco existente numa estrada municipal, se não demonstrar que os seus agentes cumpriram o dever de fiscalizar e vigiar de forma sistemática as condições de segurança e de conservação da via, designadamente sinalizando os obstáculos nela existentes, por forma a prevenir acidentes.

Porém, o município ora recorrente não fez qualquer prova de cumprimento dos apontados deveres, antes resultando dos factos provados que já haviam ocorrido outros acidentes no local, por

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causa do buraco existente na via, sem que aquele tivesse, entretanto, tomado qualquer providência para os evitar.

É aplicável à responsabilidade do Estado, autarquias ou pessoas colectivas de direito público em geral o regime do CC em tudo o que não esteja previsto naquele Dec-lei nº 48051 e não colida com os princípios nele acolhidos.

Também se entendeu aplicável a presunção do nº 1 do art. 493º CC (quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel)... estrada ou rua com tampa de saneamento levantada e que danifica automóvel que nela bate) em acção contra a CM de Matosinhos, dona daquela rua no ac. STA, de 29.4.98, BMJ 476-157):

É aplicável a responsabilidade civil extracontratual das autarquias locais por

acto ilícito de gestão pública, a presunção de culpa estabelecida no artigo 493 º nº l, do Código Civil.

Outros casos: Por atrasos de processos - T. Adm. - BMJ 454-423; Resp. por acto legislativo

- BMJ 434-396 - militares saneados; por legislação locatícia - Col. 97-II-91 e BMJ 489-320, atrás vistos; por omissão de legislação - caso do Aquaparque de Lisboa e acidente ali ocorrido - Col. 97-I-107 e RLJ 134-202 e despachantes oficiais.

O STA, em Ac. de 2.5.91, no BMJ 407- 234, entendeu que os exercícios de preparação militar constituem actividade extremamente perigosa.

E em 1999 decidiu assim:

Responsabilidade civil extracontratual da Administração por actos de gestão pública — Falta de sinalização de obstáculos nas vias públicas — Falta do serviço

— Presunção de culpa

I - A responsabilização da Administração por factos ilícitos (acções ou omissões) no âmbito da gestão pública não depende necessariamente da individualização, pelo lesado, dos representantes ou agentes da Administração a quem sejam imputáveis factos ilícitos concretos, podendo também resultar da chamada «falta do serviço», naquelas situações em que os danos verificados não são susceptíveis de serem imputados a este ou àquele comportamento em concreto de um qualquer agente administrativo, antes são consequência do mau funcionamento generalizado do serviço administrativo em causa.

II - É aplicável à responsabilidade civil extracontratual das autarquias locais por actos de gestão pública a presunção de culpa consagrada no artigo 493.”, n.” 1, do Código Civil.

III - A sinalização de trabalhos em curso tem primacialmente em vista precaver os condutores da eventualidade do surgimento de viaturas e máquinas em manobras e da presença de trabalhadores nas faixas de rodagem, bem como da possível menor qualidade transitória do pavimento da via, mas não constitui sinalização adequada ao surgimento, a seguir a uma curva, de uma tampa de esgoto de tal maneira sobre-elevada em relação ao pavimento adjacente que o veículo do auto, ao passar sobre essa tampa, nela embateu com a sua parte inferior do que resultou a danificação da caixa de velocidades - S.TA., 7.12.99, BMJ 492-236

Responsabilidade civil extracontratual da Administração Pública (resumo)

1. - Na ordem jurídica portuguesa, a matéria da responsabilidade civil extracontratual da Administração Pública tem assento constitucional.

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Na verdade, o artigo 22º da Constituição, que estabelece o princípio geral da responsabilidade das entidades públicas por danos causados aos cidadãos, dispõe, sob a epígrafe «Responsabilidade das entidades públicas»:

«O Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem.»

Por sua vez, o artigo 271º da Constituição, sob a epígrafe «Responsabilidade dos funcionários e agentes», determina, no n.º 1, que «os funcionários e agentes do Estado e das demais entidades públicas são responsáveis civil, criminal e disciplinarmente pelas acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício de que resulte violação dos direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos, não dependendo a acção ou procedimento, em qualquer fase, de autorização hierárquica»; segundo o n.º 4, a lei «regula os termos em que o Estado e as demais entidades públicas têm direito de regresso contra os titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes».

2. - A responsabilidade civil extracontratual do Estado no domínio da função administrativa é ainda hoje regulada, nuclearmente, pelo Decreto-Lei n.º 48051, de 21 de Novembro de 1967, que define os termos da responsabilidade do Estado e das demais pessoas colectivas públicas por factos ilícitos culposos, por factos casuais e por factos lícitos.

No que respeita à responsabilidade por factos ilícitos, o Estado responde perante terceiros pelas ofensas dos direitos destes ou das disposições legais destinadas a proteger os seus interesses, resultantes de actos ilícitos culposamente praticados pelos respectivos órgãos ou agentes administrativos no exercício das suas funções e por causa desse exercício (n.º 1 do artigo 2º), ficando com direito de regresso se os titulares do órgão ou os agentes culpados houverem procedido com diligência e zelo manifestamente inferiores àqueles a que se achavam obrigados em razão do cargo (n.º 2 do artigo 2º).

Ainda no campo dos factos ilícitos, o artigo 3º refere-se à responsabilidade dos próprios titulares do órgão e dos agentes administrativos quando excederem os limites das suas funções ou se, no desempenho destas e por sua causa, tiverem procedido dolosamente, sendo, neste último caso, a pessoa colectiva solidariamente responsável com o titular do órgão ou agente (n.º 1); em caso de procedimento doloso, o Estado e as outras pessoas colectivas de direito público respondem solidariamente com os titulares dos órgãos ou agentes respectivos (n.º 2).

A articulação dos artigos 2º e 3º do Decreto-Lei n.º 48 051 com os artigos 22º e 271º da Constituição tem suscitado dificuldades, defendendo-se quer a inconstitucionalidade daqueles artigos11 quer a sua derrogação12

No actual quadro legal, podem configurar-se as seguintes situações13:«a) Responsabilidade exclusiva da Administração (actos praticados com negligência leve);b) Responsabilidade exclusiva da Administração com direito de regresso (actos praticados

com negligência grave);c) Responsabilidade solidária da Administração (actos praticados com dolo);d) Responsabilidade exclusiva dos titulares de órgãos, funcionários ou agentes (actos que

excedam os limites das funções).»

«A exemplo do que acontece no direito civil, são quatro os pressupostos do dever de indemnizar: o facto ilícito, a culpa, o prejuízo e o nexo de causalidade, entendidos de modo idêntico à compreensão que deles é feita no direito civil.»

Consideram-se ilícitos, para este efeito, «os actos jurídicos que violem as normas legais e regulamentares ou os princípios gerais aplicáveis e os actos materiais que infrinjam estas normas e

11 - Rui Medeiros, Ensaio sobre a responsabilidade civil do Estado por actos legislativos; João Caupers, Introdução ao Direito Administrativo.12 - Fermiano Rato, em Dic. Jur. da Adm. Pública13 - Carlos Cadilha, Revista do MºPº, Abril a Junho de 2001, n.º 86, pág. 10.

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princípios ou ainda as regras de ordem técnica e de prudência comum que devam ser tidas em consideração» (artigo 6º).

A apreciação da culpa, nos termos do n.º 1 do artigo 4º do Decreto-Lei n.º 48051, é feita de acordo com o disposto no artigo 487º do Código Civil, ou seja, «a culpa é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso».

Quanto ao prejuízo, que tanto abrange o dano patrimonial como o dano não patrimonial, e no que respeita ao nexo de causalidade, «sempre se entendeu que se deviam aplicar ao caso os princípios gerais do direito civil».

Os artigos 8º e 9º do Decreto-Lei n.º 48051 tratam, respectivamente, da responsabilidade fundada no risco e da responsabilidade por factos lícitos.

3. - Havendo danos decorrentes da actividade de gestão pública14, o Estado responde por eles segundo as normas do Decreto-Lei n.º 48 501 e perante os tribunais administrativos.

O Decreto-Lei n.º 129/8415, de 27 de Abril, que aprovou o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, atribui aos tribunais administrativos de círculo a competência para conhecer das acções sobre responsabilidade civil do Estado, dos demais entes públicos e dos titulares dos seus órgãos e agentes por prejuízos decorrentes de actos de gestão pública, incluindo acções de regresso [alínea h) do n.º 1 do artigo 51º.

No que respeita à competência territorial para as acções relativas a responsabilidade civil extracontratual, o n.º 1 do artigo 55º daquele Estatuto estabelece que devem ser propostas:

a) no tribunal do lugar em que ocorreu o acto se tiverem por fundamento a prática de acto material;

b) no tribunal determinado por aplicação dos artigos 52º a 54º se tiverem por fundamento a prática de acto jurídico;

c) no tribunal da residência habitual do réu, se se tratar de acções de regresso com fundamento na prática de acto jurídico.

As acções propostas pelos particulares para efectivar a responsabilidade civil extracontratual da Administração por danos resultantes de actos de gestão pública são acções condenatórias, que seguem os termos do processo civil de declaração, na forma ordinária, conforme o disposto no artigo 72º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de Julho.

É de notar que a Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 267/85, foi entretanto revogada pela Lei n.º 15/2002, de 22 de Fevereiro, que aprovou o Código de Processo nos Tribunais Administrativos, mas que só entrará em vigor em 1 de Janeiro de 2004. De todo o modo, o n.º 1 do artigo 5º da Lei n.º 15/2002 prescreve que «as disposições do Código de Processo nos Tribunais Administrativos não se aplicam aos processos que se encontrem pendentes à data da sua entrada em vigor» - Parecer da PGR, de 7.6.2003, no DR, II, de 18.7.2003.

Responsabilidade civil do Estado pelo riscoIndemnização

Prejuízo especial e anormal

Parecer da PGR, de 1.9.2004, no DR, II, nº 222, de 20.9.2004:«A nossa ordem jurídica admite que a Administração, a par da responsabilidade fundada

numa culpa que lhe é imputada pelo carácter funcional da actividade ilícita causadora do prejuízo, possa incorrer em responsabilidade sem culpa, fundada no risco originado por coisas, actividades ou serviços excepcionalmente perigosos, segundo o disposto no artigo 8.° do Decreto-Lei nº 48051, de 21 de Novembro de 1961.

14 - Actos praticados pelos órgãos ou agentes da Administração no exercício de um poder publico, ou seja, no exercício de uma função pública, sob o domínio de normas de direito público, ainda que não envolvam ou representem o exercício de meios de coerção» (cf. Ac. do T Conflitos, de 5.11.81, no BMJ 311-195.15 - Ver, adiante, a lei hoje vigente.

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Como salienta Vieira de Andrade, uma das novidades do Decreto-Lei nº 48 051 traduziu-se na consagração, como princípio geral, da responsabilidade pelo risco (objectiva) por parte dos poderes públicos.

De entre os fundamentos avançados pela doutrina para alicerçar a responsabilidade objectiva destaca-se a teoria do risco e o princípio da igualdade perante os encargos públicos.

A complexidade da vida económica e social do Estado moderno justifica a autorização de actividades que em muitas situações acarretam um risco de danos muito superior ao normal, mas essenciais para a vida económica e a colectividade.

Compreende-se, no entanto, que se responsabilizem as pessoas que as exercem perante os danos eventualmente produzidos a terceiros, como uma espécie de contrapartida pelas vantagens auferidas pelo exercício de tais actividades.

Emerge aqui como um imperativo de justiça o princípio geral segundo o qual quem retira vantagens de uma actividade deve correr os riscos inerentes à mesma.

O princípio da igualdade perante os encargos públicos impede que se faça recair de forma desproporcionada sobre determinados cidadãos as consequências graves do desenvolvimento de actividades perigosas mas socialmente relevantes. É que tratando-se de actividades exercidas pela Administração Pública em benefício da colectividade, é justo que seja esta a suportar os prejuízos que daí advierem.

Como ficou dito, a responsabilidade pelo risco ou por factos casuais que se dirige a toda a Administração Pública, isto é, ao Estado e demais pessoas colectivas públicas, tem assento no artigo 8.° do Decreto-Lei nº 48 051.

O artigo 8.° tem o seguinte conteúdo:

«O Estado e demais pessoas colectivas públicas respondem pelos prejuízos especiais e anormais resultantes do funcionamento de serviços administrativos excepcionalmente perigosos ou de coisas e actividades da mesma natureza, salvo se, nos termos gerais, se provar que houve força maior estranha ao funcionamento desses serviços ou ao exercício dessas actividades, ou culpa das vitimas ou de terceiro, sendo nesse caso a responsabilidade determinada segundo o grau de culpa de cada um.»

A lei faz depender a obrigação de indemnizar da verificação de pressupostos positivos e negativos.

Em primeiro lugar, é necessário que, os prejuízos causados sejam especiais e anormais, exigindo-se nexo de causalidade entre tais danos e o funcionamento de serviços excepcionalmente perigosos ou de coisas ou actividades da mesma natureza.

Em segundo lugar, exclui-se a responsabilidade se os prejuízos especiais e anormais forem imputados a casos de força maior estranha ao funcionamento desses serviços ou ao exercício dessas actividades, ou a culpa das vítimas ou de terceiros por interrupção do nexo de causalidade.

O legislador não fixa aprioristicamente qualquer critério orientador do que deva ser considerado «prejuízo especial e anormal» ou mesmo em relação ao que deva considerar-se por «serviços, coisas ou actividades excepcionalmente perigosas».

A especialidade e a anormalidade do dano, exigidas pelo artigo 8º do Decreto-Lei nº 48 051, apresentam-se como conceitos indeterminados que necessitam de urna mediação valorativa na sua aplicação aos casos concretos.

Segundo o Supremo Tribunal Administrativo «terá de ser o julgador a proceder em cada caso a essa qualificação, colocando-se, por abstracção, no momento da prática do facto para, mediante um juízo ex post e ponderadas as circunstâncias em que esta teve lugar, decidir se a fonte geradora dos danos - actividade, coisa ou serviço - se reveste ela mesma de perigo excepcional».

Referindo-se ao papel desempenhado pelos requisitos da anormalidade e da especialidade do prejuízo, referidos nos artigos 8º e 9º do Decreto-Lei nº 48051, Gomes Canotilho pondera que a sua exigência «só pode fundar-se na necessidade de um duplo travão ou limite:

1) Evitar a sobrecarga do tesouro público, limitando o reconhecimento de um dever indemnizatório do Estado ao caso de danos inequivocamente graves;

2) Procurar ressarcir os danos que, sendo graves, incidiram desigualmente sobre certos cidadãos.»

Segundo o mesmo autor, na apreciação dos pressupostos da responsabilidade objectiva, o legislador visou distinguir dois momentos perfeitamente diferenciáveis: «em primeiro lugar, saber se

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um cidadão ou grupo de cidadãos foi, através de um encargo público, colocado em situação desigual aos outros; em segundo lugar, constatar se o ónus especial tem gravidade suficiente para ser considerado sacrifício».

Temos, desta forma, que a especialidade decorre da incidência desigual do prejuízo sobre um cidadão ou grupo de cidadãos. Se a incidência do prejuízo, ainda que grave, atingir a totalidade da população, é seguro não poder falar-se de especialidade.

Se a Administração actua no interesse geral o risco inerente à perigosidade que caracteriza essa actuação e os danos que daí possam advir devem ser suportados por todos os que beneficiam das vantagens dessa actuação, ou seja, pela colectividade no seu conjunto.

Consideração diferente merecem aqueles casos em que os prejuízos afectam determina-das pessoas e não a generalidade dos cidadãos, acarretando para aquelas a imposição de um sacrifício desigual. Nestas situações, o Estado deve suportar o seu ressarcimento em nome do princípio da igualdade perante os encargos públicos e de exigências de equidade aliadas à própria noção de justiça retributiva.

Assim sendo, para que o prejuízo possa qualificar-se como especial terá de se provar que um cidadão ou grupo de cidadãos foi, através de um encargo público, colocado numa situação desigual em relação à generalidade das pessoas.

Do lado do requisito da anormalidade do dano, é preciso ter presente que o prejuízo anormal não equivale propriamente a prejuízo grave. O critério da maior ou menor intensidade do dano anda associado ao da generalidade do mesmo, no sentido de que pode haver danos mais ou menos intensos mas que se estendem a um grande número de cidadãos, ou danos especialís-simos, mas de pequena gravidade.

Por outro lado, em regra, o prejuízo só será anormal se não puder ter-se por incluído no risco inerente à vida em comum.

A ideia é desonerar a Administração nas situações em que estejam em causa pequenos sacrifícios, simples encargos sociais que devam ser considerados normalmente exigíveis como contrapartida dos benefícios emergentes da existência e funcionamento dos serviços públicos. Somente quando o dano exceda os encargos considerados normais exigíveis como contrapartida da existência e funcionamento dos serviços públicos poderá funcionar o instituto da responsabilidade.

Parte-se do princípio de que na sociedade moderna e complexa dos nossos dias, caracterizada pela ampla intervenção do Estado, o cidadão deve suportar determinados ónus ou constrangimentos considerados normais ou contrapartida natural dos benefícios que recebe . Obrigar o Estado a responder por todos os encargos decorrentes da máquina administrativa poderia acarretar delicados e insolúveis problemas financeiros.

Neste sentido, Vieira de Andrade, depois de realçar a consagração, no diploma de 1967, como princípio geral, da responsabilidade pelo risco (objectiva) por parte dos poderes públicos, como uma novidade, logo acrescenta: «percebe-se que tal responsabilidade 'por factos casuais' seja limitada em função da ideia de anormalidade, pois que não era pensável (no país e na época) uma responsabilidade seguradora por parte do Estado».

Os danos indemnizáveis restringem-se, em suma, aos resultantes do funcionamento de serviços administrativos (reeducação de delinquentes, inimputáveis perigosos), coisas (explosivos, energia nuclear) ou actividades (actividades militares, certas actividades policiais) que sejam excepcionalmente perigosas.

Por outro lado, não haverá «responsabilidade por aqueles danos que recaiam genérica-mente sobre todos os cidadãos ou sobre categorias abstractas de pessoas, nem tão-pouco pelos danos que se possam considerar normais dentro do domínio de risco que é próprio da vida em sociedade».

A doutrina exposta sobre os pressupostos da responsabilidade objectiva é a seguida pela jurisprudência, em especial do Supremo Tribunal Administrativo (STA), reiterada em vários arestos.

Com efeito, o STA também entende por «prejuízo anormal aquele que não é inerente aos riscos normais da vida em sociedade, suportados por todos os cidadãos, ultrapassando os limites impostos pelo dever de suportar a actividade lícita da Administração».

Ao exigir-se a anormalidade do dano tem-se em vista eliminar do «conjunto dos danos indemnizáveis, as meras bagatelas, os sacrifícios ligeiros que, sendo custos de sociabilidade, são compensados por outras vantagens proporcionadas pela actuação da máquina estadual e local».

Por prejuízo especial «entende-se o que não é imposto à generalidade das pessoas, mas a pessoa certa e determinada em função de uma relativa posição específica».

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Com o requisito da especialidade, visa-se reservar «o direito à indemnização aos danos que, não sendo generalizados, incidam desigualmente sobre um cidadão ou grupo de cidadãos, provocando uma rotura no princípio da igualdade na repartição dos encargos públicos».

Em síntese, segundo jurisprudência reiterada do STA, «o Estado e demais pessoas colectivas públicas só são sancionados com a obrigação de indemnizar prejuízos que, em função da sua natureza, volume, extensão e actualidade, sejam suficientemente graves e afectem um determinado cidadão ou grupo de cidadãos" impondo-lhes um sacrifício iniquamente desigual em confronto com a generalidade das pessoas».

Por outro lado, os mencionados prejuízos somente relevam se conexionados com «actividades, coisas ou serviços a que ande ligada uma ameaça notável, uma relevante potencia-lidade actual de lesões a terceiros, ou de que resulte a exposição destes a uma situação típica de perigo à qual esteja normalmente inerente uma alta probabilidade de lesão de direitos destes e de causação de danos».

O STA tem feito aplicação destes pressupostos em variadas situações ligadas, por exemplo, a danos emergentes de exercícios de preparação militar.

No Acórdão de 20 de Janeiro de 1977, o Tribunal enquadrou no âmbito do artigo 8º o dano causado pelo lançamento de uma granada que provocou «um incêndio que tomou proporções assus-tadoras e consumiu cerca de 5 ha de mata» de uma determinada herdade.

E, no Acórdão de 4 de Novembro de 1982, «o dano causado pela morte de um transeunte por um tiro disparado por um dos elementos de uma força militar numa operação policial».

Também os prejuízos ocasionados por acidentes resultantes da execução de obras públicas têm sido enquadrados no âmbito da responsabilidade pelo risco.

No seguimento da doutrina tradicional, o STA desde cedo admitiu tratar-se de uma actividade à qual anda associada uma especial perigosidade justificadora, do ressarcimento dos danos causados a título de responsabilidade pelo risco.

Este corpo consultivo também já teve oportunidade de pronunciar-se sobre o alcance do artigo 8º do Decreto-Lei nº 48051.

No parecer n.º 162/80, de 11 de Junho de 1981, concluiu-se que o Instituto Navarro de Paiva, em razão das suas actividades de observação e colocação de menores mentalmente deficientes ou irregulares, era de considerar um serviço excepcionalmente perigoso para os efeitos do disposto no artigo 8º, devendo o Estado responder pelo ressarcimento dos danos produzidos no recheio da casa do director substituto daquele estabelecimento, situada nas próprias instalações, devido a fogo posto por um dos menores internados.

Constitui, aliás, entendimento há muito perfilhado pela doutrina que aos serviços de prisões abertas e de hospitais de alienados é inerente «o risco de causação de prejuízos pela periculosidade dos indivíduos de que eles se ocupam», pelo que os cidadãos lesados na altura de possíveis fugas de presos ou alienados deverão ser ressarcidos pelos prejuízos especiais e graves emergentes da manutenção de um serviço do Estado excepcionalmente perigoso.

Também no parecer n.º 187/83, de 7 de Fevereiro, foi apreciada a situação de um deputado, secretário da Mesa da Assembleia da República, que, à saída de uma sessão parlamentar em que interviera, foi agredido por populares, os quais lhe danificaram a viatura em que seguia. Chegou-se à conclusão que o Estado devia responder pelos danos sofridos pelo deputado em causa, dado tratar-se de uma função que, em determinadas situações de hostilidade para com aquele órgão de soberania, podia ser considerada excepcionalmente perigosa para efeitos do disposto no artigo 8.° do Decreto-Lei nº 48051.

Tendo em conta os dados colhidos pela doutrina e jurisprudência, podemos dizer que o âmbito da responsabilidade pelo risco abrange, designadamente, os danos provocados por acidentes na execução de obras públicas, os resultantes do uso de armas de fogo em pessoas ou bens alheios a operações policiais de manutenção de ordem pública ou captura de criminosos, os causados por explosões em armazéns de munições, em aviões, barcos ou outros veículos de guerra durante treinos ou manobras, os danos causados por delinquentes ou alienados em liberdade vigiada e, bem assim, por menores internados em regime de semiliberdade, e, ainda, os prejuízos provenientes do emprego da energia atómica.

Em todas estas situações, mesmo que não exista culpa, «entende-se que a Administração deve ser responsável, visto que sendo a sua actividade exercida em benefício da colectividade é justo que suporte os prejuízos que daí advierem».

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Os destinatários beneficiários da responsabilidade pelo risco são, naturalmente, os terceiros lesados com o funcionamento dos serviços, coisas ou actividades excepcionalmente perigosas.

Pode questionar-se se estarão também incluídos no seu âmbito os danos sofridos pelos próprios funcionários ou agentes enquanto ao serviço de uma pessoa colectiva pública.

Tendo por referência o direito francês, verifica-se que, originariamente, o instituto cobria a separação dos danos causados pelo funcionamento dos serviços aos seus próprios colaboradores. E ainda hoje a jurisprudência aplica o instituto aos agentes públicos que não beneficiem de regime legal próprio de reparação.

Entre nós, Gomes Canotilho, visando os danos patrimoniais graves sofridos por agentes da ordem em resultado de combate a tumultos e ao terrorismo, pondera que não intervindo «a legislação de invalidez, da responsabilidade em relação aos colaboradores benévolos, dos acidentes de trabalho ou risco profissional, há que reconhecer tratar-se de uma actividade excepcionalmente perigosa, devendo os próprios agentes da ordem ter, como os terceiros, direito ao ressarcimento dos prejuízos especiais e graves sofridos».

Esta orientação foi também seguida por este corpo consultivo no aludido parecer nº 162/80. Ficou aí consignado que o director interino de um estabelecimento de acolhimento em regime de semi-liberdade de menores mentalmente deficientes ou irregulares devia ser equiparado a terceiro para o efeito de ver ressarcidos pelo Estado os danos causados nos seus bens próprios por um menor internado nesse estabelecimento, para efeitos do disposto no artigo 8.° do Decreto-Lei nº 48 051.

Na verdade, afigura-se que esta solução não é contrariada pela cláusula geral inserta no artigo 8.° do Decreto-Lei nº 48 051 e, na ausência de disciplina legal específica, decorrerá do princípio da justiça e da repartição dos encargos públicos que não sejam os próprios agentes a suportar as consequências especialmente graves decorrentes do desempenho de actividades perigosas desenvolvidas em benefício da colectividade.

Finalmente, importa tecer algumas considerações sobre o que deva entender-se por «força maior estranha ao funcionamento dos serviços»;

O conceito de «causa de força maior» é utilizado no direito civil para excluir a responsabilidade pelo risco causada por veículos ou a responsabilidade do devedor pelo incumpri-mento definitivo das obrigações.

A doutrina e, em muitos casos, a própria lei aludem apenas a caso fortuito num sentido lato que compreende ambas as figuras, tanto mais que em matéria de «não cumprimento das obrigações o caso fortuito e o caso de força maior produzem as mesmas consequências exoneratórias».

No entanto, alguns autores tendem a avançar critérios operativos que permitem a distinção entre os dois conceitos.

O caso fortuito, compreendendo inundações, incêndios, a morte, etc., anda associado ao desenvolvimento de forças naturais a que se mantém alheia a acção do homem.

O caso de força maior, nele se incluindo as situações de guerra, prisão, roubo, etc., consiste num facto de terceiro, pelo qual o devedor não é responsável.

Como refere Almeida Costa, «o conceito de caso de força maior tem subjacente a ideia de inevitabilidade: será todo o acontecimento natural ou acção humana que, embora previsível ou até prevenido, não se pode evitar, nem em si mesmo nem nas suas consequências. Ao passo que o conceito de caso fortuito assenta na ideia da imprevisibilidade: o facto não se pode prever, mas seria evitável, se tivesse sido previsto».

Para efeitos de acidentes de trabalho, o nº 2 do artigo 7º da Lei nº 100/97, de 13 de Setembro, declara que só se considera caso de força maior, que exclui o direito a reparação, «o que sendo devido a forças inevitáveis da natureza, independentes de intervenção humana, não constitua risco criado pelas condições de trabalho nem se produza ao executar o serviço expressamente ordenado pela entidade empregadora em condições de perigo evidente».

No direito administrativo, força maior é um facto imprevisível e não querido, uma causa que transforma o agente administrativo em instrumento cego de forças externas irresistíveis.

Marcello Caetano, reflectindo sobre o conceito, a propósito do contrato administrativo, pondera que «caso de força maior é, pois, o facto imprevisível e estranho à vontade dos contraentes que impossibilita absolutamente de cumprir as obrigações».

O mesmo autor aponta como exemplos típicos de força maior os cataclismos (tais como incêndios, os tremores de terra, as inundações, etc.), as greves, os actos de guerra ou de rebelião, etc.

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No parecer nº 39/77 concluiu-se que um incêndio, cujas causas eram ignoradas e que devastou um perímetro florestal, era um facto estranho ao exercício da actividade de gestão pública de defesa e fomento da riqueza florestal do País, constituindo uma causa de força maior. Nesta sequência, o Estado não era «responsável pelo ressarcimento dos danos produzidos pelo fogo no recheio da casa do guarda florestal daquele perímetro, mesmo quando a casa é propriedade do Estado, é o domicílio obrigatório do funcionário e fica localizada dentro da floresta» - Parecer da PGR, de 1.9.2004, no DR, II, nº 222, de 20.9.2004

Nos termos do art. 4º do ETAF – alterado e republicado pela Lei nº 107-D/2003, de 31 de Dezembro,

1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto:

a) Tutela de direitos fundamentais, bem como dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares directamente fundados em normas de direito administrativo ou fiscal ou decorrentes de actos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal;

b) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos emanados por pessoas colectivas de direito público ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal, bem como a verificação da invalidade de quaisquer contratos que directamente resulte da invalidade do acto administrativo no qual se fundou a respectiva celebração;

c) Fiscalização da legalidade de actos materialmente administrativos praticados por quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas, ainda que não pertençam à Administração Pública;

d) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos praticados por sujeitos privados, designadamente concessionários, no exercício de poderes administrativos;

e) Questões relativas à validade de actos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público;

f) Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público;

g) Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa;

h) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes e demais servidores públicos;

i) Responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público;

j) Relações jurídicas entre pessoas colectivas de direito público ou entre órgãos públicos, no âmbito dos interesses que lhes cumpre prosseguir;

l) Promover a prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, ambiente, urbanismo, ordenamento do território, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas, e desde que não constituam ilícito penal ou contra-ordenacional;

m) Contencioso eleitoral relativo a órgãos de pessoas colectivas de direito público para que não seja competente outro tribunal;

n) Execução das sentenças proferidas pela jurisdição administrativa e fiscal.

2 - Está nomeadamente excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto a impugnação de:

a) Actos praticados no exercício da função política e legislativa;b) Decisões jurisdicionais proferidas por tribunais não integrados na jurisdição administrativa

e fiscal;

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c) Actos relativos ao inquérito e à instrução criminais, ao exercício da acção penal e à execução das respectivas decisões.

3 - Ficam igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal:

a) A apreciação das acções de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição, bem como das correspondentes acções de regresso;

b) A fiscalização dos actos materialmente administrativos praticados pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça;

c) A fiscalização dos actos materialmente administrativos praticados pelo Conselho Superior da Magistratura e pelo seu presidente;

d) A apreciação de litígios emergentes de contratos individuais de trabalho, que não conferem a qualidade de agente administrativo, ainda que uma das partes seja uma pessoa colectiva de direito público.

Nos termos do art. artigo 4º da referida Lei nº 107-D/2003, de 31 de Dezembro,

1 - O artigo 9º e o artigo 31º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, com a redacção que lhes é dada pela presente lei, entram em vigor no dia seguinte ao da sua publicação.

2 - As demais disposições contidas na presente lei entram em vigor no dia 1 de Janeiro de 2004.

Sobre a competência material dos T. Administrativos ou T. Judiciais para conhecer de acção por danos por responsabilidade extracontratual do Estado, decidiu o STJ, em 7 de Outubro de 2004, no Proc. 3003/04 – 2ª Secção, Ac. relatado pelo Ex.mo Conselheiro Ferreira de Almeida:

I. Para efeitos de determinação da competência material dos tribunais administrativos, é decisivo o critério constitucional plasmado no art.º 212°, n° 316 da lei fundamental, nos termos do qual compete aos tribunais dessa jurisdição especial o julgamento de acções que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas.

II. Estão excluídos da jurisdição administrativa as questões de direito privado, ainda que qualquer das partes seja pessoa de direito público.

III. Para efeitos da apreciação/avaliação de um certo acto, ou facto, causador de prejuízos a terceiros (particulares) numa ou noutra das categorias (gestão privada/gestão pública) reside em saber se as concretas condutas alegadamente ilícitas e danosas se enquadram numa actividade regulada por normas comuns de direito privado (civil ou comercial) ou antes numa actividade disciplinada por normas de direito público administrativo.

IV. Os tribunais comuns são os competentes para o julgamento de uma acção para efectivação da responsabilidade civil extracontratual de uma empreitada de construção de uma estrada nacional - obra essa adjudicada pelo ICOR (hoje IEP) - cuja causa de pedir se traduz numa conduta alegadamente ilícita e produtora de danos para um terceiro particular directamente lesado.

V. Se um dos segmentos do pedido reclamar em abstracto a intervenção dos tribunais administrativos - tal controvérsia - se meramente “consequente" ou "dependente" da reclamada (e eventual) responsabilidade (directa) da entidade privada adjudicatária/concessionária, perderá a sua autonomia para efeitos de apreciação jurisdicional, assim se perfilando uma hipótese em tudo semelhante à da "extensão da competência” ou de “competência por conexão” do tribunal comum, nos termos e para os efeitos do n° 1 do art.º 96° do CPC .

III - Animais - 502º

16 - … 3. Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.

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Enquanto que o art. 493º presume a culpa do vigilante, o art. 502º consagra a responsabilidade pelo risco de quem utiliza os animais no seu próprio interesse, desde que os danos resultem do perigo especial que envolve a sua utilização, como acontece com mordedura de cão – Col. Jur. 03-I-166 (Relação do Porto, 6.1.2003):

«Conforme art. 493º, nº 1, do CC - com os demais que, sem menção da respectiva origem, vierem a ser citados -, «Quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar e, bem assim, quem tiver assumido o encargo da vigilância de quaisquer animais, responde pelos danos que a coisa ou os animais causarem, salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua».

Por seu turno, nos termos do disposto no art. 502º, sob a epígrafe "Danos causados por animais", «Quem no seu próprio interesse utilizar quaisquer animais responde pelos danos que eles causarem, desde que os danos resultem do perigo especial que envolve a sua utilização».

Como, argutamente, se observa no douto Ac. do STJ, de 13/12/00 (Pinto Monteiro) - Col./STJ, 3º, 170 - «Saliente-se que o referido art. 493º, nº 1, se refere a culpa in vigilando, contemplando os casos em que o dano resulta da não observância do dever de guarda dos animais. Situação diferente é a abrangida pelo art. 502º, em que existe responsabilidade baseada no risco inerente à utilização dos animais. Aqui sim, prescinde-se da culpa, consagrando-se a responsabilidade objectiva».

Em idêntico sentido, aliás, se pronunciou o Ac. desta Relação de 16/01/90 (Eduardo Martins) - Bol. 393º/666), onde foi entendido que «Os danos provocados pelas mordeduras de cão resultam do perigo especial que envolve a sua utilização, não importando indagar da culpa dos danos do cão, já que a responsabilidade deles se baseia no risco»…

E, segundo o sustentado no douto Ac. do STJ de 11/10/94 (Cardona Ferreira) - Col./STJ, 3º/91, «… este é um tipo de responsabilidade pelo risco ou objectiva, cuja concorrência com responsabilidade a título de culpa a generalidade da jurisprudência deste Supremo não tem admitido, a partir da lei vigente e da sua interpretação adequada (arts. 505º e 570º do CC), Profs. Pires de Lima e A. Varela, "Anotado", I, 4ª ed., 517; Prof. A. Costa, "Direito das Obrigações", 4ª ed., 419; Doutrina subjacente e reflectida, v.g., nos Acs. do STJ de 11/12/70 (Bol. 202º/190) e de 05/03/74 (Bol. 235º/253).

Finalmente, impõe-se observar que, conforme defendido no douto Ac. do STJ de 09/03/78 (Rodrigues Bastos), Bol. 275º/191, com anotação concordante do Prof. Vaz Serra (RLJ - Ano 111º/279 e segs.), «Quando a lei se refere ao perigo especial que envolve a utilização dos animais, não quer aludir a um perigo específico…, mas a todas as situações perigosas que resultam dos animais, conforme a sua espécie e modo como são utilizados… O termo "especial", empregado no art. 502º do CC, tem por finalidade esclarecer que o risco há-de variar conforme a espécie dos animais utilizados, e não que, desprezando o risco geral do seu aproveitamento, os utentes deles só respondam por riscos específicos, criados por circunstâncias anormais».

Acórdão do STJ (Cons.º Oliveira Barros), de 17.6.2003, P.º 03B1834:

Sumário: I - O artº. 493º, nº. 1, C. Civ. tem em vista a responsabilidade, fundada na aí estabelecida

presunção de culpa, do efectivo detentor, como é o caso do guardador dos animais, isto é, de quem, - seu proprietário ou não -, enquanto e porquanto na sua efectiva detenção, assume o encargo da vigilância de seres, por sua natureza, irracionais.

II - Como o respectivo início revela, é, por sua vez, na previsão do artº. 502º C.Civ. que cabe a responsabilidade do proprietário dos animais enquanto, independentemente da sua efectiva detenção, utente ou beneficiário das respectivas utilidades; e tal assim em obediência a equitativo princípio do risco: ubi emolumentum, ibi onus - ou, em mais conhecida fórmula, ubi commoda, ibi incommoda.

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III - Previstos no artº. 502º C. Civ. os danos que correspondam ao perigo próprio ou específico da utilização dos animais em causa, a responsabilidade do seu proprietária estabelecida nesse dispositivo não é excluída por caso fortuito ou de força maior, designadamente o constituído por temporal.

IV - O risco previsto nessa disposição legal varia com a espécie dos animais utilizados, havendo, pois, que ter em conta o risco próprio, especial, do rebanho - numeroso - alegadamente assustado.

V - O risco especial que a utilização de animais acarreta e que o artº. 502º C. Civ. contempla em termos de responsabilidade objectiva, - ou seja, como diz o nº. 2 do seu artº. 483º, "independentemente de culpa" -, não é, em todo o caso, apenas o próprio da espécie de animais em questão: visa, pelo contrário, igualmente o risco geral do aproveitamento de animais, resultante - seja qual for a sua espécie - da sua natureza de seres vivos que actuam por impulso próprio.

VI - A limitação constante da parte final do artº. 502º C.Civ. visa apenas excluir os casos em que o dano em questão tanto podia ter sido causado pelo(s) animal(is) como por qualquer outra coisa, nenhuma ligação havendo com o sobredito perigo próprio ou específico da utilização de animais.

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. Os Caminhos de Ferro Portugueses (E.P.) moveram, em 5/5/2000, acção declarativa com processo comum na forma sumária contra A, com vista a obter a condenação do demandado a pagar-lhes indemnização no montante de 2.357.972$00, equivalente a € 11.761,51, com juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.

Invocando o artº. 502º C. Civ., alegaram para tanto competir-lhes, enquanto empresa pública titular da exploração dos transportes ferroviários em todo o território nacional, usar, fruir e conservar todas as infra-estruturas afectas à rede ferroviária nacional, e que em 5/11/97, pelas 23,30 horas, altura em que por essa linha férrea circulava determinado comboio, cerca de 600 ovelhas pertencentes ao Réu se encontravam à solta na via férrea, ao km 149,300 da linha do Alentejo, no sítio de Coitos, Beja, tendo aquele comboio embatido nesses animais. Desse embate advieram indicados danos - nomeadamente decorrentes de avarias na locomotiva, que descarrilou, e na via férrea, da paragem e atrasos na circulação de 5 outros comboios, da supressão de 4, igualmente identificados, e da circulação dum comboio de socorro - cuja indemnização, no total referido, reclamam.

Contestando, o Réu opôs, em suma: - ter-se tratado de noite de violento temporal; ter a inundação do terreno em que se encontravam e a chuva e o vento levado os animais a fugir, destruindo a rede que delimitava o perímetro do redil; - ter o pastor, que se encontrava em habitação adjacente, ficado impossibilitado de tal impedir, quer pela tempestade que o impossibilitava de movimentar-se, quer pela escuridão que o impedia de ver; - e terem-se os animais abrigado sob uma ponte rodoviária, onde foram trucidados pelo comboio referido.

Não se mostraria, por isso, preenchida a previsão legal invocada, que, relativa aos danos causados por animais, exige que ocorram em virtude do perigo especial que a sua utilização envolva.

Excepcionou, mais, culpa da empresa pública A. na produção do evento e no avolumar dos prejuízos, por fazer circular o comboio interveniente apesar do temporal aludido e consequente visibilidade deficiente e insuficiente aderência.

Outrossim deduzida defesa por impugnação, concluiu esse articulado pedindo, em reconvenção, a condenação da A. a pagar-lhe, com fundamento na morte de 693 ovelhas e invocação dos artºs. 493º, nº. 2, e 503º (nº. 1) C.Civ., a quantia de 7.860.000$00, equivalente a € 39. 205,51, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a notificação (da contestação), até integral pagamento.

A reconvenção foi admitida, com alteração da forma de processo, que passou à forma ordinária; e houve réplica.

…5. Cabe, de todo o modo, observar igualmente que, desde que os danos correspondam ao

perigo próprio ou específico da utilização dos animais em causa, a responsabilidade do seu proprietário estabelecida no artº. 502º não é excluída pelo caso fortuito ou de força maior que o temporal constitui (5).

É certo que o risco previsto nessa disposição legal varia com a espécie dos animais utilizados (6).

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Em causa exploração pecuária, haveria, como a Relação considera, que ter, neste plano, em conta o risco próprio, especial, do rebanho - numeroso - alegadamente assustado (e que, segundo a contestação, se teria refugiado, na via férrea, sob uma ponte rodoviária): revelando-se, em tais circunstâncias, irrecusável que os danos reclamados se encontram em correlação adequada com o perigo específico que o mesmo envolvia. Em todo o caso:

Como explicado no aresto em que o recorrente se louva (7), o risco especial que a utilização de animais acarreta e que o artº. 502º contempla em termos de responsabilidade objectiva, - ou seja, como diz o nº. 2 do artº. 483º, "independentemente de culpa" - não é apenas o próprio da espécie de animais em questão: muito pelo contrário, visa igualmente o risco geral do aproveitamento de animais, "resultante" - seja qual for a sua espécie -, "da sua natureza de seres vivos que actuam por impulso próprio" (8).

A limitação constante da parte final do artº. 502º - "desde que os danos resultem do perigo especial que envolve a sua utilização" - visa apenas excluir os casos em que o dano em questão tanto podia ter sido causado pelo(s) animal(is) como por qualquer outra coisa, nenhuma ligação havendo com o sobredito perigo próprio ou específico da utilização de animais (9).

Em contrário do que o recorrente menos bem defende, já que assim faz de costas para a lição não só da doutrina, mas também da jurisprudência que ele próprio cita, o artº. 502º não se refere somente ao perigo especial de determinada espécie de animais, mas de igual modo ao perigo especial que qualquer ser irracional, dado, precisamente, que destituído de razão, necessariamente envolve. É, mesmo, esse perigo que, descontado facto de terceiro, eventual caso fortuito ou de força maior pode, em vez de afastar, inclusivamente, acentuar, agravar ou desenvolver: tal, se bem parece, nomeada e manifestamente sendo o que ocorre no caso do arguido pânico de rebanho determinado por temporal (10).

6. Em questão danos causados por animais, são, nessa base, referidos os artºs. 493º (nº. 1) e 502º.

Importa, no entanto, de facto, observar de imediato que se trata de previsões distintas, com diferente campo de aplicação (11), e que nada permite aproximar pelo modo ensaiado em 3. da alegação do recorrente. Com efeito:

O artº. 493º, nº. 1, tem em vista a responsabilidade, fundada na aí estabelecida presunção de culpa, do efectivo detentor, como é o caso do guardador, dos animais, isto é, de quem, - seu proprietário ou não -, enquanto e porquanto na sua efectiva detenção, assume o encargo da vigilância de seres, por sua natureza, irracionais (12).

Como o respectivo início revela - "Quem no seu próprio interesse utilizar animais" -, é, por sua vez, na previsão do artº. 502º que cabe a responsabilidade do proprietário dos animais enquanto - independentemente da sua efectiva detenção - utente ou beneficiário das respectivas utilidades; e tal assim em obediência a equitativo princípio do risco: ubi emolumentum, ibi onus - ou, em mais conhecida fórmula, ubi commoda, ibi incommoda (13).

É a esta luz que há, neste caso, que entender o artº. 13.º, n.º 1, CRP - invocado nestes autos, como, aliás, frequente, com despropósito evidente.

É, com efeito, e precisamente, próprio do princípio da igualdade que se trate por forma igual o que realmente se revele igual, e que, diversas as situações de facto, se trate de modo diferente o que em boa verdade se manifeste ser diferente. Aliás:

No que se refere à responsabilidade extracontratual do proprietário de animais, há que atender, antes de mais, ao disposto no nº. 1 do artº. 483º.

Aí prevista responsabilidade fundada em culpa efectiva, não se mostra, neste caso, alegada, nem é discernível (14) .

Segue-se atentar em que os animais se encontravam à efectiva guarda de outrem - o que, em princípio, arreda a previsão do artº. 493º, nº. 1.

Outrossim presente o disposto no artº. 500º, logo, de todo o modo, será de admitir que a ocorrência de caso que não pode ser evitado, como sucede com as tempestades ou outro qualquer caso fortuito ou de força maior, afasta a culpa (15).

Todavia cumpre, em último termo, e em vista, ainda, do nº. 2 do predito artº. 483º, atentar na previsão do artº. 502º, fundada em que, enquanto seres irracionais, os animais "são quase sempre uma fonte de perigos, mais ou menos graves" (16) .

Por isso, como determinado nesse artº. 502º, quem os utiliza em seu proveito deverá suportar as consequências desse perigo especial que a utilização de animais implica ou acarreta.

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Cumulativa a responsabilidade regulada nos artºs. 493º e 502º, só o proprietário foi demandado nesta acção (17).

7. Conduz quanto se leva dito à seguinte decisão:Nega-se a revista.Confirma-se a decisão das instâncias.Custas pelo recorrente.

Lisboa, 17 de Junho de 2003Oliveira BarrosSalvador da CostaFerreira de Sousa

Gansos que atacam passante - Col. 81-5-145; toiros - BMJ 325-553.

IV - Energia eléctrica e gás - 509º

As empresas que detêm a direcção efectiva das instalações de produção, armazenagem, condução ou entrega de energia eléctrica ou gás respondem pelos acidentes devidos a culpa dos seus órgãos, agentes, representantes ou comissários e, objectivamente, pelos devidos ao mau funcionamento do sistema de condução ou entrega e defeitos da própria instalação - nº 1.

Quanto à instalação, a responsabilidade será afastada se a empresa provar que essa instalação, ao tempo do acidente, estava de acordo com as regras técnicas em vigor e em perfeito estado de conservação - nº 1, in fine.

Também estão afastados os danos devidos a causa de força maior tal como definidos no nº 2, ou imputáveis à própria vítima ou terceiro, pois é regra geral a de que culpa e risco não convivem no mesmo saco - 505º.

Os danos causados por aparelhos de uso de energia - fogões, frigoríficos, televisão - não estão sujeitos ao regime desta responsabilidade objectiva.

Mesmo inexistindo responsabilidade pelo risco, pode a EDP responder como comitente, por culpa dos seus funcionários, se esses seus agentes, chamados várias vezes a prédio que dava choque não cuidaram de averiguar as causas da anomalia, só o fazendo após a morte de um indivíduo que morreu electrocutado no chuveiro - Col. STJ 97-III-132.

Limites de responsabilidade : 510º e remessa para o 508º, com a redacção introduzida pelo Dec-lei nº 59/2004, de 19 de Março.

Exemplos: BMJ 348-397 - A acção da força de ventos fortes não ciclónicos concorrentes para o entrechoque dos cabos de rede de distribuição de energia eléctrica não constitui força maior excludente da responsabilidade civil da empresa distribuidora pelos danos provocados por esse entrechoque, como faíscas e incêndio. Dever de previsão e de evitar esse entrechoque.

Col. 91-I-47 - Idem, estorninho que poisa num fio e provoca curto circuito noutro fio que cai e é calcado por pessoa que morre electrocutada.

RESPONSABILIDADE CIVIL Responsabilidade objectiva

Instalações de condução de energia eléctrica«Força maior»

(Ac. do STJ, de 3 de Outubro de 2002, na Col. Jur. (STJ) 02-III-77)

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I - Os danos causados pela instalação ou entrega de energia eléctrica ou de gás, correm por conta das empresas que as explorem.

II - Provando-se que um incêndio nas instalações da autora foi originado por um «raio», que provocou uma descarga eléctrica, que por sua vez causou a queda de uma linha de alta tensão, causadora do incêndio, e não se provando que a ré haja omitido qualquer dever, seja de manutenção e conservação da linha eléctrica, seja na prevenção de eventuais descargas eléctricas, falha o nexo de imputação do facto ao presuntivo lesante, ou seja a respectiva culpa.

III - Ainda que os danos fossem advenientes da condução ou instalação de energia eléctrica, sempre a responsabilidade da ré se encontraria afastada por ocorrência de motivo de força maior.

BMJ 431-441 - A Petrogal é responsável pela instalação de queima de gás que instalou em restaurante, em que só ela pode mexer e de que, por isso, tem a direcção efectiva.

Col. STJ 96-II-26 - fio eléctrico descarnado que, caindo em poça de água, mata pessoa a

cavalo. Responsabilidade por culpa, omissão do dever de conservação e vigilância - 486º- Culpa. Não limites da indemnização.

Col. 94-II-5 - entrega de energia eléctrica de voltagem superior à contratada que, por isso, provoca danos em electrodomésticos. Responsabilidade objectiva e obrigação de indemnizar.

Acórdão STJ (cons.º Araújo Barros), de 22.5.2003, P.º 03B892, base de dados do ITIJ:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

"A" intentou no Tribunal Judicial de Leiria, acção com processo ordinário contra B pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de 3.842.213$00, acrescida de juros de mora, desde a citação até integral reembolso.

Alegou, para tanto, em resumo, que:- entre autora e ré vigora um contrato de fornecimento de energia eléctrica, pelo qual esta,

mediante o pagamento de um preço por banda daquela, lhe fornece energia eléctrica em condições tais que não ofereça perigo de avaria de equipamentos, isto é, com parâmetros tidos como normais a componentes eléctricos e electrónicos;

- em 4 de Novembro de 1996, ocorreu uma descarga eléctrica no posto de transformação que serve a zona da urbanização de Porto Moniz, em Leiria, local onde a autora possui as suas instalações;

- a descarga eléctrica ficou a dever-se a trabalhos que estavam a ser executados no posto de transformação de energia eléctrica, descarga essa que, pela sua grande potência, danificou diverso equipamento da autora, com os respectivos prejuízos computados no montante de 2.242.213$00;

- perdeu ainda a autora todo o software, programas de contabilidade, de facturação, de controlo de stocks, de processamento de salários e de orçamentos, sendo de 1.000.000$00 o custo de tal software;

- houve ainda necessidade de repor toda a informação a nível de stocks, de processamento de salários, de orçamentos, de contas-correntes de clientes e de fornecedores, o que implicou um gasto de 200 horas de pessoal, ao custo de 1.500$00/hora.

Citada a ré, veio a mesma contestar, alegando, também em síntese:- na data em referência, na Rua Afonso Lopes Vieira, em Leiria, uma retroescavadora,

pertencente a C, manobrada por um dos seus trabalhadores, procedia a escavações, sem o devido cuidado, sem ter em consideração a rede eléctrica subterrânea da ré, perfeitamente sinalizada, pelo que embateu num cabo da rede eléctrica de média tensão de 15 kwa que liga ao PT RLA, tendo-o cortado;

- tal sinistro ocorreu por culpa do manobrador da máquina, que trabalhava por conta, direcção e no interesse da sua proprietária, a qual executava escavações por conta e sob a orientação directa e expressa de D, numa obra desta;

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- o sinistro provocou alterações de tensão na rede eléctrica e não houve nesta qualquer outro incidente susceptível de provocar alterações de tensão;

- a instalação da autora e os seus aparelhos eléctricos, se sensíveis a tais alterações de tensão ou sobretensões, devem estar munidos de aparelhos que limitem ou eliminem essas tensões ou alterações de tensão, o que então não sucedia.

…Realizado o julgamento, exarada decisão acerca da matéria de facto controvertida, foi

proferida sentença, na qual, julgando-se a acção parcialmente procedente, se condenou a ré a pagar à autora a quantia de 2.242.213$00, acrescida de juros, desde a citação até integral pagamento, bem como aquela que se vier a liquidar em execução de sentença, com referência ao custo da reposição do software.

Inconformada, apelou a ré B, sem êxito embora, uma vez que o Tribunal da Relação de Coimbra, em acórdão de 12 de Maio de 2002, julgou improcedente o recurso, mantendo a decisão recorrida.

Interpôs, então, a mesma B recurso de revista, pugnando pela revogação do acórdão impugnado.

…No que concerne à segunda questão em apreço, assente que entre a autora e a ré/recorrente

fora celebrado e estava em vigor, um contrato de fornecimento de energia eléctrica, e que tal contrato, na justa medida em que, por virtude de uma potente descarga ocorrida na rede eléctrica da segunda, ficou danificado diverso equipamento da primeira, foi cumprido defeituosa-mente, resta analisar se esse cumprimento defeituoso - e aqui reside o cerne do problema - é ou não imputável, a título de culpa, à recorrente.

Com efeito, só o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação (ou cumpre de modo imperfeito) se torna responsável pelos prejuízos que causa ao credor (arts. 798º e 801º, nº 1, do C. Civil).

Portanto, na economia da citada norma, há que averiguar da imputabilidade do incumprimento do contrato, na dicotomia imputável ou não imputável ao devedor, cabendo na segunda modalidade todas as situações em que o incumprimento (ou cumprimento imperfeito) resulta de facto de terceiro, de circunstância fortuita ou de força maior, da própria lei ou de facto do próprio credor. Desta forma, rigorosamente, só nos casos de incumprimento imputável ao devedor da prestação é que este se constitui na obrigação de indemnizar. (4)

Situação que, aliás, se encontra concretamente prevenida para o fornecimento de energia eléctrica pela respectiva concessionária, no Dec. lei nº 43.335, de 19 de Novembro de 1960,

São estes os parâmetros legais em que assenta a decisão da causa, sem, todavia, se esquecer que, no âmbito da responsabilidade obrigacional, ao credor/lesado incumbe tão só demonstrar o defeito da prestação (facto ilícito) sendo ao devedor/lesante que cumpre provar que o cumprimento defeituoso não procede de culpa sua, culpa essa que é apreciada nos termos aplicáveis à responsabilidade civil ( art. 799º do C. Civil).

Invoca a recorrente, desde logo, que o sinistro ocorrido nas instalações da autora se ficou a dever a facto culposo de terceiros (deixaremos para depois a invocação feita quanto à culpa do próprio credor).

Retomando a matéria de facto, na parte relevante, temos assente que:

- no dia 4 de Novembro de 1996, na parte da manhã, ocorreu uma descarga na rede eléctrica da B, em consequência da qual se verificaram danos em diverso equipamento e material informático da autora;

- a rede eléctrica que abastece a autora encontrava-se em bom estado de conservação;- no dia 4 de Novembro de 1996, pelas 11,30 horas, uma retroescavadora, propriedade da C

e manobrada por um empregado desta empresa, procedia a escavações na Rua Afonso Lopes Vieira, em Leiria; o manobrador da máquina fazia as escavações sem ter em consideração a rede eléctrica subterrânea da ré, que estava sinalizada; ao executar as escavações, o manobrador da máquina

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embateu no cabo da rede eléctrica de média tensão a 15 Kwa que liga ao PTRLA - Porto Moniz, tendo cortado um dos fios condutores; a C executava as escavações por conta e sob a direcção directa e expressa da D; nem o manobrador, nem a proprietária da máquina, nem a D solicitaram à B o mapa da localização das redes eléctricas subterrâneas da zona;

- o corte de um dos fios condutores do cabo de média tensão da rede eléctrica provocou alterações de tensão nessa mesma rede; naquele dia e hora, na manhã do dia 4 de Novembro de 1996, não houve outro incidente na rede eléctrica susceptível de provocar alterações de tensão;

- a rede eléctrica foi implantada de acordo com o projecto aprovado pela fiscalização oficial e devidamente licenciada; a implantação e estado de conservação da rede eléctrica é verificada por vistoria da Direcção-Geral da Energia e por brigadas da ré B; a instalação da autora é abastecida através do PTLRA 220 Porto Moniz;

A apreciação da questão ora equacionada conduz-nos, no fundo, a ter que ponderar sobre qual o facto que, em concreto, causou os danos no equipamento da autora.

Conclui o acórdão recorrido não ser possível (e a prova de que o facto causador dos danos se deveu a terceiro impenderia sobre a ré B - art. 342º, nº 2, do C. Civil), atenta a matéria de facto assente, considerando as muitas hipóteses concebíveis para a verificação da descarga eléctrica no Posto de Transformação da recorrente e, sobretudo, a impossibilidade de determinar se aquela descarga resultou, em concreto, do corte de um dos fios condutores da rede eléctrica de média tensão, a 15 Kwa, que liga ao PTRLA de Porto Moniz, extrair a ilação de que haja sido a actividade do manobrador da máquina da C a causa adequada da descarga ocorrida naquele PT.

E bem, a nosso ver.

É que "a causa juridicamente relevante será a causa em abstracto adequada ou apropriada à produção dum dano segundo as regras da experiência comum ou conhecidas do lesante e que pode ser ainda vista, numa formulação positiva, como a condição apropriada à produção do efeito segundo um critério de normalidade ou, numa formulação negativa, que apenas exclui a condição inadequada, pela sua indiferença ou irrelevância, verificando-se então o efeito por força de circunstâncias excepcionais ou extraordinárias". Por isso, do conceito de causalidade adequada pode extrair-se o corolário segundo o qual o que é essencial é que o facto seja condição do dano, mas nada obsta a que ele seja apenas uma das condições (adequadas) desse dano". (5)

O que importa saber, para determinar qual a causa concreta da produção dos danos no equipamento da autora, é "se a condição, determinada naturalisticamente, foi ou não de todo indiferente para a produção do dano e só se tornou condição em virtude de outras circunstâncias extraordinárias, sendo portanto inadequada a produzir tal dano". (6)

A única coisa que temos como certa é que a descarga no PT foi determinante da alteração das tensões da energia fornecida à autora que, por virtude dessas alterações, sofreu os danos no equipamento informático.

Qual a verdadeira causa da descarga eléctrica - não obstante as considerações que se fazem no parecer junto (e trata-se, apenas de um Parecer Técnico, não vinculativo) - é facto que se não descortina com a probabilidade próxima da certeza que se exige em qualquer julgamento.

Pode, sem dúvida - é hipótese que se não afasta - ter sido devida unicamente ao corte do cabo subterrâneo condutor da rede eléctrica de média tensão que liga ao PTRLA de Porto Moniz.

Mas também poderá, como avisadamente se adianta no acórdão recorrido, "conjecturar-se que a descarga eléctrica que provocou os danos à autora não terá resultado directa e necessariamente do corte do cabo que provocou a alteração da tensão, sendo antes a mesma proveniente da religação do funcionamento da rede eléctrica abastecedora das instalações da autora ... nada tendo a mesma a ver, possivelmente, e de forma directa, com o incidente ocorrido no cabo eléctrico, a montante do PT".

E isto não obstante se ter provado que, naquela manhã, não ocorreu qualquer outro incidente na mesma rede, susceptível de provocar alterações de tensão, que aquela rede foi implantada de acordo com o projecto aprovado pela fiscalização oficial e devidamente licenciada, que essa

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implantação (bem como o seu estado de conservação) é verificada por vistoria da Direcção-Geral da Energia e por brigadas da ré B e que se encontrava em bom estado de conservação. Na verdade, nem mesmo assim é possível com a necessária segurança estabelecer uma relação de causa e efeito entre o corte do cabo condutor e a descarga ocorrida no PT.

Consequentemente, em nosso entender, bem se decidiu no acórdão impugnado quando se concluiu não estar suficientemente demonstrada a existência de facto de terceiro adequado a produzir, directamente, a descarga eléctrica de que advieram os danos no equipamento da autora (o que não significa que essa relação de causa e efeito não possa ser provada em acção de regresso, uma vez que, quanto a tal, se não forma caso julgado relativamente às chamadas).Analisaremos, por último, a invocada imputação dos danos sofridos pela autora a facto culposo dela própria, situação que, a verificar-se, pode, nos termos do art. 570º do C.Civil, excluir ou reduzir a indemnização.

Retomamos os factos em que há-de assentar a decisão desta questão:

Nem as instalações da autora nem os seus aparelhos informáticos estavam munidos de aparelhos que eliminem alterações de tensão; as unidades de protecção (que ali existiam) arderam.

Sustenta a recorrente que as UPS (unidades de protecção) se destinam a assegurar o funcionamento do equipamento durante algum tempo em caso de falta de energia, não constituindo protecções dos equipamentos.

E que, impondo o art. 61º (?) do Dec.lei nº 740/74, para as instalações de consumo, que estas sejam dotadas de descarregadores de sobretensões, ou seja de dispositivos apropriados à protecção contra sobretensões, protecções que as instalações da autora não tinham, só a ela se ficaram a dever os danos causados no seu equipamento informático.

O Dec.lei nº 740/74, de 26 de Dezembro, constitui, como do seu preâmbulo se infere, um diploma que regulamenta as condições das instalações eléctricas com vista à sua aprovação pelas entidades competentes, destinando-se, conforme o art. 1º, "a fixar as condições técnicas a que devem obedecer os estabelecimentos e a exploração das instalações eléctricas ... com vista à protecção de pessoas e coisas e à salvaguarda dos interesses colectivos".

É, por isso, um diploma que tende a proteger os utilizadores de instalações, naturalmente consumidores, não podendo, só por si, fundamentar a exclusão da responsabilidade das entidades fornecedoras de energia eléctrica.

Em todo o caso, o art. 595º do Regulamento de Segurança de Instalações de Utilização de Energia Eléctrica (por ele aprovado) apenas determina que "sempre que numa instalação possam surgir sobretensões, quer em condições normais de funcionamento, quer em caso de avaria, deverá a mesma ser dotada de um aparelho que limite ou elimine essas tensões".

Aparelho esse que, em conformidade com o disposto no art. 33º, se destina a impedir ou limitar os efeitos perigosos ou prejudiciais da energia eléctrica a que possam estar sujeitas as pessoas, coisas ou instalações.

Tal significa apenas que deverá existir uma adequada protecção contra as sobretensões que advenham de condições normais de funcionamento das instalações, ocorridas portanto nas próprias instalações, o que, sem dúvida, era conseguido através das unidades de protecção ali existentes.

Quanto às sobretensões que decorrem de situações externas (inclusive pára-raios), até pela intensidade que poderão atingir, não é exigida a existência de qualquer protecção específica, tanto mais quanto é certo que se presume que a empresa que assume a obrigação de fornecer energia eléctrica a distribui, quanto à intensidade da tensão, de acordo com os parâmetros normais.

Tal entendimento revela-se, aliás, no espírito da própria Lei nº 23/96, de 26 de Junho, que considerou a preocupação de protecção do pequeno e médio consumidor de baixa tensão, o consumidor final, pela pressuposição natural de falta de meios técnicos para controlar os fornecimentos (e a tensão) de energia efectuados. (7)

Parece, assim, que se justifica plenamente, também nesta parte, a decisão recorrida, já que não está minimamente demonstrado que o evento, bem como os danos dele resultantes, se ficaram a dever a conduta censurável da autora.

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Por todo o exposto, decide-se:

a) - julgar improcedente o recurso de revista interposto pela ré B;b) - confirmar inteiramente o acórdão recorrido.c) - condenar a recorrente nas custas da revista.

Lisboa, 22 de Maio de 2003Araújo BarrosOliveira BarrosSalvador da Costa

------------------------(1) - Miguel Teixeira de Sousa, in "Estudos sobre o Novo Processo Civil", 2ª edição, Lisboa,

1997, pag. 179.(2) - Acs. STJ de 05/07/90, no Proc. 79434 da 2ª secção (relator Ricardo da Velha); de

08/11/95, no Proc. 87509 da 1ª Secção (relator Lopes Pinto); de 30/10/96, no Proc. 155/96 da 2ª Secção (relator Mário Cancela); e de 14/04/99, no Proc. 167/99 da 2ª Secção (relator Noronha Nascimento).

(3) - Salvador da Costa, in "Os Incidentes da Instância", 2ª edição, Coimbra, 1999, pag. 121. Cfr. Ac. STJ de 05/02/2002, no Proc. 3869/01 da 1ª Secção (relator Garcia Marques).

(4) - Cfr. Antunes Varela, in "Das Obrigações em Geral", vol. II, 4ª edição, Coimbra, 1990, pags. 60 e 61.

(5) - Ac. STJ de 12/10/99, no Proc. 534/99 da 1ª secção (relator Ferreira Ramos). No mesmo sentido o Ac. STJ de 24/04/99, no Proc. 188/99 da 1ª secção (relator Aragão Seia).

(6) - Ac. STJ de 28/10/99, no Proc. 812/99, da 2ª secção (relator Ferreira de Almeida).(7) - Cfr. Ac. STJ de 06/01/2000, no Proc. 738/99 da 2ª secção (relator Lúcio Teixeira).

INSTALAÇÃO DE POSTES DE TRANSPORTE DE ENERGIA ELÉCTRICA

- Servidão administrativa- Danos não patrimoniais- Direito a ambiente sadio e ecologicamente equilibrado- Enriquecimento sem causa e responsabilidade civil

Ac. de 31 de Março de 2004, na Col. Jur. 2004-I-151

I - O direito de servidão - direito da concessionária fazer atravessar no prédio do particular linha de transporte de energia eléctrica aérea e montar no mesmo os necessários apoios -, não obstante não carecer da autorização do proprietário do prédio serviente, está condicionado, em termos de eficácia de imposição, à obtenção de licença de estabelecimento.

II - Se da exposição ao campo electromagnético das linhas eléctricas resultarem efeitos nocivos sobre a saúde, o bem-estar e a tranquilidade das pessoas expostas ou violação do seu direito subjectivo a ambiente de vida sadio e ecologicamente equilibrado a concessionária está obrigada a indemnizar por danos não patrimoniais e pode ordenar-se alteração do trajecto ou remoção das linhas.

III - Embora tenha praticado facto ilícito ao instalar duas linhas de transporte de electricidade e respectivo poste de apoio no prédio dos RR., sem autorização deles, antes de obtido o licenciamento de cada uma das duas linhas e enquanto o não obteve, a A. não incorreu em responsabilidade civil e consequente obrigação de indemnizar, nos termos dos arts. 483º e segs. e 562º e segs. do CC, por inexistência de dano.

IV – Mas porque enriqueceu à custa dos RR., deixando de pagar a utilização que fez do imóvel a estes pertencente, deve a A. a indemnização que se liquidar em execução de sentença, nos termos do art. 473º, nº 1, do CC, independentemente da qualificação jurídica dos factos alegados e provados como responsabilidade delitual ou enriquecimento sem causa (art. 664º do CPC).

RESPONSABILIDADE PELO RISCO

- Dano derivado de condução de electricidade

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- Força maior- Aves selvagens protegidas

Ac. de 13 de Julho de 2004, na Col. Jur. (STJ) 2004-II-155

I - São sindicáveis pelo Supremo as presunções judiciais usadas pelas instâncias a partir de factos desconhecidos ou para contrariar respostas restritivas, negativas ou tidas como não escritas.

II - Não é devida a causa de força maior a descarga eléctrica provocada por cegonhas que, com aceitação da operadora, tinham ninho no posto de transformação onde se deu aquela descarga.

III - A prevenção de incidentes deste tipo cabe na permissão que a lei dá, excepcional-mente, para o abate de aves selvagens protegidas.

RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL

- Danos decorrentes de actividades perigosas- Condução e entrega da energia eléctrica

Ac. STJ (Cons.º Ribeiro de Almeida) 25.3.2004, na Col. Jur. (STJ) 2004-149

I - Na actividade de condução e entrega de energia eléctrica, o facto de terem sido cumpridas as regras em vigor e tudo estar em perfeito estado de conservação, não isenta a respectiva entidade responsável pela sua exploração de responsabilidade objectiva, no caso de terem resultado danos para terceiros dessa actividade, a menos que se prove a culpa da vítima na produção desses danos.

II - Porém, provando-se que a instalação do condutor da energia eléctrica não estava de acordo com as regras de distância fixadas pelo Regulamento de Segurança de Linhas de Alta Tensão, tal faz, desde logo, presumir a culpa da entidade responsável por essa inobservância e bem assim ainda o nexo de causalidade entre essa inobservância e os danos que tenham sido provocados devido a essa actividade.

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:Na 8ª Vara Cível do Porto, Paulo Ferreira intentou acção declarativa de condenação contra

EN Electricidade do Norte SA pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de 13.053.500$00 acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação.

Alega que no dia 22 de Novembro de 1995, cerca das 14 horas e 30 minutos, no prédio sito à Estrada Exterior da Circunvalação, 8136, Porto, quando se encontrava a trabalhar na varanda do apartamento do 42 andar, foi vítima de um acidente de electrocussão. Devido ao tempo húmido que se fazia sentir, à proximidade dos cabos condutores da corrente e à tensão nominal conduzida pelas linhas 60.000 volts - gerou-se um arco eléctrico, tendo o Autor sido passado por uma descarga eléctrica que lhe causou danos, alguns dos quais jamais recuperará. No caso concreto, para uma tensão nominal de 60.000 volts, a distância das linhas nunca poderia ser inferior a 7 metros e 50 centímetros do edifício. O Autor sofreu várias lesões e sequelas em consequência da descarga eléctrica sofrida, computando no montante peticionado a totalidade dos danos patrimoniais e não patrimoniais por si sofridos.

….O Artigo 493º nº 2 do Código Civil estabelece presunção de culpa ao estabelecer que quem

causar dano a outrem no exercício de uma actividade, perigosa por sua própria natureza ou dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, excepto se mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir.

Os actos ordenados com vista à realização de determinado fim consubstanciam o exercício de uma actividade.

Quem exerce actividades perigosas que derivam da natureza dessa mesma actividade é obrigado e reparar o dano daí decorrente.

A elisão da presunção de culpa faz-se pela prova de que foram tomadas as medidas idóneas para evitar o dano dela resultante, medidas essas ditadas pelas normas técnicas, aferidas pela diligência de um homem médio. Consagra-se assim a tese da culpa em abstracto.

A presunção de culpa só é ilidida se quem tem a direcção efectiva dessa actividade provar que tomou todas as providências que, segundo a experiência são adequadas a evitar o perigo.

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Assim, para efeito da inversão do ónus da prova consagrada no Artigo 493º do Código Civil, a perigosidade da actividade deve existir no exercício desta, considerada em abstracto, não se atendendo por isso à inexperiência de quem a exerce.

A par da responsabilidade subjectiva consagra a lei a responsabilidade objectiva ou pelo risco, obrigando a indemnizar independentemente da culpa, embora excepcionalmente.

Estatui o artigo 509º do Código Civil que:1. Aquele que tiver a direcção efectiva de instalação destinada a condução ou entrega da

energia eléctrica ou do gás, e utilizar essa instalação no seu interesse, responde tanto pelo prejuízo que derive da condução ou entrega da electricidade ou do gás, como pelos resultantes da própria instalação, excepto se ao tempo do acidente esta estiver de acordo com as regras técnicas em vigor e em perfeito estado de conservação.

2. Não obrigam a reparação os danos devidos a causa de força maior; considera-se de força maior toda a causa exterior independente do funcionamento e utilização da coisa".

Assim a responsabilidade objectiva é estabelecida para a hipótese da responsabilidade resultante da instalação da energia eléctrica e para a responsabilidade resultante da condução e entrega da energia eléctrica.

Na instalação só não existe responsabilidade se ela estiver de acordo com as regras técnicas em vigor e em bom estado de conservação. Na condução e entrega de energia eléctrica só inexiste essa responsabilidade no caso de força maior.

No caso da condução e entrega o facto de terem sido cumpridas as regras técnicas em vigor e tudo estar em perfeito estado de conservação, tal não isenta de responsabilidade objectiva a entidade responsável pela condução e entrega de energia. Tal isenção só aproveitaria se os danos fossem originados na instalação da energia e não já na sua condução e entrega, como foi o caso.

Acrescenta-se que no caso dos autos a instalação do condutor da energia eléctrica não estava de acordo com o Regulamento de Segurança de Linhas de Alta Tensão que determinava que, por aplicação de fórmula de cálculo de distância da linha ao edifício fosse de 4 metros e a mesma encontrava-se a 2,60 metros.

A não observância de leis ou regulamentos faz presumir a culpa do autor dessa inobservância e o nexo de causalidade entre essa inobservância e os danos que se lhe liguem e a cuja produção as leis e os regulamentos visam obstar. Por outro lado a recorrente não alegou, e por isso não podia ter provado, que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias para prevenir o dano. A sua culpa presume-se nos termos do Artigo 493º nº 2 do Código Civil.

Não basta que o autor da actividade perigosa tenha observado as cautelas que o Regulamento impõe sendo ainda indispensável, para afastar a sua responsabilidade, que tenha adoptado as demais providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de prevenir os danos.

A finalidade do Artigo 493º, nº 2, é ditada pela conveniência de estabelecer um regime particularmente severo para a responsabilidade civil resultante de actividades perigosas (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral 2ª ed. pág. 419 e 420);

Para além da culpa presumida existe ainda culpa efectiva por parte da recorrente, que tendo conhecimento desde 1/9/95 que a linha estava a 2,60 metros de distância da varanda do 4º andar mandou executar um projecto de modificação da linha no dia 5 seguinte e só concluiu a obra em 27/12/95 um mês depois de ter ocorrido o acidente.

RESPONSABILIDADE CIVIL- Vertente negativa da causalidade adequada- Incêndio florestal- Linhas de energia eléctrica de alta tensão

Ac. de 4 de Novembro de 2004, na Col. Jur. (STJ) 2004-III-108

I – Para a vertente negativa da causalidade adequada, o facto - condição só não deve ser considerado causa adequada do dano quando se mostra, pela sua natureza, de todo inadequado e o haja produzido apenas por ocorrência de circunstâncias anómalas ou excepcionais.

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II - A empresa de distribuição de energia eléctrica de alta tensão que permitiu o crescimento de árvores debaixo das linhas transportadoras, tendo ocorrido um incêndio florestal que, por força do calor debaixo dessas linhas, acabou por torcer e fazer explodir um poste de alta tensão, provocando grande explosão e uma bola de fogo que, através da linha telefónica, propagou o incêndio à casa dos AA. sita nas proximidades, é responsável, com culpa, pela indemnização que lhes é devida.

Acórdão STJ (Cons.º Araújo Barros) de 05/08/2003, P.º 03B1021, ITIJ:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

"A" e mulher B, por si e como representantes legais da sua filha C, intentaram, no Tribunal Judicial da comarca de Braga, acção declarativa, com processo ordinário, contra D, peticionando a condenação desta a pagar-lhes a quantia de 14.374.786$00 e o que vier a ser liquidado em execução de sentença quanto aos danos futuros a apurar, em consequência do rebentamento de uma garrafa de gás fornecida pela ré em execução de contrato que haviam celebrado.

Contestou a ré, aceitando a celebração do contrato de fornecimento de gás, mas alegando que o mesmo foi por si cumprido, sendo os autores que não observaram os deveres contratuais, pois sabiam que a garrafa não poderia ser colocada na garagem.

…Exarado despacho saneador, condensados e instruídos os autos, procedeu-se a julgamento,

com decisão acerca da matéria de facto controvertida, vindo, depois, a ser proferida sentença que julgou improcedente a acção, absolvendo as rés dos pedidos.

Inconformados, apelaram os autores, tendo, na sequência, o Tribunal da Relação de Guimarães, em 27 de Novembro de 2002, proferido acórdão em que, embora com um voto de vencido, concedeu provimento parcial ao recurso, revogando a sentença recorrida e condenando a ré D a pagar aos autores a quantia global de 19.463,94 Euros.

Foi agora a vez de, quer os autores, quer a ré D, interporem recurso de revista. Pretendem os primeiros que seja julgada a acção procedente, por provada, condenando-se a

ré a pagar-lhes as quantias de 32.713,00 Euros e 39.903,81 Euros, a título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais por eles sofridos.

Sustenta a segunda que, revogando-se o acórdão recorrido na parte em que condenou a recorrente com base no risco, deve manter-se integralmente a sentença de 1ª instância.

…Retomaremos, antes de mais, a matéria de facto que releva para a resolução da primeira

questão equacionada.

- a ré e os autores celebraram contrato de fornecimento de gás propano, em cujo âmbito a ré se obrigou, mediante pagamento do respectivo preço, a colocar na residência dos autores A e mulher as necessárias garrafas com esse produto, para fins domésticos, contrato de que sempre resultou claro e inequívoco que a segurança das ditas garrafas e o seu funcionamento era da inteira responsabilidade da ré, a quem incumbia zelar e responder pela segurança, enquanto o cliente autor se obrigava a cumprir as normas de segurança dele constantes;

- no dia 26 de Outubro de 1998, a ré entregou aos autores A e mulher uma dessas botijas de gás, tendo sido colocada pelos funcionários daquela na garagem da residência destes;

- foi a empregada doméstica dos autores quem solicitou ao empregado da ré que colocasse a garrafa na garagem e este fê-lo na convicção de que aquela ou os seus patrões a colocariam, o mais rapidamente possível, no depósito adequado;

- passados dois dias, essa garrafa de gás explodiu, causando diversos danos na garagem e em bens nela existentes.

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Cumpre, antes de mais, adiantar que, a nosso ver, o acórdão recorrido, subsumindo os factos provados ao regime da responsabilidade civil extracontratual, não fez a mais correcta interpretação e aplicação do direito, quer no concreto, quer no domínio dos respectivos princípios gerais.

Na verdade, é bem claro que entre a ré e os autores foi celebrado um contrato duradouro, pelo qual aquela se obrigou, mediante pagamento do respectivo preço, a fornecer e colocar as garrafas de gás propano, que comercializava, para os usos domésticos destes. Tal contrato, vulgarmente designado como contrato de fornecimento, livremente acordado quanto ao seu objecto e cláusulas (art. 405º, nº 1, do C.Civil (1)) assume a natureza jurídica de um verdadeiro contrato de compra e venda (2) ou, no mínimo, é disciplinado pelas disposições que o regulam, atento o disposto no art. 939º do C. Civil.

Daí que ao seu cumprimento, defeituoso ou não, bem como ao incumprimento, se devam aplicar as normas do contrato de compra e venda (in casu da compra e venda defeituosa) designadamente o preceito do art. 918º - dado estarmos perante o fornecimento de coisa indeterminada de certo género - e, por força dele, "as regras relativas ao não cumprimento das obrigações".

Refere, neste particular, o art. 798º que "o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor". Não obstante esta referência explícita ao incumprimento, não pode deixar de se ter como princípio básico "o de que o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação se torna responsável pelos prejuízos ocasionados ao credor. Isto quer se trate de não cumprimento definitivo, quer de simples mora ou de cumprimento defeituoso (arts. 798º, 799º, 801º e 804º)". (3)

Consequentemente, também no caso de mau cumprimento ou cumprimento imperfeito, é aplicável o princípio de que o devedor que, por culpa sua, cumpre defeituosamente se constitui na obrigação de indemnizar o credor da prestação devida.

Assim, nestas situações, a obrigação de indemnizar reveste natureza claramente contratual ou obrigacional, porquanto, subordinada embora aos pressupostos comuns a todas as formas de responsabilidade - acto ilícito, culpa, dano e nexo de causalidade entre o facto e o dano - ela resulta da violação de um direito de crédito ou obrigação em sentido técnico (ou de um contrato). Ao contrário do que acontece com a responsabilidade extracontratual, que é fonte autónoma da obrigação de indemnizar, a responsabilidade contratual é apenas condição modificativa da obrigação de prestar em obrigação de indemnizar - mas a obrigação é a mesma.

É certo que, in casu, se constata que a pretensão indemnizatória dos autores se compagina com danos causados, não na própria coisa fornecida, mas para além dela própria (na garagem e nos objectos que aí se encontravam).

Ora, nesta situação parecerá ocorrer uma dupla espécie de responsabilidade: de um lado, relativamente aos danos sofridos pelo lesado em função dos defeitos da coisa em si (de natureza tipicamente contratual); de outro, com respeito aos danos causados para além dessa coisa, quer no património quer na saúde do credor ou de terceiro (responsabilidade que decorre da aplicação do princípio geral do art. 483º, nº 1). Embora, não o esqueçamos, a pretensão indemnizatória seja apenas uma, de ressarcimento dos prejuízos sofridos.

Há quem, defendendo a chamada teoria do cúmulo das diferentes espécies de responsabilidade, considere que, enquanto na responsabilidade pelos prejuízos situados no defeito da coisa se está perante responsabilidade contratual, já em relação aos danos ocorridos para além da coisa fornecida, se verifica responsabilidade aquiliana, decorrente de facto ilícito, nesta medida extracontratual, já que os danos se não situam no âmbito ou perímetro do contrato, estando para além do interesse do cumprimento. (4)

Não se nos afigura sustentável, tout court, tal opinião.

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Antes nos parece, já que essencialmente a pretensão indemnizatória é apenas uma, incindível na sua fundamentação e configuração, que deve ela fundar-se numa única espécie de responsabilidade: é a opinião dos que defendem o sistema do não cúmulo de responsabilidades.

Neste pressuposto, na esteira de Vaz Serra (5), já se considerou que, em tais casos, gozará o credor da faculdade de optar pelo tipo de responsabilidade que mais lhe convier (naturalmente a responsabilidade contratual que, por princípio - no mínimo quanto à prescrição e quanto à prova da culpa - lhe é mais favorável). (6)

Cremos, todavia, mais adequado considerar aplicáveis, ainda dentro do sistema do não cúmulo de responsabilidades, também quanto aos danos causados para além da própria coisa defeituosa, desde que produzidos na esfera jurídica do credor/comprador, as regras atinentes ao cumprimento defeituoso das obrigações. (7)

Desde logo, na verdade, o nexo que liga o direito à indemnização por todos os danos advindos do cumprimento defeituoso da obrigação e o direito da vendedora ao recebimento do preço, "é o nexo sinalagmático próprio dos contrato bilaterais. Nexo que, em princípio, tanto une as prestações fundamentais emergentes da celebração do contrato (sinalagma genético) como abarca as prestações da mesma natureza provenientes do desenvolvimento da relação contratual (sinalagma funcional)". (8)

Por isso, "nas hipóteses de concurso das duas variantes da responsabilidade civil, há-de convir-se que qualquer delas, a funcionar isoladamente, esgotaria a protecção que a ordem jurídica pretende dispensar a casos desse tipo. A integração de tais hipóteses num ou noutro esquema - e que equivale à correspondente qualificação como ilícito contratual ou extracontratual - depende, portanto, da perspectiva geral que preside à regulamentação do direito das obrigações. Ora, neste âmbito, impera, como não se ignora, o princípio da autonomia privada, segundo o qual compete às partes fixarem a disciplina que deve reger as suas relações, com ressalva dos preceitos imperativos. Assim, parece que, perante uma situação concreta, sendo aplicáveis paralelamente as duas espécies de responsabilidade civil, de harmonia com o assinalado princípio, o facto tenha, em primeira linha, de considerar-se ilícito contratual. Sintetizando: de um prisma dogmático, o regime da responsabilidade contratual consome o da extracontratual. Nisto se traduz o princípio da consunção". (9)

Ademais, não pode olvidar-se que "sobre o vendedor impendem determinados deveres de protecção, de origem não negocial (mas abrangidos, sem dúvida, pela cláusula da boa fé que deve presidir à celebração e execução dos contratos - arts. 227º, nº 1 e 762º, nº 2) destinados a proteger o património ou a saúde do comprador na medida em que possam ser afectados pelo contrato, e por cuja violação o vendedor responde nos moldes da responsabilidade contratual". (10)

Deste modo, atento o exposto (e optando pelo sistema do não cúmulo e, dentro deste, pelo princípio da consunção), cremos que, quanto aos danos causados, quer na garagem em que se encontrava a botija de gás que explodiu, quer nos objectos que aí estavam, a responsabilidade da ré, a existir, será, toda ela, de natureza contratual (em derradeira análise porque esta consome a eventual responsabilidade extracontratual paralela). (11)

É claro que, ainda no que toca à responsabilidade contratual, a obrigação de indemnizar só ocorre desde que verificados os respectivos pressupostos, dos quais o primeiro é precisamente o incumprimento ou cumprimento defeituoso da obrigação (facto objectivamente ilícito).

E se relativamente à falta de cumprimento se pode considerar demonstrado tal facto pela simples alegação (já que, em direito, o pagamento se não presume), já quanto ao cumprimento inexacto ou defeituoso, na medida em que existe cumprimento, será sempre ao credor que incumbe provar o defeito da prestação, por norma, adimplente. (12)

Sendo, como bem refere Calvão da Silva (13) "à luz do destino da coisa fixado pelas partes ou, na sua falta ou insuficiência, à luz do uso corrente ou função normal das coisas da mesma categoria, que o tribunal apreciará da existência da defeituosidade, de vício que desvaloriza a coisa ou impede a realização do fim a que se destina e de falta de qualidades asseguradas ou necessárias para a realização do fim esperado".

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Aliás, no domínio da compra e venda, o art. 913º, referenciando quatro tipos de vícios da coisa (vício que a desvaloriza; que impede a realização do fim a que é destinada; que a coisa não tenha as qualidades asseguradas pelo vendedor; que não tenha as qualidades necessárias para a realização do fim a que se destina), pretendeu uma equiparação entre os vícios e a falta de qualidades da coisa, embora o legislador não haja tomado posição quanto à natureza objectiva ou subjectiva do defeito, qualificando-o, sobretudo, à luz da desconformidade com o interesse (pactuado) do comprador.

Ora, parece evidente que uma garrafa cheia de gás, de mais a mais com a perigosidade de que se reveste, não satisfaz o interesse do credor - utilizá-lo para fins domésticos - desde o momento em que explode. Assim, o defeito encontra-se claramente demonstrado pelo simples facto de ser haver provado que a garrafa explodiu.

E isto sem que se haja, em contrapartida, provado qualquer facto exterior à própria coisa (não é adequado a produzir a explosão o simples facto de a botija de gás se encontrar na garagem em vez de estar no depósito habitual, nem é justificativo dessa explosão o facto de se encontrarem na garagem três automóveis e lenha seca) que haja causado ou contribuído para a explosão verificada.

Termos em que é de concluir que o ter-se provado que a garrafa de gás explodiu (sendo certo, aliás, que a ré se encarregou da segurança das garrafas fornecidas, bem como do seu funcionamento) é suficiente para se considerar que os autores provaram o defeito da prestação efectuada pela ré.

Doutro passo, e como na responsabilidade contratual se presume a culpa do devedor (art. 799º, nº 1), seria à ré, se quisesse exonerar-se da obrigação de indemnizar, que incumbiria demonstrar que a explosão não ficou a dever-se a culpa sua.

O que, em nosso entendimento, não fez. Em contrário, estando encarregada da segurança e funcionamento das garrafas e gás fornecidos, não impediu que a garrafa entregue ficasse depositada na garagem dos autores (embora tal facto, por si só, não possa justificar a explosão) em vez de a ter colocado no depósito que, para o efeito, existia no quintal daqueles. E não afasta essa culpa presumida, nem a diminui, o mero facto de ter sido a empregada dos autores que indicou ao empregado da ré que colocasse a garrafa na garagem, uma vez que, a entender-se que havia nessa situação qualquer insegurança ou perigo, aquele empregado (agindo por conta da ré, em condições de se considerar a sua actuação como adoptada por ela própria - art. 800º, nº 1) não deveria ter seguido a sugestão da referida empregada, colocando a garrafa no local que lhe estava destinado.

Desta forma, não demonstrada a ausência de culpa da ré, provados os demais requisitos de que depende a obrigação de indemnizar, não restam dúvidas de que está aquela ré constituída na obrigação de indemnizar os autores pelos danos causados pela explosão da garrafa de gás por ela fornecida.

Por último, mais como reforço da posição assumida, cumpre referir que, não se tendo provado que a explosão se ficou a dever a culpa dos autores ou a facto de terceiro, sempre a ré se constituiria na obrigação de indemnizar, independentemente de culpa, nos termos do art. 12º, nº s 1 e 4, da Lei nº 24/96, de 31 de Julho.

É que, considerado consumidor "todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios" (art. 2º, nº 1, do citado diploma), teremos que configurar a relação contratual estabelecida como contrato de consumo, no âmbito do qual o consumidor tem direito, além do mais, à qualidade dos bens e serviços e à prevenção e reparação dos danos patrimoniais ou não patrimoniais que resultem da ofensa de interesses ou direitos individuais, homogéneos, colectivos ou difusos (art. 3º, als. a) e f) da mesma Lei).

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Gozando, nos termos do acima citado art. 12º, caso lhe seja fornecida a coisa com defeito, salvo se dele tivesse sido previamente informado e esclarecido antes da celebração do contrato, do direito de exigir, independentemente de culpa do fornecedor do bem, a reparação da coisa, a sua substituição, a redução do preço ou a redução do contrato (nº 1), e tendo, em todo o caso, "direito à indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do fornecimento de bens ou prestações de serviços defeituosos" (nº 4).

Também por este motivo se justificaria a obrigação de indemnizar os autores.

Atentemos, agora, no quantum indemnizatur.

A obrigação de indemnizar, pautada pelo princípio da restauração natural, tende a repor a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação (art. 562º).

Sendo certo que o dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado - danos emergentes - como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão - lucros cessantes (art. 564º, nº 1), e também os danos de natureza não patrimonial que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito (art. 496º, nº 1). (14)

Demonstrado ficou - nem sequer está posto em causa - que os autores sofreram danos patrimoniais no valor de 32.713,00 Euros correspondentes a 6.558.371$00).

Sustentam, no entanto, estes que os danos não patrimoniais deverão ser compensados com, pelo menos, a atribuição da indemnização de 14.963,93 Euros para cada um dos pais e de 9.975,95 Euros para a filha.

Todavia, e quanto a nós, afigura-se perfeitamente adequada a indemnização fixada no acórdão recorrido (de 1.500 Euros para cada um dos autores).

Na verdade, fazendo apelo à equidade (e note-se que o disposto no art. 494º não é aplicável no âmbito da responsabilidade contratual (15)), e considerando que os meros incómodos ou arrelias não são passíveis de indemnização (16), parece-nos perfeitamente justa e equilibrada a compensação de 1.500 Euros atribuída a cada um dos autores.

Tudo o mais pretendido seria manifesto exagero, inaceitável pelo padrão de que, o recurso à equidade deve traduzir o que, no caso concreto, é justo, ou mais justo.

Por último, dir-se-á que não ocorre, no caso sub judice, qualquer limitação ao montante indemnizatório, já que, por um lado, sendo a responsabilidade contratual e assente na culpa da ré, nunca seria aplicável o disposto no art. 510º, nº 1 (o qual, aliás, conjugado com o art. 509º, apenas se refere a danos causados por instalações de gás, situação que manifestamente aqui não ocorre).

Consequentemente, os montantes das indemnizações a pagar serão os correspondentes a todos os danos que resultaram da explosão da garrafa de gás, ou seja, 32.713,00 Euros quanto aos danos patrimoniais e 1.500 Euros a cada um dos autores, a título de danos não patrimoniais.

E não pode invocar-se, como pretendem os recorrentes, que se a botija de gás estivesse no depósito adequado, os prejuízos não seriam os que se verificaram. Antes de mais, já acima consideramos não ter havido conduta culposa dos autores (nem mesmo das Normas de Segurança anexas ao contrato de fornecimento, que os autores se comprometeram a cumprir, consta a obrigação de colocarem as garrafas de gás no depósito existente). E, por outro lado, encontramo-nos no domínio da responsabilidade contratual em que à devedora que cumpriu defeituosamente não é lícito invocar a relevância de causa virtual.

Por todo o exposto, decide-se:

a) - julgar improcedente o recurso de revista interposto pela ré D;b) - julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelos autores A e mulher B, e filha C;

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c) - alterar o acórdão recorrido, apenas na parte em que fixou o montante indemnizatório devido, a título de danos patrimoniais, condenando a ré a pagar aos autores A e mulher B, a esse título, a quantia de 32.713,00 Euros (correspondente a 6.558.371$00);

d) - manter, no demais, o acórdão recorrido, designadamente na parte em que fixou os montantes a pagar relativamente aos danos não patrimoniais (1.500,00 Euros - correspondente a 300.000$00 - a cada um dos autores);

e) - condenar a recorrente D nas custas da revista que interpôs, bem como a suportar, na proporção do ora decidido, as custas devidas nas instâncias;

f) - condenar os recorrentes autores nas custas da revista que interpuseram, na medida do respectivo decaimento, bem como também, na mesma medida, a suportarem as devidas nas instâncias.

Lisboa, 8 de Maio de 2003Araújo BarrosOliveira BarrosSalvador da Costa________(1) - A que pertencem todas as disposições adiante citadas sem outra indicação.(2) - Cfr. Ac. STJ de 19/11/98, no Proc. 797/98 da 2ª secção (relator Ferreira de Almeida).(3) - Almeida Costa, in "Direito das Obrigações", 5ª edição, Coimbra, 1991, pág. 884. (4) - Neste sentido, Menezes Cordeiro, "Cumprimento Imperfeito do Contrato de Compra e

Venda", Parecer in CJ Ano XII, 4, pág. 44; assim como "Violação Positiva do Contrato", in Estudos de Direito Civil, vol. I, Coimbra, 1987, pág. 134; e Pedro Martinez, in "Cumprimento Defeituoso em especial na Compra e Venda e na Empreitada", Coimbra, 1994, pág. 288.

(5) - "Responsabilidade Contratual e Responsabilidade Extracontatual", in BMJ nº 85, págs. 208 e seguintes.

(6) - Acs. STJ de 09/12/92, no Proc. 81787 da 1ª secção (relator Santos Monteiro); e de 25/03/99, no Proc. 114/98 da 2ª secção (relator Quirino Soares).

(7) - Ac. STJ de 22/04/86, in BMJ nº 356, pág. 349 (relator Moreira da Silva). Curiosamente reporta-se este acórdão a uma situação em que ocorreram danos em consequência da explosão de uma bilha de gás, considerando existir responsabilidade contratual quanto aos danos causados no património do credor e responsabilidade extracontratual, como não podia deixar de ser, relativamente aos danos causados no património dos vizinhos deste.

(8) - Antunes Varela, "Cumprimento Imperfeito do Contrato de Compra e Venda", Parecer in CJ Ano XII, 4, pág. 31;

(9) - "Direito das Obrigações", 5ª edição, Coimbra, 1991, págs. 440 e 441. (10) - Opinião de Claus-Wilhelm Canaris, citado por Carneiro da Frada in "Perturbações

Típicas do Contrato de Compra e Venda", in Direito das Obrigações sob a orientação de Menezes Cordeiro, vol. 3º, Lisboa, 1991, pág. 82. Cfr., ao que parece com igual entendimento, Almeida Costa, ob. cit. pág. 441.

(11) - Posição aliás sustentada, além de outros, nos Acs. STJ de 19/03/85, in BMJ nº 345, pág. 405 (relator Joaquim Figueiredo); de 08/02/94, in CJSTJ Ano II, 1, pág. 95 (relator Fernando Fabião); de 26/05/98, no Proc. 558/98 da 1ª secção (relator Torres Paulo); e de 26/01/99, no Proc. 974/98 da 1ª secção (relator Pinto Monteiro).

(12) - Acs. STJ de 05/11/98, no Proc. 865/98 da 1ª secção (relator Pinto Monteiro); e de 26/01/99, no Proc. 1976/98 da 1ª secção (relator Ferreira Ramos); e de 23/11/2000, no Proc. 3014/00 da 7ª secção (relator Dionísio Correia).

(13) - "Compra e Venda de Coisas Defeituosas", Coimbra, 2001, pág. 43; citando o ilustre jurista, ver Ac. STJ de 23/05/2002, no Proc. 1445/02 da 7ª secção (relator Dionísio Correia).

(14) - Não sofre contestação, hoje em dia, o entendimento de que os danos não patrimoniais são devidos também nos casos de responsabilidade civil contratual (a titulo de exemplo, Acs. STJ de 27/01/93, in BMJ nº 423, pág. 494 - relator Raúl Mateus; e de 12/11/96, no Proc. 163/96 da 1ª secção (relator Pais de Sousa).

(15) - Antunes Varela, in "Das Obrigações em Geral", vol. II, 4ª edição, Coimbra, 1990, pág. 102.

(16) - Ac. STJ de 19/09/2002, no Proc. 1968/02 da 2ª. secção (relator Joaquim de Matos).

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Responsabilidade objectiva do produtor de energia eléctrica e nuclear - pág. 608 e 628, respectivamente, da obra homónima do Prof. Calvão da Silva.

V - Veículos - 503 a 508º

ASSENTOS

nº 1/83, no D.R. IA, de 28.6.83

A primeira parte do nº 3 do artigo 503º do Código Civil estabelece uma presunção de culpa do condutor do veículo por conta de outrem pelos danos que causar, aplicável nas relações entre ele como lesante e o titular ou titulares do direito a indemnização.

Não é inconstitucional por violação do princípio da igualdade entre o condutor por conta de outrem, onerado com presunção de culpa, e o condutor por conta própria ou proprietário que apenas responde pelo risco ou por culpa provada pelo lesado. - T.C. BMJ 438-71 e BMJ 428-540.

Questão resolvida pelo Assento - Segundo acórdão de 24.11.77, a presunção de culpa estabelecida no n.º 3 do art. 503.º opera nas relações entre o condutor lesante e o lesado; por acórdão de 28.2.80 decidira-se que apenas tinha lugar essa presunção nas relações de responsabilidade objectiva do condutor em nome de outrem e o dono do veículo.

nº 3/94, no D.R. IA, de 19.3.94 e BMJ 433-69:

A responsabilidade por culpa presumida do comissário, estabelecida no art. 503°, nº 3, primeira parte, do Código Civil, é aplicável no caso de colisão de veículos prevista no artigo 506º, n.° 1, do mesmo Código.

Questão resolvida pelo Assento - No acórdão recorrido decidiu-se que, ocorrendo uma colisão entre dois veículos, um conduzido pelo seu proprietário e outro por comissário, e não se tendo averiguado a culpa de qualquer deles, a responsabilidade devia ser repartida na proporção do risco, ao passo que, naquele acórdão fundamento, se decidiu que, nas mesmas condições, a responsabilidade devia ser atribuída ao proprietário do veículo conduzido por comissário, por haver uma presunção legal de culpa contra este. Foi esta tese que o Assento consagrou.

nº 7/94, no D.R. IA, de 28.4.94

A responsabilidade por culpa presumida do comissário, nos termos do artigo 503.°, n.°3, do Código Civil, não tem os limites fixados no n.° 1 do artigo 508º do mesmo diploma.

Questão solucionada - dado que a lei não distingue entre culpa provada e culpa presumida e desde que o Assento de 1983 criou uma verdadeira presunção de culpa contra o condutor - comissário, é claro que se não aplicam os limites do

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508º, expressamente legislados para o risco. A limitação da indemnização devida por responsabilidade fundada na culpa apenas está prevista nos casos de mera culpa e de acordo com os critérios do art. 494º.

A questão perdeu acuidade devido à nova redacção do art. 508º e AUJ nº 3/2004, DR IA, de 13 de Maio.

D.R. II, 24.6.96:

O dono do veiculo só é responsável, solidariamente, pelos danos causados pelo respectivo condutor quando se alegue e prove factos que tipifiquem uma relação de comissão, nos termos do artigo 500º, n.° 1, do Código Civil, entre o dono do veículo e o condutor do mesmo.

Questão solucionada: não basta ser proprietário para ser comitente. Comissão significa serviço ou actividade realizada por conta e sob a direcção de outrem, podendo esta actividade traduzir-se num acto isolado ou numa função duradoura, ter carácter gratuito ou oneroso, manual ou intelectual.

No entanto, decidiu-se - Col. STJ 01-I-127 - que

II - O facto de determinada pessoa ser proprietário do veículo causador do acidente cria a presunção, naturalmente ilidível, de que o veículo circulava sob a sua direcção e no seu interesse.

III - De facto, tais requisitos não são elementos constitutivos do direito do lesado, mas, quando não se verificarem, factos impeditivos desse direito.

IV - O comitente responde pelo dano se o acto danoso foi praticado pelo comissário no exercício das funções confiadas e no interesse do comitente, ainda que em concreto sem ou contra as instruções deste.

V - Neste caso, a responsabilidade de ambos é solidária, mas o comitente tem direito de regresso contra o comissário - Ac. STJ, de 20.02.01.

E em 6.12.2001, na Col. Jur. (STJ), 2001-III-141, decidiu o mesmo STJ que: I - A propriedade faz presumir a direcção efectiva e o interesse na utilização do veículo pelo

seu proprietário.II - Sendo tais requisitos de verificação cumulativa é, pois, sobre o proprietário do veículo que

incide o onus de demonstrar o contrário.

Ou, como na base de dados do ITIJ, Processo n.º 01A3460:

I - A propriedade faz presumir a direcção efectiva e o interesse na utilização do veículo pelo proprietário, por presunção natural extraída a partir do art. 1305º, mas admitindo-se que este prove a excepção, fazendo com que o julgador se não decida pelo que é normal de acordo com o art. 349º.

II - Cabe ao dono do veículo o ónus de demonstrar as circunstâncias de onde possa inferir-se que não possuía, no momento do acidente a direcção efectiva do veículo nos termos e para os efeitos do nº 1 do art. 503º do C.Civil.

III - O requisito do interesse na circulação visa afastar a responsabilidade objectiva daqueles que, como o comissário, utilizam o veículo, não no seu próprio interesse, mas em proveito ou às ordens de outrem (o comitente).

IV - Nesta perspectiva, o comissário, conduzindo no interesse alheio, não responde pelo risco, ao abrigo do art. 503º, nº 1. Não tendo ele interesse na circulação e cabendo este ao comitente, será sobre este último que recairá a aludida responsabilidade.

V - Tal interesse pode ser de natureza material ou económica, mas também de natureza moral ou espiritual.

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Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Para obter o ressarcimento dos danos sofridos num acidente de viação ocorrido entre um veículo por si conduzido e um outro conduzido por A, pertencente a B - TÉCNICA DE INCÊNDIO, LDA. e cujos riscos de circulação estavam cobertos até ao montante de 12.000.000$00 por seguro contratado com a COMPANHIA DE SEGUROS C, o autor D demandou todas elas em acção declarativa proposta no 1º Juízo Cível de Coimbra para obter a sua condenação solidária a pagarem-lhe 4.900.000$00 com referência aos danos patrimoniais e não patrimoniais que liquidou na petição inicial e ainda no que em liquidação da sentença a proferir viesse a ser apurado quanto a danos futuros de ambas estas categorias.

Todas as rés contestaram impugnando danos e factos relativos ao acidente, pedindo as duas primeiras a absolvição do pedido e pedindo a terceira que se proferisse sentença de acordo com a factualidade que viesse a ser apurada.

Após saneamento - onde se afirmou a inexistência de obstáculos ao julgamento de mérito quanto a todas as partes -, condensação e audiência de julgamento veio a ser proferida sentença que, dando procedência parcial à acção, condenou todas as rés até ao limite do seguro, e apenas as 1ª e 2ª rés a partir daí, a pagarem ao autor a quantia que vier a ser liquidada em execução de sentença correspondente à indemnização pelos danos não patrimoniais já sofridos - 2.500.000$00 -, danos patrimoniais no montante de 142.500$00 relativos a calças, anel, casaco e custo de relatório médico e danos futuros patrimoniais e não patrimoniais na parte em que não devam considerar-se abrangidos pelas quantias já pagas pela seguradora.

Apelaram a B e o autor, vindo a ser proferido pela Relação de Coimbra acórdão que, revogando em parte a sentença, absolveu do pedido a B e elevou para 4.000.000$00 a indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos desde o acidente e até à propositura da acção.

Inconformado, o autor interpôs este recurso de revista em que, dizendo ter sido violado o disposto no art. 503º, nº 1 do CC e pedindo a revogação do acórdão recorrido na parte em que absolveu a B e a subsistência, nesta parte, do decidido na 1ª instância, formulou ao alegar as seguintes conclusões:

…Trata-se de um acidente havido em 16/12/91, no qual o autor sofreu diversos danos e por

cuja ocorrência foi havida como culpada a ré A, que conduzia um veículo pertencente à B.Sobre este ponto concreto provou-se que:- A ré A conduzia na ocasião do acidente o QO tendo obtido para tanto o acordo do seu

marido que era, ao tempo, sócio gerente da ré B, esclarecendo-se ainda que utilizava o mencionado veículo para se deslocar para a Escola Secundária D. Duarte onde naquela altura leccionava - resposta ao quesito 84º.

Enquanto que na sentença da 1ª instância a responsabilidade da B foi extraída da simples afirmação de ser proprietária do QO, referida ao art. 503º do CC - diploma do qual serão as normas que sem outra identificação referirmos adiante -, já no acórdão recorrido se entendeu que:

- tem sido entendido na jurisprudência que a propriedade faz presumir a direcção efectiva e o interesse na utilização do veículo pelo proprietário, por presunção natural extraída a partir do art. 1305º, mas admitindo-se que este prove a excepção, fazendo com que o julgador se não decida pelo que é normal de acordo com o art. 349º;

- admitindo-se haver direcção efectiva do veículo por parte da B e que a condução não era abusiva, a ela presidiu um interesse meramente egoísta do casal, sem qualquer interesse da B, material ou económico ou de qualquer outra ordem, na circulação do veículo.

O recurso está, como se vê, centrado numa única questão, que é a de saber se a circulação do veículo, no decurso da qual o acidente se deu, teve, ou não, lugar no interesse da B.

Estamos em pleno campo de interpretação e aplicação do nº 1 do art. 503º que responsabiliza pelos danos decorrentes dessa circulação aquele que tem a sua direcção efectiva e em cujo interesse ela é feita, sendo estes requisitos de verificação cumulativa.

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A propósito da direcção efectiva do veículo - embora seja de entender que o mesmo deverá passar-se com o interesse na sua circulação, conforme constataram diversos dos acórdãos a seguir citados -, deve assinalar-se, desde já, que este STJ tem entendido que a mesma cabe ao respectivo dono, cabendo a este o ónus de demonstrar as circunstâncias de onde possa inferir-se o contrário - cfr. acórdãos de 7/7/71, BMJ nº 207, pg. 141, de 1/4/75, BMJ nº 246, pg. 126, de 3/6/75, BMJ nº 248, pg. 399, de 6/5/80, BMJ nº 295, pg. 369, de 13/6/83, BMJ nº 328, pg. 559, de 25/10/83, BMJ nº 330, pg. 511, de 3/11/83, BMJ nº 331, pg. 504, e de 27/10/88, BMJ nº 380, pg. 469.

É assinalado por Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 8ª edição, pg. 670, que o requisito do interesse na circulação "... visa afastar a responsabilidade objectiva daqueles que, como o comissário, utilizam o veículo, não no seu próprio interesse, mas em proveito ou às ordens de outrem (o comitente)".

Também Meneses Cordeiro, Direito das Obrigações, Vol. II, pg. 385, afirma que "... só há interesse próprio quando não haja comissão".

Nesta perspectiva, o comissário, conduzindo no interesse alheio, não responde pelo risco, ao abrigo do art. 503º, nº 1. Não tendo ele interesse na circulação, e cabendo este ao comitente, será sobre este último que recairá a aludida responsabilidade.

O que no caso não releva visto que nenhuma relação de comissão existiu entre a B e a A.

Mas o problema tem de ser visto sob uma outra perspectiva.É ela a da posição do dono do veículo, que pode, como acima se disse, provar que a

circulação se deu sem ser no seu interesse.Este interesse pode ser de natureza material ou económica, mas também de natureza moral

ou espiritual - cfr. Antunes Varela, obra citada, pg. 671 e Dario Martins de Almeida. Manual dos Acidentes de Viação, 2ª edição, pg. 313, que admitem como suficiente um mero interesse de gentileza.

No entanto, tem alguma diferença que o acordo obtido pela A tenha sido dado pelo seu marido, ao tempo sócio e gerente da B, ou que, diferentemente, o tenha sido pela B, através desse seu sócio gerente.

Isto é, o referido interesse de gentileza tanto pode ter sido do marido da A como da B, neste caso exercitado através de um seu gerente. E esta última hipótese não é de descartar visto que, como se depreende dos autos, a A disse, ao prestar depoimento de parte, ser sócia da B; e, tendo isto sido posto em dúvida durante a audiência, veio a ser junta aos autos, a demonstrar tal facto, certidão de uma escritura pública pela qual aquela A comprou em 29/10/90 uma quota desta sociedade.

Por outro lado, um acordo como o referido, a prestar por uma sociedade através de um sócio gerente, não carece de forma especial, pelo que é idóneo para colocar esta numa situação que a não responsabiliza directamente, apenas podendo vir a gerar, eventualmente, uma responsabilidade; ninguém pensará, supomos, em exigir que a ordem a um empregado para se deslocar ao serviço da sociedade num veículo desta teria que ser assinada por dois gerentes...

Assim, tem que se entender que os factos apurados não afastam esta última hipótese, o que leva a que se conclua que a B não afastou cabalmente a pertinência, no caso, da ideia segundo a qual a propriedade do veículo coincide, até demonstração em contrário, com a direcção efectiva do veículo e com o interesse na sua circulação.

Daí que, na falta dessa demonstração, se não possa acompanhar o acórdão recorrido quando afirmou ter havido um interesse meramente egoísta do casal, com exclusão de qualquer interesse próprio da B, nem quando daí retirou, correspondentemente, a desresponsabilização desta.

Por isso a absolvição que nele se decretou quanto a esta ré não pode ser mantida.Concedendo-se a revista, revoga-se o acórdão recorrida na parte em que absolveu a B,

ficando neste ponto a valer a condenação proferida na 1ª instância, com a única alteração, que se mantém, já decretada no acórdão recorrido quanto ao ressarcimento dos danos não patrimoniais.

Custas da revista pela recorrida.A "B" suportará ainda as custas da sua apelação.As custas da apelação do autor serão suportadas pelas aí recorridas.

Lisboa, 6 de Dezembro de 2001Ribeiro CoelhoGarcia Marques

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Ferreira Ramos

«... Com efeito, conforme jurisprudência e doutrina maioritárias, é perfilhado o entendimento de que quem tem a direcção efectiva do veículo é aquele que o tem em uso por conta própria e possui o poder efectivo de dispor dele. Se o põe em circulação, no seu próprio interesse, é ele o criador do risco, e daí a sua responsabilidade objectiva. O interesse pode ser material ou apenas moral, como o daquele que o empresta a outrem por um dever de amizade ou de gratidão.

Por outro lado, tem sido praticamente uniforme a jurisprudência que temos por acertada, que entende ser a propriedade do veículo o invólucro natural da direcção efectiva e interessada dele.

Por isso, provada a propriedade, a primeira aparência de responsabilidade assim criada impõe sobre o proprietário o ónus de prova da utilização abusiva excludente dessa mesma responsabilidade.

Portanto, provada a propriedade do veículo sinistrante sem que o dono afastasse a presunção natural que sobre si impendia de ter a direcção efectiva e interessada dele, nos precisos

termos do art. 503º, nº 1, do Cód. Civil, responde ele pelos riscos inerentes ao funcionamento de tal veículo, sendo de notar que não lhe aproveita a exclusão contemplada no art. 505º do mesmo diploma, só porque o acidente foi causado por culpa (no caso exclusiva) do condutor comitido.

Pelo contrário, tal caso é justamente dos que importam responsabilidade solidária desse condutor culposo por força dos princípios gerais emergentes do art. 483º do CC, em conjugação com a do comitente, segundo o disposto no art. 500º, n.os 1 e 2, do mesmo diploma.

Aqui chegados, isto é, concluindo-se pela responsabilização civil - ainda que objectiva - do dono do veículo sinistrante - no caso o demandado civil Mário Nunes - rapidamente se atinge a conclusão de que não foi correcta a decisão de o absolver.

Repare-se mesmo que o art. 29º, nº 6, supra citado, do DL 522/85, não restringe a intervenção litisconsorcial, ao lado do FGA, ao dono do veículo ou ao condutor dele: a causa deve ser obrigatoriamente dirigida, além do Fundo de Garantia Automóvel, também contra o responsável civil, expressão claramente mais abrangente que as primeiras.

Mas sendo assim, demonstrada que está a responsabilidade civil do dono do motociclo conduzido pelo arguido Júlio Nunes, resulta evidente a razão do recorrente FGA, ao pretender ver revogada a sentença na parte em que absolveu - STJ, Secção Criminal, 22.2.2001, Col. STJ 01-I-269.

Acórdãos STJ (Cons.º Azevedo Ramos), de 23/05/2006, P.º 06A1084, ITIJ

Sumário:I - O termo "comissão" , utilizado no art. 503, nº3, do C.C., tem um sentido amplo de

serviço ou actividade exercida por conta e sob a direcção de outrem, podendo ser um acto isolado ou duradouro, gratuito ou oneroso.

II - Não é necessária uma relação de trabalho subordinado para que se preencha o conceito civilista de comissão.

III - Estando provado que o veículo interveniente no acidente era conduzido por um sócio gerente de uma sociedade por quotas, ao serviço e por conta dessa sociedade, a quem a mesma viatura pertencia, é de considerar que o acidente deve ser imputado, a título de culpa presumida, ao referido condutor, por conduzir tal veículo por conta de outrem e não ter demonstrado que não teve culpa no sinistro.

IV- Tudo isto, por o exercício da gerência se inscrever no referido conceito de comissão, que não é mais do que a função executiva do ente social, exercida em consonância com o objecto da sociedade e de acordo com as linhas mestras definidas pelos sócios em assembleia geral ou por voto escrito.

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

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Em 19-3-03, AA e mulher BB, instauraram a presente acção ordinária contra a ré Empresa-A, pedindo a condenação desta a pagar-lhes a quantia de noventa mil euros, acrescida de juros, como indemnização pelos danos que sofreram em resultado de um acidente de viação ocorrido no dia 30-5-01, em que foram intervenientes o motociclo FQ, conduzido pelo seu filho, CC, e o veículo ligeiro de mercadorias VB, conduzido por DD, sócio-gerente da sociedade Empresa-B, no exercício da actividade desta firma e por conta da mesma, a quem o VB pertencia.

Os autores imputam a culpa exclusiva do acidente, de que resultou a morte de seu filho, ao condutor do VB, seguro na ré, por ter invadido a faixa esquerda de rodagem, no momento em que estava a ser ultrapassado pelo motociclo.

A ré contestou, impugnando a culpa, que atribui ao filho dos autores, por este ter iniciado a ultrapassagem sem respeitar a aproximação das bandas sonoras que existiam antes de uma passadeira para peões e ter imprimido ao seu veículo uma velocidade de 70 Km horários, de tal modo que ao passar por aquelas bandas sonoras perdeu o seu domínio, indo embater no veículo seguro na ré.

Realizado o julgamento e apurados os factos, foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e condenou a ré a pagar aos autores a indemnização de 80.000 euros, acrescida de juros, à taxa anual de 4%, desde a data da sentença e até efectivo pagamento, sentença que a Relação de Coimbra confirmou, na sequência de apelação interposta pela ré.

…2 - Se o sócio-gerente, condutor do VB, não é comissário da sociedade, dona do veículo, não

lhe sendo aplicável a presunção de culpa do art. 503, nº3, do C.C.…A culpa presumida:

O acidente só pode ser imputado a culpa presumida do condutor do VB, nos termos do art. 503, nº 3, do C. C., por conduzir este veículo por conta da "Empresa-B ", e não ter provado que não teve culpa.

Na verdade, embora fosse sócio-gerente da referida sociedade, dona do veículo, o indicado DD conduzia o VB ao serviço e por conta daquela firma, sustentando o seu agregado familiar com os rendimentos auferidos naquela empresa, a qual suporta os encargos com a circulação daquela viatura.

O termo comissão, utilizado no art. 503 do C. C., tem um sentido amplo de serviço ou actividade realizado por conta de outrem, podendo ser um acto isolado ou duradouro, gratuito ou oneroso (Ac. S.T.J. de 8-5-96, Col. Ac. S.T.J., IV, 2º, pág. 253).

A relação de comissão a que se referem os arts 500 e 503 do C. C. não implica o conceito técnico jurídico que lhe é conferido pelos arts 266 e segs do Cód. Comercial, que a configura como um mandato mercantil sem representação, pois basta um serviço realizado por conta e sob a direcção de outrem.

Daí que o comitente seja responsável sempre que exista uma comissão, em tal circunstancialismo, e o comissário cometa um facto ilícito e culposo, no exercício das suas funções.

Não é necessária uma relação de trabalho subordinado para que se preencha o conceito civilista de comissão.

No caso vertente, a relação de comissão entre a sociedade "Empresa-B", como comitente, e o condutor do VB, como comissário, está suficientemente demonstrada, face aos factos apurados.

Nesta linha se tem orientado a jurisprudência dominante deste Supremo Tribunal de Justiça, de que se destaca o Acórdão do S.T.J. de 22-2-01 ( Col. Ac. S.T.J., IX, 2º, pág. 23) que, em caso paralelo, também já decidiu no mesmo sentido, quando nele se escreve:

"O exercício da gerência inscreve-se manifestamente na relação de comissão, assim delineada, até porque aquela mais não é do que a função executiva do ente social (aqui uma sociedade por quotas), exercida em consonância com o objecto da sociedade e de acordo com as linhas mestras definidas pelos sócios em assembleia geral ou por voto escrito.

O gerente não é, pois, dono da sociedade; exerce um serviço por conta e sob a direcção do ente social e delimitado pelo conjunto dos sócios organizados deliberadamente em assembleia".

Posição diversa seria desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade, valendo-se dela para o que é vantajoso e alijando-a para o que for incómodo.

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Tanto basta para se concluir pela culpa presumida do condutor do VB, improcedendo as conclusões do recurso.

Termos em que negam a revista.Custas pela recorrente.

Lisboa, 23 de Maio de 2006Azevedo RamosSilva SalazarAfonso Correia

Em ALD o locatário não é comissário do locador-proprietário - Col. 97-V-192 - Idem para o comprador com reserva de propriedade.

Com base em A. Varela, Obr., 7ª ed., I vol., 651 e ss, o STJ - BMJ 470-582 - decidiu que o locador mantém, com o locatário, a direcção efectiva, no aluguer sem condutor.

503º

A responsabilidade do nº 1 (pelo risco) depende da conjugação de dois requisitos:

direcção efectiva do veículo - constitui uma fórmula de natureza normativa, envolvendo um poder real ou material, de facto, de utilização e destino desse veículo, com a inerente faculdade, quer de manutenção ou conservação, quer de superintendência ou vigilância, com ou sem domínio jurídico. Não precisa ter o volante nas mãos. É o detentor. E

utilização no próprio interesse - não tem que ser necessariamente uma utilização proveitosa ou lucrativa, em sentido económico; pode haver nela um mero interesse de gentileza, como quando se cede a viatura a um amigo, um interesse meramente recreativo, o que não deixa de constituir aquela «posição favorável à satisfação de uma necessidade», na definição dada ao interesse por Carnelutti - D.M. Almeida, Manual de acidentes de viação.

Visa este requisito afastar a responsabilidade objectiva do comissário, o interesse pode até ser reprovável, como o empréstimo para um crime.

O comissário, porque não é criador de risco, não responde nunca pelo risco enquanto comissário. Se deixa de ser comissário, porque conduz fora do exercício de funções, então responde pelo risco, como comitente que passa a ser, nos termos da parte final do nº 3 do art. 503º.

Havendo culpa (provada ou presumida) do comissário, perante o terceiro lesado respondem solidariamente o condutor culpado e o detentor do veículo, sem sujeição aos limites do 508º - BMJ 396-383: O comissário porque culpado - Assentos 1/83 e 7/94; O comitente porque garante da indemnização total, sem limites, mas com direito de regresso - 497º,1, 500º, 1 e 3, 503º,1, 507º, 1 e V. Serra, RLJ 112-263, n.1 e 109-278; A. Varela, Obr., 8ª ed., 675; Col. 87-3-195; Assento nº 7/94.

Se o comissário conduz fora de funções, contra ou sem a vontade do detentor - responde independentemente de culpa, como comitente - 503º, 1 e 3, parte final.

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Comissário é também o ajudante de motorista ou o empregado da CP que dá a partida ao combóio - Col. STJ 95-II-152.

RESPONSABILIDADE CIVILACIDENTE DE VIAÇÃO

DIRECÇÃO EFECTIVA DO VEÍCULOSEGURO OBRIGATÓRIO DO GARAGISTA CONDUTOR SEM CARTA DE

CONDUÇÃO FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL

I - O proprietário de uma viatura automóvel que a entrega a uma oficina para reparação perde a direcção efectiva do veículo a favor deste, durante o período de reparação e enquanto a viatura se encontrar em poder do garagista, o que, desde logo, é indiciado pela existência de um direito de retenção do garagista sobre o proprietário, no caso de não pagamento das despesas efectuadas por aquele (artigos 754º e 755º, nº 1, alíneas e) e d), do Código Civil).

II - A responsabilidade civil do proprietário do veículo e da sua seguradora está excluída quando o acidente de viação, causado por condutor sem carta de condução, e que não foi expressa ou tacitamente autorizado a conduzir o veículo, pelo seu proprietário, é devido a uma causa estranha à vontade deste, numa modalidade de circulação da viatura que se não efectua no interesse do mencionado proprietário.

III Enquanto na legislação sobre o seguro obrigatório de 1979 (constante do Decreto-Lei nº 408/79, de 25 de Setembro) se não previam seguros do garagista e do condutor, e se determinava que a obrigação de segurar recaía sobre o proprietário do veículo (salvo nos casos de usufruto, venda com reserva de propriedade ou locação financeira), mas que era válido o seguro do veículo feito por pessoa diversa daquelas, ao mesmo tempo que se estipulava que, no caso de concorrência de seguros, a obrigação de indemnizar recaía sobre o seguro feito por terceira pessoa, na legislação de 1985 (constante do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro) criou-se um seguro obrigatório do garagista, dando-se vida legal a um seguro que já existira antes (o seguro de carta ou de condutor), e estabeleceu-se um regime de responsabilizações sucessivas, do qual fica afastado o seguro feito pelo proprietário do veículo – Ac. do STJ, de 21.10.92, no BMJ 420-531:

«Dado o exposto, tem de se concluir que, contrariamente ao pretendido pelo recorrente, a viatura causadora do acidente destes autos não possuía qualquer seguro válido, e que, por tal motivo, a responsabilidade pela indemnização recai sobre o Fundo de Garantia Automóvel, em harmonia com o disposto no art. 21º do Decreto-Lei n.° 522/85, de 31 de Dezembro, na redacção do Decreto-Lei n.° 122-A/86, de 30 de Maio, sem prejuízo do direito de regresso que a este é conferido em relação ao condutor e ao garagista».

I - A direcção efectiva de um veículo não depende do domínio jurídico sobre este, podendo existir sem esse domínio, da mesma forma que tal domínio pode existir sem ela, pois essa direcção, intencional e expressamente qualificada pela lei como efectiva, se identifica com o poder real, de facto sobre o veículo em causa.

II - Confiado o veículo, para reparação ou revisão, pelo seu proprietário, a uma garagem, é a entidade proprietária desta que fica com a direcção efectiva do veículo, pelo que, ocorrido um acidente de viação por culpa de um empregado da mesma garagem quando este actuava no exercício dessas suas funções de empregado, não pode ser responsabilizado o proprietário do veículo nem a sua seguradora, mas o garagista ou a sua seguradora – Ac. STJ, de 30. Set. 2004, na Rev. 2445.04.

Ac. do STJ (Cons.º Sebastião Povoas), de 18.5.2006, P.º 06A1274: «O artigo 503º do Código Civil delineia os conceitos de comissão e de direcção efectiva do

veículo.O Doutor Pessoa Jorge define aquele como consistente na "realização de actos de carácter

material ou jurídico que se integram numa tarefa ou função confiada a pessoas diferentes do interessado." (in "Ensaio sobre os pressupostos da responsabilidade civil", 148).

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O acto, ou actividade, é realizado no interesse de outrem do qual o comissário tem uma relação de dependência.

O comitente é responsável se se conjugarem os requisitos da direcção efectiva do veículo e o da utilização no próprio interesse.

A direcção efectiva envolve um poder material de uso e destino do veículo. A utilização no próprio interesse implica uma utilização proveitosa - em sentido económico ou não - do veículo. (cf. Prof. A. Varela - "Das obrigações em geral" I, 671).

A propriedade faz presumir a direcção efectiva e o interesse na utilização, sendo que a jurisprudência deste STJ vem decidindo no sentido de que cabe ao dono o ónus de demonstrar quaisquer circunstâncias de onde se possa inferir o contrário. (cf. vg. os Acórdãos de 7 de Julho de 1971 - BMJ 207-141, de 1 de Abril de 1975 - BMJ 246-126, de 6 de Maio de 1980 - BMJ 295-369, de 13 de Junho de 1983 - BMJ 328-559, e de 27 de Outubro de 1988 - BMJ 380-469).

1.2- Delineados os conceitos é fácil concluir que, "in casu", a direcção efectiva do veículo, aquando do evento, era do seu proprietário.

O mesmo ainda não tinha dado entrado na oficina de reparação nem se encontrava a ser testado, antes ou após a revisão a que ia ser submetido.

O mecânico (garagista) limitava-se a conduzi-lo até à sua oficina - onde teriam lugar os trabalhos - a pedido do dono.

Em regra é o dono, ou pessoa a sua solicitação, que desempenha essa tarefa, não sendo frequente que os mecânicos se desloquem para levar os veículos para reparação.

Se o dono solicitou essa condução ao mecânico - tal como o poderia ter feito em relação a qualquer outra pessoa - não perdeu a direcção efectiva do veículo que continuou a circular no seu próprio interesse.

Nesta linha, o Acórdão do STJ de 31 de Maio de 2005 (Pº 1059/05 1ª) decidiu que "provando-se que na altura do acidente, o condutor do veiculo o levava para lhe efectuar a revisão pedida pelo proprietário do veiculo, e que o condutor transferira a responsabilidade civil pelo exercício da sua actividade, mediante contrato de seguro de garagista, deve considerar-se que a direcção efectiva do veiculo era do proprietário, pois era a pedido e no interesse dele que o veiculo era conduzido."

Trata-se de julgado que merece todo o acolhimento.Daí que a responsabilidade seja da Ré "Empresa-A", na qualidade de seguradora do veiculo,

por provada a culpa do condutor.A condenação desta seguradora exclui a condenação da Ré "Empresa-B", seguradora do

garagista, que vinha demandada a título subsidiário.

Riscos próprios do veículo - máquina-condutor; qualquer avaria mecânica, se não culposa, integra estes riscos. O pneu que pode rebentar, o motor que pode explodir, a manga de eixo ou a barra da direcção que podem partir, a abertura imprevista de uma porta em andamento, a falta súbita de travões ou a sua desafinação, a pedra ou gravilha ocasionalmente projectadas pela roda do veículo; uma vertigem momentânea, um súbito colapso cardíaco, o encandeamento solar ou doutro veículo.

Sendo o acidente provocado por caso de força maior estranho ao funcionamento do veículo (explosão provocada pelo raio de uma tempestade; choque ou colisão provenientes de ciclone, enxurrada, deslocação de terras, queda de uma árvore, rajada de vento, abalo de terra, vaga marítima, etc.), cessa a obrigação de indemnizar com base no risco, pois os danos não são inerentes ao funcionamento do veículo.

Deve notar-se que o combóio tem prioridade absoluta nas passagens de nível, mas o maquinista responde como condutor comissário, tendo contra si a presunção de culpa do nº 3 do art. 503º - Col. STJ 96-II-124.

RESUMO

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Viatura conduzida por um condutor por conta de outrem (no exercício de funções) quando ele age com culpa ou não ilida a presunção do artigo 503º, n.° 3 do Código civil:

- responde o mero condutor, por culpa, podendo beneficiar dos limites do artigo 494° e, solidariamente com este, responde aquele que detém a direcção efectiva dessa viatura e a utiliza no seu interesse, ou seja o comitente, sem os limites do 508º - 497º, nº 1, 500º, n.os 1 e 3, 503º, nº 1 e 507º, 1, Assento 7/94, Col. 87-3-95, V. Serra e A. Varela, acima citados.

Por força da consideração autónoma dos três números em que o corpo do artigo 503º do Código Civil se divide,

- o comissário responde por todos os danos que causar por acidente de viação, desde que não consiga elidir a presunção de culpa que a lei faz incidir sobre ele;

- O detentor do veículo, por conta de quem este seja conduzido, responde nesse caso, não por força do disposto no n.° 1 do artigo 503º, mas em obediência à doutrina que o artigo 500º do Código Civil estabelece para a responsabilidade do comitente pelos danos que o comitido causar - A Varela, RLJ 121-46:

O artigo 503º do Código Civil, a primeira das disposições compreendidas na área da responsabilidade pelo risco proveniente dos acidentes de viação, trata em três proposições normativas distintas da principal questão que a matéria suscita: a determinação das pessoas responsáveis pela indemnização dos danos causados pelo acidente.

No n.º 1 define-se a responsabilidade do detentor do veículo (da tal pessoa que tendo a direcção efectiva do veículo e o utiliza no seu próprio interesse, no momento em que o acidente ocorre), impondo-lhe uma responsabilidade marcadamente objectiva (ele responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veiculo, mesmo que este não se encontre em circulação).

No n.º 2 determina-se, por sua vez, os termos em que respondem, nesta zona especial do risco da circulação terrestre, as pessoas não imputáveis, sujeitando-as ao mesmo regime do equidade e de culpa objectiva aplicável a sua responsabilidade por factos ilícitos.

Por fim, no n.º 3, estabelecem-se as regras a que obedece, em termos perfeitamente autónomos, a responsabilidade dos comissários (daqueles que conduzem o veículo por conta de outrem), distinguindo para o efeito dois tipos de situações:

- o primeiro, constituído pelos casos em que o causador dos danos conduzia por conta de outrem no momento em que o acidente ocorreu, para os quais a lei (1ª parte do n.° 3 do art. 503º) estabelece a presunção de culpa do condutor;

- o segundo, formado pelos casos em que o causador do acidente conduzia fora do exercício das suas funções de comissário, aos quais a lei (2.ª parte do n.º 3 do art. 503º) manda aplicar o princípio da responsabilidade objectiva (pelos riscos próprios do veículo) consagrado no n.º 1 do mesmo artigo 503º.

Por forca da consideração autónoma dos três números em que o corpo do artigo 503º do Código Civil se divide, o comissário responde por todos os danos que causar através do acidente de viação, desde que não consiga elidir a presunção de culpa que a lei faz incidir sobre ele. O detentor do veículo, por conta de quem este seja conduzido, responde nesse caso, não por força do disposto no nº 1 do artigo 503º, mas em obediência à doutrina que o artigo 500.º do Código Civil estabelece para a responsabilidade do comitente pelos danos que o comitido causar.

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Beneficiários da responsabilidade - 504º

Vista a nova redacção dada a este art. 504º pelo Dec-Lei nº 14/96, de 6 de Março, que aplicou em Portugal a Directiva nº 90/232/CEE, de 14.5.90, a questão que se levantava em relação aos gratuitamente transportados deixou de ter interesse: só beneficiavam de indemnização se provassem a culpa do condutor - 504º, 2; agora também são abrangidos na responsabilidade pelo risco, mas só por danos pessoais, sendo nula, quanto a pessoa transportada, cláusula em contrário - 504º, 3 e 4.

A nova redacção do art. 504º apenas é aplicável aos casos ocorridos depois da sua entrada em vigor - BMJ 491-207.

Transporte gratuito - é o não pago, gracioso, por cortesia, a boleia - BMJ 459-527.

Exclusão da responsabilidade pelo risco - 505º A responsabilidade prevista no art. 503º, nº 1, só é excluída, nos termos do

artº 505º, quando o acidente for imputável, devido, atribuível, ao próprio lesado ou a terceiro, mesmo animal, ou quando resulte de causa de força maior estranha ao funcionamento do veiculo.

É terceiro o condutor por conta de outrem, acidentado, sem culpa, por rebentamento de um pneu do carro que conduzia - Col. 96-II-5.

Podem dar causa a acidente menores e inimputáveis em geral, pelo que aí cessa a responsabilidade pelo risco - BMJ 413-554: menor de sete anos atropelado com inteira culpa dele.

Não há concorrência entre culpa do lesado ou de terceiro e risco do veículo. Pode é haver concorrência de culpas, regulada no art. 570º, entre o condutor e a vítima – A. Varela, Obrigações em Geral, I, 9ª ed., 699 e ss.

Diferente entendimento do Prof. Calvão da Silva no seu ensino, como pode ver-se na RLJ 134-115:

Sem prejuízo do concurso da culpa do lesado, a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo.

Equivale isto a admitir o concurso da culpa da vítima com o risco próprio do veículo, sempre que ambos colaborem na produção do dano, sem quebra ou interrupção do nexo de causalidade entre este e o risco pela conduta da vítima como causa exclusiva do evento lesivo. Afora o caso de o facto do lesado (como o facto de terceiro) ter sido a causa única do dano, a responsabilidade fixada pelo n.º 1 do art. 503º não é afastada, admitindo-se que a indemnização seja totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída.

Força maior - tem de ser estranha ao funcionamento do veículo e inevitável com as precauções normalmente exigíveis aos condutores.

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"Caso de força maior (na definição de Enneccerus-Nipperdey) é o acontecimento cognoscível, imprevisível e que não deriva da actividade em curso, e que, por isso mesmo, lhe é exterior, e cujo efeito danoso não pode evitar-se com as medidas de precaução que racionalmente seriam de esperar. Desta sorte, para se poder dizer que há uma causa de força maior é necessário que o acontecimento causal seja exterior à pessoa do detentor e da própria coisa que provoca ou produz o risco".

Assim, "a causa de força maior configura-se pelo seu carácter de facto imprevisível (para as pessoas normalmente avisadas) e inevitável (apesar de toda a diligência possível). Objectivamente, surge como fenómeno inesperado; subjectivamente, toda a diligência possível é inoperante para o deter ou minimizar. Para poder excluir a responsabilidade pelo risco terá de ser, porém, estranha ao funcionamento do veículo".

Ora, in casu, não era a situação imprevisível porquanto a chuva que caíra e havia humedecido o terreno em que a máquina trabalhava, assim como a proximidade de pessoas como o sinistrado, faziam prever, pelo menos para uma pessoa medianamente avisada, que o piso pudesse ceder ao peso de uma máquina como a utilizada e a máquina viesse a atingir qualquer daquelas pessoas.

Ademais, o desequilíbrio da máquina nem sequer é estranho ao seu funcionamento, constituindo um dos riscos próprios deste género de veículos, qualquer que seja a sua causa. Sendo certo que as circunstâncias em que ocorreu aquele desequilíbrio não podem ser consideradas excepcionais ou anómalas para poderem afastar o nexo de causalidade adequada entre os riscos próprios do veículo e o acidente.

Desta forma, parece inteiramente justificada a conclusão de que a ré "José Moreira Fernandes & Filhos, Lda.", é responsável pelos danos causados (nos termos do art. 500°, n° 1, do Cód. Civil), já que o condutor da retro escavadora era seu empregado, actuando sob as suas ordens, no exercício das respectivas funções – Ac. STJ (Consº Araújo Barros) de 4.10.2004, na Col. Jur. (STJ) 2004-III-43.

Provando-se apenas que o condutor de um veículo não teve culpa no acidente e não se provando culpa da vítima, de terceiro ou caso de força maior, existe responsabilidade pelo risco a cargo de quem tiver a direcção efectiva da viatura e a utiliza no seu próprio interesse - 505º e 503º, 1 - Col. 82-I-95.

Acidente de viação Responsabilidade pelo risco Culpa não provadaCondutor/proprietário do veículo Peão

I - Num acidente de viação entre um veículo automóvel e um peão, face à ausência de culpa provada, pelo afastamento da responsabilidade subjectiva de ambos os intervenientes, a questão terá de ser analisada sob o prisma da responsabilidade pelo risco, com fundamento no n.º 1 do artigo 503º do Código Civil

II - Tal responsabilidade apenas será de excluir se o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro, ou houver resultado de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo.

III - É, também, de afastar a presunção de culpa do nº 3 do artigo 503º do Código Civil quando o condutor do veículo atropelante for também seu proprietário - STJ 23.3.2000, BMJ 495-298

Ac. do STJ (Cons.º Ferreira de Almeida), de 14/04/2005, P.º 05B686 do ITIJ:

I. O nexo de causalidade (naturalístico) constitui matéria de facto, cujo conhecimento, apuramento e sindicância se encontram subtraídos ao Supremo, como tribunal de revista que é, sendo que indagar se, na sequência do processamento naturalístico dos factos, estes funcionaram ou não como factor desencadeador ou como condição detonadora do dano, é algo que se insere no puro plano factual.

II. Subjaz à responsabilidade pelo risco a que se reporta o artigo 503°, n°1, do Código Civil, o princípio "ubi commoda ibi incommoda": os veículos são portadores de perigos especiais que obrigam a determinados cuidados ou prevenções por banda de quem os possui ou utiliza, pelo que quem concretamente (da respectiva utilização) retira os benefícios e colhe os correspondentes proveitos,

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terá também de suportar os inerentes incómodos (advenientes do perigo de circulação da própria viatura) e independentemente de existência de culpa por banda do seu proprietário.

III. Se não ficar provada a culpa de qualquer dos intervenientes para a produção do evento danoso, é de convolar a responsabilidade baseada na culpa para responsabilidade baseada no risco, sendo que uma tal convolação se traduz numa operação de qualificação jurídica.

Por o acidente ser claramente imputável a terceiro não pode a CP ser responsabilizada por danos causados em passageiro por pedra arremessada por desconhecido e que atingiu esse passageiro - Col. STJ 2001-I-75.

Colisão de veículos - 506º

1 - CULPA - provada ou presumida

a) - de ambos os condutores - cada um responde pelos danos correspon-dentes ao facto que praticou - 483º e 570º. Em caso de dúvida considera-se igual a culpa de cada um - 506º, in fine.

Quando para a produção de um acidente tenham concorrido vários veículos cujos condutores agiam por conta de terceiro, e que não tenham logrado ilidir a presunção estabelecida na primeira parte do nº 3 do art. 503º do Código Civil, consideram-se com o mesmo grau de culpa para efeitos de reparação de danos causados a terceiros - Col. 90-I-293 e Assento de 26.1.94, o nº 3/94, também publicado no BMJ 433-69.

No caso de colisão de veículos conduzidos por comissários, e não se provando a ausência de culpa de algum deles, o acidente deve ser atribuído a culpa de ambos os condutores, os quais são solidariamente responsáveis pelos danos causados a terceiros (artigo 497.°, n.º 1).

Em relação aos danos sofridos por ambos ou por algum desses condutores, deverá atender-se, na fixação da indemnização, ao disposto no artigo 570º, n.° 1; o «facto culposo do lesado», aí previsto, pode basear-se em simples culpa presumida, quando for desta natureza a culpa do lesante, até pelo confronto com o disposto no n.° 2 desse artigo; há aí culpas simultâneas e concorrentes, porque «à culpa de cada um dos condutores corresponde a culpa de cada um dos lesados» - BMJ 426-471.

b) - de um só dos condutores - só ele responde por todos os danos: no outro veículo, pessoas e coisas transportadas em ambos os veículos ou não.

2) - SEM CULPA

a) - Danos nos dois veículos :No caso de colisão de veículos prevista no artigo 506.°, n.º 1, do Código Civil,

em que ambos os condutores tenham contribuído para os danos e não haja culpa de nenhum deles, há que somar todos os danos resultantes da colisão (não só os causados nos próprios veículos como também os causados nas pessoas ou nas coisas neles transportadas) e repartir a responsabilidade total na proporção em que cada um dos veículos houver contribuído para a produção desses danos, sendo que, em caso de dúvida, se considera igual a medida de contribuição de cada um dos veículos para os danos, nos termos do n.° 2 do mesmo artigo - BMJ 439-538 e art. 506º, nº 1, 1ª parte.

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b) - Danos em um só dos veículos - idem; reparte-se a responsabilidade nesse dano segundo a proporção em que o risco de cada um dos veículos para ele contribuiu.

3 - Danos causados por um só dos veículos - só aquele que os produziu é obrigado a indemnizar - 506º, 1, parte final.

Resp. Solidária - 497º (culpa) e 507º (risco)

Havendo vários responsáveis, ainda que um responda por culpa e outro pelo risco, é solidária a responsabilidade de todos, designadamente quando o comissário responde por culpa presumida e o comitente pelo risco, como garante da indemnização. Pelo que o lesado pode exigir de qualquer deles a indemnização por inteiro - 512º, nº 1.

Porém, se o lesado tiver contribuído para o acidente, verá proporcional-mente reduzido o montante indemnizatório a que teria direito - Col. 00-I-268

Ac. do STJ (Cons.º Ferreira de Almeida) de 24.6.2004, na Col. Jur. (STJ) 2004-II-15:

«11. Responsabilidade civil das RR. perante a lesada. A responsabilidade das seguradoras mede-se e afere-se, como é sabido, pela dos

respectivos segurados, o que constitui, de resto, o cerne e o escopo do contrato de seguro.A sinistrada (peão) foi atropelada na berma da via, tal como vem assente em sede factual.Nenhuma das RR. aceita a responsabilidade do respectivo segurado, antes a imputando ao

outro segurado co-interveniente.Sustenta a Ré "Tranquilidade" que foi o "RD" que iniciou a ultrapassagem quando o "JP" já

estava a executar a manobra de ultrapassagem, assim lhe cortando a linha de trânsito; pelo contrário, afirma a Ré "HDI" que foi o "JP" que pretendeu efectuar uma dupla ultrapassagem, ou seja: ultrapassar o "RD" quando este já empreendia a ultrapassagem a outro veículo.

Mas o que nos mostram os autos em material de facto?- à frente do "JP", seguia um táxi, à frente do táxi seguia o "RD", à frente deste seguia um

veículo automóvel de instrução de condução auto;- o veículo "JP" iniciou a ultrapassagem do táxi, pela esquerda;-o veículo "RD" iniciou a ultrapassagem do veículo que o precedia, invadindo a hemifaixa

esquerda;- para evitar embater no "RD", o condutor do "JP" travou e desviou-se para a sua esquerda

invadindo a berma onde colheu a Elsa Maria;- o local é um recta de boa visibilidade, com 6,10 metros de largura.Tal como salientou a Relação, perante tal factualidade não se torna possível concluir com

segurança a qual dos condutores atribuir a culpa pela produção do evento.Qual dos dois veículos "JP" ou "RD" iniciou (primeiro) a manobra de ultrapassagem do

veículo que seguia à sua frente, sem que previamente se houvesse certificado de que o poderia fazer sem perigo de aciente?

Ou seja a qual dos condutores imputar, em exclusivo, a contra-ordenação causal p. e p. no art. 38°, n.os 1 e 2, al. c), do CE/94?

Sem dúvida que ambos executaram uma manobra de ultrapassagem do veículo que seguia à sua frente, mas não se torna possível saber, com um mínimo de certeza e segurança, qual das manobras haja funcionado como causa principalmente detonadora do sinistro e qual o grau/proporção de culpa, se é que ela existiu, de cada um dos condutores em presença.

A Relação não usou a este respeito de qualquer presunção judicial, tal como era teoricamente possível fazê-lo com apelo ao disposto no art. 349° do Cód. Civil.

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Antes subsumiu a hipótese na estatuição-previsão nos n.os 1 e 2 do art. 506º e art. 507°, nº 1 do Cód. Civil - critério da repartição do risco - e a verdade é que tais normas não contemplam apenas os casos de danos para qualquer um dos veículos ou para ambos advenientes de uma colisão entre eles, mas também os danos resultantes para terceiro, (designadamente um peão que seja colhido na berma da estrada por qualquer deles em consequência da colisão entre ambos, tal como sucedeu na hipótese sub judice).

Tal como escreve Antunes Varela in "Das Obrigações em Geral", vol I, 9ª ed., págs. 710 e 711, trata-se de "danos em cujo processo causal interferem simultaneamente os dois veículos e, que, nessa ordem de ideias, não podem deixar de recair sobre as pessoas por cuja conta corre o risco dos veículos". E isto porque "as considerações que mandam atender à contribuição do risco quanto aos danos causados nos veículos, procedem no sentido de outro critério não dever vigorar quanto aos danos restantes provocados pela mesma ocorrência (concreta). Outro critério de repartição seria ilógico e, além de ilógico, arriscava-se seriamente a ser injusto".

E, mais adiante: "se a disposição do art. 506º, nº 1, 1ª parte, se funda "em que o dano causado aos dois veículos ou a um destes o é por ambos eles, devendo, por isso, ter-se em conta esse facto na fixação da indemnização devida pelos responsáveis, é incontestável que esse fundamento tanto colhe para os danos causados nos veículos como para os restantes danos provenientes da colisão".

E, finalmente: como nenhuns elementos fazem crer que o art. 506° tenha querido estabelecer princípios diferentes para os vários núcleos de danos provenientes da colisão, deve o preceito ser interpretado extensivamente, de molde a abranger todos os prejuízos que tenham tido como causas concorrentes os riscos próprios dos dois veículos".

Depara-se-nos, deste modo, um caso de colisão de veículos em que se não torna viável estabelecer a contribuição de cada um dos veículos intervenientes para os danos causados a terceiro, devendo em tal circunstância e em caso de dúvida - e por força do disposto no n° 2 do art. 506º do Cód. Civil - ficcionar como igual a medida dessa contribuição, bem como a contribuição da culpa de cada um dos condutores para o desencadear do evento.

De qualquer modo "em face do terceiro lesado, seja na sua pessoa, seja nos seus bens, qualquer dos detentores do veículo responde solidariamente pela reparação integral do dano" - conf. ob. e loc. cits., pág. 711, nota 1.

Como assim, nas relações externas em face do terceiro lesado, a responsabilidade dos condutores é solidária, como solidária é a das respectivas seguradoras perante o sinistrado (art. 507°-, n° 1 do Cód. Civil), por força do contrato de seguro.

E à seguradora que houver pago a indemnização por acidente simultaneamente de viação e de trabalho assiste direito de regresso contra o terceiro causador do acidente, responsável quer a título de culpa quer a título de risco, podendo exigir a reparação integral do dano ou à entidade patronal ou ao causador do acidente ou à respectiva seguradora.

No sentido de que o direito da entidade patronal (ou da respectiva seguradora) do sinistrado em acidente simultaneamente de viação e de trabalho contra terceiro responsável pelo acidente (ou respectiva seguradora) para reembolso das quantias pagas é um direito de regresso, veja-se, vg, o Ac. do STJ de 24/05/01, in Proc. 1342/01 – 2ª Sec.

Limites máximos - 508º

Este art.º 508º tem, desde o Dec-lei n.º 59/2004, de 19 de Março, esta redacção:

1 - A indemnização fundada em acidente de viação, quando não haja culpa do responsável, tem como limite máximo o capital mínimo do seguro obrigatório de responsa-bilidade civil automóvel.

2 - Se o acidente for causado por veículo utilizado em transporte colectivo, a indemnização tem como limite máximo o capital mínimo do seguro obrigatório de responsa-bilidade civil automóvel estabelecido para os transportes colectivos.

3 - Se o acidente for causado por veículo utilizado em transporte ferroviário, a indemnização tem como limite máximo o capital mínimo do seguro obrigatório de responsa-bilidade civil estabelecido para essa situação em legislação especial.

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Já depois de publicado este Dec-lei o STJ fixou jurisprudência pelo AUJ n.º 3/2004, de 25 de Março, no DR IA, de 13 de Maio, nos termos seguintes:

O segmento do art. 508º, n.º 1, do Código Civil, em que se fixam os limites máximos de indemnização a pagar aos lesados em acidentes de viação causados por veículos sujeitos ao regime do seguro obrigatório automóvel, nos casos em que não haja culpa do responsável, foi tacitamente revogado pelo artigo 6º do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, na redacção dada pelo Dec-lei n.º 3/96, de 25 de Janeiro.

Precisamente porque se trata aqui de responsabilidade sem culpa, a lei fixou limites à indemnização devida por responsabilidade objectiva. São esses limites os fixados no art. 508º.

A interpretação desta norma não suscita dificuldades de maior. Notar-se-á, ainda assim, que:

1 - Os limites máximos de indemnização também valem para o caso de colisão de veículos que envolva duas ou mais viaturas.

2 - De acordo com o artigo 12º, do Código Civil, a lei só dispõe para o futuro e só para os factos novos quando dispõe sobre os seus efeitos. Assim, os limites máximos do artigo 508º do Código Civil são os estabelecidos por este texto na redacção vigente ao tempo do acidente de viação - BMJ 439-538.

Dada a natureza interpretativa e o texto do AUJ n.º 3/2004, desde o Dec-lei n.º 3/96, de 25 de Janeiro, os limites indemnizatórios em cada momento vigo-rantes são os estabelecidos para o seguro obrigatório automóvel.

3 - Os limites máximos de indemnização fixados no artigo 508°, na redacção aplicável ao caso, só operam depois de repartida a responsabilidade pela forma determinada no artigo 506º - BMJ 439-547.

4 - Este limite fixado no artigo 508º do Código Civil só funciona depois de determinado concretamente o montante da indemnização que seria devida, abstraindo desse limite - BMJ 420-468.

5 - Sobre este limite legal podem incidir juros de mora, se devidos, e ainda que a seguradora tenha limite de capital seguro - BMJ 375-342, 428-572 e Col. 88-III-89. É que os juros são devidos pela mora e não por força do seguro.

Ac. de viação e de trabalho

Ver o Ac. do STJ de 24.01.2002, na Col. Jur. (STJ) 2002-I-54:

ACIDENTE DE VIAÇÃO E DE TRABALHO

Complementaridade das indemnizaçõesÂmbito da reparaçãoDanos não-patrimoniais

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SUMÁRIO:

I - As indemnizações por acidente simultaneamente de viação e de trabalho não são cumuláveis e sim complementares, subsistindo a emergente do acidente de trabalho para além da que foi paga pelos danos causados pelo acidente de viação.

II - Em princípio a reparação dos danos emergentes do acidente de trabalho compreende apenas as prestações previstas na base IX da Lei 2127 de 3 de Agosto de 1965, quando aplicável.

III - A inacumulabilidade das indemnizações simultaneamente por acidente de viação e de trabalho apenas faz sentido em relação aos danos patrimoniais.

IV - Na medida em que concorrem uma com a outra, prevalece a responsabilidade subjectiva do terceiro sobre a responsabilidade objectiva patronal, assumindo esta um carácter subsidiário ou residual.

V - Se o lesado exerceu o direito à indemnização contra o responsável pelo acidente de viação e foi por este indemnizado, não podendo cumular ambas as indemnizações, importa observar o disposto nos nºs. 2. e 3. da base XXXVII da Lei 2127 quando aplicável.

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:I - A Companhia de Seguros Fidelidade, S.A. intentou, em 30 de Janeiro de 1997, no Tribunal

Judicial da Comarca de Águeda, acção declarativa com processo sumário contra a Companhia de Seguros Metrópole, S.A., ambas com os sinais dos autos, pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de Esc. 3.230.875$00 e respectivos juros, quantia que pagou pela sua segurada, a “Ourivesaria e Relojoaria Arromba” para reparar os danos sofridos pelo empregado desta, Abílio Silva, num acidente de viação e de trabalho, em consequência de um ramo de acidentes de trabalho celebrado com a referida entidade patronal, titulado pela apólice nº 5083993.

A Ré contestou por impugnação e excepcionou a sua ilegitimidade, a prescrição e a existência de caso julgado, tendo a Autora, na sua resposta, pugnado pela improcedência de tais excepções.

…Foi dispensada a realização da audiência preliminar, nos termos do disposto no artigo 787º,

nº 1, do CPC. E, em obediência ao citado acórdão da Relação de Coimbra, de 4 de Maio, foi, em 5 de Maio

de 2000, proferido despacho saneador, no qual, depois de se decidir julgar improcedente a excepção de caso julgado e de relegar para momento posterior o conhecimento da também alegada excepção da prescrição, se passou ao imediato conhecimento do pedido, tendo-se concluído que não impendia sobre a Ré a obrigação de proceder ao reembolso, uma vez que, tendo sido já demandada pelo acidente de viação e pago a respectiva indemnização, ficou desonerada não só perante o lesado mas também perante a Autora, isto é, a seguradora que reparou os danos do acidente de trabalho. E, não recaindo sobre a Ré a obrigação em cujo cumprimento vinha pedida a sua condenação, igualmente se concluiu que se mostrava destituída de interesse a questão da alegada prescrição de tal obrigação. Termos em que a acção foi julgada improcedente, absolvendo-se a Ré do pedido - cfr. fls. 162-171.

Inconformada, a Autora apelou, tendo o Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão de 19 de Junho de 2001, de fls. 195 a 207, decidido considerar improcedente o recurso, confirmando a decisão recorrida.

Continuando inconformada, traz a Autora a presente revista…. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - São os seguintes os factos dados como assentes pela 1ª instância:- Em 24-04-92, em área da comarca de Águeda, ocorreu um acidente que as partes

consideraram como de viação e de trabalho.- A Autora, anteriormente a esse acidente, celebrara com a entidade patronal do sinistrado,

Abílio José Dias Silva, um contrato de seguro de acidentes de trabalho, titulado pela apólice nº 5083993, que abrangia os trabalhadores ao sai serviço, dele beneficiando o sinistrado.

- Este instaurou contra a Ré uma acção sumária (de indemnização por acidente de viação), por ser ela a seguradora do veículo a cujo condutor o sinistrado atribui a culpa na produção do acidente.

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- Tal acção correu termos por este Juízo e Tribunal, com o n” 208/95, e nela o sinistrado e a ora Ré chegaram a acordo, por transacção homologada por sentença, nos termos da qual esta se obrigou a pagar-lhe a quantia de Esc. 2.250.000$00, quantia para a qual reduziu o pedido e com cujo recebimento se deu por totalmente indemnizado pelos danos de natureza patrimonial e não patrimonial que lhe advieram do referido acidente.

- A Ré pagou ao sinistrado essa quantia em 10-05-96, do que ele deu quitação.- Do acidente resultaram para o sinistrado lesões que lhe provocaram uma IPP de 27,75%.- No cumprimento das suas obrigações contratuais, por via desse acidente, a Autora suportou

despesas e pagamentos no montante global de 3.230.875$00.Consta dos autos, a fls. 89, certidão da acta de audiência, realizada em 08-05-96, onde se

estabelecem os termos da transacção, homologada por sentença, que pôs termo à acção sumária nº 208/95. Ali se prescreve, além do mais, o seguinte: “1º O autor reduz o pedido para o montante de dois milhões duzentos e cinquenta mil escudos. (…) 3º Com o recebimento desta quantia, o autor considera-se totalmente indemnizado pelos danos patrimoniais e não patrimoniais destes autos, contra a ré Companhia de Seguros Metrópole”.

Justifica-se ainda reproduzir o teor do recibo, datado de 10 de Maio de 1996, junto aos autos pela Ré, ora Recorrida, na sequência do ordenado pelo Tribunal da Relação de Coimbra de 4 de Maio de 1999 (cfr. fls. 155, vs.). É o seguinte o conteúdo de tal documento:

RECIBO DE INDEMNIZAÇÃOEu, Abílio José Dias Silva, casado, relojoeiro, residente no lugar de Fermentões, freguesia de

Valongo do Vouga, concelho de Águeda, declaro que recebi da Companhia de Seguros Metrópole, S.A. a quantia de 2.250.000$00 (dois milhões duzentos e cinquenta mil escudos) como indemnização por todos os danos patrimoniais reclamados no processo nº 208/95 que correu seus termos pelo 1º Juízo do Tribunal Judicial de Águeda e de acordo com o termo de transacção efectuado em tal processo.

III - 1 - A pretensão da Autora de ser reembolsada, pela Ré, do montante que pagou a título de seguradora de acidentes de trabalho.

O caso dos autos é um caso em que os danos foram provocados por um acidente que é simultaneamente acidente de viação e acidente de trabalho ou de serviço.

Nos termos do nº 1 do artigo 18º do Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro, “quando o acidente for simultaneamente de viação e de trabalho aplicar-se-ão as disposições deste diploma, tendo em atenção as constantes da legislação especial de acidentes de trabalho”.

À data do acidente encontrava-se em vigor a Lei nº 2127, de 3 de Agosto de 1965, que promulgou as bases do regime jurídico dos acidentes de trabalho e doenças profissionais (1).

Na economia da Lei nº 2127 assume particular relevo a Base XXXVII, que previne para a hipótese de o acidente ser causado por companheiro de trabalho ou por terceiros (2).

O interesse desta Base reside no especial regime que estabelece sempre que o sinistrado do trabalho fica, em razão do acidente, titular de dois direitos de reparação: um pelo risco, perante a entidade patronal; outro por facto ilícito culposo, perante terceiro. Os casos, de longe, mais frequentes em que se desencadeia esta confluência de responsabilidades são os dos acidentes de viação de que são vítimas trabalhadores em serviço de entidades patronais, quando tais acidentes são culposamente provocados por “terceiros” (3).

2 - Acerca do regime próprio dessa concorrência de responsabilidades, há que distinguir entre o plano das relações externas - relações entre cada um dos responsáveis e o lesado - e o domínio das relações internas - relações entre os dois (ou mais) responsáveis pela reparação dos danos.

2.1. - No quadro das relações externas, o lesado poderá exigir a reparação dos danos causados pelo acidente, quer da entidade patronal, quer do condutor ou detentor do veículo.

Mas, como salienta, com desenvolvimento, o acórdão recorrido, só neste aspecto se pode falar de uma responsabilidade solidária da entidade patronal e do detentor do veículo. O outro aspecto do regime de solidariedade, que consiste no facto de a prestação de um dos devedores liberar o(s) outro(s), já não ocorre nestes casos. Na verdade, se a indemnização paga pelo detentor do veículo extingue, de facto, a obrigação de indemnizar a cargo da entidade patronal, já o inverso não é exacto, na medida em que a indemnização paga por esta não extingue a obrigação a cargo do responsável pelo risco do veículo ou pela culpa do respectivo condutor.

Por outro lado, as duas indemnizações não se podem somar uma à outra.

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2.2. - No plano das relações internas, há que distinguir. Assim:a) se é o detentor do veículo quem paga a indemnização devida, não lhe assiste nenhum

direito em relação à entidade patronal, excepção feita aos casos da existência de culpa por parte desta na produção do dano;

b) No entanto, se a indemnização for paga, no todo ou em parte, pela entidade patronal, esta ficará sub-rogada, nos termos da referida Base XXXVII da Lei nº 2127, nos direitos do sinistrado.

Esta diversidade de tratamento evidencia que a lei não coloca os dois riscos no mesmo plano. Como ensina Antunes Varela, “o risco próprio do veículo causador do acidente funciona como uma causa mais próxima do dano do que o perigo inerente à laboração da entidade patronal” (4).

Não se justifica, no entanto, no caso ora em análise, prosseguir o excurso de índole teórica a que temos vindo a proceder, uma vez que ambas as partes estão de acordo em que o acidente em causa foi de viação e de trabalho e a Recorrida aceita o montante das despesas alegadas pela Recorrente, bem como o direito a ser reembolsada delas.

O que se discute é se esse reembolso deve ser feito pela Recorrida, como pretende a Recorrente, ou pelo sinistrado, como entenderam as instâncias e tal como considera a Recorrida.

3 - Da conjugação dos quatro números da Base XXXVII da Lei nº 2127, pode traçar-se o seguinte quadro de situações possíveis, para o caso de o responsável pelo acidente de trabalho ter pago à vítima a indemnização do acidente:

a) - se a vítima recebeu indemnização pelo acidente de viação, a entidade patronal ou a sua seguradora, que pagaram, terão o direito de ser reembolsadas pela vítima – cfr. os nºs 2 e 3 da referida Base;

b) - se a vítima não recebeu indemnização pelo acidente de viação, e se ainda não propôs acção contra os responsáveis pelo acidente de viação, a seguradora da entidade patronal, que houver pago, não pode exercer o direito de regresso contra os responsáveis antes de decorrido um ano após o acidente;

c) - decorrido um ano sem que a vítima proponha a acção contra os responsáveis pelo acidente de viação, já a entidade patronal ou seguradora desta poderão exercer, em acção própria, o direito de regresso contra os responsáveis pelo acidente de viação;

d) - uma vez instaurada a acção pela vítima contra os responsáveis pelo acidente de viação, seja antes ou depois de decorrido o prazo de um ano a contar da data do acidente, a entidade patronal ou a seguradora desta têm o direito de intervir como parte principal nessa acção, para aí formular a pedido de reembolso.

4 - Tendo presente o exposto e, bem assim, a matéria de facto dada como provada, acima reproduzida, para que ora se remete, vejamos quais as ilações a extrair relativamente ao caso sub judice.

Em primeiro lugar, as indemnizações por acidente, ao mesmo tempo, de trabalho e de viação não são cumuláveis. São, isso sim, complementares, subsistindo a emergente do acidente de trabalho, para além da que foi paga pelos danos causados pelo acidente de viação.

Em segundo lugar, e em princípio, a reparação dos danos emergentes de acidente de trabalho, compreende apenas as prestações previstas na Base IX da Lei nº 2127, que estabelece o seguinte:

O direito à reparação compreende as seguintes prestações:a) Em espécie: prestações de natureza médica, cirúrgica, farmacêutica e hospitalar e outras

acessórias ou complementares, seja qual for a sua forma, desde que necessárias e adequadas ao restabelecimento do estado de saúde e da capacidade de trabalho ou de ganho da vítima e à sua recuperação para a vida activa;

b) Em dinheiro: indemnização por incapacidade temporária absoluta ou parcial para o trabalho; indemnização em capital ou pensão vitalícia correspondente à redução na capacidade de trabalho ou de ganho; em caso de incapacidade permanente: pensões aos familiares da vítima e despesas de funeral, no caso de morte.

Não constando da previsão do normativo acabado de reproduzir qualquer referência aos danos não patrimoniais, significa isto que a inacumulabilidade das indemnizações por acidente, simultaneamente, de trabalho e de viação, apenas faz sentido em relação aos danos patrimoniais.

Em terceiro lugar, na medida em que concorrem uma com a outra, prevalece a responsabilidade subjectiva do terceiro sobre a responsabilidade objectiva patronal. Assim se entende que esta última assuma um carácter subsidiário ou residual. Como escreve Vítor Ribeiro, a

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responsabilidade patronal “extingue-se ou não conforme haja ou não efectivo pagamento da primeira”, isto é, da responsabilidade subjectiva de terceiro (5).

Em quarto lugar, se o lesado exerceu o direito à indemnização contra o responsável pelo acidente de viação e foi por este indemnizado - situação que, como já se viu, corresponde ao caso dos autos -, não podendo cumular ambas as indemnizações, importa observar o disposto nos nºs 2 e 3 da Base XXXVII. Trata-se de situação subsumível ao caso da alínea a) supra enunciada no ponto 3.

5 - Aproximemo-nos agora do caso concreto.O sinistrado e a recorrida chegaram a acordo quanto ao pagamento de uma indemnização

por danos patrimoniais e não patrimoniais, não se discriminando no quantum global de 2.250.000$00 os montantes correspondentes a cada uma das referidas categorias de danos. Tendo tal indemnização sido paga ao sinistrado, cai-se no âmbito da previsão dos nºs 2 e 3 da Base XXXVII da Lei nº 2127 (6).

Tendo o sinistrado optado pela indemnização do acidente de viação, e sendo a indemnização arbitrada à vítima de montante inferior ao dos benefícios conferidos em consequência do acidente, a desoneração da responsabilidade será limitada àquele montante” – nº 3 da Base XXXVII.

Vejamos sobre quem incide a obrigação de reembolsar a seguradora da responsabilidade por acidente de trabalho do que lhe for devido.

Na vigência do Decreto-Lei nº 408/79, de 25 de Setembro, diploma que instituiu o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, prescrevia o nº 1 do artigo 21º que “quando o lesado em acidente de viação beneficie do regime próprio dos acidentes de trabalho, por o acidente ser simultaneamente de viação e de trabalho, o segurador de trabalho ou o responsável directo, na falta deste seguro, responderá pelo acidente de trabalho, tendo o direito de haver do segurador do responsável pelo acidente de viação ou do fundo de garantia automóvel. Na falta de seguro, o reembolso das indemnizações pagas, nos termos dos números seguintes e do que vier a ser regulamentado”.

Ou seja, a norma transcrita previa um reembolso efectuado directamente pela seguradora da responsabilidade civil à seguradora da responsabilidade por acidente de trabalho.

O Decreto-Lei nº 408/79 viria a ser, no entanto, revogado pelo Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro (artigo 40º). Ora, como já se disse, o artigo 18º deste último diploma, no seu nº 1, sempre que o acidente fosse simultaneamente de viação e de trabalho, mandava ter em consideração as disposições constantes da legislação especial de acidentes de trabalho.

Tendo presente que, no Decreto-Lei nº 522/85, não se encontra previsto o reembolso directo entre as seguradoras, importa atentar no regime da Lei nº 2127 na matéria vertente. Ora, resulta do disposto nos nºs 2 e 3 da Base XXXVII que o reembolso deve ser efectuado pela vítima do acidente, isto é, pelo beneficiário da indemnização.

Diga-se, a propósito, que, na vigência da Lei nº 100/97, de 13 de Setembro, continua a estar previsto o regime do “reembolso pelo sinistrado” em acidente (beneficiário da indemnização) - artigo 31º, n.os 2 e 3.

Considerando que, à data da verificação do acidente dos autos já não se encontrava em vigor o regime previsto no Decreto-Lei nº 408/79, de 25 de Setembro (artigo 21º), mas sim o que, por força da remissão operada pelo Decreto-Lei nº 522/85, resultava da aplicação das normas da Base XXXVII da Lei nº 2127, dúvidas não existem acerca do bom fundamento da decisão do acórdão recorrido.

6 - Entende, porém, a Recorrente, repetindo, em grande parte, os argumentos, a propósito, aduzidos na antecedente apelação, que, por não haver qualquer duplicação de pagamentos indemnizatórios por parte da Ré recorrida, nem recebimentos indevidos ou em duplicado por parte do acidentado, visto serem diversos os pedidos formulados contra a recorrida pelo sinistrado e pela ora recorrente, o acórdão recorrido violou o direito da recorrente em ser reembolsada das despesas próprias, tendo violado também o disposto nos artigos 473º, 483º e 562º do CC e o nº 4 da Base XXXVII da Lei nº 2127, não sendo de aplicar ao caso o disposto nos nºs 2 e 3 da referida Base.

Mas não tem razão.Por um lado, tendo o sinistrado exercido o direito de acção para concretização da

responsabilidade civil resultante do acidente de viação, e tendo sido paga a indemnização correspondente, não só não ocorreu a violação do nº 4 da referida Base, mas também, porque verificado o preenchimento das situações abrangidas pelas respectivas previsões, se caiu no âmbito de aplicação da disciplina dos nºs 2 e 3 daquela Base XXXVII.

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A Recorrente não tem razão quando insiste em ser reembolsada pela Recorrida das importâncias que, como seguradora do acidente de trabalho, despendeu com o sinistrado.

Com efeito:a) As despesas de que a Recorrente pretende ser reembolsada integram-se no dano sofrido

pelo sinistrado no acidente dos autos, na vertente “acidente de trabalho” - cfr. a Base IX da Lei nº 2127, já oportunamente referenciada. E como foi paga a indemnização ao sinistrado, embora no acordo firmado por transacção não se tenha feito a destrinça dos montantes devidos a título de reparação de danos patrimoniais e de reparação de danos não patrimoniais, o que está em causa é a aplicação dos números 2 ou 3 da Base XXXVII da mesma Lei.

b) Foi a Recorrente que deixou passar, sem das mesmas fazer uso, a oportunidade e a faculdade a que se refere o nº 4 da Base XXXVII, disposição que lhe concedia a possibilidade de exercer direitos que podia ter utilizado para uma mais eficaz defesa dos seus interesses. (7)

c) Atenta a evolução legislativa já assinalada e tendo presentes os normativos aplicáveis, deixou de ser possível, a partir da revogação do Decreto-Lei nº 408/79, de 25 de Setembro (artigo 21º), o reembolso directo entre as seguradoras do acidente de viação e de trabalho, depois de ter sido paga pela primeira a indemnização devida ao sinistrado – artigo 18º do Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro e nºs 2 e 3 da Base XXXVII da Lei nº 2127.

d) Pelo que, tendo a recorrida pago a indemnização devida pelo acidente de viação, pela qual o beneficiário optou, é a este que compete o reembolso da Recorrente em conformidade com o disposto pela referida Base XXXVII.

Improcedem, pois, as conclusões do presente recurso, não ocorrendo a violação dor normativos indicados.

Termos em que se nega a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.Custas a cargo da Recorrente.

Lisboa, 24 de Janeiro de 2002

Garcia MarquesFerreira MarquesLemos Triunfante

Recurso nº 4056/01

(1) A Lei nº 2127 veio a ser revogada pela Lei nº 100/97, de 13 de Setembro (artigo 42º).(2) A Base XXXVII, sob a epígrafe “Acidente originado por companheiro ou terceiros”, dispõe

o seguinte:“1. Quando o acidente for causado por companheiros da vítima ou terceiros, o direito à

reparação não prejudica o direito de acção contra aqueles, nos termos da lei geral. 2. Se a vítima do acidente receber de companheiros ou de terceiros indemnização superior à

devida pela entidade patronal ou seguradora, esta considerar-se-á desonerada da respectiva obrigação, e terá direito a ser reembolsada pela vítima das quantias que tiver pago ou despendido.

3. Se a indemnização arbitrada à vítima ou aos seus representantes for de montante inferior ao dos benefícios conferidos em consequência do acidente ou da doença, a desoneração da responsabilidade será limitada àquele montante.

4. A entidade patronal ou a seguradora que houver pago a indemnização pelo acidente terá o direito de regresso contra os responsáveis referidos no nº 1, se a vítima não lhes houver exigido judicialmente a indemnização no prazo de um ano, a contar da data do acidente. Também à entidade patronal ou seguradora assiste o direito de intervir como parte principal no processo em que a vítima exigir aos responsáveis a indemnização pelo acidente a que alude esta base”.

(3) Cf. Vítor Ribeiro, “Acidentes de Trabalho – Reflexões e Notas Práticas”, Rei dos Livros, 1984, págs. 227 e 228.

(4) Cfr. “Das Obrigações em Geral”, vol. 1º, 10ª edição, pp. 698 a 702. Para maiores desenvolvimentos, atente-se no que se escreve no acórdão recorrido, peça detalhada e profusamente fundamentada, a fls. 201 e segs.

(5) Op. cit., pág. 238.(6) Que, recorde-se, dispõem, respectivamente, o seguinte:

“2. Se a vítima do acidente receber de companheiros ou de terceiros indemnização superior à devida pela entidade patronal ou seguradora, esta considerar-se-á desonerada da

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respectiva obrigação, e terá direito a ser reembolsada pela vítima das quantias que tiver pago ou despendido.

3. Se a indemnização arbitrada à vítima ou aos seus representantes for de montante inferior ao dos benefícios conferidos em consequência do acidente ou da doença, a desoneração da responsabilidade será limitada àquele montante”.

(7) Cujo teor se recorda ser o seguinte: “4. A entidade patronal ou a seguradora que houver pago a indemnização pelo

acidente terá o direito de regresso contra os responsáveis referidos no nº 1, se a vítima não lhes houver exigido judicialmente a indemnização no prazo de um ano, a contar da data do acidente. Também à entidade patronal ou seguradora assiste o direito de intervir como parte principal no processo em que a vítima exigir aos responsáveis a indemnização pelo acidente a que alude esta base”.

O art. 18º do Dec-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro, Lei do Seguro Obrigatório, manda aplicar as disposições deste Dec-Lei aos acidentes simultaneamente de viação e de trabalho ou acidentes em serviço, tendo em atenção as constantes da legislação especial de acidentes de trabalho.

Destaca-se o artigo 31º da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro (actual Lei dos Acidentes de Trabalho, que revogou a Lei n.º 2127):

Acidente originado por outro trabalhador ou terceiros

1 – Quando o acidente for causado por outros trabalhadores ou terceiros, o direito à reparação não prejudica o direito de acção contra aqueles, nos termos da lei geral.

2 – Se o sinistrado em acidente receber de outros trabalhadores ou de terceiros indemnização superior à devida pela entidade empregadora ou seguradora, esta considera-se desonerada da respectiva obrigação e tem direito a ser reembolsada pelo sinistrado das quantias que tiver pago ou despendido.

3 – Se a indemnização arbitrada ao sinistrado ou aos seus representantes for de montante inferior ao dos benefícios conferidos em consequência do acidente ou da doença, a desoneração da responsabilidade será limitada àquele montante.

4 – A entidade empregadora ou a seguradora que houver pago a indemnização pelo acidente tem o direito de regresso contra os responsáveis referidos no nº 1, se o sinistrado não lhes houver exigido judicialmente a indemnização no prazo de um ano a contar da data do acidente.

5 – A entidade empregadora e a seguradora também são titulares do direito de intervir como parte principal no processo em que o sinistrado exigir aos responsáveis a indemnização pelo acidente a que se refere este artigo.

Pagamentos feitos pela Segurança Social

Os CRSS17 e o Centro Nacional de Pensões (gestor de pensões por invalidez, velhice e morte18), sempre que haja terceiros responsáveis pelo facto determinante da prestação de segurança social, ficam sub-rogados nos direitos do lesado (artigo 16º da Lei n.° 28/84, Dec-lei nº 59/89, de 22 de Fevereiro) e só pode considerar-se sub-rogado em relação às prestações que pagou (vide artigos 592º, n.° 1, e 593°, n° 1, do Código Civil), não podendo pedir desde logo o «reembolso das quantias que vier a satisfazer ao lesado» - BMJ 443-99 e 109.

Mas podem e devem exigir dos responsáveis - ou dos beneficiários se estes receberam indemnização do responsável - o reembolso dos subsídios de doença e outras prestações provisoriamente suportadas pela Segurança Social. Para poderem

17 - Instituições de Segurança Social a nível distrital.18 - (Dec-lei nº 96/92, de 23 de Maio)

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formular estes pedidos devem as I. S. S. ser notificadas da pendência de acção cível ou acção penal - Dec-lei nº 59/89, de 22 de Fevereiro.

Se em consequência do acidente o lesado ficou incapacitado, o CNP, reconhecendo embora o direito do lesado a pensão por invalidez, pode reter os pagamentos ou exigir o reembolso do que tenha pago até ao limite da indemnização devida por perda da capacidade de ganho, presumidamente de dois terços de toda a indemnização acordada com o terceiro (art. 9º e 10º do Dec-lei nº 329/93, de 25 de Setembro).

O STJ, por Ac. de 23.10.2004, na Col. Jur. (STJ) 2003-III-112 a 116 (Cons.º Salvador da Costa) decidiu:

I – No caso de frustração de ganhos como resultado de evento danoso gerador de indemnização e que se prolongue por um longo período de previsão, a solução mais ajustada é a de conseguir a sua quantificação imediata com a utilização intensa de juízo de equidade.

II - No caso de recurso a fórmulas jurisprudenciais usadas para conseguir padrões de cálculo objectivos, na tentativa de conseguir um critério uniforme, o cálculo deve, ainda assim, ser temperado com o critério da equidade, considerando, se possível, no caso de morte da vítima, a natureza do trabalho, o salário auferido por aquela, o dispêndio relativo a necessidades próprias, a depreciação da moeda, as suas condições de saúde ao tempo do decesso, o tempo provável de trabalho que realizaria e a expectativa de aumento salarial e de progressão da carreira.

III - A pensão de sobrevivência e o subsídio por morte devidos aos beneficiários pelo sistema de segurança social assume a natureza de medida de carácter social e, por seu turno, a prestação devida por terceiro em razão da perda do rendimento de trabalho e do despendido com o funeral da vítima assume natureza indemnizatória no quadro da responsabilidade civil.

IV - As instituições de segurança social assumem um papel subsidiário e provisório face à obrigação de indemnização de que é sujeito passivo o autor do acto determinante de responsabilidade civil; nem as contribuições para a segurança social constituem a contrapartida directa do subsídio por morte ou pensão de sobrevivência, nem o respectivo reembolso pelo responsável pelo evento morte se traduz em enriquecimento sem causa.

VI - Não são cumuláveis, na esfera patrimonial dos credores da indemnização, a indemnização por perda do rendimento de trabalho e do dispêndio com o funeral da vítima e a pensão de sobrevivência e o subsídio por morte devidos aos beneficiários do sistema de segurança social.

VII - Por conseguinte, o Centro Nacional de Pensões tem direito de exigir, no caso de evento gerador de obrigação de indemnização, o reembolso do que pagou a titulo de pensão de sobrevivência e o subsídio por morte, por sub-rogação dos beneficiários, tal implicando que esse valor deve ser deduzido ao montante indemnizatório devido a estes

…A natureza da pensão de sobrevivência e do subsídio por morte é determinável com base

no seu regime legal.Resulta da lei que a pensão de sobrevivência é uma prestação social pecuniária que visa

compensar determinados familiares do falecido beneficiário da segurança social da perda do rendimento de trabalho determinada pela morte (artigo 3º do Decreto-Lei nº 322/90, de 18 de Outubro).

Como a pensão de sobrevivência visa compensar a perda do rendimento do trabalho pelos familiares dos beneficiários da segurança social, a sua finalidade coincide, verificados os respectivos pressupostos, com a da obrigação de indemnização do dano de lucro cessante.

A prestação social designada por subsídio por morte destina-se, por seu turno, a compensar o acréscimo dos encargos decorrentes da morte do beneficiário, com vista a facilitação da reorganização da vida familiar (artigo 4º, nº 2, do Decreto-Lei nº 322/90, de 18 de Outubro).

Assim, o subsídio por morte traduz-se em prestação pecuniária compensante do dispêndio no funeral do beneficiário da segurança social realizado pelos respectivos familiares, independentemente da causa da morte.

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Como o subsídio de morte visa compensar o dispêndio com o funeral do beneficiário da segurança social, a sua finalidade coincide, verificados os respectivos pressupostos, com a da obrigação de indemnização desse prejuízo por dano emergente.

Não constituem aquelas prestações a directa contrapartida das contribuições dos beneficiários para o respectivo sistema, isto é, estas não são o directo fundamento e medida daquelas, mas, em qualquer caso, trata-se de obrigação própria das instituições de segurança social ou de previdência social de inscrição obrigatória.

Na sua estrutura, ambas as referidas prestações se traduzem em prestações pecuniárias sociais, isto é, sem o carácter indemnizatório das prestações relativas à perda de rendimento de trabalho e de dispêndio com o funeral do beneficiário da segurança social.

Confrontando a pensão de sobrevivência e o subsídio por morte com a prestação devida por terceiro em razão da perda de rendimento de trabalho e do despendido com o funeral do beneficiário da segurança social, dir-se-á, em síntese, que a primeira assume a natureza de medida de carácter social e a última natureza indemnizatória no quadro da responsabilidade civil.

Vejamos agora se os recorrentes subordinados têm ou não direito a cumular na sua esfera patrimonial o valor da pensão de sobrevivência e do subsídio por morte de Manuel Silva com o valor indemnizatório devido pela recorrente principal no quadro da responsabilidade civil por facto ilícito por ela assumida por via contratual, em razão da perda de rendimento do trabalho e do dispêndio com o funeral, ou seja, se as mencionadas prestações são ou não cumuláveis.

A lei vigente ao tempo do decesso de Manuel Pinheiro Silva, e actualmente, prescreve que no caso de concorrência, no mesmo facto, do direito a prestações pecuniárias dos regimes de segurança social com o de indemnização a suportar por terceiros, as instituições de segurança social ficam sub-rogadas nos direitos do lesado até ao limite dos valores que lhe conceder (artigos 16º da Lei nº 28/84, de 14 de Agosto, e 71º da Lei nº 32/2002, de 20 de Dezembro).

A referida concorrência depende das circunstâncias de haver obrigação de indemnizar por parte de terceiro e de a indemnização abranger a perda de rendimento de trabalho e maior dispêndio implicado pelo funeral (Ac. do STJ, de 3.7.2002, C.J Ano X, Tomo 2, pág. 237).

No desenvolvimento do referido regime de sub-rogação, a lei estabeleceu mecanismos tendentes a facilitar às instituições de segurança social o reembolso do valor por elas despendido a título de prestações sociais, sem distinção de natureza, à custa dos responsáveis pelo pagamento de indemnizações derivadas de factos que originaram o evento delas determinante (artigos 1º e 2º do Decreto-Lei nº 59/89, de 22 de Fevereiro).

Ao expressar no exórdio do último dos mencionados diploma que as instituições de segurança social se substituem às pessoas responsáveis em favor dos beneficiários, proporcionando-lhe rendimentos de que são privados por acto de terceiro determinante de responsabilidade civil de que tenha resultado incapacidade temporária ou definitiva para o exercício de actividade profissional ou a morte, o legislador esclareceu, de algum modo, a intencionalidade da lei no sentido da incomunicabilidade em análise.

O disposto nos artigos 16º da Lei nº 28/84, de 14 de Agosto, e no artigo 71º da Lei nº 32/2002, de 20 de Dezembro, traduz-se em normativo especial de sub-rogação legal, no confronto do que prescreve o artigo 592,º nº 1, do Código Civil, segundo o qual, o terceiro que cumpre a obri-gação fica sub-rogado nos direitos do credor se tiver garantido o cumprimento ou haja outra causa do seu interesse directo na satisfação do direito de crédito.

O direito de sub-rogação das instituições de segurança social e, consequentemente, a não definitividade do encargo com o pagamento, por exemplo, das pensões de sobrevivência e do subsídio por morte, só existe no caso de concorrência, pelo mesmo facto, do direito a prestações pecuniárias dos regimes de segurança social com o de indemnização a suportar por terceiro.

Esta especialidade da sub-rogação deriva da finalidade das prestações sociais em causa, certo que podem implicar um encargo definitivo para as instituições de segurança social, designadamente no caso de a morte do beneficiário resultar de causa natural, por exemplo de envelhecimento ou doença, ou à própria vítima exclusivamente imputável.

Este direito de sub-rogação coloca as instituições de segurança social na titularidade do direito de crédito indemnizatório dos familiares do falecido contra o terceiro civilmente responsável pela morte do beneficiário em causa.

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Este direito de sub-rogação, estabelecido sem qualquer distinção nos artigos 16º19 da Lei nº 28/84, de 14 de Agosto, e no artigo 71º20 da Lei n° 32/2002, de 20 de Dezembro, num quadro em que se não vislumbram razões de sistema para distinguir, não é afastado pela natureza do subsídio por morte, certo que não é atribuído como contrapartida de descontos em vida do beneficiário.

Dir-se-á que as instituições de segurança social assumem um papel subsidiário e provisório face à obrigação de indemnização de que é sujeito passivo o autor do acto determinante da responsabilidade civil.

Não se põe em causa a afirmação dos recorrentes subordinados no sentido de que o subsídio por morte é pago de uma só vez pela segurança social em razão desse evento e independentemente da sua causa e de que nada tem a ver com a perda de rendimentos de trabalho ou de alimentos.

Ao invés, porém, do que entendem, nem as contribuições para a segurança social constituem a contrapartida directa daquele subsídio, nem o respectivo reembolso pelo responsável do evento morte se traduz em enriquecimento sem causa, pelo que inexiste fundamento legal que obste ao seu reembolso pelo terceiro que seja responsável por aquele evento.

Em consequência, importa concluir, por um lado, no sentido da incomunicabilidade na esfera patrimonial dos recorrentes subordinados, da indemnização por perda do rendimento do trabalho realizado por Manuel Silva e do dispêndio com o seu funeral a prestar-lhes pela recorrente principal com as prestações de segurança social consubstanciadas na pensão de sobrevivência e no subsídio por morte.

E, por outro, que o Centro Nacional de Pensões tem direito a exigir da recorrente principal o que pagou a título dos aludidos pensão de sobrevivência e de subsídio por morte, com a necessária implicação de esse valor ser deduzido ao montante indemnizatório atribuído aos recorrentes subordinados.

O Estado goza de subrogação legal pelos vencimentos e mais despesas havidas com funcionário seu (normalmente, agentes de polícia feridos em serviço), acidentado por culpa de outrem – Assento nº 5/97, no DR IA, de 27.3.97, e BMJ 463-35.

Responsabilidade médica

Estudo no BMJ 332-21 e ss, dos Prof. Figueiredo Dias e Sinde Monteiro, nas vertentes criminal e civil, respectivamente.

Guilherme de Oliveira publicou estudo sobre Consentimento Informado na RLJ 125º-33 e ss, de que destacamos:

- a necessidade de obter o consentimento informado assenta na protecção dos direitos à integridade física e moral do doente (25º da Constituição e 70º CC);

19 - Artigo 16º (Responsabilidade civil de terceiro)«No caso de concorrência, pelo mesmo facto, do direito a prestações pecuniárias dos

regimes de segurança social com o de indemnização a suportar por terceiros, as instituições de segurança social ficam sub-rogadas nos direitos do lesado até ao limite do valor das prestações que lhes cabe conceder».

20 - Artigo 71º Responsabilidade civil de terceiros«No caso de concorrência pelo mesmo facto do direito a prestações pecuniárias dos regimes

de segurança social com o de indemnização a suportar por terceiros, as instituições de segurança social ficam sub-rogadas nos direitos do lesado até ao limite do valor das prestações que lhes cabe conceder».

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- esta protecção tem dignidade constitucional, e enquadra-se no tipo de normas que gozam do privilégio da «aplicação imediata», vinculando directamente todos os sujeitos de direito, públicos e privados (18º CRP);

- por esta razão, embora possa variar a estrutura jurídica em que se executa o acto médico (clínica privada, em casas de saúde privadas ou em hospitais públicos) essa diversidade não tem qualquer influência na necessidade de obter um consentimento informado do doente, antes da intervenção concreta.

Em 5.7.2001 decidiu o STJ, por ac. na Col. Jur.(STJ) 2001-II-166:

RESPONSABILIDADE CIVILAssistência médica

Deveres do médicoOnus de prova

Tutela contratual e delitual

I - A assistência médica surge, em regra, por via de um contrato de prestação de serviços, com carácter pessoal, de execução continuada, com vista ao tratamento do doente, de modo a assegurar-lhe os melhores cuidados possíveis, no intuito de lhe restituir a saúde, suavizar o sofrimento e salvar ou prolongar a vida.

II - O médico deve agir segundo as exigências das leges artis e os conhecimentos científicos então existentes, actuando de acordo com um dever objectivo de cuidado, assim como de certos deveres específicos, como seja o dever de informar sobre tudo o que interessa à saúde ou o dever de empregar a técnica adequada, que pode prolongar-se mesmo após a alta do paciente.

III - Tratando-se de uma obrigação de meios, cabe ao paciente demonstrar que o médico, na sua actuação, atentas as exigências das leges artis e os conhecimentos científicos então existentes, violou esses deveres objectivos de cuidado ou então qualquer dever específico.

IV - A responsabilidade civil por assistência médica, tanto pode ter tutela contratual, como extracontratual, como sucede com uma actuação do médico violadora dos direitos do doente à saúde e à vida.

Ver cópia dos apontamentos da lição proferida pelo Senhor Professor Costa Andrade sobre Direito Penal Médico.

Acidentes em auto-estradasEstudo do Prof. Sinde Monteiro, na RLJ 131-41 e ss

Em 26 de Outubro de 1991, na região de Santarém, um cão atravessou a auto-estrada e colidiu com num automóvel que, por isso, se despistou, do que resultaram danos tanto no automóvel como nas pessoas transportadas.

O STJ, considerando tratar-se de responsabilidade extracontratual, não haver presunção de culpa nem inversão do onus da prova nas bases da concessão aprovada pelo Dec-Lei nº 315/91, de 20 de Agosto, e que os AA não provaram culpa da Brisa no aparecimento do cão, confirmou a decisão de improcedência das instâncias.

Aquele Ex.mo Professor estuda a questão sob três diferentes pontos de vista:A - Responsabilidade delitual por ser a disciplina potencialmente aplicável a

toda a causação de danos na vida social.

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B - Responsabilidade contratual por a utilização de auto-estradas estar normalmente condicionada ao pagamento de portagem.

C - Contrato com eficácia de protecção para terceiros que resultaria das obrigações da concessionária, constantes do contrato de concessão (Base XXXVI, nº 2), mesmo quanto a estradas em que não há portagem (SCUTs).

A - Resp. delitual - Neste prisma, tendo a Brisa em seu poder a auto-estrada no seu todo, não só o piso como também as vedações (que não impedem a entrada de animais), aplicar-se-ia a presunção de culpa do nº 1 do art. 493º CC, consistindo a ilicitude na violação de disposição destinada a proteger interesses alheios: a Base XXII, nº 5, al. a) do contrato de concessão, aprovado pelo Dec-Lei nº 294/97, de 24 de Outubro, que contempla o dever de vedação em toda a extensão, disposição com eficácia externa relativamente às partes no contrato.

O mesmo se diz no respeitante à Base XXXVI, nº 2, que consagra o dever de assegurar a circulação em boas condições de segurança e comodidade, a implicar responsabilidade por pavimento irregular, neve, gelo, manchas de óleo, etc.

Nas restantes estradas mantém-se a presunção do nº 1 do art. 493º, mas em menor grau, apenas em relação àqueles obstáculos anormais, como valas e outros não sinalizados, em violação do art. 5º do C. Estrada. O menor dever de vigilância e a mais baixa velocidade nessas estradas levam a esse afrouxamento da presunção de culpa.

B – Resp. contratual - O preço da portagem é mais o preço de uma prestação de serviço do que taxa de direito público. Estaríamos em presença de contrato entre o utente e a concessionária, empresa de direito privado e fim lucrativo.

A presunção de culpa resultaria aqui do art. 799º, nº 1, do CC.C - Contrato com eficácia de protecção de terceiros - Há auto-estradas

sem portagem, pelo que nestas não é possível o apelo à responsabilidade contratual. O que está agora em causa é o contrato de concessão enquadrável na figura dos contratos com eficácia de protecção para terceiros.

O próprio preâmbulo do Decreto-Lei nº 294/97 alude a que algumas das bases do contrato de concessão têm «eficácia externa relativamente às partes no contrato» (in fine).

Entre outras, integra-se nesse número a Base XXXVI, cujo nº 2 determina que «a concessionária será obrigada, salvo caso de força maior devidamente verificado, a assegurar permanentemente, em boas condições de segurança e comodidade, a circulação nas auto-estradas, quer tenham sido por si construí-das, quer lhe tenham sido entregues para a conservação e exploração, sujeitas ou não ao regime de portagem».

Esta garantia, ligada funcionalmente à observância do disposto em numerosas cláusulas contratuais, tem em vista a protecção de terceiros, os utentes, que são quem vai suportar os efeitos do bom ou defeituoso cumprimento das obrigações assumidas pela concessionária, sem que todavia lhes caiba um direito à prestação, como corresponderia à técnica do contrato a favor de terceiro.

Parece assim razoável a inclusão desses terceiros no âmbito de protecção do contrato celebrado com o Estado, o que justifica a chamada à colação da figura dos «contratos com eficácia de protecção para terceiros».

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Com respeito ao grupo de casos mais recente (protecção do património), o

que se pretende essencialmente com o recurso a esta moderna figura de «quase-contrato» é conseguir tutela jurídica para interesses (puramente patrimoniais) que, em princípio, não são delitualmente protegidos. Mas a propósito do grupo de casos tradicional, no qual estão em causa bens jurídicos (vida, integridade física, propriedade) que gozam de tutela delitual geral, por integrarem verdadeiros direitos

subjectivos (art. 483º, nº 1), a razão de ser do instituto consiste justamente em permitir aos beneficiários usufruírem de certas vantagens do regime jurídico contratual, das quais, no direito português, a mais importante concerne ao ónus da prova da culpa.

Isto quanto a aspectos de regulamentação ou de regime jurídico. Quanto à construção técnico-jurídica, não inteiramente pacífica, é geralmente apontado um certo hibridismo do instituto, situado a meio caminho entre o contrato e o delito.

Em resumo21:

a) - No plano da responsabilidade civil extracontratual, a aplicação do art. 493º, nº 1, mas pelo ângulo do dever de vigilância sobre uma coisa imóvel, a auto-estrada, considerada esta por um prisma funcional como uma globalidade.

À entidade gestora cabe garantir a segurança da utilização, sendo esses níveis definidos, inter alia, pelo contrato de concessão, onde se contém a referida obrigação de vedação em toda a extensão (que não encontramos no direito comparado).

Desde que se verifique uma falha objectiva (uma anormalidade) e exista um nexo de causalidade entre essa falha e os danos, pode dizer-se que o acidente foi causado pela coisa auto-estrada.

O aparecimento de um animal, bem como a verificação de outras «armadilhas» (areia, buracos, deformações, pedras ou outros obstáculos) fazem presumir a omissão culposa de um «dever no tráfico» ou «dever de prevenção de perigos» visando garantir a segurança da circulação.

Dada a multiplicidade de modos possíveis de intromissão do animal, a demonstração de que não teve lugar a violação de um dever (ou de que, em todo o caso, esta não é de atribuir a culpa) parece requerer a prova histórica do acontecimento, aparecendo como insuficiente ou inconclusiva a constatação de que não se detectaram falhas na vedação.

b) - Havendo lugar ao pagamento de portagem, um «contrato de utilização» de direito privado, em que os deveres da concessionária, em matéria de segurança, se hão-de medir pela bitola das obrigações assumidas face ao Estado (ver infra, al. c)). A actividade da entidade gestora pode bem ser vista como um negócio (por detrás do manto diáfano do serviço público), para mais explorada com fins lucrativos, não se vendo motivos decisivos para distinguir o pagamento de um quantitativo pela utilização da auto-estrada, aliás proporcional à distância percorrida, do da compra de um título de transporte ferroviário, possa embora a lei baptizar aquele de taxa e não de preço (de direito privado).

21 - Sinde Monteiro, RLJ 132º-94 a 96

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c) - Em qualquer caso, haja ou não pagamento de portagem (mas sem interesse, na primeira situação, para quem aceite existir contrato), um «contrato com eficácia de protecção para terceiros», dando-se este alcance ao contrato de concessão, desde logo com apoio no próprio preâmbulo do Decreto-Lei aprovador das bases da concessão, que faz alusão à «eficácia externa relativamente às partes no contrato».

A esta relação especial, tecnicamente do mesmo tipo da «culpa na formação dos contratos» regulada no art. 227º do Código Civil (também aqui se está perante uma «relação obrigacional sem deveres primários de prestação») é de aplicar o

estatuto contratual e com isso a inversão do ónus da prova previsto no art. 799º, nº

1, do Código Civil, com a concretização da base XXXVI, nº 2 do contrato de concessão (constante do anexo ao Decreto-Lei de aprovação de tal contrato), a qual obriga à demonstração por parte da concessionária de que as falhas de segurança foram provocadas por «caso de força maior».

Quanto à eventual concorrência entre estes diversos fundamentos de uma pretensão indemnizatória, só faz sentido colocar a questão do concurso entre o delito e o contrato ou, em alternativa, entre o delito e o quase-contrato.

Admitindo-se que a utilização de uma auto-estrada com portagem configura a celebração de um contrato de utilização, não faz sentido o recurso ao sucedâneo «contrato com eficácia de protecção para terceiros»; mas o recurso a esta figura já tem todo o interesse, mesmo em relação àquela espécie de auto-estradas, para quem rejeitar a ideia do contrato de utilização.

A questão de fundo da admissibilidade abstracta dessa concorrência justificaria um desenvolvimento autónomo. Na linha da posição defendida nos trabalhos preparatórios do Código Civil como a melhor de iure condendo, temo-nos inclinado a favor de um concurso de fundamentos de uma única pretensão indemnizatória, parecendo-nos que a ideia do non-cumul des responsabilités délic-tuelle et contractuelle ostenta uma marca de origem desadaptada à nossa cultura jurídica.

Estes ensinamentos do Prof. Sinde Monteiro foram repetidos a propósito de danos por arremesso de pedras da passagem superior não vedada - Ac. STJ, de 17.2.2000 (Col. Jur. STJ 00-I-107) - e aparecimento de cão na auto-estrada, (sentença de Santo Tirso) na RLJ 133-17 a 32 e 59 a 66.

Naquele ac. do STJ decidiu-se:I - Quando o utente pretende circular por certo troço de auto-estrada, entre ele próprio e a

Brisa, como concessionária da sua exploração, estabeleceu-se um contrato inominado, em que ao pagamento da "taxa-portagem", por parte do utilizador, corresponde a prestação por parte da concessionária, de aceder à circulação pela auto-estrada, com comodidade e segurança.

II - Não obstante os danos provocados no veículo circulante em consequência de despiste determinado por um cão a vaguear na auto-estrada ou do impacto de pedras arremessadas de "passagem aérea", não têm que ser indemnizados pela Brisa, por o não cumprimento do contrato ficar a dever-se não a conduta ilícita e culposa daquela concessionária mas de terceiro, eventualmente desconhecido.

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Aqueles ensinamentos do Prof. Sinde Monteiro foram seguidos no Ac. do STJ, de 22 de Junho de 2004, na Revista n.º 1299/04, da 6ª secção, na Col. Jur. (STJ) 2004-II-96 a 102.

ACIDENTE EM AUTO-ESTRADAColisão com cãoResponsabilidade da BrisaCulpa - Ónus da prova

I - O contrato celebrado entre o utente que pretende circular pela auto-estrada e a Brisa, sua concessionária, é um contrato inominado em que o utente tem como prestação o pagamento de uma taxa e a Brisa a contraprestação de permitir que o utente "utilize" a auto-estrada, com comodidade e segurança.

II - Embora o contrato de concessão tenha como Partes Contratantes o Estado Concedente e a Brisa Concessionária, algumas das Bases da Concessão têm carácter normativo, eficácia externa relativamente às partes no contrato, razão por que o legislador as integrou no Decreto-Lei aprovador da Concessão, dele fazendo parte integrante (final do preâmbulo e art. 14 do Dec: -Lei nº 294/97, de 24 de Outubro).

III - Uma dessas Bases é a XXXVI, nº 2, segundo a qual «a concessionária será obrigada, salvo caso de força maior devidamente verificado, a assegurar permanentemente, em boas condições de segurança e comodidade, a circulação nas auto-estradas, quer tenham sido por si construídas, quer lhe tenham sido entregues».

IV - O aparecimento de um cão de elevado porte na faixa de rodagem da auto-estrada constitui reconhecido perigo para quem ali circula, cabendo, por isso, à Brisa evitar essa (e outras) fonte de perigos, essa anormalidade.

V - Assim, não pode pôr-se a cargo do automobilista a prova da negligência da Brisa ou da origem do cão porque não foi a prestação dele que falhou nem ele tem a direcção efectiva, o poder de facto sobre a auto-estrada (como um todo, incluindo vedações, ramais de acesso e áreas de repouso e serviço.

VI - Só o «caso de força maior devidamente verificado» exonera o devedor (a concessionária) da sua obrigação de garantir a circulação em condições de segurança (art. 799º, nº 1, do CC) e, na hipótese de inexecução, do dever de reparar os prejuízos causados.

VII - Não será suficiente (ao devedor, a Brisa) mostrar que foi diligente ou que não foi negligente: terá de estabelecer positivamente qual o evento concreto, alheio ao mundo da sua imputabilidade moral, que não Ihe deixou realizar o cumprimento.

VIII - Essa prova só terá sido produzida quando se conhecer, em concreto, o modo de intromissão do animal. A causa ignorada não exonera o devedor, nem a genérica demonstração de ter agido diligentemente.

Mas foram de algum modo contrariados pelo Ac. do mesmo STJ, de 14.10.2004 (Cons.º Oliveira Barros), na Revista 2885/04, assim sumariado:

I - Exercendo actividade pública de que a Administração é titular, as empresas privadas concessionárias de bens públicos substituem a Administração nas relações com o público e actuam como se fossem entidades públicas.

II - O pagamento de uma ”taxa de portagem“ pelos utentes da auto-estrada representa a cobrança de uma receita coactiva, de um financiamento público, e não a satisfação, por parte do utilizador dessa via, de uma obrigação assumida no âmbito de um contrato sinalagmático, cuja contraprestação do Estado, transferida, por concessão, para a Brisa, seria a possibilidade de circulação na via referida, com condições de segurança e níveis de fiscalização mais elevados em comparação com as demais estradas.

III - A figura dos contratos com eficácia de protecção de terceiros surgiu no direito alemão com a finalidade de ultrapassar limitações, nesse ordenamento, do regime da responsabilidade extracon-tratual que não se verificam no nosso sistema jurídico.

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IV - Estranhos ao contrato de concessão, os utentes da via não podem exigir da Brisa o cumprimento das obrigações assumidas naquele contrato, nomeadamente a obrigação de assegurar permanentemente, em boas condições de segurança e comodidade, a circulação nas auto-estradas “, conforme Base XXXVI, n.º 2 do Anexo ao DL 294/97, que, na expressão do n.º 1 do art. 483º C. Civ., constitui uma ”disposição legal destinada a proteger interesses alheios “.

V - A responsabilidade da Brisa perante os utentes das auto-estradas cuja exploração lhe foi concedida é de natureza extracontratual, regulada no art.483º ss C. Civ.

VI - A presunção instituída no art. 493º n.º 1, reporta-se apenas a danos causados pelo imóvel e não no imóvel.

VII - O aparecimento de um animal na auto-estrada e a existência de abertura na vedação da mesma perto do local onde ele se encontrava constituem anomalia que justifica a presunção - simples, natural, judicial ou hominis - de que na sua construção ou manutenção não foi observado o cuidado devido.

Na revista 3835/04 – 1ª secção decidiu-se em sentido contrário, conforme Parecer de Manuel A. Carneiro da Frada:

Acidente de viaçãoBrisa

Responsabilidade extracontratualResponsabilidade contratual

Presunção de culpa

I - Os utentes de auto-estrada concessionada à Brisa não celebram qualquer contrato com a Brisa, antes sabem que a auto-estrada é um bem público do Estado cuja utilização custa um "preço" imposto por este, embora cobrado e arrecadado pela concessionária a coberto de um contrato de concessão.

II - A falta de pagamento desse "preço" (taxa) não gera qualquer responsabilidade contratual.

III - Ocorrendo acidente de viação, pode o lesado exigir responsabilidade civil à concessionária, com base na violação das normas de protecção dos terceiros utentes contidas no contrato de concessão, constantes do DL 294/97, de 24-10.

IV - Visando estas normas proteger interesses alheios, cabem na previsão do art.º 483, n.º 1, do CC. Estamos, assim, não no âmbito de qualquer responsabilidade contratual, mas no domínio da responsabilidade aquiliana decorrente da dita violação, nos termos do art.º 483 do CC.

V - A considerar-se existir uma relação contratual entre a concessionária e o utente que pagou a portagem e que a responsabilidade daquela tinha natureza contratual quanto ao utente-pagador, ficaria por determinar a natureza da sua responsabilidade quanto aos restantes passageiros, os quais, por não terem, seguramente, qualquer relação contratual com a concessionária, receberiam tratamento diferenciado, em violação do princípio da igualdade rodoviária.

VI - Os utentes da auto-estrada não podem deixar de ter todos os cuidados de condução, tendo em conta que não é possível evitar em termos absolutos a presença de animais na via, sobretudo os de menor porte ou aqueles que, devido às suas características inatas, não podem ser impedidos pela obrigatória vedação (ex. gatos, texugos). No caso dos cães podem mesmo ser introduzidos na via pelos próprios utentes que aí os abandonam, sem que isso possa ser controlado, regra geral, pela concessionária.

VII - No domínio da responsabilidade (extracontratual) da concessionária de auto-estradas, é aplicável a presunção de culpa consagrada no art.º 493, n.º 1, do CC, quando se trata de danos

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causados pela auto-estrada em si mesma (pelos riscos próprios dela), considerada esta como um imóvel complexo, formado pelas faixas de rodagem e por todos os elementos estruturais que a integram (pontes, passagens de peões, viadutos, faixas de separação, bermas, taludes, vedações, instalações de apoio, cabines de portagem, etc.).

VIII - Isto na medida em que tal imóvel está em poder da concessionária a quem compete o dever de vigiá-la e conservá-la em boas condições de circulação. Assim, se o acidente resultar de um buraco existente no pavimento, do aluimento deste, da queda de uma passagem aérea para peões, de uma ponte ou viaduto ou mesmo de um lençol de água acumulada por deficiência de construção ou de manutenção, pode dizer-se que o dano resultou da auto-estrada.

IX - Mas tendo a causa do acidente sido a travessia da via por um cão (não se tendo provado como apareceu o animal na faixa de rodagem, nem sequer que existia qualquer buraco na vedação da auto-estrada ou que a vedação não existia ou estava demolida parcialmente ou era inadequada), já não é aplicável a presunção legal do art.º 493, n.º 1, do CC, visto que os danos emergentes não foram causados pela coisa (nem sequer pela vedação enquanto elemento integrante), mas por uma realidade exterior à coisa, o próprio animal - 03-03-2005, Revista n.º 3835/04 - 1.ª Secção

Por Ac. de 2.2.2006 (Cons.º Noronha Nascimento), na Col. Jur. (STJ) 2006-I-56 a 60, decidiu-se, por 4 votos a favor e um de vencido, que:

Num acidente provocado pelo atravessamento de um porco na auto- -estrada, a responsabilidade só não será da concessionária desta se ela conseguir provar que a existência do porco na auto-estrada não se deveu à violação de qualquer dever de cuidado da sua parte, nomeadamente demonstrando que o mesmo surgiu naquele local de forma incontrolável, ou foi ali colocado pró alguém.

C) - Por factos lícitos danosos

O acto pode ser lícito porque visa satisfazer um interesse colectivo ou um interesse qualificado de uma pessoa de direito privado, mas pode não ser justo que para satisfação desses interesses se sacrifique os direitos de uma ou mais pessoas sem nenhuma compensação.

São exemplos o estado de necessidade - 339º, nº 2 -, 1367º (apanha de frutos em prédio confinante), 1347º a 1349º (instalações, escavações e passagem forçada momentânea para obras, p. ex.) e, sobretudo, as expropriações. Não seria justo, antes seria contrário ao princípio da igual repartição dos encargos públicos, que fosse um só ou vários proprietários a ficar sem os seus bens para construção de uma obra pública que vai servir toda a comunidade. Por isso a Constituição - 62º, nº 2 - e a lei - 1310º CC e Cód. Exp. - art. 1º - obrigam a entidade expropriante a indemnizar o expropriado.

Porto, Novembro de 2006

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