15
A ESCOLA VISTA PELA FOTOGRAFIA: ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE O OLHAR DO ALUNO PARA O COTIDIANO ESCOLAR 1 Cilene Maria Valente da Silva 2 - UFPA Lorena Bischoff Trescastro 3 - UFPA RESUMO: Este artigo tem por objetivo apresentar a análise do cotidiano escolar a partir de fotografias produzidas por alunos do primeiro ano do Ensino Fundamental de nove anos. As fontes fotográficas na medida em que registram fragmentos do cotidiano escolar, do ponto de vista do aluno, propiciam elementos para compreendermos como a criança representa a escola, suas funções, seus sujeitos, suas práticas e seus objetivos. A produção de fotografias, além de uma atividade escolar de linguagem, realizada pelo aluno, enquanto prática educacional, se presta também como fonte de pesquisa, na medida em que tomamos, neste estudo, as fotografias produzidas pelos alunos em contexto escolar, como objeto de análise para entendermos o olhar do aluno para o cotidiano da escola. Com base nos estudos de Alves (2004) e Souza e Lopes (2002), três questões nortearam a análise: (1) que lugar da escola os alunos escolheram para produzir as fotografias? (2) quem são os sujeitos que aparecem nas imagens produzidas pelos alunos? (3) que atividades de aprendizagem os alunos registraram? Apresentaremos uma análise preliminar de quinze fotografias selecionadas do corpus do Projeto Olhar dos Alunos sobre a Escola, registrando cenas do cotidiano escolar reveladoras do olhar que o aluno tem sobre sua escola. PALAVRAS-CHAVE: Escola. Fotografia. Olhar do aluno. 1. Introdução As imagens fotográficas, entretanto, não se esgotam em si mesmas, pelo contrário, elas são apenas o ponto de partida, a pista para tentarmos desvendar o passado. Elas nos mostram um fragmento selecionado da aparência das coisas, das pessoas, dos fatos, tal como foram (estética/ideologicamente) congelados num dado momento de sua existência/ocorrência. (KOSSOY, 2002, p. 21) As possibilidades das crianças produzirem imagens, utilizando-se de recursos tecnológicos disponíveis socialmente, tais como câmeras fotográficas, celulares, tablets e outros dispositivos, mesmo antes de produzirem textos escritos convencionalmente, são cada vez maiores. No entanto, um trabalho com tais recursos nem sempre é incluído nas práticas escolares de alfabetização no Ensino Fundamental. A compreensão da ideia de representação simbólica, necessária à aprendizagem da escrita, nos anos iniciais de alfabetização, pode ser favorecida por um trabalho com a fotografia. Diante disso, desde os primeiros anos do Ensino Fundamental, a escola pode 1 Trabalho apresentado no I Encontro de Antropologia Visual da América Amazônica, realizado entre os dias 04 e 06 de novembro de 2014, Belém/PA. 2 Mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Pará – UFPA. E-mail: [email protected] 3 Doutoranda e Mestre em Letras pela Universidade Federal do Pará – UFPA. E-mail: [email protected] 1

RESUMO - eavaam.com.br · Para Dubois (1993, p.25), “toda reflexão sobre um meio qualquer de expressão deve se colocar a questão fundamental da relação específica existente

Embed Size (px)

Citation preview

A ESCOLA VISTA PELA FOTOGRAFIA: ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE O OLHAR DO ALUNO PARA O COTIDIANO ESCOLAR1

Cilene Maria Valente da Silva2 - UFPA

Lorena Bischoff Trescastro 3 - UFPA

RESUMO: Este artigo tem por objetivo apresentar a análise do cotidiano escolar a partir de fotografias produzidas por alunos do primeiro ano do Ensino Fundamental de nove anos. As fontes fotográficas na medida em que registram fragmentos do cotidiano escolar, do ponto de vista do aluno, propiciam elementos para compreendermos como a criança representa a escola, suas funções, seus sujeitos, suas práticas e seus objetivos. A produção de fotografias, além de uma atividade escolar de linguagem, realizada pelo aluno, enquanto prática educacional, se presta também como fonte de pesquisa, na medida em que tomamos, neste estudo, as fotografias produzidas pelos alunos em contexto escolar, como objeto de análise para entendermos o olhar do aluno para o cotidiano da escola. Com base nos estudos de Alves (2004) e Souza e Lopes (2002), três questões nortearam a análise: (1) que lugar da escola os alunos escolheram para produzir as fotografias? (2) quem são os sujeitos que aparecem nas imagens produzidas pelos alunos? (3) que atividades de aprendizagem os alunos registraram? Apresentaremos uma análise preliminar de quinze fotografias selecionadas do corpus do Projeto Olhar dos Alunos sobre a Escola, registrando cenas do cotidiano escolar reveladoras do olhar que o aluno tem sobre sua escola. PALAVRAS-CHAVE: Escola. Fotografia. Olhar do aluno.

1. Introdução As imagens fotográficas, entretanto, não se esgotam em si mesmas, pelo contrário, elas são apenas o ponto de partida, a pista para tentarmos desvendar o passado. Elas nos mostram um fragmento selecionado da aparência das coisas, das pessoas, dos fatos, tal como foram (estética/ideologicamente) congelados num dado momento de sua existência/ocorrência. (KOSSOY, 2002, p. 21)

As possibilidades das crianças produzirem imagens, utilizando-se de recursos

tecnológicos disponíveis socialmente, tais como câmeras fotográficas, celulares, tablets

e outros dispositivos, mesmo antes de produzirem textos escritos convencionalmente,

são cada vez maiores. No entanto, um trabalho com tais recursos nem sempre é incluído

nas práticas escolares de alfabetização no Ensino Fundamental.

A compreensão da ideia de representação simbólica, necessária à aprendizagem

da escrita, nos anos iniciais de alfabetização, pode ser favorecida por um trabalho com a

fotografia. Diante disso, desde os primeiros anos do Ensino Fundamental, a escola pode

1 Trabalho apresentado no I Encontro de Antropologia Visual da América Amazônica, realizado entre os dias 04 e 06 de novembro de 2014, Belém/PA. 2 Mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Pará – UFPA. E-mail: [email protected] 3 Doutoranda e Mestre em Letras pela Universidade Federal do Pará – UFPA. E-mail: [email protected]

1

utilizar os recursos tecnológicos disponíveis nas atividades de linguagem, solicitando

aos alunos que gerem imagens sobre as quais podem produzir, posteriormente, textos

orais e escritos, ampliando, assim, suas possibilidades de comunicação e interpretação

sobre o mundo.

Compreendendo o campo multifacetado da comunicação humana, comunicação

pode ser entendida como a “interação social através de mensagens” (SANTAELLA,

2001, p. 17). É a fotografia uma mensagem que o aluno nos envia sobre sua escola,

entendemos que a nós, neste estudo, cabe interagir com o aluno acolhendo e

interpretando sua mensagem. No entanto, sabemos que cada mensagem tem uma forma

significante que possibilita vários significados e que, para além do que dizemos aqui, o

significado também poderia ser outro.

Estudos anteriores sobre fotografia e educação já foram realizados. Gostaríamos

de destacar duas pesquisas: “Fotografar e narrar: a produção do conhecimento no

contexto da escola”, realizada por Souza e Lopes (2002), e “A imagem do mundo

escolar através do olhar fotográfico dos alunos”, desenvolvida por Alves (2004), ambas

colocam a fotografia como parte dos estudos da linguagem a ser realizados por alunos

no Ensino Fundamental.

No primeiro estudo, Souza e Lopes (2002) apresentam os resultados de uma

pesquisa-intervenção realizada em uma escola da rede municipal de ensino da cidade do

Rio de Janeiro, para portadores de necessidades especiais em que os jovens produziram

livremente imagens fotográficas a partir das quais criaram narrativas orais e escritas

com o objetivo de construir uma consciência crítica do contexto e do cotidiano escolar.

A proposta possibilitou o diálogo, entre professores, pesquisadores e alunos,

desencadeado no processo de produção e leitura das fotografias sobre a escola, o

processo de ensino e aprendizagem e a inclusão social. Souza e Lopes (2002, p. 64)

apresentam a escola “como um espaço no qual é possível propiciar o convívio e o

diálogo entre o acervo de imagens pessoais, trazido pelos educadores e educandos, e as

produções artísticas e culturais reconhecidas universalmente e pertencentes a diferentes

culturas e épocas”.

O segundo estudo, elaborado por Alves (2004), apresenta os resultados de uma

investigação, fundamentada numa abordagem sócio-histórica, com o objetivo de

dimensionar as possibilidades da imagem fotográfica como mediadora da formação

conceitual e como campo de conhecimento a ser apropriado pelas crianças em situações

formais de ensino e aprendizagem.

2

No estudo, a fotografia aparece como aglutinadora de um conjunto de saberes

das artes visuais e, portanto, como uma das linguagens a serem abordadas no currículo

escolar, como parte do ensino de Arte. De acordo com Alves (2004, p. 12) “a escola, ao

agenciar a fotografia como um componente curricular importante, não apenas facultará

o acesso à sua linguagem, mas pode propiciar processos reveladores e ressignificadores

do seu próprio papel como agência social de educação”.

Tomamos por base tais estudos, para fundamentar o Projeto Escola lugar de

aprender - o olhar dos alunos que se encontra em andamento no Centro de Formação de

Professores da Secretaria Municipal de Educação em Belém, no qual alunos do primeiro

ano do Ensino Fundamental produziram fotografias sobre sua escola. As crianças são

vistas, neste estudo, como produtoras de cultura, “na sua condição de sujeito histórico

que verte e subverte a ordem e a vida social” (KRAMER, 1996, p.14).

Do conjunto de imagens reunidas pelo projeto, foram selecionadas, para compor

o corpus deste estudo, quinze fotografias produzidas espontaneamente por alunos do

primeiro ano do Ensino Fundamental, de três escolas da rede municipal de ensino de

Belém-PA. A seleção se deu em função do que é mais recorrente como tema das

imagens.

As questões que nos colocamos para orientar a análise destas quinze fotografias

foram três: (1) que lugar da escola os alunos escolheram para produzir as fotografias?

(2) quem são os sujeitos que aparecem nas imagens produzidas pelos alunos? (3) que

atividades de aprendizagem os alunos registraram? Essas questões buscam delimitar o

recorte do cotidiano escolar, feito pelo aluno ao fotografar, suas escolhas em relação ao

espaço da escola por onde transitam, às pessoas com as quais convivem e interagem e

quanto às atividades que realiza no tempo de estar na escola, já que a fotografia fixa e

perpetua o lugar e o momento fotografado.

De acordo com Kossoy (2002, p. 29), “a imagem fotográfica contém em si o

registro de um dado fragmento selecionado do real: o assunto (recorte espacial)

congelado num determinado momento de sua ocorrência (interrupção temporal)”. Foi o

espaço da escola o principal assunto das imagens selecionadas para a análise.

Para Dubois (1993, p.25), “toda reflexão sobre um meio qualquer de expressão

deve se colocar a questão fundamental da relação específica existente entre o referente

externo e a mensagem produzida por esse meio”. Assim a imagem produzida sobre a

escola nos permite pensar sobre o que a cena escolhida para ser fotografada representa

3

em relação ao contexto externo da qual foi extraída, no caso, o cotidiano escolar em que

o aluno está inserido.

A produção de fotografias pelo aluno pode ser concebida como uma atividade

escolar de linguagem, enquanto prática de ensino e aprendizagem, e também, na

recepção, como fonte de pesquisa, na medida em que as fotografias, produzidas pelos

alunos em contexto escolar, podem ser usadas como objeto de análise, conforme se

pretende neste estudo, para se buscar compreender como o aluno enxerga o cotidiano da

escola.

Nesta perspectiva, este trabalho tem por objetivo apresentar a análise do

cotidiano escolar a partir de fotografias produzidas por alunos dos três primeiros anos

do Ensino Fundamental de nove anos. Entendemos que, se as crianças registram

fotograficamente fragmentos do cotidiano escolar, as fontes fotográficas que produzem

propiciam elementos para compreendermos como a criança concebe e representa a

escola, em relação às suas funções, seus sujeitos, suas práticas e seus objetivos.

2. O Projeto Escola lugar de aprender - o olhar dos alunos Essas fotos, de extrema riqueza, porque menos “policiadas” pelos valores institucionais, falam de uma outra escola e, nelas, de uma outra história, também cotidiana apenas mais informal, vivida pelos alunos entre si e que convive “não oficialmente” com os horários, as aulas, as provas, as disciplinas, que caracterizam o tempo escolar oficial (BARROS; CORTES; BASTOS, 2003, p. 127).

O projeto Escola lugar de aprender - o olhar dos alunos foi concebido como

uma possibilidade de a imagem fotográfica traduzir um campo conceitual de

conhecimentos sobre o lugar que tem a irremediável missão de ensinar a ler e a escrever

meninos e meninas de 6 a 8 anos, que é a escola, onde as crianças vivenciam

cotidianamente situações de ensino e aprendizagem, interagem com diferentes sujeitos,

circulam em diversos espaços, conversam, brincam, se expressam e participam de

atividades culturais e esportivas.

O principal objetivo do projeto é dar visibilidade para a imagem que os alunos

têm da escola onde estudam e como a enxergam. Neste sentido, analisar as imagens

fotográficas que os alunos produziram sobre a escola oferecerá elementos como a

expressão de valores, ideias, saberes, informações e emoções, que são desencadeadoras

e demarcadoras de atitudes expressivas das crianças face ao ambiente de aprendizagem

que é a escola.

4

O projeto foi desenvolvido, desde o início do ano de 2014, a partir da

provocação para as crianças: Como é a sua escola? Seguida de convite para que

fotografassem na escola lugares ou situações relacionadas com suas aprendizagens,

demonstrando sua importância para eles, de modo espontâneo, ou seja, sem

interferência de outras pessoas como pais, funcionários, professores, coordenadores ou

diretores. Para tanto, uma máquina fotográfica (ou celular com câmera) foi oferecida

aos alunos para que fizessem as fotos que expressassem seu olhar sobre a escola que

estudam.

As escolas selecionadas para dar início ao projeto foram cinco, considerando o

IDEB - Índice de Desenvolvimento da Educação Básica -, para tanto identificamos as

cinco escolas com o IDEB mais elevado na rede municipal, foi observado que essas

escolas não se concentram em único bairro, pois se localizam em bairros com

características socioeconômicas e físicas bem distintas, tanto localizadas em áreas

centrais quanto na periferia da cidade, sendo, portanto uma boa representação das

escolas públicas municipais de Belém.

Após o registro fotográfico pelas crianças, as imagens foram mostradas às

crianças para que elas selecionassem as que desejariam que fizessem parte do acervo da

exposição fotográfica “Escola lugar de aprender - o olhar dos alunos”. As fotos

(arquivos) foram enviadas à equipe responsável pelo projeto pela Direção da escola,

Coordenação ou Professores das escolas devidamente identificadas, com a turma e

nome do aluno.

Esse trabalho foi mediado pelos formadores do Centro de Formação de

Professores que atendem o grupo de escolas selecionado, estes apresentaram o projeto

para a equipe diretiva e docente das referidas escolas e orientaram os alunos para o

registro das imagens, fornecendo-lhes o equipamento necessário.

A produção fotográfica do aluno sobre como ele enxerga sua escola será,

posteriormente, estudada, analisada e interpretada pelos alfabetizadores no contexto da

formação continuada de professores. Será uma tentativa de aproximar o discurso

discente do discurso docente sobre o cotidiano escolar, acerca das ensinagens e das

aprendizagens na escola, que se sabe desigual, seja no reconhecimento das

aprendizagens dos alunos pelos professores, seja no discurso do professor dirigido ao

aluno em sala de aula (GARCIA, 2011).

Neste sentido, o conteúdo da exposição será utilizado, também, em encontros de

formação de professores alfabetizadores como um componente curricular importante,

5

que não apenas facultará o acesso à fotografia como linguagem, mas poderá propiciar

reflexões reveladoras e ressignificadoras do papel da escola como lugar de aprender e

de se produzir conhecimentos, evidenciando o que os alunos valorizam na escola que

estudam.

3. Aspectos metodológicos: pesquisa-intervenção e as fontes fotográficas O corte temporal que o ato fotográfico implica não é, portanto, somente redução de uma temporalidade decorrida num simples ponto (o instantâneo), é também passagem (até superação) desse ponto rumo a uma nova inscrição na duração: tempo de parada, decerto, mas também, e por aí mesmo, tempo de perpetuação (no outro mundo) do que só aconteceu uma vez (DUBOIS, 1993, p.174)

É o projeto Escola lugar de aprender - o olhar dos alunos o locus de estudo e

investigação, neste estudo. Partindo deste contexto, optou-se por realizar uma pesquisa

de cunho qualitativo por ser um modo de produção de conhecimento que busca

compreender e explicar valores e significados num meio social. Este tipo de pesquisa

busca levantar elementos que possam contribuir para a compreensão e explicação do

que está sendo investigado.

De acordo com Lüdke e André (1986, p.11) “a pesquisa qualitativa tem o

ambiente natural como sua fonte direta de dados e om pesquisador como principal

instrumento”. Dentre as pesquisas qualitativas, a pesquisa-intervenção foi escolhida,

como caminho metodológico da pesquisa, devido aos seus princípios norteadores: (1) O

enfoque dado às realidades sociais e cotidianas; (2) A abordagem ética e política na

produção de práticas inovadoras (GABRE, 2012). Neste tipo de pesquisa, há interação

entre o pesquisador e os sujeitos da pesquisa.

O pesquisador atua como mediador do projeto, organizando as ações,

observando as práticas, registrando as vozes e os conhecimentos produzidos pelos

sujeitos envolvidos, numa atitude de escuta permanente, cujas observações contribuem

para subsidiar a tomada de decisões para desdobramentos futuros. Por fim, as práticas

coletivas e as experiências cotidianas, quando sistematizadas, permitem descobertas e

elaborações teóricas e metodológicas a serem compartilhadas com os sujeitos

envolvidos, cuja reflexão retorna para o local pesquisado, que é o contexto da escola.

Como se propõe a realizar um trabalho compartilhado entre os formadores do

Centro de Formação de Professores e os profissionais que atuam na escola, a

metodologia da pesquisa-intervenção se apresenta como adequada.

6

Após a elaboração e divulgação do projeto para diretores e professores dos três

primeiros anos do Ensino Fundamental das cinco escolas envolvidas, a primeira etapa

da pesquisa, na escola, foi a coleta de dados por meio da produção de fotografias por

alunos dos três primeiros anos do Ensino Fundamental. A partir das imagens geradas,

com o aporte da mediação cultural, pretende-se, posteriormente, produzir uma reflexão

junto com os professores sobre como os alunos veem o cotidiano escolar.

Para Kossoy (2001, p.21-22), O estudo das fontes fotográficas no conjunto de suas peculiaridades não exclui a atitude reflexiva e o questionamento que, desde o primeiro momento, deve existir por parte do sujeito do conhecimento em relação ao objeto de investigação, seja a reconstituição do processo que deu origem ao documento em si, seja a devida interpretação do fragmento visual da realidade passada nele contido.

As imagens fotográficas produzidas pelos alunos dos três primeiros anos do

Ensino Fundamental no contexto escolar é o foco de nossa análise. Para fins de análise,

concordamos com Dubois (1993), ao afirmar que a fotografia não é apenas uma

imagem, enquanto produto de uma técnica e de uma ação apenas, como o resultado de

“uma representação de papel que se olha simplesmente em sua clausura de objeto

finito” (DUBOIS, 1993, p.15).

É a fotografia um ato icônico que não pode ser concebido fora de suas

circunstâncias, fora do que motivou sua produção. A fotografia é entendida como uma

imagem-ato, porém esse ato não se limita apenas à produção propriamente dita da

imagem, porque “inclui o ato de recepção e de sua contemplação” (DUBOIS, 1993,

p.15). Neste caso, tomando as imagens como objeto de estudo, as fotografias

proporcionam outro modo de se olhar para a escola, criando possibilidades de

representação dos espaços, dos sujeitos, dos acontecimentos e do tempo escolar.

A construção de sentido da imagem se deu, na produção, num primeiro

momento, entre o aluno, a câmera fotográfica e a cena escolhida para ser fotografada;

num segundo momento, a partir da recepção, na interpretação entre o pesquisador, a

imagem representada do cotidiano escolar e a narrativa que produz, por meio de

palavras sobre o sentido das imagens que foram selecionadas. O que se pretende por em

evidência, na análise, é o olhar do aluno sobre o cotidiano escolar.

A esse respeito convém destacar que O essencial é que, ao arrancar do mundo um pedaço de espaço, o ato fotográfico faça dele um mundo novo (espaço representado), cuja organização interna se elabora a partir da própria forma gerada pelo recorte. O espaço de representação é, portanto, o operador principal do ato

7

fotográfico (tanto na produção quanto na recepção). É através dele que tudo passa (para a imagem) (DUBOIS, 1993, p.210).

Neste sentido, a pesquisa se faz relevante pela possibilidade de criar um diálogo

entre a explicitação do olhar do aluno sobre sua escola, a partir do recorte que faz do

cotidiano de sua escola na cena retratada, e a interpretação a ser dada pelos professores

ao refletirem sobre o fragmento visual, no contexto da formação continuada e da

mediação cultural. De modo que a análise que ora faremos sobre as fotografias, neste

estudo, se constitui como uma análise preliminar.

4. A escola como lugar de aprender: flashes do cotidiano escolar A imagem fotográfica fornece provas, indícios, funciona sempre como documento iconográfico acerca de uma dada realidade. Trata-se de um testemunho que contém evidências sobre algo. (KOSSOY, 2002, p. 33)

A imagem que os alunos têm da escola, em sua maioria, foi concebida a partir do

tempo de aula e dos espaços formais que a escola dispõe. Esse olhar valoriza as

atividades de aprendizagem na alfabetização e destaca uma rotina de deslocamento

entre os espaços de aprendizagem na escola. Portanto, a fronteira da escola, do ponto de

vista do aluno, não se restringe à sala de aula, porque inclui outros ambientes que as

crianças escolheram para fotografar.

De modo geral, as imagens refletem a ideia de que a escola é um lugar de

aprender, como se vê no Quadro 1, que sistematiza o que foi focalizado em cada

imagem produzida pelos alunos nas três escolas.

Quadro 1: O espaço, as pessoas e/ou as atividades escolares retratadas nas

imagens.

ESCOLA 1 Foto 1 Livros infantis ao alcance dos alunos em uma mesa na biblioteca. Foto 2 Alunos realizando atividades no laboratório de informática. Foto 3 Cartaz com os nomes dos alunos exposto na sala de aula. Foto 4 Entrada da escola como espaço de circulação. Foto 5 Portão de entrada da quadra de esportes. ESCOLA 2 Foto 1 Alunos lendo na biblioteca. Foto 2 Estantes com livros e uma professora na biblioteca. Foto 3 Laboratório de informática. Foto 4 Mesas do refeitório. Foto 5 Quadra de esportes vista externamente. ESCOLA 3 Foto 1 Alunos lendo livros infantis na sala de aula. Foto 2 Cartaz com glossário de palavras em ordem alfabética, na sala de

aula. Foto 3 Aluno realizando atividades de leitura e escrita na sala de aula. Foto 4 Aluno formando palavras com um jogo de letras.

8

Foto 5 Atividade de escrita de palavras, com a letra da professora, no quadro.

As cinco imagens da Escola 1 retratam cinco espaços diferentes da escola:

biblioteca, sala de aula, laboratório de informática, entrada da escola, quadra de

esportes, proporcionado um olhar para os espaços de aprendizagem que os alunos têm

para além da sala de aula. A fronteira da escola se amplia e a ideia de deslocamento,

nestes espaços, pelo aluno que parece transitar nestes lugares, no cotidiano escolar,

realizando diversas atividades de aprendizagem, interagindo com livros, computadores e

cartazes com materiais didáticos, se mostra.

Do mesmo modo que na Escola 1, os alunos da Escola 2 retratam em suas

fotografias diferentes espaços da escola: a biblioteca, o laboratório de informática, o

refeitório e a quadra de esportes. Isso mostra como os alunos valorizam estes espaços de

aprendizagem, nos quais eles interagem com livros, computadores, merendam e

praticam esportes, dando uma ideia de movimento e deslocamento, na rotina que a

escola prevê em seu cotidiano escolar.

A fronteira das imagens, produzidas pelos alunos da Escola 3, reflete o espaço

da sala de aula, diferentemente dos alunos das Escolas 1 e 2. As cinco fotografias da

Escola 3 trazem imagens do cartaz com glossário de palavras em ordem alfabética,

leitura de livros infantis pelos alunos, atividade de escrita de palavras no quadro, aluno

realizando atividade de leitura e escrita, aluno formando palavras com um jogo de

letras, focando diferentes objetos de aprendizagem, recursos didáticos e o aluno na sala

de aula. Todas as imagens produzidas foram feitas no espaço da sala de aula, quanto a

esta delimitação, convém explicitar que esta escola não dispõe de biblioteca e quadra de

esportes como as outras duas.

Os livros infantis apareceram nas imagens das três escolas. O olhar dos alunos

para a presença dos livros infantis na escola atribui valor às práticas de leitura, seja na

biblioteca ou na sala de aula. Não por acaso, estas escolas desenvolvem no seu cotidiano

atividades permanentes de leitura que parecem valorizadas pelos alunos, nas três

imagens foi focalizado o acervo literário, em outra aparece o professor que atua na

biblioteca e na outra os alunos lendo na sala de aula. Estes também, por serem alunos

dos três primeiros anos do Ensino Fundamental, estão aprendendo a ler. É a escola, para

estes alunos, lugar de ler, de aprender a ler. No entanto, não qualquer tipo de leitura, o

9

que foi colocado em destaque foi o texto literário, mais precisamente o livro de

literatura infantil, como se vê na Figura 1.

Figura 1: Os livros infantis (Foto 1, Escola 1).

Não o livro na estante, mas o livro infantil sobre a mesa à disposição dos alunos,

ao alcance de suas mãos, foi o que o aluno retratou. Foram diferentes obras infantis do

acervo da biblioteca que são manipuladas e lidas pelos alunos dos anos iniciais do

Ensino Fundamental. A leitura literária nos primeiros anos de escolaridade é

fundamental para a formação do leitor, para a apreciação estética, para a inserção do

aluno na cultura da escrita, no mundo das histórias. Isso parece estar presente nestas três

escolas e ter significado para os alunos, se apresentando como uma exceção ao que

indicaram as pesquisas de Colomer (2007, p. 170), nas quais “a leitura literária não teve

uma presença consistente na percepção das atividades escolares, a julgar por diferentes

rastros da memória social perpetuada através dos tempos”.

Obviamente, que para tal afirmação requer um estudo mais aprofundado sobre as

práticas de leitura nestas escolas, tomamos os registros fotográficos apenas como um

paradigma indiciário, cuja presença dos livros na escola não pode ser desprezada pela

sua recorrência nas imagens. Outro aspecto a ser observado é que não por acaso estas

três escolas apresentam IDEB elevado, porque é a compreensão leitora avaliada nos

testes nacionais que repercutem neste Índice. A presença de livros no cotidiano escolar

em diferentes espaços, biblioteca e sala de aula, o convívio dos alunos com a literatura e

as práticas de leitura, retratadas nas imagens que os alunos produziram, podem ser um

diferencial nestas escolas.

Não só a leitura de livros, mas a leitura de palavras está presente nas imagens

dos alunos. É o estudo da palavra, assim como do texto (história), um componente

relevante de estudo a ser inserido no currículo de alunos em processo de alfabetização.

10

As palavras que os alunos registraram aparecem em diferentes atividades escolares e

recursos didáticos, seja no cartaz com os nomes dos alunos exposto na sala de aula, na

Escola 1, no cartaz com glossário de palavras em ordem alfabética na sala de aula da

Escola 3 (Figura 2), seja o aluno realizando atividades de leitura e escrita na sala de aula

e atividade de escrita de palavras, com a letra da professora, registrada no quadro,

ambas na Escola 3.

Figura 2: Glossário de palavras (Foto 2, Escola 3).

O glossário de palavras em ordem alfabética, no cartaz, exposto na sala de aula,

com a escrita da professora, na Escola 3, revela que os alunos consideram relevante este

recurso didático, sobretudo sobre o que aprendem com ele, bem como as atividades de

leitura e escrita que realizam em sala de aula. Este recurso possibilita às professoras

trabalharem, para fins de estudo do sistema alfabético da escrita, com palavras com

diferentes letras iniciais e padrões silábicos, destacando a ordem alfabética, o que

possibilita o trabalho com todas as letras do alfabeto. As oito palavras estudadas, que

aparecem Figura 2, devem ter sido extraídas de um texto sobre animais, já que

predomina este campo semântico. É a escola para os alunos lugar de aprender a ler e a

escrever, sabemos que esta é realmente uma função da escola, as imagens que os alunos

produziram apontam para isso.

11

A imagem mostra que se trata de um recurso didático permanente, utilizado pela

professora em sala de aula, portanto o estudo de palavras parece fazer parte do cotidiano

da escola, tendo em vista a alfabetização dos alunos. Parte das palavras do glossário

(girafinha, baleia, urso e leão) aparece no exercício de escrita no quadro magnético, com

a letra da professora, que o aluno registrou em outra fotografia (Escola 3, Foto 5),

demonstrando que as palavras do glossário são estudadas em diferentes atividades.

Como prática cotidiana, o cartaz com as letras em ordem alfabética permanece exposto

na sala, enquanto que as fichas com as palavras vão sendo atualizadas, em função do

repertório linguístico extraído das histórias ou dos textos que os alunos estudam,

naquele momento. Esta atividade de estudo do glossário de palavras, que se faz

permanente no processo de alfabetização, foi valorizada na imagem que o aluno

produziu.

Figura 3: Laboratório de informática (Foto 1, Escola 1).

O espaço do laboratório de informática foi retratado por alunos de duas escolas.

Este é o lugar onde os alunos usam os computadores, como se vê na Figura 3, utilizam a

tecnologia como recurso para aprender. Além da interação dos alunos com os

computadores, no ambiente também se vê cartazes com numerais de 0 a 9 e as letras do

alfabeto, destacando as formas de traçado de letras maiúsculas e minúsculas. Conforme

mostra a imagem, este é um espaço escolar que também se ocupa das aprendizagens na

alfabetização, como lugar de leitura e escrita digital. Considerando que o aluno escolheu

este espaço e momento da aula para fotografar, este espaço e o uso de computadores no

cotidiano escolar parecem valorizados pelos alunos.

12

Figura 4: Quadra de esportes (Foto 5, Escola 2).

A quadra de esportes fechada vista de fora foi retratada por alunos de duas

escolas. Tal fato mostra que o acesso a este espaço escolar não é livre para o aluno,

segundo as normas das escolas, também quando aos cuidados de segurança, limpeza e

manutenção desse espaço. Os alunos frequentam a quadra, normalmente, acompanhados

de seus professores, em horários previstos na programação escolar, seja em atividades

esportivas, em jogos e em aulas de Educação Física, seja em atividades comemorativas,

como festas e culminâncias de projetos. No entanto, este espaço, como se vê na Figura

4, é valorizado pelos alunos, provavelmente, porque nele os alunos realizam atividades

lúdicas e de corporeidade, bem como atividades culturais e sociais, enquanto atividades

agregadoras, que envolvem o coletivo da escola.

5. Considerações finais

O olhar que o aluno tem sobre a escola, sobre seu cotidiano, sobre os objetos de

aprendizagem, os recursos didáticos, as pessoas e os espaços que a escola disponibiliza

como lugar de aprender pode ser visto e refletido nos fragmentos de imagens da escola

representados nas fotografias produzidas pelos alunos. De modo geral, os diferentes

espaços dessas três escolas, os recursos didáticos que utilizam e as atividades que as

crianças realizam, registradas nas imagens, indicam que no cotidiano destas escolas há

um trabalho pedagógico envolvendo diferentes linguagens: a escrita, principalmente, na

biblioteca e na sala de aula, a tecnológica, no laboratório de informática, e a corporal, na

quadra de esportes.

Nas imagens que produziram a escola é vista pelo aluno de dentro e de fora,

tanto em seus espaços internos: sala de aula, biblioteca, sala de informática, quanto

externos: quadra de esportes, entrada da escola, refeitório. Sendo que o olhar para a sala

13

de aula, retratado em duas escolas, foi o que se destacou em suas diferentes atividades

de leitura, escrita e jogo, bem como pelos recursos didáticos que dispõem: cartazes com

o nome dos alunos, glossário de palavras, livros, jogo de letras, quadro, material

impresso. Isso coloca em evidência o processo de alfabetização e letramento no qual os

alunos se encontram.

Não foram as pessoas fazendo pose, mas o cotidiano escolar, seus espaços e

recursos didáticos que predominaram nas imagens que os alunos produziram. Dentre os

quais, a sala de aula, a biblioteca escolar e os livros infantis tiveram destaque. Isso

mostra o quanto os alunos valorizam o acesso às obras literárias que a escola lhe

proporciona, seja por lhes ensinar a ler, seja por disponibilizar o acervo literário. Ainda

que a criança conviva com outros espaços sociais de leitura fora da escola, a

alfabetização e a formação de sujeitos leitores, numa sociedade letrada, é realmente a

função da escola, que os alunos, pelas imagens que produziram, parecem reconhecer.

Esta reflexão inicial acerca das imagens que os alunos produziram se apresenta

como preliminar, porque é intenção desta pesquisa que se estenda ao contexto do

Programa de Formação Continuada de Professores, para que os professores também

produzam narrativas orais e escritas sobre a escola vista pela fotografia, enquanto

mediadora cultural suscetível de aproximar o discurso discente do docente, provocadora

da compreensão do olhar do aluno para o cotidiano da escola.

6. Referências

ALVES, J. F. A imagem do mundo escolar através do olhar fotográfico dos alunos. In: II Congresso Internacional em Educação, Teresina/PI. Programa de Pós-Graduação em Educação/UFPI, 2004. BARROS, A. M. de; CORTES, E.; BASTOS, P.. Notas sobre as práticas discursivas ao olhar: os álbuns de família com motivos escolares. In: BARROS, A. M. de. (org). Práticas discursivas ao olhar: notas sobre a vidência e a cegueira na formação do pedagogo. Rio de Janeiro: Epapers, 2003. p. 115-130.

COLOMER, T. Andar entre livros: a leitura literária na escola. São Paulo: Global, 2007. DUBOIS, P. O ato fotográfico e outros ensaios. 9.ed. Campinas: Papirus, 1993. GABRE, S. Contribuições da pesquisa intervenção na construção de um projeto educativo no Museu de Arte: pensando a mediação cultural para a pequena infância. In: IX ANPED SUL – Seminário de Pesquisa em Educação da Região Sul, Caxias do Sul/RS. Programa de Pós-Graduação em Educação/UCS, 2012.

14

GARCIA, R. L. Aprendizagens e ensinagens no cotidiano da escola. In: LINHARES, C.; Garcia, R. L.; CORRÊA, C. H. A. Cotidiano e formação de professores. Brasília: Liber Livro, Editora da Universidade Federal do Amazonas, 2011. p.91-113. KOSSOY, B. Fotografia & história. 2.ed. Cotia: Ateliê Editorial, 2001. _________ . Realidades e ficções na trama fotográfica. 3.ed. Cotia: Ateliê Editorial, 2002. KRAMER, S. Pesquisando infância e educação: um encontro com Walter Benjamin. In: KRAMER, S. e LEITE, M. I. F. P. Infância: fios e desafios da pesquisa. Campinas: Papirus, 1996. p.13-38. LÜDKE, M. e ANDRÉ, M. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. São Paulo: EPU, 1986. SANTAELLA, L. Comunicação e pesquisa: projetos para mestrado e doutorado. São Paulo: Hacker Editores, 2001. SOUZA, S. J. e; LOPES, A. E. Fotografar e narrar: a produção do conhecimento no contexto da escola. Cadernos de Pesquisa, n. 116, p. 61-80, jul. 2002.

15