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DEPENDÊNCIA RETRATO DO BRASIL | n O 9 Retrato do BRASIL n O 9 R$ 6,00 As nossas multinacionais PARA ONDE ELAS VÃO? As nossas multinacionais PARA ONDE ELAS VÃO?

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1� DEPENDÊNCIARETRATO DO BRASIL | nO 9

RetratodoBRASILnO 9 R$ 6,00

As nossas multinacionais

PARA ONDE ELAS VÃO?As nossas multinacionais

PARA ONDE ELAS VÃO?

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AFLIÇÕES DE UMNACIONALISTA

AFLIÇOES DE UMNACIONALISTA

Nossa história começa com considerações doex-presidente do BNDES Carlos Lessa

relacionadas com os destinos da Vale do Rio Doce

�Nas páginas seguintes

� ExpedienteRedaçãoMino Carta [ supervisão editorial ]Raimundo Rodrigues Pereira [ coordenação ]Armando Sartori [ edição ]Carlos Azevedo • Lia Imanishi • Rafael Hernandes• Sônia Mesquita • Tânia Caliari • VerônicaBercht [ redação ]Ana Castro • Pedro Ivo Sartori [ edição de arte ]OK Lingüística | Silvio Lourenço • MarcoBortolazzo [ revisão ]

VendasPaulo Barbosa [ gerente ] • Vítor CruzJoaquim Barroncas [ representante em Brasília ]

AdministraçãoNeuza Gontijo • Maria Aparecida Carvalho •Gabriel Carneiro

Retrato do BRASIL é uma publicação mensal daEditora Manifesto S.A.

Editora Manifesto S.A.Roberto Davis [ presidente ]Marcos Montenegro [diretor administrativo e financeiro]

Escritório de administraçãoRua do Ouro, 1.725 - 2o andar • Belo HorizonteMG CEP 30210 590 • Telfax 31 [email protected]

Escritório comercial e redaçãoRua Fidalga, 146 - conj. 42 • São Paulo SPCEP 05432 000 • Telfax 11 [email protected]

Representação comercial em BrasíliaSCN Quadra 01 - Bloco F • Edifício American OfficeTower - sala 1.408 • Brasília DF • CEP 70711 905Tel 61 33288046 • [email protected]

Impressão e acabamentoGrecco & Mello - Rua Chave, 614 • Barueri SPTelfax 11 4198 9860

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Abril de 2008

Ele já foi comparado por um jornal ame-

ricano ao caubói solitário das velhas publici-dades dos cigarros Malboro. A razão é suapostura nacionalista, considerada retrógrada,em particular no caso das empresas Vale doRio Doce e Petrobras, às quais ele atribui im-portância estratégica. Como primeiro presi-dente do Banco Nacional de Desenvolvi-mento Econômico e Social (BNDES) dogoverno do presidente Luiz Inácio Lula daSilva, Carlos Lessa evitou que a Vale saíssedo controle acionário brasileiro. Foi o suficien-te para que o diário The Wall Street Journal,porta voz do mundo financeiro, o conside-rasse como uma espécie de rebelde antiqua-do, em luta contra a tendência inexorável dainternacionalização dos capitais.

No final de fevereiro, em sua casa incrus-tada num paredão de pedra do bairro doCosme Velho, na cidade do Rio de Janeiro,Lessa (na foto acima) explica o episódio aRetrato do Brasil. “Quando assumi o BNDES[começo de 2003] fui surpreendido com a in-formação de que a Bradespar [empresa de par-ticipações do banco Bradesco] ia vender umlote de ações ordinárias da Vale para o banco[japonês] Mitsui. Pensei imediatamente emdeterminar que o BNDES comprasse essas

ações, visto que existia um acordo de acionis-tas que nos dava direito de preferência na com-pra. Fui consultar meus escalões superiores.”

Superiores de Lessa, durante sua perma-nência à frente do BNDES, eram os minis-tros Luiz Furlan, do Desenvolvimento, In-dústria e Comércio Exterior; José Dirceu, daCasa Civil; e o presidente Lula. “Eles me dis-seram o seguinte: não faça nada, porque essaé uma negociação que se arrasta há doisanos”, diz Lessa. Ele ouviu também a argu-mentação de que o Mitsui, que já tinha açõesda Vale, não tinha ambições de controlarnada. E que a interferência do BNDES navenda de ações pela Bradespar seria muitoprejudicial à Vale, porque o banco japonêsestaria empenhado na amarração dos cres-centes negócios da companhia com a China.E o que propunha poderia até mesmo aze-dar as relações entre Brasil e Japão.

Sem maior convicção, Lessa acatou adecisão. “Pensava: por que esse banco vaicomprar ações ordinárias [que dão direito avoto] se não quer mandar? Se quer aplicar,por que não compra ações mais baratas nabolsa de Nova York?”, diz a RB.

No lance seguinte, porém, o caubói sa-cou primeiro. “Em 2003, os funcionários da

A Vale e o interesse nacional O que mais faz a companhia, além

de escavar o território nacional e mandar montanhas de minério

para fora do País? p.5

As múltis do Estado brasileiro Sim, a Petrobras é, apesar de ter

grande participação de acionistas estrangeiros. A Eletrobrás,

embora Lula diga que sim, não é p.8

Empreendedores e financistas Steinbruch e Ermírio de Moraes

pertencem às duas categorias de articuladores das múltis brasileiras

junto ao Palácio do Planalto p.11

Real quebra, palácio muda A era dos juros estratosféricos levou o

Brasil ao FMI em 1998. E mudou o câmbio, a política para a

internacionalização e até os palacianos p.13

Gerdau chega ao topo Ele vem de longe. Comprou pechinchas

estatais já no início da privatização, no governo Sarney. Com a

Açominas, deu um salto p.14

Os caubois verde-amarelos As multinacionais brasileiras do agro-

negócio representam a grande vantagem comparativa global do

País? p.18

Porque reinventar a roda Apesar do sucesso comercial da

Embraer, sua história mostra uma atuação limitada com relação

a um campo crítico, o da defesa p.21

A emenda e o soneto A Telebrás poderia ter sido uma múlti das

telecomunicações. A tele verde-amarela parece um remendo no plano

de privatização do setor p.24

Para onde elas vão? O Brasil não tem norte na política que diz

respeito às multinacionais. Sem norte, como dizia Sêneca, não há

vento que ajude p.27

IMAGEM DA CAPA: Presidente Lula em vagão do trem que ligaMariana a Ouro Preto, MG (5/5/2006) Ricardo Stuckert / PR

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Vale reunidos na Investvale, felizes da vidacom a valorização das ações da companhia,quiseram vender seu lote. E o BNDES ti-nha o direito de preferência para a compra”.As ações da Investvale eram, originalmente,do banco estatal e, diz Lessa, foram vendi-das aos funcionários pelo governo FernandoHenrique Cardoso “a preço de banana”,como uma espécie de cala-boca, para que en-golissem a privatização da empresa.

“Dessa vez, eu não consultei ninguém”,diz o economista. O BNDES adquiriu os8,5% da Investvale. “Comprei para impe-dir que o Mitsui ficasse com elas e passassea ter direito de veto na Valepar [a sociedadeque detém o controle acionário da Vale eonde está o BNDES, Bradespar, Mitsui efundos de pensão das estatais].”

Se comprasse o lote da Investvale, oMitsui passaria a ter direito a veto nas gran-des decisões. “Se eles tivessem direito deveto, a companhia passaria a ser nipo-bra-sileira. Não seria mais brasileira”, diz Lessa.

As reações contrárias foram imediatas.O presidente Lula, em viagem à África, foiavisado. “O Lula me telefonou pedindouma reunião assim que voltasse ao Brasil.Eu fui. Estavam lá quatro ministros, queme criticaram muito. O presidente disse:‘Lessa, se eu estivesse na África e um jorna-lista me perguntasse se o governo brasilei-ro queria reestatizar a Vale, eu diria que não.Mas parece que estávamos comprando aVale justamente naquele momento’.”

Lessa argumentou que havia aumenta-do o lote de ações do BNDES por duasrazões: uma, porque era um bom negóciopela lógica do banco; e porque “na lógicanacional também era extremamente corre-to, para manter a companhia em mãos bra-sileiras”. “Expliquei o jogo das ações e oLula, que é extremamente inteligente, en-tendeu na hora e ficou do meu lado”.

Lessa diz que a Vale do Rio Doce é“uma empresa estratégica para o desenvol-vimento brasileiro”. Os embates que tevecom outros membros do governo duran-te sua permanência à frente do BNDES,que não se resumiram ao episódio da Vale,refletem a dissonância de suas posições emrelação ao pensamento predominante noPalácio do Planalto, tanto no que se refereao que é “empresa estratégica” quanto aoque é “desenvolvimento”.

Altos representantes do governo, comoa ministra da Casa Civil, Dilma Roussef,têm dito também que o governo quer esti-

mular a internacionalização das grandesempresas de capital nacional, mas não pare-cem demonstrar a mesma preocupação deLessa quanto à natureza do papel a ser de-sempenhado por essas empresas e a seucontrole acionário. Petrobrás e Vale, porexemplo, foram, em boa parte, vendidasao capital internacional. Seus lucros vão paraonde? Ajudam ou não o sempre difícil equi-líbrio das contas externas do País?

Até o início deste ano, o governo Luladava mostras de acreditar que o País estaria“blindado” contra os efeitos mais preocupan-tes da crise financeira global desencadeada peloestouro da bolha imobiliária americana noprimeiro semestre do ano passado. Essa ava-liação apoiava-se nos resultados econômicosobtidos pelo Brasil no ano passado. A eco-nomia cresceu mais de 5%; nossa balança co-mercial, assim como o ingresso de investi-mentos estrangeiros, teve bons resultados;além dos níveis de nossas reservas em moe-da estrangeira baterem recordes.

Esquema ameaçadorNo começo de abril, no entanto, a ava-

liação já era outra. No encerramento doano passado, o Banco Central estimava quea conta de transações correntes, uma dasprincipais do balanço de pagamentos doPaís, teria um déficit de 3 bilhões de dólaresno ano, o primeiro resultado negativo des-de que Lula chegou ao governo, em 2003.

Findo o primeiro bimestre, entretanto,o déficit estava em mais de 6 bilhões dedólares. No início de abril, o BC reavaliou asituação e elevou a estimativa de déficit para12 bilhões. Valor que, tudo indica, terá deser alterado, uma vez que é bastante prová-vel que o saldo negativo das transações cor-rentes supere 9 bilhões de dólares no pri-meiro trimestre.

Na edição anterior de RB (“Deus é brasi-leiro?”, nº 8, março de 2008), sobre as contasdo País, já tínhamos destacado que o Brasilestava amarrado a um esquema de especula-ção financeira global ameaçador, quedesautorizava qualquer otimismo acerca dofuturo. Outras vozes, mais recentemente,confirmaram essa avaliação. O alemão HeinerFlassbeck, economista-chefe da Conferênciadas Nações Unidas para o Comércio e o De-senvolvimento (Unctad), em entrevistapublicada pelo jornal O Estado de S. Paulo emmarço, disse que a valorização das commodities,

que elevou o preço das ações da Vale e daPetrobras, faz parte de um jogo financeiro

pesado, uma espécie de “cassino internacio-nal”, do qual o Brasil é uma das vítimas.“Investidores, temendo a fraqueza do dó-lar, estão buscando as commodities e tambémmoedas de países com certa estabilidade, masainda com taxas de juros altas”. O Brasil estánesse caso, diz ele.

Flassbeck explica o mecanismo da mes-ma forma como fizemos na edição passa-da. A compra de commodities pelos grandesfundos financeiros eleva o valor da Vale ePetrobras na Bolsa de Valores de São Pau-lo. O que incha o próprio Ibovespa, o índi-ce que mede o desempenho da bolsapaulista, composto pela cotação de 54 pa-péis e no qual as ações de empresas queoperam na cadeia de commodities têm pesode mais de 47% (Vale e Petrobras, juntas,têm um peso de quase 30%). A combina-ção da especulação com as commodities e coma das ações na Bovespa aumenta a sangriade recursos do País.

O argumento contrário é o de que ojogo é pesado, mas igual. Ao passo que osestrangeiros remetem cada vez mais lucrospara fora do País, o Brasil tem progressi-vamente mais empresas no exterior queenviam mais lucros para cá. No final dascontas, uma coisa compensa a outra e, aomesmo tempo, a economia nacional vaicrescendo. É como se, pela atuação das gran-des empresas multinacionais brasileiras, oPaís tivesse descoberto um atalho para li-vrar-se da dependência do grande capitalinternacional.

* estimativa do BC em março

FONTE: Banco Central

LADEIRA ABAIXO

1

Entre 1995 e 2002, o Brasil teve um enormedéficit nas transações correntes com o exterior.A partir de 2005 começa outro

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0

EVOLUÇÃO DO SALDO DASTRANSAÇÕES CORRENTES,EM US$ BILHÕES (1970-2008*)

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-35

15

1975

1980

1985

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1995

2000

2005

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Esta edição de RB argumentará quenão é assim. Os fatos atuais mostram ocontrário: existe uma imensa disparidadeentre nossas multinacionais e as gran-des empresas estrangeiras instaladas noPaís. Não há um plano geral de fortaleci-mento dos interesses nacionais no mo-vimento de internacionalização das em-presas brasileiras. Há casos específicosque podem ser vistos, no geral, comopositivos, a despeito de uma ou outralimitação mais séria, como mostraremosnas histórias da Petrobras, da Embraer,da Votorantim.

Mas há também casos como o da pró-pria Vale do Rio Doce, no qual, agora queestá entregue a um operador privado, pare-ce-nos difícil dizer que ela atende efetiva-mente aos interesses nacionais, se eles fo-rem vistos de modo mais amplo.

A VALE E O INTERESSE NACIONAL

O que mais faz a companhia, além de escavar o territórionacional e mandar montanhas de minério para fora do País?

É final de fevereiro. Mais de 50 jorna-

listas se espremem no modesto auditóriodo edifício-sede da Vale, no centro do Riode Janeiro. São profissionais dos principaisveículos de comunicação do País e corres-pondentes dos grandes jornais e agênciasinternacionais de notícias: The Wall StreetJournal, Reuters, Associated Press, Bloomberg.Todos mandaram representantes. Eles fo-ram convocados para uma entrevista coleti-va dos dirigentes da empresa.

A pergunta na cabeça de cada um delesé: a Vale vai ou não comprar a Xstrata,mineradora anglo-suíça, a sexta maior domundo, com grandes reservas de carvão,níquel e cobre?

Fábio Barbosa, o diretor da Vale queabre a coletiva, ignora essa ansiedade, noentanto. Fala sobre programas de respon-sabilidade social e ambiental da empresa e,sobretudo, da formação de profissionais noBrasil, Moçambique, Peru, Indonésia e

Vista aérea de Carajás (PA): para o

presidente da Vale, não é um buraco�

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Nova Caledônia. Explica que há escassezde mão-de-obra qualificada para atender asdemandas da Vale.

É a deixa para a cena seguinte. Quatrojovens empregados da companhia, de di-ferentes partes do País, falam sobre oquanto estão satisfeitos de aprenderemseus ofícios na mineradora. E encerramseus depoimentos prometendo tudo fa-zer para tornar a Vale, hoje, a terceira noranking, a primeira mineradora do mun-do. Roger Agnelli, diretor-presidente daempresa, que se mostra inquieto, parecevibrar com o entusiasmo demonstradopelos funcionários.

Buraco é com garimpeiroBarbosa passa a apresentar os resulta-

dos da Vale em 2007, todos muito impres-sionantes. A receita da companhia atingiu33,1 bilhões de dólares de dólares, a maiselevada da história. Foi também inusitadoo lucro líquido, de 11,8 bilhões, correspon-dente a US$ 2,42 por ação. O que fez o valorde mercado da companhia, calculado em fun-ção do preço das ações, atingir, em feverei-ro, incríveis 171 bilhões de dólares. Nadamau para uma empresa que, na privatização,foi vendida pelo governo Fernando Henri-que por pouco mais de 3 bilhões de reais.

Depois de muitos números, semprepositivos, Agnelli assume a palavra. Seufoco é a promoção institucional da empre-

detalhes do que teria sido o encontro. Odiário Valor Econômico, por exemplo, disseque, apesar de ter sido realizado a pretextode outros temas, “sem perder um minutodaquela oportunidade, o executivo[Agnelli] chamou o presidente [Lula]num canto, expôs os ‘conceitos básicos’da aquisição da Xstrata e lhe fez um pedi-do: ‘não emitir nenhuma opinião públicasobre o negócio até que ele fosse concluí-do’”. Segundo o jornal, Lula teria aceitadoo pedido, “colocando-o em prática imedi-atamente”.

Agnelli nega essas versões. “O gover-no não precisa se preocupar com isso, por-que essa é, antes de mais nada, uma preo-cupação da Vale”, disse aos jornalistas,depois de afirmar que sabia o quanto eraimportante a Vale continuar a ser brasilei-ra. Àquela altura, especulava-se que a Valecompraria a Xstrata a um preço estimadopelo mercado, entre 80 e 90 bilhões de dó-lares. Com isso, se tornaria a maior em-presa diversificada do setor de mineração emetais do mundo. Passaria a ter minas decobre, níquel e carvão, além de produçãode alumínio. Teria negócios estruturadosem 18 países.

Empréstimo especialPara realizar a aquisição, porém, a Vale

teria que tomar emprestados no exteriorcerca de 50 bilhões de dólares. Quando com-prou a canadense Inco, em 2006, a compa-nhia fez uma dívida de 14,6 bilhões namoeda americana.

A compra da Xstrata, entretanto fracas-sou. Mesmo assim, a Vale tomou um em-préstimo de 7,3 bilhões de reais junto aoBNDES. O presidente do banco, LucianoCoutinho, disse que a operação foi excepci-onal. Segundo ele, o BNDES teve de alte-rar seus estatutos, pois só podia emprestara empresas e empreendimentos, não a gru-pos econômicos. “A determinação era queas negociações fossem empresa por empre-sa. Agora, podemos tratar com grupos eco-nômicos”, disse Coutinho aos jornais. Se-gundo ele, o empréstimo excepcional à Valeprevê o desenvolvimento de 18 projetos,todos eles no Brasil.

Um jornalista perguntou a Coutinhose o negócio já atendia aos requisitos danova política industrial a ser anunciada pelo

Barbosa e Agnelli: a Vale lucrou US$ 11,8

bilhões em 2007. Custou só R$ 3,4 bilhões�

sa. Fala sobre a importância da Vale na gera-ção de oportunidades no Brasil e em ou-tros países onde atua, formando e contra-tando profissionais qualificados. Ressaltao fato de que outras empresas brasileiras,como as construtoras Camargo Corrêa eOdebrecht, acabam se incorporando às açõesda Vale no exterior e se beneficiam com isso.

Agnelli também aponta como bene-fícios da atuação da Vale o aumento dademanda por produtos, como pneus enavios (cinco novos cargueiros estão sen-do construídos no Rio de Janeiro para aempresa). E não deixa de mencionar in-vestimentos feitos em obras de sanea-mento e na construção de escolas, comoem Canaã dos Carajás, “a região que maiscresce no Brasil, uma ilha de prosperida-de”. Agnelli ataca a tese de que a Vale ape-nas faz buracos para extrair minério ebusca bons resultados financeiros paraseus acionistas. “Quem faz buraco é ga-rimpeiro”, diz. “Mineração não. Minera-ção é indústria, processa”.

O executivo não diz nada de relevantesobre as negociações para a compra daXstrata. Inquerido sobre o jantar que tiveracom o presidente Lula em sua casa, no Riode Janeiro, na época das negociações, dizque foi “uma delícia de jantar” e que o as-sunto Xstrata não esteve no menu.

Difícil acreditar nessa versão. Os jor-nais divulgaram nos dias que se seguiram

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governo. Ele disse que sim. Agnelli refor-çou a idéia, repetindo o que dissera aos jor-nalistas no encontro já citado. “A atividadede mineração, especialmente de não-ferrosos, é uma atividade industrial. Às ve-zes, você precisa minerar uma grande quan-tidade de material para extrair apenas 1% a2% de minério”, justificou.

As jazidas de minério do País são defi-nidas por lei como patrimônio nacional.A Vale é uma concessionária, com direito aexplorá-las. A empresa foi criada, nos anos1940, como uma estatal, e com o objetivode ser um instrumento para alavancar odesenvolvimento nacional, especificamen-te, a industrialização do País, ainda incipien-te. A idéia não era, basicamente, exportarminério. Era também, e principalmente,produzir aço e criar indústrias, desenvol-ver o País.

Durante a ditadura militar, o projetoda Ferrovia do Aço pretendia levar o miné-rio extraído das montanhas de Minas Ge-rais para os complexos siderúrgicos locali-zados no próprio estado, em São Paulo eno Rio de Janeiro. Esse projeto fracassou ea ferrovia é hoje, como várias outras, canalpara exportação de minério e produtos si-derúrgicos semi-elaborados.

A mina da Serra dos Carajás, no esta-do do Pará, descoberta na fase dos gover-nos militares, que no ano passado com-

pletou a extração de 1 bilhão de toneladas,teve 95,5% desse minério exportado.

O minério vai para fora. E para ondevão os lucros? Isso é muito importante,porque, ao contrário da Petrobras, que pagamuito lucro, mas muito mais imposto eroyalties, a Vale é praticamente isenta de pa-gamento do Imposto sobre Circulação deMercadorias e Serviços (ICMS), por exem-plo, por ser basicamente uma empresa ex-portadora. E um dos estados mais preju-dicados por isso é o do Pará. Sua atualgovernadora, a petista Ana Julia Carepa,insiste que é preciso mudar a legislaçãoporque, com a isenção, a companhia deixade pagar ao Pará cerca de meio bilhão dereais por ano.

Desvantagem comparativaA empresa não tem um balanço que

esclareça bem a questão de seus lucros e di-videndos. Nas informações dadas aos jor-nalistas na entrevista coletiva da diretoria, aempresa destacou o desempenho de suasações negociadas na Bolsa de Valores deNova York. O balanço cita a pesquisa “The2007 value creators report”, feita peloBoston Consulting Group, segundo o qual,a Vale foi a empresa que mais gerou valorpara seus acionistas no mundo entre osanos de 2002 e 2006. Nesse período, ofere-ceu um retorno médio de 54,6% ao ano

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sobre os valores investidos. A mesma pes-quisa afirma que a Vale foi a empresa es-trangeira a ter as ações de maior giro médiona bolsa novaiorquina em 2007: foram maisde 725 milhões de dólares diários. Em se-guida, veio a Petrobras, cujos papéis gera-ram negócios da ordem de quase 627 mi-lhões de dólares ao dia. Em terceiro, ficou afinlandesa Nokia, maior produtora mun-dial de celulares, com 360 milhões.

A Vale destacou que recebeu de suasfiliais no exterior 2,3 bilhões de dólares,dos quais 2,2 bilhões da Inco. Contudo,quanto mandou para fora? A questão érelevante, considerando que a empresa nãosó tem grande parte de seu capital socialno exterior, como tem de amortizar a dí-vida e pagar juros do empréstimo feitopara comprar a Inco.

A Vale enfrenta grande competição. Àsua frente no ranking do setor, estão a BHP-Billinton e a Rio Tinto, ambas australianas.Essas empresas têm suas bases operacionaismuito mais próximas do grande mercadomundial, que é hoje o asiático, onde está oprincipal motor da siderurgia e o grande con-sumidor de minérios do mundo, a China.

Assim, a Vale tem na distância (mui-to maior) que a separa do mercado asiáti-

Ana Julia (dir.), Agnelli, Dilma e Lula: falta

meio bilhão de reais por ano para o Pará�

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co o que David Ricardo, um dos três gran-des nomes da economia clássica, juntocom Adam Smith e Karl Marx, chamariade uma “desvantagem comparativa”. Nocaso, é o contrário do que dizem os adep-tos da proposição de que o futuro doBrasil está na exploração das commodities,agrícolas ou minerais. Essa é, possivel-mente, a explicação para o grande empe-nho da empresa em tirar o minério dosubsolo brasileiro praticamente sem pa-gar impostos aos estados brasileiros nosquais opera.

Existe um plano?Nos dois últimos anos, a Vale se empe-

nhou na construção de acordos para indus-trializar o minério no País. Tem um projetode 4,2 bilhões de dólares com a alemãThyssen-Krupp, outro de 2,0 bilhões dedólares com a coreana Dongkuk e mais umcom a chinesa Baosteel, na qual colocará 3,2bilhões de dólares. Está envolvida ainda comuma expansão da Usiminas, em que estãoos japoneses da Nippon Steel, e anunciouque construirá uma siderúrgica no Pará, comsócios ainda não definidos, eventualmenteindianos.

De que forma os negócios siderúrgicosda Vale alterarão o seu status de exportado-ra da commodities? Quase todos são proje-tos para produção de placas de aço, insumobásico da indústria. Do ponto de vista daVale, é um avanço. Não se pode dizer, to-davia, que isso faça parte de um grande pro-jeto de industrialização e desenvolvimentotécnico do País.

Ao desmantelar o conjunto de empre-sas nacionais estatais com a privatização, ogoverno Fernando Henrique abandonoua idéia de um plano para enfrentar o pro-blema da inserção industrial do Brasil noprocesso de globalização a partir da açãoativa do Estado. De que forma isso se al-terou no governo Lula é o que veremosnas páginas seguintes. Primeiramente, tra-taremos de uma retomada de conceitossobre o interesse nacional a partir de umaentrevista da ministra Dilma Roussef. Pas-saremos, então, para a Petrobras e àEletrobrás, empresas chaves para a histó-ria das multinacionais brasileiras e para acompreensão do processo de industriali-zação do País.

AS MÚLTIS DO ESTADO BRASILEIRO

Sim, a Petrobras é, apesar de ter grande participação de acionistasestrangeiros. A Eletrobrás, embora Lula diga que sim, não é

A ministra da Casa Civil, Dilma

Roussef, foi chamada pelo presidenteLula de “mãe” do Programa de Acelera-ção do Crescimento (PAC), a grande ini-ciativa do governo para desenvolver oPaís. Em entrevista publicada pelo jor-nal Valor Econômico em setembro do anopassado, ela teorizou sobre a questão dointeresse nacional no que diz respeito àsgrandes empresas instaladas no Brasil.Explicou que a atuação do governo Lulatem por objetivo apoiar “os processosde concentração que estão ocorrendo nomundo, porque o que se quer é ter gran-des players”. Players, de jogadores, em in-glês, no jargão econômico da moda, sãoas grandes empresas com capacidade deatuação global. “O governo acha issoperfeitamente natural, bem-vindo, semproblema algum”, disse a ministra.

Ela foi além. Explicou que é impor-tante que, como já ocorre em outros paí-ses, exista no Brasil “uma relação ínti-

ma entre setor público e setor privado”.“Íntima no bom sentido”, ressalvou.Seria uma “relação de parceria, de coo-peração, de apoio do governo às suasempresas, sejam privadas nacionais ouestrangeiras”.

A última afirmação é estranha. É cer-to falar em “suas empresas [do gover-no]”, referindo-se à relação entre o go-verno brasileiro e as empresas privadas,as nacionais e, especialmente, as estran-geiras? Outras duas observações a res-peito do sentido amplo dessas declara-ções da ministra são necessárias. Uma: aformação dos grandes players, que se dáno processo de concentração de capitaisa partir do qual gigantescas empresas seformam e expandem suas atividades parafora das fronteiras nacionais de origemnão é, em linhas gerais, novidade. Foidescrito há mais de um século por di-versos autores. Outra: se há algo novona era em que vivemos é que esse fenô-

Bush e Lula: quem disse “não acho

que o Estado deva dirigir empresas”?� A

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A MÚLTI QUE NÃO FOI As três histórias doque deixou de ser feito no governo Lula parafortalecer a Eletrobrás

A PRIMEIRA É “A ESCOLHA DE DILMA” (Reportagem nº 54, março de 2004). Contacomo o governo Lula, já antes de sua posse, decidiu manter o projeto liberal dedescontratação das geradoras de energia elétrica do País, basicamente estatais,programado para 1º de janeiro de 2003. Conta também como a Eletrobrás, co-mandada então por Luiz Pinguelli Rosa, há anos o principal porta-voz do presidentepara a área de energia, foi afastada da definição do novo modelo para o setor.A segunda é “Contratos Imorais” (Reportagem nº 59, agosto de 2004). Investi-ga os contratos que o governo FHC fez na tentativa praticamente desesperadade fazer funcionar um sistema de geração de energia à base de termelétricasa gás natural, para evitar um apagão. O apagão não foi evitado. Os contratosforam qualificados de imorais, mesmo por autoridades do governo que disse-ram ter de mantê-los. Prejudicaram principalmente o sistema Eletrobrás e aPetrobras. Termelétricas privadas assinaram contratos com distribuidoras deseus próprios grupos econômicos para vender energia elétrica a preços, de ummodo geral, duas vezes superiores aos das geradoras estatais. Esses contratosforam mantidos. A Petrobras, por sua vez, bancava os lucros de sócios privadosem termelétricas que sabidamente não tinham condições de funcionar. Noentanto, renegociou esses contratos.A terceira é “Energia, o espectro liberal” (Retrato do Brasil-CartaCapital, agostode 2007), e conta o que se qualificou como “a farra dos livres”, o enorme cresci-mento das vendas no “mercado livre”, em que grandes consumidores chegaram acomprar 50% do consumo industrial de eletricidade do País a preços até 44%menores que os do mercado cativo, de consumidores residenciais e pequenos emédios empresários.

motivo, depreende-se do que diz, é admi-nistrativo, não econômico ou político: “AVale é uma empresa consolidada, umaempresa mineradora muito bem gerida”.Curiosamente, mais ou menos na mesmaépoca da entrevista a Valor Econômico, quan-do das descobertas do campo petrolíferode Tupi, em outra fala, a ministra se dissea favor de uma revisão da lei do petróleo

para aumentar o controle nacional sobreas reservas brasileiras.

O presidente Lula também é contra-ditório com relação ao assunto. Numafamosa entrevista ao jornal americanoThe Washington Post, divulgada poucodepois de ter sido eleito em 2002, eledisse, explicitamente: “Não acho que oEstado tenha de dirigir empresas. O pa-

meno, originalmente ocorrido no cen-tro capitalista, está acontecendo comempresas de países de industrializaçãotardia, da periferia capitalista, como Bra-sil, China, Coréia do Sul, Índia, Méxicoe outros.

O novo, portanto, está na origem doscapitais. Exatamente o aspecto que a mi-nistra minimiza. “Vamos apoiar muitoos empresários de capital externo que es-tão aqui”, disse ela a Valor Econômico.“Não nos interessa deixar o capital es-trangeiro, que do ponto de vista da Cons-tituição é brasileiro, sem cobertura”.

Ela, entretanto, aponta – e critica –casos recentes envolvendo grandes em-presas, em que os governos de Françae Itália pressionaram com o objetivode fortalecer os capitais nacionais. Oque mostra que nos países do centrocapitalista, em momentos críticos, pre-valece a distinção do capital segundosua origem.

Tendência, aliás, explicitada numadeclaração de 1995 do então presidenteamericano Bill Clinton. Ele disse, naocasião, que “o papel do governo é o deum sócio do setor privado, agindocomo um defensor dos interesses eco-nômicos nacionais”. Mais ou menos omesmo disse James Woolsey, diretor daAgência Central de Inteligência dosEUA, a CIA, no final de 2000. Ele afir-mou que “muitos bilhões de dólaresdos contratos para as empresas ameri-canas” foram obtidos com o uso dedados coletados pelos serviços de in-formação de seu país.

Reestatizar a Vale, nem pensarEmbora as declarações da ministra

brasileira tenham sentido nítido, isso nãoquer dizer que, na prática, o governo Lulanão veja problemas quanto à origem doscapitais. O governo, contudo, não dá si-nais de querer transformar tais preocu-pações numa política mais clara e atuan-te. Talvez, para manter-se em paz com ogrande capital, tanto nacional quanto es-trangeiro, que têm boa parte de seus in-teresses entrelaçados.

Na entrevista citada, a ministraRoussef também opina sobre a proposta,referendada pelo último Congresso doPartido dos Trabalhadores, ao qual éfiliada, de reestatizar a Vale. Ela se diz con-tra: “Não faz mais sentido fazer isso”. O

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pel do Estado é planejar, estimular o de-senvolvimento com incentivos e, se ne-cessário, procurar a iniciativa privada parafazer parcerias em financiamentos”. Nosúltimos tempos, no entanto, tem ditoque o Brasil deve ter duas multinacio-nais estatais: a Petrobras e a Eletrobrás.

O propósito do governo Lula detransformar a Eletrobrás numa das mul-tinacionais brasileiras, porém, tem sidouma palavra vazia. Retrato do Brasil e aextinta revista Reportagem, publicações daEditora Manifesto, dedicaram, em trêsedições, um total de quarenta páginas nasquais há uma espécie de demonstraçãode que este governo nada fez nessa dire-ção. Ao contrário: manteve o grande pla-no de desmantelamento dos contratosde concessão de energia das geradorasestatais e desenvolveu um “mercado li-vre” de energia, no qual os grandes gru-pos econômicos compraram por muitotempo eletricidade a preços incrivelmen-te baixos, em detrimento dos investi-mentos dessas geradoras.

Petrobrás, Petrobras e PetrobraxA Petrobras é a grande multinacio-

nal brasileira. Sua marca original era“Petrobrás”, com acento agudo no últi-mo “a”. No governo Collor, quando teveinício uma campanha em defesa daprivatização da empresa, o sinal gráficofoi retirado. No governo FernandoHenrique, a Petrobras perdeu o mono-pólio da exploração e distribuição do pe-tróleo no País. E sua marca quase mu-dou para “Petrobrax”.

Na época, em nota aos funcionáriosda empresa, explicando a mudança, seuentão presidente, Philippe Reichstul, dis-se: “Agora, não somos apenas uma em-presa nacional de petróleo com a ima-gem vinculada a postos de gasolina. So-mos uma corporação transnacional deenergia”. Além de se livrar da imagemde estatal, com a marca “Petrobrax”, aempresa se livraria também da pecha deser brasileira. A mudança, entretanto,parou em “Petrobras”, sem acento.

A atuação do governo Lula com rela-ção à nossa maior estatal foi menos es-petaculosa que a de seu antecessor. Basi-camente, não foi revertido o processo deprivatização da companhia, realizadoparcialmente. Hoje 39,1% do capital to-tal da empresa estão com estrangeiros. FONTE: Petrobras

O BOLO DA PETROBRAS

2

VALOR ADICIONADO NA PRODUÇÃO EMR$ MILHÕES (2007)

A maior fatia do valor adicionado à produçãopela empresa foi a dos impostos e royaltiespagos a entidades governamentais.A menor, a destinada aos trabalhadores

ENTIDADESGOVERNAMENTAIS

E 50,6% de suas ações preferenciais, comprioridade na distribuição dos lucros,também pertencem a investidores comdomicílio legal fora do País.

O Conselho de Administração daempresa, supostamente o órgão supre-mo da companhia, também reflete essapreocupação com o capital privado. Em-bora o Estado seja o detentor da maio-ria das ações com direito a voto e tenhanomeado José Sérgio Gabrielli comopresidente da empresa , e a ministraRoussef como presidente do conselho,grandes empresár ios , como JorgeGerdau Johannpeter e Arthur Sendas,têm assento nesse fórum.

A Petrobras tem enorme peso finan-ceiro, como suas assemelhadas do exte-rior. Tem, segundo seu balanço do anopassado, um enorme capital de curto pra-zo. Somando o caixa e o que tinha embancos no curtíssimo prazo, mais as dis-ponibilidades no País e no exterior, ru-brica que se refere a dinheiro aplicado noprazo de menos de um ano, tinha 13bilhões de reais no fim de 2007. É essetipo de disponibilidade que faz que umamultinacional possa pressionar governosem vários cantos do mundo por conces-sões, enquanto estuda onde vai fazer in-vestimentos.

O balanço da Petrobras é bastante cla-ro, quando comparado com o de outras

empresas. No de 2007, a empresa mostraque gerou uma riqueza equivalente a 120bilhões de reais. Desse bolo, a parte me-nor foi para seus trabalhadores, 12,8 bi-lhões de reais, mais ou menos metade daparte que coube aos acionistas, 23,2 bilhõesde reais e menos que o pago de juros parainstituições financeiras e em aluguéis eafretamentos para fornecedores, 13,5 bi-lhões de reais. Mas a parte maior, 70,6 bi-lhões de reais, paga a título de impostos eroyalties, foi para os governos, federal, es-taduais e municipais.

Política liberal em discussãoEm certa medida, a empresa se reori-

entou em direção a uma política voltadamais diretamente para os interesses in-ternos do País no governo Lula. O efeti-vo fixo da companhia mais que dobroudepois de anos consecutivos de incenti-vo à terceirização, quando parte dos tra-balhadores que atuavam na companhiaeram empregados de outras empresasque prestavam serviços para a estatal. Oquadro funcional da Petrobras foi de32,8 mil para 68,9 mil funcionários en-tre 2001 e 2007.

No setor de gás e de energia, a Petro-bras completou a construção, nacionali-zou e reorganizou um expressivopatrimônio, que havia sido parcialmenteconstruído sob as regras da liberação dosetor elétrico e que, agora, sob seu co-mando, poderá ser de enorme utilidadepara o País numa eventual crise nessa área.

Seu grande feito mais recente foi adescoberta de gigantescas reservas de pe-tróleo e gás nos campos de Tupi eSaturno, na Bacia de Santos, litoral doSudeste brasileiro. Elas levantaram,como se viu pelas declarações da minis-tra Roussef, a questão da política liberalde concessões para a exploração do pe-tróleo no subsolo brasileiro. No mun-do, as grandes multinacionais do petró-leo detêm cada vez menos reservas, e osEstados nacionais cada vez mais. Seriarazoável, portanto, que o governo to-masse posição clara quanto à mudançada lei aprovada no governo FernandoHenrique. O próprio ministro da Fazen-da, Guido Mantega, declarou, privada-mente, ser favorável ao uso de parte dasreservas brasileiras em moeda estrangei-ra para recomprar ações da Petrobras. En-tretanto, nada disso ocorreu.

INSTITUIÇÕESFINANCEIRAS E

FORNECEDORES

ACIONISTAS

PESSOAL

13,4

23,212,8

70,6

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EMPREENDEDORES E FINANCISTAS

Steinbruch e Ermírio de Moraes pertencem às duas categorias dearticuladores das múltis brasileiras junto ao Palácio do Planalto

Dois grandes empreendedores, cujosnomes devem ser associados às multinacio-nais privadas brasileiras formadas nesse pe-ríodo, são Benjamin Steinbruch e AntônioErmírio de Moraes. Eles disputaram a Valedo Rio Doce, hoje a maior multinacionalprivada do País. E no desfecho da história,acabam se misturando os empreendimen-tos industriais e financeiros.

Ermírio de Moraes podia ser visto comoum empresário antigo (não pode mais, comologo adiante se verá). Seu pai, José Ermíriode Moraes, era um dos raros exemplares deuma burguesia local verdadeiramente nacio-nal. Foi derrotado com o golpe militar de1964, quando o processo de monopoliza-ção no capitalismo brasileiro ainda não haviadado o salto para além do mercado nacional.

Ermírio de Moraes, “o estrangeiro”Antes do golpe, José era senador pelo

PTB. Elegeu-se por Pernambuco em 1962,na chapa do governador Miguel Arraes. Nãoapoiou os golpistas que derrubaram o pre-sidente João Goulart e praticamente desa-pareceu da cena política nos governos dosgenerais pós-1964. Vinha de uma famíliade senhores de engenho pernambucanosdecadentes. Havia ajudado o sogro, Anto-nio Pereira Inácio, a consolidar a Votoran-tim, uma das maiores fábricas de tecidos do

País na primeira metade do século passado.Coube a José assumir a empresa após a

morte do sogro. Sob sua direção, a empresaexpandiu-se para várias áreas. O destaque foia fundação, em 1955, da Companhia Brasi-leira de Alumínio (CBA) que cresceu espeta-cularmente a despeito de atuar num setordominado pelas multinacionais estrangeiras.

Em 1997, Antônio Ermírio de Moraes,já então no comando do grupo Votoran-tim, liderou o consórcio Valecom, para dis-putar a Vale do Rio Doce no leilão deprivatização. Juntou-se à mineradora Anglo-American, de capital sul-africano, à Mitsui,trading japonesa de minério de ferro, à Ja-pão-Brasil Participação (formada por 12corporações) e aos fundos de pensão Centrus(dos funcionários do Banco Central) e Sistel(dos funcionários da Telebrás).

Antônio Ermírio teve como adversá-rio Benjamin Steinbruch, um dos três fi-lhos do empresário Mendel Steinbruch, oprincipal sócio do grupo têxtil Vicunha, àépoca o maior do ramo no País. Benjaminliderou o consórcio Brasil, tendo à frente aCompanhia Siderúrgica Nacional (CSN),

Na entrevista já citada, a ministra Dilma

Rousseff afirma, a certa altura, quandoexplicita a “relação íntima” entre os setorespúblico e privado, que considera “fundamen-tal que se tenha o capitalista”, “o empresárioschumpeteriano”. Ela se referia a JosephSchumpeter (1883-1950), o economista ame-ricano que destacava a importância dos ca-pitalistas empreendedores e da “destruição cria-tiva” que eles promoviam. O Palácio do Pla-nalto sempre foi aberto a essas criaturas.

A partir das reformas liberais promo-vidas pelos americanos no final dos anos1970 e da hiperinflação brasileira dos anos1980, entre os empreendedores com gran-de influência no núcleo do poder, desta-cou-se uma categoria especial, a dos finan-cistas. Gente como Daniel Dantas,Armínio Fraga, Francisco Gros, PérsioArida, André Lara Resende, Luiz CarlosMendonça de Barros.

O Brasil não tem, no entanto, nenhumagrande multinacional financeira. Aqui, os fi-nancistas basicamente criaram os esquemasda privatização das grandes estatais. No co-meço dos anos 1980, as maiores empresasno País eram quase só multinacionais es-trangeiras ou empresas estatais. E as estataisdominavam os setores do petróleo e gás,mineração, siderurgia, energia elétrica e tele-comunicações.

Ermírio de Moraes: um empreendedor-

financista pós-1998�

Steinbruch: um empreendedor-

financista pré-1998�

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empresa criada por Getúlio Vargas, que ad-quiriu num processo que será descrito pos-teriormente, quando falarmos das multi-nacionais brasileiras da siderurgia.

Com base no patrimônio da CSN,Steinbruch tomou um empréstimo de 1,2bilhão de dólares do Nations Bank, bancoamericano que depois compraria o Bank ofAmerica. E conseguiu mais uns 2 bilhõesde fundos de pensão das estatais lideradospelo Previ (dos funcionários do Banco doBrasil); de um fundo financeiro organiza-do pelo banco Opportunity, que tinha portrás o Bradesco; e de um grupo de investi-dores do exterior, entre os quais GeorgeSoros, agrupados na Sweet River.

Curiosamente, Steinbruch acabou sendoa parte nacional na compra da Vale, emboraos dois lados em disputa tivessem a partici-pação de capitais estrangeiros. O PT mobili-zou-se contra a venda. Entretanto, setores dopartido adotaram uma postura pragmática.Argumentando que o leilão era inevitável, atu-aram para favorecer o consórcio de Steinbruch,considerado mais “nacionalista”. Políticos esindicalistas do partido tinham influência nagestão dos fundos de pensão das estatais.

Aloysio Mercadante, uma das estrelaspetistas, muito ligado a Lula, era na ocasião

AINDA É POUCO A participação das múltisestrangeiras nos financiamentos do BNDES é umquarto do total. E deveria ser maior, diz economista

DESDE A REFORMA LIBERAL da Constituição de 1995, que eliminou a distinçãoentre empresa nacional e estrangeira, o financiamento do BNDES às empresas sobcontrole de capital estrangeiro é crescente. No fim de 2006, já representavapraticamente um quarto dototal, cerca de 12 bilhões em50 bilhões de reais. O econo-mista Antônio Correa deLacerda, da PUC-SP, aindaacha pouco. Ele argumenta: asmultinacionais estrangeiras re-presentavam 45% das 500maiores empresas do País em2006. Deveriam ter direito auma porcentagem próximadesse índice nos investimentosdo BNDES.Do ponto de vista da lógica libe-ral, a conta está certa.

assessor do Sindicato dos Bancários de SãoPaulo. Ex-parlamentar, não tinha concorri-do à reeleição para a Câmara dos Deputadospor ter sido candidato a vice na chapa em queLula perdeu a eleição presidencial de 1994.Mercadante orientou o Previ a apoiar o con-sórcio de Steinbruch. O hoje senador diz aRB que “não fazia sentido privatizar a Vale,uma empresa estratégica, rentável”. “Quan-do percebemos que o leilão era inevitável, noentanto, achamos que era importante que ostrabalhadores participassem de alguma for-ma desse processo”, explica.

Os maiores capitalistasMercadante considera que a compra da

Vale foi um excelente negócio para a Previ.“Os maiores beneficiados são os trabalha-dores do Banco do Brasil. Hoje, sobrammuito poucas empresas de capital nacio-nal no País, mas as que sobraram têm aparticipação dos fundos de pensão de tra-balhadores”, diz. “Os maiores capitalistasbrasileiros são hoje os trabalhadores orga-nizados nos fundos de pensão”. Hoje, aVale é comandada por um financista.Roger Agnelli foi nomeado pelo Bradespar,o fundo de participações do bancoBradesco, que estava por trás do Opportu-

nity (não podia aparecer no leilão porqueparticipara da avaliação da Vale).

O grupo Votorantim cresceu e se am-pliou por novas áreas. Foi com o cimento,um setor menor da economia global, quese internacionalizou a partir de 2001. O ci-mento representa um setor importantíssi-mo no grupo, responsável por 19% de suareceita líquida. Naquele momento, a estra-tégia da empresa era compensar no exteriora falta de crescimento do mercado internode construção civil.

Segundo estudo da Sociedade Brasilei-ra de Estudos de Empresas Transnacionaisda Globalização Econômica (Sobeet), a em-presa foi também em busca de dólares,moeda forte na época, tendo estabelecidocomo meta ter 50% de sua receita em moe-da forte, tanto em operações no exteriorcomo com exportações, até 2010. Consul-tores e estudos feitos pelo grupo aponta-ram que o rumo era a América do Norte, ea forma de investimentos seria a compra deunidades já existentes.

O Votorantim se estabeleceu, afinal, emOntário, no Canadá, e na região dos Gran-des Lagos e Flórida, nos Estados Unidos.Os empreendimentos envolveram fábricasde cimento, usinas de concreto, terminais dedistribuição, navios para transporte.

Antônio Ermírio, que tem o costumede fazer ruminações filosóficas sobre o valordo trabalho, o mal dos juros e a felicidadenacional, há poucos anos declarou que “ainternacionalização da companhia é um malnecessário”. E que preferia aplicar todos osrecursos no Brasil.

A despeito de sua persistente pregaçãocontra os juros, o grupo, no seu balanço doano passado, registrou que 26% de suas re-ceitas líquidas foram provenientes dos ne-gócios financeiros, a segunda maior fonte derenda. O Banco Votorantim é, segundo obalanço, o quarto maior banco privado bra-sileiro, com ativos de 66 bilhões de reais.Também fazem parte do braço financeirodo Votorantim a BV Corretora de Títulos eValores Mobiliários, a BV Leasing e a BVFinanceira, que concede financiamentos deveículos, material de construção e créditopessoal e crédito consignado público e pri-vado. Está também no ramo de administra-ção de grandes fortunas.

Ao comentar em 2004 o fato de que olucro líquido do banco foi maior que o daCBA, Antônio Ermírio disse: “Infelizmen-te, tomamos gosto pela coisa”.

VARIAÇÃO DOS DESEMBOLSOSDO BNDES A EMPRESAS, TOTAL ESOB CONTROLE DE CAPITAISESTRANGEIROS, EM % (1996-2006)

Fonte: BNDES

2006

0

Total

Estrangeiros

20042002200019981996

650600

550

500450

400

350300

250

200150

100

50

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13� DEPENDÊNCIARETRATO DO BRASIL | nO 9

REAL QUEBRA, PALÁCIO MUDA

A era dos juros estratosféricos levou o Brasil ao FMI em 1998. E mudouo câmbio, a política para a internacionalização e até os palacianos

Benjamin Steinbruch mantém relações

importantes. É amigo dos tempos de ju-ventude do senador Mercadante. E, segun-do o diário Correio Braziliense, também deJosué Gomes da Silva, filho do vice-presi-dente da República, José Alencar. Josué épresidente da Coteminas, a maior empresatêxtil do País, também multinacional, asso-ciada com a americana Springs.

A família Steinbruch continua muito rica,mesmo depois de ter vendido sua parte naVale para acertar as contas da CSN. A revistaamericana Forbes incluiu em sua lista debilionários de 2006 dois Steinbruchs: Dorothea,com 6,1 bilhões de dólares; e Eliezer, com 4bilhões, mãe e tio de Benjamin.

Hoje, a estrela de Steinbruch não brilhatanto no Palácio do Planalto quanto emmeados dos anos 1990, quando PauloHenrique Cardoso, filho do então presiden-te da República, estava na folha de pagamen-tos da CSN.

O Brasil mudou. A década de 1990 foio período dourado do neoliberalismo noPaís. O leilão da Vale do Rio Doce em maiode 1997 foi talvez o início do fim desseperíodo. A Telebrás foi vendida no finalde julho de 1997 já com o País assoladopor um processo de fuga de capitais, quelevaria à sua quebra no final do ano se-guinte e a uma mudança radical na suapolítica cambial, que afetaria, essencialmen-te, os empréstimos externos, como o que

fora conseguido por Steinbruch para com-prar a Vale.

A privatização dos anos anteriores fora,no fundo, um processo de concentração decapitais, no qual o Estado transferiu paracapitalistas privados boa parte dopatrimônio público acumulado na EraVargas. Foi desenvolvida com apoio noscapitais estrangeiros e nos financiamentosdo BNDES e dos fundos de pensão dosfuncionários das estatais. Baseou-se na cri-ação do real, uma moeda aparentementeforte, mas, de fato, apoiada em juros des-comunais – de mais de 20% reais nos pri-meiros meses de implantação do Plano Real–, e deixou um gigantesco passivo na for-ma de uma dívida interna galopante.

Trinca financista

A quebra do País em 1998 foi o final desseciclo de concentração. Os capitais externos para-ram de financiar o processo e começaram a co-brar a conta. Isso trouxe mudanças radicais naárea financeira. Até 1998, o Estado ainda estavacompletando a renegociação da dívida externada época dos governos militares. A dívida ex-terna pública havia até decrescido levemente de-pois da disparada pós-golpe militar. Foi de maisde 100 bilhões de dólares, em 1992, para pou-co mais de 90 bilhões, mas o endividamentoexterno privado disparara. No mesmo perío-do, saltou de cerca de 20 bilhões de dólares,naquele ano, para perto de 130 bilhões.

O presidente Collor colocara na presi-dência do Banco Central, na área externa dobanco e no Ministério da Fazenda, respecti-vamente, a trinca Francisco Gros-ArmínioFraga-Marcílio Marques Moreira. Em maiode 1992, os juros reais brasileiros foram ele-vados para os níveis mais altos do mundo,lá se encontram até hoje. Isso levou, pri-meiramente, a uma enorme especulação naarbitragem de juros: o financista-empreen-dedor pegava dinheiro a juros baixos noexterior, convertia em reais, aplicava em tí-tulos da dívida pública brasileira a jurosmonumentais e multiplicava seu dinheiroem pouco tempo.

A quebra do real, a moeda artificialmen-te forte criada pelo governo FernandoHenrique, levou ao desmantelamento desseesquema de ação do Estado brasileiro. A partirdaí, o processo mudou. O movimento dosempréstimos se inverteu. Os financistas-empreendedores pararam de tomar emprés-

* dados estimados (até setembro)

FONTE: Banco Central e elaboração própria

A TROCA DE PAPÉIS

3

Quando o Brasil quebrou, em 1998, o Estado voltou ase endividar, para socorrer os grandes gruposendividados

A trinca dos juros estratosféricos:Gros-Fraga-Marques Moreira�

Sergio Lima / Folha Imagem Almeida Rocha/Folha Imagem Sergio Lima / Folha Imagem

130

120

110

80

100

90

70

60

50

40

1 9 9 2 1 9 9 5

Dívida externapública

140

30

20

0

10

1 9 9 8 2 0 0 4

EVOLUÇÃO DAS DÍVIDASEXTERNAS PÚBLICA E PRIVADA,EM US$ BILHÕES (1992-2007)

Dívida externaprivada

2 0 0 1 2 0 0 7 *

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14 DEPENDÊNCIA � RETRATO DO BRASIL | nO 9

timos no exterior e passaram a pagá-los, oua prorrogá-los. O governo brasileiro foi bus-car os dólares junto aos patronos do siste-ma: Fundo Monetário Internacional (FMI),Banco Mundial, Tesouro americano. Tomoutrês grandes empréstimos entre 1998 e 2002.Em termos líquidos, ou seja, descontadasas amortizações pagas, tiradas dos emprésti-mos novos para pagar os velhos, recebeudessas instituições oficiais cerca de 45 bilhõesde dólares.

Uma lei para a nova dívidaPara ajudar os grandes devedores priva-

dos a pagar suas dívidas externas, o Estadoreavivou os títulos da dívida pública comcorreção cambial, a antiga fórmula jurídicada moeda do Banco Central, a qual tem du-plo comportamento. O devedor compraesses títulos pagando em reais, mas, juridi-camente, eles valem dólares. No fundo, oEstado brasileiro ficou responsável pelochamado risco cambial, pelo problema de-corrente das eventuais desvalorizações damoeda nacional. Se o real passasse a valermenos, o Estado teria que despender maisreais, quando o financista-empreendedorprecisasse converter os títulos em dólar parapagar suas dívidas lá fora. Por esse motivo,no final de 1998, Fernando Henrique pro-nunciou o famoso discurso no Palácio doItamaraty, a sede do Ministério das Rela-ções Exteriores, que daria origem à Lei deResponsabilidade Fiscal. Nele, comprome-teu o Estado a realizar uma política de arro-cho nos salários dos funcionários, no cus-teio da máquina pública e nos investimen-tos estatais. E a se empenhar num furorarrecadatório. Tudo para garantir os reaisnecessários para sustentar o novo sistemade dívida pública.

O período de 1999 a 2004 foi de transi-ção no processo da formação das grandesmultinacionais brasileiras. Nesse intervalo,o grupo Votorantim, que, ao fracassar na ba-talha pela Vale, perdeu a chance de tornar-seuma multinacional de minério, tornou-semultinacional no setor de cimento e concre-to, como já visto. É desse período também asugestiva história da formação da multina-cional Gerdau.

Jorge Gerdau Johanpeter faria parte,hoje, de uma seleta turma com “acesso fácil”ao presidente Lula, diz o Correio Braziliense.O grupo, segundo o jornal, é pequeno. Alémde Gerdau, inclui Roger Agnelli, Davi Feffer(do grupo Suzano), Emílio Odebrecht (do

Odebrecht). Sérgio Andrade (do AndradeGutierrez) e Paulo Godoy (presidente daAssociação Brasileira de Infra-estrutura e In-dústria de Base).

A história contada pelo CB parece plau-sível. Na entrevista da ministra DilmaRousseff a Valor Econômico, várias vezes cita-da nesta edição, ela diz que “a Suzano che-gou e disse que agora quer concentrar seunegócio em papel e celulose”. “E insistiubastante com a Petrobras”.

A ministra estava contando a história dacompra da Suzano, de Davi Feffer, pelaPetrobras, que é parte do movimento que

teve o aval do Palácio do Planalto e com oqual a estatal e a Odebrecht, outro grandeplayer nos negócios multinacionais brasilei-ros, reorganizaram o setor petroquímicodo País.

Gerdau, de acordo com o CB, é “de lon-ge o mais influente” do grupo de empreen-dedores consultados amiúde pelo Planalto.Ele foi convidado e recusou assumir umposto no Ministério quando Lula iniciou seusegundo mandato. No final de 2006, seugrupo era o décimo quarto do mundo emvolume de produção de aço, com 15,6 mi-lhões de toneladas.

A aquisição no Brasil da gigantesca Aço

Minas Gerais (Açominas), uma das empre-sas do sistema Siderbrás, a holding estatal dasiderurgia, contribuiu para a consolidação dogrupo Gerdau como player na produçãomundial de aço.O grupo tem mais de um século. JoãoGerdau, avô de Jorge, começou com umafábrica de pregos em 1901. Em 1940, épocaem que Getúlio Vargas estava articulando aCSN, comprou a Siderúrgica Riograndense.

A entrada em operação da CSN em 1946foi o grande marco da siderurgia nacional.Com a criação do BNDES no segundo go-verno Vargas, a siderurgia passou a contarentão com um agente financiador e o bancotornou-se sócio das empresas. Em 1956,nasceu a Companhia Siderúrgica Paulista(Cosipa), com recursos do BNDES e dogoverno paulista. No mesmo ano, foi criadaa Usina Siderúrgica de Minas Gerais(Usiminas), com capitais privados nacionais,japoneses, do governo mineiro e do banco.Nos anos 1970, como parte do plano dosgovernos militares para desenvolver o País,o setor estatal siderúrgico foi reorganizado.Em 1974, surgiu a Siderbrás, que comproua preço simbólico a participação que oBNDES tinha nas diversas empresas.

A Açominas é da época da Siderbrás. Foiinaugurada nos anos 1980, quando também

GERDAU CHEGA AO TOPO

Ele vem de longe. Comprou pechinchas estatais já no início daprivatização, no governo Sarney. Com a Açominas, deu um salto

se completou o quadro das grandes estataisdo setor, com a Companhia Siderúrgica deTubarão (CST), no Espírito Santo. A essaaltura, no entanto, o sistema Siderbrás esta-va amplamente endividado e praticamentenão investia. O governo federal, enrolado nacrise da dívida externa, utilizara suas empre-sas para gerar projetos que captassem recur-sos externos. A maioria desses projetosencalacrou; não tinham sido feitos levandoem conta todas as condições para sua reali-zação efetiva.

Em 1990, após a posse de FernandoCollor, a Siderbrás foi extinta e o BNDESassumiu papel oposto ao que desempenha-ra anteriormente. Foi designado como gestordo programa de privatização. Todas as gran-des estatais foram vendidas nos anos 1990.A Gerdau adquiriu a Açominas num longoprocesso de falência, não apenas do projetosiderúrgico dos militares, mas de seu pró-prio projeto nacional.

O objetivo dos banqueiros que empres-tavam dinheiro ao País era conseguir rolar adívida externa brasileira com novos emprés-timos. Os grandes projetos dos governosdos presidentes militares dessa época, osgenerais Ernesto Geisel e João Figueiredo,envolviam sempre grandes compras de equi-pamentos no exterior. E os empréstimostomados para esses projetos sempre incluíam

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15� DEPENDÊNCIARETRATO DO BRASIL | nO 9

regra das privatizações – assumiu a maiorparte de suas dívidas. Vendeu a empresa pormuito menos do que investiu, cerca de 800milhões de dólares, 600 milhões em dinhei-ro e títulos, mais um pedaço pequeno dadívida deixada com a companhia, de 200milhões de dólares.

O comprador principal, que assumiu ocontrole da companhia, foi o grupo organi-zado em torno da empreiteira mineira Men-des Júnior. Hoje, depois de mais de 20 anosde crise, que incluíram 300 pedidos de falên-

O presidente e Gerdau: o empresário

não foi ministro porque não quis�

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créditos para comprar os equipamentos dosgrandes fabricantes internacionais e dólareschamados “livres”, que eram usados para arolagem da dívida.

Com isso, os governos militares toca-vam o País e os fornecedores de equipamen-tos e banqueiros ganhavam algum enquan-to o sistema agüentava. O sistema se man-teve precariamente até 1982. Nesse ano, oBrasil quebrou. As estatais, a essa altura, es-tavam também quebradas.

Açominas, trampolim do GerdauFez-se, então, um novo esquema. Por força

de acordos com o FMI, o Estado brasileiroparou de financiar as estatais. E começou adiscutir a venda dessas empresas. No ramosiderúrgico, a privatização começou já no pri-meiro governo após os militares, na NovaRepública. Em 1988, ainda durante a admi-nistração do presidente José Sarney, foramprivatizadas siderúrgicas de menor porte. Ogrupo Gerdau começou sua ampliação por ai.Foi um dos principais compradores dessasusinas, junto com o Villares, outro dos gran-des grupos siderúrgicos do setor privado,depois vendido a estrangeiros. No entanto,foi a aquisição da Açominas que parece tersido a operação que impulsionou o grupoGerdau para ser uma multinacional.

A Açominas era um dos megaprojetosdo governo Geisel. Junto com a Ferroviado Aço se voltaria para atender os setoresenvolvidos em processos industriais maisavançados. Fabricaria aços especiais para aconstrução civil. A Ferrovia deveria unir ostrês grandes centros industriais do País,Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizon-te. Por ela, circulariam o minério de ferro eos aços elaborados para os diversos tiposde indústria pelas usinas siderúrgicas esta-tais dos três locais, CSN, Açominas,Usiminas e Cosipa.

Empenhado em manter o crescimentoda economia no ritmo acelerado do períododo “milagre brasileiro” (1968-1973), quan-do a economia brasileira cresceu em média a10% ao ano, o general Geisel, que procuravaafastar-se da órbita americana, fechou acor-dos de financiamento para a compra de equi-pamentos com governos da Europa e doJapão. No caso da construção da Açominas,esses financiamentos externos somaram cercade 1 bilhão de dólares.

O orçamento completo para a construçãoda Açominas, entretanto, pulou de 1,8 bilhãode dólares em 1976 para mais de 3 bilhões dedólares em 1997 e cerca de 7 bilhões de dóla-res em 1986, quando ela afinal começou aoperar com seis anos de atraso em relação aocronograma original. Os equipamentos maissofisticados da siderúrgica haviam sido ad-quiridos no exterior. Parte fora instalada, em-bora nem tudo funcionasse.

Antes de levá-la a leilão, em 1993, o go-verno fez com a Açominas o que se tornaria >>

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18 DEPENDÊNCIA � RETRATO DO BRASIL | nO 9

OS CAUBÓIS VERDE-AMARELOS

As multinacionais brasileiras do agronegócio representam agrande vantagem comparativa global do País?

A mais recente e espetacular de nossas mul-

tinacionais é a Friboi, que atua no mercado decarnes bovinas, um ramo do agronegócio. Énesse setor que alguns localizam nossa gran-de vantagem comparativa global, porque te-mos terra, matas, pastos, sol, uma taxa defotossíntese insuperável e coisas do gênero.

A doutrina de que os países devem se es-pecializar naquilo que produzem melhor é doinglês David Ricardo (1762-1823) e foi chama-da de “teoria das vantagens comparativas”. Opróprio Ricardo usou como exemplo o relaci-

onamento que havia no começo do séculoXVIII entre seu país, a Inglaterra, e Portugal.Essa relação era disciplinada por uma série deacordos dos quais o mais famoso foi o Trata-do de Methuen, de 1703.

Segundo Ricardo, os dois países eram par-ceiros comerciais. Cada um, segundo sua teo-ria, deveria produzir o que fazia de forma maiseficiente. Portugal, dizia ele, era um produtorde vinhos relativamente mais eficiente do quede tecidos. E a Inglaterra era mais eficiente naprodução de tecidos do que na de vinhos.

Agnelli com os chineses da Baosteel:

a Vale se arma contra a Gerdau�

cia num só ano, o grupo mineiro é uma som-bra do que foi no período dos governosmilitares quando, junto com a Petrobras eoutros grupos, foi para o Iraque, onde reali-zou grandes obras. Em 1995, o MendesJúnior deixou o controle da Açominas.

O passo decisivo da GerdauA Gerdau entrou como acionista da si-

derúrgica num acordo com o grupoNatSteel (de Cingapura), em 1997. Inves-tiu 75 milhões de dólares (o sócio cingapu-rense colocou 70 milhões). A direção doprojeto ficou com uma espécie de fundopúblico (o Fundo de Participação Acionáriados Empregados da Açominas) financiadopelo BNDES, que fez parte do consórcioliderado pelo Mendes Junior na época daprivatização.

Em 1998, o Brasil quebrou de novo ea Açominas entrou em nova crise. Foi quan-do a Gerdau deu o passo decisivo para suaaquisição. Com mais 135 milhões de dóla-res, ficou com 36% do capital da empresa.No final de 2000, quando o Banco Econô-mico, que também tinha parte da empre-sa, fechou após intervenção federal, o Ban-co Central vendeu os 17% da Açominasque possuía para a Gerdau, que, conse-qüentemente, assumiu seu controle.

Em entrevista publicada pela revista se-manal CartaCapital em janeiro deste ano,Jorge Gerdau explica que o baixo cresci-mento da economia brasileira é um dosprincipais fatores que levaram à internaci-onalização da produção do grupo. De acor-do com o ex-presidente do Instituto Bra-

sileiro de Siderurgia, Luís Vicente, o con-sumo per capita de aço no Brasil mantém-se em torno de 100 kg desde o início dadécada de 1980.

A compra de empresas no exterior foiesporádica até que o grupo completasse a di-gestão da gigante mineira – foram apenas trêsusinas adquiridas entre 1980 e 2002, no Uru-guai, Chile e Canadá. As compras dispararamnos anos recentes, especialmente nos EUA.

Hoje, o grupo Gerdau tem mais de 50usinas, acima de um quarto delas em territó-rio nacional. As demais estão espalhadas por

12 países das Américas e da Europa. Empre-ga mais de 35 mil funcionários, 40% deles noBrasil. Obteve em 2006 uma receita de 12,6bilhões de dólares. Do total produzido, qua-se 75% são dirigidos ao mercado externo, in-cluindo os 30% que são exportados da pro-dução realizada em território nacional.

As estatais chinesas, no conjunto, sãohoje os grandes produtores mundiais de aço.A China está produzindo a um ritmo quechegará a 480 milhões de toneladas de açoaté o fim do ano, em amplíssima medidapara seu mercado interno. Na sua busca pornegócios fora do País, o grupo Gerdau al-meja agora o mercado chinês. De acordo como Jorge Gerdau, a dificuldade maior está napolítica de Pequim, que não permite que asusinas siderúrgicas locais sejam compradaspor estrangeiros. “É da própria natureza dosetor siderúrgico na China trabalhar em as-sociação”, explicou Gerdau em entrevistapublicada em O Estado de S. Paulo.

A principal estatal chinesa é a Baosteel,que produz 22,5 milhões de toneladas anuaise que, como vimos, associou-se à Vale paraconstruir uma siderúrgica no estado do Espí-rito Santo. A multinacional estatal chinesa,portanto, está ligada a uma multinacional bra-sileira, disputando com a concorrenteGerdau, outra multinacional brasileira.

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19� DEPENDÊNCIARETRATO DO BRASIL | nO 9

De acordo com Ricardo, cada um dos pa-íses deveria usar seus recursos de modo a obtera maior produção de tecidos e de vinhos. SePortugal pudesse obter vinho e tecidos inves-tindo tudo na produção de vinhos e impor-tando tecidos, esse seria o melhor caminhopara o país. No caso da Inglaterra, o oposto:ela obteria tecidos e vinhos investindo na pro-dução de tecidos e importando vinhos. Numsistema de livre comércio, concluía Ricardo,ambos tirariam o máximo proveito de suasvantagens comparativas.

O Brasil pagou a contaNo livro Imperialismo, da era colonial ao pre-

sente (Zahar Editores, 1979), o economistaamericano Harry Magdoff critica a teoria deRicardo. Ele diz que o Tratado de Methuen éo quarto de uma série, celebrada entre os doispaíses, que começou em 1642, logo após Por-tugal livrar-se de um período de 60 anos sobdomínio espanhol, e que Methuen é apenaso coroamento de um processo de divisãointernacional do trabalho que ele qualifica iro-nicamente de “ideal”, “festejado até hojecomo exemplo ímpar das virtudes de leiseconômicas independentes e objetivas”.

Magdoff explica que, para manter seuimpério, que se espalhava por América, Áfricae Ásia, e, tendo a Espanha como ameaça,Portugal fez sucessivas e cada vez mais am-plas concessões econômicas e militares aosingleses. Antes do Tratado de Methuen, porexemplo, Portugal ainda tinha uma indústriatêxtil, com incentivos locais e protegida daconcorrência inglesa por leis internas que proi-biam a utilização de tecidos estrangeiros.

Após Methuen, foram eliminadas as restri-ções legais aos tecidos e aos produtos de lã ingle-ses. Em troca, a Inglaterra reduziu as tarifas adua-neiras dos vinhos portugueses em comparaçãocom os franceses, a despeito de esses serem osvinhos dominantes no mercado inglês.

“Como decorrência do tratado, a econo-mia de Portugal, com sua concentração novinho e ausência de indústria manufatureiraque lhe teria dado maior flexibilidade econô-mica, tornou-se crescentemente dependenteda economia britânica.” Portugal pagou a con-ta dessa dependência com o ouro que extraiudo Brasil, diz Magdoff. Ele cita o historiadoringlês Christopher Hill: “Especialmente apósa assinatura do Tratado [de] Methuen em1703, o comércio português, em especial doouro do Brasil, contribuiu para transformarLondres no mercado mundial de ouro embarra.” Magdoff conclui: “Esse fato se cons-

tituiu em um estímulo valioso para a con-quista, pela Inglaterra, da situação de banqueiromundial e de principal nação capitalista.”

É como se Portugal fosse uma empresamineradora que extraía ouro do Brasil e ten-tasse, com esse ouro, pagar sua dependênciada Inglaterra. O resultado é que o Brasil ficousem ouro. E Portugal nem sequer quitou aconta com a Inglaterra. Como se sabe, fezparte do acordo da independência do Brasil,em 1822, uma negociação tripartite, pela qualnosso país assumiu a dívida de Portugal coma Inglaterra.

A JBS-Friboi, a nova multinacional brasi-leira, apareceu em grande estilo para o públicoem meados do ano passado, quando anun-ciou a compra da Swift por 1,4 bilhão de dó-lares. O negócio, de fato, tem mais a ver com osurto de especulação financeira dos anos pós-2005 no Brasil do que com nossas supostasvantagens comparativas. A Swift chegara aoBrasil na época da Primeira Guerra Mundial.Era americana e foi criada por caubóis empre-

José e um dos filhos: a Friboi tem apoio

do BNDES e dos fundos�

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EM BRUTO Ao contrário da Argentina, que elevou aexportação de soja industrializada, o Brasil, cada vezmais, manda para fora o produto na forma de grão

O AGRONEGÓCIO BRASILEIRO pode contribuir com cerca de 40 bilhões de dólares paraminorar o desequilíbrio das transações correntes do País neste ano. Esse volume dedólares é fruto de uma projeção do saldo da balança comercial do agronegócio feita apartir do resultado do primeiro trimestre de 2008. Boa parte desse saldo, no entanto,é de exportações de produtos não elaborados. Na carne bovina, por exemplo, asexportações de carne bruta são mais de 80%. No caso da soja, a situação parecepiorar. O complexo da soja – em grão, farelo e óleo – é o terceiro item da pauta deexportações do agronegócio em valor exportado, e as vendas externas também sãocrescentes. A exportaçãoda soja em grão, cujo pre-ço alcançou máximas his-tóricas na bolsa de Chica-go, cresceram mais de 10vezes desde 1996. Masfarelo e óleo, produtoscom maior valor agrega-do, tiveram sua produçãoe comércio quase estag-nados, com modesto cres-cimento. Na Argentina,ocorreu o movimentocontrário, com o fortecrescimento das vendasde farelo e óleo.

EXPORTAÇÃO DE SOJA EDERIVADOS NO BRASIL,EM US$ BILHÕES (1996-2008)

* estimativa / Fonte: Valor Econômico

1996

1998

1997

1999

2000

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0

Grão

Óleo

2002

2003

2004

2005

2006

2007

2008*

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20 DEPENDÊNCIA � RETRATO DO BRASIL | nO 9

endedores da região de Chicago em meadosdo século XIX. Em 2002, já era comandadapor financistas: passara ao controle de umfundo de investimentos, o HMTF (Hicks,Muse, Tate & Furst), com sede em Dallas, noTexas, conhecido no Brasil por seus negóciosno futebol. Investiu no Corinthians, de SãoPaulo, e no Cruzeiro, de Belo Horizonte.

Os que adquiriram a companhia, JoséBatista Sobrinho (JBS) e seus três filhos,são de Anápolis. Caubóis goianos, comoos chamou a revista de negócios Exame. Opai fundou a Friboi em 1953. No períodode 1982 a 2002, de estagnação da economiado País, comprou aqui diversas empresasnacionais e estrangeiras em crise. E, em 2005,já reestruturada como JBS S.A., a compa-nhia deu seu primeiro grande passo parafora. Comprou por 225 milhões de dólaresa Swift Armour argentina. A Armour jun-to com a Swift, a Anglo e a Wilson eramempresas de capitais americanos e inglesesque participaram da primeira grande incur-são dos capitais internacionais no setor decarnes na América do Sul, no Brasil e, espe-cialmente, na Argentina.

A JBS foi um dos personagens do ex-traordinário movimento na Bolsa de Valo-res de São Paulo no primeiro semestre doano passado. Em maio, realizou uma ofertapública de ações, concertada com oBNDESPar e com os grandes fundos depensão das estatais, com os quais conseguiucerca de metade do dinheiro para comprar,logo depois, a Swift americana. A outra me-tade veio de uma operação de curto prazocom quatro grandes bancos.

O que a JBS e seus apoiadores fizeram aseguir deve ser visto com algum detalhe paraentender a questão das chamadas multina-cionais brasileiras dentro da economia naci-onal. Como se sabe, o cenário internacionalse deteriorou a partir do segundo semestrede 2007. Ainda no início deste ano, no en-tanto, tanto o Banco Central como a Presi-dência da República, como mostramos emnossa edição do mês passado, difundirama idéia de que a situação das contas nacio-nais era maravilhosa e que tinha sido encer-rado o capítulo da dependência externa.

Como os fatos logo demonstraram, issonão era verdade. Está em curso um grandemovimento de desequilíbrio nas contas ex-ternas e o governo deveria analisar detida-

mente os movimentos de capitais a que oPaís está submetido.

Que vantagens o BNDES e fundos pú-blicos vêem ao incentivar o processo de fu-são de empresas que implica um aumentodo endividamento nacional? Ainda apoia-do pelo BNDESPar e pelos fundos de pen-são, o grupo JBS fez novas aquisições noexterior em março deste ano. Comprou aNational Beef, a Smithfield Beef, america-nas, e o Tasman Group, da Austrália, por1,7 bilhão de dólares. Com isso, tornou-sea maior empresa abatedora e de vendas decarne bovina do mundo.

Por que este e não outro?Mas e daí? A JBS enfrenta visíveis dificul-

dades no momento. No fim de fevereiro, ro-lou a dívida, de 750 milhões de dólares, quecontraiu com os bancos para financiar a com-pra da Swift. Por que o BNDES e os fundosapoiaram seu novo endividamento?

Um dos argumentos para emprestar aoJBS é o de que se trata de grupo do agrone-gócio e o Brasil tem vantagens comparativasexcepcionais nesse setor. Como vimos, essaé uma conversa antiga. E, a nosso ver, equi-vocada. Vem dos tempos em que a Holandafinanciava os portugueses que exploravamcana-de-açúcar no Nordeste brasileiro à basede trabalho escravo dos negros africanos. E,já na época, embora os termos fossem ou-tros, não havia interesse nacional brasileironessa história.

Além do mais, o agronegócio tem inú-meros setores que poderiam ser incentivadosde inúmeras formas. Por que incentivar este

grupo e não aquele outro? O presidente doInstituto de Pesquisa Econômica Aplicada(Ipea), o economista Marcio Pochmann, porexemplo, defende que o governo crie umaestatal para produzir biocombustíveis e apro-veite os altos preços do petróleo e da energiaem geral. Nesse setor, está em curso um ex-traordinário movimento de fusões e incor-porações comandado, de um modo geral, pelocapital privado internacional. A ação mais es-petacular nesse campo, no entanto, é de umempresário brasileiro, Rubens Ometto, donoda Cosan, a maior empresa de produção deaçúcar e álcool do País.

Ometto é de uma família tradicional deusineiros paulistas. É um financista, no en-tanto. Já foi, por exemplo, diretor doUnibanco. E ergueu a Cosan ao primeiroposto do setor com uma agressiva políticade endividamento. No fim de 2005, comomuitos outros empresários, ele viu a pers-pectiva de obter dinheiro mais barato naBolsa. Abriu o capital da empresa na Bovespavendendo 26,7% da companhia em dezem-bro daquele ano, com o que conseguiu 740milhões de reais.

Com isso, no entanto, admitiu na suaprópria empresa minoritários que podiamquerer tomar o seu lugar de controlador numnovo movimento de expansão que fosse exe-cutado por ela. Com certeza, havia gente napraça com essa idéia. Os quatro grandes gru-pos mundiais do agronegócio, Archer DanielsMiddland (ADM), Bunge, Cargill e Dreyfus,têm todos posições no agronegócio brasilei-ro e manifestaram interesse concreto no setorde biocombustíveis. O americano ADM, por

Divulgação

Ometto (centro, de óculos ): o

impulsivo empreendedor criticou a ministra�

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21� DEPENDÊNCIARETRATO DO BRASIL | nO 9

PORQUE REINVENTAR A RODA

Apesar do sucesso comercial da Embraer, sua história mostra umaatuação limitada com relação a um campo crítico, o da defesa

O presidente da General Motors no Bra-

sil, Ray Young, disse no início do ano passa-do ao jornal Valor Econômico , em nosso País,“a prioridade são as commodities” e, na China,“a prioridade é proteger a indústria”. “A Chi-na briga por contratos de transferência detecnologia”, disse.

Seguramente, o executivo da multinacio-nal americana estava se referindo à necessidadede proteger mais a indústria automobilísticaestrangeira instalada no Brasil, da qual é umdos dirigentes. E, possivelmente, não estavasugerindo que aqui se adote uma política detransferência de tecnologia como a da China –que levou aquele país a ter uma poderosa in-dústria automobilística nacional, ao contráriodaqui, onde, atualmente, não há sequer umapequena montadora de automóveis brasileira.

A relação da tecnologia com o modelode desenvolvimento e com uma política deincentivo à formação de multinacionais nos

vários setores da economia é complexa. Háquem defenda que o Brasil se especialize noagronegócio, em que teria atualmente umaltíssimo nível de desenvolvimentotecnológico. Embora consideremos essa for-mulação questionável, por ora pretendemosdestacar o problema da tecnologia apenascom relação a duas das grandes empresasverde-amarelas (nossa edição de númeroonze tratará especificamente da dependênciatecnológica do País): à Embraer, considera-da a nossa mais bem-sucedida multinacio-nal tecnológica, e à das telecomunicações, quese anuncia.

Começamos pela Embraer. Seus aviõesrepresentam cerca de um terço dos produtosde alta tecnologica exportados pelo Brasil. Ea empresa tem um papel potencial relativo aum aspecto que não pode deixar de ser leva-do em conta quando se fala em multinacio-nais do País: a defesa nacional.

exemplo, anunciou explicitamente seu inte-resse em comprar a Cosan.

Ometto tentou fazer a Cosan dar umnovo salto no segundo semestre de 2007, jáem meio à profunda crise financeira internacio-nal. Criou uma empresa, a Cosan Limited,com sede nas Bermudas, um paraíso fiscal.Mudou as regras da captação para garantir queficasse com o controle, criando um tipo deação especial para si mesmo, a exemplo domecanismo que garante aos empresários quecriaram a Google o controle da empresa, mes-mo tendo menos de 20% do total das açõesda companhia. E tentou captar 2 bilhões dedólares na Bolsa de Nova York.

Ometto parece ser um cidadão impulsi-vo. A revista Época narra o que disse durantereunião no Palácio do Planalto na qual ele cri-ticou a ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff,por sua falta de interesse em apoiar a geraçãode energia elétrica pelas usinas de açúcar e álcoola partir do bagaço da cana, para evitar a ameaçade apagão, também no segundo semestre de2007. “Dilma, eu não vim aqui dizer o que asenhora quer ouvir, mas para falar o que deveser dito. A senhora está pisando no lodo enão sabe o que tem debaixo dos pés”, teriadito ele.

Uma estatal de biocombustíveis?Parece claro que Ometto é um empresá-

rio empreendedor e corajoso. O lançamentoda Cosan Limited na Bolsa de Nova York éuma prova disso. Ele conseguiu praticamen-te a metade do que pretendia, 1,05 bilhão dedólares. É preciso entender, entretanto, que olançamento foi feito, como conta a revistaÉpoca, num momento tão ruim que o órgãoregulador do mercado americano, a SEC, po-deria impedi-lo. Ometto tinha de esperar trêsminutos após o início das operações da Bolsa“para receber sinal verde” para a operação. Te-ria sido a primeira vez que uma empresa lan-çou ações após a abertura do pregão. Todomundo achou que ele abortaria a operação,diz a revista semanal brasileira.

Por que o governo apoiou a JBS e não aCosan Limited? A JBS Friboi pode encher deorgulho os que acham importante dizer que“o Brasil tem a maior empresa de abate e ven-da de carne bovina do mundo”. No momen-to, o custo concreto dessa afirmação é umaumento do endividamento externo do País.No ano passado, a empresa deu prejuízo.Quanto à remessa de lucros futuros, que emtese viriam das filiais no exterior para os seusdonos – para o Brasil, portanto –, é preciso

não ter muitas ilusões. Dos três irmãos quecontrolam a empresa com mais de 60% dasações, dois vivem no Colorado (EUA).

Há uma enorme disputa pelo agronegó-cio brasileiro. O setor de carne bovina não énem o maior, nem o mais importante. Decada 100 kg que exporta, 80 kg são de carne innatura. A Perdigão, sob controle de fundosde pensão, e a Sadia, controlada pela famíliado ex-ministro Luiz Furlan, são as duas gran-des empresas do setor de carnes em geral, comdestaque para a carne de frango, da qual o Bra-sil é o maior exportador mundial. As duasempresas são basicamente industriais e ex-portam uma variedade muito grande de pro-dutos. Nesse sentido, são mais importantes.

E para o setor de biocombustíveis emparticular? Por que não criar uma estatal,por meio da Petrobras? A petroleira temem andamento alguns projetos de produ-ção de álcool em associação com cooperati-vas agrícolas, que favoreceriam os peque-nos produtores. Para a produção debiodiesel, uma estatal pode ser a principal

esperança de que se desenvolva a cultura damamona, tanto defendida pelo presidenteLula e pelo Ministério do Desenvolvimen-to Agrário há pouco tempo e até agora pra-ticamente esquecida. A safra de mamonacaiu de 2006 para 2007.

O presidente – compareceu a três lança-mentos das unidades de produção da BrasilEcodiesel, que anunciava com grande estar-dalhaço a produção de biodiesel a partir deóleo de mamona, mas demitiu Ildo Sauer, odiretor da Petrobras que criou os dois progra-mas da estatal citados.

Não por acaso, Sauer foi o principal teóri-co do PT na formulação de um plano paraaproveitar as vantagens comparativas do Paísna geração de energia elétrica em benefício dagrande maioria da população. E foi afastadoda direção da Petrobras também por sua po-lítica de crítica ao mercado livre de energia, noqual os grandes empresários se apropriaram,a preços baixos, do excesso de energia dasestatais criado com a redução do consumoapós o racionamento de 2001-2002.

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22 DEPENDÊNCIA � RETRATO DO BRASIL | nO 9

Embora a Embraer seja privada e maisde 55% de suas ações sejam negociadas naBolsa de Valores de Nova York, trata-se deuma empresa construída como uma estatalfederal, dentro de um plano de defesa nacio-nal. Ela foi fundada no Centro Tecnológicoda Aeronáutica (CTA), em São José dosCampos. O CTA foi criado no governoVargas, em 1946, pelo brigadeiro CasimiroMontenegro. Com o golpe militar de 1964,Montenegro foi afastado. Seu superior, o bri-gadeiro Eduardo Gomes, ministro da Ae-ronáutica do primeiro governo militar, eraum liberal. Achava as idéias nacionalistas deMontenegro atrasadas. O CTA deveria serum centro de reparo de aviões e não tentarreinventar a roda, produzindo aviões.

Bagageiro ideal para tacos de golfeEm 1969, no governo militar seguinte,

mais repressivo e mais nacionalista, aEmbraer foi criada, e o CTA se envolveunum grande esforço de pesquisa avançadasobre materiais e processos relacionados coma defesa nacional.

Em meados de março, Retrato do Brasil foià sede da companhia, em São José dos Cam-pos. A empresa, que tinha apenas 400 funcio-nários nos anos 1970, hoje emprega mais de23 mil. Na sede, são 14 mil, 70% com segun-do grau técnico, 25% universitários, 5% pós-graduados, mestres ou doutores.

Durante a visita, a repórter de RB cir-cula por três enormes hangares. Em um,vê a fuselagem de dois ERJ 145, para trans-porte de 37 a 50 passageiros, sendo pinta-das de branco. Noutro, seis aviões da fa-mília de jatos 170/190, para entre 70 e 122assentos, já devidamente pintados, comos logotipos de companhias aéreas de vá-rios cantos do mundo e a barriga carrega-da de cabos elétricos, motores e sistemas.Num terceiro, quatro jatos executivos re-cebem os últimos retoques de funcionári-os de touca, botas e luvas de pano.

Um deles explica: a indumentária é ne-cessária para preservar o ambiente, porqueos clientes, que pagam entre 3 milhões e 27milhões de dólares pelos jatinhos, devemter a impressão de serem os primeiros a to-car neles. Ele mostra à repórter uma maqueteem tamanho natural do Phenom 300, umdos últimos lançamentos da empresa, quefoi apresentado no 1º Athina Onassis

International Horse Show, em agosto de2007, na Sociedade Hípica Paulista. Seu inte-rior foi desenhado pelo BMW Group DesignWorks. “O bagageiro é ideal para pôr os ta-cos de golfe e os esquis. Foi feito na medidapara este tipo de cliente”, explica.

“A privatização foi a tábua de salvação daempresa”, diz Satoshi Yokota, vice-presiden-te-executivo de Planejamento Estratégico eDesenvolvimento Tecnológico da Embraer.Ele ingressou na empresa em 1970. Diz que,antes da privatização, “a Embraer estava afun-dada em dívidas e seus produtos estavamficando obsoletos”.

Com a privatização, passou a ser contro-lada pelo Bozano, Simonsen, um grupo fi-nanceiro associado aos fundos de pensãoPrevi e Sistel. O BNDES, como é hábito,apoiou ativamente o processo: após aprivatização, emprestou cerca de 100 milhõesde dólares à empresa para ajudá-la no desen-volvimento de novos jatos.

Em 2003, o Bozano, Simonsen vendeu20% das ações ordinárias da companhia aum consórcio formado pela DassaultAviation, Aérospatiale Matra, ThompsonCFS e Snecma, empresas do setor de defesafrancês. Teve enorme lucro: no leilão deprivatização tinha pago R$ 2,14 por ação.Vendeu por R$ 8,27.

Os franceses venderam sua parte em2006. A Embraer foi então reestruturada. Seucapital social passou a ser composto apenas

de ações ordinárias. Seus principais sóciossão atualmente o Previ, com 13,9% do capi-tal, o Grupo Bozano, Simonsen, com 8,7%,o BNDESPar, com 5%, e a União, com 0,3%.

Em 2006, a partir de um lucro líquidoconsolidado de quase 622 milhões de reais,a Embraer distribuiu a seus acionistas, sob aforma de juros sobre o capital próprio e di-videndos, mais de 327 milhões de reais, equi-valentes a R$ 0,44 por ação ordinária. Os aci-onistas estrangeiros ficaram com a maiorparte, aproximadamente 55,10% do total (ovalor é aproximado, porque são desconta-dos impostos).

Mudar para fugir da sobretaxaGraças ao lançamento da família de avi-

ões entre 70 e 120 lugares, a Embraer é hojea terceira maior fabricante de aeronaves co-merciais do mundo, atrás da americanaBoeing e da européia Airbus. Yokota diz,no entanto, que essa posição pode não semanter. Empresas chinesas, japonesas e rus-sas também já desenvolvem aviões para maisou menos a mesma faixa de mercado.

A Embraer tem uma joint venture com aestatal chinesa Harbin Aviation Industry parafabricar e reparar aviões na China. A sede dajoint venture é a cidade de Harbin. Lá, fica aúnica unidade fabril da Embraer fora do Bra-sil. Foi inaugurada em 2003. A Embraer ti-nha feito uma primeira grande venda de ae-ronaves prontas para a China. O governochinês passou a sobretaxar a importação deaviões com até 100 assentos. E a produçãono local, em associação com os chineses, foia saída para continuar no mercado de lá.Exceto 18 aviões já produzidos na China,todos os outros são montados no Brasil.

Nos últimos dez anos, a Embraer cres-ceu entre 10% a 15% ao ano. “Em 1996 ven-demos perto de 500 milhões de dólares. Em2007, foram 5,2 bilhões, quer dizer, cresce-mos dez vezes em onze anos”, diz Yokota.Das receitas da empresa, 99,4% vêm das ven-das externas. A aviação para o transporte depassageiros respondeu por 64,4% do totalfaturado. Só a aviação executiva, inauguradaapenas em 1999, foi responsável por 16%.“No Oriente Média, na Rússia, na China etambém no Brasil, tem havido um cresci-mento significativo dos ricos e dos muitoricos, ou das empresas que, por dificuldadesdo transporte aéreo regular precisam de ja-tos executivos”, explica Yokota.

O primeiro avião produzido pelaEmbraer foi comercial, o Bandeirante, utili-

Yokota, da Embraer: aviões executivos

para os ricos e muito ricos�

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zado em rotas regionais. Depois, veio oXavante, produzido sob licença da Aermacchiitaliana, para missões militares de treinamen-to e ataque. Hoje, a empresa fabrica, alémdos jatos comerciais e dos executivos, os avi-ões de defesa Tucano, para treinamento e ata-que leve, o EMB 145 AEW&C, de alerta aé-reo antecipado e controle, o EMB 145 RS/AGS, para sensoreamento remoto e vigilân-cia ar-terra e o PP-99, de patrulha marítima eguerra anti-submarina. As vendas das aero-naves de defesa respondem por 6,6% dasreceitas da empresa.

Considerando as receitas em todos ossegmentos, os americanos podem ser vistoscomo clientes especiais. Em 2007, a Embraervendeu 103 aeronaves para os EUA e 103 paratodos os outros destinos somados. Os ame-ricanos também são especiais quando se tratado fornecimento de peças. Dependendo daaeronave, entre 60% e 70% dos componen-tes são importados. Turbinas, asas, compu-tadores de bordo, sistemas de controle decombustível, de iluminação, hidráulicos e devisão noturna são fabricados na Bélgica, In-glaterra, França, Estados Unidos e Israel.

EUA vetaram venda a Chávez

“Como todos os fabricantes de avião, aEmbraer é uma montadora, uma integra-dora”, explica Yokota. “É uma tendênciaquase universal. Veja os fabricantes de tênis.Praticamente, nenhum faz seus próprios tê-nis. Eles contratam. As empresas têm de seconcentrar naquilo em que são fortes. E qualé o forte da Embraer? É concepção, entendi-mento de mercado, marketing, engenharia,gestão”, argumenta.

O fato de depender de tecnologias origi-nárias de outros países traz problemas para

os negócios da multinacional brasileira. Em2006, o governo americano proibiu aEmbraer de vender 36 aviões para aVenezuela. O governo de Hugo Chávezcompraria 12 AMX-T, última geração da fa-mília Tucano, por 300 milhões de dólares, e24 patrulheiros Super Tucano, por 170 mi-lhões. Segundo a revista IstoÉ Dinheiro rela-tou na época, uma autoridade do Departa-mento de Estado americano comunicou àdiplomacia brasileira, em Washington, que

seu país havia decidido vetar essa venda.Caso a Embraer insistisse, os EUA obrigari-am empresas americanas a interromper o for-necimento de componentes para seus avi-ões, inclusive civis.

Vários itens importantes do Tucano sãoproduzidos por empresas americanas ou depaíses muito próximos dos EUA. O motor

VINTE EM QUATRO Um exemplo de concentração decapital nas empresas multinacionais, o das queatuam na área de defesa nos EUA

Nos anos 1990, sob a orientação do Departamento de Defesa do país, diz a revistaThe Economist, fez-se a consolidação do já reduzido grupo de 20 empresas do setor:quatro empresas mais fortes engoliram as menores

GE AerospaceMartyin Marietta

LockheadLoral

Fonte:T

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t (20/6/2002)

(GD Space)

Lockheed Martin

Northrop Grumman

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(Hughes Space)

(Hughes Eletronics)

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1995 20001990 2002

Super Tucano e Phenom: avião de

defesa é problema. O de luxo, sucesso�

(GD Fort Worth)

General Dynamics

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A EMENDA E O SONETO

A Telebrás poderia ter sido uma múlti das telecomunicações. A televerde-amarela parece um remendo no plano de privatização do setor

A tele verde-amarela que está sendo

gestada nos últimos meses pode ser enxergadacomo um esforço do governo Lula no senti-do de reorganizar amplamente o setor de-pois da grande privatização do final dos anos1990. Antes desse processo, as estatais repre-sentavam pouco menos de 100% dofaturamento geral nas telecomunicações bra-sileiras, aí incluídas as contas da telefonia celu-lar. Essa inclusão é importante quando se querdebater corretamente a privatização do setor:as estatais também já desenvolviam a telefo-nia móvel em ritmo espetacular. Entre 1994 ea privatização, as linhas de celulares crescerama taxas entre 50% a 100% ao ano, pulando de800 mil para 7,4 milhões.

O sistema Telebrás incluía o Centrode Pesquisa e Desenvolvimento em Tele-comunicações (CpqD), considerado omaior núcleo de pesquisas da AméricaLatina e um dos maiores pólos tecnoló-gicos do mundo nas áreas de telecomu-nicações e informação, também privati-zado e hoje transformado numa funda-ção sem fins lucrativos.

Para nossa história, por enquanto, bas-ta ver que o processo de privatização nãoequacionou o problema representado peloacelerado desenvolvimento técnico do se-tor. Em 1997, realizaram-se os leilões datecnologia antiga, fixa. Foram vendidas asconcessões das três grandes áreas de telefo-nia fixa local em que o País foi divididocom o reagrupamento das operadoras es-taduais. E houve também o leilão da Em-bratel, a operadora federal da telefonia fixade longa distância. Depois, foram realiza-dos sucessivos leilões da tecnologia nova,do celular. Esses leilões também ocorrerampor áreas, mas diferentes das anteriores. E,para as sucessivas tecnologias de celular queforam surgindo. Os últimos leilões, porexemplo, do final de 2007, referem-se àsconcessões dos chamados celulares de ter-ceira geração, que permitem comunicação embanda larga, com maior capacidade de trans-missão de dados.

Hoje, as regras do setor criam barreirasentre áreas e tecnologias. As empresas conces-sionárias criticam também o fato de a chama-

da Lei do Cabo, que rege a transmissão decomunicações para a tevê a cabo, criar umabarreira a mais para as grandes operadoras datelefonia fixa, por impedi-las de entrar nessesetor. Há certo consenso sobre a existência deuma “convergência de tecnologias” e de queas diversas leis de concessão acabam impedin-do o progresso técnico.

Só “sete ou oito”E nesse ponto se misturam diversos

interesses na criação da tele verde-amarela.As multinacionais que compraram pedaçosda Telebrás, como a espanhola Telefonicapor exemplo, apóiam a criação da novaempresa porque isso implicará a mudançadas leis do setor que lhe permitirá, acreditaa empresa, capitanear o processo que cha-ma de “consolidação do setor”. Seu presi-dente disse aos jornais que a Telefonicapode vir a ser uma entre “sete ou oito” telesdestinadas a dominar o mercado global.“Uma chinesa, uma americana, algumaseuropéias. O que a gente espera, comoTelefonica, é que a gente seja uma dessasempresas”, disse.

Difícil é vislumbrar no processso uminteresse nacional, brasileiro, claro. A televerde-amarela deve nascer de um acordoque envolve o Citibank, um banco ameri-cano. O Citibank tem um objetivo cristali-

é feito no Canadá por uma subsidiária daamericana Pratt-Whittney. A hélice e o siste-ma de visão noturna também usam tecno-logia americana. Os assentos ejetáveis são dabritânica Martin Baker. O sistema de aviônicaé da israelense Elbit.

Chávez denunciou publicamente a pres-são. Pretendia, com a ajuda da Embraer, criaruma indústria aeronáutica local, com aero-naves não apenas militares. Estava sendo ne-gociada a transferência de tecnologia dos mo-delos Brasília e Ipanema.

Apesar de não ter conseguido efetivar onegócio com a Venezuela, no mesmo ano, aEmbraer vendeu 25 Super Tucano à Colôm-bia, aliada dos EUA no continente. Em ja-neiro de 2007, uma esquadrilha de SuperTucano da Força Aérea Colombiana atacoubases do grupo rebelde Forças Armadas Re-volucionárias da Colômbia (Farc), na Ama-

zônia colombiana. E, quase um ano depois,na madrugada de 1º de março deste ano, ae-ronaves Super Tucano da Força Aérea Co-lombiana invadiram o espaço aéreo do Equa-dor e atacaram um acampamento das Farcsituado cerca de dois quilômetros dentrodaquele país, num dos mais graves inciden-tes diplomáticos recentes no continente.

Como se vê, as questões relacionadascom a defesa nacional são muito sérias eajudam a entender porque a Embraer pa-rece conformada a explorar um campomenos explosivo. O País quer ter umaempresa multinacional no campo da de-fesa militar? Desde que os índios perde-ram para Portugal o território que é hojeo Brasil, por conta de seus canhões ecaravelas, sabe-se que uma independên-cia nacional efetiva não se constrói ape-nas com boas intenções.

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no. Enfrenta perdas brutais no mercadoglobal, a despeito dos excelentes lucros dobanco no Brasil no ano passado. E quermandar o maior volume possível de divi-sas para auxiliar sua matriz. Por isso quervender sua participação numa das empre-sas que formariam a tele verde-amarela, aBrasil Telecom (BrT).

O Citi está, até o momento de fecha-mento desta edição, no comando da BrT.Desbancou desse posto outra instituiçãofinanceira, local, o banco Opportunity, deDaniel Dantas. Isso foi feito, tudo indica,por orientação do governo Lula, que des-mantelou o esquema montado no gover-no Fernando Henrique.

Quem ganha, quem perde?O Oportunity funcionou como uma

espécie de pivô no esquema básico deprivatização. De um lado, o governo mo-bilizou recursos oriundos dos fundos depensão dos trabalhadores das estatais e doBNDES para financiar os chamados “só-cios estratégicos”, empresas geralmente es-trangeiras encarregadas de assumir o ne-gócio privatizado. No meio disso ficava ogestor do fundo de financiamento (papelassumido pelo Opportunity), que era en-carregado de definir o sócio estratégico.Uma lei aprovada na época impediu que,mesmo sendo financiadores destacadosdos negócios, os fundos de pensão de se-rem eles mesmo os gestores dos recursos.

No arranjo que se propõe para a televerde-amarela, o comando sairia do Citi parauma dupla, os grupos de Carlos Jereissati,

Jereissati e Andrade (p. anterior): eles

devem ficar com a tele verde-amarela�

grande empresário cearense, e de SérgioAndrade, da Andrade Gutierrez, conhecidaempreiteira de Minas Gerais. Os dois sãoos principais acionistas do grupo Oi.

Opportunity, de um lado, Citi e fundosde outro, fariam um acordo para zerar bri-gas jurídicas envolvendo o controle da BrTpor algumas centenas de milhões de dóla-res. Os dois bancos cairiam fora do negóciocom suas partes em dinheiro. Os fundosficariam. O BNDESPar poria mais umameia dúzia de bilhão de reais. Com isso,surgiria uma nova empresa, resultado dafusão da BrT com a Oi. E, de sua parte, ogoverno reformularia (já propôs, em parte)as leis do setor, satisfazendo as multinacio-nais que estão fora do negócio e viram neleuma chance de as leis serem mudadas.

Frigidos os ovos, quem ganha, se onegócio der certo? Em relação às demis-sões de trabalhadores, há uma negociaçãopara minimizá-las, o que é um ponto po-sitivo. Evidentemente, não se pode garan-tir que, aberta a porta para um granderearranjo do setor, a economia nas demis-

ALÉM DO TRILHÃO Os fundos de pensão das estatais,Previ à frente, são os maiores sócios do grande capital.Com os privados, podem chegar a 50% do PIB em 2020

O PREVI – CAIXA DE Previdência dos Funcionários do Banco do Brasil – é o maiorfundo de pensão brasileiro. No fim de 2007, tinha 140 bilhões de reais em ativos –ações de empresa, imóveis, títulos e empréstimos. Esse valor equivalia a cerca de umquarto de todos os ativos pertencentes aos mais de 400 fundos de pensão do país.A partir do processo de privatização das estatais nos anos 1990, em que foi peça

chave, o Previ se tornou um dos gran-des investidores do País. Em 2006, re-cebeu cerca de 180 milhões de reaisde lucros da Vale do Rio Doce, 230milhões da Petrobras, 415 milhões doBanco do Brasil, 75 milhões do Itaú eassim por diante.Segundo a Associação Brasileira dasEntidades Fechadas de PrevidênciaComplementar (Abrapp), os fundos noBrasil reúnem cerca de 2,6 milhões deassociados e pagam benefícios a 650mil trabalhadores. O valor dos ativosreunidos por esses fundos chega a 416,4bilhões de reais, o que representa 17%do PIB nacional (70% pertencem aos

fundos de empresas estatais e 30%, ao das instituições do setor privado). Segundoestimativas da Abrapp, em 2020 os ativos administrados pelos fundos de pensãopodem chegar a 1,8 trilhão de reais, o que representará 50% do PIB.

EVOLUÇÃO DO PATRIMÔNIO DOFUNDO PREVI, EM R$ BILHÕES(2003-2007)

Fonte: Previ

2003

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2004 2005 2006 2007

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sões na “nossa” tele compensaria as queocorreriam no processo de monopoliza-ção como um todo.

Há ainda em negociação a questão daprodução local de conteúdo para tevê, queseria incentivada. Se tal ocorrer, haverá umbenefício também claro: nas contas exter-nas do País, o custo da importação deaudiovisuais é cada vez maior. Mas não sepode deixar de lado também a questão doconteúdo político e ideológico da progra-mação. Se a tele verde-amarela só tem essascores no que se refere à nacionalidade dospatrões que a controlam, mas não contri-bui para a formação de uma verdadeira cul-tura nacional, democrática e popular, nãohaverá grande ganho, a despeito da econo-mia de divisas.

O caminho brasileiro para a formaçãode uma empresa nacional expressiva nessecampo de vanguarda, que é o das teleco-

municações, deve ser comparado com ode outros países. Em 1997, como no Bra-sil, a China também alterou seu sistemaestatal do setor. Separou também a telefo-nia fixa e a celular. Na telefonia fixa tam-bém dividiu o país por áreas, mas nãodesmontou suas estatais.

Na telefonia celular, por exemplo,criou a China Mobile CommunicationsCorporation (CMCC), ou simplificada-mente, China Mobile, o nome em in-glês. A empresa foi desmembrada daChina Telecom, o monopólio inicial.Hoje a CMCC, com sede em HongKong, tem 67,5% do mercado continen-tal de telefonia móvel da China. Emnúmero de assinantes é a maior do mun-do, com cerca de 380 milhões no iníciodeste ano. Em termos de faturamento,fica em segundo lugar no planeta, perdeapenas para a Vodafone, que tem sede

na Inglaterra, valor de mercado de cercade 150 bilhões de dólares e opera emduas dúzias de países.

A CMCC está em processo de internacio-nalização. O governo chinês abriu o merca-do do país à concorrência. A Vodafone, porexemplo, comprou 3,3% da CMCC. E aCMCC comprou, no início de 2007, porcerca de 250 milhões de dólares, a Paktel,empresa de telefonia móvel do Paquistão,criada no país pela inglesa Cable&Wireless.

Nem China, nem EspanhaO desenvolvimento tecnológico da

China nessa área é enorme. O país com-pletou sua rede nacional de telecomunica-ções de alta capacidade e alta velocidade,baseada principalmente em fibra ótica e,secundariamente, em satélites e micro-on-das digitais. O setor cresceu a taxas de 20%ao ano e chegou ao nível dos países desen-volvidos, com digitalização, banda larga econtrole de programas.

O roaming da CMCC, a tecnologia quepermite aos usuários utilizarem seus apa-relhos fora da área em que estão cadastra-dos, é um dos mais modernos. O sistemautilizado é o GSM (global system for mobilecommunications) e cobre 219 países e regiões.A empresa oferece também o serviço detransferência de dados GPRS, mais avança-do, para 138 países e regiões.

O caminho brasileiro pode ser compa-rado também com o da Espanha. A econo-mista Marina Szapiro defendeu uma tesede doutorado no Instituto de Economiada Universidade Federal do Rio de Janeirona qual avalia os desenvolvimentostecnológicos obtidos com a privatização datelefonia naquele país e no Brasil.

A Telefonica espanhola adquiriu o ser-viço público existente por inteiro, não hou-ve um desmembramento como no Brasil,o que talvez se explique pela diferença detamanho entre os dois países. Mas, ao con-trário daqui, não seguiu basicamente umplano definido pelo mercado, mas a polí-tica industrial do governo espanhol. Elacomprou equipamentos e ajudou, comcapital, a criar e manter 29 empresas de de-senvolvimento de tecnologia, por meio desua subsidiária, a Telefonica Investigação eDesenvolvimento.

A economista disse ao jornal ValorEconômico que isso levou a um fortaleci-mento do sistema de inovação de teleco-municações no País. Além disso, a

MÚLTIS À CHINESA Para internacionalizar empresas,os chineses dizem que é preciso o “três-três” e

“primeiro, o difícil, e, depois, o fácil”

O PRIMEIRO PASSO DA estratégia chinesa batizada de “três-três” é a busca depadrões internacionais de qualidade pela obtenção de três certificações-chave: a dequalidade garantida, a internacional dos produtos e a internacional dos padrões detestes. O segundo passo determina que o uso da tecnologia pela empresa deverá sedar em três etapas: importação e assimilação da tecnologia, absorção e imitação eaquisição de conhecimento e inovação. A importânciadesse passo é manter a pesquisa e o desenvolvimentotecnológico chinês acima dos padrões internacionais. Oterceiro passo do “três-três” também se dá em três par-tes e trata da internacionalização do mercado da em-presa: um terço dos produtos será produzido e vendidono mercado interno, outro terço será feito na China edestinado ao mercado externo e o terço restante produ-zido e vendido fora da China.De acordo com o o folheto Chinese enterprise groups –briming with vitality (New Star Publishers, 1998), a estra-tégia “primeiro, o difícil, e, depois, o fácil” para a con-quista do mercado internacional prevê que os produtosda empresa entrem primeiro nos países desenvolvidos,de mercados mais competitivos, consolidem ali sua mar-ca e ganhem fama mundial. E, depois, na parte fácil,avancem sobre os mercados dos países em desenvolvimento. Por esses caminhos, aHaier, produtora de geladeiras, condicionadores de ar, freezers, máquinas de lavar,aquecedores, televisores e outros eletrodomésticos, chegou lá. Tem de 20% a 30%do mercado interno, 124 subsidiárias na China e 26 no exterior, produzindo 7 miltipos de eletrodomésticos.

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PARA ONDE ELAS VÃO?

O Brasil não tem norte na política que diz respeito às multinacionais.Sem norte, como dizia Sêneca, não há vento que ajude

Getúlio e Roosevelt: a guerra ajudou

a criar as grandes estatais�

de assumir o controle da Vale. Empresa quenem sequer é dirigida por um “sócio estraté-gico”, como se exigia, em tese, nasprivatizações liberais. Ela é comandada porum financista, da Bradespar, cuja entrada nobloco de controle da Vale é, inclusive, discutí-vel do ponto de vista legal. Tendo participadoda operação de avaliação da Vale, o Bradesco,dono da Bradespar, estava legalmente impe-dido até mesmo de participar do leilão de ven-da da companhia.

Somente agora, depois de quase cinco anose meio de mandato, Lula parece ter liberado aEletrobrás, holding estatal do setor elétrico, quediz pretender transformar numa multinacio-nal, a tomar a iniciativa em projetos de gera-ção de energia. A empresa é o gigante da gera-ção e transmissão de eletricidade. Tem 50%de Itaipu. E quase 100% da Chesf, de Furnase da Eletronorte, empresas que operam noNordeste, Centro e Norte do Brasil, com usi-nas gigantescas.

Mudança complexaO País teve, entre 2001 e 2002, um raci-

onamento de energia espetacular, que du-rou oito meses. Hoje, ainda tem de torcerpara que as chuvas de verão sejam boas,para que a ameaça de apagão não volte. Adespeito desse cenário, somente no iníciodeste ano o governo federal tomou a inici-ativa de apoiar a lei que reforma os procedi-mentos adotados no período liberal e per-mite que a estatal seja majoritária em con-sórcios que disputam obras no setor.

Ainda assim, diz o ministro de Minase Energia, Edison Lobão, o governo pla-neja que a empresa lidere apenas a cons-trução de usinas com os vizinhos Argenti-na, Uruguai, Bolívia e Peru, em um pro-cesso de integração latino-americana.

A adoção da política liberal, que descar-ta uma ação nacional dos países em desen-volvimento, entendida como uma defesade interesses locais próprios em contrapo-sição aos interesses das potências imperia-listas e suas empresas, não é uma mudançasimples, que um governo como o do presi-dente Lula, que chegou ao Palácio do Pla-nalto por meio de amplas negociações e acor-dos com o grande empresariado, adotariade uma hora para outra.

A formação do sistema de empresas in-ternacionais atual nasce do movimento de

Reprodução

fusão que também serve para justificar açõesem defesa, por exemplo, da multinacional ver-de-amarela nas telecomunicações. Se não podehaver distinção legal entre empresas estran-geiras e nacionais, não existe base legal para seincentivar a existência de empresas nacionais.

O governo Lula não fez nenhum movi-mento no sentido de mudar a Constituiçãonesse ponto. Com relação às empresas esta-tais, particularmente, também não fez nenhu-ma grande alteração do quadro. Não mudoua orientação política do BNDES e a dos fun-dos de pensão das estatais, sobre as quais temgrande influência, no sentido, por exemplo,

A política liberal brasileira, praticada efeti-

vamente entre 1990 e 1998, aprovou as baseslegais para se descartar o sentido nacional daação estatal. Em 1995, por iniciativa do gover-no Fernando Henrique, foi eliminada a cláu-sula da Constituição da redemocratização doPaís, de 1988, que permitia a distinção entre asempresas instaladas no Brasil com capital sobo controle de nacionais e as instaladas no Paíssob o controle de estrangeiros. Do ponto devista legal, portanto, compreende-se a confu-são da ministra Dilma Rousseff, que se referea “nossas empresas” quando fala tanto dasnacionais quanto das estrangeiras. Uma con-

Telefonica atuou com a finalidade de le-var fabricantes de equipamentos espa-nhóis a se tornarem fornecedores nas sub-sidiárias que comprou com a privatizaçãona América Latina.

No Brasil, afirma a pesquisadora, ten-tou implantar aparelhos de telefones pú-blicos fabricados na Espanha. Mas, desis-tiu, porque o Brasil desenvolveu no CPqD

tecnologia mais avançada, que utiliza car-tões magnéticos.

Até o ano passado, o governo espanholtinha a chamada golden share na operação daex-estatal privatizada, o que lhe permitiaparticipar de decisões estratégicas daTelefonica, especialmente no caso de com-pras de empresas de outros países ou ame-aça de desnacionalização da tele espanhola.

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concentração de capitais do fim do século XIXnos países centrais do sistema capitalista, In-glaterra, Alemanha, Estados Unidos, Françae Japão.

A essa altura, países emergentes de hoje,como Brasil, Índia e China, eram colôniasabertas ou disfarçadas das principais potênciasimperialistas. O Brasil, por exemplo, transita-va do Imperio inglês para se colocar sob adependência americana.

A primeira fase de formação das multi-nacionais se encerra com a Segunda GuerraMundial. Entre o fim do século XIX e asprimeiras décadas do século passado, hou-ve um intenso processo de aliança e lutaenvolvendo os grandes trustes e seus Esta-dos nacionais, na disputa pelos mercadosmundiais.

Inicialmente, as gigantescas empresas dosdiferentes países se uniram para a formaçãode cartéis, para ação combinada. Os fabrican-tes de equipamentos elétricos e as “sete ir-

mãs” do petróleo, por exemplo, tentaram evitaro conflito com regras para a divisão dos mer-cados centrais e das colônias. A seguir, preva-leceu o conflito. Os Estados nacionais impe-rialistas, na defesa dos interesses de suas em-presas, promoveram duas guerras mundiais,intermediadas por outro evento cataclísmico,de outro tipo, a quebra do sistema financeiromundial, em 1929.

Esse período de guerras e ruptura finan-ceira permitiu o nascimento, em 1917, com aRevolução Russa, e a ampliação, posterior àpaz de 1945, de um sistema econômico dissi-dente: o do bloco soviético, capitaneado pelaURSS, que incluiu as nações do Leste euro-peu, a China e a Coréia do Norte.

Do lado onde ficou o Brasil, no bloco“ocidental”, sob a nova hegemonia, ameri-cana, criou-se uma ordem nova, reguladaeconomicamente. Surgiram o FMI, o Ban-co Mundial e o antecessor da OrganizaçãoMundial do Comércio (OMC), o Acordo

Geral de Comércio e Tarifas (Gatt, na siglaem inglês).

Esse acordo atribuiu aos Estados dospaíses capitalistas hoje chamados de emer-gentes, como Brasil e Índia, um papel ativono desenvolvimento econômico. Os orga-nismos de crédito internacional ajudaramcom empréstimos em moedas fortes a im-portação de máquinas e equipamentos in-dustriais necessários a projetos de desenvol-vimento da infra-estrutura industrial – side-rúrgicas, hidrelétricas, por exemplo, geralmen-te estatais. Foi nesse período que surgiramas nossas atuais multinacionais de origemestatal, a Petrobrás e a Vale, assim como aEletrobrás e a CSN. E que se instalaram aqui,para aproveitarem-se das novas condições,multinacionais estrangeiras, como as do se-tor automotivo, que passaram a produzirdentro do território nacional.

“Anos dourados” e crise terminal

O intervalo de 40 anos, que vai da Segun-da Guerra Mundial a meados dos anos 1970,foi marcado, no lado ocidental, primeiro poruma grande expansão econômica lideradapelos EUA. Foram pelo menos duas décadasde “anos dourados”. Já no fim da década de1960, esse movimento perdeu sua força, e,em meados dos anos 1970, ocorreu uma criseaberta na hegemonia americana. Os EUA rom-peram de modo unilateral os acordos mone-tários do pós-guerra.

A crise da hegemonia americana pareciaser terminal. O país sofreu uma derrota mili-tar espetacular no sudeste asiático. No iníciode 1975, seus últimos soldados saíram doVietnã, a despeito de os EUA terem colocadoali meio milhão de homens armados.

Os dez anos de crise americana, entremeados dos anos 1960 e meados dos anos1970, foram o período do apogeu dos regi-mes militares da América Latina. No Brasil,os governos militares aplastaram – prende-ram, desterraram, torturaram, mataram – pes-soas de tendências nacionalistas e de esquer-da, nas classes dominantes, no movimentopopular, no Congresso, no funcionalismo pú-blico, nas estatais. E por algum tempo pro-moveram um grande desenvolvimento eco-nômico, a taxas iguais às que os chineses seacostumariam a partir do fim dos anos 1970.

Foram criadas inúmeras estatais. Algu-mas novas, apoiadas em novas tecnologias,para além dos setores ligados às grandes mu-danças tecnológicas dos séculos anteriores,que revolucionaram as indústrias têxtil, de

UM PRÁ CÁ, SETE PRÁ LÁ O que as múltisbrasileiras trazem para o País é uma fração do que as

estrangeiras mandam para fora

OS FATOS DESMENTEM a tese de que as multinacionais brasileiras vão compensaras crescentes remessas de lucros das suas congêneres estrangeiras para fora do País.No período entre 1980 e 2007, enquanto as remessas de lucros e dividendos doinvestimento direto estrangeiro no País evoluempara perto de 20 bilhões de dólares, as remes-sas das grandes empresas brasileiras para o Paísnão chegam a 3 bilhões de dólares. A razãopara essa desproporção é que as multinacio-nais brasileiras são poucas, pequenas e estãoconcentradas em áreas de matérias-primas eprodutos semi-elaborados.Entre as cem maiores empresas mundiais porvalor de mercado, 42 são americanas, inclusiveas cinco primeiras. Todas são multinacionais. Aseguir, por origem dos capitais, vem Reino Uni-do, com dez empresas, e França e Japão, comseis. Depois, Alemanha, China e Suíça, com cin-co empresas cada. O Brasil tem duas: a Petro-bras, a 50ª, e a Vale, a 74ª.Há outras diferenças, de natureza qualitativa, en-tre as múltis do Brasil e as das potências capitalis-tas. Enquanto as brasileiras presentes entre as cemmaiores se destacam em apenas dois ramos, o depetróleo e gás e o de mineração, as americanas,por exemplo, estão espalhadas por treze. Fonte: Banco Central

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EVOLUÇÃO DAS RECEITAS EDESPESAS COM RENDAS DEINVESTIMENTO DIRETO, EMUS$ BILHÕES (1980-2007)

Recebida de filiaisbrasileiras no exterior

Enviada por filiaisestrangeiras para o

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mineração, elétrica, petrolífera, siderúrgica equímica. Foi o caso da Telebrás. E das pri-meiras estatais de computação e informática,como a Cobra.

Nesse período, entre as grandes empresasno Brasil, a disputa ocorre principalmente entreestatais e multinacionais de capital estrangei-ro. A partir de meados dos anos 1970, o cres-cimento da economia brasileira se desacelerou,embora os governos militares tentassemmanter o ritmo por quase uma década.

No fim dos anos 1970, no entanto, co-meçou no lado ocidental um intenso movi-mento por reformas liberalizantes na econo-mia. Já no início dos anos 1980, o Estadoamericano promoveu uma espetacular eleva-ção dos juros básicos da operação do sistema,que são pagos nos títulos do Tesouro dopaís. Isso fez desmoronar o sistema financei-ro dos países emergentes do hemisfério oci-dental, que, a partir de meados da década de1970, apoiara-se num acelerado endividamen-to externo. O mesmo ocorreu com países doLeste europeu que se haviam endividado ataxas de juros flutuantes.

O Brasil quebrou em 1982 e a economiado País e de suas grandes empresas entrouem crise profunda. O problema foi mais gra-ve com as estatais, que haviam se tornadoinstrumento de combate à inflação, com con-tenção de seus preços, e de captação de recur-sos externos, com grandes projetos precários,

Geisel na Alemanha: com a crise dos

EUA, grandes projetos para rolar a dívida�

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como vimos com detalhes no bloco que tra-tou da siderurgia brasileira.

O retorno de DengDo lado oriental aconteceu algo semelhan-

te. Houve uma expansão inicial do sistema.Em meados dos anos 1960, no entanto, aexpansão se desacelerou e rompeu-se o acor-do URSS-China. O país asiático começou aseguir uma trajetória diferente, crítica do mo-delo de industrialização seguido a partir daRevolução Russa. A China foi dividida emcerca de 15 mil comunas rurais. Com isso,subordinou-se o desenvolvimento econômi-co ao desenvolvimento político. Essa trans-formação foi feita sob intensa agitação políti-co-cultural, dirigida por Mao Zedong. Essemovimento fracassou.

No final dos anos 1970, Deng Tsiaoping,que fora afastado do centro do poder chinês,retornou ao primeiro time do governo e doPartido Comunista. Em 1978, durante reu-nião do plenário do Comitê Central do PCC,Deng apresentou e obteve a aprovação da teseque desmontou as comunas e estabeleceu osistema de posse coletiva das áreas rurais, mascom arrendamento da terra aos camponeses.

O período de 1991 a 2001, entre o des-moronamento da URSS e os atentados da AlQaeda contra os EUA, pode ser resumidocomo o de apogeu do Império Americano edo sistema econômico sobre o qual ele se de-

senvolve. Houve um enorme progresso téc-nico com a informática e as telecomunicações.Houve uma expansão financeira sem prece-dentes na história, tendo como centro as gran-des bolsas americanas de Nova York e Chica-go. Surgiram novas empresas globais ameri-canas no topo das listas mundiais, em especialas de novas tecnologias, como a Microsoft, aIntel, a Google e as que se aproveitam dafinanceirização dos negócios, como a Enron,no setor de gás e energia. O setor de defesa seagrupou em uma dúzia de gigantes intima-mente associados ao Departamento de Defe-sa americano.

Do outro lado, no antigo campo comu-nista, caiu o simbólico Muro de Berlim, em1989, e a URSS desmoronou em 1991. NaChina, o movimento de reforma do setorestatal aparentemente foi coroado de êxito. Opaís pareceu aproveitar o que tinha feito debom nos grandes movimentos comandadospor Mao Zedong, que deixara a China, porexemplo, com mais de 200 empresas produ-toras de automóveis. E eliminou o que essesistema tinha de idealista e ineficiente: a pe-quena escala e o baixo nível tecnológico.

Foi realizada uma reforma ampla, pela qualas grandes empresas do país foram reorgani-zadas nos atuais 128 grandes grupos. Cadaum deles tem dezenas de empresas, quedisputam mercados, buscam tecnologia, apoian-do-se nas idéias da reforma e da abertura parao exterior.

Há um grande plano de governo para odesenvolvimento de suas empresas estatais.Veja-se o caso da defesa. A Embraer está as-sociada à Harbin Aircraft ManufacturingCorporation (HAMC) porque a China bus-cou um fabricante internacional com experiên-cia e tecnologia na produção de aeronaves co-merciais medias, para as faixas em torno de100 passageiros. A HAMC foi fundada noperíodo de Mao, em 1952.

A HAMC é uma das empresas da grandeestatal China Aviation Industry CorporationII (Avic II), espécie de holding das empresas deaviões pequenos, de aviões para transportecomercial de porte médio e helicópteros. AHAMC é uma empresa grande. Tem 16 milempregados. Uma de suas subsidiárias é aHafei Motor, um dos maiores fabricantes deautomóveis da China. Na lista de produtosda Harbin, hoje, está o ERJ 145, produzidoem joint venture com a Embraer.

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em Clinton e Fernando Henrique, em 1999:

que fazer, depois da quebra de 1998?�

A Avic II tem 5 subsidiárias, incluída aHarbin. A Avic I é muito maior. Fabrica aviõespesados, inclusive militares. Tem projeto deconstruir aviões comerciais grandes, como osda Boeing e Airbus. Agrupa mais de 90 em-presas que fabricam turbinas, material elétri-co, instrumentos, aviônica, forjaria, fundição.São empresas de pesquisa, de comercializaçãoe marketing.

Após 2001, um furacãoO Brasil não tem um plano de desenvol-

vimento independente para suas empresas.Está paralisado pela indefinição, inclusive, dosignificado de empresa nacional. O atual go-verno parece querer ter empresas nacionais,mas sustenta a reforma constitucional dosgovernos liberais que impede que se distin-gam empresas nacionais de estrangeiras. Oque parece dominar o desenvolvimento dasempresas multinacionais chamadas de brasi-leiras são intervenções basicamente do merca-do financeiro. Sem um plano claro, sem umnorte, como dizia o filósofo romano Sêneca,não há vento que ajude.

Nos últimos anos, o mundo foi asso-lado por um furacão. Em setembro de2001, terroristas em nome da fé muçul-mana atacaram, entre outros alvos, comuma precisão inacreditável o centro finan-ceiro do império americano, Nova York.A seguir, o presidente dos EUA, GeorgeW. Bush, que tinha perdido as eleições pelovoto popular e ganho apenas no ColégioEleitoral, unificou o povo americano a

pretexto do combate ao terrorismo e in-vadiu dois países, o Afeganistão e o Iraque.As guerras, inicialmente, tiram os america-nos da recessão que chegara após o esgota-mento do inacreditável ciclo de expansãodos anos 1990.

As duas guerras contra países do “Eixodo Mal” custaram até o momento, estimao Nobel de Economia Joseph Stiglitz, 1trilhão de dólares. Elas deram origem a umnovo ciclo de expansão, mas também apro-fundaram os problemas do desenvolvi-mento americano apoiado no endivida-mento do Estado. A China desponta nocenário global exatamente após o início dacrise nas bolsas internacionais do fim dosanos 1990 e da recessão na economia ame-ricana dos anos 2000.

O comércio internacional dos chineses,que já havia se expandido nos anos 1990,empina no começo do século XXI. Comoo país está na fase de desenvolvimento deuma infra-estrutura material básica, é gigan-tesco o seu consumo de commodities, de mi-nérios, de ferro, de aço.

Essa é uma oportunidade para o Brasilse acoplar a esse desenvolvimento como for-necedor desses produtos primários ousemi-elaborados. Será isso que pensam oscomandantes e articuladores das chamadasmultinacionais verde-amarelas, como o pre-sidente Lula e o presidente da Vale, RogerAgnelli? É para lá que eles vão?

O banqueiro George Soros disse recen-temente que a leitura dos escritos de KarlMarx ajuda a compreender as regras do capi-talismo global de nossos dias. Marx foi umcrítico da teorria das vantagens comparati-vas. Disse que os preços dos produtos daterra – agrícolas, minerais, hídricos – reali-zam-se no mercado. Dessa forma, nossosminérios, nossas placas de aço se transfor-mam em valor no mercado global de hoje,cujo centro está visivelmente deslocado paraa China, para a Ásia. Nesse sentido, por exem-plo, o minério de ferro brasileiro em relaçãoa produtores como a Austrália tem uma des-vantagem comparativa, não uma vantagem.

O Brasil faria melhor se, em vez de se acoplarde forma subalterna ao desenvolvimento chi-nês, procurasse, como os chineses, um desen-volvimento com independência.

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Lula e Agnelli: para onde vão o País e

suas multinacionais?�

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