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KARL RAHNER JOSEPH RATZINGER Revelação e Tradição Tradução portuguesa de Belchior Cornélio da Silva, feita do original alemão Offenbarung und Überlieferung, publicado por Verlag Herder, Freiburg im Breisgau, 1965. Nihil obstat P. Frei Valentim de São Paulo, O.F.M. Cap., Censor São Paulo, 2 de outubro de 1967 Imprimatur † J. Lafayette, Vigário Geral São Paulo, 4 de outubro de 1967 Editora Herder, São Paulo, 1968 Em homenagem a HANS URS VON BALTHASAR, Por ocasião de seu sexagésimo aniversário natalício.

Revelacao e Tradicao-Joseph Ratzinger (Bom Ler)

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KARL RAHNER JOSEPH RATZINGER

Revelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeo

Traduccedilatildeo portuguesa de Belchior Corneacutelio da Silva feita do original alematildeo Offenbarung und Uumlberlieferung publicado por Verlag Herder Freiburg im Breisgau

1965

Nihil obstat P Frei Valentim de Satildeo Paulo OFM Cap Censor

Satildeo Paulo 2 de outubro de 1967

Imprimatur dagger J Lafayette Vigaacuterio Geral

Satildeo Paulo 4 de outubro de 1967

Editora Herder Satildeo Paulo 1968

Em homenagem a HANS URS VON BALTHASAR

Por ocasiatildeo de seu sexageacutesimo aniversaacuterio nataliacutecio

Os nuacutemeros entre colchetes [n] indicam o iniacutecio da paacutegina na ediccedilatildeo portuguesa de Herder ndash Satildeo Paulo 1968 Foram acrescentados a esta ediccedilatildeo eletrocircnica para possibilitar a citaccedilatildeo acadecircmica da obra Os tiacutetulos que precedem imediatamente ao nuacutemero pertencem agrave paacutegina em questatildeo Os nuacutemeros do iacutendice correspondem ao original

IacuteNDICE PrefaacutecioIX

Karl Rahner

Observaccedilotildees sobre o Conceito de Revelaccedilatildeo1

Joseph Ratzinger Exame do Problema do Conceito de Tradiccedilatildeo5

PRIMEIRA PARTE

Revelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeo Ensaio de Anaacutelise do Conceito de Tradiccedilatildeo15 I- Posiccedilatildeo do Problema15 II- Teses sobre a Relaccedilatildeo entre Revelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeo 24

SEGUNDA PARTE Explicaccedilatildeo do Conceito de Tradiccedilatildeo segundo o Decreto do Conciacutelio de Trento39

PREFAacuteCIO

Comparadas com as grandes monografias teoloacutegicas entre as quais se incluem os uacuteltimos volumes da coleccedilatildeo intitulada Quaeligstiones disputataelig as paacuteginas que se vatildeo ler pareceratildeo talvez um tanto isoladas e bastante pobres Todavia o que levou os autores destes dois modestos ensaios agrave ousadia de publicaacute-las inserindo-os no rol de tatildeo importantes obras foi o fato de o assunto aqui tratado ser apenas uma quaeligstio disputata no sentido original da expressatildeo Vale esta observaccedilatildeo tanto para o aparato externo quanto para o conteuacutedo real deste pequeno livro que reuacutene dois opuacutesculos

O primeiro opuacutesculo do presente livro (da autoria de Karl Rahner) focircra jaacute apresentado em linhas gerais na sessatildeo do dia 28 de marccedilo de 1963 do Instituto J A Moehler em Paderborn A mesma informaccedilatildeo se estende tambeacutem agrave segunda parte do segundo opuacutesculo (o de J Ratzinger) cujo texto foi aqui incluiacutedo na iacutentegra A discussatildeo na qual naquela oportunidade tomaram parte entre outros os nossos colegas de Bonn H Jedin e H Schlier contribuindo com estiacutemulos e criacuteticas que muito penhoraram os autores animou-nos a prosseguir nesta pesquisa

Quanto agrave primeira parte do trabalho de Ratzinger consta do texto da aula inaugural ministrada pelo Autor a 28 de junho de 1963 ao assumir ele a caacutetedra de Teologia Dogmaacutetica e de Histoacuteria dos Dogmas na Universidade de Munster O propoacutesito de ampliar o seu trabalho em conjunto sob o ponto de vista histoacuterico e positivo lanccedilando matildeo de abundante material armazenado malogrou mais de uma vez nos meses subsequumlentes pois urgentes tarefas agraves quais os autores se viram forccedilados obrigaram-nos de um modo ou de outro a protelar quaisquer outros planos Entrementes o assunto aqui estudado conservou seu teor de verdadeira quaeligstio disputata

Assim sendo cocircnscios das limitaccedilotildees de seu ensaio os autores acreditando que destes trabalhos possa talvez resultar alguma contribuiccedilatildeo para o debate em torno do tema ldquoTradiccedilatildeordquo ousam publicaacute-los agora em formato de livro Deliberadamente renunciaram agrave preocupaccedilatildeo de fornecer informaccedilotildees bibliograacuteficas e ao intento de fazer obra completa contentando-se apenas com aduzir a documentaccedilatildeo de interesse mais imediato para o seu trabalho

O pequeno ensaio de Karl Rahner em sua redaccedilatildeo atual foi ainda utilizado como texto de uma conferecircncia feita pelo autor ao ensejo de sua diplomaccedilatildeo como doutor honoris causa pela faculdade Teoloacutegica da Universidade Catoacutelica de Munster na Westfaacutelia em maio de 1964 Natildeo lhe pareceu necessaacuterio refundir posteriormente este texto nem muni-la de notas bibliograacuteficas

Queremos repetir este livro nada mais pretende ser do que uma sugestatildeo feita com vistas ao diaacutelogo teoloacutegico em torno do conceito de Revelaccedilatildeo e de Tradiccedilatildeo Temos a esperanccedila de que ao lado dos grandes trabalhos jaacute existentes sobre este assunto tal empreendimento natildeo seja de todo considerado sem valor

Roma outubro de 1964 KARL RAHNER e JOSEPH RATZINGER

Karl Rahner

OBSERVACcedilOtildeES SOBRE O CONCEITO DE REVELACcedilAtildeO

[1] Embora a condenaccedilatildeo de uma heresia por parte da Igreja seja legiacutetima e justa

sob o ponto de vista eclesiaacutestico e em face de uma situaccedilatildeo concreta assumindo mesmo determinada relevacircncia histoacuterica daiacute natildeo se segue sempre e necessariamente que a Igreja tenha dado atendimento e resposta aos anseios e agrave problemaacutetica desta mesma heresia por ela condenada Eacute que o amadurecimento positivo de um problema ndash e os problemas mesmo quando aparecem sob a capa de heresia trazem a marca de seu tempo ndash pode ocorrer muito mais tarde

Seria por certo conveniente que se apurasse ateacute que ponto a delonga de tal amadurecimento teria resultado de um erro traacutegico de uma culpa ou da impotecircncia dos homens Ou entatildeo se natildeo deveria ser considerada mero tributo a ser pago tambeacutem pela Igreja em razatildeo de sua condiccedilatildeo histoacuterica

De modo nenhum se deve contudo pensar que as condenaccedilotildees da Igreja soacute atinjam opiniotildees ou tendecircncias que em seu bojo outra coisa natildeo ocultem a natildeo ser uma vazia e inoacutecua negativa de uma verdade jaacute desde longo tempo claramente compreendida e explicitamente anunciada

Haacute precisamente meio seacuteculo a Igreja foi ameaccedilada pela heresia do Modernismo Entre suas teses e erros fundamentais estaacute o seu conceito especiacutefico de Revelaccedilatildeo Para o Modernismo ndash pelo menos se quisermos consideraacute-lo em seu conjunto e atender agrave sistematizaccedilatildeo desta heresia agrave luz da condenaccedilatildeo feita pela Igreja ndash a Revelaccedilatildeo era uma maneira de se designar o [2] progresso imanente e necessaacuterio dos anseios religiosos do homem histoacuterico Esses anseios se objetivariam nas muacuteltiplas formas de religiotildees histoacutericas que paulatinamente teriam ascendido a uma pureza maior e a uma plenitude mais ampla ateacute chegarem a se concretizar definitivamente no Cristianismo e na Igreja

Tal definiccedilatildeo era elaborada em oposiccedilatildeo ao conceito de Revelaccedilatildeo supostamente tradicional na Igreja Segundo esta a Revelaccedilatildeo outra coisa natildeo seria senatildeo um conhecimento de Deus vindo puramente ldquode forardquo Desta maneira Deus teria falado aos homens e em termos humanos lhes teria comunicado por meio dos Profetas certas verdades que eles por si soacutes natildeo poderiam conhecer A isto se acrescentaram os mandamentos a serem observados

Eacute verdade que a necessidade da graccedila divina para a posse salutar da Revelaccedilatildeo pela Feacute era explicitamente ensinada pela ortodoxia eclesiaacutestica entatildeo em luta contra o Modernismo Contudo natildeo foi devidamente considerada a iacutentima conexatildeo entre a graccedila da Feacute e a Revelaccedilatildeo histoacuterica

O fato de a Igreja ter acusado o Modernismo de imanentismo permite-nos reconhecer hoje um certo extrinsecismo no conceito de Revelaccedilatildeo geralmente apresentado pela teologia daquela eacutepoca contra a qual se insurgia o Modernismo Tal extrinsecismo natildeo era ensinamento oficial Era sim uma hipoacutetese corrente na teologia de entatildeo

Aos poucos e quase desapercebidamente encaminha-se hoje para o seu amadurecimento a resposta agrave problemaacutetica do justo e pleno conceito da Revelaccedilatildeo A

isto a Igreja natildeo dava uma resposta clara Dava-a o Modernismo poreacutem falsa precipitada extemporacircnea e em sentido decididamente hereacutetico

Eacute evidente que este problema e sua devida soluccedilatildeo tecircm uma importacircncia fundamental no confronto entre o Cristianismo e a cultura moderna ainda que isto natildeo seja de ordinaacuterio posto [3] explicitamente em debate Com efeito para o homem de hoje penetrado de um certo humanismo contraacuterio agrave Igreja adepto de um ateiacutesmo lamentaacutevel para o materialismo moderno que considera Deus como um enigma insoluacutevel e identifica o espiacuterito com a proacutepria forccedila motora do mundo o que choca e eacute motivo de escacircndalo natildeo eacute propriamente o Deus absconditus do Cristianismo que habita na luz inaccessiacutevel Eacute sim o ensinamento de que existe uma histoacuteria da Revelaccedilatildeo na qual o proacuteprio Deus indica o uacutenico caminho entre os muitos apontados pelas demais religiotildees histoacutericas e o percorre Ele proacuteprio aparecendo encarnado entre os homens O escacircndalo estaacute se assim podemos dizer na histoacuteria categorial da Revelaccedilatildeo e natildeo na relaccedilatildeo transcendental entre Deus e o homem mediante a qual Deus o cria do nada no abismo de Seu misteacuterio inefaacutevel

O que eacute Revelaccedilatildeo e por que eacute ela apesar de sua origem imediatamente divina o que haacute de mais iacutentimo na histoacuteria humana Como pode ela identificar-se com a histoacuteria da humanidade sem deixar de ser uma singular graccedila de Deus Como pode a Revelaccedilatildeo estar sempre e por toda parte a fim de operar sempre e por toda parte a salvaccedilatildeo sem com isto deixar de estar aqui e agora na carne de Cristo na Palavra dos Profetas que falam precisamente dela na letra da Escritura Poderaacute ela ser por toda parte o ldquomotivordquo iacutentimo a forccedila motora da histoacuteria sendo ao mesmo tempo uma accedilatildeo libeacuterrima de Deus impossiacutevel de ser medida em sentido ascendente a partir da Histoacuteria Natildeo eacute por outro lado o milagre uma graccedila divina ocorrida hic et nunc e realizada ldquouma vez para semprerdquo

A fim de ampliarmos mais o horizonte de nossas reflexotildees e compreendermos melhor a resposta a estas perguntas poderiacuteamos lembrar que a mais comum relaccedilatildeo entre Deus e o mundo-em-devir consiste no fato de ele o mais iacutentimo e absoluto Senhor do mundo conceder ao ser finito uma verdadeira e ativa transcendecircncia em sua evoluccedilatildeo Numa palavra eacute o proacuteprio futuro [4] a causa final que mostra a verdadeira e proacutepria causa real atuando no ser em marcha

Daiacute poder-se dizer que nossa pergunta natildeo tende senatildeo ao mais alto e mais radical conhecimento que hoje aos poucos vamos atingindo isto eacute o conhecimento de como o real e ativo evoluir dos seres superiores partindo dos interiores e a permanente accedilatildeo criadora vinda do alto satildeo apenas os dois lados ambos igualmente verdadeiros e positivos do uacutenico milagre do ser e da Histoacuteria Referimo-nos agrave ideacuteia de que Deus em sua livre relaccedilatildeo para com a sua criatura natildeo eacute uma causa categorial ao lado de outras mas sim o vivo permanente e transcendental fundamento da proacutepria evoluccedilatildeo do mundo Tambeacutem o mundo a seu modo se insere na relaccedilatildeo entre Deus e o homem no fato da Revelaccedilatildeo e na sua histoacuteria E isto na mais ampla medida porque esta histoacuteria na medida mais extrema deve ser igualmente accedilatildeo de Deus e accedilatildeo do homem uma vez que em si ela eacute a mais alta realidade no ser e no evoluir do mundo Se existe esta superaccedilatildeo fundamental de uma total oposiccedilatildeo entre o imanentismo e o extrinsecismo no conceito ontoloacutegico da evoluccedilatildeo e da histoacuteria entatildeo deve tambeacutem a teologia superar esta oposiccedilatildeo na questatildeo que aqui nos ocupa

Com efeito se a teologia catoacutelica ensina e potildee em praacutetica sua doutrina sobre a graccedila santificante e a vontade salviacutefica universal sobre a necessidade da graccedila elevante para a feacute e a doutrina tomista sobre o sentido ontoloacutegico transcendental da graccedila entitativa agrave luz da Revelaccedilatildeo segue-se que sem cair no Modernismo a teologia pode e deve reconhecer a histoacuteria da Revelaccedilatildeo ou simplesmente a Revelaccedilatildeo no sentido de apresentaccedilatildeo categorial histoacuterica Falando mais propriamente diremos a histoacuteria daquela mesma relaccedilatildeo transcendental entre o homem e Deus realizada de modo sobrenatural atraveacutes de uma sempre gratuita participaccedilatildeo divina Tal histoacuteria deve com razatildeo ser chamada de Revelaccedilatildeo

[5] Se transcendecircncia sempre existiu e sempre existe na histoacuteria e se haacute uma criaccedilatildeo transcendental no homem manifestada atraveacutes de algo permanente a que chamamos graccedila santificante que santifica o homem precisamente pela participaccedilatildeo de Deus e natildeo atraveacutes de qualquer outra eficiecircncia casual resulta entatildeo que esta absoluta transcendecircncia verificada na absoluta uniatildeo do Deus misterioso e inefaacutevel que se torna presente no homem tem uma histoacuteria Esta histoacuteria eacute o que chamamos de histoacuteria da Revelaccedilatildeo

O fato da Revelaccedilatildeo tem sempre um duplo aspecto Por um lado a constituiccedilatildeo de uma transcendecircncia sobrenaturalmente elevada do homem como algo permanente gratuito mas nem sempre de todo positivo ou seja a transcendental experiecircncia da absoluta e gratuita participaccedilatildeo da vida divina mesmo quando ela natildeo seja concretamente objetivada em cada um em particular E por outro lado a mediaccedilatildeo histoacuterica a objetivaccedilatildeo concreta desta experiecircncia sobrenaturalmente transcendental que ocorre na histoacuteria considerada em seu conjunto (A voluntaacuteria reflexatildeo teoloacutegica do indiviacuteduo tambeacutem pertence a esta histoacuteria mas natildeo a cria primariamente nem a forma) A experiecircncia transcendental referida chama-se usualmente histoacuteria da Revelaccedilatildeo quando ela eacute realmente histoacuteria da verdadeira exposiccedilatildeo desta experiecircncia sobrenatural e transcendental e natildeo a sua contrafaccedilatildeo Em outros termos quando ela eacute o resultado positivo desta transcendental participaccedilatildeo de Deus pela graccedila Ou ainda quando ela ocorre por disposiccedilatildeo da Providecircncia sobrenatural de Deus Salvador

Se for assim compreendida a unidade e inter-relaccedilatildeo entre Revelaccedilatildeo categorial e Revelaccedilatildeo histoacuterica ou melhor o elemento transcendental e o elemento histoacuterico (mediador) de uma revelaccedilatildeo e de sua histoacuteria seraacute entatildeo tambeacutem visiacutevel uma primordial distinccedilatildeo no que eacute revelado

Revelado eacute Deus como o que se daacute a participar em absoluta e gratuita uniatildeo como Deus ou seja como misteacuterio absoluto Revelada eacute a mediaccedilatildeo histoacuterica desta experiecircncia transcendental [6] como autecircntica como absoluta experiecircncia de Deus Revelada eacute no aacutepice singular e definitivo desta histoacuteria da Revelaccedilatildeo a absoluta e irreversiacutevel unidade entre a participaccedilatildeo transcendental de Deus na humanidade e sua histoacuterica mediaccedilatildeo no uacutenico Deus-Homem Em Jesus Cristo como numa soacute Pessoa o proacuteprio Deus compartilha da humana posse desta mediaccedilatildeo e de sua definitiva manifestaccedilatildeo histoacuterica

Nesta unidade entre a transcendental co-participaccedilatildeo de Deus e sua definitiva mediaccedilatildeo e manifestaccedilatildeo histoacuterica uma vez que se trata da comunicaccedilatildeo de Deus em si mesmo eacute revelado tambeacutem o misteacuterio fundamental do Deus trino enquanto se considera neste misteacuterio somente o aparecimento de Deus conosco na histoacuteria e na

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Realce
Eacute Jesus Cristo

transcendecircncia ou seja do Deus trino Pai Filho e Espiacuterito Santo em sua possibilidade de vir a manifestar-se na transcendecircncia do homem e na sua histoacuteria

Enquanto por conseguinte a histoacuteria se abre agrave transcendecircncia o Filho envia o Espiacuterito Enquanto a transcendecircncia constroacutei a histoacuteria o Espiacuterito realiza a Encarnaccedilatildeo do Logos Enquanto o aparecimento de Deus na histoacuteria expressa a impossibilidade de se conservar oculto o que eacute suma realidade o Verbo Encarnado eacute revelado como a auto-expressatildeo do Pai na Verdade Enquanto a vinda de Deus entre noacutes no meio de nossa existecircncia significa o Seu e o nosso amor eacute revelado o Pneuma sob este aspecto de amor

Quando noacutes fazemos a experiecircncia da uniatildeo transcendental e absoluta do Deus conosco compartilhando de Sua vida e aceitando-a por graccedila dele mesmo sabemos mediante o nosso ato de feacute o que significamos ao falarmos sobre a Trindade de Deus e ao exprimirmos de modo breve e sucinto a formalidade e o conteuacutedo da feacute cristatilde da sua Revelaccedilatildeo da histoacuteria desta Revelaccedilatildeo Sabemos o que significamos quando nos fazemos batizar nestes nomes em nome do Pai do Filho e do Espiacuterito Santo

[7] Ao que ateacute aqui estabelecemos em traccedilos gerais e raacutepidos como sendo a ideacuteia fundamental da Revelaccedilatildeo acrescentamos agora alguns esclarecimentos selecionados um tanto arbitrariamente e referentes todos agrave origem da Revelaccedilatildeo e agraves suas consequumlecircncias

Do exposto resulta que a Revelaccedilatildeo quer transcendental quer categorial e sua histoacuteria co-existem com a histoacuteria espiritual de toda a humanidade Isto natildeo eacute erro do Modernismo Eacute uma verdade cristatilde Podemos provaacute-lo muito simplesmente dizendo ser incontestaacutevel que a histoacuteria da salvaccedilatildeo sobrenatural eacute realizada sempre na histoacuteria do mundo o que depois do Conciacutelio Vaticano II se tornou uma verdade ainda mais vivamente impressa na consciecircncia religiosa dos cristatildeos A salvaccedilatildeo poreacutem natildeo pode dar-se sem a feacute Nem a feacute sem uma revelaccedilatildeo proacutepria

Natildeo precisamos esclarecer a possibilidade da Revelaccedilatildeo e da feacute fora da histoacuteria do Antigo e do Novo Testamento nem recorrer a uma teoria catoacutelica especial como a de Straub ou a de Billot Nem mesmo necessitamos apelar para uma tradiccedilatildeo categorial expliacutecita da Revelaccedilatildeo primitiva segundo a qual literaacuteria e doutrinariamente a experiecircncia categorial de Adatildeo teria sido transmitida aos poacutesteros o que agrave luz do conhecimento atual da histoacuteria das religiotildees e dos dois milhotildees de anos da histoacuteria da humanidade natildeo eacute muito provaacutevel

Basta-nos reter (o que eacute testemunhado pelos dados atuais da teologia) que cada homem elevado pela graccedila em sua espiritualidade transcendental representa esta ldquoentitativardquo divinizaccedilatildeo que precede o uso da liberdade mesmo quando esta natildeo eacute por ele compromissada na feacute Significa portanto uma transcendental divinizaccedilatildeo da condiccedilatildeo primitiva do homem o uacuteltimo horizonte do conhecimento e da liberdade sob o qual o homem completa o seu ser Atraveacutes desta existecircncia sobrenatural do [8] homem em geral e de cada um em particular daacute-se uma revelaccedilatildeo de Deus mediante uma participaccedilatildeo gratuita E esta condiccedilatildeo fundamental e gratuita do homem realizada no Deus da vida trinitaacuteria pode tambeacutem ser entendida como Revelaccedilatildeo da Palavra contanto que de um lado natildeo limitemos esta palavra a mera prolaccedilatildeo foneacutetica e de outro natildeo nos esqueccedilamos que esta Revelaccedilatildeo transcendental estaacute sempre inserida num contexto histoacuterico e ainda que a histoacuteria humana natildeo pode prescindir das palavras A

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A Revelaccedilatildeo estaacute aqui Estaacute diante de mm envolve-me Se quero Ela logo Eacute em mim e minha vida toma um novo significado A Revelaccedilatildeo estaacute no hoje tatildeo atuante quanto quando Jesus fala e agia no tempo em que peregrinou na terra Estaacute atuaccedilatildeo de Jesus que corre toda a histoacuteria e chega aos nossos dias daacute-se atraveacutes da Igreja pela accedilatildeo do Espiacuterito Santo

histoacuteria dos homens natildeo consta de fatos mortos mas de fatos cujo sentido representa um elemento importante em cada conjuntura histoacuterica

Natildeo existe nenhuma relaccedilatildeo objetiva de um objeto em particular ou de uma frase na vida transcendental do homem aberto para Deus para o Deus trino e eterno O que eacute mais e o que fundamenta todos os dogmas da Feacute como condiccedilatildeo mesma de sua possibilidade e antes de tudo o que os faz real palavra de Deus eacute o seguinte o horizonte da vida sobrenatural ou a luz da Feacute em si mesma - como diriacuteamos em linguagem tradicional e simples - pressupotildee que se aceitem e se valorizem as palavras da Tradiccedilatildeo

Com tudo isto ndash acentuemo-lo mais uma vez ndash natildeo estamos dizendo que esta transcendental e aprioriacutestica abertura do homem para o Deus da vida eterna e da participaccedilatildeo absoluta possa ser em si mesma ldquoanistoacutericardquo nem que conduza a uma desordem miacutestica que consistiria numa introspecccedilatildeo individualiacutestica alienada da histoacuteria Ao contraacuterio Ela se completa necessariamente na histoacuteria do agir e do pensar do homem E pode fazecirc-lo explicitamente embora de maneira de todo anocircnima Assim sendo nunca existe uma histoacuteria da Revelaccedilatildeo transcendental para um particular soacute Ela eacute individual e coletiva Naturalmente tal histoacuteria em concreto nunca eacute a histoacuteria da Revelaccedilatildeo inteiramente pura em si Ela se daacute em cada um sempre em indissoluacutevel simbiose com o erro com falsas interpretaccedilotildees com a [9] culpa com os abusos Ela eacute histoacuteria justa e pecadora uma vez que o homem eacute simul iustus et peccator estando a histoacuteria da culpa e a da salvaccedilatildeo definitivamente ligadas ateacute ao dia do juiacutezo final

Isto natildeo exclui a existecircncia de uma autecircntica histoacuteria da Revelaccedilatildeo na histoacuteria geral da humanidade Tanto que para o cristatildeo por exemplo uma diacriacutetica distinccedilatildeo na histoacuteria veterotestamentaacuteria entre autecircntica histoacuteria da Revelaccedilatildeo e falsa histoacuteria da religiatildeo soacute eacute possiacutevel tomando-se como criteacuterio a Cristo Tal distinccedilatildeo natildeo eacute possiacutevel partindo-se apenas dos criteacuterios fornecidos pelo Antigo Testamento Com efeito a Sagrada Escritura tem somente a Cristo como regra interna e externa e como norma de sua hermenecircutica Daiacute resulta que a Escritura deve ser considerada pelo cristatildeo como verdadeira histoacuteria da Revelaccedilatildeo do Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo1

Deduzir a ideacuteia da Revelaccedilatildeo da Palavra de Deus oral e escrita eacute atingir o lado transcendental da proacutepria Revelaccedilatildeo Eacute buscar um criteacuterio no cacircnon da Escritura colocando a Palavra de Deus oral e escrita antes de tudo na sua aceitaccedilatildeo pela Feacute interna e gratuita Eacute ldquodesmitologizarrdquo a mensagem externa da feacute em sua formalidade transcendental A histoacuteria da religiatildeo eacute a parte da histoacuteria humana em que a natureza teoloacutegica do homem se realiza tematicamente e efetivamente como em toda histoacuteria Daiacute resulta que a histoacuteria da religiatildeo eacute simultaneamente duas coisas eacute a parte mais expliacutecita da histoacuteria da Revelaccedilatildeo e tambeacutem o lugar espiritual (der geistige Ort) em que as falsas interpretaccedilotildees da experiecircncia transcendental de Deus se manifestam de modo mais notoacuterio e levam agraves piores consequumlecircncias A supersticcedilatildeo opotildee-se nitidamente agrave sua natureza Mas ela eacute ao [10] mesmo tempo estas duas coisas E sempre numa ambiguumlidade de sentido que natildeo conseguimos solucionar

1 Sobre a diferenccedila entre a histoacuteria da Revelaccedilatildeo extra-biacuteblica e a veterotestamentaacuteria (que eacute tambeacutem um pressuposto daquela) cf K RAHNER Schriften zur Theologie V (Einsiedeln 1964) p136-158 principalmente p 148 e 153

Deivide
Nota
Parei aqui

Na teologia escolaacutestica catoacutelica nos uacuteltimos seacuteculos em contraste com a teologia medieval pouco ou nada se diz sobre o portador do testemunho da Revelaccedilatildeo aquele que a apresenta atraveacutes do milagre aos homens chamados a crer Refiro-me agrave Revelaccedilatildeo presente no seu portador que eacute o proacuteprio Profeta Do que antes expusemos concluir-se-aacute que a teologia dos preacircmbulos e a da feacute satildeo idecircnticas Por isso tem razatildeo a teologia fundamental quando frequumlentemente trata da analysis fidei em seu acircmbito proacuteprio supondo-se que ela o faccedila considerando a feacute e a aceitaccedilatildeo da Revelaccedilatildeo em sua unidade fundamental O aspecto transcendental da aceitaccedilatildeo da Revelaccedilatildeo e a Feacute satildeo a mesma coisa fundam-se ambas na constituiccedilatildeo do homem gratuitamente marcada pela participaccedilatildeo ontoloacutegica e pelo compromisso livre do homem com este aspecto existencial do ser

A ldquodesmitologizaccedilatildeordquo (Entmythologisierungsfrage) para a teologia catoacutelica concretiza-se e resume-se na capacidade de cognoscibilidade do ldquomilagrerdquo Daiacute perguntar-se eacute possiacutevel uma autecircntica experiecircncia transcendental de Deus jaacute que isto seria como que um compartilhar do imparticipaacutevel (Schon-immer-heim- Univermittelten-Sein) Fundamentalmente natildeo eacute possiacutevel nem eacute necessaacuterio estabelecer uma distinccedilatildeo adequada entre a mediaccedilatildeo do factum brutum (durch das factum brutum) da chamada realidade objetiva e a que se daacute atraveacutes de sua clara explicaccedilatildeo A mediaccedilatildeo (Vermittlung) baseia sua uacuteltima verdade no mediado (im Vermittelten) Portanto a ldquodesmitologizaccedilatildeordquo e a relaccedilatildeo entre a mediaccedilatildeo e o mediado (Vermittlung-Vermittelte) fundamentam-se na diferenccedila e na unidade ontoloacutegica dos aspectos categorial e transcendental e tambeacutem na diferenccedila e na indissoluacutevel unidade entre a histoacuteria e seu significado Esta mediaccedilatildeo enquanto histoacuterica eacute sempre uma histoacuteria com-os-homens ou no sentido mais profundo da palavra uma [11] histoacuteria ldquoeclesialrdquo Eacute portanto tambeacutem um compromisso com a feacute da comunidade dos fieacuteis e da Igreja feacute esta que na comunidade e em cada indiviacuteduo envolve sempre a uniatildeo de sinais e de verdade como na palavra do Sacramento e no Logos Encarnado onde estes dois elementos se encontram inseparaacuteveis mas natildeo se confundem sendo a sua associaccedilatildeo independente do alvitre dos homens

Partindo dessas premissas pode-se entender o que seja a fides implicita agrave qual ateacute hoje os teoacutelogos natildeo deram o destaque devido Fundamentalmente a feacute seja qual for envolve a aceitaccedilatildeo do sinal Soacute eacute feacute verdadeira se assumir o sinal mediante o inefaacutevel misteacuterio da uniatildeo do Deus que se daacute a si mesmo em participaccedilatildeo Soacute eacute feacute verdadeira quando entende a mediaccedilatildeo categorial como presenccedila de sinais (Zeichenhaftigkeit) como se realiza na proacutepria Igreja Assim como a Revelaccedilatildeo natildeo elimina a obscuridade do sacrossanto misteacuterio de Deus antes o cristatildeo amando e adorando a aceita assim tambeacutem o ldquocaraacuteter impliacutecitordquo (Implizitaumlt) da Revelaccedilatildeo e da feacute pertencem agrave sua proacutepria natureza Esta ldquoimplicituderdquo natildeo eacute portanto um elemento que soacute se daria quando as pessoas ldquoincultasrdquo ou ignorantes ouvem a Revelaccedilatildeo e crecircem

Agora podemos entender melhor tambeacutem um conhecido fenocircmeno religioso a tendecircncia a se reduzir o dogma e a religiatildeo a um nuacutecleo de verdades essenciais A unidade existente entre os elementos categorial e transcendental existe tambeacutem na Religiatildeo Tambeacutem esta eacute una e uacutenica E insubstituiacutevel por qualquer outra Devemos dizer tambeacutem que o Cristianismo considerado como religiatildeo universal e absoluta e natildeo apenas como particular alianccedila de Deus com determinado povo natildeo pode deixar de reconhecer a Cristo como Mediador e como Salvador Cristo com efeito por sua

corporeidade e espiritualidade integra em si relaciona e torna legiacutetima toda mediaccedilatildeo possiacutevel no acircmbito do mundo das realidades Assim ldquonadardquo existe que [12] exclua este poder de mediaccedilatildeo Ele existe na palavra no sinal lituacutergico na comunidade eclesial no ofiacutecio na imagem em suma ateacute mesmo nas coisas profanas Natildeo obstante a pluralidade e diversidade desta mediaccedilatildeo pode acontecer que em diferentes eacutepocas e lugares de acordo com os desiacutegnios da graccedila mesmo no Novo Testamento a obrigatoriedade e cognoscibilidade da uacutenica mediaccedilatildeo tenha a sua histoacuteria peculiar Tal histoacuteria da Revelaccedilatildeo tornada definitiva em Cristo no acircmbito do uacuteltimo e eterno ldquoeatildeordquo pode tambeacutem conforme disposiccedilatildeo divina refletir-se na traacutegica histoacuteria da Cristandade dividida por uma cisatildeo em que transparece a pluralidade das muitas mediaccedilotildees da uacutenica Revelaccedilatildeo Esta divisatildeo eacute para noacutes uma censura Contudo serve-nos tambeacutem de instrumento da graccedila de Deus

A distinccedilatildeo entre Revelaccedilatildeo transcendental e a categorial-histoacuterica aplica-se tambeacutem agrave feacute Daiacute novas luzes para se entender melhor o problema da credulidade enquanto distinta da feacute e intimamente relacionada com ela Quando se considera a precaacuteria descriccedilatildeo da feacute elaborada pelos teoacutelogos vecirc-se que seu caraacuteter auditivo (ex auditu) eacute geralmente proposto de modo aposterioriacutestico e empiacuterico O endereccedilamento da feacute ao ouvinte aparece entatildeo como se da parte deste soacute houvesse uma potecircncia formal para assumir certas proposiccedilotildees verdadeiras sem as investigar devendo apenas aceitaacute-las em sua formulaccedilatildeo exata irrecusaacutevel e fixa A potecircncia aprioriacutestica da feacute ou a credulidade quase natildeo eacute levada em consideraccedilatildeo na teologia catoacutelica Esta credulidade como capacidade aprioriacutestica de crer natildeo deve ser tida na conta de uma potecircncia igual agraves outras uma espeacutecie de sentido de ldquoexigecircnciardquo ou coisa parecida Eacute antes o lado transcendental da Revelaccedilatildeo a potecircncia aprioriacutestica que tem o homem ser transcendental para a comunhatildeo com Deus na graccedila fundada na proacutepria abertura de Deus para se comunicar com a criatura Ambas estas coisas devem ser consideradas em sentido ontoloacutegico natildeo em sentido ocircntico

[13] Toda anaacutelise da feacute catoacutelica apresenta a ldquoautoridade de Deusrdquo como o ldquoobjeto formalrdquo ou o ldquomotivordquo uacuteltimo da feacute Chega-se assim entretanto a um impasse intransponiacutevel Isto porque se considera esta ldquoautoridaderdquo como elemento categorial e aprioriacutestico limitado pelo horizonte do conhecimento humano que a feacute tem que superar para que a Palavra permaneccedila sendo realmente Palavra divina e natildeo seja rebaixada ao niacutevel meramente criatural Se poreacutem na Revelaccedilatildeo e na feacute o proacuteprio Deus autocomunicando-se eacute o objeto crido e o princiacutepio aprioriacutestico de crer se a loacutegica da feacute natildeo eacute uma categoria aprendida de fora mas ndash do mesmo modo que a loacutegica natural ndash eacute a proacutepria estrutura ontoloacutegica e interna do ato de feacute se a mensagem exterior da feacute natildeo eacute o seu motivo aposterioriacutestico mas sua razatildeo aprioriacutestica ndash entatildeo todo este problema perde o seu sentido Assim se compreenderaacute que um falso ato material de feacute deixa de ter um objeto formal meramente aprioriacutestico e pode vir a ser um ato de feacute autecircntico

Somos forccedilados a interromper aqui estas observaccedilotildees Em tudo o que dissemos pudemos apenas indicar algumas perspectivas de soluccedilatildeo de um problema que desde os tempos do Modernismo eacute atual mas que contudo tem sido de certo modo postergado Mesmo por este pequeno exemplo ao qual poderiacuteamos acrescentar o de muitos outros problemas teoloacutegicos ainda natildeo solucionados vemos como custosa e lentamente avanccedila o trabalho teoloacutegico Eacute necessaacuterio ter paciecircncia e envidar esforccedilos perseverantes

Necessaacuterio eacute ainda admitir-se que a teologia natildeo cria a feacute no cristatildeo Ele eacute apenas chamado a pocircr-se a serviccedilo da feacute Da feacute hoje

Ao exprimir eu agrave ilustre Faculdade Catoacutelica de Teologia da Universidade de Munster o meu penhorado e cordial agradecimento pela distinccedilatildeo que me outorgou faccedilo-o com a consciecircncia de que tambeacutem os operaacuterios que realizam a construccedilatildeo da teologia trabalham em vatildeo se o Senhor natildeo cooperar com eles Noacutes [14] devemos trabalhar enquanto eacute dia Toda theologia mentis eacute apenas um auxiacutelio para a theologia cordis et vitaelig Enfim em toda theologia a rigor soacute um caminho se abre o caminho que se perde no segredo de Deus misteacuterio impenetraacutevel que todavia se potildee ao nosso alcance

Joseph Ratzinger

EXAME DO PROBLEMA DO CONCEITO DE TRADICcedilAtildeO

PRIMEIRA PARTE

Revelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeo

Ensaio de anaacutelise do conceito de Tradiccedilatildeo

I ndash Posiccedilatildeo do Problema

[15] O modo como Cristo Palavra expressa da Revelaccedilatildeo permanece presente na Histoacuteria e vai ao encontro dos homens pertence agravequelas questotildees fundamentais em torno das quais se dividiu a Cristandade ocidental no seacuteculo da Reforma A luta prende-se agrave ideacuteia de ldquoTradiccedilatildeordquo pela qual a Igreja catoacutelica procurou exprimir certa forma de comunicaccedilatildeo da Revelaccedilatildeo ao lado da outra contida na Sagrada Escritura Isto com o fim de desfazer um duplo protesto A Tradiccedilatildeo designava primeiro as chamadas consuetudines ecclesiaelig tais como a santificaccedilatildeo do domingo a oraccedilatildeo voltada para o Oriente o costume de jejuar as vaacuterias becircnccedilatildeos e consagraccedilotildees e outras praacuteticas semelhantes em vigor na piedade dos fieacuteis ao tempo da baixa Idade Meacutedia Tais praacuteticas ora nobres ora ridiacuteculas embora transformassem a Igreja numa espeacutecie de casa assombrada cheia de acircngulos e cantos justificavam-se sob o tiacutetulo de ldquotradiccedilatildeordquo e legitimavam-se como parte essencial da vida cristatilde1

Lutero a quem a simplicidade do Evangelho como urna forccedila explosiva tinha sobremodo impressionado preferiu agrave luz de sua [16] ideacuteia de Deus juiz misericordioso natildeo ver na Tradiccedilatildeo nada mais do que ninharias com as quais a humanidade se ilude e aparentemente se consola buscando uma evasatildeo ante o abuso da proacutepria existecircncia Ainda mais ele viu na Tradiccedilatildeo o retorno da Lei o predomiacutenio do arbiacutetrio humano sobre a palavra de Deus abuso contra o qual Paulo protestara com tanta veemecircncia e que agora de novo se implantara na Igreja A Confessio Augustana ocupou-se tambeacutem destas coisas destacando uma seacuterie de leis cuja violaccedilatildeo segundo a doutrina corrente era tida como pecado mortal a proibiccedilatildeo do trabalho manual aos domingos e dias santos a interrupccedilatildeo das preces canocircnicas diaacuterias os preceitos do jejum etc E Lutero prosseguia ldquoDe onde tiram os Bispos o direito e o poder de imporem tais prescriccedilotildees aos cristatildeos e de ilaquearem assim as consciecircncias Pedro no capiacutetulo 15 dos Atos dos Apoacutestolos proiacutebe se imponha o jugo sobre os ombros dos disciacutepulos E Paulo diz aos Coriacutentios que a autoridade lhe foi dada para salvar e natildeo para condenar Por que entatildeo multiplicam assim os pecados com tais imposiccedilotildeeshellip Se os Bispos tecircm poder de sobrecarregarem as igrejas com inuacutemeras prescriccedilotildees e de onerar as consciecircncias por que entatildeo a Sagrada Escritura proiacutebe tatildeo frequumlentemente que se faccedilam mandamentos

1 Eacute o que se vecirc claramente pela lista de traditiones feitas no tempo do Conciacutelio de Trento Cf a nota 44 da segunda parte desse livro

humanos e se escravizem os homens Porque chama ela a estas coisas de doutrina de Satanaacutes Foi acaso em vatildeo que o Espiacuterito Santo fez tais advertecircnciasrdquo 2

Lutero identificou aqui a traditio com os abusus Tradiccedilatildeo segundo ele eacute lei humana pela qual o homem se esconde de Deus e pior ainda se levanta contra Ele para tomar nas proacuteprias matildeos a tarefa de sua salvaccedilatildeo em vez de esperaacute-la da libeacuterrima graccedila do Senhor A Tradiccedilatildeo assim entendida como Lei eacute contraposta agrave mensagem da graccedila ldquoDevemos aceitar cada [17] um dos artigos do Evangelho para alcanccedilarmos a graccedila de Deus sem meacuterito nosso atraveacutes da feacute em Jesus Cristo e natildeo pretender merececirc-la mediante praacuteticas do culto inventado pelos homensrdquo3

O problema da Tradiccedilatildeo tornou-se ainda mais agudo devido a um segundo aspecto que de resto natildeo conduziu a nenhum resultado positivo Descobrindo o Evangelho teve Lutero igualmente a impressatildeo de libertar a Palavra de Deus da pesada cadeia do Magisteacuterio eclesiaacutestico que se teria apossado desta Palavra e natildeo mais a entendia em seu verdadeiro sentido empregando-a antes a seu bel-prazer A ideacuteia de que a palavra divina aprisionada na Igreja catoacutelica agrave autoridade do Magisteacuterio ficou privada de sua forccedila viva eacute sempre repetida nos escritos dos Reformadores Melanchton poreacutem fecirc-lo talvez de um modo mais humano e flexiacutevel quando apocircs com reservas a sua assinatura aos artigos luteranos de Esmalca ldquo quanto ao Papa acho eu que jaacute que ele quis abandonar o Evangelho devemos noacutes de nossa parte tolerar (e admitir) para o bem da paz e da unidade a sua superioridade sobre os Bispos superioridade esta que ele possui iure humanordquo 4

Este estado de coisas impregnou outrossim a ideacuteia de Igreja da Confessio Augustana uma vez que aiacute se diz que a Igreja eacute a congregatio sanctorum in qua Evangelium pure docetur et recte administrantur Sacramenta5 Assim a Igreja eacute marcada por duplo aspecto pela pureza da doutrina e pela administraccedilatildeo legiacutetima dos Sacramentos Nem uma palavra sobre o Magisteacuterio Na realidade para a elaboraccedilatildeo do conceito de Igreja este silecircncio da CA natildeo eacute menos importante do que o que ela aiacute diz Eacute um silecircncio evidentemente intencional e denuncia a oposiccedilatildeo dos Reformadores agrave concepccedilatildeo catoacutelica de Igreja [18] entatildeo vigente e ateacute hoje conservada Esta consta de trecircs elementos a fides correspondente ao pure docere a communio que corresponde ao sacramenta e a auctoritas6 O Magisteacuterio aparece aqui como criteacuterio da palavra Eacute o seu fiador Segundo Melanchton daacute-se o contraacuterio a palavra eacute que eacute o criteacuterio do Magisteacuterio Este deve em uacuteltima anaacutelise ser provado pela palavra e pode consequumlentemente ser negado A palavra eacute auto-suficiente e paira sobre o Magisteacuterio como uma grandeza autocircnoma Talvez nesta inversatildeo de relaccedilotildees eacute que estaacute propriamente o contraste entre o conceito catoacutelico e o protestante de Igreja Contradiccedilatildeo paralela se daacute em torno da ideacuteia de Tradiccedilatildeo Com efeito a negaccedilatildeo do Magisteacuterio como criteacuterio da palavra significa a reduccedilatildeo da palavra de Deus agrave Escritura que seraacute entatildeo o

2Art 28 39-42 in Die Bekenntnisschriften der evangelisch lutherischen Kirche Gotinga 1952 p126 3 Art 28 52 Op cit p129 4 Op cit p463 5 Art 7 1 paacuteg 61 6 Sobre este ponto e o seguinte cf J RATZINGER ldquoDas geistliche Amt und die Einheit der Kircherdquo in Catholica 17 (1963) p 165-179

uacutenico sustentaacuteculo autocircnomo e autecircntico da palavra natildeo admitindo a Tradiccedilatildeo como uma grandeza em si

O Conciacutelio de Trento em seu estudo sobre a Tradiccedilatildeo teve diante dos olhos os dois pontos de vista contraacuterios e procurou formular sua resposta levando ambos em consideraccedilatildeo Eacute por isso conveniente analisarmos como estas duas posiccedilotildees se inter-relacionam em face da equiparaccedilatildeo feita por Lutero entre a Traditio e os abusus Em outros termos como os Padres conciliares se colocam diante do dilema dever-se-ia responder aos ataques de Lutero diretamente com uma definiccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo Ou antes de tudo com a reformatio a coerccedilatildeo dos abusus7

No tocante agrave doutrina o Conciacutelio refutou ex professo a censura dos Reformadores sustentando que a palavra natildeo eacute uma realidade autocircnoma pairando acima da Igreja Ela eacute dada pelo [19] Senhor agrave Igreja e natildeo entregue ao capricho dos homens Permanece justamente por isso nas Suas matildeos subtraindo-se ao alcance do alvitre humano Na visatildeo dos Padres de Trento deve no fundo ter parecido uma falta de confianccedila o terem os homens receio da palavra escrita entregue agrave Igreja como se a Igreja pudesse abusar dela Como se se pudesse apelar para a palavra da Revelaccedilatildeo contra a Igreja Estava-se inquestionavelmente certo de que o Senhor que instituiu a Igreja como Seu Corpo haveria de se empenhar em tutelaacute-la contra o perigo de abusar de Sua palavra

Hoje decorridos quatro seacuteculos desde a Reforma podemos confessar que na oposiccedilatildeo que dividia entre si Lutero e o Conciacutelio de Trento tanto depois como antes o dilema que dilacerou a Cristandade ocidental de certo modo jaacute desapareceu Vecirc-se isto pela troca de correspondecircncia entre Harnack e Peterson Peterson ao agradecer o tratado de Harnack Das Alte Testament in den Paulinischen Briefen und in den Paulinischen Gemeiden observou que este em seu cotejo da Escritura com a exegese biacuteblica tinha adotado natildeo o princiacutepio protestante mas o catoacutelico Escreveu Harnack ldquoDizer que o chamado lsquoprinciacutepio formalrsquo do Protestantismo primitivo eacute uma impossibilidade criacutetica e que ao contraacuterio o princiacutepio catoacutelico eacute formalmente o melhor eacute um truiacutesmo Materialmente poreacutem o princiacutepio catoacutelico da Tradiccedilatildeo opotildee-se agrave Biacuteblia muito mais diretamente (As tradiccedilotildees satildeo como ervas daninhas a serem cortadas pela tesoura do Magisteacuterio) A melhor fonte eacute o Novo Testamentordquo 8

Nesta formulaccedilatildeo de certo modo geneacuterica e simplista e na oposiccedilatildeo estabelecida entre os aspectos material e formal vem de novo agrave tona o antigo dilema poder-se-aacute confiar a palavra agrave Igreja sem temor de que ela sob a tesoura do Magisteacuterio ou [20] envolta no mato selvagem do sensus fidelium perca a sua forccedila proacutepria e sua vitalidade Esta eacute a pergunta que os Protestantes fazem aos Catoacutelicos Poder-se-aacute aceitar a autonomia da palavra sem com isto ser esta exposta ao arbiacutetrio dos exegetas aos maus tratos por parte dos historiadores e enfim ao completo desamparo Eis como os Catoacutelicos revidam aos Protestantes Com efeito segundo nossa doutrina natildeo eacute a noacutes que compete decidir se queremos ou natildeo confiar a palavra agrave Igreja Foi o proacuteprio Senhor quem lha confiou Note-se entretanto que quando o Catoacutelico encara seriamente este assunto natildeo deixa de considerar o zelo pela pureza da palavra revelada como um dever

7 Ver as notas 41 e 42 na 2ordf parte 8 Citado in E PETERSON Theologische Traktate Munique 1951 p295

da mais alta importacircncia Ele sabe que natildeo cumpre este dever pelo simples fato de apelar para a inerracircncia da Igreja Fazecirc-lo seria menosprezar o sentido da luta de Lutero em favor da Palavra deixando-se de ver nisto uma salutar advertecircncia e um apelo dirigido agraves almas

Natildeo obstante tudo isto a histoacuteria da controveacutersia natildeo se deteve no decurso dos quatro seacuteculos que se seguiram agrave Reforma Duas diferentes tendecircncias se destacam nas relaccedilotildees entre o Protestantismo e o Catolicismo e entre suas respectivas teologias De um lado uma radicalizaccedilatildeo de cada grupo nos proacuteprios pontos de vista Cada grupo a partir de entatildeo fez sua histoacuteria proacutepria e desenvolveu-a em direccedilatildeo oposta um ao outro Por outro lado a distacircncia mantida entre ambos possibilita maior objetividade em seus julgamentos reciacuteprocos Existe finalmente de parte a parte um renovado esforccedilo por superar as fronteiras com vistas a um encontro

Quem entre os Catoacutelicos empreendeu o mais significativo passo para chegar a uma visatildeo nova do problema da Tradiccedilatildeo mediante a superaccedilatildeo de posiccedilotildees unilaterais e anti-reformistas foi em nossos dias o teoacutelogo dogmaacutetico de Tubinga Josef Rupert Geiselmann Seus esforccedilos foram frutuosos fazendo-se sentir a sua influecircncia inclusive nos estudos preparatoacuterios do [21] Conciacutelio e deram agraves incursotildees do Vaticano II nesta aacuterea aquela marcante atualidade que ainda na primeira sessatildeo levou este problema a transcender do ciacuterculo da luta doutrinal entre as vaacuterias escolas teoloacutegicas para se transformar em uma preocupaccedilatildeo de toda a Cristandade catoacutelica9

A tese de Geiselmann eacute conhecida Basta-nos esboccedilaacute-la rapidamente aqui a fim de lanccedilarmos as bases de uma reflexatildeo que procuraraacute aprofundar mais este assunto e talvez dar um modesto passo agrave frente Geiselmann parte de uma interpretaccedilatildeo nova do sentido dado pelo Conciacutelio ao conceito de Tradiccedilatildeo O tridentino estabelecera que a verdade do Evangelho estaacute contida in libris scriptis et sine scripto traditionibus Isto foi e eacute ateacute hoje interpretado como se a Escritura natildeo contivesse toda a veritas evangelii Portanto natildeo eacute possiacutevel admitir-se a sola Scriptura uma vez que uma parte da Revelaccedilatildeo nos eacute transmitida somente pela Tradiccedilatildeo Geiselmann aproveitou a observaccedilatildeo jaacute antes feita por alguns autores de que na primeira redaccedilatildeo do texto focircra adotada a foacutermula segundo a qual a verdade estaria contida partim in libris scriptis partim in sine scripto traditionibus Estaria aqui claramente expressa a doutrina da divisatildeo da verdade revelada em duas fontes (Escritura e Tradiccedilatildeo) O Conciacutelio abandonou a expressatildeo partim ndash partim preferindo usar o simples conectivo et Geiselmann daiacute conclui afastou-se o Conciacutelio da ideacuteia da divisatildeo da verdade em duas fontes diversas Ou pelo menos natildeo a definiu explicitamente E continua o mesmo autor com isto pode tambeacutem o teoacutelogo catoacutelico aceitar a ideacuteia de uma suficiecircncia material da Escritura Pode ainda mesmo permanecendo catoacutelico defender a opiniatildeo de que a Sagrada Escritura eacute suficiente para transmitir-nos a [22] Revelaccedilatildeo Geiselmann admite consequumlentemente que a sola Scriptura pode conceber-se como uma uacutenica fonte

9 Cf R LAURENTIN Lenjeu du Concile Bilan de Ia premiegravere session Paris 1963 p27-45 Y CONGAR Vatican II Le Concile au jour le jour Paris 1963 p63-71 J RATZINGER Die erste Sitzungsperiode des Zweiten Vatikanischen Konzils Colocircnia 1963 p38-50

material da Revelaccedilatildeo Ele crecirc ainda poder mostrar que a tradiccedilatildeo mais forte eacute a favor desta sentenccedila e que o proacuteprio Conciacutelio de Trento se inclina neste sentido10

Eacute faacutecil de se compreender que semelhante tese tenha obtido o apoio de muitos em face das novas possibilidades de encontro entre Catoacutelicos e Evangeacutelicos possibilidades estas que a posiccedilatildeo de Geiselmann parece favorecer11 Que esta tese na realidade constitua um passo consideraacutevel neste sentido parece ser incontestaacutevel Todavia tatildeo logo a analisemos mais de perto em seus fundamentos histoacutericos e reais surge de pronto toda uma seacuterie de dificuldades graves a tornarem impossiacutevel a sua aceitaccedilatildeo

Sobre o aspecto histoacuterico deste problema apresentaremos vaacuterias observaccedilotildees na segunda parte deste nosso opuacutesculo Entrementes consideremos de imediato o lado praacutetico deste assunto Seu exame provoca inicialmente esta pergunta que significa propriamente a expressatildeo ldquosuficiecircncia da Escriturardquo Geiselmann como teoacutelogo catoacutelico que eacute natildeo deixa de sustentar os nossos dogmas Ora nenhum dogma catoacutelico eacute provado sola Scriptura Nem os grandes dogmas primitivos sustentados pelo consensus quinquesaeligcularis nem tampouco o de 1854 e [23] menos ainda o de 1950 Em que sentido entatildeo se pode falar em suficiecircncia da Escritura Natildeo ameaccedilaraacute esta converter-se em perigosa fraude pela qual nos enganamos primeiramente a noacutes proacuteprios e em seguida tambeacutem enganamos aos outros (Ou natildeo seratildeo talvez justamente eles que natildeo se enganam) Ou entatildeo pelo menos para sustentarmos de um lado que a Escritura sozinha conteacutem toda a verdade da Revelaccedilatildeo e de outro lado que o dogma de 1950 eacute verdade revelada natildeo deveremos noacutes refugiar-nos em um conceito tatildeo largo de suficiecircncia que na verdade esta palavra venha a perder todo o seu significado

Com isto abre-se a segunda (que de fato eacute a primeira) questatildeo decisiva a saber seraacute verdade que os debates em torno da ideacuteia da suficiecircncia da Escritura resolveram mesmo o problema do conceito de Tradiccedilatildeo Ou ao contraacuterio natildeo estaremos noacutes aqui diante de um problema de raiacutezes muito mais profundas

Nossas observaccedilotildees introdutoacuterias devem ter deixado claro que esta uacuteltima pergunta deve sem duacutevida nenhuma ser respondida afirmativamente A questatildeo da suficiecircncia da Escritura eacute apenas um problema secundaacuterio no acircmbito da distinccedilatildeo muito mais importante que foi jaacute antes apontada por noacutes ao tratarmos dos conceitos abusus e auctoritas e que gira em torno do nexo entre a autoridade da Igreja e a autoridade da Sagrada Escritura Da compreensatildeo disto depende tudo o mais

Para irmos mais adiante torna-se necessaacuterio analisarmos profundamente o assunto natildeo para nos determos no exame dos conceitos tatildeo relevantes de suficiecircncia ou insuficiecircncia da Escritura mas antes para abordarmos em seu tudo o vasto problema da Palavra revelada e presente no coraccedilatildeo dos fieacuteis Torna-se evidente entatildeo que agrave luz das fontes positivas a Escritura e a Tradiccedilatildeo devem ser postas em relaccedilatildeo tatildeo iacutentima que da

10 Ver sobretudo a obra de J R GEISELMANN Die Heilige Schrift und die Tradition Friburgo 1962 principalmente as p91-107274-282 Entre os trabalhos anteriores escritos por Geiselmann sobre o mesmo tema eacute de particular importacircncia o seguinte Das Konzil von Trient uumlber das Verhaumlltnis der Heiligen Schrift und der nichtgeschriebenen Traditionen in M SCHMAUS Die muumlndliche Uumlberlieterung Munique 1957 p 123-206 11 Uma lista de todos os autores que mais concordaram com Geiselmann eacute fornecida por H KUumlNG em sua tese ldquoKarl Barths Lehre vom Wort Gottes als Frage an die katholische Theologierdquo in Einsicht und Glaube publicado por J RATZINGER-H FRIES Friburgo 1963 p 105 nota 25

fonte interna (a Revelaccedilatildeo) brote a pa1avra de Deus viva sob aquela dupla formalidade A Escritura e a Tradiccedilatildeo natildeo podem [24] ser entendidas uma sem a outra no sentido que ambas tecircm agrave luz da feacute O problema ldquoEscritura e Tradiccedilatildeordquo permaneceraacute insoluacutevel enquanto natildeo for reduzido a uma soacute questatildeo a saber a questatildeo ldquoRevelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeordquo e inserida enfim no amplo contexto a que pertence

Eu gostaria de nas paacuteginas seguintes sem entrar em todos os detalhes tentar desenvolver em forma de teses e de maneira positiva o conceito de Tradiccedilatildeo partindo de sua natureza iacutentima com a esperanccedila de que nele descubramos uma parte da resposta aos anseios dos Reformadores Desta maneira toda esta anaacutelise serviraacute de contribuiccedilatildeo para o diaacutelogo interconfessional cuja necessidade tanto os Catoacutelicos como os Protestantes vecircm proclamando de maneira cada vez mais insistente

II - Teses sobre a relaccedilatildeo entre a Revelaccedilatildeo e a Tradiccedilatildeo

1 A Revelaccedilatildeo e a Escritura A primeira tese em aditamento ao conceito patriacutestico de Escritura e Revelaccedilatildeo

poderia enunciar-se nos seguintes termos o fato de existir uma ldquoTradiccedilatildeordquo repousa antes de tudo na diferenccedila que permeia entre estas duas realidades ldquoRevelaccedilatildeordquo e ldquoEscriturardquo A Revelaccedilatildeo exprime propriamente o falar e o agir de Deus em relaccedilatildeo aos homens Designa uma realidade expressa pela Escritura sem ser contudo a proacutepria Escritura A Revelaccedilatildeo por conseguinte ultrapassa a Escritura na mesma medida em que a realidade ultrapassa a sua expressatildeo escrita12 Poder-se-ia [25] tambeacutem dizer que a Escritura eacute o princiacutepio material da Revelaccedilatildeo (Talvez princiacutepio uacutenico talvez um princiacutepio entre outros isto seraacute esclarecido mais adiante) Ela natildeo eacute poreacutem a proacutepria Revelaccedilatildeo Isto era aliaacutes bem sabido dos proacuteprios Reformadores mas comeccedilou visivelmente a ser esquecido no aceso da controveacutersia entre a teologia catoacutelica poacutes-tridentina e a ortodoxia protestante13 Em nosso seacuteculo foram justamente os teoacutelogos evangeacutelicos Barth e Brunner que redescobriram este fato de todo evidente para a teologia patriacutestica e medieval14

O que acabamos de afirmar ficaraacute mais claro se partirmos de outro princiacutepio a Escritura pode ser possuiacuteda sem que se possua a Revelaccedilatildeo Isto porque a Revelaccedilatildeo eacute sempre e em primeiro plano uma realidade a realidade onde se encontra a feacute Aquele

12 Esta afirmaccedilatildeo natildeo tem o sentido de que a Escritura seja uma mera e vazia narrativa de realidades a ela exteriores Antes como o que se segue iraacute demonstrar indica que a Revelaccedilatildeo eacute realizada na Palavra jaacute que eacute por meio de palavras que ela se comunica aos homens Contudo a mera presenccedila da palavra ainda natildeo eacute a Revelaccedilatildeo Esta eacute mais do que simples ldquopresenccedilardquo Com o que ficou dito salienta-se a diferenccedila que existe entre a palavra e seu conteuacutedo Esta diferenccedila natildeo exclui o caraacuteter verbal da Revelaccedilatildeo 13 Cf A GLOEGE Schriftprinzips RGG V 1540-1543 onde se encontraraacute a mais completa bibliografia LthK VII 1104-1115 J R GEISELMAN Offenbarung in H FRIES Handbuch zum Begriff der Offenbarung cf M VERENO - R SCHNACKENBURG - HRIES in Theologischer Grundbergriffe II Munique 1963 p242-250 e a bibliografia aiacute citada 14 Cf W H VAN DER POL Das reformatorische Christentum Einsiedeln 1956 p117-192

que natildeo crecirc acha-se como que coberto por um veacuteu o veacuteu de que fala Satildeo Paulo no terceiro capiacutetulo da segunda epiacutestola aos Coriacutentios15 Ele pode ler a Escritura e saber o que nela se conteacutem Pode ateacute mesmo apreender de modo puramente intelectual o que aiacute eacute significado e como suas ideacuteias se inter-relacionam Todavia natildeo possui com isto a Revelaccedilatildeo A Revelaccedilatildeo eacute sobretudo possuiacuteda quando aleacutem da expressatildeo material que a atesta se potildee tambeacutem em praacutetica o seu conteuacutedo interno por meio da vivecircncia da feacute Com efeito de certo modo se inclui tambeacutem na Revelaccedilatildeo o sujeito recipiente sem o qual ela natildeo pode existir Natildeo se pode pocircr a Revelaccedilatildeo no bolso como se faz com [26] um livro Ela eacute uma realidade viva Exige homens vivos que a recebam que sirvam de ldquolugarrdquo de sua presenccedila

Repetindo o que ateacute aqui dissemos podemos afirmar que a Revelaccedilatildeo sobreexcede de fato a Escritura em dois sentidos

a) em sentido ascendente ela atinge sempre como realidade procedente de Deus o agir divino sobre as criaturas

b) como realidade que se daacute ao homem por meio da feacute ela atinge igualmente a Escritura

Desta diferenccedila entre a Escritura e a Revelaccedilatildeo resulta claramente que de todo independentemente da questatildeo se a Escritura eacute ou natildeo eacute a uacutenica fonte material em rigor nunca existe para o cristatildeo a sola Scriptura (Isto como ficou dito era claro em princiacutepio para os grandes Reformadores e comeccedilou a ser esquecido na chamada ortodoxia protestante) A Escritura natildeo eacute a Revelaccedilatildeo Eacute sim em uacuteltima anaacutelise uma parte desta realidade mais ampla

2 Os diferentes sentidos da Escritura

no Antigo e Novo testamento A problemaacutetica cristatilde da Revelaccedilatildeo ou o problema ldquoEscritura e Tradiccedilatildeordquo situa-se

melhor se considerarmos o duplo aspecto da mesma Revelaccedilatildeo no Antigo e no Novo Testamento A este duplo aspecto corresponde tambeacutem um duplo sentido da Escritura Assim como os dois Testamentos como tais se distinguem essencialmente assim tambeacutem devemos dizer que a ldquoEscriturardquo como um fato natildeo eacute repetida duas vezes do mesmo modo Isto aparece muito claro nos livros neotestamentaacuterios Sob a expressatildeo ldquoEscriturardquo designam eles somente o Antigo Testamento Para eles o AT eacute e permanece sendo ldquoa Escriturardquo cujo sentido se aclara mediante sua confirmaccedilatildeo no evento da [27] vinda de Cristo16 Os livros do NT natildeo jogam uma Escritura nova contra uma Escritura antiga Nem potildeem uma simplesmente ao lado da outra Potildeem sim em face da uacutenica Escritura ou seja do Antigo Testamento o Cristo-evento como o espiacuterito que explica a letra Esta concepccedilatildeo fundamental ilumina tambeacutem a forma da feacute mais antiga e a torna por primeiro compreensiacutevel O ldquoJesusrdquo formal eacute o ldquoCristordquo expresso no Antigo Testamento Natildeo eacute outra coisa No Jesus Histoacuterico o Cristo-mensagem do

15 Cf sobre estas reflexotildees o importante artigo (ἀποκαλύπτω de A OEPKE in ThWNT III p565-597 16 Ver sobre este ponto as preciosas conclusotildees de G SCHRENK art γραφή ndash γράμμα in ThWNT I p749-769 e a p767

Antigo Testamento atinge a sua consumaccedilatildeo Eacute a partir do AT que se entende quem eacute Jesus E o que o Testamento Antigo expressa pode ser visto agrave luz do Cristo-evento

Esta ideacuteia aparece em Paulo ao apresentar ele o Antigo e o Novo Testamentos como Gramma e Pneuma isto eacute letra e espiacuterito (2Cor 3 6-18) Ele chama ao Senhor de Pneuma A Escritura explica-o como sendo o seu sentido o seu conteuacutedo verdadeiro e vivo e natildeo apenas literaacuterio Paulo se refere agrave concepccedilatildeo do Novo Testamento apresentada por Jeremias (3133) Natildeo eacute mais necessaacuteria nenhuma Escritura porque a lei estaacute escrita nos coraccedilotildees Jaacute natildeo eacute necessaacuteria nenhuma doutrinaccedilatildeo vinda de fora porque o proacuteprio Deus instrui os homens Joatildeo exprime idecircntico pensamento em seguimento ao decircutero-Isaiacuteas (5413) quando descreve a era inaugurada por Cristo como o tempo no qual todos satildeo doutrinados por Deus mesmo E o sermatildeo de Pedro em Pentecostes transmitido pelos Atos dos Apoacutestolos (2 14-36) desenvolve a mesma ideacuteia tirada de Joel (3 1-5) Em todos estes casos aparece a era instaurada por Cristo como resposta agrave esperanccedila no advento de um tempo futuro que em uacuteltima anaacutelise haveria de tornar supeacuterflua a Escritura graccedilas agrave presenccedila imediata do Divino Mestre na Sua humanidade

Quando se pondera o sentido destas afirmaccedilotildees torna-se claro [28] que ao reduzir-se a ldquoEscriturardquo aos escritos do Antigo Testamento natildeo se estaacute apenas usando uma terminologia antiga que teria sido adotada por falta de escritos propriamente neotestamentaacuterios e que teria perdido seu sentido na segunda metade do seacuteculo segundo com o iniacutecio do cacircnon do Novo Testamento Ao contraacuterio Aqui se expressa uma consciecircncia que se tornaria mais niacutetida a partir da formaccedilatildeo da proacutepria Escritura neotestamentaacuteria muito ao inveacutes de cessar ou de desaparecer

Uma coisa eacute certa a ldquoEscriturardquo na nova ordem da salvaccedilatildeo inaugurada por Cristo toma um lugar distinto do que lhe cabia no Antigo Testamento Com isto pode-se ver ateacute que ponto o Antigo Testamento tem sentido autocircnomo O AT certamente natildeo aparecia desde o comeccedilo como Testamento do Gramma Escritura em sentido proacuteprio como ocorreraacute na pena de Satildeo Paulo17 Por outro lado manifesta-se realmente a partir de Jeremias e do decircutero-Isaiacuteas o anelo pela superaccedilatildeo do Gramma mediante uma nova e imediata comunicaccedilatildeo do Espiacuterito de Deus simultaneamente com a progressiva formaccedilatildeo de um princiacutepio da Escritura que mais e mais a transformou em Lei Lei esta que natildeo tornaria os homens vivos mas sim mortos

Desta maneira na concepccedilatildeo neotestamentaacuteria aparece o Antigo Testamento como ldquoEscriturardquo em sentido proacuteprio Escritura que atinge o seu verdadeiro significado atraveacutes do Cristo-evento pelo fato de ser ela inserida no contexto vivo da realidade de Cristo Se no Novo Testamento de facto a Escritura cresceu natildeo pode mais ter aquele sentido uacuteltimo e exclusivo que lhe competia no Antigo segundo a concepccedilatildeo paulina Ao contraacuterio Ela eacute a chave com que se abre o Antigo Testamento deixando-se banhar na claridade do Cristo-evento Ela eacute tambeacutem a ponte permanente que conduz a uma nova interpretaccedilatildeo biacuteblica agrave luz [29] de Cristo Num caso e noutro a Escritura natildeo pretende de modo nenhum ser autocircnoma nem ser a fonte uacutenica e exclusiva de sua exegese literal Mas soacute pode ter sentido na realidade espiritual de Jesus Cristo que

17 Ver a apreciaccedilatildeo feita por G VON RAD Theologie des Alten Testaments II Munique 1960 p402-424

permanece junto dos seus todos os dias ateacute ao fim do mundo (Mt 28 20) Apoacutes a subida ao Calvaacuterio Cristo veio de novo no Espiacuterito Santo (como narra Satildeo Joatildeo) e pelo Espiacuterito ensinou aos disciacutepulos o que eles entatildeo natildeo podiam ainda entender enquanto o Senhor estava entre eles sob forma visiacutevel (Jo 16 12)

3 Cristo a Revelaccedilatildeo de Deus

A realidade que se daacute como um acontecimento na Revelaccedilatildeo cristatilde natildeo eacute nada

mais nada menos do que o proacuteprio Cristo Cristo eacute a Revelaccedilatildeo em sentido proacuteprio ldquoQuem me vecirc vecirc o Pairdquo diz ele no Evangelho de Satildeo Joatildeo (14 9) Vale portanto dizer que receber a Revelaccedilatildeo eacute penetrar na realidade de Cristo no Cristo-evento Daiacute procede o paradoxo descrito por Satildeo Paulo ao fazer ele um trocadilho com as palavras ldquoCristo em noacutesrdquo e ldquonoacutes em Cristordquo

Neste contexto a anaacutelise de frases isoladas torna-se secundaacuteria de vez que elas satildeo apenas explicaccedilotildees do uacutenico misteacuterio de Cristo Consequumlentemente cai por si mesma a questatildeo da suficiecircncia interna da Escritura tatildeo discutida desde o aparecimento das obras de Geiselmann Deveriacuteamos isto sim perguntar que significa em linguagem cristatilde a suficiecircncia interna da Escritura ldquoSuficienterdquo eacute soacute a realidade do Cristo-evento Esta pode ser explicada materialmente em maior ou menor grau E de maneira nunca definitiva Partindo deste princiacutepio podem existir tambeacutem outras explicaccedilotildees segundo a Escritura quando se aprofunda mais este assunto

Este mesmo tema pode ser considerado sob outro aspecto E ter-se-aacute entatildeo dado um passo a mais para a frente A aceitaccedilatildeo [30] da Revelaccedilatildeo pela qual aplicamos a noacutes o Cristo-evento vem na linguagem da Biacuteblia sob o nome de ldquofeacuterdquo Assim talvez se entenderaacute mais claramente de que maneira no Novo Testamento a feacute significa a ldquoin-habitaccedilatildeordquo de Cristo Se admitirmos que na Escritura a presenccedila da Revelaccedilatildeo tem o mesmo sentido que a presenccedila de Cristo entatildeo teremos de fato dado um passo adiante Ora na Escritura encontramos a presenccedila de Cristo apresentada de duas maneiras Ela aparece de um lado como jaacute vimos identificada com a feacute (Ef 317) na qual cada um encontra Cristo e se adentra nele penetrando no dinamismo de sua forccedila salvadora Por outro lado a feacute se oculta tambeacutem sob a expressatildeo paulina ldquoCorpo de Cristordquo o que quer dizer que a comunidade dos fieacuteis ndash a Igreja ndash funda a presenccedila de Cristo neste mundo Nela Cristo reuacutene os homens e os faz partiacutecipes de sua presenccedila dinacircmica18

Tomadas juntas estas duas noccedilotildees significam o seguinte a feacute eacute a adesatildeo iacutentima agrave presenccedila de Cristo realidade de Cristo presente da qual a Escritura nos daacute testemunho sem contudo se identificar de modo nenhum com ela Daiacute resulta que a presenccedila da Revelaccedilatildeo se relaciona essencialmente com a ldquofeacuterdquo e com a ldquoIgrejardquo realidades estas que como vimos estatildeo estreitamente ligadas entre si

Voltamos assim ao que foi afirmado na primeira tese a saber que a Revelaccedilatildeo sobreexcede a Escritura em duplo sentido em relaccedilatildeo a Deus por seu lado ascendente e em relaccedilatildeo tambeacutem ao homem que a recebe Esta asserccedilatildeo que a princiacutepio deixamos

18 H SCHLIER ldquoDie Kirche nach dem Brief an die Epheserrdquo in Die Zeit der Kirche Friburgo 1962 p159-186

um tanto vaga encontramo-la essencialmente concretizada na realidade objetiva do Cristianismo

4 A essecircncia da Tradiccedilatildeo

[31] A transmissatildeo ao povo de Deus do Cristo-evento que eacute a Revelaccedilatildeo e que tem sua bi-presenccedila na feacute e na Igreja faz-se atraveacutes da pregaccedilatildeo Pregaccedilatildeo eacute a ldquoex-posiccedilatildeordquo (Aus-legung) do duplo aspecto da Revelaccedilatildeo no Antigo e no Novo Testamento E isto de duas maneiras

a) ela eacute a exposiccedilatildeo do Antigo Testamento agrave luz do Cristo-evento e para o Cristo-evento

b) a partir do Pneuma e da condiccedilatildeo presente da Igreja Este uacuteltimo aspecto eacute possiacutevel pois Cristo natildeo estaacute morto Estaacute vivo Natildeo eacute

apenas o Cristo de ontem Eacute tambeacutem e a fortiori o Cristo de hoje e de amanhatilde o Cristo vivo e presente em sua Igreja que eacute seu Corpo e na qual o seu espiacuterito opera

Isto poderaacute ser melhor compreendido se partirmos da essecircncia da Igreja Como nos ensina o Novo Testamento a mensagem de Jesus eacute antes de tudo uma mensagem escatoloacutegica com vistas ao reino de Deus natildeo com vistas agrave Igreja O fato de existir a Igreja natildeo se opotildee a esta mensagem mas haacute na marcha gradativa das revelaccedilotildees de Cristo uma segunda possibilidade Assim a atividade dos Doze depois de Pentecostes aponta natildeo para a Igreja mas para o reino de Deus Informam-nos os Atos dos Apoacutestolos que os Doze natildeo se ocuparam primordialmente em missionar os povos Esforccedilaram-se antes muito mais em converter Israel criando deste modo as condiccedilotildees preacutevias para a implantaccedilatildeo do reino De iniacutecio uma seacuterie de obstaacuteculos histoacutericos entre os quais deveriacuteamos citar antes de tudo o martiacuterio de Estevatildeo o supliacutecio de Tiago e por fim o fato decisivo da prisatildeo e da libertaccedilatildeo de Pedro Tais fatos levaram a comunidade primitiva segundo dizem as fontes a reconhecer como definitivo o malogro do esforccedilo de converter Israel E consequumlentemente forccedilaram os Apoacutestolos a partir em busca dos gentios e a cuidar [32] assim da Igreja e natildeo do reino Eles o fazem segundo se depreende das passagens referidas e principalmente dos esclarecimentos do capiacutetulo 15 dos Atos dos Apoacutestolos como uma nova opccedilatildeo feita sob a accedilatildeo do Espiacuterito Santo Com isso iniciou-se uma nova interpretaccedilatildeo da mensagem de Cristo sobre a qual a Igreja essencialmente repousa19

19 Cf as decisivas conclusotildees de E PETERSON ldquoDie Kircherdquo in Theologische Traktate Munique 1951 p 409-429 H SCHLIER Die Entscheidung fuumlr die Heidenmission in der Urchristenheit Die Zeit der Kirche p 90-107 Parece-me certo que nem a anaacutelise da tradiccedilatildeo sinoacutetica relativa agrave mensagem de Jesus e seu caraacuteter escatoloacutegico nem o estudo da histoacuteria da Igreja primitiva com base no material fornecido pelos Atos dos Apoacutestolos autorizam qualquer outra conexatildeo entre a mensagem do reino e a pregaccedilatildeo da Igreja Daiacute natildeo se segue de modo nenhum ndash como muitas vezes se teme ndash que a cruz seja um acidente secundaacuterio que em rigor poderia ter sido evitado Ao contraacuterio A estrutura da Igreja moldada sobre a cruz eacute fundamental porque aiacute eacute que por primeiro se encontra a confirmaccedilatildeo da importacircncia da liberdade humana de Cristo e da sua Paixatildeo bem como a iacutentima dependecircncia da Igreja para com a Cruz donde ela procede

Este fato que baseia o estabelecimento definitivo da Igreja sobre uma decisatildeo tomada ldquono Espiacuterito Santordquo eacute o fundamento para se afirmar que existe uma interpretaccedilatildeo eclesial do Novo Testamento do mesmo modo que existe uma exegese cristoloacutegica do Antigo Daiacute podermos estabelecer as seguintes teses ou proposiccedilotildees agrave luz da analogia fidei

a) Existe uma teologia veterotestamentaacuteria do Antigo Testamento que o exegeta

deduz de seu conteuacutedo interno e que se desenvolve em uma seacuterie de camadas superpostas Segundo ela os textos antigos devem ser relidos e de novo expostos agrave luz dos novos acontecimentos O fenocircmeno da aplicaccedilatildeo dos textos agraves situaccedilotildees novas do desdobramento da Revelaccedilatildeo mediante nova [33] apresentaccedilatildeo do Antigo Testamento estrutura jaacute de modo essencial o conteuacutedo interno veterotestamentaacuterio20

b) Existe uma teologia neotestamentaacuteria do Antigo Testamento que natildeo coincide com

a referida teologia veterotestamentaacuteria Estaacute contudo estreitamente ligada com ela na unidade da analogia fidei21 Talvez partindo daqui se possa esclarecer o que significa a analogia fidei entre Os dois Testamentos A teologia neotestamentaacuteria do Antigo Testamento natildeo eacute como ficou dito idecircntica agrave teologia histoacuterica veterotestamentaacuteria Ao contraacuterio Re-exposiccedilatildeo feita agrave luz do Cristo-evento ela natildeo procede soacute da mera consideraccedilatildeo histoacuterica do Antigo Testamento Sendo embora em seu pleno conceito uma interpretaccedilatildeo relacionada com o Antigo Testamento contudo nada faz com que ela seja internamente estranha agrave sua essecircncia ainda que soacute de fora o atinja Ela amplia a forma estrutural do Antigo Testamento que assim interpretado revive e cresce

c) Existe uma teologia neotestamentaacuteria do Novo Testamento paralela agrave teologia veterotestamentaacuteria do Antigo Ou seja a teologia que o exegeta como tal pode deduzir do conteuacutedo interno do Novo Testamento eacute tambeacutem esta conhecida e estruturada mediante a aplicaccedilatildeo do Antigo Testamento agraves novas situaccedilotildees

d) Existe uma teologia eclesial do Novo Testamento que noacutes [34] chamamos Dogmaacutetica Ela se relaciona com a teologia neotestamentaacuteria do Novo Testamento do mesmo modo que a teologia neotestamentaacuteria do Antigo se relaciona com a respectiva teologia veterotestamentaacuteria Aquele ldquomaisrdquo (das Mehr) que distingue propriamente a Dogmaacutetica da teologia biacuteblica eacute o que designamos com a palavra Tradiccedilatildeo Aliaacutes tambeacutem aqui devemos salientar que a teologia eclesiaacutestica neotestamentaacuteria pela mesma razatildeo natildeo eacute simplesmente idecircntica agrave teologia neotestamentaacuteria interna e

20 Cf H GROSS Motivtransposition als Form- und Traditionsprinzip im Alten Testament in H VORGRIMLER Exegese und Dogmatik Moguacutencia 1962 p134-152 e a bibliografia aiacute fornecida G v RAD Theologie des Alten Testaments II Munique 1960 p332-339 396-401 21 A diferenccedila entre as duas teologias do Antigo Testamento foi vivamente exposta por R BULTMANN ldquoWeissagung und Erfuumlllungrdquo in Glauben und Verstehen II Tubinga 1952 p162-186 - Sobre as necessaacuterias correccedilotildees a se fazerem para que se torne visiacutevel a base histoacuterica do que a teologia sistemaacutetica denomina ldquoanalogia fideirdquo cf G v RAD op cit p329-424 (entre outras) e principalmente a p 420 nota 25 e a p422 nota 29 Sobre o tema ldquoanalogia fideirdquo em ambos os Testamentos cf tambeacutem E PRZYWARA Alter und Neuer Bund Viena-Munique 1956

histoacuterica do Novo Testamento Ultrapassa-a sem contudo ser-lhe puramente externa Com efeito no Novo Testamento comeccedila jaacute o processo da exposiccedilatildeo pela Igreja das verdades reveladas A teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento processa-se dentro dele proacuteprio como de modo clariacutessimo se percebe na histoacuteria da Revelaccedilatildeo sinoacutetica22

Eacute oportuno fazermos ainda uma pequena observaccedilatildeo se cotejarmos atentamente a teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento com a Dogmaacutetica reconheceremos que se impotildee uma outra distinccedilatildeo A Dogmaacutetica como ciecircncia aleacutem da exposiccedilatildeo eclesiaacutestica do Novo Testamento abrange tambeacutem a teologia particular de cada teoacutelogo Neste caso para se falar com precisatildeo dever-se-ia apresentar somente o proacuteprio dogma como teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento

O que acabamos de referir natildeo passa naturalmente de um esboccedilo que necessitaria em seus pormenores de natildeo poucos esclarecimentos e distinccedilotildees a fim de ser completo No caso presente entretanto damos por suficiente este esboccedilo Resumindo o que ateacute aqui expusemos podemos agora destacar vaacuterias ldquoraiacutezesrdquo da Tradiccedilatildeo e apontar vaacuterias camadas em seu seio [35] lordf raiz a maior amplidatildeo da ldquoTradiccedilatildeordquo em referecircncia agrave ldquoEscriturardquo

2ordf raiz o caraacuteter especiacutefico da Revelaccedilatildeo neotestamentaacuteria como Pneuma em contraste com o Gramma Eacute o que na linguagem de Bultmann se poderia chamar de sua condiccedilatildeo de ldquonatildeo-objetordquo (Nichtobjektiviertbarkeit) A praxe eclesiaacutestica e a teologia medieval expressaram este aspecto ao sobreporem a fides agrave Scriptura isto eacute o dogma como regra de feacute agraves minuacutecias da lei escrita23 O dogma eacute como a chave hermenecircutica da Escritura que em uacuteltima anaacutelise sem o auxiacutelio da hermenecircutica ficaria sendo algo fechado

3ordf raiz o caraacuteter presencial do Cristo-evento e a presenccedila dinacircmica do Espiacuterito de Cristo em seu Corpo a Igreja E consequumlentemente o poder que tem a Igreja de fazer a pregaccedilatildeo do Cristo ontem e hoje pregaccedilatildeo esta cuja fonte se encontra na interpretaccedilatildeo eclesiaacutestica da mensagem do reino transmitida pelos Apoacutestolos

Em conexatildeo com estas trecircs raiacutezes da ideacuteia (ou melhor da realidade) da Tradiccedilatildeo podem distinguir-se na mesma as seguintes camadas

a) Na origem de toda Tradiccedilatildeo estaacute o fato de que o Pai enviou o Seu Filho ao mundo e que o Filho por sua vez se [36] entregou ndash como sinal ndash aos ldquopovosrdquo (παραδίδοται) Esta paraacutedosis original em sua forccedila direta e salvadora

22 Cf por exemplo a rica exposiccedilatildeo de G BORNKMANN Jesus von Nazareth Estutegarte 1956 Sobre a questatildeo aqui estudada cf H SCHLIER Uumlber Sinn und Aufgabe einer Theologie des Neuen Testaments in H VORGRIMLER Exegese und Dogmatik Mainz 1962 p6990 23 O que haacute de melhor sobre este assunto no tocante agrave Patriacutestica seraacute encontrado em HARNACK DG II (1931) p84-116 HARNACK diz na p 87 nota 3 o seguinte ldquoO Cacircnon era de iniacutecio a regra da feacute A Escritura estaacute centrada na verdade Sem duacutevida nenhuma sua autoridade funda-se solidamente no Antigo Testamento e nas palavras do Senhorrdquo ndash Que assim tenha pensado tambeacutem a Idade Meacutedia e que aqui aleacutem da revelatio (da qual falaremos na 2ordf parte deste livro) a fides sobrepondo-se agrave Scriptura estabelece a forma essencial do conceito de Tradiccedilatildeo foi o que tentei demonstrar em meu artigo Wesen und Weisen der auctoritas im Werk des heiligen Bonaventura in Die Kirche und ihre Aumlmter und Staumlnde (Festgabe Kardinals Frings publicado por CORSTEN-FROTZ-LINDEN Colocircnia 1960 p 58-72

prolonga-se na permanente presenccedila de Cristo no σῶμα Χριστοῦ ndash no Seu Corpo a Igreja Assim o misteacuterio integral da presenccedila de Cristo eacute antes de tudo a realidade total transmitida pela Tradiccedilatildeo (fato fundamental e decisivo sempre anterior a todas as explicaccedilotildees particulares mesmo as da Escritura) e reguladora do que deve propriamente ser transmitido

b) A Tradiccedilatildeo existe concretamente como presenccedila na feacute Esta por seu turno como ldquoin-habitaccedilatildeordquo de Cristo precede todas as explicaccedilotildees particulares e frutuosa e viva ldquoexplicita-serdquo (explizierend) atraveacutes dos tempos

c) A Tradiccedilatildeo tem seu oacutergatildeo na plenitude dos poderes da Igreja e portanto naqueles que satildeo os legiacutetimos depositaacuterios destes poderes24

d) A Tradiccedilatildeo exprime-se tambeacutem naquilo que emanado da autoridade da Igreja se tornou regra de feacute (Symbolum fides quaelig) Portanto a questatildeo de se saber se certas proposiccedilotildees foram transmitidas desde o

comeccedilo pela Tradiccedilatildeo ao lado da Escritura ou em outros termos se existe desde o comeccedilo um segundo princiacutepio material e autocircnomo ao lado da Escritura torna-se afinal um problema inteiramente secundaacuterio Talvez lhe devamos responder negativamente

5 A funccedilatildeo da exegese [37] Pelo que ateacute aqui dissemos ficaram esclarecidas quase que exclusivamente

trecircs pontos os limites da letra da Escritura a liberdade do Espiacuterito Santo e a autoridade da Igreja Acontece poreacutem que a exposiccedilatildeo que fizemos abriga ainda um sentido diverso relacionado com a justa preocupaccedilatildeo de Lutero da qual partimos

Se ficou estabelecido que a Revelaccedilatildeo se faz presente atraveacutes da pregaccedilatildeo e se pregaccedilatildeo eacute exposiccedilatildeo da palavra revelada entatildeo pode e deve agora ao que precede acrescentar-se o seguinte a Tradiccedilatildeo eacute essencialmente e sempre uma exposiccedilatildeo Natildeo existe de maneira autocircnoma e sim como explicaccedilatildeo como exposiccedilatildeo ldquorelacionada com a Escriturardquo

Isto vale para a pregaccedilatildeo do proacuteprio Jesus Cristo realizaccedilatildeo plena da Revelaccedilatildeo e sua exposiccedilatildeo feita com autoridade A pregaccedilatildeo de Jesus Cristo natildeo aparece como algo absolutamente novo na Escritura Isto eacute como algo ainda natildeo atestado no Antigo Testamento Ela ensina isto sim a essecircncia do que jaacute estava escrito e lhe confere uma vida nova que o simples exegeta natildeo pode comunicar-lhe

O que vale para a mensagem de Cristo que permanece a mesma sob diferentes modalidades de exposiccedilatildeo vale tambeacutem para a pregaccedilatildeo apostoacutelica e a eclesiaacutestica Como ldquoTradiccedilatildeordquo ela deve em uacuteltima anaacutelise ser uma exposiccedilatildeo ldquosegundo a Escriturardquo a ela sujeita e com ela relacionada Sem duacutevida natildeo eacute ela uma exposiccedilatildeo no 24 Estas ideacuteias natildeo podem ser desenvolvidas mais detalhadamente aqui como seria de desejar uma vez que em rigor estamos procurando apenas fundamentar o conceito de Tradiccedilatildeo Em razatildeo da brevidade que me impus contentei-me apenas nas teses precedentes com explanar o assunto ateacute ao ponto em que ficasse patente a relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a ldquoIgrejardquo (cf as teses 4 e 5) Para se descer a maiores detalhes dever-se-ia analisar tambeacutem o conceito de Igreja que supomos conhecido do leitor Para isto cf a nota 6 onde citamos nosso livro sobre o Ofiacutecio e a unidade da Igreja Encontram-se aiacute algumas observaccedilotildees sobre o assunto de que ora tratamos

sentido de mera interpretaccedilatildeo exegeacutetica Mas sim na autoridade espiritual recebida do Senhor a qual se consuma na existecircncia plena da Igreja em sua feacute em sua vida e em seu culto Contudo ela permanece sendo (mais ainda do que o Cristo-evento em que se funda a Igreja) uma ldquoex-posiccedilatildeordquo (Aus-Legung) comprometida com a Histoacuteria e com a Palavra [38] Exprime-se deste modo a sua ligaccedilatildeo com a accedilatildeo concreta de Deus nesta mesma Histoacuteria e em seu caraacuteter de fato histoacuterico uacutenico (o ἑφάπαξ ldquoo ocorrido uma soacute vezrdquo) A realidade cristatilde da Revelaccedilatildeo eacute tatildeo essencial quanto ldquoeternardquo e definitiva Resulta daiacute a unidade entre o Cristo da Feacute e o Jesus da Histoacuteria o Jesus histoacuterico natildeo eacute senatildeo o Cristo da Feacute ainda que a feacute seja sempre algo mais do que a histoacuteria

Segue-se que do mesmo modo que existe um ofiacutecio de custoacutedia da Revelaccedilatildeo por parte da Igreja ofiacutecio por ela mesma atestado existe tambeacutem um ofiacutecio de custoacutedia da mesma Revelaccedilatildeo por parte da exegese que penetra o sentido literal da Escritura e defende a uniatildeo do Logos com a carne contra qualquer perigo de gnose Existe portanto por assim dizer algo como uma autonomia especiacutefica da Escritura como regra objetiva e sob muitos pontos de vista esclarecedora do Magisteacuterio eclesiaacutestico Esta era sem duacutevida uma exigecircncia legiacutetima de Lutero que ainda natildeo foi devidamente acolhida na Igreja catoacutelica por parte do Magisteacuterio cujos limites internos nem sempre foram claramente entendidos

Dever-se-ia partindo daqui salientar uma dupla criteriologia em se tratando da feacute De um lado haacute o que a Igreja antiga chamou de ldquoregra da feacuterdquo norma reguladora da palavra revelada contida na Escritura e sua exposiccedilatildeo Esta praeligscriptio da posse da Escritura como proacutepria segundo Tertuliano exclui a possibilidade de qualquer uso legiacutetimo da mesma Escritura contra a Igreja Por outro lado haacute tambeacutem o limite da littera Scripturaelig ou do sentido literal historicamente fixaacutevel que de acordo com o que ficou dito natildeo constitui nenhum criteacuterio absoluto ou autocircnomo mas sim somente um criteacuterio relativo no confronto da feacute com a ciecircncia O que na Escritura se pode descobrir quer mediante estudo cientiacutefico quer por simples leitura tem a funccedilatildeo de um criteacuterio real a que deve estar atento inclusive o Magisteacuterio em suas explicaccedilotildees Certamente [39] trata-se entatildeo de elementos sub-componentes da ciecircncia que natildeo podem servir para se julgar a feacute mas nela encontram uma instacircncia criacutetica e tecircm tambeacutem um importante papel a exercer o de zelar pela pureza do ἑφάπαξ de tutelar o conteuacutedo da Revelaccedilatildeo e de defender o dualismo histoacuterico carneespiacuterito (ldquodie Sarx der Geschichterdquo) contra os arbiacutetrios da gnose que tende sempre a impor-se

A reformatio na qual estaacute empenhada a Igreja nesta hora histoacuterica tem um papel relevante a desempenhar Eacute a missatildeo de abrir novas perspectivas para o diaacutelogo tentando assim chegar a uma ldquoreformardquo diferente da do passado que culminou com a divisatildeo no seio da Cristandade ocidental Tal missatildeo se exerceraacute em harmonia com o pleno ofiacutecio de testemunho da Igreja que tira seu direito e sua forccedila da presenccedila do Espiacuterito e de Cristo presente em todos os tempos Pois ele eacute sempre o Cristo de agora com a plenitude de seus direitos e de seus poderes Ele eacute quem daacute legitimidade e vigor ao testemunho singular e definitivo da Escritura que por sua vez encontra seu pleno sentido na singularidade da accedilatildeo histoacuterico-salviacutefica de Jesus Cristo Ele deu ao Pai seu Corpo crucificado e dando-se a si mesmo santificou para sempre os que o receberam (cf Hb 1014 727) Ele eacute o Cristo ontem hoje e sempre (Hb 138)

SEGUNDA PARTE

Explicaccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo segundo o Decreto do Conciacutelio de Trento

Parece que a completa elucidaccedilatildeo das razotildees que levaram agrave substituiccedilatildeo do

partim-partim pelo et e consequumlentemente agrave pesquisa dos dados do debate tridentino e de sua preacute-histoacuteria aparentemente favoraacutevel agrave suficiecircncia material da Escritura [40] simplifica indevidamente este problema fazendo-nos perder de vista os proacuteprios antecedentes do Decreto do Conciacutelio de Trento

1 A concepccedilatildeo pneumatoloacutegica da Tradiccedilatildeo no esquema fundamental do Cardeal Cervini

a) O conteuacutedo Um balanccedilo histoacuterico e detalhado do problema em seu conjunto exigiria uma

pesquisa exaustiva que natildeo reduzisse o seu acircmbito como o fez Geiselmann em seu livro25 Natildeo eacute nossa intenccedilatildeo proceder a um exame minucioso do assunto no presente trabalho Aqui soacute seratildeo tratados alguns pontos do debate tridentino com o fim de ampliarmos mais o horizonte de nossas reflexotildees

Fundamental para a compreensatildeo dos debates em pauta bem como do Decreto definitivo do Conciacutelio parece-me ser o Discurso do Cardeal Legado Cervini datado de 18 de fevereiro de 1546 [41] cujas linhas gerais se patenteiam tanto no Decreto como em outras decisotildees conciliares26

Tem o discurso de Cervini o meacuterito de mostrar as linhas diretrizes do Decreto de maneira mais clara do que aparecem estas na uacuteltima redaccedilatildeo do mesmo onde elas se diluem muito devido a uma seacuterie de variadas implicaccedilotildees Eacute ainda de grande auxiacutelio para o entendimento do referido discurso uma carta dos Cardeais Legados ao Cardeal Alexandre Farnese de 28 de fevereiro de 1546 Esta carta revela conteuacutedo idecircntico ndash eacute certamente inspirada pelo mesmo Cervini ndash e oferece ainda alguns outros

25 Eacute lamentaacutevel que Geiselmann em sua anaacutelise da contribuiccedilatildeo medieval sobre este assunto se tenha apoiado apenas em argumentos de segunda matildeo portanto de valor histoacuterico discutiacutevel Queira o leitor ver minhas observaccedilotildees a este respeito in Theol-prakt Quartalschrift 1963 p224-227 As novas (e temperamentais) invectivas de Geiselmann in TThQu 144 (1964) p 31-69 em nada modificaram a minha posiccedilatildeo de vez que natildeo trazem nenhuma contribuiccedilatildeo vaacutelida ao assunto Precioso ao contraacuterio eacute o trabalho de Y CONGAR La Tradition et les traditionshellip Essai historique Paris 1960 Importante eacute tambeacutem a obra de J BEUMER Die muumlndliche uumlberlieferung als Glaubensquelle Friburgo 1962 A respeito do Conciacutelio de Trento cf sobretudo aleacutem do estudo fundamental de JEDIN o artigo de E ORTIGUES Escriture et Traditions apostoliques au Concilie de Trente in RSR 36 (1949) p 271-299 K D SCHMIDT Studien zur Geschichate des Konzilis von Trient Tubinga 1925 p 152-209 26 O discurso nos foi transmitido em duas redaccedilotildees A primeira mais curta encontra-se nas Atas do Conciacutelio in CT V 11 A segunda faz parte do diaacuterio de Massarelli (Diarium III) in CT I p484 Quanto ao conteuacutedo os dois textos se completam Na anaacutelise que aqui ensaiamos as duas versotildees satildeo comparadas entre si de modo a fazerem um todo Sobre a posiccedilatildeo de Cervini no Conciacutelio cf H JEDIN Geschichte des Konzils von Trient II Friburgo 1957 p38-40 A descriccedilatildeo do desenrolar histoacuterico dos debates acha-se em JEDIN op cit p42-82 e supomo-la conhecida do leitor de vez que serve de base para a anaacutelise teoloacutegica do Decreto tridentino

esclarecimentos Cervini sustenta no citado discurso que existem trecircs princiacutepios e fundamentos de nossa feacute

1) Os livros sagrados escritos sob a inspiraccedilatildeo do Espiacuterito Santo 2) O Evangelho que Nosso Senhor natildeo escreveu mas ensinou oralmente e

implantou nos coraccedilotildees Parte do Evangelho foi escrita mais tarde pelos Evangelistas enquanto muita coisa foi simplesmente confiada aos coraccedilotildees dos fieacuteis

3) Porque o Filho de Deus natildeo ia permanecer sempre entre noacutes enviou ele o Espiacuterito Santo que haveria de revelar os misteacuterios no iacutentimo dos fieacuteis e de ensinar agrave Igreja toda a verdade ateacute ao fim dos tempos27

[43] Numa segunda redaccedilatildeo mais detalhada do discurso estas mesmas ideacuteias satildeo

desenvolvidas mais amplamente Aiacute lemos que a Revelaccedilatildeo se apresentou de modo diferente em diversos tempos

1) Nos Patriarcas cuja feacute eacute atestada na Escritura a que chamamos de Antigo Testamento

2) Em Jesus Cristo que implantou o seu Evangelho natildeo por escrito mas oralmente natildeo in charta mas in corde Das coisas que emanaram de Cristo (quaelig a Cristo emanarunt) algumas foram escritas outras permaneceram nos coraccedilotildees dos homens (quaeligdam in cordibus hominum relicta fuerunt) Todo o Evangelho de Cristo que consta desta dupla modalidade forma (tendo como primeiro princiacutepio o Antigo Testamento) o secundum prindipium fidei nostraelig

3) Daiacute surge o terceiro princiacutepio (tertium autem) porque o Filho de Deus natildeo iria permanecer sempre entre noacutes enviou ele ao mundo o Espiacuterito Santo que haveria de explicar os misteacuterios de Deus e tudo o que fosse ainda obscuro para os homens28 De modo semelhante a citada carta ao Cardeal Farnese fala de dois passos (due

passi) Um eacute que a Revelaccedilatildeo de Nosso Senhor natildeo foi totalmente escrita mas permaneceu em parte contida nos coraccedilotildees dos homens e na Tradiccedilatildeo da Igreja O outro [43] passo consiste em confirmar ldquoquello che egrave suggerito lo Spirito Santo in la Chiesa maxime medianti i concilij doppo lAscensione in cielo del Signorerdquo29

Notamos logo que contrariamente ao que esperaacutevamos natildeo dois mas trecircs satildeo os princiacutepios apontados a Escritura o Evangelho e a Revelaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

27 CT V 11 helliptria esse principia et fundamenta nostrae fidei primum libros sacros secundum esse evangelium quod Christus Dominus Noster non scripsit sed ore docuit et in cordibus illud plantavit cujus evangelii nonnulla evangelistaelig scripto mandarunt multa quoque relicta sunt in cordibus hominum Tertium quia non semper filius Dei corporaliter nobiscum mansurus erat misit Spiritum Sanctum qui in cordibus fidelium secreta Dei revelaret et ecclesiam quotidie et usque consummationem saeligculi doceret omnem veritatem et si quid in mentibus hominum dubii occurrisset declararet 28 CT I 484 Digna de nota eacute ainda a foacutermula contida na paacutegina 48514-16 nihil tamen inter scripturas sacras et apostolicas traditianes differt illaelig enim scriptaelig hae per insinuationem habentur utraeque tamen a Spiritu Sancto eodem modo emanataelig Confira-se com CT V 11 19 ab eodem Spiritu et illos (scilicet libros) et istas (scilicet traditiones) descendisse 29 CT X 373

Eacute portanto necessaacuterio observar que sob o termo ldquoEscriturardquo se entende o Antigo Testamento e que aleacutem deste (que eacute Escritura em sentido proacuteprio) aparece como segundo princiacutepio o Evangelho apresentaccedilatildeo do Cristo-evento O Evangelho por sua vez abrange o que estaacute escrito e o que natildeo estaacute escrito mas sim apenas insculpido no coraccedilatildeo dos crentes Deste modo o segundo princiacutepio representa uma vantagem pneumaacutetica sobre o que estaacute escrito o Evangelho eacute nesta concepccedilatildeo algo diferente da letra (Escritura) e soacute em parte vem escrito (Isto natildeo deve ser entendido no sentido de divisatildeo das verdades da feacute fenocircmeno denunciado ldquocom horrorrdquo por Geiselmann Ao contraacuterio Entenda-se apenas no sentido de diferente grau de dignidade no modo de exprimir-se) Em rigor o Evangelho como tal soacute pode ser escrito em parte se considerarmos a sua essecircncia

Finalmente ndash o que eacute muito de se admirar ndash segue-se como terceiro princiacutepio a accedilatildeo visiacutevel do Espiacuterito Santo em todo o tempo da Igreja

Admitimos portanto que o que noacutes geralmente chamamos de Tradiccedilatildeo natildeo aparece aqui como um soacute princiacutepio Biparte-se antes em dois princiacutepios intimamente ligados o ldquoEvangelhordquo princiacutepio apenas em parte identificaacutevel com a Escritura e a accedilatildeo do Espiacuterito Santo no tempo da Igreja Ademais podemos observar que a Escritura do Novo Testamento natildeo aparece como um princiacutepio ao lado da Revelaccedilatildeo apostoacutelica Muito menos como [44] eacute o nosso caso se apresenta a Escritura neotestamentaacuteria juntamente com a veterotestamentaacuteria como uma grandeza uacutenica uma ldquoEscriturardquo soacute agrave qual se poderia contrapor a ldquoTradiccedilatildeordquo como uma segunda grandeza O Novo Testamento em seu conjunto aparece como um segundo e mais amplo princiacutepio ou seja o Evangelho que como tal se opotildee de um lado ao Antigo Testamento e de outro agrave projeccedilatildeo histoacuterica do tempo da Igreja Sua unidade interna eacute evidentemente mais forte e importante do que a sua divisatildeo em escrito e natildeo-escrito Assim o Evangelho como um soacute princiacutepio pode ser contraposto ao Antigo Testamento a despeito desta dupla formalidade A impossibilidade de se representar o Novo Testamento como Escritura impossibilidade esta demonstrada por Satildeo Paulo e pelos primeiros seacuteculos cristatildeos eacute aqui claramente revelada

Ainda uma observaccedilatildeo relativa ao texto a que vimos nos referindo Em nenhum dos dois pontos por noacutes citados no estudo da Tradiccedilatildeo isto eacute nem no elemento contido no primeiro nem no apresentado no terceiro princiacutepio figura a Tradiccedilatildeo como verbal Em ambos os casos ao contraacuterio trata-se mais da Tradiccedilatildeo real com prevalecircncia da realidade sobre as palavras que a atestam Este fato que estaacute claro no terceiro princiacutepio o pneumatoloacutegico vale tambeacutem em relaccedilatildeo agrave implantaccedilatildeo do Evangelho nos coraccedilotildees contida no segundo princiacutepio Tal implantaccedilatildeo vai muito aleacutem do que se encontra expresso na letra da Escritura

Que papel tenham estas ideacuteias exercido nas discussotildees do Conciacutelio pode-se concluir tambeacutem das auctoritates citadas por Cervini entre as quais figuram Jo 16 12 (hellipSpiritus Sanctus suggerethellip) e Fl 3 15 (Quicumque perfecti sumus haeligc sentiamus et si quid aliter sentitis haeligc quoque Deus vobis revelabit) Ambos estes textos satildeo de teor acentuadamente [45] pneumatoloacutegico-presencial30 Que tais ideacuteias natildeo eram

30 CT V 14 e 15 Um exame profundo das auctoritates quer da Escritura quer entre os Santos Padres que neste particular satildeo favoraacuteveis agrave Tradiccedilatildeo seria em si conclusivo para a elaboraccedilatildeo do conceito

estranhas aos Padres conciliares deduz-se ainda de uma seacuterie de outras referecircncias Assim ouvimos o Bispo de Aqui dizer que aleacutem da Sagrada Escritura existe muita coisa na Igreja de Deus que vindo dos Apoacutestolos e passando de geraccedilatildeo a geraccedilatildeo chegou ateacute noacutes assim como muitas outras quaelig etsi scripta Apostoli nobis non reliquerunt per Spiritus Sancti revelationem nobis (tradita) sunt (Tradita estaacute aqui por revelata) 31 Partindo daiacute se poderia descrever a Tradiccedilatildeo justamente como o componente pneumatoloacutegico do Cristo-evento b) A influecircncia do esquema de Cervini em diversas decisotildees conciliares

Eacute verdade que esta concepccedilatildeo tripartida aparece muito atenuada no Decreto

oficial sobre a Tradiccedilatildeo Que poreacutem em suas linhas fundamentais natildeo tenha ela sido de modo nenhum [46] abandonada mostram-no duas outras passagens nas quais o Conciacutelio faz uso por assim dizer in actu das ideacuteias aqui expressas32 Assim na Introduccedilatildeo ao Decreto sobre a Eucaristia (Denz 873) se lecirc Sacrosancta Synodus sanamhellipdoctrinam tradens quam semper catholica Ecclesia ab ipso Jesu Christo Domino Nostro et eius apostolis erudita atque a Spiritu Sancto illi omnem veritatem in dies suggerente (Jo 1416) edocta retinuithellip

Aqui a accedilatildeo proacutepria do Conciacutelio eacute descrita como tradere e a este tradere eacute atribuiacutedo um duplo fundamento De um lado o ensino de Jesus e dos Apoacutestolos (Note-se que este ponto corresponde ao Evangelho segundo a concepccedilatildeo de Cervini E de certo modo tambeacutem pela citaccedilatildeo de Jesus e dos Apoacutestolos se reconhece a dupla modalidade do Evangelho como escrito e como inserido nos coraccedilotildees) De outro lado o ensino dado pelo Espiacuterito Santo que conduz agrave verdade in dies isto eacute no de correr do tempo futuro

O outro texto que pode ser aduzido aqui como prova do que afirmamos encontra-se no Preacircmbulo do Decreto sobre o Purgatoacuterio (Denz 983) Aiacute se lecirc hellipCatholica Ecclesia Spiritu Sancto edocta ex Sacris Litteris et antiqua Patrum traditione in sacris Conciliis et novissime in hac Synodo docuerit A descriccedilatildeo da accedilatildeo proacutepria do

aqui exposto H HOLSTEIN procurou fazer o cotejo destas auctoritates e fecirc-lo de modo admiraacutevel em seu artigo La Tradition dapregraves le Concile de Trente (RSR 47 1959 p367-390 e em particular para o caso em questatildeo a p375) Ele encontra nos textos estudados duas linhas de tendecircncias A linha de Santo Irineu para a qual o testemunho dos Apoacutestolos eacute o de sua personalidade de sua vida e de seu ofiacutecio Aleacutem desta o grupo composto de Tertuliano Cipriano Basiacutelio e Agostinho forma uma corrente que se poderia denominar ldquocerimonialrdquo Oriacutegenes se enquadra em ambos os grupos Existe entre os autores estudados uma seacuterie de textos que se referem agraves observationes consuetudines institutiones e que levam a entender-se a Tradiccedilatildeo neste mesmo sentido Aiacute se vecircem tambeacutem textos que sublinham o aspecto natildeo-escrito do Evangelho enquanto insculpido no coraccedilatildeo dos fieacuteis e aleacutem disso textos que apontam a Igreja como o ldquolugarrdquo da verdade cristatilde 31 CT I 483 (18 de fevereiro de 1546) Em 26 de fevereiro (CT V 18) encontramos Cervini a tratar de novo deste assunto Cf tambeacutem um pronunciamento do Bispo de Fano (CT V 10) nestes termos Cum jam receperimus Scripturas Sacras necessario recipiendaelig sunt traditiones quaelig ab eodem Spiritu Sancto quo scripturaelig dictataelig sunthellip 32 Disto me adverti pela primeira vez atraveacutes de um estudo realizado sob a minha orientaccedilatildeo por CHR LIMBACR a quem sou devedor de muitas informaccedilotildees bibliograacuteficas

Conciacutelio como tradere encontra-se ainda nas declaraccedilotildees sobre o Sacramento da Extrema-Unccedilatildeo (Denz 910)

Finalmente a triacuteplice divisatildeo deixa-se insinuar nas entrelinhas do Decreto sobre a Tradiccedilatildeo embora obscurecida e diluiacuteda por uma seacuterie de acreacutescimos e citaccedilotildees a ele adicionados por outros motivos O Decreto da Tradiccedilatildeo com efeito [47]

1) Fala do Evangelho prometido pelos Profetas na Escritura e refere-se a esta em sentido estrito quer antes quer depois do Antigo Testamento

2) Fala da promulgaccedilatildeo por Cristo do Evangelho que foi transmitido pelos Apoacutestolos sob dupla forma oral e escrita Desta maneira o que natildeo ocorre no exemplo de Cervini aparece aqui antes de tudo o componente pneumatoloacutegico unido com o componente apostoacutelico a ponto de se distinguirem duas modalidades de Tradiccedilatildeo apostoacutelica a que remonta a Cristo e a que remonta ao envio do Espiacuterito Santo Pode-se assim estabelecer que em oposiccedilatildeo ao esquema de Cervini haacute um certo processo de historicizaccedilatildeo que salienta a relaccedilatildeo com o comeccedilo histoacuterico e igualmente parece deslocar o acento da tradiccedilatildeo real para a verbal

3) No epiacutelogo desta parte do Decreto da Tradiccedilatildeo que vimos analisando de novo eacute considerada a ideacuteia da Sagrada Escritura O conceito de Tradiccedilatildeo eacute entatildeo formulado em definitivo e descrito como vel oretenus a Christo vel a Spiritu Sancto dictatas et continua successione in Ecclesia catholica conservatas A referecircncia aos Apoacutestolos eacute omitida Pode-se na verdade considerar tudo isto como uma volta ao que foi dito antes Evidentemente a tradiccedilatildeo ditada pelos Apoacutestolos eacute citada de novo (A expressatildeo continua successione insinua-o) Contudo permanece sempre ainda certa indeterminaccedilatildeo ficando aberta a possibilidade de se encontrar aqui o vestiacutegio do terceiro componente de Cervini o princiacutepio pneumaacutetico propriamente dito Eacute tambeacutem claro que esta ideacuteia eacute discreta sendo adotada uma posiccedilatildeo mais acentuadamente histoacuterica Se agora lanccedilarmos os olhos sobre o que vimos considerando ateacute aqui surgiratildeo

inevitavelmente perguntas qual eacute realmente o sentido proacuteprio da concepccedilatildeo pneumatoloacutegica Como poderia ser perfeitamente entendida a ideacuteia a noacutes estranha de uma revelatio prolongada no tempo em face da unicidade e do caraacuteter [48] histoacuterico da Revelaccedilatildeo que evidentemente era conhecido tanto de Cervini quanto dos Santos Padres e teoacutelogos medievais33

Antes de examinarmos isto devemos esclarecer rapidamente os principais motivos que inspiraram o Decreto tridentino sobre a Escritura e a Tradiccedilatildeo deixando nele um tanto encoberta a concepccedilatildeo pessoal de Cervini Que opiniotildees de teoacutelogos teratildeo intervindo aqui chegando a ser em parte impressas no texto definitivo que resultou do cotejo de muitos pronunciamentos diversos Uma exposiccedilatildeo detalhada deste ponto exorbitaria do acircmbito de nossa anaacutelise Contentemo-nos com umas poucas observaccedilotildees sumaacuterias 33 Sobre este assunto tentei fazer um breve comentaacuterio no meu trabalho ldquoOffenbarung-Schrift-Uberlieferungrdquo in TThZ 67 (1958) p13-27 Cf J BEUMER ldquoDer theoretische Beitrag der Frnhscholastik zum Problem des Dogmenfortschrittsrdquo in ZkTh 72 (1952) p205-226 J de CHELLINCK Pour lrsquohistoire du mot ldquorevelarerdquo in RSR 6 (1916) p149-157

2 Relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a vida da Igreja

em diversas passagens do debate tridentino

Uma primeira seacuterie de motivos entre os quais se compreendem diversos pronunciamentos agraves vezes muito contrastantes em seu aparato exterior patenteia-se na ideacuteia de tradiccedilotildees expressa no Decreto de duas maneiras a) - per manus traditaelig ad nos usque pervenerunt b) - continua successione in Ecclesia catholico conservatas

O que se ocultaraacute sob estas duas foacutermulas que o historiador de hoje tem dificuldades em aceitar justamente por causa do historicismo nelas impliacutecito Podemos dizer que um decisivo papel exerceu aqui o pensamento que sempre aparecia nos debates a saber que as tradiccedilotildees satildeo variaacuteveis que muitas delas foram abolidas pelos Apoacutestolos e que por outro lado se [49] introduziram tradiccedilotildees eclesiaacutesticas que natildeo mais seriam abolidas34 Esta ideacuteia de Tradiccedilatildeo de certo modo se torna clara no tratado escrito sobre o mesmo assunto por Seripando para uso dos Padres Conciliares Seripando fala das Tradiccedilotildees escritas inseridas na Escritura como as claacuteusulas de Tiago o costume de as mulheres se cobrirem com um veacuteu a legislaccedilatildeo sobre o matrimocircnio contida em 1Cor 7 etc E o autor adverte que estas praacuteticas foram abolidas Isto porque embora associadas agrave palavra de Deus na Escritura dela ldquomuito diferemrdquo pois a palavra divina [50] de modo nenhum poderia ser abolida A estas tradiccedilotildees

34 Cabe aqui aduzir uma nova intervenccedilatildeo de Cervini datada de 26 de fevereiro de 1546 (CT I 33 e V 18) onde ele diz que nem todas as tradiccedilotildees procedentes dos Apoacutestolos devem ser conservadas mas somente as que ab Ecclesia receptaelig ad nos usque pervenerunt (V 18) Esta afirmaccedilatildeo anterior agrave formulaccedilatildeo dogmaacutetica feita pelo Concilio deve igualmente ser tida na conta de um autecircntico comentaacuterio do Decreto Aiacute se acentua como condiccedilatildeo essencial das tradiccedilotildees a receptio ecclesiaelig Vem ainda referida uma intervenccedilatildeo do Bispo de Bertinoro em data de 23 de marccedilo (I p 523) na qual ele sublinha que as tradiccedilotildees escritas por vezes foram mudadas Jaacute entre as natildeo-escritas umas foram mudadas e outras natildeo como por exemplo o rito de adicionar aacutegua ao vinho a Crisma a confissatildeo auricular O Bispo de Bertinoro acrescenta que por outro lado alguns pontos existem que permaneceram inteiramente inalterados tais como a crenccedila no descensus ad inferos na virgindade perpeacutetua de Maria a substituiccedilatildeo da observacircncia do saacutebado pela do domingo Temos depois um pronunciamento do Bispo de Bitonto datado de 27 de marccedilo (I 39) Este bispo era de parecer que algumas coisas foram transmitidas pelos Apoacutestolos com a finalidade de serem perpetuamente conservadas (como pertencentes ao depoacutesito da feacute) outras caiacuteram em desuso (como as claacuteusulas de Tiago) e outras enfim foram apenas aconselhadas Assim mesmo na Escritura algumas coisas haacute que foram escritas mas natildeo recebidas em uso por serem mateacuteria de mero conselho Por exemplo ldquose algueacutem te pedir a tuacutenica daacute-lhe tambeacutem o paacutelio se algueacutem te esbofetear numa face oferece-lhe tambeacutem a outrardquo Sem duacutevida excelente ilustraccedilatildeo do sermatildeo da montanha Finalmente consideraccedilotildees idecircnticas podemos encontrar na obra citada de LEJAY Eis outra amostra tirada do discurso de 23 de fevereiro (CT V 13) Nam illaelig (scil traditiones) quaelig ad fidem pertinent eadem sunt recipiendaelig auctoritate qua recipitur evangelium alia autem non ita eum earum plurimaelig immutataelig fuerint ut de bigamis de esu sanguinis et similia De modo semelhante aliaacutes fala tambeacutem Bonuccio (I 525 a 23 de marccedilo de 1546 ecclesia traditiones apostolorum quandoque mutavit verbum autem Dei nunquam mutavit neque mutare potest

Seripando opotildee as natildeo referidas na Biacuteblia e que ora satildeo apostoacutelicas ou oriundas de Conciacutelios universais e aceitas por toda a Igreja ora satildeo particulares e muito variaacuteveis35

Este texto nos leva a uma surpreendente conclusatildeo para Seripando e muitos outros Padres tridentinos36existem tradiccedilotildees na Escritura ldquoTradiccedilatildeordquo natildeo significa o natildeo-escrito Existe quer dentro da Escritura quer fora dela Isto nos conduz a outra pergunta em que consiste para os referidos Padres a essecircncia da tradiccedilatildeo se o que a constitui natildeo eacute o fato de natildeo ser escrita37 Em outros termos como pode a tradiccedilatildeo ser definida positivamente se ela natildeo pode ser suficientemente determinada pela ideacuteia negativa de algo natildeo-escrito

Haacute uma seacuterie de respostas para esta pergunta O proacuteprio Seripando daacute a seguinte definiccedilatildeo Traditiones hoc est Apostolorum seu sanctorum Patrum sanctae et salutares constitutiones38 Mais clara ainda eacute a afirmaccedilatildeo de Cervini citada por Massarelli A objeccedilatildeo do Bispo de Chioggia que aduzia a opiniatildeo de Agostinho de que tudo o que eacute necessaacuterio para a salvaccedilatildeo estava escrito na Biacuteblia respondia Cervini da seguinte maneira Verba illa (isto eacute de Santo Agostinho) formaliter intelligi debent scilicet ad fidem accipiendam ut salvi fiamus Quo vero ad mores et christianam vitam instituendam certo non omnia scripta sunt

[51] E de novo recorre agraves provas tiradas de Jo 1526 e 1426 E indica o princiacutepio pneumatoloacutegico39 O que eacute mais importante eacute que a Tradiccedilatildeo se refere agrave institutio vitaelig agrave presenccedila atuante da Palavra revelada na existecircncia cristatilde Tradiccedilatildeo eacute noutros termos a eficaacutecia da palavra de Deus Sem ela a palavra ficaria esteacuteril 35 Seripando De traditionibus (fevereiro ou marccedilo de 1546) CT XII p517-521 e principalmente a p 521 As expressotildees desta uacuteltima paacutegina chocam-se com a ideacuteia de Cervini sobre a receptio ecclesiaelig 36 Cf o texto citado na nota 11 37 No texto definitivo do Decreto esta ideacuteia natildeo aparece mais Aqui poreacutem com esta primeira designaccedilatildeo expliacutecita da Tradiccedilatildeo vem expressamente acentuado o contraste entre in libris scriptis et sine scripto traditionibus Na segunda redaccedilatildeo o sentido expliacutecito da palavra Tradiccedilatildeo natildeo eacute tatildeo exclusivo Contudo apresenta igual matiz ao se confrontarem as expressotildees omnes libroshellipnec non traditiones ipsas Portanto a ideacuteia positiva da Tradiccedilatildeo que serve de base a esta anaacutelise natildeo deixou de influenciar na redaccedilatildeo do Decreto 38 CT XII 517 39 CT I 494 (26 de fevereiro de 1546) A citada palavra de Santo Agostinho teve o seu papel a desempenhar na discussatildeo em curso Seripando por exemplo a ela se referiu (De traditionibus CT XII 521 47-53) Pensandum denique ne in traditionibus externis vera religio et salutis spes statuatur de quibus Augustinus Omnia quaelig pertinent ad veram religionem quaeligrendam et tenendam divina Scriptura non acuit Conceda-se que nem tudo foi escrito (veja-se Jo 2125) Todavia electa sunt autem quaelig scriberentur quaelig saluti credentium sufficere videbantur Mais do que nos debates do tridentino encontramos aqui um verdadeiro postulado dos Reformadores ldquonatildeo adotar costumes exteriores mas buscar os meios definitivos de salvaccedilatildeo na palavra da Escriturardquo A ldquosuficiecircnciardquo da Escritura de que aqui se fala eacute na verdade algo diverso da suficiecircncia material da mesma Escritura defendida por Geiselmann em sentido muito mais radical Infelizmente ainda natildeo se quis levar na devida consideraccedilatildeo o texto de Santo Agostinho (CT I 494 sugere De doctrina christiana II 9 e De pecc mero et rem II 59) Muito apropriadas nesta ordem de ideacuteias satildeo as observaccedilotildees de H SCHAUF ldquoSchrift und Traditionrdquo in Antonianum 39 (1964) p200-209 feitas no chamado Encontro de Duumlsseldorf Nos textos citados por Schauf com base em Agostinho eacute afirmada a suficiecircncia da Escritura para a salvaccedilatildeo Eacute contudo contestada a sua suficiecircncia para a Igreja em geral De fato esta alternativa parece muito mais vaacutelida e fundamental agrave luz dos postulados dos Reformadores do que a alternativa entre a suficiecircncia ou insuficiecircncia material da Escritura

Na mesma linha de ideacuteias seguem-se duas outras seacuteries de pronunciamentos Vimos na introduccedilatildeo agrave parte anterior que a discussatildeo dogmaacutetica da ideacuteia de

Tradiccedilatildeo foi em parte prejudicada pela questatildeo do meacutetodo a seguir no Conciacutelio dever-se-ia abordar primeiro a reformatio a reforma praacutetica da Igreja como queria o ldquoKaiserrdquo Ou primeiro discutir a questatildeo dogmaacutetica como preferia o Papa40

[52] Este problema do meacutetodo embora resolvido no debate que entatildeo surgiu natildeo afetou diretamente a questatildeo da Tradiccedilatildeo como tal Mas como de fato estas duas questotildees ficaram ligadas entre si daiacute resultou que muitos oradores transformaram a questatildeo do meacutetodo (se se deveria falar dos abusos ou da Tradiccedilatildeo) em parte de sua argumentaccedilatildeo em torno do assunto em pauta41 O problema abusus e o problema Traditio ficaram de tal maneira associados na ocasiatildeo que pareciam formar no fundo um soacute assunto Por isso os oradores ora falavam em sentido positivo ora se pronunciavam em sentido negativo Isto correspondia tambeacutem ao propoacutesito reformista do Conciacutelio as traditiones representavam os abusus aos quais a Igreja se opunha Os Padres estavam cocircnscios de que condenar as traditiones era condenar Os usus ecclesiaelig o modo como a Igreja vivia a sua vida naquela eacutepoca

A outra seacuterie de pronunciamentos que se inclinavam ao mesmo sentido encontramo-la nas proposiccedilotildees que a auctoritas da Igreja apresenta como definitivas indicando uma iacutentima relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a institutio christiana 42

[53] Podemos agora retomar ao nosso ponto de partida e dar resposta agrave pergunta que propriamente significa a foacutermula ad nos usque pervenerunt Objetivamente natildeo se trata aqui de um historicismo que a foacutermula parece expressar Ao contraacuterio Trata-se da fidelidade perseverante da Igreja agrave institutio vitaelig christianaelig da legiacutetima forma de vida cristatilde em concreto no tempo presente da Igreja da institutio christiana que coloca a Escritura em primeiro lugar e que como tal isto eacute como vida decorrente da Escritura eacute fundamentalmente apostoacutelica embora tambeacutem sujeita a mudanccedilas como tudo o que eacute vivo

3 A Tradiccedilatildeo e o dogma eclesiaacutestico

40 Sobre o debate em torno da questatildeo do meacutetodo cf mais uma vez JEDIN op cit p9-82 e outras 41 Assim jaacute no discurso de Cervini antes analisado (CT I 484) no qual ele recorda o dilema do Conciacutelio se nos voltarmos contra as tradiccedilotildees ficaratildeo admirados os Padres Conciliares quasi reformationem fugiamus si ipsam reformationem sumimus iterum objicient traditiones relinquendas non esse Idecircntica era a situaccedilatildeo em que se encontrava o Bispo de Astorga nas duas intervenccedilotildees que fez no dia 23 de fevereiro de 1546 (CT V 13 e 19) segundo Seripando (I 484) helliptraditiones prius pertractandas consulit tantam enim conformitatem abusus qui ex sacris libris descendunt cum iis qui a traditionibus orti sunt habent ut sacris libris et traditionibus absolutis duo illa abusuum genera simul pertractari valeant Segundo Bonuccio (I 484) antes de tudo dever-se-ia tratar das Sagradas Escrituras dos cacircnones apostoacutelicos dos Conciacutelios gerais e das decretais pontifiacutecias Hisque ilusceptis ad abusus ex eisdem dependentes devenire 42 Assim principalmente de acordo com Afonso de Castro (CT I 484) Quoniam ultra traditiones apostolicas ecclesiae auctoritatem habemus quaelig ecclesiaelig auctoritas tonta apud nos est ut aliqui eam maioris roboris quam sacros libros esse sentiant Cf igualmente CT I 491 45 Na mesma linha pode-se ver uma seacuterie de pronunciamentos na citada obra de LEJAY Cf CT XII 524 (Tratado De traditionibus ecclesiaelig fevereiro ou marccedilo de 1546)

Uma segunda seacuterie de motivos eacute expressa no Decreto pela foacutermula traditiones tum ad fidem tum ad mores pertinentes Se como vimos a ideacuteia de Tradiccedilatildeo aparece muito limitada naquilo que os Padres conciliares chamam consuetudines observationes institutiones por outro lado o Procurador do Cardeal de Augsburgo Claudio Lejay SJ se fez o porta-voz de uma expressatildeo que em oposiccedilatildeo agraves traditiones caeligremoniales estabeleceu justamente o sentido da tradiccedilatildeo contida na feacute Seu tratado sobre a Tradiccedilatildeo composto para uso dos Padres conciliares inclui tambeacutem a foacutermula que foi adotada pelo Conciacutelio Aiacute se diz Denique multas veritates tum ad fidem tum ad mores pertinentes Ecclesia novit quas Scriptura aperte et expresse non continet Ele cita como exemplos as palavras persona essentia trinitas no Tratado da Santiacutessima Trindade consubstantialitas na Cristologia do Logos duas naturezas uma soacute Pessoa referentes ao dogma definido pelo Conciacutelio de Calcedocircnia E ainda Cristo Filho uacutenico de Maria duas vontades na uacutenica Pessoa de Cristo uma alma racional aleacutem do espiacuterito divino em Cristo Ana matildee de Maria o costume de fazer sinais da cruz a santificaccedilatildeo do domingo a maneira de rezar com face voltada [54] para o Oriente tudo isto ideacuteias e fatos da tradiccedilatildeo conciliar e da piedade cristatilde43

Cervini que aprovou o discurso de Lejay de 23 de fevereiro de 154644 pocircde dificilmente conciliar esta posiccedilatildeo com a sua expressa na jaacute citada carta ao Cardeal Farnese onde como vimos ele diz que o Espiacuterito Santo falou na Igreja e depois da Ascensatildeo do Senhor fala ainda maxime medianti i concilii45 Ele aiacute viu publicamente sublinhado o fato de que aquele ldquomaisrdquo que a Igreja viva representa em relaccedilatildeo agrave palavra meramente escrita natildeo se referia e natildeo se refere apenas agrave vita instituenda ou como ele prefere agrave caeligremonialia Refere-se tambeacutem agrave essentialia fidei que antes de tudo plenamente se expressam na Tradiccedilatildeo Tambeacutem aqui como se vecirc o interesse dominante natildeo estaacute na apresentaccedilatildeo historicista do assunto a partir do iniacutecio da Igreja mas na ideacuteia de que a influecircncia da Tradiccedilatildeo sobretudo atraveacutes da praxe conciliar eacute de fundamental importacircncia para a feacute para a doutrina crida e natildeo apenas para a piedade viva ou a caeligremonialia

4 O sentido do Decreto tridentino

Se recapitularmos o que ateacute agora dissemos veremos que no conjunto facilmente se podem reconhecer trecircs diferentes concepccedilotildees teoloacutegicas unidas entre si no texto definitivo do Decreto sobre a Tradiccedilatildeo Unidas mas natildeo equiparadas umas agraves outras Pelo contraacuterio apesar de sua grande diferenccedila foram elas apenas [55] mais ou menos justapostas e de novo por forccedila de uma tendecircncia comum relacionadas entre si

1 A concepccedilatildeo de Cervini que designamos como pneumatoloacutegica Com sua doutrina sobre os trecircs principia fidei insiste ele no caraacuteter dinacircmico do Cristo-evento

43 CT XII 523 LEJAY baseia-se evidentemente em listas de tradiccedilotildees confeccionadas naquele tempo (Cf ECK DRIEDO CANO BOTO NOGAROLA) Cf a este respeito Y CONGAR ldquoTraditions apostoliques non eacutecrites et suffisance de lEscrituresrdquo in Istina 6 (1959) p219-306 e principalmente a paacutegina 289 44 CT V 14 45 CT X 373

presente na Igreja Entende assim a Tradiccedilatildeo primariamente como a realidade espiritual da institutio vitaelig christianaelig

2 A concepccedilatildeo que podemos chamar de cerimonial Esta entende a Tradiccedilatildeo essencialmente como a seacuterie de consuetudines existentes ao lado da feacute como os usus ecclesiaelig que os Reformadores falsamente pretendem abolir como abusus Esta concepccedilatildeo chega a condenar a dignidade e Antiguumlidade apostoacutelica das tradiccedilotildees Sua ideacuteia eacute limitada pelo ad nos usque pervenerunt que inclui possibilidade de variar da parte das tradiccedilotildees donde a necessidade de reduccedilotildees Com os termos pervenire e conservare a recepccedilatildeo por parte da Igreja eacute considerada criteacuterio adicional ao lado da Antiguumlidade

3 A concepccedilatildeo que talvez possamos denominar dogmaacutetica Em oposiccedilatildeo agrave fixidez da ideacuteia de Tradiccedilatildeo reduzida agrave consuetudo salienta esta terceira hipoacutetese a extensatildeo do fenocircmeno Tradiccedilatildeo tambeacutem ao acircmbito da fides

Estas trecircs concepccedilotildees deram forma ao texto do Decreto de tal modo que as suas

linhas mestras derivam de Cervini e todo o texto deve ser entendido agrave luz de suas ideacuteias Contudo em duas passagens isto eacute no pervenerunt e no conservatas haacute influecircncia da segunda concepccedilatildeo enquanto no tum ad fidem tum ad mores haacute influecircncia da terceira

Em face destas trecircs concepccedilotildees das quais na realidade existem diversas variantes que tomadas em conjunto satildeo a expressatildeo das ideacuteias dominantes adotadas aparecem as teses de Bonuccio e de Nacchianti tatildeo postas em evidecircncia por Geiselmann como sentenccedilas contraacuterias De fato o parecer de Bonuccio claramente [56] se opotildee agrave segunda concepccedilatildeo (contra a supervalorizaccedilatildeo das consuetudines natildeo per pietatis affectus) ao passo que Nacchianti se levanta antes contra a terceira posiccedilatildeo e salienta a suficiecircncia da feacute recebida por meio da Escritura46

Seria de notar-se ainda que as concepccedilotildees segunda e terceira tecircm algo em comum Ambas opotildeem agrave visatildeo pneumatoloacutegica de Cervini da salvaccedilatildeo sempre presente uma visatildeo mais historicista relacionada com o prolongamento da salvaccedilatildeo operada uma soacute vez ou seja o ἑφάπαξ Na realidade deve-se dizer que embora de um lado tanto a visatildeo presencial de Cervini como tambeacutem a visatildeo historicista do outro grupo se consideradas isoladamente cada qual de per si sejam perigosas se natildeo insustentaacuteveis 46 Aliaacutes de acordo com uma informaccedilatildeo de Cervini parece que o Bispo de Chioggia finalmente renunciou agrave sua tese da suficiecircncia da Escritura na qual se inclinava a recusar as tradiccedilotildees Na carta de Cervini ao Cardeal Farnese de 27 de fevereiro de 1546 lemos hellip Chioggia che (quasi quasi) voleva dire queste traditioni essere superflue perorando che tutto quello che era necessario alla salute era scritto et allegando etiam S Agostino sopra lultimo capitulo di S Giovanni a questo proposito Pure per non poter negare che molte cose appartenenti almeno alli sacramenti non ci fussero venute ex tra ditione et per consequente che non tutte le cose necessarie alia nostra salute erano scritte poiche ebbe fatte molte distintioni concluse che ancor lui accettava queste ldquoche in la chiesa fusse qualque traditione apostolica non scrittardquo (et con queste parole diceva che se ne facesse il decreto) credo che molti sono restati scandalizati di lui (CT X Nr 315 paacutegs 399 411) Cf tambeacutem CT I 494 nota 9 e 495 nota 2 CT V 18 nota 5 e 19 e nota 1 O mesmo protesto que aparece contra Nacchianti manifesta-se tambeacutem na observaccedilatildeo de Massarelli Este chega a chamar aquele de novarum rerum cupidus (1 494 18) e esclarece que reprehensus est a multis (1 494 22) Diante disto eacute de todo destituiacuteda de creacutedito a importacircncia que Geiselmann lhe atribui mesmo se abstrairmos de outras razotildees jaacute conhecidas sobre as quais natildeo precisamos insistir

de outro lado pelo menos tornam possiacutevel uma exata visatildeo do conjunto devido agrave sua muacutetua confluecircncia e limitaccedilatildeo No texto atual estatildeo presentes embora pouco nitidamente ambos os pontos de vista o elemento presencial e o ἑφάπαξ Conveacutem que entendamos assim o texto de modo a considerarmos [57] ambos estes aspectos como essenciais Consequumlentemente reconheceremos que ambos pertencem constitutivamente agrave realidade da vida cristatilde e portanto tambeacutem agravequela parcela do Cristianismo a que damos o nome de Tradiccedilatildeo Estes dois elementos satildeo a presenccedila do Espiacuterito Santo e o seu nexo com o fato singular da salvaccedilatildeo ocorrido uma soacute vez por todas na histoacuteria dos homens

Assim se acharaacute finalmente a resposta agrave pergunta de corno noacutes devemos entender o parecer do Conciacutelio de Trento A primeira e mais importante conclusatildeo parece-me ser o fato de o Conciacutelio ter visto muito claramente o nexo entre Tradiccedilatildeo e Revelaccedilatildeo A seguir elaborou sempre em consonacircncia com a tradiccedilatildeo patriacutestica e medieval um conceito de Revelaccedilatildeo muito menos material do que o que seraacute adotado mais tarde pela teologia dos tempos modernos Somente assim se deve conceber a ideacuteia da Revelaccedilatildeo do Espiacuterito Santo na Igreja Partindo do ramo nitidamente patriacutestico da teologia medieval tatildeo francamente acolhido no discurso de Cervini deveria ser muito menos categoacuterica a opiniatildeo que coloca o teacutermino da Revelaccedilatildeo na morte do uacuteltimo Apoacutestolo Naturalmente esta questatildeo natildeo pode ser aqui estudada com maiores detalhes A sua soluccedilatildeo como entatildeo se apresentava aos teoacutelogos poderia ser hoje impostada apelando-se para as categorias da teologia atual Segundo esta podemos dizer que a Revelaccedilatildeo estaacute encerrada do ponto de vista de seu princiacutepio material Todavia estaacute e continua presente em sua realidade eficaz Noutros termos a Revelaccedilatildeo tem eacute verdade o seu ἑφάπαξ enquanto ela se realizou num determinado dia na Histoacuteria Entretanto ela tem tambeacutem o seu ldquohojerdquo permanente isto eacute o que foi uma vez por todas realizado na feacute da Igreja permanece sempre vivo e operante Assim a feacute cristatilde natildeo se volta apenas para o passado Abrange tambeacutem o presente e o futuro Eacute verdade que a posterior materializaccedilatildeo historicista da ideacuteia de Revelaccedilatildeo aparece jaacute claramente insinuada nos debates tridentinos corno um fato previsto mas ainda [58] natildeo consumado embora talvez se possa dizer que nos textos conciliares ficou definitivamente consagrada a sua aceitaccedilatildeo

Finalmente acrescentemos ainda que com base nos debates do Conciacutelio podemos estabelecer quatro elementos da ideacuteia de Tradiccedilatildeo 1 O aspecto natildeo-escrito da Revelaccedilatildeo ou do Evangelho contido na Biacuteblia e no coraccedilatildeo dos fieacuteis 2 A palavra do Espiacuterito Santo no decorrer de todo o tempo da Igreja

3 A atividade da Igreja nos Conciacutelios 4 A Tradiccedilatildeo lituacutergica e a da vida da Igreja em geral Nestes quatro elementos

que se deve ter sob os olhos pois formam o fundo ideoloacutegico do Decreto expressa-se a realidade uacutenica do tempo presente da Igreja cristatilde Nele estaacute presente todo o passado poacutes-apostoacutelico da Igreja (inclusive o proacuteprio tempo dos apoacutestolos) de modo que toda a sua vida eacute na Sagrada Escritura um elemento central embora natildeo o uacutenico Em suma deve ter ficado claro que o Conciacutelio de Trento a despeito do caraacuteter contrastante e fixo de sua ideacuteia de Revelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeo oferece uma visatildeo muito mais rica destes conceitos do que a que impregnou a mentalidade dos seacuteculos seguintes Justamente por

isso a teologia de hoje pode retirar daiacute novos subsiacutedios novo apoio para suas pesquisas e novas indicaccedilotildees sobre o verdadeiro caminho a seguir

Quadro sinoacutetico do Decreto tridentino sobre a Tradiccedilatildeo

Primeiro princiacutepio conforme Cervini (AT = Escritura)

Sacrosancta œcumenica et generalis Tridentina Synodus in Spiritu Sancto legitime congregata [] hoc sibi perpetuo ante oculos proponens ut sublatis erroribus puritas ipsa EVANGELII in Ecclesia conservetur quod PROMISSUM ANTE PER PROPHETAS IN SCRIPTURIS SANCTIS

Segundo princiacutepio conforme Cervini o Evangelho em parte escrito em parte insculpido nos coraccedilotildees

[59] DOMINUS NOSTER IESUS CHRISTUS DEI FILIUS PROPRIO ORE PRIMUM PROMULGAVIT DEINDE PER SUOS APOSTOLOS TAMQUAM FONTEM OMNIS ET SALUTARIS VERITATIS ET MORUM DISCIPLINAE OMNI CREATURAE PRAEDICARI IUSSIT PERSPICIENSQUE HANC VERITATEM ET DISCIPLINAM CONTINERI IN LIBRIS SCRIPTIS ET SINE SCRIPTO TRADITIONIBUS QUAE AB IPSIUS CHRISTI ORE AB APOSTOLIS ACCEPTAE AUT AB IPSIS APOSTOLIS SPIRITU SANCTO DICTANTE

Seripando Cervini e outros soacute consideram as tradiccedilotildees recebidas pela Igrej (ldquoad nos usquerdquo)

quasi per manus traditae ad nos usque pervenerunt

orthodoxorum Patrum exempla secuta omnes libros tam Veteris quam Novi Testamenti cum utriusque unus Deus sit auctor nec non TRADITIONES IPSAS

Lejay Tradiccedilatildeo contendo natildeo soacute a ldquoconsuetudordquo mas relacionada tambeacutem com a ldquofidesrdquo (foacutermula conciliar)

tum ad fidem tum ad mores pertinentes

Terceiro princiacutepio de Cernini Depois da Ascenccedilatildeo de Cristo o Espiacuterito Santo ensina tambeacutem os misteacuterios de Deus

TAMQUAM VEL ORETENUS A CHRISTO VEL A SPIRITU SANCTO DICTATAS

Seripando Cervini etc soacute satildeo consideradas as coisas recebidas pela Igreja (como acima)

et continua successione in Ecclesia catholica conservatas

Cervini Escritura e Tradiccedilatildeo procedem ambas do mesmo Espiacuterito Santo

pari pietatis affectu ac reverentia suscipit ac veneratur

  • Prefaacutecio
  • SEGUNDA PARTE
  • Explicaccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo
  • segundo o Decreto do Conciacutelio de Trento
Page 2: Revelacao e Tradicao-Joseph Ratzinger (Bom Ler)

Os nuacutemeros entre colchetes [n] indicam o iniacutecio da paacutegina na ediccedilatildeo portuguesa de Herder ndash Satildeo Paulo 1968 Foram acrescentados a esta ediccedilatildeo eletrocircnica para possibilitar a citaccedilatildeo acadecircmica da obra Os tiacutetulos que precedem imediatamente ao nuacutemero pertencem agrave paacutegina em questatildeo Os nuacutemeros do iacutendice correspondem ao original

IacuteNDICE PrefaacutecioIX

Karl Rahner

Observaccedilotildees sobre o Conceito de Revelaccedilatildeo1

Joseph Ratzinger Exame do Problema do Conceito de Tradiccedilatildeo5

PRIMEIRA PARTE

Revelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeo Ensaio de Anaacutelise do Conceito de Tradiccedilatildeo15 I- Posiccedilatildeo do Problema15 II- Teses sobre a Relaccedilatildeo entre Revelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeo 24

SEGUNDA PARTE Explicaccedilatildeo do Conceito de Tradiccedilatildeo segundo o Decreto do Conciacutelio de Trento39

PREFAacuteCIO

Comparadas com as grandes monografias teoloacutegicas entre as quais se incluem os uacuteltimos volumes da coleccedilatildeo intitulada Quaeligstiones disputataelig as paacuteginas que se vatildeo ler pareceratildeo talvez um tanto isoladas e bastante pobres Todavia o que levou os autores destes dois modestos ensaios agrave ousadia de publicaacute-las inserindo-os no rol de tatildeo importantes obras foi o fato de o assunto aqui tratado ser apenas uma quaeligstio disputata no sentido original da expressatildeo Vale esta observaccedilatildeo tanto para o aparato externo quanto para o conteuacutedo real deste pequeno livro que reuacutene dois opuacutesculos

O primeiro opuacutesculo do presente livro (da autoria de Karl Rahner) focircra jaacute apresentado em linhas gerais na sessatildeo do dia 28 de marccedilo de 1963 do Instituto J A Moehler em Paderborn A mesma informaccedilatildeo se estende tambeacutem agrave segunda parte do segundo opuacutesculo (o de J Ratzinger) cujo texto foi aqui incluiacutedo na iacutentegra A discussatildeo na qual naquela oportunidade tomaram parte entre outros os nossos colegas de Bonn H Jedin e H Schlier contribuindo com estiacutemulos e criacuteticas que muito penhoraram os autores animou-nos a prosseguir nesta pesquisa

Quanto agrave primeira parte do trabalho de Ratzinger consta do texto da aula inaugural ministrada pelo Autor a 28 de junho de 1963 ao assumir ele a caacutetedra de Teologia Dogmaacutetica e de Histoacuteria dos Dogmas na Universidade de Munster O propoacutesito de ampliar o seu trabalho em conjunto sob o ponto de vista histoacuterico e positivo lanccedilando matildeo de abundante material armazenado malogrou mais de uma vez nos meses subsequumlentes pois urgentes tarefas agraves quais os autores se viram forccedilados obrigaram-nos de um modo ou de outro a protelar quaisquer outros planos Entrementes o assunto aqui estudado conservou seu teor de verdadeira quaeligstio disputata

Assim sendo cocircnscios das limitaccedilotildees de seu ensaio os autores acreditando que destes trabalhos possa talvez resultar alguma contribuiccedilatildeo para o debate em torno do tema ldquoTradiccedilatildeordquo ousam publicaacute-los agora em formato de livro Deliberadamente renunciaram agrave preocupaccedilatildeo de fornecer informaccedilotildees bibliograacuteficas e ao intento de fazer obra completa contentando-se apenas com aduzir a documentaccedilatildeo de interesse mais imediato para o seu trabalho

O pequeno ensaio de Karl Rahner em sua redaccedilatildeo atual foi ainda utilizado como texto de uma conferecircncia feita pelo autor ao ensejo de sua diplomaccedilatildeo como doutor honoris causa pela faculdade Teoloacutegica da Universidade Catoacutelica de Munster na Westfaacutelia em maio de 1964 Natildeo lhe pareceu necessaacuterio refundir posteriormente este texto nem muni-la de notas bibliograacuteficas

Queremos repetir este livro nada mais pretende ser do que uma sugestatildeo feita com vistas ao diaacutelogo teoloacutegico em torno do conceito de Revelaccedilatildeo e de Tradiccedilatildeo Temos a esperanccedila de que ao lado dos grandes trabalhos jaacute existentes sobre este assunto tal empreendimento natildeo seja de todo considerado sem valor

Roma outubro de 1964 KARL RAHNER e JOSEPH RATZINGER

Karl Rahner

OBSERVACcedilOtildeES SOBRE O CONCEITO DE REVELACcedilAtildeO

[1] Embora a condenaccedilatildeo de uma heresia por parte da Igreja seja legiacutetima e justa

sob o ponto de vista eclesiaacutestico e em face de uma situaccedilatildeo concreta assumindo mesmo determinada relevacircncia histoacuterica daiacute natildeo se segue sempre e necessariamente que a Igreja tenha dado atendimento e resposta aos anseios e agrave problemaacutetica desta mesma heresia por ela condenada Eacute que o amadurecimento positivo de um problema ndash e os problemas mesmo quando aparecem sob a capa de heresia trazem a marca de seu tempo ndash pode ocorrer muito mais tarde

Seria por certo conveniente que se apurasse ateacute que ponto a delonga de tal amadurecimento teria resultado de um erro traacutegico de uma culpa ou da impotecircncia dos homens Ou entatildeo se natildeo deveria ser considerada mero tributo a ser pago tambeacutem pela Igreja em razatildeo de sua condiccedilatildeo histoacuterica

De modo nenhum se deve contudo pensar que as condenaccedilotildees da Igreja soacute atinjam opiniotildees ou tendecircncias que em seu bojo outra coisa natildeo ocultem a natildeo ser uma vazia e inoacutecua negativa de uma verdade jaacute desde longo tempo claramente compreendida e explicitamente anunciada

Haacute precisamente meio seacuteculo a Igreja foi ameaccedilada pela heresia do Modernismo Entre suas teses e erros fundamentais estaacute o seu conceito especiacutefico de Revelaccedilatildeo Para o Modernismo ndash pelo menos se quisermos consideraacute-lo em seu conjunto e atender agrave sistematizaccedilatildeo desta heresia agrave luz da condenaccedilatildeo feita pela Igreja ndash a Revelaccedilatildeo era uma maneira de se designar o [2] progresso imanente e necessaacuterio dos anseios religiosos do homem histoacuterico Esses anseios se objetivariam nas muacuteltiplas formas de religiotildees histoacutericas que paulatinamente teriam ascendido a uma pureza maior e a uma plenitude mais ampla ateacute chegarem a se concretizar definitivamente no Cristianismo e na Igreja

Tal definiccedilatildeo era elaborada em oposiccedilatildeo ao conceito de Revelaccedilatildeo supostamente tradicional na Igreja Segundo esta a Revelaccedilatildeo outra coisa natildeo seria senatildeo um conhecimento de Deus vindo puramente ldquode forardquo Desta maneira Deus teria falado aos homens e em termos humanos lhes teria comunicado por meio dos Profetas certas verdades que eles por si soacutes natildeo poderiam conhecer A isto se acrescentaram os mandamentos a serem observados

Eacute verdade que a necessidade da graccedila divina para a posse salutar da Revelaccedilatildeo pela Feacute era explicitamente ensinada pela ortodoxia eclesiaacutestica entatildeo em luta contra o Modernismo Contudo natildeo foi devidamente considerada a iacutentima conexatildeo entre a graccedila da Feacute e a Revelaccedilatildeo histoacuterica

O fato de a Igreja ter acusado o Modernismo de imanentismo permite-nos reconhecer hoje um certo extrinsecismo no conceito de Revelaccedilatildeo geralmente apresentado pela teologia daquela eacutepoca contra a qual se insurgia o Modernismo Tal extrinsecismo natildeo era ensinamento oficial Era sim uma hipoacutetese corrente na teologia de entatildeo

Aos poucos e quase desapercebidamente encaminha-se hoje para o seu amadurecimento a resposta agrave problemaacutetica do justo e pleno conceito da Revelaccedilatildeo A

isto a Igreja natildeo dava uma resposta clara Dava-a o Modernismo poreacutem falsa precipitada extemporacircnea e em sentido decididamente hereacutetico

Eacute evidente que este problema e sua devida soluccedilatildeo tecircm uma importacircncia fundamental no confronto entre o Cristianismo e a cultura moderna ainda que isto natildeo seja de ordinaacuterio posto [3] explicitamente em debate Com efeito para o homem de hoje penetrado de um certo humanismo contraacuterio agrave Igreja adepto de um ateiacutesmo lamentaacutevel para o materialismo moderno que considera Deus como um enigma insoluacutevel e identifica o espiacuterito com a proacutepria forccedila motora do mundo o que choca e eacute motivo de escacircndalo natildeo eacute propriamente o Deus absconditus do Cristianismo que habita na luz inaccessiacutevel Eacute sim o ensinamento de que existe uma histoacuteria da Revelaccedilatildeo na qual o proacuteprio Deus indica o uacutenico caminho entre os muitos apontados pelas demais religiotildees histoacutericas e o percorre Ele proacuteprio aparecendo encarnado entre os homens O escacircndalo estaacute se assim podemos dizer na histoacuteria categorial da Revelaccedilatildeo e natildeo na relaccedilatildeo transcendental entre Deus e o homem mediante a qual Deus o cria do nada no abismo de Seu misteacuterio inefaacutevel

O que eacute Revelaccedilatildeo e por que eacute ela apesar de sua origem imediatamente divina o que haacute de mais iacutentimo na histoacuteria humana Como pode ela identificar-se com a histoacuteria da humanidade sem deixar de ser uma singular graccedila de Deus Como pode a Revelaccedilatildeo estar sempre e por toda parte a fim de operar sempre e por toda parte a salvaccedilatildeo sem com isto deixar de estar aqui e agora na carne de Cristo na Palavra dos Profetas que falam precisamente dela na letra da Escritura Poderaacute ela ser por toda parte o ldquomotivordquo iacutentimo a forccedila motora da histoacuteria sendo ao mesmo tempo uma accedilatildeo libeacuterrima de Deus impossiacutevel de ser medida em sentido ascendente a partir da Histoacuteria Natildeo eacute por outro lado o milagre uma graccedila divina ocorrida hic et nunc e realizada ldquouma vez para semprerdquo

A fim de ampliarmos mais o horizonte de nossas reflexotildees e compreendermos melhor a resposta a estas perguntas poderiacuteamos lembrar que a mais comum relaccedilatildeo entre Deus e o mundo-em-devir consiste no fato de ele o mais iacutentimo e absoluto Senhor do mundo conceder ao ser finito uma verdadeira e ativa transcendecircncia em sua evoluccedilatildeo Numa palavra eacute o proacuteprio futuro [4] a causa final que mostra a verdadeira e proacutepria causa real atuando no ser em marcha

Daiacute poder-se dizer que nossa pergunta natildeo tende senatildeo ao mais alto e mais radical conhecimento que hoje aos poucos vamos atingindo isto eacute o conhecimento de como o real e ativo evoluir dos seres superiores partindo dos interiores e a permanente accedilatildeo criadora vinda do alto satildeo apenas os dois lados ambos igualmente verdadeiros e positivos do uacutenico milagre do ser e da Histoacuteria Referimo-nos agrave ideacuteia de que Deus em sua livre relaccedilatildeo para com a sua criatura natildeo eacute uma causa categorial ao lado de outras mas sim o vivo permanente e transcendental fundamento da proacutepria evoluccedilatildeo do mundo Tambeacutem o mundo a seu modo se insere na relaccedilatildeo entre Deus e o homem no fato da Revelaccedilatildeo e na sua histoacuteria E isto na mais ampla medida porque esta histoacuteria na medida mais extrema deve ser igualmente accedilatildeo de Deus e accedilatildeo do homem uma vez que em si ela eacute a mais alta realidade no ser e no evoluir do mundo Se existe esta superaccedilatildeo fundamental de uma total oposiccedilatildeo entre o imanentismo e o extrinsecismo no conceito ontoloacutegico da evoluccedilatildeo e da histoacuteria entatildeo deve tambeacutem a teologia superar esta oposiccedilatildeo na questatildeo que aqui nos ocupa

Com efeito se a teologia catoacutelica ensina e potildee em praacutetica sua doutrina sobre a graccedila santificante e a vontade salviacutefica universal sobre a necessidade da graccedila elevante para a feacute e a doutrina tomista sobre o sentido ontoloacutegico transcendental da graccedila entitativa agrave luz da Revelaccedilatildeo segue-se que sem cair no Modernismo a teologia pode e deve reconhecer a histoacuteria da Revelaccedilatildeo ou simplesmente a Revelaccedilatildeo no sentido de apresentaccedilatildeo categorial histoacuterica Falando mais propriamente diremos a histoacuteria daquela mesma relaccedilatildeo transcendental entre o homem e Deus realizada de modo sobrenatural atraveacutes de uma sempre gratuita participaccedilatildeo divina Tal histoacuteria deve com razatildeo ser chamada de Revelaccedilatildeo

[5] Se transcendecircncia sempre existiu e sempre existe na histoacuteria e se haacute uma criaccedilatildeo transcendental no homem manifestada atraveacutes de algo permanente a que chamamos graccedila santificante que santifica o homem precisamente pela participaccedilatildeo de Deus e natildeo atraveacutes de qualquer outra eficiecircncia casual resulta entatildeo que esta absoluta transcendecircncia verificada na absoluta uniatildeo do Deus misterioso e inefaacutevel que se torna presente no homem tem uma histoacuteria Esta histoacuteria eacute o que chamamos de histoacuteria da Revelaccedilatildeo

O fato da Revelaccedilatildeo tem sempre um duplo aspecto Por um lado a constituiccedilatildeo de uma transcendecircncia sobrenaturalmente elevada do homem como algo permanente gratuito mas nem sempre de todo positivo ou seja a transcendental experiecircncia da absoluta e gratuita participaccedilatildeo da vida divina mesmo quando ela natildeo seja concretamente objetivada em cada um em particular E por outro lado a mediaccedilatildeo histoacuterica a objetivaccedilatildeo concreta desta experiecircncia sobrenaturalmente transcendental que ocorre na histoacuteria considerada em seu conjunto (A voluntaacuteria reflexatildeo teoloacutegica do indiviacuteduo tambeacutem pertence a esta histoacuteria mas natildeo a cria primariamente nem a forma) A experiecircncia transcendental referida chama-se usualmente histoacuteria da Revelaccedilatildeo quando ela eacute realmente histoacuteria da verdadeira exposiccedilatildeo desta experiecircncia sobrenatural e transcendental e natildeo a sua contrafaccedilatildeo Em outros termos quando ela eacute o resultado positivo desta transcendental participaccedilatildeo de Deus pela graccedila Ou ainda quando ela ocorre por disposiccedilatildeo da Providecircncia sobrenatural de Deus Salvador

Se for assim compreendida a unidade e inter-relaccedilatildeo entre Revelaccedilatildeo categorial e Revelaccedilatildeo histoacuterica ou melhor o elemento transcendental e o elemento histoacuterico (mediador) de uma revelaccedilatildeo e de sua histoacuteria seraacute entatildeo tambeacutem visiacutevel uma primordial distinccedilatildeo no que eacute revelado

Revelado eacute Deus como o que se daacute a participar em absoluta e gratuita uniatildeo como Deus ou seja como misteacuterio absoluto Revelada eacute a mediaccedilatildeo histoacuterica desta experiecircncia transcendental [6] como autecircntica como absoluta experiecircncia de Deus Revelada eacute no aacutepice singular e definitivo desta histoacuteria da Revelaccedilatildeo a absoluta e irreversiacutevel unidade entre a participaccedilatildeo transcendental de Deus na humanidade e sua histoacuterica mediaccedilatildeo no uacutenico Deus-Homem Em Jesus Cristo como numa soacute Pessoa o proacuteprio Deus compartilha da humana posse desta mediaccedilatildeo e de sua definitiva manifestaccedilatildeo histoacuterica

Nesta unidade entre a transcendental co-participaccedilatildeo de Deus e sua definitiva mediaccedilatildeo e manifestaccedilatildeo histoacuterica uma vez que se trata da comunicaccedilatildeo de Deus em si mesmo eacute revelado tambeacutem o misteacuterio fundamental do Deus trino enquanto se considera neste misteacuterio somente o aparecimento de Deus conosco na histoacuteria e na

Deivide
Realce
Eacute Jesus Cristo

transcendecircncia ou seja do Deus trino Pai Filho e Espiacuterito Santo em sua possibilidade de vir a manifestar-se na transcendecircncia do homem e na sua histoacuteria

Enquanto por conseguinte a histoacuteria se abre agrave transcendecircncia o Filho envia o Espiacuterito Enquanto a transcendecircncia constroacutei a histoacuteria o Espiacuterito realiza a Encarnaccedilatildeo do Logos Enquanto o aparecimento de Deus na histoacuteria expressa a impossibilidade de se conservar oculto o que eacute suma realidade o Verbo Encarnado eacute revelado como a auto-expressatildeo do Pai na Verdade Enquanto a vinda de Deus entre noacutes no meio de nossa existecircncia significa o Seu e o nosso amor eacute revelado o Pneuma sob este aspecto de amor

Quando noacutes fazemos a experiecircncia da uniatildeo transcendental e absoluta do Deus conosco compartilhando de Sua vida e aceitando-a por graccedila dele mesmo sabemos mediante o nosso ato de feacute o que significamos ao falarmos sobre a Trindade de Deus e ao exprimirmos de modo breve e sucinto a formalidade e o conteuacutedo da feacute cristatilde da sua Revelaccedilatildeo da histoacuteria desta Revelaccedilatildeo Sabemos o que significamos quando nos fazemos batizar nestes nomes em nome do Pai do Filho e do Espiacuterito Santo

[7] Ao que ateacute aqui estabelecemos em traccedilos gerais e raacutepidos como sendo a ideacuteia fundamental da Revelaccedilatildeo acrescentamos agora alguns esclarecimentos selecionados um tanto arbitrariamente e referentes todos agrave origem da Revelaccedilatildeo e agraves suas consequumlecircncias

Do exposto resulta que a Revelaccedilatildeo quer transcendental quer categorial e sua histoacuteria co-existem com a histoacuteria espiritual de toda a humanidade Isto natildeo eacute erro do Modernismo Eacute uma verdade cristatilde Podemos provaacute-lo muito simplesmente dizendo ser incontestaacutevel que a histoacuteria da salvaccedilatildeo sobrenatural eacute realizada sempre na histoacuteria do mundo o que depois do Conciacutelio Vaticano II se tornou uma verdade ainda mais vivamente impressa na consciecircncia religiosa dos cristatildeos A salvaccedilatildeo poreacutem natildeo pode dar-se sem a feacute Nem a feacute sem uma revelaccedilatildeo proacutepria

Natildeo precisamos esclarecer a possibilidade da Revelaccedilatildeo e da feacute fora da histoacuteria do Antigo e do Novo Testamento nem recorrer a uma teoria catoacutelica especial como a de Straub ou a de Billot Nem mesmo necessitamos apelar para uma tradiccedilatildeo categorial expliacutecita da Revelaccedilatildeo primitiva segundo a qual literaacuteria e doutrinariamente a experiecircncia categorial de Adatildeo teria sido transmitida aos poacutesteros o que agrave luz do conhecimento atual da histoacuteria das religiotildees e dos dois milhotildees de anos da histoacuteria da humanidade natildeo eacute muito provaacutevel

Basta-nos reter (o que eacute testemunhado pelos dados atuais da teologia) que cada homem elevado pela graccedila em sua espiritualidade transcendental representa esta ldquoentitativardquo divinizaccedilatildeo que precede o uso da liberdade mesmo quando esta natildeo eacute por ele compromissada na feacute Significa portanto uma transcendental divinizaccedilatildeo da condiccedilatildeo primitiva do homem o uacuteltimo horizonte do conhecimento e da liberdade sob o qual o homem completa o seu ser Atraveacutes desta existecircncia sobrenatural do [8] homem em geral e de cada um em particular daacute-se uma revelaccedilatildeo de Deus mediante uma participaccedilatildeo gratuita E esta condiccedilatildeo fundamental e gratuita do homem realizada no Deus da vida trinitaacuteria pode tambeacutem ser entendida como Revelaccedilatildeo da Palavra contanto que de um lado natildeo limitemos esta palavra a mera prolaccedilatildeo foneacutetica e de outro natildeo nos esqueccedilamos que esta Revelaccedilatildeo transcendental estaacute sempre inserida num contexto histoacuterico e ainda que a histoacuteria humana natildeo pode prescindir das palavras A

Deivide
Realce
A Revelaccedilatildeo estaacute aqui Estaacute diante de mm envolve-me Se quero Ela logo Eacute em mim e minha vida toma um novo significado A Revelaccedilatildeo estaacute no hoje tatildeo atuante quanto quando Jesus fala e agia no tempo em que peregrinou na terra Estaacute atuaccedilatildeo de Jesus que corre toda a histoacuteria e chega aos nossos dias daacute-se atraveacutes da Igreja pela accedilatildeo do Espiacuterito Santo

histoacuteria dos homens natildeo consta de fatos mortos mas de fatos cujo sentido representa um elemento importante em cada conjuntura histoacuterica

Natildeo existe nenhuma relaccedilatildeo objetiva de um objeto em particular ou de uma frase na vida transcendental do homem aberto para Deus para o Deus trino e eterno O que eacute mais e o que fundamenta todos os dogmas da Feacute como condiccedilatildeo mesma de sua possibilidade e antes de tudo o que os faz real palavra de Deus eacute o seguinte o horizonte da vida sobrenatural ou a luz da Feacute em si mesma - como diriacuteamos em linguagem tradicional e simples - pressupotildee que se aceitem e se valorizem as palavras da Tradiccedilatildeo

Com tudo isto ndash acentuemo-lo mais uma vez ndash natildeo estamos dizendo que esta transcendental e aprioriacutestica abertura do homem para o Deus da vida eterna e da participaccedilatildeo absoluta possa ser em si mesma ldquoanistoacutericardquo nem que conduza a uma desordem miacutestica que consistiria numa introspecccedilatildeo individualiacutestica alienada da histoacuteria Ao contraacuterio Ela se completa necessariamente na histoacuteria do agir e do pensar do homem E pode fazecirc-lo explicitamente embora de maneira de todo anocircnima Assim sendo nunca existe uma histoacuteria da Revelaccedilatildeo transcendental para um particular soacute Ela eacute individual e coletiva Naturalmente tal histoacuteria em concreto nunca eacute a histoacuteria da Revelaccedilatildeo inteiramente pura em si Ela se daacute em cada um sempre em indissoluacutevel simbiose com o erro com falsas interpretaccedilotildees com a [9] culpa com os abusos Ela eacute histoacuteria justa e pecadora uma vez que o homem eacute simul iustus et peccator estando a histoacuteria da culpa e a da salvaccedilatildeo definitivamente ligadas ateacute ao dia do juiacutezo final

Isto natildeo exclui a existecircncia de uma autecircntica histoacuteria da Revelaccedilatildeo na histoacuteria geral da humanidade Tanto que para o cristatildeo por exemplo uma diacriacutetica distinccedilatildeo na histoacuteria veterotestamentaacuteria entre autecircntica histoacuteria da Revelaccedilatildeo e falsa histoacuteria da religiatildeo soacute eacute possiacutevel tomando-se como criteacuterio a Cristo Tal distinccedilatildeo natildeo eacute possiacutevel partindo-se apenas dos criteacuterios fornecidos pelo Antigo Testamento Com efeito a Sagrada Escritura tem somente a Cristo como regra interna e externa e como norma de sua hermenecircutica Daiacute resulta que a Escritura deve ser considerada pelo cristatildeo como verdadeira histoacuteria da Revelaccedilatildeo do Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo1

Deduzir a ideacuteia da Revelaccedilatildeo da Palavra de Deus oral e escrita eacute atingir o lado transcendental da proacutepria Revelaccedilatildeo Eacute buscar um criteacuterio no cacircnon da Escritura colocando a Palavra de Deus oral e escrita antes de tudo na sua aceitaccedilatildeo pela Feacute interna e gratuita Eacute ldquodesmitologizarrdquo a mensagem externa da feacute em sua formalidade transcendental A histoacuteria da religiatildeo eacute a parte da histoacuteria humana em que a natureza teoloacutegica do homem se realiza tematicamente e efetivamente como em toda histoacuteria Daiacute resulta que a histoacuteria da religiatildeo eacute simultaneamente duas coisas eacute a parte mais expliacutecita da histoacuteria da Revelaccedilatildeo e tambeacutem o lugar espiritual (der geistige Ort) em que as falsas interpretaccedilotildees da experiecircncia transcendental de Deus se manifestam de modo mais notoacuterio e levam agraves piores consequumlecircncias A supersticcedilatildeo opotildee-se nitidamente agrave sua natureza Mas ela eacute ao [10] mesmo tempo estas duas coisas E sempre numa ambiguumlidade de sentido que natildeo conseguimos solucionar

1 Sobre a diferenccedila entre a histoacuteria da Revelaccedilatildeo extra-biacuteblica e a veterotestamentaacuteria (que eacute tambeacutem um pressuposto daquela) cf K RAHNER Schriften zur Theologie V (Einsiedeln 1964) p136-158 principalmente p 148 e 153

Deivide
Nota
Parei aqui

Na teologia escolaacutestica catoacutelica nos uacuteltimos seacuteculos em contraste com a teologia medieval pouco ou nada se diz sobre o portador do testemunho da Revelaccedilatildeo aquele que a apresenta atraveacutes do milagre aos homens chamados a crer Refiro-me agrave Revelaccedilatildeo presente no seu portador que eacute o proacuteprio Profeta Do que antes expusemos concluir-se-aacute que a teologia dos preacircmbulos e a da feacute satildeo idecircnticas Por isso tem razatildeo a teologia fundamental quando frequumlentemente trata da analysis fidei em seu acircmbito proacuteprio supondo-se que ela o faccedila considerando a feacute e a aceitaccedilatildeo da Revelaccedilatildeo em sua unidade fundamental O aspecto transcendental da aceitaccedilatildeo da Revelaccedilatildeo e a Feacute satildeo a mesma coisa fundam-se ambas na constituiccedilatildeo do homem gratuitamente marcada pela participaccedilatildeo ontoloacutegica e pelo compromisso livre do homem com este aspecto existencial do ser

A ldquodesmitologizaccedilatildeordquo (Entmythologisierungsfrage) para a teologia catoacutelica concretiza-se e resume-se na capacidade de cognoscibilidade do ldquomilagrerdquo Daiacute perguntar-se eacute possiacutevel uma autecircntica experiecircncia transcendental de Deus jaacute que isto seria como que um compartilhar do imparticipaacutevel (Schon-immer-heim- Univermittelten-Sein) Fundamentalmente natildeo eacute possiacutevel nem eacute necessaacuterio estabelecer uma distinccedilatildeo adequada entre a mediaccedilatildeo do factum brutum (durch das factum brutum) da chamada realidade objetiva e a que se daacute atraveacutes de sua clara explicaccedilatildeo A mediaccedilatildeo (Vermittlung) baseia sua uacuteltima verdade no mediado (im Vermittelten) Portanto a ldquodesmitologizaccedilatildeordquo e a relaccedilatildeo entre a mediaccedilatildeo e o mediado (Vermittlung-Vermittelte) fundamentam-se na diferenccedila e na unidade ontoloacutegica dos aspectos categorial e transcendental e tambeacutem na diferenccedila e na indissoluacutevel unidade entre a histoacuteria e seu significado Esta mediaccedilatildeo enquanto histoacuterica eacute sempre uma histoacuteria com-os-homens ou no sentido mais profundo da palavra uma [11] histoacuteria ldquoeclesialrdquo Eacute portanto tambeacutem um compromisso com a feacute da comunidade dos fieacuteis e da Igreja feacute esta que na comunidade e em cada indiviacuteduo envolve sempre a uniatildeo de sinais e de verdade como na palavra do Sacramento e no Logos Encarnado onde estes dois elementos se encontram inseparaacuteveis mas natildeo se confundem sendo a sua associaccedilatildeo independente do alvitre dos homens

Partindo dessas premissas pode-se entender o que seja a fides implicita agrave qual ateacute hoje os teoacutelogos natildeo deram o destaque devido Fundamentalmente a feacute seja qual for envolve a aceitaccedilatildeo do sinal Soacute eacute feacute verdadeira se assumir o sinal mediante o inefaacutevel misteacuterio da uniatildeo do Deus que se daacute a si mesmo em participaccedilatildeo Soacute eacute feacute verdadeira quando entende a mediaccedilatildeo categorial como presenccedila de sinais (Zeichenhaftigkeit) como se realiza na proacutepria Igreja Assim como a Revelaccedilatildeo natildeo elimina a obscuridade do sacrossanto misteacuterio de Deus antes o cristatildeo amando e adorando a aceita assim tambeacutem o ldquocaraacuteter impliacutecitordquo (Implizitaumlt) da Revelaccedilatildeo e da feacute pertencem agrave sua proacutepria natureza Esta ldquoimplicituderdquo natildeo eacute portanto um elemento que soacute se daria quando as pessoas ldquoincultasrdquo ou ignorantes ouvem a Revelaccedilatildeo e crecircem

Agora podemos entender melhor tambeacutem um conhecido fenocircmeno religioso a tendecircncia a se reduzir o dogma e a religiatildeo a um nuacutecleo de verdades essenciais A unidade existente entre os elementos categorial e transcendental existe tambeacutem na Religiatildeo Tambeacutem esta eacute una e uacutenica E insubstituiacutevel por qualquer outra Devemos dizer tambeacutem que o Cristianismo considerado como religiatildeo universal e absoluta e natildeo apenas como particular alianccedila de Deus com determinado povo natildeo pode deixar de reconhecer a Cristo como Mediador e como Salvador Cristo com efeito por sua

corporeidade e espiritualidade integra em si relaciona e torna legiacutetima toda mediaccedilatildeo possiacutevel no acircmbito do mundo das realidades Assim ldquonadardquo existe que [12] exclua este poder de mediaccedilatildeo Ele existe na palavra no sinal lituacutergico na comunidade eclesial no ofiacutecio na imagem em suma ateacute mesmo nas coisas profanas Natildeo obstante a pluralidade e diversidade desta mediaccedilatildeo pode acontecer que em diferentes eacutepocas e lugares de acordo com os desiacutegnios da graccedila mesmo no Novo Testamento a obrigatoriedade e cognoscibilidade da uacutenica mediaccedilatildeo tenha a sua histoacuteria peculiar Tal histoacuteria da Revelaccedilatildeo tornada definitiva em Cristo no acircmbito do uacuteltimo e eterno ldquoeatildeordquo pode tambeacutem conforme disposiccedilatildeo divina refletir-se na traacutegica histoacuteria da Cristandade dividida por uma cisatildeo em que transparece a pluralidade das muitas mediaccedilotildees da uacutenica Revelaccedilatildeo Esta divisatildeo eacute para noacutes uma censura Contudo serve-nos tambeacutem de instrumento da graccedila de Deus

A distinccedilatildeo entre Revelaccedilatildeo transcendental e a categorial-histoacuterica aplica-se tambeacutem agrave feacute Daiacute novas luzes para se entender melhor o problema da credulidade enquanto distinta da feacute e intimamente relacionada com ela Quando se considera a precaacuteria descriccedilatildeo da feacute elaborada pelos teoacutelogos vecirc-se que seu caraacuteter auditivo (ex auditu) eacute geralmente proposto de modo aposterioriacutestico e empiacuterico O endereccedilamento da feacute ao ouvinte aparece entatildeo como se da parte deste soacute houvesse uma potecircncia formal para assumir certas proposiccedilotildees verdadeiras sem as investigar devendo apenas aceitaacute-las em sua formulaccedilatildeo exata irrecusaacutevel e fixa A potecircncia aprioriacutestica da feacute ou a credulidade quase natildeo eacute levada em consideraccedilatildeo na teologia catoacutelica Esta credulidade como capacidade aprioriacutestica de crer natildeo deve ser tida na conta de uma potecircncia igual agraves outras uma espeacutecie de sentido de ldquoexigecircnciardquo ou coisa parecida Eacute antes o lado transcendental da Revelaccedilatildeo a potecircncia aprioriacutestica que tem o homem ser transcendental para a comunhatildeo com Deus na graccedila fundada na proacutepria abertura de Deus para se comunicar com a criatura Ambas estas coisas devem ser consideradas em sentido ontoloacutegico natildeo em sentido ocircntico

[13] Toda anaacutelise da feacute catoacutelica apresenta a ldquoautoridade de Deusrdquo como o ldquoobjeto formalrdquo ou o ldquomotivordquo uacuteltimo da feacute Chega-se assim entretanto a um impasse intransponiacutevel Isto porque se considera esta ldquoautoridaderdquo como elemento categorial e aprioriacutestico limitado pelo horizonte do conhecimento humano que a feacute tem que superar para que a Palavra permaneccedila sendo realmente Palavra divina e natildeo seja rebaixada ao niacutevel meramente criatural Se poreacutem na Revelaccedilatildeo e na feacute o proacuteprio Deus autocomunicando-se eacute o objeto crido e o princiacutepio aprioriacutestico de crer se a loacutegica da feacute natildeo eacute uma categoria aprendida de fora mas ndash do mesmo modo que a loacutegica natural ndash eacute a proacutepria estrutura ontoloacutegica e interna do ato de feacute se a mensagem exterior da feacute natildeo eacute o seu motivo aposterioriacutestico mas sua razatildeo aprioriacutestica ndash entatildeo todo este problema perde o seu sentido Assim se compreenderaacute que um falso ato material de feacute deixa de ter um objeto formal meramente aprioriacutestico e pode vir a ser um ato de feacute autecircntico

Somos forccedilados a interromper aqui estas observaccedilotildees Em tudo o que dissemos pudemos apenas indicar algumas perspectivas de soluccedilatildeo de um problema que desde os tempos do Modernismo eacute atual mas que contudo tem sido de certo modo postergado Mesmo por este pequeno exemplo ao qual poderiacuteamos acrescentar o de muitos outros problemas teoloacutegicos ainda natildeo solucionados vemos como custosa e lentamente avanccedila o trabalho teoloacutegico Eacute necessaacuterio ter paciecircncia e envidar esforccedilos perseverantes

Necessaacuterio eacute ainda admitir-se que a teologia natildeo cria a feacute no cristatildeo Ele eacute apenas chamado a pocircr-se a serviccedilo da feacute Da feacute hoje

Ao exprimir eu agrave ilustre Faculdade Catoacutelica de Teologia da Universidade de Munster o meu penhorado e cordial agradecimento pela distinccedilatildeo que me outorgou faccedilo-o com a consciecircncia de que tambeacutem os operaacuterios que realizam a construccedilatildeo da teologia trabalham em vatildeo se o Senhor natildeo cooperar com eles Noacutes [14] devemos trabalhar enquanto eacute dia Toda theologia mentis eacute apenas um auxiacutelio para a theologia cordis et vitaelig Enfim em toda theologia a rigor soacute um caminho se abre o caminho que se perde no segredo de Deus misteacuterio impenetraacutevel que todavia se potildee ao nosso alcance

Joseph Ratzinger

EXAME DO PROBLEMA DO CONCEITO DE TRADICcedilAtildeO

PRIMEIRA PARTE

Revelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeo

Ensaio de anaacutelise do conceito de Tradiccedilatildeo

I ndash Posiccedilatildeo do Problema

[15] O modo como Cristo Palavra expressa da Revelaccedilatildeo permanece presente na Histoacuteria e vai ao encontro dos homens pertence agravequelas questotildees fundamentais em torno das quais se dividiu a Cristandade ocidental no seacuteculo da Reforma A luta prende-se agrave ideacuteia de ldquoTradiccedilatildeordquo pela qual a Igreja catoacutelica procurou exprimir certa forma de comunicaccedilatildeo da Revelaccedilatildeo ao lado da outra contida na Sagrada Escritura Isto com o fim de desfazer um duplo protesto A Tradiccedilatildeo designava primeiro as chamadas consuetudines ecclesiaelig tais como a santificaccedilatildeo do domingo a oraccedilatildeo voltada para o Oriente o costume de jejuar as vaacuterias becircnccedilatildeos e consagraccedilotildees e outras praacuteticas semelhantes em vigor na piedade dos fieacuteis ao tempo da baixa Idade Meacutedia Tais praacuteticas ora nobres ora ridiacuteculas embora transformassem a Igreja numa espeacutecie de casa assombrada cheia de acircngulos e cantos justificavam-se sob o tiacutetulo de ldquotradiccedilatildeordquo e legitimavam-se como parte essencial da vida cristatilde1

Lutero a quem a simplicidade do Evangelho como urna forccedila explosiva tinha sobremodo impressionado preferiu agrave luz de sua [16] ideacuteia de Deus juiz misericordioso natildeo ver na Tradiccedilatildeo nada mais do que ninharias com as quais a humanidade se ilude e aparentemente se consola buscando uma evasatildeo ante o abuso da proacutepria existecircncia Ainda mais ele viu na Tradiccedilatildeo o retorno da Lei o predomiacutenio do arbiacutetrio humano sobre a palavra de Deus abuso contra o qual Paulo protestara com tanta veemecircncia e que agora de novo se implantara na Igreja A Confessio Augustana ocupou-se tambeacutem destas coisas destacando uma seacuterie de leis cuja violaccedilatildeo segundo a doutrina corrente era tida como pecado mortal a proibiccedilatildeo do trabalho manual aos domingos e dias santos a interrupccedilatildeo das preces canocircnicas diaacuterias os preceitos do jejum etc E Lutero prosseguia ldquoDe onde tiram os Bispos o direito e o poder de imporem tais prescriccedilotildees aos cristatildeos e de ilaquearem assim as consciecircncias Pedro no capiacutetulo 15 dos Atos dos Apoacutestolos proiacutebe se imponha o jugo sobre os ombros dos disciacutepulos E Paulo diz aos Coriacutentios que a autoridade lhe foi dada para salvar e natildeo para condenar Por que entatildeo multiplicam assim os pecados com tais imposiccedilotildeeshellip Se os Bispos tecircm poder de sobrecarregarem as igrejas com inuacutemeras prescriccedilotildees e de onerar as consciecircncias por que entatildeo a Sagrada Escritura proiacutebe tatildeo frequumlentemente que se faccedilam mandamentos

1 Eacute o que se vecirc claramente pela lista de traditiones feitas no tempo do Conciacutelio de Trento Cf a nota 44 da segunda parte desse livro

humanos e se escravizem os homens Porque chama ela a estas coisas de doutrina de Satanaacutes Foi acaso em vatildeo que o Espiacuterito Santo fez tais advertecircnciasrdquo 2

Lutero identificou aqui a traditio com os abusus Tradiccedilatildeo segundo ele eacute lei humana pela qual o homem se esconde de Deus e pior ainda se levanta contra Ele para tomar nas proacuteprias matildeos a tarefa de sua salvaccedilatildeo em vez de esperaacute-la da libeacuterrima graccedila do Senhor A Tradiccedilatildeo assim entendida como Lei eacute contraposta agrave mensagem da graccedila ldquoDevemos aceitar cada [17] um dos artigos do Evangelho para alcanccedilarmos a graccedila de Deus sem meacuterito nosso atraveacutes da feacute em Jesus Cristo e natildeo pretender merececirc-la mediante praacuteticas do culto inventado pelos homensrdquo3

O problema da Tradiccedilatildeo tornou-se ainda mais agudo devido a um segundo aspecto que de resto natildeo conduziu a nenhum resultado positivo Descobrindo o Evangelho teve Lutero igualmente a impressatildeo de libertar a Palavra de Deus da pesada cadeia do Magisteacuterio eclesiaacutestico que se teria apossado desta Palavra e natildeo mais a entendia em seu verdadeiro sentido empregando-a antes a seu bel-prazer A ideacuteia de que a palavra divina aprisionada na Igreja catoacutelica agrave autoridade do Magisteacuterio ficou privada de sua forccedila viva eacute sempre repetida nos escritos dos Reformadores Melanchton poreacutem fecirc-lo talvez de um modo mais humano e flexiacutevel quando apocircs com reservas a sua assinatura aos artigos luteranos de Esmalca ldquo quanto ao Papa acho eu que jaacute que ele quis abandonar o Evangelho devemos noacutes de nossa parte tolerar (e admitir) para o bem da paz e da unidade a sua superioridade sobre os Bispos superioridade esta que ele possui iure humanordquo 4

Este estado de coisas impregnou outrossim a ideacuteia de Igreja da Confessio Augustana uma vez que aiacute se diz que a Igreja eacute a congregatio sanctorum in qua Evangelium pure docetur et recte administrantur Sacramenta5 Assim a Igreja eacute marcada por duplo aspecto pela pureza da doutrina e pela administraccedilatildeo legiacutetima dos Sacramentos Nem uma palavra sobre o Magisteacuterio Na realidade para a elaboraccedilatildeo do conceito de Igreja este silecircncio da CA natildeo eacute menos importante do que o que ela aiacute diz Eacute um silecircncio evidentemente intencional e denuncia a oposiccedilatildeo dos Reformadores agrave concepccedilatildeo catoacutelica de Igreja [18] entatildeo vigente e ateacute hoje conservada Esta consta de trecircs elementos a fides correspondente ao pure docere a communio que corresponde ao sacramenta e a auctoritas6 O Magisteacuterio aparece aqui como criteacuterio da palavra Eacute o seu fiador Segundo Melanchton daacute-se o contraacuterio a palavra eacute que eacute o criteacuterio do Magisteacuterio Este deve em uacuteltima anaacutelise ser provado pela palavra e pode consequumlentemente ser negado A palavra eacute auto-suficiente e paira sobre o Magisteacuterio como uma grandeza autocircnoma Talvez nesta inversatildeo de relaccedilotildees eacute que estaacute propriamente o contraste entre o conceito catoacutelico e o protestante de Igreja Contradiccedilatildeo paralela se daacute em torno da ideacuteia de Tradiccedilatildeo Com efeito a negaccedilatildeo do Magisteacuterio como criteacuterio da palavra significa a reduccedilatildeo da palavra de Deus agrave Escritura que seraacute entatildeo o

2Art 28 39-42 in Die Bekenntnisschriften der evangelisch lutherischen Kirche Gotinga 1952 p126 3 Art 28 52 Op cit p129 4 Op cit p463 5 Art 7 1 paacuteg 61 6 Sobre este ponto e o seguinte cf J RATZINGER ldquoDas geistliche Amt und die Einheit der Kircherdquo in Catholica 17 (1963) p 165-179

uacutenico sustentaacuteculo autocircnomo e autecircntico da palavra natildeo admitindo a Tradiccedilatildeo como uma grandeza em si

O Conciacutelio de Trento em seu estudo sobre a Tradiccedilatildeo teve diante dos olhos os dois pontos de vista contraacuterios e procurou formular sua resposta levando ambos em consideraccedilatildeo Eacute por isso conveniente analisarmos como estas duas posiccedilotildees se inter-relacionam em face da equiparaccedilatildeo feita por Lutero entre a Traditio e os abusus Em outros termos como os Padres conciliares se colocam diante do dilema dever-se-ia responder aos ataques de Lutero diretamente com uma definiccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo Ou antes de tudo com a reformatio a coerccedilatildeo dos abusus7

No tocante agrave doutrina o Conciacutelio refutou ex professo a censura dos Reformadores sustentando que a palavra natildeo eacute uma realidade autocircnoma pairando acima da Igreja Ela eacute dada pelo [19] Senhor agrave Igreja e natildeo entregue ao capricho dos homens Permanece justamente por isso nas Suas matildeos subtraindo-se ao alcance do alvitre humano Na visatildeo dos Padres de Trento deve no fundo ter parecido uma falta de confianccedila o terem os homens receio da palavra escrita entregue agrave Igreja como se a Igreja pudesse abusar dela Como se se pudesse apelar para a palavra da Revelaccedilatildeo contra a Igreja Estava-se inquestionavelmente certo de que o Senhor que instituiu a Igreja como Seu Corpo haveria de se empenhar em tutelaacute-la contra o perigo de abusar de Sua palavra

Hoje decorridos quatro seacuteculos desde a Reforma podemos confessar que na oposiccedilatildeo que dividia entre si Lutero e o Conciacutelio de Trento tanto depois como antes o dilema que dilacerou a Cristandade ocidental de certo modo jaacute desapareceu Vecirc-se isto pela troca de correspondecircncia entre Harnack e Peterson Peterson ao agradecer o tratado de Harnack Das Alte Testament in den Paulinischen Briefen und in den Paulinischen Gemeiden observou que este em seu cotejo da Escritura com a exegese biacuteblica tinha adotado natildeo o princiacutepio protestante mas o catoacutelico Escreveu Harnack ldquoDizer que o chamado lsquoprinciacutepio formalrsquo do Protestantismo primitivo eacute uma impossibilidade criacutetica e que ao contraacuterio o princiacutepio catoacutelico eacute formalmente o melhor eacute um truiacutesmo Materialmente poreacutem o princiacutepio catoacutelico da Tradiccedilatildeo opotildee-se agrave Biacuteblia muito mais diretamente (As tradiccedilotildees satildeo como ervas daninhas a serem cortadas pela tesoura do Magisteacuterio) A melhor fonte eacute o Novo Testamentordquo 8

Nesta formulaccedilatildeo de certo modo geneacuterica e simplista e na oposiccedilatildeo estabelecida entre os aspectos material e formal vem de novo agrave tona o antigo dilema poder-se-aacute confiar a palavra agrave Igreja sem temor de que ela sob a tesoura do Magisteacuterio ou [20] envolta no mato selvagem do sensus fidelium perca a sua forccedila proacutepria e sua vitalidade Esta eacute a pergunta que os Protestantes fazem aos Catoacutelicos Poder-se-aacute aceitar a autonomia da palavra sem com isto ser esta exposta ao arbiacutetrio dos exegetas aos maus tratos por parte dos historiadores e enfim ao completo desamparo Eis como os Catoacutelicos revidam aos Protestantes Com efeito segundo nossa doutrina natildeo eacute a noacutes que compete decidir se queremos ou natildeo confiar a palavra agrave Igreja Foi o proacuteprio Senhor quem lha confiou Note-se entretanto que quando o Catoacutelico encara seriamente este assunto natildeo deixa de considerar o zelo pela pureza da palavra revelada como um dever

7 Ver as notas 41 e 42 na 2ordf parte 8 Citado in E PETERSON Theologische Traktate Munique 1951 p295

da mais alta importacircncia Ele sabe que natildeo cumpre este dever pelo simples fato de apelar para a inerracircncia da Igreja Fazecirc-lo seria menosprezar o sentido da luta de Lutero em favor da Palavra deixando-se de ver nisto uma salutar advertecircncia e um apelo dirigido agraves almas

Natildeo obstante tudo isto a histoacuteria da controveacutersia natildeo se deteve no decurso dos quatro seacuteculos que se seguiram agrave Reforma Duas diferentes tendecircncias se destacam nas relaccedilotildees entre o Protestantismo e o Catolicismo e entre suas respectivas teologias De um lado uma radicalizaccedilatildeo de cada grupo nos proacuteprios pontos de vista Cada grupo a partir de entatildeo fez sua histoacuteria proacutepria e desenvolveu-a em direccedilatildeo oposta um ao outro Por outro lado a distacircncia mantida entre ambos possibilita maior objetividade em seus julgamentos reciacuteprocos Existe finalmente de parte a parte um renovado esforccedilo por superar as fronteiras com vistas a um encontro

Quem entre os Catoacutelicos empreendeu o mais significativo passo para chegar a uma visatildeo nova do problema da Tradiccedilatildeo mediante a superaccedilatildeo de posiccedilotildees unilaterais e anti-reformistas foi em nossos dias o teoacutelogo dogmaacutetico de Tubinga Josef Rupert Geiselmann Seus esforccedilos foram frutuosos fazendo-se sentir a sua influecircncia inclusive nos estudos preparatoacuterios do [21] Conciacutelio e deram agraves incursotildees do Vaticano II nesta aacuterea aquela marcante atualidade que ainda na primeira sessatildeo levou este problema a transcender do ciacuterculo da luta doutrinal entre as vaacuterias escolas teoloacutegicas para se transformar em uma preocupaccedilatildeo de toda a Cristandade catoacutelica9

A tese de Geiselmann eacute conhecida Basta-nos esboccedilaacute-la rapidamente aqui a fim de lanccedilarmos as bases de uma reflexatildeo que procuraraacute aprofundar mais este assunto e talvez dar um modesto passo agrave frente Geiselmann parte de uma interpretaccedilatildeo nova do sentido dado pelo Conciacutelio ao conceito de Tradiccedilatildeo O tridentino estabelecera que a verdade do Evangelho estaacute contida in libris scriptis et sine scripto traditionibus Isto foi e eacute ateacute hoje interpretado como se a Escritura natildeo contivesse toda a veritas evangelii Portanto natildeo eacute possiacutevel admitir-se a sola Scriptura uma vez que uma parte da Revelaccedilatildeo nos eacute transmitida somente pela Tradiccedilatildeo Geiselmann aproveitou a observaccedilatildeo jaacute antes feita por alguns autores de que na primeira redaccedilatildeo do texto focircra adotada a foacutermula segundo a qual a verdade estaria contida partim in libris scriptis partim in sine scripto traditionibus Estaria aqui claramente expressa a doutrina da divisatildeo da verdade revelada em duas fontes (Escritura e Tradiccedilatildeo) O Conciacutelio abandonou a expressatildeo partim ndash partim preferindo usar o simples conectivo et Geiselmann daiacute conclui afastou-se o Conciacutelio da ideacuteia da divisatildeo da verdade em duas fontes diversas Ou pelo menos natildeo a definiu explicitamente E continua o mesmo autor com isto pode tambeacutem o teoacutelogo catoacutelico aceitar a ideacuteia de uma suficiecircncia material da Escritura Pode ainda mesmo permanecendo catoacutelico defender a opiniatildeo de que a Sagrada Escritura eacute suficiente para transmitir-nos a [22] Revelaccedilatildeo Geiselmann admite consequumlentemente que a sola Scriptura pode conceber-se como uma uacutenica fonte

9 Cf R LAURENTIN Lenjeu du Concile Bilan de Ia premiegravere session Paris 1963 p27-45 Y CONGAR Vatican II Le Concile au jour le jour Paris 1963 p63-71 J RATZINGER Die erste Sitzungsperiode des Zweiten Vatikanischen Konzils Colocircnia 1963 p38-50

material da Revelaccedilatildeo Ele crecirc ainda poder mostrar que a tradiccedilatildeo mais forte eacute a favor desta sentenccedila e que o proacuteprio Conciacutelio de Trento se inclina neste sentido10

Eacute faacutecil de se compreender que semelhante tese tenha obtido o apoio de muitos em face das novas possibilidades de encontro entre Catoacutelicos e Evangeacutelicos possibilidades estas que a posiccedilatildeo de Geiselmann parece favorecer11 Que esta tese na realidade constitua um passo consideraacutevel neste sentido parece ser incontestaacutevel Todavia tatildeo logo a analisemos mais de perto em seus fundamentos histoacutericos e reais surge de pronto toda uma seacuterie de dificuldades graves a tornarem impossiacutevel a sua aceitaccedilatildeo

Sobre o aspecto histoacuterico deste problema apresentaremos vaacuterias observaccedilotildees na segunda parte deste nosso opuacutesculo Entrementes consideremos de imediato o lado praacutetico deste assunto Seu exame provoca inicialmente esta pergunta que significa propriamente a expressatildeo ldquosuficiecircncia da Escriturardquo Geiselmann como teoacutelogo catoacutelico que eacute natildeo deixa de sustentar os nossos dogmas Ora nenhum dogma catoacutelico eacute provado sola Scriptura Nem os grandes dogmas primitivos sustentados pelo consensus quinquesaeligcularis nem tampouco o de 1854 e [23] menos ainda o de 1950 Em que sentido entatildeo se pode falar em suficiecircncia da Escritura Natildeo ameaccedilaraacute esta converter-se em perigosa fraude pela qual nos enganamos primeiramente a noacutes proacuteprios e em seguida tambeacutem enganamos aos outros (Ou natildeo seratildeo talvez justamente eles que natildeo se enganam) Ou entatildeo pelo menos para sustentarmos de um lado que a Escritura sozinha conteacutem toda a verdade da Revelaccedilatildeo e de outro lado que o dogma de 1950 eacute verdade revelada natildeo deveremos noacutes refugiar-nos em um conceito tatildeo largo de suficiecircncia que na verdade esta palavra venha a perder todo o seu significado

Com isto abre-se a segunda (que de fato eacute a primeira) questatildeo decisiva a saber seraacute verdade que os debates em torno da ideacuteia da suficiecircncia da Escritura resolveram mesmo o problema do conceito de Tradiccedilatildeo Ou ao contraacuterio natildeo estaremos noacutes aqui diante de um problema de raiacutezes muito mais profundas

Nossas observaccedilotildees introdutoacuterias devem ter deixado claro que esta uacuteltima pergunta deve sem duacutevida nenhuma ser respondida afirmativamente A questatildeo da suficiecircncia da Escritura eacute apenas um problema secundaacuterio no acircmbito da distinccedilatildeo muito mais importante que foi jaacute antes apontada por noacutes ao tratarmos dos conceitos abusus e auctoritas e que gira em torno do nexo entre a autoridade da Igreja e a autoridade da Sagrada Escritura Da compreensatildeo disto depende tudo o mais

Para irmos mais adiante torna-se necessaacuterio analisarmos profundamente o assunto natildeo para nos determos no exame dos conceitos tatildeo relevantes de suficiecircncia ou insuficiecircncia da Escritura mas antes para abordarmos em seu tudo o vasto problema da Palavra revelada e presente no coraccedilatildeo dos fieacuteis Torna-se evidente entatildeo que agrave luz das fontes positivas a Escritura e a Tradiccedilatildeo devem ser postas em relaccedilatildeo tatildeo iacutentima que da

10 Ver sobretudo a obra de J R GEISELMANN Die Heilige Schrift und die Tradition Friburgo 1962 principalmente as p91-107274-282 Entre os trabalhos anteriores escritos por Geiselmann sobre o mesmo tema eacute de particular importacircncia o seguinte Das Konzil von Trient uumlber das Verhaumlltnis der Heiligen Schrift und der nichtgeschriebenen Traditionen in M SCHMAUS Die muumlndliche Uumlberlieterung Munique 1957 p 123-206 11 Uma lista de todos os autores que mais concordaram com Geiselmann eacute fornecida por H KUumlNG em sua tese ldquoKarl Barths Lehre vom Wort Gottes als Frage an die katholische Theologierdquo in Einsicht und Glaube publicado por J RATZINGER-H FRIES Friburgo 1963 p 105 nota 25

fonte interna (a Revelaccedilatildeo) brote a pa1avra de Deus viva sob aquela dupla formalidade A Escritura e a Tradiccedilatildeo natildeo podem [24] ser entendidas uma sem a outra no sentido que ambas tecircm agrave luz da feacute O problema ldquoEscritura e Tradiccedilatildeordquo permaneceraacute insoluacutevel enquanto natildeo for reduzido a uma soacute questatildeo a saber a questatildeo ldquoRevelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeordquo e inserida enfim no amplo contexto a que pertence

Eu gostaria de nas paacuteginas seguintes sem entrar em todos os detalhes tentar desenvolver em forma de teses e de maneira positiva o conceito de Tradiccedilatildeo partindo de sua natureza iacutentima com a esperanccedila de que nele descubramos uma parte da resposta aos anseios dos Reformadores Desta maneira toda esta anaacutelise serviraacute de contribuiccedilatildeo para o diaacutelogo interconfessional cuja necessidade tanto os Catoacutelicos como os Protestantes vecircm proclamando de maneira cada vez mais insistente

II - Teses sobre a relaccedilatildeo entre a Revelaccedilatildeo e a Tradiccedilatildeo

1 A Revelaccedilatildeo e a Escritura A primeira tese em aditamento ao conceito patriacutestico de Escritura e Revelaccedilatildeo

poderia enunciar-se nos seguintes termos o fato de existir uma ldquoTradiccedilatildeordquo repousa antes de tudo na diferenccedila que permeia entre estas duas realidades ldquoRevelaccedilatildeordquo e ldquoEscriturardquo A Revelaccedilatildeo exprime propriamente o falar e o agir de Deus em relaccedilatildeo aos homens Designa uma realidade expressa pela Escritura sem ser contudo a proacutepria Escritura A Revelaccedilatildeo por conseguinte ultrapassa a Escritura na mesma medida em que a realidade ultrapassa a sua expressatildeo escrita12 Poder-se-ia [25] tambeacutem dizer que a Escritura eacute o princiacutepio material da Revelaccedilatildeo (Talvez princiacutepio uacutenico talvez um princiacutepio entre outros isto seraacute esclarecido mais adiante) Ela natildeo eacute poreacutem a proacutepria Revelaccedilatildeo Isto era aliaacutes bem sabido dos proacuteprios Reformadores mas comeccedilou visivelmente a ser esquecido no aceso da controveacutersia entre a teologia catoacutelica poacutes-tridentina e a ortodoxia protestante13 Em nosso seacuteculo foram justamente os teoacutelogos evangeacutelicos Barth e Brunner que redescobriram este fato de todo evidente para a teologia patriacutestica e medieval14

O que acabamos de afirmar ficaraacute mais claro se partirmos de outro princiacutepio a Escritura pode ser possuiacuteda sem que se possua a Revelaccedilatildeo Isto porque a Revelaccedilatildeo eacute sempre e em primeiro plano uma realidade a realidade onde se encontra a feacute Aquele

12 Esta afirmaccedilatildeo natildeo tem o sentido de que a Escritura seja uma mera e vazia narrativa de realidades a ela exteriores Antes como o que se segue iraacute demonstrar indica que a Revelaccedilatildeo eacute realizada na Palavra jaacute que eacute por meio de palavras que ela se comunica aos homens Contudo a mera presenccedila da palavra ainda natildeo eacute a Revelaccedilatildeo Esta eacute mais do que simples ldquopresenccedilardquo Com o que ficou dito salienta-se a diferenccedila que existe entre a palavra e seu conteuacutedo Esta diferenccedila natildeo exclui o caraacuteter verbal da Revelaccedilatildeo 13 Cf A GLOEGE Schriftprinzips RGG V 1540-1543 onde se encontraraacute a mais completa bibliografia LthK VII 1104-1115 J R GEISELMAN Offenbarung in H FRIES Handbuch zum Begriff der Offenbarung cf M VERENO - R SCHNACKENBURG - HRIES in Theologischer Grundbergriffe II Munique 1963 p242-250 e a bibliografia aiacute citada 14 Cf W H VAN DER POL Das reformatorische Christentum Einsiedeln 1956 p117-192

que natildeo crecirc acha-se como que coberto por um veacuteu o veacuteu de que fala Satildeo Paulo no terceiro capiacutetulo da segunda epiacutestola aos Coriacutentios15 Ele pode ler a Escritura e saber o que nela se conteacutem Pode ateacute mesmo apreender de modo puramente intelectual o que aiacute eacute significado e como suas ideacuteias se inter-relacionam Todavia natildeo possui com isto a Revelaccedilatildeo A Revelaccedilatildeo eacute sobretudo possuiacuteda quando aleacutem da expressatildeo material que a atesta se potildee tambeacutem em praacutetica o seu conteuacutedo interno por meio da vivecircncia da feacute Com efeito de certo modo se inclui tambeacutem na Revelaccedilatildeo o sujeito recipiente sem o qual ela natildeo pode existir Natildeo se pode pocircr a Revelaccedilatildeo no bolso como se faz com [26] um livro Ela eacute uma realidade viva Exige homens vivos que a recebam que sirvam de ldquolugarrdquo de sua presenccedila

Repetindo o que ateacute aqui dissemos podemos afirmar que a Revelaccedilatildeo sobreexcede de fato a Escritura em dois sentidos

a) em sentido ascendente ela atinge sempre como realidade procedente de Deus o agir divino sobre as criaturas

b) como realidade que se daacute ao homem por meio da feacute ela atinge igualmente a Escritura

Desta diferenccedila entre a Escritura e a Revelaccedilatildeo resulta claramente que de todo independentemente da questatildeo se a Escritura eacute ou natildeo eacute a uacutenica fonte material em rigor nunca existe para o cristatildeo a sola Scriptura (Isto como ficou dito era claro em princiacutepio para os grandes Reformadores e comeccedilou a ser esquecido na chamada ortodoxia protestante) A Escritura natildeo eacute a Revelaccedilatildeo Eacute sim em uacuteltima anaacutelise uma parte desta realidade mais ampla

2 Os diferentes sentidos da Escritura

no Antigo e Novo testamento A problemaacutetica cristatilde da Revelaccedilatildeo ou o problema ldquoEscritura e Tradiccedilatildeordquo situa-se

melhor se considerarmos o duplo aspecto da mesma Revelaccedilatildeo no Antigo e no Novo Testamento A este duplo aspecto corresponde tambeacutem um duplo sentido da Escritura Assim como os dois Testamentos como tais se distinguem essencialmente assim tambeacutem devemos dizer que a ldquoEscriturardquo como um fato natildeo eacute repetida duas vezes do mesmo modo Isto aparece muito claro nos livros neotestamentaacuterios Sob a expressatildeo ldquoEscriturardquo designam eles somente o Antigo Testamento Para eles o AT eacute e permanece sendo ldquoa Escriturardquo cujo sentido se aclara mediante sua confirmaccedilatildeo no evento da [27] vinda de Cristo16 Os livros do NT natildeo jogam uma Escritura nova contra uma Escritura antiga Nem potildeem uma simplesmente ao lado da outra Potildeem sim em face da uacutenica Escritura ou seja do Antigo Testamento o Cristo-evento como o espiacuterito que explica a letra Esta concepccedilatildeo fundamental ilumina tambeacutem a forma da feacute mais antiga e a torna por primeiro compreensiacutevel O ldquoJesusrdquo formal eacute o ldquoCristordquo expresso no Antigo Testamento Natildeo eacute outra coisa No Jesus Histoacuterico o Cristo-mensagem do

15 Cf sobre estas reflexotildees o importante artigo (ἀποκαλύπτω de A OEPKE in ThWNT III p565-597 16 Ver sobre este ponto as preciosas conclusotildees de G SCHRENK art γραφή ndash γράμμα in ThWNT I p749-769 e a p767

Antigo Testamento atinge a sua consumaccedilatildeo Eacute a partir do AT que se entende quem eacute Jesus E o que o Testamento Antigo expressa pode ser visto agrave luz do Cristo-evento

Esta ideacuteia aparece em Paulo ao apresentar ele o Antigo e o Novo Testamentos como Gramma e Pneuma isto eacute letra e espiacuterito (2Cor 3 6-18) Ele chama ao Senhor de Pneuma A Escritura explica-o como sendo o seu sentido o seu conteuacutedo verdadeiro e vivo e natildeo apenas literaacuterio Paulo se refere agrave concepccedilatildeo do Novo Testamento apresentada por Jeremias (3133) Natildeo eacute mais necessaacuteria nenhuma Escritura porque a lei estaacute escrita nos coraccedilotildees Jaacute natildeo eacute necessaacuteria nenhuma doutrinaccedilatildeo vinda de fora porque o proacuteprio Deus instrui os homens Joatildeo exprime idecircntico pensamento em seguimento ao decircutero-Isaiacuteas (5413) quando descreve a era inaugurada por Cristo como o tempo no qual todos satildeo doutrinados por Deus mesmo E o sermatildeo de Pedro em Pentecostes transmitido pelos Atos dos Apoacutestolos (2 14-36) desenvolve a mesma ideacuteia tirada de Joel (3 1-5) Em todos estes casos aparece a era instaurada por Cristo como resposta agrave esperanccedila no advento de um tempo futuro que em uacuteltima anaacutelise haveria de tornar supeacuterflua a Escritura graccedilas agrave presenccedila imediata do Divino Mestre na Sua humanidade

Quando se pondera o sentido destas afirmaccedilotildees torna-se claro [28] que ao reduzir-se a ldquoEscriturardquo aos escritos do Antigo Testamento natildeo se estaacute apenas usando uma terminologia antiga que teria sido adotada por falta de escritos propriamente neotestamentaacuterios e que teria perdido seu sentido na segunda metade do seacuteculo segundo com o iniacutecio do cacircnon do Novo Testamento Ao contraacuterio Aqui se expressa uma consciecircncia que se tornaria mais niacutetida a partir da formaccedilatildeo da proacutepria Escritura neotestamentaacuteria muito ao inveacutes de cessar ou de desaparecer

Uma coisa eacute certa a ldquoEscriturardquo na nova ordem da salvaccedilatildeo inaugurada por Cristo toma um lugar distinto do que lhe cabia no Antigo Testamento Com isto pode-se ver ateacute que ponto o Antigo Testamento tem sentido autocircnomo O AT certamente natildeo aparecia desde o comeccedilo como Testamento do Gramma Escritura em sentido proacuteprio como ocorreraacute na pena de Satildeo Paulo17 Por outro lado manifesta-se realmente a partir de Jeremias e do decircutero-Isaiacuteas o anelo pela superaccedilatildeo do Gramma mediante uma nova e imediata comunicaccedilatildeo do Espiacuterito de Deus simultaneamente com a progressiva formaccedilatildeo de um princiacutepio da Escritura que mais e mais a transformou em Lei Lei esta que natildeo tornaria os homens vivos mas sim mortos

Desta maneira na concepccedilatildeo neotestamentaacuteria aparece o Antigo Testamento como ldquoEscriturardquo em sentido proacuteprio Escritura que atinge o seu verdadeiro significado atraveacutes do Cristo-evento pelo fato de ser ela inserida no contexto vivo da realidade de Cristo Se no Novo Testamento de facto a Escritura cresceu natildeo pode mais ter aquele sentido uacuteltimo e exclusivo que lhe competia no Antigo segundo a concepccedilatildeo paulina Ao contraacuterio Ela eacute a chave com que se abre o Antigo Testamento deixando-se banhar na claridade do Cristo-evento Ela eacute tambeacutem a ponte permanente que conduz a uma nova interpretaccedilatildeo biacuteblica agrave luz [29] de Cristo Num caso e noutro a Escritura natildeo pretende de modo nenhum ser autocircnoma nem ser a fonte uacutenica e exclusiva de sua exegese literal Mas soacute pode ter sentido na realidade espiritual de Jesus Cristo que

17 Ver a apreciaccedilatildeo feita por G VON RAD Theologie des Alten Testaments II Munique 1960 p402-424

permanece junto dos seus todos os dias ateacute ao fim do mundo (Mt 28 20) Apoacutes a subida ao Calvaacuterio Cristo veio de novo no Espiacuterito Santo (como narra Satildeo Joatildeo) e pelo Espiacuterito ensinou aos disciacutepulos o que eles entatildeo natildeo podiam ainda entender enquanto o Senhor estava entre eles sob forma visiacutevel (Jo 16 12)

3 Cristo a Revelaccedilatildeo de Deus

A realidade que se daacute como um acontecimento na Revelaccedilatildeo cristatilde natildeo eacute nada

mais nada menos do que o proacuteprio Cristo Cristo eacute a Revelaccedilatildeo em sentido proacuteprio ldquoQuem me vecirc vecirc o Pairdquo diz ele no Evangelho de Satildeo Joatildeo (14 9) Vale portanto dizer que receber a Revelaccedilatildeo eacute penetrar na realidade de Cristo no Cristo-evento Daiacute procede o paradoxo descrito por Satildeo Paulo ao fazer ele um trocadilho com as palavras ldquoCristo em noacutesrdquo e ldquonoacutes em Cristordquo

Neste contexto a anaacutelise de frases isoladas torna-se secundaacuteria de vez que elas satildeo apenas explicaccedilotildees do uacutenico misteacuterio de Cristo Consequumlentemente cai por si mesma a questatildeo da suficiecircncia interna da Escritura tatildeo discutida desde o aparecimento das obras de Geiselmann Deveriacuteamos isto sim perguntar que significa em linguagem cristatilde a suficiecircncia interna da Escritura ldquoSuficienterdquo eacute soacute a realidade do Cristo-evento Esta pode ser explicada materialmente em maior ou menor grau E de maneira nunca definitiva Partindo deste princiacutepio podem existir tambeacutem outras explicaccedilotildees segundo a Escritura quando se aprofunda mais este assunto

Este mesmo tema pode ser considerado sob outro aspecto E ter-se-aacute entatildeo dado um passo a mais para a frente A aceitaccedilatildeo [30] da Revelaccedilatildeo pela qual aplicamos a noacutes o Cristo-evento vem na linguagem da Biacuteblia sob o nome de ldquofeacuterdquo Assim talvez se entenderaacute mais claramente de que maneira no Novo Testamento a feacute significa a ldquoin-habitaccedilatildeordquo de Cristo Se admitirmos que na Escritura a presenccedila da Revelaccedilatildeo tem o mesmo sentido que a presenccedila de Cristo entatildeo teremos de fato dado um passo adiante Ora na Escritura encontramos a presenccedila de Cristo apresentada de duas maneiras Ela aparece de um lado como jaacute vimos identificada com a feacute (Ef 317) na qual cada um encontra Cristo e se adentra nele penetrando no dinamismo de sua forccedila salvadora Por outro lado a feacute se oculta tambeacutem sob a expressatildeo paulina ldquoCorpo de Cristordquo o que quer dizer que a comunidade dos fieacuteis ndash a Igreja ndash funda a presenccedila de Cristo neste mundo Nela Cristo reuacutene os homens e os faz partiacutecipes de sua presenccedila dinacircmica18

Tomadas juntas estas duas noccedilotildees significam o seguinte a feacute eacute a adesatildeo iacutentima agrave presenccedila de Cristo realidade de Cristo presente da qual a Escritura nos daacute testemunho sem contudo se identificar de modo nenhum com ela Daiacute resulta que a presenccedila da Revelaccedilatildeo se relaciona essencialmente com a ldquofeacuterdquo e com a ldquoIgrejardquo realidades estas que como vimos estatildeo estreitamente ligadas entre si

Voltamos assim ao que foi afirmado na primeira tese a saber que a Revelaccedilatildeo sobreexcede a Escritura em duplo sentido em relaccedilatildeo a Deus por seu lado ascendente e em relaccedilatildeo tambeacutem ao homem que a recebe Esta asserccedilatildeo que a princiacutepio deixamos

18 H SCHLIER ldquoDie Kirche nach dem Brief an die Epheserrdquo in Die Zeit der Kirche Friburgo 1962 p159-186

um tanto vaga encontramo-la essencialmente concretizada na realidade objetiva do Cristianismo

4 A essecircncia da Tradiccedilatildeo

[31] A transmissatildeo ao povo de Deus do Cristo-evento que eacute a Revelaccedilatildeo e que tem sua bi-presenccedila na feacute e na Igreja faz-se atraveacutes da pregaccedilatildeo Pregaccedilatildeo eacute a ldquoex-posiccedilatildeordquo (Aus-legung) do duplo aspecto da Revelaccedilatildeo no Antigo e no Novo Testamento E isto de duas maneiras

a) ela eacute a exposiccedilatildeo do Antigo Testamento agrave luz do Cristo-evento e para o Cristo-evento

b) a partir do Pneuma e da condiccedilatildeo presente da Igreja Este uacuteltimo aspecto eacute possiacutevel pois Cristo natildeo estaacute morto Estaacute vivo Natildeo eacute

apenas o Cristo de ontem Eacute tambeacutem e a fortiori o Cristo de hoje e de amanhatilde o Cristo vivo e presente em sua Igreja que eacute seu Corpo e na qual o seu espiacuterito opera

Isto poderaacute ser melhor compreendido se partirmos da essecircncia da Igreja Como nos ensina o Novo Testamento a mensagem de Jesus eacute antes de tudo uma mensagem escatoloacutegica com vistas ao reino de Deus natildeo com vistas agrave Igreja O fato de existir a Igreja natildeo se opotildee a esta mensagem mas haacute na marcha gradativa das revelaccedilotildees de Cristo uma segunda possibilidade Assim a atividade dos Doze depois de Pentecostes aponta natildeo para a Igreja mas para o reino de Deus Informam-nos os Atos dos Apoacutestolos que os Doze natildeo se ocuparam primordialmente em missionar os povos Esforccedilaram-se antes muito mais em converter Israel criando deste modo as condiccedilotildees preacutevias para a implantaccedilatildeo do reino De iniacutecio uma seacuterie de obstaacuteculos histoacutericos entre os quais deveriacuteamos citar antes de tudo o martiacuterio de Estevatildeo o supliacutecio de Tiago e por fim o fato decisivo da prisatildeo e da libertaccedilatildeo de Pedro Tais fatos levaram a comunidade primitiva segundo dizem as fontes a reconhecer como definitivo o malogro do esforccedilo de converter Israel E consequumlentemente forccedilaram os Apoacutestolos a partir em busca dos gentios e a cuidar [32] assim da Igreja e natildeo do reino Eles o fazem segundo se depreende das passagens referidas e principalmente dos esclarecimentos do capiacutetulo 15 dos Atos dos Apoacutestolos como uma nova opccedilatildeo feita sob a accedilatildeo do Espiacuterito Santo Com isso iniciou-se uma nova interpretaccedilatildeo da mensagem de Cristo sobre a qual a Igreja essencialmente repousa19

19 Cf as decisivas conclusotildees de E PETERSON ldquoDie Kircherdquo in Theologische Traktate Munique 1951 p 409-429 H SCHLIER Die Entscheidung fuumlr die Heidenmission in der Urchristenheit Die Zeit der Kirche p 90-107 Parece-me certo que nem a anaacutelise da tradiccedilatildeo sinoacutetica relativa agrave mensagem de Jesus e seu caraacuteter escatoloacutegico nem o estudo da histoacuteria da Igreja primitiva com base no material fornecido pelos Atos dos Apoacutestolos autorizam qualquer outra conexatildeo entre a mensagem do reino e a pregaccedilatildeo da Igreja Daiacute natildeo se segue de modo nenhum ndash como muitas vezes se teme ndash que a cruz seja um acidente secundaacuterio que em rigor poderia ter sido evitado Ao contraacuterio A estrutura da Igreja moldada sobre a cruz eacute fundamental porque aiacute eacute que por primeiro se encontra a confirmaccedilatildeo da importacircncia da liberdade humana de Cristo e da sua Paixatildeo bem como a iacutentima dependecircncia da Igreja para com a Cruz donde ela procede

Este fato que baseia o estabelecimento definitivo da Igreja sobre uma decisatildeo tomada ldquono Espiacuterito Santordquo eacute o fundamento para se afirmar que existe uma interpretaccedilatildeo eclesial do Novo Testamento do mesmo modo que existe uma exegese cristoloacutegica do Antigo Daiacute podermos estabelecer as seguintes teses ou proposiccedilotildees agrave luz da analogia fidei

a) Existe uma teologia veterotestamentaacuteria do Antigo Testamento que o exegeta

deduz de seu conteuacutedo interno e que se desenvolve em uma seacuterie de camadas superpostas Segundo ela os textos antigos devem ser relidos e de novo expostos agrave luz dos novos acontecimentos O fenocircmeno da aplicaccedilatildeo dos textos agraves situaccedilotildees novas do desdobramento da Revelaccedilatildeo mediante nova [33] apresentaccedilatildeo do Antigo Testamento estrutura jaacute de modo essencial o conteuacutedo interno veterotestamentaacuterio20

b) Existe uma teologia neotestamentaacuteria do Antigo Testamento que natildeo coincide com

a referida teologia veterotestamentaacuteria Estaacute contudo estreitamente ligada com ela na unidade da analogia fidei21 Talvez partindo daqui se possa esclarecer o que significa a analogia fidei entre Os dois Testamentos A teologia neotestamentaacuteria do Antigo Testamento natildeo eacute como ficou dito idecircntica agrave teologia histoacuterica veterotestamentaacuteria Ao contraacuterio Re-exposiccedilatildeo feita agrave luz do Cristo-evento ela natildeo procede soacute da mera consideraccedilatildeo histoacuterica do Antigo Testamento Sendo embora em seu pleno conceito uma interpretaccedilatildeo relacionada com o Antigo Testamento contudo nada faz com que ela seja internamente estranha agrave sua essecircncia ainda que soacute de fora o atinja Ela amplia a forma estrutural do Antigo Testamento que assim interpretado revive e cresce

c) Existe uma teologia neotestamentaacuteria do Novo Testamento paralela agrave teologia veterotestamentaacuteria do Antigo Ou seja a teologia que o exegeta como tal pode deduzir do conteuacutedo interno do Novo Testamento eacute tambeacutem esta conhecida e estruturada mediante a aplicaccedilatildeo do Antigo Testamento agraves novas situaccedilotildees

d) Existe uma teologia eclesial do Novo Testamento que noacutes [34] chamamos Dogmaacutetica Ela se relaciona com a teologia neotestamentaacuteria do Novo Testamento do mesmo modo que a teologia neotestamentaacuteria do Antigo se relaciona com a respectiva teologia veterotestamentaacuteria Aquele ldquomaisrdquo (das Mehr) que distingue propriamente a Dogmaacutetica da teologia biacuteblica eacute o que designamos com a palavra Tradiccedilatildeo Aliaacutes tambeacutem aqui devemos salientar que a teologia eclesiaacutestica neotestamentaacuteria pela mesma razatildeo natildeo eacute simplesmente idecircntica agrave teologia neotestamentaacuteria interna e

20 Cf H GROSS Motivtransposition als Form- und Traditionsprinzip im Alten Testament in H VORGRIMLER Exegese und Dogmatik Moguacutencia 1962 p134-152 e a bibliografia aiacute fornecida G v RAD Theologie des Alten Testaments II Munique 1960 p332-339 396-401 21 A diferenccedila entre as duas teologias do Antigo Testamento foi vivamente exposta por R BULTMANN ldquoWeissagung und Erfuumlllungrdquo in Glauben und Verstehen II Tubinga 1952 p162-186 - Sobre as necessaacuterias correccedilotildees a se fazerem para que se torne visiacutevel a base histoacuterica do que a teologia sistemaacutetica denomina ldquoanalogia fideirdquo cf G v RAD op cit p329-424 (entre outras) e principalmente a p 420 nota 25 e a p422 nota 29 Sobre o tema ldquoanalogia fideirdquo em ambos os Testamentos cf tambeacutem E PRZYWARA Alter und Neuer Bund Viena-Munique 1956

histoacuterica do Novo Testamento Ultrapassa-a sem contudo ser-lhe puramente externa Com efeito no Novo Testamento comeccedila jaacute o processo da exposiccedilatildeo pela Igreja das verdades reveladas A teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento processa-se dentro dele proacuteprio como de modo clariacutessimo se percebe na histoacuteria da Revelaccedilatildeo sinoacutetica22

Eacute oportuno fazermos ainda uma pequena observaccedilatildeo se cotejarmos atentamente a teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento com a Dogmaacutetica reconheceremos que se impotildee uma outra distinccedilatildeo A Dogmaacutetica como ciecircncia aleacutem da exposiccedilatildeo eclesiaacutestica do Novo Testamento abrange tambeacutem a teologia particular de cada teoacutelogo Neste caso para se falar com precisatildeo dever-se-ia apresentar somente o proacuteprio dogma como teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento

O que acabamos de referir natildeo passa naturalmente de um esboccedilo que necessitaria em seus pormenores de natildeo poucos esclarecimentos e distinccedilotildees a fim de ser completo No caso presente entretanto damos por suficiente este esboccedilo Resumindo o que ateacute aqui expusemos podemos agora destacar vaacuterias ldquoraiacutezesrdquo da Tradiccedilatildeo e apontar vaacuterias camadas em seu seio [35] lordf raiz a maior amplidatildeo da ldquoTradiccedilatildeordquo em referecircncia agrave ldquoEscriturardquo

2ordf raiz o caraacuteter especiacutefico da Revelaccedilatildeo neotestamentaacuteria como Pneuma em contraste com o Gramma Eacute o que na linguagem de Bultmann se poderia chamar de sua condiccedilatildeo de ldquonatildeo-objetordquo (Nichtobjektiviertbarkeit) A praxe eclesiaacutestica e a teologia medieval expressaram este aspecto ao sobreporem a fides agrave Scriptura isto eacute o dogma como regra de feacute agraves minuacutecias da lei escrita23 O dogma eacute como a chave hermenecircutica da Escritura que em uacuteltima anaacutelise sem o auxiacutelio da hermenecircutica ficaria sendo algo fechado

3ordf raiz o caraacuteter presencial do Cristo-evento e a presenccedila dinacircmica do Espiacuterito de Cristo em seu Corpo a Igreja E consequumlentemente o poder que tem a Igreja de fazer a pregaccedilatildeo do Cristo ontem e hoje pregaccedilatildeo esta cuja fonte se encontra na interpretaccedilatildeo eclesiaacutestica da mensagem do reino transmitida pelos Apoacutestolos

Em conexatildeo com estas trecircs raiacutezes da ideacuteia (ou melhor da realidade) da Tradiccedilatildeo podem distinguir-se na mesma as seguintes camadas

a) Na origem de toda Tradiccedilatildeo estaacute o fato de que o Pai enviou o Seu Filho ao mundo e que o Filho por sua vez se [36] entregou ndash como sinal ndash aos ldquopovosrdquo (παραδίδοται) Esta paraacutedosis original em sua forccedila direta e salvadora

22 Cf por exemplo a rica exposiccedilatildeo de G BORNKMANN Jesus von Nazareth Estutegarte 1956 Sobre a questatildeo aqui estudada cf H SCHLIER Uumlber Sinn und Aufgabe einer Theologie des Neuen Testaments in H VORGRIMLER Exegese und Dogmatik Mainz 1962 p6990 23 O que haacute de melhor sobre este assunto no tocante agrave Patriacutestica seraacute encontrado em HARNACK DG II (1931) p84-116 HARNACK diz na p 87 nota 3 o seguinte ldquoO Cacircnon era de iniacutecio a regra da feacute A Escritura estaacute centrada na verdade Sem duacutevida nenhuma sua autoridade funda-se solidamente no Antigo Testamento e nas palavras do Senhorrdquo ndash Que assim tenha pensado tambeacutem a Idade Meacutedia e que aqui aleacutem da revelatio (da qual falaremos na 2ordf parte deste livro) a fides sobrepondo-se agrave Scriptura estabelece a forma essencial do conceito de Tradiccedilatildeo foi o que tentei demonstrar em meu artigo Wesen und Weisen der auctoritas im Werk des heiligen Bonaventura in Die Kirche und ihre Aumlmter und Staumlnde (Festgabe Kardinals Frings publicado por CORSTEN-FROTZ-LINDEN Colocircnia 1960 p 58-72

prolonga-se na permanente presenccedila de Cristo no σῶμα Χριστοῦ ndash no Seu Corpo a Igreja Assim o misteacuterio integral da presenccedila de Cristo eacute antes de tudo a realidade total transmitida pela Tradiccedilatildeo (fato fundamental e decisivo sempre anterior a todas as explicaccedilotildees particulares mesmo as da Escritura) e reguladora do que deve propriamente ser transmitido

b) A Tradiccedilatildeo existe concretamente como presenccedila na feacute Esta por seu turno como ldquoin-habitaccedilatildeordquo de Cristo precede todas as explicaccedilotildees particulares e frutuosa e viva ldquoexplicita-serdquo (explizierend) atraveacutes dos tempos

c) A Tradiccedilatildeo tem seu oacutergatildeo na plenitude dos poderes da Igreja e portanto naqueles que satildeo os legiacutetimos depositaacuterios destes poderes24

d) A Tradiccedilatildeo exprime-se tambeacutem naquilo que emanado da autoridade da Igreja se tornou regra de feacute (Symbolum fides quaelig) Portanto a questatildeo de se saber se certas proposiccedilotildees foram transmitidas desde o

comeccedilo pela Tradiccedilatildeo ao lado da Escritura ou em outros termos se existe desde o comeccedilo um segundo princiacutepio material e autocircnomo ao lado da Escritura torna-se afinal um problema inteiramente secundaacuterio Talvez lhe devamos responder negativamente

5 A funccedilatildeo da exegese [37] Pelo que ateacute aqui dissemos ficaram esclarecidas quase que exclusivamente

trecircs pontos os limites da letra da Escritura a liberdade do Espiacuterito Santo e a autoridade da Igreja Acontece poreacutem que a exposiccedilatildeo que fizemos abriga ainda um sentido diverso relacionado com a justa preocupaccedilatildeo de Lutero da qual partimos

Se ficou estabelecido que a Revelaccedilatildeo se faz presente atraveacutes da pregaccedilatildeo e se pregaccedilatildeo eacute exposiccedilatildeo da palavra revelada entatildeo pode e deve agora ao que precede acrescentar-se o seguinte a Tradiccedilatildeo eacute essencialmente e sempre uma exposiccedilatildeo Natildeo existe de maneira autocircnoma e sim como explicaccedilatildeo como exposiccedilatildeo ldquorelacionada com a Escriturardquo

Isto vale para a pregaccedilatildeo do proacuteprio Jesus Cristo realizaccedilatildeo plena da Revelaccedilatildeo e sua exposiccedilatildeo feita com autoridade A pregaccedilatildeo de Jesus Cristo natildeo aparece como algo absolutamente novo na Escritura Isto eacute como algo ainda natildeo atestado no Antigo Testamento Ela ensina isto sim a essecircncia do que jaacute estava escrito e lhe confere uma vida nova que o simples exegeta natildeo pode comunicar-lhe

O que vale para a mensagem de Cristo que permanece a mesma sob diferentes modalidades de exposiccedilatildeo vale tambeacutem para a pregaccedilatildeo apostoacutelica e a eclesiaacutestica Como ldquoTradiccedilatildeordquo ela deve em uacuteltima anaacutelise ser uma exposiccedilatildeo ldquosegundo a Escriturardquo a ela sujeita e com ela relacionada Sem duacutevida natildeo eacute ela uma exposiccedilatildeo no 24 Estas ideacuteias natildeo podem ser desenvolvidas mais detalhadamente aqui como seria de desejar uma vez que em rigor estamos procurando apenas fundamentar o conceito de Tradiccedilatildeo Em razatildeo da brevidade que me impus contentei-me apenas nas teses precedentes com explanar o assunto ateacute ao ponto em que ficasse patente a relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a ldquoIgrejardquo (cf as teses 4 e 5) Para se descer a maiores detalhes dever-se-ia analisar tambeacutem o conceito de Igreja que supomos conhecido do leitor Para isto cf a nota 6 onde citamos nosso livro sobre o Ofiacutecio e a unidade da Igreja Encontram-se aiacute algumas observaccedilotildees sobre o assunto de que ora tratamos

sentido de mera interpretaccedilatildeo exegeacutetica Mas sim na autoridade espiritual recebida do Senhor a qual se consuma na existecircncia plena da Igreja em sua feacute em sua vida e em seu culto Contudo ela permanece sendo (mais ainda do que o Cristo-evento em que se funda a Igreja) uma ldquoex-posiccedilatildeordquo (Aus-Legung) comprometida com a Histoacuteria e com a Palavra [38] Exprime-se deste modo a sua ligaccedilatildeo com a accedilatildeo concreta de Deus nesta mesma Histoacuteria e em seu caraacuteter de fato histoacuterico uacutenico (o ἑφάπαξ ldquoo ocorrido uma soacute vezrdquo) A realidade cristatilde da Revelaccedilatildeo eacute tatildeo essencial quanto ldquoeternardquo e definitiva Resulta daiacute a unidade entre o Cristo da Feacute e o Jesus da Histoacuteria o Jesus histoacuterico natildeo eacute senatildeo o Cristo da Feacute ainda que a feacute seja sempre algo mais do que a histoacuteria

Segue-se que do mesmo modo que existe um ofiacutecio de custoacutedia da Revelaccedilatildeo por parte da Igreja ofiacutecio por ela mesma atestado existe tambeacutem um ofiacutecio de custoacutedia da mesma Revelaccedilatildeo por parte da exegese que penetra o sentido literal da Escritura e defende a uniatildeo do Logos com a carne contra qualquer perigo de gnose Existe portanto por assim dizer algo como uma autonomia especiacutefica da Escritura como regra objetiva e sob muitos pontos de vista esclarecedora do Magisteacuterio eclesiaacutestico Esta era sem duacutevida uma exigecircncia legiacutetima de Lutero que ainda natildeo foi devidamente acolhida na Igreja catoacutelica por parte do Magisteacuterio cujos limites internos nem sempre foram claramente entendidos

Dever-se-ia partindo daqui salientar uma dupla criteriologia em se tratando da feacute De um lado haacute o que a Igreja antiga chamou de ldquoregra da feacuterdquo norma reguladora da palavra revelada contida na Escritura e sua exposiccedilatildeo Esta praeligscriptio da posse da Escritura como proacutepria segundo Tertuliano exclui a possibilidade de qualquer uso legiacutetimo da mesma Escritura contra a Igreja Por outro lado haacute tambeacutem o limite da littera Scripturaelig ou do sentido literal historicamente fixaacutevel que de acordo com o que ficou dito natildeo constitui nenhum criteacuterio absoluto ou autocircnomo mas sim somente um criteacuterio relativo no confronto da feacute com a ciecircncia O que na Escritura se pode descobrir quer mediante estudo cientiacutefico quer por simples leitura tem a funccedilatildeo de um criteacuterio real a que deve estar atento inclusive o Magisteacuterio em suas explicaccedilotildees Certamente [39] trata-se entatildeo de elementos sub-componentes da ciecircncia que natildeo podem servir para se julgar a feacute mas nela encontram uma instacircncia criacutetica e tecircm tambeacutem um importante papel a exercer o de zelar pela pureza do ἑφάπαξ de tutelar o conteuacutedo da Revelaccedilatildeo e de defender o dualismo histoacuterico carneespiacuterito (ldquodie Sarx der Geschichterdquo) contra os arbiacutetrios da gnose que tende sempre a impor-se

A reformatio na qual estaacute empenhada a Igreja nesta hora histoacuterica tem um papel relevante a desempenhar Eacute a missatildeo de abrir novas perspectivas para o diaacutelogo tentando assim chegar a uma ldquoreformardquo diferente da do passado que culminou com a divisatildeo no seio da Cristandade ocidental Tal missatildeo se exerceraacute em harmonia com o pleno ofiacutecio de testemunho da Igreja que tira seu direito e sua forccedila da presenccedila do Espiacuterito e de Cristo presente em todos os tempos Pois ele eacute sempre o Cristo de agora com a plenitude de seus direitos e de seus poderes Ele eacute quem daacute legitimidade e vigor ao testemunho singular e definitivo da Escritura que por sua vez encontra seu pleno sentido na singularidade da accedilatildeo histoacuterico-salviacutefica de Jesus Cristo Ele deu ao Pai seu Corpo crucificado e dando-se a si mesmo santificou para sempre os que o receberam (cf Hb 1014 727) Ele eacute o Cristo ontem hoje e sempre (Hb 138)

SEGUNDA PARTE

Explicaccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo segundo o Decreto do Conciacutelio de Trento

Parece que a completa elucidaccedilatildeo das razotildees que levaram agrave substituiccedilatildeo do

partim-partim pelo et e consequumlentemente agrave pesquisa dos dados do debate tridentino e de sua preacute-histoacuteria aparentemente favoraacutevel agrave suficiecircncia material da Escritura [40] simplifica indevidamente este problema fazendo-nos perder de vista os proacuteprios antecedentes do Decreto do Conciacutelio de Trento

1 A concepccedilatildeo pneumatoloacutegica da Tradiccedilatildeo no esquema fundamental do Cardeal Cervini

a) O conteuacutedo Um balanccedilo histoacuterico e detalhado do problema em seu conjunto exigiria uma

pesquisa exaustiva que natildeo reduzisse o seu acircmbito como o fez Geiselmann em seu livro25 Natildeo eacute nossa intenccedilatildeo proceder a um exame minucioso do assunto no presente trabalho Aqui soacute seratildeo tratados alguns pontos do debate tridentino com o fim de ampliarmos mais o horizonte de nossas reflexotildees

Fundamental para a compreensatildeo dos debates em pauta bem como do Decreto definitivo do Conciacutelio parece-me ser o Discurso do Cardeal Legado Cervini datado de 18 de fevereiro de 1546 [41] cujas linhas gerais se patenteiam tanto no Decreto como em outras decisotildees conciliares26

Tem o discurso de Cervini o meacuterito de mostrar as linhas diretrizes do Decreto de maneira mais clara do que aparecem estas na uacuteltima redaccedilatildeo do mesmo onde elas se diluem muito devido a uma seacuterie de variadas implicaccedilotildees Eacute ainda de grande auxiacutelio para o entendimento do referido discurso uma carta dos Cardeais Legados ao Cardeal Alexandre Farnese de 28 de fevereiro de 1546 Esta carta revela conteuacutedo idecircntico ndash eacute certamente inspirada pelo mesmo Cervini ndash e oferece ainda alguns outros

25 Eacute lamentaacutevel que Geiselmann em sua anaacutelise da contribuiccedilatildeo medieval sobre este assunto se tenha apoiado apenas em argumentos de segunda matildeo portanto de valor histoacuterico discutiacutevel Queira o leitor ver minhas observaccedilotildees a este respeito in Theol-prakt Quartalschrift 1963 p224-227 As novas (e temperamentais) invectivas de Geiselmann in TThQu 144 (1964) p 31-69 em nada modificaram a minha posiccedilatildeo de vez que natildeo trazem nenhuma contribuiccedilatildeo vaacutelida ao assunto Precioso ao contraacuterio eacute o trabalho de Y CONGAR La Tradition et les traditionshellip Essai historique Paris 1960 Importante eacute tambeacutem a obra de J BEUMER Die muumlndliche uumlberlieferung als Glaubensquelle Friburgo 1962 A respeito do Conciacutelio de Trento cf sobretudo aleacutem do estudo fundamental de JEDIN o artigo de E ORTIGUES Escriture et Traditions apostoliques au Concilie de Trente in RSR 36 (1949) p 271-299 K D SCHMIDT Studien zur Geschichate des Konzilis von Trient Tubinga 1925 p 152-209 26 O discurso nos foi transmitido em duas redaccedilotildees A primeira mais curta encontra-se nas Atas do Conciacutelio in CT V 11 A segunda faz parte do diaacuterio de Massarelli (Diarium III) in CT I p484 Quanto ao conteuacutedo os dois textos se completam Na anaacutelise que aqui ensaiamos as duas versotildees satildeo comparadas entre si de modo a fazerem um todo Sobre a posiccedilatildeo de Cervini no Conciacutelio cf H JEDIN Geschichte des Konzils von Trient II Friburgo 1957 p38-40 A descriccedilatildeo do desenrolar histoacuterico dos debates acha-se em JEDIN op cit p42-82 e supomo-la conhecida do leitor de vez que serve de base para a anaacutelise teoloacutegica do Decreto tridentino

esclarecimentos Cervini sustenta no citado discurso que existem trecircs princiacutepios e fundamentos de nossa feacute

1) Os livros sagrados escritos sob a inspiraccedilatildeo do Espiacuterito Santo 2) O Evangelho que Nosso Senhor natildeo escreveu mas ensinou oralmente e

implantou nos coraccedilotildees Parte do Evangelho foi escrita mais tarde pelos Evangelistas enquanto muita coisa foi simplesmente confiada aos coraccedilotildees dos fieacuteis

3) Porque o Filho de Deus natildeo ia permanecer sempre entre noacutes enviou ele o Espiacuterito Santo que haveria de revelar os misteacuterios no iacutentimo dos fieacuteis e de ensinar agrave Igreja toda a verdade ateacute ao fim dos tempos27

[43] Numa segunda redaccedilatildeo mais detalhada do discurso estas mesmas ideacuteias satildeo

desenvolvidas mais amplamente Aiacute lemos que a Revelaccedilatildeo se apresentou de modo diferente em diversos tempos

1) Nos Patriarcas cuja feacute eacute atestada na Escritura a que chamamos de Antigo Testamento

2) Em Jesus Cristo que implantou o seu Evangelho natildeo por escrito mas oralmente natildeo in charta mas in corde Das coisas que emanaram de Cristo (quaelig a Cristo emanarunt) algumas foram escritas outras permaneceram nos coraccedilotildees dos homens (quaeligdam in cordibus hominum relicta fuerunt) Todo o Evangelho de Cristo que consta desta dupla modalidade forma (tendo como primeiro princiacutepio o Antigo Testamento) o secundum prindipium fidei nostraelig

3) Daiacute surge o terceiro princiacutepio (tertium autem) porque o Filho de Deus natildeo iria permanecer sempre entre noacutes enviou ele ao mundo o Espiacuterito Santo que haveria de explicar os misteacuterios de Deus e tudo o que fosse ainda obscuro para os homens28 De modo semelhante a citada carta ao Cardeal Farnese fala de dois passos (due

passi) Um eacute que a Revelaccedilatildeo de Nosso Senhor natildeo foi totalmente escrita mas permaneceu em parte contida nos coraccedilotildees dos homens e na Tradiccedilatildeo da Igreja O outro [43] passo consiste em confirmar ldquoquello che egrave suggerito lo Spirito Santo in la Chiesa maxime medianti i concilij doppo lAscensione in cielo del Signorerdquo29

Notamos logo que contrariamente ao que esperaacutevamos natildeo dois mas trecircs satildeo os princiacutepios apontados a Escritura o Evangelho e a Revelaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

27 CT V 11 helliptria esse principia et fundamenta nostrae fidei primum libros sacros secundum esse evangelium quod Christus Dominus Noster non scripsit sed ore docuit et in cordibus illud plantavit cujus evangelii nonnulla evangelistaelig scripto mandarunt multa quoque relicta sunt in cordibus hominum Tertium quia non semper filius Dei corporaliter nobiscum mansurus erat misit Spiritum Sanctum qui in cordibus fidelium secreta Dei revelaret et ecclesiam quotidie et usque consummationem saeligculi doceret omnem veritatem et si quid in mentibus hominum dubii occurrisset declararet 28 CT I 484 Digna de nota eacute ainda a foacutermula contida na paacutegina 48514-16 nihil tamen inter scripturas sacras et apostolicas traditianes differt illaelig enim scriptaelig hae per insinuationem habentur utraeque tamen a Spiritu Sancto eodem modo emanataelig Confira-se com CT V 11 19 ab eodem Spiritu et illos (scilicet libros) et istas (scilicet traditiones) descendisse 29 CT X 373

Eacute portanto necessaacuterio observar que sob o termo ldquoEscriturardquo se entende o Antigo Testamento e que aleacutem deste (que eacute Escritura em sentido proacuteprio) aparece como segundo princiacutepio o Evangelho apresentaccedilatildeo do Cristo-evento O Evangelho por sua vez abrange o que estaacute escrito e o que natildeo estaacute escrito mas sim apenas insculpido no coraccedilatildeo dos crentes Deste modo o segundo princiacutepio representa uma vantagem pneumaacutetica sobre o que estaacute escrito o Evangelho eacute nesta concepccedilatildeo algo diferente da letra (Escritura) e soacute em parte vem escrito (Isto natildeo deve ser entendido no sentido de divisatildeo das verdades da feacute fenocircmeno denunciado ldquocom horrorrdquo por Geiselmann Ao contraacuterio Entenda-se apenas no sentido de diferente grau de dignidade no modo de exprimir-se) Em rigor o Evangelho como tal soacute pode ser escrito em parte se considerarmos a sua essecircncia

Finalmente ndash o que eacute muito de se admirar ndash segue-se como terceiro princiacutepio a accedilatildeo visiacutevel do Espiacuterito Santo em todo o tempo da Igreja

Admitimos portanto que o que noacutes geralmente chamamos de Tradiccedilatildeo natildeo aparece aqui como um soacute princiacutepio Biparte-se antes em dois princiacutepios intimamente ligados o ldquoEvangelhordquo princiacutepio apenas em parte identificaacutevel com a Escritura e a accedilatildeo do Espiacuterito Santo no tempo da Igreja Ademais podemos observar que a Escritura do Novo Testamento natildeo aparece como um princiacutepio ao lado da Revelaccedilatildeo apostoacutelica Muito menos como [44] eacute o nosso caso se apresenta a Escritura neotestamentaacuteria juntamente com a veterotestamentaacuteria como uma grandeza uacutenica uma ldquoEscriturardquo soacute agrave qual se poderia contrapor a ldquoTradiccedilatildeordquo como uma segunda grandeza O Novo Testamento em seu conjunto aparece como um segundo e mais amplo princiacutepio ou seja o Evangelho que como tal se opotildee de um lado ao Antigo Testamento e de outro agrave projeccedilatildeo histoacuterica do tempo da Igreja Sua unidade interna eacute evidentemente mais forte e importante do que a sua divisatildeo em escrito e natildeo-escrito Assim o Evangelho como um soacute princiacutepio pode ser contraposto ao Antigo Testamento a despeito desta dupla formalidade A impossibilidade de se representar o Novo Testamento como Escritura impossibilidade esta demonstrada por Satildeo Paulo e pelos primeiros seacuteculos cristatildeos eacute aqui claramente revelada

Ainda uma observaccedilatildeo relativa ao texto a que vimos nos referindo Em nenhum dos dois pontos por noacutes citados no estudo da Tradiccedilatildeo isto eacute nem no elemento contido no primeiro nem no apresentado no terceiro princiacutepio figura a Tradiccedilatildeo como verbal Em ambos os casos ao contraacuterio trata-se mais da Tradiccedilatildeo real com prevalecircncia da realidade sobre as palavras que a atestam Este fato que estaacute claro no terceiro princiacutepio o pneumatoloacutegico vale tambeacutem em relaccedilatildeo agrave implantaccedilatildeo do Evangelho nos coraccedilotildees contida no segundo princiacutepio Tal implantaccedilatildeo vai muito aleacutem do que se encontra expresso na letra da Escritura

Que papel tenham estas ideacuteias exercido nas discussotildees do Conciacutelio pode-se concluir tambeacutem das auctoritates citadas por Cervini entre as quais figuram Jo 16 12 (hellipSpiritus Sanctus suggerethellip) e Fl 3 15 (Quicumque perfecti sumus haeligc sentiamus et si quid aliter sentitis haeligc quoque Deus vobis revelabit) Ambos estes textos satildeo de teor acentuadamente [45] pneumatoloacutegico-presencial30 Que tais ideacuteias natildeo eram

30 CT V 14 e 15 Um exame profundo das auctoritates quer da Escritura quer entre os Santos Padres que neste particular satildeo favoraacuteveis agrave Tradiccedilatildeo seria em si conclusivo para a elaboraccedilatildeo do conceito

estranhas aos Padres conciliares deduz-se ainda de uma seacuterie de outras referecircncias Assim ouvimos o Bispo de Aqui dizer que aleacutem da Sagrada Escritura existe muita coisa na Igreja de Deus que vindo dos Apoacutestolos e passando de geraccedilatildeo a geraccedilatildeo chegou ateacute noacutes assim como muitas outras quaelig etsi scripta Apostoli nobis non reliquerunt per Spiritus Sancti revelationem nobis (tradita) sunt (Tradita estaacute aqui por revelata) 31 Partindo daiacute se poderia descrever a Tradiccedilatildeo justamente como o componente pneumatoloacutegico do Cristo-evento b) A influecircncia do esquema de Cervini em diversas decisotildees conciliares

Eacute verdade que esta concepccedilatildeo tripartida aparece muito atenuada no Decreto

oficial sobre a Tradiccedilatildeo Que poreacutem em suas linhas fundamentais natildeo tenha ela sido de modo nenhum [46] abandonada mostram-no duas outras passagens nas quais o Conciacutelio faz uso por assim dizer in actu das ideacuteias aqui expressas32 Assim na Introduccedilatildeo ao Decreto sobre a Eucaristia (Denz 873) se lecirc Sacrosancta Synodus sanamhellipdoctrinam tradens quam semper catholica Ecclesia ab ipso Jesu Christo Domino Nostro et eius apostolis erudita atque a Spiritu Sancto illi omnem veritatem in dies suggerente (Jo 1416) edocta retinuithellip

Aqui a accedilatildeo proacutepria do Conciacutelio eacute descrita como tradere e a este tradere eacute atribuiacutedo um duplo fundamento De um lado o ensino de Jesus e dos Apoacutestolos (Note-se que este ponto corresponde ao Evangelho segundo a concepccedilatildeo de Cervini E de certo modo tambeacutem pela citaccedilatildeo de Jesus e dos Apoacutestolos se reconhece a dupla modalidade do Evangelho como escrito e como inserido nos coraccedilotildees) De outro lado o ensino dado pelo Espiacuterito Santo que conduz agrave verdade in dies isto eacute no de correr do tempo futuro

O outro texto que pode ser aduzido aqui como prova do que afirmamos encontra-se no Preacircmbulo do Decreto sobre o Purgatoacuterio (Denz 983) Aiacute se lecirc hellipCatholica Ecclesia Spiritu Sancto edocta ex Sacris Litteris et antiqua Patrum traditione in sacris Conciliis et novissime in hac Synodo docuerit A descriccedilatildeo da accedilatildeo proacutepria do

aqui exposto H HOLSTEIN procurou fazer o cotejo destas auctoritates e fecirc-lo de modo admiraacutevel em seu artigo La Tradition dapregraves le Concile de Trente (RSR 47 1959 p367-390 e em particular para o caso em questatildeo a p375) Ele encontra nos textos estudados duas linhas de tendecircncias A linha de Santo Irineu para a qual o testemunho dos Apoacutestolos eacute o de sua personalidade de sua vida e de seu ofiacutecio Aleacutem desta o grupo composto de Tertuliano Cipriano Basiacutelio e Agostinho forma uma corrente que se poderia denominar ldquocerimonialrdquo Oriacutegenes se enquadra em ambos os grupos Existe entre os autores estudados uma seacuterie de textos que se referem agraves observationes consuetudines institutiones e que levam a entender-se a Tradiccedilatildeo neste mesmo sentido Aiacute se vecircem tambeacutem textos que sublinham o aspecto natildeo-escrito do Evangelho enquanto insculpido no coraccedilatildeo dos fieacuteis e aleacutem disso textos que apontam a Igreja como o ldquolugarrdquo da verdade cristatilde 31 CT I 483 (18 de fevereiro de 1546) Em 26 de fevereiro (CT V 18) encontramos Cervini a tratar de novo deste assunto Cf tambeacutem um pronunciamento do Bispo de Fano (CT V 10) nestes termos Cum jam receperimus Scripturas Sacras necessario recipiendaelig sunt traditiones quaelig ab eodem Spiritu Sancto quo scripturaelig dictataelig sunthellip 32 Disto me adverti pela primeira vez atraveacutes de um estudo realizado sob a minha orientaccedilatildeo por CHR LIMBACR a quem sou devedor de muitas informaccedilotildees bibliograacuteficas

Conciacutelio como tradere encontra-se ainda nas declaraccedilotildees sobre o Sacramento da Extrema-Unccedilatildeo (Denz 910)

Finalmente a triacuteplice divisatildeo deixa-se insinuar nas entrelinhas do Decreto sobre a Tradiccedilatildeo embora obscurecida e diluiacuteda por uma seacuterie de acreacutescimos e citaccedilotildees a ele adicionados por outros motivos O Decreto da Tradiccedilatildeo com efeito [47]

1) Fala do Evangelho prometido pelos Profetas na Escritura e refere-se a esta em sentido estrito quer antes quer depois do Antigo Testamento

2) Fala da promulgaccedilatildeo por Cristo do Evangelho que foi transmitido pelos Apoacutestolos sob dupla forma oral e escrita Desta maneira o que natildeo ocorre no exemplo de Cervini aparece aqui antes de tudo o componente pneumatoloacutegico unido com o componente apostoacutelico a ponto de se distinguirem duas modalidades de Tradiccedilatildeo apostoacutelica a que remonta a Cristo e a que remonta ao envio do Espiacuterito Santo Pode-se assim estabelecer que em oposiccedilatildeo ao esquema de Cervini haacute um certo processo de historicizaccedilatildeo que salienta a relaccedilatildeo com o comeccedilo histoacuterico e igualmente parece deslocar o acento da tradiccedilatildeo real para a verbal

3) No epiacutelogo desta parte do Decreto da Tradiccedilatildeo que vimos analisando de novo eacute considerada a ideacuteia da Sagrada Escritura O conceito de Tradiccedilatildeo eacute entatildeo formulado em definitivo e descrito como vel oretenus a Christo vel a Spiritu Sancto dictatas et continua successione in Ecclesia catholica conservatas A referecircncia aos Apoacutestolos eacute omitida Pode-se na verdade considerar tudo isto como uma volta ao que foi dito antes Evidentemente a tradiccedilatildeo ditada pelos Apoacutestolos eacute citada de novo (A expressatildeo continua successione insinua-o) Contudo permanece sempre ainda certa indeterminaccedilatildeo ficando aberta a possibilidade de se encontrar aqui o vestiacutegio do terceiro componente de Cervini o princiacutepio pneumaacutetico propriamente dito Eacute tambeacutem claro que esta ideacuteia eacute discreta sendo adotada uma posiccedilatildeo mais acentuadamente histoacuterica Se agora lanccedilarmos os olhos sobre o que vimos considerando ateacute aqui surgiratildeo

inevitavelmente perguntas qual eacute realmente o sentido proacuteprio da concepccedilatildeo pneumatoloacutegica Como poderia ser perfeitamente entendida a ideacuteia a noacutes estranha de uma revelatio prolongada no tempo em face da unicidade e do caraacuteter [48] histoacuterico da Revelaccedilatildeo que evidentemente era conhecido tanto de Cervini quanto dos Santos Padres e teoacutelogos medievais33

Antes de examinarmos isto devemos esclarecer rapidamente os principais motivos que inspiraram o Decreto tridentino sobre a Escritura e a Tradiccedilatildeo deixando nele um tanto encoberta a concepccedilatildeo pessoal de Cervini Que opiniotildees de teoacutelogos teratildeo intervindo aqui chegando a ser em parte impressas no texto definitivo que resultou do cotejo de muitos pronunciamentos diversos Uma exposiccedilatildeo detalhada deste ponto exorbitaria do acircmbito de nossa anaacutelise Contentemo-nos com umas poucas observaccedilotildees sumaacuterias 33 Sobre este assunto tentei fazer um breve comentaacuterio no meu trabalho ldquoOffenbarung-Schrift-Uberlieferungrdquo in TThZ 67 (1958) p13-27 Cf J BEUMER ldquoDer theoretische Beitrag der Frnhscholastik zum Problem des Dogmenfortschrittsrdquo in ZkTh 72 (1952) p205-226 J de CHELLINCK Pour lrsquohistoire du mot ldquorevelarerdquo in RSR 6 (1916) p149-157

2 Relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a vida da Igreja

em diversas passagens do debate tridentino

Uma primeira seacuterie de motivos entre os quais se compreendem diversos pronunciamentos agraves vezes muito contrastantes em seu aparato exterior patenteia-se na ideacuteia de tradiccedilotildees expressa no Decreto de duas maneiras a) - per manus traditaelig ad nos usque pervenerunt b) - continua successione in Ecclesia catholico conservatas

O que se ocultaraacute sob estas duas foacutermulas que o historiador de hoje tem dificuldades em aceitar justamente por causa do historicismo nelas impliacutecito Podemos dizer que um decisivo papel exerceu aqui o pensamento que sempre aparecia nos debates a saber que as tradiccedilotildees satildeo variaacuteveis que muitas delas foram abolidas pelos Apoacutestolos e que por outro lado se [49] introduziram tradiccedilotildees eclesiaacutesticas que natildeo mais seriam abolidas34 Esta ideacuteia de Tradiccedilatildeo de certo modo se torna clara no tratado escrito sobre o mesmo assunto por Seripando para uso dos Padres Conciliares Seripando fala das Tradiccedilotildees escritas inseridas na Escritura como as claacuteusulas de Tiago o costume de as mulheres se cobrirem com um veacuteu a legislaccedilatildeo sobre o matrimocircnio contida em 1Cor 7 etc E o autor adverte que estas praacuteticas foram abolidas Isto porque embora associadas agrave palavra de Deus na Escritura dela ldquomuito diferemrdquo pois a palavra divina [50] de modo nenhum poderia ser abolida A estas tradiccedilotildees

34 Cabe aqui aduzir uma nova intervenccedilatildeo de Cervini datada de 26 de fevereiro de 1546 (CT I 33 e V 18) onde ele diz que nem todas as tradiccedilotildees procedentes dos Apoacutestolos devem ser conservadas mas somente as que ab Ecclesia receptaelig ad nos usque pervenerunt (V 18) Esta afirmaccedilatildeo anterior agrave formulaccedilatildeo dogmaacutetica feita pelo Concilio deve igualmente ser tida na conta de um autecircntico comentaacuterio do Decreto Aiacute se acentua como condiccedilatildeo essencial das tradiccedilotildees a receptio ecclesiaelig Vem ainda referida uma intervenccedilatildeo do Bispo de Bertinoro em data de 23 de marccedilo (I p 523) na qual ele sublinha que as tradiccedilotildees escritas por vezes foram mudadas Jaacute entre as natildeo-escritas umas foram mudadas e outras natildeo como por exemplo o rito de adicionar aacutegua ao vinho a Crisma a confissatildeo auricular O Bispo de Bertinoro acrescenta que por outro lado alguns pontos existem que permaneceram inteiramente inalterados tais como a crenccedila no descensus ad inferos na virgindade perpeacutetua de Maria a substituiccedilatildeo da observacircncia do saacutebado pela do domingo Temos depois um pronunciamento do Bispo de Bitonto datado de 27 de marccedilo (I 39) Este bispo era de parecer que algumas coisas foram transmitidas pelos Apoacutestolos com a finalidade de serem perpetuamente conservadas (como pertencentes ao depoacutesito da feacute) outras caiacuteram em desuso (como as claacuteusulas de Tiago) e outras enfim foram apenas aconselhadas Assim mesmo na Escritura algumas coisas haacute que foram escritas mas natildeo recebidas em uso por serem mateacuteria de mero conselho Por exemplo ldquose algueacutem te pedir a tuacutenica daacute-lhe tambeacutem o paacutelio se algueacutem te esbofetear numa face oferece-lhe tambeacutem a outrardquo Sem duacutevida excelente ilustraccedilatildeo do sermatildeo da montanha Finalmente consideraccedilotildees idecircnticas podemos encontrar na obra citada de LEJAY Eis outra amostra tirada do discurso de 23 de fevereiro (CT V 13) Nam illaelig (scil traditiones) quaelig ad fidem pertinent eadem sunt recipiendaelig auctoritate qua recipitur evangelium alia autem non ita eum earum plurimaelig immutataelig fuerint ut de bigamis de esu sanguinis et similia De modo semelhante aliaacutes fala tambeacutem Bonuccio (I 525 a 23 de marccedilo de 1546 ecclesia traditiones apostolorum quandoque mutavit verbum autem Dei nunquam mutavit neque mutare potest

Seripando opotildee as natildeo referidas na Biacuteblia e que ora satildeo apostoacutelicas ou oriundas de Conciacutelios universais e aceitas por toda a Igreja ora satildeo particulares e muito variaacuteveis35

Este texto nos leva a uma surpreendente conclusatildeo para Seripando e muitos outros Padres tridentinos36existem tradiccedilotildees na Escritura ldquoTradiccedilatildeordquo natildeo significa o natildeo-escrito Existe quer dentro da Escritura quer fora dela Isto nos conduz a outra pergunta em que consiste para os referidos Padres a essecircncia da tradiccedilatildeo se o que a constitui natildeo eacute o fato de natildeo ser escrita37 Em outros termos como pode a tradiccedilatildeo ser definida positivamente se ela natildeo pode ser suficientemente determinada pela ideacuteia negativa de algo natildeo-escrito

Haacute uma seacuterie de respostas para esta pergunta O proacuteprio Seripando daacute a seguinte definiccedilatildeo Traditiones hoc est Apostolorum seu sanctorum Patrum sanctae et salutares constitutiones38 Mais clara ainda eacute a afirmaccedilatildeo de Cervini citada por Massarelli A objeccedilatildeo do Bispo de Chioggia que aduzia a opiniatildeo de Agostinho de que tudo o que eacute necessaacuterio para a salvaccedilatildeo estava escrito na Biacuteblia respondia Cervini da seguinte maneira Verba illa (isto eacute de Santo Agostinho) formaliter intelligi debent scilicet ad fidem accipiendam ut salvi fiamus Quo vero ad mores et christianam vitam instituendam certo non omnia scripta sunt

[51] E de novo recorre agraves provas tiradas de Jo 1526 e 1426 E indica o princiacutepio pneumatoloacutegico39 O que eacute mais importante eacute que a Tradiccedilatildeo se refere agrave institutio vitaelig agrave presenccedila atuante da Palavra revelada na existecircncia cristatilde Tradiccedilatildeo eacute noutros termos a eficaacutecia da palavra de Deus Sem ela a palavra ficaria esteacuteril 35 Seripando De traditionibus (fevereiro ou marccedilo de 1546) CT XII p517-521 e principalmente a p 521 As expressotildees desta uacuteltima paacutegina chocam-se com a ideacuteia de Cervini sobre a receptio ecclesiaelig 36 Cf o texto citado na nota 11 37 No texto definitivo do Decreto esta ideacuteia natildeo aparece mais Aqui poreacutem com esta primeira designaccedilatildeo expliacutecita da Tradiccedilatildeo vem expressamente acentuado o contraste entre in libris scriptis et sine scripto traditionibus Na segunda redaccedilatildeo o sentido expliacutecito da palavra Tradiccedilatildeo natildeo eacute tatildeo exclusivo Contudo apresenta igual matiz ao se confrontarem as expressotildees omnes libroshellipnec non traditiones ipsas Portanto a ideacuteia positiva da Tradiccedilatildeo que serve de base a esta anaacutelise natildeo deixou de influenciar na redaccedilatildeo do Decreto 38 CT XII 517 39 CT I 494 (26 de fevereiro de 1546) A citada palavra de Santo Agostinho teve o seu papel a desempenhar na discussatildeo em curso Seripando por exemplo a ela se referiu (De traditionibus CT XII 521 47-53) Pensandum denique ne in traditionibus externis vera religio et salutis spes statuatur de quibus Augustinus Omnia quaelig pertinent ad veram religionem quaeligrendam et tenendam divina Scriptura non acuit Conceda-se que nem tudo foi escrito (veja-se Jo 2125) Todavia electa sunt autem quaelig scriberentur quaelig saluti credentium sufficere videbantur Mais do que nos debates do tridentino encontramos aqui um verdadeiro postulado dos Reformadores ldquonatildeo adotar costumes exteriores mas buscar os meios definitivos de salvaccedilatildeo na palavra da Escriturardquo A ldquosuficiecircnciardquo da Escritura de que aqui se fala eacute na verdade algo diverso da suficiecircncia material da mesma Escritura defendida por Geiselmann em sentido muito mais radical Infelizmente ainda natildeo se quis levar na devida consideraccedilatildeo o texto de Santo Agostinho (CT I 494 sugere De doctrina christiana II 9 e De pecc mero et rem II 59) Muito apropriadas nesta ordem de ideacuteias satildeo as observaccedilotildees de H SCHAUF ldquoSchrift und Traditionrdquo in Antonianum 39 (1964) p200-209 feitas no chamado Encontro de Duumlsseldorf Nos textos citados por Schauf com base em Agostinho eacute afirmada a suficiecircncia da Escritura para a salvaccedilatildeo Eacute contudo contestada a sua suficiecircncia para a Igreja em geral De fato esta alternativa parece muito mais vaacutelida e fundamental agrave luz dos postulados dos Reformadores do que a alternativa entre a suficiecircncia ou insuficiecircncia material da Escritura

Na mesma linha de ideacuteias seguem-se duas outras seacuteries de pronunciamentos Vimos na introduccedilatildeo agrave parte anterior que a discussatildeo dogmaacutetica da ideacuteia de

Tradiccedilatildeo foi em parte prejudicada pela questatildeo do meacutetodo a seguir no Conciacutelio dever-se-ia abordar primeiro a reformatio a reforma praacutetica da Igreja como queria o ldquoKaiserrdquo Ou primeiro discutir a questatildeo dogmaacutetica como preferia o Papa40

[52] Este problema do meacutetodo embora resolvido no debate que entatildeo surgiu natildeo afetou diretamente a questatildeo da Tradiccedilatildeo como tal Mas como de fato estas duas questotildees ficaram ligadas entre si daiacute resultou que muitos oradores transformaram a questatildeo do meacutetodo (se se deveria falar dos abusos ou da Tradiccedilatildeo) em parte de sua argumentaccedilatildeo em torno do assunto em pauta41 O problema abusus e o problema Traditio ficaram de tal maneira associados na ocasiatildeo que pareciam formar no fundo um soacute assunto Por isso os oradores ora falavam em sentido positivo ora se pronunciavam em sentido negativo Isto correspondia tambeacutem ao propoacutesito reformista do Conciacutelio as traditiones representavam os abusus aos quais a Igreja se opunha Os Padres estavam cocircnscios de que condenar as traditiones era condenar Os usus ecclesiaelig o modo como a Igreja vivia a sua vida naquela eacutepoca

A outra seacuterie de pronunciamentos que se inclinavam ao mesmo sentido encontramo-la nas proposiccedilotildees que a auctoritas da Igreja apresenta como definitivas indicando uma iacutentima relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a institutio christiana 42

[53] Podemos agora retomar ao nosso ponto de partida e dar resposta agrave pergunta que propriamente significa a foacutermula ad nos usque pervenerunt Objetivamente natildeo se trata aqui de um historicismo que a foacutermula parece expressar Ao contraacuterio Trata-se da fidelidade perseverante da Igreja agrave institutio vitaelig christianaelig da legiacutetima forma de vida cristatilde em concreto no tempo presente da Igreja da institutio christiana que coloca a Escritura em primeiro lugar e que como tal isto eacute como vida decorrente da Escritura eacute fundamentalmente apostoacutelica embora tambeacutem sujeita a mudanccedilas como tudo o que eacute vivo

3 A Tradiccedilatildeo e o dogma eclesiaacutestico

40 Sobre o debate em torno da questatildeo do meacutetodo cf mais uma vez JEDIN op cit p9-82 e outras 41 Assim jaacute no discurso de Cervini antes analisado (CT I 484) no qual ele recorda o dilema do Conciacutelio se nos voltarmos contra as tradiccedilotildees ficaratildeo admirados os Padres Conciliares quasi reformationem fugiamus si ipsam reformationem sumimus iterum objicient traditiones relinquendas non esse Idecircntica era a situaccedilatildeo em que se encontrava o Bispo de Astorga nas duas intervenccedilotildees que fez no dia 23 de fevereiro de 1546 (CT V 13 e 19) segundo Seripando (I 484) helliptraditiones prius pertractandas consulit tantam enim conformitatem abusus qui ex sacris libris descendunt cum iis qui a traditionibus orti sunt habent ut sacris libris et traditionibus absolutis duo illa abusuum genera simul pertractari valeant Segundo Bonuccio (I 484) antes de tudo dever-se-ia tratar das Sagradas Escrituras dos cacircnones apostoacutelicos dos Conciacutelios gerais e das decretais pontifiacutecias Hisque ilusceptis ad abusus ex eisdem dependentes devenire 42 Assim principalmente de acordo com Afonso de Castro (CT I 484) Quoniam ultra traditiones apostolicas ecclesiae auctoritatem habemus quaelig ecclesiaelig auctoritas tonta apud nos est ut aliqui eam maioris roboris quam sacros libros esse sentiant Cf igualmente CT I 491 45 Na mesma linha pode-se ver uma seacuterie de pronunciamentos na citada obra de LEJAY Cf CT XII 524 (Tratado De traditionibus ecclesiaelig fevereiro ou marccedilo de 1546)

Uma segunda seacuterie de motivos eacute expressa no Decreto pela foacutermula traditiones tum ad fidem tum ad mores pertinentes Se como vimos a ideacuteia de Tradiccedilatildeo aparece muito limitada naquilo que os Padres conciliares chamam consuetudines observationes institutiones por outro lado o Procurador do Cardeal de Augsburgo Claudio Lejay SJ se fez o porta-voz de uma expressatildeo que em oposiccedilatildeo agraves traditiones caeligremoniales estabeleceu justamente o sentido da tradiccedilatildeo contida na feacute Seu tratado sobre a Tradiccedilatildeo composto para uso dos Padres conciliares inclui tambeacutem a foacutermula que foi adotada pelo Conciacutelio Aiacute se diz Denique multas veritates tum ad fidem tum ad mores pertinentes Ecclesia novit quas Scriptura aperte et expresse non continet Ele cita como exemplos as palavras persona essentia trinitas no Tratado da Santiacutessima Trindade consubstantialitas na Cristologia do Logos duas naturezas uma soacute Pessoa referentes ao dogma definido pelo Conciacutelio de Calcedocircnia E ainda Cristo Filho uacutenico de Maria duas vontades na uacutenica Pessoa de Cristo uma alma racional aleacutem do espiacuterito divino em Cristo Ana matildee de Maria o costume de fazer sinais da cruz a santificaccedilatildeo do domingo a maneira de rezar com face voltada [54] para o Oriente tudo isto ideacuteias e fatos da tradiccedilatildeo conciliar e da piedade cristatilde43

Cervini que aprovou o discurso de Lejay de 23 de fevereiro de 154644 pocircde dificilmente conciliar esta posiccedilatildeo com a sua expressa na jaacute citada carta ao Cardeal Farnese onde como vimos ele diz que o Espiacuterito Santo falou na Igreja e depois da Ascensatildeo do Senhor fala ainda maxime medianti i concilii45 Ele aiacute viu publicamente sublinhado o fato de que aquele ldquomaisrdquo que a Igreja viva representa em relaccedilatildeo agrave palavra meramente escrita natildeo se referia e natildeo se refere apenas agrave vita instituenda ou como ele prefere agrave caeligremonialia Refere-se tambeacutem agrave essentialia fidei que antes de tudo plenamente se expressam na Tradiccedilatildeo Tambeacutem aqui como se vecirc o interesse dominante natildeo estaacute na apresentaccedilatildeo historicista do assunto a partir do iniacutecio da Igreja mas na ideacuteia de que a influecircncia da Tradiccedilatildeo sobretudo atraveacutes da praxe conciliar eacute de fundamental importacircncia para a feacute para a doutrina crida e natildeo apenas para a piedade viva ou a caeligremonialia

4 O sentido do Decreto tridentino

Se recapitularmos o que ateacute agora dissemos veremos que no conjunto facilmente se podem reconhecer trecircs diferentes concepccedilotildees teoloacutegicas unidas entre si no texto definitivo do Decreto sobre a Tradiccedilatildeo Unidas mas natildeo equiparadas umas agraves outras Pelo contraacuterio apesar de sua grande diferenccedila foram elas apenas [55] mais ou menos justapostas e de novo por forccedila de uma tendecircncia comum relacionadas entre si

1 A concepccedilatildeo de Cervini que designamos como pneumatoloacutegica Com sua doutrina sobre os trecircs principia fidei insiste ele no caraacuteter dinacircmico do Cristo-evento

43 CT XII 523 LEJAY baseia-se evidentemente em listas de tradiccedilotildees confeccionadas naquele tempo (Cf ECK DRIEDO CANO BOTO NOGAROLA) Cf a este respeito Y CONGAR ldquoTraditions apostoliques non eacutecrites et suffisance de lEscrituresrdquo in Istina 6 (1959) p219-306 e principalmente a paacutegina 289 44 CT V 14 45 CT X 373

presente na Igreja Entende assim a Tradiccedilatildeo primariamente como a realidade espiritual da institutio vitaelig christianaelig

2 A concepccedilatildeo que podemos chamar de cerimonial Esta entende a Tradiccedilatildeo essencialmente como a seacuterie de consuetudines existentes ao lado da feacute como os usus ecclesiaelig que os Reformadores falsamente pretendem abolir como abusus Esta concepccedilatildeo chega a condenar a dignidade e Antiguumlidade apostoacutelica das tradiccedilotildees Sua ideacuteia eacute limitada pelo ad nos usque pervenerunt que inclui possibilidade de variar da parte das tradiccedilotildees donde a necessidade de reduccedilotildees Com os termos pervenire e conservare a recepccedilatildeo por parte da Igreja eacute considerada criteacuterio adicional ao lado da Antiguumlidade

3 A concepccedilatildeo que talvez possamos denominar dogmaacutetica Em oposiccedilatildeo agrave fixidez da ideacuteia de Tradiccedilatildeo reduzida agrave consuetudo salienta esta terceira hipoacutetese a extensatildeo do fenocircmeno Tradiccedilatildeo tambeacutem ao acircmbito da fides

Estas trecircs concepccedilotildees deram forma ao texto do Decreto de tal modo que as suas

linhas mestras derivam de Cervini e todo o texto deve ser entendido agrave luz de suas ideacuteias Contudo em duas passagens isto eacute no pervenerunt e no conservatas haacute influecircncia da segunda concepccedilatildeo enquanto no tum ad fidem tum ad mores haacute influecircncia da terceira

Em face destas trecircs concepccedilotildees das quais na realidade existem diversas variantes que tomadas em conjunto satildeo a expressatildeo das ideacuteias dominantes adotadas aparecem as teses de Bonuccio e de Nacchianti tatildeo postas em evidecircncia por Geiselmann como sentenccedilas contraacuterias De fato o parecer de Bonuccio claramente [56] se opotildee agrave segunda concepccedilatildeo (contra a supervalorizaccedilatildeo das consuetudines natildeo per pietatis affectus) ao passo que Nacchianti se levanta antes contra a terceira posiccedilatildeo e salienta a suficiecircncia da feacute recebida por meio da Escritura46

Seria de notar-se ainda que as concepccedilotildees segunda e terceira tecircm algo em comum Ambas opotildeem agrave visatildeo pneumatoloacutegica de Cervini da salvaccedilatildeo sempre presente uma visatildeo mais historicista relacionada com o prolongamento da salvaccedilatildeo operada uma soacute vez ou seja o ἑφάπαξ Na realidade deve-se dizer que embora de um lado tanto a visatildeo presencial de Cervini como tambeacutem a visatildeo historicista do outro grupo se consideradas isoladamente cada qual de per si sejam perigosas se natildeo insustentaacuteveis 46 Aliaacutes de acordo com uma informaccedilatildeo de Cervini parece que o Bispo de Chioggia finalmente renunciou agrave sua tese da suficiecircncia da Escritura na qual se inclinava a recusar as tradiccedilotildees Na carta de Cervini ao Cardeal Farnese de 27 de fevereiro de 1546 lemos hellip Chioggia che (quasi quasi) voleva dire queste traditioni essere superflue perorando che tutto quello che era necessario alla salute era scritto et allegando etiam S Agostino sopra lultimo capitulo di S Giovanni a questo proposito Pure per non poter negare che molte cose appartenenti almeno alli sacramenti non ci fussero venute ex tra ditione et per consequente che non tutte le cose necessarie alia nostra salute erano scritte poiche ebbe fatte molte distintioni concluse che ancor lui accettava queste ldquoche in la chiesa fusse qualque traditione apostolica non scrittardquo (et con queste parole diceva che se ne facesse il decreto) credo che molti sono restati scandalizati di lui (CT X Nr 315 paacutegs 399 411) Cf tambeacutem CT I 494 nota 9 e 495 nota 2 CT V 18 nota 5 e 19 e nota 1 O mesmo protesto que aparece contra Nacchianti manifesta-se tambeacutem na observaccedilatildeo de Massarelli Este chega a chamar aquele de novarum rerum cupidus (1 494 18) e esclarece que reprehensus est a multis (1 494 22) Diante disto eacute de todo destituiacuteda de creacutedito a importacircncia que Geiselmann lhe atribui mesmo se abstrairmos de outras razotildees jaacute conhecidas sobre as quais natildeo precisamos insistir

de outro lado pelo menos tornam possiacutevel uma exata visatildeo do conjunto devido agrave sua muacutetua confluecircncia e limitaccedilatildeo No texto atual estatildeo presentes embora pouco nitidamente ambos os pontos de vista o elemento presencial e o ἑφάπαξ Conveacutem que entendamos assim o texto de modo a considerarmos [57] ambos estes aspectos como essenciais Consequumlentemente reconheceremos que ambos pertencem constitutivamente agrave realidade da vida cristatilde e portanto tambeacutem agravequela parcela do Cristianismo a que damos o nome de Tradiccedilatildeo Estes dois elementos satildeo a presenccedila do Espiacuterito Santo e o seu nexo com o fato singular da salvaccedilatildeo ocorrido uma soacute vez por todas na histoacuteria dos homens

Assim se acharaacute finalmente a resposta agrave pergunta de corno noacutes devemos entender o parecer do Conciacutelio de Trento A primeira e mais importante conclusatildeo parece-me ser o fato de o Conciacutelio ter visto muito claramente o nexo entre Tradiccedilatildeo e Revelaccedilatildeo A seguir elaborou sempre em consonacircncia com a tradiccedilatildeo patriacutestica e medieval um conceito de Revelaccedilatildeo muito menos material do que o que seraacute adotado mais tarde pela teologia dos tempos modernos Somente assim se deve conceber a ideacuteia da Revelaccedilatildeo do Espiacuterito Santo na Igreja Partindo do ramo nitidamente patriacutestico da teologia medieval tatildeo francamente acolhido no discurso de Cervini deveria ser muito menos categoacuterica a opiniatildeo que coloca o teacutermino da Revelaccedilatildeo na morte do uacuteltimo Apoacutestolo Naturalmente esta questatildeo natildeo pode ser aqui estudada com maiores detalhes A sua soluccedilatildeo como entatildeo se apresentava aos teoacutelogos poderia ser hoje impostada apelando-se para as categorias da teologia atual Segundo esta podemos dizer que a Revelaccedilatildeo estaacute encerrada do ponto de vista de seu princiacutepio material Todavia estaacute e continua presente em sua realidade eficaz Noutros termos a Revelaccedilatildeo tem eacute verdade o seu ἑφάπαξ enquanto ela se realizou num determinado dia na Histoacuteria Entretanto ela tem tambeacutem o seu ldquohojerdquo permanente isto eacute o que foi uma vez por todas realizado na feacute da Igreja permanece sempre vivo e operante Assim a feacute cristatilde natildeo se volta apenas para o passado Abrange tambeacutem o presente e o futuro Eacute verdade que a posterior materializaccedilatildeo historicista da ideacuteia de Revelaccedilatildeo aparece jaacute claramente insinuada nos debates tridentinos corno um fato previsto mas ainda [58] natildeo consumado embora talvez se possa dizer que nos textos conciliares ficou definitivamente consagrada a sua aceitaccedilatildeo

Finalmente acrescentemos ainda que com base nos debates do Conciacutelio podemos estabelecer quatro elementos da ideacuteia de Tradiccedilatildeo 1 O aspecto natildeo-escrito da Revelaccedilatildeo ou do Evangelho contido na Biacuteblia e no coraccedilatildeo dos fieacuteis 2 A palavra do Espiacuterito Santo no decorrer de todo o tempo da Igreja

3 A atividade da Igreja nos Conciacutelios 4 A Tradiccedilatildeo lituacutergica e a da vida da Igreja em geral Nestes quatro elementos

que se deve ter sob os olhos pois formam o fundo ideoloacutegico do Decreto expressa-se a realidade uacutenica do tempo presente da Igreja cristatilde Nele estaacute presente todo o passado poacutes-apostoacutelico da Igreja (inclusive o proacuteprio tempo dos apoacutestolos) de modo que toda a sua vida eacute na Sagrada Escritura um elemento central embora natildeo o uacutenico Em suma deve ter ficado claro que o Conciacutelio de Trento a despeito do caraacuteter contrastante e fixo de sua ideacuteia de Revelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeo oferece uma visatildeo muito mais rica destes conceitos do que a que impregnou a mentalidade dos seacuteculos seguintes Justamente por

isso a teologia de hoje pode retirar daiacute novos subsiacutedios novo apoio para suas pesquisas e novas indicaccedilotildees sobre o verdadeiro caminho a seguir

Quadro sinoacutetico do Decreto tridentino sobre a Tradiccedilatildeo

Primeiro princiacutepio conforme Cervini (AT = Escritura)

Sacrosancta œcumenica et generalis Tridentina Synodus in Spiritu Sancto legitime congregata [] hoc sibi perpetuo ante oculos proponens ut sublatis erroribus puritas ipsa EVANGELII in Ecclesia conservetur quod PROMISSUM ANTE PER PROPHETAS IN SCRIPTURIS SANCTIS

Segundo princiacutepio conforme Cervini o Evangelho em parte escrito em parte insculpido nos coraccedilotildees

[59] DOMINUS NOSTER IESUS CHRISTUS DEI FILIUS PROPRIO ORE PRIMUM PROMULGAVIT DEINDE PER SUOS APOSTOLOS TAMQUAM FONTEM OMNIS ET SALUTARIS VERITATIS ET MORUM DISCIPLINAE OMNI CREATURAE PRAEDICARI IUSSIT PERSPICIENSQUE HANC VERITATEM ET DISCIPLINAM CONTINERI IN LIBRIS SCRIPTIS ET SINE SCRIPTO TRADITIONIBUS QUAE AB IPSIUS CHRISTI ORE AB APOSTOLIS ACCEPTAE AUT AB IPSIS APOSTOLIS SPIRITU SANCTO DICTANTE

Seripando Cervini e outros soacute consideram as tradiccedilotildees recebidas pela Igrej (ldquoad nos usquerdquo)

quasi per manus traditae ad nos usque pervenerunt

orthodoxorum Patrum exempla secuta omnes libros tam Veteris quam Novi Testamenti cum utriusque unus Deus sit auctor nec non TRADITIONES IPSAS

Lejay Tradiccedilatildeo contendo natildeo soacute a ldquoconsuetudordquo mas relacionada tambeacutem com a ldquofidesrdquo (foacutermula conciliar)

tum ad fidem tum ad mores pertinentes

Terceiro princiacutepio de Cernini Depois da Ascenccedilatildeo de Cristo o Espiacuterito Santo ensina tambeacutem os misteacuterios de Deus

TAMQUAM VEL ORETENUS A CHRISTO VEL A SPIRITU SANCTO DICTATAS

Seripando Cervini etc soacute satildeo consideradas as coisas recebidas pela Igreja (como acima)

et continua successione in Ecclesia catholica conservatas

Cervini Escritura e Tradiccedilatildeo procedem ambas do mesmo Espiacuterito Santo

pari pietatis affectu ac reverentia suscipit ac veneratur

  • Prefaacutecio
  • SEGUNDA PARTE
  • Explicaccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo
  • segundo o Decreto do Conciacutelio de Trento
Page 3: Revelacao e Tradicao-Joseph Ratzinger (Bom Ler)

IacuteNDICE PrefaacutecioIX

Karl Rahner

Observaccedilotildees sobre o Conceito de Revelaccedilatildeo1

Joseph Ratzinger Exame do Problema do Conceito de Tradiccedilatildeo5

PRIMEIRA PARTE

Revelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeo Ensaio de Anaacutelise do Conceito de Tradiccedilatildeo15 I- Posiccedilatildeo do Problema15 II- Teses sobre a Relaccedilatildeo entre Revelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeo 24

SEGUNDA PARTE Explicaccedilatildeo do Conceito de Tradiccedilatildeo segundo o Decreto do Conciacutelio de Trento39

PREFAacuteCIO

Comparadas com as grandes monografias teoloacutegicas entre as quais se incluem os uacuteltimos volumes da coleccedilatildeo intitulada Quaeligstiones disputataelig as paacuteginas que se vatildeo ler pareceratildeo talvez um tanto isoladas e bastante pobres Todavia o que levou os autores destes dois modestos ensaios agrave ousadia de publicaacute-las inserindo-os no rol de tatildeo importantes obras foi o fato de o assunto aqui tratado ser apenas uma quaeligstio disputata no sentido original da expressatildeo Vale esta observaccedilatildeo tanto para o aparato externo quanto para o conteuacutedo real deste pequeno livro que reuacutene dois opuacutesculos

O primeiro opuacutesculo do presente livro (da autoria de Karl Rahner) focircra jaacute apresentado em linhas gerais na sessatildeo do dia 28 de marccedilo de 1963 do Instituto J A Moehler em Paderborn A mesma informaccedilatildeo se estende tambeacutem agrave segunda parte do segundo opuacutesculo (o de J Ratzinger) cujo texto foi aqui incluiacutedo na iacutentegra A discussatildeo na qual naquela oportunidade tomaram parte entre outros os nossos colegas de Bonn H Jedin e H Schlier contribuindo com estiacutemulos e criacuteticas que muito penhoraram os autores animou-nos a prosseguir nesta pesquisa

Quanto agrave primeira parte do trabalho de Ratzinger consta do texto da aula inaugural ministrada pelo Autor a 28 de junho de 1963 ao assumir ele a caacutetedra de Teologia Dogmaacutetica e de Histoacuteria dos Dogmas na Universidade de Munster O propoacutesito de ampliar o seu trabalho em conjunto sob o ponto de vista histoacuterico e positivo lanccedilando matildeo de abundante material armazenado malogrou mais de uma vez nos meses subsequumlentes pois urgentes tarefas agraves quais os autores se viram forccedilados obrigaram-nos de um modo ou de outro a protelar quaisquer outros planos Entrementes o assunto aqui estudado conservou seu teor de verdadeira quaeligstio disputata

Assim sendo cocircnscios das limitaccedilotildees de seu ensaio os autores acreditando que destes trabalhos possa talvez resultar alguma contribuiccedilatildeo para o debate em torno do tema ldquoTradiccedilatildeordquo ousam publicaacute-los agora em formato de livro Deliberadamente renunciaram agrave preocupaccedilatildeo de fornecer informaccedilotildees bibliograacuteficas e ao intento de fazer obra completa contentando-se apenas com aduzir a documentaccedilatildeo de interesse mais imediato para o seu trabalho

O pequeno ensaio de Karl Rahner em sua redaccedilatildeo atual foi ainda utilizado como texto de uma conferecircncia feita pelo autor ao ensejo de sua diplomaccedilatildeo como doutor honoris causa pela faculdade Teoloacutegica da Universidade Catoacutelica de Munster na Westfaacutelia em maio de 1964 Natildeo lhe pareceu necessaacuterio refundir posteriormente este texto nem muni-la de notas bibliograacuteficas

Queremos repetir este livro nada mais pretende ser do que uma sugestatildeo feita com vistas ao diaacutelogo teoloacutegico em torno do conceito de Revelaccedilatildeo e de Tradiccedilatildeo Temos a esperanccedila de que ao lado dos grandes trabalhos jaacute existentes sobre este assunto tal empreendimento natildeo seja de todo considerado sem valor

Roma outubro de 1964 KARL RAHNER e JOSEPH RATZINGER

Karl Rahner

OBSERVACcedilOtildeES SOBRE O CONCEITO DE REVELACcedilAtildeO

[1] Embora a condenaccedilatildeo de uma heresia por parte da Igreja seja legiacutetima e justa

sob o ponto de vista eclesiaacutestico e em face de uma situaccedilatildeo concreta assumindo mesmo determinada relevacircncia histoacuterica daiacute natildeo se segue sempre e necessariamente que a Igreja tenha dado atendimento e resposta aos anseios e agrave problemaacutetica desta mesma heresia por ela condenada Eacute que o amadurecimento positivo de um problema ndash e os problemas mesmo quando aparecem sob a capa de heresia trazem a marca de seu tempo ndash pode ocorrer muito mais tarde

Seria por certo conveniente que se apurasse ateacute que ponto a delonga de tal amadurecimento teria resultado de um erro traacutegico de uma culpa ou da impotecircncia dos homens Ou entatildeo se natildeo deveria ser considerada mero tributo a ser pago tambeacutem pela Igreja em razatildeo de sua condiccedilatildeo histoacuterica

De modo nenhum se deve contudo pensar que as condenaccedilotildees da Igreja soacute atinjam opiniotildees ou tendecircncias que em seu bojo outra coisa natildeo ocultem a natildeo ser uma vazia e inoacutecua negativa de uma verdade jaacute desde longo tempo claramente compreendida e explicitamente anunciada

Haacute precisamente meio seacuteculo a Igreja foi ameaccedilada pela heresia do Modernismo Entre suas teses e erros fundamentais estaacute o seu conceito especiacutefico de Revelaccedilatildeo Para o Modernismo ndash pelo menos se quisermos consideraacute-lo em seu conjunto e atender agrave sistematizaccedilatildeo desta heresia agrave luz da condenaccedilatildeo feita pela Igreja ndash a Revelaccedilatildeo era uma maneira de se designar o [2] progresso imanente e necessaacuterio dos anseios religiosos do homem histoacuterico Esses anseios se objetivariam nas muacuteltiplas formas de religiotildees histoacutericas que paulatinamente teriam ascendido a uma pureza maior e a uma plenitude mais ampla ateacute chegarem a se concretizar definitivamente no Cristianismo e na Igreja

Tal definiccedilatildeo era elaborada em oposiccedilatildeo ao conceito de Revelaccedilatildeo supostamente tradicional na Igreja Segundo esta a Revelaccedilatildeo outra coisa natildeo seria senatildeo um conhecimento de Deus vindo puramente ldquode forardquo Desta maneira Deus teria falado aos homens e em termos humanos lhes teria comunicado por meio dos Profetas certas verdades que eles por si soacutes natildeo poderiam conhecer A isto se acrescentaram os mandamentos a serem observados

Eacute verdade que a necessidade da graccedila divina para a posse salutar da Revelaccedilatildeo pela Feacute era explicitamente ensinada pela ortodoxia eclesiaacutestica entatildeo em luta contra o Modernismo Contudo natildeo foi devidamente considerada a iacutentima conexatildeo entre a graccedila da Feacute e a Revelaccedilatildeo histoacuterica

O fato de a Igreja ter acusado o Modernismo de imanentismo permite-nos reconhecer hoje um certo extrinsecismo no conceito de Revelaccedilatildeo geralmente apresentado pela teologia daquela eacutepoca contra a qual se insurgia o Modernismo Tal extrinsecismo natildeo era ensinamento oficial Era sim uma hipoacutetese corrente na teologia de entatildeo

Aos poucos e quase desapercebidamente encaminha-se hoje para o seu amadurecimento a resposta agrave problemaacutetica do justo e pleno conceito da Revelaccedilatildeo A

isto a Igreja natildeo dava uma resposta clara Dava-a o Modernismo poreacutem falsa precipitada extemporacircnea e em sentido decididamente hereacutetico

Eacute evidente que este problema e sua devida soluccedilatildeo tecircm uma importacircncia fundamental no confronto entre o Cristianismo e a cultura moderna ainda que isto natildeo seja de ordinaacuterio posto [3] explicitamente em debate Com efeito para o homem de hoje penetrado de um certo humanismo contraacuterio agrave Igreja adepto de um ateiacutesmo lamentaacutevel para o materialismo moderno que considera Deus como um enigma insoluacutevel e identifica o espiacuterito com a proacutepria forccedila motora do mundo o que choca e eacute motivo de escacircndalo natildeo eacute propriamente o Deus absconditus do Cristianismo que habita na luz inaccessiacutevel Eacute sim o ensinamento de que existe uma histoacuteria da Revelaccedilatildeo na qual o proacuteprio Deus indica o uacutenico caminho entre os muitos apontados pelas demais religiotildees histoacutericas e o percorre Ele proacuteprio aparecendo encarnado entre os homens O escacircndalo estaacute se assim podemos dizer na histoacuteria categorial da Revelaccedilatildeo e natildeo na relaccedilatildeo transcendental entre Deus e o homem mediante a qual Deus o cria do nada no abismo de Seu misteacuterio inefaacutevel

O que eacute Revelaccedilatildeo e por que eacute ela apesar de sua origem imediatamente divina o que haacute de mais iacutentimo na histoacuteria humana Como pode ela identificar-se com a histoacuteria da humanidade sem deixar de ser uma singular graccedila de Deus Como pode a Revelaccedilatildeo estar sempre e por toda parte a fim de operar sempre e por toda parte a salvaccedilatildeo sem com isto deixar de estar aqui e agora na carne de Cristo na Palavra dos Profetas que falam precisamente dela na letra da Escritura Poderaacute ela ser por toda parte o ldquomotivordquo iacutentimo a forccedila motora da histoacuteria sendo ao mesmo tempo uma accedilatildeo libeacuterrima de Deus impossiacutevel de ser medida em sentido ascendente a partir da Histoacuteria Natildeo eacute por outro lado o milagre uma graccedila divina ocorrida hic et nunc e realizada ldquouma vez para semprerdquo

A fim de ampliarmos mais o horizonte de nossas reflexotildees e compreendermos melhor a resposta a estas perguntas poderiacuteamos lembrar que a mais comum relaccedilatildeo entre Deus e o mundo-em-devir consiste no fato de ele o mais iacutentimo e absoluto Senhor do mundo conceder ao ser finito uma verdadeira e ativa transcendecircncia em sua evoluccedilatildeo Numa palavra eacute o proacuteprio futuro [4] a causa final que mostra a verdadeira e proacutepria causa real atuando no ser em marcha

Daiacute poder-se dizer que nossa pergunta natildeo tende senatildeo ao mais alto e mais radical conhecimento que hoje aos poucos vamos atingindo isto eacute o conhecimento de como o real e ativo evoluir dos seres superiores partindo dos interiores e a permanente accedilatildeo criadora vinda do alto satildeo apenas os dois lados ambos igualmente verdadeiros e positivos do uacutenico milagre do ser e da Histoacuteria Referimo-nos agrave ideacuteia de que Deus em sua livre relaccedilatildeo para com a sua criatura natildeo eacute uma causa categorial ao lado de outras mas sim o vivo permanente e transcendental fundamento da proacutepria evoluccedilatildeo do mundo Tambeacutem o mundo a seu modo se insere na relaccedilatildeo entre Deus e o homem no fato da Revelaccedilatildeo e na sua histoacuteria E isto na mais ampla medida porque esta histoacuteria na medida mais extrema deve ser igualmente accedilatildeo de Deus e accedilatildeo do homem uma vez que em si ela eacute a mais alta realidade no ser e no evoluir do mundo Se existe esta superaccedilatildeo fundamental de uma total oposiccedilatildeo entre o imanentismo e o extrinsecismo no conceito ontoloacutegico da evoluccedilatildeo e da histoacuteria entatildeo deve tambeacutem a teologia superar esta oposiccedilatildeo na questatildeo que aqui nos ocupa

Com efeito se a teologia catoacutelica ensina e potildee em praacutetica sua doutrina sobre a graccedila santificante e a vontade salviacutefica universal sobre a necessidade da graccedila elevante para a feacute e a doutrina tomista sobre o sentido ontoloacutegico transcendental da graccedila entitativa agrave luz da Revelaccedilatildeo segue-se que sem cair no Modernismo a teologia pode e deve reconhecer a histoacuteria da Revelaccedilatildeo ou simplesmente a Revelaccedilatildeo no sentido de apresentaccedilatildeo categorial histoacuterica Falando mais propriamente diremos a histoacuteria daquela mesma relaccedilatildeo transcendental entre o homem e Deus realizada de modo sobrenatural atraveacutes de uma sempre gratuita participaccedilatildeo divina Tal histoacuteria deve com razatildeo ser chamada de Revelaccedilatildeo

[5] Se transcendecircncia sempre existiu e sempre existe na histoacuteria e se haacute uma criaccedilatildeo transcendental no homem manifestada atraveacutes de algo permanente a que chamamos graccedila santificante que santifica o homem precisamente pela participaccedilatildeo de Deus e natildeo atraveacutes de qualquer outra eficiecircncia casual resulta entatildeo que esta absoluta transcendecircncia verificada na absoluta uniatildeo do Deus misterioso e inefaacutevel que se torna presente no homem tem uma histoacuteria Esta histoacuteria eacute o que chamamos de histoacuteria da Revelaccedilatildeo

O fato da Revelaccedilatildeo tem sempre um duplo aspecto Por um lado a constituiccedilatildeo de uma transcendecircncia sobrenaturalmente elevada do homem como algo permanente gratuito mas nem sempre de todo positivo ou seja a transcendental experiecircncia da absoluta e gratuita participaccedilatildeo da vida divina mesmo quando ela natildeo seja concretamente objetivada em cada um em particular E por outro lado a mediaccedilatildeo histoacuterica a objetivaccedilatildeo concreta desta experiecircncia sobrenaturalmente transcendental que ocorre na histoacuteria considerada em seu conjunto (A voluntaacuteria reflexatildeo teoloacutegica do indiviacuteduo tambeacutem pertence a esta histoacuteria mas natildeo a cria primariamente nem a forma) A experiecircncia transcendental referida chama-se usualmente histoacuteria da Revelaccedilatildeo quando ela eacute realmente histoacuteria da verdadeira exposiccedilatildeo desta experiecircncia sobrenatural e transcendental e natildeo a sua contrafaccedilatildeo Em outros termos quando ela eacute o resultado positivo desta transcendental participaccedilatildeo de Deus pela graccedila Ou ainda quando ela ocorre por disposiccedilatildeo da Providecircncia sobrenatural de Deus Salvador

Se for assim compreendida a unidade e inter-relaccedilatildeo entre Revelaccedilatildeo categorial e Revelaccedilatildeo histoacuterica ou melhor o elemento transcendental e o elemento histoacuterico (mediador) de uma revelaccedilatildeo e de sua histoacuteria seraacute entatildeo tambeacutem visiacutevel uma primordial distinccedilatildeo no que eacute revelado

Revelado eacute Deus como o que se daacute a participar em absoluta e gratuita uniatildeo como Deus ou seja como misteacuterio absoluto Revelada eacute a mediaccedilatildeo histoacuterica desta experiecircncia transcendental [6] como autecircntica como absoluta experiecircncia de Deus Revelada eacute no aacutepice singular e definitivo desta histoacuteria da Revelaccedilatildeo a absoluta e irreversiacutevel unidade entre a participaccedilatildeo transcendental de Deus na humanidade e sua histoacuterica mediaccedilatildeo no uacutenico Deus-Homem Em Jesus Cristo como numa soacute Pessoa o proacuteprio Deus compartilha da humana posse desta mediaccedilatildeo e de sua definitiva manifestaccedilatildeo histoacuterica

Nesta unidade entre a transcendental co-participaccedilatildeo de Deus e sua definitiva mediaccedilatildeo e manifestaccedilatildeo histoacuterica uma vez que se trata da comunicaccedilatildeo de Deus em si mesmo eacute revelado tambeacutem o misteacuterio fundamental do Deus trino enquanto se considera neste misteacuterio somente o aparecimento de Deus conosco na histoacuteria e na

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Eacute Jesus Cristo

transcendecircncia ou seja do Deus trino Pai Filho e Espiacuterito Santo em sua possibilidade de vir a manifestar-se na transcendecircncia do homem e na sua histoacuteria

Enquanto por conseguinte a histoacuteria se abre agrave transcendecircncia o Filho envia o Espiacuterito Enquanto a transcendecircncia constroacutei a histoacuteria o Espiacuterito realiza a Encarnaccedilatildeo do Logos Enquanto o aparecimento de Deus na histoacuteria expressa a impossibilidade de se conservar oculto o que eacute suma realidade o Verbo Encarnado eacute revelado como a auto-expressatildeo do Pai na Verdade Enquanto a vinda de Deus entre noacutes no meio de nossa existecircncia significa o Seu e o nosso amor eacute revelado o Pneuma sob este aspecto de amor

Quando noacutes fazemos a experiecircncia da uniatildeo transcendental e absoluta do Deus conosco compartilhando de Sua vida e aceitando-a por graccedila dele mesmo sabemos mediante o nosso ato de feacute o que significamos ao falarmos sobre a Trindade de Deus e ao exprimirmos de modo breve e sucinto a formalidade e o conteuacutedo da feacute cristatilde da sua Revelaccedilatildeo da histoacuteria desta Revelaccedilatildeo Sabemos o que significamos quando nos fazemos batizar nestes nomes em nome do Pai do Filho e do Espiacuterito Santo

[7] Ao que ateacute aqui estabelecemos em traccedilos gerais e raacutepidos como sendo a ideacuteia fundamental da Revelaccedilatildeo acrescentamos agora alguns esclarecimentos selecionados um tanto arbitrariamente e referentes todos agrave origem da Revelaccedilatildeo e agraves suas consequumlecircncias

Do exposto resulta que a Revelaccedilatildeo quer transcendental quer categorial e sua histoacuteria co-existem com a histoacuteria espiritual de toda a humanidade Isto natildeo eacute erro do Modernismo Eacute uma verdade cristatilde Podemos provaacute-lo muito simplesmente dizendo ser incontestaacutevel que a histoacuteria da salvaccedilatildeo sobrenatural eacute realizada sempre na histoacuteria do mundo o que depois do Conciacutelio Vaticano II se tornou uma verdade ainda mais vivamente impressa na consciecircncia religiosa dos cristatildeos A salvaccedilatildeo poreacutem natildeo pode dar-se sem a feacute Nem a feacute sem uma revelaccedilatildeo proacutepria

Natildeo precisamos esclarecer a possibilidade da Revelaccedilatildeo e da feacute fora da histoacuteria do Antigo e do Novo Testamento nem recorrer a uma teoria catoacutelica especial como a de Straub ou a de Billot Nem mesmo necessitamos apelar para uma tradiccedilatildeo categorial expliacutecita da Revelaccedilatildeo primitiva segundo a qual literaacuteria e doutrinariamente a experiecircncia categorial de Adatildeo teria sido transmitida aos poacutesteros o que agrave luz do conhecimento atual da histoacuteria das religiotildees e dos dois milhotildees de anos da histoacuteria da humanidade natildeo eacute muito provaacutevel

Basta-nos reter (o que eacute testemunhado pelos dados atuais da teologia) que cada homem elevado pela graccedila em sua espiritualidade transcendental representa esta ldquoentitativardquo divinizaccedilatildeo que precede o uso da liberdade mesmo quando esta natildeo eacute por ele compromissada na feacute Significa portanto uma transcendental divinizaccedilatildeo da condiccedilatildeo primitiva do homem o uacuteltimo horizonte do conhecimento e da liberdade sob o qual o homem completa o seu ser Atraveacutes desta existecircncia sobrenatural do [8] homem em geral e de cada um em particular daacute-se uma revelaccedilatildeo de Deus mediante uma participaccedilatildeo gratuita E esta condiccedilatildeo fundamental e gratuita do homem realizada no Deus da vida trinitaacuteria pode tambeacutem ser entendida como Revelaccedilatildeo da Palavra contanto que de um lado natildeo limitemos esta palavra a mera prolaccedilatildeo foneacutetica e de outro natildeo nos esqueccedilamos que esta Revelaccedilatildeo transcendental estaacute sempre inserida num contexto histoacuterico e ainda que a histoacuteria humana natildeo pode prescindir das palavras A

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A Revelaccedilatildeo estaacute aqui Estaacute diante de mm envolve-me Se quero Ela logo Eacute em mim e minha vida toma um novo significado A Revelaccedilatildeo estaacute no hoje tatildeo atuante quanto quando Jesus fala e agia no tempo em que peregrinou na terra Estaacute atuaccedilatildeo de Jesus que corre toda a histoacuteria e chega aos nossos dias daacute-se atraveacutes da Igreja pela accedilatildeo do Espiacuterito Santo

histoacuteria dos homens natildeo consta de fatos mortos mas de fatos cujo sentido representa um elemento importante em cada conjuntura histoacuterica

Natildeo existe nenhuma relaccedilatildeo objetiva de um objeto em particular ou de uma frase na vida transcendental do homem aberto para Deus para o Deus trino e eterno O que eacute mais e o que fundamenta todos os dogmas da Feacute como condiccedilatildeo mesma de sua possibilidade e antes de tudo o que os faz real palavra de Deus eacute o seguinte o horizonte da vida sobrenatural ou a luz da Feacute em si mesma - como diriacuteamos em linguagem tradicional e simples - pressupotildee que se aceitem e se valorizem as palavras da Tradiccedilatildeo

Com tudo isto ndash acentuemo-lo mais uma vez ndash natildeo estamos dizendo que esta transcendental e aprioriacutestica abertura do homem para o Deus da vida eterna e da participaccedilatildeo absoluta possa ser em si mesma ldquoanistoacutericardquo nem que conduza a uma desordem miacutestica que consistiria numa introspecccedilatildeo individualiacutestica alienada da histoacuteria Ao contraacuterio Ela se completa necessariamente na histoacuteria do agir e do pensar do homem E pode fazecirc-lo explicitamente embora de maneira de todo anocircnima Assim sendo nunca existe uma histoacuteria da Revelaccedilatildeo transcendental para um particular soacute Ela eacute individual e coletiva Naturalmente tal histoacuteria em concreto nunca eacute a histoacuteria da Revelaccedilatildeo inteiramente pura em si Ela se daacute em cada um sempre em indissoluacutevel simbiose com o erro com falsas interpretaccedilotildees com a [9] culpa com os abusos Ela eacute histoacuteria justa e pecadora uma vez que o homem eacute simul iustus et peccator estando a histoacuteria da culpa e a da salvaccedilatildeo definitivamente ligadas ateacute ao dia do juiacutezo final

Isto natildeo exclui a existecircncia de uma autecircntica histoacuteria da Revelaccedilatildeo na histoacuteria geral da humanidade Tanto que para o cristatildeo por exemplo uma diacriacutetica distinccedilatildeo na histoacuteria veterotestamentaacuteria entre autecircntica histoacuteria da Revelaccedilatildeo e falsa histoacuteria da religiatildeo soacute eacute possiacutevel tomando-se como criteacuterio a Cristo Tal distinccedilatildeo natildeo eacute possiacutevel partindo-se apenas dos criteacuterios fornecidos pelo Antigo Testamento Com efeito a Sagrada Escritura tem somente a Cristo como regra interna e externa e como norma de sua hermenecircutica Daiacute resulta que a Escritura deve ser considerada pelo cristatildeo como verdadeira histoacuteria da Revelaccedilatildeo do Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo1

Deduzir a ideacuteia da Revelaccedilatildeo da Palavra de Deus oral e escrita eacute atingir o lado transcendental da proacutepria Revelaccedilatildeo Eacute buscar um criteacuterio no cacircnon da Escritura colocando a Palavra de Deus oral e escrita antes de tudo na sua aceitaccedilatildeo pela Feacute interna e gratuita Eacute ldquodesmitologizarrdquo a mensagem externa da feacute em sua formalidade transcendental A histoacuteria da religiatildeo eacute a parte da histoacuteria humana em que a natureza teoloacutegica do homem se realiza tematicamente e efetivamente como em toda histoacuteria Daiacute resulta que a histoacuteria da religiatildeo eacute simultaneamente duas coisas eacute a parte mais expliacutecita da histoacuteria da Revelaccedilatildeo e tambeacutem o lugar espiritual (der geistige Ort) em que as falsas interpretaccedilotildees da experiecircncia transcendental de Deus se manifestam de modo mais notoacuterio e levam agraves piores consequumlecircncias A supersticcedilatildeo opotildee-se nitidamente agrave sua natureza Mas ela eacute ao [10] mesmo tempo estas duas coisas E sempre numa ambiguumlidade de sentido que natildeo conseguimos solucionar

1 Sobre a diferenccedila entre a histoacuteria da Revelaccedilatildeo extra-biacuteblica e a veterotestamentaacuteria (que eacute tambeacutem um pressuposto daquela) cf K RAHNER Schriften zur Theologie V (Einsiedeln 1964) p136-158 principalmente p 148 e 153

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Nota
Parei aqui

Na teologia escolaacutestica catoacutelica nos uacuteltimos seacuteculos em contraste com a teologia medieval pouco ou nada se diz sobre o portador do testemunho da Revelaccedilatildeo aquele que a apresenta atraveacutes do milagre aos homens chamados a crer Refiro-me agrave Revelaccedilatildeo presente no seu portador que eacute o proacuteprio Profeta Do que antes expusemos concluir-se-aacute que a teologia dos preacircmbulos e a da feacute satildeo idecircnticas Por isso tem razatildeo a teologia fundamental quando frequumlentemente trata da analysis fidei em seu acircmbito proacuteprio supondo-se que ela o faccedila considerando a feacute e a aceitaccedilatildeo da Revelaccedilatildeo em sua unidade fundamental O aspecto transcendental da aceitaccedilatildeo da Revelaccedilatildeo e a Feacute satildeo a mesma coisa fundam-se ambas na constituiccedilatildeo do homem gratuitamente marcada pela participaccedilatildeo ontoloacutegica e pelo compromisso livre do homem com este aspecto existencial do ser

A ldquodesmitologizaccedilatildeordquo (Entmythologisierungsfrage) para a teologia catoacutelica concretiza-se e resume-se na capacidade de cognoscibilidade do ldquomilagrerdquo Daiacute perguntar-se eacute possiacutevel uma autecircntica experiecircncia transcendental de Deus jaacute que isto seria como que um compartilhar do imparticipaacutevel (Schon-immer-heim- Univermittelten-Sein) Fundamentalmente natildeo eacute possiacutevel nem eacute necessaacuterio estabelecer uma distinccedilatildeo adequada entre a mediaccedilatildeo do factum brutum (durch das factum brutum) da chamada realidade objetiva e a que se daacute atraveacutes de sua clara explicaccedilatildeo A mediaccedilatildeo (Vermittlung) baseia sua uacuteltima verdade no mediado (im Vermittelten) Portanto a ldquodesmitologizaccedilatildeordquo e a relaccedilatildeo entre a mediaccedilatildeo e o mediado (Vermittlung-Vermittelte) fundamentam-se na diferenccedila e na unidade ontoloacutegica dos aspectos categorial e transcendental e tambeacutem na diferenccedila e na indissoluacutevel unidade entre a histoacuteria e seu significado Esta mediaccedilatildeo enquanto histoacuterica eacute sempre uma histoacuteria com-os-homens ou no sentido mais profundo da palavra uma [11] histoacuteria ldquoeclesialrdquo Eacute portanto tambeacutem um compromisso com a feacute da comunidade dos fieacuteis e da Igreja feacute esta que na comunidade e em cada indiviacuteduo envolve sempre a uniatildeo de sinais e de verdade como na palavra do Sacramento e no Logos Encarnado onde estes dois elementos se encontram inseparaacuteveis mas natildeo se confundem sendo a sua associaccedilatildeo independente do alvitre dos homens

Partindo dessas premissas pode-se entender o que seja a fides implicita agrave qual ateacute hoje os teoacutelogos natildeo deram o destaque devido Fundamentalmente a feacute seja qual for envolve a aceitaccedilatildeo do sinal Soacute eacute feacute verdadeira se assumir o sinal mediante o inefaacutevel misteacuterio da uniatildeo do Deus que se daacute a si mesmo em participaccedilatildeo Soacute eacute feacute verdadeira quando entende a mediaccedilatildeo categorial como presenccedila de sinais (Zeichenhaftigkeit) como se realiza na proacutepria Igreja Assim como a Revelaccedilatildeo natildeo elimina a obscuridade do sacrossanto misteacuterio de Deus antes o cristatildeo amando e adorando a aceita assim tambeacutem o ldquocaraacuteter impliacutecitordquo (Implizitaumlt) da Revelaccedilatildeo e da feacute pertencem agrave sua proacutepria natureza Esta ldquoimplicituderdquo natildeo eacute portanto um elemento que soacute se daria quando as pessoas ldquoincultasrdquo ou ignorantes ouvem a Revelaccedilatildeo e crecircem

Agora podemos entender melhor tambeacutem um conhecido fenocircmeno religioso a tendecircncia a se reduzir o dogma e a religiatildeo a um nuacutecleo de verdades essenciais A unidade existente entre os elementos categorial e transcendental existe tambeacutem na Religiatildeo Tambeacutem esta eacute una e uacutenica E insubstituiacutevel por qualquer outra Devemos dizer tambeacutem que o Cristianismo considerado como religiatildeo universal e absoluta e natildeo apenas como particular alianccedila de Deus com determinado povo natildeo pode deixar de reconhecer a Cristo como Mediador e como Salvador Cristo com efeito por sua

corporeidade e espiritualidade integra em si relaciona e torna legiacutetima toda mediaccedilatildeo possiacutevel no acircmbito do mundo das realidades Assim ldquonadardquo existe que [12] exclua este poder de mediaccedilatildeo Ele existe na palavra no sinal lituacutergico na comunidade eclesial no ofiacutecio na imagem em suma ateacute mesmo nas coisas profanas Natildeo obstante a pluralidade e diversidade desta mediaccedilatildeo pode acontecer que em diferentes eacutepocas e lugares de acordo com os desiacutegnios da graccedila mesmo no Novo Testamento a obrigatoriedade e cognoscibilidade da uacutenica mediaccedilatildeo tenha a sua histoacuteria peculiar Tal histoacuteria da Revelaccedilatildeo tornada definitiva em Cristo no acircmbito do uacuteltimo e eterno ldquoeatildeordquo pode tambeacutem conforme disposiccedilatildeo divina refletir-se na traacutegica histoacuteria da Cristandade dividida por uma cisatildeo em que transparece a pluralidade das muitas mediaccedilotildees da uacutenica Revelaccedilatildeo Esta divisatildeo eacute para noacutes uma censura Contudo serve-nos tambeacutem de instrumento da graccedila de Deus

A distinccedilatildeo entre Revelaccedilatildeo transcendental e a categorial-histoacuterica aplica-se tambeacutem agrave feacute Daiacute novas luzes para se entender melhor o problema da credulidade enquanto distinta da feacute e intimamente relacionada com ela Quando se considera a precaacuteria descriccedilatildeo da feacute elaborada pelos teoacutelogos vecirc-se que seu caraacuteter auditivo (ex auditu) eacute geralmente proposto de modo aposterioriacutestico e empiacuterico O endereccedilamento da feacute ao ouvinte aparece entatildeo como se da parte deste soacute houvesse uma potecircncia formal para assumir certas proposiccedilotildees verdadeiras sem as investigar devendo apenas aceitaacute-las em sua formulaccedilatildeo exata irrecusaacutevel e fixa A potecircncia aprioriacutestica da feacute ou a credulidade quase natildeo eacute levada em consideraccedilatildeo na teologia catoacutelica Esta credulidade como capacidade aprioriacutestica de crer natildeo deve ser tida na conta de uma potecircncia igual agraves outras uma espeacutecie de sentido de ldquoexigecircnciardquo ou coisa parecida Eacute antes o lado transcendental da Revelaccedilatildeo a potecircncia aprioriacutestica que tem o homem ser transcendental para a comunhatildeo com Deus na graccedila fundada na proacutepria abertura de Deus para se comunicar com a criatura Ambas estas coisas devem ser consideradas em sentido ontoloacutegico natildeo em sentido ocircntico

[13] Toda anaacutelise da feacute catoacutelica apresenta a ldquoautoridade de Deusrdquo como o ldquoobjeto formalrdquo ou o ldquomotivordquo uacuteltimo da feacute Chega-se assim entretanto a um impasse intransponiacutevel Isto porque se considera esta ldquoautoridaderdquo como elemento categorial e aprioriacutestico limitado pelo horizonte do conhecimento humano que a feacute tem que superar para que a Palavra permaneccedila sendo realmente Palavra divina e natildeo seja rebaixada ao niacutevel meramente criatural Se poreacutem na Revelaccedilatildeo e na feacute o proacuteprio Deus autocomunicando-se eacute o objeto crido e o princiacutepio aprioriacutestico de crer se a loacutegica da feacute natildeo eacute uma categoria aprendida de fora mas ndash do mesmo modo que a loacutegica natural ndash eacute a proacutepria estrutura ontoloacutegica e interna do ato de feacute se a mensagem exterior da feacute natildeo eacute o seu motivo aposterioriacutestico mas sua razatildeo aprioriacutestica ndash entatildeo todo este problema perde o seu sentido Assim se compreenderaacute que um falso ato material de feacute deixa de ter um objeto formal meramente aprioriacutestico e pode vir a ser um ato de feacute autecircntico

Somos forccedilados a interromper aqui estas observaccedilotildees Em tudo o que dissemos pudemos apenas indicar algumas perspectivas de soluccedilatildeo de um problema que desde os tempos do Modernismo eacute atual mas que contudo tem sido de certo modo postergado Mesmo por este pequeno exemplo ao qual poderiacuteamos acrescentar o de muitos outros problemas teoloacutegicos ainda natildeo solucionados vemos como custosa e lentamente avanccedila o trabalho teoloacutegico Eacute necessaacuterio ter paciecircncia e envidar esforccedilos perseverantes

Necessaacuterio eacute ainda admitir-se que a teologia natildeo cria a feacute no cristatildeo Ele eacute apenas chamado a pocircr-se a serviccedilo da feacute Da feacute hoje

Ao exprimir eu agrave ilustre Faculdade Catoacutelica de Teologia da Universidade de Munster o meu penhorado e cordial agradecimento pela distinccedilatildeo que me outorgou faccedilo-o com a consciecircncia de que tambeacutem os operaacuterios que realizam a construccedilatildeo da teologia trabalham em vatildeo se o Senhor natildeo cooperar com eles Noacutes [14] devemos trabalhar enquanto eacute dia Toda theologia mentis eacute apenas um auxiacutelio para a theologia cordis et vitaelig Enfim em toda theologia a rigor soacute um caminho se abre o caminho que se perde no segredo de Deus misteacuterio impenetraacutevel que todavia se potildee ao nosso alcance

Joseph Ratzinger

EXAME DO PROBLEMA DO CONCEITO DE TRADICcedilAtildeO

PRIMEIRA PARTE

Revelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeo

Ensaio de anaacutelise do conceito de Tradiccedilatildeo

I ndash Posiccedilatildeo do Problema

[15] O modo como Cristo Palavra expressa da Revelaccedilatildeo permanece presente na Histoacuteria e vai ao encontro dos homens pertence agravequelas questotildees fundamentais em torno das quais se dividiu a Cristandade ocidental no seacuteculo da Reforma A luta prende-se agrave ideacuteia de ldquoTradiccedilatildeordquo pela qual a Igreja catoacutelica procurou exprimir certa forma de comunicaccedilatildeo da Revelaccedilatildeo ao lado da outra contida na Sagrada Escritura Isto com o fim de desfazer um duplo protesto A Tradiccedilatildeo designava primeiro as chamadas consuetudines ecclesiaelig tais como a santificaccedilatildeo do domingo a oraccedilatildeo voltada para o Oriente o costume de jejuar as vaacuterias becircnccedilatildeos e consagraccedilotildees e outras praacuteticas semelhantes em vigor na piedade dos fieacuteis ao tempo da baixa Idade Meacutedia Tais praacuteticas ora nobres ora ridiacuteculas embora transformassem a Igreja numa espeacutecie de casa assombrada cheia de acircngulos e cantos justificavam-se sob o tiacutetulo de ldquotradiccedilatildeordquo e legitimavam-se como parte essencial da vida cristatilde1

Lutero a quem a simplicidade do Evangelho como urna forccedila explosiva tinha sobremodo impressionado preferiu agrave luz de sua [16] ideacuteia de Deus juiz misericordioso natildeo ver na Tradiccedilatildeo nada mais do que ninharias com as quais a humanidade se ilude e aparentemente se consola buscando uma evasatildeo ante o abuso da proacutepria existecircncia Ainda mais ele viu na Tradiccedilatildeo o retorno da Lei o predomiacutenio do arbiacutetrio humano sobre a palavra de Deus abuso contra o qual Paulo protestara com tanta veemecircncia e que agora de novo se implantara na Igreja A Confessio Augustana ocupou-se tambeacutem destas coisas destacando uma seacuterie de leis cuja violaccedilatildeo segundo a doutrina corrente era tida como pecado mortal a proibiccedilatildeo do trabalho manual aos domingos e dias santos a interrupccedilatildeo das preces canocircnicas diaacuterias os preceitos do jejum etc E Lutero prosseguia ldquoDe onde tiram os Bispos o direito e o poder de imporem tais prescriccedilotildees aos cristatildeos e de ilaquearem assim as consciecircncias Pedro no capiacutetulo 15 dos Atos dos Apoacutestolos proiacutebe se imponha o jugo sobre os ombros dos disciacutepulos E Paulo diz aos Coriacutentios que a autoridade lhe foi dada para salvar e natildeo para condenar Por que entatildeo multiplicam assim os pecados com tais imposiccedilotildeeshellip Se os Bispos tecircm poder de sobrecarregarem as igrejas com inuacutemeras prescriccedilotildees e de onerar as consciecircncias por que entatildeo a Sagrada Escritura proiacutebe tatildeo frequumlentemente que se faccedilam mandamentos

1 Eacute o que se vecirc claramente pela lista de traditiones feitas no tempo do Conciacutelio de Trento Cf a nota 44 da segunda parte desse livro

humanos e se escravizem os homens Porque chama ela a estas coisas de doutrina de Satanaacutes Foi acaso em vatildeo que o Espiacuterito Santo fez tais advertecircnciasrdquo 2

Lutero identificou aqui a traditio com os abusus Tradiccedilatildeo segundo ele eacute lei humana pela qual o homem se esconde de Deus e pior ainda se levanta contra Ele para tomar nas proacuteprias matildeos a tarefa de sua salvaccedilatildeo em vez de esperaacute-la da libeacuterrima graccedila do Senhor A Tradiccedilatildeo assim entendida como Lei eacute contraposta agrave mensagem da graccedila ldquoDevemos aceitar cada [17] um dos artigos do Evangelho para alcanccedilarmos a graccedila de Deus sem meacuterito nosso atraveacutes da feacute em Jesus Cristo e natildeo pretender merececirc-la mediante praacuteticas do culto inventado pelos homensrdquo3

O problema da Tradiccedilatildeo tornou-se ainda mais agudo devido a um segundo aspecto que de resto natildeo conduziu a nenhum resultado positivo Descobrindo o Evangelho teve Lutero igualmente a impressatildeo de libertar a Palavra de Deus da pesada cadeia do Magisteacuterio eclesiaacutestico que se teria apossado desta Palavra e natildeo mais a entendia em seu verdadeiro sentido empregando-a antes a seu bel-prazer A ideacuteia de que a palavra divina aprisionada na Igreja catoacutelica agrave autoridade do Magisteacuterio ficou privada de sua forccedila viva eacute sempre repetida nos escritos dos Reformadores Melanchton poreacutem fecirc-lo talvez de um modo mais humano e flexiacutevel quando apocircs com reservas a sua assinatura aos artigos luteranos de Esmalca ldquo quanto ao Papa acho eu que jaacute que ele quis abandonar o Evangelho devemos noacutes de nossa parte tolerar (e admitir) para o bem da paz e da unidade a sua superioridade sobre os Bispos superioridade esta que ele possui iure humanordquo 4

Este estado de coisas impregnou outrossim a ideacuteia de Igreja da Confessio Augustana uma vez que aiacute se diz que a Igreja eacute a congregatio sanctorum in qua Evangelium pure docetur et recte administrantur Sacramenta5 Assim a Igreja eacute marcada por duplo aspecto pela pureza da doutrina e pela administraccedilatildeo legiacutetima dos Sacramentos Nem uma palavra sobre o Magisteacuterio Na realidade para a elaboraccedilatildeo do conceito de Igreja este silecircncio da CA natildeo eacute menos importante do que o que ela aiacute diz Eacute um silecircncio evidentemente intencional e denuncia a oposiccedilatildeo dos Reformadores agrave concepccedilatildeo catoacutelica de Igreja [18] entatildeo vigente e ateacute hoje conservada Esta consta de trecircs elementos a fides correspondente ao pure docere a communio que corresponde ao sacramenta e a auctoritas6 O Magisteacuterio aparece aqui como criteacuterio da palavra Eacute o seu fiador Segundo Melanchton daacute-se o contraacuterio a palavra eacute que eacute o criteacuterio do Magisteacuterio Este deve em uacuteltima anaacutelise ser provado pela palavra e pode consequumlentemente ser negado A palavra eacute auto-suficiente e paira sobre o Magisteacuterio como uma grandeza autocircnoma Talvez nesta inversatildeo de relaccedilotildees eacute que estaacute propriamente o contraste entre o conceito catoacutelico e o protestante de Igreja Contradiccedilatildeo paralela se daacute em torno da ideacuteia de Tradiccedilatildeo Com efeito a negaccedilatildeo do Magisteacuterio como criteacuterio da palavra significa a reduccedilatildeo da palavra de Deus agrave Escritura que seraacute entatildeo o

2Art 28 39-42 in Die Bekenntnisschriften der evangelisch lutherischen Kirche Gotinga 1952 p126 3 Art 28 52 Op cit p129 4 Op cit p463 5 Art 7 1 paacuteg 61 6 Sobre este ponto e o seguinte cf J RATZINGER ldquoDas geistliche Amt und die Einheit der Kircherdquo in Catholica 17 (1963) p 165-179

uacutenico sustentaacuteculo autocircnomo e autecircntico da palavra natildeo admitindo a Tradiccedilatildeo como uma grandeza em si

O Conciacutelio de Trento em seu estudo sobre a Tradiccedilatildeo teve diante dos olhos os dois pontos de vista contraacuterios e procurou formular sua resposta levando ambos em consideraccedilatildeo Eacute por isso conveniente analisarmos como estas duas posiccedilotildees se inter-relacionam em face da equiparaccedilatildeo feita por Lutero entre a Traditio e os abusus Em outros termos como os Padres conciliares se colocam diante do dilema dever-se-ia responder aos ataques de Lutero diretamente com uma definiccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo Ou antes de tudo com a reformatio a coerccedilatildeo dos abusus7

No tocante agrave doutrina o Conciacutelio refutou ex professo a censura dos Reformadores sustentando que a palavra natildeo eacute uma realidade autocircnoma pairando acima da Igreja Ela eacute dada pelo [19] Senhor agrave Igreja e natildeo entregue ao capricho dos homens Permanece justamente por isso nas Suas matildeos subtraindo-se ao alcance do alvitre humano Na visatildeo dos Padres de Trento deve no fundo ter parecido uma falta de confianccedila o terem os homens receio da palavra escrita entregue agrave Igreja como se a Igreja pudesse abusar dela Como se se pudesse apelar para a palavra da Revelaccedilatildeo contra a Igreja Estava-se inquestionavelmente certo de que o Senhor que instituiu a Igreja como Seu Corpo haveria de se empenhar em tutelaacute-la contra o perigo de abusar de Sua palavra

Hoje decorridos quatro seacuteculos desde a Reforma podemos confessar que na oposiccedilatildeo que dividia entre si Lutero e o Conciacutelio de Trento tanto depois como antes o dilema que dilacerou a Cristandade ocidental de certo modo jaacute desapareceu Vecirc-se isto pela troca de correspondecircncia entre Harnack e Peterson Peterson ao agradecer o tratado de Harnack Das Alte Testament in den Paulinischen Briefen und in den Paulinischen Gemeiden observou que este em seu cotejo da Escritura com a exegese biacuteblica tinha adotado natildeo o princiacutepio protestante mas o catoacutelico Escreveu Harnack ldquoDizer que o chamado lsquoprinciacutepio formalrsquo do Protestantismo primitivo eacute uma impossibilidade criacutetica e que ao contraacuterio o princiacutepio catoacutelico eacute formalmente o melhor eacute um truiacutesmo Materialmente poreacutem o princiacutepio catoacutelico da Tradiccedilatildeo opotildee-se agrave Biacuteblia muito mais diretamente (As tradiccedilotildees satildeo como ervas daninhas a serem cortadas pela tesoura do Magisteacuterio) A melhor fonte eacute o Novo Testamentordquo 8

Nesta formulaccedilatildeo de certo modo geneacuterica e simplista e na oposiccedilatildeo estabelecida entre os aspectos material e formal vem de novo agrave tona o antigo dilema poder-se-aacute confiar a palavra agrave Igreja sem temor de que ela sob a tesoura do Magisteacuterio ou [20] envolta no mato selvagem do sensus fidelium perca a sua forccedila proacutepria e sua vitalidade Esta eacute a pergunta que os Protestantes fazem aos Catoacutelicos Poder-se-aacute aceitar a autonomia da palavra sem com isto ser esta exposta ao arbiacutetrio dos exegetas aos maus tratos por parte dos historiadores e enfim ao completo desamparo Eis como os Catoacutelicos revidam aos Protestantes Com efeito segundo nossa doutrina natildeo eacute a noacutes que compete decidir se queremos ou natildeo confiar a palavra agrave Igreja Foi o proacuteprio Senhor quem lha confiou Note-se entretanto que quando o Catoacutelico encara seriamente este assunto natildeo deixa de considerar o zelo pela pureza da palavra revelada como um dever

7 Ver as notas 41 e 42 na 2ordf parte 8 Citado in E PETERSON Theologische Traktate Munique 1951 p295

da mais alta importacircncia Ele sabe que natildeo cumpre este dever pelo simples fato de apelar para a inerracircncia da Igreja Fazecirc-lo seria menosprezar o sentido da luta de Lutero em favor da Palavra deixando-se de ver nisto uma salutar advertecircncia e um apelo dirigido agraves almas

Natildeo obstante tudo isto a histoacuteria da controveacutersia natildeo se deteve no decurso dos quatro seacuteculos que se seguiram agrave Reforma Duas diferentes tendecircncias se destacam nas relaccedilotildees entre o Protestantismo e o Catolicismo e entre suas respectivas teologias De um lado uma radicalizaccedilatildeo de cada grupo nos proacuteprios pontos de vista Cada grupo a partir de entatildeo fez sua histoacuteria proacutepria e desenvolveu-a em direccedilatildeo oposta um ao outro Por outro lado a distacircncia mantida entre ambos possibilita maior objetividade em seus julgamentos reciacuteprocos Existe finalmente de parte a parte um renovado esforccedilo por superar as fronteiras com vistas a um encontro

Quem entre os Catoacutelicos empreendeu o mais significativo passo para chegar a uma visatildeo nova do problema da Tradiccedilatildeo mediante a superaccedilatildeo de posiccedilotildees unilaterais e anti-reformistas foi em nossos dias o teoacutelogo dogmaacutetico de Tubinga Josef Rupert Geiselmann Seus esforccedilos foram frutuosos fazendo-se sentir a sua influecircncia inclusive nos estudos preparatoacuterios do [21] Conciacutelio e deram agraves incursotildees do Vaticano II nesta aacuterea aquela marcante atualidade que ainda na primeira sessatildeo levou este problema a transcender do ciacuterculo da luta doutrinal entre as vaacuterias escolas teoloacutegicas para se transformar em uma preocupaccedilatildeo de toda a Cristandade catoacutelica9

A tese de Geiselmann eacute conhecida Basta-nos esboccedilaacute-la rapidamente aqui a fim de lanccedilarmos as bases de uma reflexatildeo que procuraraacute aprofundar mais este assunto e talvez dar um modesto passo agrave frente Geiselmann parte de uma interpretaccedilatildeo nova do sentido dado pelo Conciacutelio ao conceito de Tradiccedilatildeo O tridentino estabelecera que a verdade do Evangelho estaacute contida in libris scriptis et sine scripto traditionibus Isto foi e eacute ateacute hoje interpretado como se a Escritura natildeo contivesse toda a veritas evangelii Portanto natildeo eacute possiacutevel admitir-se a sola Scriptura uma vez que uma parte da Revelaccedilatildeo nos eacute transmitida somente pela Tradiccedilatildeo Geiselmann aproveitou a observaccedilatildeo jaacute antes feita por alguns autores de que na primeira redaccedilatildeo do texto focircra adotada a foacutermula segundo a qual a verdade estaria contida partim in libris scriptis partim in sine scripto traditionibus Estaria aqui claramente expressa a doutrina da divisatildeo da verdade revelada em duas fontes (Escritura e Tradiccedilatildeo) O Conciacutelio abandonou a expressatildeo partim ndash partim preferindo usar o simples conectivo et Geiselmann daiacute conclui afastou-se o Conciacutelio da ideacuteia da divisatildeo da verdade em duas fontes diversas Ou pelo menos natildeo a definiu explicitamente E continua o mesmo autor com isto pode tambeacutem o teoacutelogo catoacutelico aceitar a ideacuteia de uma suficiecircncia material da Escritura Pode ainda mesmo permanecendo catoacutelico defender a opiniatildeo de que a Sagrada Escritura eacute suficiente para transmitir-nos a [22] Revelaccedilatildeo Geiselmann admite consequumlentemente que a sola Scriptura pode conceber-se como uma uacutenica fonte

9 Cf R LAURENTIN Lenjeu du Concile Bilan de Ia premiegravere session Paris 1963 p27-45 Y CONGAR Vatican II Le Concile au jour le jour Paris 1963 p63-71 J RATZINGER Die erste Sitzungsperiode des Zweiten Vatikanischen Konzils Colocircnia 1963 p38-50

material da Revelaccedilatildeo Ele crecirc ainda poder mostrar que a tradiccedilatildeo mais forte eacute a favor desta sentenccedila e que o proacuteprio Conciacutelio de Trento se inclina neste sentido10

Eacute faacutecil de se compreender que semelhante tese tenha obtido o apoio de muitos em face das novas possibilidades de encontro entre Catoacutelicos e Evangeacutelicos possibilidades estas que a posiccedilatildeo de Geiselmann parece favorecer11 Que esta tese na realidade constitua um passo consideraacutevel neste sentido parece ser incontestaacutevel Todavia tatildeo logo a analisemos mais de perto em seus fundamentos histoacutericos e reais surge de pronto toda uma seacuterie de dificuldades graves a tornarem impossiacutevel a sua aceitaccedilatildeo

Sobre o aspecto histoacuterico deste problema apresentaremos vaacuterias observaccedilotildees na segunda parte deste nosso opuacutesculo Entrementes consideremos de imediato o lado praacutetico deste assunto Seu exame provoca inicialmente esta pergunta que significa propriamente a expressatildeo ldquosuficiecircncia da Escriturardquo Geiselmann como teoacutelogo catoacutelico que eacute natildeo deixa de sustentar os nossos dogmas Ora nenhum dogma catoacutelico eacute provado sola Scriptura Nem os grandes dogmas primitivos sustentados pelo consensus quinquesaeligcularis nem tampouco o de 1854 e [23] menos ainda o de 1950 Em que sentido entatildeo se pode falar em suficiecircncia da Escritura Natildeo ameaccedilaraacute esta converter-se em perigosa fraude pela qual nos enganamos primeiramente a noacutes proacuteprios e em seguida tambeacutem enganamos aos outros (Ou natildeo seratildeo talvez justamente eles que natildeo se enganam) Ou entatildeo pelo menos para sustentarmos de um lado que a Escritura sozinha conteacutem toda a verdade da Revelaccedilatildeo e de outro lado que o dogma de 1950 eacute verdade revelada natildeo deveremos noacutes refugiar-nos em um conceito tatildeo largo de suficiecircncia que na verdade esta palavra venha a perder todo o seu significado

Com isto abre-se a segunda (que de fato eacute a primeira) questatildeo decisiva a saber seraacute verdade que os debates em torno da ideacuteia da suficiecircncia da Escritura resolveram mesmo o problema do conceito de Tradiccedilatildeo Ou ao contraacuterio natildeo estaremos noacutes aqui diante de um problema de raiacutezes muito mais profundas

Nossas observaccedilotildees introdutoacuterias devem ter deixado claro que esta uacuteltima pergunta deve sem duacutevida nenhuma ser respondida afirmativamente A questatildeo da suficiecircncia da Escritura eacute apenas um problema secundaacuterio no acircmbito da distinccedilatildeo muito mais importante que foi jaacute antes apontada por noacutes ao tratarmos dos conceitos abusus e auctoritas e que gira em torno do nexo entre a autoridade da Igreja e a autoridade da Sagrada Escritura Da compreensatildeo disto depende tudo o mais

Para irmos mais adiante torna-se necessaacuterio analisarmos profundamente o assunto natildeo para nos determos no exame dos conceitos tatildeo relevantes de suficiecircncia ou insuficiecircncia da Escritura mas antes para abordarmos em seu tudo o vasto problema da Palavra revelada e presente no coraccedilatildeo dos fieacuteis Torna-se evidente entatildeo que agrave luz das fontes positivas a Escritura e a Tradiccedilatildeo devem ser postas em relaccedilatildeo tatildeo iacutentima que da

10 Ver sobretudo a obra de J R GEISELMANN Die Heilige Schrift und die Tradition Friburgo 1962 principalmente as p91-107274-282 Entre os trabalhos anteriores escritos por Geiselmann sobre o mesmo tema eacute de particular importacircncia o seguinte Das Konzil von Trient uumlber das Verhaumlltnis der Heiligen Schrift und der nichtgeschriebenen Traditionen in M SCHMAUS Die muumlndliche Uumlberlieterung Munique 1957 p 123-206 11 Uma lista de todos os autores que mais concordaram com Geiselmann eacute fornecida por H KUumlNG em sua tese ldquoKarl Barths Lehre vom Wort Gottes als Frage an die katholische Theologierdquo in Einsicht und Glaube publicado por J RATZINGER-H FRIES Friburgo 1963 p 105 nota 25

fonte interna (a Revelaccedilatildeo) brote a pa1avra de Deus viva sob aquela dupla formalidade A Escritura e a Tradiccedilatildeo natildeo podem [24] ser entendidas uma sem a outra no sentido que ambas tecircm agrave luz da feacute O problema ldquoEscritura e Tradiccedilatildeordquo permaneceraacute insoluacutevel enquanto natildeo for reduzido a uma soacute questatildeo a saber a questatildeo ldquoRevelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeordquo e inserida enfim no amplo contexto a que pertence

Eu gostaria de nas paacuteginas seguintes sem entrar em todos os detalhes tentar desenvolver em forma de teses e de maneira positiva o conceito de Tradiccedilatildeo partindo de sua natureza iacutentima com a esperanccedila de que nele descubramos uma parte da resposta aos anseios dos Reformadores Desta maneira toda esta anaacutelise serviraacute de contribuiccedilatildeo para o diaacutelogo interconfessional cuja necessidade tanto os Catoacutelicos como os Protestantes vecircm proclamando de maneira cada vez mais insistente

II - Teses sobre a relaccedilatildeo entre a Revelaccedilatildeo e a Tradiccedilatildeo

1 A Revelaccedilatildeo e a Escritura A primeira tese em aditamento ao conceito patriacutestico de Escritura e Revelaccedilatildeo

poderia enunciar-se nos seguintes termos o fato de existir uma ldquoTradiccedilatildeordquo repousa antes de tudo na diferenccedila que permeia entre estas duas realidades ldquoRevelaccedilatildeordquo e ldquoEscriturardquo A Revelaccedilatildeo exprime propriamente o falar e o agir de Deus em relaccedilatildeo aos homens Designa uma realidade expressa pela Escritura sem ser contudo a proacutepria Escritura A Revelaccedilatildeo por conseguinte ultrapassa a Escritura na mesma medida em que a realidade ultrapassa a sua expressatildeo escrita12 Poder-se-ia [25] tambeacutem dizer que a Escritura eacute o princiacutepio material da Revelaccedilatildeo (Talvez princiacutepio uacutenico talvez um princiacutepio entre outros isto seraacute esclarecido mais adiante) Ela natildeo eacute poreacutem a proacutepria Revelaccedilatildeo Isto era aliaacutes bem sabido dos proacuteprios Reformadores mas comeccedilou visivelmente a ser esquecido no aceso da controveacutersia entre a teologia catoacutelica poacutes-tridentina e a ortodoxia protestante13 Em nosso seacuteculo foram justamente os teoacutelogos evangeacutelicos Barth e Brunner que redescobriram este fato de todo evidente para a teologia patriacutestica e medieval14

O que acabamos de afirmar ficaraacute mais claro se partirmos de outro princiacutepio a Escritura pode ser possuiacuteda sem que se possua a Revelaccedilatildeo Isto porque a Revelaccedilatildeo eacute sempre e em primeiro plano uma realidade a realidade onde se encontra a feacute Aquele

12 Esta afirmaccedilatildeo natildeo tem o sentido de que a Escritura seja uma mera e vazia narrativa de realidades a ela exteriores Antes como o que se segue iraacute demonstrar indica que a Revelaccedilatildeo eacute realizada na Palavra jaacute que eacute por meio de palavras que ela se comunica aos homens Contudo a mera presenccedila da palavra ainda natildeo eacute a Revelaccedilatildeo Esta eacute mais do que simples ldquopresenccedilardquo Com o que ficou dito salienta-se a diferenccedila que existe entre a palavra e seu conteuacutedo Esta diferenccedila natildeo exclui o caraacuteter verbal da Revelaccedilatildeo 13 Cf A GLOEGE Schriftprinzips RGG V 1540-1543 onde se encontraraacute a mais completa bibliografia LthK VII 1104-1115 J R GEISELMAN Offenbarung in H FRIES Handbuch zum Begriff der Offenbarung cf M VERENO - R SCHNACKENBURG - HRIES in Theologischer Grundbergriffe II Munique 1963 p242-250 e a bibliografia aiacute citada 14 Cf W H VAN DER POL Das reformatorische Christentum Einsiedeln 1956 p117-192

que natildeo crecirc acha-se como que coberto por um veacuteu o veacuteu de que fala Satildeo Paulo no terceiro capiacutetulo da segunda epiacutestola aos Coriacutentios15 Ele pode ler a Escritura e saber o que nela se conteacutem Pode ateacute mesmo apreender de modo puramente intelectual o que aiacute eacute significado e como suas ideacuteias se inter-relacionam Todavia natildeo possui com isto a Revelaccedilatildeo A Revelaccedilatildeo eacute sobretudo possuiacuteda quando aleacutem da expressatildeo material que a atesta se potildee tambeacutem em praacutetica o seu conteuacutedo interno por meio da vivecircncia da feacute Com efeito de certo modo se inclui tambeacutem na Revelaccedilatildeo o sujeito recipiente sem o qual ela natildeo pode existir Natildeo se pode pocircr a Revelaccedilatildeo no bolso como se faz com [26] um livro Ela eacute uma realidade viva Exige homens vivos que a recebam que sirvam de ldquolugarrdquo de sua presenccedila

Repetindo o que ateacute aqui dissemos podemos afirmar que a Revelaccedilatildeo sobreexcede de fato a Escritura em dois sentidos

a) em sentido ascendente ela atinge sempre como realidade procedente de Deus o agir divino sobre as criaturas

b) como realidade que se daacute ao homem por meio da feacute ela atinge igualmente a Escritura

Desta diferenccedila entre a Escritura e a Revelaccedilatildeo resulta claramente que de todo independentemente da questatildeo se a Escritura eacute ou natildeo eacute a uacutenica fonte material em rigor nunca existe para o cristatildeo a sola Scriptura (Isto como ficou dito era claro em princiacutepio para os grandes Reformadores e comeccedilou a ser esquecido na chamada ortodoxia protestante) A Escritura natildeo eacute a Revelaccedilatildeo Eacute sim em uacuteltima anaacutelise uma parte desta realidade mais ampla

2 Os diferentes sentidos da Escritura

no Antigo e Novo testamento A problemaacutetica cristatilde da Revelaccedilatildeo ou o problema ldquoEscritura e Tradiccedilatildeordquo situa-se

melhor se considerarmos o duplo aspecto da mesma Revelaccedilatildeo no Antigo e no Novo Testamento A este duplo aspecto corresponde tambeacutem um duplo sentido da Escritura Assim como os dois Testamentos como tais se distinguem essencialmente assim tambeacutem devemos dizer que a ldquoEscriturardquo como um fato natildeo eacute repetida duas vezes do mesmo modo Isto aparece muito claro nos livros neotestamentaacuterios Sob a expressatildeo ldquoEscriturardquo designam eles somente o Antigo Testamento Para eles o AT eacute e permanece sendo ldquoa Escriturardquo cujo sentido se aclara mediante sua confirmaccedilatildeo no evento da [27] vinda de Cristo16 Os livros do NT natildeo jogam uma Escritura nova contra uma Escritura antiga Nem potildeem uma simplesmente ao lado da outra Potildeem sim em face da uacutenica Escritura ou seja do Antigo Testamento o Cristo-evento como o espiacuterito que explica a letra Esta concepccedilatildeo fundamental ilumina tambeacutem a forma da feacute mais antiga e a torna por primeiro compreensiacutevel O ldquoJesusrdquo formal eacute o ldquoCristordquo expresso no Antigo Testamento Natildeo eacute outra coisa No Jesus Histoacuterico o Cristo-mensagem do

15 Cf sobre estas reflexotildees o importante artigo (ἀποκαλύπτω de A OEPKE in ThWNT III p565-597 16 Ver sobre este ponto as preciosas conclusotildees de G SCHRENK art γραφή ndash γράμμα in ThWNT I p749-769 e a p767

Antigo Testamento atinge a sua consumaccedilatildeo Eacute a partir do AT que se entende quem eacute Jesus E o que o Testamento Antigo expressa pode ser visto agrave luz do Cristo-evento

Esta ideacuteia aparece em Paulo ao apresentar ele o Antigo e o Novo Testamentos como Gramma e Pneuma isto eacute letra e espiacuterito (2Cor 3 6-18) Ele chama ao Senhor de Pneuma A Escritura explica-o como sendo o seu sentido o seu conteuacutedo verdadeiro e vivo e natildeo apenas literaacuterio Paulo se refere agrave concepccedilatildeo do Novo Testamento apresentada por Jeremias (3133) Natildeo eacute mais necessaacuteria nenhuma Escritura porque a lei estaacute escrita nos coraccedilotildees Jaacute natildeo eacute necessaacuteria nenhuma doutrinaccedilatildeo vinda de fora porque o proacuteprio Deus instrui os homens Joatildeo exprime idecircntico pensamento em seguimento ao decircutero-Isaiacuteas (5413) quando descreve a era inaugurada por Cristo como o tempo no qual todos satildeo doutrinados por Deus mesmo E o sermatildeo de Pedro em Pentecostes transmitido pelos Atos dos Apoacutestolos (2 14-36) desenvolve a mesma ideacuteia tirada de Joel (3 1-5) Em todos estes casos aparece a era instaurada por Cristo como resposta agrave esperanccedila no advento de um tempo futuro que em uacuteltima anaacutelise haveria de tornar supeacuterflua a Escritura graccedilas agrave presenccedila imediata do Divino Mestre na Sua humanidade

Quando se pondera o sentido destas afirmaccedilotildees torna-se claro [28] que ao reduzir-se a ldquoEscriturardquo aos escritos do Antigo Testamento natildeo se estaacute apenas usando uma terminologia antiga que teria sido adotada por falta de escritos propriamente neotestamentaacuterios e que teria perdido seu sentido na segunda metade do seacuteculo segundo com o iniacutecio do cacircnon do Novo Testamento Ao contraacuterio Aqui se expressa uma consciecircncia que se tornaria mais niacutetida a partir da formaccedilatildeo da proacutepria Escritura neotestamentaacuteria muito ao inveacutes de cessar ou de desaparecer

Uma coisa eacute certa a ldquoEscriturardquo na nova ordem da salvaccedilatildeo inaugurada por Cristo toma um lugar distinto do que lhe cabia no Antigo Testamento Com isto pode-se ver ateacute que ponto o Antigo Testamento tem sentido autocircnomo O AT certamente natildeo aparecia desde o comeccedilo como Testamento do Gramma Escritura em sentido proacuteprio como ocorreraacute na pena de Satildeo Paulo17 Por outro lado manifesta-se realmente a partir de Jeremias e do decircutero-Isaiacuteas o anelo pela superaccedilatildeo do Gramma mediante uma nova e imediata comunicaccedilatildeo do Espiacuterito de Deus simultaneamente com a progressiva formaccedilatildeo de um princiacutepio da Escritura que mais e mais a transformou em Lei Lei esta que natildeo tornaria os homens vivos mas sim mortos

Desta maneira na concepccedilatildeo neotestamentaacuteria aparece o Antigo Testamento como ldquoEscriturardquo em sentido proacuteprio Escritura que atinge o seu verdadeiro significado atraveacutes do Cristo-evento pelo fato de ser ela inserida no contexto vivo da realidade de Cristo Se no Novo Testamento de facto a Escritura cresceu natildeo pode mais ter aquele sentido uacuteltimo e exclusivo que lhe competia no Antigo segundo a concepccedilatildeo paulina Ao contraacuterio Ela eacute a chave com que se abre o Antigo Testamento deixando-se banhar na claridade do Cristo-evento Ela eacute tambeacutem a ponte permanente que conduz a uma nova interpretaccedilatildeo biacuteblica agrave luz [29] de Cristo Num caso e noutro a Escritura natildeo pretende de modo nenhum ser autocircnoma nem ser a fonte uacutenica e exclusiva de sua exegese literal Mas soacute pode ter sentido na realidade espiritual de Jesus Cristo que

17 Ver a apreciaccedilatildeo feita por G VON RAD Theologie des Alten Testaments II Munique 1960 p402-424

permanece junto dos seus todos os dias ateacute ao fim do mundo (Mt 28 20) Apoacutes a subida ao Calvaacuterio Cristo veio de novo no Espiacuterito Santo (como narra Satildeo Joatildeo) e pelo Espiacuterito ensinou aos disciacutepulos o que eles entatildeo natildeo podiam ainda entender enquanto o Senhor estava entre eles sob forma visiacutevel (Jo 16 12)

3 Cristo a Revelaccedilatildeo de Deus

A realidade que se daacute como um acontecimento na Revelaccedilatildeo cristatilde natildeo eacute nada

mais nada menos do que o proacuteprio Cristo Cristo eacute a Revelaccedilatildeo em sentido proacuteprio ldquoQuem me vecirc vecirc o Pairdquo diz ele no Evangelho de Satildeo Joatildeo (14 9) Vale portanto dizer que receber a Revelaccedilatildeo eacute penetrar na realidade de Cristo no Cristo-evento Daiacute procede o paradoxo descrito por Satildeo Paulo ao fazer ele um trocadilho com as palavras ldquoCristo em noacutesrdquo e ldquonoacutes em Cristordquo

Neste contexto a anaacutelise de frases isoladas torna-se secundaacuteria de vez que elas satildeo apenas explicaccedilotildees do uacutenico misteacuterio de Cristo Consequumlentemente cai por si mesma a questatildeo da suficiecircncia interna da Escritura tatildeo discutida desde o aparecimento das obras de Geiselmann Deveriacuteamos isto sim perguntar que significa em linguagem cristatilde a suficiecircncia interna da Escritura ldquoSuficienterdquo eacute soacute a realidade do Cristo-evento Esta pode ser explicada materialmente em maior ou menor grau E de maneira nunca definitiva Partindo deste princiacutepio podem existir tambeacutem outras explicaccedilotildees segundo a Escritura quando se aprofunda mais este assunto

Este mesmo tema pode ser considerado sob outro aspecto E ter-se-aacute entatildeo dado um passo a mais para a frente A aceitaccedilatildeo [30] da Revelaccedilatildeo pela qual aplicamos a noacutes o Cristo-evento vem na linguagem da Biacuteblia sob o nome de ldquofeacuterdquo Assim talvez se entenderaacute mais claramente de que maneira no Novo Testamento a feacute significa a ldquoin-habitaccedilatildeordquo de Cristo Se admitirmos que na Escritura a presenccedila da Revelaccedilatildeo tem o mesmo sentido que a presenccedila de Cristo entatildeo teremos de fato dado um passo adiante Ora na Escritura encontramos a presenccedila de Cristo apresentada de duas maneiras Ela aparece de um lado como jaacute vimos identificada com a feacute (Ef 317) na qual cada um encontra Cristo e se adentra nele penetrando no dinamismo de sua forccedila salvadora Por outro lado a feacute se oculta tambeacutem sob a expressatildeo paulina ldquoCorpo de Cristordquo o que quer dizer que a comunidade dos fieacuteis ndash a Igreja ndash funda a presenccedila de Cristo neste mundo Nela Cristo reuacutene os homens e os faz partiacutecipes de sua presenccedila dinacircmica18

Tomadas juntas estas duas noccedilotildees significam o seguinte a feacute eacute a adesatildeo iacutentima agrave presenccedila de Cristo realidade de Cristo presente da qual a Escritura nos daacute testemunho sem contudo se identificar de modo nenhum com ela Daiacute resulta que a presenccedila da Revelaccedilatildeo se relaciona essencialmente com a ldquofeacuterdquo e com a ldquoIgrejardquo realidades estas que como vimos estatildeo estreitamente ligadas entre si

Voltamos assim ao que foi afirmado na primeira tese a saber que a Revelaccedilatildeo sobreexcede a Escritura em duplo sentido em relaccedilatildeo a Deus por seu lado ascendente e em relaccedilatildeo tambeacutem ao homem que a recebe Esta asserccedilatildeo que a princiacutepio deixamos

18 H SCHLIER ldquoDie Kirche nach dem Brief an die Epheserrdquo in Die Zeit der Kirche Friburgo 1962 p159-186

um tanto vaga encontramo-la essencialmente concretizada na realidade objetiva do Cristianismo

4 A essecircncia da Tradiccedilatildeo

[31] A transmissatildeo ao povo de Deus do Cristo-evento que eacute a Revelaccedilatildeo e que tem sua bi-presenccedila na feacute e na Igreja faz-se atraveacutes da pregaccedilatildeo Pregaccedilatildeo eacute a ldquoex-posiccedilatildeordquo (Aus-legung) do duplo aspecto da Revelaccedilatildeo no Antigo e no Novo Testamento E isto de duas maneiras

a) ela eacute a exposiccedilatildeo do Antigo Testamento agrave luz do Cristo-evento e para o Cristo-evento

b) a partir do Pneuma e da condiccedilatildeo presente da Igreja Este uacuteltimo aspecto eacute possiacutevel pois Cristo natildeo estaacute morto Estaacute vivo Natildeo eacute

apenas o Cristo de ontem Eacute tambeacutem e a fortiori o Cristo de hoje e de amanhatilde o Cristo vivo e presente em sua Igreja que eacute seu Corpo e na qual o seu espiacuterito opera

Isto poderaacute ser melhor compreendido se partirmos da essecircncia da Igreja Como nos ensina o Novo Testamento a mensagem de Jesus eacute antes de tudo uma mensagem escatoloacutegica com vistas ao reino de Deus natildeo com vistas agrave Igreja O fato de existir a Igreja natildeo se opotildee a esta mensagem mas haacute na marcha gradativa das revelaccedilotildees de Cristo uma segunda possibilidade Assim a atividade dos Doze depois de Pentecostes aponta natildeo para a Igreja mas para o reino de Deus Informam-nos os Atos dos Apoacutestolos que os Doze natildeo se ocuparam primordialmente em missionar os povos Esforccedilaram-se antes muito mais em converter Israel criando deste modo as condiccedilotildees preacutevias para a implantaccedilatildeo do reino De iniacutecio uma seacuterie de obstaacuteculos histoacutericos entre os quais deveriacuteamos citar antes de tudo o martiacuterio de Estevatildeo o supliacutecio de Tiago e por fim o fato decisivo da prisatildeo e da libertaccedilatildeo de Pedro Tais fatos levaram a comunidade primitiva segundo dizem as fontes a reconhecer como definitivo o malogro do esforccedilo de converter Israel E consequumlentemente forccedilaram os Apoacutestolos a partir em busca dos gentios e a cuidar [32] assim da Igreja e natildeo do reino Eles o fazem segundo se depreende das passagens referidas e principalmente dos esclarecimentos do capiacutetulo 15 dos Atos dos Apoacutestolos como uma nova opccedilatildeo feita sob a accedilatildeo do Espiacuterito Santo Com isso iniciou-se uma nova interpretaccedilatildeo da mensagem de Cristo sobre a qual a Igreja essencialmente repousa19

19 Cf as decisivas conclusotildees de E PETERSON ldquoDie Kircherdquo in Theologische Traktate Munique 1951 p 409-429 H SCHLIER Die Entscheidung fuumlr die Heidenmission in der Urchristenheit Die Zeit der Kirche p 90-107 Parece-me certo que nem a anaacutelise da tradiccedilatildeo sinoacutetica relativa agrave mensagem de Jesus e seu caraacuteter escatoloacutegico nem o estudo da histoacuteria da Igreja primitiva com base no material fornecido pelos Atos dos Apoacutestolos autorizam qualquer outra conexatildeo entre a mensagem do reino e a pregaccedilatildeo da Igreja Daiacute natildeo se segue de modo nenhum ndash como muitas vezes se teme ndash que a cruz seja um acidente secundaacuterio que em rigor poderia ter sido evitado Ao contraacuterio A estrutura da Igreja moldada sobre a cruz eacute fundamental porque aiacute eacute que por primeiro se encontra a confirmaccedilatildeo da importacircncia da liberdade humana de Cristo e da sua Paixatildeo bem como a iacutentima dependecircncia da Igreja para com a Cruz donde ela procede

Este fato que baseia o estabelecimento definitivo da Igreja sobre uma decisatildeo tomada ldquono Espiacuterito Santordquo eacute o fundamento para se afirmar que existe uma interpretaccedilatildeo eclesial do Novo Testamento do mesmo modo que existe uma exegese cristoloacutegica do Antigo Daiacute podermos estabelecer as seguintes teses ou proposiccedilotildees agrave luz da analogia fidei

a) Existe uma teologia veterotestamentaacuteria do Antigo Testamento que o exegeta

deduz de seu conteuacutedo interno e que se desenvolve em uma seacuterie de camadas superpostas Segundo ela os textos antigos devem ser relidos e de novo expostos agrave luz dos novos acontecimentos O fenocircmeno da aplicaccedilatildeo dos textos agraves situaccedilotildees novas do desdobramento da Revelaccedilatildeo mediante nova [33] apresentaccedilatildeo do Antigo Testamento estrutura jaacute de modo essencial o conteuacutedo interno veterotestamentaacuterio20

b) Existe uma teologia neotestamentaacuteria do Antigo Testamento que natildeo coincide com

a referida teologia veterotestamentaacuteria Estaacute contudo estreitamente ligada com ela na unidade da analogia fidei21 Talvez partindo daqui se possa esclarecer o que significa a analogia fidei entre Os dois Testamentos A teologia neotestamentaacuteria do Antigo Testamento natildeo eacute como ficou dito idecircntica agrave teologia histoacuterica veterotestamentaacuteria Ao contraacuterio Re-exposiccedilatildeo feita agrave luz do Cristo-evento ela natildeo procede soacute da mera consideraccedilatildeo histoacuterica do Antigo Testamento Sendo embora em seu pleno conceito uma interpretaccedilatildeo relacionada com o Antigo Testamento contudo nada faz com que ela seja internamente estranha agrave sua essecircncia ainda que soacute de fora o atinja Ela amplia a forma estrutural do Antigo Testamento que assim interpretado revive e cresce

c) Existe uma teologia neotestamentaacuteria do Novo Testamento paralela agrave teologia veterotestamentaacuteria do Antigo Ou seja a teologia que o exegeta como tal pode deduzir do conteuacutedo interno do Novo Testamento eacute tambeacutem esta conhecida e estruturada mediante a aplicaccedilatildeo do Antigo Testamento agraves novas situaccedilotildees

d) Existe uma teologia eclesial do Novo Testamento que noacutes [34] chamamos Dogmaacutetica Ela se relaciona com a teologia neotestamentaacuteria do Novo Testamento do mesmo modo que a teologia neotestamentaacuteria do Antigo se relaciona com a respectiva teologia veterotestamentaacuteria Aquele ldquomaisrdquo (das Mehr) que distingue propriamente a Dogmaacutetica da teologia biacuteblica eacute o que designamos com a palavra Tradiccedilatildeo Aliaacutes tambeacutem aqui devemos salientar que a teologia eclesiaacutestica neotestamentaacuteria pela mesma razatildeo natildeo eacute simplesmente idecircntica agrave teologia neotestamentaacuteria interna e

20 Cf H GROSS Motivtransposition als Form- und Traditionsprinzip im Alten Testament in H VORGRIMLER Exegese und Dogmatik Moguacutencia 1962 p134-152 e a bibliografia aiacute fornecida G v RAD Theologie des Alten Testaments II Munique 1960 p332-339 396-401 21 A diferenccedila entre as duas teologias do Antigo Testamento foi vivamente exposta por R BULTMANN ldquoWeissagung und Erfuumlllungrdquo in Glauben und Verstehen II Tubinga 1952 p162-186 - Sobre as necessaacuterias correccedilotildees a se fazerem para que se torne visiacutevel a base histoacuterica do que a teologia sistemaacutetica denomina ldquoanalogia fideirdquo cf G v RAD op cit p329-424 (entre outras) e principalmente a p 420 nota 25 e a p422 nota 29 Sobre o tema ldquoanalogia fideirdquo em ambos os Testamentos cf tambeacutem E PRZYWARA Alter und Neuer Bund Viena-Munique 1956

histoacuterica do Novo Testamento Ultrapassa-a sem contudo ser-lhe puramente externa Com efeito no Novo Testamento comeccedila jaacute o processo da exposiccedilatildeo pela Igreja das verdades reveladas A teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento processa-se dentro dele proacuteprio como de modo clariacutessimo se percebe na histoacuteria da Revelaccedilatildeo sinoacutetica22

Eacute oportuno fazermos ainda uma pequena observaccedilatildeo se cotejarmos atentamente a teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento com a Dogmaacutetica reconheceremos que se impotildee uma outra distinccedilatildeo A Dogmaacutetica como ciecircncia aleacutem da exposiccedilatildeo eclesiaacutestica do Novo Testamento abrange tambeacutem a teologia particular de cada teoacutelogo Neste caso para se falar com precisatildeo dever-se-ia apresentar somente o proacuteprio dogma como teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento

O que acabamos de referir natildeo passa naturalmente de um esboccedilo que necessitaria em seus pormenores de natildeo poucos esclarecimentos e distinccedilotildees a fim de ser completo No caso presente entretanto damos por suficiente este esboccedilo Resumindo o que ateacute aqui expusemos podemos agora destacar vaacuterias ldquoraiacutezesrdquo da Tradiccedilatildeo e apontar vaacuterias camadas em seu seio [35] lordf raiz a maior amplidatildeo da ldquoTradiccedilatildeordquo em referecircncia agrave ldquoEscriturardquo

2ordf raiz o caraacuteter especiacutefico da Revelaccedilatildeo neotestamentaacuteria como Pneuma em contraste com o Gramma Eacute o que na linguagem de Bultmann se poderia chamar de sua condiccedilatildeo de ldquonatildeo-objetordquo (Nichtobjektiviertbarkeit) A praxe eclesiaacutestica e a teologia medieval expressaram este aspecto ao sobreporem a fides agrave Scriptura isto eacute o dogma como regra de feacute agraves minuacutecias da lei escrita23 O dogma eacute como a chave hermenecircutica da Escritura que em uacuteltima anaacutelise sem o auxiacutelio da hermenecircutica ficaria sendo algo fechado

3ordf raiz o caraacuteter presencial do Cristo-evento e a presenccedila dinacircmica do Espiacuterito de Cristo em seu Corpo a Igreja E consequumlentemente o poder que tem a Igreja de fazer a pregaccedilatildeo do Cristo ontem e hoje pregaccedilatildeo esta cuja fonte se encontra na interpretaccedilatildeo eclesiaacutestica da mensagem do reino transmitida pelos Apoacutestolos

Em conexatildeo com estas trecircs raiacutezes da ideacuteia (ou melhor da realidade) da Tradiccedilatildeo podem distinguir-se na mesma as seguintes camadas

a) Na origem de toda Tradiccedilatildeo estaacute o fato de que o Pai enviou o Seu Filho ao mundo e que o Filho por sua vez se [36] entregou ndash como sinal ndash aos ldquopovosrdquo (παραδίδοται) Esta paraacutedosis original em sua forccedila direta e salvadora

22 Cf por exemplo a rica exposiccedilatildeo de G BORNKMANN Jesus von Nazareth Estutegarte 1956 Sobre a questatildeo aqui estudada cf H SCHLIER Uumlber Sinn und Aufgabe einer Theologie des Neuen Testaments in H VORGRIMLER Exegese und Dogmatik Mainz 1962 p6990 23 O que haacute de melhor sobre este assunto no tocante agrave Patriacutestica seraacute encontrado em HARNACK DG II (1931) p84-116 HARNACK diz na p 87 nota 3 o seguinte ldquoO Cacircnon era de iniacutecio a regra da feacute A Escritura estaacute centrada na verdade Sem duacutevida nenhuma sua autoridade funda-se solidamente no Antigo Testamento e nas palavras do Senhorrdquo ndash Que assim tenha pensado tambeacutem a Idade Meacutedia e que aqui aleacutem da revelatio (da qual falaremos na 2ordf parte deste livro) a fides sobrepondo-se agrave Scriptura estabelece a forma essencial do conceito de Tradiccedilatildeo foi o que tentei demonstrar em meu artigo Wesen und Weisen der auctoritas im Werk des heiligen Bonaventura in Die Kirche und ihre Aumlmter und Staumlnde (Festgabe Kardinals Frings publicado por CORSTEN-FROTZ-LINDEN Colocircnia 1960 p 58-72

prolonga-se na permanente presenccedila de Cristo no σῶμα Χριστοῦ ndash no Seu Corpo a Igreja Assim o misteacuterio integral da presenccedila de Cristo eacute antes de tudo a realidade total transmitida pela Tradiccedilatildeo (fato fundamental e decisivo sempre anterior a todas as explicaccedilotildees particulares mesmo as da Escritura) e reguladora do que deve propriamente ser transmitido

b) A Tradiccedilatildeo existe concretamente como presenccedila na feacute Esta por seu turno como ldquoin-habitaccedilatildeordquo de Cristo precede todas as explicaccedilotildees particulares e frutuosa e viva ldquoexplicita-serdquo (explizierend) atraveacutes dos tempos

c) A Tradiccedilatildeo tem seu oacutergatildeo na plenitude dos poderes da Igreja e portanto naqueles que satildeo os legiacutetimos depositaacuterios destes poderes24

d) A Tradiccedilatildeo exprime-se tambeacutem naquilo que emanado da autoridade da Igreja se tornou regra de feacute (Symbolum fides quaelig) Portanto a questatildeo de se saber se certas proposiccedilotildees foram transmitidas desde o

comeccedilo pela Tradiccedilatildeo ao lado da Escritura ou em outros termos se existe desde o comeccedilo um segundo princiacutepio material e autocircnomo ao lado da Escritura torna-se afinal um problema inteiramente secundaacuterio Talvez lhe devamos responder negativamente

5 A funccedilatildeo da exegese [37] Pelo que ateacute aqui dissemos ficaram esclarecidas quase que exclusivamente

trecircs pontos os limites da letra da Escritura a liberdade do Espiacuterito Santo e a autoridade da Igreja Acontece poreacutem que a exposiccedilatildeo que fizemos abriga ainda um sentido diverso relacionado com a justa preocupaccedilatildeo de Lutero da qual partimos

Se ficou estabelecido que a Revelaccedilatildeo se faz presente atraveacutes da pregaccedilatildeo e se pregaccedilatildeo eacute exposiccedilatildeo da palavra revelada entatildeo pode e deve agora ao que precede acrescentar-se o seguinte a Tradiccedilatildeo eacute essencialmente e sempre uma exposiccedilatildeo Natildeo existe de maneira autocircnoma e sim como explicaccedilatildeo como exposiccedilatildeo ldquorelacionada com a Escriturardquo

Isto vale para a pregaccedilatildeo do proacuteprio Jesus Cristo realizaccedilatildeo plena da Revelaccedilatildeo e sua exposiccedilatildeo feita com autoridade A pregaccedilatildeo de Jesus Cristo natildeo aparece como algo absolutamente novo na Escritura Isto eacute como algo ainda natildeo atestado no Antigo Testamento Ela ensina isto sim a essecircncia do que jaacute estava escrito e lhe confere uma vida nova que o simples exegeta natildeo pode comunicar-lhe

O que vale para a mensagem de Cristo que permanece a mesma sob diferentes modalidades de exposiccedilatildeo vale tambeacutem para a pregaccedilatildeo apostoacutelica e a eclesiaacutestica Como ldquoTradiccedilatildeordquo ela deve em uacuteltima anaacutelise ser uma exposiccedilatildeo ldquosegundo a Escriturardquo a ela sujeita e com ela relacionada Sem duacutevida natildeo eacute ela uma exposiccedilatildeo no 24 Estas ideacuteias natildeo podem ser desenvolvidas mais detalhadamente aqui como seria de desejar uma vez que em rigor estamos procurando apenas fundamentar o conceito de Tradiccedilatildeo Em razatildeo da brevidade que me impus contentei-me apenas nas teses precedentes com explanar o assunto ateacute ao ponto em que ficasse patente a relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a ldquoIgrejardquo (cf as teses 4 e 5) Para se descer a maiores detalhes dever-se-ia analisar tambeacutem o conceito de Igreja que supomos conhecido do leitor Para isto cf a nota 6 onde citamos nosso livro sobre o Ofiacutecio e a unidade da Igreja Encontram-se aiacute algumas observaccedilotildees sobre o assunto de que ora tratamos

sentido de mera interpretaccedilatildeo exegeacutetica Mas sim na autoridade espiritual recebida do Senhor a qual se consuma na existecircncia plena da Igreja em sua feacute em sua vida e em seu culto Contudo ela permanece sendo (mais ainda do que o Cristo-evento em que se funda a Igreja) uma ldquoex-posiccedilatildeordquo (Aus-Legung) comprometida com a Histoacuteria e com a Palavra [38] Exprime-se deste modo a sua ligaccedilatildeo com a accedilatildeo concreta de Deus nesta mesma Histoacuteria e em seu caraacuteter de fato histoacuterico uacutenico (o ἑφάπαξ ldquoo ocorrido uma soacute vezrdquo) A realidade cristatilde da Revelaccedilatildeo eacute tatildeo essencial quanto ldquoeternardquo e definitiva Resulta daiacute a unidade entre o Cristo da Feacute e o Jesus da Histoacuteria o Jesus histoacuterico natildeo eacute senatildeo o Cristo da Feacute ainda que a feacute seja sempre algo mais do que a histoacuteria

Segue-se que do mesmo modo que existe um ofiacutecio de custoacutedia da Revelaccedilatildeo por parte da Igreja ofiacutecio por ela mesma atestado existe tambeacutem um ofiacutecio de custoacutedia da mesma Revelaccedilatildeo por parte da exegese que penetra o sentido literal da Escritura e defende a uniatildeo do Logos com a carne contra qualquer perigo de gnose Existe portanto por assim dizer algo como uma autonomia especiacutefica da Escritura como regra objetiva e sob muitos pontos de vista esclarecedora do Magisteacuterio eclesiaacutestico Esta era sem duacutevida uma exigecircncia legiacutetima de Lutero que ainda natildeo foi devidamente acolhida na Igreja catoacutelica por parte do Magisteacuterio cujos limites internos nem sempre foram claramente entendidos

Dever-se-ia partindo daqui salientar uma dupla criteriologia em se tratando da feacute De um lado haacute o que a Igreja antiga chamou de ldquoregra da feacuterdquo norma reguladora da palavra revelada contida na Escritura e sua exposiccedilatildeo Esta praeligscriptio da posse da Escritura como proacutepria segundo Tertuliano exclui a possibilidade de qualquer uso legiacutetimo da mesma Escritura contra a Igreja Por outro lado haacute tambeacutem o limite da littera Scripturaelig ou do sentido literal historicamente fixaacutevel que de acordo com o que ficou dito natildeo constitui nenhum criteacuterio absoluto ou autocircnomo mas sim somente um criteacuterio relativo no confronto da feacute com a ciecircncia O que na Escritura se pode descobrir quer mediante estudo cientiacutefico quer por simples leitura tem a funccedilatildeo de um criteacuterio real a que deve estar atento inclusive o Magisteacuterio em suas explicaccedilotildees Certamente [39] trata-se entatildeo de elementos sub-componentes da ciecircncia que natildeo podem servir para se julgar a feacute mas nela encontram uma instacircncia criacutetica e tecircm tambeacutem um importante papel a exercer o de zelar pela pureza do ἑφάπαξ de tutelar o conteuacutedo da Revelaccedilatildeo e de defender o dualismo histoacuterico carneespiacuterito (ldquodie Sarx der Geschichterdquo) contra os arbiacutetrios da gnose que tende sempre a impor-se

A reformatio na qual estaacute empenhada a Igreja nesta hora histoacuterica tem um papel relevante a desempenhar Eacute a missatildeo de abrir novas perspectivas para o diaacutelogo tentando assim chegar a uma ldquoreformardquo diferente da do passado que culminou com a divisatildeo no seio da Cristandade ocidental Tal missatildeo se exerceraacute em harmonia com o pleno ofiacutecio de testemunho da Igreja que tira seu direito e sua forccedila da presenccedila do Espiacuterito e de Cristo presente em todos os tempos Pois ele eacute sempre o Cristo de agora com a plenitude de seus direitos e de seus poderes Ele eacute quem daacute legitimidade e vigor ao testemunho singular e definitivo da Escritura que por sua vez encontra seu pleno sentido na singularidade da accedilatildeo histoacuterico-salviacutefica de Jesus Cristo Ele deu ao Pai seu Corpo crucificado e dando-se a si mesmo santificou para sempre os que o receberam (cf Hb 1014 727) Ele eacute o Cristo ontem hoje e sempre (Hb 138)

SEGUNDA PARTE

Explicaccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo segundo o Decreto do Conciacutelio de Trento

Parece que a completa elucidaccedilatildeo das razotildees que levaram agrave substituiccedilatildeo do

partim-partim pelo et e consequumlentemente agrave pesquisa dos dados do debate tridentino e de sua preacute-histoacuteria aparentemente favoraacutevel agrave suficiecircncia material da Escritura [40] simplifica indevidamente este problema fazendo-nos perder de vista os proacuteprios antecedentes do Decreto do Conciacutelio de Trento

1 A concepccedilatildeo pneumatoloacutegica da Tradiccedilatildeo no esquema fundamental do Cardeal Cervini

a) O conteuacutedo Um balanccedilo histoacuterico e detalhado do problema em seu conjunto exigiria uma

pesquisa exaustiva que natildeo reduzisse o seu acircmbito como o fez Geiselmann em seu livro25 Natildeo eacute nossa intenccedilatildeo proceder a um exame minucioso do assunto no presente trabalho Aqui soacute seratildeo tratados alguns pontos do debate tridentino com o fim de ampliarmos mais o horizonte de nossas reflexotildees

Fundamental para a compreensatildeo dos debates em pauta bem como do Decreto definitivo do Conciacutelio parece-me ser o Discurso do Cardeal Legado Cervini datado de 18 de fevereiro de 1546 [41] cujas linhas gerais se patenteiam tanto no Decreto como em outras decisotildees conciliares26

Tem o discurso de Cervini o meacuterito de mostrar as linhas diretrizes do Decreto de maneira mais clara do que aparecem estas na uacuteltima redaccedilatildeo do mesmo onde elas se diluem muito devido a uma seacuterie de variadas implicaccedilotildees Eacute ainda de grande auxiacutelio para o entendimento do referido discurso uma carta dos Cardeais Legados ao Cardeal Alexandre Farnese de 28 de fevereiro de 1546 Esta carta revela conteuacutedo idecircntico ndash eacute certamente inspirada pelo mesmo Cervini ndash e oferece ainda alguns outros

25 Eacute lamentaacutevel que Geiselmann em sua anaacutelise da contribuiccedilatildeo medieval sobre este assunto se tenha apoiado apenas em argumentos de segunda matildeo portanto de valor histoacuterico discutiacutevel Queira o leitor ver minhas observaccedilotildees a este respeito in Theol-prakt Quartalschrift 1963 p224-227 As novas (e temperamentais) invectivas de Geiselmann in TThQu 144 (1964) p 31-69 em nada modificaram a minha posiccedilatildeo de vez que natildeo trazem nenhuma contribuiccedilatildeo vaacutelida ao assunto Precioso ao contraacuterio eacute o trabalho de Y CONGAR La Tradition et les traditionshellip Essai historique Paris 1960 Importante eacute tambeacutem a obra de J BEUMER Die muumlndliche uumlberlieferung als Glaubensquelle Friburgo 1962 A respeito do Conciacutelio de Trento cf sobretudo aleacutem do estudo fundamental de JEDIN o artigo de E ORTIGUES Escriture et Traditions apostoliques au Concilie de Trente in RSR 36 (1949) p 271-299 K D SCHMIDT Studien zur Geschichate des Konzilis von Trient Tubinga 1925 p 152-209 26 O discurso nos foi transmitido em duas redaccedilotildees A primeira mais curta encontra-se nas Atas do Conciacutelio in CT V 11 A segunda faz parte do diaacuterio de Massarelli (Diarium III) in CT I p484 Quanto ao conteuacutedo os dois textos se completam Na anaacutelise que aqui ensaiamos as duas versotildees satildeo comparadas entre si de modo a fazerem um todo Sobre a posiccedilatildeo de Cervini no Conciacutelio cf H JEDIN Geschichte des Konzils von Trient II Friburgo 1957 p38-40 A descriccedilatildeo do desenrolar histoacuterico dos debates acha-se em JEDIN op cit p42-82 e supomo-la conhecida do leitor de vez que serve de base para a anaacutelise teoloacutegica do Decreto tridentino

esclarecimentos Cervini sustenta no citado discurso que existem trecircs princiacutepios e fundamentos de nossa feacute

1) Os livros sagrados escritos sob a inspiraccedilatildeo do Espiacuterito Santo 2) O Evangelho que Nosso Senhor natildeo escreveu mas ensinou oralmente e

implantou nos coraccedilotildees Parte do Evangelho foi escrita mais tarde pelos Evangelistas enquanto muita coisa foi simplesmente confiada aos coraccedilotildees dos fieacuteis

3) Porque o Filho de Deus natildeo ia permanecer sempre entre noacutes enviou ele o Espiacuterito Santo que haveria de revelar os misteacuterios no iacutentimo dos fieacuteis e de ensinar agrave Igreja toda a verdade ateacute ao fim dos tempos27

[43] Numa segunda redaccedilatildeo mais detalhada do discurso estas mesmas ideacuteias satildeo

desenvolvidas mais amplamente Aiacute lemos que a Revelaccedilatildeo se apresentou de modo diferente em diversos tempos

1) Nos Patriarcas cuja feacute eacute atestada na Escritura a que chamamos de Antigo Testamento

2) Em Jesus Cristo que implantou o seu Evangelho natildeo por escrito mas oralmente natildeo in charta mas in corde Das coisas que emanaram de Cristo (quaelig a Cristo emanarunt) algumas foram escritas outras permaneceram nos coraccedilotildees dos homens (quaeligdam in cordibus hominum relicta fuerunt) Todo o Evangelho de Cristo que consta desta dupla modalidade forma (tendo como primeiro princiacutepio o Antigo Testamento) o secundum prindipium fidei nostraelig

3) Daiacute surge o terceiro princiacutepio (tertium autem) porque o Filho de Deus natildeo iria permanecer sempre entre noacutes enviou ele ao mundo o Espiacuterito Santo que haveria de explicar os misteacuterios de Deus e tudo o que fosse ainda obscuro para os homens28 De modo semelhante a citada carta ao Cardeal Farnese fala de dois passos (due

passi) Um eacute que a Revelaccedilatildeo de Nosso Senhor natildeo foi totalmente escrita mas permaneceu em parte contida nos coraccedilotildees dos homens e na Tradiccedilatildeo da Igreja O outro [43] passo consiste em confirmar ldquoquello che egrave suggerito lo Spirito Santo in la Chiesa maxime medianti i concilij doppo lAscensione in cielo del Signorerdquo29

Notamos logo que contrariamente ao que esperaacutevamos natildeo dois mas trecircs satildeo os princiacutepios apontados a Escritura o Evangelho e a Revelaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

27 CT V 11 helliptria esse principia et fundamenta nostrae fidei primum libros sacros secundum esse evangelium quod Christus Dominus Noster non scripsit sed ore docuit et in cordibus illud plantavit cujus evangelii nonnulla evangelistaelig scripto mandarunt multa quoque relicta sunt in cordibus hominum Tertium quia non semper filius Dei corporaliter nobiscum mansurus erat misit Spiritum Sanctum qui in cordibus fidelium secreta Dei revelaret et ecclesiam quotidie et usque consummationem saeligculi doceret omnem veritatem et si quid in mentibus hominum dubii occurrisset declararet 28 CT I 484 Digna de nota eacute ainda a foacutermula contida na paacutegina 48514-16 nihil tamen inter scripturas sacras et apostolicas traditianes differt illaelig enim scriptaelig hae per insinuationem habentur utraeque tamen a Spiritu Sancto eodem modo emanataelig Confira-se com CT V 11 19 ab eodem Spiritu et illos (scilicet libros) et istas (scilicet traditiones) descendisse 29 CT X 373

Eacute portanto necessaacuterio observar que sob o termo ldquoEscriturardquo se entende o Antigo Testamento e que aleacutem deste (que eacute Escritura em sentido proacuteprio) aparece como segundo princiacutepio o Evangelho apresentaccedilatildeo do Cristo-evento O Evangelho por sua vez abrange o que estaacute escrito e o que natildeo estaacute escrito mas sim apenas insculpido no coraccedilatildeo dos crentes Deste modo o segundo princiacutepio representa uma vantagem pneumaacutetica sobre o que estaacute escrito o Evangelho eacute nesta concepccedilatildeo algo diferente da letra (Escritura) e soacute em parte vem escrito (Isto natildeo deve ser entendido no sentido de divisatildeo das verdades da feacute fenocircmeno denunciado ldquocom horrorrdquo por Geiselmann Ao contraacuterio Entenda-se apenas no sentido de diferente grau de dignidade no modo de exprimir-se) Em rigor o Evangelho como tal soacute pode ser escrito em parte se considerarmos a sua essecircncia

Finalmente ndash o que eacute muito de se admirar ndash segue-se como terceiro princiacutepio a accedilatildeo visiacutevel do Espiacuterito Santo em todo o tempo da Igreja

Admitimos portanto que o que noacutes geralmente chamamos de Tradiccedilatildeo natildeo aparece aqui como um soacute princiacutepio Biparte-se antes em dois princiacutepios intimamente ligados o ldquoEvangelhordquo princiacutepio apenas em parte identificaacutevel com a Escritura e a accedilatildeo do Espiacuterito Santo no tempo da Igreja Ademais podemos observar que a Escritura do Novo Testamento natildeo aparece como um princiacutepio ao lado da Revelaccedilatildeo apostoacutelica Muito menos como [44] eacute o nosso caso se apresenta a Escritura neotestamentaacuteria juntamente com a veterotestamentaacuteria como uma grandeza uacutenica uma ldquoEscriturardquo soacute agrave qual se poderia contrapor a ldquoTradiccedilatildeordquo como uma segunda grandeza O Novo Testamento em seu conjunto aparece como um segundo e mais amplo princiacutepio ou seja o Evangelho que como tal se opotildee de um lado ao Antigo Testamento e de outro agrave projeccedilatildeo histoacuterica do tempo da Igreja Sua unidade interna eacute evidentemente mais forte e importante do que a sua divisatildeo em escrito e natildeo-escrito Assim o Evangelho como um soacute princiacutepio pode ser contraposto ao Antigo Testamento a despeito desta dupla formalidade A impossibilidade de se representar o Novo Testamento como Escritura impossibilidade esta demonstrada por Satildeo Paulo e pelos primeiros seacuteculos cristatildeos eacute aqui claramente revelada

Ainda uma observaccedilatildeo relativa ao texto a que vimos nos referindo Em nenhum dos dois pontos por noacutes citados no estudo da Tradiccedilatildeo isto eacute nem no elemento contido no primeiro nem no apresentado no terceiro princiacutepio figura a Tradiccedilatildeo como verbal Em ambos os casos ao contraacuterio trata-se mais da Tradiccedilatildeo real com prevalecircncia da realidade sobre as palavras que a atestam Este fato que estaacute claro no terceiro princiacutepio o pneumatoloacutegico vale tambeacutem em relaccedilatildeo agrave implantaccedilatildeo do Evangelho nos coraccedilotildees contida no segundo princiacutepio Tal implantaccedilatildeo vai muito aleacutem do que se encontra expresso na letra da Escritura

Que papel tenham estas ideacuteias exercido nas discussotildees do Conciacutelio pode-se concluir tambeacutem das auctoritates citadas por Cervini entre as quais figuram Jo 16 12 (hellipSpiritus Sanctus suggerethellip) e Fl 3 15 (Quicumque perfecti sumus haeligc sentiamus et si quid aliter sentitis haeligc quoque Deus vobis revelabit) Ambos estes textos satildeo de teor acentuadamente [45] pneumatoloacutegico-presencial30 Que tais ideacuteias natildeo eram

30 CT V 14 e 15 Um exame profundo das auctoritates quer da Escritura quer entre os Santos Padres que neste particular satildeo favoraacuteveis agrave Tradiccedilatildeo seria em si conclusivo para a elaboraccedilatildeo do conceito

estranhas aos Padres conciliares deduz-se ainda de uma seacuterie de outras referecircncias Assim ouvimos o Bispo de Aqui dizer que aleacutem da Sagrada Escritura existe muita coisa na Igreja de Deus que vindo dos Apoacutestolos e passando de geraccedilatildeo a geraccedilatildeo chegou ateacute noacutes assim como muitas outras quaelig etsi scripta Apostoli nobis non reliquerunt per Spiritus Sancti revelationem nobis (tradita) sunt (Tradita estaacute aqui por revelata) 31 Partindo daiacute se poderia descrever a Tradiccedilatildeo justamente como o componente pneumatoloacutegico do Cristo-evento b) A influecircncia do esquema de Cervini em diversas decisotildees conciliares

Eacute verdade que esta concepccedilatildeo tripartida aparece muito atenuada no Decreto

oficial sobre a Tradiccedilatildeo Que poreacutem em suas linhas fundamentais natildeo tenha ela sido de modo nenhum [46] abandonada mostram-no duas outras passagens nas quais o Conciacutelio faz uso por assim dizer in actu das ideacuteias aqui expressas32 Assim na Introduccedilatildeo ao Decreto sobre a Eucaristia (Denz 873) se lecirc Sacrosancta Synodus sanamhellipdoctrinam tradens quam semper catholica Ecclesia ab ipso Jesu Christo Domino Nostro et eius apostolis erudita atque a Spiritu Sancto illi omnem veritatem in dies suggerente (Jo 1416) edocta retinuithellip

Aqui a accedilatildeo proacutepria do Conciacutelio eacute descrita como tradere e a este tradere eacute atribuiacutedo um duplo fundamento De um lado o ensino de Jesus e dos Apoacutestolos (Note-se que este ponto corresponde ao Evangelho segundo a concepccedilatildeo de Cervini E de certo modo tambeacutem pela citaccedilatildeo de Jesus e dos Apoacutestolos se reconhece a dupla modalidade do Evangelho como escrito e como inserido nos coraccedilotildees) De outro lado o ensino dado pelo Espiacuterito Santo que conduz agrave verdade in dies isto eacute no de correr do tempo futuro

O outro texto que pode ser aduzido aqui como prova do que afirmamos encontra-se no Preacircmbulo do Decreto sobre o Purgatoacuterio (Denz 983) Aiacute se lecirc hellipCatholica Ecclesia Spiritu Sancto edocta ex Sacris Litteris et antiqua Patrum traditione in sacris Conciliis et novissime in hac Synodo docuerit A descriccedilatildeo da accedilatildeo proacutepria do

aqui exposto H HOLSTEIN procurou fazer o cotejo destas auctoritates e fecirc-lo de modo admiraacutevel em seu artigo La Tradition dapregraves le Concile de Trente (RSR 47 1959 p367-390 e em particular para o caso em questatildeo a p375) Ele encontra nos textos estudados duas linhas de tendecircncias A linha de Santo Irineu para a qual o testemunho dos Apoacutestolos eacute o de sua personalidade de sua vida e de seu ofiacutecio Aleacutem desta o grupo composto de Tertuliano Cipriano Basiacutelio e Agostinho forma uma corrente que se poderia denominar ldquocerimonialrdquo Oriacutegenes se enquadra em ambos os grupos Existe entre os autores estudados uma seacuterie de textos que se referem agraves observationes consuetudines institutiones e que levam a entender-se a Tradiccedilatildeo neste mesmo sentido Aiacute se vecircem tambeacutem textos que sublinham o aspecto natildeo-escrito do Evangelho enquanto insculpido no coraccedilatildeo dos fieacuteis e aleacutem disso textos que apontam a Igreja como o ldquolugarrdquo da verdade cristatilde 31 CT I 483 (18 de fevereiro de 1546) Em 26 de fevereiro (CT V 18) encontramos Cervini a tratar de novo deste assunto Cf tambeacutem um pronunciamento do Bispo de Fano (CT V 10) nestes termos Cum jam receperimus Scripturas Sacras necessario recipiendaelig sunt traditiones quaelig ab eodem Spiritu Sancto quo scripturaelig dictataelig sunthellip 32 Disto me adverti pela primeira vez atraveacutes de um estudo realizado sob a minha orientaccedilatildeo por CHR LIMBACR a quem sou devedor de muitas informaccedilotildees bibliograacuteficas

Conciacutelio como tradere encontra-se ainda nas declaraccedilotildees sobre o Sacramento da Extrema-Unccedilatildeo (Denz 910)

Finalmente a triacuteplice divisatildeo deixa-se insinuar nas entrelinhas do Decreto sobre a Tradiccedilatildeo embora obscurecida e diluiacuteda por uma seacuterie de acreacutescimos e citaccedilotildees a ele adicionados por outros motivos O Decreto da Tradiccedilatildeo com efeito [47]

1) Fala do Evangelho prometido pelos Profetas na Escritura e refere-se a esta em sentido estrito quer antes quer depois do Antigo Testamento

2) Fala da promulgaccedilatildeo por Cristo do Evangelho que foi transmitido pelos Apoacutestolos sob dupla forma oral e escrita Desta maneira o que natildeo ocorre no exemplo de Cervini aparece aqui antes de tudo o componente pneumatoloacutegico unido com o componente apostoacutelico a ponto de se distinguirem duas modalidades de Tradiccedilatildeo apostoacutelica a que remonta a Cristo e a que remonta ao envio do Espiacuterito Santo Pode-se assim estabelecer que em oposiccedilatildeo ao esquema de Cervini haacute um certo processo de historicizaccedilatildeo que salienta a relaccedilatildeo com o comeccedilo histoacuterico e igualmente parece deslocar o acento da tradiccedilatildeo real para a verbal

3) No epiacutelogo desta parte do Decreto da Tradiccedilatildeo que vimos analisando de novo eacute considerada a ideacuteia da Sagrada Escritura O conceito de Tradiccedilatildeo eacute entatildeo formulado em definitivo e descrito como vel oretenus a Christo vel a Spiritu Sancto dictatas et continua successione in Ecclesia catholica conservatas A referecircncia aos Apoacutestolos eacute omitida Pode-se na verdade considerar tudo isto como uma volta ao que foi dito antes Evidentemente a tradiccedilatildeo ditada pelos Apoacutestolos eacute citada de novo (A expressatildeo continua successione insinua-o) Contudo permanece sempre ainda certa indeterminaccedilatildeo ficando aberta a possibilidade de se encontrar aqui o vestiacutegio do terceiro componente de Cervini o princiacutepio pneumaacutetico propriamente dito Eacute tambeacutem claro que esta ideacuteia eacute discreta sendo adotada uma posiccedilatildeo mais acentuadamente histoacuterica Se agora lanccedilarmos os olhos sobre o que vimos considerando ateacute aqui surgiratildeo

inevitavelmente perguntas qual eacute realmente o sentido proacuteprio da concepccedilatildeo pneumatoloacutegica Como poderia ser perfeitamente entendida a ideacuteia a noacutes estranha de uma revelatio prolongada no tempo em face da unicidade e do caraacuteter [48] histoacuterico da Revelaccedilatildeo que evidentemente era conhecido tanto de Cervini quanto dos Santos Padres e teoacutelogos medievais33

Antes de examinarmos isto devemos esclarecer rapidamente os principais motivos que inspiraram o Decreto tridentino sobre a Escritura e a Tradiccedilatildeo deixando nele um tanto encoberta a concepccedilatildeo pessoal de Cervini Que opiniotildees de teoacutelogos teratildeo intervindo aqui chegando a ser em parte impressas no texto definitivo que resultou do cotejo de muitos pronunciamentos diversos Uma exposiccedilatildeo detalhada deste ponto exorbitaria do acircmbito de nossa anaacutelise Contentemo-nos com umas poucas observaccedilotildees sumaacuterias 33 Sobre este assunto tentei fazer um breve comentaacuterio no meu trabalho ldquoOffenbarung-Schrift-Uberlieferungrdquo in TThZ 67 (1958) p13-27 Cf J BEUMER ldquoDer theoretische Beitrag der Frnhscholastik zum Problem des Dogmenfortschrittsrdquo in ZkTh 72 (1952) p205-226 J de CHELLINCK Pour lrsquohistoire du mot ldquorevelarerdquo in RSR 6 (1916) p149-157

2 Relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a vida da Igreja

em diversas passagens do debate tridentino

Uma primeira seacuterie de motivos entre os quais se compreendem diversos pronunciamentos agraves vezes muito contrastantes em seu aparato exterior patenteia-se na ideacuteia de tradiccedilotildees expressa no Decreto de duas maneiras a) - per manus traditaelig ad nos usque pervenerunt b) - continua successione in Ecclesia catholico conservatas

O que se ocultaraacute sob estas duas foacutermulas que o historiador de hoje tem dificuldades em aceitar justamente por causa do historicismo nelas impliacutecito Podemos dizer que um decisivo papel exerceu aqui o pensamento que sempre aparecia nos debates a saber que as tradiccedilotildees satildeo variaacuteveis que muitas delas foram abolidas pelos Apoacutestolos e que por outro lado se [49] introduziram tradiccedilotildees eclesiaacutesticas que natildeo mais seriam abolidas34 Esta ideacuteia de Tradiccedilatildeo de certo modo se torna clara no tratado escrito sobre o mesmo assunto por Seripando para uso dos Padres Conciliares Seripando fala das Tradiccedilotildees escritas inseridas na Escritura como as claacuteusulas de Tiago o costume de as mulheres se cobrirem com um veacuteu a legislaccedilatildeo sobre o matrimocircnio contida em 1Cor 7 etc E o autor adverte que estas praacuteticas foram abolidas Isto porque embora associadas agrave palavra de Deus na Escritura dela ldquomuito diferemrdquo pois a palavra divina [50] de modo nenhum poderia ser abolida A estas tradiccedilotildees

34 Cabe aqui aduzir uma nova intervenccedilatildeo de Cervini datada de 26 de fevereiro de 1546 (CT I 33 e V 18) onde ele diz que nem todas as tradiccedilotildees procedentes dos Apoacutestolos devem ser conservadas mas somente as que ab Ecclesia receptaelig ad nos usque pervenerunt (V 18) Esta afirmaccedilatildeo anterior agrave formulaccedilatildeo dogmaacutetica feita pelo Concilio deve igualmente ser tida na conta de um autecircntico comentaacuterio do Decreto Aiacute se acentua como condiccedilatildeo essencial das tradiccedilotildees a receptio ecclesiaelig Vem ainda referida uma intervenccedilatildeo do Bispo de Bertinoro em data de 23 de marccedilo (I p 523) na qual ele sublinha que as tradiccedilotildees escritas por vezes foram mudadas Jaacute entre as natildeo-escritas umas foram mudadas e outras natildeo como por exemplo o rito de adicionar aacutegua ao vinho a Crisma a confissatildeo auricular O Bispo de Bertinoro acrescenta que por outro lado alguns pontos existem que permaneceram inteiramente inalterados tais como a crenccedila no descensus ad inferos na virgindade perpeacutetua de Maria a substituiccedilatildeo da observacircncia do saacutebado pela do domingo Temos depois um pronunciamento do Bispo de Bitonto datado de 27 de marccedilo (I 39) Este bispo era de parecer que algumas coisas foram transmitidas pelos Apoacutestolos com a finalidade de serem perpetuamente conservadas (como pertencentes ao depoacutesito da feacute) outras caiacuteram em desuso (como as claacuteusulas de Tiago) e outras enfim foram apenas aconselhadas Assim mesmo na Escritura algumas coisas haacute que foram escritas mas natildeo recebidas em uso por serem mateacuteria de mero conselho Por exemplo ldquose algueacutem te pedir a tuacutenica daacute-lhe tambeacutem o paacutelio se algueacutem te esbofetear numa face oferece-lhe tambeacutem a outrardquo Sem duacutevida excelente ilustraccedilatildeo do sermatildeo da montanha Finalmente consideraccedilotildees idecircnticas podemos encontrar na obra citada de LEJAY Eis outra amostra tirada do discurso de 23 de fevereiro (CT V 13) Nam illaelig (scil traditiones) quaelig ad fidem pertinent eadem sunt recipiendaelig auctoritate qua recipitur evangelium alia autem non ita eum earum plurimaelig immutataelig fuerint ut de bigamis de esu sanguinis et similia De modo semelhante aliaacutes fala tambeacutem Bonuccio (I 525 a 23 de marccedilo de 1546 ecclesia traditiones apostolorum quandoque mutavit verbum autem Dei nunquam mutavit neque mutare potest

Seripando opotildee as natildeo referidas na Biacuteblia e que ora satildeo apostoacutelicas ou oriundas de Conciacutelios universais e aceitas por toda a Igreja ora satildeo particulares e muito variaacuteveis35

Este texto nos leva a uma surpreendente conclusatildeo para Seripando e muitos outros Padres tridentinos36existem tradiccedilotildees na Escritura ldquoTradiccedilatildeordquo natildeo significa o natildeo-escrito Existe quer dentro da Escritura quer fora dela Isto nos conduz a outra pergunta em que consiste para os referidos Padres a essecircncia da tradiccedilatildeo se o que a constitui natildeo eacute o fato de natildeo ser escrita37 Em outros termos como pode a tradiccedilatildeo ser definida positivamente se ela natildeo pode ser suficientemente determinada pela ideacuteia negativa de algo natildeo-escrito

Haacute uma seacuterie de respostas para esta pergunta O proacuteprio Seripando daacute a seguinte definiccedilatildeo Traditiones hoc est Apostolorum seu sanctorum Patrum sanctae et salutares constitutiones38 Mais clara ainda eacute a afirmaccedilatildeo de Cervini citada por Massarelli A objeccedilatildeo do Bispo de Chioggia que aduzia a opiniatildeo de Agostinho de que tudo o que eacute necessaacuterio para a salvaccedilatildeo estava escrito na Biacuteblia respondia Cervini da seguinte maneira Verba illa (isto eacute de Santo Agostinho) formaliter intelligi debent scilicet ad fidem accipiendam ut salvi fiamus Quo vero ad mores et christianam vitam instituendam certo non omnia scripta sunt

[51] E de novo recorre agraves provas tiradas de Jo 1526 e 1426 E indica o princiacutepio pneumatoloacutegico39 O que eacute mais importante eacute que a Tradiccedilatildeo se refere agrave institutio vitaelig agrave presenccedila atuante da Palavra revelada na existecircncia cristatilde Tradiccedilatildeo eacute noutros termos a eficaacutecia da palavra de Deus Sem ela a palavra ficaria esteacuteril 35 Seripando De traditionibus (fevereiro ou marccedilo de 1546) CT XII p517-521 e principalmente a p 521 As expressotildees desta uacuteltima paacutegina chocam-se com a ideacuteia de Cervini sobre a receptio ecclesiaelig 36 Cf o texto citado na nota 11 37 No texto definitivo do Decreto esta ideacuteia natildeo aparece mais Aqui poreacutem com esta primeira designaccedilatildeo expliacutecita da Tradiccedilatildeo vem expressamente acentuado o contraste entre in libris scriptis et sine scripto traditionibus Na segunda redaccedilatildeo o sentido expliacutecito da palavra Tradiccedilatildeo natildeo eacute tatildeo exclusivo Contudo apresenta igual matiz ao se confrontarem as expressotildees omnes libroshellipnec non traditiones ipsas Portanto a ideacuteia positiva da Tradiccedilatildeo que serve de base a esta anaacutelise natildeo deixou de influenciar na redaccedilatildeo do Decreto 38 CT XII 517 39 CT I 494 (26 de fevereiro de 1546) A citada palavra de Santo Agostinho teve o seu papel a desempenhar na discussatildeo em curso Seripando por exemplo a ela se referiu (De traditionibus CT XII 521 47-53) Pensandum denique ne in traditionibus externis vera religio et salutis spes statuatur de quibus Augustinus Omnia quaelig pertinent ad veram religionem quaeligrendam et tenendam divina Scriptura non acuit Conceda-se que nem tudo foi escrito (veja-se Jo 2125) Todavia electa sunt autem quaelig scriberentur quaelig saluti credentium sufficere videbantur Mais do que nos debates do tridentino encontramos aqui um verdadeiro postulado dos Reformadores ldquonatildeo adotar costumes exteriores mas buscar os meios definitivos de salvaccedilatildeo na palavra da Escriturardquo A ldquosuficiecircnciardquo da Escritura de que aqui se fala eacute na verdade algo diverso da suficiecircncia material da mesma Escritura defendida por Geiselmann em sentido muito mais radical Infelizmente ainda natildeo se quis levar na devida consideraccedilatildeo o texto de Santo Agostinho (CT I 494 sugere De doctrina christiana II 9 e De pecc mero et rem II 59) Muito apropriadas nesta ordem de ideacuteias satildeo as observaccedilotildees de H SCHAUF ldquoSchrift und Traditionrdquo in Antonianum 39 (1964) p200-209 feitas no chamado Encontro de Duumlsseldorf Nos textos citados por Schauf com base em Agostinho eacute afirmada a suficiecircncia da Escritura para a salvaccedilatildeo Eacute contudo contestada a sua suficiecircncia para a Igreja em geral De fato esta alternativa parece muito mais vaacutelida e fundamental agrave luz dos postulados dos Reformadores do que a alternativa entre a suficiecircncia ou insuficiecircncia material da Escritura

Na mesma linha de ideacuteias seguem-se duas outras seacuteries de pronunciamentos Vimos na introduccedilatildeo agrave parte anterior que a discussatildeo dogmaacutetica da ideacuteia de

Tradiccedilatildeo foi em parte prejudicada pela questatildeo do meacutetodo a seguir no Conciacutelio dever-se-ia abordar primeiro a reformatio a reforma praacutetica da Igreja como queria o ldquoKaiserrdquo Ou primeiro discutir a questatildeo dogmaacutetica como preferia o Papa40

[52] Este problema do meacutetodo embora resolvido no debate que entatildeo surgiu natildeo afetou diretamente a questatildeo da Tradiccedilatildeo como tal Mas como de fato estas duas questotildees ficaram ligadas entre si daiacute resultou que muitos oradores transformaram a questatildeo do meacutetodo (se se deveria falar dos abusos ou da Tradiccedilatildeo) em parte de sua argumentaccedilatildeo em torno do assunto em pauta41 O problema abusus e o problema Traditio ficaram de tal maneira associados na ocasiatildeo que pareciam formar no fundo um soacute assunto Por isso os oradores ora falavam em sentido positivo ora se pronunciavam em sentido negativo Isto correspondia tambeacutem ao propoacutesito reformista do Conciacutelio as traditiones representavam os abusus aos quais a Igreja se opunha Os Padres estavam cocircnscios de que condenar as traditiones era condenar Os usus ecclesiaelig o modo como a Igreja vivia a sua vida naquela eacutepoca

A outra seacuterie de pronunciamentos que se inclinavam ao mesmo sentido encontramo-la nas proposiccedilotildees que a auctoritas da Igreja apresenta como definitivas indicando uma iacutentima relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a institutio christiana 42

[53] Podemos agora retomar ao nosso ponto de partida e dar resposta agrave pergunta que propriamente significa a foacutermula ad nos usque pervenerunt Objetivamente natildeo se trata aqui de um historicismo que a foacutermula parece expressar Ao contraacuterio Trata-se da fidelidade perseverante da Igreja agrave institutio vitaelig christianaelig da legiacutetima forma de vida cristatilde em concreto no tempo presente da Igreja da institutio christiana que coloca a Escritura em primeiro lugar e que como tal isto eacute como vida decorrente da Escritura eacute fundamentalmente apostoacutelica embora tambeacutem sujeita a mudanccedilas como tudo o que eacute vivo

3 A Tradiccedilatildeo e o dogma eclesiaacutestico

40 Sobre o debate em torno da questatildeo do meacutetodo cf mais uma vez JEDIN op cit p9-82 e outras 41 Assim jaacute no discurso de Cervini antes analisado (CT I 484) no qual ele recorda o dilema do Conciacutelio se nos voltarmos contra as tradiccedilotildees ficaratildeo admirados os Padres Conciliares quasi reformationem fugiamus si ipsam reformationem sumimus iterum objicient traditiones relinquendas non esse Idecircntica era a situaccedilatildeo em que se encontrava o Bispo de Astorga nas duas intervenccedilotildees que fez no dia 23 de fevereiro de 1546 (CT V 13 e 19) segundo Seripando (I 484) helliptraditiones prius pertractandas consulit tantam enim conformitatem abusus qui ex sacris libris descendunt cum iis qui a traditionibus orti sunt habent ut sacris libris et traditionibus absolutis duo illa abusuum genera simul pertractari valeant Segundo Bonuccio (I 484) antes de tudo dever-se-ia tratar das Sagradas Escrituras dos cacircnones apostoacutelicos dos Conciacutelios gerais e das decretais pontifiacutecias Hisque ilusceptis ad abusus ex eisdem dependentes devenire 42 Assim principalmente de acordo com Afonso de Castro (CT I 484) Quoniam ultra traditiones apostolicas ecclesiae auctoritatem habemus quaelig ecclesiaelig auctoritas tonta apud nos est ut aliqui eam maioris roboris quam sacros libros esse sentiant Cf igualmente CT I 491 45 Na mesma linha pode-se ver uma seacuterie de pronunciamentos na citada obra de LEJAY Cf CT XII 524 (Tratado De traditionibus ecclesiaelig fevereiro ou marccedilo de 1546)

Uma segunda seacuterie de motivos eacute expressa no Decreto pela foacutermula traditiones tum ad fidem tum ad mores pertinentes Se como vimos a ideacuteia de Tradiccedilatildeo aparece muito limitada naquilo que os Padres conciliares chamam consuetudines observationes institutiones por outro lado o Procurador do Cardeal de Augsburgo Claudio Lejay SJ se fez o porta-voz de uma expressatildeo que em oposiccedilatildeo agraves traditiones caeligremoniales estabeleceu justamente o sentido da tradiccedilatildeo contida na feacute Seu tratado sobre a Tradiccedilatildeo composto para uso dos Padres conciliares inclui tambeacutem a foacutermula que foi adotada pelo Conciacutelio Aiacute se diz Denique multas veritates tum ad fidem tum ad mores pertinentes Ecclesia novit quas Scriptura aperte et expresse non continet Ele cita como exemplos as palavras persona essentia trinitas no Tratado da Santiacutessima Trindade consubstantialitas na Cristologia do Logos duas naturezas uma soacute Pessoa referentes ao dogma definido pelo Conciacutelio de Calcedocircnia E ainda Cristo Filho uacutenico de Maria duas vontades na uacutenica Pessoa de Cristo uma alma racional aleacutem do espiacuterito divino em Cristo Ana matildee de Maria o costume de fazer sinais da cruz a santificaccedilatildeo do domingo a maneira de rezar com face voltada [54] para o Oriente tudo isto ideacuteias e fatos da tradiccedilatildeo conciliar e da piedade cristatilde43

Cervini que aprovou o discurso de Lejay de 23 de fevereiro de 154644 pocircde dificilmente conciliar esta posiccedilatildeo com a sua expressa na jaacute citada carta ao Cardeal Farnese onde como vimos ele diz que o Espiacuterito Santo falou na Igreja e depois da Ascensatildeo do Senhor fala ainda maxime medianti i concilii45 Ele aiacute viu publicamente sublinhado o fato de que aquele ldquomaisrdquo que a Igreja viva representa em relaccedilatildeo agrave palavra meramente escrita natildeo se referia e natildeo se refere apenas agrave vita instituenda ou como ele prefere agrave caeligremonialia Refere-se tambeacutem agrave essentialia fidei que antes de tudo plenamente se expressam na Tradiccedilatildeo Tambeacutem aqui como se vecirc o interesse dominante natildeo estaacute na apresentaccedilatildeo historicista do assunto a partir do iniacutecio da Igreja mas na ideacuteia de que a influecircncia da Tradiccedilatildeo sobretudo atraveacutes da praxe conciliar eacute de fundamental importacircncia para a feacute para a doutrina crida e natildeo apenas para a piedade viva ou a caeligremonialia

4 O sentido do Decreto tridentino

Se recapitularmos o que ateacute agora dissemos veremos que no conjunto facilmente se podem reconhecer trecircs diferentes concepccedilotildees teoloacutegicas unidas entre si no texto definitivo do Decreto sobre a Tradiccedilatildeo Unidas mas natildeo equiparadas umas agraves outras Pelo contraacuterio apesar de sua grande diferenccedila foram elas apenas [55] mais ou menos justapostas e de novo por forccedila de uma tendecircncia comum relacionadas entre si

1 A concepccedilatildeo de Cervini que designamos como pneumatoloacutegica Com sua doutrina sobre os trecircs principia fidei insiste ele no caraacuteter dinacircmico do Cristo-evento

43 CT XII 523 LEJAY baseia-se evidentemente em listas de tradiccedilotildees confeccionadas naquele tempo (Cf ECK DRIEDO CANO BOTO NOGAROLA) Cf a este respeito Y CONGAR ldquoTraditions apostoliques non eacutecrites et suffisance de lEscrituresrdquo in Istina 6 (1959) p219-306 e principalmente a paacutegina 289 44 CT V 14 45 CT X 373

presente na Igreja Entende assim a Tradiccedilatildeo primariamente como a realidade espiritual da institutio vitaelig christianaelig

2 A concepccedilatildeo que podemos chamar de cerimonial Esta entende a Tradiccedilatildeo essencialmente como a seacuterie de consuetudines existentes ao lado da feacute como os usus ecclesiaelig que os Reformadores falsamente pretendem abolir como abusus Esta concepccedilatildeo chega a condenar a dignidade e Antiguumlidade apostoacutelica das tradiccedilotildees Sua ideacuteia eacute limitada pelo ad nos usque pervenerunt que inclui possibilidade de variar da parte das tradiccedilotildees donde a necessidade de reduccedilotildees Com os termos pervenire e conservare a recepccedilatildeo por parte da Igreja eacute considerada criteacuterio adicional ao lado da Antiguumlidade

3 A concepccedilatildeo que talvez possamos denominar dogmaacutetica Em oposiccedilatildeo agrave fixidez da ideacuteia de Tradiccedilatildeo reduzida agrave consuetudo salienta esta terceira hipoacutetese a extensatildeo do fenocircmeno Tradiccedilatildeo tambeacutem ao acircmbito da fides

Estas trecircs concepccedilotildees deram forma ao texto do Decreto de tal modo que as suas

linhas mestras derivam de Cervini e todo o texto deve ser entendido agrave luz de suas ideacuteias Contudo em duas passagens isto eacute no pervenerunt e no conservatas haacute influecircncia da segunda concepccedilatildeo enquanto no tum ad fidem tum ad mores haacute influecircncia da terceira

Em face destas trecircs concepccedilotildees das quais na realidade existem diversas variantes que tomadas em conjunto satildeo a expressatildeo das ideacuteias dominantes adotadas aparecem as teses de Bonuccio e de Nacchianti tatildeo postas em evidecircncia por Geiselmann como sentenccedilas contraacuterias De fato o parecer de Bonuccio claramente [56] se opotildee agrave segunda concepccedilatildeo (contra a supervalorizaccedilatildeo das consuetudines natildeo per pietatis affectus) ao passo que Nacchianti se levanta antes contra a terceira posiccedilatildeo e salienta a suficiecircncia da feacute recebida por meio da Escritura46

Seria de notar-se ainda que as concepccedilotildees segunda e terceira tecircm algo em comum Ambas opotildeem agrave visatildeo pneumatoloacutegica de Cervini da salvaccedilatildeo sempre presente uma visatildeo mais historicista relacionada com o prolongamento da salvaccedilatildeo operada uma soacute vez ou seja o ἑφάπαξ Na realidade deve-se dizer que embora de um lado tanto a visatildeo presencial de Cervini como tambeacutem a visatildeo historicista do outro grupo se consideradas isoladamente cada qual de per si sejam perigosas se natildeo insustentaacuteveis 46 Aliaacutes de acordo com uma informaccedilatildeo de Cervini parece que o Bispo de Chioggia finalmente renunciou agrave sua tese da suficiecircncia da Escritura na qual se inclinava a recusar as tradiccedilotildees Na carta de Cervini ao Cardeal Farnese de 27 de fevereiro de 1546 lemos hellip Chioggia che (quasi quasi) voleva dire queste traditioni essere superflue perorando che tutto quello che era necessario alla salute era scritto et allegando etiam S Agostino sopra lultimo capitulo di S Giovanni a questo proposito Pure per non poter negare che molte cose appartenenti almeno alli sacramenti non ci fussero venute ex tra ditione et per consequente che non tutte le cose necessarie alia nostra salute erano scritte poiche ebbe fatte molte distintioni concluse che ancor lui accettava queste ldquoche in la chiesa fusse qualque traditione apostolica non scrittardquo (et con queste parole diceva che se ne facesse il decreto) credo che molti sono restati scandalizati di lui (CT X Nr 315 paacutegs 399 411) Cf tambeacutem CT I 494 nota 9 e 495 nota 2 CT V 18 nota 5 e 19 e nota 1 O mesmo protesto que aparece contra Nacchianti manifesta-se tambeacutem na observaccedilatildeo de Massarelli Este chega a chamar aquele de novarum rerum cupidus (1 494 18) e esclarece que reprehensus est a multis (1 494 22) Diante disto eacute de todo destituiacuteda de creacutedito a importacircncia que Geiselmann lhe atribui mesmo se abstrairmos de outras razotildees jaacute conhecidas sobre as quais natildeo precisamos insistir

de outro lado pelo menos tornam possiacutevel uma exata visatildeo do conjunto devido agrave sua muacutetua confluecircncia e limitaccedilatildeo No texto atual estatildeo presentes embora pouco nitidamente ambos os pontos de vista o elemento presencial e o ἑφάπαξ Conveacutem que entendamos assim o texto de modo a considerarmos [57] ambos estes aspectos como essenciais Consequumlentemente reconheceremos que ambos pertencem constitutivamente agrave realidade da vida cristatilde e portanto tambeacutem agravequela parcela do Cristianismo a que damos o nome de Tradiccedilatildeo Estes dois elementos satildeo a presenccedila do Espiacuterito Santo e o seu nexo com o fato singular da salvaccedilatildeo ocorrido uma soacute vez por todas na histoacuteria dos homens

Assim se acharaacute finalmente a resposta agrave pergunta de corno noacutes devemos entender o parecer do Conciacutelio de Trento A primeira e mais importante conclusatildeo parece-me ser o fato de o Conciacutelio ter visto muito claramente o nexo entre Tradiccedilatildeo e Revelaccedilatildeo A seguir elaborou sempre em consonacircncia com a tradiccedilatildeo patriacutestica e medieval um conceito de Revelaccedilatildeo muito menos material do que o que seraacute adotado mais tarde pela teologia dos tempos modernos Somente assim se deve conceber a ideacuteia da Revelaccedilatildeo do Espiacuterito Santo na Igreja Partindo do ramo nitidamente patriacutestico da teologia medieval tatildeo francamente acolhido no discurso de Cervini deveria ser muito menos categoacuterica a opiniatildeo que coloca o teacutermino da Revelaccedilatildeo na morte do uacuteltimo Apoacutestolo Naturalmente esta questatildeo natildeo pode ser aqui estudada com maiores detalhes A sua soluccedilatildeo como entatildeo se apresentava aos teoacutelogos poderia ser hoje impostada apelando-se para as categorias da teologia atual Segundo esta podemos dizer que a Revelaccedilatildeo estaacute encerrada do ponto de vista de seu princiacutepio material Todavia estaacute e continua presente em sua realidade eficaz Noutros termos a Revelaccedilatildeo tem eacute verdade o seu ἑφάπαξ enquanto ela se realizou num determinado dia na Histoacuteria Entretanto ela tem tambeacutem o seu ldquohojerdquo permanente isto eacute o que foi uma vez por todas realizado na feacute da Igreja permanece sempre vivo e operante Assim a feacute cristatilde natildeo se volta apenas para o passado Abrange tambeacutem o presente e o futuro Eacute verdade que a posterior materializaccedilatildeo historicista da ideacuteia de Revelaccedilatildeo aparece jaacute claramente insinuada nos debates tridentinos corno um fato previsto mas ainda [58] natildeo consumado embora talvez se possa dizer que nos textos conciliares ficou definitivamente consagrada a sua aceitaccedilatildeo

Finalmente acrescentemos ainda que com base nos debates do Conciacutelio podemos estabelecer quatro elementos da ideacuteia de Tradiccedilatildeo 1 O aspecto natildeo-escrito da Revelaccedilatildeo ou do Evangelho contido na Biacuteblia e no coraccedilatildeo dos fieacuteis 2 A palavra do Espiacuterito Santo no decorrer de todo o tempo da Igreja

3 A atividade da Igreja nos Conciacutelios 4 A Tradiccedilatildeo lituacutergica e a da vida da Igreja em geral Nestes quatro elementos

que se deve ter sob os olhos pois formam o fundo ideoloacutegico do Decreto expressa-se a realidade uacutenica do tempo presente da Igreja cristatilde Nele estaacute presente todo o passado poacutes-apostoacutelico da Igreja (inclusive o proacuteprio tempo dos apoacutestolos) de modo que toda a sua vida eacute na Sagrada Escritura um elemento central embora natildeo o uacutenico Em suma deve ter ficado claro que o Conciacutelio de Trento a despeito do caraacuteter contrastante e fixo de sua ideacuteia de Revelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeo oferece uma visatildeo muito mais rica destes conceitos do que a que impregnou a mentalidade dos seacuteculos seguintes Justamente por

isso a teologia de hoje pode retirar daiacute novos subsiacutedios novo apoio para suas pesquisas e novas indicaccedilotildees sobre o verdadeiro caminho a seguir

Quadro sinoacutetico do Decreto tridentino sobre a Tradiccedilatildeo

Primeiro princiacutepio conforme Cervini (AT = Escritura)

Sacrosancta œcumenica et generalis Tridentina Synodus in Spiritu Sancto legitime congregata [] hoc sibi perpetuo ante oculos proponens ut sublatis erroribus puritas ipsa EVANGELII in Ecclesia conservetur quod PROMISSUM ANTE PER PROPHETAS IN SCRIPTURIS SANCTIS

Segundo princiacutepio conforme Cervini o Evangelho em parte escrito em parte insculpido nos coraccedilotildees

[59] DOMINUS NOSTER IESUS CHRISTUS DEI FILIUS PROPRIO ORE PRIMUM PROMULGAVIT DEINDE PER SUOS APOSTOLOS TAMQUAM FONTEM OMNIS ET SALUTARIS VERITATIS ET MORUM DISCIPLINAE OMNI CREATURAE PRAEDICARI IUSSIT PERSPICIENSQUE HANC VERITATEM ET DISCIPLINAM CONTINERI IN LIBRIS SCRIPTIS ET SINE SCRIPTO TRADITIONIBUS QUAE AB IPSIUS CHRISTI ORE AB APOSTOLIS ACCEPTAE AUT AB IPSIS APOSTOLIS SPIRITU SANCTO DICTANTE

Seripando Cervini e outros soacute consideram as tradiccedilotildees recebidas pela Igrej (ldquoad nos usquerdquo)

quasi per manus traditae ad nos usque pervenerunt

orthodoxorum Patrum exempla secuta omnes libros tam Veteris quam Novi Testamenti cum utriusque unus Deus sit auctor nec non TRADITIONES IPSAS

Lejay Tradiccedilatildeo contendo natildeo soacute a ldquoconsuetudordquo mas relacionada tambeacutem com a ldquofidesrdquo (foacutermula conciliar)

tum ad fidem tum ad mores pertinentes

Terceiro princiacutepio de Cernini Depois da Ascenccedilatildeo de Cristo o Espiacuterito Santo ensina tambeacutem os misteacuterios de Deus

TAMQUAM VEL ORETENUS A CHRISTO VEL A SPIRITU SANCTO DICTATAS

Seripando Cervini etc soacute satildeo consideradas as coisas recebidas pela Igreja (como acima)

et continua successione in Ecclesia catholica conservatas

Cervini Escritura e Tradiccedilatildeo procedem ambas do mesmo Espiacuterito Santo

pari pietatis affectu ac reverentia suscipit ac veneratur

  • Prefaacutecio
  • SEGUNDA PARTE
  • Explicaccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo
  • segundo o Decreto do Conciacutelio de Trento
Page 4: Revelacao e Tradicao-Joseph Ratzinger (Bom Ler)

PREFAacuteCIO

Comparadas com as grandes monografias teoloacutegicas entre as quais se incluem os uacuteltimos volumes da coleccedilatildeo intitulada Quaeligstiones disputataelig as paacuteginas que se vatildeo ler pareceratildeo talvez um tanto isoladas e bastante pobres Todavia o que levou os autores destes dois modestos ensaios agrave ousadia de publicaacute-las inserindo-os no rol de tatildeo importantes obras foi o fato de o assunto aqui tratado ser apenas uma quaeligstio disputata no sentido original da expressatildeo Vale esta observaccedilatildeo tanto para o aparato externo quanto para o conteuacutedo real deste pequeno livro que reuacutene dois opuacutesculos

O primeiro opuacutesculo do presente livro (da autoria de Karl Rahner) focircra jaacute apresentado em linhas gerais na sessatildeo do dia 28 de marccedilo de 1963 do Instituto J A Moehler em Paderborn A mesma informaccedilatildeo se estende tambeacutem agrave segunda parte do segundo opuacutesculo (o de J Ratzinger) cujo texto foi aqui incluiacutedo na iacutentegra A discussatildeo na qual naquela oportunidade tomaram parte entre outros os nossos colegas de Bonn H Jedin e H Schlier contribuindo com estiacutemulos e criacuteticas que muito penhoraram os autores animou-nos a prosseguir nesta pesquisa

Quanto agrave primeira parte do trabalho de Ratzinger consta do texto da aula inaugural ministrada pelo Autor a 28 de junho de 1963 ao assumir ele a caacutetedra de Teologia Dogmaacutetica e de Histoacuteria dos Dogmas na Universidade de Munster O propoacutesito de ampliar o seu trabalho em conjunto sob o ponto de vista histoacuterico e positivo lanccedilando matildeo de abundante material armazenado malogrou mais de uma vez nos meses subsequumlentes pois urgentes tarefas agraves quais os autores se viram forccedilados obrigaram-nos de um modo ou de outro a protelar quaisquer outros planos Entrementes o assunto aqui estudado conservou seu teor de verdadeira quaeligstio disputata

Assim sendo cocircnscios das limitaccedilotildees de seu ensaio os autores acreditando que destes trabalhos possa talvez resultar alguma contribuiccedilatildeo para o debate em torno do tema ldquoTradiccedilatildeordquo ousam publicaacute-los agora em formato de livro Deliberadamente renunciaram agrave preocupaccedilatildeo de fornecer informaccedilotildees bibliograacuteficas e ao intento de fazer obra completa contentando-se apenas com aduzir a documentaccedilatildeo de interesse mais imediato para o seu trabalho

O pequeno ensaio de Karl Rahner em sua redaccedilatildeo atual foi ainda utilizado como texto de uma conferecircncia feita pelo autor ao ensejo de sua diplomaccedilatildeo como doutor honoris causa pela faculdade Teoloacutegica da Universidade Catoacutelica de Munster na Westfaacutelia em maio de 1964 Natildeo lhe pareceu necessaacuterio refundir posteriormente este texto nem muni-la de notas bibliograacuteficas

Queremos repetir este livro nada mais pretende ser do que uma sugestatildeo feita com vistas ao diaacutelogo teoloacutegico em torno do conceito de Revelaccedilatildeo e de Tradiccedilatildeo Temos a esperanccedila de que ao lado dos grandes trabalhos jaacute existentes sobre este assunto tal empreendimento natildeo seja de todo considerado sem valor

Roma outubro de 1964 KARL RAHNER e JOSEPH RATZINGER

Karl Rahner

OBSERVACcedilOtildeES SOBRE O CONCEITO DE REVELACcedilAtildeO

[1] Embora a condenaccedilatildeo de uma heresia por parte da Igreja seja legiacutetima e justa

sob o ponto de vista eclesiaacutestico e em face de uma situaccedilatildeo concreta assumindo mesmo determinada relevacircncia histoacuterica daiacute natildeo se segue sempre e necessariamente que a Igreja tenha dado atendimento e resposta aos anseios e agrave problemaacutetica desta mesma heresia por ela condenada Eacute que o amadurecimento positivo de um problema ndash e os problemas mesmo quando aparecem sob a capa de heresia trazem a marca de seu tempo ndash pode ocorrer muito mais tarde

Seria por certo conveniente que se apurasse ateacute que ponto a delonga de tal amadurecimento teria resultado de um erro traacutegico de uma culpa ou da impotecircncia dos homens Ou entatildeo se natildeo deveria ser considerada mero tributo a ser pago tambeacutem pela Igreja em razatildeo de sua condiccedilatildeo histoacuterica

De modo nenhum se deve contudo pensar que as condenaccedilotildees da Igreja soacute atinjam opiniotildees ou tendecircncias que em seu bojo outra coisa natildeo ocultem a natildeo ser uma vazia e inoacutecua negativa de uma verdade jaacute desde longo tempo claramente compreendida e explicitamente anunciada

Haacute precisamente meio seacuteculo a Igreja foi ameaccedilada pela heresia do Modernismo Entre suas teses e erros fundamentais estaacute o seu conceito especiacutefico de Revelaccedilatildeo Para o Modernismo ndash pelo menos se quisermos consideraacute-lo em seu conjunto e atender agrave sistematizaccedilatildeo desta heresia agrave luz da condenaccedilatildeo feita pela Igreja ndash a Revelaccedilatildeo era uma maneira de se designar o [2] progresso imanente e necessaacuterio dos anseios religiosos do homem histoacuterico Esses anseios se objetivariam nas muacuteltiplas formas de religiotildees histoacutericas que paulatinamente teriam ascendido a uma pureza maior e a uma plenitude mais ampla ateacute chegarem a se concretizar definitivamente no Cristianismo e na Igreja

Tal definiccedilatildeo era elaborada em oposiccedilatildeo ao conceito de Revelaccedilatildeo supostamente tradicional na Igreja Segundo esta a Revelaccedilatildeo outra coisa natildeo seria senatildeo um conhecimento de Deus vindo puramente ldquode forardquo Desta maneira Deus teria falado aos homens e em termos humanos lhes teria comunicado por meio dos Profetas certas verdades que eles por si soacutes natildeo poderiam conhecer A isto se acrescentaram os mandamentos a serem observados

Eacute verdade que a necessidade da graccedila divina para a posse salutar da Revelaccedilatildeo pela Feacute era explicitamente ensinada pela ortodoxia eclesiaacutestica entatildeo em luta contra o Modernismo Contudo natildeo foi devidamente considerada a iacutentima conexatildeo entre a graccedila da Feacute e a Revelaccedilatildeo histoacuterica

O fato de a Igreja ter acusado o Modernismo de imanentismo permite-nos reconhecer hoje um certo extrinsecismo no conceito de Revelaccedilatildeo geralmente apresentado pela teologia daquela eacutepoca contra a qual se insurgia o Modernismo Tal extrinsecismo natildeo era ensinamento oficial Era sim uma hipoacutetese corrente na teologia de entatildeo

Aos poucos e quase desapercebidamente encaminha-se hoje para o seu amadurecimento a resposta agrave problemaacutetica do justo e pleno conceito da Revelaccedilatildeo A

isto a Igreja natildeo dava uma resposta clara Dava-a o Modernismo poreacutem falsa precipitada extemporacircnea e em sentido decididamente hereacutetico

Eacute evidente que este problema e sua devida soluccedilatildeo tecircm uma importacircncia fundamental no confronto entre o Cristianismo e a cultura moderna ainda que isto natildeo seja de ordinaacuterio posto [3] explicitamente em debate Com efeito para o homem de hoje penetrado de um certo humanismo contraacuterio agrave Igreja adepto de um ateiacutesmo lamentaacutevel para o materialismo moderno que considera Deus como um enigma insoluacutevel e identifica o espiacuterito com a proacutepria forccedila motora do mundo o que choca e eacute motivo de escacircndalo natildeo eacute propriamente o Deus absconditus do Cristianismo que habita na luz inaccessiacutevel Eacute sim o ensinamento de que existe uma histoacuteria da Revelaccedilatildeo na qual o proacuteprio Deus indica o uacutenico caminho entre os muitos apontados pelas demais religiotildees histoacutericas e o percorre Ele proacuteprio aparecendo encarnado entre os homens O escacircndalo estaacute se assim podemos dizer na histoacuteria categorial da Revelaccedilatildeo e natildeo na relaccedilatildeo transcendental entre Deus e o homem mediante a qual Deus o cria do nada no abismo de Seu misteacuterio inefaacutevel

O que eacute Revelaccedilatildeo e por que eacute ela apesar de sua origem imediatamente divina o que haacute de mais iacutentimo na histoacuteria humana Como pode ela identificar-se com a histoacuteria da humanidade sem deixar de ser uma singular graccedila de Deus Como pode a Revelaccedilatildeo estar sempre e por toda parte a fim de operar sempre e por toda parte a salvaccedilatildeo sem com isto deixar de estar aqui e agora na carne de Cristo na Palavra dos Profetas que falam precisamente dela na letra da Escritura Poderaacute ela ser por toda parte o ldquomotivordquo iacutentimo a forccedila motora da histoacuteria sendo ao mesmo tempo uma accedilatildeo libeacuterrima de Deus impossiacutevel de ser medida em sentido ascendente a partir da Histoacuteria Natildeo eacute por outro lado o milagre uma graccedila divina ocorrida hic et nunc e realizada ldquouma vez para semprerdquo

A fim de ampliarmos mais o horizonte de nossas reflexotildees e compreendermos melhor a resposta a estas perguntas poderiacuteamos lembrar que a mais comum relaccedilatildeo entre Deus e o mundo-em-devir consiste no fato de ele o mais iacutentimo e absoluto Senhor do mundo conceder ao ser finito uma verdadeira e ativa transcendecircncia em sua evoluccedilatildeo Numa palavra eacute o proacuteprio futuro [4] a causa final que mostra a verdadeira e proacutepria causa real atuando no ser em marcha

Daiacute poder-se dizer que nossa pergunta natildeo tende senatildeo ao mais alto e mais radical conhecimento que hoje aos poucos vamos atingindo isto eacute o conhecimento de como o real e ativo evoluir dos seres superiores partindo dos interiores e a permanente accedilatildeo criadora vinda do alto satildeo apenas os dois lados ambos igualmente verdadeiros e positivos do uacutenico milagre do ser e da Histoacuteria Referimo-nos agrave ideacuteia de que Deus em sua livre relaccedilatildeo para com a sua criatura natildeo eacute uma causa categorial ao lado de outras mas sim o vivo permanente e transcendental fundamento da proacutepria evoluccedilatildeo do mundo Tambeacutem o mundo a seu modo se insere na relaccedilatildeo entre Deus e o homem no fato da Revelaccedilatildeo e na sua histoacuteria E isto na mais ampla medida porque esta histoacuteria na medida mais extrema deve ser igualmente accedilatildeo de Deus e accedilatildeo do homem uma vez que em si ela eacute a mais alta realidade no ser e no evoluir do mundo Se existe esta superaccedilatildeo fundamental de uma total oposiccedilatildeo entre o imanentismo e o extrinsecismo no conceito ontoloacutegico da evoluccedilatildeo e da histoacuteria entatildeo deve tambeacutem a teologia superar esta oposiccedilatildeo na questatildeo que aqui nos ocupa

Com efeito se a teologia catoacutelica ensina e potildee em praacutetica sua doutrina sobre a graccedila santificante e a vontade salviacutefica universal sobre a necessidade da graccedila elevante para a feacute e a doutrina tomista sobre o sentido ontoloacutegico transcendental da graccedila entitativa agrave luz da Revelaccedilatildeo segue-se que sem cair no Modernismo a teologia pode e deve reconhecer a histoacuteria da Revelaccedilatildeo ou simplesmente a Revelaccedilatildeo no sentido de apresentaccedilatildeo categorial histoacuterica Falando mais propriamente diremos a histoacuteria daquela mesma relaccedilatildeo transcendental entre o homem e Deus realizada de modo sobrenatural atraveacutes de uma sempre gratuita participaccedilatildeo divina Tal histoacuteria deve com razatildeo ser chamada de Revelaccedilatildeo

[5] Se transcendecircncia sempre existiu e sempre existe na histoacuteria e se haacute uma criaccedilatildeo transcendental no homem manifestada atraveacutes de algo permanente a que chamamos graccedila santificante que santifica o homem precisamente pela participaccedilatildeo de Deus e natildeo atraveacutes de qualquer outra eficiecircncia casual resulta entatildeo que esta absoluta transcendecircncia verificada na absoluta uniatildeo do Deus misterioso e inefaacutevel que se torna presente no homem tem uma histoacuteria Esta histoacuteria eacute o que chamamos de histoacuteria da Revelaccedilatildeo

O fato da Revelaccedilatildeo tem sempre um duplo aspecto Por um lado a constituiccedilatildeo de uma transcendecircncia sobrenaturalmente elevada do homem como algo permanente gratuito mas nem sempre de todo positivo ou seja a transcendental experiecircncia da absoluta e gratuita participaccedilatildeo da vida divina mesmo quando ela natildeo seja concretamente objetivada em cada um em particular E por outro lado a mediaccedilatildeo histoacuterica a objetivaccedilatildeo concreta desta experiecircncia sobrenaturalmente transcendental que ocorre na histoacuteria considerada em seu conjunto (A voluntaacuteria reflexatildeo teoloacutegica do indiviacuteduo tambeacutem pertence a esta histoacuteria mas natildeo a cria primariamente nem a forma) A experiecircncia transcendental referida chama-se usualmente histoacuteria da Revelaccedilatildeo quando ela eacute realmente histoacuteria da verdadeira exposiccedilatildeo desta experiecircncia sobrenatural e transcendental e natildeo a sua contrafaccedilatildeo Em outros termos quando ela eacute o resultado positivo desta transcendental participaccedilatildeo de Deus pela graccedila Ou ainda quando ela ocorre por disposiccedilatildeo da Providecircncia sobrenatural de Deus Salvador

Se for assim compreendida a unidade e inter-relaccedilatildeo entre Revelaccedilatildeo categorial e Revelaccedilatildeo histoacuterica ou melhor o elemento transcendental e o elemento histoacuterico (mediador) de uma revelaccedilatildeo e de sua histoacuteria seraacute entatildeo tambeacutem visiacutevel uma primordial distinccedilatildeo no que eacute revelado

Revelado eacute Deus como o que se daacute a participar em absoluta e gratuita uniatildeo como Deus ou seja como misteacuterio absoluto Revelada eacute a mediaccedilatildeo histoacuterica desta experiecircncia transcendental [6] como autecircntica como absoluta experiecircncia de Deus Revelada eacute no aacutepice singular e definitivo desta histoacuteria da Revelaccedilatildeo a absoluta e irreversiacutevel unidade entre a participaccedilatildeo transcendental de Deus na humanidade e sua histoacuterica mediaccedilatildeo no uacutenico Deus-Homem Em Jesus Cristo como numa soacute Pessoa o proacuteprio Deus compartilha da humana posse desta mediaccedilatildeo e de sua definitiva manifestaccedilatildeo histoacuterica

Nesta unidade entre a transcendental co-participaccedilatildeo de Deus e sua definitiva mediaccedilatildeo e manifestaccedilatildeo histoacuterica uma vez que se trata da comunicaccedilatildeo de Deus em si mesmo eacute revelado tambeacutem o misteacuterio fundamental do Deus trino enquanto se considera neste misteacuterio somente o aparecimento de Deus conosco na histoacuteria e na

Deivide
Realce
Eacute Jesus Cristo

transcendecircncia ou seja do Deus trino Pai Filho e Espiacuterito Santo em sua possibilidade de vir a manifestar-se na transcendecircncia do homem e na sua histoacuteria

Enquanto por conseguinte a histoacuteria se abre agrave transcendecircncia o Filho envia o Espiacuterito Enquanto a transcendecircncia constroacutei a histoacuteria o Espiacuterito realiza a Encarnaccedilatildeo do Logos Enquanto o aparecimento de Deus na histoacuteria expressa a impossibilidade de se conservar oculto o que eacute suma realidade o Verbo Encarnado eacute revelado como a auto-expressatildeo do Pai na Verdade Enquanto a vinda de Deus entre noacutes no meio de nossa existecircncia significa o Seu e o nosso amor eacute revelado o Pneuma sob este aspecto de amor

Quando noacutes fazemos a experiecircncia da uniatildeo transcendental e absoluta do Deus conosco compartilhando de Sua vida e aceitando-a por graccedila dele mesmo sabemos mediante o nosso ato de feacute o que significamos ao falarmos sobre a Trindade de Deus e ao exprimirmos de modo breve e sucinto a formalidade e o conteuacutedo da feacute cristatilde da sua Revelaccedilatildeo da histoacuteria desta Revelaccedilatildeo Sabemos o que significamos quando nos fazemos batizar nestes nomes em nome do Pai do Filho e do Espiacuterito Santo

[7] Ao que ateacute aqui estabelecemos em traccedilos gerais e raacutepidos como sendo a ideacuteia fundamental da Revelaccedilatildeo acrescentamos agora alguns esclarecimentos selecionados um tanto arbitrariamente e referentes todos agrave origem da Revelaccedilatildeo e agraves suas consequumlecircncias

Do exposto resulta que a Revelaccedilatildeo quer transcendental quer categorial e sua histoacuteria co-existem com a histoacuteria espiritual de toda a humanidade Isto natildeo eacute erro do Modernismo Eacute uma verdade cristatilde Podemos provaacute-lo muito simplesmente dizendo ser incontestaacutevel que a histoacuteria da salvaccedilatildeo sobrenatural eacute realizada sempre na histoacuteria do mundo o que depois do Conciacutelio Vaticano II se tornou uma verdade ainda mais vivamente impressa na consciecircncia religiosa dos cristatildeos A salvaccedilatildeo poreacutem natildeo pode dar-se sem a feacute Nem a feacute sem uma revelaccedilatildeo proacutepria

Natildeo precisamos esclarecer a possibilidade da Revelaccedilatildeo e da feacute fora da histoacuteria do Antigo e do Novo Testamento nem recorrer a uma teoria catoacutelica especial como a de Straub ou a de Billot Nem mesmo necessitamos apelar para uma tradiccedilatildeo categorial expliacutecita da Revelaccedilatildeo primitiva segundo a qual literaacuteria e doutrinariamente a experiecircncia categorial de Adatildeo teria sido transmitida aos poacutesteros o que agrave luz do conhecimento atual da histoacuteria das religiotildees e dos dois milhotildees de anos da histoacuteria da humanidade natildeo eacute muito provaacutevel

Basta-nos reter (o que eacute testemunhado pelos dados atuais da teologia) que cada homem elevado pela graccedila em sua espiritualidade transcendental representa esta ldquoentitativardquo divinizaccedilatildeo que precede o uso da liberdade mesmo quando esta natildeo eacute por ele compromissada na feacute Significa portanto uma transcendental divinizaccedilatildeo da condiccedilatildeo primitiva do homem o uacuteltimo horizonte do conhecimento e da liberdade sob o qual o homem completa o seu ser Atraveacutes desta existecircncia sobrenatural do [8] homem em geral e de cada um em particular daacute-se uma revelaccedilatildeo de Deus mediante uma participaccedilatildeo gratuita E esta condiccedilatildeo fundamental e gratuita do homem realizada no Deus da vida trinitaacuteria pode tambeacutem ser entendida como Revelaccedilatildeo da Palavra contanto que de um lado natildeo limitemos esta palavra a mera prolaccedilatildeo foneacutetica e de outro natildeo nos esqueccedilamos que esta Revelaccedilatildeo transcendental estaacute sempre inserida num contexto histoacuterico e ainda que a histoacuteria humana natildeo pode prescindir das palavras A

Deivide
Realce
A Revelaccedilatildeo estaacute aqui Estaacute diante de mm envolve-me Se quero Ela logo Eacute em mim e minha vida toma um novo significado A Revelaccedilatildeo estaacute no hoje tatildeo atuante quanto quando Jesus fala e agia no tempo em que peregrinou na terra Estaacute atuaccedilatildeo de Jesus que corre toda a histoacuteria e chega aos nossos dias daacute-se atraveacutes da Igreja pela accedilatildeo do Espiacuterito Santo

histoacuteria dos homens natildeo consta de fatos mortos mas de fatos cujo sentido representa um elemento importante em cada conjuntura histoacuterica

Natildeo existe nenhuma relaccedilatildeo objetiva de um objeto em particular ou de uma frase na vida transcendental do homem aberto para Deus para o Deus trino e eterno O que eacute mais e o que fundamenta todos os dogmas da Feacute como condiccedilatildeo mesma de sua possibilidade e antes de tudo o que os faz real palavra de Deus eacute o seguinte o horizonte da vida sobrenatural ou a luz da Feacute em si mesma - como diriacuteamos em linguagem tradicional e simples - pressupotildee que se aceitem e se valorizem as palavras da Tradiccedilatildeo

Com tudo isto ndash acentuemo-lo mais uma vez ndash natildeo estamos dizendo que esta transcendental e aprioriacutestica abertura do homem para o Deus da vida eterna e da participaccedilatildeo absoluta possa ser em si mesma ldquoanistoacutericardquo nem que conduza a uma desordem miacutestica que consistiria numa introspecccedilatildeo individualiacutestica alienada da histoacuteria Ao contraacuterio Ela se completa necessariamente na histoacuteria do agir e do pensar do homem E pode fazecirc-lo explicitamente embora de maneira de todo anocircnima Assim sendo nunca existe uma histoacuteria da Revelaccedilatildeo transcendental para um particular soacute Ela eacute individual e coletiva Naturalmente tal histoacuteria em concreto nunca eacute a histoacuteria da Revelaccedilatildeo inteiramente pura em si Ela se daacute em cada um sempre em indissoluacutevel simbiose com o erro com falsas interpretaccedilotildees com a [9] culpa com os abusos Ela eacute histoacuteria justa e pecadora uma vez que o homem eacute simul iustus et peccator estando a histoacuteria da culpa e a da salvaccedilatildeo definitivamente ligadas ateacute ao dia do juiacutezo final

Isto natildeo exclui a existecircncia de uma autecircntica histoacuteria da Revelaccedilatildeo na histoacuteria geral da humanidade Tanto que para o cristatildeo por exemplo uma diacriacutetica distinccedilatildeo na histoacuteria veterotestamentaacuteria entre autecircntica histoacuteria da Revelaccedilatildeo e falsa histoacuteria da religiatildeo soacute eacute possiacutevel tomando-se como criteacuterio a Cristo Tal distinccedilatildeo natildeo eacute possiacutevel partindo-se apenas dos criteacuterios fornecidos pelo Antigo Testamento Com efeito a Sagrada Escritura tem somente a Cristo como regra interna e externa e como norma de sua hermenecircutica Daiacute resulta que a Escritura deve ser considerada pelo cristatildeo como verdadeira histoacuteria da Revelaccedilatildeo do Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo1

Deduzir a ideacuteia da Revelaccedilatildeo da Palavra de Deus oral e escrita eacute atingir o lado transcendental da proacutepria Revelaccedilatildeo Eacute buscar um criteacuterio no cacircnon da Escritura colocando a Palavra de Deus oral e escrita antes de tudo na sua aceitaccedilatildeo pela Feacute interna e gratuita Eacute ldquodesmitologizarrdquo a mensagem externa da feacute em sua formalidade transcendental A histoacuteria da religiatildeo eacute a parte da histoacuteria humana em que a natureza teoloacutegica do homem se realiza tematicamente e efetivamente como em toda histoacuteria Daiacute resulta que a histoacuteria da religiatildeo eacute simultaneamente duas coisas eacute a parte mais expliacutecita da histoacuteria da Revelaccedilatildeo e tambeacutem o lugar espiritual (der geistige Ort) em que as falsas interpretaccedilotildees da experiecircncia transcendental de Deus se manifestam de modo mais notoacuterio e levam agraves piores consequumlecircncias A supersticcedilatildeo opotildee-se nitidamente agrave sua natureza Mas ela eacute ao [10] mesmo tempo estas duas coisas E sempre numa ambiguumlidade de sentido que natildeo conseguimos solucionar

1 Sobre a diferenccedila entre a histoacuteria da Revelaccedilatildeo extra-biacuteblica e a veterotestamentaacuteria (que eacute tambeacutem um pressuposto daquela) cf K RAHNER Schriften zur Theologie V (Einsiedeln 1964) p136-158 principalmente p 148 e 153

Deivide
Nota
Parei aqui

Na teologia escolaacutestica catoacutelica nos uacuteltimos seacuteculos em contraste com a teologia medieval pouco ou nada se diz sobre o portador do testemunho da Revelaccedilatildeo aquele que a apresenta atraveacutes do milagre aos homens chamados a crer Refiro-me agrave Revelaccedilatildeo presente no seu portador que eacute o proacuteprio Profeta Do que antes expusemos concluir-se-aacute que a teologia dos preacircmbulos e a da feacute satildeo idecircnticas Por isso tem razatildeo a teologia fundamental quando frequumlentemente trata da analysis fidei em seu acircmbito proacuteprio supondo-se que ela o faccedila considerando a feacute e a aceitaccedilatildeo da Revelaccedilatildeo em sua unidade fundamental O aspecto transcendental da aceitaccedilatildeo da Revelaccedilatildeo e a Feacute satildeo a mesma coisa fundam-se ambas na constituiccedilatildeo do homem gratuitamente marcada pela participaccedilatildeo ontoloacutegica e pelo compromisso livre do homem com este aspecto existencial do ser

A ldquodesmitologizaccedilatildeordquo (Entmythologisierungsfrage) para a teologia catoacutelica concretiza-se e resume-se na capacidade de cognoscibilidade do ldquomilagrerdquo Daiacute perguntar-se eacute possiacutevel uma autecircntica experiecircncia transcendental de Deus jaacute que isto seria como que um compartilhar do imparticipaacutevel (Schon-immer-heim- Univermittelten-Sein) Fundamentalmente natildeo eacute possiacutevel nem eacute necessaacuterio estabelecer uma distinccedilatildeo adequada entre a mediaccedilatildeo do factum brutum (durch das factum brutum) da chamada realidade objetiva e a que se daacute atraveacutes de sua clara explicaccedilatildeo A mediaccedilatildeo (Vermittlung) baseia sua uacuteltima verdade no mediado (im Vermittelten) Portanto a ldquodesmitologizaccedilatildeordquo e a relaccedilatildeo entre a mediaccedilatildeo e o mediado (Vermittlung-Vermittelte) fundamentam-se na diferenccedila e na unidade ontoloacutegica dos aspectos categorial e transcendental e tambeacutem na diferenccedila e na indissoluacutevel unidade entre a histoacuteria e seu significado Esta mediaccedilatildeo enquanto histoacuterica eacute sempre uma histoacuteria com-os-homens ou no sentido mais profundo da palavra uma [11] histoacuteria ldquoeclesialrdquo Eacute portanto tambeacutem um compromisso com a feacute da comunidade dos fieacuteis e da Igreja feacute esta que na comunidade e em cada indiviacuteduo envolve sempre a uniatildeo de sinais e de verdade como na palavra do Sacramento e no Logos Encarnado onde estes dois elementos se encontram inseparaacuteveis mas natildeo se confundem sendo a sua associaccedilatildeo independente do alvitre dos homens

Partindo dessas premissas pode-se entender o que seja a fides implicita agrave qual ateacute hoje os teoacutelogos natildeo deram o destaque devido Fundamentalmente a feacute seja qual for envolve a aceitaccedilatildeo do sinal Soacute eacute feacute verdadeira se assumir o sinal mediante o inefaacutevel misteacuterio da uniatildeo do Deus que se daacute a si mesmo em participaccedilatildeo Soacute eacute feacute verdadeira quando entende a mediaccedilatildeo categorial como presenccedila de sinais (Zeichenhaftigkeit) como se realiza na proacutepria Igreja Assim como a Revelaccedilatildeo natildeo elimina a obscuridade do sacrossanto misteacuterio de Deus antes o cristatildeo amando e adorando a aceita assim tambeacutem o ldquocaraacuteter impliacutecitordquo (Implizitaumlt) da Revelaccedilatildeo e da feacute pertencem agrave sua proacutepria natureza Esta ldquoimplicituderdquo natildeo eacute portanto um elemento que soacute se daria quando as pessoas ldquoincultasrdquo ou ignorantes ouvem a Revelaccedilatildeo e crecircem

Agora podemos entender melhor tambeacutem um conhecido fenocircmeno religioso a tendecircncia a se reduzir o dogma e a religiatildeo a um nuacutecleo de verdades essenciais A unidade existente entre os elementos categorial e transcendental existe tambeacutem na Religiatildeo Tambeacutem esta eacute una e uacutenica E insubstituiacutevel por qualquer outra Devemos dizer tambeacutem que o Cristianismo considerado como religiatildeo universal e absoluta e natildeo apenas como particular alianccedila de Deus com determinado povo natildeo pode deixar de reconhecer a Cristo como Mediador e como Salvador Cristo com efeito por sua

corporeidade e espiritualidade integra em si relaciona e torna legiacutetima toda mediaccedilatildeo possiacutevel no acircmbito do mundo das realidades Assim ldquonadardquo existe que [12] exclua este poder de mediaccedilatildeo Ele existe na palavra no sinal lituacutergico na comunidade eclesial no ofiacutecio na imagem em suma ateacute mesmo nas coisas profanas Natildeo obstante a pluralidade e diversidade desta mediaccedilatildeo pode acontecer que em diferentes eacutepocas e lugares de acordo com os desiacutegnios da graccedila mesmo no Novo Testamento a obrigatoriedade e cognoscibilidade da uacutenica mediaccedilatildeo tenha a sua histoacuteria peculiar Tal histoacuteria da Revelaccedilatildeo tornada definitiva em Cristo no acircmbito do uacuteltimo e eterno ldquoeatildeordquo pode tambeacutem conforme disposiccedilatildeo divina refletir-se na traacutegica histoacuteria da Cristandade dividida por uma cisatildeo em que transparece a pluralidade das muitas mediaccedilotildees da uacutenica Revelaccedilatildeo Esta divisatildeo eacute para noacutes uma censura Contudo serve-nos tambeacutem de instrumento da graccedila de Deus

A distinccedilatildeo entre Revelaccedilatildeo transcendental e a categorial-histoacuterica aplica-se tambeacutem agrave feacute Daiacute novas luzes para se entender melhor o problema da credulidade enquanto distinta da feacute e intimamente relacionada com ela Quando se considera a precaacuteria descriccedilatildeo da feacute elaborada pelos teoacutelogos vecirc-se que seu caraacuteter auditivo (ex auditu) eacute geralmente proposto de modo aposterioriacutestico e empiacuterico O endereccedilamento da feacute ao ouvinte aparece entatildeo como se da parte deste soacute houvesse uma potecircncia formal para assumir certas proposiccedilotildees verdadeiras sem as investigar devendo apenas aceitaacute-las em sua formulaccedilatildeo exata irrecusaacutevel e fixa A potecircncia aprioriacutestica da feacute ou a credulidade quase natildeo eacute levada em consideraccedilatildeo na teologia catoacutelica Esta credulidade como capacidade aprioriacutestica de crer natildeo deve ser tida na conta de uma potecircncia igual agraves outras uma espeacutecie de sentido de ldquoexigecircnciardquo ou coisa parecida Eacute antes o lado transcendental da Revelaccedilatildeo a potecircncia aprioriacutestica que tem o homem ser transcendental para a comunhatildeo com Deus na graccedila fundada na proacutepria abertura de Deus para se comunicar com a criatura Ambas estas coisas devem ser consideradas em sentido ontoloacutegico natildeo em sentido ocircntico

[13] Toda anaacutelise da feacute catoacutelica apresenta a ldquoautoridade de Deusrdquo como o ldquoobjeto formalrdquo ou o ldquomotivordquo uacuteltimo da feacute Chega-se assim entretanto a um impasse intransponiacutevel Isto porque se considera esta ldquoautoridaderdquo como elemento categorial e aprioriacutestico limitado pelo horizonte do conhecimento humano que a feacute tem que superar para que a Palavra permaneccedila sendo realmente Palavra divina e natildeo seja rebaixada ao niacutevel meramente criatural Se poreacutem na Revelaccedilatildeo e na feacute o proacuteprio Deus autocomunicando-se eacute o objeto crido e o princiacutepio aprioriacutestico de crer se a loacutegica da feacute natildeo eacute uma categoria aprendida de fora mas ndash do mesmo modo que a loacutegica natural ndash eacute a proacutepria estrutura ontoloacutegica e interna do ato de feacute se a mensagem exterior da feacute natildeo eacute o seu motivo aposterioriacutestico mas sua razatildeo aprioriacutestica ndash entatildeo todo este problema perde o seu sentido Assim se compreenderaacute que um falso ato material de feacute deixa de ter um objeto formal meramente aprioriacutestico e pode vir a ser um ato de feacute autecircntico

Somos forccedilados a interromper aqui estas observaccedilotildees Em tudo o que dissemos pudemos apenas indicar algumas perspectivas de soluccedilatildeo de um problema que desde os tempos do Modernismo eacute atual mas que contudo tem sido de certo modo postergado Mesmo por este pequeno exemplo ao qual poderiacuteamos acrescentar o de muitos outros problemas teoloacutegicos ainda natildeo solucionados vemos como custosa e lentamente avanccedila o trabalho teoloacutegico Eacute necessaacuterio ter paciecircncia e envidar esforccedilos perseverantes

Necessaacuterio eacute ainda admitir-se que a teologia natildeo cria a feacute no cristatildeo Ele eacute apenas chamado a pocircr-se a serviccedilo da feacute Da feacute hoje

Ao exprimir eu agrave ilustre Faculdade Catoacutelica de Teologia da Universidade de Munster o meu penhorado e cordial agradecimento pela distinccedilatildeo que me outorgou faccedilo-o com a consciecircncia de que tambeacutem os operaacuterios que realizam a construccedilatildeo da teologia trabalham em vatildeo se o Senhor natildeo cooperar com eles Noacutes [14] devemos trabalhar enquanto eacute dia Toda theologia mentis eacute apenas um auxiacutelio para a theologia cordis et vitaelig Enfim em toda theologia a rigor soacute um caminho se abre o caminho que se perde no segredo de Deus misteacuterio impenetraacutevel que todavia se potildee ao nosso alcance

Joseph Ratzinger

EXAME DO PROBLEMA DO CONCEITO DE TRADICcedilAtildeO

PRIMEIRA PARTE

Revelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeo

Ensaio de anaacutelise do conceito de Tradiccedilatildeo

I ndash Posiccedilatildeo do Problema

[15] O modo como Cristo Palavra expressa da Revelaccedilatildeo permanece presente na Histoacuteria e vai ao encontro dos homens pertence agravequelas questotildees fundamentais em torno das quais se dividiu a Cristandade ocidental no seacuteculo da Reforma A luta prende-se agrave ideacuteia de ldquoTradiccedilatildeordquo pela qual a Igreja catoacutelica procurou exprimir certa forma de comunicaccedilatildeo da Revelaccedilatildeo ao lado da outra contida na Sagrada Escritura Isto com o fim de desfazer um duplo protesto A Tradiccedilatildeo designava primeiro as chamadas consuetudines ecclesiaelig tais como a santificaccedilatildeo do domingo a oraccedilatildeo voltada para o Oriente o costume de jejuar as vaacuterias becircnccedilatildeos e consagraccedilotildees e outras praacuteticas semelhantes em vigor na piedade dos fieacuteis ao tempo da baixa Idade Meacutedia Tais praacuteticas ora nobres ora ridiacuteculas embora transformassem a Igreja numa espeacutecie de casa assombrada cheia de acircngulos e cantos justificavam-se sob o tiacutetulo de ldquotradiccedilatildeordquo e legitimavam-se como parte essencial da vida cristatilde1

Lutero a quem a simplicidade do Evangelho como urna forccedila explosiva tinha sobremodo impressionado preferiu agrave luz de sua [16] ideacuteia de Deus juiz misericordioso natildeo ver na Tradiccedilatildeo nada mais do que ninharias com as quais a humanidade se ilude e aparentemente se consola buscando uma evasatildeo ante o abuso da proacutepria existecircncia Ainda mais ele viu na Tradiccedilatildeo o retorno da Lei o predomiacutenio do arbiacutetrio humano sobre a palavra de Deus abuso contra o qual Paulo protestara com tanta veemecircncia e que agora de novo se implantara na Igreja A Confessio Augustana ocupou-se tambeacutem destas coisas destacando uma seacuterie de leis cuja violaccedilatildeo segundo a doutrina corrente era tida como pecado mortal a proibiccedilatildeo do trabalho manual aos domingos e dias santos a interrupccedilatildeo das preces canocircnicas diaacuterias os preceitos do jejum etc E Lutero prosseguia ldquoDe onde tiram os Bispos o direito e o poder de imporem tais prescriccedilotildees aos cristatildeos e de ilaquearem assim as consciecircncias Pedro no capiacutetulo 15 dos Atos dos Apoacutestolos proiacutebe se imponha o jugo sobre os ombros dos disciacutepulos E Paulo diz aos Coriacutentios que a autoridade lhe foi dada para salvar e natildeo para condenar Por que entatildeo multiplicam assim os pecados com tais imposiccedilotildeeshellip Se os Bispos tecircm poder de sobrecarregarem as igrejas com inuacutemeras prescriccedilotildees e de onerar as consciecircncias por que entatildeo a Sagrada Escritura proiacutebe tatildeo frequumlentemente que se faccedilam mandamentos

1 Eacute o que se vecirc claramente pela lista de traditiones feitas no tempo do Conciacutelio de Trento Cf a nota 44 da segunda parte desse livro

humanos e se escravizem os homens Porque chama ela a estas coisas de doutrina de Satanaacutes Foi acaso em vatildeo que o Espiacuterito Santo fez tais advertecircnciasrdquo 2

Lutero identificou aqui a traditio com os abusus Tradiccedilatildeo segundo ele eacute lei humana pela qual o homem se esconde de Deus e pior ainda se levanta contra Ele para tomar nas proacuteprias matildeos a tarefa de sua salvaccedilatildeo em vez de esperaacute-la da libeacuterrima graccedila do Senhor A Tradiccedilatildeo assim entendida como Lei eacute contraposta agrave mensagem da graccedila ldquoDevemos aceitar cada [17] um dos artigos do Evangelho para alcanccedilarmos a graccedila de Deus sem meacuterito nosso atraveacutes da feacute em Jesus Cristo e natildeo pretender merececirc-la mediante praacuteticas do culto inventado pelos homensrdquo3

O problema da Tradiccedilatildeo tornou-se ainda mais agudo devido a um segundo aspecto que de resto natildeo conduziu a nenhum resultado positivo Descobrindo o Evangelho teve Lutero igualmente a impressatildeo de libertar a Palavra de Deus da pesada cadeia do Magisteacuterio eclesiaacutestico que se teria apossado desta Palavra e natildeo mais a entendia em seu verdadeiro sentido empregando-a antes a seu bel-prazer A ideacuteia de que a palavra divina aprisionada na Igreja catoacutelica agrave autoridade do Magisteacuterio ficou privada de sua forccedila viva eacute sempre repetida nos escritos dos Reformadores Melanchton poreacutem fecirc-lo talvez de um modo mais humano e flexiacutevel quando apocircs com reservas a sua assinatura aos artigos luteranos de Esmalca ldquo quanto ao Papa acho eu que jaacute que ele quis abandonar o Evangelho devemos noacutes de nossa parte tolerar (e admitir) para o bem da paz e da unidade a sua superioridade sobre os Bispos superioridade esta que ele possui iure humanordquo 4

Este estado de coisas impregnou outrossim a ideacuteia de Igreja da Confessio Augustana uma vez que aiacute se diz que a Igreja eacute a congregatio sanctorum in qua Evangelium pure docetur et recte administrantur Sacramenta5 Assim a Igreja eacute marcada por duplo aspecto pela pureza da doutrina e pela administraccedilatildeo legiacutetima dos Sacramentos Nem uma palavra sobre o Magisteacuterio Na realidade para a elaboraccedilatildeo do conceito de Igreja este silecircncio da CA natildeo eacute menos importante do que o que ela aiacute diz Eacute um silecircncio evidentemente intencional e denuncia a oposiccedilatildeo dos Reformadores agrave concepccedilatildeo catoacutelica de Igreja [18] entatildeo vigente e ateacute hoje conservada Esta consta de trecircs elementos a fides correspondente ao pure docere a communio que corresponde ao sacramenta e a auctoritas6 O Magisteacuterio aparece aqui como criteacuterio da palavra Eacute o seu fiador Segundo Melanchton daacute-se o contraacuterio a palavra eacute que eacute o criteacuterio do Magisteacuterio Este deve em uacuteltima anaacutelise ser provado pela palavra e pode consequumlentemente ser negado A palavra eacute auto-suficiente e paira sobre o Magisteacuterio como uma grandeza autocircnoma Talvez nesta inversatildeo de relaccedilotildees eacute que estaacute propriamente o contraste entre o conceito catoacutelico e o protestante de Igreja Contradiccedilatildeo paralela se daacute em torno da ideacuteia de Tradiccedilatildeo Com efeito a negaccedilatildeo do Magisteacuterio como criteacuterio da palavra significa a reduccedilatildeo da palavra de Deus agrave Escritura que seraacute entatildeo o

2Art 28 39-42 in Die Bekenntnisschriften der evangelisch lutherischen Kirche Gotinga 1952 p126 3 Art 28 52 Op cit p129 4 Op cit p463 5 Art 7 1 paacuteg 61 6 Sobre este ponto e o seguinte cf J RATZINGER ldquoDas geistliche Amt und die Einheit der Kircherdquo in Catholica 17 (1963) p 165-179

uacutenico sustentaacuteculo autocircnomo e autecircntico da palavra natildeo admitindo a Tradiccedilatildeo como uma grandeza em si

O Conciacutelio de Trento em seu estudo sobre a Tradiccedilatildeo teve diante dos olhos os dois pontos de vista contraacuterios e procurou formular sua resposta levando ambos em consideraccedilatildeo Eacute por isso conveniente analisarmos como estas duas posiccedilotildees se inter-relacionam em face da equiparaccedilatildeo feita por Lutero entre a Traditio e os abusus Em outros termos como os Padres conciliares se colocam diante do dilema dever-se-ia responder aos ataques de Lutero diretamente com uma definiccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo Ou antes de tudo com a reformatio a coerccedilatildeo dos abusus7

No tocante agrave doutrina o Conciacutelio refutou ex professo a censura dos Reformadores sustentando que a palavra natildeo eacute uma realidade autocircnoma pairando acima da Igreja Ela eacute dada pelo [19] Senhor agrave Igreja e natildeo entregue ao capricho dos homens Permanece justamente por isso nas Suas matildeos subtraindo-se ao alcance do alvitre humano Na visatildeo dos Padres de Trento deve no fundo ter parecido uma falta de confianccedila o terem os homens receio da palavra escrita entregue agrave Igreja como se a Igreja pudesse abusar dela Como se se pudesse apelar para a palavra da Revelaccedilatildeo contra a Igreja Estava-se inquestionavelmente certo de que o Senhor que instituiu a Igreja como Seu Corpo haveria de se empenhar em tutelaacute-la contra o perigo de abusar de Sua palavra

Hoje decorridos quatro seacuteculos desde a Reforma podemos confessar que na oposiccedilatildeo que dividia entre si Lutero e o Conciacutelio de Trento tanto depois como antes o dilema que dilacerou a Cristandade ocidental de certo modo jaacute desapareceu Vecirc-se isto pela troca de correspondecircncia entre Harnack e Peterson Peterson ao agradecer o tratado de Harnack Das Alte Testament in den Paulinischen Briefen und in den Paulinischen Gemeiden observou que este em seu cotejo da Escritura com a exegese biacuteblica tinha adotado natildeo o princiacutepio protestante mas o catoacutelico Escreveu Harnack ldquoDizer que o chamado lsquoprinciacutepio formalrsquo do Protestantismo primitivo eacute uma impossibilidade criacutetica e que ao contraacuterio o princiacutepio catoacutelico eacute formalmente o melhor eacute um truiacutesmo Materialmente poreacutem o princiacutepio catoacutelico da Tradiccedilatildeo opotildee-se agrave Biacuteblia muito mais diretamente (As tradiccedilotildees satildeo como ervas daninhas a serem cortadas pela tesoura do Magisteacuterio) A melhor fonte eacute o Novo Testamentordquo 8

Nesta formulaccedilatildeo de certo modo geneacuterica e simplista e na oposiccedilatildeo estabelecida entre os aspectos material e formal vem de novo agrave tona o antigo dilema poder-se-aacute confiar a palavra agrave Igreja sem temor de que ela sob a tesoura do Magisteacuterio ou [20] envolta no mato selvagem do sensus fidelium perca a sua forccedila proacutepria e sua vitalidade Esta eacute a pergunta que os Protestantes fazem aos Catoacutelicos Poder-se-aacute aceitar a autonomia da palavra sem com isto ser esta exposta ao arbiacutetrio dos exegetas aos maus tratos por parte dos historiadores e enfim ao completo desamparo Eis como os Catoacutelicos revidam aos Protestantes Com efeito segundo nossa doutrina natildeo eacute a noacutes que compete decidir se queremos ou natildeo confiar a palavra agrave Igreja Foi o proacuteprio Senhor quem lha confiou Note-se entretanto que quando o Catoacutelico encara seriamente este assunto natildeo deixa de considerar o zelo pela pureza da palavra revelada como um dever

7 Ver as notas 41 e 42 na 2ordf parte 8 Citado in E PETERSON Theologische Traktate Munique 1951 p295

da mais alta importacircncia Ele sabe que natildeo cumpre este dever pelo simples fato de apelar para a inerracircncia da Igreja Fazecirc-lo seria menosprezar o sentido da luta de Lutero em favor da Palavra deixando-se de ver nisto uma salutar advertecircncia e um apelo dirigido agraves almas

Natildeo obstante tudo isto a histoacuteria da controveacutersia natildeo se deteve no decurso dos quatro seacuteculos que se seguiram agrave Reforma Duas diferentes tendecircncias se destacam nas relaccedilotildees entre o Protestantismo e o Catolicismo e entre suas respectivas teologias De um lado uma radicalizaccedilatildeo de cada grupo nos proacuteprios pontos de vista Cada grupo a partir de entatildeo fez sua histoacuteria proacutepria e desenvolveu-a em direccedilatildeo oposta um ao outro Por outro lado a distacircncia mantida entre ambos possibilita maior objetividade em seus julgamentos reciacuteprocos Existe finalmente de parte a parte um renovado esforccedilo por superar as fronteiras com vistas a um encontro

Quem entre os Catoacutelicos empreendeu o mais significativo passo para chegar a uma visatildeo nova do problema da Tradiccedilatildeo mediante a superaccedilatildeo de posiccedilotildees unilaterais e anti-reformistas foi em nossos dias o teoacutelogo dogmaacutetico de Tubinga Josef Rupert Geiselmann Seus esforccedilos foram frutuosos fazendo-se sentir a sua influecircncia inclusive nos estudos preparatoacuterios do [21] Conciacutelio e deram agraves incursotildees do Vaticano II nesta aacuterea aquela marcante atualidade que ainda na primeira sessatildeo levou este problema a transcender do ciacuterculo da luta doutrinal entre as vaacuterias escolas teoloacutegicas para se transformar em uma preocupaccedilatildeo de toda a Cristandade catoacutelica9

A tese de Geiselmann eacute conhecida Basta-nos esboccedilaacute-la rapidamente aqui a fim de lanccedilarmos as bases de uma reflexatildeo que procuraraacute aprofundar mais este assunto e talvez dar um modesto passo agrave frente Geiselmann parte de uma interpretaccedilatildeo nova do sentido dado pelo Conciacutelio ao conceito de Tradiccedilatildeo O tridentino estabelecera que a verdade do Evangelho estaacute contida in libris scriptis et sine scripto traditionibus Isto foi e eacute ateacute hoje interpretado como se a Escritura natildeo contivesse toda a veritas evangelii Portanto natildeo eacute possiacutevel admitir-se a sola Scriptura uma vez que uma parte da Revelaccedilatildeo nos eacute transmitida somente pela Tradiccedilatildeo Geiselmann aproveitou a observaccedilatildeo jaacute antes feita por alguns autores de que na primeira redaccedilatildeo do texto focircra adotada a foacutermula segundo a qual a verdade estaria contida partim in libris scriptis partim in sine scripto traditionibus Estaria aqui claramente expressa a doutrina da divisatildeo da verdade revelada em duas fontes (Escritura e Tradiccedilatildeo) O Conciacutelio abandonou a expressatildeo partim ndash partim preferindo usar o simples conectivo et Geiselmann daiacute conclui afastou-se o Conciacutelio da ideacuteia da divisatildeo da verdade em duas fontes diversas Ou pelo menos natildeo a definiu explicitamente E continua o mesmo autor com isto pode tambeacutem o teoacutelogo catoacutelico aceitar a ideacuteia de uma suficiecircncia material da Escritura Pode ainda mesmo permanecendo catoacutelico defender a opiniatildeo de que a Sagrada Escritura eacute suficiente para transmitir-nos a [22] Revelaccedilatildeo Geiselmann admite consequumlentemente que a sola Scriptura pode conceber-se como uma uacutenica fonte

9 Cf R LAURENTIN Lenjeu du Concile Bilan de Ia premiegravere session Paris 1963 p27-45 Y CONGAR Vatican II Le Concile au jour le jour Paris 1963 p63-71 J RATZINGER Die erste Sitzungsperiode des Zweiten Vatikanischen Konzils Colocircnia 1963 p38-50

material da Revelaccedilatildeo Ele crecirc ainda poder mostrar que a tradiccedilatildeo mais forte eacute a favor desta sentenccedila e que o proacuteprio Conciacutelio de Trento se inclina neste sentido10

Eacute faacutecil de se compreender que semelhante tese tenha obtido o apoio de muitos em face das novas possibilidades de encontro entre Catoacutelicos e Evangeacutelicos possibilidades estas que a posiccedilatildeo de Geiselmann parece favorecer11 Que esta tese na realidade constitua um passo consideraacutevel neste sentido parece ser incontestaacutevel Todavia tatildeo logo a analisemos mais de perto em seus fundamentos histoacutericos e reais surge de pronto toda uma seacuterie de dificuldades graves a tornarem impossiacutevel a sua aceitaccedilatildeo

Sobre o aspecto histoacuterico deste problema apresentaremos vaacuterias observaccedilotildees na segunda parte deste nosso opuacutesculo Entrementes consideremos de imediato o lado praacutetico deste assunto Seu exame provoca inicialmente esta pergunta que significa propriamente a expressatildeo ldquosuficiecircncia da Escriturardquo Geiselmann como teoacutelogo catoacutelico que eacute natildeo deixa de sustentar os nossos dogmas Ora nenhum dogma catoacutelico eacute provado sola Scriptura Nem os grandes dogmas primitivos sustentados pelo consensus quinquesaeligcularis nem tampouco o de 1854 e [23] menos ainda o de 1950 Em que sentido entatildeo se pode falar em suficiecircncia da Escritura Natildeo ameaccedilaraacute esta converter-se em perigosa fraude pela qual nos enganamos primeiramente a noacutes proacuteprios e em seguida tambeacutem enganamos aos outros (Ou natildeo seratildeo talvez justamente eles que natildeo se enganam) Ou entatildeo pelo menos para sustentarmos de um lado que a Escritura sozinha conteacutem toda a verdade da Revelaccedilatildeo e de outro lado que o dogma de 1950 eacute verdade revelada natildeo deveremos noacutes refugiar-nos em um conceito tatildeo largo de suficiecircncia que na verdade esta palavra venha a perder todo o seu significado

Com isto abre-se a segunda (que de fato eacute a primeira) questatildeo decisiva a saber seraacute verdade que os debates em torno da ideacuteia da suficiecircncia da Escritura resolveram mesmo o problema do conceito de Tradiccedilatildeo Ou ao contraacuterio natildeo estaremos noacutes aqui diante de um problema de raiacutezes muito mais profundas

Nossas observaccedilotildees introdutoacuterias devem ter deixado claro que esta uacuteltima pergunta deve sem duacutevida nenhuma ser respondida afirmativamente A questatildeo da suficiecircncia da Escritura eacute apenas um problema secundaacuterio no acircmbito da distinccedilatildeo muito mais importante que foi jaacute antes apontada por noacutes ao tratarmos dos conceitos abusus e auctoritas e que gira em torno do nexo entre a autoridade da Igreja e a autoridade da Sagrada Escritura Da compreensatildeo disto depende tudo o mais

Para irmos mais adiante torna-se necessaacuterio analisarmos profundamente o assunto natildeo para nos determos no exame dos conceitos tatildeo relevantes de suficiecircncia ou insuficiecircncia da Escritura mas antes para abordarmos em seu tudo o vasto problema da Palavra revelada e presente no coraccedilatildeo dos fieacuteis Torna-se evidente entatildeo que agrave luz das fontes positivas a Escritura e a Tradiccedilatildeo devem ser postas em relaccedilatildeo tatildeo iacutentima que da

10 Ver sobretudo a obra de J R GEISELMANN Die Heilige Schrift und die Tradition Friburgo 1962 principalmente as p91-107274-282 Entre os trabalhos anteriores escritos por Geiselmann sobre o mesmo tema eacute de particular importacircncia o seguinte Das Konzil von Trient uumlber das Verhaumlltnis der Heiligen Schrift und der nichtgeschriebenen Traditionen in M SCHMAUS Die muumlndliche Uumlberlieterung Munique 1957 p 123-206 11 Uma lista de todos os autores que mais concordaram com Geiselmann eacute fornecida por H KUumlNG em sua tese ldquoKarl Barths Lehre vom Wort Gottes als Frage an die katholische Theologierdquo in Einsicht und Glaube publicado por J RATZINGER-H FRIES Friburgo 1963 p 105 nota 25

fonte interna (a Revelaccedilatildeo) brote a pa1avra de Deus viva sob aquela dupla formalidade A Escritura e a Tradiccedilatildeo natildeo podem [24] ser entendidas uma sem a outra no sentido que ambas tecircm agrave luz da feacute O problema ldquoEscritura e Tradiccedilatildeordquo permaneceraacute insoluacutevel enquanto natildeo for reduzido a uma soacute questatildeo a saber a questatildeo ldquoRevelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeordquo e inserida enfim no amplo contexto a que pertence

Eu gostaria de nas paacuteginas seguintes sem entrar em todos os detalhes tentar desenvolver em forma de teses e de maneira positiva o conceito de Tradiccedilatildeo partindo de sua natureza iacutentima com a esperanccedila de que nele descubramos uma parte da resposta aos anseios dos Reformadores Desta maneira toda esta anaacutelise serviraacute de contribuiccedilatildeo para o diaacutelogo interconfessional cuja necessidade tanto os Catoacutelicos como os Protestantes vecircm proclamando de maneira cada vez mais insistente

II - Teses sobre a relaccedilatildeo entre a Revelaccedilatildeo e a Tradiccedilatildeo

1 A Revelaccedilatildeo e a Escritura A primeira tese em aditamento ao conceito patriacutestico de Escritura e Revelaccedilatildeo

poderia enunciar-se nos seguintes termos o fato de existir uma ldquoTradiccedilatildeordquo repousa antes de tudo na diferenccedila que permeia entre estas duas realidades ldquoRevelaccedilatildeordquo e ldquoEscriturardquo A Revelaccedilatildeo exprime propriamente o falar e o agir de Deus em relaccedilatildeo aos homens Designa uma realidade expressa pela Escritura sem ser contudo a proacutepria Escritura A Revelaccedilatildeo por conseguinte ultrapassa a Escritura na mesma medida em que a realidade ultrapassa a sua expressatildeo escrita12 Poder-se-ia [25] tambeacutem dizer que a Escritura eacute o princiacutepio material da Revelaccedilatildeo (Talvez princiacutepio uacutenico talvez um princiacutepio entre outros isto seraacute esclarecido mais adiante) Ela natildeo eacute poreacutem a proacutepria Revelaccedilatildeo Isto era aliaacutes bem sabido dos proacuteprios Reformadores mas comeccedilou visivelmente a ser esquecido no aceso da controveacutersia entre a teologia catoacutelica poacutes-tridentina e a ortodoxia protestante13 Em nosso seacuteculo foram justamente os teoacutelogos evangeacutelicos Barth e Brunner que redescobriram este fato de todo evidente para a teologia patriacutestica e medieval14

O que acabamos de afirmar ficaraacute mais claro se partirmos de outro princiacutepio a Escritura pode ser possuiacuteda sem que se possua a Revelaccedilatildeo Isto porque a Revelaccedilatildeo eacute sempre e em primeiro plano uma realidade a realidade onde se encontra a feacute Aquele

12 Esta afirmaccedilatildeo natildeo tem o sentido de que a Escritura seja uma mera e vazia narrativa de realidades a ela exteriores Antes como o que se segue iraacute demonstrar indica que a Revelaccedilatildeo eacute realizada na Palavra jaacute que eacute por meio de palavras que ela se comunica aos homens Contudo a mera presenccedila da palavra ainda natildeo eacute a Revelaccedilatildeo Esta eacute mais do que simples ldquopresenccedilardquo Com o que ficou dito salienta-se a diferenccedila que existe entre a palavra e seu conteuacutedo Esta diferenccedila natildeo exclui o caraacuteter verbal da Revelaccedilatildeo 13 Cf A GLOEGE Schriftprinzips RGG V 1540-1543 onde se encontraraacute a mais completa bibliografia LthK VII 1104-1115 J R GEISELMAN Offenbarung in H FRIES Handbuch zum Begriff der Offenbarung cf M VERENO - R SCHNACKENBURG - HRIES in Theologischer Grundbergriffe II Munique 1963 p242-250 e a bibliografia aiacute citada 14 Cf W H VAN DER POL Das reformatorische Christentum Einsiedeln 1956 p117-192

que natildeo crecirc acha-se como que coberto por um veacuteu o veacuteu de que fala Satildeo Paulo no terceiro capiacutetulo da segunda epiacutestola aos Coriacutentios15 Ele pode ler a Escritura e saber o que nela se conteacutem Pode ateacute mesmo apreender de modo puramente intelectual o que aiacute eacute significado e como suas ideacuteias se inter-relacionam Todavia natildeo possui com isto a Revelaccedilatildeo A Revelaccedilatildeo eacute sobretudo possuiacuteda quando aleacutem da expressatildeo material que a atesta se potildee tambeacutem em praacutetica o seu conteuacutedo interno por meio da vivecircncia da feacute Com efeito de certo modo se inclui tambeacutem na Revelaccedilatildeo o sujeito recipiente sem o qual ela natildeo pode existir Natildeo se pode pocircr a Revelaccedilatildeo no bolso como se faz com [26] um livro Ela eacute uma realidade viva Exige homens vivos que a recebam que sirvam de ldquolugarrdquo de sua presenccedila

Repetindo o que ateacute aqui dissemos podemos afirmar que a Revelaccedilatildeo sobreexcede de fato a Escritura em dois sentidos

a) em sentido ascendente ela atinge sempre como realidade procedente de Deus o agir divino sobre as criaturas

b) como realidade que se daacute ao homem por meio da feacute ela atinge igualmente a Escritura

Desta diferenccedila entre a Escritura e a Revelaccedilatildeo resulta claramente que de todo independentemente da questatildeo se a Escritura eacute ou natildeo eacute a uacutenica fonte material em rigor nunca existe para o cristatildeo a sola Scriptura (Isto como ficou dito era claro em princiacutepio para os grandes Reformadores e comeccedilou a ser esquecido na chamada ortodoxia protestante) A Escritura natildeo eacute a Revelaccedilatildeo Eacute sim em uacuteltima anaacutelise uma parte desta realidade mais ampla

2 Os diferentes sentidos da Escritura

no Antigo e Novo testamento A problemaacutetica cristatilde da Revelaccedilatildeo ou o problema ldquoEscritura e Tradiccedilatildeordquo situa-se

melhor se considerarmos o duplo aspecto da mesma Revelaccedilatildeo no Antigo e no Novo Testamento A este duplo aspecto corresponde tambeacutem um duplo sentido da Escritura Assim como os dois Testamentos como tais se distinguem essencialmente assim tambeacutem devemos dizer que a ldquoEscriturardquo como um fato natildeo eacute repetida duas vezes do mesmo modo Isto aparece muito claro nos livros neotestamentaacuterios Sob a expressatildeo ldquoEscriturardquo designam eles somente o Antigo Testamento Para eles o AT eacute e permanece sendo ldquoa Escriturardquo cujo sentido se aclara mediante sua confirmaccedilatildeo no evento da [27] vinda de Cristo16 Os livros do NT natildeo jogam uma Escritura nova contra uma Escritura antiga Nem potildeem uma simplesmente ao lado da outra Potildeem sim em face da uacutenica Escritura ou seja do Antigo Testamento o Cristo-evento como o espiacuterito que explica a letra Esta concepccedilatildeo fundamental ilumina tambeacutem a forma da feacute mais antiga e a torna por primeiro compreensiacutevel O ldquoJesusrdquo formal eacute o ldquoCristordquo expresso no Antigo Testamento Natildeo eacute outra coisa No Jesus Histoacuterico o Cristo-mensagem do

15 Cf sobre estas reflexotildees o importante artigo (ἀποκαλύπτω de A OEPKE in ThWNT III p565-597 16 Ver sobre este ponto as preciosas conclusotildees de G SCHRENK art γραφή ndash γράμμα in ThWNT I p749-769 e a p767

Antigo Testamento atinge a sua consumaccedilatildeo Eacute a partir do AT que se entende quem eacute Jesus E o que o Testamento Antigo expressa pode ser visto agrave luz do Cristo-evento

Esta ideacuteia aparece em Paulo ao apresentar ele o Antigo e o Novo Testamentos como Gramma e Pneuma isto eacute letra e espiacuterito (2Cor 3 6-18) Ele chama ao Senhor de Pneuma A Escritura explica-o como sendo o seu sentido o seu conteuacutedo verdadeiro e vivo e natildeo apenas literaacuterio Paulo se refere agrave concepccedilatildeo do Novo Testamento apresentada por Jeremias (3133) Natildeo eacute mais necessaacuteria nenhuma Escritura porque a lei estaacute escrita nos coraccedilotildees Jaacute natildeo eacute necessaacuteria nenhuma doutrinaccedilatildeo vinda de fora porque o proacuteprio Deus instrui os homens Joatildeo exprime idecircntico pensamento em seguimento ao decircutero-Isaiacuteas (5413) quando descreve a era inaugurada por Cristo como o tempo no qual todos satildeo doutrinados por Deus mesmo E o sermatildeo de Pedro em Pentecostes transmitido pelos Atos dos Apoacutestolos (2 14-36) desenvolve a mesma ideacuteia tirada de Joel (3 1-5) Em todos estes casos aparece a era instaurada por Cristo como resposta agrave esperanccedila no advento de um tempo futuro que em uacuteltima anaacutelise haveria de tornar supeacuterflua a Escritura graccedilas agrave presenccedila imediata do Divino Mestre na Sua humanidade

Quando se pondera o sentido destas afirmaccedilotildees torna-se claro [28] que ao reduzir-se a ldquoEscriturardquo aos escritos do Antigo Testamento natildeo se estaacute apenas usando uma terminologia antiga que teria sido adotada por falta de escritos propriamente neotestamentaacuterios e que teria perdido seu sentido na segunda metade do seacuteculo segundo com o iniacutecio do cacircnon do Novo Testamento Ao contraacuterio Aqui se expressa uma consciecircncia que se tornaria mais niacutetida a partir da formaccedilatildeo da proacutepria Escritura neotestamentaacuteria muito ao inveacutes de cessar ou de desaparecer

Uma coisa eacute certa a ldquoEscriturardquo na nova ordem da salvaccedilatildeo inaugurada por Cristo toma um lugar distinto do que lhe cabia no Antigo Testamento Com isto pode-se ver ateacute que ponto o Antigo Testamento tem sentido autocircnomo O AT certamente natildeo aparecia desde o comeccedilo como Testamento do Gramma Escritura em sentido proacuteprio como ocorreraacute na pena de Satildeo Paulo17 Por outro lado manifesta-se realmente a partir de Jeremias e do decircutero-Isaiacuteas o anelo pela superaccedilatildeo do Gramma mediante uma nova e imediata comunicaccedilatildeo do Espiacuterito de Deus simultaneamente com a progressiva formaccedilatildeo de um princiacutepio da Escritura que mais e mais a transformou em Lei Lei esta que natildeo tornaria os homens vivos mas sim mortos

Desta maneira na concepccedilatildeo neotestamentaacuteria aparece o Antigo Testamento como ldquoEscriturardquo em sentido proacuteprio Escritura que atinge o seu verdadeiro significado atraveacutes do Cristo-evento pelo fato de ser ela inserida no contexto vivo da realidade de Cristo Se no Novo Testamento de facto a Escritura cresceu natildeo pode mais ter aquele sentido uacuteltimo e exclusivo que lhe competia no Antigo segundo a concepccedilatildeo paulina Ao contraacuterio Ela eacute a chave com que se abre o Antigo Testamento deixando-se banhar na claridade do Cristo-evento Ela eacute tambeacutem a ponte permanente que conduz a uma nova interpretaccedilatildeo biacuteblica agrave luz [29] de Cristo Num caso e noutro a Escritura natildeo pretende de modo nenhum ser autocircnoma nem ser a fonte uacutenica e exclusiva de sua exegese literal Mas soacute pode ter sentido na realidade espiritual de Jesus Cristo que

17 Ver a apreciaccedilatildeo feita por G VON RAD Theologie des Alten Testaments II Munique 1960 p402-424

permanece junto dos seus todos os dias ateacute ao fim do mundo (Mt 28 20) Apoacutes a subida ao Calvaacuterio Cristo veio de novo no Espiacuterito Santo (como narra Satildeo Joatildeo) e pelo Espiacuterito ensinou aos disciacutepulos o que eles entatildeo natildeo podiam ainda entender enquanto o Senhor estava entre eles sob forma visiacutevel (Jo 16 12)

3 Cristo a Revelaccedilatildeo de Deus

A realidade que se daacute como um acontecimento na Revelaccedilatildeo cristatilde natildeo eacute nada

mais nada menos do que o proacuteprio Cristo Cristo eacute a Revelaccedilatildeo em sentido proacuteprio ldquoQuem me vecirc vecirc o Pairdquo diz ele no Evangelho de Satildeo Joatildeo (14 9) Vale portanto dizer que receber a Revelaccedilatildeo eacute penetrar na realidade de Cristo no Cristo-evento Daiacute procede o paradoxo descrito por Satildeo Paulo ao fazer ele um trocadilho com as palavras ldquoCristo em noacutesrdquo e ldquonoacutes em Cristordquo

Neste contexto a anaacutelise de frases isoladas torna-se secundaacuteria de vez que elas satildeo apenas explicaccedilotildees do uacutenico misteacuterio de Cristo Consequumlentemente cai por si mesma a questatildeo da suficiecircncia interna da Escritura tatildeo discutida desde o aparecimento das obras de Geiselmann Deveriacuteamos isto sim perguntar que significa em linguagem cristatilde a suficiecircncia interna da Escritura ldquoSuficienterdquo eacute soacute a realidade do Cristo-evento Esta pode ser explicada materialmente em maior ou menor grau E de maneira nunca definitiva Partindo deste princiacutepio podem existir tambeacutem outras explicaccedilotildees segundo a Escritura quando se aprofunda mais este assunto

Este mesmo tema pode ser considerado sob outro aspecto E ter-se-aacute entatildeo dado um passo a mais para a frente A aceitaccedilatildeo [30] da Revelaccedilatildeo pela qual aplicamos a noacutes o Cristo-evento vem na linguagem da Biacuteblia sob o nome de ldquofeacuterdquo Assim talvez se entenderaacute mais claramente de que maneira no Novo Testamento a feacute significa a ldquoin-habitaccedilatildeordquo de Cristo Se admitirmos que na Escritura a presenccedila da Revelaccedilatildeo tem o mesmo sentido que a presenccedila de Cristo entatildeo teremos de fato dado um passo adiante Ora na Escritura encontramos a presenccedila de Cristo apresentada de duas maneiras Ela aparece de um lado como jaacute vimos identificada com a feacute (Ef 317) na qual cada um encontra Cristo e se adentra nele penetrando no dinamismo de sua forccedila salvadora Por outro lado a feacute se oculta tambeacutem sob a expressatildeo paulina ldquoCorpo de Cristordquo o que quer dizer que a comunidade dos fieacuteis ndash a Igreja ndash funda a presenccedila de Cristo neste mundo Nela Cristo reuacutene os homens e os faz partiacutecipes de sua presenccedila dinacircmica18

Tomadas juntas estas duas noccedilotildees significam o seguinte a feacute eacute a adesatildeo iacutentima agrave presenccedila de Cristo realidade de Cristo presente da qual a Escritura nos daacute testemunho sem contudo se identificar de modo nenhum com ela Daiacute resulta que a presenccedila da Revelaccedilatildeo se relaciona essencialmente com a ldquofeacuterdquo e com a ldquoIgrejardquo realidades estas que como vimos estatildeo estreitamente ligadas entre si

Voltamos assim ao que foi afirmado na primeira tese a saber que a Revelaccedilatildeo sobreexcede a Escritura em duplo sentido em relaccedilatildeo a Deus por seu lado ascendente e em relaccedilatildeo tambeacutem ao homem que a recebe Esta asserccedilatildeo que a princiacutepio deixamos

18 H SCHLIER ldquoDie Kirche nach dem Brief an die Epheserrdquo in Die Zeit der Kirche Friburgo 1962 p159-186

um tanto vaga encontramo-la essencialmente concretizada na realidade objetiva do Cristianismo

4 A essecircncia da Tradiccedilatildeo

[31] A transmissatildeo ao povo de Deus do Cristo-evento que eacute a Revelaccedilatildeo e que tem sua bi-presenccedila na feacute e na Igreja faz-se atraveacutes da pregaccedilatildeo Pregaccedilatildeo eacute a ldquoex-posiccedilatildeordquo (Aus-legung) do duplo aspecto da Revelaccedilatildeo no Antigo e no Novo Testamento E isto de duas maneiras

a) ela eacute a exposiccedilatildeo do Antigo Testamento agrave luz do Cristo-evento e para o Cristo-evento

b) a partir do Pneuma e da condiccedilatildeo presente da Igreja Este uacuteltimo aspecto eacute possiacutevel pois Cristo natildeo estaacute morto Estaacute vivo Natildeo eacute

apenas o Cristo de ontem Eacute tambeacutem e a fortiori o Cristo de hoje e de amanhatilde o Cristo vivo e presente em sua Igreja que eacute seu Corpo e na qual o seu espiacuterito opera

Isto poderaacute ser melhor compreendido se partirmos da essecircncia da Igreja Como nos ensina o Novo Testamento a mensagem de Jesus eacute antes de tudo uma mensagem escatoloacutegica com vistas ao reino de Deus natildeo com vistas agrave Igreja O fato de existir a Igreja natildeo se opotildee a esta mensagem mas haacute na marcha gradativa das revelaccedilotildees de Cristo uma segunda possibilidade Assim a atividade dos Doze depois de Pentecostes aponta natildeo para a Igreja mas para o reino de Deus Informam-nos os Atos dos Apoacutestolos que os Doze natildeo se ocuparam primordialmente em missionar os povos Esforccedilaram-se antes muito mais em converter Israel criando deste modo as condiccedilotildees preacutevias para a implantaccedilatildeo do reino De iniacutecio uma seacuterie de obstaacuteculos histoacutericos entre os quais deveriacuteamos citar antes de tudo o martiacuterio de Estevatildeo o supliacutecio de Tiago e por fim o fato decisivo da prisatildeo e da libertaccedilatildeo de Pedro Tais fatos levaram a comunidade primitiva segundo dizem as fontes a reconhecer como definitivo o malogro do esforccedilo de converter Israel E consequumlentemente forccedilaram os Apoacutestolos a partir em busca dos gentios e a cuidar [32] assim da Igreja e natildeo do reino Eles o fazem segundo se depreende das passagens referidas e principalmente dos esclarecimentos do capiacutetulo 15 dos Atos dos Apoacutestolos como uma nova opccedilatildeo feita sob a accedilatildeo do Espiacuterito Santo Com isso iniciou-se uma nova interpretaccedilatildeo da mensagem de Cristo sobre a qual a Igreja essencialmente repousa19

19 Cf as decisivas conclusotildees de E PETERSON ldquoDie Kircherdquo in Theologische Traktate Munique 1951 p 409-429 H SCHLIER Die Entscheidung fuumlr die Heidenmission in der Urchristenheit Die Zeit der Kirche p 90-107 Parece-me certo que nem a anaacutelise da tradiccedilatildeo sinoacutetica relativa agrave mensagem de Jesus e seu caraacuteter escatoloacutegico nem o estudo da histoacuteria da Igreja primitiva com base no material fornecido pelos Atos dos Apoacutestolos autorizam qualquer outra conexatildeo entre a mensagem do reino e a pregaccedilatildeo da Igreja Daiacute natildeo se segue de modo nenhum ndash como muitas vezes se teme ndash que a cruz seja um acidente secundaacuterio que em rigor poderia ter sido evitado Ao contraacuterio A estrutura da Igreja moldada sobre a cruz eacute fundamental porque aiacute eacute que por primeiro se encontra a confirmaccedilatildeo da importacircncia da liberdade humana de Cristo e da sua Paixatildeo bem como a iacutentima dependecircncia da Igreja para com a Cruz donde ela procede

Este fato que baseia o estabelecimento definitivo da Igreja sobre uma decisatildeo tomada ldquono Espiacuterito Santordquo eacute o fundamento para se afirmar que existe uma interpretaccedilatildeo eclesial do Novo Testamento do mesmo modo que existe uma exegese cristoloacutegica do Antigo Daiacute podermos estabelecer as seguintes teses ou proposiccedilotildees agrave luz da analogia fidei

a) Existe uma teologia veterotestamentaacuteria do Antigo Testamento que o exegeta

deduz de seu conteuacutedo interno e que se desenvolve em uma seacuterie de camadas superpostas Segundo ela os textos antigos devem ser relidos e de novo expostos agrave luz dos novos acontecimentos O fenocircmeno da aplicaccedilatildeo dos textos agraves situaccedilotildees novas do desdobramento da Revelaccedilatildeo mediante nova [33] apresentaccedilatildeo do Antigo Testamento estrutura jaacute de modo essencial o conteuacutedo interno veterotestamentaacuterio20

b) Existe uma teologia neotestamentaacuteria do Antigo Testamento que natildeo coincide com

a referida teologia veterotestamentaacuteria Estaacute contudo estreitamente ligada com ela na unidade da analogia fidei21 Talvez partindo daqui se possa esclarecer o que significa a analogia fidei entre Os dois Testamentos A teologia neotestamentaacuteria do Antigo Testamento natildeo eacute como ficou dito idecircntica agrave teologia histoacuterica veterotestamentaacuteria Ao contraacuterio Re-exposiccedilatildeo feita agrave luz do Cristo-evento ela natildeo procede soacute da mera consideraccedilatildeo histoacuterica do Antigo Testamento Sendo embora em seu pleno conceito uma interpretaccedilatildeo relacionada com o Antigo Testamento contudo nada faz com que ela seja internamente estranha agrave sua essecircncia ainda que soacute de fora o atinja Ela amplia a forma estrutural do Antigo Testamento que assim interpretado revive e cresce

c) Existe uma teologia neotestamentaacuteria do Novo Testamento paralela agrave teologia veterotestamentaacuteria do Antigo Ou seja a teologia que o exegeta como tal pode deduzir do conteuacutedo interno do Novo Testamento eacute tambeacutem esta conhecida e estruturada mediante a aplicaccedilatildeo do Antigo Testamento agraves novas situaccedilotildees

d) Existe uma teologia eclesial do Novo Testamento que noacutes [34] chamamos Dogmaacutetica Ela se relaciona com a teologia neotestamentaacuteria do Novo Testamento do mesmo modo que a teologia neotestamentaacuteria do Antigo se relaciona com a respectiva teologia veterotestamentaacuteria Aquele ldquomaisrdquo (das Mehr) que distingue propriamente a Dogmaacutetica da teologia biacuteblica eacute o que designamos com a palavra Tradiccedilatildeo Aliaacutes tambeacutem aqui devemos salientar que a teologia eclesiaacutestica neotestamentaacuteria pela mesma razatildeo natildeo eacute simplesmente idecircntica agrave teologia neotestamentaacuteria interna e

20 Cf H GROSS Motivtransposition als Form- und Traditionsprinzip im Alten Testament in H VORGRIMLER Exegese und Dogmatik Moguacutencia 1962 p134-152 e a bibliografia aiacute fornecida G v RAD Theologie des Alten Testaments II Munique 1960 p332-339 396-401 21 A diferenccedila entre as duas teologias do Antigo Testamento foi vivamente exposta por R BULTMANN ldquoWeissagung und Erfuumlllungrdquo in Glauben und Verstehen II Tubinga 1952 p162-186 - Sobre as necessaacuterias correccedilotildees a se fazerem para que se torne visiacutevel a base histoacuterica do que a teologia sistemaacutetica denomina ldquoanalogia fideirdquo cf G v RAD op cit p329-424 (entre outras) e principalmente a p 420 nota 25 e a p422 nota 29 Sobre o tema ldquoanalogia fideirdquo em ambos os Testamentos cf tambeacutem E PRZYWARA Alter und Neuer Bund Viena-Munique 1956

histoacuterica do Novo Testamento Ultrapassa-a sem contudo ser-lhe puramente externa Com efeito no Novo Testamento comeccedila jaacute o processo da exposiccedilatildeo pela Igreja das verdades reveladas A teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento processa-se dentro dele proacuteprio como de modo clariacutessimo se percebe na histoacuteria da Revelaccedilatildeo sinoacutetica22

Eacute oportuno fazermos ainda uma pequena observaccedilatildeo se cotejarmos atentamente a teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento com a Dogmaacutetica reconheceremos que se impotildee uma outra distinccedilatildeo A Dogmaacutetica como ciecircncia aleacutem da exposiccedilatildeo eclesiaacutestica do Novo Testamento abrange tambeacutem a teologia particular de cada teoacutelogo Neste caso para se falar com precisatildeo dever-se-ia apresentar somente o proacuteprio dogma como teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento

O que acabamos de referir natildeo passa naturalmente de um esboccedilo que necessitaria em seus pormenores de natildeo poucos esclarecimentos e distinccedilotildees a fim de ser completo No caso presente entretanto damos por suficiente este esboccedilo Resumindo o que ateacute aqui expusemos podemos agora destacar vaacuterias ldquoraiacutezesrdquo da Tradiccedilatildeo e apontar vaacuterias camadas em seu seio [35] lordf raiz a maior amplidatildeo da ldquoTradiccedilatildeordquo em referecircncia agrave ldquoEscriturardquo

2ordf raiz o caraacuteter especiacutefico da Revelaccedilatildeo neotestamentaacuteria como Pneuma em contraste com o Gramma Eacute o que na linguagem de Bultmann se poderia chamar de sua condiccedilatildeo de ldquonatildeo-objetordquo (Nichtobjektiviertbarkeit) A praxe eclesiaacutestica e a teologia medieval expressaram este aspecto ao sobreporem a fides agrave Scriptura isto eacute o dogma como regra de feacute agraves minuacutecias da lei escrita23 O dogma eacute como a chave hermenecircutica da Escritura que em uacuteltima anaacutelise sem o auxiacutelio da hermenecircutica ficaria sendo algo fechado

3ordf raiz o caraacuteter presencial do Cristo-evento e a presenccedila dinacircmica do Espiacuterito de Cristo em seu Corpo a Igreja E consequumlentemente o poder que tem a Igreja de fazer a pregaccedilatildeo do Cristo ontem e hoje pregaccedilatildeo esta cuja fonte se encontra na interpretaccedilatildeo eclesiaacutestica da mensagem do reino transmitida pelos Apoacutestolos

Em conexatildeo com estas trecircs raiacutezes da ideacuteia (ou melhor da realidade) da Tradiccedilatildeo podem distinguir-se na mesma as seguintes camadas

a) Na origem de toda Tradiccedilatildeo estaacute o fato de que o Pai enviou o Seu Filho ao mundo e que o Filho por sua vez se [36] entregou ndash como sinal ndash aos ldquopovosrdquo (παραδίδοται) Esta paraacutedosis original em sua forccedila direta e salvadora

22 Cf por exemplo a rica exposiccedilatildeo de G BORNKMANN Jesus von Nazareth Estutegarte 1956 Sobre a questatildeo aqui estudada cf H SCHLIER Uumlber Sinn und Aufgabe einer Theologie des Neuen Testaments in H VORGRIMLER Exegese und Dogmatik Mainz 1962 p6990 23 O que haacute de melhor sobre este assunto no tocante agrave Patriacutestica seraacute encontrado em HARNACK DG II (1931) p84-116 HARNACK diz na p 87 nota 3 o seguinte ldquoO Cacircnon era de iniacutecio a regra da feacute A Escritura estaacute centrada na verdade Sem duacutevida nenhuma sua autoridade funda-se solidamente no Antigo Testamento e nas palavras do Senhorrdquo ndash Que assim tenha pensado tambeacutem a Idade Meacutedia e que aqui aleacutem da revelatio (da qual falaremos na 2ordf parte deste livro) a fides sobrepondo-se agrave Scriptura estabelece a forma essencial do conceito de Tradiccedilatildeo foi o que tentei demonstrar em meu artigo Wesen und Weisen der auctoritas im Werk des heiligen Bonaventura in Die Kirche und ihre Aumlmter und Staumlnde (Festgabe Kardinals Frings publicado por CORSTEN-FROTZ-LINDEN Colocircnia 1960 p 58-72

prolonga-se na permanente presenccedila de Cristo no σῶμα Χριστοῦ ndash no Seu Corpo a Igreja Assim o misteacuterio integral da presenccedila de Cristo eacute antes de tudo a realidade total transmitida pela Tradiccedilatildeo (fato fundamental e decisivo sempre anterior a todas as explicaccedilotildees particulares mesmo as da Escritura) e reguladora do que deve propriamente ser transmitido

b) A Tradiccedilatildeo existe concretamente como presenccedila na feacute Esta por seu turno como ldquoin-habitaccedilatildeordquo de Cristo precede todas as explicaccedilotildees particulares e frutuosa e viva ldquoexplicita-serdquo (explizierend) atraveacutes dos tempos

c) A Tradiccedilatildeo tem seu oacutergatildeo na plenitude dos poderes da Igreja e portanto naqueles que satildeo os legiacutetimos depositaacuterios destes poderes24

d) A Tradiccedilatildeo exprime-se tambeacutem naquilo que emanado da autoridade da Igreja se tornou regra de feacute (Symbolum fides quaelig) Portanto a questatildeo de se saber se certas proposiccedilotildees foram transmitidas desde o

comeccedilo pela Tradiccedilatildeo ao lado da Escritura ou em outros termos se existe desde o comeccedilo um segundo princiacutepio material e autocircnomo ao lado da Escritura torna-se afinal um problema inteiramente secundaacuterio Talvez lhe devamos responder negativamente

5 A funccedilatildeo da exegese [37] Pelo que ateacute aqui dissemos ficaram esclarecidas quase que exclusivamente

trecircs pontos os limites da letra da Escritura a liberdade do Espiacuterito Santo e a autoridade da Igreja Acontece poreacutem que a exposiccedilatildeo que fizemos abriga ainda um sentido diverso relacionado com a justa preocupaccedilatildeo de Lutero da qual partimos

Se ficou estabelecido que a Revelaccedilatildeo se faz presente atraveacutes da pregaccedilatildeo e se pregaccedilatildeo eacute exposiccedilatildeo da palavra revelada entatildeo pode e deve agora ao que precede acrescentar-se o seguinte a Tradiccedilatildeo eacute essencialmente e sempre uma exposiccedilatildeo Natildeo existe de maneira autocircnoma e sim como explicaccedilatildeo como exposiccedilatildeo ldquorelacionada com a Escriturardquo

Isto vale para a pregaccedilatildeo do proacuteprio Jesus Cristo realizaccedilatildeo plena da Revelaccedilatildeo e sua exposiccedilatildeo feita com autoridade A pregaccedilatildeo de Jesus Cristo natildeo aparece como algo absolutamente novo na Escritura Isto eacute como algo ainda natildeo atestado no Antigo Testamento Ela ensina isto sim a essecircncia do que jaacute estava escrito e lhe confere uma vida nova que o simples exegeta natildeo pode comunicar-lhe

O que vale para a mensagem de Cristo que permanece a mesma sob diferentes modalidades de exposiccedilatildeo vale tambeacutem para a pregaccedilatildeo apostoacutelica e a eclesiaacutestica Como ldquoTradiccedilatildeordquo ela deve em uacuteltima anaacutelise ser uma exposiccedilatildeo ldquosegundo a Escriturardquo a ela sujeita e com ela relacionada Sem duacutevida natildeo eacute ela uma exposiccedilatildeo no 24 Estas ideacuteias natildeo podem ser desenvolvidas mais detalhadamente aqui como seria de desejar uma vez que em rigor estamos procurando apenas fundamentar o conceito de Tradiccedilatildeo Em razatildeo da brevidade que me impus contentei-me apenas nas teses precedentes com explanar o assunto ateacute ao ponto em que ficasse patente a relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a ldquoIgrejardquo (cf as teses 4 e 5) Para se descer a maiores detalhes dever-se-ia analisar tambeacutem o conceito de Igreja que supomos conhecido do leitor Para isto cf a nota 6 onde citamos nosso livro sobre o Ofiacutecio e a unidade da Igreja Encontram-se aiacute algumas observaccedilotildees sobre o assunto de que ora tratamos

sentido de mera interpretaccedilatildeo exegeacutetica Mas sim na autoridade espiritual recebida do Senhor a qual se consuma na existecircncia plena da Igreja em sua feacute em sua vida e em seu culto Contudo ela permanece sendo (mais ainda do que o Cristo-evento em que se funda a Igreja) uma ldquoex-posiccedilatildeordquo (Aus-Legung) comprometida com a Histoacuteria e com a Palavra [38] Exprime-se deste modo a sua ligaccedilatildeo com a accedilatildeo concreta de Deus nesta mesma Histoacuteria e em seu caraacuteter de fato histoacuterico uacutenico (o ἑφάπαξ ldquoo ocorrido uma soacute vezrdquo) A realidade cristatilde da Revelaccedilatildeo eacute tatildeo essencial quanto ldquoeternardquo e definitiva Resulta daiacute a unidade entre o Cristo da Feacute e o Jesus da Histoacuteria o Jesus histoacuterico natildeo eacute senatildeo o Cristo da Feacute ainda que a feacute seja sempre algo mais do que a histoacuteria

Segue-se que do mesmo modo que existe um ofiacutecio de custoacutedia da Revelaccedilatildeo por parte da Igreja ofiacutecio por ela mesma atestado existe tambeacutem um ofiacutecio de custoacutedia da mesma Revelaccedilatildeo por parte da exegese que penetra o sentido literal da Escritura e defende a uniatildeo do Logos com a carne contra qualquer perigo de gnose Existe portanto por assim dizer algo como uma autonomia especiacutefica da Escritura como regra objetiva e sob muitos pontos de vista esclarecedora do Magisteacuterio eclesiaacutestico Esta era sem duacutevida uma exigecircncia legiacutetima de Lutero que ainda natildeo foi devidamente acolhida na Igreja catoacutelica por parte do Magisteacuterio cujos limites internos nem sempre foram claramente entendidos

Dever-se-ia partindo daqui salientar uma dupla criteriologia em se tratando da feacute De um lado haacute o que a Igreja antiga chamou de ldquoregra da feacuterdquo norma reguladora da palavra revelada contida na Escritura e sua exposiccedilatildeo Esta praeligscriptio da posse da Escritura como proacutepria segundo Tertuliano exclui a possibilidade de qualquer uso legiacutetimo da mesma Escritura contra a Igreja Por outro lado haacute tambeacutem o limite da littera Scripturaelig ou do sentido literal historicamente fixaacutevel que de acordo com o que ficou dito natildeo constitui nenhum criteacuterio absoluto ou autocircnomo mas sim somente um criteacuterio relativo no confronto da feacute com a ciecircncia O que na Escritura se pode descobrir quer mediante estudo cientiacutefico quer por simples leitura tem a funccedilatildeo de um criteacuterio real a que deve estar atento inclusive o Magisteacuterio em suas explicaccedilotildees Certamente [39] trata-se entatildeo de elementos sub-componentes da ciecircncia que natildeo podem servir para se julgar a feacute mas nela encontram uma instacircncia criacutetica e tecircm tambeacutem um importante papel a exercer o de zelar pela pureza do ἑφάπαξ de tutelar o conteuacutedo da Revelaccedilatildeo e de defender o dualismo histoacuterico carneespiacuterito (ldquodie Sarx der Geschichterdquo) contra os arbiacutetrios da gnose que tende sempre a impor-se

A reformatio na qual estaacute empenhada a Igreja nesta hora histoacuterica tem um papel relevante a desempenhar Eacute a missatildeo de abrir novas perspectivas para o diaacutelogo tentando assim chegar a uma ldquoreformardquo diferente da do passado que culminou com a divisatildeo no seio da Cristandade ocidental Tal missatildeo se exerceraacute em harmonia com o pleno ofiacutecio de testemunho da Igreja que tira seu direito e sua forccedila da presenccedila do Espiacuterito e de Cristo presente em todos os tempos Pois ele eacute sempre o Cristo de agora com a plenitude de seus direitos e de seus poderes Ele eacute quem daacute legitimidade e vigor ao testemunho singular e definitivo da Escritura que por sua vez encontra seu pleno sentido na singularidade da accedilatildeo histoacuterico-salviacutefica de Jesus Cristo Ele deu ao Pai seu Corpo crucificado e dando-se a si mesmo santificou para sempre os que o receberam (cf Hb 1014 727) Ele eacute o Cristo ontem hoje e sempre (Hb 138)

SEGUNDA PARTE

Explicaccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo segundo o Decreto do Conciacutelio de Trento

Parece que a completa elucidaccedilatildeo das razotildees que levaram agrave substituiccedilatildeo do

partim-partim pelo et e consequumlentemente agrave pesquisa dos dados do debate tridentino e de sua preacute-histoacuteria aparentemente favoraacutevel agrave suficiecircncia material da Escritura [40] simplifica indevidamente este problema fazendo-nos perder de vista os proacuteprios antecedentes do Decreto do Conciacutelio de Trento

1 A concepccedilatildeo pneumatoloacutegica da Tradiccedilatildeo no esquema fundamental do Cardeal Cervini

a) O conteuacutedo Um balanccedilo histoacuterico e detalhado do problema em seu conjunto exigiria uma

pesquisa exaustiva que natildeo reduzisse o seu acircmbito como o fez Geiselmann em seu livro25 Natildeo eacute nossa intenccedilatildeo proceder a um exame minucioso do assunto no presente trabalho Aqui soacute seratildeo tratados alguns pontos do debate tridentino com o fim de ampliarmos mais o horizonte de nossas reflexotildees

Fundamental para a compreensatildeo dos debates em pauta bem como do Decreto definitivo do Conciacutelio parece-me ser o Discurso do Cardeal Legado Cervini datado de 18 de fevereiro de 1546 [41] cujas linhas gerais se patenteiam tanto no Decreto como em outras decisotildees conciliares26

Tem o discurso de Cervini o meacuterito de mostrar as linhas diretrizes do Decreto de maneira mais clara do que aparecem estas na uacuteltima redaccedilatildeo do mesmo onde elas se diluem muito devido a uma seacuterie de variadas implicaccedilotildees Eacute ainda de grande auxiacutelio para o entendimento do referido discurso uma carta dos Cardeais Legados ao Cardeal Alexandre Farnese de 28 de fevereiro de 1546 Esta carta revela conteuacutedo idecircntico ndash eacute certamente inspirada pelo mesmo Cervini ndash e oferece ainda alguns outros

25 Eacute lamentaacutevel que Geiselmann em sua anaacutelise da contribuiccedilatildeo medieval sobre este assunto se tenha apoiado apenas em argumentos de segunda matildeo portanto de valor histoacuterico discutiacutevel Queira o leitor ver minhas observaccedilotildees a este respeito in Theol-prakt Quartalschrift 1963 p224-227 As novas (e temperamentais) invectivas de Geiselmann in TThQu 144 (1964) p 31-69 em nada modificaram a minha posiccedilatildeo de vez que natildeo trazem nenhuma contribuiccedilatildeo vaacutelida ao assunto Precioso ao contraacuterio eacute o trabalho de Y CONGAR La Tradition et les traditionshellip Essai historique Paris 1960 Importante eacute tambeacutem a obra de J BEUMER Die muumlndliche uumlberlieferung als Glaubensquelle Friburgo 1962 A respeito do Conciacutelio de Trento cf sobretudo aleacutem do estudo fundamental de JEDIN o artigo de E ORTIGUES Escriture et Traditions apostoliques au Concilie de Trente in RSR 36 (1949) p 271-299 K D SCHMIDT Studien zur Geschichate des Konzilis von Trient Tubinga 1925 p 152-209 26 O discurso nos foi transmitido em duas redaccedilotildees A primeira mais curta encontra-se nas Atas do Conciacutelio in CT V 11 A segunda faz parte do diaacuterio de Massarelli (Diarium III) in CT I p484 Quanto ao conteuacutedo os dois textos se completam Na anaacutelise que aqui ensaiamos as duas versotildees satildeo comparadas entre si de modo a fazerem um todo Sobre a posiccedilatildeo de Cervini no Conciacutelio cf H JEDIN Geschichte des Konzils von Trient II Friburgo 1957 p38-40 A descriccedilatildeo do desenrolar histoacuterico dos debates acha-se em JEDIN op cit p42-82 e supomo-la conhecida do leitor de vez que serve de base para a anaacutelise teoloacutegica do Decreto tridentino

esclarecimentos Cervini sustenta no citado discurso que existem trecircs princiacutepios e fundamentos de nossa feacute

1) Os livros sagrados escritos sob a inspiraccedilatildeo do Espiacuterito Santo 2) O Evangelho que Nosso Senhor natildeo escreveu mas ensinou oralmente e

implantou nos coraccedilotildees Parte do Evangelho foi escrita mais tarde pelos Evangelistas enquanto muita coisa foi simplesmente confiada aos coraccedilotildees dos fieacuteis

3) Porque o Filho de Deus natildeo ia permanecer sempre entre noacutes enviou ele o Espiacuterito Santo que haveria de revelar os misteacuterios no iacutentimo dos fieacuteis e de ensinar agrave Igreja toda a verdade ateacute ao fim dos tempos27

[43] Numa segunda redaccedilatildeo mais detalhada do discurso estas mesmas ideacuteias satildeo

desenvolvidas mais amplamente Aiacute lemos que a Revelaccedilatildeo se apresentou de modo diferente em diversos tempos

1) Nos Patriarcas cuja feacute eacute atestada na Escritura a que chamamos de Antigo Testamento

2) Em Jesus Cristo que implantou o seu Evangelho natildeo por escrito mas oralmente natildeo in charta mas in corde Das coisas que emanaram de Cristo (quaelig a Cristo emanarunt) algumas foram escritas outras permaneceram nos coraccedilotildees dos homens (quaeligdam in cordibus hominum relicta fuerunt) Todo o Evangelho de Cristo que consta desta dupla modalidade forma (tendo como primeiro princiacutepio o Antigo Testamento) o secundum prindipium fidei nostraelig

3) Daiacute surge o terceiro princiacutepio (tertium autem) porque o Filho de Deus natildeo iria permanecer sempre entre noacutes enviou ele ao mundo o Espiacuterito Santo que haveria de explicar os misteacuterios de Deus e tudo o que fosse ainda obscuro para os homens28 De modo semelhante a citada carta ao Cardeal Farnese fala de dois passos (due

passi) Um eacute que a Revelaccedilatildeo de Nosso Senhor natildeo foi totalmente escrita mas permaneceu em parte contida nos coraccedilotildees dos homens e na Tradiccedilatildeo da Igreja O outro [43] passo consiste em confirmar ldquoquello che egrave suggerito lo Spirito Santo in la Chiesa maxime medianti i concilij doppo lAscensione in cielo del Signorerdquo29

Notamos logo que contrariamente ao que esperaacutevamos natildeo dois mas trecircs satildeo os princiacutepios apontados a Escritura o Evangelho e a Revelaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

27 CT V 11 helliptria esse principia et fundamenta nostrae fidei primum libros sacros secundum esse evangelium quod Christus Dominus Noster non scripsit sed ore docuit et in cordibus illud plantavit cujus evangelii nonnulla evangelistaelig scripto mandarunt multa quoque relicta sunt in cordibus hominum Tertium quia non semper filius Dei corporaliter nobiscum mansurus erat misit Spiritum Sanctum qui in cordibus fidelium secreta Dei revelaret et ecclesiam quotidie et usque consummationem saeligculi doceret omnem veritatem et si quid in mentibus hominum dubii occurrisset declararet 28 CT I 484 Digna de nota eacute ainda a foacutermula contida na paacutegina 48514-16 nihil tamen inter scripturas sacras et apostolicas traditianes differt illaelig enim scriptaelig hae per insinuationem habentur utraeque tamen a Spiritu Sancto eodem modo emanataelig Confira-se com CT V 11 19 ab eodem Spiritu et illos (scilicet libros) et istas (scilicet traditiones) descendisse 29 CT X 373

Eacute portanto necessaacuterio observar que sob o termo ldquoEscriturardquo se entende o Antigo Testamento e que aleacutem deste (que eacute Escritura em sentido proacuteprio) aparece como segundo princiacutepio o Evangelho apresentaccedilatildeo do Cristo-evento O Evangelho por sua vez abrange o que estaacute escrito e o que natildeo estaacute escrito mas sim apenas insculpido no coraccedilatildeo dos crentes Deste modo o segundo princiacutepio representa uma vantagem pneumaacutetica sobre o que estaacute escrito o Evangelho eacute nesta concepccedilatildeo algo diferente da letra (Escritura) e soacute em parte vem escrito (Isto natildeo deve ser entendido no sentido de divisatildeo das verdades da feacute fenocircmeno denunciado ldquocom horrorrdquo por Geiselmann Ao contraacuterio Entenda-se apenas no sentido de diferente grau de dignidade no modo de exprimir-se) Em rigor o Evangelho como tal soacute pode ser escrito em parte se considerarmos a sua essecircncia

Finalmente ndash o que eacute muito de se admirar ndash segue-se como terceiro princiacutepio a accedilatildeo visiacutevel do Espiacuterito Santo em todo o tempo da Igreja

Admitimos portanto que o que noacutes geralmente chamamos de Tradiccedilatildeo natildeo aparece aqui como um soacute princiacutepio Biparte-se antes em dois princiacutepios intimamente ligados o ldquoEvangelhordquo princiacutepio apenas em parte identificaacutevel com a Escritura e a accedilatildeo do Espiacuterito Santo no tempo da Igreja Ademais podemos observar que a Escritura do Novo Testamento natildeo aparece como um princiacutepio ao lado da Revelaccedilatildeo apostoacutelica Muito menos como [44] eacute o nosso caso se apresenta a Escritura neotestamentaacuteria juntamente com a veterotestamentaacuteria como uma grandeza uacutenica uma ldquoEscriturardquo soacute agrave qual se poderia contrapor a ldquoTradiccedilatildeordquo como uma segunda grandeza O Novo Testamento em seu conjunto aparece como um segundo e mais amplo princiacutepio ou seja o Evangelho que como tal se opotildee de um lado ao Antigo Testamento e de outro agrave projeccedilatildeo histoacuterica do tempo da Igreja Sua unidade interna eacute evidentemente mais forte e importante do que a sua divisatildeo em escrito e natildeo-escrito Assim o Evangelho como um soacute princiacutepio pode ser contraposto ao Antigo Testamento a despeito desta dupla formalidade A impossibilidade de se representar o Novo Testamento como Escritura impossibilidade esta demonstrada por Satildeo Paulo e pelos primeiros seacuteculos cristatildeos eacute aqui claramente revelada

Ainda uma observaccedilatildeo relativa ao texto a que vimos nos referindo Em nenhum dos dois pontos por noacutes citados no estudo da Tradiccedilatildeo isto eacute nem no elemento contido no primeiro nem no apresentado no terceiro princiacutepio figura a Tradiccedilatildeo como verbal Em ambos os casos ao contraacuterio trata-se mais da Tradiccedilatildeo real com prevalecircncia da realidade sobre as palavras que a atestam Este fato que estaacute claro no terceiro princiacutepio o pneumatoloacutegico vale tambeacutem em relaccedilatildeo agrave implantaccedilatildeo do Evangelho nos coraccedilotildees contida no segundo princiacutepio Tal implantaccedilatildeo vai muito aleacutem do que se encontra expresso na letra da Escritura

Que papel tenham estas ideacuteias exercido nas discussotildees do Conciacutelio pode-se concluir tambeacutem das auctoritates citadas por Cervini entre as quais figuram Jo 16 12 (hellipSpiritus Sanctus suggerethellip) e Fl 3 15 (Quicumque perfecti sumus haeligc sentiamus et si quid aliter sentitis haeligc quoque Deus vobis revelabit) Ambos estes textos satildeo de teor acentuadamente [45] pneumatoloacutegico-presencial30 Que tais ideacuteias natildeo eram

30 CT V 14 e 15 Um exame profundo das auctoritates quer da Escritura quer entre os Santos Padres que neste particular satildeo favoraacuteveis agrave Tradiccedilatildeo seria em si conclusivo para a elaboraccedilatildeo do conceito

estranhas aos Padres conciliares deduz-se ainda de uma seacuterie de outras referecircncias Assim ouvimos o Bispo de Aqui dizer que aleacutem da Sagrada Escritura existe muita coisa na Igreja de Deus que vindo dos Apoacutestolos e passando de geraccedilatildeo a geraccedilatildeo chegou ateacute noacutes assim como muitas outras quaelig etsi scripta Apostoli nobis non reliquerunt per Spiritus Sancti revelationem nobis (tradita) sunt (Tradita estaacute aqui por revelata) 31 Partindo daiacute se poderia descrever a Tradiccedilatildeo justamente como o componente pneumatoloacutegico do Cristo-evento b) A influecircncia do esquema de Cervini em diversas decisotildees conciliares

Eacute verdade que esta concepccedilatildeo tripartida aparece muito atenuada no Decreto

oficial sobre a Tradiccedilatildeo Que poreacutem em suas linhas fundamentais natildeo tenha ela sido de modo nenhum [46] abandonada mostram-no duas outras passagens nas quais o Conciacutelio faz uso por assim dizer in actu das ideacuteias aqui expressas32 Assim na Introduccedilatildeo ao Decreto sobre a Eucaristia (Denz 873) se lecirc Sacrosancta Synodus sanamhellipdoctrinam tradens quam semper catholica Ecclesia ab ipso Jesu Christo Domino Nostro et eius apostolis erudita atque a Spiritu Sancto illi omnem veritatem in dies suggerente (Jo 1416) edocta retinuithellip

Aqui a accedilatildeo proacutepria do Conciacutelio eacute descrita como tradere e a este tradere eacute atribuiacutedo um duplo fundamento De um lado o ensino de Jesus e dos Apoacutestolos (Note-se que este ponto corresponde ao Evangelho segundo a concepccedilatildeo de Cervini E de certo modo tambeacutem pela citaccedilatildeo de Jesus e dos Apoacutestolos se reconhece a dupla modalidade do Evangelho como escrito e como inserido nos coraccedilotildees) De outro lado o ensino dado pelo Espiacuterito Santo que conduz agrave verdade in dies isto eacute no de correr do tempo futuro

O outro texto que pode ser aduzido aqui como prova do que afirmamos encontra-se no Preacircmbulo do Decreto sobre o Purgatoacuterio (Denz 983) Aiacute se lecirc hellipCatholica Ecclesia Spiritu Sancto edocta ex Sacris Litteris et antiqua Patrum traditione in sacris Conciliis et novissime in hac Synodo docuerit A descriccedilatildeo da accedilatildeo proacutepria do

aqui exposto H HOLSTEIN procurou fazer o cotejo destas auctoritates e fecirc-lo de modo admiraacutevel em seu artigo La Tradition dapregraves le Concile de Trente (RSR 47 1959 p367-390 e em particular para o caso em questatildeo a p375) Ele encontra nos textos estudados duas linhas de tendecircncias A linha de Santo Irineu para a qual o testemunho dos Apoacutestolos eacute o de sua personalidade de sua vida e de seu ofiacutecio Aleacutem desta o grupo composto de Tertuliano Cipriano Basiacutelio e Agostinho forma uma corrente que se poderia denominar ldquocerimonialrdquo Oriacutegenes se enquadra em ambos os grupos Existe entre os autores estudados uma seacuterie de textos que se referem agraves observationes consuetudines institutiones e que levam a entender-se a Tradiccedilatildeo neste mesmo sentido Aiacute se vecircem tambeacutem textos que sublinham o aspecto natildeo-escrito do Evangelho enquanto insculpido no coraccedilatildeo dos fieacuteis e aleacutem disso textos que apontam a Igreja como o ldquolugarrdquo da verdade cristatilde 31 CT I 483 (18 de fevereiro de 1546) Em 26 de fevereiro (CT V 18) encontramos Cervini a tratar de novo deste assunto Cf tambeacutem um pronunciamento do Bispo de Fano (CT V 10) nestes termos Cum jam receperimus Scripturas Sacras necessario recipiendaelig sunt traditiones quaelig ab eodem Spiritu Sancto quo scripturaelig dictataelig sunthellip 32 Disto me adverti pela primeira vez atraveacutes de um estudo realizado sob a minha orientaccedilatildeo por CHR LIMBACR a quem sou devedor de muitas informaccedilotildees bibliograacuteficas

Conciacutelio como tradere encontra-se ainda nas declaraccedilotildees sobre o Sacramento da Extrema-Unccedilatildeo (Denz 910)

Finalmente a triacuteplice divisatildeo deixa-se insinuar nas entrelinhas do Decreto sobre a Tradiccedilatildeo embora obscurecida e diluiacuteda por uma seacuterie de acreacutescimos e citaccedilotildees a ele adicionados por outros motivos O Decreto da Tradiccedilatildeo com efeito [47]

1) Fala do Evangelho prometido pelos Profetas na Escritura e refere-se a esta em sentido estrito quer antes quer depois do Antigo Testamento

2) Fala da promulgaccedilatildeo por Cristo do Evangelho que foi transmitido pelos Apoacutestolos sob dupla forma oral e escrita Desta maneira o que natildeo ocorre no exemplo de Cervini aparece aqui antes de tudo o componente pneumatoloacutegico unido com o componente apostoacutelico a ponto de se distinguirem duas modalidades de Tradiccedilatildeo apostoacutelica a que remonta a Cristo e a que remonta ao envio do Espiacuterito Santo Pode-se assim estabelecer que em oposiccedilatildeo ao esquema de Cervini haacute um certo processo de historicizaccedilatildeo que salienta a relaccedilatildeo com o comeccedilo histoacuterico e igualmente parece deslocar o acento da tradiccedilatildeo real para a verbal

3) No epiacutelogo desta parte do Decreto da Tradiccedilatildeo que vimos analisando de novo eacute considerada a ideacuteia da Sagrada Escritura O conceito de Tradiccedilatildeo eacute entatildeo formulado em definitivo e descrito como vel oretenus a Christo vel a Spiritu Sancto dictatas et continua successione in Ecclesia catholica conservatas A referecircncia aos Apoacutestolos eacute omitida Pode-se na verdade considerar tudo isto como uma volta ao que foi dito antes Evidentemente a tradiccedilatildeo ditada pelos Apoacutestolos eacute citada de novo (A expressatildeo continua successione insinua-o) Contudo permanece sempre ainda certa indeterminaccedilatildeo ficando aberta a possibilidade de se encontrar aqui o vestiacutegio do terceiro componente de Cervini o princiacutepio pneumaacutetico propriamente dito Eacute tambeacutem claro que esta ideacuteia eacute discreta sendo adotada uma posiccedilatildeo mais acentuadamente histoacuterica Se agora lanccedilarmos os olhos sobre o que vimos considerando ateacute aqui surgiratildeo

inevitavelmente perguntas qual eacute realmente o sentido proacuteprio da concepccedilatildeo pneumatoloacutegica Como poderia ser perfeitamente entendida a ideacuteia a noacutes estranha de uma revelatio prolongada no tempo em face da unicidade e do caraacuteter [48] histoacuterico da Revelaccedilatildeo que evidentemente era conhecido tanto de Cervini quanto dos Santos Padres e teoacutelogos medievais33

Antes de examinarmos isto devemos esclarecer rapidamente os principais motivos que inspiraram o Decreto tridentino sobre a Escritura e a Tradiccedilatildeo deixando nele um tanto encoberta a concepccedilatildeo pessoal de Cervini Que opiniotildees de teoacutelogos teratildeo intervindo aqui chegando a ser em parte impressas no texto definitivo que resultou do cotejo de muitos pronunciamentos diversos Uma exposiccedilatildeo detalhada deste ponto exorbitaria do acircmbito de nossa anaacutelise Contentemo-nos com umas poucas observaccedilotildees sumaacuterias 33 Sobre este assunto tentei fazer um breve comentaacuterio no meu trabalho ldquoOffenbarung-Schrift-Uberlieferungrdquo in TThZ 67 (1958) p13-27 Cf J BEUMER ldquoDer theoretische Beitrag der Frnhscholastik zum Problem des Dogmenfortschrittsrdquo in ZkTh 72 (1952) p205-226 J de CHELLINCK Pour lrsquohistoire du mot ldquorevelarerdquo in RSR 6 (1916) p149-157

2 Relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a vida da Igreja

em diversas passagens do debate tridentino

Uma primeira seacuterie de motivos entre os quais se compreendem diversos pronunciamentos agraves vezes muito contrastantes em seu aparato exterior patenteia-se na ideacuteia de tradiccedilotildees expressa no Decreto de duas maneiras a) - per manus traditaelig ad nos usque pervenerunt b) - continua successione in Ecclesia catholico conservatas

O que se ocultaraacute sob estas duas foacutermulas que o historiador de hoje tem dificuldades em aceitar justamente por causa do historicismo nelas impliacutecito Podemos dizer que um decisivo papel exerceu aqui o pensamento que sempre aparecia nos debates a saber que as tradiccedilotildees satildeo variaacuteveis que muitas delas foram abolidas pelos Apoacutestolos e que por outro lado se [49] introduziram tradiccedilotildees eclesiaacutesticas que natildeo mais seriam abolidas34 Esta ideacuteia de Tradiccedilatildeo de certo modo se torna clara no tratado escrito sobre o mesmo assunto por Seripando para uso dos Padres Conciliares Seripando fala das Tradiccedilotildees escritas inseridas na Escritura como as claacuteusulas de Tiago o costume de as mulheres se cobrirem com um veacuteu a legislaccedilatildeo sobre o matrimocircnio contida em 1Cor 7 etc E o autor adverte que estas praacuteticas foram abolidas Isto porque embora associadas agrave palavra de Deus na Escritura dela ldquomuito diferemrdquo pois a palavra divina [50] de modo nenhum poderia ser abolida A estas tradiccedilotildees

34 Cabe aqui aduzir uma nova intervenccedilatildeo de Cervini datada de 26 de fevereiro de 1546 (CT I 33 e V 18) onde ele diz que nem todas as tradiccedilotildees procedentes dos Apoacutestolos devem ser conservadas mas somente as que ab Ecclesia receptaelig ad nos usque pervenerunt (V 18) Esta afirmaccedilatildeo anterior agrave formulaccedilatildeo dogmaacutetica feita pelo Concilio deve igualmente ser tida na conta de um autecircntico comentaacuterio do Decreto Aiacute se acentua como condiccedilatildeo essencial das tradiccedilotildees a receptio ecclesiaelig Vem ainda referida uma intervenccedilatildeo do Bispo de Bertinoro em data de 23 de marccedilo (I p 523) na qual ele sublinha que as tradiccedilotildees escritas por vezes foram mudadas Jaacute entre as natildeo-escritas umas foram mudadas e outras natildeo como por exemplo o rito de adicionar aacutegua ao vinho a Crisma a confissatildeo auricular O Bispo de Bertinoro acrescenta que por outro lado alguns pontos existem que permaneceram inteiramente inalterados tais como a crenccedila no descensus ad inferos na virgindade perpeacutetua de Maria a substituiccedilatildeo da observacircncia do saacutebado pela do domingo Temos depois um pronunciamento do Bispo de Bitonto datado de 27 de marccedilo (I 39) Este bispo era de parecer que algumas coisas foram transmitidas pelos Apoacutestolos com a finalidade de serem perpetuamente conservadas (como pertencentes ao depoacutesito da feacute) outras caiacuteram em desuso (como as claacuteusulas de Tiago) e outras enfim foram apenas aconselhadas Assim mesmo na Escritura algumas coisas haacute que foram escritas mas natildeo recebidas em uso por serem mateacuteria de mero conselho Por exemplo ldquose algueacutem te pedir a tuacutenica daacute-lhe tambeacutem o paacutelio se algueacutem te esbofetear numa face oferece-lhe tambeacutem a outrardquo Sem duacutevida excelente ilustraccedilatildeo do sermatildeo da montanha Finalmente consideraccedilotildees idecircnticas podemos encontrar na obra citada de LEJAY Eis outra amostra tirada do discurso de 23 de fevereiro (CT V 13) Nam illaelig (scil traditiones) quaelig ad fidem pertinent eadem sunt recipiendaelig auctoritate qua recipitur evangelium alia autem non ita eum earum plurimaelig immutataelig fuerint ut de bigamis de esu sanguinis et similia De modo semelhante aliaacutes fala tambeacutem Bonuccio (I 525 a 23 de marccedilo de 1546 ecclesia traditiones apostolorum quandoque mutavit verbum autem Dei nunquam mutavit neque mutare potest

Seripando opotildee as natildeo referidas na Biacuteblia e que ora satildeo apostoacutelicas ou oriundas de Conciacutelios universais e aceitas por toda a Igreja ora satildeo particulares e muito variaacuteveis35

Este texto nos leva a uma surpreendente conclusatildeo para Seripando e muitos outros Padres tridentinos36existem tradiccedilotildees na Escritura ldquoTradiccedilatildeordquo natildeo significa o natildeo-escrito Existe quer dentro da Escritura quer fora dela Isto nos conduz a outra pergunta em que consiste para os referidos Padres a essecircncia da tradiccedilatildeo se o que a constitui natildeo eacute o fato de natildeo ser escrita37 Em outros termos como pode a tradiccedilatildeo ser definida positivamente se ela natildeo pode ser suficientemente determinada pela ideacuteia negativa de algo natildeo-escrito

Haacute uma seacuterie de respostas para esta pergunta O proacuteprio Seripando daacute a seguinte definiccedilatildeo Traditiones hoc est Apostolorum seu sanctorum Patrum sanctae et salutares constitutiones38 Mais clara ainda eacute a afirmaccedilatildeo de Cervini citada por Massarelli A objeccedilatildeo do Bispo de Chioggia que aduzia a opiniatildeo de Agostinho de que tudo o que eacute necessaacuterio para a salvaccedilatildeo estava escrito na Biacuteblia respondia Cervini da seguinte maneira Verba illa (isto eacute de Santo Agostinho) formaliter intelligi debent scilicet ad fidem accipiendam ut salvi fiamus Quo vero ad mores et christianam vitam instituendam certo non omnia scripta sunt

[51] E de novo recorre agraves provas tiradas de Jo 1526 e 1426 E indica o princiacutepio pneumatoloacutegico39 O que eacute mais importante eacute que a Tradiccedilatildeo se refere agrave institutio vitaelig agrave presenccedila atuante da Palavra revelada na existecircncia cristatilde Tradiccedilatildeo eacute noutros termos a eficaacutecia da palavra de Deus Sem ela a palavra ficaria esteacuteril 35 Seripando De traditionibus (fevereiro ou marccedilo de 1546) CT XII p517-521 e principalmente a p 521 As expressotildees desta uacuteltima paacutegina chocam-se com a ideacuteia de Cervini sobre a receptio ecclesiaelig 36 Cf o texto citado na nota 11 37 No texto definitivo do Decreto esta ideacuteia natildeo aparece mais Aqui poreacutem com esta primeira designaccedilatildeo expliacutecita da Tradiccedilatildeo vem expressamente acentuado o contraste entre in libris scriptis et sine scripto traditionibus Na segunda redaccedilatildeo o sentido expliacutecito da palavra Tradiccedilatildeo natildeo eacute tatildeo exclusivo Contudo apresenta igual matiz ao se confrontarem as expressotildees omnes libroshellipnec non traditiones ipsas Portanto a ideacuteia positiva da Tradiccedilatildeo que serve de base a esta anaacutelise natildeo deixou de influenciar na redaccedilatildeo do Decreto 38 CT XII 517 39 CT I 494 (26 de fevereiro de 1546) A citada palavra de Santo Agostinho teve o seu papel a desempenhar na discussatildeo em curso Seripando por exemplo a ela se referiu (De traditionibus CT XII 521 47-53) Pensandum denique ne in traditionibus externis vera religio et salutis spes statuatur de quibus Augustinus Omnia quaelig pertinent ad veram religionem quaeligrendam et tenendam divina Scriptura non acuit Conceda-se que nem tudo foi escrito (veja-se Jo 2125) Todavia electa sunt autem quaelig scriberentur quaelig saluti credentium sufficere videbantur Mais do que nos debates do tridentino encontramos aqui um verdadeiro postulado dos Reformadores ldquonatildeo adotar costumes exteriores mas buscar os meios definitivos de salvaccedilatildeo na palavra da Escriturardquo A ldquosuficiecircnciardquo da Escritura de que aqui se fala eacute na verdade algo diverso da suficiecircncia material da mesma Escritura defendida por Geiselmann em sentido muito mais radical Infelizmente ainda natildeo se quis levar na devida consideraccedilatildeo o texto de Santo Agostinho (CT I 494 sugere De doctrina christiana II 9 e De pecc mero et rem II 59) Muito apropriadas nesta ordem de ideacuteias satildeo as observaccedilotildees de H SCHAUF ldquoSchrift und Traditionrdquo in Antonianum 39 (1964) p200-209 feitas no chamado Encontro de Duumlsseldorf Nos textos citados por Schauf com base em Agostinho eacute afirmada a suficiecircncia da Escritura para a salvaccedilatildeo Eacute contudo contestada a sua suficiecircncia para a Igreja em geral De fato esta alternativa parece muito mais vaacutelida e fundamental agrave luz dos postulados dos Reformadores do que a alternativa entre a suficiecircncia ou insuficiecircncia material da Escritura

Na mesma linha de ideacuteias seguem-se duas outras seacuteries de pronunciamentos Vimos na introduccedilatildeo agrave parte anterior que a discussatildeo dogmaacutetica da ideacuteia de

Tradiccedilatildeo foi em parte prejudicada pela questatildeo do meacutetodo a seguir no Conciacutelio dever-se-ia abordar primeiro a reformatio a reforma praacutetica da Igreja como queria o ldquoKaiserrdquo Ou primeiro discutir a questatildeo dogmaacutetica como preferia o Papa40

[52] Este problema do meacutetodo embora resolvido no debate que entatildeo surgiu natildeo afetou diretamente a questatildeo da Tradiccedilatildeo como tal Mas como de fato estas duas questotildees ficaram ligadas entre si daiacute resultou que muitos oradores transformaram a questatildeo do meacutetodo (se se deveria falar dos abusos ou da Tradiccedilatildeo) em parte de sua argumentaccedilatildeo em torno do assunto em pauta41 O problema abusus e o problema Traditio ficaram de tal maneira associados na ocasiatildeo que pareciam formar no fundo um soacute assunto Por isso os oradores ora falavam em sentido positivo ora se pronunciavam em sentido negativo Isto correspondia tambeacutem ao propoacutesito reformista do Conciacutelio as traditiones representavam os abusus aos quais a Igreja se opunha Os Padres estavam cocircnscios de que condenar as traditiones era condenar Os usus ecclesiaelig o modo como a Igreja vivia a sua vida naquela eacutepoca

A outra seacuterie de pronunciamentos que se inclinavam ao mesmo sentido encontramo-la nas proposiccedilotildees que a auctoritas da Igreja apresenta como definitivas indicando uma iacutentima relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a institutio christiana 42

[53] Podemos agora retomar ao nosso ponto de partida e dar resposta agrave pergunta que propriamente significa a foacutermula ad nos usque pervenerunt Objetivamente natildeo se trata aqui de um historicismo que a foacutermula parece expressar Ao contraacuterio Trata-se da fidelidade perseverante da Igreja agrave institutio vitaelig christianaelig da legiacutetima forma de vida cristatilde em concreto no tempo presente da Igreja da institutio christiana que coloca a Escritura em primeiro lugar e que como tal isto eacute como vida decorrente da Escritura eacute fundamentalmente apostoacutelica embora tambeacutem sujeita a mudanccedilas como tudo o que eacute vivo

3 A Tradiccedilatildeo e o dogma eclesiaacutestico

40 Sobre o debate em torno da questatildeo do meacutetodo cf mais uma vez JEDIN op cit p9-82 e outras 41 Assim jaacute no discurso de Cervini antes analisado (CT I 484) no qual ele recorda o dilema do Conciacutelio se nos voltarmos contra as tradiccedilotildees ficaratildeo admirados os Padres Conciliares quasi reformationem fugiamus si ipsam reformationem sumimus iterum objicient traditiones relinquendas non esse Idecircntica era a situaccedilatildeo em que se encontrava o Bispo de Astorga nas duas intervenccedilotildees que fez no dia 23 de fevereiro de 1546 (CT V 13 e 19) segundo Seripando (I 484) helliptraditiones prius pertractandas consulit tantam enim conformitatem abusus qui ex sacris libris descendunt cum iis qui a traditionibus orti sunt habent ut sacris libris et traditionibus absolutis duo illa abusuum genera simul pertractari valeant Segundo Bonuccio (I 484) antes de tudo dever-se-ia tratar das Sagradas Escrituras dos cacircnones apostoacutelicos dos Conciacutelios gerais e das decretais pontifiacutecias Hisque ilusceptis ad abusus ex eisdem dependentes devenire 42 Assim principalmente de acordo com Afonso de Castro (CT I 484) Quoniam ultra traditiones apostolicas ecclesiae auctoritatem habemus quaelig ecclesiaelig auctoritas tonta apud nos est ut aliqui eam maioris roboris quam sacros libros esse sentiant Cf igualmente CT I 491 45 Na mesma linha pode-se ver uma seacuterie de pronunciamentos na citada obra de LEJAY Cf CT XII 524 (Tratado De traditionibus ecclesiaelig fevereiro ou marccedilo de 1546)

Uma segunda seacuterie de motivos eacute expressa no Decreto pela foacutermula traditiones tum ad fidem tum ad mores pertinentes Se como vimos a ideacuteia de Tradiccedilatildeo aparece muito limitada naquilo que os Padres conciliares chamam consuetudines observationes institutiones por outro lado o Procurador do Cardeal de Augsburgo Claudio Lejay SJ se fez o porta-voz de uma expressatildeo que em oposiccedilatildeo agraves traditiones caeligremoniales estabeleceu justamente o sentido da tradiccedilatildeo contida na feacute Seu tratado sobre a Tradiccedilatildeo composto para uso dos Padres conciliares inclui tambeacutem a foacutermula que foi adotada pelo Conciacutelio Aiacute se diz Denique multas veritates tum ad fidem tum ad mores pertinentes Ecclesia novit quas Scriptura aperte et expresse non continet Ele cita como exemplos as palavras persona essentia trinitas no Tratado da Santiacutessima Trindade consubstantialitas na Cristologia do Logos duas naturezas uma soacute Pessoa referentes ao dogma definido pelo Conciacutelio de Calcedocircnia E ainda Cristo Filho uacutenico de Maria duas vontades na uacutenica Pessoa de Cristo uma alma racional aleacutem do espiacuterito divino em Cristo Ana matildee de Maria o costume de fazer sinais da cruz a santificaccedilatildeo do domingo a maneira de rezar com face voltada [54] para o Oriente tudo isto ideacuteias e fatos da tradiccedilatildeo conciliar e da piedade cristatilde43

Cervini que aprovou o discurso de Lejay de 23 de fevereiro de 154644 pocircde dificilmente conciliar esta posiccedilatildeo com a sua expressa na jaacute citada carta ao Cardeal Farnese onde como vimos ele diz que o Espiacuterito Santo falou na Igreja e depois da Ascensatildeo do Senhor fala ainda maxime medianti i concilii45 Ele aiacute viu publicamente sublinhado o fato de que aquele ldquomaisrdquo que a Igreja viva representa em relaccedilatildeo agrave palavra meramente escrita natildeo se referia e natildeo se refere apenas agrave vita instituenda ou como ele prefere agrave caeligremonialia Refere-se tambeacutem agrave essentialia fidei que antes de tudo plenamente se expressam na Tradiccedilatildeo Tambeacutem aqui como se vecirc o interesse dominante natildeo estaacute na apresentaccedilatildeo historicista do assunto a partir do iniacutecio da Igreja mas na ideacuteia de que a influecircncia da Tradiccedilatildeo sobretudo atraveacutes da praxe conciliar eacute de fundamental importacircncia para a feacute para a doutrina crida e natildeo apenas para a piedade viva ou a caeligremonialia

4 O sentido do Decreto tridentino

Se recapitularmos o que ateacute agora dissemos veremos que no conjunto facilmente se podem reconhecer trecircs diferentes concepccedilotildees teoloacutegicas unidas entre si no texto definitivo do Decreto sobre a Tradiccedilatildeo Unidas mas natildeo equiparadas umas agraves outras Pelo contraacuterio apesar de sua grande diferenccedila foram elas apenas [55] mais ou menos justapostas e de novo por forccedila de uma tendecircncia comum relacionadas entre si

1 A concepccedilatildeo de Cervini que designamos como pneumatoloacutegica Com sua doutrina sobre os trecircs principia fidei insiste ele no caraacuteter dinacircmico do Cristo-evento

43 CT XII 523 LEJAY baseia-se evidentemente em listas de tradiccedilotildees confeccionadas naquele tempo (Cf ECK DRIEDO CANO BOTO NOGAROLA) Cf a este respeito Y CONGAR ldquoTraditions apostoliques non eacutecrites et suffisance de lEscrituresrdquo in Istina 6 (1959) p219-306 e principalmente a paacutegina 289 44 CT V 14 45 CT X 373

presente na Igreja Entende assim a Tradiccedilatildeo primariamente como a realidade espiritual da institutio vitaelig christianaelig

2 A concepccedilatildeo que podemos chamar de cerimonial Esta entende a Tradiccedilatildeo essencialmente como a seacuterie de consuetudines existentes ao lado da feacute como os usus ecclesiaelig que os Reformadores falsamente pretendem abolir como abusus Esta concepccedilatildeo chega a condenar a dignidade e Antiguumlidade apostoacutelica das tradiccedilotildees Sua ideacuteia eacute limitada pelo ad nos usque pervenerunt que inclui possibilidade de variar da parte das tradiccedilotildees donde a necessidade de reduccedilotildees Com os termos pervenire e conservare a recepccedilatildeo por parte da Igreja eacute considerada criteacuterio adicional ao lado da Antiguumlidade

3 A concepccedilatildeo que talvez possamos denominar dogmaacutetica Em oposiccedilatildeo agrave fixidez da ideacuteia de Tradiccedilatildeo reduzida agrave consuetudo salienta esta terceira hipoacutetese a extensatildeo do fenocircmeno Tradiccedilatildeo tambeacutem ao acircmbito da fides

Estas trecircs concepccedilotildees deram forma ao texto do Decreto de tal modo que as suas

linhas mestras derivam de Cervini e todo o texto deve ser entendido agrave luz de suas ideacuteias Contudo em duas passagens isto eacute no pervenerunt e no conservatas haacute influecircncia da segunda concepccedilatildeo enquanto no tum ad fidem tum ad mores haacute influecircncia da terceira

Em face destas trecircs concepccedilotildees das quais na realidade existem diversas variantes que tomadas em conjunto satildeo a expressatildeo das ideacuteias dominantes adotadas aparecem as teses de Bonuccio e de Nacchianti tatildeo postas em evidecircncia por Geiselmann como sentenccedilas contraacuterias De fato o parecer de Bonuccio claramente [56] se opotildee agrave segunda concepccedilatildeo (contra a supervalorizaccedilatildeo das consuetudines natildeo per pietatis affectus) ao passo que Nacchianti se levanta antes contra a terceira posiccedilatildeo e salienta a suficiecircncia da feacute recebida por meio da Escritura46

Seria de notar-se ainda que as concepccedilotildees segunda e terceira tecircm algo em comum Ambas opotildeem agrave visatildeo pneumatoloacutegica de Cervini da salvaccedilatildeo sempre presente uma visatildeo mais historicista relacionada com o prolongamento da salvaccedilatildeo operada uma soacute vez ou seja o ἑφάπαξ Na realidade deve-se dizer que embora de um lado tanto a visatildeo presencial de Cervini como tambeacutem a visatildeo historicista do outro grupo se consideradas isoladamente cada qual de per si sejam perigosas se natildeo insustentaacuteveis 46 Aliaacutes de acordo com uma informaccedilatildeo de Cervini parece que o Bispo de Chioggia finalmente renunciou agrave sua tese da suficiecircncia da Escritura na qual se inclinava a recusar as tradiccedilotildees Na carta de Cervini ao Cardeal Farnese de 27 de fevereiro de 1546 lemos hellip Chioggia che (quasi quasi) voleva dire queste traditioni essere superflue perorando che tutto quello che era necessario alla salute era scritto et allegando etiam S Agostino sopra lultimo capitulo di S Giovanni a questo proposito Pure per non poter negare che molte cose appartenenti almeno alli sacramenti non ci fussero venute ex tra ditione et per consequente che non tutte le cose necessarie alia nostra salute erano scritte poiche ebbe fatte molte distintioni concluse che ancor lui accettava queste ldquoche in la chiesa fusse qualque traditione apostolica non scrittardquo (et con queste parole diceva che se ne facesse il decreto) credo che molti sono restati scandalizati di lui (CT X Nr 315 paacutegs 399 411) Cf tambeacutem CT I 494 nota 9 e 495 nota 2 CT V 18 nota 5 e 19 e nota 1 O mesmo protesto que aparece contra Nacchianti manifesta-se tambeacutem na observaccedilatildeo de Massarelli Este chega a chamar aquele de novarum rerum cupidus (1 494 18) e esclarece que reprehensus est a multis (1 494 22) Diante disto eacute de todo destituiacuteda de creacutedito a importacircncia que Geiselmann lhe atribui mesmo se abstrairmos de outras razotildees jaacute conhecidas sobre as quais natildeo precisamos insistir

de outro lado pelo menos tornam possiacutevel uma exata visatildeo do conjunto devido agrave sua muacutetua confluecircncia e limitaccedilatildeo No texto atual estatildeo presentes embora pouco nitidamente ambos os pontos de vista o elemento presencial e o ἑφάπαξ Conveacutem que entendamos assim o texto de modo a considerarmos [57] ambos estes aspectos como essenciais Consequumlentemente reconheceremos que ambos pertencem constitutivamente agrave realidade da vida cristatilde e portanto tambeacutem agravequela parcela do Cristianismo a que damos o nome de Tradiccedilatildeo Estes dois elementos satildeo a presenccedila do Espiacuterito Santo e o seu nexo com o fato singular da salvaccedilatildeo ocorrido uma soacute vez por todas na histoacuteria dos homens

Assim se acharaacute finalmente a resposta agrave pergunta de corno noacutes devemos entender o parecer do Conciacutelio de Trento A primeira e mais importante conclusatildeo parece-me ser o fato de o Conciacutelio ter visto muito claramente o nexo entre Tradiccedilatildeo e Revelaccedilatildeo A seguir elaborou sempre em consonacircncia com a tradiccedilatildeo patriacutestica e medieval um conceito de Revelaccedilatildeo muito menos material do que o que seraacute adotado mais tarde pela teologia dos tempos modernos Somente assim se deve conceber a ideacuteia da Revelaccedilatildeo do Espiacuterito Santo na Igreja Partindo do ramo nitidamente patriacutestico da teologia medieval tatildeo francamente acolhido no discurso de Cervini deveria ser muito menos categoacuterica a opiniatildeo que coloca o teacutermino da Revelaccedilatildeo na morte do uacuteltimo Apoacutestolo Naturalmente esta questatildeo natildeo pode ser aqui estudada com maiores detalhes A sua soluccedilatildeo como entatildeo se apresentava aos teoacutelogos poderia ser hoje impostada apelando-se para as categorias da teologia atual Segundo esta podemos dizer que a Revelaccedilatildeo estaacute encerrada do ponto de vista de seu princiacutepio material Todavia estaacute e continua presente em sua realidade eficaz Noutros termos a Revelaccedilatildeo tem eacute verdade o seu ἑφάπαξ enquanto ela se realizou num determinado dia na Histoacuteria Entretanto ela tem tambeacutem o seu ldquohojerdquo permanente isto eacute o que foi uma vez por todas realizado na feacute da Igreja permanece sempre vivo e operante Assim a feacute cristatilde natildeo se volta apenas para o passado Abrange tambeacutem o presente e o futuro Eacute verdade que a posterior materializaccedilatildeo historicista da ideacuteia de Revelaccedilatildeo aparece jaacute claramente insinuada nos debates tridentinos corno um fato previsto mas ainda [58] natildeo consumado embora talvez se possa dizer que nos textos conciliares ficou definitivamente consagrada a sua aceitaccedilatildeo

Finalmente acrescentemos ainda que com base nos debates do Conciacutelio podemos estabelecer quatro elementos da ideacuteia de Tradiccedilatildeo 1 O aspecto natildeo-escrito da Revelaccedilatildeo ou do Evangelho contido na Biacuteblia e no coraccedilatildeo dos fieacuteis 2 A palavra do Espiacuterito Santo no decorrer de todo o tempo da Igreja

3 A atividade da Igreja nos Conciacutelios 4 A Tradiccedilatildeo lituacutergica e a da vida da Igreja em geral Nestes quatro elementos

que se deve ter sob os olhos pois formam o fundo ideoloacutegico do Decreto expressa-se a realidade uacutenica do tempo presente da Igreja cristatilde Nele estaacute presente todo o passado poacutes-apostoacutelico da Igreja (inclusive o proacuteprio tempo dos apoacutestolos) de modo que toda a sua vida eacute na Sagrada Escritura um elemento central embora natildeo o uacutenico Em suma deve ter ficado claro que o Conciacutelio de Trento a despeito do caraacuteter contrastante e fixo de sua ideacuteia de Revelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeo oferece uma visatildeo muito mais rica destes conceitos do que a que impregnou a mentalidade dos seacuteculos seguintes Justamente por

isso a teologia de hoje pode retirar daiacute novos subsiacutedios novo apoio para suas pesquisas e novas indicaccedilotildees sobre o verdadeiro caminho a seguir

Quadro sinoacutetico do Decreto tridentino sobre a Tradiccedilatildeo

Primeiro princiacutepio conforme Cervini (AT = Escritura)

Sacrosancta œcumenica et generalis Tridentina Synodus in Spiritu Sancto legitime congregata [] hoc sibi perpetuo ante oculos proponens ut sublatis erroribus puritas ipsa EVANGELII in Ecclesia conservetur quod PROMISSUM ANTE PER PROPHETAS IN SCRIPTURIS SANCTIS

Segundo princiacutepio conforme Cervini o Evangelho em parte escrito em parte insculpido nos coraccedilotildees

[59] DOMINUS NOSTER IESUS CHRISTUS DEI FILIUS PROPRIO ORE PRIMUM PROMULGAVIT DEINDE PER SUOS APOSTOLOS TAMQUAM FONTEM OMNIS ET SALUTARIS VERITATIS ET MORUM DISCIPLINAE OMNI CREATURAE PRAEDICARI IUSSIT PERSPICIENSQUE HANC VERITATEM ET DISCIPLINAM CONTINERI IN LIBRIS SCRIPTIS ET SINE SCRIPTO TRADITIONIBUS QUAE AB IPSIUS CHRISTI ORE AB APOSTOLIS ACCEPTAE AUT AB IPSIS APOSTOLIS SPIRITU SANCTO DICTANTE

Seripando Cervini e outros soacute consideram as tradiccedilotildees recebidas pela Igrej (ldquoad nos usquerdquo)

quasi per manus traditae ad nos usque pervenerunt

orthodoxorum Patrum exempla secuta omnes libros tam Veteris quam Novi Testamenti cum utriusque unus Deus sit auctor nec non TRADITIONES IPSAS

Lejay Tradiccedilatildeo contendo natildeo soacute a ldquoconsuetudordquo mas relacionada tambeacutem com a ldquofidesrdquo (foacutermula conciliar)

tum ad fidem tum ad mores pertinentes

Terceiro princiacutepio de Cernini Depois da Ascenccedilatildeo de Cristo o Espiacuterito Santo ensina tambeacutem os misteacuterios de Deus

TAMQUAM VEL ORETENUS A CHRISTO VEL A SPIRITU SANCTO DICTATAS

Seripando Cervini etc soacute satildeo consideradas as coisas recebidas pela Igreja (como acima)

et continua successione in Ecclesia catholica conservatas

Cervini Escritura e Tradiccedilatildeo procedem ambas do mesmo Espiacuterito Santo

pari pietatis affectu ac reverentia suscipit ac veneratur

  • Prefaacutecio
  • SEGUNDA PARTE
  • Explicaccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo
  • segundo o Decreto do Conciacutelio de Trento
Page 5: Revelacao e Tradicao-Joseph Ratzinger (Bom Ler)

Karl Rahner

OBSERVACcedilOtildeES SOBRE O CONCEITO DE REVELACcedilAtildeO

[1] Embora a condenaccedilatildeo de uma heresia por parte da Igreja seja legiacutetima e justa

sob o ponto de vista eclesiaacutestico e em face de uma situaccedilatildeo concreta assumindo mesmo determinada relevacircncia histoacuterica daiacute natildeo se segue sempre e necessariamente que a Igreja tenha dado atendimento e resposta aos anseios e agrave problemaacutetica desta mesma heresia por ela condenada Eacute que o amadurecimento positivo de um problema ndash e os problemas mesmo quando aparecem sob a capa de heresia trazem a marca de seu tempo ndash pode ocorrer muito mais tarde

Seria por certo conveniente que se apurasse ateacute que ponto a delonga de tal amadurecimento teria resultado de um erro traacutegico de uma culpa ou da impotecircncia dos homens Ou entatildeo se natildeo deveria ser considerada mero tributo a ser pago tambeacutem pela Igreja em razatildeo de sua condiccedilatildeo histoacuterica

De modo nenhum se deve contudo pensar que as condenaccedilotildees da Igreja soacute atinjam opiniotildees ou tendecircncias que em seu bojo outra coisa natildeo ocultem a natildeo ser uma vazia e inoacutecua negativa de uma verdade jaacute desde longo tempo claramente compreendida e explicitamente anunciada

Haacute precisamente meio seacuteculo a Igreja foi ameaccedilada pela heresia do Modernismo Entre suas teses e erros fundamentais estaacute o seu conceito especiacutefico de Revelaccedilatildeo Para o Modernismo ndash pelo menos se quisermos consideraacute-lo em seu conjunto e atender agrave sistematizaccedilatildeo desta heresia agrave luz da condenaccedilatildeo feita pela Igreja ndash a Revelaccedilatildeo era uma maneira de se designar o [2] progresso imanente e necessaacuterio dos anseios religiosos do homem histoacuterico Esses anseios se objetivariam nas muacuteltiplas formas de religiotildees histoacutericas que paulatinamente teriam ascendido a uma pureza maior e a uma plenitude mais ampla ateacute chegarem a se concretizar definitivamente no Cristianismo e na Igreja

Tal definiccedilatildeo era elaborada em oposiccedilatildeo ao conceito de Revelaccedilatildeo supostamente tradicional na Igreja Segundo esta a Revelaccedilatildeo outra coisa natildeo seria senatildeo um conhecimento de Deus vindo puramente ldquode forardquo Desta maneira Deus teria falado aos homens e em termos humanos lhes teria comunicado por meio dos Profetas certas verdades que eles por si soacutes natildeo poderiam conhecer A isto se acrescentaram os mandamentos a serem observados

Eacute verdade que a necessidade da graccedila divina para a posse salutar da Revelaccedilatildeo pela Feacute era explicitamente ensinada pela ortodoxia eclesiaacutestica entatildeo em luta contra o Modernismo Contudo natildeo foi devidamente considerada a iacutentima conexatildeo entre a graccedila da Feacute e a Revelaccedilatildeo histoacuterica

O fato de a Igreja ter acusado o Modernismo de imanentismo permite-nos reconhecer hoje um certo extrinsecismo no conceito de Revelaccedilatildeo geralmente apresentado pela teologia daquela eacutepoca contra a qual se insurgia o Modernismo Tal extrinsecismo natildeo era ensinamento oficial Era sim uma hipoacutetese corrente na teologia de entatildeo

Aos poucos e quase desapercebidamente encaminha-se hoje para o seu amadurecimento a resposta agrave problemaacutetica do justo e pleno conceito da Revelaccedilatildeo A

isto a Igreja natildeo dava uma resposta clara Dava-a o Modernismo poreacutem falsa precipitada extemporacircnea e em sentido decididamente hereacutetico

Eacute evidente que este problema e sua devida soluccedilatildeo tecircm uma importacircncia fundamental no confronto entre o Cristianismo e a cultura moderna ainda que isto natildeo seja de ordinaacuterio posto [3] explicitamente em debate Com efeito para o homem de hoje penetrado de um certo humanismo contraacuterio agrave Igreja adepto de um ateiacutesmo lamentaacutevel para o materialismo moderno que considera Deus como um enigma insoluacutevel e identifica o espiacuterito com a proacutepria forccedila motora do mundo o que choca e eacute motivo de escacircndalo natildeo eacute propriamente o Deus absconditus do Cristianismo que habita na luz inaccessiacutevel Eacute sim o ensinamento de que existe uma histoacuteria da Revelaccedilatildeo na qual o proacuteprio Deus indica o uacutenico caminho entre os muitos apontados pelas demais religiotildees histoacutericas e o percorre Ele proacuteprio aparecendo encarnado entre os homens O escacircndalo estaacute se assim podemos dizer na histoacuteria categorial da Revelaccedilatildeo e natildeo na relaccedilatildeo transcendental entre Deus e o homem mediante a qual Deus o cria do nada no abismo de Seu misteacuterio inefaacutevel

O que eacute Revelaccedilatildeo e por que eacute ela apesar de sua origem imediatamente divina o que haacute de mais iacutentimo na histoacuteria humana Como pode ela identificar-se com a histoacuteria da humanidade sem deixar de ser uma singular graccedila de Deus Como pode a Revelaccedilatildeo estar sempre e por toda parte a fim de operar sempre e por toda parte a salvaccedilatildeo sem com isto deixar de estar aqui e agora na carne de Cristo na Palavra dos Profetas que falam precisamente dela na letra da Escritura Poderaacute ela ser por toda parte o ldquomotivordquo iacutentimo a forccedila motora da histoacuteria sendo ao mesmo tempo uma accedilatildeo libeacuterrima de Deus impossiacutevel de ser medida em sentido ascendente a partir da Histoacuteria Natildeo eacute por outro lado o milagre uma graccedila divina ocorrida hic et nunc e realizada ldquouma vez para semprerdquo

A fim de ampliarmos mais o horizonte de nossas reflexotildees e compreendermos melhor a resposta a estas perguntas poderiacuteamos lembrar que a mais comum relaccedilatildeo entre Deus e o mundo-em-devir consiste no fato de ele o mais iacutentimo e absoluto Senhor do mundo conceder ao ser finito uma verdadeira e ativa transcendecircncia em sua evoluccedilatildeo Numa palavra eacute o proacuteprio futuro [4] a causa final que mostra a verdadeira e proacutepria causa real atuando no ser em marcha

Daiacute poder-se dizer que nossa pergunta natildeo tende senatildeo ao mais alto e mais radical conhecimento que hoje aos poucos vamos atingindo isto eacute o conhecimento de como o real e ativo evoluir dos seres superiores partindo dos interiores e a permanente accedilatildeo criadora vinda do alto satildeo apenas os dois lados ambos igualmente verdadeiros e positivos do uacutenico milagre do ser e da Histoacuteria Referimo-nos agrave ideacuteia de que Deus em sua livre relaccedilatildeo para com a sua criatura natildeo eacute uma causa categorial ao lado de outras mas sim o vivo permanente e transcendental fundamento da proacutepria evoluccedilatildeo do mundo Tambeacutem o mundo a seu modo se insere na relaccedilatildeo entre Deus e o homem no fato da Revelaccedilatildeo e na sua histoacuteria E isto na mais ampla medida porque esta histoacuteria na medida mais extrema deve ser igualmente accedilatildeo de Deus e accedilatildeo do homem uma vez que em si ela eacute a mais alta realidade no ser e no evoluir do mundo Se existe esta superaccedilatildeo fundamental de uma total oposiccedilatildeo entre o imanentismo e o extrinsecismo no conceito ontoloacutegico da evoluccedilatildeo e da histoacuteria entatildeo deve tambeacutem a teologia superar esta oposiccedilatildeo na questatildeo que aqui nos ocupa

Com efeito se a teologia catoacutelica ensina e potildee em praacutetica sua doutrina sobre a graccedila santificante e a vontade salviacutefica universal sobre a necessidade da graccedila elevante para a feacute e a doutrina tomista sobre o sentido ontoloacutegico transcendental da graccedila entitativa agrave luz da Revelaccedilatildeo segue-se que sem cair no Modernismo a teologia pode e deve reconhecer a histoacuteria da Revelaccedilatildeo ou simplesmente a Revelaccedilatildeo no sentido de apresentaccedilatildeo categorial histoacuterica Falando mais propriamente diremos a histoacuteria daquela mesma relaccedilatildeo transcendental entre o homem e Deus realizada de modo sobrenatural atraveacutes de uma sempre gratuita participaccedilatildeo divina Tal histoacuteria deve com razatildeo ser chamada de Revelaccedilatildeo

[5] Se transcendecircncia sempre existiu e sempre existe na histoacuteria e se haacute uma criaccedilatildeo transcendental no homem manifestada atraveacutes de algo permanente a que chamamos graccedila santificante que santifica o homem precisamente pela participaccedilatildeo de Deus e natildeo atraveacutes de qualquer outra eficiecircncia casual resulta entatildeo que esta absoluta transcendecircncia verificada na absoluta uniatildeo do Deus misterioso e inefaacutevel que se torna presente no homem tem uma histoacuteria Esta histoacuteria eacute o que chamamos de histoacuteria da Revelaccedilatildeo

O fato da Revelaccedilatildeo tem sempre um duplo aspecto Por um lado a constituiccedilatildeo de uma transcendecircncia sobrenaturalmente elevada do homem como algo permanente gratuito mas nem sempre de todo positivo ou seja a transcendental experiecircncia da absoluta e gratuita participaccedilatildeo da vida divina mesmo quando ela natildeo seja concretamente objetivada em cada um em particular E por outro lado a mediaccedilatildeo histoacuterica a objetivaccedilatildeo concreta desta experiecircncia sobrenaturalmente transcendental que ocorre na histoacuteria considerada em seu conjunto (A voluntaacuteria reflexatildeo teoloacutegica do indiviacuteduo tambeacutem pertence a esta histoacuteria mas natildeo a cria primariamente nem a forma) A experiecircncia transcendental referida chama-se usualmente histoacuteria da Revelaccedilatildeo quando ela eacute realmente histoacuteria da verdadeira exposiccedilatildeo desta experiecircncia sobrenatural e transcendental e natildeo a sua contrafaccedilatildeo Em outros termos quando ela eacute o resultado positivo desta transcendental participaccedilatildeo de Deus pela graccedila Ou ainda quando ela ocorre por disposiccedilatildeo da Providecircncia sobrenatural de Deus Salvador

Se for assim compreendida a unidade e inter-relaccedilatildeo entre Revelaccedilatildeo categorial e Revelaccedilatildeo histoacuterica ou melhor o elemento transcendental e o elemento histoacuterico (mediador) de uma revelaccedilatildeo e de sua histoacuteria seraacute entatildeo tambeacutem visiacutevel uma primordial distinccedilatildeo no que eacute revelado

Revelado eacute Deus como o que se daacute a participar em absoluta e gratuita uniatildeo como Deus ou seja como misteacuterio absoluto Revelada eacute a mediaccedilatildeo histoacuterica desta experiecircncia transcendental [6] como autecircntica como absoluta experiecircncia de Deus Revelada eacute no aacutepice singular e definitivo desta histoacuteria da Revelaccedilatildeo a absoluta e irreversiacutevel unidade entre a participaccedilatildeo transcendental de Deus na humanidade e sua histoacuterica mediaccedilatildeo no uacutenico Deus-Homem Em Jesus Cristo como numa soacute Pessoa o proacuteprio Deus compartilha da humana posse desta mediaccedilatildeo e de sua definitiva manifestaccedilatildeo histoacuterica

Nesta unidade entre a transcendental co-participaccedilatildeo de Deus e sua definitiva mediaccedilatildeo e manifestaccedilatildeo histoacuterica uma vez que se trata da comunicaccedilatildeo de Deus em si mesmo eacute revelado tambeacutem o misteacuterio fundamental do Deus trino enquanto se considera neste misteacuterio somente o aparecimento de Deus conosco na histoacuteria e na

Deivide
Realce
Eacute Jesus Cristo

transcendecircncia ou seja do Deus trino Pai Filho e Espiacuterito Santo em sua possibilidade de vir a manifestar-se na transcendecircncia do homem e na sua histoacuteria

Enquanto por conseguinte a histoacuteria se abre agrave transcendecircncia o Filho envia o Espiacuterito Enquanto a transcendecircncia constroacutei a histoacuteria o Espiacuterito realiza a Encarnaccedilatildeo do Logos Enquanto o aparecimento de Deus na histoacuteria expressa a impossibilidade de se conservar oculto o que eacute suma realidade o Verbo Encarnado eacute revelado como a auto-expressatildeo do Pai na Verdade Enquanto a vinda de Deus entre noacutes no meio de nossa existecircncia significa o Seu e o nosso amor eacute revelado o Pneuma sob este aspecto de amor

Quando noacutes fazemos a experiecircncia da uniatildeo transcendental e absoluta do Deus conosco compartilhando de Sua vida e aceitando-a por graccedila dele mesmo sabemos mediante o nosso ato de feacute o que significamos ao falarmos sobre a Trindade de Deus e ao exprimirmos de modo breve e sucinto a formalidade e o conteuacutedo da feacute cristatilde da sua Revelaccedilatildeo da histoacuteria desta Revelaccedilatildeo Sabemos o que significamos quando nos fazemos batizar nestes nomes em nome do Pai do Filho e do Espiacuterito Santo

[7] Ao que ateacute aqui estabelecemos em traccedilos gerais e raacutepidos como sendo a ideacuteia fundamental da Revelaccedilatildeo acrescentamos agora alguns esclarecimentos selecionados um tanto arbitrariamente e referentes todos agrave origem da Revelaccedilatildeo e agraves suas consequumlecircncias

Do exposto resulta que a Revelaccedilatildeo quer transcendental quer categorial e sua histoacuteria co-existem com a histoacuteria espiritual de toda a humanidade Isto natildeo eacute erro do Modernismo Eacute uma verdade cristatilde Podemos provaacute-lo muito simplesmente dizendo ser incontestaacutevel que a histoacuteria da salvaccedilatildeo sobrenatural eacute realizada sempre na histoacuteria do mundo o que depois do Conciacutelio Vaticano II se tornou uma verdade ainda mais vivamente impressa na consciecircncia religiosa dos cristatildeos A salvaccedilatildeo poreacutem natildeo pode dar-se sem a feacute Nem a feacute sem uma revelaccedilatildeo proacutepria

Natildeo precisamos esclarecer a possibilidade da Revelaccedilatildeo e da feacute fora da histoacuteria do Antigo e do Novo Testamento nem recorrer a uma teoria catoacutelica especial como a de Straub ou a de Billot Nem mesmo necessitamos apelar para uma tradiccedilatildeo categorial expliacutecita da Revelaccedilatildeo primitiva segundo a qual literaacuteria e doutrinariamente a experiecircncia categorial de Adatildeo teria sido transmitida aos poacutesteros o que agrave luz do conhecimento atual da histoacuteria das religiotildees e dos dois milhotildees de anos da histoacuteria da humanidade natildeo eacute muito provaacutevel

Basta-nos reter (o que eacute testemunhado pelos dados atuais da teologia) que cada homem elevado pela graccedila em sua espiritualidade transcendental representa esta ldquoentitativardquo divinizaccedilatildeo que precede o uso da liberdade mesmo quando esta natildeo eacute por ele compromissada na feacute Significa portanto uma transcendental divinizaccedilatildeo da condiccedilatildeo primitiva do homem o uacuteltimo horizonte do conhecimento e da liberdade sob o qual o homem completa o seu ser Atraveacutes desta existecircncia sobrenatural do [8] homem em geral e de cada um em particular daacute-se uma revelaccedilatildeo de Deus mediante uma participaccedilatildeo gratuita E esta condiccedilatildeo fundamental e gratuita do homem realizada no Deus da vida trinitaacuteria pode tambeacutem ser entendida como Revelaccedilatildeo da Palavra contanto que de um lado natildeo limitemos esta palavra a mera prolaccedilatildeo foneacutetica e de outro natildeo nos esqueccedilamos que esta Revelaccedilatildeo transcendental estaacute sempre inserida num contexto histoacuterico e ainda que a histoacuteria humana natildeo pode prescindir das palavras A

Deivide
Realce
A Revelaccedilatildeo estaacute aqui Estaacute diante de mm envolve-me Se quero Ela logo Eacute em mim e minha vida toma um novo significado A Revelaccedilatildeo estaacute no hoje tatildeo atuante quanto quando Jesus fala e agia no tempo em que peregrinou na terra Estaacute atuaccedilatildeo de Jesus que corre toda a histoacuteria e chega aos nossos dias daacute-se atraveacutes da Igreja pela accedilatildeo do Espiacuterito Santo

histoacuteria dos homens natildeo consta de fatos mortos mas de fatos cujo sentido representa um elemento importante em cada conjuntura histoacuterica

Natildeo existe nenhuma relaccedilatildeo objetiva de um objeto em particular ou de uma frase na vida transcendental do homem aberto para Deus para o Deus trino e eterno O que eacute mais e o que fundamenta todos os dogmas da Feacute como condiccedilatildeo mesma de sua possibilidade e antes de tudo o que os faz real palavra de Deus eacute o seguinte o horizonte da vida sobrenatural ou a luz da Feacute em si mesma - como diriacuteamos em linguagem tradicional e simples - pressupotildee que se aceitem e se valorizem as palavras da Tradiccedilatildeo

Com tudo isto ndash acentuemo-lo mais uma vez ndash natildeo estamos dizendo que esta transcendental e aprioriacutestica abertura do homem para o Deus da vida eterna e da participaccedilatildeo absoluta possa ser em si mesma ldquoanistoacutericardquo nem que conduza a uma desordem miacutestica que consistiria numa introspecccedilatildeo individualiacutestica alienada da histoacuteria Ao contraacuterio Ela se completa necessariamente na histoacuteria do agir e do pensar do homem E pode fazecirc-lo explicitamente embora de maneira de todo anocircnima Assim sendo nunca existe uma histoacuteria da Revelaccedilatildeo transcendental para um particular soacute Ela eacute individual e coletiva Naturalmente tal histoacuteria em concreto nunca eacute a histoacuteria da Revelaccedilatildeo inteiramente pura em si Ela se daacute em cada um sempre em indissoluacutevel simbiose com o erro com falsas interpretaccedilotildees com a [9] culpa com os abusos Ela eacute histoacuteria justa e pecadora uma vez que o homem eacute simul iustus et peccator estando a histoacuteria da culpa e a da salvaccedilatildeo definitivamente ligadas ateacute ao dia do juiacutezo final

Isto natildeo exclui a existecircncia de uma autecircntica histoacuteria da Revelaccedilatildeo na histoacuteria geral da humanidade Tanto que para o cristatildeo por exemplo uma diacriacutetica distinccedilatildeo na histoacuteria veterotestamentaacuteria entre autecircntica histoacuteria da Revelaccedilatildeo e falsa histoacuteria da religiatildeo soacute eacute possiacutevel tomando-se como criteacuterio a Cristo Tal distinccedilatildeo natildeo eacute possiacutevel partindo-se apenas dos criteacuterios fornecidos pelo Antigo Testamento Com efeito a Sagrada Escritura tem somente a Cristo como regra interna e externa e como norma de sua hermenecircutica Daiacute resulta que a Escritura deve ser considerada pelo cristatildeo como verdadeira histoacuteria da Revelaccedilatildeo do Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo1

Deduzir a ideacuteia da Revelaccedilatildeo da Palavra de Deus oral e escrita eacute atingir o lado transcendental da proacutepria Revelaccedilatildeo Eacute buscar um criteacuterio no cacircnon da Escritura colocando a Palavra de Deus oral e escrita antes de tudo na sua aceitaccedilatildeo pela Feacute interna e gratuita Eacute ldquodesmitologizarrdquo a mensagem externa da feacute em sua formalidade transcendental A histoacuteria da religiatildeo eacute a parte da histoacuteria humana em que a natureza teoloacutegica do homem se realiza tematicamente e efetivamente como em toda histoacuteria Daiacute resulta que a histoacuteria da religiatildeo eacute simultaneamente duas coisas eacute a parte mais expliacutecita da histoacuteria da Revelaccedilatildeo e tambeacutem o lugar espiritual (der geistige Ort) em que as falsas interpretaccedilotildees da experiecircncia transcendental de Deus se manifestam de modo mais notoacuterio e levam agraves piores consequumlecircncias A supersticcedilatildeo opotildee-se nitidamente agrave sua natureza Mas ela eacute ao [10] mesmo tempo estas duas coisas E sempre numa ambiguumlidade de sentido que natildeo conseguimos solucionar

1 Sobre a diferenccedila entre a histoacuteria da Revelaccedilatildeo extra-biacuteblica e a veterotestamentaacuteria (que eacute tambeacutem um pressuposto daquela) cf K RAHNER Schriften zur Theologie V (Einsiedeln 1964) p136-158 principalmente p 148 e 153

Deivide
Nota
Parei aqui

Na teologia escolaacutestica catoacutelica nos uacuteltimos seacuteculos em contraste com a teologia medieval pouco ou nada se diz sobre o portador do testemunho da Revelaccedilatildeo aquele que a apresenta atraveacutes do milagre aos homens chamados a crer Refiro-me agrave Revelaccedilatildeo presente no seu portador que eacute o proacuteprio Profeta Do que antes expusemos concluir-se-aacute que a teologia dos preacircmbulos e a da feacute satildeo idecircnticas Por isso tem razatildeo a teologia fundamental quando frequumlentemente trata da analysis fidei em seu acircmbito proacuteprio supondo-se que ela o faccedila considerando a feacute e a aceitaccedilatildeo da Revelaccedilatildeo em sua unidade fundamental O aspecto transcendental da aceitaccedilatildeo da Revelaccedilatildeo e a Feacute satildeo a mesma coisa fundam-se ambas na constituiccedilatildeo do homem gratuitamente marcada pela participaccedilatildeo ontoloacutegica e pelo compromisso livre do homem com este aspecto existencial do ser

A ldquodesmitologizaccedilatildeordquo (Entmythologisierungsfrage) para a teologia catoacutelica concretiza-se e resume-se na capacidade de cognoscibilidade do ldquomilagrerdquo Daiacute perguntar-se eacute possiacutevel uma autecircntica experiecircncia transcendental de Deus jaacute que isto seria como que um compartilhar do imparticipaacutevel (Schon-immer-heim- Univermittelten-Sein) Fundamentalmente natildeo eacute possiacutevel nem eacute necessaacuterio estabelecer uma distinccedilatildeo adequada entre a mediaccedilatildeo do factum brutum (durch das factum brutum) da chamada realidade objetiva e a que se daacute atraveacutes de sua clara explicaccedilatildeo A mediaccedilatildeo (Vermittlung) baseia sua uacuteltima verdade no mediado (im Vermittelten) Portanto a ldquodesmitologizaccedilatildeordquo e a relaccedilatildeo entre a mediaccedilatildeo e o mediado (Vermittlung-Vermittelte) fundamentam-se na diferenccedila e na unidade ontoloacutegica dos aspectos categorial e transcendental e tambeacutem na diferenccedila e na indissoluacutevel unidade entre a histoacuteria e seu significado Esta mediaccedilatildeo enquanto histoacuterica eacute sempre uma histoacuteria com-os-homens ou no sentido mais profundo da palavra uma [11] histoacuteria ldquoeclesialrdquo Eacute portanto tambeacutem um compromisso com a feacute da comunidade dos fieacuteis e da Igreja feacute esta que na comunidade e em cada indiviacuteduo envolve sempre a uniatildeo de sinais e de verdade como na palavra do Sacramento e no Logos Encarnado onde estes dois elementos se encontram inseparaacuteveis mas natildeo se confundem sendo a sua associaccedilatildeo independente do alvitre dos homens

Partindo dessas premissas pode-se entender o que seja a fides implicita agrave qual ateacute hoje os teoacutelogos natildeo deram o destaque devido Fundamentalmente a feacute seja qual for envolve a aceitaccedilatildeo do sinal Soacute eacute feacute verdadeira se assumir o sinal mediante o inefaacutevel misteacuterio da uniatildeo do Deus que se daacute a si mesmo em participaccedilatildeo Soacute eacute feacute verdadeira quando entende a mediaccedilatildeo categorial como presenccedila de sinais (Zeichenhaftigkeit) como se realiza na proacutepria Igreja Assim como a Revelaccedilatildeo natildeo elimina a obscuridade do sacrossanto misteacuterio de Deus antes o cristatildeo amando e adorando a aceita assim tambeacutem o ldquocaraacuteter impliacutecitordquo (Implizitaumlt) da Revelaccedilatildeo e da feacute pertencem agrave sua proacutepria natureza Esta ldquoimplicituderdquo natildeo eacute portanto um elemento que soacute se daria quando as pessoas ldquoincultasrdquo ou ignorantes ouvem a Revelaccedilatildeo e crecircem

Agora podemos entender melhor tambeacutem um conhecido fenocircmeno religioso a tendecircncia a se reduzir o dogma e a religiatildeo a um nuacutecleo de verdades essenciais A unidade existente entre os elementos categorial e transcendental existe tambeacutem na Religiatildeo Tambeacutem esta eacute una e uacutenica E insubstituiacutevel por qualquer outra Devemos dizer tambeacutem que o Cristianismo considerado como religiatildeo universal e absoluta e natildeo apenas como particular alianccedila de Deus com determinado povo natildeo pode deixar de reconhecer a Cristo como Mediador e como Salvador Cristo com efeito por sua

corporeidade e espiritualidade integra em si relaciona e torna legiacutetima toda mediaccedilatildeo possiacutevel no acircmbito do mundo das realidades Assim ldquonadardquo existe que [12] exclua este poder de mediaccedilatildeo Ele existe na palavra no sinal lituacutergico na comunidade eclesial no ofiacutecio na imagem em suma ateacute mesmo nas coisas profanas Natildeo obstante a pluralidade e diversidade desta mediaccedilatildeo pode acontecer que em diferentes eacutepocas e lugares de acordo com os desiacutegnios da graccedila mesmo no Novo Testamento a obrigatoriedade e cognoscibilidade da uacutenica mediaccedilatildeo tenha a sua histoacuteria peculiar Tal histoacuteria da Revelaccedilatildeo tornada definitiva em Cristo no acircmbito do uacuteltimo e eterno ldquoeatildeordquo pode tambeacutem conforme disposiccedilatildeo divina refletir-se na traacutegica histoacuteria da Cristandade dividida por uma cisatildeo em que transparece a pluralidade das muitas mediaccedilotildees da uacutenica Revelaccedilatildeo Esta divisatildeo eacute para noacutes uma censura Contudo serve-nos tambeacutem de instrumento da graccedila de Deus

A distinccedilatildeo entre Revelaccedilatildeo transcendental e a categorial-histoacuterica aplica-se tambeacutem agrave feacute Daiacute novas luzes para se entender melhor o problema da credulidade enquanto distinta da feacute e intimamente relacionada com ela Quando se considera a precaacuteria descriccedilatildeo da feacute elaborada pelos teoacutelogos vecirc-se que seu caraacuteter auditivo (ex auditu) eacute geralmente proposto de modo aposterioriacutestico e empiacuterico O endereccedilamento da feacute ao ouvinte aparece entatildeo como se da parte deste soacute houvesse uma potecircncia formal para assumir certas proposiccedilotildees verdadeiras sem as investigar devendo apenas aceitaacute-las em sua formulaccedilatildeo exata irrecusaacutevel e fixa A potecircncia aprioriacutestica da feacute ou a credulidade quase natildeo eacute levada em consideraccedilatildeo na teologia catoacutelica Esta credulidade como capacidade aprioriacutestica de crer natildeo deve ser tida na conta de uma potecircncia igual agraves outras uma espeacutecie de sentido de ldquoexigecircnciardquo ou coisa parecida Eacute antes o lado transcendental da Revelaccedilatildeo a potecircncia aprioriacutestica que tem o homem ser transcendental para a comunhatildeo com Deus na graccedila fundada na proacutepria abertura de Deus para se comunicar com a criatura Ambas estas coisas devem ser consideradas em sentido ontoloacutegico natildeo em sentido ocircntico

[13] Toda anaacutelise da feacute catoacutelica apresenta a ldquoautoridade de Deusrdquo como o ldquoobjeto formalrdquo ou o ldquomotivordquo uacuteltimo da feacute Chega-se assim entretanto a um impasse intransponiacutevel Isto porque se considera esta ldquoautoridaderdquo como elemento categorial e aprioriacutestico limitado pelo horizonte do conhecimento humano que a feacute tem que superar para que a Palavra permaneccedila sendo realmente Palavra divina e natildeo seja rebaixada ao niacutevel meramente criatural Se poreacutem na Revelaccedilatildeo e na feacute o proacuteprio Deus autocomunicando-se eacute o objeto crido e o princiacutepio aprioriacutestico de crer se a loacutegica da feacute natildeo eacute uma categoria aprendida de fora mas ndash do mesmo modo que a loacutegica natural ndash eacute a proacutepria estrutura ontoloacutegica e interna do ato de feacute se a mensagem exterior da feacute natildeo eacute o seu motivo aposterioriacutestico mas sua razatildeo aprioriacutestica ndash entatildeo todo este problema perde o seu sentido Assim se compreenderaacute que um falso ato material de feacute deixa de ter um objeto formal meramente aprioriacutestico e pode vir a ser um ato de feacute autecircntico

Somos forccedilados a interromper aqui estas observaccedilotildees Em tudo o que dissemos pudemos apenas indicar algumas perspectivas de soluccedilatildeo de um problema que desde os tempos do Modernismo eacute atual mas que contudo tem sido de certo modo postergado Mesmo por este pequeno exemplo ao qual poderiacuteamos acrescentar o de muitos outros problemas teoloacutegicos ainda natildeo solucionados vemos como custosa e lentamente avanccedila o trabalho teoloacutegico Eacute necessaacuterio ter paciecircncia e envidar esforccedilos perseverantes

Necessaacuterio eacute ainda admitir-se que a teologia natildeo cria a feacute no cristatildeo Ele eacute apenas chamado a pocircr-se a serviccedilo da feacute Da feacute hoje

Ao exprimir eu agrave ilustre Faculdade Catoacutelica de Teologia da Universidade de Munster o meu penhorado e cordial agradecimento pela distinccedilatildeo que me outorgou faccedilo-o com a consciecircncia de que tambeacutem os operaacuterios que realizam a construccedilatildeo da teologia trabalham em vatildeo se o Senhor natildeo cooperar com eles Noacutes [14] devemos trabalhar enquanto eacute dia Toda theologia mentis eacute apenas um auxiacutelio para a theologia cordis et vitaelig Enfim em toda theologia a rigor soacute um caminho se abre o caminho que se perde no segredo de Deus misteacuterio impenetraacutevel que todavia se potildee ao nosso alcance

Joseph Ratzinger

EXAME DO PROBLEMA DO CONCEITO DE TRADICcedilAtildeO

PRIMEIRA PARTE

Revelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeo

Ensaio de anaacutelise do conceito de Tradiccedilatildeo

I ndash Posiccedilatildeo do Problema

[15] O modo como Cristo Palavra expressa da Revelaccedilatildeo permanece presente na Histoacuteria e vai ao encontro dos homens pertence agravequelas questotildees fundamentais em torno das quais se dividiu a Cristandade ocidental no seacuteculo da Reforma A luta prende-se agrave ideacuteia de ldquoTradiccedilatildeordquo pela qual a Igreja catoacutelica procurou exprimir certa forma de comunicaccedilatildeo da Revelaccedilatildeo ao lado da outra contida na Sagrada Escritura Isto com o fim de desfazer um duplo protesto A Tradiccedilatildeo designava primeiro as chamadas consuetudines ecclesiaelig tais como a santificaccedilatildeo do domingo a oraccedilatildeo voltada para o Oriente o costume de jejuar as vaacuterias becircnccedilatildeos e consagraccedilotildees e outras praacuteticas semelhantes em vigor na piedade dos fieacuteis ao tempo da baixa Idade Meacutedia Tais praacuteticas ora nobres ora ridiacuteculas embora transformassem a Igreja numa espeacutecie de casa assombrada cheia de acircngulos e cantos justificavam-se sob o tiacutetulo de ldquotradiccedilatildeordquo e legitimavam-se como parte essencial da vida cristatilde1

Lutero a quem a simplicidade do Evangelho como urna forccedila explosiva tinha sobremodo impressionado preferiu agrave luz de sua [16] ideacuteia de Deus juiz misericordioso natildeo ver na Tradiccedilatildeo nada mais do que ninharias com as quais a humanidade se ilude e aparentemente se consola buscando uma evasatildeo ante o abuso da proacutepria existecircncia Ainda mais ele viu na Tradiccedilatildeo o retorno da Lei o predomiacutenio do arbiacutetrio humano sobre a palavra de Deus abuso contra o qual Paulo protestara com tanta veemecircncia e que agora de novo se implantara na Igreja A Confessio Augustana ocupou-se tambeacutem destas coisas destacando uma seacuterie de leis cuja violaccedilatildeo segundo a doutrina corrente era tida como pecado mortal a proibiccedilatildeo do trabalho manual aos domingos e dias santos a interrupccedilatildeo das preces canocircnicas diaacuterias os preceitos do jejum etc E Lutero prosseguia ldquoDe onde tiram os Bispos o direito e o poder de imporem tais prescriccedilotildees aos cristatildeos e de ilaquearem assim as consciecircncias Pedro no capiacutetulo 15 dos Atos dos Apoacutestolos proiacutebe se imponha o jugo sobre os ombros dos disciacutepulos E Paulo diz aos Coriacutentios que a autoridade lhe foi dada para salvar e natildeo para condenar Por que entatildeo multiplicam assim os pecados com tais imposiccedilotildeeshellip Se os Bispos tecircm poder de sobrecarregarem as igrejas com inuacutemeras prescriccedilotildees e de onerar as consciecircncias por que entatildeo a Sagrada Escritura proiacutebe tatildeo frequumlentemente que se faccedilam mandamentos

1 Eacute o que se vecirc claramente pela lista de traditiones feitas no tempo do Conciacutelio de Trento Cf a nota 44 da segunda parte desse livro

humanos e se escravizem os homens Porque chama ela a estas coisas de doutrina de Satanaacutes Foi acaso em vatildeo que o Espiacuterito Santo fez tais advertecircnciasrdquo 2

Lutero identificou aqui a traditio com os abusus Tradiccedilatildeo segundo ele eacute lei humana pela qual o homem se esconde de Deus e pior ainda se levanta contra Ele para tomar nas proacuteprias matildeos a tarefa de sua salvaccedilatildeo em vez de esperaacute-la da libeacuterrima graccedila do Senhor A Tradiccedilatildeo assim entendida como Lei eacute contraposta agrave mensagem da graccedila ldquoDevemos aceitar cada [17] um dos artigos do Evangelho para alcanccedilarmos a graccedila de Deus sem meacuterito nosso atraveacutes da feacute em Jesus Cristo e natildeo pretender merececirc-la mediante praacuteticas do culto inventado pelos homensrdquo3

O problema da Tradiccedilatildeo tornou-se ainda mais agudo devido a um segundo aspecto que de resto natildeo conduziu a nenhum resultado positivo Descobrindo o Evangelho teve Lutero igualmente a impressatildeo de libertar a Palavra de Deus da pesada cadeia do Magisteacuterio eclesiaacutestico que se teria apossado desta Palavra e natildeo mais a entendia em seu verdadeiro sentido empregando-a antes a seu bel-prazer A ideacuteia de que a palavra divina aprisionada na Igreja catoacutelica agrave autoridade do Magisteacuterio ficou privada de sua forccedila viva eacute sempre repetida nos escritos dos Reformadores Melanchton poreacutem fecirc-lo talvez de um modo mais humano e flexiacutevel quando apocircs com reservas a sua assinatura aos artigos luteranos de Esmalca ldquo quanto ao Papa acho eu que jaacute que ele quis abandonar o Evangelho devemos noacutes de nossa parte tolerar (e admitir) para o bem da paz e da unidade a sua superioridade sobre os Bispos superioridade esta que ele possui iure humanordquo 4

Este estado de coisas impregnou outrossim a ideacuteia de Igreja da Confessio Augustana uma vez que aiacute se diz que a Igreja eacute a congregatio sanctorum in qua Evangelium pure docetur et recte administrantur Sacramenta5 Assim a Igreja eacute marcada por duplo aspecto pela pureza da doutrina e pela administraccedilatildeo legiacutetima dos Sacramentos Nem uma palavra sobre o Magisteacuterio Na realidade para a elaboraccedilatildeo do conceito de Igreja este silecircncio da CA natildeo eacute menos importante do que o que ela aiacute diz Eacute um silecircncio evidentemente intencional e denuncia a oposiccedilatildeo dos Reformadores agrave concepccedilatildeo catoacutelica de Igreja [18] entatildeo vigente e ateacute hoje conservada Esta consta de trecircs elementos a fides correspondente ao pure docere a communio que corresponde ao sacramenta e a auctoritas6 O Magisteacuterio aparece aqui como criteacuterio da palavra Eacute o seu fiador Segundo Melanchton daacute-se o contraacuterio a palavra eacute que eacute o criteacuterio do Magisteacuterio Este deve em uacuteltima anaacutelise ser provado pela palavra e pode consequumlentemente ser negado A palavra eacute auto-suficiente e paira sobre o Magisteacuterio como uma grandeza autocircnoma Talvez nesta inversatildeo de relaccedilotildees eacute que estaacute propriamente o contraste entre o conceito catoacutelico e o protestante de Igreja Contradiccedilatildeo paralela se daacute em torno da ideacuteia de Tradiccedilatildeo Com efeito a negaccedilatildeo do Magisteacuterio como criteacuterio da palavra significa a reduccedilatildeo da palavra de Deus agrave Escritura que seraacute entatildeo o

2Art 28 39-42 in Die Bekenntnisschriften der evangelisch lutherischen Kirche Gotinga 1952 p126 3 Art 28 52 Op cit p129 4 Op cit p463 5 Art 7 1 paacuteg 61 6 Sobre este ponto e o seguinte cf J RATZINGER ldquoDas geistliche Amt und die Einheit der Kircherdquo in Catholica 17 (1963) p 165-179

uacutenico sustentaacuteculo autocircnomo e autecircntico da palavra natildeo admitindo a Tradiccedilatildeo como uma grandeza em si

O Conciacutelio de Trento em seu estudo sobre a Tradiccedilatildeo teve diante dos olhos os dois pontos de vista contraacuterios e procurou formular sua resposta levando ambos em consideraccedilatildeo Eacute por isso conveniente analisarmos como estas duas posiccedilotildees se inter-relacionam em face da equiparaccedilatildeo feita por Lutero entre a Traditio e os abusus Em outros termos como os Padres conciliares se colocam diante do dilema dever-se-ia responder aos ataques de Lutero diretamente com uma definiccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo Ou antes de tudo com a reformatio a coerccedilatildeo dos abusus7

No tocante agrave doutrina o Conciacutelio refutou ex professo a censura dos Reformadores sustentando que a palavra natildeo eacute uma realidade autocircnoma pairando acima da Igreja Ela eacute dada pelo [19] Senhor agrave Igreja e natildeo entregue ao capricho dos homens Permanece justamente por isso nas Suas matildeos subtraindo-se ao alcance do alvitre humano Na visatildeo dos Padres de Trento deve no fundo ter parecido uma falta de confianccedila o terem os homens receio da palavra escrita entregue agrave Igreja como se a Igreja pudesse abusar dela Como se se pudesse apelar para a palavra da Revelaccedilatildeo contra a Igreja Estava-se inquestionavelmente certo de que o Senhor que instituiu a Igreja como Seu Corpo haveria de se empenhar em tutelaacute-la contra o perigo de abusar de Sua palavra

Hoje decorridos quatro seacuteculos desde a Reforma podemos confessar que na oposiccedilatildeo que dividia entre si Lutero e o Conciacutelio de Trento tanto depois como antes o dilema que dilacerou a Cristandade ocidental de certo modo jaacute desapareceu Vecirc-se isto pela troca de correspondecircncia entre Harnack e Peterson Peterson ao agradecer o tratado de Harnack Das Alte Testament in den Paulinischen Briefen und in den Paulinischen Gemeiden observou que este em seu cotejo da Escritura com a exegese biacuteblica tinha adotado natildeo o princiacutepio protestante mas o catoacutelico Escreveu Harnack ldquoDizer que o chamado lsquoprinciacutepio formalrsquo do Protestantismo primitivo eacute uma impossibilidade criacutetica e que ao contraacuterio o princiacutepio catoacutelico eacute formalmente o melhor eacute um truiacutesmo Materialmente poreacutem o princiacutepio catoacutelico da Tradiccedilatildeo opotildee-se agrave Biacuteblia muito mais diretamente (As tradiccedilotildees satildeo como ervas daninhas a serem cortadas pela tesoura do Magisteacuterio) A melhor fonte eacute o Novo Testamentordquo 8

Nesta formulaccedilatildeo de certo modo geneacuterica e simplista e na oposiccedilatildeo estabelecida entre os aspectos material e formal vem de novo agrave tona o antigo dilema poder-se-aacute confiar a palavra agrave Igreja sem temor de que ela sob a tesoura do Magisteacuterio ou [20] envolta no mato selvagem do sensus fidelium perca a sua forccedila proacutepria e sua vitalidade Esta eacute a pergunta que os Protestantes fazem aos Catoacutelicos Poder-se-aacute aceitar a autonomia da palavra sem com isto ser esta exposta ao arbiacutetrio dos exegetas aos maus tratos por parte dos historiadores e enfim ao completo desamparo Eis como os Catoacutelicos revidam aos Protestantes Com efeito segundo nossa doutrina natildeo eacute a noacutes que compete decidir se queremos ou natildeo confiar a palavra agrave Igreja Foi o proacuteprio Senhor quem lha confiou Note-se entretanto que quando o Catoacutelico encara seriamente este assunto natildeo deixa de considerar o zelo pela pureza da palavra revelada como um dever

7 Ver as notas 41 e 42 na 2ordf parte 8 Citado in E PETERSON Theologische Traktate Munique 1951 p295

da mais alta importacircncia Ele sabe que natildeo cumpre este dever pelo simples fato de apelar para a inerracircncia da Igreja Fazecirc-lo seria menosprezar o sentido da luta de Lutero em favor da Palavra deixando-se de ver nisto uma salutar advertecircncia e um apelo dirigido agraves almas

Natildeo obstante tudo isto a histoacuteria da controveacutersia natildeo se deteve no decurso dos quatro seacuteculos que se seguiram agrave Reforma Duas diferentes tendecircncias se destacam nas relaccedilotildees entre o Protestantismo e o Catolicismo e entre suas respectivas teologias De um lado uma radicalizaccedilatildeo de cada grupo nos proacuteprios pontos de vista Cada grupo a partir de entatildeo fez sua histoacuteria proacutepria e desenvolveu-a em direccedilatildeo oposta um ao outro Por outro lado a distacircncia mantida entre ambos possibilita maior objetividade em seus julgamentos reciacuteprocos Existe finalmente de parte a parte um renovado esforccedilo por superar as fronteiras com vistas a um encontro

Quem entre os Catoacutelicos empreendeu o mais significativo passo para chegar a uma visatildeo nova do problema da Tradiccedilatildeo mediante a superaccedilatildeo de posiccedilotildees unilaterais e anti-reformistas foi em nossos dias o teoacutelogo dogmaacutetico de Tubinga Josef Rupert Geiselmann Seus esforccedilos foram frutuosos fazendo-se sentir a sua influecircncia inclusive nos estudos preparatoacuterios do [21] Conciacutelio e deram agraves incursotildees do Vaticano II nesta aacuterea aquela marcante atualidade que ainda na primeira sessatildeo levou este problema a transcender do ciacuterculo da luta doutrinal entre as vaacuterias escolas teoloacutegicas para se transformar em uma preocupaccedilatildeo de toda a Cristandade catoacutelica9

A tese de Geiselmann eacute conhecida Basta-nos esboccedilaacute-la rapidamente aqui a fim de lanccedilarmos as bases de uma reflexatildeo que procuraraacute aprofundar mais este assunto e talvez dar um modesto passo agrave frente Geiselmann parte de uma interpretaccedilatildeo nova do sentido dado pelo Conciacutelio ao conceito de Tradiccedilatildeo O tridentino estabelecera que a verdade do Evangelho estaacute contida in libris scriptis et sine scripto traditionibus Isto foi e eacute ateacute hoje interpretado como se a Escritura natildeo contivesse toda a veritas evangelii Portanto natildeo eacute possiacutevel admitir-se a sola Scriptura uma vez que uma parte da Revelaccedilatildeo nos eacute transmitida somente pela Tradiccedilatildeo Geiselmann aproveitou a observaccedilatildeo jaacute antes feita por alguns autores de que na primeira redaccedilatildeo do texto focircra adotada a foacutermula segundo a qual a verdade estaria contida partim in libris scriptis partim in sine scripto traditionibus Estaria aqui claramente expressa a doutrina da divisatildeo da verdade revelada em duas fontes (Escritura e Tradiccedilatildeo) O Conciacutelio abandonou a expressatildeo partim ndash partim preferindo usar o simples conectivo et Geiselmann daiacute conclui afastou-se o Conciacutelio da ideacuteia da divisatildeo da verdade em duas fontes diversas Ou pelo menos natildeo a definiu explicitamente E continua o mesmo autor com isto pode tambeacutem o teoacutelogo catoacutelico aceitar a ideacuteia de uma suficiecircncia material da Escritura Pode ainda mesmo permanecendo catoacutelico defender a opiniatildeo de que a Sagrada Escritura eacute suficiente para transmitir-nos a [22] Revelaccedilatildeo Geiselmann admite consequumlentemente que a sola Scriptura pode conceber-se como uma uacutenica fonte

9 Cf R LAURENTIN Lenjeu du Concile Bilan de Ia premiegravere session Paris 1963 p27-45 Y CONGAR Vatican II Le Concile au jour le jour Paris 1963 p63-71 J RATZINGER Die erste Sitzungsperiode des Zweiten Vatikanischen Konzils Colocircnia 1963 p38-50

material da Revelaccedilatildeo Ele crecirc ainda poder mostrar que a tradiccedilatildeo mais forte eacute a favor desta sentenccedila e que o proacuteprio Conciacutelio de Trento se inclina neste sentido10

Eacute faacutecil de se compreender que semelhante tese tenha obtido o apoio de muitos em face das novas possibilidades de encontro entre Catoacutelicos e Evangeacutelicos possibilidades estas que a posiccedilatildeo de Geiselmann parece favorecer11 Que esta tese na realidade constitua um passo consideraacutevel neste sentido parece ser incontestaacutevel Todavia tatildeo logo a analisemos mais de perto em seus fundamentos histoacutericos e reais surge de pronto toda uma seacuterie de dificuldades graves a tornarem impossiacutevel a sua aceitaccedilatildeo

Sobre o aspecto histoacuterico deste problema apresentaremos vaacuterias observaccedilotildees na segunda parte deste nosso opuacutesculo Entrementes consideremos de imediato o lado praacutetico deste assunto Seu exame provoca inicialmente esta pergunta que significa propriamente a expressatildeo ldquosuficiecircncia da Escriturardquo Geiselmann como teoacutelogo catoacutelico que eacute natildeo deixa de sustentar os nossos dogmas Ora nenhum dogma catoacutelico eacute provado sola Scriptura Nem os grandes dogmas primitivos sustentados pelo consensus quinquesaeligcularis nem tampouco o de 1854 e [23] menos ainda o de 1950 Em que sentido entatildeo se pode falar em suficiecircncia da Escritura Natildeo ameaccedilaraacute esta converter-se em perigosa fraude pela qual nos enganamos primeiramente a noacutes proacuteprios e em seguida tambeacutem enganamos aos outros (Ou natildeo seratildeo talvez justamente eles que natildeo se enganam) Ou entatildeo pelo menos para sustentarmos de um lado que a Escritura sozinha conteacutem toda a verdade da Revelaccedilatildeo e de outro lado que o dogma de 1950 eacute verdade revelada natildeo deveremos noacutes refugiar-nos em um conceito tatildeo largo de suficiecircncia que na verdade esta palavra venha a perder todo o seu significado

Com isto abre-se a segunda (que de fato eacute a primeira) questatildeo decisiva a saber seraacute verdade que os debates em torno da ideacuteia da suficiecircncia da Escritura resolveram mesmo o problema do conceito de Tradiccedilatildeo Ou ao contraacuterio natildeo estaremos noacutes aqui diante de um problema de raiacutezes muito mais profundas

Nossas observaccedilotildees introdutoacuterias devem ter deixado claro que esta uacuteltima pergunta deve sem duacutevida nenhuma ser respondida afirmativamente A questatildeo da suficiecircncia da Escritura eacute apenas um problema secundaacuterio no acircmbito da distinccedilatildeo muito mais importante que foi jaacute antes apontada por noacutes ao tratarmos dos conceitos abusus e auctoritas e que gira em torno do nexo entre a autoridade da Igreja e a autoridade da Sagrada Escritura Da compreensatildeo disto depende tudo o mais

Para irmos mais adiante torna-se necessaacuterio analisarmos profundamente o assunto natildeo para nos determos no exame dos conceitos tatildeo relevantes de suficiecircncia ou insuficiecircncia da Escritura mas antes para abordarmos em seu tudo o vasto problema da Palavra revelada e presente no coraccedilatildeo dos fieacuteis Torna-se evidente entatildeo que agrave luz das fontes positivas a Escritura e a Tradiccedilatildeo devem ser postas em relaccedilatildeo tatildeo iacutentima que da

10 Ver sobretudo a obra de J R GEISELMANN Die Heilige Schrift und die Tradition Friburgo 1962 principalmente as p91-107274-282 Entre os trabalhos anteriores escritos por Geiselmann sobre o mesmo tema eacute de particular importacircncia o seguinte Das Konzil von Trient uumlber das Verhaumlltnis der Heiligen Schrift und der nichtgeschriebenen Traditionen in M SCHMAUS Die muumlndliche Uumlberlieterung Munique 1957 p 123-206 11 Uma lista de todos os autores que mais concordaram com Geiselmann eacute fornecida por H KUumlNG em sua tese ldquoKarl Barths Lehre vom Wort Gottes als Frage an die katholische Theologierdquo in Einsicht und Glaube publicado por J RATZINGER-H FRIES Friburgo 1963 p 105 nota 25

fonte interna (a Revelaccedilatildeo) brote a pa1avra de Deus viva sob aquela dupla formalidade A Escritura e a Tradiccedilatildeo natildeo podem [24] ser entendidas uma sem a outra no sentido que ambas tecircm agrave luz da feacute O problema ldquoEscritura e Tradiccedilatildeordquo permaneceraacute insoluacutevel enquanto natildeo for reduzido a uma soacute questatildeo a saber a questatildeo ldquoRevelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeordquo e inserida enfim no amplo contexto a que pertence

Eu gostaria de nas paacuteginas seguintes sem entrar em todos os detalhes tentar desenvolver em forma de teses e de maneira positiva o conceito de Tradiccedilatildeo partindo de sua natureza iacutentima com a esperanccedila de que nele descubramos uma parte da resposta aos anseios dos Reformadores Desta maneira toda esta anaacutelise serviraacute de contribuiccedilatildeo para o diaacutelogo interconfessional cuja necessidade tanto os Catoacutelicos como os Protestantes vecircm proclamando de maneira cada vez mais insistente

II - Teses sobre a relaccedilatildeo entre a Revelaccedilatildeo e a Tradiccedilatildeo

1 A Revelaccedilatildeo e a Escritura A primeira tese em aditamento ao conceito patriacutestico de Escritura e Revelaccedilatildeo

poderia enunciar-se nos seguintes termos o fato de existir uma ldquoTradiccedilatildeordquo repousa antes de tudo na diferenccedila que permeia entre estas duas realidades ldquoRevelaccedilatildeordquo e ldquoEscriturardquo A Revelaccedilatildeo exprime propriamente o falar e o agir de Deus em relaccedilatildeo aos homens Designa uma realidade expressa pela Escritura sem ser contudo a proacutepria Escritura A Revelaccedilatildeo por conseguinte ultrapassa a Escritura na mesma medida em que a realidade ultrapassa a sua expressatildeo escrita12 Poder-se-ia [25] tambeacutem dizer que a Escritura eacute o princiacutepio material da Revelaccedilatildeo (Talvez princiacutepio uacutenico talvez um princiacutepio entre outros isto seraacute esclarecido mais adiante) Ela natildeo eacute poreacutem a proacutepria Revelaccedilatildeo Isto era aliaacutes bem sabido dos proacuteprios Reformadores mas comeccedilou visivelmente a ser esquecido no aceso da controveacutersia entre a teologia catoacutelica poacutes-tridentina e a ortodoxia protestante13 Em nosso seacuteculo foram justamente os teoacutelogos evangeacutelicos Barth e Brunner que redescobriram este fato de todo evidente para a teologia patriacutestica e medieval14

O que acabamos de afirmar ficaraacute mais claro se partirmos de outro princiacutepio a Escritura pode ser possuiacuteda sem que se possua a Revelaccedilatildeo Isto porque a Revelaccedilatildeo eacute sempre e em primeiro plano uma realidade a realidade onde se encontra a feacute Aquele

12 Esta afirmaccedilatildeo natildeo tem o sentido de que a Escritura seja uma mera e vazia narrativa de realidades a ela exteriores Antes como o que se segue iraacute demonstrar indica que a Revelaccedilatildeo eacute realizada na Palavra jaacute que eacute por meio de palavras que ela se comunica aos homens Contudo a mera presenccedila da palavra ainda natildeo eacute a Revelaccedilatildeo Esta eacute mais do que simples ldquopresenccedilardquo Com o que ficou dito salienta-se a diferenccedila que existe entre a palavra e seu conteuacutedo Esta diferenccedila natildeo exclui o caraacuteter verbal da Revelaccedilatildeo 13 Cf A GLOEGE Schriftprinzips RGG V 1540-1543 onde se encontraraacute a mais completa bibliografia LthK VII 1104-1115 J R GEISELMAN Offenbarung in H FRIES Handbuch zum Begriff der Offenbarung cf M VERENO - R SCHNACKENBURG - HRIES in Theologischer Grundbergriffe II Munique 1963 p242-250 e a bibliografia aiacute citada 14 Cf W H VAN DER POL Das reformatorische Christentum Einsiedeln 1956 p117-192

que natildeo crecirc acha-se como que coberto por um veacuteu o veacuteu de que fala Satildeo Paulo no terceiro capiacutetulo da segunda epiacutestola aos Coriacutentios15 Ele pode ler a Escritura e saber o que nela se conteacutem Pode ateacute mesmo apreender de modo puramente intelectual o que aiacute eacute significado e como suas ideacuteias se inter-relacionam Todavia natildeo possui com isto a Revelaccedilatildeo A Revelaccedilatildeo eacute sobretudo possuiacuteda quando aleacutem da expressatildeo material que a atesta se potildee tambeacutem em praacutetica o seu conteuacutedo interno por meio da vivecircncia da feacute Com efeito de certo modo se inclui tambeacutem na Revelaccedilatildeo o sujeito recipiente sem o qual ela natildeo pode existir Natildeo se pode pocircr a Revelaccedilatildeo no bolso como se faz com [26] um livro Ela eacute uma realidade viva Exige homens vivos que a recebam que sirvam de ldquolugarrdquo de sua presenccedila

Repetindo o que ateacute aqui dissemos podemos afirmar que a Revelaccedilatildeo sobreexcede de fato a Escritura em dois sentidos

a) em sentido ascendente ela atinge sempre como realidade procedente de Deus o agir divino sobre as criaturas

b) como realidade que se daacute ao homem por meio da feacute ela atinge igualmente a Escritura

Desta diferenccedila entre a Escritura e a Revelaccedilatildeo resulta claramente que de todo independentemente da questatildeo se a Escritura eacute ou natildeo eacute a uacutenica fonte material em rigor nunca existe para o cristatildeo a sola Scriptura (Isto como ficou dito era claro em princiacutepio para os grandes Reformadores e comeccedilou a ser esquecido na chamada ortodoxia protestante) A Escritura natildeo eacute a Revelaccedilatildeo Eacute sim em uacuteltima anaacutelise uma parte desta realidade mais ampla

2 Os diferentes sentidos da Escritura

no Antigo e Novo testamento A problemaacutetica cristatilde da Revelaccedilatildeo ou o problema ldquoEscritura e Tradiccedilatildeordquo situa-se

melhor se considerarmos o duplo aspecto da mesma Revelaccedilatildeo no Antigo e no Novo Testamento A este duplo aspecto corresponde tambeacutem um duplo sentido da Escritura Assim como os dois Testamentos como tais se distinguem essencialmente assim tambeacutem devemos dizer que a ldquoEscriturardquo como um fato natildeo eacute repetida duas vezes do mesmo modo Isto aparece muito claro nos livros neotestamentaacuterios Sob a expressatildeo ldquoEscriturardquo designam eles somente o Antigo Testamento Para eles o AT eacute e permanece sendo ldquoa Escriturardquo cujo sentido se aclara mediante sua confirmaccedilatildeo no evento da [27] vinda de Cristo16 Os livros do NT natildeo jogam uma Escritura nova contra uma Escritura antiga Nem potildeem uma simplesmente ao lado da outra Potildeem sim em face da uacutenica Escritura ou seja do Antigo Testamento o Cristo-evento como o espiacuterito que explica a letra Esta concepccedilatildeo fundamental ilumina tambeacutem a forma da feacute mais antiga e a torna por primeiro compreensiacutevel O ldquoJesusrdquo formal eacute o ldquoCristordquo expresso no Antigo Testamento Natildeo eacute outra coisa No Jesus Histoacuterico o Cristo-mensagem do

15 Cf sobre estas reflexotildees o importante artigo (ἀποκαλύπτω de A OEPKE in ThWNT III p565-597 16 Ver sobre este ponto as preciosas conclusotildees de G SCHRENK art γραφή ndash γράμμα in ThWNT I p749-769 e a p767

Antigo Testamento atinge a sua consumaccedilatildeo Eacute a partir do AT que se entende quem eacute Jesus E o que o Testamento Antigo expressa pode ser visto agrave luz do Cristo-evento

Esta ideacuteia aparece em Paulo ao apresentar ele o Antigo e o Novo Testamentos como Gramma e Pneuma isto eacute letra e espiacuterito (2Cor 3 6-18) Ele chama ao Senhor de Pneuma A Escritura explica-o como sendo o seu sentido o seu conteuacutedo verdadeiro e vivo e natildeo apenas literaacuterio Paulo se refere agrave concepccedilatildeo do Novo Testamento apresentada por Jeremias (3133) Natildeo eacute mais necessaacuteria nenhuma Escritura porque a lei estaacute escrita nos coraccedilotildees Jaacute natildeo eacute necessaacuteria nenhuma doutrinaccedilatildeo vinda de fora porque o proacuteprio Deus instrui os homens Joatildeo exprime idecircntico pensamento em seguimento ao decircutero-Isaiacuteas (5413) quando descreve a era inaugurada por Cristo como o tempo no qual todos satildeo doutrinados por Deus mesmo E o sermatildeo de Pedro em Pentecostes transmitido pelos Atos dos Apoacutestolos (2 14-36) desenvolve a mesma ideacuteia tirada de Joel (3 1-5) Em todos estes casos aparece a era instaurada por Cristo como resposta agrave esperanccedila no advento de um tempo futuro que em uacuteltima anaacutelise haveria de tornar supeacuterflua a Escritura graccedilas agrave presenccedila imediata do Divino Mestre na Sua humanidade

Quando se pondera o sentido destas afirmaccedilotildees torna-se claro [28] que ao reduzir-se a ldquoEscriturardquo aos escritos do Antigo Testamento natildeo se estaacute apenas usando uma terminologia antiga que teria sido adotada por falta de escritos propriamente neotestamentaacuterios e que teria perdido seu sentido na segunda metade do seacuteculo segundo com o iniacutecio do cacircnon do Novo Testamento Ao contraacuterio Aqui se expressa uma consciecircncia que se tornaria mais niacutetida a partir da formaccedilatildeo da proacutepria Escritura neotestamentaacuteria muito ao inveacutes de cessar ou de desaparecer

Uma coisa eacute certa a ldquoEscriturardquo na nova ordem da salvaccedilatildeo inaugurada por Cristo toma um lugar distinto do que lhe cabia no Antigo Testamento Com isto pode-se ver ateacute que ponto o Antigo Testamento tem sentido autocircnomo O AT certamente natildeo aparecia desde o comeccedilo como Testamento do Gramma Escritura em sentido proacuteprio como ocorreraacute na pena de Satildeo Paulo17 Por outro lado manifesta-se realmente a partir de Jeremias e do decircutero-Isaiacuteas o anelo pela superaccedilatildeo do Gramma mediante uma nova e imediata comunicaccedilatildeo do Espiacuterito de Deus simultaneamente com a progressiva formaccedilatildeo de um princiacutepio da Escritura que mais e mais a transformou em Lei Lei esta que natildeo tornaria os homens vivos mas sim mortos

Desta maneira na concepccedilatildeo neotestamentaacuteria aparece o Antigo Testamento como ldquoEscriturardquo em sentido proacuteprio Escritura que atinge o seu verdadeiro significado atraveacutes do Cristo-evento pelo fato de ser ela inserida no contexto vivo da realidade de Cristo Se no Novo Testamento de facto a Escritura cresceu natildeo pode mais ter aquele sentido uacuteltimo e exclusivo que lhe competia no Antigo segundo a concepccedilatildeo paulina Ao contraacuterio Ela eacute a chave com que se abre o Antigo Testamento deixando-se banhar na claridade do Cristo-evento Ela eacute tambeacutem a ponte permanente que conduz a uma nova interpretaccedilatildeo biacuteblica agrave luz [29] de Cristo Num caso e noutro a Escritura natildeo pretende de modo nenhum ser autocircnoma nem ser a fonte uacutenica e exclusiva de sua exegese literal Mas soacute pode ter sentido na realidade espiritual de Jesus Cristo que

17 Ver a apreciaccedilatildeo feita por G VON RAD Theologie des Alten Testaments II Munique 1960 p402-424

permanece junto dos seus todos os dias ateacute ao fim do mundo (Mt 28 20) Apoacutes a subida ao Calvaacuterio Cristo veio de novo no Espiacuterito Santo (como narra Satildeo Joatildeo) e pelo Espiacuterito ensinou aos disciacutepulos o que eles entatildeo natildeo podiam ainda entender enquanto o Senhor estava entre eles sob forma visiacutevel (Jo 16 12)

3 Cristo a Revelaccedilatildeo de Deus

A realidade que se daacute como um acontecimento na Revelaccedilatildeo cristatilde natildeo eacute nada

mais nada menos do que o proacuteprio Cristo Cristo eacute a Revelaccedilatildeo em sentido proacuteprio ldquoQuem me vecirc vecirc o Pairdquo diz ele no Evangelho de Satildeo Joatildeo (14 9) Vale portanto dizer que receber a Revelaccedilatildeo eacute penetrar na realidade de Cristo no Cristo-evento Daiacute procede o paradoxo descrito por Satildeo Paulo ao fazer ele um trocadilho com as palavras ldquoCristo em noacutesrdquo e ldquonoacutes em Cristordquo

Neste contexto a anaacutelise de frases isoladas torna-se secundaacuteria de vez que elas satildeo apenas explicaccedilotildees do uacutenico misteacuterio de Cristo Consequumlentemente cai por si mesma a questatildeo da suficiecircncia interna da Escritura tatildeo discutida desde o aparecimento das obras de Geiselmann Deveriacuteamos isto sim perguntar que significa em linguagem cristatilde a suficiecircncia interna da Escritura ldquoSuficienterdquo eacute soacute a realidade do Cristo-evento Esta pode ser explicada materialmente em maior ou menor grau E de maneira nunca definitiva Partindo deste princiacutepio podem existir tambeacutem outras explicaccedilotildees segundo a Escritura quando se aprofunda mais este assunto

Este mesmo tema pode ser considerado sob outro aspecto E ter-se-aacute entatildeo dado um passo a mais para a frente A aceitaccedilatildeo [30] da Revelaccedilatildeo pela qual aplicamos a noacutes o Cristo-evento vem na linguagem da Biacuteblia sob o nome de ldquofeacuterdquo Assim talvez se entenderaacute mais claramente de que maneira no Novo Testamento a feacute significa a ldquoin-habitaccedilatildeordquo de Cristo Se admitirmos que na Escritura a presenccedila da Revelaccedilatildeo tem o mesmo sentido que a presenccedila de Cristo entatildeo teremos de fato dado um passo adiante Ora na Escritura encontramos a presenccedila de Cristo apresentada de duas maneiras Ela aparece de um lado como jaacute vimos identificada com a feacute (Ef 317) na qual cada um encontra Cristo e se adentra nele penetrando no dinamismo de sua forccedila salvadora Por outro lado a feacute se oculta tambeacutem sob a expressatildeo paulina ldquoCorpo de Cristordquo o que quer dizer que a comunidade dos fieacuteis ndash a Igreja ndash funda a presenccedila de Cristo neste mundo Nela Cristo reuacutene os homens e os faz partiacutecipes de sua presenccedila dinacircmica18

Tomadas juntas estas duas noccedilotildees significam o seguinte a feacute eacute a adesatildeo iacutentima agrave presenccedila de Cristo realidade de Cristo presente da qual a Escritura nos daacute testemunho sem contudo se identificar de modo nenhum com ela Daiacute resulta que a presenccedila da Revelaccedilatildeo se relaciona essencialmente com a ldquofeacuterdquo e com a ldquoIgrejardquo realidades estas que como vimos estatildeo estreitamente ligadas entre si

Voltamos assim ao que foi afirmado na primeira tese a saber que a Revelaccedilatildeo sobreexcede a Escritura em duplo sentido em relaccedilatildeo a Deus por seu lado ascendente e em relaccedilatildeo tambeacutem ao homem que a recebe Esta asserccedilatildeo que a princiacutepio deixamos

18 H SCHLIER ldquoDie Kirche nach dem Brief an die Epheserrdquo in Die Zeit der Kirche Friburgo 1962 p159-186

um tanto vaga encontramo-la essencialmente concretizada na realidade objetiva do Cristianismo

4 A essecircncia da Tradiccedilatildeo

[31] A transmissatildeo ao povo de Deus do Cristo-evento que eacute a Revelaccedilatildeo e que tem sua bi-presenccedila na feacute e na Igreja faz-se atraveacutes da pregaccedilatildeo Pregaccedilatildeo eacute a ldquoex-posiccedilatildeordquo (Aus-legung) do duplo aspecto da Revelaccedilatildeo no Antigo e no Novo Testamento E isto de duas maneiras

a) ela eacute a exposiccedilatildeo do Antigo Testamento agrave luz do Cristo-evento e para o Cristo-evento

b) a partir do Pneuma e da condiccedilatildeo presente da Igreja Este uacuteltimo aspecto eacute possiacutevel pois Cristo natildeo estaacute morto Estaacute vivo Natildeo eacute

apenas o Cristo de ontem Eacute tambeacutem e a fortiori o Cristo de hoje e de amanhatilde o Cristo vivo e presente em sua Igreja que eacute seu Corpo e na qual o seu espiacuterito opera

Isto poderaacute ser melhor compreendido se partirmos da essecircncia da Igreja Como nos ensina o Novo Testamento a mensagem de Jesus eacute antes de tudo uma mensagem escatoloacutegica com vistas ao reino de Deus natildeo com vistas agrave Igreja O fato de existir a Igreja natildeo se opotildee a esta mensagem mas haacute na marcha gradativa das revelaccedilotildees de Cristo uma segunda possibilidade Assim a atividade dos Doze depois de Pentecostes aponta natildeo para a Igreja mas para o reino de Deus Informam-nos os Atos dos Apoacutestolos que os Doze natildeo se ocuparam primordialmente em missionar os povos Esforccedilaram-se antes muito mais em converter Israel criando deste modo as condiccedilotildees preacutevias para a implantaccedilatildeo do reino De iniacutecio uma seacuterie de obstaacuteculos histoacutericos entre os quais deveriacuteamos citar antes de tudo o martiacuterio de Estevatildeo o supliacutecio de Tiago e por fim o fato decisivo da prisatildeo e da libertaccedilatildeo de Pedro Tais fatos levaram a comunidade primitiva segundo dizem as fontes a reconhecer como definitivo o malogro do esforccedilo de converter Israel E consequumlentemente forccedilaram os Apoacutestolos a partir em busca dos gentios e a cuidar [32] assim da Igreja e natildeo do reino Eles o fazem segundo se depreende das passagens referidas e principalmente dos esclarecimentos do capiacutetulo 15 dos Atos dos Apoacutestolos como uma nova opccedilatildeo feita sob a accedilatildeo do Espiacuterito Santo Com isso iniciou-se uma nova interpretaccedilatildeo da mensagem de Cristo sobre a qual a Igreja essencialmente repousa19

19 Cf as decisivas conclusotildees de E PETERSON ldquoDie Kircherdquo in Theologische Traktate Munique 1951 p 409-429 H SCHLIER Die Entscheidung fuumlr die Heidenmission in der Urchristenheit Die Zeit der Kirche p 90-107 Parece-me certo que nem a anaacutelise da tradiccedilatildeo sinoacutetica relativa agrave mensagem de Jesus e seu caraacuteter escatoloacutegico nem o estudo da histoacuteria da Igreja primitiva com base no material fornecido pelos Atos dos Apoacutestolos autorizam qualquer outra conexatildeo entre a mensagem do reino e a pregaccedilatildeo da Igreja Daiacute natildeo se segue de modo nenhum ndash como muitas vezes se teme ndash que a cruz seja um acidente secundaacuterio que em rigor poderia ter sido evitado Ao contraacuterio A estrutura da Igreja moldada sobre a cruz eacute fundamental porque aiacute eacute que por primeiro se encontra a confirmaccedilatildeo da importacircncia da liberdade humana de Cristo e da sua Paixatildeo bem como a iacutentima dependecircncia da Igreja para com a Cruz donde ela procede

Este fato que baseia o estabelecimento definitivo da Igreja sobre uma decisatildeo tomada ldquono Espiacuterito Santordquo eacute o fundamento para se afirmar que existe uma interpretaccedilatildeo eclesial do Novo Testamento do mesmo modo que existe uma exegese cristoloacutegica do Antigo Daiacute podermos estabelecer as seguintes teses ou proposiccedilotildees agrave luz da analogia fidei

a) Existe uma teologia veterotestamentaacuteria do Antigo Testamento que o exegeta

deduz de seu conteuacutedo interno e que se desenvolve em uma seacuterie de camadas superpostas Segundo ela os textos antigos devem ser relidos e de novo expostos agrave luz dos novos acontecimentos O fenocircmeno da aplicaccedilatildeo dos textos agraves situaccedilotildees novas do desdobramento da Revelaccedilatildeo mediante nova [33] apresentaccedilatildeo do Antigo Testamento estrutura jaacute de modo essencial o conteuacutedo interno veterotestamentaacuterio20

b) Existe uma teologia neotestamentaacuteria do Antigo Testamento que natildeo coincide com

a referida teologia veterotestamentaacuteria Estaacute contudo estreitamente ligada com ela na unidade da analogia fidei21 Talvez partindo daqui se possa esclarecer o que significa a analogia fidei entre Os dois Testamentos A teologia neotestamentaacuteria do Antigo Testamento natildeo eacute como ficou dito idecircntica agrave teologia histoacuterica veterotestamentaacuteria Ao contraacuterio Re-exposiccedilatildeo feita agrave luz do Cristo-evento ela natildeo procede soacute da mera consideraccedilatildeo histoacuterica do Antigo Testamento Sendo embora em seu pleno conceito uma interpretaccedilatildeo relacionada com o Antigo Testamento contudo nada faz com que ela seja internamente estranha agrave sua essecircncia ainda que soacute de fora o atinja Ela amplia a forma estrutural do Antigo Testamento que assim interpretado revive e cresce

c) Existe uma teologia neotestamentaacuteria do Novo Testamento paralela agrave teologia veterotestamentaacuteria do Antigo Ou seja a teologia que o exegeta como tal pode deduzir do conteuacutedo interno do Novo Testamento eacute tambeacutem esta conhecida e estruturada mediante a aplicaccedilatildeo do Antigo Testamento agraves novas situaccedilotildees

d) Existe uma teologia eclesial do Novo Testamento que noacutes [34] chamamos Dogmaacutetica Ela se relaciona com a teologia neotestamentaacuteria do Novo Testamento do mesmo modo que a teologia neotestamentaacuteria do Antigo se relaciona com a respectiva teologia veterotestamentaacuteria Aquele ldquomaisrdquo (das Mehr) que distingue propriamente a Dogmaacutetica da teologia biacuteblica eacute o que designamos com a palavra Tradiccedilatildeo Aliaacutes tambeacutem aqui devemos salientar que a teologia eclesiaacutestica neotestamentaacuteria pela mesma razatildeo natildeo eacute simplesmente idecircntica agrave teologia neotestamentaacuteria interna e

20 Cf H GROSS Motivtransposition als Form- und Traditionsprinzip im Alten Testament in H VORGRIMLER Exegese und Dogmatik Moguacutencia 1962 p134-152 e a bibliografia aiacute fornecida G v RAD Theologie des Alten Testaments II Munique 1960 p332-339 396-401 21 A diferenccedila entre as duas teologias do Antigo Testamento foi vivamente exposta por R BULTMANN ldquoWeissagung und Erfuumlllungrdquo in Glauben und Verstehen II Tubinga 1952 p162-186 - Sobre as necessaacuterias correccedilotildees a se fazerem para que se torne visiacutevel a base histoacuterica do que a teologia sistemaacutetica denomina ldquoanalogia fideirdquo cf G v RAD op cit p329-424 (entre outras) e principalmente a p 420 nota 25 e a p422 nota 29 Sobre o tema ldquoanalogia fideirdquo em ambos os Testamentos cf tambeacutem E PRZYWARA Alter und Neuer Bund Viena-Munique 1956

histoacuterica do Novo Testamento Ultrapassa-a sem contudo ser-lhe puramente externa Com efeito no Novo Testamento comeccedila jaacute o processo da exposiccedilatildeo pela Igreja das verdades reveladas A teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento processa-se dentro dele proacuteprio como de modo clariacutessimo se percebe na histoacuteria da Revelaccedilatildeo sinoacutetica22

Eacute oportuno fazermos ainda uma pequena observaccedilatildeo se cotejarmos atentamente a teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento com a Dogmaacutetica reconheceremos que se impotildee uma outra distinccedilatildeo A Dogmaacutetica como ciecircncia aleacutem da exposiccedilatildeo eclesiaacutestica do Novo Testamento abrange tambeacutem a teologia particular de cada teoacutelogo Neste caso para se falar com precisatildeo dever-se-ia apresentar somente o proacuteprio dogma como teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento

O que acabamos de referir natildeo passa naturalmente de um esboccedilo que necessitaria em seus pormenores de natildeo poucos esclarecimentos e distinccedilotildees a fim de ser completo No caso presente entretanto damos por suficiente este esboccedilo Resumindo o que ateacute aqui expusemos podemos agora destacar vaacuterias ldquoraiacutezesrdquo da Tradiccedilatildeo e apontar vaacuterias camadas em seu seio [35] lordf raiz a maior amplidatildeo da ldquoTradiccedilatildeordquo em referecircncia agrave ldquoEscriturardquo

2ordf raiz o caraacuteter especiacutefico da Revelaccedilatildeo neotestamentaacuteria como Pneuma em contraste com o Gramma Eacute o que na linguagem de Bultmann se poderia chamar de sua condiccedilatildeo de ldquonatildeo-objetordquo (Nichtobjektiviertbarkeit) A praxe eclesiaacutestica e a teologia medieval expressaram este aspecto ao sobreporem a fides agrave Scriptura isto eacute o dogma como regra de feacute agraves minuacutecias da lei escrita23 O dogma eacute como a chave hermenecircutica da Escritura que em uacuteltima anaacutelise sem o auxiacutelio da hermenecircutica ficaria sendo algo fechado

3ordf raiz o caraacuteter presencial do Cristo-evento e a presenccedila dinacircmica do Espiacuterito de Cristo em seu Corpo a Igreja E consequumlentemente o poder que tem a Igreja de fazer a pregaccedilatildeo do Cristo ontem e hoje pregaccedilatildeo esta cuja fonte se encontra na interpretaccedilatildeo eclesiaacutestica da mensagem do reino transmitida pelos Apoacutestolos

Em conexatildeo com estas trecircs raiacutezes da ideacuteia (ou melhor da realidade) da Tradiccedilatildeo podem distinguir-se na mesma as seguintes camadas

a) Na origem de toda Tradiccedilatildeo estaacute o fato de que o Pai enviou o Seu Filho ao mundo e que o Filho por sua vez se [36] entregou ndash como sinal ndash aos ldquopovosrdquo (παραδίδοται) Esta paraacutedosis original em sua forccedila direta e salvadora

22 Cf por exemplo a rica exposiccedilatildeo de G BORNKMANN Jesus von Nazareth Estutegarte 1956 Sobre a questatildeo aqui estudada cf H SCHLIER Uumlber Sinn und Aufgabe einer Theologie des Neuen Testaments in H VORGRIMLER Exegese und Dogmatik Mainz 1962 p6990 23 O que haacute de melhor sobre este assunto no tocante agrave Patriacutestica seraacute encontrado em HARNACK DG II (1931) p84-116 HARNACK diz na p 87 nota 3 o seguinte ldquoO Cacircnon era de iniacutecio a regra da feacute A Escritura estaacute centrada na verdade Sem duacutevida nenhuma sua autoridade funda-se solidamente no Antigo Testamento e nas palavras do Senhorrdquo ndash Que assim tenha pensado tambeacutem a Idade Meacutedia e que aqui aleacutem da revelatio (da qual falaremos na 2ordf parte deste livro) a fides sobrepondo-se agrave Scriptura estabelece a forma essencial do conceito de Tradiccedilatildeo foi o que tentei demonstrar em meu artigo Wesen und Weisen der auctoritas im Werk des heiligen Bonaventura in Die Kirche und ihre Aumlmter und Staumlnde (Festgabe Kardinals Frings publicado por CORSTEN-FROTZ-LINDEN Colocircnia 1960 p 58-72

prolonga-se na permanente presenccedila de Cristo no σῶμα Χριστοῦ ndash no Seu Corpo a Igreja Assim o misteacuterio integral da presenccedila de Cristo eacute antes de tudo a realidade total transmitida pela Tradiccedilatildeo (fato fundamental e decisivo sempre anterior a todas as explicaccedilotildees particulares mesmo as da Escritura) e reguladora do que deve propriamente ser transmitido

b) A Tradiccedilatildeo existe concretamente como presenccedila na feacute Esta por seu turno como ldquoin-habitaccedilatildeordquo de Cristo precede todas as explicaccedilotildees particulares e frutuosa e viva ldquoexplicita-serdquo (explizierend) atraveacutes dos tempos

c) A Tradiccedilatildeo tem seu oacutergatildeo na plenitude dos poderes da Igreja e portanto naqueles que satildeo os legiacutetimos depositaacuterios destes poderes24

d) A Tradiccedilatildeo exprime-se tambeacutem naquilo que emanado da autoridade da Igreja se tornou regra de feacute (Symbolum fides quaelig) Portanto a questatildeo de se saber se certas proposiccedilotildees foram transmitidas desde o

comeccedilo pela Tradiccedilatildeo ao lado da Escritura ou em outros termos se existe desde o comeccedilo um segundo princiacutepio material e autocircnomo ao lado da Escritura torna-se afinal um problema inteiramente secundaacuterio Talvez lhe devamos responder negativamente

5 A funccedilatildeo da exegese [37] Pelo que ateacute aqui dissemos ficaram esclarecidas quase que exclusivamente

trecircs pontos os limites da letra da Escritura a liberdade do Espiacuterito Santo e a autoridade da Igreja Acontece poreacutem que a exposiccedilatildeo que fizemos abriga ainda um sentido diverso relacionado com a justa preocupaccedilatildeo de Lutero da qual partimos

Se ficou estabelecido que a Revelaccedilatildeo se faz presente atraveacutes da pregaccedilatildeo e se pregaccedilatildeo eacute exposiccedilatildeo da palavra revelada entatildeo pode e deve agora ao que precede acrescentar-se o seguinte a Tradiccedilatildeo eacute essencialmente e sempre uma exposiccedilatildeo Natildeo existe de maneira autocircnoma e sim como explicaccedilatildeo como exposiccedilatildeo ldquorelacionada com a Escriturardquo

Isto vale para a pregaccedilatildeo do proacuteprio Jesus Cristo realizaccedilatildeo plena da Revelaccedilatildeo e sua exposiccedilatildeo feita com autoridade A pregaccedilatildeo de Jesus Cristo natildeo aparece como algo absolutamente novo na Escritura Isto eacute como algo ainda natildeo atestado no Antigo Testamento Ela ensina isto sim a essecircncia do que jaacute estava escrito e lhe confere uma vida nova que o simples exegeta natildeo pode comunicar-lhe

O que vale para a mensagem de Cristo que permanece a mesma sob diferentes modalidades de exposiccedilatildeo vale tambeacutem para a pregaccedilatildeo apostoacutelica e a eclesiaacutestica Como ldquoTradiccedilatildeordquo ela deve em uacuteltima anaacutelise ser uma exposiccedilatildeo ldquosegundo a Escriturardquo a ela sujeita e com ela relacionada Sem duacutevida natildeo eacute ela uma exposiccedilatildeo no 24 Estas ideacuteias natildeo podem ser desenvolvidas mais detalhadamente aqui como seria de desejar uma vez que em rigor estamos procurando apenas fundamentar o conceito de Tradiccedilatildeo Em razatildeo da brevidade que me impus contentei-me apenas nas teses precedentes com explanar o assunto ateacute ao ponto em que ficasse patente a relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a ldquoIgrejardquo (cf as teses 4 e 5) Para se descer a maiores detalhes dever-se-ia analisar tambeacutem o conceito de Igreja que supomos conhecido do leitor Para isto cf a nota 6 onde citamos nosso livro sobre o Ofiacutecio e a unidade da Igreja Encontram-se aiacute algumas observaccedilotildees sobre o assunto de que ora tratamos

sentido de mera interpretaccedilatildeo exegeacutetica Mas sim na autoridade espiritual recebida do Senhor a qual se consuma na existecircncia plena da Igreja em sua feacute em sua vida e em seu culto Contudo ela permanece sendo (mais ainda do que o Cristo-evento em que se funda a Igreja) uma ldquoex-posiccedilatildeordquo (Aus-Legung) comprometida com a Histoacuteria e com a Palavra [38] Exprime-se deste modo a sua ligaccedilatildeo com a accedilatildeo concreta de Deus nesta mesma Histoacuteria e em seu caraacuteter de fato histoacuterico uacutenico (o ἑφάπαξ ldquoo ocorrido uma soacute vezrdquo) A realidade cristatilde da Revelaccedilatildeo eacute tatildeo essencial quanto ldquoeternardquo e definitiva Resulta daiacute a unidade entre o Cristo da Feacute e o Jesus da Histoacuteria o Jesus histoacuterico natildeo eacute senatildeo o Cristo da Feacute ainda que a feacute seja sempre algo mais do que a histoacuteria

Segue-se que do mesmo modo que existe um ofiacutecio de custoacutedia da Revelaccedilatildeo por parte da Igreja ofiacutecio por ela mesma atestado existe tambeacutem um ofiacutecio de custoacutedia da mesma Revelaccedilatildeo por parte da exegese que penetra o sentido literal da Escritura e defende a uniatildeo do Logos com a carne contra qualquer perigo de gnose Existe portanto por assim dizer algo como uma autonomia especiacutefica da Escritura como regra objetiva e sob muitos pontos de vista esclarecedora do Magisteacuterio eclesiaacutestico Esta era sem duacutevida uma exigecircncia legiacutetima de Lutero que ainda natildeo foi devidamente acolhida na Igreja catoacutelica por parte do Magisteacuterio cujos limites internos nem sempre foram claramente entendidos

Dever-se-ia partindo daqui salientar uma dupla criteriologia em se tratando da feacute De um lado haacute o que a Igreja antiga chamou de ldquoregra da feacuterdquo norma reguladora da palavra revelada contida na Escritura e sua exposiccedilatildeo Esta praeligscriptio da posse da Escritura como proacutepria segundo Tertuliano exclui a possibilidade de qualquer uso legiacutetimo da mesma Escritura contra a Igreja Por outro lado haacute tambeacutem o limite da littera Scripturaelig ou do sentido literal historicamente fixaacutevel que de acordo com o que ficou dito natildeo constitui nenhum criteacuterio absoluto ou autocircnomo mas sim somente um criteacuterio relativo no confronto da feacute com a ciecircncia O que na Escritura se pode descobrir quer mediante estudo cientiacutefico quer por simples leitura tem a funccedilatildeo de um criteacuterio real a que deve estar atento inclusive o Magisteacuterio em suas explicaccedilotildees Certamente [39] trata-se entatildeo de elementos sub-componentes da ciecircncia que natildeo podem servir para se julgar a feacute mas nela encontram uma instacircncia criacutetica e tecircm tambeacutem um importante papel a exercer o de zelar pela pureza do ἑφάπαξ de tutelar o conteuacutedo da Revelaccedilatildeo e de defender o dualismo histoacuterico carneespiacuterito (ldquodie Sarx der Geschichterdquo) contra os arbiacutetrios da gnose que tende sempre a impor-se

A reformatio na qual estaacute empenhada a Igreja nesta hora histoacuterica tem um papel relevante a desempenhar Eacute a missatildeo de abrir novas perspectivas para o diaacutelogo tentando assim chegar a uma ldquoreformardquo diferente da do passado que culminou com a divisatildeo no seio da Cristandade ocidental Tal missatildeo se exerceraacute em harmonia com o pleno ofiacutecio de testemunho da Igreja que tira seu direito e sua forccedila da presenccedila do Espiacuterito e de Cristo presente em todos os tempos Pois ele eacute sempre o Cristo de agora com a plenitude de seus direitos e de seus poderes Ele eacute quem daacute legitimidade e vigor ao testemunho singular e definitivo da Escritura que por sua vez encontra seu pleno sentido na singularidade da accedilatildeo histoacuterico-salviacutefica de Jesus Cristo Ele deu ao Pai seu Corpo crucificado e dando-se a si mesmo santificou para sempre os que o receberam (cf Hb 1014 727) Ele eacute o Cristo ontem hoje e sempre (Hb 138)

SEGUNDA PARTE

Explicaccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo segundo o Decreto do Conciacutelio de Trento

Parece que a completa elucidaccedilatildeo das razotildees que levaram agrave substituiccedilatildeo do

partim-partim pelo et e consequumlentemente agrave pesquisa dos dados do debate tridentino e de sua preacute-histoacuteria aparentemente favoraacutevel agrave suficiecircncia material da Escritura [40] simplifica indevidamente este problema fazendo-nos perder de vista os proacuteprios antecedentes do Decreto do Conciacutelio de Trento

1 A concepccedilatildeo pneumatoloacutegica da Tradiccedilatildeo no esquema fundamental do Cardeal Cervini

a) O conteuacutedo Um balanccedilo histoacuterico e detalhado do problema em seu conjunto exigiria uma

pesquisa exaustiva que natildeo reduzisse o seu acircmbito como o fez Geiselmann em seu livro25 Natildeo eacute nossa intenccedilatildeo proceder a um exame minucioso do assunto no presente trabalho Aqui soacute seratildeo tratados alguns pontos do debate tridentino com o fim de ampliarmos mais o horizonte de nossas reflexotildees

Fundamental para a compreensatildeo dos debates em pauta bem como do Decreto definitivo do Conciacutelio parece-me ser o Discurso do Cardeal Legado Cervini datado de 18 de fevereiro de 1546 [41] cujas linhas gerais se patenteiam tanto no Decreto como em outras decisotildees conciliares26

Tem o discurso de Cervini o meacuterito de mostrar as linhas diretrizes do Decreto de maneira mais clara do que aparecem estas na uacuteltima redaccedilatildeo do mesmo onde elas se diluem muito devido a uma seacuterie de variadas implicaccedilotildees Eacute ainda de grande auxiacutelio para o entendimento do referido discurso uma carta dos Cardeais Legados ao Cardeal Alexandre Farnese de 28 de fevereiro de 1546 Esta carta revela conteuacutedo idecircntico ndash eacute certamente inspirada pelo mesmo Cervini ndash e oferece ainda alguns outros

25 Eacute lamentaacutevel que Geiselmann em sua anaacutelise da contribuiccedilatildeo medieval sobre este assunto se tenha apoiado apenas em argumentos de segunda matildeo portanto de valor histoacuterico discutiacutevel Queira o leitor ver minhas observaccedilotildees a este respeito in Theol-prakt Quartalschrift 1963 p224-227 As novas (e temperamentais) invectivas de Geiselmann in TThQu 144 (1964) p 31-69 em nada modificaram a minha posiccedilatildeo de vez que natildeo trazem nenhuma contribuiccedilatildeo vaacutelida ao assunto Precioso ao contraacuterio eacute o trabalho de Y CONGAR La Tradition et les traditionshellip Essai historique Paris 1960 Importante eacute tambeacutem a obra de J BEUMER Die muumlndliche uumlberlieferung als Glaubensquelle Friburgo 1962 A respeito do Conciacutelio de Trento cf sobretudo aleacutem do estudo fundamental de JEDIN o artigo de E ORTIGUES Escriture et Traditions apostoliques au Concilie de Trente in RSR 36 (1949) p 271-299 K D SCHMIDT Studien zur Geschichate des Konzilis von Trient Tubinga 1925 p 152-209 26 O discurso nos foi transmitido em duas redaccedilotildees A primeira mais curta encontra-se nas Atas do Conciacutelio in CT V 11 A segunda faz parte do diaacuterio de Massarelli (Diarium III) in CT I p484 Quanto ao conteuacutedo os dois textos se completam Na anaacutelise que aqui ensaiamos as duas versotildees satildeo comparadas entre si de modo a fazerem um todo Sobre a posiccedilatildeo de Cervini no Conciacutelio cf H JEDIN Geschichte des Konzils von Trient II Friburgo 1957 p38-40 A descriccedilatildeo do desenrolar histoacuterico dos debates acha-se em JEDIN op cit p42-82 e supomo-la conhecida do leitor de vez que serve de base para a anaacutelise teoloacutegica do Decreto tridentino

esclarecimentos Cervini sustenta no citado discurso que existem trecircs princiacutepios e fundamentos de nossa feacute

1) Os livros sagrados escritos sob a inspiraccedilatildeo do Espiacuterito Santo 2) O Evangelho que Nosso Senhor natildeo escreveu mas ensinou oralmente e

implantou nos coraccedilotildees Parte do Evangelho foi escrita mais tarde pelos Evangelistas enquanto muita coisa foi simplesmente confiada aos coraccedilotildees dos fieacuteis

3) Porque o Filho de Deus natildeo ia permanecer sempre entre noacutes enviou ele o Espiacuterito Santo que haveria de revelar os misteacuterios no iacutentimo dos fieacuteis e de ensinar agrave Igreja toda a verdade ateacute ao fim dos tempos27

[43] Numa segunda redaccedilatildeo mais detalhada do discurso estas mesmas ideacuteias satildeo

desenvolvidas mais amplamente Aiacute lemos que a Revelaccedilatildeo se apresentou de modo diferente em diversos tempos

1) Nos Patriarcas cuja feacute eacute atestada na Escritura a que chamamos de Antigo Testamento

2) Em Jesus Cristo que implantou o seu Evangelho natildeo por escrito mas oralmente natildeo in charta mas in corde Das coisas que emanaram de Cristo (quaelig a Cristo emanarunt) algumas foram escritas outras permaneceram nos coraccedilotildees dos homens (quaeligdam in cordibus hominum relicta fuerunt) Todo o Evangelho de Cristo que consta desta dupla modalidade forma (tendo como primeiro princiacutepio o Antigo Testamento) o secundum prindipium fidei nostraelig

3) Daiacute surge o terceiro princiacutepio (tertium autem) porque o Filho de Deus natildeo iria permanecer sempre entre noacutes enviou ele ao mundo o Espiacuterito Santo que haveria de explicar os misteacuterios de Deus e tudo o que fosse ainda obscuro para os homens28 De modo semelhante a citada carta ao Cardeal Farnese fala de dois passos (due

passi) Um eacute que a Revelaccedilatildeo de Nosso Senhor natildeo foi totalmente escrita mas permaneceu em parte contida nos coraccedilotildees dos homens e na Tradiccedilatildeo da Igreja O outro [43] passo consiste em confirmar ldquoquello che egrave suggerito lo Spirito Santo in la Chiesa maxime medianti i concilij doppo lAscensione in cielo del Signorerdquo29

Notamos logo que contrariamente ao que esperaacutevamos natildeo dois mas trecircs satildeo os princiacutepios apontados a Escritura o Evangelho e a Revelaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

27 CT V 11 helliptria esse principia et fundamenta nostrae fidei primum libros sacros secundum esse evangelium quod Christus Dominus Noster non scripsit sed ore docuit et in cordibus illud plantavit cujus evangelii nonnulla evangelistaelig scripto mandarunt multa quoque relicta sunt in cordibus hominum Tertium quia non semper filius Dei corporaliter nobiscum mansurus erat misit Spiritum Sanctum qui in cordibus fidelium secreta Dei revelaret et ecclesiam quotidie et usque consummationem saeligculi doceret omnem veritatem et si quid in mentibus hominum dubii occurrisset declararet 28 CT I 484 Digna de nota eacute ainda a foacutermula contida na paacutegina 48514-16 nihil tamen inter scripturas sacras et apostolicas traditianes differt illaelig enim scriptaelig hae per insinuationem habentur utraeque tamen a Spiritu Sancto eodem modo emanataelig Confira-se com CT V 11 19 ab eodem Spiritu et illos (scilicet libros) et istas (scilicet traditiones) descendisse 29 CT X 373

Eacute portanto necessaacuterio observar que sob o termo ldquoEscriturardquo se entende o Antigo Testamento e que aleacutem deste (que eacute Escritura em sentido proacuteprio) aparece como segundo princiacutepio o Evangelho apresentaccedilatildeo do Cristo-evento O Evangelho por sua vez abrange o que estaacute escrito e o que natildeo estaacute escrito mas sim apenas insculpido no coraccedilatildeo dos crentes Deste modo o segundo princiacutepio representa uma vantagem pneumaacutetica sobre o que estaacute escrito o Evangelho eacute nesta concepccedilatildeo algo diferente da letra (Escritura) e soacute em parte vem escrito (Isto natildeo deve ser entendido no sentido de divisatildeo das verdades da feacute fenocircmeno denunciado ldquocom horrorrdquo por Geiselmann Ao contraacuterio Entenda-se apenas no sentido de diferente grau de dignidade no modo de exprimir-se) Em rigor o Evangelho como tal soacute pode ser escrito em parte se considerarmos a sua essecircncia

Finalmente ndash o que eacute muito de se admirar ndash segue-se como terceiro princiacutepio a accedilatildeo visiacutevel do Espiacuterito Santo em todo o tempo da Igreja

Admitimos portanto que o que noacutes geralmente chamamos de Tradiccedilatildeo natildeo aparece aqui como um soacute princiacutepio Biparte-se antes em dois princiacutepios intimamente ligados o ldquoEvangelhordquo princiacutepio apenas em parte identificaacutevel com a Escritura e a accedilatildeo do Espiacuterito Santo no tempo da Igreja Ademais podemos observar que a Escritura do Novo Testamento natildeo aparece como um princiacutepio ao lado da Revelaccedilatildeo apostoacutelica Muito menos como [44] eacute o nosso caso se apresenta a Escritura neotestamentaacuteria juntamente com a veterotestamentaacuteria como uma grandeza uacutenica uma ldquoEscriturardquo soacute agrave qual se poderia contrapor a ldquoTradiccedilatildeordquo como uma segunda grandeza O Novo Testamento em seu conjunto aparece como um segundo e mais amplo princiacutepio ou seja o Evangelho que como tal se opotildee de um lado ao Antigo Testamento e de outro agrave projeccedilatildeo histoacuterica do tempo da Igreja Sua unidade interna eacute evidentemente mais forte e importante do que a sua divisatildeo em escrito e natildeo-escrito Assim o Evangelho como um soacute princiacutepio pode ser contraposto ao Antigo Testamento a despeito desta dupla formalidade A impossibilidade de se representar o Novo Testamento como Escritura impossibilidade esta demonstrada por Satildeo Paulo e pelos primeiros seacuteculos cristatildeos eacute aqui claramente revelada

Ainda uma observaccedilatildeo relativa ao texto a que vimos nos referindo Em nenhum dos dois pontos por noacutes citados no estudo da Tradiccedilatildeo isto eacute nem no elemento contido no primeiro nem no apresentado no terceiro princiacutepio figura a Tradiccedilatildeo como verbal Em ambos os casos ao contraacuterio trata-se mais da Tradiccedilatildeo real com prevalecircncia da realidade sobre as palavras que a atestam Este fato que estaacute claro no terceiro princiacutepio o pneumatoloacutegico vale tambeacutem em relaccedilatildeo agrave implantaccedilatildeo do Evangelho nos coraccedilotildees contida no segundo princiacutepio Tal implantaccedilatildeo vai muito aleacutem do que se encontra expresso na letra da Escritura

Que papel tenham estas ideacuteias exercido nas discussotildees do Conciacutelio pode-se concluir tambeacutem das auctoritates citadas por Cervini entre as quais figuram Jo 16 12 (hellipSpiritus Sanctus suggerethellip) e Fl 3 15 (Quicumque perfecti sumus haeligc sentiamus et si quid aliter sentitis haeligc quoque Deus vobis revelabit) Ambos estes textos satildeo de teor acentuadamente [45] pneumatoloacutegico-presencial30 Que tais ideacuteias natildeo eram

30 CT V 14 e 15 Um exame profundo das auctoritates quer da Escritura quer entre os Santos Padres que neste particular satildeo favoraacuteveis agrave Tradiccedilatildeo seria em si conclusivo para a elaboraccedilatildeo do conceito

estranhas aos Padres conciliares deduz-se ainda de uma seacuterie de outras referecircncias Assim ouvimos o Bispo de Aqui dizer que aleacutem da Sagrada Escritura existe muita coisa na Igreja de Deus que vindo dos Apoacutestolos e passando de geraccedilatildeo a geraccedilatildeo chegou ateacute noacutes assim como muitas outras quaelig etsi scripta Apostoli nobis non reliquerunt per Spiritus Sancti revelationem nobis (tradita) sunt (Tradita estaacute aqui por revelata) 31 Partindo daiacute se poderia descrever a Tradiccedilatildeo justamente como o componente pneumatoloacutegico do Cristo-evento b) A influecircncia do esquema de Cervini em diversas decisotildees conciliares

Eacute verdade que esta concepccedilatildeo tripartida aparece muito atenuada no Decreto

oficial sobre a Tradiccedilatildeo Que poreacutem em suas linhas fundamentais natildeo tenha ela sido de modo nenhum [46] abandonada mostram-no duas outras passagens nas quais o Conciacutelio faz uso por assim dizer in actu das ideacuteias aqui expressas32 Assim na Introduccedilatildeo ao Decreto sobre a Eucaristia (Denz 873) se lecirc Sacrosancta Synodus sanamhellipdoctrinam tradens quam semper catholica Ecclesia ab ipso Jesu Christo Domino Nostro et eius apostolis erudita atque a Spiritu Sancto illi omnem veritatem in dies suggerente (Jo 1416) edocta retinuithellip

Aqui a accedilatildeo proacutepria do Conciacutelio eacute descrita como tradere e a este tradere eacute atribuiacutedo um duplo fundamento De um lado o ensino de Jesus e dos Apoacutestolos (Note-se que este ponto corresponde ao Evangelho segundo a concepccedilatildeo de Cervini E de certo modo tambeacutem pela citaccedilatildeo de Jesus e dos Apoacutestolos se reconhece a dupla modalidade do Evangelho como escrito e como inserido nos coraccedilotildees) De outro lado o ensino dado pelo Espiacuterito Santo que conduz agrave verdade in dies isto eacute no de correr do tempo futuro

O outro texto que pode ser aduzido aqui como prova do que afirmamos encontra-se no Preacircmbulo do Decreto sobre o Purgatoacuterio (Denz 983) Aiacute se lecirc hellipCatholica Ecclesia Spiritu Sancto edocta ex Sacris Litteris et antiqua Patrum traditione in sacris Conciliis et novissime in hac Synodo docuerit A descriccedilatildeo da accedilatildeo proacutepria do

aqui exposto H HOLSTEIN procurou fazer o cotejo destas auctoritates e fecirc-lo de modo admiraacutevel em seu artigo La Tradition dapregraves le Concile de Trente (RSR 47 1959 p367-390 e em particular para o caso em questatildeo a p375) Ele encontra nos textos estudados duas linhas de tendecircncias A linha de Santo Irineu para a qual o testemunho dos Apoacutestolos eacute o de sua personalidade de sua vida e de seu ofiacutecio Aleacutem desta o grupo composto de Tertuliano Cipriano Basiacutelio e Agostinho forma uma corrente que se poderia denominar ldquocerimonialrdquo Oriacutegenes se enquadra em ambos os grupos Existe entre os autores estudados uma seacuterie de textos que se referem agraves observationes consuetudines institutiones e que levam a entender-se a Tradiccedilatildeo neste mesmo sentido Aiacute se vecircem tambeacutem textos que sublinham o aspecto natildeo-escrito do Evangelho enquanto insculpido no coraccedilatildeo dos fieacuteis e aleacutem disso textos que apontam a Igreja como o ldquolugarrdquo da verdade cristatilde 31 CT I 483 (18 de fevereiro de 1546) Em 26 de fevereiro (CT V 18) encontramos Cervini a tratar de novo deste assunto Cf tambeacutem um pronunciamento do Bispo de Fano (CT V 10) nestes termos Cum jam receperimus Scripturas Sacras necessario recipiendaelig sunt traditiones quaelig ab eodem Spiritu Sancto quo scripturaelig dictataelig sunthellip 32 Disto me adverti pela primeira vez atraveacutes de um estudo realizado sob a minha orientaccedilatildeo por CHR LIMBACR a quem sou devedor de muitas informaccedilotildees bibliograacuteficas

Conciacutelio como tradere encontra-se ainda nas declaraccedilotildees sobre o Sacramento da Extrema-Unccedilatildeo (Denz 910)

Finalmente a triacuteplice divisatildeo deixa-se insinuar nas entrelinhas do Decreto sobre a Tradiccedilatildeo embora obscurecida e diluiacuteda por uma seacuterie de acreacutescimos e citaccedilotildees a ele adicionados por outros motivos O Decreto da Tradiccedilatildeo com efeito [47]

1) Fala do Evangelho prometido pelos Profetas na Escritura e refere-se a esta em sentido estrito quer antes quer depois do Antigo Testamento

2) Fala da promulgaccedilatildeo por Cristo do Evangelho que foi transmitido pelos Apoacutestolos sob dupla forma oral e escrita Desta maneira o que natildeo ocorre no exemplo de Cervini aparece aqui antes de tudo o componente pneumatoloacutegico unido com o componente apostoacutelico a ponto de se distinguirem duas modalidades de Tradiccedilatildeo apostoacutelica a que remonta a Cristo e a que remonta ao envio do Espiacuterito Santo Pode-se assim estabelecer que em oposiccedilatildeo ao esquema de Cervini haacute um certo processo de historicizaccedilatildeo que salienta a relaccedilatildeo com o comeccedilo histoacuterico e igualmente parece deslocar o acento da tradiccedilatildeo real para a verbal

3) No epiacutelogo desta parte do Decreto da Tradiccedilatildeo que vimos analisando de novo eacute considerada a ideacuteia da Sagrada Escritura O conceito de Tradiccedilatildeo eacute entatildeo formulado em definitivo e descrito como vel oretenus a Christo vel a Spiritu Sancto dictatas et continua successione in Ecclesia catholica conservatas A referecircncia aos Apoacutestolos eacute omitida Pode-se na verdade considerar tudo isto como uma volta ao que foi dito antes Evidentemente a tradiccedilatildeo ditada pelos Apoacutestolos eacute citada de novo (A expressatildeo continua successione insinua-o) Contudo permanece sempre ainda certa indeterminaccedilatildeo ficando aberta a possibilidade de se encontrar aqui o vestiacutegio do terceiro componente de Cervini o princiacutepio pneumaacutetico propriamente dito Eacute tambeacutem claro que esta ideacuteia eacute discreta sendo adotada uma posiccedilatildeo mais acentuadamente histoacuterica Se agora lanccedilarmos os olhos sobre o que vimos considerando ateacute aqui surgiratildeo

inevitavelmente perguntas qual eacute realmente o sentido proacuteprio da concepccedilatildeo pneumatoloacutegica Como poderia ser perfeitamente entendida a ideacuteia a noacutes estranha de uma revelatio prolongada no tempo em face da unicidade e do caraacuteter [48] histoacuterico da Revelaccedilatildeo que evidentemente era conhecido tanto de Cervini quanto dos Santos Padres e teoacutelogos medievais33

Antes de examinarmos isto devemos esclarecer rapidamente os principais motivos que inspiraram o Decreto tridentino sobre a Escritura e a Tradiccedilatildeo deixando nele um tanto encoberta a concepccedilatildeo pessoal de Cervini Que opiniotildees de teoacutelogos teratildeo intervindo aqui chegando a ser em parte impressas no texto definitivo que resultou do cotejo de muitos pronunciamentos diversos Uma exposiccedilatildeo detalhada deste ponto exorbitaria do acircmbito de nossa anaacutelise Contentemo-nos com umas poucas observaccedilotildees sumaacuterias 33 Sobre este assunto tentei fazer um breve comentaacuterio no meu trabalho ldquoOffenbarung-Schrift-Uberlieferungrdquo in TThZ 67 (1958) p13-27 Cf J BEUMER ldquoDer theoretische Beitrag der Frnhscholastik zum Problem des Dogmenfortschrittsrdquo in ZkTh 72 (1952) p205-226 J de CHELLINCK Pour lrsquohistoire du mot ldquorevelarerdquo in RSR 6 (1916) p149-157

2 Relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a vida da Igreja

em diversas passagens do debate tridentino

Uma primeira seacuterie de motivos entre os quais se compreendem diversos pronunciamentos agraves vezes muito contrastantes em seu aparato exterior patenteia-se na ideacuteia de tradiccedilotildees expressa no Decreto de duas maneiras a) - per manus traditaelig ad nos usque pervenerunt b) - continua successione in Ecclesia catholico conservatas

O que se ocultaraacute sob estas duas foacutermulas que o historiador de hoje tem dificuldades em aceitar justamente por causa do historicismo nelas impliacutecito Podemos dizer que um decisivo papel exerceu aqui o pensamento que sempre aparecia nos debates a saber que as tradiccedilotildees satildeo variaacuteveis que muitas delas foram abolidas pelos Apoacutestolos e que por outro lado se [49] introduziram tradiccedilotildees eclesiaacutesticas que natildeo mais seriam abolidas34 Esta ideacuteia de Tradiccedilatildeo de certo modo se torna clara no tratado escrito sobre o mesmo assunto por Seripando para uso dos Padres Conciliares Seripando fala das Tradiccedilotildees escritas inseridas na Escritura como as claacuteusulas de Tiago o costume de as mulheres se cobrirem com um veacuteu a legislaccedilatildeo sobre o matrimocircnio contida em 1Cor 7 etc E o autor adverte que estas praacuteticas foram abolidas Isto porque embora associadas agrave palavra de Deus na Escritura dela ldquomuito diferemrdquo pois a palavra divina [50] de modo nenhum poderia ser abolida A estas tradiccedilotildees

34 Cabe aqui aduzir uma nova intervenccedilatildeo de Cervini datada de 26 de fevereiro de 1546 (CT I 33 e V 18) onde ele diz que nem todas as tradiccedilotildees procedentes dos Apoacutestolos devem ser conservadas mas somente as que ab Ecclesia receptaelig ad nos usque pervenerunt (V 18) Esta afirmaccedilatildeo anterior agrave formulaccedilatildeo dogmaacutetica feita pelo Concilio deve igualmente ser tida na conta de um autecircntico comentaacuterio do Decreto Aiacute se acentua como condiccedilatildeo essencial das tradiccedilotildees a receptio ecclesiaelig Vem ainda referida uma intervenccedilatildeo do Bispo de Bertinoro em data de 23 de marccedilo (I p 523) na qual ele sublinha que as tradiccedilotildees escritas por vezes foram mudadas Jaacute entre as natildeo-escritas umas foram mudadas e outras natildeo como por exemplo o rito de adicionar aacutegua ao vinho a Crisma a confissatildeo auricular O Bispo de Bertinoro acrescenta que por outro lado alguns pontos existem que permaneceram inteiramente inalterados tais como a crenccedila no descensus ad inferos na virgindade perpeacutetua de Maria a substituiccedilatildeo da observacircncia do saacutebado pela do domingo Temos depois um pronunciamento do Bispo de Bitonto datado de 27 de marccedilo (I 39) Este bispo era de parecer que algumas coisas foram transmitidas pelos Apoacutestolos com a finalidade de serem perpetuamente conservadas (como pertencentes ao depoacutesito da feacute) outras caiacuteram em desuso (como as claacuteusulas de Tiago) e outras enfim foram apenas aconselhadas Assim mesmo na Escritura algumas coisas haacute que foram escritas mas natildeo recebidas em uso por serem mateacuteria de mero conselho Por exemplo ldquose algueacutem te pedir a tuacutenica daacute-lhe tambeacutem o paacutelio se algueacutem te esbofetear numa face oferece-lhe tambeacutem a outrardquo Sem duacutevida excelente ilustraccedilatildeo do sermatildeo da montanha Finalmente consideraccedilotildees idecircnticas podemos encontrar na obra citada de LEJAY Eis outra amostra tirada do discurso de 23 de fevereiro (CT V 13) Nam illaelig (scil traditiones) quaelig ad fidem pertinent eadem sunt recipiendaelig auctoritate qua recipitur evangelium alia autem non ita eum earum plurimaelig immutataelig fuerint ut de bigamis de esu sanguinis et similia De modo semelhante aliaacutes fala tambeacutem Bonuccio (I 525 a 23 de marccedilo de 1546 ecclesia traditiones apostolorum quandoque mutavit verbum autem Dei nunquam mutavit neque mutare potest

Seripando opotildee as natildeo referidas na Biacuteblia e que ora satildeo apostoacutelicas ou oriundas de Conciacutelios universais e aceitas por toda a Igreja ora satildeo particulares e muito variaacuteveis35

Este texto nos leva a uma surpreendente conclusatildeo para Seripando e muitos outros Padres tridentinos36existem tradiccedilotildees na Escritura ldquoTradiccedilatildeordquo natildeo significa o natildeo-escrito Existe quer dentro da Escritura quer fora dela Isto nos conduz a outra pergunta em que consiste para os referidos Padres a essecircncia da tradiccedilatildeo se o que a constitui natildeo eacute o fato de natildeo ser escrita37 Em outros termos como pode a tradiccedilatildeo ser definida positivamente se ela natildeo pode ser suficientemente determinada pela ideacuteia negativa de algo natildeo-escrito

Haacute uma seacuterie de respostas para esta pergunta O proacuteprio Seripando daacute a seguinte definiccedilatildeo Traditiones hoc est Apostolorum seu sanctorum Patrum sanctae et salutares constitutiones38 Mais clara ainda eacute a afirmaccedilatildeo de Cervini citada por Massarelli A objeccedilatildeo do Bispo de Chioggia que aduzia a opiniatildeo de Agostinho de que tudo o que eacute necessaacuterio para a salvaccedilatildeo estava escrito na Biacuteblia respondia Cervini da seguinte maneira Verba illa (isto eacute de Santo Agostinho) formaliter intelligi debent scilicet ad fidem accipiendam ut salvi fiamus Quo vero ad mores et christianam vitam instituendam certo non omnia scripta sunt

[51] E de novo recorre agraves provas tiradas de Jo 1526 e 1426 E indica o princiacutepio pneumatoloacutegico39 O que eacute mais importante eacute que a Tradiccedilatildeo se refere agrave institutio vitaelig agrave presenccedila atuante da Palavra revelada na existecircncia cristatilde Tradiccedilatildeo eacute noutros termos a eficaacutecia da palavra de Deus Sem ela a palavra ficaria esteacuteril 35 Seripando De traditionibus (fevereiro ou marccedilo de 1546) CT XII p517-521 e principalmente a p 521 As expressotildees desta uacuteltima paacutegina chocam-se com a ideacuteia de Cervini sobre a receptio ecclesiaelig 36 Cf o texto citado na nota 11 37 No texto definitivo do Decreto esta ideacuteia natildeo aparece mais Aqui poreacutem com esta primeira designaccedilatildeo expliacutecita da Tradiccedilatildeo vem expressamente acentuado o contraste entre in libris scriptis et sine scripto traditionibus Na segunda redaccedilatildeo o sentido expliacutecito da palavra Tradiccedilatildeo natildeo eacute tatildeo exclusivo Contudo apresenta igual matiz ao se confrontarem as expressotildees omnes libroshellipnec non traditiones ipsas Portanto a ideacuteia positiva da Tradiccedilatildeo que serve de base a esta anaacutelise natildeo deixou de influenciar na redaccedilatildeo do Decreto 38 CT XII 517 39 CT I 494 (26 de fevereiro de 1546) A citada palavra de Santo Agostinho teve o seu papel a desempenhar na discussatildeo em curso Seripando por exemplo a ela se referiu (De traditionibus CT XII 521 47-53) Pensandum denique ne in traditionibus externis vera religio et salutis spes statuatur de quibus Augustinus Omnia quaelig pertinent ad veram religionem quaeligrendam et tenendam divina Scriptura non acuit Conceda-se que nem tudo foi escrito (veja-se Jo 2125) Todavia electa sunt autem quaelig scriberentur quaelig saluti credentium sufficere videbantur Mais do que nos debates do tridentino encontramos aqui um verdadeiro postulado dos Reformadores ldquonatildeo adotar costumes exteriores mas buscar os meios definitivos de salvaccedilatildeo na palavra da Escriturardquo A ldquosuficiecircnciardquo da Escritura de que aqui se fala eacute na verdade algo diverso da suficiecircncia material da mesma Escritura defendida por Geiselmann em sentido muito mais radical Infelizmente ainda natildeo se quis levar na devida consideraccedilatildeo o texto de Santo Agostinho (CT I 494 sugere De doctrina christiana II 9 e De pecc mero et rem II 59) Muito apropriadas nesta ordem de ideacuteias satildeo as observaccedilotildees de H SCHAUF ldquoSchrift und Traditionrdquo in Antonianum 39 (1964) p200-209 feitas no chamado Encontro de Duumlsseldorf Nos textos citados por Schauf com base em Agostinho eacute afirmada a suficiecircncia da Escritura para a salvaccedilatildeo Eacute contudo contestada a sua suficiecircncia para a Igreja em geral De fato esta alternativa parece muito mais vaacutelida e fundamental agrave luz dos postulados dos Reformadores do que a alternativa entre a suficiecircncia ou insuficiecircncia material da Escritura

Na mesma linha de ideacuteias seguem-se duas outras seacuteries de pronunciamentos Vimos na introduccedilatildeo agrave parte anterior que a discussatildeo dogmaacutetica da ideacuteia de

Tradiccedilatildeo foi em parte prejudicada pela questatildeo do meacutetodo a seguir no Conciacutelio dever-se-ia abordar primeiro a reformatio a reforma praacutetica da Igreja como queria o ldquoKaiserrdquo Ou primeiro discutir a questatildeo dogmaacutetica como preferia o Papa40

[52] Este problema do meacutetodo embora resolvido no debate que entatildeo surgiu natildeo afetou diretamente a questatildeo da Tradiccedilatildeo como tal Mas como de fato estas duas questotildees ficaram ligadas entre si daiacute resultou que muitos oradores transformaram a questatildeo do meacutetodo (se se deveria falar dos abusos ou da Tradiccedilatildeo) em parte de sua argumentaccedilatildeo em torno do assunto em pauta41 O problema abusus e o problema Traditio ficaram de tal maneira associados na ocasiatildeo que pareciam formar no fundo um soacute assunto Por isso os oradores ora falavam em sentido positivo ora se pronunciavam em sentido negativo Isto correspondia tambeacutem ao propoacutesito reformista do Conciacutelio as traditiones representavam os abusus aos quais a Igreja se opunha Os Padres estavam cocircnscios de que condenar as traditiones era condenar Os usus ecclesiaelig o modo como a Igreja vivia a sua vida naquela eacutepoca

A outra seacuterie de pronunciamentos que se inclinavam ao mesmo sentido encontramo-la nas proposiccedilotildees que a auctoritas da Igreja apresenta como definitivas indicando uma iacutentima relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a institutio christiana 42

[53] Podemos agora retomar ao nosso ponto de partida e dar resposta agrave pergunta que propriamente significa a foacutermula ad nos usque pervenerunt Objetivamente natildeo se trata aqui de um historicismo que a foacutermula parece expressar Ao contraacuterio Trata-se da fidelidade perseverante da Igreja agrave institutio vitaelig christianaelig da legiacutetima forma de vida cristatilde em concreto no tempo presente da Igreja da institutio christiana que coloca a Escritura em primeiro lugar e que como tal isto eacute como vida decorrente da Escritura eacute fundamentalmente apostoacutelica embora tambeacutem sujeita a mudanccedilas como tudo o que eacute vivo

3 A Tradiccedilatildeo e o dogma eclesiaacutestico

40 Sobre o debate em torno da questatildeo do meacutetodo cf mais uma vez JEDIN op cit p9-82 e outras 41 Assim jaacute no discurso de Cervini antes analisado (CT I 484) no qual ele recorda o dilema do Conciacutelio se nos voltarmos contra as tradiccedilotildees ficaratildeo admirados os Padres Conciliares quasi reformationem fugiamus si ipsam reformationem sumimus iterum objicient traditiones relinquendas non esse Idecircntica era a situaccedilatildeo em que se encontrava o Bispo de Astorga nas duas intervenccedilotildees que fez no dia 23 de fevereiro de 1546 (CT V 13 e 19) segundo Seripando (I 484) helliptraditiones prius pertractandas consulit tantam enim conformitatem abusus qui ex sacris libris descendunt cum iis qui a traditionibus orti sunt habent ut sacris libris et traditionibus absolutis duo illa abusuum genera simul pertractari valeant Segundo Bonuccio (I 484) antes de tudo dever-se-ia tratar das Sagradas Escrituras dos cacircnones apostoacutelicos dos Conciacutelios gerais e das decretais pontifiacutecias Hisque ilusceptis ad abusus ex eisdem dependentes devenire 42 Assim principalmente de acordo com Afonso de Castro (CT I 484) Quoniam ultra traditiones apostolicas ecclesiae auctoritatem habemus quaelig ecclesiaelig auctoritas tonta apud nos est ut aliqui eam maioris roboris quam sacros libros esse sentiant Cf igualmente CT I 491 45 Na mesma linha pode-se ver uma seacuterie de pronunciamentos na citada obra de LEJAY Cf CT XII 524 (Tratado De traditionibus ecclesiaelig fevereiro ou marccedilo de 1546)

Uma segunda seacuterie de motivos eacute expressa no Decreto pela foacutermula traditiones tum ad fidem tum ad mores pertinentes Se como vimos a ideacuteia de Tradiccedilatildeo aparece muito limitada naquilo que os Padres conciliares chamam consuetudines observationes institutiones por outro lado o Procurador do Cardeal de Augsburgo Claudio Lejay SJ se fez o porta-voz de uma expressatildeo que em oposiccedilatildeo agraves traditiones caeligremoniales estabeleceu justamente o sentido da tradiccedilatildeo contida na feacute Seu tratado sobre a Tradiccedilatildeo composto para uso dos Padres conciliares inclui tambeacutem a foacutermula que foi adotada pelo Conciacutelio Aiacute se diz Denique multas veritates tum ad fidem tum ad mores pertinentes Ecclesia novit quas Scriptura aperte et expresse non continet Ele cita como exemplos as palavras persona essentia trinitas no Tratado da Santiacutessima Trindade consubstantialitas na Cristologia do Logos duas naturezas uma soacute Pessoa referentes ao dogma definido pelo Conciacutelio de Calcedocircnia E ainda Cristo Filho uacutenico de Maria duas vontades na uacutenica Pessoa de Cristo uma alma racional aleacutem do espiacuterito divino em Cristo Ana matildee de Maria o costume de fazer sinais da cruz a santificaccedilatildeo do domingo a maneira de rezar com face voltada [54] para o Oriente tudo isto ideacuteias e fatos da tradiccedilatildeo conciliar e da piedade cristatilde43

Cervini que aprovou o discurso de Lejay de 23 de fevereiro de 154644 pocircde dificilmente conciliar esta posiccedilatildeo com a sua expressa na jaacute citada carta ao Cardeal Farnese onde como vimos ele diz que o Espiacuterito Santo falou na Igreja e depois da Ascensatildeo do Senhor fala ainda maxime medianti i concilii45 Ele aiacute viu publicamente sublinhado o fato de que aquele ldquomaisrdquo que a Igreja viva representa em relaccedilatildeo agrave palavra meramente escrita natildeo se referia e natildeo se refere apenas agrave vita instituenda ou como ele prefere agrave caeligremonialia Refere-se tambeacutem agrave essentialia fidei que antes de tudo plenamente se expressam na Tradiccedilatildeo Tambeacutem aqui como se vecirc o interesse dominante natildeo estaacute na apresentaccedilatildeo historicista do assunto a partir do iniacutecio da Igreja mas na ideacuteia de que a influecircncia da Tradiccedilatildeo sobretudo atraveacutes da praxe conciliar eacute de fundamental importacircncia para a feacute para a doutrina crida e natildeo apenas para a piedade viva ou a caeligremonialia

4 O sentido do Decreto tridentino

Se recapitularmos o que ateacute agora dissemos veremos que no conjunto facilmente se podem reconhecer trecircs diferentes concepccedilotildees teoloacutegicas unidas entre si no texto definitivo do Decreto sobre a Tradiccedilatildeo Unidas mas natildeo equiparadas umas agraves outras Pelo contraacuterio apesar de sua grande diferenccedila foram elas apenas [55] mais ou menos justapostas e de novo por forccedila de uma tendecircncia comum relacionadas entre si

1 A concepccedilatildeo de Cervini que designamos como pneumatoloacutegica Com sua doutrina sobre os trecircs principia fidei insiste ele no caraacuteter dinacircmico do Cristo-evento

43 CT XII 523 LEJAY baseia-se evidentemente em listas de tradiccedilotildees confeccionadas naquele tempo (Cf ECK DRIEDO CANO BOTO NOGAROLA) Cf a este respeito Y CONGAR ldquoTraditions apostoliques non eacutecrites et suffisance de lEscrituresrdquo in Istina 6 (1959) p219-306 e principalmente a paacutegina 289 44 CT V 14 45 CT X 373

presente na Igreja Entende assim a Tradiccedilatildeo primariamente como a realidade espiritual da institutio vitaelig christianaelig

2 A concepccedilatildeo que podemos chamar de cerimonial Esta entende a Tradiccedilatildeo essencialmente como a seacuterie de consuetudines existentes ao lado da feacute como os usus ecclesiaelig que os Reformadores falsamente pretendem abolir como abusus Esta concepccedilatildeo chega a condenar a dignidade e Antiguumlidade apostoacutelica das tradiccedilotildees Sua ideacuteia eacute limitada pelo ad nos usque pervenerunt que inclui possibilidade de variar da parte das tradiccedilotildees donde a necessidade de reduccedilotildees Com os termos pervenire e conservare a recepccedilatildeo por parte da Igreja eacute considerada criteacuterio adicional ao lado da Antiguumlidade

3 A concepccedilatildeo que talvez possamos denominar dogmaacutetica Em oposiccedilatildeo agrave fixidez da ideacuteia de Tradiccedilatildeo reduzida agrave consuetudo salienta esta terceira hipoacutetese a extensatildeo do fenocircmeno Tradiccedilatildeo tambeacutem ao acircmbito da fides

Estas trecircs concepccedilotildees deram forma ao texto do Decreto de tal modo que as suas

linhas mestras derivam de Cervini e todo o texto deve ser entendido agrave luz de suas ideacuteias Contudo em duas passagens isto eacute no pervenerunt e no conservatas haacute influecircncia da segunda concepccedilatildeo enquanto no tum ad fidem tum ad mores haacute influecircncia da terceira

Em face destas trecircs concepccedilotildees das quais na realidade existem diversas variantes que tomadas em conjunto satildeo a expressatildeo das ideacuteias dominantes adotadas aparecem as teses de Bonuccio e de Nacchianti tatildeo postas em evidecircncia por Geiselmann como sentenccedilas contraacuterias De fato o parecer de Bonuccio claramente [56] se opotildee agrave segunda concepccedilatildeo (contra a supervalorizaccedilatildeo das consuetudines natildeo per pietatis affectus) ao passo que Nacchianti se levanta antes contra a terceira posiccedilatildeo e salienta a suficiecircncia da feacute recebida por meio da Escritura46

Seria de notar-se ainda que as concepccedilotildees segunda e terceira tecircm algo em comum Ambas opotildeem agrave visatildeo pneumatoloacutegica de Cervini da salvaccedilatildeo sempre presente uma visatildeo mais historicista relacionada com o prolongamento da salvaccedilatildeo operada uma soacute vez ou seja o ἑφάπαξ Na realidade deve-se dizer que embora de um lado tanto a visatildeo presencial de Cervini como tambeacutem a visatildeo historicista do outro grupo se consideradas isoladamente cada qual de per si sejam perigosas se natildeo insustentaacuteveis 46 Aliaacutes de acordo com uma informaccedilatildeo de Cervini parece que o Bispo de Chioggia finalmente renunciou agrave sua tese da suficiecircncia da Escritura na qual se inclinava a recusar as tradiccedilotildees Na carta de Cervini ao Cardeal Farnese de 27 de fevereiro de 1546 lemos hellip Chioggia che (quasi quasi) voleva dire queste traditioni essere superflue perorando che tutto quello che era necessario alla salute era scritto et allegando etiam S Agostino sopra lultimo capitulo di S Giovanni a questo proposito Pure per non poter negare che molte cose appartenenti almeno alli sacramenti non ci fussero venute ex tra ditione et per consequente che non tutte le cose necessarie alia nostra salute erano scritte poiche ebbe fatte molte distintioni concluse che ancor lui accettava queste ldquoche in la chiesa fusse qualque traditione apostolica non scrittardquo (et con queste parole diceva che se ne facesse il decreto) credo che molti sono restati scandalizati di lui (CT X Nr 315 paacutegs 399 411) Cf tambeacutem CT I 494 nota 9 e 495 nota 2 CT V 18 nota 5 e 19 e nota 1 O mesmo protesto que aparece contra Nacchianti manifesta-se tambeacutem na observaccedilatildeo de Massarelli Este chega a chamar aquele de novarum rerum cupidus (1 494 18) e esclarece que reprehensus est a multis (1 494 22) Diante disto eacute de todo destituiacuteda de creacutedito a importacircncia que Geiselmann lhe atribui mesmo se abstrairmos de outras razotildees jaacute conhecidas sobre as quais natildeo precisamos insistir

de outro lado pelo menos tornam possiacutevel uma exata visatildeo do conjunto devido agrave sua muacutetua confluecircncia e limitaccedilatildeo No texto atual estatildeo presentes embora pouco nitidamente ambos os pontos de vista o elemento presencial e o ἑφάπαξ Conveacutem que entendamos assim o texto de modo a considerarmos [57] ambos estes aspectos como essenciais Consequumlentemente reconheceremos que ambos pertencem constitutivamente agrave realidade da vida cristatilde e portanto tambeacutem agravequela parcela do Cristianismo a que damos o nome de Tradiccedilatildeo Estes dois elementos satildeo a presenccedila do Espiacuterito Santo e o seu nexo com o fato singular da salvaccedilatildeo ocorrido uma soacute vez por todas na histoacuteria dos homens

Assim se acharaacute finalmente a resposta agrave pergunta de corno noacutes devemos entender o parecer do Conciacutelio de Trento A primeira e mais importante conclusatildeo parece-me ser o fato de o Conciacutelio ter visto muito claramente o nexo entre Tradiccedilatildeo e Revelaccedilatildeo A seguir elaborou sempre em consonacircncia com a tradiccedilatildeo patriacutestica e medieval um conceito de Revelaccedilatildeo muito menos material do que o que seraacute adotado mais tarde pela teologia dos tempos modernos Somente assim se deve conceber a ideacuteia da Revelaccedilatildeo do Espiacuterito Santo na Igreja Partindo do ramo nitidamente patriacutestico da teologia medieval tatildeo francamente acolhido no discurso de Cervini deveria ser muito menos categoacuterica a opiniatildeo que coloca o teacutermino da Revelaccedilatildeo na morte do uacuteltimo Apoacutestolo Naturalmente esta questatildeo natildeo pode ser aqui estudada com maiores detalhes A sua soluccedilatildeo como entatildeo se apresentava aos teoacutelogos poderia ser hoje impostada apelando-se para as categorias da teologia atual Segundo esta podemos dizer que a Revelaccedilatildeo estaacute encerrada do ponto de vista de seu princiacutepio material Todavia estaacute e continua presente em sua realidade eficaz Noutros termos a Revelaccedilatildeo tem eacute verdade o seu ἑφάπαξ enquanto ela se realizou num determinado dia na Histoacuteria Entretanto ela tem tambeacutem o seu ldquohojerdquo permanente isto eacute o que foi uma vez por todas realizado na feacute da Igreja permanece sempre vivo e operante Assim a feacute cristatilde natildeo se volta apenas para o passado Abrange tambeacutem o presente e o futuro Eacute verdade que a posterior materializaccedilatildeo historicista da ideacuteia de Revelaccedilatildeo aparece jaacute claramente insinuada nos debates tridentinos corno um fato previsto mas ainda [58] natildeo consumado embora talvez se possa dizer que nos textos conciliares ficou definitivamente consagrada a sua aceitaccedilatildeo

Finalmente acrescentemos ainda que com base nos debates do Conciacutelio podemos estabelecer quatro elementos da ideacuteia de Tradiccedilatildeo 1 O aspecto natildeo-escrito da Revelaccedilatildeo ou do Evangelho contido na Biacuteblia e no coraccedilatildeo dos fieacuteis 2 A palavra do Espiacuterito Santo no decorrer de todo o tempo da Igreja

3 A atividade da Igreja nos Conciacutelios 4 A Tradiccedilatildeo lituacutergica e a da vida da Igreja em geral Nestes quatro elementos

que se deve ter sob os olhos pois formam o fundo ideoloacutegico do Decreto expressa-se a realidade uacutenica do tempo presente da Igreja cristatilde Nele estaacute presente todo o passado poacutes-apostoacutelico da Igreja (inclusive o proacuteprio tempo dos apoacutestolos) de modo que toda a sua vida eacute na Sagrada Escritura um elemento central embora natildeo o uacutenico Em suma deve ter ficado claro que o Conciacutelio de Trento a despeito do caraacuteter contrastante e fixo de sua ideacuteia de Revelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeo oferece uma visatildeo muito mais rica destes conceitos do que a que impregnou a mentalidade dos seacuteculos seguintes Justamente por

isso a teologia de hoje pode retirar daiacute novos subsiacutedios novo apoio para suas pesquisas e novas indicaccedilotildees sobre o verdadeiro caminho a seguir

Quadro sinoacutetico do Decreto tridentino sobre a Tradiccedilatildeo

Primeiro princiacutepio conforme Cervini (AT = Escritura)

Sacrosancta œcumenica et generalis Tridentina Synodus in Spiritu Sancto legitime congregata [] hoc sibi perpetuo ante oculos proponens ut sublatis erroribus puritas ipsa EVANGELII in Ecclesia conservetur quod PROMISSUM ANTE PER PROPHETAS IN SCRIPTURIS SANCTIS

Segundo princiacutepio conforme Cervini o Evangelho em parte escrito em parte insculpido nos coraccedilotildees

[59] DOMINUS NOSTER IESUS CHRISTUS DEI FILIUS PROPRIO ORE PRIMUM PROMULGAVIT DEINDE PER SUOS APOSTOLOS TAMQUAM FONTEM OMNIS ET SALUTARIS VERITATIS ET MORUM DISCIPLINAE OMNI CREATURAE PRAEDICARI IUSSIT PERSPICIENSQUE HANC VERITATEM ET DISCIPLINAM CONTINERI IN LIBRIS SCRIPTIS ET SINE SCRIPTO TRADITIONIBUS QUAE AB IPSIUS CHRISTI ORE AB APOSTOLIS ACCEPTAE AUT AB IPSIS APOSTOLIS SPIRITU SANCTO DICTANTE

Seripando Cervini e outros soacute consideram as tradiccedilotildees recebidas pela Igrej (ldquoad nos usquerdquo)

quasi per manus traditae ad nos usque pervenerunt

orthodoxorum Patrum exempla secuta omnes libros tam Veteris quam Novi Testamenti cum utriusque unus Deus sit auctor nec non TRADITIONES IPSAS

Lejay Tradiccedilatildeo contendo natildeo soacute a ldquoconsuetudordquo mas relacionada tambeacutem com a ldquofidesrdquo (foacutermula conciliar)

tum ad fidem tum ad mores pertinentes

Terceiro princiacutepio de Cernini Depois da Ascenccedilatildeo de Cristo o Espiacuterito Santo ensina tambeacutem os misteacuterios de Deus

TAMQUAM VEL ORETENUS A CHRISTO VEL A SPIRITU SANCTO DICTATAS

Seripando Cervini etc soacute satildeo consideradas as coisas recebidas pela Igreja (como acima)

et continua successione in Ecclesia catholica conservatas

Cervini Escritura e Tradiccedilatildeo procedem ambas do mesmo Espiacuterito Santo

pari pietatis affectu ac reverentia suscipit ac veneratur

  • Prefaacutecio
  • SEGUNDA PARTE
  • Explicaccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo
  • segundo o Decreto do Conciacutelio de Trento
Page 6: Revelacao e Tradicao-Joseph Ratzinger (Bom Ler)

isto a Igreja natildeo dava uma resposta clara Dava-a o Modernismo poreacutem falsa precipitada extemporacircnea e em sentido decididamente hereacutetico

Eacute evidente que este problema e sua devida soluccedilatildeo tecircm uma importacircncia fundamental no confronto entre o Cristianismo e a cultura moderna ainda que isto natildeo seja de ordinaacuterio posto [3] explicitamente em debate Com efeito para o homem de hoje penetrado de um certo humanismo contraacuterio agrave Igreja adepto de um ateiacutesmo lamentaacutevel para o materialismo moderno que considera Deus como um enigma insoluacutevel e identifica o espiacuterito com a proacutepria forccedila motora do mundo o que choca e eacute motivo de escacircndalo natildeo eacute propriamente o Deus absconditus do Cristianismo que habita na luz inaccessiacutevel Eacute sim o ensinamento de que existe uma histoacuteria da Revelaccedilatildeo na qual o proacuteprio Deus indica o uacutenico caminho entre os muitos apontados pelas demais religiotildees histoacutericas e o percorre Ele proacuteprio aparecendo encarnado entre os homens O escacircndalo estaacute se assim podemos dizer na histoacuteria categorial da Revelaccedilatildeo e natildeo na relaccedilatildeo transcendental entre Deus e o homem mediante a qual Deus o cria do nada no abismo de Seu misteacuterio inefaacutevel

O que eacute Revelaccedilatildeo e por que eacute ela apesar de sua origem imediatamente divina o que haacute de mais iacutentimo na histoacuteria humana Como pode ela identificar-se com a histoacuteria da humanidade sem deixar de ser uma singular graccedila de Deus Como pode a Revelaccedilatildeo estar sempre e por toda parte a fim de operar sempre e por toda parte a salvaccedilatildeo sem com isto deixar de estar aqui e agora na carne de Cristo na Palavra dos Profetas que falam precisamente dela na letra da Escritura Poderaacute ela ser por toda parte o ldquomotivordquo iacutentimo a forccedila motora da histoacuteria sendo ao mesmo tempo uma accedilatildeo libeacuterrima de Deus impossiacutevel de ser medida em sentido ascendente a partir da Histoacuteria Natildeo eacute por outro lado o milagre uma graccedila divina ocorrida hic et nunc e realizada ldquouma vez para semprerdquo

A fim de ampliarmos mais o horizonte de nossas reflexotildees e compreendermos melhor a resposta a estas perguntas poderiacuteamos lembrar que a mais comum relaccedilatildeo entre Deus e o mundo-em-devir consiste no fato de ele o mais iacutentimo e absoluto Senhor do mundo conceder ao ser finito uma verdadeira e ativa transcendecircncia em sua evoluccedilatildeo Numa palavra eacute o proacuteprio futuro [4] a causa final que mostra a verdadeira e proacutepria causa real atuando no ser em marcha

Daiacute poder-se dizer que nossa pergunta natildeo tende senatildeo ao mais alto e mais radical conhecimento que hoje aos poucos vamos atingindo isto eacute o conhecimento de como o real e ativo evoluir dos seres superiores partindo dos interiores e a permanente accedilatildeo criadora vinda do alto satildeo apenas os dois lados ambos igualmente verdadeiros e positivos do uacutenico milagre do ser e da Histoacuteria Referimo-nos agrave ideacuteia de que Deus em sua livre relaccedilatildeo para com a sua criatura natildeo eacute uma causa categorial ao lado de outras mas sim o vivo permanente e transcendental fundamento da proacutepria evoluccedilatildeo do mundo Tambeacutem o mundo a seu modo se insere na relaccedilatildeo entre Deus e o homem no fato da Revelaccedilatildeo e na sua histoacuteria E isto na mais ampla medida porque esta histoacuteria na medida mais extrema deve ser igualmente accedilatildeo de Deus e accedilatildeo do homem uma vez que em si ela eacute a mais alta realidade no ser e no evoluir do mundo Se existe esta superaccedilatildeo fundamental de uma total oposiccedilatildeo entre o imanentismo e o extrinsecismo no conceito ontoloacutegico da evoluccedilatildeo e da histoacuteria entatildeo deve tambeacutem a teologia superar esta oposiccedilatildeo na questatildeo que aqui nos ocupa

Com efeito se a teologia catoacutelica ensina e potildee em praacutetica sua doutrina sobre a graccedila santificante e a vontade salviacutefica universal sobre a necessidade da graccedila elevante para a feacute e a doutrina tomista sobre o sentido ontoloacutegico transcendental da graccedila entitativa agrave luz da Revelaccedilatildeo segue-se que sem cair no Modernismo a teologia pode e deve reconhecer a histoacuteria da Revelaccedilatildeo ou simplesmente a Revelaccedilatildeo no sentido de apresentaccedilatildeo categorial histoacuterica Falando mais propriamente diremos a histoacuteria daquela mesma relaccedilatildeo transcendental entre o homem e Deus realizada de modo sobrenatural atraveacutes de uma sempre gratuita participaccedilatildeo divina Tal histoacuteria deve com razatildeo ser chamada de Revelaccedilatildeo

[5] Se transcendecircncia sempre existiu e sempre existe na histoacuteria e se haacute uma criaccedilatildeo transcendental no homem manifestada atraveacutes de algo permanente a que chamamos graccedila santificante que santifica o homem precisamente pela participaccedilatildeo de Deus e natildeo atraveacutes de qualquer outra eficiecircncia casual resulta entatildeo que esta absoluta transcendecircncia verificada na absoluta uniatildeo do Deus misterioso e inefaacutevel que se torna presente no homem tem uma histoacuteria Esta histoacuteria eacute o que chamamos de histoacuteria da Revelaccedilatildeo

O fato da Revelaccedilatildeo tem sempre um duplo aspecto Por um lado a constituiccedilatildeo de uma transcendecircncia sobrenaturalmente elevada do homem como algo permanente gratuito mas nem sempre de todo positivo ou seja a transcendental experiecircncia da absoluta e gratuita participaccedilatildeo da vida divina mesmo quando ela natildeo seja concretamente objetivada em cada um em particular E por outro lado a mediaccedilatildeo histoacuterica a objetivaccedilatildeo concreta desta experiecircncia sobrenaturalmente transcendental que ocorre na histoacuteria considerada em seu conjunto (A voluntaacuteria reflexatildeo teoloacutegica do indiviacuteduo tambeacutem pertence a esta histoacuteria mas natildeo a cria primariamente nem a forma) A experiecircncia transcendental referida chama-se usualmente histoacuteria da Revelaccedilatildeo quando ela eacute realmente histoacuteria da verdadeira exposiccedilatildeo desta experiecircncia sobrenatural e transcendental e natildeo a sua contrafaccedilatildeo Em outros termos quando ela eacute o resultado positivo desta transcendental participaccedilatildeo de Deus pela graccedila Ou ainda quando ela ocorre por disposiccedilatildeo da Providecircncia sobrenatural de Deus Salvador

Se for assim compreendida a unidade e inter-relaccedilatildeo entre Revelaccedilatildeo categorial e Revelaccedilatildeo histoacuterica ou melhor o elemento transcendental e o elemento histoacuterico (mediador) de uma revelaccedilatildeo e de sua histoacuteria seraacute entatildeo tambeacutem visiacutevel uma primordial distinccedilatildeo no que eacute revelado

Revelado eacute Deus como o que se daacute a participar em absoluta e gratuita uniatildeo como Deus ou seja como misteacuterio absoluto Revelada eacute a mediaccedilatildeo histoacuterica desta experiecircncia transcendental [6] como autecircntica como absoluta experiecircncia de Deus Revelada eacute no aacutepice singular e definitivo desta histoacuteria da Revelaccedilatildeo a absoluta e irreversiacutevel unidade entre a participaccedilatildeo transcendental de Deus na humanidade e sua histoacuterica mediaccedilatildeo no uacutenico Deus-Homem Em Jesus Cristo como numa soacute Pessoa o proacuteprio Deus compartilha da humana posse desta mediaccedilatildeo e de sua definitiva manifestaccedilatildeo histoacuterica

Nesta unidade entre a transcendental co-participaccedilatildeo de Deus e sua definitiva mediaccedilatildeo e manifestaccedilatildeo histoacuterica uma vez que se trata da comunicaccedilatildeo de Deus em si mesmo eacute revelado tambeacutem o misteacuterio fundamental do Deus trino enquanto se considera neste misteacuterio somente o aparecimento de Deus conosco na histoacuteria e na

Deivide
Realce
Eacute Jesus Cristo

transcendecircncia ou seja do Deus trino Pai Filho e Espiacuterito Santo em sua possibilidade de vir a manifestar-se na transcendecircncia do homem e na sua histoacuteria

Enquanto por conseguinte a histoacuteria se abre agrave transcendecircncia o Filho envia o Espiacuterito Enquanto a transcendecircncia constroacutei a histoacuteria o Espiacuterito realiza a Encarnaccedilatildeo do Logos Enquanto o aparecimento de Deus na histoacuteria expressa a impossibilidade de se conservar oculto o que eacute suma realidade o Verbo Encarnado eacute revelado como a auto-expressatildeo do Pai na Verdade Enquanto a vinda de Deus entre noacutes no meio de nossa existecircncia significa o Seu e o nosso amor eacute revelado o Pneuma sob este aspecto de amor

Quando noacutes fazemos a experiecircncia da uniatildeo transcendental e absoluta do Deus conosco compartilhando de Sua vida e aceitando-a por graccedila dele mesmo sabemos mediante o nosso ato de feacute o que significamos ao falarmos sobre a Trindade de Deus e ao exprimirmos de modo breve e sucinto a formalidade e o conteuacutedo da feacute cristatilde da sua Revelaccedilatildeo da histoacuteria desta Revelaccedilatildeo Sabemos o que significamos quando nos fazemos batizar nestes nomes em nome do Pai do Filho e do Espiacuterito Santo

[7] Ao que ateacute aqui estabelecemos em traccedilos gerais e raacutepidos como sendo a ideacuteia fundamental da Revelaccedilatildeo acrescentamos agora alguns esclarecimentos selecionados um tanto arbitrariamente e referentes todos agrave origem da Revelaccedilatildeo e agraves suas consequumlecircncias

Do exposto resulta que a Revelaccedilatildeo quer transcendental quer categorial e sua histoacuteria co-existem com a histoacuteria espiritual de toda a humanidade Isto natildeo eacute erro do Modernismo Eacute uma verdade cristatilde Podemos provaacute-lo muito simplesmente dizendo ser incontestaacutevel que a histoacuteria da salvaccedilatildeo sobrenatural eacute realizada sempre na histoacuteria do mundo o que depois do Conciacutelio Vaticano II se tornou uma verdade ainda mais vivamente impressa na consciecircncia religiosa dos cristatildeos A salvaccedilatildeo poreacutem natildeo pode dar-se sem a feacute Nem a feacute sem uma revelaccedilatildeo proacutepria

Natildeo precisamos esclarecer a possibilidade da Revelaccedilatildeo e da feacute fora da histoacuteria do Antigo e do Novo Testamento nem recorrer a uma teoria catoacutelica especial como a de Straub ou a de Billot Nem mesmo necessitamos apelar para uma tradiccedilatildeo categorial expliacutecita da Revelaccedilatildeo primitiva segundo a qual literaacuteria e doutrinariamente a experiecircncia categorial de Adatildeo teria sido transmitida aos poacutesteros o que agrave luz do conhecimento atual da histoacuteria das religiotildees e dos dois milhotildees de anos da histoacuteria da humanidade natildeo eacute muito provaacutevel

Basta-nos reter (o que eacute testemunhado pelos dados atuais da teologia) que cada homem elevado pela graccedila em sua espiritualidade transcendental representa esta ldquoentitativardquo divinizaccedilatildeo que precede o uso da liberdade mesmo quando esta natildeo eacute por ele compromissada na feacute Significa portanto uma transcendental divinizaccedilatildeo da condiccedilatildeo primitiva do homem o uacuteltimo horizonte do conhecimento e da liberdade sob o qual o homem completa o seu ser Atraveacutes desta existecircncia sobrenatural do [8] homem em geral e de cada um em particular daacute-se uma revelaccedilatildeo de Deus mediante uma participaccedilatildeo gratuita E esta condiccedilatildeo fundamental e gratuita do homem realizada no Deus da vida trinitaacuteria pode tambeacutem ser entendida como Revelaccedilatildeo da Palavra contanto que de um lado natildeo limitemos esta palavra a mera prolaccedilatildeo foneacutetica e de outro natildeo nos esqueccedilamos que esta Revelaccedilatildeo transcendental estaacute sempre inserida num contexto histoacuterico e ainda que a histoacuteria humana natildeo pode prescindir das palavras A

Deivide
Realce
A Revelaccedilatildeo estaacute aqui Estaacute diante de mm envolve-me Se quero Ela logo Eacute em mim e minha vida toma um novo significado A Revelaccedilatildeo estaacute no hoje tatildeo atuante quanto quando Jesus fala e agia no tempo em que peregrinou na terra Estaacute atuaccedilatildeo de Jesus que corre toda a histoacuteria e chega aos nossos dias daacute-se atraveacutes da Igreja pela accedilatildeo do Espiacuterito Santo

histoacuteria dos homens natildeo consta de fatos mortos mas de fatos cujo sentido representa um elemento importante em cada conjuntura histoacuterica

Natildeo existe nenhuma relaccedilatildeo objetiva de um objeto em particular ou de uma frase na vida transcendental do homem aberto para Deus para o Deus trino e eterno O que eacute mais e o que fundamenta todos os dogmas da Feacute como condiccedilatildeo mesma de sua possibilidade e antes de tudo o que os faz real palavra de Deus eacute o seguinte o horizonte da vida sobrenatural ou a luz da Feacute em si mesma - como diriacuteamos em linguagem tradicional e simples - pressupotildee que se aceitem e se valorizem as palavras da Tradiccedilatildeo

Com tudo isto ndash acentuemo-lo mais uma vez ndash natildeo estamos dizendo que esta transcendental e aprioriacutestica abertura do homem para o Deus da vida eterna e da participaccedilatildeo absoluta possa ser em si mesma ldquoanistoacutericardquo nem que conduza a uma desordem miacutestica que consistiria numa introspecccedilatildeo individualiacutestica alienada da histoacuteria Ao contraacuterio Ela se completa necessariamente na histoacuteria do agir e do pensar do homem E pode fazecirc-lo explicitamente embora de maneira de todo anocircnima Assim sendo nunca existe uma histoacuteria da Revelaccedilatildeo transcendental para um particular soacute Ela eacute individual e coletiva Naturalmente tal histoacuteria em concreto nunca eacute a histoacuteria da Revelaccedilatildeo inteiramente pura em si Ela se daacute em cada um sempre em indissoluacutevel simbiose com o erro com falsas interpretaccedilotildees com a [9] culpa com os abusos Ela eacute histoacuteria justa e pecadora uma vez que o homem eacute simul iustus et peccator estando a histoacuteria da culpa e a da salvaccedilatildeo definitivamente ligadas ateacute ao dia do juiacutezo final

Isto natildeo exclui a existecircncia de uma autecircntica histoacuteria da Revelaccedilatildeo na histoacuteria geral da humanidade Tanto que para o cristatildeo por exemplo uma diacriacutetica distinccedilatildeo na histoacuteria veterotestamentaacuteria entre autecircntica histoacuteria da Revelaccedilatildeo e falsa histoacuteria da religiatildeo soacute eacute possiacutevel tomando-se como criteacuterio a Cristo Tal distinccedilatildeo natildeo eacute possiacutevel partindo-se apenas dos criteacuterios fornecidos pelo Antigo Testamento Com efeito a Sagrada Escritura tem somente a Cristo como regra interna e externa e como norma de sua hermenecircutica Daiacute resulta que a Escritura deve ser considerada pelo cristatildeo como verdadeira histoacuteria da Revelaccedilatildeo do Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo1

Deduzir a ideacuteia da Revelaccedilatildeo da Palavra de Deus oral e escrita eacute atingir o lado transcendental da proacutepria Revelaccedilatildeo Eacute buscar um criteacuterio no cacircnon da Escritura colocando a Palavra de Deus oral e escrita antes de tudo na sua aceitaccedilatildeo pela Feacute interna e gratuita Eacute ldquodesmitologizarrdquo a mensagem externa da feacute em sua formalidade transcendental A histoacuteria da religiatildeo eacute a parte da histoacuteria humana em que a natureza teoloacutegica do homem se realiza tematicamente e efetivamente como em toda histoacuteria Daiacute resulta que a histoacuteria da religiatildeo eacute simultaneamente duas coisas eacute a parte mais expliacutecita da histoacuteria da Revelaccedilatildeo e tambeacutem o lugar espiritual (der geistige Ort) em que as falsas interpretaccedilotildees da experiecircncia transcendental de Deus se manifestam de modo mais notoacuterio e levam agraves piores consequumlecircncias A supersticcedilatildeo opotildee-se nitidamente agrave sua natureza Mas ela eacute ao [10] mesmo tempo estas duas coisas E sempre numa ambiguumlidade de sentido que natildeo conseguimos solucionar

1 Sobre a diferenccedila entre a histoacuteria da Revelaccedilatildeo extra-biacuteblica e a veterotestamentaacuteria (que eacute tambeacutem um pressuposto daquela) cf K RAHNER Schriften zur Theologie V (Einsiedeln 1964) p136-158 principalmente p 148 e 153

Deivide
Nota
Parei aqui

Na teologia escolaacutestica catoacutelica nos uacuteltimos seacuteculos em contraste com a teologia medieval pouco ou nada se diz sobre o portador do testemunho da Revelaccedilatildeo aquele que a apresenta atraveacutes do milagre aos homens chamados a crer Refiro-me agrave Revelaccedilatildeo presente no seu portador que eacute o proacuteprio Profeta Do que antes expusemos concluir-se-aacute que a teologia dos preacircmbulos e a da feacute satildeo idecircnticas Por isso tem razatildeo a teologia fundamental quando frequumlentemente trata da analysis fidei em seu acircmbito proacuteprio supondo-se que ela o faccedila considerando a feacute e a aceitaccedilatildeo da Revelaccedilatildeo em sua unidade fundamental O aspecto transcendental da aceitaccedilatildeo da Revelaccedilatildeo e a Feacute satildeo a mesma coisa fundam-se ambas na constituiccedilatildeo do homem gratuitamente marcada pela participaccedilatildeo ontoloacutegica e pelo compromisso livre do homem com este aspecto existencial do ser

A ldquodesmitologizaccedilatildeordquo (Entmythologisierungsfrage) para a teologia catoacutelica concretiza-se e resume-se na capacidade de cognoscibilidade do ldquomilagrerdquo Daiacute perguntar-se eacute possiacutevel uma autecircntica experiecircncia transcendental de Deus jaacute que isto seria como que um compartilhar do imparticipaacutevel (Schon-immer-heim- Univermittelten-Sein) Fundamentalmente natildeo eacute possiacutevel nem eacute necessaacuterio estabelecer uma distinccedilatildeo adequada entre a mediaccedilatildeo do factum brutum (durch das factum brutum) da chamada realidade objetiva e a que se daacute atraveacutes de sua clara explicaccedilatildeo A mediaccedilatildeo (Vermittlung) baseia sua uacuteltima verdade no mediado (im Vermittelten) Portanto a ldquodesmitologizaccedilatildeordquo e a relaccedilatildeo entre a mediaccedilatildeo e o mediado (Vermittlung-Vermittelte) fundamentam-se na diferenccedila e na unidade ontoloacutegica dos aspectos categorial e transcendental e tambeacutem na diferenccedila e na indissoluacutevel unidade entre a histoacuteria e seu significado Esta mediaccedilatildeo enquanto histoacuterica eacute sempre uma histoacuteria com-os-homens ou no sentido mais profundo da palavra uma [11] histoacuteria ldquoeclesialrdquo Eacute portanto tambeacutem um compromisso com a feacute da comunidade dos fieacuteis e da Igreja feacute esta que na comunidade e em cada indiviacuteduo envolve sempre a uniatildeo de sinais e de verdade como na palavra do Sacramento e no Logos Encarnado onde estes dois elementos se encontram inseparaacuteveis mas natildeo se confundem sendo a sua associaccedilatildeo independente do alvitre dos homens

Partindo dessas premissas pode-se entender o que seja a fides implicita agrave qual ateacute hoje os teoacutelogos natildeo deram o destaque devido Fundamentalmente a feacute seja qual for envolve a aceitaccedilatildeo do sinal Soacute eacute feacute verdadeira se assumir o sinal mediante o inefaacutevel misteacuterio da uniatildeo do Deus que se daacute a si mesmo em participaccedilatildeo Soacute eacute feacute verdadeira quando entende a mediaccedilatildeo categorial como presenccedila de sinais (Zeichenhaftigkeit) como se realiza na proacutepria Igreja Assim como a Revelaccedilatildeo natildeo elimina a obscuridade do sacrossanto misteacuterio de Deus antes o cristatildeo amando e adorando a aceita assim tambeacutem o ldquocaraacuteter impliacutecitordquo (Implizitaumlt) da Revelaccedilatildeo e da feacute pertencem agrave sua proacutepria natureza Esta ldquoimplicituderdquo natildeo eacute portanto um elemento que soacute se daria quando as pessoas ldquoincultasrdquo ou ignorantes ouvem a Revelaccedilatildeo e crecircem

Agora podemos entender melhor tambeacutem um conhecido fenocircmeno religioso a tendecircncia a se reduzir o dogma e a religiatildeo a um nuacutecleo de verdades essenciais A unidade existente entre os elementos categorial e transcendental existe tambeacutem na Religiatildeo Tambeacutem esta eacute una e uacutenica E insubstituiacutevel por qualquer outra Devemos dizer tambeacutem que o Cristianismo considerado como religiatildeo universal e absoluta e natildeo apenas como particular alianccedila de Deus com determinado povo natildeo pode deixar de reconhecer a Cristo como Mediador e como Salvador Cristo com efeito por sua

corporeidade e espiritualidade integra em si relaciona e torna legiacutetima toda mediaccedilatildeo possiacutevel no acircmbito do mundo das realidades Assim ldquonadardquo existe que [12] exclua este poder de mediaccedilatildeo Ele existe na palavra no sinal lituacutergico na comunidade eclesial no ofiacutecio na imagem em suma ateacute mesmo nas coisas profanas Natildeo obstante a pluralidade e diversidade desta mediaccedilatildeo pode acontecer que em diferentes eacutepocas e lugares de acordo com os desiacutegnios da graccedila mesmo no Novo Testamento a obrigatoriedade e cognoscibilidade da uacutenica mediaccedilatildeo tenha a sua histoacuteria peculiar Tal histoacuteria da Revelaccedilatildeo tornada definitiva em Cristo no acircmbito do uacuteltimo e eterno ldquoeatildeordquo pode tambeacutem conforme disposiccedilatildeo divina refletir-se na traacutegica histoacuteria da Cristandade dividida por uma cisatildeo em que transparece a pluralidade das muitas mediaccedilotildees da uacutenica Revelaccedilatildeo Esta divisatildeo eacute para noacutes uma censura Contudo serve-nos tambeacutem de instrumento da graccedila de Deus

A distinccedilatildeo entre Revelaccedilatildeo transcendental e a categorial-histoacuterica aplica-se tambeacutem agrave feacute Daiacute novas luzes para se entender melhor o problema da credulidade enquanto distinta da feacute e intimamente relacionada com ela Quando se considera a precaacuteria descriccedilatildeo da feacute elaborada pelos teoacutelogos vecirc-se que seu caraacuteter auditivo (ex auditu) eacute geralmente proposto de modo aposterioriacutestico e empiacuterico O endereccedilamento da feacute ao ouvinte aparece entatildeo como se da parte deste soacute houvesse uma potecircncia formal para assumir certas proposiccedilotildees verdadeiras sem as investigar devendo apenas aceitaacute-las em sua formulaccedilatildeo exata irrecusaacutevel e fixa A potecircncia aprioriacutestica da feacute ou a credulidade quase natildeo eacute levada em consideraccedilatildeo na teologia catoacutelica Esta credulidade como capacidade aprioriacutestica de crer natildeo deve ser tida na conta de uma potecircncia igual agraves outras uma espeacutecie de sentido de ldquoexigecircnciardquo ou coisa parecida Eacute antes o lado transcendental da Revelaccedilatildeo a potecircncia aprioriacutestica que tem o homem ser transcendental para a comunhatildeo com Deus na graccedila fundada na proacutepria abertura de Deus para se comunicar com a criatura Ambas estas coisas devem ser consideradas em sentido ontoloacutegico natildeo em sentido ocircntico

[13] Toda anaacutelise da feacute catoacutelica apresenta a ldquoautoridade de Deusrdquo como o ldquoobjeto formalrdquo ou o ldquomotivordquo uacuteltimo da feacute Chega-se assim entretanto a um impasse intransponiacutevel Isto porque se considera esta ldquoautoridaderdquo como elemento categorial e aprioriacutestico limitado pelo horizonte do conhecimento humano que a feacute tem que superar para que a Palavra permaneccedila sendo realmente Palavra divina e natildeo seja rebaixada ao niacutevel meramente criatural Se poreacutem na Revelaccedilatildeo e na feacute o proacuteprio Deus autocomunicando-se eacute o objeto crido e o princiacutepio aprioriacutestico de crer se a loacutegica da feacute natildeo eacute uma categoria aprendida de fora mas ndash do mesmo modo que a loacutegica natural ndash eacute a proacutepria estrutura ontoloacutegica e interna do ato de feacute se a mensagem exterior da feacute natildeo eacute o seu motivo aposterioriacutestico mas sua razatildeo aprioriacutestica ndash entatildeo todo este problema perde o seu sentido Assim se compreenderaacute que um falso ato material de feacute deixa de ter um objeto formal meramente aprioriacutestico e pode vir a ser um ato de feacute autecircntico

Somos forccedilados a interromper aqui estas observaccedilotildees Em tudo o que dissemos pudemos apenas indicar algumas perspectivas de soluccedilatildeo de um problema que desde os tempos do Modernismo eacute atual mas que contudo tem sido de certo modo postergado Mesmo por este pequeno exemplo ao qual poderiacuteamos acrescentar o de muitos outros problemas teoloacutegicos ainda natildeo solucionados vemos como custosa e lentamente avanccedila o trabalho teoloacutegico Eacute necessaacuterio ter paciecircncia e envidar esforccedilos perseverantes

Necessaacuterio eacute ainda admitir-se que a teologia natildeo cria a feacute no cristatildeo Ele eacute apenas chamado a pocircr-se a serviccedilo da feacute Da feacute hoje

Ao exprimir eu agrave ilustre Faculdade Catoacutelica de Teologia da Universidade de Munster o meu penhorado e cordial agradecimento pela distinccedilatildeo que me outorgou faccedilo-o com a consciecircncia de que tambeacutem os operaacuterios que realizam a construccedilatildeo da teologia trabalham em vatildeo se o Senhor natildeo cooperar com eles Noacutes [14] devemos trabalhar enquanto eacute dia Toda theologia mentis eacute apenas um auxiacutelio para a theologia cordis et vitaelig Enfim em toda theologia a rigor soacute um caminho se abre o caminho que se perde no segredo de Deus misteacuterio impenetraacutevel que todavia se potildee ao nosso alcance

Joseph Ratzinger

EXAME DO PROBLEMA DO CONCEITO DE TRADICcedilAtildeO

PRIMEIRA PARTE

Revelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeo

Ensaio de anaacutelise do conceito de Tradiccedilatildeo

I ndash Posiccedilatildeo do Problema

[15] O modo como Cristo Palavra expressa da Revelaccedilatildeo permanece presente na Histoacuteria e vai ao encontro dos homens pertence agravequelas questotildees fundamentais em torno das quais se dividiu a Cristandade ocidental no seacuteculo da Reforma A luta prende-se agrave ideacuteia de ldquoTradiccedilatildeordquo pela qual a Igreja catoacutelica procurou exprimir certa forma de comunicaccedilatildeo da Revelaccedilatildeo ao lado da outra contida na Sagrada Escritura Isto com o fim de desfazer um duplo protesto A Tradiccedilatildeo designava primeiro as chamadas consuetudines ecclesiaelig tais como a santificaccedilatildeo do domingo a oraccedilatildeo voltada para o Oriente o costume de jejuar as vaacuterias becircnccedilatildeos e consagraccedilotildees e outras praacuteticas semelhantes em vigor na piedade dos fieacuteis ao tempo da baixa Idade Meacutedia Tais praacuteticas ora nobres ora ridiacuteculas embora transformassem a Igreja numa espeacutecie de casa assombrada cheia de acircngulos e cantos justificavam-se sob o tiacutetulo de ldquotradiccedilatildeordquo e legitimavam-se como parte essencial da vida cristatilde1

Lutero a quem a simplicidade do Evangelho como urna forccedila explosiva tinha sobremodo impressionado preferiu agrave luz de sua [16] ideacuteia de Deus juiz misericordioso natildeo ver na Tradiccedilatildeo nada mais do que ninharias com as quais a humanidade se ilude e aparentemente se consola buscando uma evasatildeo ante o abuso da proacutepria existecircncia Ainda mais ele viu na Tradiccedilatildeo o retorno da Lei o predomiacutenio do arbiacutetrio humano sobre a palavra de Deus abuso contra o qual Paulo protestara com tanta veemecircncia e que agora de novo se implantara na Igreja A Confessio Augustana ocupou-se tambeacutem destas coisas destacando uma seacuterie de leis cuja violaccedilatildeo segundo a doutrina corrente era tida como pecado mortal a proibiccedilatildeo do trabalho manual aos domingos e dias santos a interrupccedilatildeo das preces canocircnicas diaacuterias os preceitos do jejum etc E Lutero prosseguia ldquoDe onde tiram os Bispos o direito e o poder de imporem tais prescriccedilotildees aos cristatildeos e de ilaquearem assim as consciecircncias Pedro no capiacutetulo 15 dos Atos dos Apoacutestolos proiacutebe se imponha o jugo sobre os ombros dos disciacutepulos E Paulo diz aos Coriacutentios que a autoridade lhe foi dada para salvar e natildeo para condenar Por que entatildeo multiplicam assim os pecados com tais imposiccedilotildeeshellip Se os Bispos tecircm poder de sobrecarregarem as igrejas com inuacutemeras prescriccedilotildees e de onerar as consciecircncias por que entatildeo a Sagrada Escritura proiacutebe tatildeo frequumlentemente que se faccedilam mandamentos

1 Eacute o que se vecirc claramente pela lista de traditiones feitas no tempo do Conciacutelio de Trento Cf a nota 44 da segunda parte desse livro

humanos e se escravizem os homens Porque chama ela a estas coisas de doutrina de Satanaacutes Foi acaso em vatildeo que o Espiacuterito Santo fez tais advertecircnciasrdquo 2

Lutero identificou aqui a traditio com os abusus Tradiccedilatildeo segundo ele eacute lei humana pela qual o homem se esconde de Deus e pior ainda se levanta contra Ele para tomar nas proacuteprias matildeos a tarefa de sua salvaccedilatildeo em vez de esperaacute-la da libeacuterrima graccedila do Senhor A Tradiccedilatildeo assim entendida como Lei eacute contraposta agrave mensagem da graccedila ldquoDevemos aceitar cada [17] um dos artigos do Evangelho para alcanccedilarmos a graccedila de Deus sem meacuterito nosso atraveacutes da feacute em Jesus Cristo e natildeo pretender merececirc-la mediante praacuteticas do culto inventado pelos homensrdquo3

O problema da Tradiccedilatildeo tornou-se ainda mais agudo devido a um segundo aspecto que de resto natildeo conduziu a nenhum resultado positivo Descobrindo o Evangelho teve Lutero igualmente a impressatildeo de libertar a Palavra de Deus da pesada cadeia do Magisteacuterio eclesiaacutestico que se teria apossado desta Palavra e natildeo mais a entendia em seu verdadeiro sentido empregando-a antes a seu bel-prazer A ideacuteia de que a palavra divina aprisionada na Igreja catoacutelica agrave autoridade do Magisteacuterio ficou privada de sua forccedila viva eacute sempre repetida nos escritos dos Reformadores Melanchton poreacutem fecirc-lo talvez de um modo mais humano e flexiacutevel quando apocircs com reservas a sua assinatura aos artigos luteranos de Esmalca ldquo quanto ao Papa acho eu que jaacute que ele quis abandonar o Evangelho devemos noacutes de nossa parte tolerar (e admitir) para o bem da paz e da unidade a sua superioridade sobre os Bispos superioridade esta que ele possui iure humanordquo 4

Este estado de coisas impregnou outrossim a ideacuteia de Igreja da Confessio Augustana uma vez que aiacute se diz que a Igreja eacute a congregatio sanctorum in qua Evangelium pure docetur et recte administrantur Sacramenta5 Assim a Igreja eacute marcada por duplo aspecto pela pureza da doutrina e pela administraccedilatildeo legiacutetima dos Sacramentos Nem uma palavra sobre o Magisteacuterio Na realidade para a elaboraccedilatildeo do conceito de Igreja este silecircncio da CA natildeo eacute menos importante do que o que ela aiacute diz Eacute um silecircncio evidentemente intencional e denuncia a oposiccedilatildeo dos Reformadores agrave concepccedilatildeo catoacutelica de Igreja [18] entatildeo vigente e ateacute hoje conservada Esta consta de trecircs elementos a fides correspondente ao pure docere a communio que corresponde ao sacramenta e a auctoritas6 O Magisteacuterio aparece aqui como criteacuterio da palavra Eacute o seu fiador Segundo Melanchton daacute-se o contraacuterio a palavra eacute que eacute o criteacuterio do Magisteacuterio Este deve em uacuteltima anaacutelise ser provado pela palavra e pode consequumlentemente ser negado A palavra eacute auto-suficiente e paira sobre o Magisteacuterio como uma grandeza autocircnoma Talvez nesta inversatildeo de relaccedilotildees eacute que estaacute propriamente o contraste entre o conceito catoacutelico e o protestante de Igreja Contradiccedilatildeo paralela se daacute em torno da ideacuteia de Tradiccedilatildeo Com efeito a negaccedilatildeo do Magisteacuterio como criteacuterio da palavra significa a reduccedilatildeo da palavra de Deus agrave Escritura que seraacute entatildeo o

2Art 28 39-42 in Die Bekenntnisschriften der evangelisch lutherischen Kirche Gotinga 1952 p126 3 Art 28 52 Op cit p129 4 Op cit p463 5 Art 7 1 paacuteg 61 6 Sobre este ponto e o seguinte cf J RATZINGER ldquoDas geistliche Amt und die Einheit der Kircherdquo in Catholica 17 (1963) p 165-179

uacutenico sustentaacuteculo autocircnomo e autecircntico da palavra natildeo admitindo a Tradiccedilatildeo como uma grandeza em si

O Conciacutelio de Trento em seu estudo sobre a Tradiccedilatildeo teve diante dos olhos os dois pontos de vista contraacuterios e procurou formular sua resposta levando ambos em consideraccedilatildeo Eacute por isso conveniente analisarmos como estas duas posiccedilotildees se inter-relacionam em face da equiparaccedilatildeo feita por Lutero entre a Traditio e os abusus Em outros termos como os Padres conciliares se colocam diante do dilema dever-se-ia responder aos ataques de Lutero diretamente com uma definiccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo Ou antes de tudo com a reformatio a coerccedilatildeo dos abusus7

No tocante agrave doutrina o Conciacutelio refutou ex professo a censura dos Reformadores sustentando que a palavra natildeo eacute uma realidade autocircnoma pairando acima da Igreja Ela eacute dada pelo [19] Senhor agrave Igreja e natildeo entregue ao capricho dos homens Permanece justamente por isso nas Suas matildeos subtraindo-se ao alcance do alvitre humano Na visatildeo dos Padres de Trento deve no fundo ter parecido uma falta de confianccedila o terem os homens receio da palavra escrita entregue agrave Igreja como se a Igreja pudesse abusar dela Como se se pudesse apelar para a palavra da Revelaccedilatildeo contra a Igreja Estava-se inquestionavelmente certo de que o Senhor que instituiu a Igreja como Seu Corpo haveria de se empenhar em tutelaacute-la contra o perigo de abusar de Sua palavra

Hoje decorridos quatro seacuteculos desde a Reforma podemos confessar que na oposiccedilatildeo que dividia entre si Lutero e o Conciacutelio de Trento tanto depois como antes o dilema que dilacerou a Cristandade ocidental de certo modo jaacute desapareceu Vecirc-se isto pela troca de correspondecircncia entre Harnack e Peterson Peterson ao agradecer o tratado de Harnack Das Alte Testament in den Paulinischen Briefen und in den Paulinischen Gemeiden observou que este em seu cotejo da Escritura com a exegese biacuteblica tinha adotado natildeo o princiacutepio protestante mas o catoacutelico Escreveu Harnack ldquoDizer que o chamado lsquoprinciacutepio formalrsquo do Protestantismo primitivo eacute uma impossibilidade criacutetica e que ao contraacuterio o princiacutepio catoacutelico eacute formalmente o melhor eacute um truiacutesmo Materialmente poreacutem o princiacutepio catoacutelico da Tradiccedilatildeo opotildee-se agrave Biacuteblia muito mais diretamente (As tradiccedilotildees satildeo como ervas daninhas a serem cortadas pela tesoura do Magisteacuterio) A melhor fonte eacute o Novo Testamentordquo 8

Nesta formulaccedilatildeo de certo modo geneacuterica e simplista e na oposiccedilatildeo estabelecida entre os aspectos material e formal vem de novo agrave tona o antigo dilema poder-se-aacute confiar a palavra agrave Igreja sem temor de que ela sob a tesoura do Magisteacuterio ou [20] envolta no mato selvagem do sensus fidelium perca a sua forccedila proacutepria e sua vitalidade Esta eacute a pergunta que os Protestantes fazem aos Catoacutelicos Poder-se-aacute aceitar a autonomia da palavra sem com isto ser esta exposta ao arbiacutetrio dos exegetas aos maus tratos por parte dos historiadores e enfim ao completo desamparo Eis como os Catoacutelicos revidam aos Protestantes Com efeito segundo nossa doutrina natildeo eacute a noacutes que compete decidir se queremos ou natildeo confiar a palavra agrave Igreja Foi o proacuteprio Senhor quem lha confiou Note-se entretanto que quando o Catoacutelico encara seriamente este assunto natildeo deixa de considerar o zelo pela pureza da palavra revelada como um dever

7 Ver as notas 41 e 42 na 2ordf parte 8 Citado in E PETERSON Theologische Traktate Munique 1951 p295

da mais alta importacircncia Ele sabe que natildeo cumpre este dever pelo simples fato de apelar para a inerracircncia da Igreja Fazecirc-lo seria menosprezar o sentido da luta de Lutero em favor da Palavra deixando-se de ver nisto uma salutar advertecircncia e um apelo dirigido agraves almas

Natildeo obstante tudo isto a histoacuteria da controveacutersia natildeo se deteve no decurso dos quatro seacuteculos que se seguiram agrave Reforma Duas diferentes tendecircncias se destacam nas relaccedilotildees entre o Protestantismo e o Catolicismo e entre suas respectivas teologias De um lado uma radicalizaccedilatildeo de cada grupo nos proacuteprios pontos de vista Cada grupo a partir de entatildeo fez sua histoacuteria proacutepria e desenvolveu-a em direccedilatildeo oposta um ao outro Por outro lado a distacircncia mantida entre ambos possibilita maior objetividade em seus julgamentos reciacuteprocos Existe finalmente de parte a parte um renovado esforccedilo por superar as fronteiras com vistas a um encontro

Quem entre os Catoacutelicos empreendeu o mais significativo passo para chegar a uma visatildeo nova do problema da Tradiccedilatildeo mediante a superaccedilatildeo de posiccedilotildees unilaterais e anti-reformistas foi em nossos dias o teoacutelogo dogmaacutetico de Tubinga Josef Rupert Geiselmann Seus esforccedilos foram frutuosos fazendo-se sentir a sua influecircncia inclusive nos estudos preparatoacuterios do [21] Conciacutelio e deram agraves incursotildees do Vaticano II nesta aacuterea aquela marcante atualidade que ainda na primeira sessatildeo levou este problema a transcender do ciacuterculo da luta doutrinal entre as vaacuterias escolas teoloacutegicas para se transformar em uma preocupaccedilatildeo de toda a Cristandade catoacutelica9

A tese de Geiselmann eacute conhecida Basta-nos esboccedilaacute-la rapidamente aqui a fim de lanccedilarmos as bases de uma reflexatildeo que procuraraacute aprofundar mais este assunto e talvez dar um modesto passo agrave frente Geiselmann parte de uma interpretaccedilatildeo nova do sentido dado pelo Conciacutelio ao conceito de Tradiccedilatildeo O tridentino estabelecera que a verdade do Evangelho estaacute contida in libris scriptis et sine scripto traditionibus Isto foi e eacute ateacute hoje interpretado como se a Escritura natildeo contivesse toda a veritas evangelii Portanto natildeo eacute possiacutevel admitir-se a sola Scriptura uma vez que uma parte da Revelaccedilatildeo nos eacute transmitida somente pela Tradiccedilatildeo Geiselmann aproveitou a observaccedilatildeo jaacute antes feita por alguns autores de que na primeira redaccedilatildeo do texto focircra adotada a foacutermula segundo a qual a verdade estaria contida partim in libris scriptis partim in sine scripto traditionibus Estaria aqui claramente expressa a doutrina da divisatildeo da verdade revelada em duas fontes (Escritura e Tradiccedilatildeo) O Conciacutelio abandonou a expressatildeo partim ndash partim preferindo usar o simples conectivo et Geiselmann daiacute conclui afastou-se o Conciacutelio da ideacuteia da divisatildeo da verdade em duas fontes diversas Ou pelo menos natildeo a definiu explicitamente E continua o mesmo autor com isto pode tambeacutem o teoacutelogo catoacutelico aceitar a ideacuteia de uma suficiecircncia material da Escritura Pode ainda mesmo permanecendo catoacutelico defender a opiniatildeo de que a Sagrada Escritura eacute suficiente para transmitir-nos a [22] Revelaccedilatildeo Geiselmann admite consequumlentemente que a sola Scriptura pode conceber-se como uma uacutenica fonte

9 Cf R LAURENTIN Lenjeu du Concile Bilan de Ia premiegravere session Paris 1963 p27-45 Y CONGAR Vatican II Le Concile au jour le jour Paris 1963 p63-71 J RATZINGER Die erste Sitzungsperiode des Zweiten Vatikanischen Konzils Colocircnia 1963 p38-50

material da Revelaccedilatildeo Ele crecirc ainda poder mostrar que a tradiccedilatildeo mais forte eacute a favor desta sentenccedila e que o proacuteprio Conciacutelio de Trento se inclina neste sentido10

Eacute faacutecil de se compreender que semelhante tese tenha obtido o apoio de muitos em face das novas possibilidades de encontro entre Catoacutelicos e Evangeacutelicos possibilidades estas que a posiccedilatildeo de Geiselmann parece favorecer11 Que esta tese na realidade constitua um passo consideraacutevel neste sentido parece ser incontestaacutevel Todavia tatildeo logo a analisemos mais de perto em seus fundamentos histoacutericos e reais surge de pronto toda uma seacuterie de dificuldades graves a tornarem impossiacutevel a sua aceitaccedilatildeo

Sobre o aspecto histoacuterico deste problema apresentaremos vaacuterias observaccedilotildees na segunda parte deste nosso opuacutesculo Entrementes consideremos de imediato o lado praacutetico deste assunto Seu exame provoca inicialmente esta pergunta que significa propriamente a expressatildeo ldquosuficiecircncia da Escriturardquo Geiselmann como teoacutelogo catoacutelico que eacute natildeo deixa de sustentar os nossos dogmas Ora nenhum dogma catoacutelico eacute provado sola Scriptura Nem os grandes dogmas primitivos sustentados pelo consensus quinquesaeligcularis nem tampouco o de 1854 e [23] menos ainda o de 1950 Em que sentido entatildeo se pode falar em suficiecircncia da Escritura Natildeo ameaccedilaraacute esta converter-se em perigosa fraude pela qual nos enganamos primeiramente a noacutes proacuteprios e em seguida tambeacutem enganamos aos outros (Ou natildeo seratildeo talvez justamente eles que natildeo se enganam) Ou entatildeo pelo menos para sustentarmos de um lado que a Escritura sozinha conteacutem toda a verdade da Revelaccedilatildeo e de outro lado que o dogma de 1950 eacute verdade revelada natildeo deveremos noacutes refugiar-nos em um conceito tatildeo largo de suficiecircncia que na verdade esta palavra venha a perder todo o seu significado

Com isto abre-se a segunda (que de fato eacute a primeira) questatildeo decisiva a saber seraacute verdade que os debates em torno da ideacuteia da suficiecircncia da Escritura resolveram mesmo o problema do conceito de Tradiccedilatildeo Ou ao contraacuterio natildeo estaremos noacutes aqui diante de um problema de raiacutezes muito mais profundas

Nossas observaccedilotildees introdutoacuterias devem ter deixado claro que esta uacuteltima pergunta deve sem duacutevida nenhuma ser respondida afirmativamente A questatildeo da suficiecircncia da Escritura eacute apenas um problema secundaacuterio no acircmbito da distinccedilatildeo muito mais importante que foi jaacute antes apontada por noacutes ao tratarmos dos conceitos abusus e auctoritas e que gira em torno do nexo entre a autoridade da Igreja e a autoridade da Sagrada Escritura Da compreensatildeo disto depende tudo o mais

Para irmos mais adiante torna-se necessaacuterio analisarmos profundamente o assunto natildeo para nos determos no exame dos conceitos tatildeo relevantes de suficiecircncia ou insuficiecircncia da Escritura mas antes para abordarmos em seu tudo o vasto problema da Palavra revelada e presente no coraccedilatildeo dos fieacuteis Torna-se evidente entatildeo que agrave luz das fontes positivas a Escritura e a Tradiccedilatildeo devem ser postas em relaccedilatildeo tatildeo iacutentima que da

10 Ver sobretudo a obra de J R GEISELMANN Die Heilige Schrift und die Tradition Friburgo 1962 principalmente as p91-107274-282 Entre os trabalhos anteriores escritos por Geiselmann sobre o mesmo tema eacute de particular importacircncia o seguinte Das Konzil von Trient uumlber das Verhaumlltnis der Heiligen Schrift und der nichtgeschriebenen Traditionen in M SCHMAUS Die muumlndliche Uumlberlieterung Munique 1957 p 123-206 11 Uma lista de todos os autores que mais concordaram com Geiselmann eacute fornecida por H KUumlNG em sua tese ldquoKarl Barths Lehre vom Wort Gottes als Frage an die katholische Theologierdquo in Einsicht und Glaube publicado por J RATZINGER-H FRIES Friburgo 1963 p 105 nota 25

fonte interna (a Revelaccedilatildeo) brote a pa1avra de Deus viva sob aquela dupla formalidade A Escritura e a Tradiccedilatildeo natildeo podem [24] ser entendidas uma sem a outra no sentido que ambas tecircm agrave luz da feacute O problema ldquoEscritura e Tradiccedilatildeordquo permaneceraacute insoluacutevel enquanto natildeo for reduzido a uma soacute questatildeo a saber a questatildeo ldquoRevelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeordquo e inserida enfim no amplo contexto a que pertence

Eu gostaria de nas paacuteginas seguintes sem entrar em todos os detalhes tentar desenvolver em forma de teses e de maneira positiva o conceito de Tradiccedilatildeo partindo de sua natureza iacutentima com a esperanccedila de que nele descubramos uma parte da resposta aos anseios dos Reformadores Desta maneira toda esta anaacutelise serviraacute de contribuiccedilatildeo para o diaacutelogo interconfessional cuja necessidade tanto os Catoacutelicos como os Protestantes vecircm proclamando de maneira cada vez mais insistente

II - Teses sobre a relaccedilatildeo entre a Revelaccedilatildeo e a Tradiccedilatildeo

1 A Revelaccedilatildeo e a Escritura A primeira tese em aditamento ao conceito patriacutestico de Escritura e Revelaccedilatildeo

poderia enunciar-se nos seguintes termos o fato de existir uma ldquoTradiccedilatildeordquo repousa antes de tudo na diferenccedila que permeia entre estas duas realidades ldquoRevelaccedilatildeordquo e ldquoEscriturardquo A Revelaccedilatildeo exprime propriamente o falar e o agir de Deus em relaccedilatildeo aos homens Designa uma realidade expressa pela Escritura sem ser contudo a proacutepria Escritura A Revelaccedilatildeo por conseguinte ultrapassa a Escritura na mesma medida em que a realidade ultrapassa a sua expressatildeo escrita12 Poder-se-ia [25] tambeacutem dizer que a Escritura eacute o princiacutepio material da Revelaccedilatildeo (Talvez princiacutepio uacutenico talvez um princiacutepio entre outros isto seraacute esclarecido mais adiante) Ela natildeo eacute poreacutem a proacutepria Revelaccedilatildeo Isto era aliaacutes bem sabido dos proacuteprios Reformadores mas comeccedilou visivelmente a ser esquecido no aceso da controveacutersia entre a teologia catoacutelica poacutes-tridentina e a ortodoxia protestante13 Em nosso seacuteculo foram justamente os teoacutelogos evangeacutelicos Barth e Brunner que redescobriram este fato de todo evidente para a teologia patriacutestica e medieval14

O que acabamos de afirmar ficaraacute mais claro se partirmos de outro princiacutepio a Escritura pode ser possuiacuteda sem que se possua a Revelaccedilatildeo Isto porque a Revelaccedilatildeo eacute sempre e em primeiro plano uma realidade a realidade onde se encontra a feacute Aquele

12 Esta afirmaccedilatildeo natildeo tem o sentido de que a Escritura seja uma mera e vazia narrativa de realidades a ela exteriores Antes como o que se segue iraacute demonstrar indica que a Revelaccedilatildeo eacute realizada na Palavra jaacute que eacute por meio de palavras que ela se comunica aos homens Contudo a mera presenccedila da palavra ainda natildeo eacute a Revelaccedilatildeo Esta eacute mais do que simples ldquopresenccedilardquo Com o que ficou dito salienta-se a diferenccedila que existe entre a palavra e seu conteuacutedo Esta diferenccedila natildeo exclui o caraacuteter verbal da Revelaccedilatildeo 13 Cf A GLOEGE Schriftprinzips RGG V 1540-1543 onde se encontraraacute a mais completa bibliografia LthK VII 1104-1115 J R GEISELMAN Offenbarung in H FRIES Handbuch zum Begriff der Offenbarung cf M VERENO - R SCHNACKENBURG - HRIES in Theologischer Grundbergriffe II Munique 1963 p242-250 e a bibliografia aiacute citada 14 Cf W H VAN DER POL Das reformatorische Christentum Einsiedeln 1956 p117-192

que natildeo crecirc acha-se como que coberto por um veacuteu o veacuteu de que fala Satildeo Paulo no terceiro capiacutetulo da segunda epiacutestola aos Coriacutentios15 Ele pode ler a Escritura e saber o que nela se conteacutem Pode ateacute mesmo apreender de modo puramente intelectual o que aiacute eacute significado e como suas ideacuteias se inter-relacionam Todavia natildeo possui com isto a Revelaccedilatildeo A Revelaccedilatildeo eacute sobretudo possuiacuteda quando aleacutem da expressatildeo material que a atesta se potildee tambeacutem em praacutetica o seu conteuacutedo interno por meio da vivecircncia da feacute Com efeito de certo modo se inclui tambeacutem na Revelaccedilatildeo o sujeito recipiente sem o qual ela natildeo pode existir Natildeo se pode pocircr a Revelaccedilatildeo no bolso como se faz com [26] um livro Ela eacute uma realidade viva Exige homens vivos que a recebam que sirvam de ldquolugarrdquo de sua presenccedila

Repetindo o que ateacute aqui dissemos podemos afirmar que a Revelaccedilatildeo sobreexcede de fato a Escritura em dois sentidos

a) em sentido ascendente ela atinge sempre como realidade procedente de Deus o agir divino sobre as criaturas

b) como realidade que se daacute ao homem por meio da feacute ela atinge igualmente a Escritura

Desta diferenccedila entre a Escritura e a Revelaccedilatildeo resulta claramente que de todo independentemente da questatildeo se a Escritura eacute ou natildeo eacute a uacutenica fonte material em rigor nunca existe para o cristatildeo a sola Scriptura (Isto como ficou dito era claro em princiacutepio para os grandes Reformadores e comeccedilou a ser esquecido na chamada ortodoxia protestante) A Escritura natildeo eacute a Revelaccedilatildeo Eacute sim em uacuteltima anaacutelise uma parte desta realidade mais ampla

2 Os diferentes sentidos da Escritura

no Antigo e Novo testamento A problemaacutetica cristatilde da Revelaccedilatildeo ou o problema ldquoEscritura e Tradiccedilatildeordquo situa-se

melhor se considerarmos o duplo aspecto da mesma Revelaccedilatildeo no Antigo e no Novo Testamento A este duplo aspecto corresponde tambeacutem um duplo sentido da Escritura Assim como os dois Testamentos como tais se distinguem essencialmente assim tambeacutem devemos dizer que a ldquoEscriturardquo como um fato natildeo eacute repetida duas vezes do mesmo modo Isto aparece muito claro nos livros neotestamentaacuterios Sob a expressatildeo ldquoEscriturardquo designam eles somente o Antigo Testamento Para eles o AT eacute e permanece sendo ldquoa Escriturardquo cujo sentido se aclara mediante sua confirmaccedilatildeo no evento da [27] vinda de Cristo16 Os livros do NT natildeo jogam uma Escritura nova contra uma Escritura antiga Nem potildeem uma simplesmente ao lado da outra Potildeem sim em face da uacutenica Escritura ou seja do Antigo Testamento o Cristo-evento como o espiacuterito que explica a letra Esta concepccedilatildeo fundamental ilumina tambeacutem a forma da feacute mais antiga e a torna por primeiro compreensiacutevel O ldquoJesusrdquo formal eacute o ldquoCristordquo expresso no Antigo Testamento Natildeo eacute outra coisa No Jesus Histoacuterico o Cristo-mensagem do

15 Cf sobre estas reflexotildees o importante artigo (ἀποκαλύπτω de A OEPKE in ThWNT III p565-597 16 Ver sobre este ponto as preciosas conclusotildees de G SCHRENK art γραφή ndash γράμμα in ThWNT I p749-769 e a p767

Antigo Testamento atinge a sua consumaccedilatildeo Eacute a partir do AT que se entende quem eacute Jesus E o que o Testamento Antigo expressa pode ser visto agrave luz do Cristo-evento

Esta ideacuteia aparece em Paulo ao apresentar ele o Antigo e o Novo Testamentos como Gramma e Pneuma isto eacute letra e espiacuterito (2Cor 3 6-18) Ele chama ao Senhor de Pneuma A Escritura explica-o como sendo o seu sentido o seu conteuacutedo verdadeiro e vivo e natildeo apenas literaacuterio Paulo se refere agrave concepccedilatildeo do Novo Testamento apresentada por Jeremias (3133) Natildeo eacute mais necessaacuteria nenhuma Escritura porque a lei estaacute escrita nos coraccedilotildees Jaacute natildeo eacute necessaacuteria nenhuma doutrinaccedilatildeo vinda de fora porque o proacuteprio Deus instrui os homens Joatildeo exprime idecircntico pensamento em seguimento ao decircutero-Isaiacuteas (5413) quando descreve a era inaugurada por Cristo como o tempo no qual todos satildeo doutrinados por Deus mesmo E o sermatildeo de Pedro em Pentecostes transmitido pelos Atos dos Apoacutestolos (2 14-36) desenvolve a mesma ideacuteia tirada de Joel (3 1-5) Em todos estes casos aparece a era instaurada por Cristo como resposta agrave esperanccedila no advento de um tempo futuro que em uacuteltima anaacutelise haveria de tornar supeacuterflua a Escritura graccedilas agrave presenccedila imediata do Divino Mestre na Sua humanidade

Quando se pondera o sentido destas afirmaccedilotildees torna-se claro [28] que ao reduzir-se a ldquoEscriturardquo aos escritos do Antigo Testamento natildeo se estaacute apenas usando uma terminologia antiga que teria sido adotada por falta de escritos propriamente neotestamentaacuterios e que teria perdido seu sentido na segunda metade do seacuteculo segundo com o iniacutecio do cacircnon do Novo Testamento Ao contraacuterio Aqui se expressa uma consciecircncia que se tornaria mais niacutetida a partir da formaccedilatildeo da proacutepria Escritura neotestamentaacuteria muito ao inveacutes de cessar ou de desaparecer

Uma coisa eacute certa a ldquoEscriturardquo na nova ordem da salvaccedilatildeo inaugurada por Cristo toma um lugar distinto do que lhe cabia no Antigo Testamento Com isto pode-se ver ateacute que ponto o Antigo Testamento tem sentido autocircnomo O AT certamente natildeo aparecia desde o comeccedilo como Testamento do Gramma Escritura em sentido proacuteprio como ocorreraacute na pena de Satildeo Paulo17 Por outro lado manifesta-se realmente a partir de Jeremias e do decircutero-Isaiacuteas o anelo pela superaccedilatildeo do Gramma mediante uma nova e imediata comunicaccedilatildeo do Espiacuterito de Deus simultaneamente com a progressiva formaccedilatildeo de um princiacutepio da Escritura que mais e mais a transformou em Lei Lei esta que natildeo tornaria os homens vivos mas sim mortos

Desta maneira na concepccedilatildeo neotestamentaacuteria aparece o Antigo Testamento como ldquoEscriturardquo em sentido proacuteprio Escritura que atinge o seu verdadeiro significado atraveacutes do Cristo-evento pelo fato de ser ela inserida no contexto vivo da realidade de Cristo Se no Novo Testamento de facto a Escritura cresceu natildeo pode mais ter aquele sentido uacuteltimo e exclusivo que lhe competia no Antigo segundo a concepccedilatildeo paulina Ao contraacuterio Ela eacute a chave com que se abre o Antigo Testamento deixando-se banhar na claridade do Cristo-evento Ela eacute tambeacutem a ponte permanente que conduz a uma nova interpretaccedilatildeo biacuteblica agrave luz [29] de Cristo Num caso e noutro a Escritura natildeo pretende de modo nenhum ser autocircnoma nem ser a fonte uacutenica e exclusiva de sua exegese literal Mas soacute pode ter sentido na realidade espiritual de Jesus Cristo que

17 Ver a apreciaccedilatildeo feita por G VON RAD Theologie des Alten Testaments II Munique 1960 p402-424

permanece junto dos seus todos os dias ateacute ao fim do mundo (Mt 28 20) Apoacutes a subida ao Calvaacuterio Cristo veio de novo no Espiacuterito Santo (como narra Satildeo Joatildeo) e pelo Espiacuterito ensinou aos disciacutepulos o que eles entatildeo natildeo podiam ainda entender enquanto o Senhor estava entre eles sob forma visiacutevel (Jo 16 12)

3 Cristo a Revelaccedilatildeo de Deus

A realidade que se daacute como um acontecimento na Revelaccedilatildeo cristatilde natildeo eacute nada

mais nada menos do que o proacuteprio Cristo Cristo eacute a Revelaccedilatildeo em sentido proacuteprio ldquoQuem me vecirc vecirc o Pairdquo diz ele no Evangelho de Satildeo Joatildeo (14 9) Vale portanto dizer que receber a Revelaccedilatildeo eacute penetrar na realidade de Cristo no Cristo-evento Daiacute procede o paradoxo descrito por Satildeo Paulo ao fazer ele um trocadilho com as palavras ldquoCristo em noacutesrdquo e ldquonoacutes em Cristordquo

Neste contexto a anaacutelise de frases isoladas torna-se secundaacuteria de vez que elas satildeo apenas explicaccedilotildees do uacutenico misteacuterio de Cristo Consequumlentemente cai por si mesma a questatildeo da suficiecircncia interna da Escritura tatildeo discutida desde o aparecimento das obras de Geiselmann Deveriacuteamos isto sim perguntar que significa em linguagem cristatilde a suficiecircncia interna da Escritura ldquoSuficienterdquo eacute soacute a realidade do Cristo-evento Esta pode ser explicada materialmente em maior ou menor grau E de maneira nunca definitiva Partindo deste princiacutepio podem existir tambeacutem outras explicaccedilotildees segundo a Escritura quando se aprofunda mais este assunto

Este mesmo tema pode ser considerado sob outro aspecto E ter-se-aacute entatildeo dado um passo a mais para a frente A aceitaccedilatildeo [30] da Revelaccedilatildeo pela qual aplicamos a noacutes o Cristo-evento vem na linguagem da Biacuteblia sob o nome de ldquofeacuterdquo Assim talvez se entenderaacute mais claramente de que maneira no Novo Testamento a feacute significa a ldquoin-habitaccedilatildeordquo de Cristo Se admitirmos que na Escritura a presenccedila da Revelaccedilatildeo tem o mesmo sentido que a presenccedila de Cristo entatildeo teremos de fato dado um passo adiante Ora na Escritura encontramos a presenccedila de Cristo apresentada de duas maneiras Ela aparece de um lado como jaacute vimos identificada com a feacute (Ef 317) na qual cada um encontra Cristo e se adentra nele penetrando no dinamismo de sua forccedila salvadora Por outro lado a feacute se oculta tambeacutem sob a expressatildeo paulina ldquoCorpo de Cristordquo o que quer dizer que a comunidade dos fieacuteis ndash a Igreja ndash funda a presenccedila de Cristo neste mundo Nela Cristo reuacutene os homens e os faz partiacutecipes de sua presenccedila dinacircmica18

Tomadas juntas estas duas noccedilotildees significam o seguinte a feacute eacute a adesatildeo iacutentima agrave presenccedila de Cristo realidade de Cristo presente da qual a Escritura nos daacute testemunho sem contudo se identificar de modo nenhum com ela Daiacute resulta que a presenccedila da Revelaccedilatildeo se relaciona essencialmente com a ldquofeacuterdquo e com a ldquoIgrejardquo realidades estas que como vimos estatildeo estreitamente ligadas entre si

Voltamos assim ao que foi afirmado na primeira tese a saber que a Revelaccedilatildeo sobreexcede a Escritura em duplo sentido em relaccedilatildeo a Deus por seu lado ascendente e em relaccedilatildeo tambeacutem ao homem que a recebe Esta asserccedilatildeo que a princiacutepio deixamos

18 H SCHLIER ldquoDie Kirche nach dem Brief an die Epheserrdquo in Die Zeit der Kirche Friburgo 1962 p159-186

um tanto vaga encontramo-la essencialmente concretizada na realidade objetiva do Cristianismo

4 A essecircncia da Tradiccedilatildeo

[31] A transmissatildeo ao povo de Deus do Cristo-evento que eacute a Revelaccedilatildeo e que tem sua bi-presenccedila na feacute e na Igreja faz-se atraveacutes da pregaccedilatildeo Pregaccedilatildeo eacute a ldquoex-posiccedilatildeordquo (Aus-legung) do duplo aspecto da Revelaccedilatildeo no Antigo e no Novo Testamento E isto de duas maneiras

a) ela eacute a exposiccedilatildeo do Antigo Testamento agrave luz do Cristo-evento e para o Cristo-evento

b) a partir do Pneuma e da condiccedilatildeo presente da Igreja Este uacuteltimo aspecto eacute possiacutevel pois Cristo natildeo estaacute morto Estaacute vivo Natildeo eacute

apenas o Cristo de ontem Eacute tambeacutem e a fortiori o Cristo de hoje e de amanhatilde o Cristo vivo e presente em sua Igreja que eacute seu Corpo e na qual o seu espiacuterito opera

Isto poderaacute ser melhor compreendido se partirmos da essecircncia da Igreja Como nos ensina o Novo Testamento a mensagem de Jesus eacute antes de tudo uma mensagem escatoloacutegica com vistas ao reino de Deus natildeo com vistas agrave Igreja O fato de existir a Igreja natildeo se opotildee a esta mensagem mas haacute na marcha gradativa das revelaccedilotildees de Cristo uma segunda possibilidade Assim a atividade dos Doze depois de Pentecostes aponta natildeo para a Igreja mas para o reino de Deus Informam-nos os Atos dos Apoacutestolos que os Doze natildeo se ocuparam primordialmente em missionar os povos Esforccedilaram-se antes muito mais em converter Israel criando deste modo as condiccedilotildees preacutevias para a implantaccedilatildeo do reino De iniacutecio uma seacuterie de obstaacuteculos histoacutericos entre os quais deveriacuteamos citar antes de tudo o martiacuterio de Estevatildeo o supliacutecio de Tiago e por fim o fato decisivo da prisatildeo e da libertaccedilatildeo de Pedro Tais fatos levaram a comunidade primitiva segundo dizem as fontes a reconhecer como definitivo o malogro do esforccedilo de converter Israel E consequumlentemente forccedilaram os Apoacutestolos a partir em busca dos gentios e a cuidar [32] assim da Igreja e natildeo do reino Eles o fazem segundo se depreende das passagens referidas e principalmente dos esclarecimentos do capiacutetulo 15 dos Atos dos Apoacutestolos como uma nova opccedilatildeo feita sob a accedilatildeo do Espiacuterito Santo Com isso iniciou-se uma nova interpretaccedilatildeo da mensagem de Cristo sobre a qual a Igreja essencialmente repousa19

19 Cf as decisivas conclusotildees de E PETERSON ldquoDie Kircherdquo in Theologische Traktate Munique 1951 p 409-429 H SCHLIER Die Entscheidung fuumlr die Heidenmission in der Urchristenheit Die Zeit der Kirche p 90-107 Parece-me certo que nem a anaacutelise da tradiccedilatildeo sinoacutetica relativa agrave mensagem de Jesus e seu caraacuteter escatoloacutegico nem o estudo da histoacuteria da Igreja primitiva com base no material fornecido pelos Atos dos Apoacutestolos autorizam qualquer outra conexatildeo entre a mensagem do reino e a pregaccedilatildeo da Igreja Daiacute natildeo se segue de modo nenhum ndash como muitas vezes se teme ndash que a cruz seja um acidente secundaacuterio que em rigor poderia ter sido evitado Ao contraacuterio A estrutura da Igreja moldada sobre a cruz eacute fundamental porque aiacute eacute que por primeiro se encontra a confirmaccedilatildeo da importacircncia da liberdade humana de Cristo e da sua Paixatildeo bem como a iacutentima dependecircncia da Igreja para com a Cruz donde ela procede

Este fato que baseia o estabelecimento definitivo da Igreja sobre uma decisatildeo tomada ldquono Espiacuterito Santordquo eacute o fundamento para se afirmar que existe uma interpretaccedilatildeo eclesial do Novo Testamento do mesmo modo que existe uma exegese cristoloacutegica do Antigo Daiacute podermos estabelecer as seguintes teses ou proposiccedilotildees agrave luz da analogia fidei

a) Existe uma teologia veterotestamentaacuteria do Antigo Testamento que o exegeta

deduz de seu conteuacutedo interno e que se desenvolve em uma seacuterie de camadas superpostas Segundo ela os textos antigos devem ser relidos e de novo expostos agrave luz dos novos acontecimentos O fenocircmeno da aplicaccedilatildeo dos textos agraves situaccedilotildees novas do desdobramento da Revelaccedilatildeo mediante nova [33] apresentaccedilatildeo do Antigo Testamento estrutura jaacute de modo essencial o conteuacutedo interno veterotestamentaacuterio20

b) Existe uma teologia neotestamentaacuteria do Antigo Testamento que natildeo coincide com

a referida teologia veterotestamentaacuteria Estaacute contudo estreitamente ligada com ela na unidade da analogia fidei21 Talvez partindo daqui se possa esclarecer o que significa a analogia fidei entre Os dois Testamentos A teologia neotestamentaacuteria do Antigo Testamento natildeo eacute como ficou dito idecircntica agrave teologia histoacuterica veterotestamentaacuteria Ao contraacuterio Re-exposiccedilatildeo feita agrave luz do Cristo-evento ela natildeo procede soacute da mera consideraccedilatildeo histoacuterica do Antigo Testamento Sendo embora em seu pleno conceito uma interpretaccedilatildeo relacionada com o Antigo Testamento contudo nada faz com que ela seja internamente estranha agrave sua essecircncia ainda que soacute de fora o atinja Ela amplia a forma estrutural do Antigo Testamento que assim interpretado revive e cresce

c) Existe uma teologia neotestamentaacuteria do Novo Testamento paralela agrave teologia veterotestamentaacuteria do Antigo Ou seja a teologia que o exegeta como tal pode deduzir do conteuacutedo interno do Novo Testamento eacute tambeacutem esta conhecida e estruturada mediante a aplicaccedilatildeo do Antigo Testamento agraves novas situaccedilotildees

d) Existe uma teologia eclesial do Novo Testamento que noacutes [34] chamamos Dogmaacutetica Ela se relaciona com a teologia neotestamentaacuteria do Novo Testamento do mesmo modo que a teologia neotestamentaacuteria do Antigo se relaciona com a respectiva teologia veterotestamentaacuteria Aquele ldquomaisrdquo (das Mehr) que distingue propriamente a Dogmaacutetica da teologia biacuteblica eacute o que designamos com a palavra Tradiccedilatildeo Aliaacutes tambeacutem aqui devemos salientar que a teologia eclesiaacutestica neotestamentaacuteria pela mesma razatildeo natildeo eacute simplesmente idecircntica agrave teologia neotestamentaacuteria interna e

20 Cf H GROSS Motivtransposition als Form- und Traditionsprinzip im Alten Testament in H VORGRIMLER Exegese und Dogmatik Moguacutencia 1962 p134-152 e a bibliografia aiacute fornecida G v RAD Theologie des Alten Testaments II Munique 1960 p332-339 396-401 21 A diferenccedila entre as duas teologias do Antigo Testamento foi vivamente exposta por R BULTMANN ldquoWeissagung und Erfuumlllungrdquo in Glauben und Verstehen II Tubinga 1952 p162-186 - Sobre as necessaacuterias correccedilotildees a se fazerem para que se torne visiacutevel a base histoacuterica do que a teologia sistemaacutetica denomina ldquoanalogia fideirdquo cf G v RAD op cit p329-424 (entre outras) e principalmente a p 420 nota 25 e a p422 nota 29 Sobre o tema ldquoanalogia fideirdquo em ambos os Testamentos cf tambeacutem E PRZYWARA Alter und Neuer Bund Viena-Munique 1956

histoacuterica do Novo Testamento Ultrapassa-a sem contudo ser-lhe puramente externa Com efeito no Novo Testamento comeccedila jaacute o processo da exposiccedilatildeo pela Igreja das verdades reveladas A teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento processa-se dentro dele proacuteprio como de modo clariacutessimo se percebe na histoacuteria da Revelaccedilatildeo sinoacutetica22

Eacute oportuno fazermos ainda uma pequena observaccedilatildeo se cotejarmos atentamente a teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento com a Dogmaacutetica reconheceremos que se impotildee uma outra distinccedilatildeo A Dogmaacutetica como ciecircncia aleacutem da exposiccedilatildeo eclesiaacutestica do Novo Testamento abrange tambeacutem a teologia particular de cada teoacutelogo Neste caso para se falar com precisatildeo dever-se-ia apresentar somente o proacuteprio dogma como teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento

O que acabamos de referir natildeo passa naturalmente de um esboccedilo que necessitaria em seus pormenores de natildeo poucos esclarecimentos e distinccedilotildees a fim de ser completo No caso presente entretanto damos por suficiente este esboccedilo Resumindo o que ateacute aqui expusemos podemos agora destacar vaacuterias ldquoraiacutezesrdquo da Tradiccedilatildeo e apontar vaacuterias camadas em seu seio [35] lordf raiz a maior amplidatildeo da ldquoTradiccedilatildeordquo em referecircncia agrave ldquoEscriturardquo

2ordf raiz o caraacuteter especiacutefico da Revelaccedilatildeo neotestamentaacuteria como Pneuma em contraste com o Gramma Eacute o que na linguagem de Bultmann se poderia chamar de sua condiccedilatildeo de ldquonatildeo-objetordquo (Nichtobjektiviertbarkeit) A praxe eclesiaacutestica e a teologia medieval expressaram este aspecto ao sobreporem a fides agrave Scriptura isto eacute o dogma como regra de feacute agraves minuacutecias da lei escrita23 O dogma eacute como a chave hermenecircutica da Escritura que em uacuteltima anaacutelise sem o auxiacutelio da hermenecircutica ficaria sendo algo fechado

3ordf raiz o caraacuteter presencial do Cristo-evento e a presenccedila dinacircmica do Espiacuterito de Cristo em seu Corpo a Igreja E consequumlentemente o poder que tem a Igreja de fazer a pregaccedilatildeo do Cristo ontem e hoje pregaccedilatildeo esta cuja fonte se encontra na interpretaccedilatildeo eclesiaacutestica da mensagem do reino transmitida pelos Apoacutestolos

Em conexatildeo com estas trecircs raiacutezes da ideacuteia (ou melhor da realidade) da Tradiccedilatildeo podem distinguir-se na mesma as seguintes camadas

a) Na origem de toda Tradiccedilatildeo estaacute o fato de que o Pai enviou o Seu Filho ao mundo e que o Filho por sua vez se [36] entregou ndash como sinal ndash aos ldquopovosrdquo (παραδίδοται) Esta paraacutedosis original em sua forccedila direta e salvadora

22 Cf por exemplo a rica exposiccedilatildeo de G BORNKMANN Jesus von Nazareth Estutegarte 1956 Sobre a questatildeo aqui estudada cf H SCHLIER Uumlber Sinn und Aufgabe einer Theologie des Neuen Testaments in H VORGRIMLER Exegese und Dogmatik Mainz 1962 p6990 23 O que haacute de melhor sobre este assunto no tocante agrave Patriacutestica seraacute encontrado em HARNACK DG II (1931) p84-116 HARNACK diz na p 87 nota 3 o seguinte ldquoO Cacircnon era de iniacutecio a regra da feacute A Escritura estaacute centrada na verdade Sem duacutevida nenhuma sua autoridade funda-se solidamente no Antigo Testamento e nas palavras do Senhorrdquo ndash Que assim tenha pensado tambeacutem a Idade Meacutedia e que aqui aleacutem da revelatio (da qual falaremos na 2ordf parte deste livro) a fides sobrepondo-se agrave Scriptura estabelece a forma essencial do conceito de Tradiccedilatildeo foi o que tentei demonstrar em meu artigo Wesen und Weisen der auctoritas im Werk des heiligen Bonaventura in Die Kirche und ihre Aumlmter und Staumlnde (Festgabe Kardinals Frings publicado por CORSTEN-FROTZ-LINDEN Colocircnia 1960 p 58-72

prolonga-se na permanente presenccedila de Cristo no σῶμα Χριστοῦ ndash no Seu Corpo a Igreja Assim o misteacuterio integral da presenccedila de Cristo eacute antes de tudo a realidade total transmitida pela Tradiccedilatildeo (fato fundamental e decisivo sempre anterior a todas as explicaccedilotildees particulares mesmo as da Escritura) e reguladora do que deve propriamente ser transmitido

b) A Tradiccedilatildeo existe concretamente como presenccedila na feacute Esta por seu turno como ldquoin-habitaccedilatildeordquo de Cristo precede todas as explicaccedilotildees particulares e frutuosa e viva ldquoexplicita-serdquo (explizierend) atraveacutes dos tempos

c) A Tradiccedilatildeo tem seu oacutergatildeo na plenitude dos poderes da Igreja e portanto naqueles que satildeo os legiacutetimos depositaacuterios destes poderes24

d) A Tradiccedilatildeo exprime-se tambeacutem naquilo que emanado da autoridade da Igreja se tornou regra de feacute (Symbolum fides quaelig) Portanto a questatildeo de se saber se certas proposiccedilotildees foram transmitidas desde o

comeccedilo pela Tradiccedilatildeo ao lado da Escritura ou em outros termos se existe desde o comeccedilo um segundo princiacutepio material e autocircnomo ao lado da Escritura torna-se afinal um problema inteiramente secundaacuterio Talvez lhe devamos responder negativamente

5 A funccedilatildeo da exegese [37] Pelo que ateacute aqui dissemos ficaram esclarecidas quase que exclusivamente

trecircs pontos os limites da letra da Escritura a liberdade do Espiacuterito Santo e a autoridade da Igreja Acontece poreacutem que a exposiccedilatildeo que fizemos abriga ainda um sentido diverso relacionado com a justa preocupaccedilatildeo de Lutero da qual partimos

Se ficou estabelecido que a Revelaccedilatildeo se faz presente atraveacutes da pregaccedilatildeo e se pregaccedilatildeo eacute exposiccedilatildeo da palavra revelada entatildeo pode e deve agora ao que precede acrescentar-se o seguinte a Tradiccedilatildeo eacute essencialmente e sempre uma exposiccedilatildeo Natildeo existe de maneira autocircnoma e sim como explicaccedilatildeo como exposiccedilatildeo ldquorelacionada com a Escriturardquo

Isto vale para a pregaccedilatildeo do proacuteprio Jesus Cristo realizaccedilatildeo plena da Revelaccedilatildeo e sua exposiccedilatildeo feita com autoridade A pregaccedilatildeo de Jesus Cristo natildeo aparece como algo absolutamente novo na Escritura Isto eacute como algo ainda natildeo atestado no Antigo Testamento Ela ensina isto sim a essecircncia do que jaacute estava escrito e lhe confere uma vida nova que o simples exegeta natildeo pode comunicar-lhe

O que vale para a mensagem de Cristo que permanece a mesma sob diferentes modalidades de exposiccedilatildeo vale tambeacutem para a pregaccedilatildeo apostoacutelica e a eclesiaacutestica Como ldquoTradiccedilatildeordquo ela deve em uacuteltima anaacutelise ser uma exposiccedilatildeo ldquosegundo a Escriturardquo a ela sujeita e com ela relacionada Sem duacutevida natildeo eacute ela uma exposiccedilatildeo no 24 Estas ideacuteias natildeo podem ser desenvolvidas mais detalhadamente aqui como seria de desejar uma vez que em rigor estamos procurando apenas fundamentar o conceito de Tradiccedilatildeo Em razatildeo da brevidade que me impus contentei-me apenas nas teses precedentes com explanar o assunto ateacute ao ponto em que ficasse patente a relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a ldquoIgrejardquo (cf as teses 4 e 5) Para se descer a maiores detalhes dever-se-ia analisar tambeacutem o conceito de Igreja que supomos conhecido do leitor Para isto cf a nota 6 onde citamos nosso livro sobre o Ofiacutecio e a unidade da Igreja Encontram-se aiacute algumas observaccedilotildees sobre o assunto de que ora tratamos

sentido de mera interpretaccedilatildeo exegeacutetica Mas sim na autoridade espiritual recebida do Senhor a qual se consuma na existecircncia plena da Igreja em sua feacute em sua vida e em seu culto Contudo ela permanece sendo (mais ainda do que o Cristo-evento em que se funda a Igreja) uma ldquoex-posiccedilatildeordquo (Aus-Legung) comprometida com a Histoacuteria e com a Palavra [38] Exprime-se deste modo a sua ligaccedilatildeo com a accedilatildeo concreta de Deus nesta mesma Histoacuteria e em seu caraacuteter de fato histoacuterico uacutenico (o ἑφάπαξ ldquoo ocorrido uma soacute vezrdquo) A realidade cristatilde da Revelaccedilatildeo eacute tatildeo essencial quanto ldquoeternardquo e definitiva Resulta daiacute a unidade entre o Cristo da Feacute e o Jesus da Histoacuteria o Jesus histoacuterico natildeo eacute senatildeo o Cristo da Feacute ainda que a feacute seja sempre algo mais do que a histoacuteria

Segue-se que do mesmo modo que existe um ofiacutecio de custoacutedia da Revelaccedilatildeo por parte da Igreja ofiacutecio por ela mesma atestado existe tambeacutem um ofiacutecio de custoacutedia da mesma Revelaccedilatildeo por parte da exegese que penetra o sentido literal da Escritura e defende a uniatildeo do Logos com a carne contra qualquer perigo de gnose Existe portanto por assim dizer algo como uma autonomia especiacutefica da Escritura como regra objetiva e sob muitos pontos de vista esclarecedora do Magisteacuterio eclesiaacutestico Esta era sem duacutevida uma exigecircncia legiacutetima de Lutero que ainda natildeo foi devidamente acolhida na Igreja catoacutelica por parte do Magisteacuterio cujos limites internos nem sempre foram claramente entendidos

Dever-se-ia partindo daqui salientar uma dupla criteriologia em se tratando da feacute De um lado haacute o que a Igreja antiga chamou de ldquoregra da feacuterdquo norma reguladora da palavra revelada contida na Escritura e sua exposiccedilatildeo Esta praeligscriptio da posse da Escritura como proacutepria segundo Tertuliano exclui a possibilidade de qualquer uso legiacutetimo da mesma Escritura contra a Igreja Por outro lado haacute tambeacutem o limite da littera Scripturaelig ou do sentido literal historicamente fixaacutevel que de acordo com o que ficou dito natildeo constitui nenhum criteacuterio absoluto ou autocircnomo mas sim somente um criteacuterio relativo no confronto da feacute com a ciecircncia O que na Escritura se pode descobrir quer mediante estudo cientiacutefico quer por simples leitura tem a funccedilatildeo de um criteacuterio real a que deve estar atento inclusive o Magisteacuterio em suas explicaccedilotildees Certamente [39] trata-se entatildeo de elementos sub-componentes da ciecircncia que natildeo podem servir para se julgar a feacute mas nela encontram uma instacircncia criacutetica e tecircm tambeacutem um importante papel a exercer o de zelar pela pureza do ἑφάπαξ de tutelar o conteuacutedo da Revelaccedilatildeo e de defender o dualismo histoacuterico carneespiacuterito (ldquodie Sarx der Geschichterdquo) contra os arbiacutetrios da gnose que tende sempre a impor-se

A reformatio na qual estaacute empenhada a Igreja nesta hora histoacuterica tem um papel relevante a desempenhar Eacute a missatildeo de abrir novas perspectivas para o diaacutelogo tentando assim chegar a uma ldquoreformardquo diferente da do passado que culminou com a divisatildeo no seio da Cristandade ocidental Tal missatildeo se exerceraacute em harmonia com o pleno ofiacutecio de testemunho da Igreja que tira seu direito e sua forccedila da presenccedila do Espiacuterito e de Cristo presente em todos os tempos Pois ele eacute sempre o Cristo de agora com a plenitude de seus direitos e de seus poderes Ele eacute quem daacute legitimidade e vigor ao testemunho singular e definitivo da Escritura que por sua vez encontra seu pleno sentido na singularidade da accedilatildeo histoacuterico-salviacutefica de Jesus Cristo Ele deu ao Pai seu Corpo crucificado e dando-se a si mesmo santificou para sempre os que o receberam (cf Hb 1014 727) Ele eacute o Cristo ontem hoje e sempre (Hb 138)

SEGUNDA PARTE

Explicaccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo segundo o Decreto do Conciacutelio de Trento

Parece que a completa elucidaccedilatildeo das razotildees que levaram agrave substituiccedilatildeo do

partim-partim pelo et e consequumlentemente agrave pesquisa dos dados do debate tridentino e de sua preacute-histoacuteria aparentemente favoraacutevel agrave suficiecircncia material da Escritura [40] simplifica indevidamente este problema fazendo-nos perder de vista os proacuteprios antecedentes do Decreto do Conciacutelio de Trento

1 A concepccedilatildeo pneumatoloacutegica da Tradiccedilatildeo no esquema fundamental do Cardeal Cervini

a) O conteuacutedo Um balanccedilo histoacuterico e detalhado do problema em seu conjunto exigiria uma

pesquisa exaustiva que natildeo reduzisse o seu acircmbito como o fez Geiselmann em seu livro25 Natildeo eacute nossa intenccedilatildeo proceder a um exame minucioso do assunto no presente trabalho Aqui soacute seratildeo tratados alguns pontos do debate tridentino com o fim de ampliarmos mais o horizonte de nossas reflexotildees

Fundamental para a compreensatildeo dos debates em pauta bem como do Decreto definitivo do Conciacutelio parece-me ser o Discurso do Cardeal Legado Cervini datado de 18 de fevereiro de 1546 [41] cujas linhas gerais se patenteiam tanto no Decreto como em outras decisotildees conciliares26

Tem o discurso de Cervini o meacuterito de mostrar as linhas diretrizes do Decreto de maneira mais clara do que aparecem estas na uacuteltima redaccedilatildeo do mesmo onde elas se diluem muito devido a uma seacuterie de variadas implicaccedilotildees Eacute ainda de grande auxiacutelio para o entendimento do referido discurso uma carta dos Cardeais Legados ao Cardeal Alexandre Farnese de 28 de fevereiro de 1546 Esta carta revela conteuacutedo idecircntico ndash eacute certamente inspirada pelo mesmo Cervini ndash e oferece ainda alguns outros

25 Eacute lamentaacutevel que Geiselmann em sua anaacutelise da contribuiccedilatildeo medieval sobre este assunto se tenha apoiado apenas em argumentos de segunda matildeo portanto de valor histoacuterico discutiacutevel Queira o leitor ver minhas observaccedilotildees a este respeito in Theol-prakt Quartalschrift 1963 p224-227 As novas (e temperamentais) invectivas de Geiselmann in TThQu 144 (1964) p 31-69 em nada modificaram a minha posiccedilatildeo de vez que natildeo trazem nenhuma contribuiccedilatildeo vaacutelida ao assunto Precioso ao contraacuterio eacute o trabalho de Y CONGAR La Tradition et les traditionshellip Essai historique Paris 1960 Importante eacute tambeacutem a obra de J BEUMER Die muumlndliche uumlberlieferung als Glaubensquelle Friburgo 1962 A respeito do Conciacutelio de Trento cf sobretudo aleacutem do estudo fundamental de JEDIN o artigo de E ORTIGUES Escriture et Traditions apostoliques au Concilie de Trente in RSR 36 (1949) p 271-299 K D SCHMIDT Studien zur Geschichate des Konzilis von Trient Tubinga 1925 p 152-209 26 O discurso nos foi transmitido em duas redaccedilotildees A primeira mais curta encontra-se nas Atas do Conciacutelio in CT V 11 A segunda faz parte do diaacuterio de Massarelli (Diarium III) in CT I p484 Quanto ao conteuacutedo os dois textos se completam Na anaacutelise que aqui ensaiamos as duas versotildees satildeo comparadas entre si de modo a fazerem um todo Sobre a posiccedilatildeo de Cervini no Conciacutelio cf H JEDIN Geschichte des Konzils von Trient II Friburgo 1957 p38-40 A descriccedilatildeo do desenrolar histoacuterico dos debates acha-se em JEDIN op cit p42-82 e supomo-la conhecida do leitor de vez que serve de base para a anaacutelise teoloacutegica do Decreto tridentino

esclarecimentos Cervini sustenta no citado discurso que existem trecircs princiacutepios e fundamentos de nossa feacute

1) Os livros sagrados escritos sob a inspiraccedilatildeo do Espiacuterito Santo 2) O Evangelho que Nosso Senhor natildeo escreveu mas ensinou oralmente e

implantou nos coraccedilotildees Parte do Evangelho foi escrita mais tarde pelos Evangelistas enquanto muita coisa foi simplesmente confiada aos coraccedilotildees dos fieacuteis

3) Porque o Filho de Deus natildeo ia permanecer sempre entre noacutes enviou ele o Espiacuterito Santo que haveria de revelar os misteacuterios no iacutentimo dos fieacuteis e de ensinar agrave Igreja toda a verdade ateacute ao fim dos tempos27

[43] Numa segunda redaccedilatildeo mais detalhada do discurso estas mesmas ideacuteias satildeo

desenvolvidas mais amplamente Aiacute lemos que a Revelaccedilatildeo se apresentou de modo diferente em diversos tempos

1) Nos Patriarcas cuja feacute eacute atestada na Escritura a que chamamos de Antigo Testamento

2) Em Jesus Cristo que implantou o seu Evangelho natildeo por escrito mas oralmente natildeo in charta mas in corde Das coisas que emanaram de Cristo (quaelig a Cristo emanarunt) algumas foram escritas outras permaneceram nos coraccedilotildees dos homens (quaeligdam in cordibus hominum relicta fuerunt) Todo o Evangelho de Cristo que consta desta dupla modalidade forma (tendo como primeiro princiacutepio o Antigo Testamento) o secundum prindipium fidei nostraelig

3) Daiacute surge o terceiro princiacutepio (tertium autem) porque o Filho de Deus natildeo iria permanecer sempre entre noacutes enviou ele ao mundo o Espiacuterito Santo que haveria de explicar os misteacuterios de Deus e tudo o que fosse ainda obscuro para os homens28 De modo semelhante a citada carta ao Cardeal Farnese fala de dois passos (due

passi) Um eacute que a Revelaccedilatildeo de Nosso Senhor natildeo foi totalmente escrita mas permaneceu em parte contida nos coraccedilotildees dos homens e na Tradiccedilatildeo da Igreja O outro [43] passo consiste em confirmar ldquoquello che egrave suggerito lo Spirito Santo in la Chiesa maxime medianti i concilij doppo lAscensione in cielo del Signorerdquo29

Notamos logo que contrariamente ao que esperaacutevamos natildeo dois mas trecircs satildeo os princiacutepios apontados a Escritura o Evangelho e a Revelaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

27 CT V 11 helliptria esse principia et fundamenta nostrae fidei primum libros sacros secundum esse evangelium quod Christus Dominus Noster non scripsit sed ore docuit et in cordibus illud plantavit cujus evangelii nonnulla evangelistaelig scripto mandarunt multa quoque relicta sunt in cordibus hominum Tertium quia non semper filius Dei corporaliter nobiscum mansurus erat misit Spiritum Sanctum qui in cordibus fidelium secreta Dei revelaret et ecclesiam quotidie et usque consummationem saeligculi doceret omnem veritatem et si quid in mentibus hominum dubii occurrisset declararet 28 CT I 484 Digna de nota eacute ainda a foacutermula contida na paacutegina 48514-16 nihil tamen inter scripturas sacras et apostolicas traditianes differt illaelig enim scriptaelig hae per insinuationem habentur utraeque tamen a Spiritu Sancto eodem modo emanataelig Confira-se com CT V 11 19 ab eodem Spiritu et illos (scilicet libros) et istas (scilicet traditiones) descendisse 29 CT X 373

Eacute portanto necessaacuterio observar que sob o termo ldquoEscriturardquo se entende o Antigo Testamento e que aleacutem deste (que eacute Escritura em sentido proacuteprio) aparece como segundo princiacutepio o Evangelho apresentaccedilatildeo do Cristo-evento O Evangelho por sua vez abrange o que estaacute escrito e o que natildeo estaacute escrito mas sim apenas insculpido no coraccedilatildeo dos crentes Deste modo o segundo princiacutepio representa uma vantagem pneumaacutetica sobre o que estaacute escrito o Evangelho eacute nesta concepccedilatildeo algo diferente da letra (Escritura) e soacute em parte vem escrito (Isto natildeo deve ser entendido no sentido de divisatildeo das verdades da feacute fenocircmeno denunciado ldquocom horrorrdquo por Geiselmann Ao contraacuterio Entenda-se apenas no sentido de diferente grau de dignidade no modo de exprimir-se) Em rigor o Evangelho como tal soacute pode ser escrito em parte se considerarmos a sua essecircncia

Finalmente ndash o que eacute muito de se admirar ndash segue-se como terceiro princiacutepio a accedilatildeo visiacutevel do Espiacuterito Santo em todo o tempo da Igreja

Admitimos portanto que o que noacutes geralmente chamamos de Tradiccedilatildeo natildeo aparece aqui como um soacute princiacutepio Biparte-se antes em dois princiacutepios intimamente ligados o ldquoEvangelhordquo princiacutepio apenas em parte identificaacutevel com a Escritura e a accedilatildeo do Espiacuterito Santo no tempo da Igreja Ademais podemos observar que a Escritura do Novo Testamento natildeo aparece como um princiacutepio ao lado da Revelaccedilatildeo apostoacutelica Muito menos como [44] eacute o nosso caso se apresenta a Escritura neotestamentaacuteria juntamente com a veterotestamentaacuteria como uma grandeza uacutenica uma ldquoEscriturardquo soacute agrave qual se poderia contrapor a ldquoTradiccedilatildeordquo como uma segunda grandeza O Novo Testamento em seu conjunto aparece como um segundo e mais amplo princiacutepio ou seja o Evangelho que como tal se opotildee de um lado ao Antigo Testamento e de outro agrave projeccedilatildeo histoacuterica do tempo da Igreja Sua unidade interna eacute evidentemente mais forte e importante do que a sua divisatildeo em escrito e natildeo-escrito Assim o Evangelho como um soacute princiacutepio pode ser contraposto ao Antigo Testamento a despeito desta dupla formalidade A impossibilidade de se representar o Novo Testamento como Escritura impossibilidade esta demonstrada por Satildeo Paulo e pelos primeiros seacuteculos cristatildeos eacute aqui claramente revelada

Ainda uma observaccedilatildeo relativa ao texto a que vimos nos referindo Em nenhum dos dois pontos por noacutes citados no estudo da Tradiccedilatildeo isto eacute nem no elemento contido no primeiro nem no apresentado no terceiro princiacutepio figura a Tradiccedilatildeo como verbal Em ambos os casos ao contraacuterio trata-se mais da Tradiccedilatildeo real com prevalecircncia da realidade sobre as palavras que a atestam Este fato que estaacute claro no terceiro princiacutepio o pneumatoloacutegico vale tambeacutem em relaccedilatildeo agrave implantaccedilatildeo do Evangelho nos coraccedilotildees contida no segundo princiacutepio Tal implantaccedilatildeo vai muito aleacutem do que se encontra expresso na letra da Escritura

Que papel tenham estas ideacuteias exercido nas discussotildees do Conciacutelio pode-se concluir tambeacutem das auctoritates citadas por Cervini entre as quais figuram Jo 16 12 (hellipSpiritus Sanctus suggerethellip) e Fl 3 15 (Quicumque perfecti sumus haeligc sentiamus et si quid aliter sentitis haeligc quoque Deus vobis revelabit) Ambos estes textos satildeo de teor acentuadamente [45] pneumatoloacutegico-presencial30 Que tais ideacuteias natildeo eram

30 CT V 14 e 15 Um exame profundo das auctoritates quer da Escritura quer entre os Santos Padres que neste particular satildeo favoraacuteveis agrave Tradiccedilatildeo seria em si conclusivo para a elaboraccedilatildeo do conceito

estranhas aos Padres conciliares deduz-se ainda de uma seacuterie de outras referecircncias Assim ouvimos o Bispo de Aqui dizer que aleacutem da Sagrada Escritura existe muita coisa na Igreja de Deus que vindo dos Apoacutestolos e passando de geraccedilatildeo a geraccedilatildeo chegou ateacute noacutes assim como muitas outras quaelig etsi scripta Apostoli nobis non reliquerunt per Spiritus Sancti revelationem nobis (tradita) sunt (Tradita estaacute aqui por revelata) 31 Partindo daiacute se poderia descrever a Tradiccedilatildeo justamente como o componente pneumatoloacutegico do Cristo-evento b) A influecircncia do esquema de Cervini em diversas decisotildees conciliares

Eacute verdade que esta concepccedilatildeo tripartida aparece muito atenuada no Decreto

oficial sobre a Tradiccedilatildeo Que poreacutem em suas linhas fundamentais natildeo tenha ela sido de modo nenhum [46] abandonada mostram-no duas outras passagens nas quais o Conciacutelio faz uso por assim dizer in actu das ideacuteias aqui expressas32 Assim na Introduccedilatildeo ao Decreto sobre a Eucaristia (Denz 873) se lecirc Sacrosancta Synodus sanamhellipdoctrinam tradens quam semper catholica Ecclesia ab ipso Jesu Christo Domino Nostro et eius apostolis erudita atque a Spiritu Sancto illi omnem veritatem in dies suggerente (Jo 1416) edocta retinuithellip

Aqui a accedilatildeo proacutepria do Conciacutelio eacute descrita como tradere e a este tradere eacute atribuiacutedo um duplo fundamento De um lado o ensino de Jesus e dos Apoacutestolos (Note-se que este ponto corresponde ao Evangelho segundo a concepccedilatildeo de Cervini E de certo modo tambeacutem pela citaccedilatildeo de Jesus e dos Apoacutestolos se reconhece a dupla modalidade do Evangelho como escrito e como inserido nos coraccedilotildees) De outro lado o ensino dado pelo Espiacuterito Santo que conduz agrave verdade in dies isto eacute no de correr do tempo futuro

O outro texto que pode ser aduzido aqui como prova do que afirmamos encontra-se no Preacircmbulo do Decreto sobre o Purgatoacuterio (Denz 983) Aiacute se lecirc hellipCatholica Ecclesia Spiritu Sancto edocta ex Sacris Litteris et antiqua Patrum traditione in sacris Conciliis et novissime in hac Synodo docuerit A descriccedilatildeo da accedilatildeo proacutepria do

aqui exposto H HOLSTEIN procurou fazer o cotejo destas auctoritates e fecirc-lo de modo admiraacutevel em seu artigo La Tradition dapregraves le Concile de Trente (RSR 47 1959 p367-390 e em particular para o caso em questatildeo a p375) Ele encontra nos textos estudados duas linhas de tendecircncias A linha de Santo Irineu para a qual o testemunho dos Apoacutestolos eacute o de sua personalidade de sua vida e de seu ofiacutecio Aleacutem desta o grupo composto de Tertuliano Cipriano Basiacutelio e Agostinho forma uma corrente que se poderia denominar ldquocerimonialrdquo Oriacutegenes se enquadra em ambos os grupos Existe entre os autores estudados uma seacuterie de textos que se referem agraves observationes consuetudines institutiones e que levam a entender-se a Tradiccedilatildeo neste mesmo sentido Aiacute se vecircem tambeacutem textos que sublinham o aspecto natildeo-escrito do Evangelho enquanto insculpido no coraccedilatildeo dos fieacuteis e aleacutem disso textos que apontam a Igreja como o ldquolugarrdquo da verdade cristatilde 31 CT I 483 (18 de fevereiro de 1546) Em 26 de fevereiro (CT V 18) encontramos Cervini a tratar de novo deste assunto Cf tambeacutem um pronunciamento do Bispo de Fano (CT V 10) nestes termos Cum jam receperimus Scripturas Sacras necessario recipiendaelig sunt traditiones quaelig ab eodem Spiritu Sancto quo scripturaelig dictataelig sunthellip 32 Disto me adverti pela primeira vez atraveacutes de um estudo realizado sob a minha orientaccedilatildeo por CHR LIMBACR a quem sou devedor de muitas informaccedilotildees bibliograacuteficas

Conciacutelio como tradere encontra-se ainda nas declaraccedilotildees sobre o Sacramento da Extrema-Unccedilatildeo (Denz 910)

Finalmente a triacuteplice divisatildeo deixa-se insinuar nas entrelinhas do Decreto sobre a Tradiccedilatildeo embora obscurecida e diluiacuteda por uma seacuterie de acreacutescimos e citaccedilotildees a ele adicionados por outros motivos O Decreto da Tradiccedilatildeo com efeito [47]

1) Fala do Evangelho prometido pelos Profetas na Escritura e refere-se a esta em sentido estrito quer antes quer depois do Antigo Testamento

2) Fala da promulgaccedilatildeo por Cristo do Evangelho que foi transmitido pelos Apoacutestolos sob dupla forma oral e escrita Desta maneira o que natildeo ocorre no exemplo de Cervini aparece aqui antes de tudo o componente pneumatoloacutegico unido com o componente apostoacutelico a ponto de se distinguirem duas modalidades de Tradiccedilatildeo apostoacutelica a que remonta a Cristo e a que remonta ao envio do Espiacuterito Santo Pode-se assim estabelecer que em oposiccedilatildeo ao esquema de Cervini haacute um certo processo de historicizaccedilatildeo que salienta a relaccedilatildeo com o comeccedilo histoacuterico e igualmente parece deslocar o acento da tradiccedilatildeo real para a verbal

3) No epiacutelogo desta parte do Decreto da Tradiccedilatildeo que vimos analisando de novo eacute considerada a ideacuteia da Sagrada Escritura O conceito de Tradiccedilatildeo eacute entatildeo formulado em definitivo e descrito como vel oretenus a Christo vel a Spiritu Sancto dictatas et continua successione in Ecclesia catholica conservatas A referecircncia aos Apoacutestolos eacute omitida Pode-se na verdade considerar tudo isto como uma volta ao que foi dito antes Evidentemente a tradiccedilatildeo ditada pelos Apoacutestolos eacute citada de novo (A expressatildeo continua successione insinua-o) Contudo permanece sempre ainda certa indeterminaccedilatildeo ficando aberta a possibilidade de se encontrar aqui o vestiacutegio do terceiro componente de Cervini o princiacutepio pneumaacutetico propriamente dito Eacute tambeacutem claro que esta ideacuteia eacute discreta sendo adotada uma posiccedilatildeo mais acentuadamente histoacuterica Se agora lanccedilarmos os olhos sobre o que vimos considerando ateacute aqui surgiratildeo

inevitavelmente perguntas qual eacute realmente o sentido proacuteprio da concepccedilatildeo pneumatoloacutegica Como poderia ser perfeitamente entendida a ideacuteia a noacutes estranha de uma revelatio prolongada no tempo em face da unicidade e do caraacuteter [48] histoacuterico da Revelaccedilatildeo que evidentemente era conhecido tanto de Cervini quanto dos Santos Padres e teoacutelogos medievais33

Antes de examinarmos isto devemos esclarecer rapidamente os principais motivos que inspiraram o Decreto tridentino sobre a Escritura e a Tradiccedilatildeo deixando nele um tanto encoberta a concepccedilatildeo pessoal de Cervini Que opiniotildees de teoacutelogos teratildeo intervindo aqui chegando a ser em parte impressas no texto definitivo que resultou do cotejo de muitos pronunciamentos diversos Uma exposiccedilatildeo detalhada deste ponto exorbitaria do acircmbito de nossa anaacutelise Contentemo-nos com umas poucas observaccedilotildees sumaacuterias 33 Sobre este assunto tentei fazer um breve comentaacuterio no meu trabalho ldquoOffenbarung-Schrift-Uberlieferungrdquo in TThZ 67 (1958) p13-27 Cf J BEUMER ldquoDer theoretische Beitrag der Frnhscholastik zum Problem des Dogmenfortschrittsrdquo in ZkTh 72 (1952) p205-226 J de CHELLINCK Pour lrsquohistoire du mot ldquorevelarerdquo in RSR 6 (1916) p149-157

2 Relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a vida da Igreja

em diversas passagens do debate tridentino

Uma primeira seacuterie de motivos entre os quais se compreendem diversos pronunciamentos agraves vezes muito contrastantes em seu aparato exterior patenteia-se na ideacuteia de tradiccedilotildees expressa no Decreto de duas maneiras a) - per manus traditaelig ad nos usque pervenerunt b) - continua successione in Ecclesia catholico conservatas

O que se ocultaraacute sob estas duas foacutermulas que o historiador de hoje tem dificuldades em aceitar justamente por causa do historicismo nelas impliacutecito Podemos dizer que um decisivo papel exerceu aqui o pensamento que sempre aparecia nos debates a saber que as tradiccedilotildees satildeo variaacuteveis que muitas delas foram abolidas pelos Apoacutestolos e que por outro lado se [49] introduziram tradiccedilotildees eclesiaacutesticas que natildeo mais seriam abolidas34 Esta ideacuteia de Tradiccedilatildeo de certo modo se torna clara no tratado escrito sobre o mesmo assunto por Seripando para uso dos Padres Conciliares Seripando fala das Tradiccedilotildees escritas inseridas na Escritura como as claacuteusulas de Tiago o costume de as mulheres se cobrirem com um veacuteu a legislaccedilatildeo sobre o matrimocircnio contida em 1Cor 7 etc E o autor adverte que estas praacuteticas foram abolidas Isto porque embora associadas agrave palavra de Deus na Escritura dela ldquomuito diferemrdquo pois a palavra divina [50] de modo nenhum poderia ser abolida A estas tradiccedilotildees

34 Cabe aqui aduzir uma nova intervenccedilatildeo de Cervini datada de 26 de fevereiro de 1546 (CT I 33 e V 18) onde ele diz que nem todas as tradiccedilotildees procedentes dos Apoacutestolos devem ser conservadas mas somente as que ab Ecclesia receptaelig ad nos usque pervenerunt (V 18) Esta afirmaccedilatildeo anterior agrave formulaccedilatildeo dogmaacutetica feita pelo Concilio deve igualmente ser tida na conta de um autecircntico comentaacuterio do Decreto Aiacute se acentua como condiccedilatildeo essencial das tradiccedilotildees a receptio ecclesiaelig Vem ainda referida uma intervenccedilatildeo do Bispo de Bertinoro em data de 23 de marccedilo (I p 523) na qual ele sublinha que as tradiccedilotildees escritas por vezes foram mudadas Jaacute entre as natildeo-escritas umas foram mudadas e outras natildeo como por exemplo o rito de adicionar aacutegua ao vinho a Crisma a confissatildeo auricular O Bispo de Bertinoro acrescenta que por outro lado alguns pontos existem que permaneceram inteiramente inalterados tais como a crenccedila no descensus ad inferos na virgindade perpeacutetua de Maria a substituiccedilatildeo da observacircncia do saacutebado pela do domingo Temos depois um pronunciamento do Bispo de Bitonto datado de 27 de marccedilo (I 39) Este bispo era de parecer que algumas coisas foram transmitidas pelos Apoacutestolos com a finalidade de serem perpetuamente conservadas (como pertencentes ao depoacutesito da feacute) outras caiacuteram em desuso (como as claacuteusulas de Tiago) e outras enfim foram apenas aconselhadas Assim mesmo na Escritura algumas coisas haacute que foram escritas mas natildeo recebidas em uso por serem mateacuteria de mero conselho Por exemplo ldquose algueacutem te pedir a tuacutenica daacute-lhe tambeacutem o paacutelio se algueacutem te esbofetear numa face oferece-lhe tambeacutem a outrardquo Sem duacutevida excelente ilustraccedilatildeo do sermatildeo da montanha Finalmente consideraccedilotildees idecircnticas podemos encontrar na obra citada de LEJAY Eis outra amostra tirada do discurso de 23 de fevereiro (CT V 13) Nam illaelig (scil traditiones) quaelig ad fidem pertinent eadem sunt recipiendaelig auctoritate qua recipitur evangelium alia autem non ita eum earum plurimaelig immutataelig fuerint ut de bigamis de esu sanguinis et similia De modo semelhante aliaacutes fala tambeacutem Bonuccio (I 525 a 23 de marccedilo de 1546 ecclesia traditiones apostolorum quandoque mutavit verbum autem Dei nunquam mutavit neque mutare potest

Seripando opotildee as natildeo referidas na Biacuteblia e que ora satildeo apostoacutelicas ou oriundas de Conciacutelios universais e aceitas por toda a Igreja ora satildeo particulares e muito variaacuteveis35

Este texto nos leva a uma surpreendente conclusatildeo para Seripando e muitos outros Padres tridentinos36existem tradiccedilotildees na Escritura ldquoTradiccedilatildeordquo natildeo significa o natildeo-escrito Existe quer dentro da Escritura quer fora dela Isto nos conduz a outra pergunta em que consiste para os referidos Padres a essecircncia da tradiccedilatildeo se o que a constitui natildeo eacute o fato de natildeo ser escrita37 Em outros termos como pode a tradiccedilatildeo ser definida positivamente se ela natildeo pode ser suficientemente determinada pela ideacuteia negativa de algo natildeo-escrito

Haacute uma seacuterie de respostas para esta pergunta O proacuteprio Seripando daacute a seguinte definiccedilatildeo Traditiones hoc est Apostolorum seu sanctorum Patrum sanctae et salutares constitutiones38 Mais clara ainda eacute a afirmaccedilatildeo de Cervini citada por Massarelli A objeccedilatildeo do Bispo de Chioggia que aduzia a opiniatildeo de Agostinho de que tudo o que eacute necessaacuterio para a salvaccedilatildeo estava escrito na Biacuteblia respondia Cervini da seguinte maneira Verba illa (isto eacute de Santo Agostinho) formaliter intelligi debent scilicet ad fidem accipiendam ut salvi fiamus Quo vero ad mores et christianam vitam instituendam certo non omnia scripta sunt

[51] E de novo recorre agraves provas tiradas de Jo 1526 e 1426 E indica o princiacutepio pneumatoloacutegico39 O que eacute mais importante eacute que a Tradiccedilatildeo se refere agrave institutio vitaelig agrave presenccedila atuante da Palavra revelada na existecircncia cristatilde Tradiccedilatildeo eacute noutros termos a eficaacutecia da palavra de Deus Sem ela a palavra ficaria esteacuteril 35 Seripando De traditionibus (fevereiro ou marccedilo de 1546) CT XII p517-521 e principalmente a p 521 As expressotildees desta uacuteltima paacutegina chocam-se com a ideacuteia de Cervini sobre a receptio ecclesiaelig 36 Cf o texto citado na nota 11 37 No texto definitivo do Decreto esta ideacuteia natildeo aparece mais Aqui poreacutem com esta primeira designaccedilatildeo expliacutecita da Tradiccedilatildeo vem expressamente acentuado o contraste entre in libris scriptis et sine scripto traditionibus Na segunda redaccedilatildeo o sentido expliacutecito da palavra Tradiccedilatildeo natildeo eacute tatildeo exclusivo Contudo apresenta igual matiz ao se confrontarem as expressotildees omnes libroshellipnec non traditiones ipsas Portanto a ideacuteia positiva da Tradiccedilatildeo que serve de base a esta anaacutelise natildeo deixou de influenciar na redaccedilatildeo do Decreto 38 CT XII 517 39 CT I 494 (26 de fevereiro de 1546) A citada palavra de Santo Agostinho teve o seu papel a desempenhar na discussatildeo em curso Seripando por exemplo a ela se referiu (De traditionibus CT XII 521 47-53) Pensandum denique ne in traditionibus externis vera religio et salutis spes statuatur de quibus Augustinus Omnia quaelig pertinent ad veram religionem quaeligrendam et tenendam divina Scriptura non acuit Conceda-se que nem tudo foi escrito (veja-se Jo 2125) Todavia electa sunt autem quaelig scriberentur quaelig saluti credentium sufficere videbantur Mais do que nos debates do tridentino encontramos aqui um verdadeiro postulado dos Reformadores ldquonatildeo adotar costumes exteriores mas buscar os meios definitivos de salvaccedilatildeo na palavra da Escriturardquo A ldquosuficiecircnciardquo da Escritura de que aqui se fala eacute na verdade algo diverso da suficiecircncia material da mesma Escritura defendida por Geiselmann em sentido muito mais radical Infelizmente ainda natildeo se quis levar na devida consideraccedilatildeo o texto de Santo Agostinho (CT I 494 sugere De doctrina christiana II 9 e De pecc mero et rem II 59) Muito apropriadas nesta ordem de ideacuteias satildeo as observaccedilotildees de H SCHAUF ldquoSchrift und Traditionrdquo in Antonianum 39 (1964) p200-209 feitas no chamado Encontro de Duumlsseldorf Nos textos citados por Schauf com base em Agostinho eacute afirmada a suficiecircncia da Escritura para a salvaccedilatildeo Eacute contudo contestada a sua suficiecircncia para a Igreja em geral De fato esta alternativa parece muito mais vaacutelida e fundamental agrave luz dos postulados dos Reformadores do que a alternativa entre a suficiecircncia ou insuficiecircncia material da Escritura

Na mesma linha de ideacuteias seguem-se duas outras seacuteries de pronunciamentos Vimos na introduccedilatildeo agrave parte anterior que a discussatildeo dogmaacutetica da ideacuteia de

Tradiccedilatildeo foi em parte prejudicada pela questatildeo do meacutetodo a seguir no Conciacutelio dever-se-ia abordar primeiro a reformatio a reforma praacutetica da Igreja como queria o ldquoKaiserrdquo Ou primeiro discutir a questatildeo dogmaacutetica como preferia o Papa40

[52] Este problema do meacutetodo embora resolvido no debate que entatildeo surgiu natildeo afetou diretamente a questatildeo da Tradiccedilatildeo como tal Mas como de fato estas duas questotildees ficaram ligadas entre si daiacute resultou que muitos oradores transformaram a questatildeo do meacutetodo (se se deveria falar dos abusos ou da Tradiccedilatildeo) em parte de sua argumentaccedilatildeo em torno do assunto em pauta41 O problema abusus e o problema Traditio ficaram de tal maneira associados na ocasiatildeo que pareciam formar no fundo um soacute assunto Por isso os oradores ora falavam em sentido positivo ora se pronunciavam em sentido negativo Isto correspondia tambeacutem ao propoacutesito reformista do Conciacutelio as traditiones representavam os abusus aos quais a Igreja se opunha Os Padres estavam cocircnscios de que condenar as traditiones era condenar Os usus ecclesiaelig o modo como a Igreja vivia a sua vida naquela eacutepoca

A outra seacuterie de pronunciamentos que se inclinavam ao mesmo sentido encontramo-la nas proposiccedilotildees que a auctoritas da Igreja apresenta como definitivas indicando uma iacutentima relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a institutio christiana 42

[53] Podemos agora retomar ao nosso ponto de partida e dar resposta agrave pergunta que propriamente significa a foacutermula ad nos usque pervenerunt Objetivamente natildeo se trata aqui de um historicismo que a foacutermula parece expressar Ao contraacuterio Trata-se da fidelidade perseverante da Igreja agrave institutio vitaelig christianaelig da legiacutetima forma de vida cristatilde em concreto no tempo presente da Igreja da institutio christiana que coloca a Escritura em primeiro lugar e que como tal isto eacute como vida decorrente da Escritura eacute fundamentalmente apostoacutelica embora tambeacutem sujeita a mudanccedilas como tudo o que eacute vivo

3 A Tradiccedilatildeo e o dogma eclesiaacutestico

40 Sobre o debate em torno da questatildeo do meacutetodo cf mais uma vez JEDIN op cit p9-82 e outras 41 Assim jaacute no discurso de Cervini antes analisado (CT I 484) no qual ele recorda o dilema do Conciacutelio se nos voltarmos contra as tradiccedilotildees ficaratildeo admirados os Padres Conciliares quasi reformationem fugiamus si ipsam reformationem sumimus iterum objicient traditiones relinquendas non esse Idecircntica era a situaccedilatildeo em que se encontrava o Bispo de Astorga nas duas intervenccedilotildees que fez no dia 23 de fevereiro de 1546 (CT V 13 e 19) segundo Seripando (I 484) helliptraditiones prius pertractandas consulit tantam enim conformitatem abusus qui ex sacris libris descendunt cum iis qui a traditionibus orti sunt habent ut sacris libris et traditionibus absolutis duo illa abusuum genera simul pertractari valeant Segundo Bonuccio (I 484) antes de tudo dever-se-ia tratar das Sagradas Escrituras dos cacircnones apostoacutelicos dos Conciacutelios gerais e das decretais pontifiacutecias Hisque ilusceptis ad abusus ex eisdem dependentes devenire 42 Assim principalmente de acordo com Afonso de Castro (CT I 484) Quoniam ultra traditiones apostolicas ecclesiae auctoritatem habemus quaelig ecclesiaelig auctoritas tonta apud nos est ut aliqui eam maioris roboris quam sacros libros esse sentiant Cf igualmente CT I 491 45 Na mesma linha pode-se ver uma seacuterie de pronunciamentos na citada obra de LEJAY Cf CT XII 524 (Tratado De traditionibus ecclesiaelig fevereiro ou marccedilo de 1546)

Uma segunda seacuterie de motivos eacute expressa no Decreto pela foacutermula traditiones tum ad fidem tum ad mores pertinentes Se como vimos a ideacuteia de Tradiccedilatildeo aparece muito limitada naquilo que os Padres conciliares chamam consuetudines observationes institutiones por outro lado o Procurador do Cardeal de Augsburgo Claudio Lejay SJ se fez o porta-voz de uma expressatildeo que em oposiccedilatildeo agraves traditiones caeligremoniales estabeleceu justamente o sentido da tradiccedilatildeo contida na feacute Seu tratado sobre a Tradiccedilatildeo composto para uso dos Padres conciliares inclui tambeacutem a foacutermula que foi adotada pelo Conciacutelio Aiacute se diz Denique multas veritates tum ad fidem tum ad mores pertinentes Ecclesia novit quas Scriptura aperte et expresse non continet Ele cita como exemplos as palavras persona essentia trinitas no Tratado da Santiacutessima Trindade consubstantialitas na Cristologia do Logos duas naturezas uma soacute Pessoa referentes ao dogma definido pelo Conciacutelio de Calcedocircnia E ainda Cristo Filho uacutenico de Maria duas vontades na uacutenica Pessoa de Cristo uma alma racional aleacutem do espiacuterito divino em Cristo Ana matildee de Maria o costume de fazer sinais da cruz a santificaccedilatildeo do domingo a maneira de rezar com face voltada [54] para o Oriente tudo isto ideacuteias e fatos da tradiccedilatildeo conciliar e da piedade cristatilde43

Cervini que aprovou o discurso de Lejay de 23 de fevereiro de 154644 pocircde dificilmente conciliar esta posiccedilatildeo com a sua expressa na jaacute citada carta ao Cardeal Farnese onde como vimos ele diz que o Espiacuterito Santo falou na Igreja e depois da Ascensatildeo do Senhor fala ainda maxime medianti i concilii45 Ele aiacute viu publicamente sublinhado o fato de que aquele ldquomaisrdquo que a Igreja viva representa em relaccedilatildeo agrave palavra meramente escrita natildeo se referia e natildeo se refere apenas agrave vita instituenda ou como ele prefere agrave caeligremonialia Refere-se tambeacutem agrave essentialia fidei que antes de tudo plenamente se expressam na Tradiccedilatildeo Tambeacutem aqui como se vecirc o interesse dominante natildeo estaacute na apresentaccedilatildeo historicista do assunto a partir do iniacutecio da Igreja mas na ideacuteia de que a influecircncia da Tradiccedilatildeo sobretudo atraveacutes da praxe conciliar eacute de fundamental importacircncia para a feacute para a doutrina crida e natildeo apenas para a piedade viva ou a caeligremonialia

4 O sentido do Decreto tridentino

Se recapitularmos o que ateacute agora dissemos veremos que no conjunto facilmente se podem reconhecer trecircs diferentes concepccedilotildees teoloacutegicas unidas entre si no texto definitivo do Decreto sobre a Tradiccedilatildeo Unidas mas natildeo equiparadas umas agraves outras Pelo contraacuterio apesar de sua grande diferenccedila foram elas apenas [55] mais ou menos justapostas e de novo por forccedila de uma tendecircncia comum relacionadas entre si

1 A concepccedilatildeo de Cervini que designamos como pneumatoloacutegica Com sua doutrina sobre os trecircs principia fidei insiste ele no caraacuteter dinacircmico do Cristo-evento

43 CT XII 523 LEJAY baseia-se evidentemente em listas de tradiccedilotildees confeccionadas naquele tempo (Cf ECK DRIEDO CANO BOTO NOGAROLA) Cf a este respeito Y CONGAR ldquoTraditions apostoliques non eacutecrites et suffisance de lEscrituresrdquo in Istina 6 (1959) p219-306 e principalmente a paacutegina 289 44 CT V 14 45 CT X 373

presente na Igreja Entende assim a Tradiccedilatildeo primariamente como a realidade espiritual da institutio vitaelig christianaelig

2 A concepccedilatildeo que podemos chamar de cerimonial Esta entende a Tradiccedilatildeo essencialmente como a seacuterie de consuetudines existentes ao lado da feacute como os usus ecclesiaelig que os Reformadores falsamente pretendem abolir como abusus Esta concepccedilatildeo chega a condenar a dignidade e Antiguumlidade apostoacutelica das tradiccedilotildees Sua ideacuteia eacute limitada pelo ad nos usque pervenerunt que inclui possibilidade de variar da parte das tradiccedilotildees donde a necessidade de reduccedilotildees Com os termos pervenire e conservare a recepccedilatildeo por parte da Igreja eacute considerada criteacuterio adicional ao lado da Antiguumlidade

3 A concepccedilatildeo que talvez possamos denominar dogmaacutetica Em oposiccedilatildeo agrave fixidez da ideacuteia de Tradiccedilatildeo reduzida agrave consuetudo salienta esta terceira hipoacutetese a extensatildeo do fenocircmeno Tradiccedilatildeo tambeacutem ao acircmbito da fides

Estas trecircs concepccedilotildees deram forma ao texto do Decreto de tal modo que as suas

linhas mestras derivam de Cervini e todo o texto deve ser entendido agrave luz de suas ideacuteias Contudo em duas passagens isto eacute no pervenerunt e no conservatas haacute influecircncia da segunda concepccedilatildeo enquanto no tum ad fidem tum ad mores haacute influecircncia da terceira

Em face destas trecircs concepccedilotildees das quais na realidade existem diversas variantes que tomadas em conjunto satildeo a expressatildeo das ideacuteias dominantes adotadas aparecem as teses de Bonuccio e de Nacchianti tatildeo postas em evidecircncia por Geiselmann como sentenccedilas contraacuterias De fato o parecer de Bonuccio claramente [56] se opotildee agrave segunda concepccedilatildeo (contra a supervalorizaccedilatildeo das consuetudines natildeo per pietatis affectus) ao passo que Nacchianti se levanta antes contra a terceira posiccedilatildeo e salienta a suficiecircncia da feacute recebida por meio da Escritura46

Seria de notar-se ainda que as concepccedilotildees segunda e terceira tecircm algo em comum Ambas opotildeem agrave visatildeo pneumatoloacutegica de Cervini da salvaccedilatildeo sempre presente uma visatildeo mais historicista relacionada com o prolongamento da salvaccedilatildeo operada uma soacute vez ou seja o ἑφάπαξ Na realidade deve-se dizer que embora de um lado tanto a visatildeo presencial de Cervini como tambeacutem a visatildeo historicista do outro grupo se consideradas isoladamente cada qual de per si sejam perigosas se natildeo insustentaacuteveis 46 Aliaacutes de acordo com uma informaccedilatildeo de Cervini parece que o Bispo de Chioggia finalmente renunciou agrave sua tese da suficiecircncia da Escritura na qual se inclinava a recusar as tradiccedilotildees Na carta de Cervini ao Cardeal Farnese de 27 de fevereiro de 1546 lemos hellip Chioggia che (quasi quasi) voleva dire queste traditioni essere superflue perorando che tutto quello che era necessario alla salute era scritto et allegando etiam S Agostino sopra lultimo capitulo di S Giovanni a questo proposito Pure per non poter negare che molte cose appartenenti almeno alli sacramenti non ci fussero venute ex tra ditione et per consequente che non tutte le cose necessarie alia nostra salute erano scritte poiche ebbe fatte molte distintioni concluse che ancor lui accettava queste ldquoche in la chiesa fusse qualque traditione apostolica non scrittardquo (et con queste parole diceva che se ne facesse il decreto) credo che molti sono restati scandalizati di lui (CT X Nr 315 paacutegs 399 411) Cf tambeacutem CT I 494 nota 9 e 495 nota 2 CT V 18 nota 5 e 19 e nota 1 O mesmo protesto que aparece contra Nacchianti manifesta-se tambeacutem na observaccedilatildeo de Massarelli Este chega a chamar aquele de novarum rerum cupidus (1 494 18) e esclarece que reprehensus est a multis (1 494 22) Diante disto eacute de todo destituiacuteda de creacutedito a importacircncia que Geiselmann lhe atribui mesmo se abstrairmos de outras razotildees jaacute conhecidas sobre as quais natildeo precisamos insistir

de outro lado pelo menos tornam possiacutevel uma exata visatildeo do conjunto devido agrave sua muacutetua confluecircncia e limitaccedilatildeo No texto atual estatildeo presentes embora pouco nitidamente ambos os pontos de vista o elemento presencial e o ἑφάπαξ Conveacutem que entendamos assim o texto de modo a considerarmos [57] ambos estes aspectos como essenciais Consequumlentemente reconheceremos que ambos pertencem constitutivamente agrave realidade da vida cristatilde e portanto tambeacutem agravequela parcela do Cristianismo a que damos o nome de Tradiccedilatildeo Estes dois elementos satildeo a presenccedila do Espiacuterito Santo e o seu nexo com o fato singular da salvaccedilatildeo ocorrido uma soacute vez por todas na histoacuteria dos homens

Assim se acharaacute finalmente a resposta agrave pergunta de corno noacutes devemos entender o parecer do Conciacutelio de Trento A primeira e mais importante conclusatildeo parece-me ser o fato de o Conciacutelio ter visto muito claramente o nexo entre Tradiccedilatildeo e Revelaccedilatildeo A seguir elaborou sempre em consonacircncia com a tradiccedilatildeo patriacutestica e medieval um conceito de Revelaccedilatildeo muito menos material do que o que seraacute adotado mais tarde pela teologia dos tempos modernos Somente assim se deve conceber a ideacuteia da Revelaccedilatildeo do Espiacuterito Santo na Igreja Partindo do ramo nitidamente patriacutestico da teologia medieval tatildeo francamente acolhido no discurso de Cervini deveria ser muito menos categoacuterica a opiniatildeo que coloca o teacutermino da Revelaccedilatildeo na morte do uacuteltimo Apoacutestolo Naturalmente esta questatildeo natildeo pode ser aqui estudada com maiores detalhes A sua soluccedilatildeo como entatildeo se apresentava aos teoacutelogos poderia ser hoje impostada apelando-se para as categorias da teologia atual Segundo esta podemos dizer que a Revelaccedilatildeo estaacute encerrada do ponto de vista de seu princiacutepio material Todavia estaacute e continua presente em sua realidade eficaz Noutros termos a Revelaccedilatildeo tem eacute verdade o seu ἑφάπαξ enquanto ela se realizou num determinado dia na Histoacuteria Entretanto ela tem tambeacutem o seu ldquohojerdquo permanente isto eacute o que foi uma vez por todas realizado na feacute da Igreja permanece sempre vivo e operante Assim a feacute cristatilde natildeo se volta apenas para o passado Abrange tambeacutem o presente e o futuro Eacute verdade que a posterior materializaccedilatildeo historicista da ideacuteia de Revelaccedilatildeo aparece jaacute claramente insinuada nos debates tridentinos corno um fato previsto mas ainda [58] natildeo consumado embora talvez se possa dizer que nos textos conciliares ficou definitivamente consagrada a sua aceitaccedilatildeo

Finalmente acrescentemos ainda que com base nos debates do Conciacutelio podemos estabelecer quatro elementos da ideacuteia de Tradiccedilatildeo 1 O aspecto natildeo-escrito da Revelaccedilatildeo ou do Evangelho contido na Biacuteblia e no coraccedilatildeo dos fieacuteis 2 A palavra do Espiacuterito Santo no decorrer de todo o tempo da Igreja

3 A atividade da Igreja nos Conciacutelios 4 A Tradiccedilatildeo lituacutergica e a da vida da Igreja em geral Nestes quatro elementos

que se deve ter sob os olhos pois formam o fundo ideoloacutegico do Decreto expressa-se a realidade uacutenica do tempo presente da Igreja cristatilde Nele estaacute presente todo o passado poacutes-apostoacutelico da Igreja (inclusive o proacuteprio tempo dos apoacutestolos) de modo que toda a sua vida eacute na Sagrada Escritura um elemento central embora natildeo o uacutenico Em suma deve ter ficado claro que o Conciacutelio de Trento a despeito do caraacuteter contrastante e fixo de sua ideacuteia de Revelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeo oferece uma visatildeo muito mais rica destes conceitos do que a que impregnou a mentalidade dos seacuteculos seguintes Justamente por

isso a teologia de hoje pode retirar daiacute novos subsiacutedios novo apoio para suas pesquisas e novas indicaccedilotildees sobre o verdadeiro caminho a seguir

Quadro sinoacutetico do Decreto tridentino sobre a Tradiccedilatildeo

Primeiro princiacutepio conforme Cervini (AT = Escritura)

Sacrosancta œcumenica et generalis Tridentina Synodus in Spiritu Sancto legitime congregata [] hoc sibi perpetuo ante oculos proponens ut sublatis erroribus puritas ipsa EVANGELII in Ecclesia conservetur quod PROMISSUM ANTE PER PROPHETAS IN SCRIPTURIS SANCTIS

Segundo princiacutepio conforme Cervini o Evangelho em parte escrito em parte insculpido nos coraccedilotildees

[59] DOMINUS NOSTER IESUS CHRISTUS DEI FILIUS PROPRIO ORE PRIMUM PROMULGAVIT DEINDE PER SUOS APOSTOLOS TAMQUAM FONTEM OMNIS ET SALUTARIS VERITATIS ET MORUM DISCIPLINAE OMNI CREATURAE PRAEDICARI IUSSIT PERSPICIENSQUE HANC VERITATEM ET DISCIPLINAM CONTINERI IN LIBRIS SCRIPTIS ET SINE SCRIPTO TRADITIONIBUS QUAE AB IPSIUS CHRISTI ORE AB APOSTOLIS ACCEPTAE AUT AB IPSIS APOSTOLIS SPIRITU SANCTO DICTANTE

Seripando Cervini e outros soacute consideram as tradiccedilotildees recebidas pela Igrej (ldquoad nos usquerdquo)

quasi per manus traditae ad nos usque pervenerunt

orthodoxorum Patrum exempla secuta omnes libros tam Veteris quam Novi Testamenti cum utriusque unus Deus sit auctor nec non TRADITIONES IPSAS

Lejay Tradiccedilatildeo contendo natildeo soacute a ldquoconsuetudordquo mas relacionada tambeacutem com a ldquofidesrdquo (foacutermula conciliar)

tum ad fidem tum ad mores pertinentes

Terceiro princiacutepio de Cernini Depois da Ascenccedilatildeo de Cristo o Espiacuterito Santo ensina tambeacutem os misteacuterios de Deus

TAMQUAM VEL ORETENUS A CHRISTO VEL A SPIRITU SANCTO DICTATAS

Seripando Cervini etc soacute satildeo consideradas as coisas recebidas pela Igreja (como acima)

et continua successione in Ecclesia catholica conservatas

Cervini Escritura e Tradiccedilatildeo procedem ambas do mesmo Espiacuterito Santo

pari pietatis affectu ac reverentia suscipit ac veneratur

  • Prefaacutecio
  • SEGUNDA PARTE
  • Explicaccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo
  • segundo o Decreto do Conciacutelio de Trento
Page 7: Revelacao e Tradicao-Joseph Ratzinger (Bom Ler)

Com efeito se a teologia catoacutelica ensina e potildee em praacutetica sua doutrina sobre a graccedila santificante e a vontade salviacutefica universal sobre a necessidade da graccedila elevante para a feacute e a doutrina tomista sobre o sentido ontoloacutegico transcendental da graccedila entitativa agrave luz da Revelaccedilatildeo segue-se que sem cair no Modernismo a teologia pode e deve reconhecer a histoacuteria da Revelaccedilatildeo ou simplesmente a Revelaccedilatildeo no sentido de apresentaccedilatildeo categorial histoacuterica Falando mais propriamente diremos a histoacuteria daquela mesma relaccedilatildeo transcendental entre o homem e Deus realizada de modo sobrenatural atraveacutes de uma sempre gratuita participaccedilatildeo divina Tal histoacuteria deve com razatildeo ser chamada de Revelaccedilatildeo

[5] Se transcendecircncia sempre existiu e sempre existe na histoacuteria e se haacute uma criaccedilatildeo transcendental no homem manifestada atraveacutes de algo permanente a que chamamos graccedila santificante que santifica o homem precisamente pela participaccedilatildeo de Deus e natildeo atraveacutes de qualquer outra eficiecircncia casual resulta entatildeo que esta absoluta transcendecircncia verificada na absoluta uniatildeo do Deus misterioso e inefaacutevel que se torna presente no homem tem uma histoacuteria Esta histoacuteria eacute o que chamamos de histoacuteria da Revelaccedilatildeo

O fato da Revelaccedilatildeo tem sempre um duplo aspecto Por um lado a constituiccedilatildeo de uma transcendecircncia sobrenaturalmente elevada do homem como algo permanente gratuito mas nem sempre de todo positivo ou seja a transcendental experiecircncia da absoluta e gratuita participaccedilatildeo da vida divina mesmo quando ela natildeo seja concretamente objetivada em cada um em particular E por outro lado a mediaccedilatildeo histoacuterica a objetivaccedilatildeo concreta desta experiecircncia sobrenaturalmente transcendental que ocorre na histoacuteria considerada em seu conjunto (A voluntaacuteria reflexatildeo teoloacutegica do indiviacuteduo tambeacutem pertence a esta histoacuteria mas natildeo a cria primariamente nem a forma) A experiecircncia transcendental referida chama-se usualmente histoacuteria da Revelaccedilatildeo quando ela eacute realmente histoacuteria da verdadeira exposiccedilatildeo desta experiecircncia sobrenatural e transcendental e natildeo a sua contrafaccedilatildeo Em outros termos quando ela eacute o resultado positivo desta transcendental participaccedilatildeo de Deus pela graccedila Ou ainda quando ela ocorre por disposiccedilatildeo da Providecircncia sobrenatural de Deus Salvador

Se for assim compreendida a unidade e inter-relaccedilatildeo entre Revelaccedilatildeo categorial e Revelaccedilatildeo histoacuterica ou melhor o elemento transcendental e o elemento histoacuterico (mediador) de uma revelaccedilatildeo e de sua histoacuteria seraacute entatildeo tambeacutem visiacutevel uma primordial distinccedilatildeo no que eacute revelado

Revelado eacute Deus como o que se daacute a participar em absoluta e gratuita uniatildeo como Deus ou seja como misteacuterio absoluto Revelada eacute a mediaccedilatildeo histoacuterica desta experiecircncia transcendental [6] como autecircntica como absoluta experiecircncia de Deus Revelada eacute no aacutepice singular e definitivo desta histoacuteria da Revelaccedilatildeo a absoluta e irreversiacutevel unidade entre a participaccedilatildeo transcendental de Deus na humanidade e sua histoacuterica mediaccedilatildeo no uacutenico Deus-Homem Em Jesus Cristo como numa soacute Pessoa o proacuteprio Deus compartilha da humana posse desta mediaccedilatildeo e de sua definitiva manifestaccedilatildeo histoacuterica

Nesta unidade entre a transcendental co-participaccedilatildeo de Deus e sua definitiva mediaccedilatildeo e manifestaccedilatildeo histoacuterica uma vez que se trata da comunicaccedilatildeo de Deus em si mesmo eacute revelado tambeacutem o misteacuterio fundamental do Deus trino enquanto se considera neste misteacuterio somente o aparecimento de Deus conosco na histoacuteria e na

Deivide
Realce
Eacute Jesus Cristo

transcendecircncia ou seja do Deus trino Pai Filho e Espiacuterito Santo em sua possibilidade de vir a manifestar-se na transcendecircncia do homem e na sua histoacuteria

Enquanto por conseguinte a histoacuteria se abre agrave transcendecircncia o Filho envia o Espiacuterito Enquanto a transcendecircncia constroacutei a histoacuteria o Espiacuterito realiza a Encarnaccedilatildeo do Logos Enquanto o aparecimento de Deus na histoacuteria expressa a impossibilidade de se conservar oculto o que eacute suma realidade o Verbo Encarnado eacute revelado como a auto-expressatildeo do Pai na Verdade Enquanto a vinda de Deus entre noacutes no meio de nossa existecircncia significa o Seu e o nosso amor eacute revelado o Pneuma sob este aspecto de amor

Quando noacutes fazemos a experiecircncia da uniatildeo transcendental e absoluta do Deus conosco compartilhando de Sua vida e aceitando-a por graccedila dele mesmo sabemos mediante o nosso ato de feacute o que significamos ao falarmos sobre a Trindade de Deus e ao exprimirmos de modo breve e sucinto a formalidade e o conteuacutedo da feacute cristatilde da sua Revelaccedilatildeo da histoacuteria desta Revelaccedilatildeo Sabemos o que significamos quando nos fazemos batizar nestes nomes em nome do Pai do Filho e do Espiacuterito Santo

[7] Ao que ateacute aqui estabelecemos em traccedilos gerais e raacutepidos como sendo a ideacuteia fundamental da Revelaccedilatildeo acrescentamos agora alguns esclarecimentos selecionados um tanto arbitrariamente e referentes todos agrave origem da Revelaccedilatildeo e agraves suas consequumlecircncias

Do exposto resulta que a Revelaccedilatildeo quer transcendental quer categorial e sua histoacuteria co-existem com a histoacuteria espiritual de toda a humanidade Isto natildeo eacute erro do Modernismo Eacute uma verdade cristatilde Podemos provaacute-lo muito simplesmente dizendo ser incontestaacutevel que a histoacuteria da salvaccedilatildeo sobrenatural eacute realizada sempre na histoacuteria do mundo o que depois do Conciacutelio Vaticano II se tornou uma verdade ainda mais vivamente impressa na consciecircncia religiosa dos cristatildeos A salvaccedilatildeo poreacutem natildeo pode dar-se sem a feacute Nem a feacute sem uma revelaccedilatildeo proacutepria

Natildeo precisamos esclarecer a possibilidade da Revelaccedilatildeo e da feacute fora da histoacuteria do Antigo e do Novo Testamento nem recorrer a uma teoria catoacutelica especial como a de Straub ou a de Billot Nem mesmo necessitamos apelar para uma tradiccedilatildeo categorial expliacutecita da Revelaccedilatildeo primitiva segundo a qual literaacuteria e doutrinariamente a experiecircncia categorial de Adatildeo teria sido transmitida aos poacutesteros o que agrave luz do conhecimento atual da histoacuteria das religiotildees e dos dois milhotildees de anos da histoacuteria da humanidade natildeo eacute muito provaacutevel

Basta-nos reter (o que eacute testemunhado pelos dados atuais da teologia) que cada homem elevado pela graccedila em sua espiritualidade transcendental representa esta ldquoentitativardquo divinizaccedilatildeo que precede o uso da liberdade mesmo quando esta natildeo eacute por ele compromissada na feacute Significa portanto uma transcendental divinizaccedilatildeo da condiccedilatildeo primitiva do homem o uacuteltimo horizonte do conhecimento e da liberdade sob o qual o homem completa o seu ser Atraveacutes desta existecircncia sobrenatural do [8] homem em geral e de cada um em particular daacute-se uma revelaccedilatildeo de Deus mediante uma participaccedilatildeo gratuita E esta condiccedilatildeo fundamental e gratuita do homem realizada no Deus da vida trinitaacuteria pode tambeacutem ser entendida como Revelaccedilatildeo da Palavra contanto que de um lado natildeo limitemos esta palavra a mera prolaccedilatildeo foneacutetica e de outro natildeo nos esqueccedilamos que esta Revelaccedilatildeo transcendental estaacute sempre inserida num contexto histoacuterico e ainda que a histoacuteria humana natildeo pode prescindir das palavras A

Deivide
Realce
A Revelaccedilatildeo estaacute aqui Estaacute diante de mm envolve-me Se quero Ela logo Eacute em mim e minha vida toma um novo significado A Revelaccedilatildeo estaacute no hoje tatildeo atuante quanto quando Jesus fala e agia no tempo em que peregrinou na terra Estaacute atuaccedilatildeo de Jesus que corre toda a histoacuteria e chega aos nossos dias daacute-se atraveacutes da Igreja pela accedilatildeo do Espiacuterito Santo

histoacuteria dos homens natildeo consta de fatos mortos mas de fatos cujo sentido representa um elemento importante em cada conjuntura histoacuterica

Natildeo existe nenhuma relaccedilatildeo objetiva de um objeto em particular ou de uma frase na vida transcendental do homem aberto para Deus para o Deus trino e eterno O que eacute mais e o que fundamenta todos os dogmas da Feacute como condiccedilatildeo mesma de sua possibilidade e antes de tudo o que os faz real palavra de Deus eacute o seguinte o horizonte da vida sobrenatural ou a luz da Feacute em si mesma - como diriacuteamos em linguagem tradicional e simples - pressupotildee que se aceitem e se valorizem as palavras da Tradiccedilatildeo

Com tudo isto ndash acentuemo-lo mais uma vez ndash natildeo estamos dizendo que esta transcendental e aprioriacutestica abertura do homem para o Deus da vida eterna e da participaccedilatildeo absoluta possa ser em si mesma ldquoanistoacutericardquo nem que conduza a uma desordem miacutestica que consistiria numa introspecccedilatildeo individualiacutestica alienada da histoacuteria Ao contraacuterio Ela se completa necessariamente na histoacuteria do agir e do pensar do homem E pode fazecirc-lo explicitamente embora de maneira de todo anocircnima Assim sendo nunca existe uma histoacuteria da Revelaccedilatildeo transcendental para um particular soacute Ela eacute individual e coletiva Naturalmente tal histoacuteria em concreto nunca eacute a histoacuteria da Revelaccedilatildeo inteiramente pura em si Ela se daacute em cada um sempre em indissoluacutevel simbiose com o erro com falsas interpretaccedilotildees com a [9] culpa com os abusos Ela eacute histoacuteria justa e pecadora uma vez que o homem eacute simul iustus et peccator estando a histoacuteria da culpa e a da salvaccedilatildeo definitivamente ligadas ateacute ao dia do juiacutezo final

Isto natildeo exclui a existecircncia de uma autecircntica histoacuteria da Revelaccedilatildeo na histoacuteria geral da humanidade Tanto que para o cristatildeo por exemplo uma diacriacutetica distinccedilatildeo na histoacuteria veterotestamentaacuteria entre autecircntica histoacuteria da Revelaccedilatildeo e falsa histoacuteria da religiatildeo soacute eacute possiacutevel tomando-se como criteacuterio a Cristo Tal distinccedilatildeo natildeo eacute possiacutevel partindo-se apenas dos criteacuterios fornecidos pelo Antigo Testamento Com efeito a Sagrada Escritura tem somente a Cristo como regra interna e externa e como norma de sua hermenecircutica Daiacute resulta que a Escritura deve ser considerada pelo cristatildeo como verdadeira histoacuteria da Revelaccedilatildeo do Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo1

Deduzir a ideacuteia da Revelaccedilatildeo da Palavra de Deus oral e escrita eacute atingir o lado transcendental da proacutepria Revelaccedilatildeo Eacute buscar um criteacuterio no cacircnon da Escritura colocando a Palavra de Deus oral e escrita antes de tudo na sua aceitaccedilatildeo pela Feacute interna e gratuita Eacute ldquodesmitologizarrdquo a mensagem externa da feacute em sua formalidade transcendental A histoacuteria da religiatildeo eacute a parte da histoacuteria humana em que a natureza teoloacutegica do homem se realiza tematicamente e efetivamente como em toda histoacuteria Daiacute resulta que a histoacuteria da religiatildeo eacute simultaneamente duas coisas eacute a parte mais expliacutecita da histoacuteria da Revelaccedilatildeo e tambeacutem o lugar espiritual (der geistige Ort) em que as falsas interpretaccedilotildees da experiecircncia transcendental de Deus se manifestam de modo mais notoacuterio e levam agraves piores consequumlecircncias A supersticcedilatildeo opotildee-se nitidamente agrave sua natureza Mas ela eacute ao [10] mesmo tempo estas duas coisas E sempre numa ambiguumlidade de sentido que natildeo conseguimos solucionar

1 Sobre a diferenccedila entre a histoacuteria da Revelaccedilatildeo extra-biacuteblica e a veterotestamentaacuteria (que eacute tambeacutem um pressuposto daquela) cf K RAHNER Schriften zur Theologie V (Einsiedeln 1964) p136-158 principalmente p 148 e 153

Deivide
Nota
Parei aqui

Na teologia escolaacutestica catoacutelica nos uacuteltimos seacuteculos em contraste com a teologia medieval pouco ou nada se diz sobre o portador do testemunho da Revelaccedilatildeo aquele que a apresenta atraveacutes do milagre aos homens chamados a crer Refiro-me agrave Revelaccedilatildeo presente no seu portador que eacute o proacuteprio Profeta Do que antes expusemos concluir-se-aacute que a teologia dos preacircmbulos e a da feacute satildeo idecircnticas Por isso tem razatildeo a teologia fundamental quando frequumlentemente trata da analysis fidei em seu acircmbito proacuteprio supondo-se que ela o faccedila considerando a feacute e a aceitaccedilatildeo da Revelaccedilatildeo em sua unidade fundamental O aspecto transcendental da aceitaccedilatildeo da Revelaccedilatildeo e a Feacute satildeo a mesma coisa fundam-se ambas na constituiccedilatildeo do homem gratuitamente marcada pela participaccedilatildeo ontoloacutegica e pelo compromisso livre do homem com este aspecto existencial do ser

A ldquodesmitologizaccedilatildeordquo (Entmythologisierungsfrage) para a teologia catoacutelica concretiza-se e resume-se na capacidade de cognoscibilidade do ldquomilagrerdquo Daiacute perguntar-se eacute possiacutevel uma autecircntica experiecircncia transcendental de Deus jaacute que isto seria como que um compartilhar do imparticipaacutevel (Schon-immer-heim- Univermittelten-Sein) Fundamentalmente natildeo eacute possiacutevel nem eacute necessaacuterio estabelecer uma distinccedilatildeo adequada entre a mediaccedilatildeo do factum brutum (durch das factum brutum) da chamada realidade objetiva e a que se daacute atraveacutes de sua clara explicaccedilatildeo A mediaccedilatildeo (Vermittlung) baseia sua uacuteltima verdade no mediado (im Vermittelten) Portanto a ldquodesmitologizaccedilatildeordquo e a relaccedilatildeo entre a mediaccedilatildeo e o mediado (Vermittlung-Vermittelte) fundamentam-se na diferenccedila e na unidade ontoloacutegica dos aspectos categorial e transcendental e tambeacutem na diferenccedila e na indissoluacutevel unidade entre a histoacuteria e seu significado Esta mediaccedilatildeo enquanto histoacuterica eacute sempre uma histoacuteria com-os-homens ou no sentido mais profundo da palavra uma [11] histoacuteria ldquoeclesialrdquo Eacute portanto tambeacutem um compromisso com a feacute da comunidade dos fieacuteis e da Igreja feacute esta que na comunidade e em cada indiviacuteduo envolve sempre a uniatildeo de sinais e de verdade como na palavra do Sacramento e no Logos Encarnado onde estes dois elementos se encontram inseparaacuteveis mas natildeo se confundem sendo a sua associaccedilatildeo independente do alvitre dos homens

Partindo dessas premissas pode-se entender o que seja a fides implicita agrave qual ateacute hoje os teoacutelogos natildeo deram o destaque devido Fundamentalmente a feacute seja qual for envolve a aceitaccedilatildeo do sinal Soacute eacute feacute verdadeira se assumir o sinal mediante o inefaacutevel misteacuterio da uniatildeo do Deus que se daacute a si mesmo em participaccedilatildeo Soacute eacute feacute verdadeira quando entende a mediaccedilatildeo categorial como presenccedila de sinais (Zeichenhaftigkeit) como se realiza na proacutepria Igreja Assim como a Revelaccedilatildeo natildeo elimina a obscuridade do sacrossanto misteacuterio de Deus antes o cristatildeo amando e adorando a aceita assim tambeacutem o ldquocaraacuteter impliacutecitordquo (Implizitaumlt) da Revelaccedilatildeo e da feacute pertencem agrave sua proacutepria natureza Esta ldquoimplicituderdquo natildeo eacute portanto um elemento que soacute se daria quando as pessoas ldquoincultasrdquo ou ignorantes ouvem a Revelaccedilatildeo e crecircem

Agora podemos entender melhor tambeacutem um conhecido fenocircmeno religioso a tendecircncia a se reduzir o dogma e a religiatildeo a um nuacutecleo de verdades essenciais A unidade existente entre os elementos categorial e transcendental existe tambeacutem na Religiatildeo Tambeacutem esta eacute una e uacutenica E insubstituiacutevel por qualquer outra Devemos dizer tambeacutem que o Cristianismo considerado como religiatildeo universal e absoluta e natildeo apenas como particular alianccedila de Deus com determinado povo natildeo pode deixar de reconhecer a Cristo como Mediador e como Salvador Cristo com efeito por sua

corporeidade e espiritualidade integra em si relaciona e torna legiacutetima toda mediaccedilatildeo possiacutevel no acircmbito do mundo das realidades Assim ldquonadardquo existe que [12] exclua este poder de mediaccedilatildeo Ele existe na palavra no sinal lituacutergico na comunidade eclesial no ofiacutecio na imagem em suma ateacute mesmo nas coisas profanas Natildeo obstante a pluralidade e diversidade desta mediaccedilatildeo pode acontecer que em diferentes eacutepocas e lugares de acordo com os desiacutegnios da graccedila mesmo no Novo Testamento a obrigatoriedade e cognoscibilidade da uacutenica mediaccedilatildeo tenha a sua histoacuteria peculiar Tal histoacuteria da Revelaccedilatildeo tornada definitiva em Cristo no acircmbito do uacuteltimo e eterno ldquoeatildeordquo pode tambeacutem conforme disposiccedilatildeo divina refletir-se na traacutegica histoacuteria da Cristandade dividida por uma cisatildeo em que transparece a pluralidade das muitas mediaccedilotildees da uacutenica Revelaccedilatildeo Esta divisatildeo eacute para noacutes uma censura Contudo serve-nos tambeacutem de instrumento da graccedila de Deus

A distinccedilatildeo entre Revelaccedilatildeo transcendental e a categorial-histoacuterica aplica-se tambeacutem agrave feacute Daiacute novas luzes para se entender melhor o problema da credulidade enquanto distinta da feacute e intimamente relacionada com ela Quando se considera a precaacuteria descriccedilatildeo da feacute elaborada pelos teoacutelogos vecirc-se que seu caraacuteter auditivo (ex auditu) eacute geralmente proposto de modo aposterioriacutestico e empiacuterico O endereccedilamento da feacute ao ouvinte aparece entatildeo como se da parte deste soacute houvesse uma potecircncia formal para assumir certas proposiccedilotildees verdadeiras sem as investigar devendo apenas aceitaacute-las em sua formulaccedilatildeo exata irrecusaacutevel e fixa A potecircncia aprioriacutestica da feacute ou a credulidade quase natildeo eacute levada em consideraccedilatildeo na teologia catoacutelica Esta credulidade como capacidade aprioriacutestica de crer natildeo deve ser tida na conta de uma potecircncia igual agraves outras uma espeacutecie de sentido de ldquoexigecircnciardquo ou coisa parecida Eacute antes o lado transcendental da Revelaccedilatildeo a potecircncia aprioriacutestica que tem o homem ser transcendental para a comunhatildeo com Deus na graccedila fundada na proacutepria abertura de Deus para se comunicar com a criatura Ambas estas coisas devem ser consideradas em sentido ontoloacutegico natildeo em sentido ocircntico

[13] Toda anaacutelise da feacute catoacutelica apresenta a ldquoautoridade de Deusrdquo como o ldquoobjeto formalrdquo ou o ldquomotivordquo uacuteltimo da feacute Chega-se assim entretanto a um impasse intransponiacutevel Isto porque se considera esta ldquoautoridaderdquo como elemento categorial e aprioriacutestico limitado pelo horizonte do conhecimento humano que a feacute tem que superar para que a Palavra permaneccedila sendo realmente Palavra divina e natildeo seja rebaixada ao niacutevel meramente criatural Se poreacutem na Revelaccedilatildeo e na feacute o proacuteprio Deus autocomunicando-se eacute o objeto crido e o princiacutepio aprioriacutestico de crer se a loacutegica da feacute natildeo eacute uma categoria aprendida de fora mas ndash do mesmo modo que a loacutegica natural ndash eacute a proacutepria estrutura ontoloacutegica e interna do ato de feacute se a mensagem exterior da feacute natildeo eacute o seu motivo aposterioriacutestico mas sua razatildeo aprioriacutestica ndash entatildeo todo este problema perde o seu sentido Assim se compreenderaacute que um falso ato material de feacute deixa de ter um objeto formal meramente aprioriacutestico e pode vir a ser um ato de feacute autecircntico

Somos forccedilados a interromper aqui estas observaccedilotildees Em tudo o que dissemos pudemos apenas indicar algumas perspectivas de soluccedilatildeo de um problema que desde os tempos do Modernismo eacute atual mas que contudo tem sido de certo modo postergado Mesmo por este pequeno exemplo ao qual poderiacuteamos acrescentar o de muitos outros problemas teoloacutegicos ainda natildeo solucionados vemos como custosa e lentamente avanccedila o trabalho teoloacutegico Eacute necessaacuterio ter paciecircncia e envidar esforccedilos perseverantes

Necessaacuterio eacute ainda admitir-se que a teologia natildeo cria a feacute no cristatildeo Ele eacute apenas chamado a pocircr-se a serviccedilo da feacute Da feacute hoje

Ao exprimir eu agrave ilustre Faculdade Catoacutelica de Teologia da Universidade de Munster o meu penhorado e cordial agradecimento pela distinccedilatildeo que me outorgou faccedilo-o com a consciecircncia de que tambeacutem os operaacuterios que realizam a construccedilatildeo da teologia trabalham em vatildeo se o Senhor natildeo cooperar com eles Noacutes [14] devemos trabalhar enquanto eacute dia Toda theologia mentis eacute apenas um auxiacutelio para a theologia cordis et vitaelig Enfim em toda theologia a rigor soacute um caminho se abre o caminho que se perde no segredo de Deus misteacuterio impenetraacutevel que todavia se potildee ao nosso alcance

Joseph Ratzinger

EXAME DO PROBLEMA DO CONCEITO DE TRADICcedilAtildeO

PRIMEIRA PARTE

Revelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeo

Ensaio de anaacutelise do conceito de Tradiccedilatildeo

I ndash Posiccedilatildeo do Problema

[15] O modo como Cristo Palavra expressa da Revelaccedilatildeo permanece presente na Histoacuteria e vai ao encontro dos homens pertence agravequelas questotildees fundamentais em torno das quais se dividiu a Cristandade ocidental no seacuteculo da Reforma A luta prende-se agrave ideacuteia de ldquoTradiccedilatildeordquo pela qual a Igreja catoacutelica procurou exprimir certa forma de comunicaccedilatildeo da Revelaccedilatildeo ao lado da outra contida na Sagrada Escritura Isto com o fim de desfazer um duplo protesto A Tradiccedilatildeo designava primeiro as chamadas consuetudines ecclesiaelig tais como a santificaccedilatildeo do domingo a oraccedilatildeo voltada para o Oriente o costume de jejuar as vaacuterias becircnccedilatildeos e consagraccedilotildees e outras praacuteticas semelhantes em vigor na piedade dos fieacuteis ao tempo da baixa Idade Meacutedia Tais praacuteticas ora nobres ora ridiacuteculas embora transformassem a Igreja numa espeacutecie de casa assombrada cheia de acircngulos e cantos justificavam-se sob o tiacutetulo de ldquotradiccedilatildeordquo e legitimavam-se como parte essencial da vida cristatilde1

Lutero a quem a simplicidade do Evangelho como urna forccedila explosiva tinha sobremodo impressionado preferiu agrave luz de sua [16] ideacuteia de Deus juiz misericordioso natildeo ver na Tradiccedilatildeo nada mais do que ninharias com as quais a humanidade se ilude e aparentemente se consola buscando uma evasatildeo ante o abuso da proacutepria existecircncia Ainda mais ele viu na Tradiccedilatildeo o retorno da Lei o predomiacutenio do arbiacutetrio humano sobre a palavra de Deus abuso contra o qual Paulo protestara com tanta veemecircncia e que agora de novo se implantara na Igreja A Confessio Augustana ocupou-se tambeacutem destas coisas destacando uma seacuterie de leis cuja violaccedilatildeo segundo a doutrina corrente era tida como pecado mortal a proibiccedilatildeo do trabalho manual aos domingos e dias santos a interrupccedilatildeo das preces canocircnicas diaacuterias os preceitos do jejum etc E Lutero prosseguia ldquoDe onde tiram os Bispos o direito e o poder de imporem tais prescriccedilotildees aos cristatildeos e de ilaquearem assim as consciecircncias Pedro no capiacutetulo 15 dos Atos dos Apoacutestolos proiacutebe se imponha o jugo sobre os ombros dos disciacutepulos E Paulo diz aos Coriacutentios que a autoridade lhe foi dada para salvar e natildeo para condenar Por que entatildeo multiplicam assim os pecados com tais imposiccedilotildeeshellip Se os Bispos tecircm poder de sobrecarregarem as igrejas com inuacutemeras prescriccedilotildees e de onerar as consciecircncias por que entatildeo a Sagrada Escritura proiacutebe tatildeo frequumlentemente que se faccedilam mandamentos

1 Eacute o que se vecirc claramente pela lista de traditiones feitas no tempo do Conciacutelio de Trento Cf a nota 44 da segunda parte desse livro

humanos e se escravizem os homens Porque chama ela a estas coisas de doutrina de Satanaacutes Foi acaso em vatildeo que o Espiacuterito Santo fez tais advertecircnciasrdquo 2

Lutero identificou aqui a traditio com os abusus Tradiccedilatildeo segundo ele eacute lei humana pela qual o homem se esconde de Deus e pior ainda se levanta contra Ele para tomar nas proacuteprias matildeos a tarefa de sua salvaccedilatildeo em vez de esperaacute-la da libeacuterrima graccedila do Senhor A Tradiccedilatildeo assim entendida como Lei eacute contraposta agrave mensagem da graccedila ldquoDevemos aceitar cada [17] um dos artigos do Evangelho para alcanccedilarmos a graccedila de Deus sem meacuterito nosso atraveacutes da feacute em Jesus Cristo e natildeo pretender merececirc-la mediante praacuteticas do culto inventado pelos homensrdquo3

O problema da Tradiccedilatildeo tornou-se ainda mais agudo devido a um segundo aspecto que de resto natildeo conduziu a nenhum resultado positivo Descobrindo o Evangelho teve Lutero igualmente a impressatildeo de libertar a Palavra de Deus da pesada cadeia do Magisteacuterio eclesiaacutestico que se teria apossado desta Palavra e natildeo mais a entendia em seu verdadeiro sentido empregando-a antes a seu bel-prazer A ideacuteia de que a palavra divina aprisionada na Igreja catoacutelica agrave autoridade do Magisteacuterio ficou privada de sua forccedila viva eacute sempre repetida nos escritos dos Reformadores Melanchton poreacutem fecirc-lo talvez de um modo mais humano e flexiacutevel quando apocircs com reservas a sua assinatura aos artigos luteranos de Esmalca ldquo quanto ao Papa acho eu que jaacute que ele quis abandonar o Evangelho devemos noacutes de nossa parte tolerar (e admitir) para o bem da paz e da unidade a sua superioridade sobre os Bispos superioridade esta que ele possui iure humanordquo 4

Este estado de coisas impregnou outrossim a ideacuteia de Igreja da Confessio Augustana uma vez que aiacute se diz que a Igreja eacute a congregatio sanctorum in qua Evangelium pure docetur et recte administrantur Sacramenta5 Assim a Igreja eacute marcada por duplo aspecto pela pureza da doutrina e pela administraccedilatildeo legiacutetima dos Sacramentos Nem uma palavra sobre o Magisteacuterio Na realidade para a elaboraccedilatildeo do conceito de Igreja este silecircncio da CA natildeo eacute menos importante do que o que ela aiacute diz Eacute um silecircncio evidentemente intencional e denuncia a oposiccedilatildeo dos Reformadores agrave concepccedilatildeo catoacutelica de Igreja [18] entatildeo vigente e ateacute hoje conservada Esta consta de trecircs elementos a fides correspondente ao pure docere a communio que corresponde ao sacramenta e a auctoritas6 O Magisteacuterio aparece aqui como criteacuterio da palavra Eacute o seu fiador Segundo Melanchton daacute-se o contraacuterio a palavra eacute que eacute o criteacuterio do Magisteacuterio Este deve em uacuteltima anaacutelise ser provado pela palavra e pode consequumlentemente ser negado A palavra eacute auto-suficiente e paira sobre o Magisteacuterio como uma grandeza autocircnoma Talvez nesta inversatildeo de relaccedilotildees eacute que estaacute propriamente o contraste entre o conceito catoacutelico e o protestante de Igreja Contradiccedilatildeo paralela se daacute em torno da ideacuteia de Tradiccedilatildeo Com efeito a negaccedilatildeo do Magisteacuterio como criteacuterio da palavra significa a reduccedilatildeo da palavra de Deus agrave Escritura que seraacute entatildeo o

2Art 28 39-42 in Die Bekenntnisschriften der evangelisch lutherischen Kirche Gotinga 1952 p126 3 Art 28 52 Op cit p129 4 Op cit p463 5 Art 7 1 paacuteg 61 6 Sobre este ponto e o seguinte cf J RATZINGER ldquoDas geistliche Amt und die Einheit der Kircherdquo in Catholica 17 (1963) p 165-179

uacutenico sustentaacuteculo autocircnomo e autecircntico da palavra natildeo admitindo a Tradiccedilatildeo como uma grandeza em si

O Conciacutelio de Trento em seu estudo sobre a Tradiccedilatildeo teve diante dos olhos os dois pontos de vista contraacuterios e procurou formular sua resposta levando ambos em consideraccedilatildeo Eacute por isso conveniente analisarmos como estas duas posiccedilotildees se inter-relacionam em face da equiparaccedilatildeo feita por Lutero entre a Traditio e os abusus Em outros termos como os Padres conciliares se colocam diante do dilema dever-se-ia responder aos ataques de Lutero diretamente com uma definiccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo Ou antes de tudo com a reformatio a coerccedilatildeo dos abusus7

No tocante agrave doutrina o Conciacutelio refutou ex professo a censura dos Reformadores sustentando que a palavra natildeo eacute uma realidade autocircnoma pairando acima da Igreja Ela eacute dada pelo [19] Senhor agrave Igreja e natildeo entregue ao capricho dos homens Permanece justamente por isso nas Suas matildeos subtraindo-se ao alcance do alvitre humano Na visatildeo dos Padres de Trento deve no fundo ter parecido uma falta de confianccedila o terem os homens receio da palavra escrita entregue agrave Igreja como se a Igreja pudesse abusar dela Como se se pudesse apelar para a palavra da Revelaccedilatildeo contra a Igreja Estava-se inquestionavelmente certo de que o Senhor que instituiu a Igreja como Seu Corpo haveria de se empenhar em tutelaacute-la contra o perigo de abusar de Sua palavra

Hoje decorridos quatro seacuteculos desde a Reforma podemos confessar que na oposiccedilatildeo que dividia entre si Lutero e o Conciacutelio de Trento tanto depois como antes o dilema que dilacerou a Cristandade ocidental de certo modo jaacute desapareceu Vecirc-se isto pela troca de correspondecircncia entre Harnack e Peterson Peterson ao agradecer o tratado de Harnack Das Alte Testament in den Paulinischen Briefen und in den Paulinischen Gemeiden observou que este em seu cotejo da Escritura com a exegese biacuteblica tinha adotado natildeo o princiacutepio protestante mas o catoacutelico Escreveu Harnack ldquoDizer que o chamado lsquoprinciacutepio formalrsquo do Protestantismo primitivo eacute uma impossibilidade criacutetica e que ao contraacuterio o princiacutepio catoacutelico eacute formalmente o melhor eacute um truiacutesmo Materialmente poreacutem o princiacutepio catoacutelico da Tradiccedilatildeo opotildee-se agrave Biacuteblia muito mais diretamente (As tradiccedilotildees satildeo como ervas daninhas a serem cortadas pela tesoura do Magisteacuterio) A melhor fonte eacute o Novo Testamentordquo 8

Nesta formulaccedilatildeo de certo modo geneacuterica e simplista e na oposiccedilatildeo estabelecida entre os aspectos material e formal vem de novo agrave tona o antigo dilema poder-se-aacute confiar a palavra agrave Igreja sem temor de que ela sob a tesoura do Magisteacuterio ou [20] envolta no mato selvagem do sensus fidelium perca a sua forccedila proacutepria e sua vitalidade Esta eacute a pergunta que os Protestantes fazem aos Catoacutelicos Poder-se-aacute aceitar a autonomia da palavra sem com isto ser esta exposta ao arbiacutetrio dos exegetas aos maus tratos por parte dos historiadores e enfim ao completo desamparo Eis como os Catoacutelicos revidam aos Protestantes Com efeito segundo nossa doutrina natildeo eacute a noacutes que compete decidir se queremos ou natildeo confiar a palavra agrave Igreja Foi o proacuteprio Senhor quem lha confiou Note-se entretanto que quando o Catoacutelico encara seriamente este assunto natildeo deixa de considerar o zelo pela pureza da palavra revelada como um dever

7 Ver as notas 41 e 42 na 2ordf parte 8 Citado in E PETERSON Theologische Traktate Munique 1951 p295

da mais alta importacircncia Ele sabe que natildeo cumpre este dever pelo simples fato de apelar para a inerracircncia da Igreja Fazecirc-lo seria menosprezar o sentido da luta de Lutero em favor da Palavra deixando-se de ver nisto uma salutar advertecircncia e um apelo dirigido agraves almas

Natildeo obstante tudo isto a histoacuteria da controveacutersia natildeo se deteve no decurso dos quatro seacuteculos que se seguiram agrave Reforma Duas diferentes tendecircncias se destacam nas relaccedilotildees entre o Protestantismo e o Catolicismo e entre suas respectivas teologias De um lado uma radicalizaccedilatildeo de cada grupo nos proacuteprios pontos de vista Cada grupo a partir de entatildeo fez sua histoacuteria proacutepria e desenvolveu-a em direccedilatildeo oposta um ao outro Por outro lado a distacircncia mantida entre ambos possibilita maior objetividade em seus julgamentos reciacuteprocos Existe finalmente de parte a parte um renovado esforccedilo por superar as fronteiras com vistas a um encontro

Quem entre os Catoacutelicos empreendeu o mais significativo passo para chegar a uma visatildeo nova do problema da Tradiccedilatildeo mediante a superaccedilatildeo de posiccedilotildees unilaterais e anti-reformistas foi em nossos dias o teoacutelogo dogmaacutetico de Tubinga Josef Rupert Geiselmann Seus esforccedilos foram frutuosos fazendo-se sentir a sua influecircncia inclusive nos estudos preparatoacuterios do [21] Conciacutelio e deram agraves incursotildees do Vaticano II nesta aacuterea aquela marcante atualidade que ainda na primeira sessatildeo levou este problema a transcender do ciacuterculo da luta doutrinal entre as vaacuterias escolas teoloacutegicas para se transformar em uma preocupaccedilatildeo de toda a Cristandade catoacutelica9

A tese de Geiselmann eacute conhecida Basta-nos esboccedilaacute-la rapidamente aqui a fim de lanccedilarmos as bases de uma reflexatildeo que procuraraacute aprofundar mais este assunto e talvez dar um modesto passo agrave frente Geiselmann parte de uma interpretaccedilatildeo nova do sentido dado pelo Conciacutelio ao conceito de Tradiccedilatildeo O tridentino estabelecera que a verdade do Evangelho estaacute contida in libris scriptis et sine scripto traditionibus Isto foi e eacute ateacute hoje interpretado como se a Escritura natildeo contivesse toda a veritas evangelii Portanto natildeo eacute possiacutevel admitir-se a sola Scriptura uma vez que uma parte da Revelaccedilatildeo nos eacute transmitida somente pela Tradiccedilatildeo Geiselmann aproveitou a observaccedilatildeo jaacute antes feita por alguns autores de que na primeira redaccedilatildeo do texto focircra adotada a foacutermula segundo a qual a verdade estaria contida partim in libris scriptis partim in sine scripto traditionibus Estaria aqui claramente expressa a doutrina da divisatildeo da verdade revelada em duas fontes (Escritura e Tradiccedilatildeo) O Conciacutelio abandonou a expressatildeo partim ndash partim preferindo usar o simples conectivo et Geiselmann daiacute conclui afastou-se o Conciacutelio da ideacuteia da divisatildeo da verdade em duas fontes diversas Ou pelo menos natildeo a definiu explicitamente E continua o mesmo autor com isto pode tambeacutem o teoacutelogo catoacutelico aceitar a ideacuteia de uma suficiecircncia material da Escritura Pode ainda mesmo permanecendo catoacutelico defender a opiniatildeo de que a Sagrada Escritura eacute suficiente para transmitir-nos a [22] Revelaccedilatildeo Geiselmann admite consequumlentemente que a sola Scriptura pode conceber-se como uma uacutenica fonte

9 Cf R LAURENTIN Lenjeu du Concile Bilan de Ia premiegravere session Paris 1963 p27-45 Y CONGAR Vatican II Le Concile au jour le jour Paris 1963 p63-71 J RATZINGER Die erste Sitzungsperiode des Zweiten Vatikanischen Konzils Colocircnia 1963 p38-50

material da Revelaccedilatildeo Ele crecirc ainda poder mostrar que a tradiccedilatildeo mais forte eacute a favor desta sentenccedila e que o proacuteprio Conciacutelio de Trento se inclina neste sentido10

Eacute faacutecil de se compreender que semelhante tese tenha obtido o apoio de muitos em face das novas possibilidades de encontro entre Catoacutelicos e Evangeacutelicos possibilidades estas que a posiccedilatildeo de Geiselmann parece favorecer11 Que esta tese na realidade constitua um passo consideraacutevel neste sentido parece ser incontestaacutevel Todavia tatildeo logo a analisemos mais de perto em seus fundamentos histoacutericos e reais surge de pronto toda uma seacuterie de dificuldades graves a tornarem impossiacutevel a sua aceitaccedilatildeo

Sobre o aspecto histoacuterico deste problema apresentaremos vaacuterias observaccedilotildees na segunda parte deste nosso opuacutesculo Entrementes consideremos de imediato o lado praacutetico deste assunto Seu exame provoca inicialmente esta pergunta que significa propriamente a expressatildeo ldquosuficiecircncia da Escriturardquo Geiselmann como teoacutelogo catoacutelico que eacute natildeo deixa de sustentar os nossos dogmas Ora nenhum dogma catoacutelico eacute provado sola Scriptura Nem os grandes dogmas primitivos sustentados pelo consensus quinquesaeligcularis nem tampouco o de 1854 e [23] menos ainda o de 1950 Em que sentido entatildeo se pode falar em suficiecircncia da Escritura Natildeo ameaccedilaraacute esta converter-se em perigosa fraude pela qual nos enganamos primeiramente a noacutes proacuteprios e em seguida tambeacutem enganamos aos outros (Ou natildeo seratildeo talvez justamente eles que natildeo se enganam) Ou entatildeo pelo menos para sustentarmos de um lado que a Escritura sozinha conteacutem toda a verdade da Revelaccedilatildeo e de outro lado que o dogma de 1950 eacute verdade revelada natildeo deveremos noacutes refugiar-nos em um conceito tatildeo largo de suficiecircncia que na verdade esta palavra venha a perder todo o seu significado

Com isto abre-se a segunda (que de fato eacute a primeira) questatildeo decisiva a saber seraacute verdade que os debates em torno da ideacuteia da suficiecircncia da Escritura resolveram mesmo o problema do conceito de Tradiccedilatildeo Ou ao contraacuterio natildeo estaremos noacutes aqui diante de um problema de raiacutezes muito mais profundas

Nossas observaccedilotildees introdutoacuterias devem ter deixado claro que esta uacuteltima pergunta deve sem duacutevida nenhuma ser respondida afirmativamente A questatildeo da suficiecircncia da Escritura eacute apenas um problema secundaacuterio no acircmbito da distinccedilatildeo muito mais importante que foi jaacute antes apontada por noacutes ao tratarmos dos conceitos abusus e auctoritas e que gira em torno do nexo entre a autoridade da Igreja e a autoridade da Sagrada Escritura Da compreensatildeo disto depende tudo o mais

Para irmos mais adiante torna-se necessaacuterio analisarmos profundamente o assunto natildeo para nos determos no exame dos conceitos tatildeo relevantes de suficiecircncia ou insuficiecircncia da Escritura mas antes para abordarmos em seu tudo o vasto problema da Palavra revelada e presente no coraccedilatildeo dos fieacuteis Torna-se evidente entatildeo que agrave luz das fontes positivas a Escritura e a Tradiccedilatildeo devem ser postas em relaccedilatildeo tatildeo iacutentima que da

10 Ver sobretudo a obra de J R GEISELMANN Die Heilige Schrift und die Tradition Friburgo 1962 principalmente as p91-107274-282 Entre os trabalhos anteriores escritos por Geiselmann sobre o mesmo tema eacute de particular importacircncia o seguinte Das Konzil von Trient uumlber das Verhaumlltnis der Heiligen Schrift und der nichtgeschriebenen Traditionen in M SCHMAUS Die muumlndliche Uumlberlieterung Munique 1957 p 123-206 11 Uma lista de todos os autores que mais concordaram com Geiselmann eacute fornecida por H KUumlNG em sua tese ldquoKarl Barths Lehre vom Wort Gottes als Frage an die katholische Theologierdquo in Einsicht und Glaube publicado por J RATZINGER-H FRIES Friburgo 1963 p 105 nota 25

fonte interna (a Revelaccedilatildeo) brote a pa1avra de Deus viva sob aquela dupla formalidade A Escritura e a Tradiccedilatildeo natildeo podem [24] ser entendidas uma sem a outra no sentido que ambas tecircm agrave luz da feacute O problema ldquoEscritura e Tradiccedilatildeordquo permaneceraacute insoluacutevel enquanto natildeo for reduzido a uma soacute questatildeo a saber a questatildeo ldquoRevelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeordquo e inserida enfim no amplo contexto a que pertence

Eu gostaria de nas paacuteginas seguintes sem entrar em todos os detalhes tentar desenvolver em forma de teses e de maneira positiva o conceito de Tradiccedilatildeo partindo de sua natureza iacutentima com a esperanccedila de que nele descubramos uma parte da resposta aos anseios dos Reformadores Desta maneira toda esta anaacutelise serviraacute de contribuiccedilatildeo para o diaacutelogo interconfessional cuja necessidade tanto os Catoacutelicos como os Protestantes vecircm proclamando de maneira cada vez mais insistente

II - Teses sobre a relaccedilatildeo entre a Revelaccedilatildeo e a Tradiccedilatildeo

1 A Revelaccedilatildeo e a Escritura A primeira tese em aditamento ao conceito patriacutestico de Escritura e Revelaccedilatildeo

poderia enunciar-se nos seguintes termos o fato de existir uma ldquoTradiccedilatildeordquo repousa antes de tudo na diferenccedila que permeia entre estas duas realidades ldquoRevelaccedilatildeordquo e ldquoEscriturardquo A Revelaccedilatildeo exprime propriamente o falar e o agir de Deus em relaccedilatildeo aos homens Designa uma realidade expressa pela Escritura sem ser contudo a proacutepria Escritura A Revelaccedilatildeo por conseguinte ultrapassa a Escritura na mesma medida em que a realidade ultrapassa a sua expressatildeo escrita12 Poder-se-ia [25] tambeacutem dizer que a Escritura eacute o princiacutepio material da Revelaccedilatildeo (Talvez princiacutepio uacutenico talvez um princiacutepio entre outros isto seraacute esclarecido mais adiante) Ela natildeo eacute poreacutem a proacutepria Revelaccedilatildeo Isto era aliaacutes bem sabido dos proacuteprios Reformadores mas comeccedilou visivelmente a ser esquecido no aceso da controveacutersia entre a teologia catoacutelica poacutes-tridentina e a ortodoxia protestante13 Em nosso seacuteculo foram justamente os teoacutelogos evangeacutelicos Barth e Brunner que redescobriram este fato de todo evidente para a teologia patriacutestica e medieval14

O que acabamos de afirmar ficaraacute mais claro se partirmos de outro princiacutepio a Escritura pode ser possuiacuteda sem que se possua a Revelaccedilatildeo Isto porque a Revelaccedilatildeo eacute sempre e em primeiro plano uma realidade a realidade onde se encontra a feacute Aquele

12 Esta afirmaccedilatildeo natildeo tem o sentido de que a Escritura seja uma mera e vazia narrativa de realidades a ela exteriores Antes como o que se segue iraacute demonstrar indica que a Revelaccedilatildeo eacute realizada na Palavra jaacute que eacute por meio de palavras que ela se comunica aos homens Contudo a mera presenccedila da palavra ainda natildeo eacute a Revelaccedilatildeo Esta eacute mais do que simples ldquopresenccedilardquo Com o que ficou dito salienta-se a diferenccedila que existe entre a palavra e seu conteuacutedo Esta diferenccedila natildeo exclui o caraacuteter verbal da Revelaccedilatildeo 13 Cf A GLOEGE Schriftprinzips RGG V 1540-1543 onde se encontraraacute a mais completa bibliografia LthK VII 1104-1115 J R GEISELMAN Offenbarung in H FRIES Handbuch zum Begriff der Offenbarung cf M VERENO - R SCHNACKENBURG - HRIES in Theologischer Grundbergriffe II Munique 1963 p242-250 e a bibliografia aiacute citada 14 Cf W H VAN DER POL Das reformatorische Christentum Einsiedeln 1956 p117-192

que natildeo crecirc acha-se como que coberto por um veacuteu o veacuteu de que fala Satildeo Paulo no terceiro capiacutetulo da segunda epiacutestola aos Coriacutentios15 Ele pode ler a Escritura e saber o que nela se conteacutem Pode ateacute mesmo apreender de modo puramente intelectual o que aiacute eacute significado e como suas ideacuteias se inter-relacionam Todavia natildeo possui com isto a Revelaccedilatildeo A Revelaccedilatildeo eacute sobretudo possuiacuteda quando aleacutem da expressatildeo material que a atesta se potildee tambeacutem em praacutetica o seu conteuacutedo interno por meio da vivecircncia da feacute Com efeito de certo modo se inclui tambeacutem na Revelaccedilatildeo o sujeito recipiente sem o qual ela natildeo pode existir Natildeo se pode pocircr a Revelaccedilatildeo no bolso como se faz com [26] um livro Ela eacute uma realidade viva Exige homens vivos que a recebam que sirvam de ldquolugarrdquo de sua presenccedila

Repetindo o que ateacute aqui dissemos podemos afirmar que a Revelaccedilatildeo sobreexcede de fato a Escritura em dois sentidos

a) em sentido ascendente ela atinge sempre como realidade procedente de Deus o agir divino sobre as criaturas

b) como realidade que se daacute ao homem por meio da feacute ela atinge igualmente a Escritura

Desta diferenccedila entre a Escritura e a Revelaccedilatildeo resulta claramente que de todo independentemente da questatildeo se a Escritura eacute ou natildeo eacute a uacutenica fonte material em rigor nunca existe para o cristatildeo a sola Scriptura (Isto como ficou dito era claro em princiacutepio para os grandes Reformadores e comeccedilou a ser esquecido na chamada ortodoxia protestante) A Escritura natildeo eacute a Revelaccedilatildeo Eacute sim em uacuteltima anaacutelise uma parte desta realidade mais ampla

2 Os diferentes sentidos da Escritura

no Antigo e Novo testamento A problemaacutetica cristatilde da Revelaccedilatildeo ou o problema ldquoEscritura e Tradiccedilatildeordquo situa-se

melhor se considerarmos o duplo aspecto da mesma Revelaccedilatildeo no Antigo e no Novo Testamento A este duplo aspecto corresponde tambeacutem um duplo sentido da Escritura Assim como os dois Testamentos como tais se distinguem essencialmente assim tambeacutem devemos dizer que a ldquoEscriturardquo como um fato natildeo eacute repetida duas vezes do mesmo modo Isto aparece muito claro nos livros neotestamentaacuterios Sob a expressatildeo ldquoEscriturardquo designam eles somente o Antigo Testamento Para eles o AT eacute e permanece sendo ldquoa Escriturardquo cujo sentido se aclara mediante sua confirmaccedilatildeo no evento da [27] vinda de Cristo16 Os livros do NT natildeo jogam uma Escritura nova contra uma Escritura antiga Nem potildeem uma simplesmente ao lado da outra Potildeem sim em face da uacutenica Escritura ou seja do Antigo Testamento o Cristo-evento como o espiacuterito que explica a letra Esta concepccedilatildeo fundamental ilumina tambeacutem a forma da feacute mais antiga e a torna por primeiro compreensiacutevel O ldquoJesusrdquo formal eacute o ldquoCristordquo expresso no Antigo Testamento Natildeo eacute outra coisa No Jesus Histoacuterico o Cristo-mensagem do

15 Cf sobre estas reflexotildees o importante artigo (ἀποκαλύπτω de A OEPKE in ThWNT III p565-597 16 Ver sobre este ponto as preciosas conclusotildees de G SCHRENK art γραφή ndash γράμμα in ThWNT I p749-769 e a p767

Antigo Testamento atinge a sua consumaccedilatildeo Eacute a partir do AT que se entende quem eacute Jesus E o que o Testamento Antigo expressa pode ser visto agrave luz do Cristo-evento

Esta ideacuteia aparece em Paulo ao apresentar ele o Antigo e o Novo Testamentos como Gramma e Pneuma isto eacute letra e espiacuterito (2Cor 3 6-18) Ele chama ao Senhor de Pneuma A Escritura explica-o como sendo o seu sentido o seu conteuacutedo verdadeiro e vivo e natildeo apenas literaacuterio Paulo se refere agrave concepccedilatildeo do Novo Testamento apresentada por Jeremias (3133) Natildeo eacute mais necessaacuteria nenhuma Escritura porque a lei estaacute escrita nos coraccedilotildees Jaacute natildeo eacute necessaacuteria nenhuma doutrinaccedilatildeo vinda de fora porque o proacuteprio Deus instrui os homens Joatildeo exprime idecircntico pensamento em seguimento ao decircutero-Isaiacuteas (5413) quando descreve a era inaugurada por Cristo como o tempo no qual todos satildeo doutrinados por Deus mesmo E o sermatildeo de Pedro em Pentecostes transmitido pelos Atos dos Apoacutestolos (2 14-36) desenvolve a mesma ideacuteia tirada de Joel (3 1-5) Em todos estes casos aparece a era instaurada por Cristo como resposta agrave esperanccedila no advento de um tempo futuro que em uacuteltima anaacutelise haveria de tornar supeacuterflua a Escritura graccedilas agrave presenccedila imediata do Divino Mestre na Sua humanidade

Quando se pondera o sentido destas afirmaccedilotildees torna-se claro [28] que ao reduzir-se a ldquoEscriturardquo aos escritos do Antigo Testamento natildeo se estaacute apenas usando uma terminologia antiga que teria sido adotada por falta de escritos propriamente neotestamentaacuterios e que teria perdido seu sentido na segunda metade do seacuteculo segundo com o iniacutecio do cacircnon do Novo Testamento Ao contraacuterio Aqui se expressa uma consciecircncia que se tornaria mais niacutetida a partir da formaccedilatildeo da proacutepria Escritura neotestamentaacuteria muito ao inveacutes de cessar ou de desaparecer

Uma coisa eacute certa a ldquoEscriturardquo na nova ordem da salvaccedilatildeo inaugurada por Cristo toma um lugar distinto do que lhe cabia no Antigo Testamento Com isto pode-se ver ateacute que ponto o Antigo Testamento tem sentido autocircnomo O AT certamente natildeo aparecia desde o comeccedilo como Testamento do Gramma Escritura em sentido proacuteprio como ocorreraacute na pena de Satildeo Paulo17 Por outro lado manifesta-se realmente a partir de Jeremias e do decircutero-Isaiacuteas o anelo pela superaccedilatildeo do Gramma mediante uma nova e imediata comunicaccedilatildeo do Espiacuterito de Deus simultaneamente com a progressiva formaccedilatildeo de um princiacutepio da Escritura que mais e mais a transformou em Lei Lei esta que natildeo tornaria os homens vivos mas sim mortos

Desta maneira na concepccedilatildeo neotestamentaacuteria aparece o Antigo Testamento como ldquoEscriturardquo em sentido proacuteprio Escritura que atinge o seu verdadeiro significado atraveacutes do Cristo-evento pelo fato de ser ela inserida no contexto vivo da realidade de Cristo Se no Novo Testamento de facto a Escritura cresceu natildeo pode mais ter aquele sentido uacuteltimo e exclusivo que lhe competia no Antigo segundo a concepccedilatildeo paulina Ao contraacuterio Ela eacute a chave com que se abre o Antigo Testamento deixando-se banhar na claridade do Cristo-evento Ela eacute tambeacutem a ponte permanente que conduz a uma nova interpretaccedilatildeo biacuteblica agrave luz [29] de Cristo Num caso e noutro a Escritura natildeo pretende de modo nenhum ser autocircnoma nem ser a fonte uacutenica e exclusiva de sua exegese literal Mas soacute pode ter sentido na realidade espiritual de Jesus Cristo que

17 Ver a apreciaccedilatildeo feita por G VON RAD Theologie des Alten Testaments II Munique 1960 p402-424

permanece junto dos seus todos os dias ateacute ao fim do mundo (Mt 28 20) Apoacutes a subida ao Calvaacuterio Cristo veio de novo no Espiacuterito Santo (como narra Satildeo Joatildeo) e pelo Espiacuterito ensinou aos disciacutepulos o que eles entatildeo natildeo podiam ainda entender enquanto o Senhor estava entre eles sob forma visiacutevel (Jo 16 12)

3 Cristo a Revelaccedilatildeo de Deus

A realidade que se daacute como um acontecimento na Revelaccedilatildeo cristatilde natildeo eacute nada

mais nada menos do que o proacuteprio Cristo Cristo eacute a Revelaccedilatildeo em sentido proacuteprio ldquoQuem me vecirc vecirc o Pairdquo diz ele no Evangelho de Satildeo Joatildeo (14 9) Vale portanto dizer que receber a Revelaccedilatildeo eacute penetrar na realidade de Cristo no Cristo-evento Daiacute procede o paradoxo descrito por Satildeo Paulo ao fazer ele um trocadilho com as palavras ldquoCristo em noacutesrdquo e ldquonoacutes em Cristordquo

Neste contexto a anaacutelise de frases isoladas torna-se secundaacuteria de vez que elas satildeo apenas explicaccedilotildees do uacutenico misteacuterio de Cristo Consequumlentemente cai por si mesma a questatildeo da suficiecircncia interna da Escritura tatildeo discutida desde o aparecimento das obras de Geiselmann Deveriacuteamos isto sim perguntar que significa em linguagem cristatilde a suficiecircncia interna da Escritura ldquoSuficienterdquo eacute soacute a realidade do Cristo-evento Esta pode ser explicada materialmente em maior ou menor grau E de maneira nunca definitiva Partindo deste princiacutepio podem existir tambeacutem outras explicaccedilotildees segundo a Escritura quando se aprofunda mais este assunto

Este mesmo tema pode ser considerado sob outro aspecto E ter-se-aacute entatildeo dado um passo a mais para a frente A aceitaccedilatildeo [30] da Revelaccedilatildeo pela qual aplicamos a noacutes o Cristo-evento vem na linguagem da Biacuteblia sob o nome de ldquofeacuterdquo Assim talvez se entenderaacute mais claramente de que maneira no Novo Testamento a feacute significa a ldquoin-habitaccedilatildeordquo de Cristo Se admitirmos que na Escritura a presenccedila da Revelaccedilatildeo tem o mesmo sentido que a presenccedila de Cristo entatildeo teremos de fato dado um passo adiante Ora na Escritura encontramos a presenccedila de Cristo apresentada de duas maneiras Ela aparece de um lado como jaacute vimos identificada com a feacute (Ef 317) na qual cada um encontra Cristo e se adentra nele penetrando no dinamismo de sua forccedila salvadora Por outro lado a feacute se oculta tambeacutem sob a expressatildeo paulina ldquoCorpo de Cristordquo o que quer dizer que a comunidade dos fieacuteis ndash a Igreja ndash funda a presenccedila de Cristo neste mundo Nela Cristo reuacutene os homens e os faz partiacutecipes de sua presenccedila dinacircmica18

Tomadas juntas estas duas noccedilotildees significam o seguinte a feacute eacute a adesatildeo iacutentima agrave presenccedila de Cristo realidade de Cristo presente da qual a Escritura nos daacute testemunho sem contudo se identificar de modo nenhum com ela Daiacute resulta que a presenccedila da Revelaccedilatildeo se relaciona essencialmente com a ldquofeacuterdquo e com a ldquoIgrejardquo realidades estas que como vimos estatildeo estreitamente ligadas entre si

Voltamos assim ao que foi afirmado na primeira tese a saber que a Revelaccedilatildeo sobreexcede a Escritura em duplo sentido em relaccedilatildeo a Deus por seu lado ascendente e em relaccedilatildeo tambeacutem ao homem que a recebe Esta asserccedilatildeo que a princiacutepio deixamos

18 H SCHLIER ldquoDie Kirche nach dem Brief an die Epheserrdquo in Die Zeit der Kirche Friburgo 1962 p159-186

um tanto vaga encontramo-la essencialmente concretizada na realidade objetiva do Cristianismo

4 A essecircncia da Tradiccedilatildeo

[31] A transmissatildeo ao povo de Deus do Cristo-evento que eacute a Revelaccedilatildeo e que tem sua bi-presenccedila na feacute e na Igreja faz-se atraveacutes da pregaccedilatildeo Pregaccedilatildeo eacute a ldquoex-posiccedilatildeordquo (Aus-legung) do duplo aspecto da Revelaccedilatildeo no Antigo e no Novo Testamento E isto de duas maneiras

a) ela eacute a exposiccedilatildeo do Antigo Testamento agrave luz do Cristo-evento e para o Cristo-evento

b) a partir do Pneuma e da condiccedilatildeo presente da Igreja Este uacuteltimo aspecto eacute possiacutevel pois Cristo natildeo estaacute morto Estaacute vivo Natildeo eacute

apenas o Cristo de ontem Eacute tambeacutem e a fortiori o Cristo de hoje e de amanhatilde o Cristo vivo e presente em sua Igreja que eacute seu Corpo e na qual o seu espiacuterito opera

Isto poderaacute ser melhor compreendido se partirmos da essecircncia da Igreja Como nos ensina o Novo Testamento a mensagem de Jesus eacute antes de tudo uma mensagem escatoloacutegica com vistas ao reino de Deus natildeo com vistas agrave Igreja O fato de existir a Igreja natildeo se opotildee a esta mensagem mas haacute na marcha gradativa das revelaccedilotildees de Cristo uma segunda possibilidade Assim a atividade dos Doze depois de Pentecostes aponta natildeo para a Igreja mas para o reino de Deus Informam-nos os Atos dos Apoacutestolos que os Doze natildeo se ocuparam primordialmente em missionar os povos Esforccedilaram-se antes muito mais em converter Israel criando deste modo as condiccedilotildees preacutevias para a implantaccedilatildeo do reino De iniacutecio uma seacuterie de obstaacuteculos histoacutericos entre os quais deveriacuteamos citar antes de tudo o martiacuterio de Estevatildeo o supliacutecio de Tiago e por fim o fato decisivo da prisatildeo e da libertaccedilatildeo de Pedro Tais fatos levaram a comunidade primitiva segundo dizem as fontes a reconhecer como definitivo o malogro do esforccedilo de converter Israel E consequumlentemente forccedilaram os Apoacutestolos a partir em busca dos gentios e a cuidar [32] assim da Igreja e natildeo do reino Eles o fazem segundo se depreende das passagens referidas e principalmente dos esclarecimentos do capiacutetulo 15 dos Atos dos Apoacutestolos como uma nova opccedilatildeo feita sob a accedilatildeo do Espiacuterito Santo Com isso iniciou-se uma nova interpretaccedilatildeo da mensagem de Cristo sobre a qual a Igreja essencialmente repousa19

19 Cf as decisivas conclusotildees de E PETERSON ldquoDie Kircherdquo in Theologische Traktate Munique 1951 p 409-429 H SCHLIER Die Entscheidung fuumlr die Heidenmission in der Urchristenheit Die Zeit der Kirche p 90-107 Parece-me certo que nem a anaacutelise da tradiccedilatildeo sinoacutetica relativa agrave mensagem de Jesus e seu caraacuteter escatoloacutegico nem o estudo da histoacuteria da Igreja primitiva com base no material fornecido pelos Atos dos Apoacutestolos autorizam qualquer outra conexatildeo entre a mensagem do reino e a pregaccedilatildeo da Igreja Daiacute natildeo se segue de modo nenhum ndash como muitas vezes se teme ndash que a cruz seja um acidente secundaacuterio que em rigor poderia ter sido evitado Ao contraacuterio A estrutura da Igreja moldada sobre a cruz eacute fundamental porque aiacute eacute que por primeiro se encontra a confirmaccedilatildeo da importacircncia da liberdade humana de Cristo e da sua Paixatildeo bem como a iacutentima dependecircncia da Igreja para com a Cruz donde ela procede

Este fato que baseia o estabelecimento definitivo da Igreja sobre uma decisatildeo tomada ldquono Espiacuterito Santordquo eacute o fundamento para se afirmar que existe uma interpretaccedilatildeo eclesial do Novo Testamento do mesmo modo que existe uma exegese cristoloacutegica do Antigo Daiacute podermos estabelecer as seguintes teses ou proposiccedilotildees agrave luz da analogia fidei

a) Existe uma teologia veterotestamentaacuteria do Antigo Testamento que o exegeta

deduz de seu conteuacutedo interno e que se desenvolve em uma seacuterie de camadas superpostas Segundo ela os textos antigos devem ser relidos e de novo expostos agrave luz dos novos acontecimentos O fenocircmeno da aplicaccedilatildeo dos textos agraves situaccedilotildees novas do desdobramento da Revelaccedilatildeo mediante nova [33] apresentaccedilatildeo do Antigo Testamento estrutura jaacute de modo essencial o conteuacutedo interno veterotestamentaacuterio20

b) Existe uma teologia neotestamentaacuteria do Antigo Testamento que natildeo coincide com

a referida teologia veterotestamentaacuteria Estaacute contudo estreitamente ligada com ela na unidade da analogia fidei21 Talvez partindo daqui se possa esclarecer o que significa a analogia fidei entre Os dois Testamentos A teologia neotestamentaacuteria do Antigo Testamento natildeo eacute como ficou dito idecircntica agrave teologia histoacuterica veterotestamentaacuteria Ao contraacuterio Re-exposiccedilatildeo feita agrave luz do Cristo-evento ela natildeo procede soacute da mera consideraccedilatildeo histoacuterica do Antigo Testamento Sendo embora em seu pleno conceito uma interpretaccedilatildeo relacionada com o Antigo Testamento contudo nada faz com que ela seja internamente estranha agrave sua essecircncia ainda que soacute de fora o atinja Ela amplia a forma estrutural do Antigo Testamento que assim interpretado revive e cresce

c) Existe uma teologia neotestamentaacuteria do Novo Testamento paralela agrave teologia veterotestamentaacuteria do Antigo Ou seja a teologia que o exegeta como tal pode deduzir do conteuacutedo interno do Novo Testamento eacute tambeacutem esta conhecida e estruturada mediante a aplicaccedilatildeo do Antigo Testamento agraves novas situaccedilotildees

d) Existe uma teologia eclesial do Novo Testamento que noacutes [34] chamamos Dogmaacutetica Ela se relaciona com a teologia neotestamentaacuteria do Novo Testamento do mesmo modo que a teologia neotestamentaacuteria do Antigo se relaciona com a respectiva teologia veterotestamentaacuteria Aquele ldquomaisrdquo (das Mehr) que distingue propriamente a Dogmaacutetica da teologia biacuteblica eacute o que designamos com a palavra Tradiccedilatildeo Aliaacutes tambeacutem aqui devemos salientar que a teologia eclesiaacutestica neotestamentaacuteria pela mesma razatildeo natildeo eacute simplesmente idecircntica agrave teologia neotestamentaacuteria interna e

20 Cf H GROSS Motivtransposition als Form- und Traditionsprinzip im Alten Testament in H VORGRIMLER Exegese und Dogmatik Moguacutencia 1962 p134-152 e a bibliografia aiacute fornecida G v RAD Theologie des Alten Testaments II Munique 1960 p332-339 396-401 21 A diferenccedila entre as duas teologias do Antigo Testamento foi vivamente exposta por R BULTMANN ldquoWeissagung und Erfuumlllungrdquo in Glauben und Verstehen II Tubinga 1952 p162-186 - Sobre as necessaacuterias correccedilotildees a se fazerem para que se torne visiacutevel a base histoacuterica do que a teologia sistemaacutetica denomina ldquoanalogia fideirdquo cf G v RAD op cit p329-424 (entre outras) e principalmente a p 420 nota 25 e a p422 nota 29 Sobre o tema ldquoanalogia fideirdquo em ambos os Testamentos cf tambeacutem E PRZYWARA Alter und Neuer Bund Viena-Munique 1956

histoacuterica do Novo Testamento Ultrapassa-a sem contudo ser-lhe puramente externa Com efeito no Novo Testamento comeccedila jaacute o processo da exposiccedilatildeo pela Igreja das verdades reveladas A teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento processa-se dentro dele proacuteprio como de modo clariacutessimo se percebe na histoacuteria da Revelaccedilatildeo sinoacutetica22

Eacute oportuno fazermos ainda uma pequena observaccedilatildeo se cotejarmos atentamente a teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento com a Dogmaacutetica reconheceremos que se impotildee uma outra distinccedilatildeo A Dogmaacutetica como ciecircncia aleacutem da exposiccedilatildeo eclesiaacutestica do Novo Testamento abrange tambeacutem a teologia particular de cada teoacutelogo Neste caso para se falar com precisatildeo dever-se-ia apresentar somente o proacuteprio dogma como teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento

O que acabamos de referir natildeo passa naturalmente de um esboccedilo que necessitaria em seus pormenores de natildeo poucos esclarecimentos e distinccedilotildees a fim de ser completo No caso presente entretanto damos por suficiente este esboccedilo Resumindo o que ateacute aqui expusemos podemos agora destacar vaacuterias ldquoraiacutezesrdquo da Tradiccedilatildeo e apontar vaacuterias camadas em seu seio [35] lordf raiz a maior amplidatildeo da ldquoTradiccedilatildeordquo em referecircncia agrave ldquoEscriturardquo

2ordf raiz o caraacuteter especiacutefico da Revelaccedilatildeo neotestamentaacuteria como Pneuma em contraste com o Gramma Eacute o que na linguagem de Bultmann se poderia chamar de sua condiccedilatildeo de ldquonatildeo-objetordquo (Nichtobjektiviertbarkeit) A praxe eclesiaacutestica e a teologia medieval expressaram este aspecto ao sobreporem a fides agrave Scriptura isto eacute o dogma como regra de feacute agraves minuacutecias da lei escrita23 O dogma eacute como a chave hermenecircutica da Escritura que em uacuteltima anaacutelise sem o auxiacutelio da hermenecircutica ficaria sendo algo fechado

3ordf raiz o caraacuteter presencial do Cristo-evento e a presenccedila dinacircmica do Espiacuterito de Cristo em seu Corpo a Igreja E consequumlentemente o poder que tem a Igreja de fazer a pregaccedilatildeo do Cristo ontem e hoje pregaccedilatildeo esta cuja fonte se encontra na interpretaccedilatildeo eclesiaacutestica da mensagem do reino transmitida pelos Apoacutestolos

Em conexatildeo com estas trecircs raiacutezes da ideacuteia (ou melhor da realidade) da Tradiccedilatildeo podem distinguir-se na mesma as seguintes camadas

a) Na origem de toda Tradiccedilatildeo estaacute o fato de que o Pai enviou o Seu Filho ao mundo e que o Filho por sua vez se [36] entregou ndash como sinal ndash aos ldquopovosrdquo (παραδίδοται) Esta paraacutedosis original em sua forccedila direta e salvadora

22 Cf por exemplo a rica exposiccedilatildeo de G BORNKMANN Jesus von Nazareth Estutegarte 1956 Sobre a questatildeo aqui estudada cf H SCHLIER Uumlber Sinn und Aufgabe einer Theologie des Neuen Testaments in H VORGRIMLER Exegese und Dogmatik Mainz 1962 p6990 23 O que haacute de melhor sobre este assunto no tocante agrave Patriacutestica seraacute encontrado em HARNACK DG II (1931) p84-116 HARNACK diz na p 87 nota 3 o seguinte ldquoO Cacircnon era de iniacutecio a regra da feacute A Escritura estaacute centrada na verdade Sem duacutevida nenhuma sua autoridade funda-se solidamente no Antigo Testamento e nas palavras do Senhorrdquo ndash Que assim tenha pensado tambeacutem a Idade Meacutedia e que aqui aleacutem da revelatio (da qual falaremos na 2ordf parte deste livro) a fides sobrepondo-se agrave Scriptura estabelece a forma essencial do conceito de Tradiccedilatildeo foi o que tentei demonstrar em meu artigo Wesen und Weisen der auctoritas im Werk des heiligen Bonaventura in Die Kirche und ihre Aumlmter und Staumlnde (Festgabe Kardinals Frings publicado por CORSTEN-FROTZ-LINDEN Colocircnia 1960 p 58-72

prolonga-se na permanente presenccedila de Cristo no σῶμα Χριστοῦ ndash no Seu Corpo a Igreja Assim o misteacuterio integral da presenccedila de Cristo eacute antes de tudo a realidade total transmitida pela Tradiccedilatildeo (fato fundamental e decisivo sempre anterior a todas as explicaccedilotildees particulares mesmo as da Escritura) e reguladora do que deve propriamente ser transmitido

b) A Tradiccedilatildeo existe concretamente como presenccedila na feacute Esta por seu turno como ldquoin-habitaccedilatildeordquo de Cristo precede todas as explicaccedilotildees particulares e frutuosa e viva ldquoexplicita-serdquo (explizierend) atraveacutes dos tempos

c) A Tradiccedilatildeo tem seu oacutergatildeo na plenitude dos poderes da Igreja e portanto naqueles que satildeo os legiacutetimos depositaacuterios destes poderes24

d) A Tradiccedilatildeo exprime-se tambeacutem naquilo que emanado da autoridade da Igreja se tornou regra de feacute (Symbolum fides quaelig) Portanto a questatildeo de se saber se certas proposiccedilotildees foram transmitidas desde o

comeccedilo pela Tradiccedilatildeo ao lado da Escritura ou em outros termos se existe desde o comeccedilo um segundo princiacutepio material e autocircnomo ao lado da Escritura torna-se afinal um problema inteiramente secundaacuterio Talvez lhe devamos responder negativamente

5 A funccedilatildeo da exegese [37] Pelo que ateacute aqui dissemos ficaram esclarecidas quase que exclusivamente

trecircs pontos os limites da letra da Escritura a liberdade do Espiacuterito Santo e a autoridade da Igreja Acontece poreacutem que a exposiccedilatildeo que fizemos abriga ainda um sentido diverso relacionado com a justa preocupaccedilatildeo de Lutero da qual partimos

Se ficou estabelecido que a Revelaccedilatildeo se faz presente atraveacutes da pregaccedilatildeo e se pregaccedilatildeo eacute exposiccedilatildeo da palavra revelada entatildeo pode e deve agora ao que precede acrescentar-se o seguinte a Tradiccedilatildeo eacute essencialmente e sempre uma exposiccedilatildeo Natildeo existe de maneira autocircnoma e sim como explicaccedilatildeo como exposiccedilatildeo ldquorelacionada com a Escriturardquo

Isto vale para a pregaccedilatildeo do proacuteprio Jesus Cristo realizaccedilatildeo plena da Revelaccedilatildeo e sua exposiccedilatildeo feita com autoridade A pregaccedilatildeo de Jesus Cristo natildeo aparece como algo absolutamente novo na Escritura Isto eacute como algo ainda natildeo atestado no Antigo Testamento Ela ensina isto sim a essecircncia do que jaacute estava escrito e lhe confere uma vida nova que o simples exegeta natildeo pode comunicar-lhe

O que vale para a mensagem de Cristo que permanece a mesma sob diferentes modalidades de exposiccedilatildeo vale tambeacutem para a pregaccedilatildeo apostoacutelica e a eclesiaacutestica Como ldquoTradiccedilatildeordquo ela deve em uacuteltima anaacutelise ser uma exposiccedilatildeo ldquosegundo a Escriturardquo a ela sujeita e com ela relacionada Sem duacutevida natildeo eacute ela uma exposiccedilatildeo no 24 Estas ideacuteias natildeo podem ser desenvolvidas mais detalhadamente aqui como seria de desejar uma vez que em rigor estamos procurando apenas fundamentar o conceito de Tradiccedilatildeo Em razatildeo da brevidade que me impus contentei-me apenas nas teses precedentes com explanar o assunto ateacute ao ponto em que ficasse patente a relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a ldquoIgrejardquo (cf as teses 4 e 5) Para se descer a maiores detalhes dever-se-ia analisar tambeacutem o conceito de Igreja que supomos conhecido do leitor Para isto cf a nota 6 onde citamos nosso livro sobre o Ofiacutecio e a unidade da Igreja Encontram-se aiacute algumas observaccedilotildees sobre o assunto de que ora tratamos

sentido de mera interpretaccedilatildeo exegeacutetica Mas sim na autoridade espiritual recebida do Senhor a qual se consuma na existecircncia plena da Igreja em sua feacute em sua vida e em seu culto Contudo ela permanece sendo (mais ainda do que o Cristo-evento em que se funda a Igreja) uma ldquoex-posiccedilatildeordquo (Aus-Legung) comprometida com a Histoacuteria e com a Palavra [38] Exprime-se deste modo a sua ligaccedilatildeo com a accedilatildeo concreta de Deus nesta mesma Histoacuteria e em seu caraacuteter de fato histoacuterico uacutenico (o ἑφάπαξ ldquoo ocorrido uma soacute vezrdquo) A realidade cristatilde da Revelaccedilatildeo eacute tatildeo essencial quanto ldquoeternardquo e definitiva Resulta daiacute a unidade entre o Cristo da Feacute e o Jesus da Histoacuteria o Jesus histoacuterico natildeo eacute senatildeo o Cristo da Feacute ainda que a feacute seja sempre algo mais do que a histoacuteria

Segue-se que do mesmo modo que existe um ofiacutecio de custoacutedia da Revelaccedilatildeo por parte da Igreja ofiacutecio por ela mesma atestado existe tambeacutem um ofiacutecio de custoacutedia da mesma Revelaccedilatildeo por parte da exegese que penetra o sentido literal da Escritura e defende a uniatildeo do Logos com a carne contra qualquer perigo de gnose Existe portanto por assim dizer algo como uma autonomia especiacutefica da Escritura como regra objetiva e sob muitos pontos de vista esclarecedora do Magisteacuterio eclesiaacutestico Esta era sem duacutevida uma exigecircncia legiacutetima de Lutero que ainda natildeo foi devidamente acolhida na Igreja catoacutelica por parte do Magisteacuterio cujos limites internos nem sempre foram claramente entendidos

Dever-se-ia partindo daqui salientar uma dupla criteriologia em se tratando da feacute De um lado haacute o que a Igreja antiga chamou de ldquoregra da feacuterdquo norma reguladora da palavra revelada contida na Escritura e sua exposiccedilatildeo Esta praeligscriptio da posse da Escritura como proacutepria segundo Tertuliano exclui a possibilidade de qualquer uso legiacutetimo da mesma Escritura contra a Igreja Por outro lado haacute tambeacutem o limite da littera Scripturaelig ou do sentido literal historicamente fixaacutevel que de acordo com o que ficou dito natildeo constitui nenhum criteacuterio absoluto ou autocircnomo mas sim somente um criteacuterio relativo no confronto da feacute com a ciecircncia O que na Escritura se pode descobrir quer mediante estudo cientiacutefico quer por simples leitura tem a funccedilatildeo de um criteacuterio real a que deve estar atento inclusive o Magisteacuterio em suas explicaccedilotildees Certamente [39] trata-se entatildeo de elementos sub-componentes da ciecircncia que natildeo podem servir para se julgar a feacute mas nela encontram uma instacircncia criacutetica e tecircm tambeacutem um importante papel a exercer o de zelar pela pureza do ἑφάπαξ de tutelar o conteuacutedo da Revelaccedilatildeo e de defender o dualismo histoacuterico carneespiacuterito (ldquodie Sarx der Geschichterdquo) contra os arbiacutetrios da gnose que tende sempre a impor-se

A reformatio na qual estaacute empenhada a Igreja nesta hora histoacuterica tem um papel relevante a desempenhar Eacute a missatildeo de abrir novas perspectivas para o diaacutelogo tentando assim chegar a uma ldquoreformardquo diferente da do passado que culminou com a divisatildeo no seio da Cristandade ocidental Tal missatildeo se exerceraacute em harmonia com o pleno ofiacutecio de testemunho da Igreja que tira seu direito e sua forccedila da presenccedila do Espiacuterito e de Cristo presente em todos os tempos Pois ele eacute sempre o Cristo de agora com a plenitude de seus direitos e de seus poderes Ele eacute quem daacute legitimidade e vigor ao testemunho singular e definitivo da Escritura que por sua vez encontra seu pleno sentido na singularidade da accedilatildeo histoacuterico-salviacutefica de Jesus Cristo Ele deu ao Pai seu Corpo crucificado e dando-se a si mesmo santificou para sempre os que o receberam (cf Hb 1014 727) Ele eacute o Cristo ontem hoje e sempre (Hb 138)

SEGUNDA PARTE

Explicaccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo segundo o Decreto do Conciacutelio de Trento

Parece que a completa elucidaccedilatildeo das razotildees que levaram agrave substituiccedilatildeo do

partim-partim pelo et e consequumlentemente agrave pesquisa dos dados do debate tridentino e de sua preacute-histoacuteria aparentemente favoraacutevel agrave suficiecircncia material da Escritura [40] simplifica indevidamente este problema fazendo-nos perder de vista os proacuteprios antecedentes do Decreto do Conciacutelio de Trento

1 A concepccedilatildeo pneumatoloacutegica da Tradiccedilatildeo no esquema fundamental do Cardeal Cervini

a) O conteuacutedo Um balanccedilo histoacuterico e detalhado do problema em seu conjunto exigiria uma

pesquisa exaustiva que natildeo reduzisse o seu acircmbito como o fez Geiselmann em seu livro25 Natildeo eacute nossa intenccedilatildeo proceder a um exame minucioso do assunto no presente trabalho Aqui soacute seratildeo tratados alguns pontos do debate tridentino com o fim de ampliarmos mais o horizonte de nossas reflexotildees

Fundamental para a compreensatildeo dos debates em pauta bem como do Decreto definitivo do Conciacutelio parece-me ser o Discurso do Cardeal Legado Cervini datado de 18 de fevereiro de 1546 [41] cujas linhas gerais se patenteiam tanto no Decreto como em outras decisotildees conciliares26

Tem o discurso de Cervini o meacuterito de mostrar as linhas diretrizes do Decreto de maneira mais clara do que aparecem estas na uacuteltima redaccedilatildeo do mesmo onde elas se diluem muito devido a uma seacuterie de variadas implicaccedilotildees Eacute ainda de grande auxiacutelio para o entendimento do referido discurso uma carta dos Cardeais Legados ao Cardeal Alexandre Farnese de 28 de fevereiro de 1546 Esta carta revela conteuacutedo idecircntico ndash eacute certamente inspirada pelo mesmo Cervini ndash e oferece ainda alguns outros

25 Eacute lamentaacutevel que Geiselmann em sua anaacutelise da contribuiccedilatildeo medieval sobre este assunto se tenha apoiado apenas em argumentos de segunda matildeo portanto de valor histoacuterico discutiacutevel Queira o leitor ver minhas observaccedilotildees a este respeito in Theol-prakt Quartalschrift 1963 p224-227 As novas (e temperamentais) invectivas de Geiselmann in TThQu 144 (1964) p 31-69 em nada modificaram a minha posiccedilatildeo de vez que natildeo trazem nenhuma contribuiccedilatildeo vaacutelida ao assunto Precioso ao contraacuterio eacute o trabalho de Y CONGAR La Tradition et les traditionshellip Essai historique Paris 1960 Importante eacute tambeacutem a obra de J BEUMER Die muumlndliche uumlberlieferung als Glaubensquelle Friburgo 1962 A respeito do Conciacutelio de Trento cf sobretudo aleacutem do estudo fundamental de JEDIN o artigo de E ORTIGUES Escriture et Traditions apostoliques au Concilie de Trente in RSR 36 (1949) p 271-299 K D SCHMIDT Studien zur Geschichate des Konzilis von Trient Tubinga 1925 p 152-209 26 O discurso nos foi transmitido em duas redaccedilotildees A primeira mais curta encontra-se nas Atas do Conciacutelio in CT V 11 A segunda faz parte do diaacuterio de Massarelli (Diarium III) in CT I p484 Quanto ao conteuacutedo os dois textos se completam Na anaacutelise que aqui ensaiamos as duas versotildees satildeo comparadas entre si de modo a fazerem um todo Sobre a posiccedilatildeo de Cervini no Conciacutelio cf H JEDIN Geschichte des Konzils von Trient II Friburgo 1957 p38-40 A descriccedilatildeo do desenrolar histoacuterico dos debates acha-se em JEDIN op cit p42-82 e supomo-la conhecida do leitor de vez que serve de base para a anaacutelise teoloacutegica do Decreto tridentino

esclarecimentos Cervini sustenta no citado discurso que existem trecircs princiacutepios e fundamentos de nossa feacute

1) Os livros sagrados escritos sob a inspiraccedilatildeo do Espiacuterito Santo 2) O Evangelho que Nosso Senhor natildeo escreveu mas ensinou oralmente e

implantou nos coraccedilotildees Parte do Evangelho foi escrita mais tarde pelos Evangelistas enquanto muita coisa foi simplesmente confiada aos coraccedilotildees dos fieacuteis

3) Porque o Filho de Deus natildeo ia permanecer sempre entre noacutes enviou ele o Espiacuterito Santo que haveria de revelar os misteacuterios no iacutentimo dos fieacuteis e de ensinar agrave Igreja toda a verdade ateacute ao fim dos tempos27

[43] Numa segunda redaccedilatildeo mais detalhada do discurso estas mesmas ideacuteias satildeo

desenvolvidas mais amplamente Aiacute lemos que a Revelaccedilatildeo se apresentou de modo diferente em diversos tempos

1) Nos Patriarcas cuja feacute eacute atestada na Escritura a que chamamos de Antigo Testamento

2) Em Jesus Cristo que implantou o seu Evangelho natildeo por escrito mas oralmente natildeo in charta mas in corde Das coisas que emanaram de Cristo (quaelig a Cristo emanarunt) algumas foram escritas outras permaneceram nos coraccedilotildees dos homens (quaeligdam in cordibus hominum relicta fuerunt) Todo o Evangelho de Cristo que consta desta dupla modalidade forma (tendo como primeiro princiacutepio o Antigo Testamento) o secundum prindipium fidei nostraelig

3) Daiacute surge o terceiro princiacutepio (tertium autem) porque o Filho de Deus natildeo iria permanecer sempre entre noacutes enviou ele ao mundo o Espiacuterito Santo que haveria de explicar os misteacuterios de Deus e tudo o que fosse ainda obscuro para os homens28 De modo semelhante a citada carta ao Cardeal Farnese fala de dois passos (due

passi) Um eacute que a Revelaccedilatildeo de Nosso Senhor natildeo foi totalmente escrita mas permaneceu em parte contida nos coraccedilotildees dos homens e na Tradiccedilatildeo da Igreja O outro [43] passo consiste em confirmar ldquoquello che egrave suggerito lo Spirito Santo in la Chiesa maxime medianti i concilij doppo lAscensione in cielo del Signorerdquo29

Notamos logo que contrariamente ao que esperaacutevamos natildeo dois mas trecircs satildeo os princiacutepios apontados a Escritura o Evangelho e a Revelaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

27 CT V 11 helliptria esse principia et fundamenta nostrae fidei primum libros sacros secundum esse evangelium quod Christus Dominus Noster non scripsit sed ore docuit et in cordibus illud plantavit cujus evangelii nonnulla evangelistaelig scripto mandarunt multa quoque relicta sunt in cordibus hominum Tertium quia non semper filius Dei corporaliter nobiscum mansurus erat misit Spiritum Sanctum qui in cordibus fidelium secreta Dei revelaret et ecclesiam quotidie et usque consummationem saeligculi doceret omnem veritatem et si quid in mentibus hominum dubii occurrisset declararet 28 CT I 484 Digna de nota eacute ainda a foacutermula contida na paacutegina 48514-16 nihil tamen inter scripturas sacras et apostolicas traditianes differt illaelig enim scriptaelig hae per insinuationem habentur utraeque tamen a Spiritu Sancto eodem modo emanataelig Confira-se com CT V 11 19 ab eodem Spiritu et illos (scilicet libros) et istas (scilicet traditiones) descendisse 29 CT X 373

Eacute portanto necessaacuterio observar que sob o termo ldquoEscriturardquo se entende o Antigo Testamento e que aleacutem deste (que eacute Escritura em sentido proacuteprio) aparece como segundo princiacutepio o Evangelho apresentaccedilatildeo do Cristo-evento O Evangelho por sua vez abrange o que estaacute escrito e o que natildeo estaacute escrito mas sim apenas insculpido no coraccedilatildeo dos crentes Deste modo o segundo princiacutepio representa uma vantagem pneumaacutetica sobre o que estaacute escrito o Evangelho eacute nesta concepccedilatildeo algo diferente da letra (Escritura) e soacute em parte vem escrito (Isto natildeo deve ser entendido no sentido de divisatildeo das verdades da feacute fenocircmeno denunciado ldquocom horrorrdquo por Geiselmann Ao contraacuterio Entenda-se apenas no sentido de diferente grau de dignidade no modo de exprimir-se) Em rigor o Evangelho como tal soacute pode ser escrito em parte se considerarmos a sua essecircncia

Finalmente ndash o que eacute muito de se admirar ndash segue-se como terceiro princiacutepio a accedilatildeo visiacutevel do Espiacuterito Santo em todo o tempo da Igreja

Admitimos portanto que o que noacutes geralmente chamamos de Tradiccedilatildeo natildeo aparece aqui como um soacute princiacutepio Biparte-se antes em dois princiacutepios intimamente ligados o ldquoEvangelhordquo princiacutepio apenas em parte identificaacutevel com a Escritura e a accedilatildeo do Espiacuterito Santo no tempo da Igreja Ademais podemos observar que a Escritura do Novo Testamento natildeo aparece como um princiacutepio ao lado da Revelaccedilatildeo apostoacutelica Muito menos como [44] eacute o nosso caso se apresenta a Escritura neotestamentaacuteria juntamente com a veterotestamentaacuteria como uma grandeza uacutenica uma ldquoEscriturardquo soacute agrave qual se poderia contrapor a ldquoTradiccedilatildeordquo como uma segunda grandeza O Novo Testamento em seu conjunto aparece como um segundo e mais amplo princiacutepio ou seja o Evangelho que como tal se opotildee de um lado ao Antigo Testamento e de outro agrave projeccedilatildeo histoacuterica do tempo da Igreja Sua unidade interna eacute evidentemente mais forte e importante do que a sua divisatildeo em escrito e natildeo-escrito Assim o Evangelho como um soacute princiacutepio pode ser contraposto ao Antigo Testamento a despeito desta dupla formalidade A impossibilidade de se representar o Novo Testamento como Escritura impossibilidade esta demonstrada por Satildeo Paulo e pelos primeiros seacuteculos cristatildeos eacute aqui claramente revelada

Ainda uma observaccedilatildeo relativa ao texto a que vimos nos referindo Em nenhum dos dois pontos por noacutes citados no estudo da Tradiccedilatildeo isto eacute nem no elemento contido no primeiro nem no apresentado no terceiro princiacutepio figura a Tradiccedilatildeo como verbal Em ambos os casos ao contraacuterio trata-se mais da Tradiccedilatildeo real com prevalecircncia da realidade sobre as palavras que a atestam Este fato que estaacute claro no terceiro princiacutepio o pneumatoloacutegico vale tambeacutem em relaccedilatildeo agrave implantaccedilatildeo do Evangelho nos coraccedilotildees contida no segundo princiacutepio Tal implantaccedilatildeo vai muito aleacutem do que se encontra expresso na letra da Escritura

Que papel tenham estas ideacuteias exercido nas discussotildees do Conciacutelio pode-se concluir tambeacutem das auctoritates citadas por Cervini entre as quais figuram Jo 16 12 (hellipSpiritus Sanctus suggerethellip) e Fl 3 15 (Quicumque perfecti sumus haeligc sentiamus et si quid aliter sentitis haeligc quoque Deus vobis revelabit) Ambos estes textos satildeo de teor acentuadamente [45] pneumatoloacutegico-presencial30 Que tais ideacuteias natildeo eram

30 CT V 14 e 15 Um exame profundo das auctoritates quer da Escritura quer entre os Santos Padres que neste particular satildeo favoraacuteveis agrave Tradiccedilatildeo seria em si conclusivo para a elaboraccedilatildeo do conceito

estranhas aos Padres conciliares deduz-se ainda de uma seacuterie de outras referecircncias Assim ouvimos o Bispo de Aqui dizer que aleacutem da Sagrada Escritura existe muita coisa na Igreja de Deus que vindo dos Apoacutestolos e passando de geraccedilatildeo a geraccedilatildeo chegou ateacute noacutes assim como muitas outras quaelig etsi scripta Apostoli nobis non reliquerunt per Spiritus Sancti revelationem nobis (tradita) sunt (Tradita estaacute aqui por revelata) 31 Partindo daiacute se poderia descrever a Tradiccedilatildeo justamente como o componente pneumatoloacutegico do Cristo-evento b) A influecircncia do esquema de Cervini em diversas decisotildees conciliares

Eacute verdade que esta concepccedilatildeo tripartida aparece muito atenuada no Decreto

oficial sobre a Tradiccedilatildeo Que poreacutem em suas linhas fundamentais natildeo tenha ela sido de modo nenhum [46] abandonada mostram-no duas outras passagens nas quais o Conciacutelio faz uso por assim dizer in actu das ideacuteias aqui expressas32 Assim na Introduccedilatildeo ao Decreto sobre a Eucaristia (Denz 873) se lecirc Sacrosancta Synodus sanamhellipdoctrinam tradens quam semper catholica Ecclesia ab ipso Jesu Christo Domino Nostro et eius apostolis erudita atque a Spiritu Sancto illi omnem veritatem in dies suggerente (Jo 1416) edocta retinuithellip

Aqui a accedilatildeo proacutepria do Conciacutelio eacute descrita como tradere e a este tradere eacute atribuiacutedo um duplo fundamento De um lado o ensino de Jesus e dos Apoacutestolos (Note-se que este ponto corresponde ao Evangelho segundo a concepccedilatildeo de Cervini E de certo modo tambeacutem pela citaccedilatildeo de Jesus e dos Apoacutestolos se reconhece a dupla modalidade do Evangelho como escrito e como inserido nos coraccedilotildees) De outro lado o ensino dado pelo Espiacuterito Santo que conduz agrave verdade in dies isto eacute no de correr do tempo futuro

O outro texto que pode ser aduzido aqui como prova do que afirmamos encontra-se no Preacircmbulo do Decreto sobre o Purgatoacuterio (Denz 983) Aiacute se lecirc hellipCatholica Ecclesia Spiritu Sancto edocta ex Sacris Litteris et antiqua Patrum traditione in sacris Conciliis et novissime in hac Synodo docuerit A descriccedilatildeo da accedilatildeo proacutepria do

aqui exposto H HOLSTEIN procurou fazer o cotejo destas auctoritates e fecirc-lo de modo admiraacutevel em seu artigo La Tradition dapregraves le Concile de Trente (RSR 47 1959 p367-390 e em particular para o caso em questatildeo a p375) Ele encontra nos textos estudados duas linhas de tendecircncias A linha de Santo Irineu para a qual o testemunho dos Apoacutestolos eacute o de sua personalidade de sua vida e de seu ofiacutecio Aleacutem desta o grupo composto de Tertuliano Cipriano Basiacutelio e Agostinho forma uma corrente que se poderia denominar ldquocerimonialrdquo Oriacutegenes se enquadra em ambos os grupos Existe entre os autores estudados uma seacuterie de textos que se referem agraves observationes consuetudines institutiones e que levam a entender-se a Tradiccedilatildeo neste mesmo sentido Aiacute se vecircem tambeacutem textos que sublinham o aspecto natildeo-escrito do Evangelho enquanto insculpido no coraccedilatildeo dos fieacuteis e aleacutem disso textos que apontam a Igreja como o ldquolugarrdquo da verdade cristatilde 31 CT I 483 (18 de fevereiro de 1546) Em 26 de fevereiro (CT V 18) encontramos Cervini a tratar de novo deste assunto Cf tambeacutem um pronunciamento do Bispo de Fano (CT V 10) nestes termos Cum jam receperimus Scripturas Sacras necessario recipiendaelig sunt traditiones quaelig ab eodem Spiritu Sancto quo scripturaelig dictataelig sunthellip 32 Disto me adverti pela primeira vez atraveacutes de um estudo realizado sob a minha orientaccedilatildeo por CHR LIMBACR a quem sou devedor de muitas informaccedilotildees bibliograacuteficas

Conciacutelio como tradere encontra-se ainda nas declaraccedilotildees sobre o Sacramento da Extrema-Unccedilatildeo (Denz 910)

Finalmente a triacuteplice divisatildeo deixa-se insinuar nas entrelinhas do Decreto sobre a Tradiccedilatildeo embora obscurecida e diluiacuteda por uma seacuterie de acreacutescimos e citaccedilotildees a ele adicionados por outros motivos O Decreto da Tradiccedilatildeo com efeito [47]

1) Fala do Evangelho prometido pelos Profetas na Escritura e refere-se a esta em sentido estrito quer antes quer depois do Antigo Testamento

2) Fala da promulgaccedilatildeo por Cristo do Evangelho que foi transmitido pelos Apoacutestolos sob dupla forma oral e escrita Desta maneira o que natildeo ocorre no exemplo de Cervini aparece aqui antes de tudo o componente pneumatoloacutegico unido com o componente apostoacutelico a ponto de se distinguirem duas modalidades de Tradiccedilatildeo apostoacutelica a que remonta a Cristo e a que remonta ao envio do Espiacuterito Santo Pode-se assim estabelecer que em oposiccedilatildeo ao esquema de Cervini haacute um certo processo de historicizaccedilatildeo que salienta a relaccedilatildeo com o comeccedilo histoacuterico e igualmente parece deslocar o acento da tradiccedilatildeo real para a verbal

3) No epiacutelogo desta parte do Decreto da Tradiccedilatildeo que vimos analisando de novo eacute considerada a ideacuteia da Sagrada Escritura O conceito de Tradiccedilatildeo eacute entatildeo formulado em definitivo e descrito como vel oretenus a Christo vel a Spiritu Sancto dictatas et continua successione in Ecclesia catholica conservatas A referecircncia aos Apoacutestolos eacute omitida Pode-se na verdade considerar tudo isto como uma volta ao que foi dito antes Evidentemente a tradiccedilatildeo ditada pelos Apoacutestolos eacute citada de novo (A expressatildeo continua successione insinua-o) Contudo permanece sempre ainda certa indeterminaccedilatildeo ficando aberta a possibilidade de se encontrar aqui o vestiacutegio do terceiro componente de Cervini o princiacutepio pneumaacutetico propriamente dito Eacute tambeacutem claro que esta ideacuteia eacute discreta sendo adotada uma posiccedilatildeo mais acentuadamente histoacuterica Se agora lanccedilarmos os olhos sobre o que vimos considerando ateacute aqui surgiratildeo

inevitavelmente perguntas qual eacute realmente o sentido proacuteprio da concepccedilatildeo pneumatoloacutegica Como poderia ser perfeitamente entendida a ideacuteia a noacutes estranha de uma revelatio prolongada no tempo em face da unicidade e do caraacuteter [48] histoacuterico da Revelaccedilatildeo que evidentemente era conhecido tanto de Cervini quanto dos Santos Padres e teoacutelogos medievais33

Antes de examinarmos isto devemos esclarecer rapidamente os principais motivos que inspiraram o Decreto tridentino sobre a Escritura e a Tradiccedilatildeo deixando nele um tanto encoberta a concepccedilatildeo pessoal de Cervini Que opiniotildees de teoacutelogos teratildeo intervindo aqui chegando a ser em parte impressas no texto definitivo que resultou do cotejo de muitos pronunciamentos diversos Uma exposiccedilatildeo detalhada deste ponto exorbitaria do acircmbito de nossa anaacutelise Contentemo-nos com umas poucas observaccedilotildees sumaacuterias 33 Sobre este assunto tentei fazer um breve comentaacuterio no meu trabalho ldquoOffenbarung-Schrift-Uberlieferungrdquo in TThZ 67 (1958) p13-27 Cf J BEUMER ldquoDer theoretische Beitrag der Frnhscholastik zum Problem des Dogmenfortschrittsrdquo in ZkTh 72 (1952) p205-226 J de CHELLINCK Pour lrsquohistoire du mot ldquorevelarerdquo in RSR 6 (1916) p149-157

2 Relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a vida da Igreja

em diversas passagens do debate tridentino

Uma primeira seacuterie de motivos entre os quais se compreendem diversos pronunciamentos agraves vezes muito contrastantes em seu aparato exterior patenteia-se na ideacuteia de tradiccedilotildees expressa no Decreto de duas maneiras a) - per manus traditaelig ad nos usque pervenerunt b) - continua successione in Ecclesia catholico conservatas

O que se ocultaraacute sob estas duas foacutermulas que o historiador de hoje tem dificuldades em aceitar justamente por causa do historicismo nelas impliacutecito Podemos dizer que um decisivo papel exerceu aqui o pensamento que sempre aparecia nos debates a saber que as tradiccedilotildees satildeo variaacuteveis que muitas delas foram abolidas pelos Apoacutestolos e que por outro lado se [49] introduziram tradiccedilotildees eclesiaacutesticas que natildeo mais seriam abolidas34 Esta ideacuteia de Tradiccedilatildeo de certo modo se torna clara no tratado escrito sobre o mesmo assunto por Seripando para uso dos Padres Conciliares Seripando fala das Tradiccedilotildees escritas inseridas na Escritura como as claacuteusulas de Tiago o costume de as mulheres se cobrirem com um veacuteu a legislaccedilatildeo sobre o matrimocircnio contida em 1Cor 7 etc E o autor adverte que estas praacuteticas foram abolidas Isto porque embora associadas agrave palavra de Deus na Escritura dela ldquomuito diferemrdquo pois a palavra divina [50] de modo nenhum poderia ser abolida A estas tradiccedilotildees

34 Cabe aqui aduzir uma nova intervenccedilatildeo de Cervini datada de 26 de fevereiro de 1546 (CT I 33 e V 18) onde ele diz que nem todas as tradiccedilotildees procedentes dos Apoacutestolos devem ser conservadas mas somente as que ab Ecclesia receptaelig ad nos usque pervenerunt (V 18) Esta afirmaccedilatildeo anterior agrave formulaccedilatildeo dogmaacutetica feita pelo Concilio deve igualmente ser tida na conta de um autecircntico comentaacuterio do Decreto Aiacute se acentua como condiccedilatildeo essencial das tradiccedilotildees a receptio ecclesiaelig Vem ainda referida uma intervenccedilatildeo do Bispo de Bertinoro em data de 23 de marccedilo (I p 523) na qual ele sublinha que as tradiccedilotildees escritas por vezes foram mudadas Jaacute entre as natildeo-escritas umas foram mudadas e outras natildeo como por exemplo o rito de adicionar aacutegua ao vinho a Crisma a confissatildeo auricular O Bispo de Bertinoro acrescenta que por outro lado alguns pontos existem que permaneceram inteiramente inalterados tais como a crenccedila no descensus ad inferos na virgindade perpeacutetua de Maria a substituiccedilatildeo da observacircncia do saacutebado pela do domingo Temos depois um pronunciamento do Bispo de Bitonto datado de 27 de marccedilo (I 39) Este bispo era de parecer que algumas coisas foram transmitidas pelos Apoacutestolos com a finalidade de serem perpetuamente conservadas (como pertencentes ao depoacutesito da feacute) outras caiacuteram em desuso (como as claacuteusulas de Tiago) e outras enfim foram apenas aconselhadas Assim mesmo na Escritura algumas coisas haacute que foram escritas mas natildeo recebidas em uso por serem mateacuteria de mero conselho Por exemplo ldquose algueacutem te pedir a tuacutenica daacute-lhe tambeacutem o paacutelio se algueacutem te esbofetear numa face oferece-lhe tambeacutem a outrardquo Sem duacutevida excelente ilustraccedilatildeo do sermatildeo da montanha Finalmente consideraccedilotildees idecircnticas podemos encontrar na obra citada de LEJAY Eis outra amostra tirada do discurso de 23 de fevereiro (CT V 13) Nam illaelig (scil traditiones) quaelig ad fidem pertinent eadem sunt recipiendaelig auctoritate qua recipitur evangelium alia autem non ita eum earum plurimaelig immutataelig fuerint ut de bigamis de esu sanguinis et similia De modo semelhante aliaacutes fala tambeacutem Bonuccio (I 525 a 23 de marccedilo de 1546 ecclesia traditiones apostolorum quandoque mutavit verbum autem Dei nunquam mutavit neque mutare potest

Seripando opotildee as natildeo referidas na Biacuteblia e que ora satildeo apostoacutelicas ou oriundas de Conciacutelios universais e aceitas por toda a Igreja ora satildeo particulares e muito variaacuteveis35

Este texto nos leva a uma surpreendente conclusatildeo para Seripando e muitos outros Padres tridentinos36existem tradiccedilotildees na Escritura ldquoTradiccedilatildeordquo natildeo significa o natildeo-escrito Existe quer dentro da Escritura quer fora dela Isto nos conduz a outra pergunta em que consiste para os referidos Padres a essecircncia da tradiccedilatildeo se o que a constitui natildeo eacute o fato de natildeo ser escrita37 Em outros termos como pode a tradiccedilatildeo ser definida positivamente se ela natildeo pode ser suficientemente determinada pela ideacuteia negativa de algo natildeo-escrito

Haacute uma seacuterie de respostas para esta pergunta O proacuteprio Seripando daacute a seguinte definiccedilatildeo Traditiones hoc est Apostolorum seu sanctorum Patrum sanctae et salutares constitutiones38 Mais clara ainda eacute a afirmaccedilatildeo de Cervini citada por Massarelli A objeccedilatildeo do Bispo de Chioggia que aduzia a opiniatildeo de Agostinho de que tudo o que eacute necessaacuterio para a salvaccedilatildeo estava escrito na Biacuteblia respondia Cervini da seguinte maneira Verba illa (isto eacute de Santo Agostinho) formaliter intelligi debent scilicet ad fidem accipiendam ut salvi fiamus Quo vero ad mores et christianam vitam instituendam certo non omnia scripta sunt

[51] E de novo recorre agraves provas tiradas de Jo 1526 e 1426 E indica o princiacutepio pneumatoloacutegico39 O que eacute mais importante eacute que a Tradiccedilatildeo se refere agrave institutio vitaelig agrave presenccedila atuante da Palavra revelada na existecircncia cristatilde Tradiccedilatildeo eacute noutros termos a eficaacutecia da palavra de Deus Sem ela a palavra ficaria esteacuteril 35 Seripando De traditionibus (fevereiro ou marccedilo de 1546) CT XII p517-521 e principalmente a p 521 As expressotildees desta uacuteltima paacutegina chocam-se com a ideacuteia de Cervini sobre a receptio ecclesiaelig 36 Cf o texto citado na nota 11 37 No texto definitivo do Decreto esta ideacuteia natildeo aparece mais Aqui poreacutem com esta primeira designaccedilatildeo expliacutecita da Tradiccedilatildeo vem expressamente acentuado o contraste entre in libris scriptis et sine scripto traditionibus Na segunda redaccedilatildeo o sentido expliacutecito da palavra Tradiccedilatildeo natildeo eacute tatildeo exclusivo Contudo apresenta igual matiz ao se confrontarem as expressotildees omnes libroshellipnec non traditiones ipsas Portanto a ideacuteia positiva da Tradiccedilatildeo que serve de base a esta anaacutelise natildeo deixou de influenciar na redaccedilatildeo do Decreto 38 CT XII 517 39 CT I 494 (26 de fevereiro de 1546) A citada palavra de Santo Agostinho teve o seu papel a desempenhar na discussatildeo em curso Seripando por exemplo a ela se referiu (De traditionibus CT XII 521 47-53) Pensandum denique ne in traditionibus externis vera religio et salutis spes statuatur de quibus Augustinus Omnia quaelig pertinent ad veram religionem quaeligrendam et tenendam divina Scriptura non acuit Conceda-se que nem tudo foi escrito (veja-se Jo 2125) Todavia electa sunt autem quaelig scriberentur quaelig saluti credentium sufficere videbantur Mais do que nos debates do tridentino encontramos aqui um verdadeiro postulado dos Reformadores ldquonatildeo adotar costumes exteriores mas buscar os meios definitivos de salvaccedilatildeo na palavra da Escriturardquo A ldquosuficiecircnciardquo da Escritura de que aqui se fala eacute na verdade algo diverso da suficiecircncia material da mesma Escritura defendida por Geiselmann em sentido muito mais radical Infelizmente ainda natildeo se quis levar na devida consideraccedilatildeo o texto de Santo Agostinho (CT I 494 sugere De doctrina christiana II 9 e De pecc mero et rem II 59) Muito apropriadas nesta ordem de ideacuteias satildeo as observaccedilotildees de H SCHAUF ldquoSchrift und Traditionrdquo in Antonianum 39 (1964) p200-209 feitas no chamado Encontro de Duumlsseldorf Nos textos citados por Schauf com base em Agostinho eacute afirmada a suficiecircncia da Escritura para a salvaccedilatildeo Eacute contudo contestada a sua suficiecircncia para a Igreja em geral De fato esta alternativa parece muito mais vaacutelida e fundamental agrave luz dos postulados dos Reformadores do que a alternativa entre a suficiecircncia ou insuficiecircncia material da Escritura

Na mesma linha de ideacuteias seguem-se duas outras seacuteries de pronunciamentos Vimos na introduccedilatildeo agrave parte anterior que a discussatildeo dogmaacutetica da ideacuteia de

Tradiccedilatildeo foi em parte prejudicada pela questatildeo do meacutetodo a seguir no Conciacutelio dever-se-ia abordar primeiro a reformatio a reforma praacutetica da Igreja como queria o ldquoKaiserrdquo Ou primeiro discutir a questatildeo dogmaacutetica como preferia o Papa40

[52] Este problema do meacutetodo embora resolvido no debate que entatildeo surgiu natildeo afetou diretamente a questatildeo da Tradiccedilatildeo como tal Mas como de fato estas duas questotildees ficaram ligadas entre si daiacute resultou que muitos oradores transformaram a questatildeo do meacutetodo (se se deveria falar dos abusos ou da Tradiccedilatildeo) em parte de sua argumentaccedilatildeo em torno do assunto em pauta41 O problema abusus e o problema Traditio ficaram de tal maneira associados na ocasiatildeo que pareciam formar no fundo um soacute assunto Por isso os oradores ora falavam em sentido positivo ora se pronunciavam em sentido negativo Isto correspondia tambeacutem ao propoacutesito reformista do Conciacutelio as traditiones representavam os abusus aos quais a Igreja se opunha Os Padres estavam cocircnscios de que condenar as traditiones era condenar Os usus ecclesiaelig o modo como a Igreja vivia a sua vida naquela eacutepoca

A outra seacuterie de pronunciamentos que se inclinavam ao mesmo sentido encontramo-la nas proposiccedilotildees que a auctoritas da Igreja apresenta como definitivas indicando uma iacutentima relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a institutio christiana 42

[53] Podemos agora retomar ao nosso ponto de partida e dar resposta agrave pergunta que propriamente significa a foacutermula ad nos usque pervenerunt Objetivamente natildeo se trata aqui de um historicismo que a foacutermula parece expressar Ao contraacuterio Trata-se da fidelidade perseverante da Igreja agrave institutio vitaelig christianaelig da legiacutetima forma de vida cristatilde em concreto no tempo presente da Igreja da institutio christiana que coloca a Escritura em primeiro lugar e que como tal isto eacute como vida decorrente da Escritura eacute fundamentalmente apostoacutelica embora tambeacutem sujeita a mudanccedilas como tudo o que eacute vivo

3 A Tradiccedilatildeo e o dogma eclesiaacutestico

40 Sobre o debate em torno da questatildeo do meacutetodo cf mais uma vez JEDIN op cit p9-82 e outras 41 Assim jaacute no discurso de Cervini antes analisado (CT I 484) no qual ele recorda o dilema do Conciacutelio se nos voltarmos contra as tradiccedilotildees ficaratildeo admirados os Padres Conciliares quasi reformationem fugiamus si ipsam reformationem sumimus iterum objicient traditiones relinquendas non esse Idecircntica era a situaccedilatildeo em que se encontrava o Bispo de Astorga nas duas intervenccedilotildees que fez no dia 23 de fevereiro de 1546 (CT V 13 e 19) segundo Seripando (I 484) helliptraditiones prius pertractandas consulit tantam enim conformitatem abusus qui ex sacris libris descendunt cum iis qui a traditionibus orti sunt habent ut sacris libris et traditionibus absolutis duo illa abusuum genera simul pertractari valeant Segundo Bonuccio (I 484) antes de tudo dever-se-ia tratar das Sagradas Escrituras dos cacircnones apostoacutelicos dos Conciacutelios gerais e das decretais pontifiacutecias Hisque ilusceptis ad abusus ex eisdem dependentes devenire 42 Assim principalmente de acordo com Afonso de Castro (CT I 484) Quoniam ultra traditiones apostolicas ecclesiae auctoritatem habemus quaelig ecclesiaelig auctoritas tonta apud nos est ut aliqui eam maioris roboris quam sacros libros esse sentiant Cf igualmente CT I 491 45 Na mesma linha pode-se ver uma seacuterie de pronunciamentos na citada obra de LEJAY Cf CT XII 524 (Tratado De traditionibus ecclesiaelig fevereiro ou marccedilo de 1546)

Uma segunda seacuterie de motivos eacute expressa no Decreto pela foacutermula traditiones tum ad fidem tum ad mores pertinentes Se como vimos a ideacuteia de Tradiccedilatildeo aparece muito limitada naquilo que os Padres conciliares chamam consuetudines observationes institutiones por outro lado o Procurador do Cardeal de Augsburgo Claudio Lejay SJ se fez o porta-voz de uma expressatildeo que em oposiccedilatildeo agraves traditiones caeligremoniales estabeleceu justamente o sentido da tradiccedilatildeo contida na feacute Seu tratado sobre a Tradiccedilatildeo composto para uso dos Padres conciliares inclui tambeacutem a foacutermula que foi adotada pelo Conciacutelio Aiacute se diz Denique multas veritates tum ad fidem tum ad mores pertinentes Ecclesia novit quas Scriptura aperte et expresse non continet Ele cita como exemplos as palavras persona essentia trinitas no Tratado da Santiacutessima Trindade consubstantialitas na Cristologia do Logos duas naturezas uma soacute Pessoa referentes ao dogma definido pelo Conciacutelio de Calcedocircnia E ainda Cristo Filho uacutenico de Maria duas vontades na uacutenica Pessoa de Cristo uma alma racional aleacutem do espiacuterito divino em Cristo Ana matildee de Maria o costume de fazer sinais da cruz a santificaccedilatildeo do domingo a maneira de rezar com face voltada [54] para o Oriente tudo isto ideacuteias e fatos da tradiccedilatildeo conciliar e da piedade cristatilde43

Cervini que aprovou o discurso de Lejay de 23 de fevereiro de 154644 pocircde dificilmente conciliar esta posiccedilatildeo com a sua expressa na jaacute citada carta ao Cardeal Farnese onde como vimos ele diz que o Espiacuterito Santo falou na Igreja e depois da Ascensatildeo do Senhor fala ainda maxime medianti i concilii45 Ele aiacute viu publicamente sublinhado o fato de que aquele ldquomaisrdquo que a Igreja viva representa em relaccedilatildeo agrave palavra meramente escrita natildeo se referia e natildeo se refere apenas agrave vita instituenda ou como ele prefere agrave caeligremonialia Refere-se tambeacutem agrave essentialia fidei que antes de tudo plenamente se expressam na Tradiccedilatildeo Tambeacutem aqui como se vecirc o interesse dominante natildeo estaacute na apresentaccedilatildeo historicista do assunto a partir do iniacutecio da Igreja mas na ideacuteia de que a influecircncia da Tradiccedilatildeo sobretudo atraveacutes da praxe conciliar eacute de fundamental importacircncia para a feacute para a doutrina crida e natildeo apenas para a piedade viva ou a caeligremonialia

4 O sentido do Decreto tridentino

Se recapitularmos o que ateacute agora dissemos veremos que no conjunto facilmente se podem reconhecer trecircs diferentes concepccedilotildees teoloacutegicas unidas entre si no texto definitivo do Decreto sobre a Tradiccedilatildeo Unidas mas natildeo equiparadas umas agraves outras Pelo contraacuterio apesar de sua grande diferenccedila foram elas apenas [55] mais ou menos justapostas e de novo por forccedila de uma tendecircncia comum relacionadas entre si

1 A concepccedilatildeo de Cervini que designamos como pneumatoloacutegica Com sua doutrina sobre os trecircs principia fidei insiste ele no caraacuteter dinacircmico do Cristo-evento

43 CT XII 523 LEJAY baseia-se evidentemente em listas de tradiccedilotildees confeccionadas naquele tempo (Cf ECK DRIEDO CANO BOTO NOGAROLA) Cf a este respeito Y CONGAR ldquoTraditions apostoliques non eacutecrites et suffisance de lEscrituresrdquo in Istina 6 (1959) p219-306 e principalmente a paacutegina 289 44 CT V 14 45 CT X 373

presente na Igreja Entende assim a Tradiccedilatildeo primariamente como a realidade espiritual da institutio vitaelig christianaelig

2 A concepccedilatildeo que podemos chamar de cerimonial Esta entende a Tradiccedilatildeo essencialmente como a seacuterie de consuetudines existentes ao lado da feacute como os usus ecclesiaelig que os Reformadores falsamente pretendem abolir como abusus Esta concepccedilatildeo chega a condenar a dignidade e Antiguumlidade apostoacutelica das tradiccedilotildees Sua ideacuteia eacute limitada pelo ad nos usque pervenerunt que inclui possibilidade de variar da parte das tradiccedilotildees donde a necessidade de reduccedilotildees Com os termos pervenire e conservare a recepccedilatildeo por parte da Igreja eacute considerada criteacuterio adicional ao lado da Antiguumlidade

3 A concepccedilatildeo que talvez possamos denominar dogmaacutetica Em oposiccedilatildeo agrave fixidez da ideacuteia de Tradiccedilatildeo reduzida agrave consuetudo salienta esta terceira hipoacutetese a extensatildeo do fenocircmeno Tradiccedilatildeo tambeacutem ao acircmbito da fides

Estas trecircs concepccedilotildees deram forma ao texto do Decreto de tal modo que as suas

linhas mestras derivam de Cervini e todo o texto deve ser entendido agrave luz de suas ideacuteias Contudo em duas passagens isto eacute no pervenerunt e no conservatas haacute influecircncia da segunda concepccedilatildeo enquanto no tum ad fidem tum ad mores haacute influecircncia da terceira

Em face destas trecircs concepccedilotildees das quais na realidade existem diversas variantes que tomadas em conjunto satildeo a expressatildeo das ideacuteias dominantes adotadas aparecem as teses de Bonuccio e de Nacchianti tatildeo postas em evidecircncia por Geiselmann como sentenccedilas contraacuterias De fato o parecer de Bonuccio claramente [56] se opotildee agrave segunda concepccedilatildeo (contra a supervalorizaccedilatildeo das consuetudines natildeo per pietatis affectus) ao passo que Nacchianti se levanta antes contra a terceira posiccedilatildeo e salienta a suficiecircncia da feacute recebida por meio da Escritura46

Seria de notar-se ainda que as concepccedilotildees segunda e terceira tecircm algo em comum Ambas opotildeem agrave visatildeo pneumatoloacutegica de Cervini da salvaccedilatildeo sempre presente uma visatildeo mais historicista relacionada com o prolongamento da salvaccedilatildeo operada uma soacute vez ou seja o ἑφάπαξ Na realidade deve-se dizer que embora de um lado tanto a visatildeo presencial de Cervini como tambeacutem a visatildeo historicista do outro grupo se consideradas isoladamente cada qual de per si sejam perigosas se natildeo insustentaacuteveis 46 Aliaacutes de acordo com uma informaccedilatildeo de Cervini parece que o Bispo de Chioggia finalmente renunciou agrave sua tese da suficiecircncia da Escritura na qual se inclinava a recusar as tradiccedilotildees Na carta de Cervini ao Cardeal Farnese de 27 de fevereiro de 1546 lemos hellip Chioggia che (quasi quasi) voleva dire queste traditioni essere superflue perorando che tutto quello che era necessario alla salute era scritto et allegando etiam S Agostino sopra lultimo capitulo di S Giovanni a questo proposito Pure per non poter negare che molte cose appartenenti almeno alli sacramenti non ci fussero venute ex tra ditione et per consequente che non tutte le cose necessarie alia nostra salute erano scritte poiche ebbe fatte molte distintioni concluse che ancor lui accettava queste ldquoche in la chiesa fusse qualque traditione apostolica non scrittardquo (et con queste parole diceva che se ne facesse il decreto) credo che molti sono restati scandalizati di lui (CT X Nr 315 paacutegs 399 411) Cf tambeacutem CT I 494 nota 9 e 495 nota 2 CT V 18 nota 5 e 19 e nota 1 O mesmo protesto que aparece contra Nacchianti manifesta-se tambeacutem na observaccedilatildeo de Massarelli Este chega a chamar aquele de novarum rerum cupidus (1 494 18) e esclarece que reprehensus est a multis (1 494 22) Diante disto eacute de todo destituiacuteda de creacutedito a importacircncia que Geiselmann lhe atribui mesmo se abstrairmos de outras razotildees jaacute conhecidas sobre as quais natildeo precisamos insistir

de outro lado pelo menos tornam possiacutevel uma exata visatildeo do conjunto devido agrave sua muacutetua confluecircncia e limitaccedilatildeo No texto atual estatildeo presentes embora pouco nitidamente ambos os pontos de vista o elemento presencial e o ἑφάπαξ Conveacutem que entendamos assim o texto de modo a considerarmos [57] ambos estes aspectos como essenciais Consequumlentemente reconheceremos que ambos pertencem constitutivamente agrave realidade da vida cristatilde e portanto tambeacutem agravequela parcela do Cristianismo a que damos o nome de Tradiccedilatildeo Estes dois elementos satildeo a presenccedila do Espiacuterito Santo e o seu nexo com o fato singular da salvaccedilatildeo ocorrido uma soacute vez por todas na histoacuteria dos homens

Assim se acharaacute finalmente a resposta agrave pergunta de corno noacutes devemos entender o parecer do Conciacutelio de Trento A primeira e mais importante conclusatildeo parece-me ser o fato de o Conciacutelio ter visto muito claramente o nexo entre Tradiccedilatildeo e Revelaccedilatildeo A seguir elaborou sempre em consonacircncia com a tradiccedilatildeo patriacutestica e medieval um conceito de Revelaccedilatildeo muito menos material do que o que seraacute adotado mais tarde pela teologia dos tempos modernos Somente assim se deve conceber a ideacuteia da Revelaccedilatildeo do Espiacuterito Santo na Igreja Partindo do ramo nitidamente patriacutestico da teologia medieval tatildeo francamente acolhido no discurso de Cervini deveria ser muito menos categoacuterica a opiniatildeo que coloca o teacutermino da Revelaccedilatildeo na morte do uacuteltimo Apoacutestolo Naturalmente esta questatildeo natildeo pode ser aqui estudada com maiores detalhes A sua soluccedilatildeo como entatildeo se apresentava aos teoacutelogos poderia ser hoje impostada apelando-se para as categorias da teologia atual Segundo esta podemos dizer que a Revelaccedilatildeo estaacute encerrada do ponto de vista de seu princiacutepio material Todavia estaacute e continua presente em sua realidade eficaz Noutros termos a Revelaccedilatildeo tem eacute verdade o seu ἑφάπαξ enquanto ela se realizou num determinado dia na Histoacuteria Entretanto ela tem tambeacutem o seu ldquohojerdquo permanente isto eacute o que foi uma vez por todas realizado na feacute da Igreja permanece sempre vivo e operante Assim a feacute cristatilde natildeo se volta apenas para o passado Abrange tambeacutem o presente e o futuro Eacute verdade que a posterior materializaccedilatildeo historicista da ideacuteia de Revelaccedilatildeo aparece jaacute claramente insinuada nos debates tridentinos corno um fato previsto mas ainda [58] natildeo consumado embora talvez se possa dizer que nos textos conciliares ficou definitivamente consagrada a sua aceitaccedilatildeo

Finalmente acrescentemos ainda que com base nos debates do Conciacutelio podemos estabelecer quatro elementos da ideacuteia de Tradiccedilatildeo 1 O aspecto natildeo-escrito da Revelaccedilatildeo ou do Evangelho contido na Biacuteblia e no coraccedilatildeo dos fieacuteis 2 A palavra do Espiacuterito Santo no decorrer de todo o tempo da Igreja

3 A atividade da Igreja nos Conciacutelios 4 A Tradiccedilatildeo lituacutergica e a da vida da Igreja em geral Nestes quatro elementos

que se deve ter sob os olhos pois formam o fundo ideoloacutegico do Decreto expressa-se a realidade uacutenica do tempo presente da Igreja cristatilde Nele estaacute presente todo o passado poacutes-apostoacutelico da Igreja (inclusive o proacuteprio tempo dos apoacutestolos) de modo que toda a sua vida eacute na Sagrada Escritura um elemento central embora natildeo o uacutenico Em suma deve ter ficado claro que o Conciacutelio de Trento a despeito do caraacuteter contrastante e fixo de sua ideacuteia de Revelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeo oferece uma visatildeo muito mais rica destes conceitos do que a que impregnou a mentalidade dos seacuteculos seguintes Justamente por

isso a teologia de hoje pode retirar daiacute novos subsiacutedios novo apoio para suas pesquisas e novas indicaccedilotildees sobre o verdadeiro caminho a seguir

Quadro sinoacutetico do Decreto tridentino sobre a Tradiccedilatildeo

Primeiro princiacutepio conforme Cervini (AT = Escritura)

Sacrosancta œcumenica et generalis Tridentina Synodus in Spiritu Sancto legitime congregata [] hoc sibi perpetuo ante oculos proponens ut sublatis erroribus puritas ipsa EVANGELII in Ecclesia conservetur quod PROMISSUM ANTE PER PROPHETAS IN SCRIPTURIS SANCTIS

Segundo princiacutepio conforme Cervini o Evangelho em parte escrito em parte insculpido nos coraccedilotildees

[59] DOMINUS NOSTER IESUS CHRISTUS DEI FILIUS PROPRIO ORE PRIMUM PROMULGAVIT DEINDE PER SUOS APOSTOLOS TAMQUAM FONTEM OMNIS ET SALUTARIS VERITATIS ET MORUM DISCIPLINAE OMNI CREATURAE PRAEDICARI IUSSIT PERSPICIENSQUE HANC VERITATEM ET DISCIPLINAM CONTINERI IN LIBRIS SCRIPTIS ET SINE SCRIPTO TRADITIONIBUS QUAE AB IPSIUS CHRISTI ORE AB APOSTOLIS ACCEPTAE AUT AB IPSIS APOSTOLIS SPIRITU SANCTO DICTANTE

Seripando Cervini e outros soacute consideram as tradiccedilotildees recebidas pela Igrej (ldquoad nos usquerdquo)

quasi per manus traditae ad nos usque pervenerunt

orthodoxorum Patrum exempla secuta omnes libros tam Veteris quam Novi Testamenti cum utriusque unus Deus sit auctor nec non TRADITIONES IPSAS

Lejay Tradiccedilatildeo contendo natildeo soacute a ldquoconsuetudordquo mas relacionada tambeacutem com a ldquofidesrdquo (foacutermula conciliar)

tum ad fidem tum ad mores pertinentes

Terceiro princiacutepio de Cernini Depois da Ascenccedilatildeo de Cristo o Espiacuterito Santo ensina tambeacutem os misteacuterios de Deus

TAMQUAM VEL ORETENUS A CHRISTO VEL A SPIRITU SANCTO DICTATAS

Seripando Cervini etc soacute satildeo consideradas as coisas recebidas pela Igreja (como acima)

et continua successione in Ecclesia catholica conservatas

Cervini Escritura e Tradiccedilatildeo procedem ambas do mesmo Espiacuterito Santo

pari pietatis affectu ac reverentia suscipit ac veneratur

  • Prefaacutecio
  • SEGUNDA PARTE
  • Explicaccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo
  • segundo o Decreto do Conciacutelio de Trento
Page 8: Revelacao e Tradicao-Joseph Ratzinger (Bom Ler)

transcendecircncia ou seja do Deus trino Pai Filho e Espiacuterito Santo em sua possibilidade de vir a manifestar-se na transcendecircncia do homem e na sua histoacuteria

Enquanto por conseguinte a histoacuteria se abre agrave transcendecircncia o Filho envia o Espiacuterito Enquanto a transcendecircncia constroacutei a histoacuteria o Espiacuterito realiza a Encarnaccedilatildeo do Logos Enquanto o aparecimento de Deus na histoacuteria expressa a impossibilidade de se conservar oculto o que eacute suma realidade o Verbo Encarnado eacute revelado como a auto-expressatildeo do Pai na Verdade Enquanto a vinda de Deus entre noacutes no meio de nossa existecircncia significa o Seu e o nosso amor eacute revelado o Pneuma sob este aspecto de amor

Quando noacutes fazemos a experiecircncia da uniatildeo transcendental e absoluta do Deus conosco compartilhando de Sua vida e aceitando-a por graccedila dele mesmo sabemos mediante o nosso ato de feacute o que significamos ao falarmos sobre a Trindade de Deus e ao exprimirmos de modo breve e sucinto a formalidade e o conteuacutedo da feacute cristatilde da sua Revelaccedilatildeo da histoacuteria desta Revelaccedilatildeo Sabemos o que significamos quando nos fazemos batizar nestes nomes em nome do Pai do Filho e do Espiacuterito Santo

[7] Ao que ateacute aqui estabelecemos em traccedilos gerais e raacutepidos como sendo a ideacuteia fundamental da Revelaccedilatildeo acrescentamos agora alguns esclarecimentos selecionados um tanto arbitrariamente e referentes todos agrave origem da Revelaccedilatildeo e agraves suas consequumlecircncias

Do exposto resulta que a Revelaccedilatildeo quer transcendental quer categorial e sua histoacuteria co-existem com a histoacuteria espiritual de toda a humanidade Isto natildeo eacute erro do Modernismo Eacute uma verdade cristatilde Podemos provaacute-lo muito simplesmente dizendo ser incontestaacutevel que a histoacuteria da salvaccedilatildeo sobrenatural eacute realizada sempre na histoacuteria do mundo o que depois do Conciacutelio Vaticano II se tornou uma verdade ainda mais vivamente impressa na consciecircncia religiosa dos cristatildeos A salvaccedilatildeo poreacutem natildeo pode dar-se sem a feacute Nem a feacute sem uma revelaccedilatildeo proacutepria

Natildeo precisamos esclarecer a possibilidade da Revelaccedilatildeo e da feacute fora da histoacuteria do Antigo e do Novo Testamento nem recorrer a uma teoria catoacutelica especial como a de Straub ou a de Billot Nem mesmo necessitamos apelar para uma tradiccedilatildeo categorial expliacutecita da Revelaccedilatildeo primitiva segundo a qual literaacuteria e doutrinariamente a experiecircncia categorial de Adatildeo teria sido transmitida aos poacutesteros o que agrave luz do conhecimento atual da histoacuteria das religiotildees e dos dois milhotildees de anos da histoacuteria da humanidade natildeo eacute muito provaacutevel

Basta-nos reter (o que eacute testemunhado pelos dados atuais da teologia) que cada homem elevado pela graccedila em sua espiritualidade transcendental representa esta ldquoentitativardquo divinizaccedilatildeo que precede o uso da liberdade mesmo quando esta natildeo eacute por ele compromissada na feacute Significa portanto uma transcendental divinizaccedilatildeo da condiccedilatildeo primitiva do homem o uacuteltimo horizonte do conhecimento e da liberdade sob o qual o homem completa o seu ser Atraveacutes desta existecircncia sobrenatural do [8] homem em geral e de cada um em particular daacute-se uma revelaccedilatildeo de Deus mediante uma participaccedilatildeo gratuita E esta condiccedilatildeo fundamental e gratuita do homem realizada no Deus da vida trinitaacuteria pode tambeacutem ser entendida como Revelaccedilatildeo da Palavra contanto que de um lado natildeo limitemos esta palavra a mera prolaccedilatildeo foneacutetica e de outro natildeo nos esqueccedilamos que esta Revelaccedilatildeo transcendental estaacute sempre inserida num contexto histoacuterico e ainda que a histoacuteria humana natildeo pode prescindir das palavras A

Deivide
Realce
A Revelaccedilatildeo estaacute aqui Estaacute diante de mm envolve-me Se quero Ela logo Eacute em mim e minha vida toma um novo significado A Revelaccedilatildeo estaacute no hoje tatildeo atuante quanto quando Jesus fala e agia no tempo em que peregrinou na terra Estaacute atuaccedilatildeo de Jesus que corre toda a histoacuteria e chega aos nossos dias daacute-se atraveacutes da Igreja pela accedilatildeo do Espiacuterito Santo

histoacuteria dos homens natildeo consta de fatos mortos mas de fatos cujo sentido representa um elemento importante em cada conjuntura histoacuterica

Natildeo existe nenhuma relaccedilatildeo objetiva de um objeto em particular ou de uma frase na vida transcendental do homem aberto para Deus para o Deus trino e eterno O que eacute mais e o que fundamenta todos os dogmas da Feacute como condiccedilatildeo mesma de sua possibilidade e antes de tudo o que os faz real palavra de Deus eacute o seguinte o horizonte da vida sobrenatural ou a luz da Feacute em si mesma - como diriacuteamos em linguagem tradicional e simples - pressupotildee que se aceitem e se valorizem as palavras da Tradiccedilatildeo

Com tudo isto ndash acentuemo-lo mais uma vez ndash natildeo estamos dizendo que esta transcendental e aprioriacutestica abertura do homem para o Deus da vida eterna e da participaccedilatildeo absoluta possa ser em si mesma ldquoanistoacutericardquo nem que conduza a uma desordem miacutestica que consistiria numa introspecccedilatildeo individualiacutestica alienada da histoacuteria Ao contraacuterio Ela se completa necessariamente na histoacuteria do agir e do pensar do homem E pode fazecirc-lo explicitamente embora de maneira de todo anocircnima Assim sendo nunca existe uma histoacuteria da Revelaccedilatildeo transcendental para um particular soacute Ela eacute individual e coletiva Naturalmente tal histoacuteria em concreto nunca eacute a histoacuteria da Revelaccedilatildeo inteiramente pura em si Ela se daacute em cada um sempre em indissoluacutevel simbiose com o erro com falsas interpretaccedilotildees com a [9] culpa com os abusos Ela eacute histoacuteria justa e pecadora uma vez que o homem eacute simul iustus et peccator estando a histoacuteria da culpa e a da salvaccedilatildeo definitivamente ligadas ateacute ao dia do juiacutezo final

Isto natildeo exclui a existecircncia de uma autecircntica histoacuteria da Revelaccedilatildeo na histoacuteria geral da humanidade Tanto que para o cristatildeo por exemplo uma diacriacutetica distinccedilatildeo na histoacuteria veterotestamentaacuteria entre autecircntica histoacuteria da Revelaccedilatildeo e falsa histoacuteria da religiatildeo soacute eacute possiacutevel tomando-se como criteacuterio a Cristo Tal distinccedilatildeo natildeo eacute possiacutevel partindo-se apenas dos criteacuterios fornecidos pelo Antigo Testamento Com efeito a Sagrada Escritura tem somente a Cristo como regra interna e externa e como norma de sua hermenecircutica Daiacute resulta que a Escritura deve ser considerada pelo cristatildeo como verdadeira histoacuteria da Revelaccedilatildeo do Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo1

Deduzir a ideacuteia da Revelaccedilatildeo da Palavra de Deus oral e escrita eacute atingir o lado transcendental da proacutepria Revelaccedilatildeo Eacute buscar um criteacuterio no cacircnon da Escritura colocando a Palavra de Deus oral e escrita antes de tudo na sua aceitaccedilatildeo pela Feacute interna e gratuita Eacute ldquodesmitologizarrdquo a mensagem externa da feacute em sua formalidade transcendental A histoacuteria da religiatildeo eacute a parte da histoacuteria humana em que a natureza teoloacutegica do homem se realiza tematicamente e efetivamente como em toda histoacuteria Daiacute resulta que a histoacuteria da religiatildeo eacute simultaneamente duas coisas eacute a parte mais expliacutecita da histoacuteria da Revelaccedilatildeo e tambeacutem o lugar espiritual (der geistige Ort) em que as falsas interpretaccedilotildees da experiecircncia transcendental de Deus se manifestam de modo mais notoacuterio e levam agraves piores consequumlecircncias A supersticcedilatildeo opotildee-se nitidamente agrave sua natureza Mas ela eacute ao [10] mesmo tempo estas duas coisas E sempre numa ambiguumlidade de sentido que natildeo conseguimos solucionar

1 Sobre a diferenccedila entre a histoacuteria da Revelaccedilatildeo extra-biacuteblica e a veterotestamentaacuteria (que eacute tambeacutem um pressuposto daquela) cf K RAHNER Schriften zur Theologie V (Einsiedeln 1964) p136-158 principalmente p 148 e 153

Deivide
Nota
Parei aqui

Na teologia escolaacutestica catoacutelica nos uacuteltimos seacuteculos em contraste com a teologia medieval pouco ou nada se diz sobre o portador do testemunho da Revelaccedilatildeo aquele que a apresenta atraveacutes do milagre aos homens chamados a crer Refiro-me agrave Revelaccedilatildeo presente no seu portador que eacute o proacuteprio Profeta Do que antes expusemos concluir-se-aacute que a teologia dos preacircmbulos e a da feacute satildeo idecircnticas Por isso tem razatildeo a teologia fundamental quando frequumlentemente trata da analysis fidei em seu acircmbito proacuteprio supondo-se que ela o faccedila considerando a feacute e a aceitaccedilatildeo da Revelaccedilatildeo em sua unidade fundamental O aspecto transcendental da aceitaccedilatildeo da Revelaccedilatildeo e a Feacute satildeo a mesma coisa fundam-se ambas na constituiccedilatildeo do homem gratuitamente marcada pela participaccedilatildeo ontoloacutegica e pelo compromisso livre do homem com este aspecto existencial do ser

A ldquodesmitologizaccedilatildeordquo (Entmythologisierungsfrage) para a teologia catoacutelica concretiza-se e resume-se na capacidade de cognoscibilidade do ldquomilagrerdquo Daiacute perguntar-se eacute possiacutevel uma autecircntica experiecircncia transcendental de Deus jaacute que isto seria como que um compartilhar do imparticipaacutevel (Schon-immer-heim- Univermittelten-Sein) Fundamentalmente natildeo eacute possiacutevel nem eacute necessaacuterio estabelecer uma distinccedilatildeo adequada entre a mediaccedilatildeo do factum brutum (durch das factum brutum) da chamada realidade objetiva e a que se daacute atraveacutes de sua clara explicaccedilatildeo A mediaccedilatildeo (Vermittlung) baseia sua uacuteltima verdade no mediado (im Vermittelten) Portanto a ldquodesmitologizaccedilatildeordquo e a relaccedilatildeo entre a mediaccedilatildeo e o mediado (Vermittlung-Vermittelte) fundamentam-se na diferenccedila e na unidade ontoloacutegica dos aspectos categorial e transcendental e tambeacutem na diferenccedila e na indissoluacutevel unidade entre a histoacuteria e seu significado Esta mediaccedilatildeo enquanto histoacuterica eacute sempre uma histoacuteria com-os-homens ou no sentido mais profundo da palavra uma [11] histoacuteria ldquoeclesialrdquo Eacute portanto tambeacutem um compromisso com a feacute da comunidade dos fieacuteis e da Igreja feacute esta que na comunidade e em cada indiviacuteduo envolve sempre a uniatildeo de sinais e de verdade como na palavra do Sacramento e no Logos Encarnado onde estes dois elementos se encontram inseparaacuteveis mas natildeo se confundem sendo a sua associaccedilatildeo independente do alvitre dos homens

Partindo dessas premissas pode-se entender o que seja a fides implicita agrave qual ateacute hoje os teoacutelogos natildeo deram o destaque devido Fundamentalmente a feacute seja qual for envolve a aceitaccedilatildeo do sinal Soacute eacute feacute verdadeira se assumir o sinal mediante o inefaacutevel misteacuterio da uniatildeo do Deus que se daacute a si mesmo em participaccedilatildeo Soacute eacute feacute verdadeira quando entende a mediaccedilatildeo categorial como presenccedila de sinais (Zeichenhaftigkeit) como se realiza na proacutepria Igreja Assim como a Revelaccedilatildeo natildeo elimina a obscuridade do sacrossanto misteacuterio de Deus antes o cristatildeo amando e adorando a aceita assim tambeacutem o ldquocaraacuteter impliacutecitordquo (Implizitaumlt) da Revelaccedilatildeo e da feacute pertencem agrave sua proacutepria natureza Esta ldquoimplicituderdquo natildeo eacute portanto um elemento que soacute se daria quando as pessoas ldquoincultasrdquo ou ignorantes ouvem a Revelaccedilatildeo e crecircem

Agora podemos entender melhor tambeacutem um conhecido fenocircmeno religioso a tendecircncia a se reduzir o dogma e a religiatildeo a um nuacutecleo de verdades essenciais A unidade existente entre os elementos categorial e transcendental existe tambeacutem na Religiatildeo Tambeacutem esta eacute una e uacutenica E insubstituiacutevel por qualquer outra Devemos dizer tambeacutem que o Cristianismo considerado como religiatildeo universal e absoluta e natildeo apenas como particular alianccedila de Deus com determinado povo natildeo pode deixar de reconhecer a Cristo como Mediador e como Salvador Cristo com efeito por sua

corporeidade e espiritualidade integra em si relaciona e torna legiacutetima toda mediaccedilatildeo possiacutevel no acircmbito do mundo das realidades Assim ldquonadardquo existe que [12] exclua este poder de mediaccedilatildeo Ele existe na palavra no sinal lituacutergico na comunidade eclesial no ofiacutecio na imagem em suma ateacute mesmo nas coisas profanas Natildeo obstante a pluralidade e diversidade desta mediaccedilatildeo pode acontecer que em diferentes eacutepocas e lugares de acordo com os desiacutegnios da graccedila mesmo no Novo Testamento a obrigatoriedade e cognoscibilidade da uacutenica mediaccedilatildeo tenha a sua histoacuteria peculiar Tal histoacuteria da Revelaccedilatildeo tornada definitiva em Cristo no acircmbito do uacuteltimo e eterno ldquoeatildeordquo pode tambeacutem conforme disposiccedilatildeo divina refletir-se na traacutegica histoacuteria da Cristandade dividida por uma cisatildeo em que transparece a pluralidade das muitas mediaccedilotildees da uacutenica Revelaccedilatildeo Esta divisatildeo eacute para noacutes uma censura Contudo serve-nos tambeacutem de instrumento da graccedila de Deus

A distinccedilatildeo entre Revelaccedilatildeo transcendental e a categorial-histoacuterica aplica-se tambeacutem agrave feacute Daiacute novas luzes para se entender melhor o problema da credulidade enquanto distinta da feacute e intimamente relacionada com ela Quando se considera a precaacuteria descriccedilatildeo da feacute elaborada pelos teoacutelogos vecirc-se que seu caraacuteter auditivo (ex auditu) eacute geralmente proposto de modo aposterioriacutestico e empiacuterico O endereccedilamento da feacute ao ouvinte aparece entatildeo como se da parte deste soacute houvesse uma potecircncia formal para assumir certas proposiccedilotildees verdadeiras sem as investigar devendo apenas aceitaacute-las em sua formulaccedilatildeo exata irrecusaacutevel e fixa A potecircncia aprioriacutestica da feacute ou a credulidade quase natildeo eacute levada em consideraccedilatildeo na teologia catoacutelica Esta credulidade como capacidade aprioriacutestica de crer natildeo deve ser tida na conta de uma potecircncia igual agraves outras uma espeacutecie de sentido de ldquoexigecircnciardquo ou coisa parecida Eacute antes o lado transcendental da Revelaccedilatildeo a potecircncia aprioriacutestica que tem o homem ser transcendental para a comunhatildeo com Deus na graccedila fundada na proacutepria abertura de Deus para se comunicar com a criatura Ambas estas coisas devem ser consideradas em sentido ontoloacutegico natildeo em sentido ocircntico

[13] Toda anaacutelise da feacute catoacutelica apresenta a ldquoautoridade de Deusrdquo como o ldquoobjeto formalrdquo ou o ldquomotivordquo uacuteltimo da feacute Chega-se assim entretanto a um impasse intransponiacutevel Isto porque se considera esta ldquoautoridaderdquo como elemento categorial e aprioriacutestico limitado pelo horizonte do conhecimento humano que a feacute tem que superar para que a Palavra permaneccedila sendo realmente Palavra divina e natildeo seja rebaixada ao niacutevel meramente criatural Se poreacutem na Revelaccedilatildeo e na feacute o proacuteprio Deus autocomunicando-se eacute o objeto crido e o princiacutepio aprioriacutestico de crer se a loacutegica da feacute natildeo eacute uma categoria aprendida de fora mas ndash do mesmo modo que a loacutegica natural ndash eacute a proacutepria estrutura ontoloacutegica e interna do ato de feacute se a mensagem exterior da feacute natildeo eacute o seu motivo aposterioriacutestico mas sua razatildeo aprioriacutestica ndash entatildeo todo este problema perde o seu sentido Assim se compreenderaacute que um falso ato material de feacute deixa de ter um objeto formal meramente aprioriacutestico e pode vir a ser um ato de feacute autecircntico

Somos forccedilados a interromper aqui estas observaccedilotildees Em tudo o que dissemos pudemos apenas indicar algumas perspectivas de soluccedilatildeo de um problema que desde os tempos do Modernismo eacute atual mas que contudo tem sido de certo modo postergado Mesmo por este pequeno exemplo ao qual poderiacuteamos acrescentar o de muitos outros problemas teoloacutegicos ainda natildeo solucionados vemos como custosa e lentamente avanccedila o trabalho teoloacutegico Eacute necessaacuterio ter paciecircncia e envidar esforccedilos perseverantes

Necessaacuterio eacute ainda admitir-se que a teologia natildeo cria a feacute no cristatildeo Ele eacute apenas chamado a pocircr-se a serviccedilo da feacute Da feacute hoje

Ao exprimir eu agrave ilustre Faculdade Catoacutelica de Teologia da Universidade de Munster o meu penhorado e cordial agradecimento pela distinccedilatildeo que me outorgou faccedilo-o com a consciecircncia de que tambeacutem os operaacuterios que realizam a construccedilatildeo da teologia trabalham em vatildeo se o Senhor natildeo cooperar com eles Noacutes [14] devemos trabalhar enquanto eacute dia Toda theologia mentis eacute apenas um auxiacutelio para a theologia cordis et vitaelig Enfim em toda theologia a rigor soacute um caminho se abre o caminho que se perde no segredo de Deus misteacuterio impenetraacutevel que todavia se potildee ao nosso alcance

Joseph Ratzinger

EXAME DO PROBLEMA DO CONCEITO DE TRADICcedilAtildeO

PRIMEIRA PARTE

Revelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeo

Ensaio de anaacutelise do conceito de Tradiccedilatildeo

I ndash Posiccedilatildeo do Problema

[15] O modo como Cristo Palavra expressa da Revelaccedilatildeo permanece presente na Histoacuteria e vai ao encontro dos homens pertence agravequelas questotildees fundamentais em torno das quais se dividiu a Cristandade ocidental no seacuteculo da Reforma A luta prende-se agrave ideacuteia de ldquoTradiccedilatildeordquo pela qual a Igreja catoacutelica procurou exprimir certa forma de comunicaccedilatildeo da Revelaccedilatildeo ao lado da outra contida na Sagrada Escritura Isto com o fim de desfazer um duplo protesto A Tradiccedilatildeo designava primeiro as chamadas consuetudines ecclesiaelig tais como a santificaccedilatildeo do domingo a oraccedilatildeo voltada para o Oriente o costume de jejuar as vaacuterias becircnccedilatildeos e consagraccedilotildees e outras praacuteticas semelhantes em vigor na piedade dos fieacuteis ao tempo da baixa Idade Meacutedia Tais praacuteticas ora nobres ora ridiacuteculas embora transformassem a Igreja numa espeacutecie de casa assombrada cheia de acircngulos e cantos justificavam-se sob o tiacutetulo de ldquotradiccedilatildeordquo e legitimavam-se como parte essencial da vida cristatilde1

Lutero a quem a simplicidade do Evangelho como urna forccedila explosiva tinha sobremodo impressionado preferiu agrave luz de sua [16] ideacuteia de Deus juiz misericordioso natildeo ver na Tradiccedilatildeo nada mais do que ninharias com as quais a humanidade se ilude e aparentemente se consola buscando uma evasatildeo ante o abuso da proacutepria existecircncia Ainda mais ele viu na Tradiccedilatildeo o retorno da Lei o predomiacutenio do arbiacutetrio humano sobre a palavra de Deus abuso contra o qual Paulo protestara com tanta veemecircncia e que agora de novo se implantara na Igreja A Confessio Augustana ocupou-se tambeacutem destas coisas destacando uma seacuterie de leis cuja violaccedilatildeo segundo a doutrina corrente era tida como pecado mortal a proibiccedilatildeo do trabalho manual aos domingos e dias santos a interrupccedilatildeo das preces canocircnicas diaacuterias os preceitos do jejum etc E Lutero prosseguia ldquoDe onde tiram os Bispos o direito e o poder de imporem tais prescriccedilotildees aos cristatildeos e de ilaquearem assim as consciecircncias Pedro no capiacutetulo 15 dos Atos dos Apoacutestolos proiacutebe se imponha o jugo sobre os ombros dos disciacutepulos E Paulo diz aos Coriacutentios que a autoridade lhe foi dada para salvar e natildeo para condenar Por que entatildeo multiplicam assim os pecados com tais imposiccedilotildeeshellip Se os Bispos tecircm poder de sobrecarregarem as igrejas com inuacutemeras prescriccedilotildees e de onerar as consciecircncias por que entatildeo a Sagrada Escritura proiacutebe tatildeo frequumlentemente que se faccedilam mandamentos

1 Eacute o que se vecirc claramente pela lista de traditiones feitas no tempo do Conciacutelio de Trento Cf a nota 44 da segunda parte desse livro

humanos e se escravizem os homens Porque chama ela a estas coisas de doutrina de Satanaacutes Foi acaso em vatildeo que o Espiacuterito Santo fez tais advertecircnciasrdquo 2

Lutero identificou aqui a traditio com os abusus Tradiccedilatildeo segundo ele eacute lei humana pela qual o homem se esconde de Deus e pior ainda se levanta contra Ele para tomar nas proacuteprias matildeos a tarefa de sua salvaccedilatildeo em vez de esperaacute-la da libeacuterrima graccedila do Senhor A Tradiccedilatildeo assim entendida como Lei eacute contraposta agrave mensagem da graccedila ldquoDevemos aceitar cada [17] um dos artigos do Evangelho para alcanccedilarmos a graccedila de Deus sem meacuterito nosso atraveacutes da feacute em Jesus Cristo e natildeo pretender merececirc-la mediante praacuteticas do culto inventado pelos homensrdquo3

O problema da Tradiccedilatildeo tornou-se ainda mais agudo devido a um segundo aspecto que de resto natildeo conduziu a nenhum resultado positivo Descobrindo o Evangelho teve Lutero igualmente a impressatildeo de libertar a Palavra de Deus da pesada cadeia do Magisteacuterio eclesiaacutestico que se teria apossado desta Palavra e natildeo mais a entendia em seu verdadeiro sentido empregando-a antes a seu bel-prazer A ideacuteia de que a palavra divina aprisionada na Igreja catoacutelica agrave autoridade do Magisteacuterio ficou privada de sua forccedila viva eacute sempre repetida nos escritos dos Reformadores Melanchton poreacutem fecirc-lo talvez de um modo mais humano e flexiacutevel quando apocircs com reservas a sua assinatura aos artigos luteranos de Esmalca ldquo quanto ao Papa acho eu que jaacute que ele quis abandonar o Evangelho devemos noacutes de nossa parte tolerar (e admitir) para o bem da paz e da unidade a sua superioridade sobre os Bispos superioridade esta que ele possui iure humanordquo 4

Este estado de coisas impregnou outrossim a ideacuteia de Igreja da Confessio Augustana uma vez que aiacute se diz que a Igreja eacute a congregatio sanctorum in qua Evangelium pure docetur et recte administrantur Sacramenta5 Assim a Igreja eacute marcada por duplo aspecto pela pureza da doutrina e pela administraccedilatildeo legiacutetima dos Sacramentos Nem uma palavra sobre o Magisteacuterio Na realidade para a elaboraccedilatildeo do conceito de Igreja este silecircncio da CA natildeo eacute menos importante do que o que ela aiacute diz Eacute um silecircncio evidentemente intencional e denuncia a oposiccedilatildeo dos Reformadores agrave concepccedilatildeo catoacutelica de Igreja [18] entatildeo vigente e ateacute hoje conservada Esta consta de trecircs elementos a fides correspondente ao pure docere a communio que corresponde ao sacramenta e a auctoritas6 O Magisteacuterio aparece aqui como criteacuterio da palavra Eacute o seu fiador Segundo Melanchton daacute-se o contraacuterio a palavra eacute que eacute o criteacuterio do Magisteacuterio Este deve em uacuteltima anaacutelise ser provado pela palavra e pode consequumlentemente ser negado A palavra eacute auto-suficiente e paira sobre o Magisteacuterio como uma grandeza autocircnoma Talvez nesta inversatildeo de relaccedilotildees eacute que estaacute propriamente o contraste entre o conceito catoacutelico e o protestante de Igreja Contradiccedilatildeo paralela se daacute em torno da ideacuteia de Tradiccedilatildeo Com efeito a negaccedilatildeo do Magisteacuterio como criteacuterio da palavra significa a reduccedilatildeo da palavra de Deus agrave Escritura que seraacute entatildeo o

2Art 28 39-42 in Die Bekenntnisschriften der evangelisch lutherischen Kirche Gotinga 1952 p126 3 Art 28 52 Op cit p129 4 Op cit p463 5 Art 7 1 paacuteg 61 6 Sobre este ponto e o seguinte cf J RATZINGER ldquoDas geistliche Amt und die Einheit der Kircherdquo in Catholica 17 (1963) p 165-179

uacutenico sustentaacuteculo autocircnomo e autecircntico da palavra natildeo admitindo a Tradiccedilatildeo como uma grandeza em si

O Conciacutelio de Trento em seu estudo sobre a Tradiccedilatildeo teve diante dos olhos os dois pontos de vista contraacuterios e procurou formular sua resposta levando ambos em consideraccedilatildeo Eacute por isso conveniente analisarmos como estas duas posiccedilotildees se inter-relacionam em face da equiparaccedilatildeo feita por Lutero entre a Traditio e os abusus Em outros termos como os Padres conciliares se colocam diante do dilema dever-se-ia responder aos ataques de Lutero diretamente com uma definiccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo Ou antes de tudo com a reformatio a coerccedilatildeo dos abusus7

No tocante agrave doutrina o Conciacutelio refutou ex professo a censura dos Reformadores sustentando que a palavra natildeo eacute uma realidade autocircnoma pairando acima da Igreja Ela eacute dada pelo [19] Senhor agrave Igreja e natildeo entregue ao capricho dos homens Permanece justamente por isso nas Suas matildeos subtraindo-se ao alcance do alvitre humano Na visatildeo dos Padres de Trento deve no fundo ter parecido uma falta de confianccedila o terem os homens receio da palavra escrita entregue agrave Igreja como se a Igreja pudesse abusar dela Como se se pudesse apelar para a palavra da Revelaccedilatildeo contra a Igreja Estava-se inquestionavelmente certo de que o Senhor que instituiu a Igreja como Seu Corpo haveria de se empenhar em tutelaacute-la contra o perigo de abusar de Sua palavra

Hoje decorridos quatro seacuteculos desde a Reforma podemos confessar que na oposiccedilatildeo que dividia entre si Lutero e o Conciacutelio de Trento tanto depois como antes o dilema que dilacerou a Cristandade ocidental de certo modo jaacute desapareceu Vecirc-se isto pela troca de correspondecircncia entre Harnack e Peterson Peterson ao agradecer o tratado de Harnack Das Alte Testament in den Paulinischen Briefen und in den Paulinischen Gemeiden observou que este em seu cotejo da Escritura com a exegese biacuteblica tinha adotado natildeo o princiacutepio protestante mas o catoacutelico Escreveu Harnack ldquoDizer que o chamado lsquoprinciacutepio formalrsquo do Protestantismo primitivo eacute uma impossibilidade criacutetica e que ao contraacuterio o princiacutepio catoacutelico eacute formalmente o melhor eacute um truiacutesmo Materialmente poreacutem o princiacutepio catoacutelico da Tradiccedilatildeo opotildee-se agrave Biacuteblia muito mais diretamente (As tradiccedilotildees satildeo como ervas daninhas a serem cortadas pela tesoura do Magisteacuterio) A melhor fonte eacute o Novo Testamentordquo 8

Nesta formulaccedilatildeo de certo modo geneacuterica e simplista e na oposiccedilatildeo estabelecida entre os aspectos material e formal vem de novo agrave tona o antigo dilema poder-se-aacute confiar a palavra agrave Igreja sem temor de que ela sob a tesoura do Magisteacuterio ou [20] envolta no mato selvagem do sensus fidelium perca a sua forccedila proacutepria e sua vitalidade Esta eacute a pergunta que os Protestantes fazem aos Catoacutelicos Poder-se-aacute aceitar a autonomia da palavra sem com isto ser esta exposta ao arbiacutetrio dos exegetas aos maus tratos por parte dos historiadores e enfim ao completo desamparo Eis como os Catoacutelicos revidam aos Protestantes Com efeito segundo nossa doutrina natildeo eacute a noacutes que compete decidir se queremos ou natildeo confiar a palavra agrave Igreja Foi o proacuteprio Senhor quem lha confiou Note-se entretanto que quando o Catoacutelico encara seriamente este assunto natildeo deixa de considerar o zelo pela pureza da palavra revelada como um dever

7 Ver as notas 41 e 42 na 2ordf parte 8 Citado in E PETERSON Theologische Traktate Munique 1951 p295

da mais alta importacircncia Ele sabe que natildeo cumpre este dever pelo simples fato de apelar para a inerracircncia da Igreja Fazecirc-lo seria menosprezar o sentido da luta de Lutero em favor da Palavra deixando-se de ver nisto uma salutar advertecircncia e um apelo dirigido agraves almas

Natildeo obstante tudo isto a histoacuteria da controveacutersia natildeo se deteve no decurso dos quatro seacuteculos que se seguiram agrave Reforma Duas diferentes tendecircncias se destacam nas relaccedilotildees entre o Protestantismo e o Catolicismo e entre suas respectivas teologias De um lado uma radicalizaccedilatildeo de cada grupo nos proacuteprios pontos de vista Cada grupo a partir de entatildeo fez sua histoacuteria proacutepria e desenvolveu-a em direccedilatildeo oposta um ao outro Por outro lado a distacircncia mantida entre ambos possibilita maior objetividade em seus julgamentos reciacuteprocos Existe finalmente de parte a parte um renovado esforccedilo por superar as fronteiras com vistas a um encontro

Quem entre os Catoacutelicos empreendeu o mais significativo passo para chegar a uma visatildeo nova do problema da Tradiccedilatildeo mediante a superaccedilatildeo de posiccedilotildees unilaterais e anti-reformistas foi em nossos dias o teoacutelogo dogmaacutetico de Tubinga Josef Rupert Geiselmann Seus esforccedilos foram frutuosos fazendo-se sentir a sua influecircncia inclusive nos estudos preparatoacuterios do [21] Conciacutelio e deram agraves incursotildees do Vaticano II nesta aacuterea aquela marcante atualidade que ainda na primeira sessatildeo levou este problema a transcender do ciacuterculo da luta doutrinal entre as vaacuterias escolas teoloacutegicas para se transformar em uma preocupaccedilatildeo de toda a Cristandade catoacutelica9

A tese de Geiselmann eacute conhecida Basta-nos esboccedilaacute-la rapidamente aqui a fim de lanccedilarmos as bases de uma reflexatildeo que procuraraacute aprofundar mais este assunto e talvez dar um modesto passo agrave frente Geiselmann parte de uma interpretaccedilatildeo nova do sentido dado pelo Conciacutelio ao conceito de Tradiccedilatildeo O tridentino estabelecera que a verdade do Evangelho estaacute contida in libris scriptis et sine scripto traditionibus Isto foi e eacute ateacute hoje interpretado como se a Escritura natildeo contivesse toda a veritas evangelii Portanto natildeo eacute possiacutevel admitir-se a sola Scriptura uma vez que uma parte da Revelaccedilatildeo nos eacute transmitida somente pela Tradiccedilatildeo Geiselmann aproveitou a observaccedilatildeo jaacute antes feita por alguns autores de que na primeira redaccedilatildeo do texto focircra adotada a foacutermula segundo a qual a verdade estaria contida partim in libris scriptis partim in sine scripto traditionibus Estaria aqui claramente expressa a doutrina da divisatildeo da verdade revelada em duas fontes (Escritura e Tradiccedilatildeo) O Conciacutelio abandonou a expressatildeo partim ndash partim preferindo usar o simples conectivo et Geiselmann daiacute conclui afastou-se o Conciacutelio da ideacuteia da divisatildeo da verdade em duas fontes diversas Ou pelo menos natildeo a definiu explicitamente E continua o mesmo autor com isto pode tambeacutem o teoacutelogo catoacutelico aceitar a ideacuteia de uma suficiecircncia material da Escritura Pode ainda mesmo permanecendo catoacutelico defender a opiniatildeo de que a Sagrada Escritura eacute suficiente para transmitir-nos a [22] Revelaccedilatildeo Geiselmann admite consequumlentemente que a sola Scriptura pode conceber-se como uma uacutenica fonte

9 Cf R LAURENTIN Lenjeu du Concile Bilan de Ia premiegravere session Paris 1963 p27-45 Y CONGAR Vatican II Le Concile au jour le jour Paris 1963 p63-71 J RATZINGER Die erste Sitzungsperiode des Zweiten Vatikanischen Konzils Colocircnia 1963 p38-50

material da Revelaccedilatildeo Ele crecirc ainda poder mostrar que a tradiccedilatildeo mais forte eacute a favor desta sentenccedila e que o proacuteprio Conciacutelio de Trento se inclina neste sentido10

Eacute faacutecil de se compreender que semelhante tese tenha obtido o apoio de muitos em face das novas possibilidades de encontro entre Catoacutelicos e Evangeacutelicos possibilidades estas que a posiccedilatildeo de Geiselmann parece favorecer11 Que esta tese na realidade constitua um passo consideraacutevel neste sentido parece ser incontestaacutevel Todavia tatildeo logo a analisemos mais de perto em seus fundamentos histoacutericos e reais surge de pronto toda uma seacuterie de dificuldades graves a tornarem impossiacutevel a sua aceitaccedilatildeo

Sobre o aspecto histoacuterico deste problema apresentaremos vaacuterias observaccedilotildees na segunda parte deste nosso opuacutesculo Entrementes consideremos de imediato o lado praacutetico deste assunto Seu exame provoca inicialmente esta pergunta que significa propriamente a expressatildeo ldquosuficiecircncia da Escriturardquo Geiselmann como teoacutelogo catoacutelico que eacute natildeo deixa de sustentar os nossos dogmas Ora nenhum dogma catoacutelico eacute provado sola Scriptura Nem os grandes dogmas primitivos sustentados pelo consensus quinquesaeligcularis nem tampouco o de 1854 e [23] menos ainda o de 1950 Em que sentido entatildeo se pode falar em suficiecircncia da Escritura Natildeo ameaccedilaraacute esta converter-se em perigosa fraude pela qual nos enganamos primeiramente a noacutes proacuteprios e em seguida tambeacutem enganamos aos outros (Ou natildeo seratildeo talvez justamente eles que natildeo se enganam) Ou entatildeo pelo menos para sustentarmos de um lado que a Escritura sozinha conteacutem toda a verdade da Revelaccedilatildeo e de outro lado que o dogma de 1950 eacute verdade revelada natildeo deveremos noacutes refugiar-nos em um conceito tatildeo largo de suficiecircncia que na verdade esta palavra venha a perder todo o seu significado

Com isto abre-se a segunda (que de fato eacute a primeira) questatildeo decisiva a saber seraacute verdade que os debates em torno da ideacuteia da suficiecircncia da Escritura resolveram mesmo o problema do conceito de Tradiccedilatildeo Ou ao contraacuterio natildeo estaremos noacutes aqui diante de um problema de raiacutezes muito mais profundas

Nossas observaccedilotildees introdutoacuterias devem ter deixado claro que esta uacuteltima pergunta deve sem duacutevida nenhuma ser respondida afirmativamente A questatildeo da suficiecircncia da Escritura eacute apenas um problema secundaacuterio no acircmbito da distinccedilatildeo muito mais importante que foi jaacute antes apontada por noacutes ao tratarmos dos conceitos abusus e auctoritas e que gira em torno do nexo entre a autoridade da Igreja e a autoridade da Sagrada Escritura Da compreensatildeo disto depende tudo o mais

Para irmos mais adiante torna-se necessaacuterio analisarmos profundamente o assunto natildeo para nos determos no exame dos conceitos tatildeo relevantes de suficiecircncia ou insuficiecircncia da Escritura mas antes para abordarmos em seu tudo o vasto problema da Palavra revelada e presente no coraccedilatildeo dos fieacuteis Torna-se evidente entatildeo que agrave luz das fontes positivas a Escritura e a Tradiccedilatildeo devem ser postas em relaccedilatildeo tatildeo iacutentima que da

10 Ver sobretudo a obra de J R GEISELMANN Die Heilige Schrift und die Tradition Friburgo 1962 principalmente as p91-107274-282 Entre os trabalhos anteriores escritos por Geiselmann sobre o mesmo tema eacute de particular importacircncia o seguinte Das Konzil von Trient uumlber das Verhaumlltnis der Heiligen Schrift und der nichtgeschriebenen Traditionen in M SCHMAUS Die muumlndliche Uumlberlieterung Munique 1957 p 123-206 11 Uma lista de todos os autores que mais concordaram com Geiselmann eacute fornecida por H KUumlNG em sua tese ldquoKarl Barths Lehre vom Wort Gottes als Frage an die katholische Theologierdquo in Einsicht und Glaube publicado por J RATZINGER-H FRIES Friburgo 1963 p 105 nota 25

fonte interna (a Revelaccedilatildeo) brote a pa1avra de Deus viva sob aquela dupla formalidade A Escritura e a Tradiccedilatildeo natildeo podem [24] ser entendidas uma sem a outra no sentido que ambas tecircm agrave luz da feacute O problema ldquoEscritura e Tradiccedilatildeordquo permaneceraacute insoluacutevel enquanto natildeo for reduzido a uma soacute questatildeo a saber a questatildeo ldquoRevelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeordquo e inserida enfim no amplo contexto a que pertence

Eu gostaria de nas paacuteginas seguintes sem entrar em todos os detalhes tentar desenvolver em forma de teses e de maneira positiva o conceito de Tradiccedilatildeo partindo de sua natureza iacutentima com a esperanccedila de que nele descubramos uma parte da resposta aos anseios dos Reformadores Desta maneira toda esta anaacutelise serviraacute de contribuiccedilatildeo para o diaacutelogo interconfessional cuja necessidade tanto os Catoacutelicos como os Protestantes vecircm proclamando de maneira cada vez mais insistente

II - Teses sobre a relaccedilatildeo entre a Revelaccedilatildeo e a Tradiccedilatildeo

1 A Revelaccedilatildeo e a Escritura A primeira tese em aditamento ao conceito patriacutestico de Escritura e Revelaccedilatildeo

poderia enunciar-se nos seguintes termos o fato de existir uma ldquoTradiccedilatildeordquo repousa antes de tudo na diferenccedila que permeia entre estas duas realidades ldquoRevelaccedilatildeordquo e ldquoEscriturardquo A Revelaccedilatildeo exprime propriamente o falar e o agir de Deus em relaccedilatildeo aos homens Designa uma realidade expressa pela Escritura sem ser contudo a proacutepria Escritura A Revelaccedilatildeo por conseguinte ultrapassa a Escritura na mesma medida em que a realidade ultrapassa a sua expressatildeo escrita12 Poder-se-ia [25] tambeacutem dizer que a Escritura eacute o princiacutepio material da Revelaccedilatildeo (Talvez princiacutepio uacutenico talvez um princiacutepio entre outros isto seraacute esclarecido mais adiante) Ela natildeo eacute poreacutem a proacutepria Revelaccedilatildeo Isto era aliaacutes bem sabido dos proacuteprios Reformadores mas comeccedilou visivelmente a ser esquecido no aceso da controveacutersia entre a teologia catoacutelica poacutes-tridentina e a ortodoxia protestante13 Em nosso seacuteculo foram justamente os teoacutelogos evangeacutelicos Barth e Brunner que redescobriram este fato de todo evidente para a teologia patriacutestica e medieval14

O que acabamos de afirmar ficaraacute mais claro se partirmos de outro princiacutepio a Escritura pode ser possuiacuteda sem que se possua a Revelaccedilatildeo Isto porque a Revelaccedilatildeo eacute sempre e em primeiro plano uma realidade a realidade onde se encontra a feacute Aquele

12 Esta afirmaccedilatildeo natildeo tem o sentido de que a Escritura seja uma mera e vazia narrativa de realidades a ela exteriores Antes como o que se segue iraacute demonstrar indica que a Revelaccedilatildeo eacute realizada na Palavra jaacute que eacute por meio de palavras que ela se comunica aos homens Contudo a mera presenccedila da palavra ainda natildeo eacute a Revelaccedilatildeo Esta eacute mais do que simples ldquopresenccedilardquo Com o que ficou dito salienta-se a diferenccedila que existe entre a palavra e seu conteuacutedo Esta diferenccedila natildeo exclui o caraacuteter verbal da Revelaccedilatildeo 13 Cf A GLOEGE Schriftprinzips RGG V 1540-1543 onde se encontraraacute a mais completa bibliografia LthK VII 1104-1115 J R GEISELMAN Offenbarung in H FRIES Handbuch zum Begriff der Offenbarung cf M VERENO - R SCHNACKENBURG - HRIES in Theologischer Grundbergriffe II Munique 1963 p242-250 e a bibliografia aiacute citada 14 Cf W H VAN DER POL Das reformatorische Christentum Einsiedeln 1956 p117-192

que natildeo crecirc acha-se como que coberto por um veacuteu o veacuteu de que fala Satildeo Paulo no terceiro capiacutetulo da segunda epiacutestola aos Coriacutentios15 Ele pode ler a Escritura e saber o que nela se conteacutem Pode ateacute mesmo apreender de modo puramente intelectual o que aiacute eacute significado e como suas ideacuteias se inter-relacionam Todavia natildeo possui com isto a Revelaccedilatildeo A Revelaccedilatildeo eacute sobretudo possuiacuteda quando aleacutem da expressatildeo material que a atesta se potildee tambeacutem em praacutetica o seu conteuacutedo interno por meio da vivecircncia da feacute Com efeito de certo modo se inclui tambeacutem na Revelaccedilatildeo o sujeito recipiente sem o qual ela natildeo pode existir Natildeo se pode pocircr a Revelaccedilatildeo no bolso como se faz com [26] um livro Ela eacute uma realidade viva Exige homens vivos que a recebam que sirvam de ldquolugarrdquo de sua presenccedila

Repetindo o que ateacute aqui dissemos podemos afirmar que a Revelaccedilatildeo sobreexcede de fato a Escritura em dois sentidos

a) em sentido ascendente ela atinge sempre como realidade procedente de Deus o agir divino sobre as criaturas

b) como realidade que se daacute ao homem por meio da feacute ela atinge igualmente a Escritura

Desta diferenccedila entre a Escritura e a Revelaccedilatildeo resulta claramente que de todo independentemente da questatildeo se a Escritura eacute ou natildeo eacute a uacutenica fonte material em rigor nunca existe para o cristatildeo a sola Scriptura (Isto como ficou dito era claro em princiacutepio para os grandes Reformadores e comeccedilou a ser esquecido na chamada ortodoxia protestante) A Escritura natildeo eacute a Revelaccedilatildeo Eacute sim em uacuteltima anaacutelise uma parte desta realidade mais ampla

2 Os diferentes sentidos da Escritura

no Antigo e Novo testamento A problemaacutetica cristatilde da Revelaccedilatildeo ou o problema ldquoEscritura e Tradiccedilatildeordquo situa-se

melhor se considerarmos o duplo aspecto da mesma Revelaccedilatildeo no Antigo e no Novo Testamento A este duplo aspecto corresponde tambeacutem um duplo sentido da Escritura Assim como os dois Testamentos como tais se distinguem essencialmente assim tambeacutem devemos dizer que a ldquoEscriturardquo como um fato natildeo eacute repetida duas vezes do mesmo modo Isto aparece muito claro nos livros neotestamentaacuterios Sob a expressatildeo ldquoEscriturardquo designam eles somente o Antigo Testamento Para eles o AT eacute e permanece sendo ldquoa Escriturardquo cujo sentido se aclara mediante sua confirmaccedilatildeo no evento da [27] vinda de Cristo16 Os livros do NT natildeo jogam uma Escritura nova contra uma Escritura antiga Nem potildeem uma simplesmente ao lado da outra Potildeem sim em face da uacutenica Escritura ou seja do Antigo Testamento o Cristo-evento como o espiacuterito que explica a letra Esta concepccedilatildeo fundamental ilumina tambeacutem a forma da feacute mais antiga e a torna por primeiro compreensiacutevel O ldquoJesusrdquo formal eacute o ldquoCristordquo expresso no Antigo Testamento Natildeo eacute outra coisa No Jesus Histoacuterico o Cristo-mensagem do

15 Cf sobre estas reflexotildees o importante artigo (ἀποκαλύπτω de A OEPKE in ThWNT III p565-597 16 Ver sobre este ponto as preciosas conclusotildees de G SCHRENK art γραφή ndash γράμμα in ThWNT I p749-769 e a p767

Antigo Testamento atinge a sua consumaccedilatildeo Eacute a partir do AT que se entende quem eacute Jesus E o que o Testamento Antigo expressa pode ser visto agrave luz do Cristo-evento

Esta ideacuteia aparece em Paulo ao apresentar ele o Antigo e o Novo Testamentos como Gramma e Pneuma isto eacute letra e espiacuterito (2Cor 3 6-18) Ele chama ao Senhor de Pneuma A Escritura explica-o como sendo o seu sentido o seu conteuacutedo verdadeiro e vivo e natildeo apenas literaacuterio Paulo se refere agrave concepccedilatildeo do Novo Testamento apresentada por Jeremias (3133) Natildeo eacute mais necessaacuteria nenhuma Escritura porque a lei estaacute escrita nos coraccedilotildees Jaacute natildeo eacute necessaacuteria nenhuma doutrinaccedilatildeo vinda de fora porque o proacuteprio Deus instrui os homens Joatildeo exprime idecircntico pensamento em seguimento ao decircutero-Isaiacuteas (5413) quando descreve a era inaugurada por Cristo como o tempo no qual todos satildeo doutrinados por Deus mesmo E o sermatildeo de Pedro em Pentecostes transmitido pelos Atos dos Apoacutestolos (2 14-36) desenvolve a mesma ideacuteia tirada de Joel (3 1-5) Em todos estes casos aparece a era instaurada por Cristo como resposta agrave esperanccedila no advento de um tempo futuro que em uacuteltima anaacutelise haveria de tornar supeacuterflua a Escritura graccedilas agrave presenccedila imediata do Divino Mestre na Sua humanidade

Quando se pondera o sentido destas afirmaccedilotildees torna-se claro [28] que ao reduzir-se a ldquoEscriturardquo aos escritos do Antigo Testamento natildeo se estaacute apenas usando uma terminologia antiga que teria sido adotada por falta de escritos propriamente neotestamentaacuterios e que teria perdido seu sentido na segunda metade do seacuteculo segundo com o iniacutecio do cacircnon do Novo Testamento Ao contraacuterio Aqui se expressa uma consciecircncia que se tornaria mais niacutetida a partir da formaccedilatildeo da proacutepria Escritura neotestamentaacuteria muito ao inveacutes de cessar ou de desaparecer

Uma coisa eacute certa a ldquoEscriturardquo na nova ordem da salvaccedilatildeo inaugurada por Cristo toma um lugar distinto do que lhe cabia no Antigo Testamento Com isto pode-se ver ateacute que ponto o Antigo Testamento tem sentido autocircnomo O AT certamente natildeo aparecia desde o comeccedilo como Testamento do Gramma Escritura em sentido proacuteprio como ocorreraacute na pena de Satildeo Paulo17 Por outro lado manifesta-se realmente a partir de Jeremias e do decircutero-Isaiacuteas o anelo pela superaccedilatildeo do Gramma mediante uma nova e imediata comunicaccedilatildeo do Espiacuterito de Deus simultaneamente com a progressiva formaccedilatildeo de um princiacutepio da Escritura que mais e mais a transformou em Lei Lei esta que natildeo tornaria os homens vivos mas sim mortos

Desta maneira na concepccedilatildeo neotestamentaacuteria aparece o Antigo Testamento como ldquoEscriturardquo em sentido proacuteprio Escritura que atinge o seu verdadeiro significado atraveacutes do Cristo-evento pelo fato de ser ela inserida no contexto vivo da realidade de Cristo Se no Novo Testamento de facto a Escritura cresceu natildeo pode mais ter aquele sentido uacuteltimo e exclusivo que lhe competia no Antigo segundo a concepccedilatildeo paulina Ao contraacuterio Ela eacute a chave com que se abre o Antigo Testamento deixando-se banhar na claridade do Cristo-evento Ela eacute tambeacutem a ponte permanente que conduz a uma nova interpretaccedilatildeo biacuteblica agrave luz [29] de Cristo Num caso e noutro a Escritura natildeo pretende de modo nenhum ser autocircnoma nem ser a fonte uacutenica e exclusiva de sua exegese literal Mas soacute pode ter sentido na realidade espiritual de Jesus Cristo que

17 Ver a apreciaccedilatildeo feita por G VON RAD Theologie des Alten Testaments II Munique 1960 p402-424

permanece junto dos seus todos os dias ateacute ao fim do mundo (Mt 28 20) Apoacutes a subida ao Calvaacuterio Cristo veio de novo no Espiacuterito Santo (como narra Satildeo Joatildeo) e pelo Espiacuterito ensinou aos disciacutepulos o que eles entatildeo natildeo podiam ainda entender enquanto o Senhor estava entre eles sob forma visiacutevel (Jo 16 12)

3 Cristo a Revelaccedilatildeo de Deus

A realidade que se daacute como um acontecimento na Revelaccedilatildeo cristatilde natildeo eacute nada

mais nada menos do que o proacuteprio Cristo Cristo eacute a Revelaccedilatildeo em sentido proacuteprio ldquoQuem me vecirc vecirc o Pairdquo diz ele no Evangelho de Satildeo Joatildeo (14 9) Vale portanto dizer que receber a Revelaccedilatildeo eacute penetrar na realidade de Cristo no Cristo-evento Daiacute procede o paradoxo descrito por Satildeo Paulo ao fazer ele um trocadilho com as palavras ldquoCristo em noacutesrdquo e ldquonoacutes em Cristordquo

Neste contexto a anaacutelise de frases isoladas torna-se secundaacuteria de vez que elas satildeo apenas explicaccedilotildees do uacutenico misteacuterio de Cristo Consequumlentemente cai por si mesma a questatildeo da suficiecircncia interna da Escritura tatildeo discutida desde o aparecimento das obras de Geiselmann Deveriacuteamos isto sim perguntar que significa em linguagem cristatilde a suficiecircncia interna da Escritura ldquoSuficienterdquo eacute soacute a realidade do Cristo-evento Esta pode ser explicada materialmente em maior ou menor grau E de maneira nunca definitiva Partindo deste princiacutepio podem existir tambeacutem outras explicaccedilotildees segundo a Escritura quando se aprofunda mais este assunto

Este mesmo tema pode ser considerado sob outro aspecto E ter-se-aacute entatildeo dado um passo a mais para a frente A aceitaccedilatildeo [30] da Revelaccedilatildeo pela qual aplicamos a noacutes o Cristo-evento vem na linguagem da Biacuteblia sob o nome de ldquofeacuterdquo Assim talvez se entenderaacute mais claramente de que maneira no Novo Testamento a feacute significa a ldquoin-habitaccedilatildeordquo de Cristo Se admitirmos que na Escritura a presenccedila da Revelaccedilatildeo tem o mesmo sentido que a presenccedila de Cristo entatildeo teremos de fato dado um passo adiante Ora na Escritura encontramos a presenccedila de Cristo apresentada de duas maneiras Ela aparece de um lado como jaacute vimos identificada com a feacute (Ef 317) na qual cada um encontra Cristo e se adentra nele penetrando no dinamismo de sua forccedila salvadora Por outro lado a feacute se oculta tambeacutem sob a expressatildeo paulina ldquoCorpo de Cristordquo o que quer dizer que a comunidade dos fieacuteis ndash a Igreja ndash funda a presenccedila de Cristo neste mundo Nela Cristo reuacutene os homens e os faz partiacutecipes de sua presenccedila dinacircmica18

Tomadas juntas estas duas noccedilotildees significam o seguinte a feacute eacute a adesatildeo iacutentima agrave presenccedila de Cristo realidade de Cristo presente da qual a Escritura nos daacute testemunho sem contudo se identificar de modo nenhum com ela Daiacute resulta que a presenccedila da Revelaccedilatildeo se relaciona essencialmente com a ldquofeacuterdquo e com a ldquoIgrejardquo realidades estas que como vimos estatildeo estreitamente ligadas entre si

Voltamos assim ao que foi afirmado na primeira tese a saber que a Revelaccedilatildeo sobreexcede a Escritura em duplo sentido em relaccedilatildeo a Deus por seu lado ascendente e em relaccedilatildeo tambeacutem ao homem que a recebe Esta asserccedilatildeo que a princiacutepio deixamos

18 H SCHLIER ldquoDie Kirche nach dem Brief an die Epheserrdquo in Die Zeit der Kirche Friburgo 1962 p159-186

um tanto vaga encontramo-la essencialmente concretizada na realidade objetiva do Cristianismo

4 A essecircncia da Tradiccedilatildeo

[31] A transmissatildeo ao povo de Deus do Cristo-evento que eacute a Revelaccedilatildeo e que tem sua bi-presenccedila na feacute e na Igreja faz-se atraveacutes da pregaccedilatildeo Pregaccedilatildeo eacute a ldquoex-posiccedilatildeordquo (Aus-legung) do duplo aspecto da Revelaccedilatildeo no Antigo e no Novo Testamento E isto de duas maneiras

a) ela eacute a exposiccedilatildeo do Antigo Testamento agrave luz do Cristo-evento e para o Cristo-evento

b) a partir do Pneuma e da condiccedilatildeo presente da Igreja Este uacuteltimo aspecto eacute possiacutevel pois Cristo natildeo estaacute morto Estaacute vivo Natildeo eacute

apenas o Cristo de ontem Eacute tambeacutem e a fortiori o Cristo de hoje e de amanhatilde o Cristo vivo e presente em sua Igreja que eacute seu Corpo e na qual o seu espiacuterito opera

Isto poderaacute ser melhor compreendido se partirmos da essecircncia da Igreja Como nos ensina o Novo Testamento a mensagem de Jesus eacute antes de tudo uma mensagem escatoloacutegica com vistas ao reino de Deus natildeo com vistas agrave Igreja O fato de existir a Igreja natildeo se opotildee a esta mensagem mas haacute na marcha gradativa das revelaccedilotildees de Cristo uma segunda possibilidade Assim a atividade dos Doze depois de Pentecostes aponta natildeo para a Igreja mas para o reino de Deus Informam-nos os Atos dos Apoacutestolos que os Doze natildeo se ocuparam primordialmente em missionar os povos Esforccedilaram-se antes muito mais em converter Israel criando deste modo as condiccedilotildees preacutevias para a implantaccedilatildeo do reino De iniacutecio uma seacuterie de obstaacuteculos histoacutericos entre os quais deveriacuteamos citar antes de tudo o martiacuterio de Estevatildeo o supliacutecio de Tiago e por fim o fato decisivo da prisatildeo e da libertaccedilatildeo de Pedro Tais fatos levaram a comunidade primitiva segundo dizem as fontes a reconhecer como definitivo o malogro do esforccedilo de converter Israel E consequumlentemente forccedilaram os Apoacutestolos a partir em busca dos gentios e a cuidar [32] assim da Igreja e natildeo do reino Eles o fazem segundo se depreende das passagens referidas e principalmente dos esclarecimentos do capiacutetulo 15 dos Atos dos Apoacutestolos como uma nova opccedilatildeo feita sob a accedilatildeo do Espiacuterito Santo Com isso iniciou-se uma nova interpretaccedilatildeo da mensagem de Cristo sobre a qual a Igreja essencialmente repousa19

19 Cf as decisivas conclusotildees de E PETERSON ldquoDie Kircherdquo in Theologische Traktate Munique 1951 p 409-429 H SCHLIER Die Entscheidung fuumlr die Heidenmission in der Urchristenheit Die Zeit der Kirche p 90-107 Parece-me certo que nem a anaacutelise da tradiccedilatildeo sinoacutetica relativa agrave mensagem de Jesus e seu caraacuteter escatoloacutegico nem o estudo da histoacuteria da Igreja primitiva com base no material fornecido pelos Atos dos Apoacutestolos autorizam qualquer outra conexatildeo entre a mensagem do reino e a pregaccedilatildeo da Igreja Daiacute natildeo se segue de modo nenhum ndash como muitas vezes se teme ndash que a cruz seja um acidente secundaacuterio que em rigor poderia ter sido evitado Ao contraacuterio A estrutura da Igreja moldada sobre a cruz eacute fundamental porque aiacute eacute que por primeiro se encontra a confirmaccedilatildeo da importacircncia da liberdade humana de Cristo e da sua Paixatildeo bem como a iacutentima dependecircncia da Igreja para com a Cruz donde ela procede

Este fato que baseia o estabelecimento definitivo da Igreja sobre uma decisatildeo tomada ldquono Espiacuterito Santordquo eacute o fundamento para se afirmar que existe uma interpretaccedilatildeo eclesial do Novo Testamento do mesmo modo que existe uma exegese cristoloacutegica do Antigo Daiacute podermos estabelecer as seguintes teses ou proposiccedilotildees agrave luz da analogia fidei

a) Existe uma teologia veterotestamentaacuteria do Antigo Testamento que o exegeta

deduz de seu conteuacutedo interno e que se desenvolve em uma seacuterie de camadas superpostas Segundo ela os textos antigos devem ser relidos e de novo expostos agrave luz dos novos acontecimentos O fenocircmeno da aplicaccedilatildeo dos textos agraves situaccedilotildees novas do desdobramento da Revelaccedilatildeo mediante nova [33] apresentaccedilatildeo do Antigo Testamento estrutura jaacute de modo essencial o conteuacutedo interno veterotestamentaacuterio20

b) Existe uma teologia neotestamentaacuteria do Antigo Testamento que natildeo coincide com

a referida teologia veterotestamentaacuteria Estaacute contudo estreitamente ligada com ela na unidade da analogia fidei21 Talvez partindo daqui se possa esclarecer o que significa a analogia fidei entre Os dois Testamentos A teologia neotestamentaacuteria do Antigo Testamento natildeo eacute como ficou dito idecircntica agrave teologia histoacuterica veterotestamentaacuteria Ao contraacuterio Re-exposiccedilatildeo feita agrave luz do Cristo-evento ela natildeo procede soacute da mera consideraccedilatildeo histoacuterica do Antigo Testamento Sendo embora em seu pleno conceito uma interpretaccedilatildeo relacionada com o Antigo Testamento contudo nada faz com que ela seja internamente estranha agrave sua essecircncia ainda que soacute de fora o atinja Ela amplia a forma estrutural do Antigo Testamento que assim interpretado revive e cresce

c) Existe uma teologia neotestamentaacuteria do Novo Testamento paralela agrave teologia veterotestamentaacuteria do Antigo Ou seja a teologia que o exegeta como tal pode deduzir do conteuacutedo interno do Novo Testamento eacute tambeacutem esta conhecida e estruturada mediante a aplicaccedilatildeo do Antigo Testamento agraves novas situaccedilotildees

d) Existe uma teologia eclesial do Novo Testamento que noacutes [34] chamamos Dogmaacutetica Ela se relaciona com a teologia neotestamentaacuteria do Novo Testamento do mesmo modo que a teologia neotestamentaacuteria do Antigo se relaciona com a respectiva teologia veterotestamentaacuteria Aquele ldquomaisrdquo (das Mehr) que distingue propriamente a Dogmaacutetica da teologia biacuteblica eacute o que designamos com a palavra Tradiccedilatildeo Aliaacutes tambeacutem aqui devemos salientar que a teologia eclesiaacutestica neotestamentaacuteria pela mesma razatildeo natildeo eacute simplesmente idecircntica agrave teologia neotestamentaacuteria interna e

20 Cf H GROSS Motivtransposition als Form- und Traditionsprinzip im Alten Testament in H VORGRIMLER Exegese und Dogmatik Moguacutencia 1962 p134-152 e a bibliografia aiacute fornecida G v RAD Theologie des Alten Testaments II Munique 1960 p332-339 396-401 21 A diferenccedila entre as duas teologias do Antigo Testamento foi vivamente exposta por R BULTMANN ldquoWeissagung und Erfuumlllungrdquo in Glauben und Verstehen II Tubinga 1952 p162-186 - Sobre as necessaacuterias correccedilotildees a se fazerem para que se torne visiacutevel a base histoacuterica do que a teologia sistemaacutetica denomina ldquoanalogia fideirdquo cf G v RAD op cit p329-424 (entre outras) e principalmente a p 420 nota 25 e a p422 nota 29 Sobre o tema ldquoanalogia fideirdquo em ambos os Testamentos cf tambeacutem E PRZYWARA Alter und Neuer Bund Viena-Munique 1956

histoacuterica do Novo Testamento Ultrapassa-a sem contudo ser-lhe puramente externa Com efeito no Novo Testamento comeccedila jaacute o processo da exposiccedilatildeo pela Igreja das verdades reveladas A teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento processa-se dentro dele proacuteprio como de modo clariacutessimo se percebe na histoacuteria da Revelaccedilatildeo sinoacutetica22

Eacute oportuno fazermos ainda uma pequena observaccedilatildeo se cotejarmos atentamente a teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento com a Dogmaacutetica reconheceremos que se impotildee uma outra distinccedilatildeo A Dogmaacutetica como ciecircncia aleacutem da exposiccedilatildeo eclesiaacutestica do Novo Testamento abrange tambeacutem a teologia particular de cada teoacutelogo Neste caso para se falar com precisatildeo dever-se-ia apresentar somente o proacuteprio dogma como teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento

O que acabamos de referir natildeo passa naturalmente de um esboccedilo que necessitaria em seus pormenores de natildeo poucos esclarecimentos e distinccedilotildees a fim de ser completo No caso presente entretanto damos por suficiente este esboccedilo Resumindo o que ateacute aqui expusemos podemos agora destacar vaacuterias ldquoraiacutezesrdquo da Tradiccedilatildeo e apontar vaacuterias camadas em seu seio [35] lordf raiz a maior amplidatildeo da ldquoTradiccedilatildeordquo em referecircncia agrave ldquoEscriturardquo

2ordf raiz o caraacuteter especiacutefico da Revelaccedilatildeo neotestamentaacuteria como Pneuma em contraste com o Gramma Eacute o que na linguagem de Bultmann se poderia chamar de sua condiccedilatildeo de ldquonatildeo-objetordquo (Nichtobjektiviertbarkeit) A praxe eclesiaacutestica e a teologia medieval expressaram este aspecto ao sobreporem a fides agrave Scriptura isto eacute o dogma como regra de feacute agraves minuacutecias da lei escrita23 O dogma eacute como a chave hermenecircutica da Escritura que em uacuteltima anaacutelise sem o auxiacutelio da hermenecircutica ficaria sendo algo fechado

3ordf raiz o caraacuteter presencial do Cristo-evento e a presenccedila dinacircmica do Espiacuterito de Cristo em seu Corpo a Igreja E consequumlentemente o poder que tem a Igreja de fazer a pregaccedilatildeo do Cristo ontem e hoje pregaccedilatildeo esta cuja fonte se encontra na interpretaccedilatildeo eclesiaacutestica da mensagem do reino transmitida pelos Apoacutestolos

Em conexatildeo com estas trecircs raiacutezes da ideacuteia (ou melhor da realidade) da Tradiccedilatildeo podem distinguir-se na mesma as seguintes camadas

a) Na origem de toda Tradiccedilatildeo estaacute o fato de que o Pai enviou o Seu Filho ao mundo e que o Filho por sua vez se [36] entregou ndash como sinal ndash aos ldquopovosrdquo (παραδίδοται) Esta paraacutedosis original em sua forccedila direta e salvadora

22 Cf por exemplo a rica exposiccedilatildeo de G BORNKMANN Jesus von Nazareth Estutegarte 1956 Sobre a questatildeo aqui estudada cf H SCHLIER Uumlber Sinn und Aufgabe einer Theologie des Neuen Testaments in H VORGRIMLER Exegese und Dogmatik Mainz 1962 p6990 23 O que haacute de melhor sobre este assunto no tocante agrave Patriacutestica seraacute encontrado em HARNACK DG II (1931) p84-116 HARNACK diz na p 87 nota 3 o seguinte ldquoO Cacircnon era de iniacutecio a regra da feacute A Escritura estaacute centrada na verdade Sem duacutevida nenhuma sua autoridade funda-se solidamente no Antigo Testamento e nas palavras do Senhorrdquo ndash Que assim tenha pensado tambeacutem a Idade Meacutedia e que aqui aleacutem da revelatio (da qual falaremos na 2ordf parte deste livro) a fides sobrepondo-se agrave Scriptura estabelece a forma essencial do conceito de Tradiccedilatildeo foi o que tentei demonstrar em meu artigo Wesen und Weisen der auctoritas im Werk des heiligen Bonaventura in Die Kirche und ihre Aumlmter und Staumlnde (Festgabe Kardinals Frings publicado por CORSTEN-FROTZ-LINDEN Colocircnia 1960 p 58-72

prolonga-se na permanente presenccedila de Cristo no σῶμα Χριστοῦ ndash no Seu Corpo a Igreja Assim o misteacuterio integral da presenccedila de Cristo eacute antes de tudo a realidade total transmitida pela Tradiccedilatildeo (fato fundamental e decisivo sempre anterior a todas as explicaccedilotildees particulares mesmo as da Escritura) e reguladora do que deve propriamente ser transmitido

b) A Tradiccedilatildeo existe concretamente como presenccedila na feacute Esta por seu turno como ldquoin-habitaccedilatildeordquo de Cristo precede todas as explicaccedilotildees particulares e frutuosa e viva ldquoexplicita-serdquo (explizierend) atraveacutes dos tempos

c) A Tradiccedilatildeo tem seu oacutergatildeo na plenitude dos poderes da Igreja e portanto naqueles que satildeo os legiacutetimos depositaacuterios destes poderes24

d) A Tradiccedilatildeo exprime-se tambeacutem naquilo que emanado da autoridade da Igreja se tornou regra de feacute (Symbolum fides quaelig) Portanto a questatildeo de se saber se certas proposiccedilotildees foram transmitidas desde o

comeccedilo pela Tradiccedilatildeo ao lado da Escritura ou em outros termos se existe desde o comeccedilo um segundo princiacutepio material e autocircnomo ao lado da Escritura torna-se afinal um problema inteiramente secundaacuterio Talvez lhe devamos responder negativamente

5 A funccedilatildeo da exegese [37] Pelo que ateacute aqui dissemos ficaram esclarecidas quase que exclusivamente

trecircs pontos os limites da letra da Escritura a liberdade do Espiacuterito Santo e a autoridade da Igreja Acontece poreacutem que a exposiccedilatildeo que fizemos abriga ainda um sentido diverso relacionado com a justa preocupaccedilatildeo de Lutero da qual partimos

Se ficou estabelecido que a Revelaccedilatildeo se faz presente atraveacutes da pregaccedilatildeo e se pregaccedilatildeo eacute exposiccedilatildeo da palavra revelada entatildeo pode e deve agora ao que precede acrescentar-se o seguinte a Tradiccedilatildeo eacute essencialmente e sempre uma exposiccedilatildeo Natildeo existe de maneira autocircnoma e sim como explicaccedilatildeo como exposiccedilatildeo ldquorelacionada com a Escriturardquo

Isto vale para a pregaccedilatildeo do proacuteprio Jesus Cristo realizaccedilatildeo plena da Revelaccedilatildeo e sua exposiccedilatildeo feita com autoridade A pregaccedilatildeo de Jesus Cristo natildeo aparece como algo absolutamente novo na Escritura Isto eacute como algo ainda natildeo atestado no Antigo Testamento Ela ensina isto sim a essecircncia do que jaacute estava escrito e lhe confere uma vida nova que o simples exegeta natildeo pode comunicar-lhe

O que vale para a mensagem de Cristo que permanece a mesma sob diferentes modalidades de exposiccedilatildeo vale tambeacutem para a pregaccedilatildeo apostoacutelica e a eclesiaacutestica Como ldquoTradiccedilatildeordquo ela deve em uacuteltima anaacutelise ser uma exposiccedilatildeo ldquosegundo a Escriturardquo a ela sujeita e com ela relacionada Sem duacutevida natildeo eacute ela uma exposiccedilatildeo no 24 Estas ideacuteias natildeo podem ser desenvolvidas mais detalhadamente aqui como seria de desejar uma vez que em rigor estamos procurando apenas fundamentar o conceito de Tradiccedilatildeo Em razatildeo da brevidade que me impus contentei-me apenas nas teses precedentes com explanar o assunto ateacute ao ponto em que ficasse patente a relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a ldquoIgrejardquo (cf as teses 4 e 5) Para se descer a maiores detalhes dever-se-ia analisar tambeacutem o conceito de Igreja que supomos conhecido do leitor Para isto cf a nota 6 onde citamos nosso livro sobre o Ofiacutecio e a unidade da Igreja Encontram-se aiacute algumas observaccedilotildees sobre o assunto de que ora tratamos

sentido de mera interpretaccedilatildeo exegeacutetica Mas sim na autoridade espiritual recebida do Senhor a qual se consuma na existecircncia plena da Igreja em sua feacute em sua vida e em seu culto Contudo ela permanece sendo (mais ainda do que o Cristo-evento em que se funda a Igreja) uma ldquoex-posiccedilatildeordquo (Aus-Legung) comprometida com a Histoacuteria e com a Palavra [38] Exprime-se deste modo a sua ligaccedilatildeo com a accedilatildeo concreta de Deus nesta mesma Histoacuteria e em seu caraacuteter de fato histoacuterico uacutenico (o ἑφάπαξ ldquoo ocorrido uma soacute vezrdquo) A realidade cristatilde da Revelaccedilatildeo eacute tatildeo essencial quanto ldquoeternardquo e definitiva Resulta daiacute a unidade entre o Cristo da Feacute e o Jesus da Histoacuteria o Jesus histoacuterico natildeo eacute senatildeo o Cristo da Feacute ainda que a feacute seja sempre algo mais do que a histoacuteria

Segue-se que do mesmo modo que existe um ofiacutecio de custoacutedia da Revelaccedilatildeo por parte da Igreja ofiacutecio por ela mesma atestado existe tambeacutem um ofiacutecio de custoacutedia da mesma Revelaccedilatildeo por parte da exegese que penetra o sentido literal da Escritura e defende a uniatildeo do Logos com a carne contra qualquer perigo de gnose Existe portanto por assim dizer algo como uma autonomia especiacutefica da Escritura como regra objetiva e sob muitos pontos de vista esclarecedora do Magisteacuterio eclesiaacutestico Esta era sem duacutevida uma exigecircncia legiacutetima de Lutero que ainda natildeo foi devidamente acolhida na Igreja catoacutelica por parte do Magisteacuterio cujos limites internos nem sempre foram claramente entendidos

Dever-se-ia partindo daqui salientar uma dupla criteriologia em se tratando da feacute De um lado haacute o que a Igreja antiga chamou de ldquoregra da feacuterdquo norma reguladora da palavra revelada contida na Escritura e sua exposiccedilatildeo Esta praeligscriptio da posse da Escritura como proacutepria segundo Tertuliano exclui a possibilidade de qualquer uso legiacutetimo da mesma Escritura contra a Igreja Por outro lado haacute tambeacutem o limite da littera Scripturaelig ou do sentido literal historicamente fixaacutevel que de acordo com o que ficou dito natildeo constitui nenhum criteacuterio absoluto ou autocircnomo mas sim somente um criteacuterio relativo no confronto da feacute com a ciecircncia O que na Escritura se pode descobrir quer mediante estudo cientiacutefico quer por simples leitura tem a funccedilatildeo de um criteacuterio real a que deve estar atento inclusive o Magisteacuterio em suas explicaccedilotildees Certamente [39] trata-se entatildeo de elementos sub-componentes da ciecircncia que natildeo podem servir para se julgar a feacute mas nela encontram uma instacircncia criacutetica e tecircm tambeacutem um importante papel a exercer o de zelar pela pureza do ἑφάπαξ de tutelar o conteuacutedo da Revelaccedilatildeo e de defender o dualismo histoacuterico carneespiacuterito (ldquodie Sarx der Geschichterdquo) contra os arbiacutetrios da gnose que tende sempre a impor-se

A reformatio na qual estaacute empenhada a Igreja nesta hora histoacuterica tem um papel relevante a desempenhar Eacute a missatildeo de abrir novas perspectivas para o diaacutelogo tentando assim chegar a uma ldquoreformardquo diferente da do passado que culminou com a divisatildeo no seio da Cristandade ocidental Tal missatildeo se exerceraacute em harmonia com o pleno ofiacutecio de testemunho da Igreja que tira seu direito e sua forccedila da presenccedila do Espiacuterito e de Cristo presente em todos os tempos Pois ele eacute sempre o Cristo de agora com a plenitude de seus direitos e de seus poderes Ele eacute quem daacute legitimidade e vigor ao testemunho singular e definitivo da Escritura que por sua vez encontra seu pleno sentido na singularidade da accedilatildeo histoacuterico-salviacutefica de Jesus Cristo Ele deu ao Pai seu Corpo crucificado e dando-se a si mesmo santificou para sempre os que o receberam (cf Hb 1014 727) Ele eacute o Cristo ontem hoje e sempre (Hb 138)

SEGUNDA PARTE

Explicaccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo segundo o Decreto do Conciacutelio de Trento

Parece que a completa elucidaccedilatildeo das razotildees que levaram agrave substituiccedilatildeo do

partim-partim pelo et e consequumlentemente agrave pesquisa dos dados do debate tridentino e de sua preacute-histoacuteria aparentemente favoraacutevel agrave suficiecircncia material da Escritura [40] simplifica indevidamente este problema fazendo-nos perder de vista os proacuteprios antecedentes do Decreto do Conciacutelio de Trento

1 A concepccedilatildeo pneumatoloacutegica da Tradiccedilatildeo no esquema fundamental do Cardeal Cervini

a) O conteuacutedo Um balanccedilo histoacuterico e detalhado do problema em seu conjunto exigiria uma

pesquisa exaustiva que natildeo reduzisse o seu acircmbito como o fez Geiselmann em seu livro25 Natildeo eacute nossa intenccedilatildeo proceder a um exame minucioso do assunto no presente trabalho Aqui soacute seratildeo tratados alguns pontos do debate tridentino com o fim de ampliarmos mais o horizonte de nossas reflexotildees

Fundamental para a compreensatildeo dos debates em pauta bem como do Decreto definitivo do Conciacutelio parece-me ser o Discurso do Cardeal Legado Cervini datado de 18 de fevereiro de 1546 [41] cujas linhas gerais se patenteiam tanto no Decreto como em outras decisotildees conciliares26

Tem o discurso de Cervini o meacuterito de mostrar as linhas diretrizes do Decreto de maneira mais clara do que aparecem estas na uacuteltima redaccedilatildeo do mesmo onde elas se diluem muito devido a uma seacuterie de variadas implicaccedilotildees Eacute ainda de grande auxiacutelio para o entendimento do referido discurso uma carta dos Cardeais Legados ao Cardeal Alexandre Farnese de 28 de fevereiro de 1546 Esta carta revela conteuacutedo idecircntico ndash eacute certamente inspirada pelo mesmo Cervini ndash e oferece ainda alguns outros

25 Eacute lamentaacutevel que Geiselmann em sua anaacutelise da contribuiccedilatildeo medieval sobre este assunto se tenha apoiado apenas em argumentos de segunda matildeo portanto de valor histoacuterico discutiacutevel Queira o leitor ver minhas observaccedilotildees a este respeito in Theol-prakt Quartalschrift 1963 p224-227 As novas (e temperamentais) invectivas de Geiselmann in TThQu 144 (1964) p 31-69 em nada modificaram a minha posiccedilatildeo de vez que natildeo trazem nenhuma contribuiccedilatildeo vaacutelida ao assunto Precioso ao contraacuterio eacute o trabalho de Y CONGAR La Tradition et les traditionshellip Essai historique Paris 1960 Importante eacute tambeacutem a obra de J BEUMER Die muumlndliche uumlberlieferung als Glaubensquelle Friburgo 1962 A respeito do Conciacutelio de Trento cf sobretudo aleacutem do estudo fundamental de JEDIN o artigo de E ORTIGUES Escriture et Traditions apostoliques au Concilie de Trente in RSR 36 (1949) p 271-299 K D SCHMIDT Studien zur Geschichate des Konzilis von Trient Tubinga 1925 p 152-209 26 O discurso nos foi transmitido em duas redaccedilotildees A primeira mais curta encontra-se nas Atas do Conciacutelio in CT V 11 A segunda faz parte do diaacuterio de Massarelli (Diarium III) in CT I p484 Quanto ao conteuacutedo os dois textos se completam Na anaacutelise que aqui ensaiamos as duas versotildees satildeo comparadas entre si de modo a fazerem um todo Sobre a posiccedilatildeo de Cervini no Conciacutelio cf H JEDIN Geschichte des Konzils von Trient II Friburgo 1957 p38-40 A descriccedilatildeo do desenrolar histoacuterico dos debates acha-se em JEDIN op cit p42-82 e supomo-la conhecida do leitor de vez que serve de base para a anaacutelise teoloacutegica do Decreto tridentino

esclarecimentos Cervini sustenta no citado discurso que existem trecircs princiacutepios e fundamentos de nossa feacute

1) Os livros sagrados escritos sob a inspiraccedilatildeo do Espiacuterito Santo 2) O Evangelho que Nosso Senhor natildeo escreveu mas ensinou oralmente e

implantou nos coraccedilotildees Parte do Evangelho foi escrita mais tarde pelos Evangelistas enquanto muita coisa foi simplesmente confiada aos coraccedilotildees dos fieacuteis

3) Porque o Filho de Deus natildeo ia permanecer sempre entre noacutes enviou ele o Espiacuterito Santo que haveria de revelar os misteacuterios no iacutentimo dos fieacuteis e de ensinar agrave Igreja toda a verdade ateacute ao fim dos tempos27

[43] Numa segunda redaccedilatildeo mais detalhada do discurso estas mesmas ideacuteias satildeo

desenvolvidas mais amplamente Aiacute lemos que a Revelaccedilatildeo se apresentou de modo diferente em diversos tempos

1) Nos Patriarcas cuja feacute eacute atestada na Escritura a que chamamos de Antigo Testamento

2) Em Jesus Cristo que implantou o seu Evangelho natildeo por escrito mas oralmente natildeo in charta mas in corde Das coisas que emanaram de Cristo (quaelig a Cristo emanarunt) algumas foram escritas outras permaneceram nos coraccedilotildees dos homens (quaeligdam in cordibus hominum relicta fuerunt) Todo o Evangelho de Cristo que consta desta dupla modalidade forma (tendo como primeiro princiacutepio o Antigo Testamento) o secundum prindipium fidei nostraelig

3) Daiacute surge o terceiro princiacutepio (tertium autem) porque o Filho de Deus natildeo iria permanecer sempre entre noacutes enviou ele ao mundo o Espiacuterito Santo que haveria de explicar os misteacuterios de Deus e tudo o que fosse ainda obscuro para os homens28 De modo semelhante a citada carta ao Cardeal Farnese fala de dois passos (due

passi) Um eacute que a Revelaccedilatildeo de Nosso Senhor natildeo foi totalmente escrita mas permaneceu em parte contida nos coraccedilotildees dos homens e na Tradiccedilatildeo da Igreja O outro [43] passo consiste em confirmar ldquoquello che egrave suggerito lo Spirito Santo in la Chiesa maxime medianti i concilij doppo lAscensione in cielo del Signorerdquo29

Notamos logo que contrariamente ao que esperaacutevamos natildeo dois mas trecircs satildeo os princiacutepios apontados a Escritura o Evangelho e a Revelaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

27 CT V 11 helliptria esse principia et fundamenta nostrae fidei primum libros sacros secundum esse evangelium quod Christus Dominus Noster non scripsit sed ore docuit et in cordibus illud plantavit cujus evangelii nonnulla evangelistaelig scripto mandarunt multa quoque relicta sunt in cordibus hominum Tertium quia non semper filius Dei corporaliter nobiscum mansurus erat misit Spiritum Sanctum qui in cordibus fidelium secreta Dei revelaret et ecclesiam quotidie et usque consummationem saeligculi doceret omnem veritatem et si quid in mentibus hominum dubii occurrisset declararet 28 CT I 484 Digna de nota eacute ainda a foacutermula contida na paacutegina 48514-16 nihil tamen inter scripturas sacras et apostolicas traditianes differt illaelig enim scriptaelig hae per insinuationem habentur utraeque tamen a Spiritu Sancto eodem modo emanataelig Confira-se com CT V 11 19 ab eodem Spiritu et illos (scilicet libros) et istas (scilicet traditiones) descendisse 29 CT X 373

Eacute portanto necessaacuterio observar que sob o termo ldquoEscriturardquo se entende o Antigo Testamento e que aleacutem deste (que eacute Escritura em sentido proacuteprio) aparece como segundo princiacutepio o Evangelho apresentaccedilatildeo do Cristo-evento O Evangelho por sua vez abrange o que estaacute escrito e o que natildeo estaacute escrito mas sim apenas insculpido no coraccedilatildeo dos crentes Deste modo o segundo princiacutepio representa uma vantagem pneumaacutetica sobre o que estaacute escrito o Evangelho eacute nesta concepccedilatildeo algo diferente da letra (Escritura) e soacute em parte vem escrito (Isto natildeo deve ser entendido no sentido de divisatildeo das verdades da feacute fenocircmeno denunciado ldquocom horrorrdquo por Geiselmann Ao contraacuterio Entenda-se apenas no sentido de diferente grau de dignidade no modo de exprimir-se) Em rigor o Evangelho como tal soacute pode ser escrito em parte se considerarmos a sua essecircncia

Finalmente ndash o que eacute muito de se admirar ndash segue-se como terceiro princiacutepio a accedilatildeo visiacutevel do Espiacuterito Santo em todo o tempo da Igreja

Admitimos portanto que o que noacutes geralmente chamamos de Tradiccedilatildeo natildeo aparece aqui como um soacute princiacutepio Biparte-se antes em dois princiacutepios intimamente ligados o ldquoEvangelhordquo princiacutepio apenas em parte identificaacutevel com a Escritura e a accedilatildeo do Espiacuterito Santo no tempo da Igreja Ademais podemos observar que a Escritura do Novo Testamento natildeo aparece como um princiacutepio ao lado da Revelaccedilatildeo apostoacutelica Muito menos como [44] eacute o nosso caso se apresenta a Escritura neotestamentaacuteria juntamente com a veterotestamentaacuteria como uma grandeza uacutenica uma ldquoEscriturardquo soacute agrave qual se poderia contrapor a ldquoTradiccedilatildeordquo como uma segunda grandeza O Novo Testamento em seu conjunto aparece como um segundo e mais amplo princiacutepio ou seja o Evangelho que como tal se opotildee de um lado ao Antigo Testamento e de outro agrave projeccedilatildeo histoacuterica do tempo da Igreja Sua unidade interna eacute evidentemente mais forte e importante do que a sua divisatildeo em escrito e natildeo-escrito Assim o Evangelho como um soacute princiacutepio pode ser contraposto ao Antigo Testamento a despeito desta dupla formalidade A impossibilidade de se representar o Novo Testamento como Escritura impossibilidade esta demonstrada por Satildeo Paulo e pelos primeiros seacuteculos cristatildeos eacute aqui claramente revelada

Ainda uma observaccedilatildeo relativa ao texto a que vimos nos referindo Em nenhum dos dois pontos por noacutes citados no estudo da Tradiccedilatildeo isto eacute nem no elemento contido no primeiro nem no apresentado no terceiro princiacutepio figura a Tradiccedilatildeo como verbal Em ambos os casos ao contraacuterio trata-se mais da Tradiccedilatildeo real com prevalecircncia da realidade sobre as palavras que a atestam Este fato que estaacute claro no terceiro princiacutepio o pneumatoloacutegico vale tambeacutem em relaccedilatildeo agrave implantaccedilatildeo do Evangelho nos coraccedilotildees contida no segundo princiacutepio Tal implantaccedilatildeo vai muito aleacutem do que se encontra expresso na letra da Escritura

Que papel tenham estas ideacuteias exercido nas discussotildees do Conciacutelio pode-se concluir tambeacutem das auctoritates citadas por Cervini entre as quais figuram Jo 16 12 (hellipSpiritus Sanctus suggerethellip) e Fl 3 15 (Quicumque perfecti sumus haeligc sentiamus et si quid aliter sentitis haeligc quoque Deus vobis revelabit) Ambos estes textos satildeo de teor acentuadamente [45] pneumatoloacutegico-presencial30 Que tais ideacuteias natildeo eram

30 CT V 14 e 15 Um exame profundo das auctoritates quer da Escritura quer entre os Santos Padres que neste particular satildeo favoraacuteveis agrave Tradiccedilatildeo seria em si conclusivo para a elaboraccedilatildeo do conceito

estranhas aos Padres conciliares deduz-se ainda de uma seacuterie de outras referecircncias Assim ouvimos o Bispo de Aqui dizer que aleacutem da Sagrada Escritura existe muita coisa na Igreja de Deus que vindo dos Apoacutestolos e passando de geraccedilatildeo a geraccedilatildeo chegou ateacute noacutes assim como muitas outras quaelig etsi scripta Apostoli nobis non reliquerunt per Spiritus Sancti revelationem nobis (tradita) sunt (Tradita estaacute aqui por revelata) 31 Partindo daiacute se poderia descrever a Tradiccedilatildeo justamente como o componente pneumatoloacutegico do Cristo-evento b) A influecircncia do esquema de Cervini em diversas decisotildees conciliares

Eacute verdade que esta concepccedilatildeo tripartida aparece muito atenuada no Decreto

oficial sobre a Tradiccedilatildeo Que poreacutem em suas linhas fundamentais natildeo tenha ela sido de modo nenhum [46] abandonada mostram-no duas outras passagens nas quais o Conciacutelio faz uso por assim dizer in actu das ideacuteias aqui expressas32 Assim na Introduccedilatildeo ao Decreto sobre a Eucaristia (Denz 873) se lecirc Sacrosancta Synodus sanamhellipdoctrinam tradens quam semper catholica Ecclesia ab ipso Jesu Christo Domino Nostro et eius apostolis erudita atque a Spiritu Sancto illi omnem veritatem in dies suggerente (Jo 1416) edocta retinuithellip

Aqui a accedilatildeo proacutepria do Conciacutelio eacute descrita como tradere e a este tradere eacute atribuiacutedo um duplo fundamento De um lado o ensino de Jesus e dos Apoacutestolos (Note-se que este ponto corresponde ao Evangelho segundo a concepccedilatildeo de Cervini E de certo modo tambeacutem pela citaccedilatildeo de Jesus e dos Apoacutestolos se reconhece a dupla modalidade do Evangelho como escrito e como inserido nos coraccedilotildees) De outro lado o ensino dado pelo Espiacuterito Santo que conduz agrave verdade in dies isto eacute no de correr do tempo futuro

O outro texto que pode ser aduzido aqui como prova do que afirmamos encontra-se no Preacircmbulo do Decreto sobre o Purgatoacuterio (Denz 983) Aiacute se lecirc hellipCatholica Ecclesia Spiritu Sancto edocta ex Sacris Litteris et antiqua Patrum traditione in sacris Conciliis et novissime in hac Synodo docuerit A descriccedilatildeo da accedilatildeo proacutepria do

aqui exposto H HOLSTEIN procurou fazer o cotejo destas auctoritates e fecirc-lo de modo admiraacutevel em seu artigo La Tradition dapregraves le Concile de Trente (RSR 47 1959 p367-390 e em particular para o caso em questatildeo a p375) Ele encontra nos textos estudados duas linhas de tendecircncias A linha de Santo Irineu para a qual o testemunho dos Apoacutestolos eacute o de sua personalidade de sua vida e de seu ofiacutecio Aleacutem desta o grupo composto de Tertuliano Cipriano Basiacutelio e Agostinho forma uma corrente que se poderia denominar ldquocerimonialrdquo Oriacutegenes se enquadra em ambos os grupos Existe entre os autores estudados uma seacuterie de textos que se referem agraves observationes consuetudines institutiones e que levam a entender-se a Tradiccedilatildeo neste mesmo sentido Aiacute se vecircem tambeacutem textos que sublinham o aspecto natildeo-escrito do Evangelho enquanto insculpido no coraccedilatildeo dos fieacuteis e aleacutem disso textos que apontam a Igreja como o ldquolugarrdquo da verdade cristatilde 31 CT I 483 (18 de fevereiro de 1546) Em 26 de fevereiro (CT V 18) encontramos Cervini a tratar de novo deste assunto Cf tambeacutem um pronunciamento do Bispo de Fano (CT V 10) nestes termos Cum jam receperimus Scripturas Sacras necessario recipiendaelig sunt traditiones quaelig ab eodem Spiritu Sancto quo scripturaelig dictataelig sunthellip 32 Disto me adverti pela primeira vez atraveacutes de um estudo realizado sob a minha orientaccedilatildeo por CHR LIMBACR a quem sou devedor de muitas informaccedilotildees bibliograacuteficas

Conciacutelio como tradere encontra-se ainda nas declaraccedilotildees sobre o Sacramento da Extrema-Unccedilatildeo (Denz 910)

Finalmente a triacuteplice divisatildeo deixa-se insinuar nas entrelinhas do Decreto sobre a Tradiccedilatildeo embora obscurecida e diluiacuteda por uma seacuterie de acreacutescimos e citaccedilotildees a ele adicionados por outros motivos O Decreto da Tradiccedilatildeo com efeito [47]

1) Fala do Evangelho prometido pelos Profetas na Escritura e refere-se a esta em sentido estrito quer antes quer depois do Antigo Testamento

2) Fala da promulgaccedilatildeo por Cristo do Evangelho que foi transmitido pelos Apoacutestolos sob dupla forma oral e escrita Desta maneira o que natildeo ocorre no exemplo de Cervini aparece aqui antes de tudo o componente pneumatoloacutegico unido com o componente apostoacutelico a ponto de se distinguirem duas modalidades de Tradiccedilatildeo apostoacutelica a que remonta a Cristo e a que remonta ao envio do Espiacuterito Santo Pode-se assim estabelecer que em oposiccedilatildeo ao esquema de Cervini haacute um certo processo de historicizaccedilatildeo que salienta a relaccedilatildeo com o comeccedilo histoacuterico e igualmente parece deslocar o acento da tradiccedilatildeo real para a verbal

3) No epiacutelogo desta parte do Decreto da Tradiccedilatildeo que vimos analisando de novo eacute considerada a ideacuteia da Sagrada Escritura O conceito de Tradiccedilatildeo eacute entatildeo formulado em definitivo e descrito como vel oretenus a Christo vel a Spiritu Sancto dictatas et continua successione in Ecclesia catholica conservatas A referecircncia aos Apoacutestolos eacute omitida Pode-se na verdade considerar tudo isto como uma volta ao que foi dito antes Evidentemente a tradiccedilatildeo ditada pelos Apoacutestolos eacute citada de novo (A expressatildeo continua successione insinua-o) Contudo permanece sempre ainda certa indeterminaccedilatildeo ficando aberta a possibilidade de se encontrar aqui o vestiacutegio do terceiro componente de Cervini o princiacutepio pneumaacutetico propriamente dito Eacute tambeacutem claro que esta ideacuteia eacute discreta sendo adotada uma posiccedilatildeo mais acentuadamente histoacuterica Se agora lanccedilarmos os olhos sobre o que vimos considerando ateacute aqui surgiratildeo

inevitavelmente perguntas qual eacute realmente o sentido proacuteprio da concepccedilatildeo pneumatoloacutegica Como poderia ser perfeitamente entendida a ideacuteia a noacutes estranha de uma revelatio prolongada no tempo em face da unicidade e do caraacuteter [48] histoacuterico da Revelaccedilatildeo que evidentemente era conhecido tanto de Cervini quanto dos Santos Padres e teoacutelogos medievais33

Antes de examinarmos isto devemos esclarecer rapidamente os principais motivos que inspiraram o Decreto tridentino sobre a Escritura e a Tradiccedilatildeo deixando nele um tanto encoberta a concepccedilatildeo pessoal de Cervini Que opiniotildees de teoacutelogos teratildeo intervindo aqui chegando a ser em parte impressas no texto definitivo que resultou do cotejo de muitos pronunciamentos diversos Uma exposiccedilatildeo detalhada deste ponto exorbitaria do acircmbito de nossa anaacutelise Contentemo-nos com umas poucas observaccedilotildees sumaacuterias 33 Sobre este assunto tentei fazer um breve comentaacuterio no meu trabalho ldquoOffenbarung-Schrift-Uberlieferungrdquo in TThZ 67 (1958) p13-27 Cf J BEUMER ldquoDer theoretische Beitrag der Frnhscholastik zum Problem des Dogmenfortschrittsrdquo in ZkTh 72 (1952) p205-226 J de CHELLINCK Pour lrsquohistoire du mot ldquorevelarerdquo in RSR 6 (1916) p149-157

2 Relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a vida da Igreja

em diversas passagens do debate tridentino

Uma primeira seacuterie de motivos entre os quais se compreendem diversos pronunciamentos agraves vezes muito contrastantes em seu aparato exterior patenteia-se na ideacuteia de tradiccedilotildees expressa no Decreto de duas maneiras a) - per manus traditaelig ad nos usque pervenerunt b) - continua successione in Ecclesia catholico conservatas

O que se ocultaraacute sob estas duas foacutermulas que o historiador de hoje tem dificuldades em aceitar justamente por causa do historicismo nelas impliacutecito Podemos dizer que um decisivo papel exerceu aqui o pensamento que sempre aparecia nos debates a saber que as tradiccedilotildees satildeo variaacuteveis que muitas delas foram abolidas pelos Apoacutestolos e que por outro lado se [49] introduziram tradiccedilotildees eclesiaacutesticas que natildeo mais seriam abolidas34 Esta ideacuteia de Tradiccedilatildeo de certo modo se torna clara no tratado escrito sobre o mesmo assunto por Seripando para uso dos Padres Conciliares Seripando fala das Tradiccedilotildees escritas inseridas na Escritura como as claacuteusulas de Tiago o costume de as mulheres se cobrirem com um veacuteu a legislaccedilatildeo sobre o matrimocircnio contida em 1Cor 7 etc E o autor adverte que estas praacuteticas foram abolidas Isto porque embora associadas agrave palavra de Deus na Escritura dela ldquomuito diferemrdquo pois a palavra divina [50] de modo nenhum poderia ser abolida A estas tradiccedilotildees

34 Cabe aqui aduzir uma nova intervenccedilatildeo de Cervini datada de 26 de fevereiro de 1546 (CT I 33 e V 18) onde ele diz que nem todas as tradiccedilotildees procedentes dos Apoacutestolos devem ser conservadas mas somente as que ab Ecclesia receptaelig ad nos usque pervenerunt (V 18) Esta afirmaccedilatildeo anterior agrave formulaccedilatildeo dogmaacutetica feita pelo Concilio deve igualmente ser tida na conta de um autecircntico comentaacuterio do Decreto Aiacute se acentua como condiccedilatildeo essencial das tradiccedilotildees a receptio ecclesiaelig Vem ainda referida uma intervenccedilatildeo do Bispo de Bertinoro em data de 23 de marccedilo (I p 523) na qual ele sublinha que as tradiccedilotildees escritas por vezes foram mudadas Jaacute entre as natildeo-escritas umas foram mudadas e outras natildeo como por exemplo o rito de adicionar aacutegua ao vinho a Crisma a confissatildeo auricular O Bispo de Bertinoro acrescenta que por outro lado alguns pontos existem que permaneceram inteiramente inalterados tais como a crenccedila no descensus ad inferos na virgindade perpeacutetua de Maria a substituiccedilatildeo da observacircncia do saacutebado pela do domingo Temos depois um pronunciamento do Bispo de Bitonto datado de 27 de marccedilo (I 39) Este bispo era de parecer que algumas coisas foram transmitidas pelos Apoacutestolos com a finalidade de serem perpetuamente conservadas (como pertencentes ao depoacutesito da feacute) outras caiacuteram em desuso (como as claacuteusulas de Tiago) e outras enfim foram apenas aconselhadas Assim mesmo na Escritura algumas coisas haacute que foram escritas mas natildeo recebidas em uso por serem mateacuteria de mero conselho Por exemplo ldquose algueacutem te pedir a tuacutenica daacute-lhe tambeacutem o paacutelio se algueacutem te esbofetear numa face oferece-lhe tambeacutem a outrardquo Sem duacutevida excelente ilustraccedilatildeo do sermatildeo da montanha Finalmente consideraccedilotildees idecircnticas podemos encontrar na obra citada de LEJAY Eis outra amostra tirada do discurso de 23 de fevereiro (CT V 13) Nam illaelig (scil traditiones) quaelig ad fidem pertinent eadem sunt recipiendaelig auctoritate qua recipitur evangelium alia autem non ita eum earum plurimaelig immutataelig fuerint ut de bigamis de esu sanguinis et similia De modo semelhante aliaacutes fala tambeacutem Bonuccio (I 525 a 23 de marccedilo de 1546 ecclesia traditiones apostolorum quandoque mutavit verbum autem Dei nunquam mutavit neque mutare potest

Seripando opotildee as natildeo referidas na Biacuteblia e que ora satildeo apostoacutelicas ou oriundas de Conciacutelios universais e aceitas por toda a Igreja ora satildeo particulares e muito variaacuteveis35

Este texto nos leva a uma surpreendente conclusatildeo para Seripando e muitos outros Padres tridentinos36existem tradiccedilotildees na Escritura ldquoTradiccedilatildeordquo natildeo significa o natildeo-escrito Existe quer dentro da Escritura quer fora dela Isto nos conduz a outra pergunta em que consiste para os referidos Padres a essecircncia da tradiccedilatildeo se o que a constitui natildeo eacute o fato de natildeo ser escrita37 Em outros termos como pode a tradiccedilatildeo ser definida positivamente se ela natildeo pode ser suficientemente determinada pela ideacuteia negativa de algo natildeo-escrito

Haacute uma seacuterie de respostas para esta pergunta O proacuteprio Seripando daacute a seguinte definiccedilatildeo Traditiones hoc est Apostolorum seu sanctorum Patrum sanctae et salutares constitutiones38 Mais clara ainda eacute a afirmaccedilatildeo de Cervini citada por Massarelli A objeccedilatildeo do Bispo de Chioggia que aduzia a opiniatildeo de Agostinho de que tudo o que eacute necessaacuterio para a salvaccedilatildeo estava escrito na Biacuteblia respondia Cervini da seguinte maneira Verba illa (isto eacute de Santo Agostinho) formaliter intelligi debent scilicet ad fidem accipiendam ut salvi fiamus Quo vero ad mores et christianam vitam instituendam certo non omnia scripta sunt

[51] E de novo recorre agraves provas tiradas de Jo 1526 e 1426 E indica o princiacutepio pneumatoloacutegico39 O que eacute mais importante eacute que a Tradiccedilatildeo se refere agrave institutio vitaelig agrave presenccedila atuante da Palavra revelada na existecircncia cristatilde Tradiccedilatildeo eacute noutros termos a eficaacutecia da palavra de Deus Sem ela a palavra ficaria esteacuteril 35 Seripando De traditionibus (fevereiro ou marccedilo de 1546) CT XII p517-521 e principalmente a p 521 As expressotildees desta uacuteltima paacutegina chocam-se com a ideacuteia de Cervini sobre a receptio ecclesiaelig 36 Cf o texto citado na nota 11 37 No texto definitivo do Decreto esta ideacuteia natildeo aparece mais Aqui poreacutem com esta primeira designaccedilatildeo expliacutecita da Tradiccedilatildeo vem expressamente acentuado o contraste entre in libris scriptis et sine scripto traditionibus Na segunda redaccedilatildeo o sentido expliacutecito da palavra Tradiccedilatildeo natildeo eacute tatildeo exclusivo Contudo apresenta igual matiz ao se confrontarem as expressotildees omnes libroshellipnec non traditiones ipsas Portanto a ideacuteia positiva da Tradiccedilatildeo que serve de base a esta anaacutelise natildeo deixou de influenciar na redaccedilatildeo do Decreto 38 CT XII 517 39 CT I 494 (26 de fevereiro de 1546) A citada palavra de Santo Agostinho teve o seu papel a desempenhar na discussatildeo em curso Seripando por exemplo a ela se referiu (De traditionibus CT XII 521 47-53) Pensandum denique ne in traditionibus externis vera religio et salutis spes statuatur de quibus Augustinus Omnia quaelig pertinent ad veram religionem quaeligrendam et tenendam divina Scriptura non acuit Conceda-se que nem tudo foi escrito (veja-se Jo 2125) Todavia electa sunt autem quaelig scriberentur quaelig saluti credentium sufficere videbantur Mais do que nos debates do tridentino encontramos aqui um verdadeiro postulado dos Reformadores ldquonatildeo adotar costumes exteriores mas buscar os meios definitivos de salvaccedilatildeo na palavra da Escriturardquo A ldquosuficiecircnciardquo da Escritura de que aqui se fala eacute na verdade algo diverso da suficiecircncia material da mesma Escritura defendida por Geiselmann em sentido muito mais radical Infelizmente ainda natildeo se quis levar na devida consideraccedilatildeo o texto de Santo Agostinho (CT I 494 sugere De doctrina christiana II 9 e De pecc mero et rem II 59) Muito apropriadas nesta ordem de ideacuteias satildeo as observaccedilotildees de H SCHAUF ldquoSchrift und Traditionrdquo in Antonianum 39 (1964) p200-209 feitas no chamado Encontro de Duumlsseldorf Nos textos citados por Schauf com base em Agostinho eacute afirmada a suficiecircncia da Escritura para a salvaccedilatildeo Eacute contudo contestada a sua suficiecircncia para a Igreja em geral De fato esta alternativa parece muito mais vaacutelida e fundamental agrave luz dos postulados dos Reformadores do que a alternativa entre a suficiecircncia ou insuficiecircncia material da Escritura

Na mesma linha de ideacuteias seguem-se duas outras seacuteries de pronunciamentos Vimos na introduccedilatildeo agrave parte anterior que a discussatildeo dogmaacutetica da ideacuteia de

Tradiccedilatildeo foi em parte prejudicada pela questatildeo do meacutetodo a seguir no Conciacutelio dever-se-ia abordar primeiro a reformatio a reforma praacutetica da Igreja como queria o ldquoKaiserrdquo Ou primeiro discutir a questatildeo dogmaacutetica como preferia o Papa40

[52] Este problema do meacutetodo embora resolvido no debate que entatildeo surgiu natildeo afetou diretamente a questatildeo da Tradiccedilatildeo como tal Mas como de fato estas duas questotildees ficaram ligadas entre si daiacute resultou que muitos oradores transformaram a questatildeo do meacutetodo (se se deveria falar dos abusos ou da Tradiccedilatildeo) em parte de sua argumentaccedilatildeo em torno do assunto em pauta41 O problema abusus e o problema Traditio ficaram de tal maneira associados na ocasiatildeo que pareciam formar no fundo um soacute assunto Por isso os oradores ora falavam em sentido positivo ora se pronunciavam em sentido negativo Isto correspondia tambeacutem ao propoacutesito reformista do Conciacutelio as traditiones representavam os abusus aos quais a Igreja se opunha Os Padres estavam cocircnscios de que condenar as traditiones era condenar Os usus ecclesiaelig o modo como a Igreja vivia a sua vida naquela eacutepoca

A outra seacuterie de pronunciamentos que se inclinavam ao mesmo sentido encontramo-la nas proposiccedilotildees que a auctoritas da Igreja apresenta como definitivas indicando uma iacutentima relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a institutio christiana 42

[53] Podemos agora retomar ao nosso ponto de partida e dar resposta agrave pergunta que propriamente significa a foacutermula ad nos usque pervenerunt Objetivamente natildeo se trata aqui de um historicismo que a foacutermula parece expressar Ao contraacuterio Trata-se da fidelidade perseverante da Igreja agrave institutio vitaelig christianaelig da legiacutetima forma de vida cristatilde em concreto no tempo presente da Igreja da institutio christiana que coloca a Escritura em primeiro lugar e que como tal isto eacute como vida decorrente da Escritura eacute fundamentalmente apostoacutelica embora tambeacutem sujeita a mudanccedilas como tudo o que eacute vivo

3 A Tradiccedilatildeo e o dogma eclesiaacutestico

40 Sobre o debate em torno da questatildeo do meacutetodo cf mais uma vez JEDIN op cit p9-82 e outras 41 Assim jaacute no discurso de Cervini antes analisado (CT I 484) no qual ele recorda o dilema do Conciacutelio se nos voltarmos contra as tradiccedilotildees ficaratildeo admirados os Padres Conciliares quasi reformationem fugiamus si ipsam reformationem sumimus iterum objicient traditiones relinquendas non esse Idecircntica era a situaccedilatildeo em que se encontrava o Bispo de Astorga nas duas intervenccedilotildees que fez no dia 23 de fevereiro de 1546 (CT V 13 e 19) segundo Seripando (I 484) helliptraditiones prius pertractandas consulit tantam enim conformitatem abusus qui ex sacris libris descendunt cum iis qui a traditionibus orti sunt habent ut sacris libris et traditionibus absolutis duo illa abusuum genera simul pertractari valeant Segundo Bonuccio (I 484) antes de tudo dever-se-ia tratar das Sagradas Escrituras dos cacircnones apostoacutelicos dos Conciacutelios gerais e das decretais pontifiacutecias Hisque ilusceptis ad abusus ex eisdem dependentes devenire 42 Assim principalmente de acordo com Afonso de Castro (CT I 484) Quoniam ultra traditiones apostolicas ecclesiae auctoritatem habemus quaelig ecclesiaelig auctoritas tonta apud nos est ut aliqui eam maioris roboris quam sacros libros esse sentiant Cf igualmente CT I 491 45 Na mesma linha pode-se ver uma seacuterie de pronunciamentos na citada obra de LEJAY Cf CT XII 524 (Tratado De traditionibus ecclesiaelig fevereiro ou marccedilo de 1546)

Uma segunda seacuterie de motivos eacute expressa no Decreto pela foacutermula traditiones tum ad fidem tum ad mores pertinentes Se como vimos a ideacuteia de Tradiccedilatildeo aparece muito limitada naquilo que os Padres conciliares chamam consuetudines observationes institutiones por outro lado o Procurador do Cardeal de Augsburgo Claudio Lejay SJ se fez o porta-voz de uma expressatildeo que em oposiccedilatildeo agraves traditiones caeligremoniales estabeleceu justamente o sentido da tradiccedilatildeo contida na feacute Seu tratado sobre a Tradiccedilatildeo composto para uso dos Padres conciliares inclui tambeacutem a foacutermula que foi adotada pelo Conciacutelio Aiacute se diz Denique multas veritates tum ad fidem tum ad mores pertinentes Ecclesia novit quas Scriptura aperte et expresse non continet Ele cita como exemplos as palavras persona essentia trinitas no Tratado da Santiacutessima Trindade consubstantialitas na Cristologia do Logos duas naturezas uma soacute Pessoa referentes ao dogma definido pelo Conciacutelio de Calcedocircnia E ainda Cristo Filho uacutenico de Maria duas vontades na uacutenica Pessoa de Cristo uma alma racional aleacutem do espiacuterito divino em Cristo Ana matildee de Maria o costume de fazer sinais da cruz a santificaccedilatildeo do domingo a maneira de rezar com face voltada [54] para o Oriente tudo isto ideacuteias e fatos da tradiccedilatildeo conciliar e da piedade cristatilde43

Cervini que aprovou o discurso de Lejay de 23 de fevereiro de 154644 pocircde dificilmente conciliar esta posiccedilatildeo com a sua expressa na jaacute citada carta ao Cardeal Farnese onde como vimos ele diz que o Espiacuterito Santo falou na Igreja e depois da Ascensatildeo do Senhor fala ainda maxime medianti i concilii45 Ele aiacute viu publicamente sublinhado o fato de que aquele ldquomaisrdquo que a Igreja viva representa em relaccedilatildeo agrave palavra meramente escrita natildeo se referia e natildeo se refere apenas agrave vita instituenda ou como ele prefere agrave caeligremonialia Refere-se tambeacutem agrave essentialia fidei que antes de tudo plenamente se expressam na Tradiccedilatildeo Tambeacutem aqui como se vecirc o interesse dominante natildeo estaacute na apresentaccedilatildeo historicista do assunto a partir do iniacutecio da Igreja mas na ideacuteia de que a influecircncia da Tradiccedilatildeo sobretudo atraveacutes da praxe conciliar eacute de fundamental importacircncia para a feacute para a doutrina crida e natildeo apenas para a piedade viva ou a caeligremonialia

4 O sentido do Decreto tridentino

Se recapitularmos o que ateacute agora dissemos veremos que no conjunto facilmente se podem reconhecer trecircs diferentes concepccedilotildees teoloacutegicas unidas entre si no texto definitivo do Decreto sobre a Tradiccedilatildeo Unidas mas natildeo equiparadas umas agraves outras Pelo contraacuterio apesar de sua grande diferenccedila foram elas apenas [55] mais ou menos justapostas e de novo por forccedila de uma tendecircncia comum relacionadas entre si

1 A concepccedilatildeo de Cervini que designamos como pneumatoloacutegica Com sua doutrina sobre os trecircs principia fidei insiste ele no caraacuteter dinacircmico do Cristo-evento

43 CT XII 523 LEJAY baseia-se evidentemente em listas de tradiccedilotildees confeccionadas naquele tempo (Cf ECK DRIEDO CANO BOTO NOGAROLA) Cf a este respeito Y CONGAR ldquoTraditions apostoliques non eacutecrites et suffisance de lEscrituresrdquo in Istina 6 (1959) p219-306 e principalmente a paacutegina 289 44 CT V 14 45 CT X 373

presente na Igreja Entende assim a Tradiccedilatildeo primariamente como a realidade espiritual da institutio vitaelig christianaelig

2 A concepccedilatildeo que podemos chamar de cerimonial Esta entende a Tradiccedilatildeo essencialmente como a seacuterie de consuetudines existentes ao lado da feacute como os usus ecclesiaelig que os Reformadores falsamente pretendem abolir como abusus Esta concepccedilatildeo chega a condenar a dignidade e Antiguumlidade apostoacutelica das tradiccedilotildees Sua ideacuteia eacute limitada pelo ad nos usque pervenerunt que inclui possibilidade de variar da parte das tradiccedilotildees donde a necessidade de reduccedilotildees Com os termos pervenire e conservare a recepccedilatildeo por parte da Igreja eacute considerada criteacuterio adicional ao lado da Antiguumlidade

3 A concepccedilatildeo que talvez possamos denominar dogmaacutetica Em oposiccedilatildeo agrave fixidez da ideacuteia de Tradiccedilatildeo reduzida agrave consuetudo salienta esta terceira hipoacutetese a extensatildeo do fenocircmeno Tradiccedilatildeo tambeacutem ao acircmbito da fides

Estas trecircs concepccedilotildees deram forma ao texto do Decreto de tal modo que as suas

linhas mestras derivam de Cervini e todo o texto deve ser entendido agrave luz de suas ideacuteias Contudo em duas passagens isto eacute no pervenerunt e no conservatas haacute influecircncia da segunda concepccedilatildeo enquanto no tum ad fidem tum ad mores haacute influecircncia da terceira

Em face destas trecircs concepccedilotildees das quais na realidade existem diversas variantes que tomadas em conjunto satildeo a expressatildeo das ideacuteias dominantes adotadas aparecem as teses de Bonuccio e de Nacchianti tatildeo postas em evidecircncia por Geiselmann como sentenccedilas contraacuterias De fato o parecer de Bonuccio claramente [56] se opotildee agrave segunda concepccedilatildeo (contra a supervalorizaccedilatildeo das consuetudines natildeo per pietatis affectus) ao passo que Nacchianti se levanta antes contra a terceira posiccedilatildeo e salienta a suficiecircncia da feacute recebida por meio da Escritura46

Seria de notar-se ainda que as concepccedilotildees segunda e terceira tecircm algo em comum Ambas opotildeem agrave visatildeo pneumatoloacutegica de Cervini da salvaccedilatildeo sempre presente uma visatildeo mais historicista relacionada com o prolongamento da salvaccedilatildeo operada uma soacute vez ou seja o ἑφάπαξ Na realidade deve-se dizer que embora de um lado tanto a visatildeo presencial de Cervini como tambeacutem a visatildeo historicista do outro grupo se consideradas isoladamente cada qual de per si sejam perigosas se natildeo insustentaacuteveis 46 Aliaacutes de acordo com uma informaccedilatildeo de Cervini parece que o Bispo de Chioggia finalmente renunciou agrave sua tese da suficiecircncia da Escritura na qual se inclinava a recusar as tradiccedilotildees Na carta de Cervini ao Cardeal Farnese de 27 de fevereiro de 1546 lemos hellip Chioggia che (quasi quasi) voleva dire queste traditioni essere superflue perorando che tutto quello che era necessario alla salute era scritto et allegando etiam S Agostino sopra lultimo capitulo di S Giovanni a questo proposito Pure per non poter negare che molte cose appartenenti almeno alli sacramenti non ci fussero venute ex tra ditione et per consequente che non tutte le cose necessarie alia nostra salute erano scritte poiche ebbe fatte molte distintioni concluse che ancor lui accettava queste ldquoche in la chiesa fusse qualque traditione apostolica non scrittardquo (et con queste parole diceva che se ne facesse il decreto) credo che molti sono restati scandalizati di lui (CT X Nr 315 paacutegs 399 411) Cf tambeacutem CT I 494 nota 9 e 495 nota 2 CT V 18 nota 5 e 19 e nota 1 O mesmo protesto que aparece contra Nacchianti manifesta-se tambeacutem na observaccedilatildeo de Massarelli Este chega a chamar aquele de novarum rerum cupidus (1 494 18) e esclarece que reprehensus est a multis (1 494 22) Diante disto eacute de todo destituiacuteda de creacutedito a importacircncia que Geiselmann lhe atribui mesmo se abstrairmos de outras razotildees jaacute conhecidas sobre as quais natildeo precisamos insistir

de outro lado pelo menos tornam possiacutevel uma exata visatildeo do conjunto devido agrave sua muacutetua confluecircncia e limitaccedilatildeo No texto atual estatildeo presentes embora pouco nitidamente ambos os pontos de vista o elemento presencial e o ἑφάπαξ Conveacutem que entendamos assim o texto de modo a considerarmos [57] ambos estes aspectos como essenciais Consequumlentemente reconheceremos que ambos pertencem constitutivamente agrave realidade da vida cristatilde e portanto tambeacutem agravequela parcela do Cristianismo a que damos o nome de Tradiccedilatildeo Estes dois elementos satildeo a presenccedila do Espiacuterito Santo e o seu nexo com o fato singular da salvaccedilatildeo ocorrido uma soacute vez por todas na histoacuteria dos homens

Assim se acharaacute finalmente a resposta agrave pergunta de corno noacutes devemos entender o parecer do Conciacutelio de Trento A primeira e mais importante conclusatildeo parece-me ser o fato de o Conciacutelio ter visto muito claramente o nexo entre Tradiccedilatildeo e Revelaccedilatildeo A seguir elaborou sempre em consonacircncia com a tradiccedilatildeo patriacutestica e medieval um conceito de Revelaccedilatildeo muito menos material do que o que seraacute adotado mais tarde pela teologia dos tempos modernos Somente assim se deve conceber a ideacuteia da Revelaccedilatildeo do Espiacuterito Santo na Igreja Partindo do ramo nitidamente patriacutestico da teologia medieval tatildeo francamente acolhido no discurso de Cervini deveria ser muito menos categoacuterica a opiniatildeo que coloca o teacutermino da Revelaccedilatildeo na morte do uacuteltimo Apoacutestolo Naturalmente esta questatildeo natildeo pode ser aqui estudada com maiores detalhes A sua soluccedilatildeo como entatildeo se apresentava aos teoacutelogos poderia ser hoje impostada apelando-se para as categorias da teologia atual Segundo esta podemos dizer que a Revelaccedilatildeo estaacute encerrada do ponto de vista de seu princiacutepio material Todavia estaacute e continua presente em sua realidade eficaz Noutros termos a Revelaccedilatildeo tem eacute verdade o seu ἑφάπαξ enquanto ela se realizou num determinado dia na Histoacuteria Entretanto ela tem tambeacutem o seu ldquohojerdquo permanente isto eacute o que foi uma vez por todas realizado na feacute da Igreja permanece sempre vivo e operante Assim a feacute cristatilde natildeo se volta apenas para o passado Abrange tambeacutem o presente e o futuro Eacute verdade que a posterior materializaccedilatildeo historicista da ideacuteia de Revelaccedilatildeo aparece jaacute claramente insinuada nos debates tridentinos corno um fato previsto mas ainda [58] natildeo consumado embora talvez se possa dizer que nos textos conciliares ficou definitivamente consagrada a sua aceitaccedilatildeo

Finalmente acrescentemos ainda que com base nos debates do Conciacutelio podemos estabelecer quatro elementos da ideacuteia de Tradiccedilatildeo 1 O aspecto natildeo-escrito da Revelaccedilatildeo ou do Evangelho contido na Biacuteblia e no coraccedilatildeo dos fieacuteis 2 A palavra do Espiacuterito Santo no decorrer de todo o tempo da Igreja

3 A atividade da Igreja nos Conciacutelios 4 A Tradiccedilatildeo lituacutergica e a da vida da Igreja em geral Nestes quatro elementos

que se deve ter sob os olhos pois formam o fundo ideoloacutegico do Decreto expressa-se a realidade uacutenica do tempo presente da Igreja cristatilde Nele estaacute presente todo o passado poacutes-apostoacutelico da Igreja (inclusive o proacuteprio tempo dos apoacutestolos) de modo que toda a sua vida eacute na Sagrada Escritura um elemento central embora natildeo o uacutenico Em suma deve ter ficado claro que o Conciacutelio de Trento a despeito do caraacuteter contrastante e fixo de sua ideacuteia de Revelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeo oferece uma visatildeo muito mais rica destes conceitos do que a que impregnou a mentalidade dos seacuteculos seguintes Justamente por

isso a teologia de hoje pode retirar daiacute novos subsiacutedios novo apoio para suas pesquisas e novas indicaccedilotildees sobre o verdadeiro caminho a seguir

Quadro sinoacutetico do Decreto tridentino sobre a Tradiccedilatildeo

Primeiro princiacutepio conforme Cervini (AT = Escritura)

Sacrosancta œcumenica et generalis Tridentina Synodus in Spiritu Sancto legitime congregata [] hoc sibi perpetuo ante oculos proponens ut sublatis erroribus puritas ipsa EVANGELII in Ecclesia conservetur quod PROMISSUM ANTE PER PROPHETAS IN SCRIPTURIS SANCTIS

Segundo princiacutepio conforme Cervini o Evangelho em parte escrito em parte insculpido nos coraccedilotildees

[59] DOMINUS NOSTER IESUS CHRISTUS DEI FILIUS PROPRIO ORE PRIMUM PROMULGAVIT DEINDE PER SUOS APOSTOLOS TAMQUAM FONTEM OMNIS ET SALUTARIS VERITATIS ET MORUM DISCIPLINAE OMNI CREATURAE PRAEDICARI IUSSIT PERSPICIENSQUE HANC VERITATEM ET DISCIPLINAM CONTINERI IN LIBRIS SCRIPTIS ET SINE SCRIPTO TRADITIONIBUS QUAE AB IPSIUS CHRISTI ORE AB APOSTOLIS ACCEPTAE AUT AB IPSIS APOSTOLIS SPIRITU SANCTO DICTANTE

Seripando Cervini e outros soacute consideram as tradiccedilotildees recebidas pela Igrej (ldquoad nos usquerdquo)

quasi per manus traditae ad nos usque pervenerunt

orthodoxorum Patrum exempla secuta omnes libros tam Veteris quam Novi Testamenti cum utriusque unus Deus sit auctor nec non TRADITIONES IPSAS

Lejay Tradiccedilatildeo contendo natildeo soacute a ldquoconsuetudordquo mas relacionada tambeacutem com a ldquofidesrdquo (foacutermula conciliar)

tum ad fidem tum ad mores pertinentes

Terceiro princiacutepio de Cernini Depois da Ascenccedilatildeo de Cristo o Espiacuterito Santo ensina tambeacutem os misteacuterios de Deus

TAMQUAM VEL ORETENUS A CHRISTO VEL A SPIRITU SANCTO DICTATAS

Seripando Cervini etc soacute satildeo consideradas as coisas recebidas pela Igreja (como acima)

et continua successione in Ecclesia catholica conservatas

Cervini Escritura e Tradiccedilatildeo procedem ambas do mesmo Espiacuterito Santo

pari pietatis affectu ac reverentia suscipit ac veneratur

  • Prefaacutecio
  • SEGUNDA PARTE
  • Explicaccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo
  • segundo o Decreto do Conciacutelio de Trento
Page 9: Revelacao e Tradicao-Joseph Ratzinger (Bom Ler)

histoacuteria dos homens natildeo consta de fatos mortos mas de fatos cujo sentido representa um elemento importante em cada conjuntura histoacuterica

Natildeo existe nenhuma relaccedilatildeo objetiva de um objeto em particular ou de uma frase na vida transcendental do homem aberto para Deus para o Deus trino e eterno O que eacute mais e o que fundamenta todos os dogmas da Feacute como condiccedilatildeo mesma de sua possibilidade e antes de tudo o que os faz real palavra de Deus eacute o seguinte o horizonte da vida sobrenatural ou a luz da Feacute em si mesma - como diriacuteamos em linguagem tradicional e simples - pressupotildee que se aceitem e se valorizem as palavras da Tradiccedilatildeo

Com tudo isto ndash acentuemo-lo mais uma vez ndash natildeo estamos dizendo que esta transcendental e aprioriacutestica abertura do homem para o Deus da vida eterna e da participaccedilatildeo absoluta possa ser em si mesma ldquoanistoacutericardquo nem que conduza a uma desordem miacutestica que consistiria numa introspecccedilatildeo individualiacutestica alienada da histoacuteria Ao contraacuterio Ela se completa necessariamente na histoacuteria do agir e do pensar do homem E pode fazecirc-lo explicitamente embora de maneira de todo anocircnima Assim sendo nunca existe uma histoacuteria da Revelaccedilatildeo transcendental para um particular soacute Ela eacute individual e coletiva Naturalmente tal histoacuteria em concreto nunca eacute a histoacuteria da Revelaccedilatildeo inteiramente pura em si Ela se daacute em cada um sempre em indissoluacutevel simbiose com o erro com falsas interpretaccedilotildees com a [9] culpa com os abusos Ela eacute histoacuteria justa e pecadora uma vez que o homem eacute simul iustus et peccator estando a histoacuteria da culpa e a da salvaccedilatildeo definitivamente ligadas ateacute ao dia do juiacutezo final

Isto natildeo exclui a existecircncia de uma autecircntica histoacuteria da Revelaccedilatildeo na histoacuteria geral da humanidade Tanto que para o cristatildeo por exemplo uma diacriacutetica distinccedilatildeo na histoacuteria veterotestamentaacuteria entre autecircntica histoacuteria da Revelaccedilatildeo e falsa histoacuteria da religiatildeo soacute eacute possiacutevel tomando-se como criteacuterio a Cristo Tal distinccedilatildeo natildeo eacute possiacutevel partindo-se apenas dos criteacuterios fornecidos pelo Antigo Testamento Com efeito a Sagrada Escritura tem somente a Cristo como regra interna e externa e como norma de sua hermenecircutica Daiacute resulta que a Escritura deve ser considerada pelo cristatildeo como verdadeira histoacuteria da Revelaccedilatildeo do Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo1

Deduzir a ideacuteia da Revelaccedilatildeo da Palavra de Deus oral e escrita eacute atingir o lado transcendental da proacutepria Revelaccedilatildeo Eacute buscar um criteacuterio no cacircnon da Escritura colocando a Palavra de Deus oral e escrita antes de tudo na sua aceitaccedilatildeo pela Feacute interna e gratuita Eacute ldquodesmitologizarrdquo a mensagem externa da feacute em sua formalidade transcendental A histoacuteria da religiatildeo eacute a parte da histoacuteria humana em que a natureza teoloacutegica do homem se realiza tematicamente e efetivamente como em toda histoacuteria Daiacute resulta que a histoacuteria da religiatildeo eacute simultaneamente duas coisas eacute a parte mais expliacutecita da histoacuteria da Revelaccedilatildeo e tambeacutem o lugar espiritual (der geistige Ort) em que as falsas interpretaccedilotildees da experiecircncia transcendental de Deus se manifestam de modo mais notoacuterio e levam agraves piores consequumlecircncias A supersticcedilatildeo opotildee-se nitidamente agrave sua natureza Mas ela eacute ao [10] mesmo tempo estas duas coisas E sempre numa ambiguumlidade de sentido que natildeo conseguimos solucionar

1 Sobre a diferenccedila entre a histoacuteria da Revelaccedilatildeo extra-biacuteblica e a veterotestamentaacuteria (que eacute tambeacutem um pressuposto daquela) cf K RAHNER Schriften zur Theologie V (Einsiedeln 1964) p136-158 principalmente p 148 e 153

Deivide
Nota
Parei aqui

Na teologia escolaacutestica catoacutelica nos uacuteltimos seacuteculos em contraste com a teologia medieval pouco ou nada se diz sobre o portador do testemunho da Revelaccedilatildeo aquele que a apresenta atraveacutes do milagre aos homens chamados a crer Refiro-me agrave Revelaccedilatildeo presente no seu portador que eacute o proacuteprio Profeta Do que antes expusemos concluir-se-aacute que a teologia dos preacircmbulos e a da feacute satildeo idecircnticas Por isso tem razatildeo a teologia fundamental quando frequumlentemente trata da analysis fidei em seu acircmbito proacuteprio supondo-se que ela o faccedila considerando a feacute e a aceitaccedilatildeo da Revelaccedilatildeo em sua unidade fundamental O aspecto transcendental da aceitaccedilatildeo da Revelaccedilatildeo e a Feacute satildeo a mesma coisa fundam-se ambas na constituiccedilatildeo do homem gratuitamente marcada pela participaccedilatildeo ontoloacutegica e pelo compromisso livre do homem com este aspecto existencial do ser

A ldquodesmitologizaccedilatildeordquo (Entmythologisierungsfrage) para a teologia catoacutelica concretiza-se e resume-se na capacidade de cognoscibilidade do ldquomilagrerdquo Daiacute perguntar-se eacute possiacutevel uma autecircntica experiecircncia transcendental de Deus jaacute que isto seria como que um compartilhar do imparticipaacutevel (Schon-immer-heim- Univermittelten-Sein) Fundamentalmente natildeo eacute possiacutevel nem eacute necessaacuterio estabelecer uma distinccedilatildeo adequada entre a mediaccedilatildeo do factum brutum (durch das factum brutum) da chamada realidade objetiva e a que se daacute atraveacutes de sua clara explicaccedilatildeo A mediaccedilatildeo (Vermittlung) baseia sua uacuteltima verdade no mediado (im Vermittelten) Portanto a ldquodesmitologizaccedilatildeordquo e a relaccedilatildeo entre a mediaccedilatildeo e o mediado (Vermittlung-Vermittelte) fundamentam-se na diferenccedila e na unidade ontoloacutegica dos aspectos categorial e transcendental e tambeacutem na diferenccedila e na indissoluacutevel unidade entre a histoacuteria e seu significado Esta mediaccedilatildeo enquanto histoacuterica eacute sempre uma histoacuteria com-os-homens ou no sentido mais profundo da palavra uma [11] histoacuteria ldquoeclesialrdquo Eacute portanto tambeacutem um compromisso com a feacute da comunidade dos fieacuteis e da Igreja feacute esta que na comunidade e em cada indiviacuteduo envolve sempre a uniatildeo de sinais e de verdade como na palavra do Sacramento e no Logos Encarnado onde estes dois elementos se encontram inseparaacuteveis mas natildeo se confundem sendo a sua associaccedilatildeo independente do alvitre dos homens

Partindo dessas premissas pode-se entender o que seja a fides implicita agrave qual ateacute hoje os teoacutelogos natildeo deram o destaque devido Fundamentalmente a feacute seja qual for envolve a aceitaccedilatildeo do sinal Soacute eacute feacute verdadeira se assumir o sinal mediante o inefaacutevel misteacuterio da uniatildeo do Deus que se daacute a si mesmo em participaccedilatildeo Soacute eacute feacute verdadeira quando entende a mediaccedilatildeo categorial como presenccedila de sinais (Zeichenhaftigkeit) como se realiza na proacutepria Igreja Assim como a Revelaccedilatildeo natildeo elimina a obscuridade do sacrossanto misteacuterio de Deus antes o cristatildeo amando e adorando a aceita assim tambeacutem o ldquocaraacuteter impliacutecitordquo (Implizitaumlt) da Revelaccedilatildeo e da feacute pertencem agrave sua proacutepria natureza Esta ldquoimplicituderdquo natildeo eacute portanto um elemento que soacute se daria quando as pessoas ldquoincultasrdquo ou ignorantes ouvem a Revelaccedilatildeo e crecircem

Agora podemos entender melhor tambeacutem um conhecido fenocircmeno religioso a tendecircncia a se reduzir o dogma e a religiatildeo a um nuacutecleo de verdades essenciais A unidade existente entre os elementos categorial e transcendental existe tambeacutem na Religiatildeo Tambeacutem esta eacute una e uacutenica E insubstituiacutevel por qualquer outra Devemos dizer tambeacutem que o Cristianismo considerado como religiatildeo universal e absoluta e natildeo apenas como particular alianccedila de Deus com determinado povo natildeo pode deixar de reconhecer a Cristo como Mediador e como Salvador Cristo com efeito por sua

corporeidade e espiritualidade integra em si relaciona e torna legiacutetima toda mediaccedilatildeo possiacutevel no acircmbito do mundo das realidades Assim ldquonadardquo existe que [12] exclua este poder de mediaccedilatildeo Ele existe na palavra no sinal lituacutergico na comunidade eclesial no ofiacutecio na imagem em suma ateacute mesmo nas coisas profanas Natildeo obstante a pluralidade e diversidade desta mediaccedilatildeo pode acontecer que em diferentes eacutepocas e lugares de acordo com os desiacutegnios da graccedila mesmo no Novo Testamento a obrigatoriedade e cognoscibilidade da uacutenica mediaccedilatildeo tenha a sua histoacuteria peculiar Tal histoacuteria da Revelaccedilatildeo tornada definitiva em Cristo no acircmbito do uacuteltimo e eterno ldquoeatildeordquo pode tambeacutem conforme disposiccedilatildeo divina refletir-se na traacutegica histoacuteria da Cristandade dividida por uma cisatildeo em que transparece a pluralidade das muitas mediaccedilotildees da uacutenica Revelaccedilatildeo Esta divisatildeo eacute para noacutes uma censura Contudo serve-nos tambeacutem de instrumento da graccedila de Deus

A distinccedilatildeo entre Revelaccedilatildeo transcendental e a categorial-histoacuterica aplica-se tambeacutem agrave feacute Daiacute novas luzes para se entender melhor o problema da credulidade enquanto distinta da feacute e intimamente relacionada com ela Quando se considera a precaacuteria descriccedilatildeo da feacute elaborada pelos teoacutelogos vecirc-se que seu caraacuteter auditivo (ex auditu) eacute geralmente proposto de modo aposterioriacutestico e empiacuterico O endereccedilamento da feacute ao ouvinte aparece entatildeo como se da parte deste soacute houvesse uma potecircncia formal para assumir certas proposiccedilotildees verdadeiras sem as investigar devendo apenas aceitaacute-las em sua formulaccedilatildeo exata irrecusaacutevel e fixa A potecircncia aprioriacutestica da feacute ou a credulidade quase natildeo eacute levada em consideraccedilatildeo na teologia catoacutelica Esta credulidade como capacidade aprioriacutestica de crer natildeo deve ser tida na conta de uma potecircncia igual agraves outras uma espeacutecie de sentido de ldquoexigecircnciardquo ou coisa parecida Eacute antes o lado transcendental da Revelaccedilatildeo a potecircncia aprioriacutestica que tem o homem ser transcendental para a comunhatildeo com Deus na graccedila fundada na proacutepria abertura de Deus para se comunicar com a criatura Ambas estas coisas devem ser consideradas em sentido ontoloacutegico natildeo em sentido ocircntico

[13] Toda anaacutelise da feacute catoacutelica apresenta a ldquoautoridade de Deusrdquo como o ldquoobjeto formalrdquo ou o ldquomotivordquo uacuteltimo da feacute Chega-se assim entretanto a um impasse intransponiacutevel Isto porque se considera esta ldquoautoridaderdquo como elemento categorial e aprioriacutestico limitado pelo horizonte do conhecimento humano que a feacute tem que superar para que a Palavra permaneccedila sendo realmente Palavra divina e natildeo seja rebaixada ao niacutevel meramente criatural Se poreacutem na Revelaccedilatildeo e na feacute o proacuteprio Deus autocomunicando-se eacute o objeto crido e o princiacutepio aprioriacutestico de crer se a loacutegica da feacute natildeo eacute uma categoria aprendida de fora mas ndash do mesmo modo que a loacutegica natural ndash eacute a proacutepria estrutura ontoloacutegica e interna do ato de feacute se a mensagem exterior da feacute natildeo eacute o seu motivo aposterioriacutestico mas sua razatildeo aprioriacutestica ndash entatildeo todo este problema perde o seu sentido Assim se compreenderaacute que um falso ato material de feacute deixa de ter um objeto formal meramente aprioriacutestico e pode vir a ser um ato de feacute autecircntico

Somos forccedilados a interromper aqui estas observaccedilotildees Em tudo o que dissemos pudemos apenas indicar algumas perspectivas de soluccedilatildeo de um problema que desde os tempos do Modernismo eacute atual mas que contudo tem sido de certo modo postergado Mesmo por este pequeno exemplo ao qual poderiacuteamos acrescentar o de muitos outros problemas teoloacutegicos ainda natildeo solucionados vemos como custosa e lentamente avanccedila o trabalho teoloacutegico Eacute necessaacuterio ter paciecircncia e envidar esforccedilos perseverantes

Necessaacuterio eacute ainda admitir-se que a teologia natildeo cria a feacute no cristatildeo Ele eacute apenas chamado a pocircr-se a serviccedilo da feacute Da feacute hoje

Ao exprimir eu agrave ilustre Faculdade Catoacutelica de Teologia da Universidade de Munster o meu penhorado e cordial agradecimento pela distinccedilatildeo que me outorgou faccedilo-o com a consciecircncia de que tambeacutem os operaacuterios que realizam a construccedilatildeo da teologia trabalham em vatildeo se o Senhor natildeo cooperar com eles Noacutes [14] devemos trabalhar enquanto eacute dia Toda theologia mentis eacute apenas um auxiacutelio para a theologia cordis et vitaelig Enfim em toda theologia a rigor soacute um caminho se abre o caminho que se perde no segredo de Deus misteacuterio impenetraacutevel que todavia se potildee ao nosso alcance

Joseph Ratzinger

EXAME DO PROBLEMA DO CONCEITO DE TRADICcedilAtildeO

PRIMEIRA PARTE

Revelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeo

Ensaio de anaacutelise do conceito de Tradiccedilatildeo

I ndash Posiccedilatildeo do Problema

[15] O modo como Cristo Palavra expressa da Revelaccedilatildeo permanece presente na Histoacuteria e vai ao encontro dos homens pertence agravequelas questotildees fundamentais em torno das quais se dividiu a Cristandade ocidental no seacuteculo da Reforma A luta prende-se agrave ideacuteia de ldquoTradiccedilatildeordquo pela qual a Igreja catoacutelica procurou exprimir certa forma de comunicaccedilatildeo da Revelaccedilatildeo ao lado da outra contida na Sagrada Escritura Isto com o fim de desfazer um duplo protesto A Tradiccedilatildeo designava primeiro as chamadas consuetudines ecclesiaelig tais como a santificaccedilatildeo do domingo a oraccedilatildeo voltada para o Oriente o costume de jejuar as vaacuterias becircnccedilatildeos e consagraccedilotildees e outras praacuteticas semelhantes em vigor na piedade dos fieacuteis ao tempo da baixa Idade Meacutedia Tais praacuteticas ora nobres ora ridiacuteculas embora transformassem a Igreja numa espeacutecie de casa assombrada cheia de acircngulos e cantos justificavam-se sob o tiacutetulo de ldquotradiccedilatildeordquo e legitimavam-se como parte essencial da vida cristatilde1

Lutero a quem a simplicidade do Evangelho como urna forccedila explosiva tinha sobremodo impressionado preferiu agrave luz de sua [16] ideacuteia de Deus juiz misericordioso natildeo ver na Tradiccedilatildeo nada mais do que ninharias com as quais a humanidade se ilude e aparentemente se consola buscando uma evasatildeo ante o abuso da proacutepria existecircncia Ainda mais ele viu na Tradiccedilatildeo o retorno da Lei o predomiacutenio do arbiacutetrio humano sobre a palavra de Deus abuso contra o qual Paulo protestara com tanta veemecircncia e que agora de novo se implantara na Igreja A Confessio Augustana ocupou-se tambeacutem destas coisas destacando uma seacuterie de leis cuja violaccedilatildeo segundo a doutrina corrente era tida como pecado mortal a proibiccedilatildeo do trabalho manual aos domingos e dias santos a interrupccedilatildeo das preces canocircnicas diaacuterias os preceitos do jejum etc E Lutero prosseguia ldquoDe onde tiram os Bispos o direito e o poder de imporem tais prescriccedilotildees aos cristatildeos e de ilaquearem assim as consciecircncias Pedro no capiacutetulo 15 dos Atos dos Apoacutestolos proiacutebe se imponha o jugo sobre os ombros dos disciacutepulos E Paulo diz aos Coriacutentios que a autoridade lhe foi dada para salvar e natildeo para condenar Por que entatildeo multiplicam assim os pecados com tais imposiccedilotildeeshellip Se os Bispos tecircm poder de sobrecarregarem as igrejas com inuacutemeras prescriccedilotildees e de onerar as consciecircncias por que entatildeo a Sagrada Escritura proiacutebe tatildeo frequumlentemente que se faccedilam mandamentos

1 Eacute o que se vecirc claramente pela lista de traditiones feitas no tempo do Conciacutelio de Trento Cf a nota 44 da segunda parte desse livro

humanos e se escravizem os homens Porque chama ela a estas coisas de doutrina de Satanaacutes Foi acaso em vatildeo que o Espiacuterito Santo fez tais advertecircnciasrdquo 2

Lutero identificou aqui a traditio com os abusus Tradiccedilatildeo segundo ele eacute lei humana pela qual o homem se esconde de Deus e pior ainda se levanta contra Ele para tomar nas proacuteprias matildeos a tarefa de sua salvaccedilatildeo em vez de esperaacute-la da libeacuterrima graccedila do Senhor A Tradiccedilatildeo assim entendida como Lei eacute contraposta agrave mensagem da graccedila ldquoDevemos aceitar cada [17] um dos artigos do Evangelho para alcanccedilarmos a graccedila de Deus sem meacuterito nosso atraveacutes da feacute em Jesus Cristo e natildeo pretender merececirc-la mediante praacuteticas do culto inventado pelos homensrdquo3

O problema da Tradiccedilatildeo tornou-se ainda mais agudo devido a um segundo aspecto que de resto natildeo conduziu a nenhum resultado positivo Descobrindo o Evangelho teve Lutero igualmente a impressatildeo de libertar a Palavra de Deus da pesada cadeia do Magisteacuterio eclesiaacutestico que se teria apossado desta Palavra e natildeo mais a entendia em seu verdadeiro sentido empregando-a antes a seu bel-prazer A ideacuteia de que a palavra divina aprisionada na Igreja catoacutelica agrave autoridade do Magisteacuterio ficou privada de sua forccedila viva eacute sempre repetida nos escritos dos Reformadores Melanchton poreacutem fecirc-lo talvez de um modo mais humano e flexiacutevel quando apocircs com reservas a sua assinatura aos artigos luteranos de Esmalca ldquo quanto ao Papa acho eu que jaacute que ele quis abandonar o Evangelho devemos noacutes de nossa parte tolerar (e admitir) para o bem da paz e da unidade a sua superioridade sobre os Bispos superioridade esta que ele possui iure humanordquo 4

Este estado de coisas impregnou outrossim a ideacuteia de Igreja da Confessio Augustana uma vez que aiacute se diz que a Igreja eacute a congregatio sanctorum in qua Evangelium pure docetur et recte administrantur Sacramenta5 Assim a Igreja eacute marcada por duplo aspecto pela pureza da doutrina e pela administraccedilatildeo legiacutetima dos Sacramentos Nem uma palavra sobre o Magisteacuterio Na realidade para a elaboraccedilatildeo do conceito de Igreja este silecircncio da CA natildeo eacute menos importante do que o que ela aiacute diz Eacute um silecircncio evidentemente intencional e denuncia a oposiccedilatildeo dos Reformadores agrave concepccedilatildeo catoacutelica de Igreja [18] entatildeo vigente e ateacute hoje conservada Esta consta de trecircs elementos a fides correspondente ao pure docere a communio que corresponde ao sacramenta e a auctoritas6 O Magisteacuterio aparece aqui como criteacuterio da palavra Eacute o seu fiador Segundo Melanchton daacute-se o contraacuterio a palavra eacute que eacute o criteacuterio do Magisteacuterio Este deve em uacuteltima anaacutelise ser provado pela palavra e pode consequumlentemente ser negado A palavra eacute auto-suficiente e paira sobre o Magisteacuterio como uma grandeza autocircnoma Talvez nesta inversatildeo de relaccedilotildees eacute que estaacute propriamente o contraste entre o conceito catoacutelico e o protestante de Igreja Contradiccedilatildeo paralela se daacute em torno da ideacuteia de Tradiccedilatildeo Com efeito a negaccedilatildeo do Magisteacuterio como criteacuterio da palavra significa a reduccedilatildeo da palavra de Deus agrave Escritura que seraacute entatildeo o

2Art 28 39-42 in Die Bekenntnisschriften der evangelisch lutherischen Kirche Gotinga 1952 p126 3 Art 28 52 Op cit p129 4 Op cit p463 5 Art 7 1 paacuteg 61 6 Sobre este ponto e o seguinte cf J RATZINGER ldquoDas geistliche Amt und die Einheit der Kircherdquo in Catholica 17 (1963) p 165-179

uacutenico sustentaacuteculo autocircnomo e autecircntico da palavra natildeo admitindo a Tradiccedilatildeo como uma grandeza em si

O Conciacutelio de Trento em seu estudo sobre a Tradiccedilatildeo teve diante dos olhos os dois pontos de vista contraacuterios e procurou formular sua resposta levando ambos em consideraccedilatildeo Eacute por isso conveniente analisarmos como estas duas posiccedilotildees se inter-relacionam em face da equiparaccedilatildeo feita por Lutero entre a Traditio e os abusus Em outros termos como os Padres conciliares se colocam diante do dilema dever-se-ia responder aos ataques de Lutero diretamente com uma definiccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo Ou antes de tudo com a reformatio a coerccedilatildeo dos abusus7

No tocante agrave doutrina o Conciacutelio refutou ex professo a censura dos Reformadores sustentando que a palavra natildeo eacute uma realidade autocircnoma pairando acima da Igreja Ela eacute dada pelo [19] Senhor agrave Igreja e natildeo entregue ao capricho dos homens Permanece justamente por isso nas Suas matildeos subtraindo-se ao alcance do alvitre humano Na visatildeo dos Padres de Trento deve no fundo ter parecido uma falta de confianccedila o terem os homens receio da palavra escrita entregue agrave Igreja como se a Igreja pudesse abusar dela Como se se pudesse apelar para a palavra da Revelaccedilatildeo contra a Igreja Estava-se inquestionavelmente certo de que o Senhor que instituiu a Igreja como Seu Corpo haveria de se empenhar em tutelaacute-la contra o perigo de abusar de Sua palavra

Hoje decorridos quatro seacuteculos desde a Reforma podemos confessar que na oposiccedilatildeo que dividia entre si Lutero e o Conciacutelio de Trento tanto depois como antes o dilema que dilacerou a Cristandade ocidental de certo modo jaacute desapareceu Vecirc-se isto pela troca de correspondecircncia entre Harnack e Peterson Peterson ao agradecer o tratado de Harnack Das Alte Testament in den Paulinischen Briefen und in den Paulinischen Gemeiden observou que este em seu cotejo da Escritura com a exegese biacuteblica tinha adotado natildeo o princiacutepio protestante mas o catoacutelico Escreveu Harnack ldquoDizer que o chamado lsquoprinciacutepio formalrsquo do Protestantismo primitivo eacute uma impossibilidade criacutetica e que ao contraacuterio o princiacutepio catoacutelico eacute formalmente o melhor eacute um truiacutesmo Materialmente poreacutem o princiacutepio catoacutelico da Tradiccedilatildeo opotildee-se agrave Biacuteblia muito mais diretamente (As tradiccedilotildees satildeo como ervas daninhas a serem cortadas pela tesoura do Magisteacuterio) A melhor fonte eacute o Novo Testamentordquo 8

Nesta formulaccedilatildeo de certo modo geneacuterica e simplista e na oposiccedilatildeo estabelecida entre os aspectos material e formal vem de novo agrave tona o antigo dilema poder-se-aacute confiar a palavra agrave Igreja sem temor de que ela sob a tesoura do Magisteacuterio ou [20] envolta no mato selvagem do sensus fidelium perca a sua forccedila proacutepria e sua vitalidade Esta eacute a pergunta que os Protestantes fazem aos Catoacutelicos Poder-se-aacute aceitar a autonomia da palavra sem com isto ser esta exposta ao arbiacutetrio dos exegetas aos maus tratos por parte dos historiadores e enfim ao completo desamparo Eis como os Catoacutelicos revidam aos Protestantes Com efeito segundo nossa doutrina natildeo eacute a noacutes que compete decidir se queremos ou natildeo confiar a palavra agrave Igreja Foi o proacuteprio Senhor quem lha confiou Note-se entretanto que quando o Catoacutelico encara seriamente este assunto natildeo deixa de considerar o zelo pela pureza da palavra revelada como um dever

7 Ver as notas 41 e 42 na 2ordf parte 8 Citado in E PETERSON Theologische Traktate Munique 1951 p295

da mais alta importacircncia Ele sabe que natildeo cumpre este dever pelo simples fato de apelar para a inerracircncia da Igreja Fazecirc-lo seria menosprezar o sentido da luta de Lutero em favor da Palavra deixando-se de ver nisto uma salutar advertecircncia e um apelo dirigido agraves almas

Natildeo obstante tudo isto a histoacuteria da controveacutersia natildeo se deteve no decurso dos quatro seacuteculos que se seguiram agrave Reforma Duas diferentes tendecircncias se destacam nas relaccedilotildees entre o Protestantismo e o Catolicismo e entre suas respectivas teologias De um lado uma radicalizaccedilatildeo de cada grupo nos proacuteprios pontos de vista Cada grupo a partir de entatildeo fez sua histoacuteria proacutepria e desenvolveu-a em direccedilatildeo oposta um ao outro Por outro lado a distacircncia mantida entre ambos possibilita maior objetividade em seus julgamentos reciacuteprocos Existe finalmente de parte a parte um renovado esforccedilo por superar as fronteiras com vistas a um encontro

Quem entre os Catoacutelicos empreendeu o mais significativo passo para chegar a uma visatildeo nova do problema da Tradiccedilatildeo mediante a superaccedilatildeo de posiccedilotildees unilaterais e anti-reformistas foi em nossos dias o teoacutelogo dogmaacutetico de Tubinga Josef Rupert Geiselmann Seus esforccedilos foram frutuosos fazendo-se sentir a sua influecircncia inclusive nos estudos preparatoacuterios do [21] Conciacutelio e deram agraves incursotildees do Vaticano II nesta aacuterea aquela marcante atualidade que ainda na primeira sessatildeo levou este problema a transcender do ciacuterculo da luta doutrinal entre as vaacuterias escolas teoloacutegicas para se transformar em uma preocupaccedilatildeo de toda a Cristandade catoacutelica9

A tese de Geiselmann eacute conhecida Basta-nos esboccedilaacute-la rapidamente aqui a fim de lanccedilarmos as bases de uma reflexatildeo que procuraraacute aprofundar mais este assunto e talvez dar um modesto passo agrave frente Geiselmann parte de uma interpretaccedilatildeo nova do sentido dado pelo Conciacutelio ao conceito de Tradiccedilatildeo O tridentino estabelecera que a verdade do Evangelho estaacute contida in libris scriptis et sine scripto traditionibus Isto foi e eacute ateacute hoje interpretado como se a Escritura natildeo contivesse toda a veritas evangelii Portanto natildeo eacute possiacutevel admitir-se a sola Scriptura uma vez que uma parte da Revelaccedilatildeo nos eacute transmitida somente pela Tradiccedilatildeo Geiselmann aproveitou a observaccedilatildeo jaacute antes feita por alguns autores de que na primeira redaccedilatildeo do texto focircra adotada a foacutermula segundo a qual a verdade estaria contida partim in libris scriptis partim in sine scripto traditionibus Estaria aqui claramente expressa a doutrina da divisatildeo da verdade revelada em duas fontes (Escritura e Tradiccedilatildeo) O Conciacutelio abandonou a expressatildeo partim ndash partim preferindo usar o simples conectivo et Geiselmann daiacute conclui afastou-se o Conciacutelio da ideacuteia da divisatildeo da verdade em duas fontes diversas Ou pelo menos natildeo a definiu explicitamente E continua o mesmo autor com isto pode tambeacutem o teoacutelogo catoacutelico aceitar a ideacuteia de uma suficiecircncia material da Escritura Pode ainda mesmo permanecendo catoacutelico defender a opiniatildeo de que a Sagrada Escritura eacute suficiente para transmitir-nos a [22] Revelaccedilatildeo Geiselmann admite consequumlentemente que a sola Scriptura pode conceber-se como uma uacutenica fonte

9 Cf R LAURENTIN Lenjeu du Concile Bilan de Ia premiegravere session Paris 1963 p27-45 Y CONGAR Vatican II Le Concile au jour le jour Paris 1963 p63-71 J RATZINGER Die erste Sitzungsperiode des Zweiten Vatikanischen Konzils Colocircnia 1963 p38-50

material da Revelaccedilatildeo Ele crecirc ainda poder mostrar que a tradiccedilatildeo mais forte eacute a favor desta sentenccedila e que o proacuteprio Conciacutelio de Trento se inclina neste sentido10

Eacute faacutecil de se compreender que semelhante tese tenha obtido o apoio de muitos em face das novas possibilidades de encontro entre Catoacutelicos e Evangeacutelicos possibilidades estas que a posiccedilatildeo de Geiselmann parece favorecer11 Que esta tese na realidade constitua um passo consideraacutevel neste sentido parece ser incontestaacutevel Todavia tatildeo logo a analisemos mais de perto em seus fundamentos histoacutericos e reais surge de pronto toda uma seacuterie de dificuldades graves a tornarem impossiacutevel a sua aceitaccedilatildeo

Sobre o aspecto histoacuterico deste problema apresentaremos vaacuterias observaccedilotildees na segunda parte deste nosso opuacutesculo Entrementes consideremos de imediato o lado praacutetico deste assunto Seu exame provoca inicialmente esta pergunta que significa propriamente a expressatildeo ldquosuficiecircncia da Escriturardquo Geiselmann como teoacutelogo catoacutelico que eacute natildeo deixa de sustentar os nossos dogmas Ora nenhum dogma catoacutelico eacute provado sola Scriptura Nem os grandes dogmas primitivos sustentados pelo consensus quinquesaeligcularis nem tampouco o de 1854 e [23] menos ainda o de 1950 Em que sentido entatildeo se pode falar em suficiecircncia da Escritura Natildeo ameaccedilaraacute esta converter-se em perigosa fraude pela qual nos enganamos primeiramente a noacutes proacuteprios e em seguida tambeacutem enganamos aos outros (Ou natildeo seratildeo talvez justamente eles que natildeo se enganam) Ou entatildeo pelo menos para sustentarmos de um lado que a Escritura sozinha conteacutem toda a verdade da Revelaccedilatildeo e de outro lado que o dogma de 1950 eacute verdade revelada natildeo deveremos noacutes refugiar-nos em um conceito tatildeo largo de suficiecircncia que na verdade esta palavra venha a perder todo o seu significado

Com isto abre-se a segunda (que de fato eacute a primeira) questatildeo decisiva a saber seraacute verdade que os debates em torno da ideacuteia da suficiecircncia da Escritura resolveram mesmo o problema do conceito de Tradiccedilatildeo Ou ao contraacuterio natildeo estaremos noacutes aqui diante de um problema de raiacutezes muito mais profundas

Nossas observaccedilotildees introdutoacuterias devem ter deixado claro que esta uacuteltima pergunta deve sem duacutevida nenhuma ser respondida afirmativamente A questatildeo da suficiecircncia da Escritura eacute apenas um problema secundaacuterio no acircmbito da distinccedilatildeo muito mais importante que foi jaacute antes apontada por noacutes ao tratarmos dos conceitos abusus e auctoritas e que gira em torno do nexo entre a autoridade da Igreja e a autoridade da Sagrada Escritura Da compreensatildeo disto depende tudo o mais

Para irmos mais adiante torna-se necessaacuterio analisarmos profundamente o assunto natildeo para nos determos no exame dos conceitos tatildeo relevantes de suficiecircncia ou insuficiecircncia da Escritura mas antes para abordarmos em seu tudo o vasto problema da Palavra revelada e presente no coraccedilatildeo dos fieacuteis Torna-se evidente entatildeo que agrave luz das fontes positivas a Escritura e a Tradiccedilatildeo devem ser postas em relaccedilatildeo tatildeo iacutentima que da

10 Ver sobretudo a obra de J R GEISELMANN Die Heilige Schrift und die Tradition Friburgo 1962 principalmente as p91-107274-282 Entre os trabalhos anteriores escritos por Geiselmann sobre o mesmo tema eacute de particular importacircncia o seguinte Das Konzil von Trient uumlber das Verhaumlltnis der Heiligen Schrift und der nichtgeschriebenen Traditionen in M SCHMAUS Die muumlndliche Uumlberlieterung Munique 1957 p 123-206 11 Uma lista de todos os autores que mais concordaram com Geiselmann eacute fornecida por H KUumlNG em sua tese ldquoKarl Barths Lehre vom Wort Gottes als Frage an die katholische Theologierdquo in Einsicht und Glaube publicado por J RATZINGER-H FRIES Friburgo 1963 p 105 nota 25

fonte interna (a Revelaccedilatildeo) brote a pa1avra de Deus viva sob aquela dupla formalidade A Escritura e a Tradiccedilatildeo natildeo podem [24] ser entendidas uma sem a outra no sentido que ambas tecircm agrave luz da feacute O problema ldquoEscritura e Tradiccedilatildeordquo permaneceraacute insoluacutevel enquanto natildeo for reduzido a uma soacute questatildeo a saber a questatildeo ldquoRevelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeordquo e inserida enfim no amplo contexto a que pertence

Eu gostaria de nas paacuteginas seguintes sem entrar em todos os detalhes tentar desenvolver em forma de teses e de maneira positiva o conceito de Tradiccedilatildeo partindo de sua natureza iacutentima com a esperanccedila de que nele descubramos uma parte da resposta aos anseios dos Reformadores Desta maneira toda esta anaacutelise serviraacute de contribuiccedilatildeo para o diaacutelogo interconfessional cuja necessidade tanto os Catoacutelicos como os Protestantes vecircm proclamando de maneira cada vez mais insistente

II - Teses sobre a relaccedilatildeo entre a Revelaccedilatildeo e a Tradiccedilatildeo

1 A Revelaccedilatildeo e a Escritura A primeira tese em aditamento ao conceito patriacutestico de Escritura e Revelaccedilatildeo

poderia enunciar-se nos seguintes termos o fato de existir uma ldquoTradiccedilatildeordquo repousa antes de tudo na diferenccedila que permeia entre estas duas realidades ldquoRevelaccedilatildeordquo e ldquoEscriturardquo A Revelaccedilatildeo exprime propriamente o falar e o agir de Deus em relaccedilatildeo aos homens Designa uma realidade expressa pela Escritura sem ser contudo a proacutepria Escritura A Revelaccedilatildeo por conseguinte ultrapassa a Escritura na mesma medida em que a realidade ultrapassa a sua expressatildeo escrita12 Poder-se-ia [25] tambeacutem dizer que a Escritura eacute o princiacutepio material da Revelaccedilatildeo (Talvez princiacutepio uacutenico talvez um princiacutepio entre outros isto seraacute esclarecido mais adiante) Ela natildeo eacute poreacutem a proacutepria Revelaccedilatildeo Isto era aliaacutes bem sabido dos proacuteprios Reformadores mas comeccedilou visivelmente a ser esquecido no aceso da controveacutersia entre a teologia catoacutelica poacutes-tridentina e a ortodoxia protestante13 Em nosso seacuteculo foram justamente os teoacutelogos evangeacutelicos Barth e Brunner que redescobriram este fato de todo evidente para a teologia patriacutestica e medieval14

O que acabamos de afirmar ficaraacute mais claro se partirmos de outro princiacutepio a Escritura pode ser possuiacuteda sem que se possua a Revelaccedilatildeo Isto porque a Revelaccedilatildeo eacute sempre e em primeiro plano uma realidade a realidade onde se encontra a feacute Aquele

12 Esta afirmaccedilatildeo natildeo tem o sentido de que a Escritura seja uma mera e vazia narrativa de realidades a ela exteriores Antes como o que se segue iraacute demonstrar indica que a Revelaccedilatildeo eacute realizada na Palavra jaacute que eacute por meio de palavras que ela se comunica aos homens Contudo a mera presenccedila da palavra ainda natildeo eacute a Revelaccedilatildeo Esta eacute mais do que simples ldquopresenccedilardquo Com o que ficou dito salienta-se a diferenccedila que existe entre a palavra e seu conteuacutedo Esta diferenccedila natildeo exclui o caraacuteter verbal da Revelaccedilatildeo 13 Cf A GLOEGE Schriftprinzips RGG V 1540-1543 onde se encontraraacute a mais completa bibliografia LthK VII 1104-1115 J R GEISELMAN Offenbarung in H FRIES Handbuch zum Begriff der Offenbarung cf M VERENO - R SCHNACKENBURG - HRIES in Theologischer Grundbergriffe II Munique 1963 p242-250 e a bibliografia aiacute citada 14 Cf W H VAN DER POL Das reformatorische Christentum Einsiedeln 1956 p117-192

que natildeo crecirc acha-se como que coberto por um veacuteu o veacuteu de que fala Satildeo Paulo no terceiro capiacutetulo da segunda epiacutestola aos Coriacutentios15 Ele pode ler a Escritura e saber o que nela se conteacutem Pode ateacute mesmo apreender de modo puramente intelectual o que aiacute eacute significado e como suas ideacuteias se inter-relacionam Todavia natildeo possui com isto a Revelaccedilatildeo A Revelaccedilatildeo eacute sobretudo possuiacuteda quando aleacutem da expressatildeo material que a atesta se potildee tambeacutem em praacutetica o seu conteuacutedo interno por meio da vivecircncia da feacute Com efeito de certo modo se inclui tambeacutem na Revelaccedilatildeo o sujeito recipiente sem o qual ela natildeo pode existir Natildeo se pode pocircr a Revelaccedilatildeo no bolso como se faz com [26] um livro Ela eacute uma realidade viva Exige homens vivos que a recebam que sirvam de ldquolugarrdquo de sua presenccedila

Repetindo o que ateacute aqui dissemos podemos afirmar que a Revelaccedilatildeo sobreexcede de fato a Escritura em dois sentidos

a) em sentido ascendente ela atinge sempre como realidade procedente de Deus o agir divino sobre as criaturas

b) como realidade que se daacute ao homem por meio da feacute ela atinge igualmente a Escritura

Desta diferenccedila entre a Escritura e a Revelaccedilatildeo resulta claramente que de todo independentemente da questatildeo se a Escritura eacute ou natildeo eacute a uacutenica fonte material em rigor nunca existe para o cristatildeo a sola Scriptura (Isto como ficou dito era claro em princiacutepio para os grandes Reformadores e comeccedilou a ser esquecido na chamada ortodoxia protestante) A Escritura natildeo eacute a Revelaccedilatildeo Eacute sim em uacuteltima anaacutelise uma parte desta realidade mais ampla

2 Os diferentes sentidos da Escritura

no Antigo e Novo testamento A problemaacutetica cristatilde da Revelaccedilatildeo ou o problema ldquoEscritura e Tradiccedilatildeordquo situa-se

melhor se considerarmos o duplo aspecto da mesma Revelaccedilatildeo no Antigo e no Novo Testamento A este duplo aspecto corresponde tambeacutem um duplo sentido da Escritura Assim como os dois Testamentos como tais se distinguem essencialmente assim tambeacutem devemos dizer que a ldquoEscriturardquo como um fato natildeo eacute repetida duas vezes do mesmo modo Isto aparece muito claro nos livros neotestamentaacuterios Sob a expressatildeo ldquoEscriturardquo designam eles somente o Antigo Testamento Para eles o AT eacute e permanece sendo ldquoa Escriturardquo cujo sentido se aclara mediante sua confirmaccedilatildeo no evento da [27] vinda de Cristo16 Os livros do NT natildeo jogam uma Escritura nova contra uma Escritura antiga Nem potildeem uma simplesmente ao lado da outra Potildeem sim em face da uacutenica Escritura ou seja do Antigo Testamento o Cristo-evento como o espiacuterito que explica a letra Esta concepccedilatildeo fundamental ilumina tambeacutem a forma da feacute mais antiga e a torna por primeiro compreensiacutevel O ldquoJesusrdquo formal eacute o ldquoCristordquo expresso no Antigo Testamento Natildeo eacute outra coisa No Jesus Histoacuterico o Cristo-mensagem do

15 Cf sobre estas reflexotildees o importante artigo (ἀποκαλύπτω de A OEPKE in ThWNT III p565-597 16 Ver sobre este ponto as preciosas conclusotildees de G SCHRENK art γραφή ndash γράμμα in ThWNT I p749-769 e a p767

Antigo Testamento atinge a sua consumaccedilatildeo Eacute a partir do AT que se entende quem eacute Jesus E o que o Testamento Antigo expressa pode ser visto agrave luz do Cristo-evento

Esta ideacuteia aparece em Paulo ao apresentar ele o Antigo e o Novo Testamentos como Gramma e Pneuma isto eacute letra e espiacuterito (2Cor 3 6-18) Ele chama ao Senhor de Pneuma A Escritura explica-o como sendo o seu sentido o seu conteuacutedo verdadeiro e vivo e natildeo apenas literaacuterio Paulo se refere agrave concepccedilatildeo do Novo Testamento apresentada por Jeremias (3133) Natildeo eacute mais necessaacuteria nenhuma Escritura porque a lei estaacute escrita nos coraccedilotildees Jaacute natildeo eacute necessaacuteria nenhuma doutrinaccedilatildeo vinda de fora porque o proacuteprio Deus instrui os homens Joatildeo exprime idecircntico pensamento em seguimento ao decircutero-Isaiacuteas (5413) quando descreve a era inaugurada por Cristo como o tempo no qual todos satildeo doutrinados por Deus mesmo E o sermatildeo de Pedro em Pentecostes transmitido pelos Atos dos Apoacutestolos (2 14-36) desenvolve a mesma ideacuteia tirada de Joel (3 1-5) Em todos estes casos aparece a era instaurada por Cristo como resposta agrave esperanccedila no advento de um tempo futuro que em uacuteltima anaacutelise haveria de tornar supeacuterflua a Escritura graccedilas agrave presenccedila imediata do Divino Mestre na Sua humanidade

Quando se pondera o sentido destas afirmaccedilotildees torna-se claro [28] que ao reduzir-se a ldquoEscriturardquo aos escritos do Antigo Testamento natildeo se estaacute apenas usando uma terminologia antiga que teria sido adotada por falta de escritos propriamente neotestamentaacuterios e que teria perdido seu sentido na segunda metade do seacuteculo segundo com o iniacutecio do cacircnon do Novo Testamento Ao contraacuterio Aqui se expressa uma consciecircncia que se tornaria mais niacutetida a partir da formaccedilatildeo da proacutepria Escritura neotestamentaacuteria muito ao inveacutes de cessar ou de desaparecer

Uma coisa eacute certa a ldquoEscriturardquo na nova ordem da salvaccedilatildeo inaugurada por Cristo toma um lugar distinto do que lhe cabia no Antigo Testamento Com isto pode-se ver ateacute que ponto o Antigo Testamento tem sentido autocircnomo O AT certamente natildeo aparecia desde o comeccedilo como Testamento do Gramma Escritura em sentido proacuteprio como ocorreraacute na pena de Satildeo Paulo17 Por outro lado manifesta-se realmente a partir de Jeremias e do decircutero-Isaiacuteas o anelo pela superaccedilatildeo do Gramma mediante uma nova e imediata comunicaccedilatildeo do Espiacuterito de Deus simultaneamente com a progressiva formaccedilatildeo de um princiacutepio da Escritura que mais e mais a transformou em Lei Lei esta que natildeo tornaria os homens vivos mas sim mortos

Desta maneira na concepccedilatildeo neotestamentaacuteria aparece o Antigo Testamento como ldquoEscriturardquo em sentido proacuteprio Escritura que atinge o seu verdadeiro significado atraveacutes do Cristo-evento pelo fato de ser ela inserida no contexto vivo da realidade de Cristo Se no Novo Testamento de facto a Escritura cresceu natildeo pode mais ter aquele sentido uacuteltimo e exclusivo que lhe competia no Antigo segundo a concepccedilatildeo paulina Ao contraacuterio Ela eacute a chave com que se abre o Antigo Testamento deixando-se banhar na claridade do Cristo-evento Ela eacute tambeacutem a ponte permanente que conduz a uma nova interpretaccedilatildeo biacuteblica agrave luz [29] de Cristo Num caso e noutro a Escritura natildeo pretende de modo nenhum ser autocircnoma nem ser a fonte uacutenica e exclusiva de sua exegese literal Mas soacute pode ter sentido na realidade espiritual de Jesus Cristo que

17 Ver a apreciaccedilatildeo feita por G VON RAD Theologie des Alten Testaments II Munique 1960 p402-424

permanece junto dos seus todos os dias ateacute ao fim do mundo (Mt 28 20) Apoacutes a subida ao Calvaacuterio Cristo veio de novo no Espiacuterito Santo (como narra Satildeo Joatildeo) e pelo Espiacuterito ensinou aos disciacutepulos o que eles entatildeo natildeo podiam ainda entender enquanto o Senhor estava entre eles sob forma visiacutevel (Jo 16 12)

3 Cristo a Revelaccedilatildeo de Deus

A realidade que se daacute como um acontecimento na Revelaccedilatildeo cristatilde natildeo eacute nada

mais nada menos do que o proacuteprio Cristo Cristo eacute a Revelaccedilatildeo em sentido proacuteprio ldquoQuem me vecirc vecirc o Pairdquo diz ele no Evangelho de Satildeo Joatildeo (14 9) Vale portanto dizer que receber a Revelaccedilatildeo eacute penetrar na realidade de Cristo no Cristo-evento Daiacute procede o paradoxo descrito por Satildeo Paulo ao fazer ele um trocadilho com as palavras ldquoCristo em noacutesrdquo e ldquonoacutes em Cristordquo

Neste contexto a anaacutelise de frases isoladas torna-se secundaacuteria de vez que elas satildeo apenas explicaccedilotildees do uacutenico misteacuterio de Cristo Consequumlentemente cai por si mesma a questatildeo da suficiecircncia interna da Escritura tatildeo discutida desde o aparecimento das obras de Geiselmann Deveriacuteamos isto sim perguntar que significa em linguagem cristatilde a suficiecircncia interna da Escritura ldquoSuficienterdquo eacute soacute a realidade do Cristo-evento Esta pode ser explicada materialmente em maior ou menor grau E de maneira nunca definitiva Partindo deste princiacutepio podem existir tambeacutem outras explicaccedilotildees segundo a Escritura quando se aprofunda mais este assunto

Este mesmo tema pode ser considerado sob outro aspecto E ter-se-aacute entatildeo dado um passo a mais para a frente A aceitaccedilatildeo [30] da Revelaccedilatildeo pela qual aplicamos a noacutes o Cristo-evento vem na linguagem da Biacuteblia sob o nome de ldquofeacuterdquo Assim talvez se entenderaacute mais claramente de que maneira no Novo Testamento a feacute significa a ldquoin-habitaccedilatildeordquo de Cristo Se admitirmos que na Escritura a presenccedila da Revelaccedilatildeo tem o mesmo sentido que a presenccedila de Cristo entatildeo teremos de fato dado um passo adiante Ora na Escritura encontramos a presenccedila de Cristo apresentada de duas maneiras Ela aparece de um lado como jaacute vimos identificada com a feacute (Ef 317) na qual cada um encontra Cristo e se adentra nele penetrando no dinamismo de sua forccedila salvadora Por outro lado a feacute se oculta tambeacutem sob a expressatildeo paulina ldquoCorpo de Cristordquo o que quer dizer que a comunidade dos fieacuteis ndash a Igreja ndash funda a presenccedila de Cristo neste mundo Nela Cristo reuacutene os homens e os faz partiacutecipes de sua presenccedila dinacircmica18

Tomadas juntas estas duas noccedilotildees significam o seguinte a feacute eacute a adesatildeo iacutentima agrave presenccedila de Cristo realidade de Cristo presente da qual a Escritura nos daacute testemunho sem contudo se identificar de modo nenhum com ela Daiacute resulta que a presenccedila da Revelaccedilatildeo se relaciona essencialmente com a ldquofeacuterdquo e com a ldquoIgrejardquo realidades estas que como vimos estatildeo estreitamente ligadas entre si

Voltamos assim ao que foi afirmado na primeira tese a saber que a Revelaccedilatildeo sobreexcede a Escritura em duplo sentido em relaccedilatildeo a Deus por seu lado ascendente e em relaccedilatildeo tambeacutem ao homem que a recebe Esta asserccedilatildeo que a princiacutepio deixamos

18 H SCHLIER ldquoDie Kirche nach dem Brief an die Epheserrdquo in Die Zeit der Kirche Friburgo 1962 p159-186

um tanto vaga encontramo-la essencialmente concretizada na realidade objetiva do Cristianismo

4 A essecircncia da Tradiccedilatildeo

[31] A transmissatildeo ao povo de Deus do Cristo-evento que eacute a Revelaccedilatildeo e que tem sua bi-presenccedila na feacute e na Igreja faz-se atraveacutes da pregaccedilatildeo Pregaccedilatildeo eacute a ldquoex-posiccedilatildeordquo (Aus-legung) do duplo aspecto da Revelaccedilatildeo no Antigo e no Novo Testamento E isto de duas maneiras

a) ela eacute a exposiccedilatildeo do Antigo Testamento agrave luz do Cristo-evento e para o Cristo-evento

b) a partir do Pneuma e da condiccedilatildeo presente da Igreja Este uacuteltimo aspecto eacute possiacutevel pois Cristo natildeo estaacute morto Estaacute vivo Natildeo eacute

apenas o Cristo de ontem Eacute tambeacutem e a fortiori o Cristo de hoje e de amanhatilde o Cristo vivo e presente em sua Igreja que eacute seu Corpo e na qual o seu espiacuterito opera

Isto poderaacute ser melhor compreendido se partirmos da essecircncia da Igreja Como nos ensina o Novo Testamento a mensagem de Jesus eacute antes de tudo uma mensagem escatoloacutegica com vistas ao reino de Deus natildeo com vistas agrave Igreja O fato de existir a Igreja natildeo se opotildee a esta mensagem mas haacute na marcha gradativa das revelaccedilotildees de Cristo uma segunda possibilidade Assim a atividade dos Doze depois de Pentecostes aponta natildeo para a Igreja mas para o reino de Deus Informam-nos os Atos dos Apoacutestolos que os Doze natildeo se ocuparam primordialmente em missionar os povos Esforccedilaram-se antes muito mais em converter Israel criando deste modo as condiccedilotildees preacutevias para a implantaccedilatildeo do reino De iniacutecio uma seacuterie de obstaacuteculos histoacutericos entre os quais deveriacuteamos citar antes de tudo o martiacuterio de Estevatildeo o supliacutecio de Tiago e por fim o fato decisivo da prisatildeo e da libertaccedilatildeo de Pedro Tais fatos levaram a comunidade primitiva segundo dizem as fontes a reconhecer como definitivo o malogro do esforccedilo de converter Israel E consequumlentemente forccedilaram os Apoacutestolos a partir em busca dos gentios e a cuidar [32] assim da Igreja e natildeo do reino Eles o fazem segundo se depreende das passagens referidas e principalmente dos esclarecimentos do capiacutetulo 15 dos Atos dos Apoacutestolos como uma nova opccedilatildeo feita sob a accedilatildeo do Espiacuterito Santo Com isso iniciou-se uma nova interpretaccedilatildeo da mensagem de Cristo sobre a qual a Igreja essencialmente repousa19

19 Cf as decisivas conclusotildees de E PETERSON ldquoDie Kircherdquo in Theologische Traktate Munique 1951 p 409-429 H SCHLIER Die Entscheidung fuumlr die Heidenmission in der Urchristenheit Die Zeit der Kirche p 90-107 Parece-me certo que nem a anaacutelise da tradiccedilatildeo sinoacutetica relativa agrave mensagem de Jesus e seu caraacuteter escatoloacutegico nem o estudo da histoacuteria da Igreja primitiva com base no material fornecido pelos Atos dos Apoacutestolos autorizam qualquer outra conexatildeo entre a mensagem do reino e a pregaccedilatildeo da Igreja Daiacute natildeo se segue de modo nenhum ndash como muitas vezes se teme ndash que a cruz seja um acidente secundaacuterio que em rigor poderia ter sido evitado Ao contraacuterio A estrutura da Igreja moldada sobre a cruz eacute fundamental porque aiacute eacute que por primeiro se encontra a confirmaccedilatildeo da importacircncia da liberdade humana de Cristo e da sua Paixatildeo bem como a iacutentima dependecircncia da Igreja para com a Cruz donde ela procede

Este fato que baseia o estabelecimento definitivo da Igreja sobre uma decisatildeo tomada ldquono Espiacuterito Santordquo eacute o fundamento para se afirmar que existe uma interpretaccedilatildeo eclesial do Novo Testamento do mesmo modo que existe uma exegese cristoloacutegica do Antigo Daiacute podermos estabelecer as seguintes teses ou proposiccedilotildees agrave luz da analogia fidei

a) Existe uma teologia veterotestamentaacuteria do Antigo Testamento que o exegeta

deduz de seu conteuacutedo interno e que se desenvolve em uma seacuterie de camadas superpostas Segundo ela os textos antigos devem ser relidos e de novo expostos agrave luz dos novos acontecimentos O fenocircmeno da aplicaccedilatildeo dos textos agraves situaccedilotildees novas do desdobramento da Revelaccedilatildeo mediante nova [33] apresentaccedilatildeo do Antigo Testamento estrutura jaacute de modo essencial o conteuacutedo interno veterotestamentaacuterio20

b) Existe uma teologia neotestamentaacuteria do Antigo Testamento que natildeo coincide com

a referida teologia veterotestamentaacuteria Estaacute contudo estreitamente ligada com ela na unidade da analogia fidei21 Talvez partindo daqui se possa esclarecer o que significa a analogia fidei entre Os dois Testamentos A teologia neotestamentaacuteria do Antigo Testamento natildeo eacute como ficou dito idecircntica agrave teologia histoacuterica veterotestamentaacuteria Ao contraacuterio Re-exposiccedilatildeo feita agrave luz do Cristo-evento ela natildeo procede soacute da mera consideraccedilatildeo histoacuterica do Antigo Testamento Sendo embora em seu pleno conceito uma interpretaccedilatildeo relacionada com o Antigo Testamento contudo nada faz com que ela seja internamente estranha agrave sua essecircncia ainda que soacute de fora o atinja Ela amplia a forma estrutural do Antigo Testamento que assim interpretado revive e cresce

c) Existe uma teologia neotestamentaacuteria do Novo Testamento paralela agrave teologia veterotestamentaacuteria do Antigo Ou seja a teologia que o exegeta como tal pode deduzir do conteuacutedo interno do Novo Testamento eacute tambeacutem esta conhecida e estruturada mediante a aplicaccedilatildeo do Antigo Testamento agraves novas situaccedilotildees

d) Existe uma teologia eclesial do Novo Testamento que noacutes [34] chamamos Dogmaacutetica Ela se relaciona com a teologia neotestamentaacuteria do Novo Testamento do mesmo modo que a teologia neotestamentaacuteria do Antigo se relaciona com a respectiva teologia veterotestamentaacuteria Aquele ldquomaisrdquo (das Mehr) que distingue propriamente a Dogmaacutetica da teologia biacuteblica eacute o que designamos com a palavra Tradiccedilatildeo Aliaacutes tambeacutem aqui devemos salientar que a teologia eclesiaacutestica neotestamentaacuteria pela mesma razatildeo natildeo eacute simplesmente idecircntica agrave teologia neotestamentaacuteria interna e

20 Cf H GROSS Motivtransposition als Form- und Traditionsprinzip im Alten Testament in H VORGRIMLER Exegese und Dogmatik Moguacutencia 1962 p134-152 e a bibliografia aiacute fornecida G v RAD Theologie des Alten Testaments II Munique 1960 p332-339 396-401 21 A diferenccedila entre as duas teologias do Antigo Testamento foi vivamente exposta por R BULTMANN ldquoWeissagung und Erfuumlllungrdquo in Glauben und Verstehen II Tubinga 1952 p162-186 - Sobre as necessaacuterias correccedilotildees a se fazerem para que se torne visiacutevel a base histoacuterica do que a teologia sistemaacutetica denomina ldquoanalogia fideirdquo cf G v RAD op cit p329-424 (entre outras) e principalmente a p 420 nota 25 e a p422 nota 29 Sobre o tema ldquoanalogia fideirdquo em ambos os Testamentos cf tambeacutem E PRZYWARA Alter und Neuer Bund Viena-Munique 1956

histoacuterica do Novo Testamento Ultrapassa-a sem contudo ser-lhe puramente externa Com efeito no Novo Testamento comeccedila jaacute o processo da exposiccedilatildeo pela Igreja das verdades reveladas A teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento processa-se dentro dele proacuteprio como de modo clariacutessimo se percebe na histoacuteria da Revelaccedilatildeo sinoacutetica22

Eacute oportuno fazermos ainda uma pequena observaccedilatildeo se cotejarmos atentamente a teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento com a Dogmaacutetica reconheceremos que se impotildee uma outra distinccedilatildeo A Dogmaacutetica como ciecircncia aleacutem da exposiccedilatildeo eclesiaacutestica do Novo Testamento abrange tambeacutem a teologia particular de cada teoacutelogo Neste caso para se falar com precisatildeo dever-se-ia apresentar somente o proacuteprio dogma como teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento

O que acabamos de referir natildeo passa naturalmente de um esboccedilo que necessitaria em seus pormenores de natildeo poucos esclarecimentos e distinccedilotildees a fim de ser completo No caso presente entretanto damos por suficiente este esboccedilo Resumindo o que ateacute aqui expusemos podemos agora destacar vaacuterias ldquoraiacutezesrdquo da Tradiccedilatildeo e apontar vaacuterias camadas em seu seio [35] lordf raiz a maior amplidatildeo da ldquoTradiccedilatildeordquo em referecircncia agrave ldquoEscriturardquo

2ordf raiz o caraacuteter especiacutefico da Revelaccedilatildeo neotestamentaacuteria como Pneuma em contraste com o Gramma Eacute o que na linguagem de Bultmann se poderia chamar de sua condiccedilatildeo de ldquonatildeo-objetordquo (Nichtobjektiviertbarkeit) A praxe eclesiaacutestica e a teologia medieval expressaram este aspecto ao sobreporem a fides agrave Scriptura isto eacute o dogma como regra de feacute agraves minuacutecias da lei escrita23 O dogma eacute como a chave hermenecircutica da Escritura que em uacuteltima anaacutelise sem o auxiacutelio da hermenecircutica ficaria sendo algo fechado

3ordf raiz o caraacuteter presencial do Cristo-evento e a presenccedila dinacircmica do Espiacuterito de Cristo em seu Corpo a Igreja E consequumlentemente o poder que tem a Igreja de fazer a pregaccedilatildeo do Cristo ontem e hoje pregaccedilatildeo esta cuja fonte se encontra na interpretaccedilatildeo eclesiaacutestica da mensagem do reino transmitida pelos Apoacutestolos

Em conexatildeo com estas trecircs raiacutezes da ideacuteia (ou melhor da realidade) da Tradiccedilatildeo podem distinguir-se na mesma as seguintes camadas

a) Na origem de toda Tradiccedilatildeo estaacute o fato de que o Pai enviou o Seu Filho ao mundo e que o Filho por sua vez se [36] entregou ndash como sinal ndash aos ldquopovosrdquo (παραδίδοται) Esta paraacutedosis original em sua forccedila direta e salvadora

22 Cf por exemplo a rica exposiccedilatildeo de G BORNKMANN Jesus von Nazareth Estutegarte 1956 Sobre a questatildeo aqui estudada cf H SCHLIER Uumlber Sinn und Aufgabe einer Theologie des Neuen Testaments in H VORGRIMLER Exegese und Dogmatik Mainz 1962 p6990 23 O que haacute de melhor sobre este assunto no tocante agrave Patriacutestica seraacute encontrado em HARNACK DG II (1931) p84-116 HARNACK diz na p 87 nota 3 o seguinte ldquoO Cacircnon era de iniacutecio a regra da feacute A Escritura estaacute centrada na verdade Sem duacutevida nenhuma sua autoridade funda-se solidamente no Antigo Testamento e nas palavras do Senhorrdquo ndash Que assim tenha pensado tambeacutem a Idade Meacutedia e que aqui aleacutem da revelatio (da qual falaremos na 2ordf parte deste livro) a fides sobrepondo-se agrave Scriptura estabelece a forma essencial do conceito de Tradiccedilatildeo foi o que tentei demonstrar em meu artigo Wesen und Weisen der auctoritas im Werk des heiligen Bonaventura in Die Kirche und ihre Aumlmter und Staumlnde (Festgabe Kardinals Frings publicado por CORSTEN-FROTZ-LINDEN Colocircnia 1960 p 58-72

prolonga-se na permanente presenccedila de Cristo no σῶμα Χριστοῦ ndash no Seu Corpo a Igreja Assim o misteacuterio integral da presenccedila de Cristo eacute antes de tudo a realidade total transmitida pela Tradiccedilatildeo (fato fundamental e decisivo sempre anterior a todas as explicaccedilotildees particulares mesmo as da Escritura) e reguladora do que deve propriamente ser transmitido

b) A Tradiccedilatildeo existe concretamente como presenccedila na feacute Esta por seu turno como ldquoin-habitaccedilatildeordquo de Cristo precede todas as explicaccedilotildees particulares e frutuosa e viva ldquoexplicita-serdquo (explizierend) atraveacutes dos tempos

c) A Tradiccedilatildeo tem seu oacutergatildeo na plenitude dos poderes da Igreja e portanto naqueles que satildeo os legiacutetimos depositaacuterios destes poderes24

d) A Tradiccedilatildeo exprime-se tambeacutem naquilo que emanado da autoridade da Igreja se tornou regra de feacute (Symbolum fides quaelig) Portanto a questatildeo de se saber se certas proposiccedilotildees foram transmitidas desde o

comeccedilo pela Tradiccedilatildeo ao lado da Escritura ou em outros termos se existe desde o comeccedilo um segundo princiacutepio material e autocircnomo ao lado da Escritura torna-se afinal um problema inteiramente secundaacuterio Talvez lhe devamos responder negativamente

5 A funccedilatildeo da exegese [37] Pelo que ateacute aqui dissemos ficaram esclarecidas quase que exclusivamente

trecircs pontos os limites da letra da Escritura a liberdade do Espiacuterito Santo e a autoridade da Igreja Acontece poreacutem que a exposiccedilatildeo que fizemos abriga ainda um sentido diverso relacionado com a justa preocupaccedilatildeo de Lutero da qual partimos

Se ficou estabelecido que a Revelaccedilatildeo se faz presente atraveacutes da pregaccedilatildeo e se pregaccedilatildeo eacute exposiccedilatildeo da palavra revelada entatildeo pode e deve agora ao que precede acrescentar-se o seguinte a Tradiccedilatildeo eacute essencialmente e sempre uma exposiccedilatildeo Natildeo existe de maneira autocircnoma e sim como explicaccedilatildeo como exposiccedilatildeo ldquorelacionada com a Escriturardquo

Isto vale para a pregaccedilatildeo do proacuteprio Jesus Cristo realizaccedilatildeo plena da Revelaccedilatildeo e sua exposiccedilatildeo feita com autoridade A pregaccedilatildeo de Jesus Cristo natildeo aparece como algo absolutamente novo na Escritura Isto eacute como algo ainda natildeo atestado no Antigo Testamento Ela ensina isto sim a essecircncia do que jaacute estava escrito e lhe confere uma vida nova que o simples exegeta natildeo pode comunicar-lhe

O que vale para a mensagem de Cristo que permanece a mesma sob diferentes modalidades de exposiccedilatildeo vale tambeacutem para a pregaccedilatildeo apostoacutelica e a eclesiaacutestica Como ldquoTradiccedilatildeordquo ela deve em uacuteltima anaacutelise ser uma exposiccedilatildeo ldquosegundo a Escriturardquo a ela sujeita e com ela relacionada Sem duacutevida natildeo eacute ela uma exposiccedilatildeo no 24 Estas ideacuteias natildeo podem ser desenvolvidas mais detalhadamente aqui como seria de desejar uma vez que em rigor estamos procurando apenas fundamentar o conceito de Tradiccedilatildeo Em razatildeo da brevidade que me impus contentei-me apenas nas teses precedentes com explanar o assunto ateacute ao ponto em que ficasse patente a relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a ldquoIgrejardquo (cf as teses 4 e 5) Para se descer a maiores detalhes dever-se-ia analisar tambeacutem o conceito de Igreja que supomos conhecido do leitor Para isto cf a nota 6 onde citamos nosso livro sobre o Ofiacutecio e a unidade da Igreja Encontram-se aiacute algumas observaccedilotildees sobre o assunto de que ora tratamos

sentido de mera interpretaccedilatildeo exegeacutetica Mas sim na autoridade espiritual recebida do Senhor a qual se consuma na existecircncia plena da Igreja em sua feacute em sua vida e em seu culto Contudo ela permanece sendo (mais ainda do que o Cristo-evento em que se funda a Igreja) uma ldquoex-posiccedilatildeordquo (Aus-Legung) comprometida com a Histoacuteria e com a Palavra [38] Exprime-se deste modo a sua ligaccedilatildeo com a accedilatildeo concreta de Deus nesta mesma Histoacuteria e em seu caraacuteter de fato histoacuterico uacutenico (o ἑφάπαξ ldquoo ocorrido uma soacute vezrdquo) A realidade cristatilde da Revelaccedilatildeo eacute tatildeo essencial quanto ldquoeternardquo e definitiva Resulta daiacute a unidade entre o Cristo da Feacute e o Jesus da Histoacuteria o Jesus histoacuterico natildeo eacute senatildeo o Cristo da Feacute ainda que a feacute seja sempre algo mais do que a histoacuteria

Segue-se que do mesmo modo que existe um ofiacutecio de custoacutedia da Revelaccedilatildeo por parte da Igreja ofiacutecio por ela mesma atestado existe tambeacutem um ofiacutecio de custoacutedia da mesma Revelaccedilatildeo por parte da exegese que penetra o sentido literal da Escritura e defende a uniatildeo do Logos com a carne contra qualquer perigo de gnose Existe portanto por assim dizer algo como uma autonomia especiacutefica da Escritura como regra objetiva e sob muitos pontos de vista esclarecedora do Magisteacuterio eclesiaacutestico Esta era sem duacutevida uma exigecircncia legiacutetima de Lutero que ainda natildeo foi devidamente acolhida na Igreja catoacutelica por parte do Magisteacuterio cujos limites internos nem sempre foram claramente entendidos

Dever-se-ia partindo daqui salientar uma dupla criteriologia em se tratando da feacute De um lado haacute o que a Igreja antiga chamou de ldquoregra da feacuterdquo norma reguladora da palavra revelada contida na Escritura e sua exposiccedilatildeo Esta praeligscriptio da posse da Escritura como proacutepria segundo Tertuliano exclui a possibilidade de qualquer uso legiacutetimo da mesma Escritura contra a Igreja Por outro lado haacute tambeacutem o limite da littera Scripturaelig ou do sentido literal historicamente fixaacutevel que de acordo com o que ficou dito natildeo constitui nenhum criteacuterio absoluto ou autocircnomo mas sim somente um criteacuterio relativo no confronto da feacute com a ciecircncia O que na Escritura se pode descobrir quer mediante estudo cientiacutefico quer por simples leitura tem a funccedilatildeo de um criteacuterio real a que deve estar atento inclusive o Magisteacuterio em suas explicaccedilotildees Certamente [39] trata-se entatildeo de elementos sub-componentes da ciecircncia que natildeo podem servir para se julgar a feacute mas nela encontram uma instacircncia criacutetica e tecircm tambeacutem um importante papel a exercer o de zelar pela pureza do ἑφάπαξ de tutelar o conteuacutedo da Revelaccedilatildeo e de defender o dualismo histoacuterico carneespiacuterito (ldquodie Sarx der Geschichterdquo) contra os arbiacutetrios da gnose que tende sempre a impor-se

A reformatio na qual estaacute empenhada a Igreja nesta hora histoacuterica tem um papel relevante a desempenhar Eacute a missatildeo de abrir novas perspectivas para o diaacutelogo tentando assim chegar a uma ldquoreformardquo diferente da do passado que culminou com a divisatildeo no seio da Cristandade ocidental Tal missatildeo se exerceraacute em harmonia com o pleno ofiacutecio de testemunho da Igreja que tira seu direito e sua forccedila da presenccedila do Espiacuterito e de Cristo presente em todos os tempos Pois ele eacute sempre o Cristo de agora com a plenitude de seus direitos e de seus poderes Ele eacute quem daacute legitimidade e vigor ao testemunho singular e definitivo da Escritura que por sua vez encontra seu pleno sentido na singularidade da accedilatildeo histoacuterico-salviacutefica de Jesus Cristo Ele deu ao Pai seu Corpo crucificado e dando-se a si mesmo santificou para sempre os que o receberam (cf Hb 1014 727) Ele eacute o Cristo ontem hoje e sempre (Hb 138)

SEGUNDA PARTE

Explicaccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo segundo o Decreto do Conciacutelio de Trento

Parece que a completa elucidaccedilatildeo das razotildees que levaram agrave substituiccedilatildeo do

partim-partim pelo et e consequumlentemente agrave pesquisa dos dados do debate tridentino e de sua preacute-histoacuteria aparentemente favoraacutevel agrave suficiecircncia material da Escritura [40] simplifica indevidamente este problema fazendo-nos perder de vista os proacuteprios antecedentes do Decreto do Conciacutelio de Trento

1 A concepccedilatildeo pneumatoloacutegica da Tradiccedilatildeo no esquema fundamental do Cardeal Cervini

a) O conteuacutedo Um balanccedilo histoacuterico e detalhado do problema em seu conjunto exigiria uma

pesquisa exaustiva que natildeo reduzisse o seu acircmbito como o fez Geiselmann em seu livro25 Natildeo eacute nossa intenccedilatildeo proceder a um exame minucioso do assunto no presente trabalho Aqui soacute seratildeo tratados alguns pontos do debate tridentino com o fim de ampliarmos mais o horizonte de nossas reflexotildees

Fundamental para a compreensatildeo dos debates em pauta bem como do Decreto definitivo do Conciacutelio parece-me ser o Discurso do Cardeal Legado Cervini datado de 18 de fevereiro de 1546 [41] cujas linhas gerais se patenteiam tanto no Decreto como em outras decisotildees conciliares26

Tem o discurso de Cervini o meacuterito de mostrar as linhas diretrizes do Decreto de maneira mais clara do que aparecem estas na uacuteltima redaccedilatildeo do mesmo onde elas se diluem muito devido a uma seacuterie de variadas implicaccedilotildees Eacute ainda de grande auxiacutelio para o entendimento do referido discurso uma carta dos Cardeais Legados ao Cardeal Alexandre Farnese de 28 de fevereiro de 1546 Esta carta revela conteuacutedo idecircntico ndash eacute certamente inspirada pelo mesmo Cervini ndash e oferece ainda alguns outros

25 Eacute lamentaacutevel que Geiselmann em sua anaacutelise da contribuiccedilatildeo medieval sobre este assunto se tenha apoiado apenas em argumentos de segunda matildeo portanto de valor histoacuterico discutiacutevel Queira o leitor ver minhas observaccedilotildees a este respeito in Theol-prakt Quartalschrift 1963 p224-227 As novas (e temperamentais) invectivas de Geiselmann in TThQu 144 (1964) p 31-69 em nada modificaram a minha posiccedilatildeo de vez que natildeo trazem nenhuma contribuiccedilatildeo vaacutelida ao assunto Precioso ao contraacuterio eacute o trabalho de Y CONGAR La Tradition et les traditionshellip Essai historique Paris 1960 Importante eacute tambeacutem a obra de J BEUMER Die muumlndliche uumlberlieferung als Glaubensquelle Friburgo 1962 A respeito do Conciacutelio de Trento cf sobretudo aleacutem do estudo fundamental de JEDIN o artigo de E ORTIGUES Escriture et Traditions apostoliques au Concilie de Trente in RSR 36 (1949) p 271-299 K D SCHMIDT Studien zur Geschichate des Konzilis von Trient Tubinga 1925 p 152-209 26 O discurso nos foi transmitido em duas redaccedilotildees A primeira mais curta encontra-se nas Atas do Conciacutelio in CT V 11 A segunda faz parte do diaacuterio de Massarelli (Diarium III) in CT I p484 Quanto ao conteuacutedo os dois textos se completam Na anaacutelise que aqui ensaiamos as duas versotildees satildeo comparadas entre si de modo a fazerem um todo Sobre a posiccedilatildeo de Cervini no Conciacutelio cf H JEDIN Geschichte des Konzils von Trient II Friburgo 1957 p38-40 A descriccedilatildeo do desenrolar histoacuterico dos debates acha-se em JEDIN op cit p42-82 e supomo-la conhecida do leitor de vez que serve de base para a anaacutelise teoloacutegica do Decreto tridentino

esclarecimentos Cervini sustenta no citado discurso que existem trecircs princiacutepios e fundamentos de nossa feacute

1) Os livros sagrados escritos sob a inspiraccedilatildeo do Espiacuterito Santo 2) O Evangelho que Nosso Senhor natildeo escreveu mas ensinou oralmente e

implantou nos coraccedilotildees Parte do Evangelho foi escrita mais tarde pelos Evangelistas enquanto muita coisa foi simplesmente confiada aos coraccedilotildees dos fieacuteis

3) Porque o Filho de Deus natildeo ia permanecer sempre entre noacutes enviou ele o Espiacuterito Santo que haveria de revelar os misteacuterios no iacutentimo dos fieacuteis e de ensinar agrave Igreja toda a verdade ateacute ao fim dos tempos27

[43] Numa segunda redaccedilatildeo mais detalhada do discurso estas mesmas ideacuteias satildeo

desenvolvidas mais amplamente Aiacute lemos que a Revelaccedilatildeo se apresentou de modo diferente em diversos tempos

1) Nos Patriarcas cuja feacute eacute atestada na Escritura a que chamamos de Antigo Testamento

2) Em Jesus Cristo que implantou o seu Evangelho natildeo por escrito mas oralmente natildeo in charta mas in corde Das coisas que emanaram de Cristo (quaelig a Cristo emanarunt) algumas foram escritas outras permaneceram nos coraccedilotildees dos homens (quaeligdam in cordibus hominum relicta fuerunt) Todo o Evangelho de Cristo que consta desta dupla modalidade forma (tendo como primeiro princiacutepio o Antigo Testamento) o secundum prindipium fidei nostraelig

3) Daiacute surge o terceiro princiacutepio (tertium autem) porque o Filho de Deus natildeo iria permanecer sempre entre noacutes enviou ele ao mundo o Espiacuterito Santo que haveria de explicar os misteacuterios de Deus e tudo o que fosse ainda obscuro para os homens28 De modo semelhante a citada carta ao Cardeal Farnese fala de dois passos (due

passi) Um eacute que a Revelaccedilatildeo de Nosso Senhor natildeo foi totalmente escrita mas permaneceu em parte contida nos coraccedilotildees dos homens e na Tradiccedilatildeo da Igreja O outro [43] passo consiste em confirmar ldquoquello che egrave suggerito lo Spirito Santo in la Chiesa maxime medianti i concilij doppo lAscensione in cielo del Signorerdquo29

Notamos logo que contrariamente ao que esperaacutevamos natildeo dois mas trecircs satildeo os princiacutepios apontados a Escritura o Evangelho e a Revelaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

27 CT V 11 helliptria esse principia et fundamenta nostrae fidei primum libros sacros secundum esse evangelium quod Christus Dominus Noster non scripsit sed ore docuit et in cordibus illud plantavit cujus evangelii nonnulla evangelistaelig scripto mandarunt multa quoque relicta sunt in cordibus hominum Tertium quia non semper filius Dei corporaliter nobiscum mansurus erat misit Spiritum Sanctum qui in cordibus fidelium secreta Dei revelaret et ecclesiam quotidie et usque consummationem saeligculi doceret omnem veritatem et si quid in mentibus hominum dubii occurrisset declararet 28 CT I 484 Digna de nota eacute ainda a foacutermula contida na paacutegina 48514-16 nihil tamen inter scripturas sacras et apostolicas traditianes differt illaelig enim scriptaelig hae per insinuationem habentur utraeque tamen a Spiritu Sancto eodem modo emanataelig Confira-se com CT V 11 19 ab eodem Spiritu et illos (scilicet libros) et istas (scilicet traditiones) descendisse 29 CT X 373

Eacute portanto necessaacuterio observar que sob o termo ldquoEscriturardquo se entende o Antigo Testamento e que aleacutem deste (que eacute Escritura em sentido proacuteprio) aparece como segundo princiacutepio o Evangelho apresentaccedilatildeo do Cristo-evento O Evangelho por sua vez abrange o que estaacute escrito e o que natildeo estaacute escrito mas sim apenas insculpido no coraccedilatildeo dos crentes Deste modo o segundo princiacutepio representa uma vantagem pneumaacutetica sobre o que estaacute escrito o Evangelho eacute nesta concepccedilatildeo algo diferente da letra (Escritura) e soacute em parte vem escrito (Isto natildeo deve ser entendido no sentido de divisatildeo das verdades da feacute fenocircmeno denunciado ldquocom horrorrdquo por Geiselmann Ao contraacuterio Entenda-se apenas no sentido de diferente grau de dignidade no modo de exprimir-se) Em rigor o Evangelho como tal soacute pode ser escrito em parte se considerarmos a sua essecircncia

Finalmente ndash o que eacute muito de se admirar ndash segue-se como terceiro princiacutepio a accedilatildeo visiacutevel do Espiacuterito Santo em todo o tempo da Igreja

Admitimos portanto que o que noacutes geralmente chamamos de Tradiccedilatildeo natildeo aparece aqui como um soacute princiacutepio Biparte-se antes em dois princiacutepios intimamente ligados o ldquoEvangelhordquo princiacutepio apenas em parte identificaacutevel com a Escritura e a accedilatildeo do Espiacuterito Santo no tempo da Igreja Ademais podemos observar que a Escritura do Novo Testamento natildeo aparece como um princiacutepio ao lado da Revelaccedilatildeo apostoacutelica Muito menos como [44] eacute o nosso caso se apresenta a Escritura neotestamentaacuteria juntamente com a veterotestamentaacuteria como uma grandeza uacutenica uma ldquoEscriturardquo soacute agrave qual se poderia contrapor a ldquoTradiccedilatildeordquo como uma segunda grandeza O Novo Testamento em seu conjunto aparece como um segundo e mais amplo princiacutepio ou seja o Evangelho que como tal se opotildee de um lado ao Antigo Testamento e de outro agrave projeccedilatildeo histoacuterica do tempo da Igreja Sua unidade interna eacute evidentemente mais forte e importante do que a sua divisatildeo em escrito e natildeo-escrito Assim o Evangelho como um soacute princiacutepio pode ser contraposto ao Antigo Testamento a despeito desta dupla formalidade A impossibilidade de se representar o Novo Testamento como Escritura impossibilidade esta demonstrada por Satildeo Paulo e pelos primeiros seacuteculos cristatildeos eacute aqui claramente revelada

Ainda uma observaccedilatildeo relativa ao texto a que vimos nos referindo Em nenhum dos dois pontos por noacutes citados no estudo da Tradiccedilatildeo isto eacute nem no elemento contido no primeiro nem no apresentado no terceiro princiacutepio figura a Tradiccedilatildeo como verbal Em ambos os casos ao contraacuterio trata-se mais da Tradiccedilatildeo real com prevalecircncia da realidade sobre as palavras que a atestam Este fato que estaacute claro no terceiro princiacutepio o pneumatoloacutegico vale tambeacutem em relaccedilatildeo agrave implantaccedilatildeo do Evangelho nos coraccedilotildees contida no segundo princiacutepio Tal implantaccedilatildeo vai muito aleacutem do que se encontra expresso na letra da Escritura

Que papel tenham estas ideacuteias exercido nas discussotildees do Conciacutelio pode-se concluir tambeacutem das auctoritates citadas por Cervini entre as quais figuram Jo 16 12 (hellipSpiritus Sanctus suggerethellip) e Fl 3 15 (Quicumque perfecti sumus haeligc sentiamus et si quid aliter sentitis haeligc quoque Deus vobis revelabit) Ambos estes textos satildeo de teor acentuadamente [45] pneumatoloacutegico-presencial30 Que tais ideacuteias natildeo eram

30 CT V 14 e 15 Um exame profundo das auctoritates quer da Escritura quer entre os Santos Padres que neste particular satildeo favoraacuteveis agrave Tradiccedilatildeo seria em si conclusivo para a elaboraccedilatildeo do conceito

estranhas aos Padres conciliares deduz-se ainda de uma seacuterie de outras referecircncias Assim ouvimos o Bispo de Aqui dizer que aleacutem da Sagrada Escritura existe muita coisa na Igreja de Deus que vindo dos Apoacutestolos e passando de geraccedilatildeo a geraccedilatildeo chegou ateacute noacutes assim como muitas outras quaelig etsi scripta Apostoli nobis non reliquerunt per Spiritus Sancti revelationem nobis (tradita) sunt (Tradita estaacute aqui por revelata) 31 Partindo daiacute se poderia descrever a Tradiccedilatildeo justamente como o componente pneumatoloacutegico do Cristo-evento b) A influecircncia do esquema de Cervini em diversas decisotildees conciliares

Eacute verdade que esta concepccedilatildeo tripartida aparece muito atenuada no Decreto

oficial sobre a Tradiccedilatildeo Que poreacutem em suas linhas fundamentais natildeo tenha ela sido de modo nenhum [46] abandonada mostram-no duas outras passagens nas quais o Conciacutelio faz uso por assim dizer in actu das ideacuteias aqui expressas32 Assim na Introduccedilatildeo ao Decreto sobre a Eucaristia (Denz 873) se lecirc Sacrosancta Synodus sanamhellipdoctrinam tradens quam semper catholica Ecclesia ab ipso Jesu Christo Domino Nostro et eius apostolis erudita atque a Spiritu Sancto illi omnem veritatem in dies suggerente (Jo 1416) edocta retinuithellip

Aqui a accedilatildeo proacutepria do Conciacutelio eacute descrita como tradere e a este tradere eacute atribuiacutedo um duplo fundamento De um lado o ensino de Jesus e dos Apoacutestolos (Note-se que este ponto corresponde ao Evangelho segundo a concepccedilatildeo de Cervini E de certo modo tambeacutem pela citaccedilatildeo de Jesus e dos Apoacutestolos se reconhece a dupla modalidade do Evangelho como escrito e como inserido nos coraccedilotildees) De outro lado o ensino dado pelo Espiacuterito Santo que conduz agrave verdade in dies isto eacute no de correr do tempo futuro

O outro texto que pode ser aduzido aqui como prova do que afirmamos encontra-se no Preacircmbulo do Decreto sobre o Purgatoacuterio (Denz 983) Aiacute se lecirc hellipCatholica Ecclesia Spiritu Sancto edocta ex Sacris Litteris et antiqua Patrum traditione in sacris Conciliis et novissime in hac Synodo docuerit A descriccedilatildeo da accedilatildeo proacutepria do

aqui exposto H HOLSTEIN procurou fazer o cotejo destas auctoritates e fecirc-lo de modo admiraacutevel em seu artigo La Tradition dapregraves le Concile de Trente (RSR 47 1959 p367-390 e em particular para o caso em questatildeo a p375) Ele encontra nos textos estudados duas linhas de tendecircncias A linha de Santo Irineu para a qual o testemunho dos Apoacutestolos eacute o de sua personalidade de sua vida e de seu ofiacutecio Aleacutem desta o grupo composto de Tertuliano Cipriano Basiacutelio e Agostinho forma uma corrente que se poderia denominar ldquocerimonialrdquo Oriacutegenes se enquadra em ambos os grupos Existe entre os autores estudados uma seacuterie de textos que se referem agraves observationes consuetudines institutiones e que levam a entender-se a Tradiccedilatildeo neste mesmo sentido Aiacute se vecircem tambeacutem textos que sublinham o aspecto natildeo-escrito do Evangelho enquanto insculpido no coraccedilatildeo dos fieacuteis e aleacutem disso textos que apontam a Igreja como o ldquolugarrdquo da verdade cristatilde 31 CT I 483 (18 de fevereiro de 1546) Em 26 de fevereiro (CT V 18) encontramos Cervini a tratar de novo deste assunto Cf tambeacutem um pronunciamento do Bispo de Fano (CT V 10) nestes termos Cum jam receperimus Scripturas Sacras necessario recipiendaelig sunt traditiones quaelig ab eodem Spiritu Sancto quo scripturaelig dictataelig sunthellip 32 Disto me adverti pela primeira vez atraveacutes de um estudo realizado sob a minha orientaccedilatildeo por CHR LIMBACR a quem sou devedor de muitas informaccedilotildees bibliograacuteficas

Conciacutelio como tradere encontra-se ainda nas declaraccedilotildees sobre o Sacramento da Extrema-Unccedilatildeo (Denz 910)

Finalmente a triacuteplice divisatildeo deixa-se insinuar nas entrelinhas do Decreto sobre a Tradiccedilatildeo embora obscurecida e diluiacuteda por uma seacuterie de acreacutescimos e citaccedilotildees a ele adicionados por outros motivos O Decreto da Tradiccedilatildeo com efeito [47]

1) Fala do Evangelho prometido pelos Profetas na Escritura e refere-se a esta em sentido estrito quer antes quer depois do Antigo Testamento

2) Fala da promulgaccedilatildeo por Cristo do Evangelho que foi transmitido pelos Apoacutestolos sob dupla forma oral e escrita Desta maneira o que natildeo ocorre no exemplo de Cervini aparece aqui antes de tudo o componente pneumatoloacutegico unido com o componente apostoacutelico a ponto de se distinguirem duas modalidades de Tradiccedilatildeo apostoacutelica a que remonta a Cristo e a que remonta ao envio do Espiacuterito Santo Pode-se assim estabelecer que em oposiccedilatildeo ao esquema de Cervini haacute um certo processo de historicizaccedilatildeo que salienta a relaccedilatildeo com o comeccedilo histoacuterico e igualmente parece deslocar o acento da tradiccedilatildeo real para a verbal

3) No epiacutelogo desta parte do Decreto da Tradiccedilatildeo que vimos analisando de novo eacute considerada a ideacuteia da Sagrada Escritura O conceito de Tradiccedilatildeo eacute entatildeo formulado em definitivo e descrito como vel oretenus a Christo vel a Spiritu Sancto dictatas et continua successione in Ecclesia catholica conservatas A referecircncia aos Apoacutestolos eacute omitida Pode-se na verdade considerar tudo isto como uma volta ao que foi dito antes Evidentemente a tradiccedilatildeo ditada pelos Apoacutestolos eacute citada de novo (A expressatildeo continua successione insinua-o) Contudo permanece sempre ainda certa indeterminaccedilatildeo ficando aberta a possibilidade de se encontrar aqui o vestiacutegio do terceiro componente de Cervini o princiacutepio pneumaacutetico propriamente dito Eacute tambeacutem claro que esta ideacuteia eacute discreta sendo adotada uma posiccedilatildeo mais acentuadamente histoacuterica Se agora lanccedilarmos os olhos sobre o que vimos considerando ateacute aqui surgiratildeo

inevitavelmente perguntas qual eacute realmente o sentido proacuteprio da concepccedilatildeo pneumatoloacutegica Como poderia ser perfeitamente entendida a ideacuteia a noacutes estranha de uma revelatio prolongada no tempo em face da unicidade e do caraacuteter [48] histoacuterico da Revelaccedilatildeo que evidentemente era conhecido tanto de Cervini quanto dos Santos Padres e teoacutelogos medievais33

Antes de examinarmos isto devemos esclarecer rapidamente os principais motivos que inspiraram o Decreto tridentino sobre a Escritura e a Tradiccedilatildeo deixando nele um tanto encoberta a concepccedilatildeo pessoal de Cervini Que opiniotildees de teoacutelogos teratildeo intervindo aqui chegando a ser em parte impressas no texto definitivo que resultou do cotejo de muitos pronunciamentos diversos Uma exposiccedilatildeo detalhada deste ponto exorbitaria do acircmbito de nossa anaacutelise Contentemo-nos com umas poucas observaccedilotildees sumaacuterias 33 Sobre este assunto tentei fazer um breve comentaacuterio no meu trabalho ldquoOffenbarung-Schrift-Uberlieferungrdquo in TThZ 67 (1958) p13-27 Cf J BEUMER ldquoDer theoretische Beitrag der Frnhscholastik zum Problem des Dogmenfortschrittsrdquo in ZkTh 72 (1952) p205-226 J de CHELLINCK Pour lrsquohistoire du mot ldquorevelarerdquo in RSR 6 (1916) p149-157

2 Relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a vida da Igreja

em diversas passagens do debate tridentino

Uma primeira seacuterie de motivos entre os quais se compreendem diversos pronunciamentos agraves vezes muito contrastantes em seu aparato exterior patenteia-se na ideacuteia de tradiccedilotildees expressa no Decreto de duas maneiras a) - per manus traditaelig ad nos usque pervenerunt b) - continua successione in Ecclesia catholico conservatas

O que se ocultaraacute sob estas duas foacutermulas que o historiador de hoje tem dificuldades em aceitar justamente por causa do historicismo nelas impliacutecito Podemos dizer que um decisivo papel exerceu aqui o pensamento que sempre aparecia nos debates a saber que as tradiccedilotildees satildeo variaacuteveis que muitas delas foram abolidas pelos Apoacutestolos e que por outro lado se [49] introduziram tradiccedilotildees eclesiaacutesticas que natildeo mais seriam abolidas34 Esta ideacuteia de Tradiccedilatildeo de certo modo se torna clara no tratado escrito sobre o mesmo assunto por Seripando para uso dos Padres Conciliares Seripando fala das Tradiccedilotildees escritas inseridas na Escritura como as claacuteusulas de Tiago o costume de as mulheres se cobrirem com um veacuteu a legislaccedilatildeo sobre o matrimocircnio contida em 1Cor 7 etc E o autor adverte que estas praacuteticas foram abolidas Isto porque embora associadas agrave palavra de Deus na Escritura dela ldquomuito diferemrdquo pois a palavra divina [50] de modo nenhum poderia ser abolida A estas tradiccedilotildees

34 Cabe aqui aduzir uma nova intervenccedilatildeo de Cervini datada de 26 de fevereiro de 1546 (CT I 33 e V 18) onde ele diz que nem todas as tradiccedilotildees procedentes dos Apoacutestolos devem ser conservadas mas somente as que ab Ecclesia receptaelig ad nos usque pervenerunt (V 18) Esta afirmaccedilatildeo anterior agrave formulaccedilatildeo dogmaacutetica feita pelo Concilio deve igualmente ser tida na conta de um autecircntico comentaacuterio do Decreto Aiacute se acentua como condiccedilatildeo essencial das tradiccedilotildees a receptio ecclesiaelig Vem ainda referida uma intervenccedilatildeo do Bispo de Bertinoro em data de 23 de marccedilo (I p 523) na qual ele sublinha que as tradiccedilotildees escritas por vezes foram mudadas Jaacute entre as natildeo-escritas umas foram mudadas e outras natildeo como por exemplo o rito de adicionar aacutegua ao vinho a Crisma a confissatildeo auricular O Bispo de Bertinoro acrescenta que por outro lado alguns pontos existem que permaneceram inteiramente inalterados tais como a crenccedila no descensus ad inferos na virgindade perpeacutetua de Maria a substituiccedilatildeo da observacircncia do saacutebado pela do domingo Temos depois um pronunciamento do Bispo de Bitonto datado de 27 de marccedilo (I 39) Este bispo era de parecer que algumas coisas foram transmitidas pelos Apoacutestolos com a finalidade de serem perpetuamente conservadas (como pertencentes ao depoacutesito da feacute) outras caiacuteram em desuso (como as claacuteusulas de Tiago) e outras enfim foram apenas aconselhadas Assim mesmo na Escritura algumas coisas haacute que foram escritas mas natildeo recebidas em uso por serem mateacuteria de mero conselho Por exemplo ldquose algueacutem te pedir a tuacutenica daacute-lhe tambeacutem o paacutelio se algueacutem te esbofetear numa face oferece-lhe tambeacutem a outrardquo Sem duacutevida excelente ilustraccedilatildeo do sermatildeo da montanha Finalmente consideraccedilotildees idecircnticas podemos encontrar na obra citada de LEJAY Eis outra amostra tirada do discurso de 23 de fevereiro (CT V 13) Nam illaelig (scil traditiones) quaelig ad fidem pertinent eadem sunt recipiendaelig auctoritate qua recipitur evangelium alia autem non ita eum earum plurimaelig immutataelig fuerint ut de bigamis de esu sanguinis et similia De modo semelhante aliaacutes fala tambeacutem Bonuccio (I 525 a 23 de marccedilo de 1546 ecclesia traditiones apostolorum quandoque mutavit verbum autem Dei nunquam mutavit neque mutare potest

Seripando opotildee as natildeo referidas na Biacuteblia e que ora satildeo apostoacutelicas ou oriundas de Conciacutelios universais e aceitas por toda a Igreja ora satildeo particulares e muito variaacuteveis35

Este texto nos leva a uma surpreendente conclusatildeo para Seripando e muitos outros Padres tridentinos36existem tradiccedilotildees na Escritura ldquoTradiccedilatildeordquo natildeo significa o natildeo-escrito Existe quer dentro da Escritura quer fora dela Isto nos conduz a outra pergunta em que consiste para os referidos Padres a essecircncia da tradiccedilatildeo se o que a constitui natildeo eacute o fato de natildeo ser escrita37 Em outros termos como pode a tradiccedilatildeo ser definida positivamente se ela natildeo pode ser suficientemente determinada pela ideacuteia negativa de algo natildeo-escrito

Haacute uma seacuterie de respostas para esta pergunta O proacuteprio Seripando daacute a seguinte definiccedilatildeo Traditiones hoc est Apostolorum seu sanctorum Patrum sanctae et salutares constitutiones38 Mais clara ainda eacute a afirmaccedilatildeo de Cervini citada por Massarelli A objeccedilatildeo do Bispo de Chioggia que aduzia a opiniatildeo de Agostinho de que tudo o que eacute necessaacuterio para a salvaccedilatildeo estava escrito na Biacuteblia respondia Cervini da seguinte maneira Verba illa (isto eacute de Santo Agostinho) formaliter intelligi debent scilicet ad fidem accipiendam ut salvi fiamus Quo vero ad mores et christianam vitam instituendam certo non omnia scripta sunt

[51] E de novo recorre agraves provas tiradas de Jo 1526 e 1426 E indica o princiacutepio pneumatoloacutegico39 O que eacute mais importante eacute que a Tradiccedilatildeo se refere agrave institutio vitaelig agrave presenccedila atuante da Palavra revelada na existecircncia cristatilde Tradiccedilatildeo eacute noutros termos a eficaacutecia da palavra de Deus Sem ela a palavra ficaria esteacuteril 35 Seripando De traditionibus (fevereiro ou marccedilo de 1546) CT XII p517-521 e principalmente a p 521 As expressotildees desta uacuteltima paacutegina chocam-se com a ideacuteia de Cervini sobre a receptio ecclesiaelig 36 Cf o texto citado na nota 11 37 No texto definitivo do Decreto esta ideacuteia natildeo aparece mais Aqui poreacutem com esta primeira designaccedilatildeo expliacutecita da Tradiccedilatildeo vem expressamente acentuado o contraste entre in libris scriptis et sine scripto traditionibus Na segunda redaccedilatildeo o sentido expliacutecito da palavra Tradiccedilatildeo natildeo eacute tatildeo exclusivo Contudo apresenta igual matiz ao se confrontarem as expressotildees omnes libroshellipnec non traditiones ipsas Portanto a ideacuteia positiva da Tradiccedilatildeo que serve de base a esta anaacutelise natildeo deixou de influenciar na redaccedilatildeo do Decreto 38 CT XII 517 39 CT I 494 (26 de fevereiro de 1546) A citada palavra de Santo Agostinho teve o seu papel a desempenhar na discussatildeo em curso Seripando por exemplo a ela se referiu (De traditionibus CT XII 521 47-53) Pensandum denique ne in traditionibus externis vera religio et salutis spes statuatur de quibus Augustinus Omnia quaelig pertinent ad veram religionem quaeligrendam et tenendam divina Scriptura non acuit Conceda-se que nem tudo foi escrito (veja-se Jo 2125) Todavia electa sunt autem quaelig scriberentur quaelig saluti credentium sufficere videbantur Mais do que nos debates do tridentino encontramos aqui um verdadeiro postulado dos Reformadores ldquonatildeo adotar costumes exteriores mas buscar os meios definitivos de salvaccedilatildeo na palavra da Escriturardquo A ldquosuficiecircnciardquo da Escritura de que aqui se fala eacute na verdade algo diverso da suficiecircncia material da mesma Escritura defendida por Geiselmann em sentido muito mais radical Infelizmente ainda natildeo se quis levar na devida consideraccedilatildeo o texto de Santo Agostinho (CT I 494 sugere De doctrina christiana II 9 e De pecc mero et rem II 59) Muito apropriadas nesta ordem de ideacuteias satildeo as observaccedilotildees de H SCHAUF ldquoSchrift und Traditionrdquo in Antonianum 39 (1964) p200-209 feitas no chamado Encontro de Duumlsseldorf Nos textos citados por Schauf com base em Agostinho eacute afirmada a suficiecircncia da Escritura para a salvaccedilatildeo Eacute contudo contestada a sua suficiecircncia para a Igreja em geral De fato esta alternativa parece muito mais vaacutelida e fundamental agrave luz dos postulados dos Reformadores do que a alternativa entre a suficiecircncia ou insuficiecircncia material da Escritura

Na mesma linha de ideacuteias seguem-se duas outras seacuteries de pronunciamentos Vimos na introduccedilatildeo agrave parte anterior que a discussatildeo dogmaacutetica da ideacuteia de

Tradiccedilatildeo foi em parte prejudicada pela questatildeo do meacutetodo a seguir no Conciacutelio dever-se-ia abordar primeiro a reformatio a reforma praacutetica da Igreja como queria o ldquoKaiserrdquo Ou primeiro discutir a questatildeo dogmaacutetica como preferia o Papa40

[52] Este problema do meacutetodo embora resolvido no debate que entatildeo surgiu natildeo afetou diretamente a questatildeo da Tradiccedilatildeo como tal Mas como de fato estas duas questotildees ficaram ligadas entre si daiacute resultou que muitos oradores transformaram a questatildeo do meacutetodo (se se deveria falar dos abusos ou da Tradiccedilatildeo) em parte de sua argumentaccedilatildeo em torno do assunto em pauta41 O problema abusus e o problema Traditio ficaram de tal maneira associados na ocasiatildeo que pareciam formar no fundo um soacute assunto Por isso os oradores ora falavam em sentido positivo ora se pronunciavam em sentido negativo Isto correspondia tambeacutem ao propoacutesito reformista do Conciacutelio as traditiones representavam os abusus aos quais a Igreja se opunha Os Padres estavam cocircnscios de que condenar as traditiones era condenar Os usus ecclesiaelig o modo como a Igreja vivia a sua vida naquela eacutepoca

A outra seacuterie de pronunciamentos que se inclinavam ao mesmo sentido encontramo-la nas proposiccedilotildees que a auctoritas da Igreja apresenta como definitivas indicando uma iacutentima relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a institutio christiana 42

[53] Podemos agora retomar ao nosso ponto de partida e dar resposta agrave pergunta que propriamente significa a foacutermula ad nos usque pervenerunt Objetivamente natildeo se trata aqui de um historicismo que a foacutermula parece expressar Ao contraacuterio Trata-se da fidelidade perseverante da Igreja agrave institutio vitaelig christianaelig da legiacutetima forma de vida cristatilde em concreto no tempo presente da Igreja da institutio christiana que coloca a Escritura em primeiro lugar e que como tal isto eacute como vida decorrente da Escritura eacute fundamentalmente apostoacutelica embora tambeacutem sujeita a mudanccedilas como tudo o que eacute vivo

3 A Tradiccedilatildeo e o dogma eclesiaacutestico

40 Sobre o debate em torno da questatildeo do meacutetodo cf mais uma vez JEDIN op cit p9-82 e outras 41 Assim jaacute no discurso de Cervini antes analisado (CT I 484) no qual ele recorda o dilema do Conciacutelio se nos voltarmos contra as tradiccedilotildees ficaratildeo admirados os Padres Conciliares quasi reformationem fugiamus si ipsam reformationem sumimus iterum objicient traditiones relinquendas non esse Idecircntica era a situaccedilatildeo em que se encontrava o Bispo de Astorga nas duas intervenccedilotildees que fez no dia 23 de fevereiro de 1546 (CT V 13 e 19) segundo Seripando (I 484) helliptraditiones prius pertractandas consulit tantam enim conformitatem abusus qui ex sacris libris descendunt cum iis qui a traditionibus orti sunt habent ut sacris libris et traditionibus absolutis duo illa abusuum genera simul pertractari valeant Segundo Bonuccio (I 484) antes de tudo dever-se-ia tratar das Sagradas Escrituras dos cacircnones apostoacutelicos dos Conciacutelios gerais e das decretais pontifiacutecias Hisque ilusceptis ad abusus ex eisdem dependentes devenire 42 Assim principalmente de acordo com Afonso de Castro (CT I 484) Quoniam ultra traditiones apostolicas ecclesiae auctoritatem habemus quaelig ecclesiaelig auctoritas tonta apud nos est ut aliqui eam maioris roboris quam sacros libros esse sentiant Cf igualmente CT I 491 45 Na mesma linha pode-se ver uma seacuterie de pronunciamentos na citada obra de LEJAY Cf CT XII 524 (Tratado De traditionibus ecclesiaelig fevereiro ou marccedilo de 1546)

Uma segunda seacuterie de motivos eacute expressa no Decreto pela foacutermula traditiones tum ad fidem tum ad mores pertinentes Se como vimos a ideacuteia de Tradiccedilatildeo aparece muito limitada naquilo que os Padres conciliares chamam consuetudines observationes institutiones por outro lado o Procurador do Cardeal de Augsburgo Claudio Lejay SJ se fez o porta-voz de uma expressatildeo que em oposiccedilatildeo agraves traditiones caeligremoniales estabeleceu justamente o sentido da tradiccedilatildeo contida na feacute Seu tratado sobre a Tradiccedilatildeo composto para uso dos Padres conciliares inclui tambeacutem a foacutermula que foi adotada pelo Conciacutelio Aiacute se diz Denique multas veritates tum ad fidem tum ad mores pertinentes Ecclesia novit quas Scriptura aperte et expresse non continet Ele cita como exemplos as palavras persona essentia trinitas no Tratado da Santiacutessima Trindade consubstantialitas na Cristologia do Logos duas naturezas uma soacute Pessoa referentes ao dogma definido pelo Conciacutelio de Calcedocircnia E ainda Cristo Filho uacutenico de Maria duas vontades na uacutenica Pessoa de Cristo uma alma racional aleacutem do espiacuterito divino em Cristo Ana matildee de Maria o costume de fazer sinais da cruz a santificaccedilatildeo do domingo a maneira de rezar com face voltada [54] para o Oriente tudo isto ideacuteias e fatos da tradiccedilatildeo conciliar e da piedade cristatilde43

Cervini que aprovou o discurso de Lejay de 23 de fevereiro de 154644 pocircde dificilmente conciliar esta posiccedilatildeo com a sua expressa na jaacute citada carta ao Cardeal Farnese onde como vimos ele diz que o Espiacuterito Santo falou na Igreja e depois da Ascensatildeo do Senhor fala ainda maxime medianti i concilii45 Ele aiacute viu publicamente sublinhado o fato de que aquele ldquomaisrdquo que a Igreja viva representa em relaccedilatildeo agrave palavra meramente escrita natildeo se referia e natildeo se refere apenas agrave vita instituenda ou como ele prefere agrave caeligremonialia Refere-se tambeacutem agrave essentialia fidei que antes de tudo plenamente se expressam na Tradiccedilatildeo Tambeacutem aqui como se vecirc o interesse dominante natildeo estaacute na apresentaccedilatildeo historicista do assunto a partir do iniacutecio da Igreja mas na ideacuteia de que a influecircncia da Tradiccedilatildeo sobretudo atraveacutes da praxe conciliar eacute de fundamental importacircncia para a feacute para a doutrina crida e natildeo apenas para a piedade viva ou a caeligremonialia

4 O sentido do Decreto tridentino

Se recapitularmos o que ateacute agora dissemos veremos que no conjunto facilmente se podem reconhecer trecircs diferentes concepccedilotildees teoloacutegicas unidas entre si no texto definitivo do Decreto sobre a Tradiccedilatildeo Unidas mas natildeo equiparadas umas agraves outras Pelo contraacuterio apesar de sua grande diferenccedila foram elas apenas [55] mais ou menos justapostas e de novo por forccedila de uma tendecircncia comum relacionadas entre si

1 A concepccedilatildeo de Cervini que designamos como pneumatoloacutegica Com sua doutrina sobre os trecircs principia fidei insiste ele no caraacuteter dinacircmico do Cristo-evento

43 CT XII 523 LEJAY baseia-se evidentemente em listas de tradiccedilotildees confeccionadas naquele tempo (Cf ECK DRIEDO CANO BOTO NOGAROLA) Cf a este respeito Y CONGAR ldquoTraditions apostoliques non eacutecrites et suffisance de lEscrituresrdquo in Istina 6 (1959) p219-306 e principalmente a paacutegina 289 44 CT V 14 45 CT X 373

presente na Igreja Entende assim a Tradiccedilatildeo primariamente como a realidade espiritual da institutio vitaelig christianaelig

2 A concepccedilatildeo que podemos chamar de cerimonial Esta entende a Tradiccedilatildeo essencialmente como a seacuterie de consuetudines existentes ao lado da feacute como os usus ecclesiaelig que os Reformadores falsamente pretendem abolir como abusus Esta concepccedilatildeo chega a condenar a dignidade e Antiguumlidade apostoacutelica das tradiccedilotildees Sua ideacuteia eacute limitada pelo ad nos usque pervenerunt que inclui possibilidade de variar da parte das tradiccedilotildees donde a necessidade de reduccedilotildees Com os termos pervenire e conservare a recepccedilatildeo por parte da Igreja eacute considerada criteacuterio adicional ao lado da Antiguumlidade

3 A concepccedilatildeo que talvez possamos denominar dogmaacutetica Em oposiccedilatildeo agrave fixidez da ideacuteia de Tradiccedilatildeo reduzida agrave consuetudo salienta esta terceira hipoacutetese a extensatildeo do fenocircmeno Tradiccedilatildeo tambeacutem ao acircmbito da fides

Estas trecircs concepccedilotildees deram forma ao texto do Decreto de tal modo que as suas

linhas mestras derivam de Cervini e todo o texto deve ser entendido agrave luz de suas ideacuteias Contudo em duas passagens isto eacute no pervenerunt e no conservatas haacute influecircncia da segunda concepccedilatildeo enquanto no tum ad fidem tum ad mores haacute influecircncia da terceira

Em face destas trecircs concepccedilotildees das quais na realidade existem diversas variantes que tomadas em conjunto satildeo a expressatildeo das ideacuteias dominantes adotadas aparecem as teses de Bonuccio e de Nacchianti tatildeo postas em evidecircncia por Geiselmann como sentenccedilas contraacuterias De fato o parecer de Bonuccio claramente [56] se opotildee agrave segunda concepccedilatildeo (contra a supervalorizaccedilatildeo das consuetudines natildeo per pietatis affectus) ao passo que Nacchianti se levanta antes contra a terceira posiccedilatildeo e salienta a suficiecircncia da feacute recebida por meio da Escritura46

Seria de notar-se ainda que as concepccedilotildees segunda e terceira tecircm algo em comum Ambas opotildeem agrave visatildeo pneumatoloacutegica de Cervini da salvaccedilatildeo sempre presente uma visatildeo mais historicista relacionada com o prolongamento da salvaccedilatildeo operada uma soacute vez ou seja o ἑφάπαξ Na realidade deve-se dizer que embora de um lado tanto a visatildeo presencial de Cervini como tambeacutem a visatildeo historicista do outro grupo se consideradas isoladamente cada qual de per si sejam perigosas se natildeo insustentaacuteveis 46 Aliaacutes de acordo com uma informaccedilatildeo de Cervini parece que o Bispo de Chioggia finalmente renunciou agrave sua tese da suficiecircncia da Escritura na qual se inclinava a recusar as tradiccedilotildees Na carta de Cervini ao Cardeal Farnese de 27 de fevereiro de 1546 lemos hellip Chioggia che (quasi quasi) voleva dire queste traditioni essere superflue perorando che tutto quello che era necessario alla salute era scritto et allegando etiam S Agostino sopra lultimo capitulo di S Giovanni a questo proposito Pure per non poter negare che molte cose appartenenti almeno alli sacramenti non ci fussero venute ex tra ditione et per consequente che non tutte le cose necessarie alia nostra salute erano scritte poiche ebbe fatte molte distintioni concluse che ancor lui accettava queste ldquoche in la chiesa fusse qualque traditione apostolica non scrittardquo (et con queste parole diceva che se ne facesse il decreto) credo che molti sono restati scandalizati di lui (CT X Nr 315 paacutegs 399 411) Cf tambeacutem CT I 494 nota 9 e 495 nota 2 CT V 18 nota 5 e 19 e nota 1 O mesmo protesto que aparece contra Nacchianti manifesta-se tambeacutem na observaccedilatildeo de Massarelli Este chega a chamar aquele de novarum rerum cupidus (1 494 18) e esclarece que reprehensus est a multis (1 494 22) Diante disto eacute de todo destituiacuteda de creacutedito a importacircncia que Geiselmann lhe atribui mesmo se abstrairmos de outras razotildees jaacute conhecidas sobre as quais natildeo precisamos insistir

de outro lado pelo menos tornam possiacutevel uma exata visatildeo do conjunto devido agrave sua muacutetua confluecircncia e limitaccedilatildeo No texto atual estatildeo presentes embora pouco nitidamente ambos os pontos de vista o elemento presencial e o ἑφάπαξ Conveacutem que entendamos assim o texto de modo a considerarmos [57] ambos estes aspectos como essenciais Consequumlentemente reconheceremos que ambos pertencem constitutivamente agrave realidade da vida cristatilde e portanto tambeacutem agravequela parcela do Cristianismo a que damos o nome de Tradiccedilatildeo Estes dois elementos satildeo a presenccedila do Espiacuterito Santo e o seu nexo com o fato singular da salvaccedilatildeo ocorrido uma soacute vez por todas na histoacuteria dos homens

Assim se acharaacute finalmente a resposta agrave pergunta de corno noacutes devemos entender o parecer do Conciacutelio de Trento A primeira e mais importante conclusatildeo parece-me ser o fato de o Conciacutelio ter visto muito claramente o nexo entre Tradiccedilatildeo e Revelaccedilatildeo A seguir elaborou sempre em consonacircncia com a tradiccedilatildeo patriacutestica e medieval um conceito de Revelaccedilatildeo muito menos material do que o que seraacute adotado mais tarde pela teologia dos tempos modernos Somente assim se deve conceber a ideacuteia da Revelaccedilatildeo do Espiacuterito Santo na Igreja Partindo do ramo nitidamente patriacutestico da teologia medieval tatildeo francamente acolhido no discurso de Cervini deveria ser muito menos categoacuterica a opiniatildeo que coloca o teacutermino da Revelaccedilatildeo na morte do uacuteltimo Apoacutestolo Naturalmente esta questatildeo natildeo pode ser aqui estudada com maiores detalhes A sua soluccedilatildeo como entatildeo se apresentava aos teoacutelogos poderia ser hoje impostada apelando-se para as categorias da teologia atual Segundo esta podemos dizer que a Revelaccedilatildeo estaacute encerrada do ponto de vista de seu princiacutepio material Todavia estaacute e continua presente em sua realidade eficaz Noutros termos a Revelaccedilatildeo tem eacute verdade o seu ἑφάπαξ enquanto ela se realizou num determinado dia na Histoacuteria Entretanto ela tem tambeacutem o seu ldquohojerdquo permanente isto eacute o que foi uma vez por todas realizado na feacute da Igreja permanece sempre vivo e operante Assim a feacute cristatilde natildeo se volta apenas para o passado Abrange tambeacutem o presente e o futuro Eacute verdade que a posterior materializaccedilatildeo historicista da ideacuteia de Revelaccedilatildeo aparece jaacute claramente insinuada nos debates tridentinos corno um fato previsto mas ainda [58] natildeo consumado embora talvez se possa dizer que nos textos conciliares ficou definitivamente consagrada a sua aceitaccedilatildeo

Finalmente acrescentemos ainda que com base nos debates do Conciacutelio podemos estabelecer quatro elementos da ideacuteia de Tradiccedilatildeo 1 O aspecto natildeo-escrito da Revelaccedilatildeo ou do Evangelho contido na Biacuteblia e no coraccedilatildeo dos fieacuteis 2 A palavra do Espiacuterito Santo no decorrer de todo o tempo da Igreja

3 A atividade da Igreja nos Conciacutelios 4 A Tradiccedilatildeo lituacutergica e a da vida da Igreja em geral Nestes quatro elementos

que se deve ter sob os olhos pois formam o fundo ideoloacutegico do Decreto expressa-se a realidade uacutenica do tempo presente da Igreja cristatilde Nele estaacute presente todo o passado poacutes-apostoacutelico da Igreja (inclusive o proacuteprio tempo dos apoacutestolos) de modo que toda a sua vida eacute na Sagrada Escritura um elemento central embora natildeo o uacutenico Em suma deve ter ficado claro que o Conciacutelio de Trento a despeito do caraacuteter contrastante e fixo de sua ideacuteia de Revelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeo oferece uma visatildeo muito mais rica destes conceitos do que a que impregnou a mentalidade dos seacuteculos seguintes Justamente por

isso a teologia de hoje pode retirar daiacute novos subsiacutedios novo apoio para suas pesquisas e novas indicaccedilotildees sobre o verdadeiro caminho a seguir

Quadro sinoacutetico do Decreto tridentino sobre a Tradiccedilatildeo

Primeiro princiacutepio conforme Cervini (AT = Escritura)

Sacrosancta œcumenica et generalis Tridentina Synodus in Spiritu Sancto legitime congregata [] hoc sibi perpetuo ante oculos proponens ut sublatis erroribus puritas ipsa EVANGELII in Ecclesia conservetur quod PROMISSUM ANTE PER PROPHETAS IN SCRIPTURIS SANCTIS

Segundo princiacutepio conforme Cervini o Evangelho em parte escrito em parte insculpido nos coraccedilotildees

[59] DOMINUS NOSTER IESUS CHRISTUS DEI FILIUS PROPRIO ORE PRIMUM PROMULGAVIT DEINDE PER SUOS APOSTOLOS TAMQUAM FONTEM OMNIS ET SALUTARIS VERITATIS ET MORUM DISCIPLINAE OMNI CREATURAE PRAEDICARI IUSSIT PERSPICIENSQUE HANC VERITATEM ET DISCIPLINAM CONTINERI IN LIBRIS SCRIPTIS ET SINE SCRIPTO TRADITIONIBUS QUAE AB IPSIUS CHRISTI ORE AB APOSTOLIS ACCEPTAE AUT AB IPSIS APOSTOLIS SPIRITU SANCTO DICTANTE

Seripando Cervini e outros soacute consideram as tradiccedilotildees recebidas pela Igrej (ldquoad nos usquerdquo)

quasi per manus traditae ad nos usque pervenerunt

orthodoxorum Patrum exempla secuta omnes libros tam Veteris quam Novi Testamenti cum utriusque unus Deus sit auctor nec non TRADITIONES IPSAS

Lejay Tradiccedilatildeo contendo natildeo soacute a ldquoconsuetudordquo mas relacionada tambeacutem com a ldquofidesrdquo (foacutermula conciliar)

tum ad fidem tum ad mores pertinentes

Terceiro princiacutepio de Cernini Depois da Ascenccedilatildeo de Cristo o Espiacuterito Santo ensina tambeacutem os misteacuterios de Deus

TAMQUAM VEL ORETENUS A CHRISTO VEL A SPIRITU SANCTO DICTATAS

Seripando Cervini etc soacute satildeo consideradas as coisas recebidas pela Igreja (como acima)

et continua successione in Ecclesia catholica conservatas

Cervini Escritura e Tradiccedilatildeo procedem ambas do mesmo Espiacuterito Santo

pari pietatis affectu ac reverentia suscipit ac veneratur

  • Prefaacutecio
  • SEGUNDA PARTE
  • Explicaccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo
  • segundo o Decreto do Conciacutelio de Trento
Page 10: Revelacao e Tradicao-Joseph Ratzinger (Bom Ler)

Na teologia escolaacutestica catoacutelica nos uacuteltimos seacuteculos em contraste com a teologia medieval pouco ou nada se diz sobre o portador do testemunho da Revelaccedilatildeo aquele que a apresenta atraveacutes do milagre aos homens chamados a crer Refiro-me agrave Revelaccedilatildeo presente no seu portador que eacute o proacuteprio Profeta Do que antes expusemos concluir-se-aacute que a teologia dos preacircmbulos e a da feacute satildeo idecircnticas Por isso tem razatildeo a teologia fundamental quando frequumlentemente trata da analysis fidei em seu acircmbito proacuteprio supondo-se que ela o faccedila considerando a feacute e a aceitaccedilatildeo da Revelaccedilatildeo em sua unidade fundamental O aspecto transcendental da aceitaccedilatildeo da Revelaccedilatildeo e a Feacute satildeo a mesma coisa fundam-se ambas na constituiccedilatildeo do homem gratuitamente marcada pela participaccedilatildeo ontoloacutegica e pelo compromisso livre do homem com este aspecto existencial do ser

A ldquodesmitologizaccedilatildeordquo (Entmythologisierungsfrage) para a teologia catoacutelica concretiza-se e resume-se na capacidade de cognoscibilidade do ldquomilagrerdquo Daiacute perguntar-se eacute possiacutevel uma autecircntica experiecircncia transcendental de Deus jaacute que isto seria como que um compartilhar do imparticipaacutevel (Schon-immer-heim- Univermittelten-Sein) Fundamentalmente natildeo eacute possiacutevel nem eacute necessaacuterio estabelecer uma distinccedilatildeo adequada entre a mediaccedilatildeo do factum brutum (durch das factum brutum) da chamada realidade objetiva e a que se daacute atraveacutes de sua clara explicaccedilatildeo A mediaccedilatildeo (Vermittlung) baseia sua uacuteltima verdade no mediado (im Vermittelten) Portanto a ldquodesmitologizaccedilatildeordquo e a relaccedilatildeo entre a mediaccedilatildeo e o mediado (Vermittlung-Vermittelte) fundamentam-se na diferenccedila e na unidade ontoloacutegica dos aspectos categorial e transcendental e tambeacutem na diferenccedila e na indissoluacutevel unidade entre a histoacuteria e seu significado Esta mediaccedilatildeo enquanto histoacuterica eacute sempre uma histoacuteria com-os-homens ou no sentido mais profundo da palavra uma [11] histoacuteria ldquoeclesialrdquo Eacute portanto tambeacutem um compromisso com a feacute da comunidade dos fieacuteis e da Igreja feacute esta que na comunidade e em cada indiviacuteduo envolve sempre a uniatildeo de sinais e de verdade como na palavra do Sacramento e no Logos Encarnado onde estes dois elementos se encontram inseparaacuteveis mas natildeo se confundem sendo a sua associaccedilatildeo independente do alvitre dos homens

Partindo dessas premissas pode-se entender o que seja a fides implicita agrave qual ateacute hoje os teoacutelogos natildeo deram o destaque devido Fundamentalmente a feacute seja qual for envolve a aceitaccedilatildeo do sinal Soacute eacute feacute verdadeira se assumir o sinal mediante o inefaacutevel misteacuterio da uniatildeo do Deus que se daacute a si mesmo em participaccedilatildeo Soacute eacute feacute verdadeira quando entende a mediaccedilatildeo categorial como presenccedila de sinais (Zeichenhaftigkeit) como se realiza na proacutepria Igreja Assim como a Revelaccedilatildeo natildeo elimina a obscuridade do sacrossanto misteacuterio de Deus antes o cristatildeo amando e adorando a aceita assim tambeacutem o ldquocaraacuteter impliacutecitordquo (Implizitaumlt) da Revelaccedilatildeo e da feacute pertencem agrave sua proacutepria natureza Esta ldquoimplicituderdquo natildeo eacute portanto um elemento que soacute se daria quando as pessoas ldquoincultasrdquo ou ignorantes ouvem a Revelaccedilatildeo e crecircem

Agora podemos entender melhor tambeacutem um conhecido fenocircmeno religioso a tendecircncia a se reduzir o dogma e a religiatildeo a um nuacutecleo de verdades essenciais A unidade existente entre os elementos categorial e transcendental existe tambeacutem na Religiatildeo Tambeacutem esta eacute una e uacutenica E insubstituiacutevel por qualquer outra Devemos dizer tambeacutem que o Cristianismo considerado como religiatildeo universal e absoluta e natildeo apenas como particular alianccedila de Deus com determinado povo natildeo pode deixar de reconhecer a Cristo como Mediador e como Salvador Cristo com efeito por sua

corporeidade e espiritualidade integra em si relaciona e torna legiacutetima toda mediaccedilatildeo possiacutevel no acircmbito do mundo das realidades Assim ldquonadardquo existe que [12] exclua este poder de mediaccedilatildeo Ele existe na palavra no sinal lituacutergico na comunidade eclesial no ofiacutecio na imagem em suma ateacute mesmo nas coisas profanas Natildeo obstante a pluralidade e diversidade desta mediaccedilatildeo pode acontecer que em diferentes eacutepocas e lugares de acordo com os desiacutegnios da graccedila mesmo no Novo Testamento a obrigatoriedade e cognoscibilidade da uacutenica mediaccedilatildeo tenha a sua histoacuteria peculiar Tal histoacuteria da Revelaccedilatildeo tornada definitiva em Cristo no acircmbito do uacuteltimo e eterno ldquoeatildeordquo pode tambeacutem conforme disposiccedilatildeo divina refletir-se na traacutegica histoacuteria da Cristandade dividida por uma cisatildeo em que transparece a pluralidade das muitas mediaccedilotildees da uacutenica Revelaccedilatildeo Esta divisatildeo eacute para noacutes uma censura Contudo serve-nos tambeacutem de instrumento da graccedila de Deus

A distinccedilatildeo entre Revelaccedilatildeo transcendental e a categorial-histoacuterica aplica-se tambeacutem agrave feacute Daiacute novas luzes para se entender melhor o problema da credulidade enquanto distinta da feacute e intimamente relacionada com ela Quando se considera a precaacuteria descriccedilatildeo da feacute elaborada pelos teoacutelogos vecirc-se que seu caraacuteter auditivo (ex auditu) eacute geralmente proposto de modo aposterioriacutestico e empiacuterico O endereccedilamento da feacute ao ouvinte aparece entatildeo como se da parte deste soacute houvesse uma potecircncia formal para assumir certas proposiccedilotildees verdadeiras sem as investigar devendo apenas aceitaacute-las em sua formulaccedilatildeo exata irrecusaacutevel e fixa A potecircncia aprioriacutestica da feacute ou a credulidade quase natildeo eacute levada em consideraccedilatildeo na teologia catoacutelica Esta credulidade como capacidade aprioriacutestica de crer natildeo deve ser tida na conta de uma potecircncia igual agraves outras uma espeacutecie de sentido de ldquoexigecircnciardquo ou coisa parecida Eacute antes o lado transcendental da Revelaccedilatildeo a potecircncia aprioriacutestica que tem o homem ser transcendental para a comunhatildeo com Deus na graccedila fundada na proacutepria abertura de Deus para se comunicar com a criatura Ambas estas coisas devem ser consideradas em sentido ontoloacutegico natildeo em sentido ocircntico

[13] Toda anaacutelise da feacute catoacutelica apresenta a ldquoautoridade de Deusrdquo como o ldquoobjeto formalrdquo ou o ldquomotivordquo uacuteltimo da feacute Chega-se assim entretanto a um impasse intransponiacutevel Isto porque se considera esta ldquoautoridaderdquo como elemento categorial e aprioriacutestico limitado pelo horizonte do conhecimento humano que a feacute tem que superar para que a Palavra permaneccedila sendo realmente Palavra divina e natildeo seja rebaixada ao niacutevel meramente criatural Se poreacutem na Revelaccedilatildeo e na feacute o proacuteprio Deus autocomunicando-se eacute o objeto crido e o princiacutepio aprioriacutestico de crer se a loacutegica da feacute natildeo eacute uma categoria aprendida de fora mas ndash do mesmo modo que a loacutegica natural ndash eacute a proacutepria estrutura ontoloacutegica e interna do ato de feacute se a mensagem exterior da feacute natildeo eacute o seu motivo aposterioriacutestico mas sua razatildeo aprioriacutestica ndash entatildeo todo este problema perde o seu sentido Assim se compreenderaacute que um falso ato material de feacute deixa de ter um objeto formal meramente aprioriacutestico e pode vir a ser um ato de feacute autecircntico

Somos forccedilados a interromper aqui estas observaccedilotildees Em tudo o que dissemos pudemos apenas indicar algumas perspectivas de soluccedilatildeo de um problema que desde os tempos do Modernismo eacute atual mas que contudo tem sido de certo modo postergado Mesmo por este pequeno exemplo ao qual poderiacuteamos acrescentar o de muitos outros problemas teoloacutegicos ainda natildeo solucionados vemos como custosa e lentamente avanccedila o trabalho teoloacutegico Eacute necessaacuterio ter paciecircncia e envidar esforccedilos perseverantes

Necessaacuterio eacute ainda admitir-se que a teologia natildeo cria a feacute no cristatildeo Ele eacute apenas chamado a pocircr-se a serviccedilo da feacute Da feacute hoje

Ao exprimir eu agrave ilustre Faculdade Catoacutelica de Teologia da Universidade de Munster o meu penhorado e cordial agradecimento pela distinccedilatildeo que me outorgou faccedilo-o com a consciecircncia de que tambeacutem os operaacuterios que realizam a construccedilatildeo da teologia trabalham em vatildeo se o Senhor natildeo cooperar com eles Noacutes [14] devemos trabalhar enquanto eacute dia Toda theologia mentis eacute apenas um auxiacutelio para a theologia cordis et vitaelig Enfim em toda theologia a rigor soacute um caminho se abre o caminho que se perde no segredo de Deus misteacuterio impenetraacutevel que todavia se potildee ao nosso alcance

Joseph Ratzinger

EXAME DO PROBLEMA DO CONCEITO DE TRADICcedilAtildeO

PRIMEIRA PARTE

Revelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeo

Ensaio de anaacutelise do conceito de Tradiccedilatildeo

I ndash Posiccedilatildeo do Problema

[15] O modo como Cristo Palavra expressa da Revelaccedilatildeo permanece presente na Histoacuteria e vai ao encontro dos homens pertence agravequelas questotildees fundamentais em torno das quais se dividiu a Cristandade ocidental no seacuteculo da Reforma A luta prende-se agrave ideacuteia de ldquoTradiccedilatildeordquo pela qual a Igreja catoacutelica procurou exprimir certa forma de comunicaccedilatildeo da Revelaccedilatildeo ao lado da outra contida na Sagrada Escritura Isto com o fim de desfazer um duplo protesto A Tradiccedilatildeo designava primeiro as chamadas consuetudines ecclesiaelig tais como a santificaccedilatildeo do domingo a oraccedilatildeo voltada para o Oriente o costume de jejuar as vaacuterias becircnccedilatildeos e consagraccedilotildees e outras praacuteticas semelhantes em vigor na piedade dos fieacuteis ao tempo da baixa Idade Meacutedia Tais praacuteticas ora nobres ora ridiacuteculas embora transformassem a Igreja numa espeacutecie de casa assombrada cheia de acircngulos e cantos justificavam-se sob o tiacutetulo de ldquotradiccedilatildeordquo e legitimavam-se como parte essencial da vida cristatilde1

Lutero a quem a simplicidade do Evangelho como urna forccedila explosiva tinha sobremodo impressionado preferiu agrave luz de sua [16] ideacuteia de Deus juiz misericordioso natildeo ver na Tradiccedilatildeo nada mais do que ninharias com as quais a humanidade se ilude e aparentemente se consola buscando uma evasatildeo ante o abuso da proacutepria existecircncia Ainda mais ele viu na Tradiccedilatildeo o retorno da Lei o predomiacutenio do arbiacutetrio humano sobre a palavra de Deus abuso contra o qual Paulo protestara com tanta veemecircncia e que agora de novo se implantara na Igreja A Confessio Augustana ocupou-se tambeacutem destas coisas destacando uma seacuterie de leis cuja violaccedilatildeo segundo a doutrina corrente era tida como pecado mortal a proibiccedilatildeo do trabalho manual aos domingos e dias santos a interrupccedilatildeo das preces canocircnicas diaacuterias os preceitos do jejum etc E Lutero prosseguia ldquoDe onde tiram os Bispos o direito e o poder de imporem tais prescriccedilotildees aos cristatildeos e de ilaquearem assim as consciecircncias Pedro no capiacutetulo 15 dos Atos dos Apoacutestolos proiacutebe se imponha o jugo sobre os ombros dos disciacutepulos E Paulo diz aos Coriacutentios que a autoridade lhe foi dada para salvar e natildeo para condenar Por que entatildeo multiplicam assim os pecados com tais imposiccedilotildeeshellip Se os Bispos tecircm poder de sobrecarregarem as igrejas com inuacutemeras prescriccedilotildees e de onerar as consciecircncias por que entatildeo a Sagrada Escritura proiacutebe tatildeo frequumlentemente que se faccedilam mandamentos

1 Eacute o que se vecirc claramente pela lista de traditiones feitas no tempo do Conciacutelio de Trento Cf a nota 44 da segunda parte desse livro

humanos e se escravizem os homens Porque chama ela a estas coisas de doutrina de Satanaacutes Foi acaso em vatildeo que o Espiacuterito Santo fez tais advertecircnciasrdquo 2

Lutero identificou aqui a traditio com os abusus Tradiccedilatildeo segundo ele eacute lei humana pela qual o homem se esconde de Deus e pior ainda se levanta contra Ele para tomar nas proacuteprias matildeos a tarefa de sua salvaccedilatildeo em vez de esperaacute-la da libeacuterrima graccedila do Senhor A Tradiccedilatildeo assim entendida como Lei eacute contraposta agrave mensagem da graccedila ldquoDevemos aceitar cada [17] um dos artigos do Evangelho para alcanccedilarmos a graccedila de Deus sem meacuterito nosso atraveacutes da feacute em Jesus Cristo e natildeo pretender merececirc-la mediante praacuteticas do culto inventado pelos homensrdquo3

O problema da Tradiccedilatildeo tornou-se ainda mais agudo devido a um segundo aspecto que de resto natildeo conduziu a nenhum resultado positivo Descobrindo o Evangelho teve Lutero igualmente a impressatildeo de libertar a Palavra de Deus da pesada cadeia do Magisteacuterio eclesiaacutestico que se teria apossado desta Palavra e natildeo mais a entendia em seu verdadeiro sentido empregando-a antes a seu bel-prazer A ideacuteia de que a palavra divina aprisionada na Igreja catoacutelica agrave autoridade do Magisteacuterio ficou privada de sua forccedila viva eacute sempre repetida nos escritos dos Reformadores Melanchton poreacutem fecirc-lo talvez de um modo mais humano e flexiacutevel quando apocircs com reservas a sua assinatura aos artigos luteranos de Esmalca ldquo quanto ao Papa acho eu que jaacute que ele quis abandonar o Evangelho devemos noacutes de nossa parte tolerar (e admitir) para o bem da paz e da unidade a sua superioridade sobre os Bispos superioridade esta que ele possui iure humanordquo 4

Este estado de coisas impregnou outrossim a ideacuteia de Igreja da Confessio Augustana uma vez que aiacute se diz que a Igreja eacute a congregatio sanctorum in qua Evangelium pure docetur et recte administrantur Sacramenta5 Assim a Igreja eacute marcada por duplo aspecto pela pureza da doutrina e pela administraccedilatildeo legiacutetima dos Sacramentos Nem uma palavra sobre o Magisteacuterio Na realidade para a elaboraccedilatildeo do conceito de Igreja este silecircncio da CA natildeo eacute menos importante do que o que ela aiacute diz Eacute um silecircncio evidentemente intencional e denuncia a oposiccedilatildeo dos Reformadores agrave concepccedilatildeo catoacutelica de Igreja [18] entatildeo vigente e ateacute hoje conservada Esta consta de trecircs elementos a fides correspondente ao pure docere a communio que corresponde ao sacramenta e a auctoritas6 O Magisteacuterio aparece aqui como criteacuterio da palavra Eacute o seu fiador Segundo Melanchton daacute-se o contraacuterio a palavra eacute que eacute o criteacuterio do Magisteacuterio Este deve em uacuteltima anaacutelise ser provado pela palavra e pode consequumlentemente ser negado A palavra eacute auto-suficiente e paira sobre o Magisteacuterio como uma grandeza autocircnoma Talvez nesta inversatildeo de relaccedilotildees eacute que estaacute propriamente o contraste entre o conceito catoacutelico e o protestante de Igreja Contradiccedilatildeo paralela se daacute em torno da ideacuteia de Tradiccedilatildeo Com efeito a negaccedilatildeo do Magisteacuterio como criteacuterio da palavra significa a reduccedilatildeo da palavra de Deus agrave Escritura que seraacute entatildeo o

2Art 28 39-42 in Die Bekenntnisschriften der evangelisch lutherischen Kirche Gotinga 1952 p126 3 Art 28 52 Op cit p129 4 Op cit p463 5 Art 7 1 paacuteg 61 6 Sobre este ponto e o seguinte cf J RATZINGER ldquoDas geistliche Amt und die Einheit der Kircherdquo in Catholica 17 (1963) p 165-179

uacutenico sustentaacuteculo autocircnomo e autecircntico da palavra natildeo admitindo a Tradiccedilatildeo como uma grandeza em si

O Conciacutelio de Trento em seu estudo sobre a Tradiccedilatildeo teve diante dos olhos os dois pontos de vista contraacuterios e procurou formular sua resposta levando ambos em consideraccedilatildeo Eacute por isso conveniente analisarmos como estas duas posiccedilotildees se inter-relacionam em face da equiparaccedilatildeo feita por Lutero entre a Traditio e os abusus Em outros termos como os Padres conciliares se colocam diante do dilema dever-se-ia responder aos ataques de Lutero diretamente com uma definiccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo Ou antes de tudo com a reformatio a coerccedilatildeo dos abusus7

No tocante agrave doutrina o Conciacutelio refutou ex professo a censura dos Reformadores sustentando que a palavra natildeo eacute uma realidade autocircnoma pairando acima da Igreja Ela eacute dada pelo [19] Senhor agrave Igreja e natildeo entregue ao capricho dos homens Permanece justamente por isso nas Suas matildeos subtraindo-se ao alcance do alvitre humano Na visatildeo dos Padres de Trento deve no fundo ter parecido uma falta de confianccedila o terem os homens receio da palavra escrita entregue agrave Igreja como se a Igreja pudesse abusar dela Como se se pudesse apelar para a palavra da Revelaccedilatildeo contra a Igreja Estava-se inquestionavelmente certo de que o Senhor que instituiu a Igreja como Seu Corpo haveria de se empenhar em tutelaacute-la contra o perigo de abusar de Sua palavra

Hoje decorridos quatro seacuteculos desde a Reforma podemos confessar que na oposiccedilatildeo que dividia entre si Lutero e o Conciacutelio de Trento tanto depois como antes o dilema que dilacerou a Cristandade ocidental de certo modo jaacute desapareceu Vecirc-se isto pela troca de correspondecircncia entre Harnack e Peterson Peterson ao agradecer o tratado de Harnack Das Alte Testament in den Paulinischen Briefen und in den Paulinischen Gemeiden observou que este em seu cotejo da Escritura com a exegese biacuteblica tinha adotado natildeo o princiacutepio protestante mas o catoacutelico Escreveu Harnack ldquoDizer que o chamado lsquoprinciacutepio formalrsquo do Protestantismo primitivo eacute uma impossibilidade criacutetica e que ao contraacuterio o princiacutepio catoacutelico eacute formalmente o melhor eacute um truiacutesmo Materialmente poreacutem o princiacutepio catoacutelico da Tradiccedilatildeo opotildee-se agrave Biacuteblia muito mais diretamente (As tradiccedilotildees satildeo como ervas daninhas a serem cortadas pela tesoura do Magisteacuterio) A melhor fonte eacute o Novo Testamentordquo 8

Nesta formulaccedilatildeo de certo modo geneacuterica e simplista e na oposiccedilatildeo estabelecida entre os aspectos material e formal vem de novo agrave tona o antigo dilema poder-se-aacute confiar a palavra agrave Igreja sem temor de que ela sob a tesoura do Magisteacuterio ou [20] envolta no mato selvagem do sensus fidelium perca a sua forccedila proacutepria e sua vitalidade Esta eacute a pergunta que os Protestantes fazem aos Catoacutelicos Poder-se-aacute aceitar a autonomia da palavra sem com isto ser esta exposta ao arbiacutetrio dos exegetas aos maus tratos por parte dos historiadores e enfim ao completo desamparo Eis como os Catoacutelicos revidam aos Protestantes Com efeito segundo nossa doutrina natildeo eacute a noacutes que compete decidir se queremos ou natildeo confiar a palavra agrave Igreja Foi o proacuteprio Senhor quem lha confiou Note-se entretanto que quando o Catoacutelico encara seriamente este assunto natildeo deixa de considerar o zelo pela pureza da palavra revelada como um dever

7 Ver as notas 41 e 42 na 2ordf parte 8 Citado in E PETERSON Theologische Traktate Munique 1951 p295

da mais alta importacircncia Ele sabe que natildeo cumpre este dever pelo simples fato de apelar para a inerracircncia da Igreja Fazecirc-lo seria menosprezar o sentido da luta de Lutero em favor da Palavra deixando-se de ver nisto uma salutar advertecircncia e um apelo dirigido agraves almas

Natildeo obstante tudo isto a histoacuteria da controveacutersia natildeo se deteve no decurso dos quatro seacuteculos que se seguiram agrave Reforma Duas diferentes tendecircncias se destacam nas relaccedilotildees entre o Protestantismo e o Catolicismo e entre suas respectivas teologias De um lado uma radicalizaccedilatildeo de cada grupo nos proacuteprios pontos de vista Cada grupo a partir de entatildeo fez sua histoacuteria proacutepria e desenvolveu-a em direccedilatildeo oposta um ao outro Por outro lado a distacircncia mantida entre ambos possibilita maior objetividade em seus julgamentos reciacuteprocos Existe finalmente de parte a parte um renovado esforccedilo por superar as fronteiras com vistas a um encontro

Quem entre os Catoacutelicos empreendeu o mais significativo passo para chegar a uma visatildeo nova do problema da Tradiccedilatildeo mediante a superaccedilatildeo de posiccedilotildees unilaterais e anti-reformistas foi em nossos dias o teoacutelogo dogmaacutetico de Tubinga Josef Rupert Geiselmann Seus esforccedilos foram frutuosos fazendo-se sentir a sua influecircncia inclusive nos estudos preparatoacuterios do [21] Conciacutelio e deram agraves incursotildees do Vaticano II nesta aacuterea aquela marcante atualidade que ainda na primeira sessatildeo levou este problema a transcender do ciacuterculo da luta doutrinal entre as vaacuterias escolas teoloacutegicas para se transformar em uma preocupaccedilatildeo de toda a Cristandade catoacutelica9

A tese de Geiselmann eacute conhecida Basta-nos esboccedilaacute-la rapidamente aqui a fim de lanccedilarmos as bases de uma reflexatildeo que procuraraacute aprofundar mais este assunto e talvez dar um modesto passo agrave frente Geiselmann parte de uma interpretaccedilatildeo nova do sentido dado pelo Conciacutelio ao conceito de Tradiccedilatildeo O tridentino estabelecera que a verdade do Evangelho estaacute contida in libris scriptis et sine scripto traditionibus Isto foi e eacute ateacute hoje interpretado como se a Escritura natildeo contivesse toda a veritas evangelii Portanto natildeo eacute possiacutevel admitir-se a sola Scriptura uma vez que uma parte da Revelaccedilatildeo nos eacute transmitida somente pela Tradiccedilatildeo Geiselmann aproveitou a observaccedilatildeo jaacute antes feita por alguns autores de que na primeira redaccedilatildeo do texto focircra adotada a foacutermula segundo a qual a verdade estaria contida partim in libris scriptis partim in sine scripto traditionibus Estaria aqui claramente expressa a doutrina da divisatildeo da verdade revelada em duas fontes (Escritura e Tradiccedilatildeo) O Conciacutelio abandonou a expressatildeo partim ndash partim preferindo usar o simples conectivo et Geiselmann daiacute conclui afastou-se o Conciacutelio da ideacuteia da divisatildeo da verdade em duas fontes diversas Ou pelo menos natildeo a definiu explicitamente E continua o mesmo autor com isto pode tambeacutem o teoacutelogo catoacutelico aceitar a ideacuteia de uma suficiecircncia material da Escritura Pode ainda mesmo permanecendo catoacutelico defender a opiniatildeo de que a Sagrada Escritura eacute suficiente para transmitir-nos a [22] Revelaccedilatildeo Geiselmann admite consequumlentemente que a sola Scriptura pode conceber-se como uma uacutenica fonte

9 Cf R LAURENTIN Lenjeu du Concile Bilan de Ia premiegravere session Paris 1963 p27-45 Y CONGAR Vatican II Le Concile au jour le jour Paris 1963 p63-71 J RATZINGER Die erste Sitzungsperiode des Zweiten Vatikanischen Konzils Colocircnia 1963 p38-50

material da Revelaccedilatildeo Ele crecirc ainda poder mostrar que a tradiccedilatildeo mais forte eacute a favor desta sentenccedila e que o proacuteprio Conciacutelio de Trento se inclina neste sentido10

Eacute faacutecil de se compreender que semelhante tese tenha obtido o apoio de muitos em face das novas possibilidades de encontro entre Catoacutelicos e Evangeacutelicos possibilidades estas que a posiccedilatildeo de Geiselmann parece favorecer11 Que esta tese na realidade constitua um passo consideraacutevel neste sentido parece ser incontestaacutevel Todavia tatildeo logo a analisemos mais de perto em seus fundamentos histoacutericos e reais surge de pronto toda uma seacuterie de dificuldades graves a tornarem impossiacutevel a sua aceitaccedilatildeo

Sobre o aspecto histoacuterico deste problema apresentaremos vaacuterias observaccedilotildees na segunda parte deste nosso opuacutesculo Entrementes consideremos de imediato o lado praacutetico deste assunto Seu exame provoca inicialmente esta pergunta que significa propriamente a expressatildeo ldquosuficiecircncia da Escriturardquo Geiselmann como teoacutelogo catoacutelico que eacute natildeo deixa de sustentar os nossos dogmas Ora nenhum dogma catoacutelico eacute provado sola Scriptura Nem os grandes dogmas primitivos sustentados pelo consensus quinquesaeligcularis nem tampouco o de 1854 e [23] menos ainda o de 1950 Em que sentido entatildeo se pode falar em suficiecircncia da Escritura Natildeo ameaccedilaraacute esta converter-se em perigosa fraude pela qual nos enganamos primeiramente a noacutes proacuteprios e em seguida tambeacutem enganamos aos outros (Ou natildeo seratildeo talvez justamente eles que natildeo se enganam) Ou entatildeo pelo menos para sustentarmos de um lado que a Escritura sozinha conteacutem toda a verdade da Revelaccedilatildeo e de outro lado que o dogma de 1950 eacute verdade revelada natildeo deveremos noacutes refugiar-nos em um conceito tatildeo largo de suficiecircncia que na verdade esta palavra venha a perder todo o seu significado

Com isto abre-se a segunda (que de fato eacute a primeira) questatildeo decisiva a saber seraacute verdade que os debates em torno da ideacuteia da suficiecircncia da Escritura resolveram mesmo o problema do conceito de Tradiccedilatildeo Ou ao contraacuterio natildeo estaremos noacutes aqui diante de um problema de raiacutezes muito mais profundas

Nossas observaccedilotildees introdutoacuterias devem ter deixado claro que esta uacuteltima pergunta deve sem duacutevida nenhuma ser respondida afirmativamente A questatildeo da suficiecircncia da Escritura eacute apenas um problema secundaacuterio no acircmbito da distinccedilatildeo muito mais importante que foi jaacute antes apontada por noacutes ao tratarmos dos conceitos abusus e auctoritas e que gira em torno do nexo entre a autoridade da Igreja e a autoridade da Sagrada Escritura Da compreensatildeo disto depende tudo o mais

Para irmos mais adiante torna-se necessaacuterio analisarmos profundamente o assunto natildeo para nos determos no exame dos conceitos tatildeo relevantes de suficiecircncia ou insuficiecircncia da Escritura mas antes para abordarmos em seu tudo o vasto problema da Palavra revelada e presente no coraccedilatildeo dos fieacuteis Torna-se evidente entatildeo que agrave luz das fontes positivas a Escritura e a Tradiccedilatildeo devem ser postas em relaccedilatildeo tatildeo iacutentima que da

10 Ver sobretudo a obra de J R GEISELMANN Die Heilige Schrift und die Tradition Friburgo 1962 principalmente as p91-107274-282 Entre os trabalhos anteriores escritos por Geiselmann sobre o mesmo tema eacute de particular importacircncia o seguinte Das Konzil von Trient uumlber das Verhaumlltnis der Heiligen Schrift und der nichtgeschriebenen Traditionen in M SCHMAUS Die muumlndliche Uumlberlieterung Munique 1957 p 123-206 11 Uma lista de todos os autores que mais concordaram com Geiselmann eacute fornecida por H KUumlNG em sua tese ldquoKarl Barths Lehre vom Wort Gottes als Frage an die katholische Theologierdquo in Einsicht und Glaube publicado por J RATZINGER-H FRIES Friburgo 1963 p 105 nota 25

fonte interna (a Revelaccedilatildeo) brote a pa1avra de Deus viva sob aquela dupla formalidade A Escritura e a Tradiccedilatildeo natildeo podem [24] ser entendidas uma sem a outra no sentido que ambas tecircm agrave luz da feacute O problema ldquoEscritura e Tradiccedilatildeordquo permaneceraacute insoluacutevel enquanto natildeo for reduzido a uma soacute questatildeo a saber a questatildeo ldquoRevelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeordquo e inserida enfim no amplo contexto a que pertence

Eu gostaria de nas paacuteginas seguintes sem entrar em todos os detalhes tentar desenvolver em forma de teses e de maneira positiva o conceito de Tradiccedilatildeo partindo de sua natureza iacutentima com a esperanccedila de que nele descubramos uma parte da resposta aos anseios dos Reformadores Desta maneira toda esta anaacutelise serviraacute de contribuiccedilatildeo para o diaacutelogo interconfessional cuja necessidade tanto os Catoacutelicos como os Protestantes vecircm proclamando de maneira cada vez mais insistente

II - Teses sobre a relaccedilatildeo entre a Revelaccedilatildeo e a Tradiccedilatildeo

1 A Revelaccedilatildeo e a Escritura A primeira tese em aditamento ao conceito patriacutestico de Escritura e Revelaccedilatildeo

poderia enunciar-se nos seguintes termos o fato de existir uma ldquoTradiccedilatildeordquo repousa antes de tudo na diferenccedila que permeia entre estas duas realidades ldquoRevelaccedilatildeordquo e ldquoEscriturardquo A Revelaccedilatildeo exprime propriamente o falar e o agir de Deus em relaccedilatildeo aos homens Designa uma realidade expressa pela Escritura sem ser contudo a proacutepria Escritura A Revelaccedilatildeo por conseguinte ultrapassa a Escritura na mesma medida em que a realidade ultrapassa a sua expressatildeo escrita12 Poder-se-ia [25] tambeacutem dizer que a Escritura eacute o princiacutepio material da Revelaccedilatildeo (Talvez princiacutepio uacutenico talvez um princiacutepio entre outros isto seraacute esclarecido mais adiante) Ela natildeo eacute poreacutem a proacutepria Revelaccedilatildeo Isto era aliaacutes bem sabido dos proacuteprios Reformadores mas comeccedilou visivelmente a ser esquecido no aceso da controveacutersia entre a teologia catoacutelica poacutes-tridentina e a ortodoxia protestante13 Em nosso seacuteculo foram justamente os teoacutelogos evangeacutelicos Barth e Brunner que redescobriram este fato de todo evidente para a teologia patriacutestica e medieval14

O que acabamos de afirmar ficaraacute mais claro se partirmos de outro princiacutepio a Escritura pode ser possuiacuteda sem que se possua a Revelaccedilatildeo Isto porque a Revelaccedilatildeo eacute sempre e em primeiro plano uma realidade a realidade onde se encontra a feacute Aquele

12 Esta afirmaccedilatildeo natildeo tem o sentido de que a Escritura seja uma mera e vazia narrativa de realidades a ela exteriores Antes como o que se segue iraacute demonstrar indica que a Revelaccedilatildeo eacute realizada na Palavra jaacute que eacute por meio de palavras que ela se comunica aos homens Contudo a mera presenccedila da palavra ainda natildeo eacute a Revelaccedilatildeo Esta eacute mais do que simples ldquopresenccedilardquo Com o que ficou dito salienta-se a diferenccedila que existe entre a palavra e seu conteuacutedo Esta diferenccedila natildeo exclui o caraacuteter verbal da Revelaccedilatildeo 13 Cf A GLOEGE Schriftprinzips RGG V 1540-1543 onde se encontraraacute a mais completa bibliografia LthK VII 1104-1115 J R GEISELMAN Offenbarung in H FRIES Handbuch zum Begriff der Offenbarung cf M VERENO - R SCHNACKENBURG - HRIES in Theologischer Grundbergriffe II Munique 1963 p242-250 e a bibliografia aiacute citada 14 Cf W H VAN DER POL Das reformatorische Christentum Einsiedeln 1956 p117-192

que natildeo crecirc acha-se como que coberto por um veacuteu o veacuteu de que fala Satildeo Paulo no terceiro capiacutetulo da segunda epiacutestola aos Coriacutentios15 Ele pode ler a Escritura e saber o que nela se conteacutem Pode ateacute mesmo apreender de modo puramente intelectual o que aiacute eacute significado e como suas ideacuteias se inter-relacionam Todavia natildeo possui com isto a Revelaccedilatildeo A Revelaccedilatildeo eacute sobretudo possuiacuteda quando aleacutem da expressatildeo material que a atesta se potildee tambeacutem em praacutetica o seu conteuacutedo interno por meio da vivecircncia da feacute Com efeito de certo modo se inclui tambeacutem na Revelaccedilatildeo o sujeito recipiente sem o qual ela natildeo pode existir Natildeo se pode pocircr a Revelaccedilatildeo no bolso como se faz com [26] um livro Ela eacute uma realidade viva Exige homens vivos que a recebam que sirvam de ldquolugarrdquo de sua presenccedila

Repetindo o que ateacute aqui dissemos podemos afirmar que a Revelaccedilatildeo sobreexcede de fato a Escritura em dois sentidos

a) em sentido ascendente ela atinge sempre como realidade procedente de Deus o agir divino sobre as criaturas

b) como realidade que se daacute ao homem por meio da feacute ela atinge igualmente a Escritura

Desta diferenccedila entre a Escritura e a Revelaccedilatildeo resulta claramente que de todo independentemente da questatildeo se a Escritura eacute ou natildeo eacute a uacutenica fonte material em rigor nunca existe para o cristatildeo a sola Scriptura (Isto como ficou dito era claro em princiacutepio para os grandes Reformadores e comeccedilou a ser esquecido na chamada ortodoxia protestante) A Escritura natildeo eacute a Revelaccedilatildeo Eacute sim em uacuteltima anaacutelise uma parte desta realidade mais ampla

2 Os diferentes sentidos da Escritura

no Antigo e Novo testamento A problemaacutetica cristatilde da Revelaccedilatildeo ou o problema ldquoEscritura e Tradiccedilatildeordquo situa-se

melhor se considerarmos o duplo aspecto da mesma Revelaccedilatildeo no Antigo e no Novo Testamento A este duplo aspecto corresponde tambeacutem um duplo sentido da Escritura Assim como os dois Testamentos como tais se distinguem essencialmente assim tambeacutem devemos dizer que a ldquoEscriturardquo como um fato natildeo eacute repetida duas vezes do mesmo modo Isto aparece muito claro nos livros neotestamentaacuterios Sob a expressatildeo ldquoEscriturardquo designam eles somente o Antigo Testamento Para eles o AT eacute e permanece sendo ldquoa Escriturardquo cujo sentido se aclara mediante sua confirmaccedilatildeo no evento da [27] vinda de Cristo16 Os livros do NT natildeo jogam uma Escritura nova contra uma Escritura antiga Nem potildeem uma simplesmente ao lado da outra Potildeem sim em face da uacutenica Escritura ou seja do Antigo Testamento o Cristo-evento como o espiacuterito que explica a letra Esta concepccedilatildeo fundamental ilumina tambeacutem a forma da feacute mais antiga e a torna por primeiro compreensiacutevel O ldquoJesusrdquo formal eacute o ldquoCristordquo expresso no Antigo Testamento Natildeo eacute outra coisa No Jesus Histoacuterico o Cristo-mensagem do

15 Cf sobre estas reflexotildees o importante artigo (ἀποκαλύπτω de A OEPKE in ThWNT III p565-597 16 Ver sobre este ponto as preciosas conclusotildees de G SCHRENK art γραφή ndash γράμμα in ThWNT I p749-769 e a p767

Antigo Testamento atinge a sua consumaccedilatildeo Eacute a partir do AT que se entende quem eacute Jesus E o que o Testamento Antigo expressa pode ser visto agrave luz do Cristo-evento

Esta ideacuteia aparece em Paulo ao apresentar ele o Antigo e o Novo Testamentos como Gramma e Pneuma isto eacute letra e espiacuterito (2Cor 3 6-18) Ele chama ao Senhor de Pneuma A Escritura explica-o como sendo o seu sentido o seu conteuacutedo verdadeiro e vivo e natildeo apenas literaacuterio Paulo se refere agrave concepccedilatildeo do Novo Testamento apresentada por Jeremias (3133) Natildeo eacute mais necessaacuteria nenhuma Escritura porque a lei estaacute escrita nos coraccedilotildees Jaacute natildeo eacute necessaacuteria nenhuma doutrinaccedilatildeo vinda de fora porque o proacuteprio Deus instrui os homens Joatildeo exprime idecircntico pensamento em seguimento ao decircutero-Isaiacuteas (5413) quando descreve a era inaugurada por Cristo como o tempo no qual todos satildeo doutrinados por Deus mesmo E o sermatildeo de Pedro em Pentecostes transmitido pelos Atos dos Apoacutestolos (2 14-36) desenvolve a mesma ideacuteia tirada de Joel (3 1-5) Em todos estes casos aparece a era instaurada por Cristo como resposta agrave esperanccedila no advento de um tempo futuro que em uacuteltima anaacutelise haveria de tornar supeacuterflua a Escritura graccedilas agrave presenccedila imediata do Divino Mestre na Sua humanidade

Quando se pondera o sentido destas afirmaccedilotildees torna-se claro [28] que ao reduzir-se a ldquoEscriturardquo aos escritos do Antigo Testamento natildeo se estaacute apenas usando uma terminologia antiga que teria sido adotada por falta de escritos propriamente neotestamentaacuterios e que teria perdido seu sentido na segunda metade do seacuteculo segundo com o iniacutecio do cacircnon do Novo Testamento Ao contraacuterio Aqui se expressa uma consciecircncia que se tornaria mais niacutetida a partir da formaccedilatildeo da proacutepria Escritura neotestamentaacuteria muito ao inveacutes de cessar ou de desaparecer

Uma coisa eacute certa a ldquoEscriturardquo na nova ordem da salvaccedilatildeo inaugurada por Cristo toma um lugar distinto do que lhe cabia no Antigo Testamento Com isto pode-se ver ateacute que ponto o Antigo Testamento tem sentido autocircnomo O AT certamente natildeo aparecia desde o comeccedilo como Testamento do Gramma Escritura em sentido proacuteprio como ocorreraacute na pena de Satildeo Paulo17 Por outro lado manifesta-se realmente a partir de Jeremias e do decircutero-Isaiacuteas o anelo pela superaccedilatildeo do Gramma mediante uma nova e imediata comunicaccedilatildeo do Espiacuterito de Deus simultaneamente com a progressiva formaccedilatildeo de um princiacutepio da Escritura que mais e mais a transformou em Lei Lei esta que natildeo tornaria os homens vivos mas sim mortos

Desta maneira na concepccedilatildeo neotestamentaacuteria aparece o Antigo Testamento como ldquoEscriturardquo em sentido proacuteprio Escritura que atinge o seu verdadeiro significado atraveacutes do Cristo-evento pelo fato de ser ela inserida no contexto vivo da realidade de Cristo Se no Novo Testamento de facto a Escritura cresceu natildeo pode mais ter aquele sentido uacuteltimo e exclusivo que lhe competia no Antigo segundo a concepccedilatildeo paulina Ao contraacuterio Ela eacute a chave com que se abre o Antigo Testamento deixando-se banhar na claridade do Cristo-evento Ela eacute tambeacutem a ponte permanente que conduz a uma nova interpretaccedilatildeo biacuteblica agrave luz [29] de Cristo Num caso e noutro a Escritura natildeo pretende de modo nenhum ser autocircnoma nem ser a fonte uacutenica e exclusiva de sua exegese literal Mas soacute pode ter sentido na realidade espiritual de Jesus Cristo que

17 Ver a apreciaccedilatildeo feita por G VON RAD Theologie des Alten Testaments II Munique 1960 p402-424

permanece junto dos seus todos os dias ateacute ao fim do mundo (Mt 28 20) Apoacutes a subida ao Calvaacuterio Cristo veio de novo no Espiacuterito Santo (como narra Satildeo Joatildeo) e pelo Espiacuterito ensinou aos disciacutepulos o que eles entatildeo natildeo podiam ainda entender enquanto o Senhor estava entre eles sob forma visiacutevel (Jo 16 12)

3 Cristo a Revelaccedilatildeo de Deus

A realidade que se daacute como um acontecimento na Revelaccedilatildeo cristatilde natildeo eacute nada

mais nada menos do que o proacuteprio Cristo Cristo eacute a Revelaccedilatildeo em sentido proacuteprio ldquoQuem me vecirc vecirc o Pairdquo diz ele no Evangelho de Satildeo Joatildeo (14 9) Vale portanto dizer que receber a Revelaccedilatildeo eacute penetrar na realidade de Cristo no Cristo-evento Daiacute procede o paradoxo descrito por Satildeo Paulo ao fazer ele um trocadilho com as palavras ldquoCristo em noacutesrdquo e ldquonoacutes em Cristordquo

Neste contexto a anaacutelise de frases isoladas torna-se secundaacuteria de vez que elas satildeo apenas explicaccedilotildees do uacutenico misteacuterio de Cristo Consequumlentemente cai por si mesma a questatildeo da suficiecircncia interna da Escritura tatildeo discutida desde o aparecimento das obras de Geiselmann Deveriacuteamos isto sim perguntar que significa em linguagem cristatilde a suficiecircncia interna da Escritura ldquoSuficienterdquo eacute soacute a realidade do Cristo-evento Esta pode ser explicada materialmente em maior ou menor grau E de maneira nunca definitiva Partindo deste princiacutepio podem existir tambeacutem outras explicaccedilotildees segundo a Escritura quando se aprofunda mais este assunto

Este mesmo tema pode ser considerado sob outro aspecto E ter-se-aacute entatildeo dado um passo a mais para a frente A aceitaccedilatildeo [30] da Revelaccedilatildeo pela qual aplicamos a noacutes o Cristo-evento vem na linguagem da Biacuteblia sob o nome de ldquofeacuterdquo Assim talvez se entenderaacute mais claramente de que maneira no Novo Testamento a feacute significa a ldquoin-habitaccedilatildeordquo de Cristo Se admitirmos que na Escritura a presenccedila da Revelaccedilatildeo tem o mesmo sentido que a presenccedila de Cristo entatildeo teremos de fato dado um passo adiante Ora na Escritura encontramos a presenccedila de Cristo apresentada de duas maneiras Ela aparece de um lado como jaacute vimos identificada com a feacute (Ef 317) na qual cada um encontra Cristo e se adentra nele penetrando no dinamismo de sua forccedila salvadora Por outro lado a feacute se oculta tambeacutem sob a expressatildeo paulina ldquoCorpo de Cristordquo o que quer dizer que a comunidade dos fieacuteis ndash a Igreja ndash funda a presenccedila de Cristo neste mundo Nela Cristo reuacutene os homens e os faz partiacutecipes de sua presenccedila dinacircmica18

Tomadas juntas estas duas noccedilotildees significam o seguinte a feacute eacute a adesatildeo iacutentima agrave presenccedila de Cristo realidade de Cristo presente da qual a Escritura nos daacute testemunho sem contudo se identificar de modo nenhum com ela Daiacute resulta que a presenccedila da Revelaccedilatildeo se relaciona essencialmente com a ldquofeacuterdquo e com a ldquoIgrejardquo realidades estas que como vimos estatildeo estreitamente ligadas entre si

Voltamos assim ao que foi afirmado na primeira tese a saber que a Revelaccedilatildeo sobreexcede a Escritura em duplo sentido em relaccedilatildeo a Deus por seu lado ascendente e em relaccedilatildeo tambeacutem ao homem que a recebe Esta asserccedilatildeo que a princiacutepio deixamos

18 H SCHLIER ldquoDie Kirche nach dem Brief an die Epheserrdquo in Die Zeit der Kirche Friburgo 1962 p159-186

um tanto vaga encontramo-la essencialmente concretizada na realidade objetiva do Cristianismo

4 A essecircncia da Tradiccedilatildeo

[31] A transmissatildeo ao povo de Deus do Cristo-evento que eacute a Revelaccedilatildeo e que tem sua bi-presenccedila na feacute e na Igreja faz-se atraveacutes da pregaccedilatildeo Pregaccedilatildeo eacute a ldquoex-posiccedilatildeordquo (Aus-legung) do duplo aspecto da Revelaccedilatildeo no Antigo e no Novo Testamento E isto de duas maneiras

a) ela eacute a exposiccedilatildeo do Antigo Testamento agrave luz do Cristo-evento e para o Cristo-evento

b) a partir do Pneuma e da condiccedilatildeo presente da Igreja Este uacuteltimo aspecto eacute possiacutevel pois Cristo natildeo estaacute morto Estaacute vivo Natildeo eacute

apenas o Cristo de ontem Eacute tambeacutem e a fortiori o Cristo de hoje e de amanhatilde o Cristo vivo e presente em sua Igreja que eacute seu Corpo e na qual o seu espiacuterito opera

Isto poderaacute ser melhor compreendido se partirmos da essecircncia da Igreja Como nos ensina o Novo Testamento a mensagem de Jesus eacute antes de tudo uma mensagem escatoloacutegica com vistas ao reino de Deus natildeo com vistas agrave Igreja O fato de existir a Igreja natildeo se opotildee a esta mensagem mas haacute na marcha gradativa das revelaccedilotildees de Cristo uma segunda possibilidade Assim a atividade dos Doze depois de Pentecostes aponta natildeo para a Igreja mas para o reino de Deus Informam-nos os Atos dos Apoacutestolos que os Doze natildeo se ocuparam primordialmente em missionar os povos Esforccedilaram-se antes muito mais em converter Israel criando deste modo as condiccedilotildees preacutevias para a implantaccedilatildeo do reino De iniacutecio uma seacuterie de obstaacuteculos histoacutericos entre os quais deveriacuteamos citar antes de tudo o martiacuterio de Estevatildeo o supliacutecio de Tiago e por fim o fato decisivo da prisatildeo e da libertaccedilatildeo de Pedro Tais fatos levaram a comunidade primitiva segundo dizem as fontes a reconhecer como definitivo o malogro do esforccedilo de converter Israel E consequumlentemente forccedilaram os Apoacutestolos a partir em busca dos gentios e a cuidar [32] assim da Igreja e natildeo do reino Eles o fazem segundo se depreende das passagens referidas e principalmente dos esclarecimentos do capiacutetulo 15 dos Atos dos Apoacutestolos como uma nova opccedilatildeo feita sob a accedilatildeo do Espiacuterito Santo Com isso iniciou-se uma nova interpretaccedilatildeo da mensagem de Cristo sobre a qual a Igreja essencialmente repousa19

19 Cf as decisivas conclusotildees de E PETERSON ldquoDie Kircherdquo in Theologische Traktate Munique 1951 p 409-429 H SCHLIER Die Entscheidung fuumlr die Heidenmission in der Urchristenheit Die Zeit der Kirche p 90-107 Parece-me certo que nem a anaacutelise da tradiccedilatildeo sinoacutetica relativa agrave mensagem de Jesus e seu caraacuteter escatoloacutegico nem o estudo da histoacuteria da Igreja primitiva com base no material fornecido pelos Atos dos Apoacutestolos autorizam qualquer outra conexatildeo entre a mensagem do reino e a pregaccedilatildeo da Igreja Daiacute natildeo se segue de modo nenhum ndash como muitas vezes se teme ndash que a cruz seja um acidente secundaacuterio que em rigor poderia ter sido evitado Ao contraacuterio A estrutura da Igreja moldada sobre a cruz eacute fundamental porque aiacute eacute que por primeiro se encontra a confirmaccedilatildeo da importacircncia da liberdade humana de Cristo e da sua Paixatildeo bem como a iacutentima dependecircncia da Igreja para com a Cruz donde ela procede

Este fato que baseia o estabelecimento definitivo da Igreja sobre uma decisatildeo tomada ldquono Espiacuterito Santordquo eacute o fundamento para se afirmar que existe uma interpretaccedilatildeo eclesial do Novo Testamento do mesmo modo que existe uma exegese cristoloacutegica do Antigo Daiacute podermos estabelecer as seguintes teses ou proposiccedilotildees agrave luz da analogia fidei

a) Existe uma teologia veterotestamentaacuteria do Antigo Testamento que o exegeta

deduz de seu conteuacutedo interno e que se desenvolve em uma seacuterie de camadas superpostas Segundo ela os textos antigos devem ser relidos e de novo expostos agrave luz dos novos acontecimentos O fenocircmeno da aplicaccedilatildeo dos textos agraves situaccedilotildees novas do desdobramento da Revelaccedilatildeo mediante nova [33] apresentaccedilatildeo do Antigo Testamento estrutura jaacute de modo essencial o conteuacutedo interno veterotestamentaacuterio20

b) Existe uma teologia neotestamentaacuteria do Antigo Testamento que natildeo coincide com

a referida teologia veterotestamentaacuteria Estaacute contudo estreitamente ligada com ela na unidade da analogia fidei21 Talvez partindo daqui se possa esclarecer o que significa a analogia fidei entre Os dois Testamentos A teologia neotestamentaacuteria do Antigo Testamento natildeo eacute como ficou dito idecircntica agrave teologia histoacuterica veterotestamentaacuteria Ao contraacuterio Re-exposiccedilatildeo feita agrave luz do Cristo-evento ela natildeo procede soacute da mera consideraccedilatildeo histoacuterica do Antigo Testamento Sendo embora em seu pleno conceito uma interpretaccedilatildeo relacionada com o Antigo Testamento contudo nada faz com que ela seja internamente estranha agrave sua essecircncia ainda que soacute de fora o atinja Ela amplia a forma estrutural do Antigo Testamento que assim interpretado revive e cresce

c) Existe uma teologia neotestamentaacuteria do Novo Testamento paralela agrave teologia veterotestamentaacuteria do Antigo Ou seja a teologia que o exegeta como tal pode deduzir do conteuacutedo interno do Novo Testamento eacute tambeacutem esta conhecida e estruturada mediante a aplicaccedilatildeo do Antigo Testamento agraves novas situaccedilotildees

d) Existe uma teologia eclesial do Novo Testamento que noacutes [34] chamamos Dogmaacutetica Ela se relaciona com a teologia neotestamentaacuteria do Novo Testamento do mesmo modo que a teologia neotestamentaacuteria do Antigo se relaciona com a respectiva teologia veterotestamentaacuteria Aquele ldquomaisrdquo (das Mehr) que distingue propriamente a Dogmaacutetica da teologia biacuteblica eacute o que designamos com a palavra Tradiccedilatildeo Aliaacutes tambeacutem aqui devemos salientar que a teologia eclesiaacutestica neotestamentaacuteria pela mesma razatildeo natildeo eacute simplesmente idecircntica agrave teologia neotestamentaacuteria interna e

20 Cf H GROSS Motivtransposition als Form- und Traditionsprinzip im Alten Testament in H VORGRIMLER Exegese und Dogmatik Moguacutencia 1962 p134-152 e a bibliografia aiacute fornecida G v RAD Theologie des Alten Testaments II Munique 1960 p332-339 396-401 21 A diferenccedila entre as duas teologias do Antigo Testamento foi vivamente exposta por R BULTMANN ldquoWeissagung und Erfuumlllungrdquo in Glauben und Verstehen II Tubinga 1952 p162-186 - Sobre as necessaacuterias correccedilotildees a se fazerem para que se torne visiacutevel a base histoacuterica do que a teologia sistemaacutetica denomina ldquoanalogia fideirdquo cf G v RAD op cit p329-424 (entre outras) e principalmente a p 420 nota 25 e a p422 nota 29 Sobre o tema ldquoanalogia fideirdquo em ambos os Testamentos cf tambeacutem E PRZYWARA Alter und Neuer Bund Viena-Munique 1956

histoacuterica do Novo Testamento Ultrapassa-a sem contudo ser-lhe puramente externa Com efeito no Novo Testamento comeccedila jaacute o processo da exposiccedilatildeo pela Igreja das verdades reveladas A teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento processa-se dentro dele proacuteprio como de modo clariacutessimo se percebe na histoacuteria da Revelaccedilatildeo sinoacutetica22

Eacute oportuno fazermos ainda uma pequena observaccedilatildeo se cotejarmos atentamente a teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento com a Dogmaacutetica reconheceremos que se impotildee uma outra distinccedilatildeo A Dogmaacutetica como ciecircncia aleacutem da exposiccedilatildeo eclesiaacutestica do Novo Testamento abrange tambeacutem a teologia particular de cada teoacutelogo Neste caso para se falar com precisatildeo dever-se-ia apresentar somente o proacuteprio dogma como teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento

O que acabamos de referir natildeo passa naturalmente de um esboccedilo que necessitaria em seus pormenores de natildeo poucos esclarecimentos e distinccedilotildees a fim de ser completo No caso presente entretanto damos por suficiente este esboccedilo Resumindo o que ateacute aqui expusemos podemos agora destacar vaacuterias ldquoraiacutezesrdquo da Tradiccedilatildeo e apontar vaacuterias camadas em seu seio [35] lordf raiz a maior amplidatildeo da ldquoTradiccedilatildeordquo em referecircncia agrave ldquoEscriturardquo

2ordf raiz o caraacuteter especiacutefico da Revelaccedilatildeo neotestamentaacuteria como Pneuma em contraste com o Gramma Eacute o que na linguagem de Bultmann se poderia chamar de sua condiccedilatildeo de ldquonatildeo-objetordquo (Nichtobjektiviertbarkeit) A praxe eclesiaacutestica e a teologia medieval expressaram este aspecto ao sobreporem a fides agrave Scriptura isto eacute o dogma como regra de feacute agraves minuacutecias da lei escrita23 O dogma eacute como a chave hermenecircutica da Escritura que em uacuteltima anaacutelise sem o auxiacutelio da hermenecircutica ficaria sendo algo fechado

3ordf raiz o caraacuteter presencial do Cristo-evento e a presenccedila dinacircmica do Espiacuterito de Cristo em seu Corpo a Igreja E consequumlentemente o poder que tem a Igreja de fazer a pregaccedilatildeo do Cristo ontem e hoje pregaccedilatildeo esta cuja fonte se encontra na interpretaccedilatildeo eclesiaacutestica da mensagem do reino transmitida pelos Apoacutestolos

Em conexatildeo com estas trecircs raiacutezes da ideacuteia (ou melhor da realidade) da Tradiccedilatildeo podem distinguir-se na mesma as seguintes camadas

a) Na origem de toda Tradiccedilatildeo estaacute o fato de que o Pai enviou o Seu Filho ao mundo e que o Filho por sua vez se [36] entregou ndash como sinal ndash aos ldquopovosrdquo (παραδίδοται) Esta paraacutedosis original em sua forccedila direta e salvadora

22 Cf por exemplo a rica exposiccedilatildeo de G BORNKMANN Jesus von Nazareth Estutegarte 1956 Sobre a questatildeo aqui estudada cf H SCHLIER Uumlber Sinn und Aufgabe einer Theologie des Neuen Testaments in H VORGRIMLER Exegese und Dogmatik Mainz 1962 p6990 23 O que haacute de melhor sobre este assunto no tocante agrave Patriacutestica seraacute encontrado em HARNACK DG II (1931) p84-116 HARNACK diz na p 87 nota 3 o seguinte ldquoO Cacircnon era de iniacutecio a regra da feacute A Escritura estaacute centrada na verdade Sem duacutevida nenhuma sua autoridade funda-se solidamente no Antigo Testamento e nas palavras do Senhorrdquo ndash Que assim tenha pensado tambeacutem a Idade Meacutedia e que aqui aleacutem da revelatio (da qual falaremos na 2ordf parte deste livro) a fides sobrepondo-se agrave Scriptura estabelece a forma essencial do conceito de Tradiccedilatildeo foi o que tentei demonstrar em meu artigo Wesen und Weisen der auctoritas im Werk des heiligen Bonaventura in Die Kirche und ihre Aumlmter und Staumlnde (Festgabe Kardinals Frings publicado por CORSTEN-FROTZ-LINDEN Colocircnia 1960 p 58-72

prolonga-se na permanente presenccedila de Cristo no σῶμα Χριστοῦ ndash no Seu Corpo a Igreja Assim o misteacuterio integral da presenccedila de Cristo eacute antes de tudo a realidade total transmitida pela Tradiccedilatildeo (fato fundamental e decisivo sempre anterior a todas as explicaccedilotildees particulares mesmo as da Escritura) e reguladora do que deve propriamente ser transmitido

b) A Tradiccedilatildeo existe concretamente como presenccedila na feacute Esta por seu turno como ldquoin-habitaccedilatildeordquo de Cristo precede todas as explicaccedilotildees particulares e frutuosa e viva ldquoexplicita-serdquo (explizierend) atraveacutes dos tempos

c) A Tradiccedilatildeo tem seu oacutergatildeo na plenitude dos poderes da Igreja e portanto naqueles que satildeo os legiacutetimos depositaacuterios destes poderes24

d) A Tradiccedilatildeo exprime-se tambeacutem naquilo que emanado da autoridade da Igreja se tornou regra de feacute (Symbolum fides quaelig) Portanto a questatildeo de se saber se certas proposiccedilotildees foram transmitidas desde o

comeccedilo pela Tradiccedilatildeo ao lado da Escritura ou em outros termos se existe desde o comeccedilo um segundo princiacutepio material e autocircnomo ao lado da Escritura torna-se afinal um problema inteiramente secundaacuterio Talvez lhe devamos responder negativamente

5 A funccedilatildeo da exegese [37] Pelo que ateacute aqui dissemos ficaram esclarecidas quase que exclusivamente

trecircs pontos os limites da letra da Escritura a liberdade do Espiacuterito Santo e a autoridade da Igreja Acontece poreacutem que a exposiccedilatildeo que fizemos abriga ainda um sentido diverso relacionado com a justa preocupaccedilatildeo de Lutero da qual partimos

Se ficou estabelecido que a Revelaccedilatildeo se faz presente atraveacutes da pregaccedilatildeo e se pregaccedilatildeo eacute exposiccedilatildeo da palavra revelada entatildeo pode e deve agora ao que precede acrescentar-se o seguinte a Tradiccedilatildeo eacute essencialmente e sempre uma exposiccedilatildeo Natildeo existe de maneira autocircnoma e sim como explicaccedilatildeo como exposiccedilatildeo ldquorelacionada com a Escriturardquo

Isto vale para a pregaccedilatildeo do proacuteprio Jesus Cristo realizaccedilatildeo plena da Revelaccedilatildeo e sua exposiccedilatildeo feita com autoridade A pregaccedilatildeo de Jesus Cristo natildeo aparece como algo absolutamente novo na Escritura Isto eacute como algo ainda natildeo atestado no Antigo Testamento Ela ensina isto sim a essecircncia do que jaacute estava escrito e lhe confere uma vida nova que o simples exegeta natildeo pode comunicar-lhe

O que vale para a mensagem de Cristo que permanece a mesma sob diferentes modalidades de exposiccedilatildeo vale tambeacutem para a pregaccedilatildeo apostoacutelica e a eclesiaacutestica Como ldquoTradiccedilatildeordquo ela deve em uacuteltima anaacutelise ser uma exposiccedilatildeo ldquosegundo a Escriturardquo a ela sujeita e com ela relacionada Sem duacutevida natildeo eacute ela uma exposiccedilatildeo no 24 Estas ideacuteias natildeo podem ser desenvolvidas mais detalhadamente aqui como seria de desejar uma vez que em rigor estamos procurando apenas fundamentar o conceito de Tradiccedilatildeo Em razatildeo da brevidade que me impus contentei-me apenas nas teses precedentes com explanar o assunto ateacute ao ponto em que ficasse patente a relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a ldquoIgrejardquo (cf as teses 4 e 5) Para se descer a maiores detalhes dever-se-ia analisar tambeacutem o conceito de Igreja que supomos conhecido do leitor Para isto cf a nota 6 onde citamos nosso livro sobre o Ofiacutecio e a unidade da Igreja Encontram-se aiacute algumas observaccedilotildees sobre o assunto de que ora tratamos

sentido de mera interpretaccedilatildeo exegeacutetica Mas sim na autoridade espiritual recebida do Senhor a qual se consuma na existecircncia plena da Igreja em sua feacute em sua vida e em seu culto Contudo ela permanece sendo (mais ainda do que o Cristo-evento em que se funda a Igreja) uma ldquoex-posiccedilatildeordquo (Aus-Legung) comprometida com a Histoacuteria e com a Palavra [38] Exprime-se deste modo a sua ligaccedilatildeo com a accedilatildeo concreta de Deus nesta mesma Histoacuteria e em seu caraacuteter de fato histoacuterico uacutenico (o ἑφάπαξ ldquoo ocorrido uma soacute vezrdquo) A realidade cristatilde da Revelaccedilatildeo eacute tatildeo essencial quanto ldquoeternardquo e definitiva Resulta daiacute a unidade entre o Cristo da Feacute e o Jesus da Histoacuteria o Jesus histoacuterico natildeo eacute senatildeo o Cristo da Feacute ainda que a feacute seja sempre algo mais do que a histoacuteria

Segue-se que do mesmo modo que existe um ofiacutecio de custoacutedia da Revelaccedilatildeo por parte da Igreja ofiacutecio por ela mesma atestado existe tambeacutem um ofiacutecio de custoacutedia da mesma Revelaccedilatildeo por parte da exegese que penetra o sentido literal da Escritura e defende a uniatildeo do Logos com a carne contra qualquer perigo de gnose Existe portanto por assim dizer algo como uma autonomia especiacutefica da Escritura como regra objetiva e sob muitos pontos de vista esclarecedora do Magisteacuterio eclesiaacutestico Esta era sem duacutevida uma exigecircncia legiacutetima de Lutero que ainda natildeo foi devidamente acolhida na Igreja catoacutelica por parte do Magisteacuterio cujos limites internos nem sempre foram claramente entendidos

Dever-se-ia partindo daqui salientar uma dupla criteriologia em se tratando da feacute De um lado haacute o que a Igreja antiga chamou de ldquoregra da feacuterdquo norma reguladora da palavra revelada contida na Escritura e sua exposiccedilatildeo Esta praeligscriptio da posse da Escritura como proacutepria segundo Tertuliano exclui a possibilidade de qualquer uso legiacutetimo da mesma Escritura contra a Igreja Por outro lado haacute tambeacutem o limite da littera Scripturaelig ou do sentido literal historicamente fixaacutevel que de acordo com o que ficou dito natildeo constitui nenhum criteacuterio absoluto ou autocircnomo mas sim somente um criteacuterio relativo no confronto da feacute com a ciecircncia O que na Escritura se pode descobrir quer mediante estudo cientiacutefico quer por simples leitura tem a funccedilatildeo de um criteacuterio real a que deve estar atento inclusive o Magisteacuterio em suas explicaccedilotildees Certamente [39] trata-se entatildeo de elementos sub-componentes da ciecircncia que natildeo podem servir para se julgar a feacute mas nela encontram uma instacircncia criacutetica e tecircm tambeacutem um importante papel a exercer o de zelar pela pureza do ἑφάπαξ de tutelar o conteuacutedo da Revelaccedilatildeo e de defender o dualismo histoacuterico carneespiacuterito (ldquodie Sarx der Geschichterdquo) contra os arbiacutetrios da gnose que tende sempre a impor-se

A reformatio na qual estaacute empenhada a Igreja nesta hora histoacuterica tem um papel relevante a desempenhar Eacute a missatildeo de abrir novas perspectivas para o diaacutelogo tentando assim chegar a uma ldquoreformardquo diferente da do passado que culminou com a divisatildeo no seio da Cristandade ocidental Tal missatildeo se exerceraacute em harmonia com o pleno ofiacutecio de testemunho da Igreja que tira seu direito e sua forccedila da presenccedila do Espiacuterito e de Cristo presente em todos os tempos Pois ele eacute sempre o Cristo de agora com a plenitude de seus direitos e de seus poderes Ele eacute quem daacute legitimidade e vigor ao testemunho singular e definitivo da Escritura que por sua vez encontra seu pleno sentido na singularidade da accedilatildeo histoacuterico-salviacutefica de Jesus Cristo Ele deu ao Pai seu Corpo crucificado e dando-se a si mesmo santificou para sempre os que o receberam (cf Hb 1014 727) Ele eacute o Cristo ontem hoje e sempre (Hb 138)

SEGUNDA PARTE

Explicaccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo segundo o Decreto do Conciacutelio de Trento

Parece que a completa elucidaccedilatildeo das razotildees que levaram agrave substituiccedilatildeo do

partim-partim pelo et e consequumlentemente agrave pesquisa dos dados do debate tridentino e de sua preacute-histoacuteria aparentemente favoraacutevel agrave suficiecircncia material da Escritura [40] simplifica indevidamente este problema fazendo-nos perder de vista os proacuteprios antecedentes do Decreto do Conciacutelio de Trento

1 A concepccedilatildeo pneumatoloacutegica da Tradiccedilatildeo no esquema fundamental do Cardeal Cervini

a) O conteuacutedo Um balanccedilo histoacuterico e detalhado do problema em seu conjunto exigiria uma

pesquisa exaustiva que natildeo reduzisse o seu acircmbito como o fez Geiselmann em seu livro25 Natildeo eacute nossa intenccedilatildeo proceder a um exame minucioso do assunto no presente trabalho Aqui soacute seratildeo tratados alguns pontos do debate tridentino com o fim de ampliarmos mais o horizonte de nossas reflexotildees

Fundamental para a compreensatildeo dos debates em pauta bem como do Decreto definitivo do Conciacutelio parece-me ser o Discurso do Cardeal Legado Cervini datado de 18 de fevereiro de 1546 [41] cujas linhas gerais se patenteiam tanto no Decreto como em outras decisotildees conciliares26

Tem o discurso de Cervini o meacuterito de mostrar as linhas diretrizes do Decreto de maneira mais clara do que aparecem estas na uacuteltima redaccedilatildeo do mesmo onde elas se diluem muito devido a uma seacuterie de variadas implicaccedilotildees Eacute ainda de grande auxiacutelio para o entendimento do referido discurso uma carta dos Cardeais Legados ao Cardeal Alexandre Farnese de 28 de fevereiro de 1546 Esta carta revela conteuacutedo idecircntico ndash eacute certamente inspirada pelo mesmo Cervini ndash e oferece ainda alguns outros

25 Eacute lamentaacutevel que Geiselmann em sua anaacutelise da contribuiccedilatildeo medieval sobre este assunto se tenha apoiado apenas em argumentos de segunda matildeo portanto de valor histoacuterico discutiacutevel Queira o leitor ver minhas observaccedilotildees a este respeito in Theol-prakt Quartalschrift 1963 p224-227 As novas (e temperamentais) invectivas de Geiselmann in TThQu 144 (1964) p 31-69 em nada modificaram a minha posiccedilatildeo de vez que natildeo trazem nenhuma contribuiccedilatildeo vaacutelida ao assunto Precioso ao contraacuterio eacute o trabalho de Y CONGAR La Tradition et les traditionshellip Essai historique Paris 1960 Importante eacute tambeacutem a obra de J BEUMER Die muumlndliche uumlberlieferung als Glaubensquelle Friburgo 1962 A respeito do Conciacutelio de Trento cf sobretudo aleacutem do estudo fundamental de JEDIN o artigo de E ORTIGUES Escriture et Traditions apostoliques au Concilie de Trente in RSR 36 (1949) p 271-299 K D SCHMIDT Studien zur Geschichate des Konzilis von Trient Tubinga 1925 p 152-209 26 O discurso nos foi transmitido em duas redaccedilotildees A primeira mais curta encontra-se nas Atas do Conciacutelio in CT V 11 A segunda faz parte do diaacuterio de Massarelli (Diarium III) in CT I p484 Quanto ao conteuacutedo os dois textos se completam Na anaacutelise que aqui ensaiamos as duas versotildees satildeo comparadas entre si de modo a fazerem um todo Sobre a posiccedilatildeo de Cervini no Conciacutelio cf H JEDIN Geschichte des Konzils von Trient II Friburgo 1957 p38-40 A descriccedilatildeo do desenrolar histoacuterico dos debates acha-se em JEDIN op cit p42-82 e supomo-la conhecida do leitor de vez que serve de base para a anaacutelise teoloacutegica do Decreto tridentino

esclarecimentos Cervini sustenta no citado discurso que existem trecircs princiacutepios e fundamentos de nossa feacute

1) Os livros sagrados escritos sob a inspiraccedilatildeo do Espiacuterito Santo 2) O Evangelho que Nosso Senhor natildeo escreveu mas ensinou oralmente e

implantou nos coraccedilotildees Parte do Evangelho foi escrita mais tarde pelos Evangelistas enquanto muita coisa foi simplesmente confiada aos coraccedilotildees dos fieacuteis

3) Porque o Filho de Deus natildeo ia permanecer sempre entre noacutes enviou ele o Espiacuterito Santo que haveria de revelar os misteacuterios no iacutentimo dos fieacuteis e de ensinar agrave Igreja toda a verdade ateacute ao fim dos tempos27

[43] Numa segunda redaccedilatildeo mais detalhada do discurso estas mesmas ideacuteias satildeo

desenvolvidas mais amplamente Aiacute lemos que a Revelaccedilatildeo se apresentou de modo diferente em diversos tempos

1) Nos Patriarcas cuja feacute eacute atestada na Escritura a que chamamos de Antigo Testamento

2) Em Jesus Cristo que implantou o seu Evangelho natildeo por escrito mas oralmente natildeo in charta mas in corde Das coisas que emanaram de Cristo (quaelig a Cristo emanarunt) algumas foram escritas outras permaneceram nos coraccedilotildees dos homens (quaeligdam in cordibus hominum relicta fuerunt) Todo o Evangelho de Cristo que consta desta dupla modalidade forma (tendo como primeiro princiacutepio o Antigo Testamento) o secundum prindipium fidei nostraelig

3) Daiacute surge o terceiro princiacutepio (tertium autem) porque o Filho de Deus natildeo iria permanecer sempre entre noacutes enviou ele ao mundo o Espiacuterito Santo que haveria de explicar os misteacuterios de Deus e tudo o que fosse ainda obscuro para os homens28 De modo semelhante a citada carta ao Cardeal Farnese fala de dois passos (due

passi) Um eacute que a Revelaccedilatildeo de Nosso Senhor natildeo foi totalmente escrita mas permaneceu em parte contida nos coraccedilotildees dos homens e na Tradiccedilatildeo da Igreja O outro [43] passo consiste em confirmar ldquoquello che egrave suggerito lo Spirito Santo in la Chiesa maxime medianti i concilij doppo lAscensione in cielo del Signorerdquo29

Notamos logo que contrariamente ao que esperaacutevamos natildeo dois mas trecircs satildeo os princiacutepios apontados a Escritura o Evangelho e a Revelaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

27 CT V 11 helliptria esse principia et fundamenta nostrae fidei primum libros sacros secundum esse evangelium quod Christus Dominus Noster non scripsit sed ore docuit et in cordibus illud plantavit cujus evangelii nonnulla evangelistaelig scripto mandarunt multa quoque relicta sunt in cordibus hominum Tertium quia non semper filius Dei corporaliter nobiscum mansurus erat misit Spiritum Sanctum qui in cordibus fidelium secreta Dei revelaret et ecclesiam quotidie et usque consummationem saeligculi doceret omnem veritatem et si quid in mentibus hominum dubii occurrisset declararet 28 CT I 484 Digna de nota eacute ainda a foacutermula contida na paacutegina 48514-16 nihil tamen inter scripturas sacras et apostolicas traditianes differt illaelig enim scriptaelig hae per insinuationem habentur utraeque tamen a Spiritu Sancto eodem modo emanataelig Confira-se com CT V 11 19 ab eodem Spiritu et illos (scilicet libros) et istas (scilicet traditiones) descendisse 29 CT X 373

Eacute portanto necessaacuterio observar que sob o termo ldquoEscriturardquo se entende o Antigo Testamento e que aleacutem deste (que eacute Escritura em sentido proacuteprio) aparece como segundo princiacutepio o Evangelho apresentaccedilatildeo do Cristo-evento O Evangelho por sua vez abrange o que estaacute escrito e o que natildeo estaacute escrito mas sim apenas insculpido no coraccedilatildeo dos crentes Deste modo o segundo princiacutepio representa uma vantagem pneumaacutetica sobre o que estaacute escrito o Evangelho eacute nesta concepccedilatildeo algo diferente da letra (Escritura) e soacute em parte vem escrito (Isto natildeo deve ser entendido no sentido de divisatildeo das verdades da feacute fenocircmeno denunciado ldquocom horrorrdquo por Geiselmann Ao contraacuterio Entenda-se apenas no sentido de diferente grau de dignidade no modo de exprimir-se) Em rigor o Evangelho como tal soacute pode ser escrito em parte se considerarmos a sua essecircncia

Finalmente ndash o que eacute muito de se admirar ndash segue-se como terceiro princiacutepio a accedilatildeo visiacutevel do Espiacuterito Santo em todo o tempo da Igreja

Admitimos portanto que o que noacutes geralmente chamamos de Tradiccedilatildeo natildeo aparece aqui como um soacute princiacutepio Biparte-se antes em dois princiacutepios intimamente ligados o ldquoEvangelhordquo princiacutepio apenas em parte identificaacutevel com a Escritura e a accedilatildeo do Espiacuterito Santo no tempo da Igreja Ademais podemos observar que a Escritura do Novo Testamento natildeo aparece como um princiacutepio ao lado da Revelaccedilatildeo apostoacutelica Muito menos como [44] eacute o nosso caso se apresenta a Escritura neotestamentaacuteria juntamente com a veterotestamentaacuteria como uma grandeza uacutenica uma ldquoEscriturardquo soacute agrave qual se poderia contrapor a ldquoTradiccedilatildeordquo como uma segunda grandeza O Novo Testamento em seu conjunto aparece como um segundo e mais amplo princiacutepio ou seja o Evangelho que como tal se opotildee de um lado ao Antigo Testamento e de outro agrave projeccedilatildeo histoacuterica do tempo da Igreja Sua unidade interna eacute evidentemente mais forte e importante do que a sua divisatildeo em escrito e natildeo-escrito Assim o Evangelho como um soacute princiacutepio pode ser contraposto ao Antigo Testamento a despeito desta dupla formalidade A impossibilidade de se representar o Novo Testamento como Escritura impossibilidade esta demonstrada por Satildeo Paulo e pelos primeiros seacuteculos cristatildeos eacute aqui claramente revelada

Ainda uma observaccedilatildeo relativa ao texto a que vimos nos referindo Em nenhum dos dois pontos por noacutes citados no estudo da Tradiccedilatildeo isto eacute nem no elemento contido no primeiro nem no apresentado no terceiro princiacutepio figura a Tradiccedilatildeo como verbal Em ambos os casos ao contraacuterio trata-se mais da Tradiccedilatildeo real com prevalecircncia da realidade sobre as palavras que a atestam Este fato que estaacute claro no terceiro princiacutepio o pneumatoloacutegico vale tambeacutem em relaccedilatildeo agrave implantaccedilatildeo do Evangelho nos coraccedilotildees contida no segundo princiacutepio Tal implantaccedilatildeo vai muito aleacutem do que se encontra expresso na letra da Escritura

Que papel tenham estas ideacuteias exercido nas discussotildees do Conciacutelio pode-se concluir tambeacutem das auctoritates citadas por Cervini entre as quais figuram Jo 16 12 (hellipSpiritus Sanctus suggerethellip) e Fl 3 15 (Quicumque perfecti sumus haeligc sentiamus et si quid aliter sentitis haeligc quoque Deus vobis revelabit) Ambos estes textos satildeo de teor acentuadamente [45] pneumatoloacutegico-presencial30 Que tais ideacuteias natildeo eram

30 CT V 14 e 15 Um exame profundo das auctoritates quer da Escritura quer entre os Santos Padres que neste particular satildeo favoraacuteveis agrave Tradiccedilatildeo seria em si conclusivo para a elaboraccedilatildeo do conceito

estranhas aos Padres conciliares deduz-se ainda de uma seacuterie de outras referecircncias Assim ouvimos o Bispo de Aqui dizer que aleacutem da Sagrada Escritura existe muita coisa na Igreja de Deus que vindo dos Apoacutestolos e passando de geraccedilatildeo a geraccedilatildeo chegou ateacute noacutes assim como muitas outras quaelig etsi scripta Apostoli nobis non reliquerunt per Spiritus Sancti revelationem nobis (tradita) sunt (Tradita estaacute aqui por revelata) 31 Partindo daiacute se poderia descrever a Tradiccedilatildeo justamente como o componente pneumatoloacutegico do Cristo-evento b) A influecircncia do esquema de Cervini em diversas decisotildees conciliares

Eacute verdade que esta concepccedilatildeo tripartida aparece muito atenuada no Decreto

oficial sobre a Tradiccedilatildeo Que poreacutem em suas linhas fundamentais natildeo tenha ela sido de modo nenhum [46] abandonada mostram-no duas outras passagens nas quais o Conciacutelio faz uso por assim dizer in actu das ideacuteias aqui expressas32 Assim na Introduccedilatildeo ao Decreto sobre a Eucaristia (Denz 873) se lecirc Sacrosancta Synodus sanamhellipdoctrinam tradens quam semper catholica Ecclesia ab ipso Jesu Christo Domino Nostro et eius apostolis erudita atque a Spiritu Sancto illi omnem veritatem in dies suggerente (Jo 1416) edocta retinuithellip

Aqui a accedilatildeo proacutepria do Conciacutelio eacute descrita como tradere e a este tradere eacute atribuiacutedo um duplo fundamento De um lado o ensino de Jesus e dos Apoacutestolos (Note-se que este ponto corresponde ao Evangelho segundo a concepccedilatildeo de Cervini E de certo modo tambeacutem pela citaccedilatildeo de Jesus e dos Apoacutestolos se reconhece a dupla modalidade do Evangelho como escrito e como inserido nos coraccedilotildees) De outro lado o ensino dado pelo Espiacuterito Santo que conduz agrave verdade in dies isto eacute no de correr do tempo futuro

O outro texto que pode ser aduzido aqui como prova do que afirmamos encontra-se no Preacircmbulo do Decreto sobre o Purgatoacuterio (Denz 983) Aiacute se lecirc hellipCatholica Ecclesia Spiritu Sancto edocta ex Sacris Litteris et antiqua Patrum traditione in sacris Conciliis et novissime in hac Synodo docuerit A descriccedilatildeo da accedilatildeo proacutepria do

aqui exposto H HOLSTEIN procurou fazer o cotejo destas auctoritates e fecirc-lo de modo admiraacutevel em seu artigo La Tradition dapregraves le Concile de Trente (RSR 47 1959 p367-390 e em particular para o caso em questatildeo a p375) Ele encontra nos textos estudados duas linhas de tendecircncias A linha de Santo Irineu para a qual o testemunho dos Apoacutestolos eacute o de sua personalidade de sua vida e de seu ofiacutecio Aleacutem desta o grupo composto de Tertuliano Cipriano Basiacutelio e Agostinho forma uma corrente que se poderia denominar ldquocerimonialrdquo Oriacutegenes se enquadra em ambos os grupos Existe entre os autores estudados uma seacuterie de textos que se referem agraves observationes consuetudines institutiones e que levam a entender-se a Tradiccedilatildeo neste mesmo sentido Aiacute se vecircem tambeacutem textos que sublinham o aspecto natildeo-escrito do Evangelho enquanto insculpido no coraccedilatildeo dos fieacuteis e aleacutem disso textos que apontam a Igreja como o ldquolugarrdquo da verdade cristatilde 31 CT I 483 (18 de fevereiro de 1546) Em 26 de fevereiro (CT V 18) encontramos Cervini a tratar de novo deste assunto Cf tambeacutem um pronunciamento do Bispo de Fano (CT V 10) nestes termos Cum jam receperimus Scripturas Sacras necessario recipiendaelig sunt traditiones quaelig ab eodem Spiritu Sancto quo scripturaelig dictataelig sunthellip 32 Disto me adverti pela primeira vez atraveacutes de um estudo realizado sob a minha orientaccedilatildeo por CHR LIMBACR a quem sou devedor de muitas informaccedilotildees bibliograacuteficas

Conciacutelio como tradere encontra-se ainda nas declaraccedilotildees sobre o Sacramento da Extrema-Unccedilatildeo (Denz 910)

Finalmente a triacuteplice divisatildeo deixa-se insinuar nas entrelinhas do Decreto sobre a Tradiccedilatildeo embora obscurecida e diluiacuteda por uma seacuterie de acreacutescimos e citaccedilotildees a ele adicionados por outros motivos O Decreto da Tradiccedilatildeo com efeito [47]

1) Fala do Evangelho prometido pelos Profetas na Escritura e refere-se a esta em sentido estrito quer antes quer depois do Antigo Testamento

2) Fala da promulgaccedilatildeo por Cristo do Evangelho que foi transmitido pelos Apoacutestolos sob dupla forma oral e escrita Desta maneira o que natildeo ocorre no exemplo de Cervini aparece aqui antes de tudo o componente pneumatoloacutegico unido com o componente apostoacutelico a ponto de se distinguirem duas modalidades de Tradiccedilatildeo apostoacutelica a que remonta a Cristo e a que remonta ao envio do Espiacuterito Santo Pode-se assim estabelecer que em oposiccedilatildeo ao esquema de Cervini haacute um certo processo de historicizaccedilatildeo que salienta a relaccedilatildeo com o comeccedilo histoacuterico e igualmente parece deslocar o acento da tradiccedilatildeo real para a verbal

3) No epiacutelogo desta parte do Decreto da Tradiccedilatildeo que vimos analisando de novo eacute considerada a ideacuteia da Sagrada Escritura O conceito de Tradiccedilatildeo eacute entatildeo formulado em definitivo e descrito como vel oretenus a Christo vel a Spiritu Sancto dictatas et continua successione in Ecclesia catholica conservatas A referecircncia aos Apoacutestolos eacute omitida Pode-se na verdade considerar tudo isto como uma volta ao que foi dito antes Evidentemente a tradiccedilatildeo ditada pelos Apoacutestolos eacute citada de novo (A expressatildeo continua successione insinua-o) Contudo permanece sempre ainda certa indeterminaccedilatildeo ficando aberta a possibilidade de se encontrar aqui o vestiacutegio do terceiro componente de Cervini o princiacutepio pneumaacutetico propriamente dito Eacute tambeacutem claro que esta ideacuteia eacute discreta sendo adotada uma posiccedilatildeo mais acentuadamente histoacuterica Se agora lanccedilarmos os olhos sobre o que vimos considerando ateacute aqui surgiratildeo

inevitavelmente perguntas qual eacute realmente o sentido proacuteprio da concepccedilatildeo pneumatoloacutegica Como poderia ser perfeitamente entendida a ideacuteia a noacutes estranha de uma revelatio prolongada no tempo em face da unicidade e do caraacuteter [48] histoacuterico da Revelaccedilatildeo que evidentemente era conhecido tanto de Cervini quanto dos Santos Padres e teoacutelogos medievais33

Antes de examinarmos isto devemos esclarecer rapidamente os principais motivos que inspiraram o Decreto tridentino sobre a Escritura e a Tradiccedilatildeo deixando nele um tanto encoberta a concepccedilatildeo pessoal de Cervini Que opiniotildees de teoacutelogos teratildeo intervindo aqui chegando a ser em parte impressas no texto definitivo que resultou do cotejo de muitos pronunciamentos diversos Uma exposiccedilatildeo detalhada deste ponto exorbitaria do acircmbito de nossa anaacutelise Contentemo-nos com umas poucas observaccedilotildees sumaacuterias 33 Sobre este assunto tentei fazer um breve comentaacuterio no meu trabalho ldquoOffenbarung-Schrift-Uberlieferungrdquo in TThZ 67 (1958) p13-27 Cf J BEUMER ldquoDer theoretische Beitrag der Frnhscholastik zum Problem des Dogmenfortschrittsrdquo in ZkTh 72 (1952) p205-226 J de CHELLINCK Pour lrsquohistoire du mot ldquorevelarerdquo in RSR 6 (1916) p149-157

2 Relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a vida da Igreja

em diversas passagens do debate tridentino

Uma primeira seacuterie de motivos entre os quais se compreendem diversos pronunciamentos agraves vezes muito contrastantes em seu aparato exterior patenteia-se na ideacuteia de tradiccedilotildees expressa no Decreto de duas maneiras a) - per manus traditaelig ad nos usque pervenerunt b) - continua successione in Ecclesia catholico conservatas

O que se ocultaraacute sob estas duas foacutermulas que o historiador de hoje tem dificuldades em aceitar justamente por causa do historicismo nelas impliacutecito Podemos dizer que um decisivo papel exerceu aqui o pensamento que sempre aparecia nos debates a saber que as tradiccedilotildees satildeo variaacuteveis que muitas delas foram abolidas pelos Apoacutestolos e que por outro lado se [49] introduziram tradiccedilotildees eclesiaacutesticas que natildeo mais seriam abolidas34 Esta ideacuteia de Tradiccedilatildeo de certo modo se torna clara no tratado escrito sobre o mesmo assunto por Seripando para uso dos Padres Conciliares Seripando fala das Tradiccedilotildees escritas inseridas na Escritura como as claacuteusulas de Tiago o costume de as mulheres se cobrirem com um veacuteu a legislaccedilatildeo sobre o matrimocircnio contida em 1Cor 7 etc E o autor adverte que estas praacuteticas foram abolidas Isto porque embora associadas agrave palavra de Deus na Escritura dela ldquomuito diferemrdquo pois a palavra divina [50] de modo nenhum poderia ser abolida A estas tradiccedilotildees

34 Cabe aqui aduzir uma nova intervenccedilatildeo de Cervini datada de 26 de fevereiro de 1546 (CT I 33 e V 18) onde ele diz que nem todas as tradiccedilotildees procedentes dos Apoacutestolos devem ser conservadas mas somente as que ab Ecclesia receptaelig ad nos usque pervenerunt (V 18) Esta afirmaccedilatildeo anterior agrave formulaccedilatildeo dogmaacutetica feita pelo Concilio deve igualmente ser tida na conta de um autecircntico comentaacuterio do Decreto Aiacute se acentua como condiccedilatildeo essencial das tradiccedilotildees a receptio ecclesiaelig Vem ainda referida uma intervenccedilatildeo do Bispo de Bertinoro em data de 23 de marccedilo (I p 523) na qual ele sublinha que as tradiccedilotildees escritas por vezes foram mudadas Jaacute entre as natildeo-escritas umas foram mudadas e outras natildeo como por exemplo o rito de adicionar aacutegua ao vinho a Crisma a confissatildeo auricular O Bispo de Bertinoro acrescenta que por outro lado alguns pontos existem que permaneceram inteiramente inalterados tais como a crenccedila no descensus ad inferos na virgindade perpeacutetua de Maria a substituiccedilatildeo da observacircncia do saacutebado pela do domingo Temos depois um pronunciamento do Bispo de Bitonto datado de 27 de marccedilo (I 39) Este bispo era de parecer que algumas coisas foram transmitidas pelos Apoacutestolos com a finalidade de serem perpetuamente conservadas (como pertencentes ao depoacutesito da feacute) outras caiacuteram em desuso (como as claacuteusulas de Tiago) e outras enfim foram apenas aconselhadas Assim mesmo na Escritura algumas coisas haacute que foram escritas mas natildeo recebidas em uso por serem mateacuteria de mero conselho Por exemplo ldquose algueacutem te pedir a tuacutenica daacute-lhe tambeacutem o paacutelio se algueacutem te esbofetear numa face oferece-lhe tambeacutem a outrardquo Sem duacutevida excelente ilustraccedilatildeo do sermatildeo da montanha Finalmente consideraccedilotildees idecircnticas podemos encontrar na obra citada de LEJAY Eis outra amostra tirada do discurso de 23 de fevereiro (CT V 13) Nam illaelig (scil traditiones) quaelig ad fidem pertinent eadem sunt recipiendaelig auctoritate qua recipitur evangelium alia autem non ita eum earum plurimaelig immutataelig fuerint ut de bigamis de esu sanguinis et similia De modo semelhante aliaacutes fala tambeacutem Bonuccio (I 525 a 23 de marccedilo de 1546 ecclesia traditiones apostolorum quandoque mutavit verbum autem Dei nunquam mutavit neque mutare potest

Seripando opotildee as natildeo referidas na Biacuteblia e que ora satildeo apostoacutelicas ou oriundas de Conciacutelios universais e aceitas por toda a Igreja ora satildeo particulares e muito variaacuteveis35

Este texto nos leva a uma surpreendente conclusatildeo para Seripando e muitos outros Padres tridentinos36existem tradiccedilotildees na Escritura ldquoTradiccedilatildeordquo natildeo significa o natildeo-escrito Existe quer dentro da Escritura quer fora dela Isto nos conduz a outra pergunta em que consiste para os referidos Padres a essecircncia da tradiccedilatildeo se o que a constitui natildeo eacute o fato de natildeo ser escrita37 Em outros termos como pode a tradiccedilatildeo ser definida positivamente se ela natildeo pode ser suficientemente determinada pela ideacuteia negativa de algo natildeo-escrito

Haacute uma seacuterie de respostas para esta pergunta O proacuteprio Seripando daacute a seguinte definiccedilatildeo Traditiones hoc est Apostolorum seu sanctorum Patrum sanctae et salutares constitutiones38 Mais clara ainda eacute a afirmaccedilatildeo de Cervini citada por Massarelli A objeccedilatildeo do Bispo de Chioggia que aduzia a opiniatildeo de Agostinho de que tudo o que eacute necessaacuterio para a salvaccedilatildeo estava escrito na Biacuteblia respondia Cervini da seguinte maneira Verba illa (isto eacute de Santo Agostinho) formaliter intelligi debent scilicet ad fidem accipiendam ut salvi fiamus Quo vero ad mores et christianam vitam instituendam certo non omnia scripta sunt

[51] E de novo recorre agraves provas tiradas de Jo 1526 e 1426 E indica o princiacutepio pneumatoloacutegico39 O que eacute mais importante eacute que a Tradiccedilatildeo se refere agrave institutio vitaelig agrave presenccedila atuante da Palavra revelada na existecircncia cristatilde Tradiccedilatildeo eacute noutros termos a eficaacutecia da palavra de Deus Sem ela a palavra ficaria esteacuteril 35 Seripando De traditionibus (fevereiro ou marccedilo de 1546) CT XII p517-521 e principalmente a p 521 As expressotildees desta uacuteltima paacutegina chocam-se com a ideacuteia de Cervini sobre a receptio ecclesiaelig 36 Cf o texto citado na nota 11 37 No texto definitivo do Decreto esta ideacuteia natildeo aparece mais Aqui poreacutem com esta primeira designaccedilatildeo expliacutecita da Tradiccedilatildeo vem expressamente acentuado o contraste entre in libris scriptis et sine scripto traditionibus Na segunda redaccedilatildeo o sentido expliacutecito da palavra Tradiccedilatildeo natildeo eacute tatildeo exclusivo Contudo apresenta igual matiz ao se confrontarem as expressotildees omnes libroshellipnec non traditiones ipsas Portanto a ideacuteia positiva da Tradiccedilatildeo que serve de base a esta anaacutelise natildeo deixou de influenciar na redaccedilatildeo do Decreto 38 CT XII 517 39 CT I 494 (26 de fevereiro de 1546) A citada palavra de Santo Agostinho teve o seu papel a desempenhar na discussatildeo em curso Seripando por exemplo a ela se referiu (De traditionibus CT XII 521 47-53) Pensandum denique ne in traditionibus externis vera religio et salutis spes statuatur de quibus Augustinus Omnia quaelig pertinent ad veram religionem quaeligrendam et tenendam divina Scriptura non acuit Conceda-se que nem tudo foi escrito (veja-se Jo 2125) Todavia electa sunt autem quaelig scriberentur quaelig saluti credentium sufficere videbantur Mais do que nos debates do tridentino encontramos aqui um verdadeiro postulado dos Reformadores ldquonatildeo adotar costumes exteriores mas buscar os meios definitivos de salvaccedilatildeo na palavra da Escriturardquo A ldquosuficiecircnciardquo da Escritura de que aqui se fala eacute na verdade algo diverso da suficiecircncia material da mesma Escritura defendida por Geiselmann em sentido muito mais radical Infelizmente ainda natildeo se quis levar na devida consideraccedilatildeo o texto de Santo Agostinho (CT I 494 sugere De doctrina christiana II 9 e De pecc mero et rem II 59) Muito apropriadas nesta ordem de ideacuteias satildeo as observaccedilotildees de H SCHAUF ldquoSchrift und Traditionrdquo in Antonianum 39 (1964) p200-209 feitas no chamado Encontro de Duumlsseldorf Nos textos citados por Schauf com base em Agostinho eacute afirmada a suficiecircncia da Escritura para a salvaccedilatildeo Eacute contudo contestada a sua suficiecircncia para a Igreja em geral De fato esta alternativa parece muito mais vaacutelida e fundamental agrave luz dos postulados dos Reformadores do que a alternativa entre a suficiecircncia ou insuficiecircncia material da Escritura

Na mesma linha de ideacuteias seguem-se duas outras seacuteries de pronunciamentos Vimos na introduccedilatildeo agrave parte anterior que a discussatildeo dogmaacutetica da ideacuteia de

Tradiccedilatildeo foi em parte prejudicada pela questatildeo do meacutetodo a seguir no Conciacutelio dever-se-ia abordar primeiro a reformatio a reforma praacutetica da Igreja como queria o ldquoKaiserrdquo Ou primeiro discutir a questatildeo dogmaacutetica como preferia o Papa40

[52] Este problema do meacutetodo embora resolvido no debate que entatildeo surgiu natildeo afetou diretamente a questatildeo da Tradiccedilatildeo como tal Mas como de fato estas duas questotildees ficaram ligadas entre si daiacute resultou que muitos oradores transformaram a questatildeo do meacutetodo (se se deveria falar dos abusos ou da Tradiccedilatildeo) em parte de sua argumentaccedilatildeo em torno do assunto em pauta41 O problema abusus e o problema Traditio ficaram de tal maneira associados na ocasiatildeo que pareciam formar no fundo um soacute assunto Por isso os oradores ora falavam em sentido positivo ora se pronunciavam em sentido negativo Isto correspondia tambeacutem ao propoacutesito reformista do Conciacutelio as traditiones representavam os abusus aos quais a Igreja se opunha Os Padres estavam cocircnscios de que condenar as traditiones era condenar Os usus ecclesiaelig o modo como a Igreja vivia a sua vida naquela eacutepoca

A outra seacuterie de pronunciamentos que se inclinavam ao mesmo sentido encontramo-la nas proposiccedilotildees que a auctoritas da Igreja apresenta como definitivas indicando uma iacutentima relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a institutio christiana 42

[53] Podemos agora retomar ao nosso ponto de partida e dar resposta agrave pergunta que propriamente significa a foacutermula ad nos usque pervenerunt Objetivamente natildeo se trata aqui de um historicismo que a foacutermula parece expressar Ao contraacuterio Trata-se da fidelidade perseverante da Igreja agrave institutio vitaelig christianaelig da legiacutetima forma de vida cristatilde em concreto no tempo presente da Igreja da institutio christiana que coloca a Escritura em primeiro lugar e que como tal isto eacute como vida decorrente da Escritura eacute fundamentalmente apostoacutelica embora tambeacutem sujeita a mudanccedilas como tudo o que eacute vivo

3 A Tradiccedilatildeo e o dogma eclesiaacutestico

40 Sobre o debate em torno da questatildeo do meacutetodo cf mais uma vez JEDIN op cit p9-82 e outras 41 Assim jaacute no discurso de Cervini antes analisado (CT I 484) no qual ele recorda o dilema do Conciacutelio se nos voltarmos contra as tradiccedilotildees ficaratildeo admirados os Padres Conciliares quasi reformationem fugiamus si ipsam reformationem sumimus iterum objicient traditiones relinquendas non esse Idecircntica era a situaccedilatildeo em que se encontrava o Bispo de Astorga nas duas intervenccedilotildees que fez no dia 23 de fevereiro de 1546 (CT V 13 e 19) segundo Seripando (I 484) helliptraditiones prius pertractandas consulit tantam enim conformitatem abusus qui ex sacris libris descendunt cum iis qui a traditionibus orti sunt habent ut sacris libris et traditionibus absolutis duo illa abusuum genera simul pertractari valeant Segundo Bonuccio (I 484) antes de tudo dever-se-ia tratar das Sagradas Escrituras dos cacircnones apostoacutelicos dos Conciacutelios gerais e das decretais pontifiacutecias Hisque ilusceptis ad abusus ex eisdem dependentes devenire 42 Assim principalmente de acordo com Afonso de Castro (CT I 484) Quoniam ultra traditiones apostolicas ecclesiae auctoritatem habemus quaelig ecclesiaelig auctoritas tonta apud nos est ut aliqui eam maioris roboris quam sacros libros esse sentiant Cf igualmente CT I 491 45 Na mesma linha pode-se ver uma seacuterie de pronunciamentos na citada obra de LEJAY Cf CT XII 524 (Tratado De traditionibus ecclesiaelig fevereiro ou marccedilo de 1546)

Uma segunda seacuterie de motivos eacute expressa no Decreto pela foacutermula traditiones tum ad fidem tum ad mores pertinentes Se como vimos a ideacuteia de Tradiccedilatildeo aparece muito limitada naquilo que os Padres conciliares chamam consuetudines observationes institutiones por outro lado o Procurador do Cardeal de Augsburgo Claudio Lejay SJ se fez o porta-voz de uma expressatildeo que em oposiccedilatildeo agraves traditiones caeligremoniales estabeleceu justamente o sentido da tradiccedilatildeo contida na feacute Seu tratado sobre a Tradiccedilatildeo composto para uso dos Padres conciliares inclui tambeacutem a foacutermula que foi adotada pelo Conciacutelio Aiacute se diz Denique multas veritates tum ad fidem tum ad mores pertinentes Ecclesia novit quas Scriptura aperte et expresse non continet Ele cita como exemplos as palavras persona essentia trinitas no Tratado da Santiacutessima Trindade consubstantialitas na Cristologia do Logos duas naturezas uma soacute Pessoa referentes ao dogma definido pelo Conciacutelio de Calcedocircnia E ainda Cristo Filho uacutenico de Maria duas vontades na uacutenica Pessoa de Cristo uma alma racional aleacutem do espiacuterito divino em Cristo Ana matildee de Maria o costume de fazer sinais da cruz a santificaccedilatildeo do domingo a maneira de rezar com face voltada [54] para o Oriente tudo isto ideacuteias e fatos da tradiccedilatildeo conciliar e da piedade cristatilde43

Cervini que aprovou o discurso de Lejay de 23 de fevereiro de 154644 pocircde dificilmente conciliar esta posiccedilatildeo com a sua expressa na jaacute citada carta ao Cardeal Farnese onde como vimos ele diz que o Espiacuterito Santo falou na Igreja e depois da Ascensatildeo do Senhor fala ainda maxime medianti i concilii45 Ele aiacute viu publicamente sublinhado o fato de que aquele ldquomaisrdquo que a Igreja viva representa em relaccedilatildeo agrave palavra meramente escrita natildeo se referia e natildeo se refere apenas agrave vita instituenda ou como ele prefere agrave caeligremonialia Refere-se tambeacutem agrave essentialia fidei que antes de tudo plenamente se expressam na Tradiccedilatildeo Tambeacutem aqui como se vecirc o interesse dominante natildeo estaacute na apresentaccedilatildeo historicista do assunto a partir do iniacutecio da Igreja mas na ideacuteia de que a influecircncia da Tradiccedilatildeo sobretudo atraveacutes da praxe conciliar eacute de fundamental importacircncia para a feacute para a doutrina crida e natildeo apenas para a piedade viva ou a caeligremonialia

4 O sentido do Decreto tridentino

Se recapitularmos o que ateacute agora dissemos veremos que no conjunto facilmente se podem reconhecer trecircs diferentes concepccedilotildees teoloacutegicas unidas entre si no texto definitivo do Decreto sobre a Tradiccedilatildeo Unidas mas natildeo equiparadas umas agraves outras Pelo contraacuterio apesar de sua grande diferenccedila foram elas apenas [55] mais ou menos justapostas e de novo por forccedila de uma tendecircncia comum relacionadas entre si

1 A concepccedilatildeo de Cervini que designamos como pneumatoloacutegica Com sua doutrina sobre os trecircs principia fidei insiste ele no caraacuteter dinacircmico do Cristo-evento

43 CT XII 523 LEJAY baseia-se evidentemente em listas de tradiccedilotildees confeccionadas naquele tempo (Cf ECK DRIEDO CANO BOTO NOGAROLA) Cf a este respeito Y CONGAR ldquoTraditions apostoliques non eacutecrites et suffisance de lEscrituresrdquo in Istina 6 (1959) p219-306 e principalmente a paacutegina 289 44 CT V 14 45 CT X 373

presente na Igreja Entende assim a Tradiccedilatildeo primariamente como a realidade espiritual da institutio vitaelig christianaelig

2 A concepccedilatildeo que podemos chamar de cerimonial Esta entende a Tradiccedilatildeo essencialmente como a seacuterie de consuetudines existentes ao lado da feacute como os usus ecclesiaelig que os Reformadores falsamente pretendem abolir como abusus Esta concepccedilatildeo chega a condenar a dignidade e Antiguumlidade apostoacutelica das tradiccedilotildees Sua ideacuteia eacute limitada pelo ad nos usque pervenerunt que inclui possibilidade de variar da parte das tradiccedilotildees donde a necessidade de reduccedilotildees Com os termos pervenire e conservare a recepccedilatildeo por parte da Igreja eacute considerada criteacuterio adicional ao lado da Antiguumlidade

3 A concepccedilatildeo que talvez possamos denominar dogmaacutetica Em oposiccedilatildeo agrave fixidez da ideacuteia de Tradiccedilatildeo reduzida agrave consuetudo salienta esta terceira hipoacutetese a extensatildeo do fenocircmeno Tradiccedilatildeo tambeacutem ao acircmbito da fides

Estas trecircs concepccedilotildees deram forma ao texto do Decreto de tal modo que as suas

linhas mestras derivam de Cervini e todo o texto deve ser entendido agrave luz de suas ideacuteias Contudo em duas passagens isto eacute no pervenerunt e no conservatas haacute influecircncia da segunda concepccedilatildeo enquanto no tum ad fidem tum ad mores haacute influecircncia da terceira

Em face destas trecircs concepccedilotildees das quais na realidade existem diversas variantes que tomadas em conjunto satildeo a expressatildeo das ideacuteias dominantes adotadas aparecem as teses de Bonuccio e de Nacchianti tatildeo postas em evidecircncia por Geiselmann como sentenccedilas contraacuterias De fato o parecer de Bonuccio claramente [56] se opotildee agrave segunda concepccedilatildeo (contra a supervalorizaccedilatildeo das consuetudines natildeo per pietatis affectus) ao passo que Nacchianti se levanta antes contra a terceira posiccedilatildeo e salienta a suficiecircncia da feacute recebida por meio da Escritura46

Seria de notar-se ainda que as concepccedilotildees segunda e terceira tecircm algo em comum Ambas opotildeem agrave visatildeo pneumatoloacutegica de Cervini da salvaccedilatildeo sempre presente uma visatildeo mais historicista relacionada com o prolongamento da salvaccedilatildeo operada uma soacute vez ou seja o ἑφάπαξ Na realidade deve-se dizer que embora de um lado tanto a visatildeo presencial de Cervini como tambeacutem a visatildeo historicista do outro grupo se consideradas isoladamente cada qual de per si sejam perigosas se natildeo insustentaacuteveis 46 Aliaacutes de acordo com uma informaccedilatildeo de Cervini parece que o Bispo de Chioggia finalmente renunciou agrave sua tese da suficiecircncia da Escritura na qual se inclinava a recusar as tradiccedilotildees Na carta de Cervini ao Cardeal Farnese de 27 de fevereiro de 1546 lemos hellip Chioggia che (quasi quasi) voleva dire queste traditioni essere superflue perorando che tutto quello che era necessario alla salute era scritto et allegando etiam S Agostino sopra lultimo capitulo di S Giovanni a questo proposito Pure per non poter negare che molte cose appartenenti almeno alli sacramenti non ci fussero venute ex tra ditione et per consequente che non tutte le cose necessarie alia nostra salute erano scritte poiche ebbe fatte molte distintioni concluse che ancor lui accettava queste ldquoche in la chiesa fusse qualque traditione apostolica non scrittardquo (et con queste parole diceva che se ne facesse il decreto) credo che molti sono restati scandalizati di lui (CT X Nr 315 paacutegs 399 411) Cf tambeacutem CT I 494 nota 9 e 495 nota 2 CT V 18 nota 5 e 19 e nota 1 O mesmo protesto que aparece contra Nacchianti manifesta-se tambeacutem na observaccedilatildeo de Massarelli Este chega a chamar aquele de novarum rerum cupidus (1 494 18) e esclarece que reprehensus est a multis (1 494 22) Diante disto eacute de todo destituiacuteda de creacutedito a importacircncia que Geiselmann lhe atribui mesmo se abstrairmos de outras razotildees jaacute conhecidas sobre as quais natildeo precisamos insistir

de outro lado pelo menos tornam possiacutevel uma exata visatildeo do conjunto devido agrave sua muacutetua confluecircncia e limitaccedilatildeo No texto atual estatildeo presentes embora pouco nitidamente ambos os pontos de vista o elemento presencial e o ἑφάπαξ Conveacutem que entendamos assim o texto de modo a considerarmos [57] ambos estes aspectos como essenciais Consequumlentemente reconheceremos que ambos pertencem constitutivamente agrave realidade da vida cristatilde e portanto tambeacutem agravequela parcela do Cristianismo a que damos o nome de Tradiccedilatildeo Estes dois elementos satildeo a presenccedila do Espiacuterito Santo e o seu nexo com o fato singular da salvaccedilatildeo ocorrido uma soacute vez por todas na histoacuteria dos homens

Assim se acharaacute finalmente a resposta agrave pergunta de corno noacutes devemos entender o parecer do Conciacutelio de Trento A primeira e mais importante conclusatildeo parece-me ser o fato de o Conciacutelio ter visto muito claramente o nexo entre Tradiccedilatildeo e Revelaccedilatildeo A seguir elaborou sempre em consonacircncia com a tradiccedilatildeo patriacutestica e medieval um conceito de Revelaccedilatildeo muito menos material do que o que seraacute adotado mais tarde pela teologia dos tempos modernos Somente assim se deve conceber a ideacuteia da Revelaccedilatildeo do Espiacuterito Santo na Igreja Partindo do ramo nitidamente patriacutestico da teologia medieval tatildeo francamente acolhido no discurso de Cervini deveria ser muito menos categoacuterica a opiniatildeo que coloca o teacutermino da Revelaccedilatildeo na morte do uacuteltimo Apoacutestolo Naturalmente esta questatildeo natildeo pode ser aqui estudada com maiores detalhes A sua soluccedilatildeo como entatildeo se apresentava aos teoacutelogos poderia ser hoje impostada apelando-se para as categorias da teologia atual Segundo esta podemos dizer que a Revelaccedilatildeo estaacute encerrada do ponto de vista de seu princiacutepio material Todavia estaacute e continua presente em sua realidade eficaz Noutros termos a Revelaccedilatildeo tem eacute verdade o seu ἑφάπαξ enquanto ela se realizou num determinado dia na Histoacuteria Entretanto ela tem tambeacutem o seu ldquohojerdquo permanente isto eacute o que foi uma vez por todas realizado na feacute da Igreja permanece sempre vivo e operante Assim a feacute cristatilde natildeo se volta apenas para o passado Abrange tambeacutem o presente e o futuro Eacute verdade que a posterior materializaccedilatildeo historicista da ideacuteia de Revelaccedilatildeo aparece jaacute claramente insinuada nos debates tridentinos corno um fato previsto mas ainda [58] natildeo consumado embora talvez se possa dizer que nos textos conciliares ficou definitivamente consagrada a sua aceitaccedilatildeo

Finalmente acrescentemos ainda que com base nos debates do Conciacutelio podemos estabelecer quatro elementos da ideacuteia de Tradiccedilatildeo 1 O aspecto natildeo-escrito da Revelaccedilatildeo ou do Evangelho contido na Biacuteblia e no coraccedilatildeo dos fieacuteis 2 A palavra do Espiacuterito Santo no decorrer de todo o tempo da Igreja

3 A atividade da Igreja nos Conciacutelios 4 A Tradiccedilatildeo lituacutergica e a da vida da Igreja em geral Nestes quatro elementos

que se deve ter sob os olhos pois formam o fundo ideoloacutegico do Decreto expressa-se a realidade uacutenica do tempo presente da Igreja cristatilde Nele estaacute presente todo o passado poacutes-apostoacutelico da Igreja (inclusive o proacuteprio tempo dos apoacutestolos) de modo que toda a sua vida eacute na Sagrada Escritura um elemento central embora natildeo o uacutenico Em suma deve ter ficado claro que o Conciacutelio de Trento a despeito do caraacuteter contrastante e fixo de sua ideacuteia de Revelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeo oferece uma visatildeo muito mais rica destes conceitos do que a que impregnou a mentalidade dos seacuteculos seguintes Justamente por

isso a teologia de hoje pode retirar daiacute novos subsiacutedios novo apoio para suas pesquisas e novas indicaccedilotildees sobre o verdadeiro caminho a seguir

Quadro sinoacutetico do Decreto tridentino sobre a Tradiccedilatildeo

Primeiro princiacutepio conforme Cervini (AT = Escritura)

Sacrosancta œcumenica et generalis Tridentina Synodus in Spiritu Sancto legitime congregata [] hoc sibi perpetuo ante oculos proponens ut sublatis erroribus puritas ipsa EVANGELII in Ecclesia conservetur quod PROMISSUM ANTE PER PROPHETAS IN SCRIPTURIS SANCTIS

Segundo princiacutepio conforme Cervini o Evangelho em parte escrito em parte insculpido nos coraccedilotildees

[59] DOMINUS NOSTER IESUS CHRISTUS DEI FILIUS PROPRIO ORE PRIMUM PROMULGAVIT DEINDE PER SUOS APOSTOLOS TAMQUAM FONTEM OMNIS ET SALUTARIS VERITATIS ET MORUM DISCIPLINAE OMNI CREATURAE PRAEDICARI IUSSIT PERSPICIENSQUE HANC VERITATEM ET DISCIPLINAM CONTINERI IN LIBRIS SCRIPTIS ET SINE SCRIPTO TRADITIONIBUS QUAE AB IPSIUS CHRISTI ORE AB APOSTOLIS ACCEPTAE AUT AB IPSIS APOSTOLIS SPIRITU SANCTO DICTANTE

Seripando Cervini e outros soacute consideram as tradiccedilotildees recebidas pela Igrej (ldquoad nos usquerdquo)

quasi per manus traditae ad nos usque pervenerunt

orthodoxorum Patrum exempla secuta omnes libros tam Veteris quam Novi Testamenti cum utriusque unus Deus sit auctor nec non TRADITIONES IPSAS

Lejay Tradiccedilatildeo contendo natildeo soacute a ldquoconsuetudordquo mas relacionada tambeacutem com a ldquofidesrdquo (foacutermula conciliar)

tum ad fidem tum ad mores pertinentes

Terceiro princiacutepio de Cernini Depois da Ascenccedilatildeo de Cristo o Espiacuterito Santo ensina tambeacutem os misteacuterios de Deus

TAMQUAM VEL ORETENUS A CHRISTO VEL A SPIRITU SANCTO DICTATAS

Seripando Cervini etc soacute satildeo consideradas as coisas recebidas pela Igreja (como acima)

et continua successione in Ecclesia catholica conservatas

Cervini Escritura e Tradiccedilatildeo procedem ambas do mesmo Espiacuterito Santo

pari pietatis affectu ac reverentia suscipit ac veneratur

  • Prefaacutecio
  • SEGUNDA PARTE
  • Explicaccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo
  • segundo o Decreto do Conciacutelio de Trento
Page 11: Revelacao e Tradicao-Joseph Ratzinger (Bom Ler)

corporeidade e espiritualidade integra em si relaciona e torna legiacutetima toda mediaccedilatildeo possiacutevel no acircmbito do mundo das realidades Assim ldquonadardquo existe que [12] exclua este poder de mediaccedilatildeo Ele existe na palavra no sinal lituacutergico na comunidade eclesial no ofiacutecio na imagem em suma ateacute mesmo nas coisas profanas Natildeo obstante a pluralidade e diversidade desta mediaccedilatildeo pode acontecer que em diferentes eacutepocas e lugares de acordo com os desiacutegnios da graccedila mesmo no Novo Testamento a obrigatoriedade e cognoscibilidade da uacutenica mediaccedilatildeo tenha a sua histoacuteria peculiar Tal histoacuteria da Revelaccedilatildeo tornada definitiva em Cristo no acircmbito do uacuteltimo e eterno ldquoeatildeordquo pode tambeacutem conforme disposiccedilatildeo divina refletir-se na traacutegica histoacuteria da Cristandade dividida por uma cisatildeo em que transparece a pluralidade das muitas mediaccedilotildees da uacutenica Revelaccedilatildeo Esta divisatildeo eacute para noacutes uma censura Contudo serve-nos tambeacutem de instrumento da graccedila de Deus

A distinccedilatildeo entre Revelaccedilatildeo transcendental e a categorial-histoacuterica aplica-se tambeacutem agrave feacute Daiacute novas luzes para se entender melhor o problema da credulidade enquanto distinta da feacute e intimamente relacionada com ela Quando se considera a precaacuteria descriccedilatildeo da feacute elaborada pelos teoacutelogos vecirc-se que seu caraacuteter auditivo (ex auditu) eacute geralmente proposto de modo aposterioriacutestico e empiacuterico O endereccedilamento da feacute ao ouvinte aparece entatildeo como se da parte deste soacute houvesse uma potecircncia formal para assumir certas proposiccedilotildees verdadeiras sem as investigar devendo apenas aceitaacute-las em sua formulaccedilatildeo exata irrecusaacutevel e fixa A potecircncia aprioriacutestica da feacute ou a credulidade quase natildeo eacute levada em consideraccedilatildeo na teologia catoacutelica Esta credulidade como capacidade aprioriacutestica de crer natildeo deve ser tida na conta de uma potecircncia igual agraves outras uma espeacutecie de sentido de ldquoexigecircnciardquo ou coisa parecida Eacute antes o lado transcendental da Revelaccedilatildeo a potecircncia aprioriacutestica que tem o homem ser transcendental para a comunhatildeo com Deus na graccedila fundada na proacutepria abertura de Deus para se comunicar com a criatura Ambas estas coisas devem ser consideradas em sentido ontoloacutegico natildeo em sentido ocircntico

[13] Toda anaacutelise da feacute catoacutelica apresenta a ldquoautoridade de Deusrdquo como o ldquoobjeto formalrdquo ou o ldquomotivordquo uacuteltimo da feacute Chega-se assim entretanto a um impasse intransponiacutevel Isto porque se considera esta ldquoautoridaderdquo como elemento categorial e aprioriacutestico limitado pelo horizonte do conhecimento humano que a feacute tem que superar para que a Palavra permaneccedila sendo realmente Palavra divina e natildeo seja rebaixada ao niacutevel meramente criatural Se poreacutem na Revelaccedilatildeo e na feacute o proacuteprio Deus autocomunicando-se eacute o objeto crido e o princiacutepio aprioriacutestico de crer se a loacutegica da feacute natildeo eacute uma categoria aprendida de fora mas ndash do mesmo modo que a loacutegica natural ndash eacute a proacutepria estrutura ontoloacutegica e interna do ato de feacute se a mensagem exterior da feacute natildeo eacute o seu motivo aposterioriacutestico mas sua razatildeo aprioriacutestica ndash entatildeo todo este problema perde o seu sentido Assim se compreenderaacute que um falso ato material de feacute deixa de ter um objeto formal meramente aprioriacutestico e pode vir a ser um ato de feacute autecircntico

Somos forccedilados a interromper aqui estas observaccedilotildees Em tudo o que dissemos pudemos apenas indicar algumas perspectivas de soluccedilatildeo de um problema que desde os tempos do Modernismo eacute atual mas que contudo tem sido de certo modo postergado Mesmo por este pequeno exemplo ao qual poderiacuteamos acrescentar o de muitos outros problemas teoloacutegicos ainda natildeo solucionados vemos como custosa e lentamente avanccedila o trabalho teoloacutegico Eacute necessaacuterio ter paciecircncia e envidar esforccedilos perseverantes

Necessaacuterio eacute ainda admitir-se que a teologia natildeo cria a feacute no cristatildeo Ele eacute apenas chamado a pocircr-se a serviccedilo da feacute Da feacute hoje

Ao exprimir eu agrave ilustre Faculdade Catoacutelica de Teologia da Universidade de Munster o meu penhorado e cordial agradecimento pela distinccedilatildeo que me outorgou faccedilo-o com a consciecircncia de que tambeacutem os operaacuterios que realizam a construccedilatildeo da teologia trabalham em vatildeo se o Senhor natildeo cooperar com eles Noacutes [14] devemos trabalhar enquanto eacute dia Toda theologia mentis eacute apenas um auxiacutelio para a theologia cordis et vitaelig Enfim em toda theologia a rigor soacute um caminho se abre o caminho que se perde no segredo de Deus misteacuterio impenetraacutevel que todavia se potildee ao nosso alcance

Joseph Ratzinger

EXAME DO PROBLEMA DO CONCEITO DE TRADICcedilAtildeO

PRIMEIRA PARTE

Revelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeo

Ensaio de anaacutelise do conceito de Tradiccedilatildeo

I ndash Posiccedilatildeo do Problema

[15] O modo como Cristo Palavra expressa da Revelaccedilatildeo permanece presente na Histoacuteria e vai ao encontro dos homens pertence agravequelas questotildees fundamentais em torno das quais se dividiu a Cristandade ocidental no seacuteculo da Reforma A luta prende-se agrave ideacuteia de ldquoTradiccedilatildeordquo pela qual a Igreja catoacutelica procurou exprimir certa forma de comunicaccedilatildeo da Revelaccedilatildeo ao lado da outra contida na Sagrada Escritura Isto com o fim de desfazer um duplo protesto A Tradiccedilatildeo designava primeiro as chamadas consuetudines ecclesiaelig tais como a santificaccedilatildeo do domingo a oraccedilatildeo voltada para o Oriente o costume de jejuar as vaacuterias becircnccedilatildeos e consagraccedilotildees e outras praacuteticas semelhantes em vigor na piedade dos fieacuteis ao tempo da baixa Idade Meacutedia Tais praacuteticas ora nobres ora ridiacuteculas embora transformassem a Igreja numa espeacutecie de casa assombrada cheia de acircngulos e cantos justificavam-se sob o tiacutetulo de ldquotradiccedilatildeordquo e legitimavam-se como parte essencial da vida cristatilde1

Lutero a quem a simplicidade do Evangelho como urna forccedila explosiva tinha sobremodo impressionado preferiu agrave luz de sua [16] ideacuteia de Deus juiz misericordioso natildeo ver na Tradiccedilatildeo nada mais do que ninharias com as quais a humanidade se ilude e aparentemente se consola buscando uma evasatildeo ante o abuso da proacutepria existecircncia Ainda mais ele viu na Tradiccedilatildeo o retorno da Lei o predomiacutenio do arbiacutetrio humano sobre a palavra de Deus abuso contra o qual Paulo protestara com tanta veemecircncia e que agora de novo se implantara na Igreja A Confessio Augustana ocupou-se tambeacutem destas coisas destacando uma seacuterie de leis cuja violaccedilatildeo segundo a doutrina corrente era tida como pecado mortal a proibiccedilatildeo do trabalho manual aos domingos e dias santos a interrupccedilatildeo das preces canocircnicas diaacuterias os preceitos do jejum etc E Lutero prosseguia ldquoDe onde tiram os Bispos o direito e o poder de imporem tais prescriccedilotildees aos cristatildeos e de ilaquearem assim as consciecircncias Pedro no capiacutetulo 15 dos Atos dos Apoacutestolos proiacutebe se imponha o jugo sobre os ombros dos disciacutepulos E Paulo diz aos Coriacutentios que a autoridade lhe foi dada para salvar e natildeo para condenar Por que entatildeo multiplicam assim os pecados com tais imposiccedilotildeeshellip Se os Bispos tecircm poder de sobrecarregarem as igrejas com inuacutemeras prescriccedilotildees e de onerar as consciecircncias por que entatildeo a Sagrada Escritura proiacutebe tatildeo frequumlentemente que se faccedilam mandamentos

1 Eacute o que se vecirc claramente pela lista de traditiones feitas no tempo do Conciacutelio de Trento Cf a nota 44 da segunda parte desse livro

humanos e se escravizem os homens Porque chama ela a estas coisas de doutrina de Satanaacutes Foi acaso em vatildeo que o Espiacuterito Santo fez tais advertecircnciasrdquo 2

Lutero identificou aqui a traditio com os abusus Tradiccedilatildeo segundo ele eacute lei humana pela qual o homem se esconde de Deus e pior ainda se levanta contra Ele para tomar nas proacuteprias matildeos a tarefa de sua salvaccedilatildeo em vez de esperaacute-la da libeacuterrima graccedila do Senhor A Tradiccedilatildeo assim entendida como Lei eacute contraposta agrave mensagem da graccedila ldquoDevemos aceitar cada [17] um dos artigos do Evangelho para alcanccedilarmos a graccedila de Deus sem meacuterito nosso atraveacutes da feacute em Jesus Cristo e natildeo pretender merececirc-la mediante praacuteticas do culto inventado pelos homensrdquo3

O problema da Tradiccedilatildeo tornou-se ainda mais agudo devido a um segundo aspecto que de resto natildeo conduziu a nenhum resultado positivo Descobrindo o Evangelho teve Lutero igualmente a impressatildeo de libertar a Palavra de Deus da pesada cadeia do Magisteacuterio eclesiaacutestico que se teria apossado desta Palavra e natildeo mais a entendia em seu verdadeiro sentido empregando-a antes a seu bel-prazer A ideacuteia de que a palavra divina aprisionada na Igreja catoacutelica agrave autoridade do Magisteacuterio ficou privada de sua forccedila viva eacute sempre repetida nos escritos dos Reformadores Melanchton poreacutem fecirc-lo talvez de um modo mais humano e flexiacutevel quando apocircs com reservas a sua assinatura aos artigos luteranos de Esmalca ldquo quanto ao Papa acho eu que jaacute que ele quis abandonar o Evangelho devemos noacutes de nossa parte tolerar (e admitir) para o bem da paz e da unidade a sua superioridade sobre os Bispos superioridade esta que ele possui iure humanordquo 4

Este estado de coisas impregnou outrossim a ideacuteia de Igreja da Confessio Augustana uma vez que aiacute se diz que a Igreja eacute a congregatio sanctorum in qua Evangelium pure docetur et recte administrantur Sacramenta5 Assim a Igreja eacute marcada por duplo aspecto pela pureza da doutrina e pela administraccedilatildeo legiacutetima dos Sacramentos Nem uma palavra sobre o Magisteacuterio Na realidade para a elaboraccedilatildeo do conceito de Igreja este silecircncio da CA natildeo eacute menos importante do que o que ela aiacute diz Eacute um silecircncio evidentemente intencional e denuncia a oposiccedilatildeo dos Reformadores agrave concepccedilatildeo catoacutelica de Igreja [18] entatildeo vigente e ateacute hoje conservada Esta consta de trecircs elementos a fides correspondente ao pure docere a communio que corresponde ao sacramenta e a auctoritas6 O Magisteacuterio aparece aqui como criteacuterio da palavra Eacute o seu fiador Segundo Melanchton daacute-se o contraacuterio a palavra eacute que eacute o criteacuterio do Magisteacuterio Este deve em uacuteltima anaacutelise ser provado pela palavra e pode consequumlentemente ser negado A palavra eacute auto-suficiente e paira sobre o Magisteacuterio como uma grandeza autocircnoma Talvez nesta inversatildeo de relaccedilotildees eacute que estaacute propriamente o contraste entre o conceito catoacutelico e o protestante de Igreja Contradiccedilatildeo paralela se daacute em torno da ideacuteia de Tradiccedilatildeo Com efeito a negaccedilatildeo do Magisteacuterio como criteacuterio da palavra significa a reduccedilatildeo da palavra de Deus agrave Escritura que seraacute entatildeo o

2Art 28 39-42 in Die Bekenntnisschriften der evangelisch lutherischen Kirche Gotinga 1952 p126 3 Art 28 52 Op cit p129 4 Op cit p463 5 Art 7 1 paacuteg 61 6 Sobre este ponto e o seguinte cf J RATZINGER ldquoDas geistliche Amt und die Einheit der Kircherdquo in Catholica 17 (1963) p 165-179

uacutenico sustentaacuteculo autocircnomo e autecircntico da palavra natildeo admitindo a Tradiccedilatildeo como uma grandeza em si

O Conciacutelio de Trento em seu estudo sobre a Tradiccedilatildeo teve diante dos olhos os dois pontos de vista contraacuterios e procurou formular sua resposta levando ambos em consideraccedilatildeo Eacute por isso conveniente analisarmos como estas duas posiccedilotildees se inter-relacionam em face da equiparaccedilatildeo feita por Lutero entre a Traditio e os abusus Em outros termos como os Padres conciliares se colocam diante do dilema dever-se-ia responder aos ataques de Lutero diretamente com uma definiccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo Ou antes de tudo com a reformatio a coerccedilatildeo dos abusus7

No tocante agrave doutrina o Conciacutelio refutou ex professo a censura dos Reformadores sustentando que a palavra natildeo eacute uma realidade autocircnoma pairando acima da Igreja Ela eacute dada pelo [19] Senhor agrave Igreja e natildeo entregue ao capricho dos homens Permanece justamente por isso nas Suas matildeos subtraindo-se ao alcance do alvitre humano Na visatildeo dos Padres de Trento deve no fundo ter parecido uma falta de confianccedila o terem os homens receio da palavra escrita entregue agrave Igreja como se a Igreja pudesse abusar dela Como se se pudesse apelar para a palavra da Revelaccedilatildeo contra a Igreja Estava-se inquestionavelmente certo de que o Senhor que instituiu a Igreja como Seu Corpo haveria de se empenhar em tutelaacute-la contra o perigo de abusar de Sua palavra

Hoje decorridos quatro seacuteculos desde a Reforma podemos confessar que na oposiccedilatildeo que dividia entre si Lutero e o Conciacutelio de Trento tanto depois como antes o dilema que dilacerou a Cristandade ocidental de certo modo jaacute desapareceu Vecirc-se isto pela troca de correspondecircncia entre Harnack e Peterson Peterson ao agradecer o tratado de Harnack Das Alte Testament in den Paulinischen Briefen und in den Paulinischen Gemeiden observou que este em seu cotejo da Escritura com a exegese biacuteblica tinha adotado natildeo o princiacutepio protestante mas o catoacutelico Escreveu Harnack ldquoDizer que o chamado lsquoprinciacutepio formalrsquo do Protestantismo primitivo eacute uma impossibilidade criacutetica e que ao contraacuterio o princiacutepio catoacutelico eacute formalmente o melhor eacute um truiacutesmo Materialmente poreacutem o princiacutepio catoacutelico da Tradiccedilatildeo opotildee-se agrave Biacuteblia muito mais diretamente (As tradiccedilotildees satildeo como ervas daninhas a serem cortadas pela tesoura do Magisteacuterio) A melhor fonte eacute o Novo Testamentordquo 8

Nesta formulaccedilatildeo de certo modo geneacuterica e simplista e na oposiccedilatildeo estabelecida entre os aspectos material e formal vem de novo agrave tona o antigo dilema poder-se-aacute confiar a palavra agrave Igreja sem temor de que ela sob a tesoura do Magisteacuterio ou [20] envolta no mato selvagem do sensus fidelium perca a sua forccedila proacutepria e sua vitalidade Esta eacute a pergunta que os Protestantes fazem aos Catoacutelicos Poder-se-aacute aceitar a autonomia da palavra sem com isto ser esta exposta ao arbiacutetrio dos exegetas aos maus tratos por parte dos historiadores e enfim ao completo desamparo Eis como os Catoacutelicos revidam aos Protestantes Com efeito segundo nossa doutrina natildeo eacute a noacutes que compete decidir se queremos ou natildeo confiar a palavra agrave Igreja Foi o proacuteprio Senhor quem lha confiou Note-se entretanto que quando o Catoacutelico encara seriamente este assunto natildeo deixa de considerar o zelo pela pureza da palavra revelada como um dever

7 Ver as notas 41 e 42 na 2ordf parte 8 Citado in E PETERSON Theologische Traktate Munique 1951 p295

da mais alta importacircncia Ele sabe que natildeo cumpre este dever pelo simples fato de apelar para a inerracircncia da Igreja Fazecirc-lo seria menosprezar o sentido da luta de Lutero em favor da Palavra deixando-se de ver nisto uma salutar advertecircncia e um apelo dirigido agraves almas

Natildeo obstante tudo isto a histoacuteria da controveacutersia natildeo se deteve no decurso dos quatro seacuteculos que se seguiram agrave Reforma Duas diferentes tendecircncias se destacam nas relaccedilotildees entre o Protestantismo e o Catolicismo e entre suas respectivas teologias De um lado uma radicalizaccedilatildeo de cada grupo nos proacuteprios pontos de vista Cada grupo a partir de entatildeo fez sua histoacuteria proacutepria e desenvolveu-a em direccedilatildeo oposta um ao outro Por outro lado a distacircncia mantida entre ambos possibilita maior objetividade em seus julgamentos reciacuteprocos Existe finalmente de parte a parte um renovado esforccedilo por superar as fronteiras com vistas a um encontro

Quem entre os Catoacutelicos empreendeu o mais significativo passo para chegar a uma visatildeo nova do problema da Tradiccedilatildeo mediante a superaccedilatildeo de posiccedilotildees unilaterais e anti-reformistas foi em nossos dias o teoacutelogo dogmaacutetico de Tubinga Josef Rupert Geiselmann Seus esforccedilos foram frutuosos fazendo-se sentir a sua influecircncia inclusive nos estudos preparatoacuterios do [21] Conciacutelio e deram agraves incursotildees do Vaticano II nesta aacuterea aquela marcante atualidade que ainda na primeira sessatildeo levou este problema a transcender do ciacuterculo da luta doutrinal entre as vaacuterias escolas teoloacutegicas para se transformar em uma preocupaccedilatildeo de toda a Cristandade catoacutelica9

A tese de Geiselmann eacute conhecida Basta-nos esboccedilaacute-la rapidamente aqui a fim de lanccedilarmos as bases de uma reflexatildeo que procuraraacute aprofundar mais este assunto e talvez dar um modesto passo agrave frente Geiselmann parte de uma interpretaccedilatildeo nova do sentido dado pelo Conciacutelio ao conceito de Tradiccedilatildeo O tridentino estabelecera que a verdade do Evangelho estaacute contida in libris scriptis et sine scripto traditionibus Isto foi e eacute ateacute hoje interpretado como se a Escritura natildeo contivesse toda a veritas evangelii Portanto natildeo eacute possiacutevel admitir-se a sola Scriptura uma vez que uma parte da Revelaccedilatildeo nos eacute transmitida somente pela Tradiccedilatildeo Geiselmann aproveitou a observaccedilatildeo jaacute antes feita por alguns autores de que na primeira redaccedilatildeo do texto focircra adotada a foacutermula segundo a qual a verdade estaria contida partim in libris scriptis partim in sine scripto traditionibus Estaria aqui claramente expressa a doutrina da divisatildeo da verdade revelada em duas fontes (Escritura e Tradiccedilatildeo) O Conciacutelio abandonou a expressatildeo partim ndash partim preferindo usar o simples conectivo et Geiselmann daiacute conclui afastou-se o Conciacutelio da ideacuteia da divisatildeo da verdade em duas fontes diversas Ou pelo menos natildeo a definiu explicitamente E continua o mesmo autor com isto pode tambeacutem o teoacutelogo catoacutelico aceitar a ideacuteia de uma suficiecircncia material da Escritura Pode ainda mesmo permanecendo catoacutelico defender a opiniatildeo de que a Sagrada Escritura eacute suficiente para transmitir-nos a [22] Revelaccedilatildeo Geiselmann admite consequumlentemente que a sola Scriptura pode conceber-se como uma uacutenica fonte

9 Cf R LAURENTIN Lenjeu du Concile Bilan de Ia premiegravere session Paris 1963 p27-45 Y CONGAR Vatican II Le Concile au jour le jour Paris 1963 p63-71 J RATZINGER Die erste Sitzungsperiode des Zweiten Vatikanischen Konzils Colocircnia 1963 p38-50

material da Revelaccedilatildeo Ele crecirc ainda poder mostrar que a tradiccedilatildeo mais forte eacute a favor desta sentenccedila e que o proacuteprio Conciacutelio de Trento se inclina neste sentido10

Eacute faacutecil de se compreender que semelhante tese tenha obtido o apoio de muitos em face das novas possibilidades de encontro entre Catoacutelicos e Evangeacutelicos possibilidades estas que a posiccedilatildeo de Geiselmann parece favorecer11 Que esta tese na realidade constitua um passo consideraacutevel neste sentido parece ser incontestaacutevel Todavia tatildeo logo a analisemos mais de perto em seus fundamentos histoacutericos e reais surge de pronto toda uma seacuterie de dificuldades graves a tornarem impossiacutevel a sua aceitaccedilatildeo

Sobre o aspecto histoacuterico deste problema apresentaremos vaacuterias observaccedilotildees na segunda parte deste nosso opuacutesculo Entrementes consideremos de imediato o lado praacutetico deste assunto Seu exame provoca inicialmente esta pergunta que significa propriamente a expressatildeo ldquosuficiecircncia da Escriturardquo Geiselmann como teoacutelogo catoacutelico que eacute natildeo deixa de sustentar os nossos dogmas Ora nenhum dogma catoacutelico eacute provado sola Scriptura Nem os grandes dogmas primitivos sustentados pelo consensus quinquesaeligcularis nem tampouco o de 1854 e [23] menos ainda o de 1950 Em que sentido entatildeo se pode falar em suficiecircncia da Escritura Natildeo ameaccedilaraacute esta converter-se em perigosa fraude pela qual nos enganamos primeiramente a noacutes proacuteprios e em seguida tambeacutem enganamos aos outros (Ou natildeo seratildeo talvez justamente eles que natildeo se enganam) Ou entatildeo pelo menos para sustentarmos de um lado que a Escritura sozinha conteacutem toda a verdade da Revelaccedilatildeo e de outro lado que o dogma de 1950 eacute verdade revelada natildeo deveremos noacutes refugiar-nos em um conceito tatildeo largo de suficiecircncia que na verdade esta palavra venha a perder todo o seu significado

Com isto abre-se a segunda (que de fato eacute a primeira) questatildeo decisiva a saber seraacute verdade que os debates em torno da ideacuteia da suficiecircncia da Escritura resolveram mesmo o problema do conceito de Tradiccedilatildeo Ou ao contraacuterio natildeo estaremos noacutes aqui diante de um problema de raiacutezes muito mais profundas

Nossas observaccedilotildees introdutoacuterias devem ter deixado claro que esta uacuteltima pergunta deve sem duacutevida nenhuma ser respondida afirmativamente A questatildeo da suficiecircncia da Escritura eacute apenas um problema secundaacuterio no acircmbito da distinccedilatildeo muito mais importante que foi jaacute antes apontada por noacutes ao tratarmos dos conceitos abusus e auctoritas e que gira em torno do nexo entre a autoridade da Igreja e a autoridade da Sagrada Escritura Da compreensatildeo disto depende tudo o mais

Para irmos mais adiante torna-se necessaacuterio analisarmos profundamente o assunto natildeo para nos determos no exame dos conceitos tatildeo relevantes de suficiecircncia ou insuficiecircncia da Escritura mas antes para abordarmos em seu tudo o vasto problema da Palavra revelada e presente no coraccedilatildeo dos fieacuteis Torna-se evidente entatildeo que agrave luz das fontes positivas a Escritura e a Tradiccedilatildeo devem ser postas em relaccedilatildeo tatildeo iacutentima que da

10 Ver sobretudo a obra de J R GEISELMANN Die Heilige Schrift und die Tradition Friburgo 1962 principalmente as p91-107274-282 Entre os trabalhos anteriores escritos por Geiselmann sobre o mesmo tema eacute de particular importacircncia o seguinte Das Konzil von Trient uumlber das Verhaumlltnis der Heiligen Schrift und der nichtgeschriebenen Traditionen in M SCHMAUS Die muumlndliche Uumlberlieterung Munique 1957 p 123-206 11 Uma lista de todos os autores que mais concordaram com Geiselmann eacute fornecida por H KUumlNG em sua tese ldquoKarl Barths Lehre vom Wort Gottes als Frage an die katholische Theologierdquo in Einsicht und Glaube publicado por J RATZINGER-H FRIES Friburgo 1963 p 105 nota 25

fonte interna (a Revelaccedilatildeo) brote a pa1avra de Deus viva sob aquela dupla formalidade A Escritura e a Tradiccedilatildeo natildeo podem [24] ser entendidas uma sem a outra no sentido que ambas tecircm agrave luz da feacute O problema ldquoEscritura e Tradiccedilatildeordquo permaneceraacute insoluacutevel enquanto natildeo for reduzido a uma soacute questatildeo a saber a questatildeo ldquoRevelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeordquo e inserida enfim no amplo contexto a que pertence

Eu gostaria de nas paacuteginas seguintes sem entrar em todos os detalhes tentar desenvolver em forma de teses e de maneira positiva o conceito de Tradiccedilatildeo partindo de sua natureza iacutentima com a esperanccedila de que nele descubramos uma parte da resposta aos anseios dos Reformadores Desta maneira toda esta anaacutelise serviraacute de contribuiccedilatildeo para o diaacutelogo interconfessional cuja necessidade tanto os Catoacutelicos como os Protestantes vecircm proclamando de maneira cada vez mais insistente

II - Teses sobre a relaccedilatildeo entre a Revelaccedilatildeo e a Tradiccedilatildeo

1 A Revelaccedilatildeo e a Escritura A primeira tese em aditamento ao conceito patriacutestico de Escritura e Revelaccedilatildeo

poderia enunciar-se nos seguintes termos o fato de existir uma ldquoTradiccedilatildeordquo repousa antes de tudo na diferenccedila que permeia entre estas duas realidades ldquoRevelaccedilatildeordquo e ldquoEscriturardquo A Revelaccedilatildeo exprime propriamente o falar e o agir de Deus em relaccedilatildeo aos homens Designa uma realidade expressa pela Escritura sem ser contudo a proacutepria Escritura A Revelaccedilatildeo por conseguinte ultrapassa a Escritura na mesma medida em que a realidade ultrapassa a sua expressatildeo escrita12 Poder-se-ia [25] tambeacutem dizer que a Escritura eacute o princiacutepio material da Revelaccedilatildeo (Talvez princiacutepio uacutenico talvez um princiacutepio entre outros isto seraacute esclarecido mais adiante) Ela natildeo eacute poreacutem a proacutepria Revelaccedilatildeo Isto era aliaacutes bem sabido dos proacuteprios Reformadores mas comeccedilou visivelmente a ser esquecido no aceso da controveacutersia entre a teologia catoacutelica poacutes-tridentina e a ortodoxia protestante13 Em nosso seacuteculo foram justamente os teoacutelogos evangeacutelicos Barth e Brunner que redescobriram este fato de todo evidente para a teologia patriacutestica e medieval14

O que acabamos de afirmar ficaraacute mais claro se partirmos de outro princiacutepio a Escritura pode ser possuiacuteda sem que se possua a Revelaccedilatildeo Isto porque a Revelaccedilatildeo eacute sempre e em primeiro plano uma realidade a realidade onde se encontra a feacute Aquele

12 Esta afirmaccedilatildeo natildeo tem o sentido de que a Escritura seja uma mera e vazia narrativa de realidades a ela exteriores Antes como o que se segue iraacute demonstrar indica que a Revelaccedilatildeo eacute realizada na Palavra jaacute que eacute por meio de palavras que ela se comunica aos homens Contudo a mera presenccedila da palavra ainda natildeo eacute a Revelaccedilatildeo Esta eacute mais do que simples ldquopresenccedilardquo Com o que ficou dito salienta-se a diferenccedila que existe entre a palavra e seu conteuacutedo Esta diferenccedila natildeo exclui o caraacuteter verbal da Revelaccedilatildeo 13 Cf A GLOEGE Schriftprinzips RGG V 1540-1543 onde se encontraraacute a mais completa bibliografia LthK VII 1104-1115 J R GEISELMAN Offenbarung in H FRIES Handbuch zum Begriff der Offenbarung cf M VERENO - R SCHNACKENBURG - HRIES in Theologischer Grundbergriffe II Munique 1963 p242-250 e a bibliografia aiacute citada 14 Cf W H VAN DER POL Das reformatorische Christentum Einsiedeln 1956 p117-192

que natildeo crecirc acha-se como que coberto por um veacuteu o veacuteu de que fala Satildeo Paulo no terceiro capiacutetulo da segunda epiacutestola aos Coriacutentios15 Ele pode ler a Escritura e saber o que nela se conteacutem Pode ateacute mesmo apreender de modo puramente intelectual o que aiacute eacute significado e como suas ideacuteias se inter-relacionam Todavia natildeo possui com isto a Revelaccedilatildeo A Revelaccedilatildeo eacute sobretudo possuiacuteda quando aleacutem da expressatildeo material que a atesta se potildee tambeacutem em praacutetica o seu conteuacutedo interno por meio da vivecircncia da feacute Com efeito de certo modo se inclui tambeacutem na Revelaccedilatildeo o sujeito recipiente sem o qual ela natildeo pode existir Natildeo se pode pocircr a Revelaccedilatildeo no bolso como se faz com [26] um livro Ela eacute uma realidade viva Exige homens vivos que a recebam que sirvam de ldquolugarrdquo de sua presenccedila

Repetindo o que ateacute aqui dissemos podemos afirmar que a Revelaccedilatildeo sobreexcede de fato a Escritura em dois sentidos

a) em sentido ascendente ela atinge sempre como realidade procedente de Deus o agir divino sobre as criaturas

b) como realidade que se daacute ao homem por meio da feacute ela atinge igualmente a Escritura

Desta diferenccedila entre a Escritura e a Revelaccedilatildeo resulta claramente que de todo independentemente da questatildeo se a Escritura eacute ou natildeo eacute a uacutenica fonte material em rigor nunca existe para o cristatildeo a sola Scriptura (Isto como ficou dito era claro em princiacutepio para os grandes Reformadores e comeccedilou a ser esquecido na chamada ortodoxia protestante) A Escritura natildeo eacute a Revelaccedilatildeo Eacute sim em uacuteltima anaacutelise uma parte desta realidade mais ampla

2 Os diferentes sentidos da Escritura

no Antigo e Novo testamento A problemaacutetica cristatilde da Revelaccedilatildeo ou o problema ldquoEscritura e Tradiccedilatildeordquo situa-se

melhor se considerarmos o duplo aspecto da mesma Revelaccedilatildeo no Antigo e no Novo Testamento A este duplo aspecto corresponde tambeacutem um duplo sentido da Escritura Assim como os dois Testamentos como tais se distinguem essencialmente assim tambeacutem devemos dizer que a ldquoEscriturardquo como um fato natildeo eacute repetida duas vezes do mesmo modo Isto aparece muito claro nos livros neotestamentaacuterios Sob a expressatildeo ldquoEscriturardquo designam eles somente o Antigo Testamento Para eles o AT eacute e permanece sendo ldquoa Escriturardquo cujo sentido se aclara mediante sua confirmaccedilatildeo no evento da [27] vinda de Cristo16 Os livros do NT natildeo jogam uma Escritura nova contra uma Escritura antiga Nem potildeem uma simplesmente ao lado da outra Potildeem sim em face da uacutenica Escritura ou seja do Antigo Testamento o Cristo-evento como o espiacuterito que explica a letra Esta concepccedilatildeo fundamental ilumina tambeacutem a forma da feacute mais antiga e a torna por primeiro compreensiacutevel O ldquoJesusrdquo formal eacute o ldquoCristordquo expresso no Antigo Testamento Natildeo eacute outra coisa No Jesus Histoacuterico o Cristo-mensagem do

15 Cf sobre estas reflexotildees o importante artigo (ἀποκαλύπτω de A OEPKE in ThWNT III p565-597 16 Ver sobre este ponto as preciosas conclusotildees de G SCHRENK art γραφή ndash γράμμα in ThWNT I p749-769 e a p767

Antigo Testamento atinge a sua consumaccedilatildeo Eacute a partir do AT que se entende quem eacute Jesus E o que o Testamento Antigo expressa pode ser visto agrave luz do Cristo-evento

Esta ideacuteia aparece em Paulo ao apresentar ele o Antigo e o Novo Testamentos como Gramma e Pneuma isto eacute letra e espiacuterito (2Cor 3 6-18) Ele chama ao Senhor de Pneuma A Escritura explica-o como sendo o seu sentido o seu conteuacutedo verdadeiro e vivo e natildeo apenas literaacuterio Paulo se refere agrave concepccedilatildeo do Novo Testamento apresentada por Jeremias (3133) Natildeo eacute mais necessaacuteria nenhuma Escritura porque a lei estaacute escrita nos coraccedilotildees Jaacute natildeo eacute necessaacuteria nenhuma doutrinaccedilatildeo vinda de fora porque o proacuteprio Deus instrui os homens Joatildeo exprime idecircntico pensamento em seguimento ao decircutero-Isaiacuteas (5413) quando descreve a era inaugurada por Cristo como o tempo no qual todos satildeo doutrinados por Deus mesmo E o sermatildeo de Pedro em Pentecostes transmitido pelos Atos dos Apoacutestolos (2 14-36) desenvolve a mesma ideacuteia tirada de Joel (3 1-5) Em todos estes casos aparece a era instaurada por Cristo como resposta agrave esperanccedila no advento de um tempo futuro que em uacuteltima anaacutelise haveria de tornar supeacuterflua a Escritura graccedilas agrave presenccedila imediata do Divino Mestre na Sua humanidade

Quando se pondera o sentido destas afirmaccedilotildees torna-se claro [28] que ao reduzir-se a ldquoEscriturardquo aos escritos do Antigo Testamento natildeo se estaacute apenas usando uma terminologia antiga que teria sido adotada por falta de escritos propriamente neotestamentaacuterios e que teria perdido seu sentido na segunda metade do seacuteculo segundo com o iniacutecio do cacircnon do Novo Testamento Ao contraacuterio Aqui se expressa uma consciecircncia que se tornaria mais niacutetida a partir da formaccedilatildeo da proacutepria Escritura neotestamentaacuteria muito ao inveacutes de cessar ou de desaparecer

Uma coisa eacute certa a ldquoEscriturardquo na nova ordem da salvaccedilatildeo inaugurada por Cristo toma um lugar distinto do que lhe cabia no Antigo Testamento Com isto pode-se ver ateacute que ponto o Antigo Testamento tem sentido autocircnomo O AT certamente natildeo aparecia desde o comeccedilo como Testamento do Gramma Escritura em sentido proacuteprio como ocorreraacute na pena de Satildeo Paulo17 Por outro lado manifesta-se realmente a partir de Jeremias e do decircutero-Isaiacuteas o anelo pela superaccedilatildeo do Gramma mediante uma nova e imediata comunicaccedilatildeo do Espiacuterito de Deus simultaneamente com a progressiva formaccedilatildeo de um princiacutepio da Escritura que mais e mais a transformou em Lei Lei esta que natildeo tornaria os homens vivos mas sim mortos

Desta maneira na concepccedilatildeo neotestamentaacuteria aparece o Antigo Testamento como ldquoEscriturardquo em sentido proacuteprio Escritura que atinge o seu verdadeiro significado atraveacutes do Cristo-evento pelo fato de ser ela inserida no contexto vivo da realidade de Cristo Se no Novo Testamento de facto a Escritura cresceu natildeo pode mais ter aquele sentido uacuteltimo e exclusivo que lhe competia no Antigo segundo a concepccedilatildeo paulina Ao contraacuterio Ela eacute a chave com que se abre o Antigo Testamento deixando-se banhar na claridade do Cristo-evento Ela eacute tambeacutem a ponte permanente que conduz a uma nova interpretaccedilatildeo biacuteblica agrave luz [29] de Cristo Num caso e noutro a Escritura natildeo pretende de modo nenhum ser autocircnoma nem ser a fonte uacutenica e exclusiva de sua exegese literal Mas soacute pode ter sentido na realidade espiritual de Jesus Cristo que

17 Ver a apreciaccedilatildeo feita por G VON RAD Theologie des Alten Testaments II Munique 1960 p402-424

permanece junto dos seus todos os dias ateacute ao fim do mundo (Mt 28 20) Apoacutes a subida ao Calvaacuterio Cristo veio de novo no Espiacuterito Santo (como narra Satildeo Joatildeo) e pelo Espiacuterito ensinou aos disciacutepulos o que eles entatildeo natildeo podiam ainda entender enquanto o Senhor estava entre eles sob forma visiacutevel (Jo 16 12)

3 Cristo a Revelaccedilatildeo de Deus

A realidade que se daacute como um acontecimento na Revelaccedilatildeo cristatilde natildeo eacute nada

mais nada menos do que o proacuteprio Cristo Cristo eacute a Revelaccedilatildeo em sentido proacuteprio ldquoQuem me vecirc vecirc o Pairdquo diz ele no Evangelho de Satildeo Joatildeo (14 9) Vale portanto dizer que receber a Revelaccedilatildeo eacute penetrar na realidade de Cristo no Cristo-evento Daiacute procede o paradoxo descrito por Satildeo Paulo ao fazer ele um trocadilho com as palavras ldquoCristo em noacutesrdquo e ldquonoacutes em Cristordquo

Neste contexto a anaacutelise de frases isoladas torna-se secundaacuteria de vez que elas satildeo apenas explicaccedilotildees do uacutenico misteacuterio de Cristo Consequumlentemente cai por si mesma a questatildeo da suficiecircncia interna da Escritura tatildeo discutida desde o aparecimento das obras de Geiselmann Deveriacuteamos isto sim perguntar que significa em linguagem cristatilde a suficiecircncia interna da Escritura ldquoSuficienterdquo eacute soacute a realidade do Cristo-evento Esta pode ser explicada materialmente em maior ou menor grau E de maneira nunca definitiva Partindo deste princiacutepio podem existir tambeacutem outras explicaccedilotildees segundo a Escritura quando se aprofunda mais este assunto

Este mesmo tema pode ser considerado sob outro aspecto E ter-se-aacute entatildeo dado um passo a mais para a frente A aceitaccedilatildeo [30] da Revelaccedilatildeo pela qual aplicamos a noacutes o Cristo-evento vem na linguagem da Biacuteblia sob o nome de ldquofeacuterdquo Assim talvez se entenderaacute mais claramente de que maneira no Novo Testamento a feacute significa a ldquoin-habitaccedilatildeordquo de Cristo Se admitirmos que na Escritura a presenccedila da Revelaccedilatildeo tem o mesmo sentido que a presenccedila de Cristo entatildeo teremos de fato dado um passo adiante Ora na Escritura encontramos a presenccedila de Cristo apresentada de duas maneiras Ela aparece de um lado como jaacute vimos identificada com a feacute (Ef 317) na qual cada um encontra Cristo e se adentra nele penetrando no dinamismo de sua forccedila salvadora Por outro lado a feacute se oculta tambeacutem sob a expressatildeo paulina ldquoCorpo de Cristordquo o que quer dizer que a comunidade dos fieacuteis ndash a Igreja ndash funda a presenccedila de Cristo neste mundo Nela Cristo reuacutene os homens e os faz partiacutecipes de sua presenccedila dinacircmica18

Tomadas juntas estas duas noccedilotildees significam o seguinte a feacute eacute a adesatildeo iacutentima agrave presenccedila de Cristo realidade de Cristo presente da qual a Escritura nos daacute testemunho sem contudo se identificar de modo nenhum com ela Daiacute resulta que a presenccedila da Revelaccedilatildeo se relaciona essencialmente com a ldquofeacuterdquo e com a ldquoIgrejardquo realidades estas que como vimos estatildeo estreitamente ligadas entre si

Voltamos assim ao que foi afirmado na primeira tese a saber que a Revelaccedilatildeo sobreexcede a Escritura em duplo sentido em relaccedilatildeo a Deus por seu lado ascendente e em relaccedilatildeo tambeacutem ao homem que a recebe Esta asserccedilatildeo que a princiacutepio deixamos

18 H SCHLIER ldquoDie Kirche nach dem Brief an die Epheserrdquo in Die Zeit der Kirche Friburgo 1962 p159-186

um tanto vaga encontramo-la essencialmente concretizada na realidade objetiva do Cristianismo

4 A essecircncia da Tradiccedilatildeo

[31] A transmissatildeo ao povo de Deus do Cristo-evento que eacute a Revelaccedilatildeo e que tem sua bi-presenccedila na feacute e na Igreja faz-se atraveacutes da pregaccedilatildeo Pregaccedilatildeo eacute a ldquoex-posiccedilatildeordquo (Aus-legung) do duplo aspecto da Revelaccedilatildeo no Antigo e no Novo Testamento E isto de duas maneiras

a) ela eacute a exposiccedilatildeo do Antigo Testamento agrave luz do Cristo-evento e para o Cristo-evento

b) a partir do Pneuma e da condiccedilatildeo presente da Igreja Este uacuteltimo aspecto eacute possiacutevel pois Cristo natildeo estaacute morto Estaacute vivo Natildeo eacute

apenas o Cristo de ontem Eacute tambeacutem e a fortiori o Cristo de hoje e de amanhatilde o Cristo vivo e presente em sua Igreja que eacute seu Corpo e na qual o seu espiacuterito opera

Isto poderaacute ser melhor compreendido se partirmos da essecircncia da Igreja Como nos ensina o Novo Testamento a mensagem de Jesus eacute antes de tudo uma mensagem escatoloacutegica com vistas ao reino de Deus natildeo com vistas agrave Igreja O fato de existir a Igreja natildeo se opotildee a esta mensagem mas haacute na marcha gradativa das revelaccedilotildees de Cristo uma segunda possibilidade Assim a atividade dos Doze depois de Pentecostes aponta natildeo para a Igreja mas para o reino de Deus Informam-nos os Atos dos Apoacutestolos que os Doze natildeo se ocuparam primordialmente em missionar os povos Esforccedilaram-se antes muito mais em converter Israel criando deste modo as condiccedilotildees preacutevias para a implantaccedilatildeo do reino De iniacutecio uma seacuterie de obstaacuteculos histoacutericos entre os quais deveriacuteamos citar antes de tudo o martiacuterio de Estevatildeo o supliacutecio de Tiago e por fim o fato decisivo da prisatildeo e da libertaccedilatildeo de Pedro Tais fatos levaram a comunidade primitiva segundo dizem as fontes a reconhecer como definitivo o malogro do esforccedilo de converter Israel E consequumlentemente forccedilaram os Apoacutestolos a partir em busca dos gentios e a cuidar [32] assim da Igreja e natildeo do reino Eles o fazem segundo se depreende das passagens referidas e principalmente dos esclarecimentos do capiacutetulo 15 dos Atos dos Apoacutestolos como uma nova opccedilatildeo feita sob a accedilatildeo do Espiacuterito Santo Com isso iniciou-se uma nova interpretaccedilatildeo da mensagem de Cristo sobre a qual a Igreja essencialmente repousa19

19 Cf as decisivas conclusotildees de E PETERSON ldquoDie Kircherdquo in Theologische Traktate Munique 1951 p 409-429 H SCHLIER Die Entscheidung fuumlr die Heidenmission in der Urchristenheit Die Zeit der Kirche p 90-107 Parece-me certo que nem a anaacutelise da tradiccedilatildeo sinoacutetica relativa agrave mensagem de Jesus e seu caraacuteter escatoloacutegico nem o estudo da histoacuteria da Igreja primitiva com base no material fornecido pelos Atos dos Apoacutestolos autorizam qualquer outra conexatildeo entre a mensagem do reino e a pregaccedilatildeo da Igreja Daiacute natildeo se segue de modo nenhum ndash como muitas vezes se teme ndash que a cruz seja um acidente secundaacuterio que em rigor poderia ter sido evitado Ao contraacuterio A estrutura da Igreja moldada sobre a cruz eacute fundamental porque aiacute eacute que por primeiro se encontra a confirmaccedilatildeo da importacircncia da liberdade humana de Cristo e da sua Paixatildeo bem como a iacutentima dependecircncia da Igreja para com a Cruz donde ela procede

Este fato que baseia o estabelecimento definitivo da Igreja sobre uma decisatildeo tomada ldquono Espiacuterito Santordquo eacute o fundamento para se afirmar que existe uma interpretaccedilatildeo eclesial do Novo Testamento do mesmo modo que existe uma exegese cristoloacutegica do Antigo Daiacute podermos estabelecer as seguintes teses ou proposiccedilotildees agrave luz da analogia fidei

a) Existe uma teologia veterotestamentaacuteria do Antigo Testamento que o exegeta

deduz de seu conteuacutedo interno e que se desenvolve em uma seacuterie de camadas superpostas Segundo ela os textos antigos devem ser relidos e de novo expostos agrave luz dos novos acontecimentos O fenocircmeno da aplicaccedilatildeo dos textos agraves situaccedilotildees novas do desdobramento da Revelaccedilatildeo mediante nova [33] apresentaccedilatildeo do Antigo Testamento estrutura jaacute de modo essencial o conteuacutedo interno veterotestamentaacuterio20

b) Existe uma teologia neotestamentaacuteria do Antigo Testamento que natildeo coincide com

a referida teologia veterotestamentaacuteria Estaacute contudo estreitamente ligada com ela na unidade da analogia fidei21 Talvez partindo daqui se possa esclarecer o que significa a analogia fidei entre Os dois Testamentos A teologia neotestamentaacuteria do Antigo Testamento natildeo eacute como ficou dito idecircntica agrave teologia histoacuterica veterotestamentaacuteria Ao contraacuterio Re-exposiccedilatildeo feita agrave luz do Cristo-evento ela natildeo procede soacute da mera consideraccedilatildeo histoacuterica do Antigo Testamento Sendo embora em seu pleno conceito uma interpretaccedilatildeo relacionada com o Antigo Testamento contudo nada faz com que ela seja internamente estranha agrave sua essecircncia ainda que soacute de fora o atinja Ela amplia a forma estrutural do Antigo Testamento que assim interpretado revive e cresce

c) Existe uma teologia neotestamentaacuteria do Novo Testamento paralela agrave teologia veterotestamentaacuteria do Antigo Ou seja a teologia que o exegeta como tal pode deduzir do conteuacutedo interno do Novo Testamento eacute tambeacutem esta conhecida e estruturada mediante a aplicaccedilatildeo do Antigo Testamento agraves novas situaccedilotildees

d) Existe uma teologia eclesial do Novo Testamento que noacutes [34] chamamos Dogmaacutetica Ela se relaciona com a teologia neotestamentaacuteria do Novo Testamento do mesmo modo que a teologia neotestamentaacuteria do Antigo se relaciona com a respectiva teologia veterotestamentaacuteria Aquele ldquomaisrdquo (das Mehr) que distingue propriamente a Dogmaacutetica da teologia biacuteblica eacute o que designamos com a palavra Tradiccedilatildeo Aliaacutes tambeacutem aqui devemos salientar que a teologia eclesiaacutestica neotestamentaacuteria pela mesma razatildeo natildeo eacute simplesmente idecircntica agrave teologia neotestamentaacuteria interna e

20 Cf H GROSS Motivtransposition als Form- und Traditionsprinzip im Alten Testament in H VORGRIMLER Exegese und Dogmatik Moguacutencia 1962 p134-152 e a bibliografia aiacute fornecida G v RAD Theologie des Alten Testaments II Munique 1960 p332-339 396-401 21 A diferenccedila entre as duas teologias do Antigo Testamento foi vivamente exposta por R BULTMANN ldquoWeissagung und Erfuumlllungrdquo in Glauben und Verstehen II Tubinga 1952 p162-186 - Sobre as necessaacuterias correccedilotildees a se fazerem para que se torne visiacutevel a base histoacuterica do que a teologia sistemaacutetica denomina ldquoanalogia fideirdquo cf G v RAD op cit p329-424 (entre outras) e principalmente a p 420 nota 25 e a p422 nota 29 Sobre o tema ldquoanalogia fideirdquo em ambos os Testamentos cf tambeacutem E PRZYWARA Alter und Neuer Bund Viena-Munique 1956

histoacuterica do Novo Testamento Ultrapassa-a sem contudo ser-lhe puramente externa Com efeito no Novo Testamento comeccedila jaacute o processo da exposiccedilatildeo pela Igreja das verdades reveladas A teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento processa-se dentro dele proacuteprio como de modo clariacutessimo se percebe na histoacuteria da Revelaccedilatildeo sinoacutetica22

Eacute oportuno fazermos ainda uma pequena observaccedilatildeo se cotejarmos atentamente a teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento com a Dogmaacutetica reconheceremos que se impotildee uma outra distinccedilatildeo A Dogmaacutetica como ciecircncia aleacutem da exposiccedilatildeo eclesiaacutestica do Novo Testamento abrange tambeacutem a teologia particular de cada teoacutelogo Neste caso para se falar com precisatildeo dever-se-ia apresentar somente o proacuteprio dogma como teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento

O que acabamos de referir natildeo passa naturalmente de um esboccedilo que necessitaria em seus pormenores de natildeo poucos esclarecimentos e distinccedilotildees a fim de ser completo No caso presente entretanto damos por suficiente este esboccedilo Resumindo o que ateacute aqui expusemos podemos agora destacar vaacuterias ldquoraiacutezesrdquo da Tradiccedilatildeo e apontar vaacuterias camadas em seu seio [35] lordf raiz a maior amplidatildeo da ldquoTradiccedilatildeordquo em referecircncia agrave ldquoEscriturardquo

2ordf raiz o caraacuteter especiacutefico da Revelaccedilatildeo neotestamentaacuteria como Pneuma em contraste com o Gramma Eacute o que na linguagem de Bultmann se poderia chamar de sua condiccedilatildeo de ldquonatildeo-objetordquo (Nichtobjektiviertbarkeit) A praxe eclesiaacutestica e a teologia medieval expressaram este aspecto ao sobreporem a fides agrave Scriptura isto eacute o dogma como regra de feacute agraves minuacutecias da lei escrita23 O dogma eacute como a chave hermenecircutica da Escritura que em uacuteltima anaacutelise sem o auxiacutelio da hermenecircutica ficaria sendo algo fechado

3ordf raiz o caraacuteter presencial do Cristo-evento e a presenccedila dinacircmica do Espiacuterito de Cristo em seu Corpo a Igreja E consequumlentemente o poder que tem a Igreja de fazer a pregaccedilatildeo do Cristo ontem e hoje pregaccedilatildeo esta cuja fonte se encontra na interpretaccedilatildeo eclesiaacutestica da mensagem do reino transmitida pelos Apoacutestolos

Em conexatildeo com estas trecircs raiacutezes da ideacuteia (ou melhor da realidade) da Tradiccedilatildeo podem distinguir-se na mesma as seguintes camadas

a) Na origem de toda Tradiccedilatildeo estaacute o fato de que o Pai enviou o Seu Filho ao mundo e que o Filho por sua vez se [36] entregou ndash como sinal ndash aos ldquopovosrdquo (παραδίδοται) Esta paraacutedosis original em sua forccedila direta e salvadora

22 Cf por exemplo a rica exposiccedilatildeo de G BORNKMANN Jesus von Nazareth Estutegarte 1956 Sobre a questatildeo aqui estudada cf H SCHLIER Uumlber Sinn und Aufgabe einer Theologie des Neuen Testaments in H VORGRIMLER Exegese und Dogmatik Mainz 1962 p6990 23 O que haacute de melhor sobre este assunto no tocante agrave Patriacutestica seraacute encontrado em HARNACK DG II (1931) p84-116 HARNACK diz na p 87 nota 3 o seguinte ldquoO Cacircnon era de iniacutecio a regra da feacute A Escritura estaacute centrada na verdade Sem duacutevida nenhuma sua autoridade funda-se solidamente no Antigo Testamento e nas palavras do Senhorrdquo ndash Que assim tenha pensado tambeacutem a Idade Meacutedia e que aqui aleacutem da revelatio (da qual falaremos na 2ordf parte deste livro) a fides sobrepondo-se agrave Scriptura estabelece a forma essencial do conceito de Tradiccedilatildeo foi o que tentei demonstrar em meu artigo Wesen und Weisen der auctoritas im Werk des heiligen Bonaventura in Die Kirche und ihre Aumlmter und Staumlnde (Festgabe Kardinals Frings publicado por CORSTEN-FROTZ-LINDEN Colocircnia 1960 p 58-72

prolonga-se na permanente presenccedila de Cristo no σῶμα Χριστοῦ ndash no Seu Corpo a Igreja Assim o misteacuterio integral da presenccedila de Cristo eacute antes de tudo a realidade total transmitida pela Tradiccedilatildeo (fato fundamental e decisivo sempre anterior a todas as explicaccedilotildees particulares mesmo as da Escritura) e reguladora do que deve propriamente ser transmitido

b) A Tradiccedilatildeo existe concretamente como presenccedila na feacute Esta por seu turno como ldquoin-habitaccedilatildeordquo de Cristo precede todas as explicaccedilotildees particulares e frutuosa e viva ldquoexplicita-serdquo (explizierend) atraveacutes dos tempos

c) A Tradiccedilatildeo tem seu oacutergatildeo na plenitude dos poderes da Igreja e portanto naqueles que satildeo os legiacutetimos depositaacuterios destes poderes24

d) A Tradiccedilatildeo exprime-se tambeacutem naquilo que emanado da autoridade da Igreja se tornou regra de feacute (Symbolum fides quaelig) Portanto a questatildeo de se saber se certas proposiccedilotildees foram transmitidas desde o

comeccedilo pela Tradiccedilatildeo ao lado da Escritura ou em outros termos se existe desde o comeccedilo um segundo princiacutepio material e autocircnomo ao lado da Escritura torna-se afinal um problema inteiramente secundaacuterio Talvez lhe devamos responder negativamente

5 A funccedilatildeo da exegese [37] Pelo que ateacute aqui dissemos ficaram esclarecidas quase que exclusivamente

trecircs pontos os limites da letra da Escritura a liberdade do Espiacuterito Santo e a autoridade da Igreja Acontece poreacutem que a exposiccedilatildeo que fizemos abriga ainda um sentido diverso relacionado com a justa preocupaccedilatildeo de Lutero da qual partimos

Se ficou estabelecido que a Revelaccedilatildeo se faz presente atraveacutes da pregaccedilatildeo e se pregaccedilatildeo eacute exposiccedilatildeo da palavra revelada entatildeo pode e deve agora ao que precede acrescentar-se o seguinte a Tradiccedilatildeo eacute essencialmente e sempre uma exposiccedilatildeo Natildeo existe de maneira autocircnoma e sim como explicaccedilatildeo como exposiccedilatildeo ldquorelacionada com a Escriturardquo

Isto vale para a pregaccedilatildeo do proacuteprio Jesus Cristo realizaccedilatildeo plena da Revelaccedilatildeo e sua exposiccedilatildeo feita com autoridade A pregaccedilatildeo de Jesus Cristo natildeo aparece como algo absolutamente novo na Escritura Isto eacute como algo ainda natildeo atestado no Antigo Testamento Ela ensina isto sim a essecircncia do que jaacute estava escrito e lhe confere uma vida nova que o simples exegeta natildeo pode comunicar-lhe

O que vale para a mensagem de Cristo que permanece a mesma sob diferentes modalidades de exposiccedilatildeo vale tambeacutem para a pregaccedilatildeo apostoacutelica e a eclesiaacutestica Como ldquoTradiccedilatildeordquo ela deve em uacuteltima anaacutelise ser uma exposiccedilatildeo ldquosegundo a Escriturardquo a ela sujeita e com ela relacionada Sem duacutevida natildeo eacute ela uma exposiccedilatildeo no 24 Estas ideacuteias natildeo podem ser desenvolvidas mais detalhadamente aqui como seria de desejar uma vez que em rigor estamos procurando apenas fundamentar o conceito de Tradiccedilatildeo Em razatildeo da brevidade que me impus contentei-me apenas nas teses precedentes com explanar o assunto ateacute ao ponto em que ficasse patente a relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a ldquoIgrejardquo (cf as teses 4 e 5) Para se descer a maiores detalhes dever-se-ia analisar tambeacutem o conceito de Igreja que supomos conhecido do leitor Para isto cf a nota 6 onde citamos nosso livro sobre o Ofiacutecio e a unidade da Igreja Encontram-se aiacute algumas observaccedilotildees sobre o assunto de que ora tratamos

sentido de mera interpretaccedilatildeo exegeacutetica Mas sim na autoridade espiritual recebida do Senhor a qual se consuma na existecircncia plena da Igreja em sua feacute em sua vida e em seu culto Contudo ela permanece sendo (mais ainda do que o Cristo-evento em que se funda a Igreja) uma ldquoex-posiccedilatildeordquo (Aus-Legung) comprometida com a Histoacuteria e com a Palavra [38] Exprime-se deste modo a sua ligaccedilatildeo com a accedilatildeo concreta de Deus nesta mesma Histoacuteria e em seu caraacuteter de fato histoacuterico uacutenico (o ἑφάπαξ ldquoo ocorrido uma soacute vezrdquo) A realidade cristatilde da Revelaccedilatildeo eacute tatildeo essencial quanto ldquoeternardquo e definitiva Resulta daiacute a unidade entre o Cristo da Feacute e o Jesus da Histoacuteria o Jesus histoacuterico natildeo eacute senatildeo o Cristo da Feacute ainda que a feacute seja sempre algo mais do que a histoacuteria

Segue-se que do mesmo modo que existe um ofiacutecio de custoacutedia da Revelaccedilatildeo por parte da Igreja ofiacutecio por ela mesma atestado existe tambeacutem um ofiacutecio de custoacutedia da mesma Revelaccedilatildeo por parte da exegese que penetra o sentido literal da Escritura e defende a uniatildeo do Logos com a carne contra qualquer perigo de gnose Existe portanto por assim dizer algo como uma autonomia especiacutefica da Escritura como regra objetiva e sob muitos pontos de vista esclarecedora do Magisteacuterio eclesiaacutestico Esta era sem duacutevida uma exigecircncia legiacutetima de Lutero que ainda natildeo foi devidamente acolhida na Igreja catoacutelica por parte do Magisteacuterio cujos limites internos nem sempre foram claramente entendidos

Dever-se-ia partindo daqui salientar uma dupla criteriologia em se tratando da feacute De um lado haacute o que a Igreja antiga chamou de ldquoregra da feacuterdquo norma reguladora da palavra revelada contida na Escritura e sua exposiccedilatildeo Esta praeligscriptio da posse da Escritura como proacutepria segundo Tertuliano exclui a possibilidade de qualquer uso legiacutetimo da mesma Escritura contra a Igreja Por outro lado haacute tambeacutem o limite da littera Scripturaelig ou do sentido literal historicamente fixaacutevel que de acordo com o que ficou dito natildeo constitui nenhum criteacuterio absoluto ou autocircnomo mas sim somente um criteacuterio relativo no confronto da feacute com a ciecircncia O que na Escritura se pode descobrir quer mediante estudo cientiacutefico quer por simples leitura tem a funccedilatildeo de um criteacuterio real a que deve estar atento inclusive o Magisteacuterio em suas explicaccedilotildees Certamente [39] trata-se entatildeo de elementos sub-componentes da ciecircncia que natildeo podem servir para se julgar a feacute mas nela encontram uma instacircncia criacutetica e tecircm tambeacutem um importante papel a exercer o de zelar pela pureza do ἑφάπαξ de tutelar o conteuacutedo da Revelaccedilatildeo e de defender o dualismo histoacuterico carneespiacuterito (ldquodie Sarx der Geschichterdquo) contra os arbiacutetrios da gnose que tende sempre a impor-se

A reformatio na qual estaacute empenhada a Igreja nesta hora histoacuterica tem um papel relevante a desempenhar Eacute a missatildeo de abrir novas perspectivas para o diaacutelogo tentando assim chegar a uma ldquoreformardquo diferente da do passado que culminou com a divisatildeo no seio da Cristandade ocidental Tal missatildeo se exerceraacute em harmonia com o pleno ofiacutecio de testemunho da Igreja que tira seu direito e sua forccedila da presenccedila do Espiacuterito e de Cristo presente em todos os tempos Pois ele eacute sempre o Cristo de agora com a plenitude de seus direitos e de seus poderes Ele eacute quem daacute legitimidade e vigor ao testemunho singular e definitivo da Escritura que por sua vez encontra seu pleno sentido na singularidade da accedilatildeo histoacuterico-salviacutefica de Jesus Cristo Ele deu ao Pai seu Corpo crucificado e dando-se a si mesmo santificou para sempre os que o receberam (cf Hb 1014 727) Ele eacute o Cristo ontem hoje e sempre (Hb 138)

SEGUNDA PARTE

Explicaccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo segundo o Decreto do Conciacutelio de Trento

Parece que a completa elucidaccedilatildeo das razotildees que levaram agrave substituiccedilatildeo do

partim-partim pelo et e consequumlentemente agrave pesquisa dos dados do debate tridentino e de sua preacute-histoacuteria aparentemente favoraacutevel agrave suficiecircncia material da Escritura [40] simplifica indevidamente este problema fazendo-nos perder de vista os proacuteprios antecedentes do Decreto do Conciacutelio de Trento

1 A concepccedilatildeo pneumatoloacutegica da Tradiccedilatildeo no esquema fundamental do Cardeal Cervini

a) O conteuacutedo Um balanccedilo histoacuterico e detalhado do problema em seu conjunto exigiria uma

pesquisa exaustiva que natildeo reduzisse o seu acircmbito como o fez Geiselmann em seu livro25 Natildeo eacute nossa intenccedilatildeo proceder a um exame minucioso do assunto no presente trabalho Aqui soacute seratildeo tratados alguns pontos do debate tridentino com o fim de ampliarmos mais o horizonte de nossas reflexotildees

Fundamental para a compreensatildeo dos debates em pauta bem como do Decreto definitivo do Conciacutelio parece-me ser o Discurso do Cardeal Legado Cervini datado de 18 de fevereiro de 1546 [41] cujas linhas gerais se patenteiam tanto no Decreto como em outras decisotildees conciliares26

Tem o discurso de Cervini o meacuterito de mostrar as linhas diretrizes do Decreto de maneira mais clara do que aparecem estas na uacuteltima redaccedilatildeo do mesmo onde elas se diluem muito devido a uma seacuterie de variadas implicaccedilotildees Eacute ainda de grande auxiacutelio para o entendimento do referido discurso uma carta dos Cardeais Legados ao Cardeal Alexandre Farnese de 28 de fevereiro de 1546 Esta carta revela conteuacutedo idecircntico ndash eacute certamente inspirada pelo mesmo Cervini ndash e oferece ainda alguns outros

25 Eacute lamentaacutevel que Geiselmann em sua anaacutelise da contribuiccedilatildeo medieval sobre este assunto se tenha apoiado apenas em argumentos de segunda matildeo portanto de valor histoacuterico discutiacutevel Queira o leitor ver minhas observaccedilotildees a este respeito in Theol-prakt Quartalschrift 1963 p224-227 As novas (e temperamentais) invectivas de Geiselmann in TThQu 144 (1964) p 31-69 em nada modificaram a minha posiccedilatildeo de vez que natildeo trazem nenhuma contribuiccedilatildeo vaacutelida ao assunto Precioso ao contraacuterio eacute o trabalho de Y CONGAR La Tradition et les traditionshellip Essai historique Paris 1960 Importante eacute tambeacutem a obra de J BEUMER Die muumlndliche uumlberlieferung als Glaubensquelle Friburgo 1962 A respeito do Conciacutelio de Trento cf sobretudo aleacutem do estudo fundamental de JEDIN o artigo de E ORTIGUES Escriture et Traditions apostoliques au Concilie de Trente in RSR 36 (1949) p 271-299 K D SCHMIDT Studien zur Geschichate des Konzilis von Trient Tubinga 1925 p 152-209 26 O discurso nos foi transmitido em duas redaccedilotildees A primeira mais curta encontra-se nas Atas do Conciacutelio in CT V 11 A segunda faz parte do diaacuterio de Massarelli (Diarium III) in CT I p484 Quanto ao conteuacutedo os dois textos se completam Na anaacutelise que aqui ensaiamos as duas versotildees satildeo comparadas entre si de modo a fazerem um todo Sobre a posiccedilatildeo de Cervini no Conciacutelio cf H JEDIN Geschichte des Konzils von Trient II Friburgo 1957 p38-40 A descriccedilatildeo do desenrolar histoacuterico dos debates acha-se em JEDIN op cit p42-82 e supomo-la conhecida do leitor de vez que serve de base para a anaacutelise teoloacutegica do Decreto tridentino

esclarecimentos Cervini sustenta no citado discurso que existem trecircs princiacutepios e fundamentos de nossa feacute

1) Os livros sagrados escritos sob a inspiraccedilatildeo do Espiacuterito Santo 2) O Evangelho que Nosso Senhor natildeo escreveu mas ensinou oralmente e

implantou nos coraccedilotildees Parte do Evangelho foi escrita mais tarde pelos Evangelistas enquanto muita coisa foi simplesmente confiada aos coraccedilotildees dos fieacuteis

3) Porque o Filho de Deus natildeo ia permanecer sempre entre noacutes enviou ele o Espiacuterito Santo que haveria de revelar os misteacuterios no iacutentimo dos fieacuteis e de ensinar agrave Igreja toda a verdade ateacute ao fim dos tempos27

[43] Numa segunda redaccedilatildeo mais detalhada do discurso estas mesmas ideacuteias satildeo

desenvolvidas mais amplamente Aiacute lemos que a Revelaccedilatildeo se apresentou de modo diferente em diversos tempos

1) Nos Patriarcas cuja feacute eacute atestada na Escritura a que chamamos de Antigo Testamento

2) Em Jesus Cristo que implantou o seu Evangelho natildeo por escrito mas oralmente natildeo in charta mas in corde Das coisas que emanaram de Cristo (quaelig a Cristo emanarunt) algumas foram escritas outras permaneceram nos coraccedilotildees dos homens (quaeligdam in cordibus hominum relicta fuerunt) Todo o Evangelho de Cristo que consta desta dupla modalidade forma (tendo como primeiro princiacutepio o Antigo Testamento) o secundum prindipium fidei nostraelig

3) Daiacute surge o terceiro princiacutepio (tertium autem) porque o Filho de Deus natildeo iria permanecer sempre entre noacutes enviou ele ao mundo o Espiacuterito Santo que haveria de explicar os misteacuterios de Deus e tudo o que fosse ainda obscuro para os homens28 De modo semelhante a citada carta ao Cardeal Farnese fala de dois passos (due

passi) Um eacute que a Revelaccedilatildeo de Nosso Senhor natildeo foi totalmente escrita mas permaneceu em parte contida nos coraccedilotildees dos homens e na Tradiccedilatildeo da Igreja O outro [43] passo consiste em confirmar ldquoquello che egrave suggerito lo Spirito Santo in la Chiesa maxime medianti i concilij doppo lAscensione in cielo del Signorerdquo29

Notamos logo que contrariamente ao que esperaacutevamos natildeo dois mas trecircs satildeo os princiacutepios apontados a Escritura o Evangelho e a Revelaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

27 CT V 11 helliptria esse principia et fundamenta nostrae fidei primum libros sacros secundum esse evangelium quod Christus Dominus Noster non scripsit sed ore docuit et in cordibus illud plantavit cujus evangelii nonnulla evangelistaelig scripto mandarunt multa quoque relicta sunt in cordibus hominum Tertium quia non semper filius Dei corporaliter nobiscum mansurus erat misit Spiritum Sanctum qui in cordibus fidelium secreta Dei revelaret et ecclesiam quotidie et usque consummationem saeligculi doceret omnem veritatem et si quid in mentibus hominum dubii occurrisset declararet 28 CT I 484 Digna de nota eacute ainda a foacutermula contida na paacutegina 48514-16 nihil tamen inter scripturas sacras et apostolicas traditianes differt illaelig enim scriptaelig hae per insinuationem habentur utraeque tamen a Spiritu Sancto eodem modo emanataelig Confira-se com CT V 11 19 ab eodem Spiritu et illos (scilicet libros) et istas (scilicet traditiones) descendisse 29 CT X 373

Eacute portanto necessaacuterio observar que sob o termo ldquoEscriturardquo se entende o Antigo Testamento e que aleacutem deste (que eacute Escritura em sentido proacuteprio) aparece como segundo princiacutepio o Evangelho apresentaccedilatildeo do Cristo-evento O Evangelho por sua vez abrange o que estaacute escrito e o que natildeo estaacute escrito mas sim apenas insculpido no coraccedilatildeo dos crentes Deste modo o segundo princiacutepio representa uma vantagem pneumaacutetica sobre o que estaacute escrito o Evangelho eacute nesta concepccedilatildeo algo diferente da letra (Escritura) e soacute em parte vem escrito (Isto natildeo deve ser entendido no sentido de divisatildeo das verdades da feacute fenocircmeno denunciado ldquocom horrorrdquo por Geiselmann Ao contraacuterio Entenda-se apenas no sentido de diferente grau de dignidade no modo de exprimir-se) Em rigor o Evangelho como tal soacute pode ser escrito em parte se considerarmos a sua essecircncia

Finalmente ndash o que eacute muito de se admirar ndash segue-se como terceiro princiacutepio a accedilatildeo visiacutevel do Espiacuterito Santo em todo o tempo da Igreja

Admitimos portanto que o que noacutes geralmente chamamos de Tradiccedilatildeo natildeo aparece aqui como um soacute princiacutepio Biparte-se antes em dois princiacutepios intimamente ligados o ldquoEvangelhordquo princiacutepio apenas em parte identificaacutevel com a Escritura e a accedilatildeo do Espiacuterito Santo no tempo da Igreja Ademais podemos observar que a Escritura do Novo Testamento natildeo aparece como um princiacutepio ao lado da Revelaccedilatildeo apostoacutelica Muito menos como [44] eacute o nosso caso se apresenta a Escritura neotestamentaacuteria juntamente com a veterotestamentaacuteria como uma grandeza uacutenica uma ldquoEscriturardquo soacute agrave qual se poderia contrapor a ldquoTradiccedilatildeordquo como uma segunda grandeza O Novo Testamento em seu conjunto aparece como um segundo e mais amplo princiacutepio ou seja o Evangelho que como tal se opotildee de um lado ao Antigo Testamento e de outro agrave projeccedilatildeo histoacuterica do tempo da Igreja Sua unidade interna eacute evidentemente mais forte e importante do que a sua divisatildeo em escrito e natildeo-escrito Assim o Evangelho como um soacute princiacutepio pode ser contraposto ao Antigo Testamento a despeito desta dupla formalidade A impossibilidade de se representar o Novo Testamento como Escritura impossibilidade esta demonstrada por Satildeo Paulo e pelos primeiros seacuteculos cristatildeos eacute aqui claramente revelada

Ainda uma observaccedilatildeo relativa ao texto a que vimos nos referindo Em nenhum dos dois pontos por noacutes citados no estudo da Tradiccedilatildeo isto eacute nem no elemento contido no primeiro nem no apresentado no terceiro princiacutepio figura a Tradiccedilatildeo como verbal Em ambos os casos ao contraacuterio trata-se mais da Tradiccedilatildeo real com prevalecircncia da realidade sobre as palavras que a atestam Este fato que estaacute claro no terceiro princiacutepio o pneumatoloacutegico vale tambeacutem em relaccedilatildeo agrave implantaccedilatildeo do Evangelho nos coraccedilotildees contida no segundo princiacutepio Tal implantaccedilatildeo vai muito aleacutem do que se encontra expresso na letra da Escritura

Que papel tenham estas ideacuteias exercido nas discussotildees do Conciacutelio pode-se concluir tambeacutem das auctoritates citadas por Cervini entre as quais figuram Jo 16 12 (hellipSpiritus Sanctus suggerethellip) e Fl 3 15 (Quicumque perfecti sumus haeligc sentiamus et si quid aliter sentitis haeligc quoque Deus vobis revelabit) Ambos estes textos satildeo de teor acentuadamente [45] pneumatoloacutegico-presencial30 Que tais ideacuteias natildeo eram

30 CT V 14 e 15 Um exame profundo das auctoritates quer da Escritura quer entre os Santos Padres que neste particular satildeo favoraacuteveis agrave Tradiccedilatildeo seria em si conclusivo para a elaboraccedilatildeo do conceito

estranhas aos Padres conciliares deduz-se ainda de uma seacuterie de outras referecircncias Assim ouvimos o Bispo de Aqui dizer que aleacutem da Sagrada Escritura existe muita coisa na Igreja de Deus que vindo dos Apoacutestolos e passando de geraccedilatildeo a geraccedilatildeo chegou ateacute noacutes assim como muitas outras quaelig etsi scripta Apostoli nobis non reliquerunt per Spiritus Sancti revelationem nobis (tradita) sunt (Tradita estaacute aqui por revelata) 31 Partindo daiacute se poderia descrever a Tradiccedilatildeo justamente como o componente pneumatoloacutegico do Cristo-evento b) A influecircncia do esquema de Cervini em diversas decisotildees conciliares

Eacute verdade que esta concepccedilatildeo tripartida aparece muito atenuada no Decreto

oficial sobre a Tradiccedilatildeo Que poreacutem em suas linhas fundamentais natildeo tenha ela sido de modo nenhum [46] abandonada mostram-no duas outras passagens nas quais o Conciacutelio faz uso por assim dizer in actu das ideacuteias aqui expressas32 Assim na Introduccedilatildeo ao Decreto sobre a Eucaristia (Denz 873) se lecirc Sacrosancta Synodus sanamhellipdoctrinam tradens quam semper catholica Ecclesia ab ipso Jesu Christo Domino Nostro et eius apostolis erudita atque a Spiritu Sancto illi omnem veritatem in dies suggerente (Jo 1416) edocta retinuithellip

Aqui a accedilatildeo proacutepria do Conciacutelio eacute descrita como tradere e a este tradere eacute atribuiacutedo um duplo fundamento De um lado o ensino de Jesus e dos Apoacutestolos (Note-se que este ponto corresponde ao Evangelho segundo a concepccedilatildeo de Cervini E de certo modo tambeacutem pela citaccedilatildeo de Jesus e dos Apoacutestolos se reconhece a dupla modalidade do Evangelho como escrito e como inserido nos coraccedilotildees) De outro lado o ensino dado pelo Espiacuterito Santo que conduz agrave verdade in dies isto eacute no de correr do tempo futuro

O outro texto que pode ser aduzido aqui como prova do que afirmamos encontra-se no Preacircmbulo do Decreto sobre o Purgatoacuterio (Denz 983) Aiacute se lecirc hellipCatholica Ecclesia Spiritu Sancto edocta ex Sacris Litteris et antiqua Patrum traditione in sacris Conciliis et novissime in hac Synodo docuerit A descriccedilatildeo da accedilatildeo proacutepria do

aqui exposto H HOLSTEIN procurou fazer o cotejo destas auctoritates e fecirc-lo de modo admiraacutevel em seu artigo La Tradition dapregraves le Concile de Trente (RSR 47 1959 p367-390 e em particular para o caso em questatildeo a p375) Ele encontra nos textos estudados duas linhas de tendecircncias A linha de Santo Irineu para a qual o testemunho dos Apoacutestolos eacute o de sua personalidade de sua vida e de seu ofiacutecio Aleacutem desta o grupo composto de Tertuliano Cipriano Basiacutelio e Agostinho forma uma corrente que se poderia denominar ldquocerimonialrdquo Oriacutegenes se enquadra em ambos os grupos Existe entre os autores estudados uma seacuterie de textos que se referem agraves observationes consuetudines institutiones e que levam a entender-se a Tradiccedilatildeo neste mesmo sentido Aiacute se vecircem tambeacutem textos que sublinham o aspecto natildeo-escrito do Evangelho enquanto insculpido no coraccedilatildeo dos fieacuteis e aleacutem disso textos que apontam a Igreja como o ldquolugarrdquo da verdade cristatilde 31 CT I 483 (18 de fevereiro de 1546) Em 26 de fevereiro (CT V 18) encontramos Cervini a tratar de novo deste assunto Cf tambeacutem um pronunciamento do Bispo de Fano (CT V 10) nestes termos Cum jam receperimus Scripturas Sacras necessario recipiendaelig sunt traditiones quaelig ab eodem Spiritu Sancto quo scripturaelig dictataelig sunthellip 32 Disto me adverti pela primeira vez atraveacutes de um estudo realizado sob a minha orientaccedilatildeo por CHR LIMBACR a quem sou devedor de muitas informaccedilotildees bibliograacuteficas

Conciacutelio como tradere encontra-se ainda nas declaraccedilotildees sobre o Sacramento da Extrema-Unccedilatildeo (Denz 910)

Finalmente a triacuteplice divisatildeo deixa-se insinuar nas entrelinhas do Decreto sobre a Tradiccedilatildeo embora obscurecida e diluiacuteda por uma seacuterie de acreacutescimos e citaccedilotildees a ele adicionados por outros motivos O Decreto da Tradiccedilatildeo com efeito [47]

1) Fala do Evangelho prometido pelos Profetas na Escritura e refere-se a esta em sentido estrito quer antes quer depois do Antigo Testamento

2) Fala da promulgaccedilatildeo por Cristo do Evangelho que foi transmitido pelos Apoacutestolos sob dupla forma oral e escrita Desta maneira o que natildeo ocorre no exemplo de Cervini aparece aqui antes de tudo o componente pneumatoloacutegico unido com o componente apostoacutelico a ponto de se distinguirem duas modalidades de Tradiccedilatildeo apostoacutelica a que remonta a Cristo e a que remonta ao envio do Espiacuterito Santo Pode-se assim estabelecer que em oposiccedilatildeo ao esquema de Cervini haacute um certo processo de historicizaccedilatildeo que salienta a relaccedilatildeo com o comeccedilo histoacuterico e igualmente parece deslocar o acento da tradiccedilatildeo real para a verbal

3) No epiacutelogo desta parte do Decreto da Tradiccedilatildeo que vimos analisando de novo eacute considerada a ideacuteia da Sagrada Escritura O conceito de Tradiccedilatildeo eacute entatildeo formulado em definitivo e descrito como vel oretenus a Christo vel a Spiritu Sancto dictatas et continua successione in Ecclesia catholica conservatas A referecircncia aos Apoacutestolos eacute omitida Pode-se na verdade considerar tudo isto como uma volta ao que foi dito antes Evidentemente a tradiccedilatildeo ditada pelos Apoacutestolos eacute citada de novo (A expressatildeo continua successione insinua-o) Contudo permanece sempre ainda certa indeterminaccedilatildeo ficando aberta a possibilidade de se encontrar aqui o vestiacutegio do terceiro componente de Cervini o princiacutepio pneumaacutetico propriamente dito Eacute tambeacutem claro que esta ideacuteia eacute discreta sendo adotada uma posiccedilatildeo mais acentuadamente histoacuterica Se agora lanccedilarmos os olhos sobre o que vimos considerando ateacute aqui surgiratildeo

inevitavelmente perguntas qual eacute realmente o sentido proacuteprio da concepccedilatildeo pneumatoloacutegica Como poderia ser perfeitamente entendida a ideacuteia a noacutes estranha de uma revelatio prolongada no tempo em face da unicidade e do caraacuteter [48] histoacuterico da Revelaccedilatildeo que evidentemente era conhecido tanto de Cervini quanto dos Santos Padres e teoacutelogos medievais33

Antes de examinarmos isto devemos esclarecer rapidamente os principais motivos que inspiraram o Decreto tridentino sobre a Escritura e a Tradiccedilatildeo deixando nele um tanto encoberta a concepccedilatildeo pessoal de Cervini Que opiniotildees de teoacutelogos teratildeo intervindo aqui chegando a ser em parte impressas no texto definitivo que resultou do cotejo de muitos pronunciamentos diversos Uma exposiccedilatildeo detalhada deste ponto exorbitaria do acircmbito de nossa anaacutelise Contentemo-nos com umas poucas observaccedilotildees sumaacuterias 33 Sobre este assunto tentei fazer um breve comentaacuterio no meu trabalho ldquoOffenbarung-Schrift-Uberlieferungrdquo in TThZ 67 (1958) p13-27 Cf J BEUMER ldquoDer theoretische Beitrag der Frnhscholastik zum Problem des Dogmenfortschrittsrdquo in ZkTh 72 (1952) p205-226 J de CHELLINCK Pour lrsquohistoire du mot ldquorevelarerdquo in RSR 6 (1916) p149-157

2 Relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a vida da Igreja

em diversas passagens do debate tridentino

Uma primeira seacuterie de motivos entre os quais se compreendem diversos pronunciamentos agraves vezes muito contrastantes em seu aparato exterior patenteia-se na ideacuteia de tradiccedilotildees expressa no Decreto de duas maneiras a) - per manus traditaelig ad nos usque pervenerunt b) - continua successione in Ecclesia catholico conservatas

O que se ocultaraacute sob estas duas foacutermulas que o historiador de hoje tem dificuldades em aceitar justamente por causa do historicismo nelas impliacutecito Podemos dizer que um decisivo papel exerceu aqui o pensamento que sempre aparecia nos debates a saber que as tradiccedilotildees satildeo variaacuteveis que muitas delas foram abolidas pelos Apoacutestolos e que por outro lado se [49] introduziram tradiccedilotildees eclesiaacutesticas que natildeo mais seriam abolidas34 Esta ideacuteia de Tradiccedilatildeo de certo modo se torna clara no tratado escrito sobre o mesmo assunto por Seripando para uso dos Padres Conciliares Seripando fala das Tradiccedilotildees escritas inseridas na Escritura como as claacuteusulas de Tiago o costume de as mulheres se cobrirem com um veacuteu a legislaccedilatildeo sobre o matrimocircnio contida em 1Cor 7 etc E o autor adverte que estas praacuteticas foram abolidas Isto porque embora associadas agrave palavra de Deus na Escritura dela ldquomuito diferemrdquo pois a palavra divina [50] de modo nenhum poderia ser abolida A estas tradiccedilotildees

34 Cabe aqui aduzir uma nova intervenccedilatildeo de Cervini datada de 26 de fevereiro de 1546 (CT I 33 e V 18) onde ele diz que nem todas as tradiccedilotildees procedentes dos Apoacutestolos devem ser conservadas mas somente as que ab Ecclesia receptaelig ad nos usque pervenerunt (V 18) Esta afirmaccedilatildeo anterior agrave formulaccedilatildeo dogmaacutetica feita pelo Concilio deve igualmente ser tida na conta de um autecircntico comentaacuterio do Decreto Aiacute se acentua como condiccedilatildeo essencial das tradiccedilotildees a receptio ecclesiaelig Vem ainda referida uma intervenccedilatildeo do Bispo de Bertinoro em data de 23 de marccedilo (I p 523) na qual ele sublinha que as tradiccedilotildees escritas por vezes foram mudadas Jaacute entre as natildeo-escritas umas foram mudadas e outras natildeo como por exemplo o rito de adicionar aacutegua ao vinho a Crisma a confissatildeo auricular O Bispo de Bertinoro acrescenta que por outro lado alguns pontos existem que permaneceram inteiramente inalterados tais como a crenccedila no descensus ad inferos na virgindade perpeacutetua de Maria a substituiccedilatildeo da observacircncia do saacutebado pela do domingo Temos depois um pronunciamento do Bispo de Bitonto datado de 27 de marccedilo (I 39) Este bispo era de parecer que algumas coisas foram transmitidas pelos Apoacutestolos com a finalidade de serem perpetuamente conservadas (como pertencentes ao depoacutesito da feacute) outras caiacuteram em desuso (como as claacuteusulas de Tiago) e outras enfim foram apenas aconselhadas Assim mesmo na Escritura algumas coisas haacute que foram escritas mas natildeo recebidas em uso por serem mateacuteria de mero conselho Por exemplo ldquose algueacutem te pedir a tuacutenica daacute-lhe tambeacutem o paacutelio se algueacutem te esbofetear numa face oferece-lhe tambeacutem a outrardquo Sem duacutevida excelente ilustraccedilatildeo do sermatildeo da montanha Finalmente consideraccedilotildees idecircnticas podemos encontrar na obra citada de LEJAY Eis outra amostra tirada do discurso de 23 de fevereiro (CT V 13) Nam illaelig (scil traditiones) quaelig ad fidem pertinent eadem sunt recipiendaelig auctoritate qua recipitur evangelium alia autem non ita eum earum plurimaelig immutataelig fuerint ut de bigamis de esu sanguinis et similia De modo semelhante aliaacutes fala tambeacutem Bonuccio (I 525 a 23 de marccedilo de 1546 ecclesia traditiones apostolorum quandoque mutavit verbum autem Dei nunquam mutavit neque mutare potest

Seripando opotildee as natildeo referidas na Biacuteblia e que ora satildeo apostoacutelicas ou oriundas de Conciacutelios universais e aceitas por toda a Igreja ora satildeo particulares e muito variaacuteveis35

Este texto nos leva a uma surpreendente conclusatildeo para Seripando e muitos outros Padres tridentinos36existem tradiccedilotildees na Escritura ldquoTradiccedilatildeordquo natildeo significa o natildeo-escrito Existe quer dentro da Escritura quer fora dela Isto nos conduz a outra pergunta em que consiste para os referidos Padres a essecircncia da tradiccedilatildeo se o que a constitui natildeo eacute o fato de natildeo ser escrita37 Em outros termos como pode a tradiccedilatildeo ser definida positivamente se ela natildeo pode ser suficientemente determinada pela ideacuteia negativa de algo natildeo-escrito

Haacute uma seacuterie de respostas para esta pergunta O proacuteprio Seripando daacute a seguinte definiccedilatildeo Traditiones hoc est Apostolorum seu sanctorum Patrum sanctae et salutares constitutiones38 Mais clara ainda eacute a afirmaccedilatildeo de Cervini citada por Massarelli A objeccedilatildeo do Bispo de Chioggia que aduzia a opiniatildeo de Agostinho de que tudo o que eacute necessaacuterio para a salvaccedilatildeo estava escrito na Biacuteblia respondia Cervini da seguinte maneira Verba illa (isto eacute de Santo Agostinho) formaliter intelligi debent scilicet ad fidem accipiendam ut salvi fiamus Quo vero ad mores et christianam vitam instituendam certo non omnia scripta sunt

[51] E de novo recorre agraves provas tiradas de Jo 1526 e 1426 E indica o princiacutepio pneumatoloacutegico39 O que eacute mais importante eacute que a Tradiccedilatildeo se refere agrave institutio vitaelig agrave presenccedila atuante da Palavra revelada na existecircncia cristatilde Tradiccedilatildeo eacute noutros termos a eficaacutecia da palavra de Deus Sem ela a palavra ficaria esteacuteril 35 Seripando De traditionibus (fevereiro ou marccedilo de 1546) CT XII p517-521 e principalmente a p 521 As expressotildees desta uacuteltima paacutegina chocam-se com a ideacuteia de Cervini sobre a receptio ecclesiaelig 36 Cf o texto citado na nota 11 37 No texto definitivo do Decreto esta ideacuteia natildeo aparece mais Aqui poreacutem com esta primeira designaccedilatildeo expliacutecita da Tradiccedilatildeo vem expressamente acentuado o contraste entre in libris scriptis et sine scripto traditionibus Na segunda redaccedilatildeo o sentido expliacutecito da palavra Tradiccedilatildeo natildeo eacute tatildeo exclusivo Contudo apresenta igual matiz ao se confrontarem as expressotildees omnes libroshellipnec non traditiones ipsas Portanto a ideacuteia positiva da Tradiccedilatildeo que serve de base a esta anaacutelise natildeo deixou de influenciar na redaccedilatildeo do Decreto 38 CT XII 517 39 CT I 494 (26 de fevereiro de 1546) A citada palavra de Santo Agostinho teve o seu papel a desempenhar na discussatildeo em curso Seripando por exemplo a ela se referiu (De traditionibus CT XII 521 47-53) Pensandum denique ne in traditionibus externis vera religio et salutis spes statuatur de quibus Augustinus Omnia quaelig pertinent ad veram religionem quaeligrendam et tenendam divina Scriptura non acuit Conceda-se que nem tudo foi escrito (veja-se Jo 2125) Todavia electa sunt autem quaelig scriberentur quaelig saluti credentium sufficere videbantur Mais do que nos debates do tridentino encontramos aqui um verdadeiro postulado dos Reformadores ldquonatildeo adotar costumes exteriores mas buscar os meios definitivos de salvaccedilatildeo na palavra da Escriturardquo A ldquosuficiecircnciardquo da Escritura de que aqui se fala eacute na verdade algo diverso da suficiecircncia material da mesma Escritura defendida por Geiselmann em sentido muito mais radical Infelizmente ainda natildeo se quis levar na devida consideraccedilatildeo o texto de Santo Agostinho (CT I 494 sugere De doctrina christiana II 9 e De pecc mero et rem II 59) Muito apropriadas nesta ordem de ideacuteias satildeo as observaccedilotildees de H SCHAUF ldquoSchrift und Traditionrdquo in Antonianum 39 (1964) p200-209 feitas no chamado Encontro de Duumlsseldorf Nos textos citados por Schauf com base em Agostinho eacute afirmada a suficiecircncia da Escritura para a salvaccedilatildeo Eacute contudo contestada a sua suficiecircncia para a Igreja em geral De fato esta alternativa parece muito mais vaacutelida e fundamental agrave luz dos postulados dos Reformadores do que a alternativa entre a suficiecircncia ou insuficiecircncia material da Escritura

Na mesma linha de ideacuteias seguem-se duas outras seacuteries de pronunciamentos Vimos na introduccedilatildeo agrave parte anterior que a discussatildeo dogmaacutetica da ideacuteia de

Tradiccedilatildeo foi em parte prejudicada pela questatildeo do meacutetodo a seguir no Conciacutelio dever-se-ia abordar primeiro a reformatio a reforma praacutetica da Igreja como queria o ldquoKaiserrdquo Ou primeiro discutir a questatildeo dogmaacutetica como preferia o Papa40

[52] Este problema do meacutetodo embora resolvido no debate que entatildeo surgiu natildeo afetou diretamente a questatildeo da Tradiccedilatildeo como tal Mas como de fato estas duas questotildees ficaram ligadas entre si daiacute resultou que muitos oradores transformaram a questatildeo do meacutetodo (se se deveria falar dos abusos ou da Tradiccedilatildeo) em parte de sua argumentaccedilatildeo em torno do assunto em pauta41 O problema abusus e o problema Traditio ficaram de tal maneira associados na ocasiatildeo que pareciam formar no fundo um soacute assunto Por isso os oradores ora falavam em sentido positivo ora se pronunciavam em sentido negativo Isto correspondia tambeacutem ao propoacutesito reformista do Conciacutelio as traditiones representavam os abusus aos quais a Igreja se opunha Os Padres estavam cocircnscios de que condenar as traditiones era condenar Os usus ecclesiaelig o modo como a Igreja vivia a sua vida naquela eacutepoca

A outra seacuterie de pronunciamentos que se inclinavam ao mesmo sentido encontramo-la nas proposiccedilotildees que a auctoritas da Igreja apresenta como definitivas indicando uma iacutentima relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a institutio christiana 42

[53] Podemos agora retomar ao nosso ponto de partida e dar resposta agrave pergunta que propriamente significa a foacutermula ad nos usque pervenerunt Objetivamente natildeo se trata aqui de um historicismo que a foacutermula parece expressar Ao contraacuterio Trata-se da fidelidade perseverante da Igreja agrave institutio vitaelig christianaelig da legiacutetima forma de vida cristatilde em concreto no tempo presente da Igreja da institutio christiana que coloca a Escritura em primeiro lugar e que como tal isto eacute como vida decorrente da Escritura eacute fundamentalmente apostoacutelica embora tambeacutem sujeita a mudanccedilas como tudo o que eacute vivo

3 A Tradiccedilatildeo e o dogma eclesiaacutestico

40 Sobre o debate em torno da questatildeo do meacutetodo cf mais uma vez JEDIN op cit p9-82 e outras 41 Assim jaacute no discurso de Cervini antes analisado (CT I 484) no qual ele recorda o dilema do Conciacutelio se nos voltarmos contra as tradiccedilotildees ficaratildeo admirados os Padres Conciliares quasi reformationem fugiamus si ipsam reformationem sumimus iterum objicient traditiones relinquendas non esse Idecircntica era a situaccedilatildeo em que se encontrava o Bispo de Astorga nas duas intervenccedilotildees que fez no dia 23 de fevereiro de 1546 (CT V 13 e 19) segundo Seripando (I 484) helliptraditiones prius pertractandas consulit tantam enim conformitatem abusus qui ex sacris libris descendunt cum iis qui a traditionibus orti sunt habent ut sacris libris et traditionibus absolutis duo illa abusuum genera simul pertractari valeant Segundo Bonuccio (I 484) antes de tudo dever-se-ia tratar das Sagradas Escrituras dos cacircnones apostoacutelicos dos Conciacutelios gerais e das decretais pontifiacutecias Hisque ilusceptis ad abusus ex eisdem dependentes devenire 42 Assim principalmente de acordo com Afonso de Castro (CT I 484) Quoniam ultra traditiones apostolicas ecclesiae auctoritatem habemus quaelig ecclesiaelig auctoritas tonta apud nos est ut aliqui eam maioris roboris quam sacros libros esse sentiant Cf igualmente CT I 491 45 Na mesma linha pode-se ver uma seacuterie de pronunciamentos na citada obra de LEJAY Cf CT XII 524 (Tratado De traditionibus ecclesiaelig fevereiro ou marccedilo de 1546)

Uma segunda seacuterie de motivos eacute expressa no Decreto pela foacutermula traditiones tum ad fidem tum ad mores pertinentes Se como vimos a ideacuteia de Tradiccedilatildeo aparece muito limitada naquilo que os Padres conciliares chamam consuetudines observationes institutiones por outro lado o Procurador do Cardeal de Augsburgo Claudio Lejay SJ se fez o porta-voz de uma expressatildeo que em oposiccedilatildeo agraves traditiones caeligremoniales estabeleceu justamente o sentido da tradiccedilatildeo contida na feacute Seu tratado sobre a Tradiccedilatildeo composto para uso dos Padres conciliares inclui tambeacutem a foacutermula que foi adotada pelo Conciacutelio Aiacute se diz Denique multas veritates tum ad fidem tum ad mores pertinentes Ecclesia novit quas Scriptura aperte et expresse non continet Ele cita como exemplos as palavras persona essentia trinitas no Tratado da Santiacutessima Trindade consubstantialitas na Cristologia do Logos duas naturezas uma soacute Pessoa referentes ao dogma definido pelo Conciacutelio de Calcedocircnia E ainda Cristo Filho uacutenico de Maria duas vontades na uacutenica Pessoa de Cristo uma alma racional aleacutem do espiacuterito divino em Cristo Ana matildee de Maria o costume de fazer sinais da cruz a santificaccedilatildeo do domingo a maneira de rezar com face voltada [54] para o Oriente tudo isto ideacuteias e fatos da tradiccedilatildeo conciliar e da piedade cristatilde43

Cervini que aprovou o discurso de Lejay de 23 de fevereiro de 154644 pocircde dificilmente conciliar esta posiccedilatildeo com a sua expressa na jaacute citada carta ao Cardeal Farnese onde como vimos ele diz que o Espiacuterito Santo falou na Igreja e depois da Ascensatildeo do Senhor fala ainda maxime medianti i concilii45 Ele aiacute viu publicamente sublinhado o fato de que aquele ldquomaisrdquo que a Igreja viva representa em relaccedilatildeo agrave palavra meramente escrita natildeo se referia e natildeo se refere apenas agrave vita instituenda ou como ele prefere agrave caeligremonialia Refere-se tambeacutem agrave essentialia fidei que antes de tudo plenamente se expressam na Tradiccedilatildeo Tambeacutem aqui como se vecirc o interesse dominante natildeo estaacute na apresentaccedilatildeo historicista do assunto a partir do iniacutecio da Igreja mas na ideacuteia de que a influecircncia da Tradiccedilatildeo sobretudo atraveacutes da praxe conciliar eacute de fundamental importacircncia para a feacute para a doutrina crida e natildeo apenas para a piedade viva ou a caeligremonialia

4 O sentido do Decreto tridentino

Se recapitularmos o que ateacute agora dissemos veremos que no conjunto facilmente se podem reconhecer trecircs diferentes concepccedilotildees teoloacutegicas unidas entre si no texto definitivo do Decreto sobre a Tradiccedilatildeo Unidas mas natildeo equiparadas umas agraves outras Pelo contraacuterio apesar de sua grande diferenccedila foram elas apenas [55] mais ou menos justapostas e de novo por forccedila de uma tendecircncia comum relacionadas entre si

1 A concepccedilatildeo de Cervini que designamos como pneumatoloacutegica Com sua doutrina sobre os trecircs principia fidei insiste ele no caraacuteter dinacircmico do Cristo-evento

43 CT XII 523 LEJAY baseia-se evidentemente em listas de tradiccedilotildees confeccionadas naquele tempo (Cf ECK DRIEDO CANO BOTO NOGAROLA) Cf a este respeito Y CONGAR ldquoTraditions apostoliques non eacutecrites et suffisance de lEscrituresrdquo in Istina 6 (1959) p219-306 e principalmente a paacutegina 289 44 CT V 14 45 CT X 373

presente na Igreja Entende assim a Tradiccedilatildeo primariamente como a realidade espiritual da institutio vitaelig christianaelig

2 A concepccedilatildeo que podemos chamar de cerimonial Esta entende a Tradiccedilatildeo essencialmente como a seacuterie de consuetudines existentes ao lado da feacute como os usus ecclesiaelig que os Reformadores falsamente pretendem abolir como abusus Esta concepccedilatildeo chega a condenar a dignidade e Antiguumlidade apostoacutelica das tradiccedilotildees Sua ideacuteia eacute limitada pelo ad nos usque pervenerunt que inclui possibilidade de variar da parte das tradiccedilotildees donde a necessidade de reduccedilotildees Com os termos pervenire e conservare a recepccedilatildeo por parte da Igreja eacute considerada criteacuterio adicional ao lado da Antiguumlidade

3 A concepccedilatildeo que talvez possamos denominar dogmaacutetica Em oposiccedilatildeo agrave fixidez da ideacuteia de Tradiccedilatildeo reduzida agrave consuetudo salienta esta terceira hipoacutetese a extensatildeo do fenocircmeno Tradiccedilatildeo tambeacutem ao acircmbito da fides

Estas trecircs concepccedilotildees deram forma ao texto do Decreto de tal modo que as suas

linhas mestras derivam de Cervini e todo o texto deve ser entendido agrave luz de suas ideacuteias Contudo em duas passagens isto eacute no pervenerunt e no conservatas haacute influecircncia da segunda concepccedilatildeo enquanto no tum ad fidem tum ad mores haacute influecircncia da terceira

Em face destas trecircs concepccedilotildees das quais na realidade existem diversas variantes que tomadas em conjunto satildeo a expressatildeo das ideacuteias dominantes adotadas aparecem as teses de Bonuccio e de Nacchianti tatildeo postas em evidecircncia por Geiselmann como sentenccedilas contraacuterias De fato o parecer de Bonuccio claramente [56] se opotildee agrave segunda concepccedilatildeo (contra a supervalorizaccedilatildeo das consuetudines natildeo per pietatis affectus) ao passo que Nacchianti se levanta antes contra a terceira posiccedilatildeo e salienta a suficiecircncia da feacute recebida por meio da Escritura46

Seria de notar-se ainda que as concepccedilotildees segunda e terceira tecircm algo em comum Ambas opotildeem agrave visatildeo pneumatoloacutegica de Cervini da salvaccedilatildeo sempre presente uma visatildeo mais historicista relacionada com o prolongamento da salvaccedilatildeo operada uma soacute vez ou seja o ἑφάπαξ Na realidade deve-se dizer que embora de um lado tanto a visatildeo presencial de Cervini como tambeacutem a visatildeo historicista do outro grupo se consideradas isoladamente cada qual de per si sejam perigosas se natildeo insustentaacuteveis 46 Aliaacutes de acordo com uma informaccedilatildeo de Cervini parece que o Bispo de Chioggia finalmente renunciou agrave sua tese da suficiecircncia da Escritura na qual se inclinava a recusar as tradiccedilotildees Na carta de Cervini ao Cardeal Farnese de 27 de fevereiro de 1546 lemos hellip Chioggia che (quasi quasi) voleva dire queste traditioni essere superflue perorando che tutto quello che era necessario alla salute era scritto et allegando etiam S Agostino sopra lultimo capitulo di S Giovanni a questo proposito Pure per non poter negare che molte cose appartenenti almeno alli sacramenti non ci fussero venute ex tra ditione et per consequente che non tutte le cose necessarie alia nostra salute erano scritte poiche ebbe fatte molte distintioni concluse che ancor lui accettava queste ldquoche in la chiesa fusse qualque traditione apostolica non scrittardquo (et con queste parole diceva che se ne facesse il decreto) credo che molti sono restati scandalizati di lui (CT X Nr 315 paacutegs 399 411) Cf tambeacutem CT I 494 nota 9 e 495 nota 2 CT V 18 nota 5 e 19 e nota 1 O mesmo protesto que aparece contra Nacchianti manifesta-se tambeacutem na observaccedilatildeo de Massarelli Este chega a chamar aquele de novarum rerum cupidus (1 494 18) e esclarece que reprehensus est a multis (1 494 22) Diante disto eacute de todo destituiacuteda de creacutedito a importacircncia que Geiselmann lhe atribui mesmo se abstrairmos de outras razotildees jaacute conhecidas sobre as quais natildeo precisamos insistir

de outro lado pelo menos tornam possiacutevel uma exata visatildeo do conjunto devido agrave sua muacutetua confluecircncia e limitaccedilatildeo No texto atual estatildeo presentes embora pouco nitidamente ambos os pontos de vista o elemento presencial e o ἑφάπαξ Conveacutem que entendamos assim o texto de modo a considerarmos [57] ambos estes aspectos como essenciais Consequumlentemente reconheceremos que ambos pertencem constitutivamente agrave realidade da vida cristatilde e portanto tambeacutem agravequela parcela do Cristianismo a que damos o nome de Tradiccedilatildeo Estes dois elementos satildeo a presenccedila do Espiacuterito Santo e o seu nexo com o fato singular da salvaccedilatildeo ocorrido uma soacute vez por todas na histoacuteria dos homens

Assim se acharaacute finalmente a resposta agrave pergunta de corno noacutes devemos entender o parecer do Conciacutelio de Trento A primeira e mais importante conclusatildeo parece-me ser o fato de o Conciacutelio ter visto muito claramente o nexo entre Tradiccedilatildeo e Revelaccedilatildeo A seguir elaborou sempre em consonacircncia com a tradiccedilatildeo patriacutestica e medieval um conceito de Revelaccedilatildeo muito menos material do que o que seraacute adotado mais tarde pela teologia dos tempos modernos Somente assim se deve conceber a ideacuteia da Revelaccedilatildeo do Espiacuterito Santo na Igreja Partindo do ramo nitidamente patriacutestico da teologia medieval tatildeo francamente acolhido no discurso de Cervini deveria ser muito menos categoacuterica a opiniatildeo que coloca o teacutermino da Revelaccedilatildeo na morte do uacuteltimo Apoacutestolo Naturalmente esta questatildeo natildeo pode ser aqui estudada com maiores detalhes A sua soluccedilatildeo como entatildeo se apresentava aos teoacutelogos poderia ser hoje impostada apelando-se para as categorias da teologia atual Segundo esta podemos dizer que a Revelaccedilatildeo estaacute encerrada do ponto de vista de seu princiacutepio material Todavia estaacute e continua presente em sua realidade eficaz Noutros termos a Revelaccedilatildeo tem eacute verdade o seu ἑφάπαξ enquanto ela se realizou num determinado dia na Histoacuteria Entretanto ela tem tambeacutem o seu ldquohojerdquo permanente isto eacute o que foi uma vez por todas realizado na feacute da Igreja permanece sempre vivo e operante Assim a feacute cristatilde natildeo se volta apenas para o passado Abrange tambeacutem o presente e o futuro Eacute verdade que a posterior materializaccedilatildeo historicista da ideacuteia de Revelaccedilatildeo aparece jaacute claramente insinuada nos debates tridentinos corno um fato previsto mas ainda [58] natildeo consumado embora talvez se possa dizer que nos textos conciliares ficou definitivamente consagrada a sua aceitaccedilatildeo

Finalmente acrescentemos ainda que com base nos debates do Conciacutelio podemos estabelecer quatro elementos da ideacuteia de Tradiccedilatildeo 1 O aspecto natildeo-escrito da Revelaccedilatildeo ou do Evangelho contido na Biacuteblia e no coraccedilatildeo dos fieacuteis 2 A palavra do Espiacuterito Santo no decorrer de todo o tempo da Igreja

3 A atividade da Igreja nos Conciacutelios 4 A Tradiccedilatildeo lituacutergica e a da vida da Igreja em geral Nestes quatro elementos

que se deve ter sob os olhos pois formam o fundo ideoloacutegico do Decreto expressa-se a realidade uacutenica do tempo presente da Igreja cristatilde Nele estaacute presente todo o passado poacutes-apostoacutelico da Igreja (inclusive o proacuteprio tempo dos apoacutestolos) de modo que toda a sua vida eacute na Sagrada Escritura um elemento central embora natildeo o uacutenico Em suma deve ter ficado claro que o Conciacutelio de Trento a despeito do caraacuteter contrastante e fixo de sua ideacuteia de Revelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeo oferece uma visatildeo muito mais rica destes conceitos do que a que impregnou a mentalidade dos seacuteculos seguintes Justamente por

isso a teologia de hoje pode retirar daiacute novos subsiacutedios novo apoio para suas pesquisas e novas indicaccedilotildees sobre o verdadeiro caminho a seguir

Quadro sinoacutetico do Decreto tridentino sobre a Tradiccedilatildeo

Primeiro princiacutepio conforme Cervini (AT = Escritura)

Sacrosancta œcumenica et generalis Tridentina Synodus in Spiritu Sancto legitime congregata [] hoc sibi perpetuo ante oculos proponens ut sublatis erroribus puritas ipsa EVANGELII in Ecclesia conservetur quod PROMISSUM ANTE PER PROPHETAS IN SCRIPTURIS SANCTIS

Segundo princiacutepio conforme Cervini o Evangelho em parte escrito em parte insculpido nos coraccedilotildees

[59] DOMINUS NOSTER IESUS CHRISTUS DEI FILIUS PROPRIO ORE PRIMUM PROMULGAVIT DEINDE PER SUOS APOSTOLOS TAMQUAM FONTEM OMNIS ET SALUTARIS VERITATIS ET MORUM DISCIPLINAE OMNI CREATURAE PRAEDICARI IUSSIT PERSPICIENSQUE HANC VERITATEM ET DISCIPLINAM CONTINERI IN LIBRIS SCRIPTIS ET SINE SCRIPTO TRADITIONIBUS QUAE AB IPSIUS CHRISTI ORE AB APOSTOLIS ACCEPTAE AUT AB IPSIS APOSTOLIS SPIRITU SANCTO DICTANTE

Seripando Cervini e outros soacute consideram as tradiccedilotildees recebidas pela Igrej (ldquoad nos usquerdquo)

quasi per manus traditae ad nos usque pervenerunt

orthodoxorum Patrum exempla secuta omnes libros tam Veteris quam Novi Testamenti cum utriusque unus Deus sit auctor nec non TRADITIONES IPSAS

Lejay Tradiccedilatildeo contendo natildeo soacute a ldquoconsuetudordquo mas relacionada tambeacutem com a ldquofidesrdquo (foacutermula conciliar)

tum ad fidem tum ad mores pertinentes

Terceiro princiacutepio de Cernini Depois da Ascenccedilatildeo de Cristo o Espiacuterito Santo ensina tambeacutem os misteacuterios de Deus

TAMQUAM VEL ORETENUS A CHRISTO VEL A SPIRITU SANCTO DICTATAS

Seripando Cervini etc soacute satildeo consideradas as coisas recebidas pela Igreja (como acima)

et continua successione in Ecclesia catholica conservatas

Cervini Escritura e Tradiccedilatildeo procedem ambas do mesmo Espiacuterito Santo

pari pietatis affectu ac reverentia suscipit ac veneratur

  • Prefaacutecio
  • SEGUNDA PARTE
  • Explicaccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo
  • segundo o Decreto do Conciacutelio de Trento
Page 12: Revelacao e Tradicao-Joseph Ratzinger (Bom Ler)

Necessaacuterio eacute ainda admitir-se que a teologia natildeo cria a feacute no cristatildeo Ele eacute apenas chamado a pocircr-se a serviccedilo da feacute Da feacute hoje

Ao exprimir eu agrave ilustre Faculdade Catoacutelica de Teologia da Universidade de Munster o meu penhorado e cordial agradecimento pela distinccedilatildeo que me outorgou faccedilo-o com a consciecircncia de que tambeacutem os operaacuterios que realizam a construccedilatildeo da teologia trabalham em vatildeo se o Senhor natildeo cooperar com eles Noacutes [14] devemos trabalhar enquanto eacute dia Toda theologia mentis eacute apenas um auxiacutelio para a theologia cordis et vitaelig Enfim em toda theologia a rigor soacute um caminho se abre o caminho que se perde no segredo de Deus misteacuterio impenetraacutevel que todavia se potildee ao nosso alcance

Joseph Ratzinger

EXAME DO PROBLEMA DO CONCEITO DE TRADICcedilAtildeO

PRIMEIRA PARTE

Revelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeo

Ensaio de anaacutelise do conceito de Tradiccedilatildeo

I ndash Posiccedilatildeo do Problema

[15] O modo como Cristo Palavra expressa da Revelaccedilatildeo permanece presente na Histoacuteria e vai ao encontro dos homens pertence agravequelas questotildees fundamentais em torno das quais se dividiu a Cristandade ocidental no seacuteculo da Reforma A luta prende-se agrave ideacuteia de ldquoTradiccedilatildeordquo pela qual a Igreja catoacutelica procurou exprimir certa forma de comunicaccedilatildeo da Revelaccedilatildeo ao lado da outra contida na Sagrada Escritura Isto com o fim de desfazer um duplo protesto A Tradiccedilatildeo designava primeiro as chamadas consuetudines ecclesiaelig tais como a santificaccedilatildeo do domingo a oraccedilatildeo voltada para o Oriente o costume de jejuar as vaacuterias becircnccedilatildeos e consagraccedilotildees e outras praacuteticas semelhantes em vigor na piedade dos fieacuteis ao tempo da baixa Idade Meacutedia Tais praacuteticas ora nobres ora ridiacuteculas embora transformassem a Igreja numa espeacutecie de casa assombrada cheia de acircngulos e cantos justificavam-se sob o tiacutetulo de ldquotradiccedilatildeordquo e legitimavam-se como parte essencial da vida cristatilde1

Lutero a quem a simplicidade do Evangelho como urna forccedila explosiva tinha sobremodo impressionado preferiu agrave luz de sua [16] ideacuteia de Deus juiz misericordioso natildeo ver na Tradiccedilatildeo nada mais do que ninharias com as quais a humanidade se ilude e aparentemente se consola buscando uma evasatildeo ante o abuso da proacutepria existecircncia Ainda mais ele viu na Tradiccedilatildeo o retorno da Lei o predomiacutenio do arbiacutetrio humano sobre a palavra de Deus abuso contra o qual Paulo protestara com tanta veemecircncia e que agora de novo se implantara na Igreja A Confessio Augustana ocupou-se tambeacutem destas coisas destacando uma seacuterie de leis cuja violaccedilatildeo segundo a doutrina corrente era tida como pecado mortal a proibiccedilatildeo do trabalho manual aos domingos e dias santos a interrupccedilatildeo das preces canocircnicas diaacuterias os preceitos do jejum etc E Lutero prosseguia ldquoDe onde tiram os Bispos o direito e o poder de imporem tais prescriccedilotildees aos cristatildeos e de ilaquearem assim as consciecircncias Pedro no capiacutetulo 15 dos Atos dos Apoacutestolos proiacutebe se imponha o jugo sobre os ombros dos disciacutepulos E Paulo diz aos Coriacutentios que a autoridade lhe foi dada para salvar e natildeo para condenar Por que entatildeo multiplicam assim os pecados com tais imposiccedilotildeeshellip Se os Bispos tecircm poder de sobrecarregarem as igrejas com inuacutemeras prescriccedilotildees e de onerar as consciecircncias por que entatildeo a Sagrada Escritura proiacutebe tatildeo frequumlentemente que se faccedilam mandamentos

1 Eacute o que se vecirc claramente pela lista de traditiones feitas no tempo do Conciacutelio de Trento Cf a nota 44 da segunda parte desse livro

humanos e se escravizem os homens Porque chama ela a estas coisas de doutrina de Satanaacutes Foi acaso em vatildeo que o Espiacuterito Santo fez tais advertecircnciasrdquo 2

Lutero identificou aqui a traditio com os abusus Tradiccedilatildeo segundo ele eacute lei humana pela qual o homem se esconde de Deus e pior ainda se levanta contra Ele para tomar nas proacuteprias matildeos a tarefa de sua salvaccedilatildeo em vez de esperaacute-la da libeacuterrima graccedila do Senhor A Tradiccedilatildeo assim entendida como Lei eacute contraposta agrave mensagem da graccedila ldquoDevemos aceitar cada [17] um dos artigos do Evangelho para alcanccedilarmos a graccedila de Deus sem meacuterito nosso atraveacutes da feacute em Jesus Cristo e natildeo pretender merececirc-la mediante praacuteticas do culto inventado pelos homensrdquo3

O problema da Tradiccedilatildeo tornou-se ainda mais agudo devido a um segundo aspecto que de resto natildeo conduziu a nenhum resultado positivo Descobrindo o Evangelho teve Lutero igualmente a impressatildeo de libertar a Palavra de Deus da pesada cadeia do Magisteacuterio eclesiaacutestico que se teria apossado desta Palavra e natildeo mais a entendia em seu verdadeiro sentido empregando-a antes a seu bel-prazer A ideacuteia de que a palavra divina aprisionada na Igreja catoacutelica agrave autoridade do Magisteacuterio ficou privada de sua forccedila viva eacute sempre repetida nos escritos dos Reformadores Melanchton poreacutem fecirc-lo talvez de um modo mais humano e flexiacutevel quando apocircs com reservas a sua assinatura aos artigos luteranos de Esmalca ldquo quanto ao Papa acho eu que jaacute que ele quis abandonar o Evangelho devemos noacutes de nossa parte tolerar (e admitir) para o bem da paz e da unidade a sua superioridade sobre os Bispos superioridade esta que ele possui iure humanordquo 4

Este estado de coisas impregnou outrossim a ideacuteia de Igreja da Confessio Augustana uma vez que aiacute se diz que a Igreja eacute a congregatio sanctorum in qua Evangelium pure docetur et recte administrantur Sacramenta5 Assim a Igreja eacute marcada por duplo aspecto pela pureza da doutrina e pela administraccedilatildeo legiacutetima dos Sacramentos Nem uma palavra sobre o Magisteacuterio Na realidade para a elaboraccedilatildeo do conceito de Igreja este silecircncio da CA natildeo eacute menos importante do que o que ela aiacute diz Eacute um silecircncio evidentemente intencional e denuncia a oposiccedilatildeo dos Reformadores agrave concepccedilatildeo catoacutelica de Igreja [18] entatildeo vigente e ateacute hoje conservada Esta consta de trecircs elementos a fides correspondente ao pure docere a communio que corresponde ao sacramenta e a auctoritas6 O Magisteacuterio aparece aqui como criteacuterio da palavra Eacute o seu fiador Segundo Melanchton daacute-se o contraacuterio a palavra eacute que eacute o criteacuterio do Magisteacuterio Este deve em uacuteltima anaacutelise ser provado pela palavra e pode consequumlentemente ser negado A palavra eacute auto-suficiente e paira sobre o Magisteacuterio como uma grandeza autocircnoma Talvez nesta inversatildeo de relaccedilotildees eacute que estaacute propriamente o contraste entre o conceito catoacutelico e o protestante de Igreja Contradiccedilatildeo paralela se daacute em torno da ideacuteia de Tradiccedilatildeo Com efeito a negaccedilatildeo do Magisteacuterio como criteacuterio da palavra significa a reduccedilatildeo da palavra de Deus agrave Escritura que seraacute entatildeo o

2Art 28 39-42 in Die Bekenntnisschriften der evangelisch lutherischen Kirche Gotinga 1952 p126 3 Art 28 52 Op cit p129 4 Op cit p463 5 Art 7 1 paacuteg 61 6 Sobre este ponto e o seguinte cf J RATZINGER ldquoDas geistliche Amt und die Einheit der Kircherdquo in Catholica 17 (1963) p 165-179

uacutenico sustentaacuteculo autocircnomo e autecircntico da palavra natildeo admitindo a Tradiccedilatildeo como uma grandeza em si

O Conciacutelio de Trento em seu estudo sobre a Tradiccedilatildeo teve diante dos olhos os dois pontos de vista contraacuterios e procurou formular sua resposta levando ambos em consideraccedilatildeo Eacute por isso conveniente analisarmos como estas duas posiccedilotildees se inter-relacionam em face da equiparaccedilatildeo feita por Lutero entre a Traditio e os abusus Em outros termos como os Padres conciliares se colocam diante do dilema dever-se-ia responder aos ataques de Lutero diretamente com uma definiccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo Ou antes de tudo com a reformatio a coerccedilatildeo dos abusus7

No tocante agrave doutrina o Conciacutelio refutou ex professo a censura dos Reformadores sustentando que a palavra natildeo eacute uma realidade autocircnoma pairando acima da Igreja Ela eacute dada pelo [19] Senhor agrave Igreja e natildeo entregue ao capricho dos homens Permanece justamente por isso nas Suas matildeos subtraindo-se ao alcance do alvitre humano Na visatildeo dos Padres de Trento deve no fundo ter parecido uma falta de confianccedila o terem os homens receio da palavra escrita entregue agrave Igreja como se a Igreja pudesse abusar dela Como se se pudesse apelar para a palavra da Revelaccedilatildeo contra a Igreja Estava-se inquestionavelmente certo de que o Senhor que instituiu a Igreja como Seu Corpo haveria de se empenhar em tutelaacute-la contra o perigo de abusar de Sua palavra

Hoje decorridos quatro seacuteculos desde a Reforma podemos confessar que na oposiccedilatildeo que dividia entre si Lutero e o Conciacutelio de Trento tanto depois como antes o dilema que dilacerou a Cristandade ocidental de certo modo jaacute desapareceu Vecirc-se isto pela troca de correspondecircncia entre Harnack e Peterson Peterson ao agradecer o tratado de Harnack Das Alte Testament in den Paulinischen Briefen und in den Paulinischen Gemeiden observou que este em seu cotejo da Escritura com a exegese biacuteblica tinha adotado natildeo o princiacutepio protestante mas o catoacutelico Escreveu Harnack ldquoDizer que o chamado lsquoprinciacutepio formalrsquo do Protestantismo primitivo eacute uma impossibilidade criacutetica e que ao contraacuterio o princiacutepio catoacutelico eacute formalmente o melhor eacute um truiacutesmo Materialmente poreacutem o princiacutepio catoacutelico da Tradiccedilatildeo opotildee-se agrave Biacuteblia muito mais diretamente (As tradiccedilotildees satildeo como ervas daninhas a serem cortadas pela tesoura do Magisteacuterio) A melhor fonte eacute o Novo Testamentordquo 8

Nesta formulaccedilatildeo de certo modo geneacuterica e simplista e na oposiccedilatildeo estabelecida entre os aspectos material e formal vem de novo agrave tona o antigo dilema poder-se-aacute confiar a palavra agrave Igreja sem temor de que ela sob a tesoura do Magisteacuterio ou [20] envolta no mato selvagem do sensus fidelium perca a sua forccedila proacutepria e sua vitalidade Esta eacute a pergunta que os Protestantes fazem aos Catoacutelicos Poder-se-aacute aceitar a autonomia da palavra sem com isto ser esta exposta ao arbiacutetrio dos exegetas aos maus tratos por parte dos historiadores e enfim ao completo desamparo Eis como os Catoacutelicos revidam aos Protestantes Com efeito segundo nossa doutrina natildeo eacute a noacutes que compete decidir se queremos ou natildeo confiar a palavra agrave Igreja Foi o proacuteprio Senhor quem lha confiou Note-se entretanto que quando o Catoacutelico encara seriamente este assunto natildeo deixa de considerar o zelo pela pureza da palavra revelada como um dever

7 Ver as notas 41 e 42 na 2ordf parte 8 Citado in E PETERSON Theologische Traktate Munique 1951 p295

da mais alta importacircncia Ele sabe que natildeo cumpre este dever pelo simples fato de apelar para a inerracircncia da Igreja Fazecirc-lo seria menosprezar o sentido da luta de Lutero em favor da Palavra deixando-se de ver nisto uma salutar advertecircncia e um apelo dirigido agraves almas

Natildeo obstante tudo isto a histoacuteria da controveacutersia natildeo se deteve no decurso dos quatro seacuteculos que se seguiram agrave Reforma Duas diferentes tendecircncias se destacam nas relaccedilotildees entre o Protestantismo e o Catolicismo e entre suas respectivas teologias De um lado uma radicalizaccedilatildeo de cada grupo nos proacuteprios pontos de vista Cada grupo a partir de entatildeo fez sua histoacuteria proacutepria e desenvolveu-a em direccedilatildeo oposta um ao outro Por outro lado a distacircncia mantida entre ambos possibilita maior objetividade em seus julgamentos reciacuteprocos Existe finalmente de parte a parte um renovado esforccedilo por superar as fronteiras com vistas a um encontro

Quem entre os Catoacutelicos empreendeu o mais significativo passo para chegar a uma visatildeo nova do problema da Tradiccedilatildeo mediante a superaccedilatildeo de posiccedilotildees unilaterais e anti-reformistas foi em nossos dias o teoacutelogo dogmaacutetico de Tubinga Josef Rupert Geiselmann Seus esforccedilos foram frutuosos fazendo-se sentir a sua influecircncia inclusive nos estudos preparatoacuterios do [21] Conciacutelio e deram agraves incursotildees do Vaticano II nesta aacuterea aquela marcante atualidade que ainda na primeira sessatildeo levou este problema a transcender do ciacuterculo da luta doutrinal entre as vaacuterias escolas teoloacutegicas para se transformar em uma preocupaccedilatildeo de toda a Cristandade catoacutelica9

A tese de Geiselmann eacute conhecida Basta-nos esboccedilaacute-la rapidamente aqui a fim de lanccedilarmos as bases de uma reflexatildeo que procuraraacute aprofundar mais este assunto e talvez dar um modesto passo agrave frente Geiselmann parte de uma interpretaccedilatildeo nova do sentido dado pelo Conciacutelio ao conceito de Tradiccedilatildeo O tridentino estabelecera que a verdade do Evangelho estaacute contida in libris scriptis et sine scripto traditionibus Isto foi e eacute ateacute hoje interpretado como se a Escritura natildeo contivesse toda a veritas evangelii Portanto natildeo eacute possiacutevel admitir-se a sola Scriptura uma vez que uma parte da Revelaccedilatildeo nos eacute transmitida somente pela Tradiccedilatildeo Geiselmann aproveitou a observaccedilatildeo jaacute antes feita por alguns autores de que na primeira redaccedilatildeo do texto focircra adotada a foacutermula segundo a qual a verdade estaria contida partim in libris scriptis partim in sine scripto traditionibus Estaria aqui claramente expressa a doutrina da divisatildeo da verdade revelada em duas fontes (Escritura e Tradiccedilatildeo) O Conciacutelio abandonou a expressatildeo partim ndash partim preferindo usar o simples conectivo et Geiselmann daiacute conclui afastou-se o Conciacutelio da ideacuteia da divisatildeo da verdade em duas fontes diversas Ou pelo menos natildeo a definiu explicitamente E continua o mesmo autor com isto pode tambeacutem o teoacutelogo catoacutelico aceitar a ideacuteia de uma suficiecircncia material da Escritura Pode ainda mesmo permanecendo catoacutelico defender a opiniatildeo de que a Sagrada Escritura eacute suficiente para transmitir-nos a [22] Revelaccedilatildeo Geiselmann admite consequumlentemente que a sola Scriptura pode conceber-se como uma uacutenica fonte

9 Cf R LAURENTIN Lenjeu du Concile Bilan de Ia premiegravere session Paris 1963 p27-45 Y CONGAR Vatican II Le Concile au jour le jour Paris 1963 p63-71 J RATZINGER Die erste Sitzungsperiode des Zweiten Vatikanischen Konzils Colocircnia 1963 p38-50

material da Revelaccedilatildeo Ele crecirc ainda poder mostrar que a tradiccedilatildeo mais forte eacute a favor desta sentenccedila e que o proacuteprio Conciacutelio de Trento se inclina neste sentido10

Eacute faacutecil de se compreender que semelhante tese tenha obtido o apoio de muitos em face das novas possibilidades de encontro entre Catoacutelicos e Evangeacutelicos possibilidades estas que a posiccedilatildeo de Geiselmann parece favorecer11 Que esta tese na realidade constitua um passo consideraacutevel neste sentido parece ser incontestaacutevel Todavia tatildeo logo a analisemos mais de perto em seus fundamentos histoacutericos e reais surge de pronto toda uma seacuterie de dificuldades graves a tornarem impossiacutevel a sua aceitaccedilatildeo

Sobre o aspecto histoacuterico deste problema apresentaremos vaacuterias observaccedilotildees na segunda parte deste nosso opuacutesculo Entrementes consideremos de imediato o lado praacutetico deste assunto Seu exame provoca inicialmente esta pergunta que significa propriamente a expressatildeo ldquosuficiecircncia da Escriturardquo Geiselmann como teoacutelogo catoacutelico que eacute natildeo deixa de sustentar os nossos dogmas Ora nenhum dogma catoacutelico eacute provado sola Scriptura Nem os grandes dogmas primitivos sustentados pelo consensus quinquesaeligcularis nem tampouco o de 1854 e [23] menos ainda o de 1950 Em que sentido entatildeo se pode falar em suficiecircncia da Escritura Natildeo ameaccedilaraacute esta converter-se em perigosa fraude pela qual nos enganamos primeiramente a noacutes proacuteprios e em seguida tambeacutem enganamos aos outros (Ou natildeo seratildeo talvez justamente eles que natildeo se enganam) Ou entatildeo pelo menos para sustentarmos de um lado que a Escritura sozinha conteacutem toda a verdade da Revelaccedilatildeo e de outro lado que o dogma de 1950 eacute verdade revelada natildeo deveremos noacutes refugiar-nos em um conceito tatildeo largo de suficiecircncia que na verdade esta palavra venha a perder todo o seu significado

Com isto abre-se a segunda (que de fato eacute a primeira) questatildeo decisiva a saber seraacute verdade que os debates em torno da ideacuteia da suficiecircncia da Escritura resolveram mesmo o problema do conceito de Tradiccedilatildeo Ou ao contraacuterio natildeo estaremos noacutes aqui diante de um problema de raiacutezes muito mais profundas

Nossas observaccedilotildees introdutoacuterias devem ter deixado claro que esta uacuteltima pergunta deve sem duacutevida nenhuma ser respondida afirmativamente A questatildeo da suficiecircncia da Escritura eacute apenas um problema secundaacuterio no acircmbito da distinccedilatildeo muito mais importante que foi jaacute antes apontada por noacutes ao tratarmos dos conceitos abusus e auctoritas e que gira em torno do nexo entre a autoridade da Igreja e a autoridade da Sagrada Escritura Da compreensatildeo disto depende tudo o mais

Para irmos mais adiante torna-se necessaacuterio analisarmos profundamente o assunto natildeo para nos determos no exame dos conceitos tatildeo relevantes de suficiecircncia ou insuficiecircncia da Escritura mas antes para abordarmos em seu tudo o vasto problema da Palavra revelada e presente no coraccedilatildeo dos fieacuteis Torna-se evidente entatildeo que agrave luz das fontes positivas a Escritura e a Tradiccedilatildeo devem ser postas em relaccedilatildeo tatildeo iacutentima que da

10 Ver sobretudo a obra de J R GEISELMANN Die Heilige Schrift und die Tradition Friburgo 1962 principalmente as p91-107274-282 Entre os trabalhos anteriores escritos por Geiselmann sobre o mesmo tema eacute de particular importacircncia o seguinte Das Konzil von Trient uumlber das Verhaumlltnis der Heiligen Schrift und der nichtgeschriebenen Traditionen in M SCHMAUS Die muumlndliche Uumlberlieterung Munique 1957 p 123-206 11 Uma lista de todos os autores que mais concordaram com Geiselmann eacute fornecida por H KUumlNG em sua tese ldquoKarl Barths Lehre vom Wort Gottes als Frage an die katholische Theologierdquo in Einsicht und Glaube publicado por J RATZINGER-H FRIES Friburgo 1963 p 105 nota 25

fonte interna (a Revelaccedilatildeo) brote a pa1avra de Deus viva sob aquela dupla formalidade A Escritura e a Tradiccedilatildeo natildeo podem [24] ser entendidas uma sem a outra no sentido que ambas tecircm agrave luz da feacute O problema ldquoEscritura e Tradiccedilatildeordquo permaneceraacute insoluacutevel enquanto natildeo for reduzido a uma soacute questatildeo a saber a questatildeo ldquoRevelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeordquo e inserida enfim no amplo contexto a que pertence

Eu gostaria de nas paacuteginas seguintes sem entrar em todos os detalhes tentar desenvolver em forma de teses e de maneira positiva o conceito de Tradiccedilatildeo partindo de sua natureza iacutentima com a esperanccedila de que nele descubramos uma parte da resposta aos anseios dos Reformadores Desta maneira toda esta anaacutelise serviraacute de contribuiccedilatildeo para o diaacutelogo interconfessional cuja necessidade tanto os Catoacutelicos como os Protestantes vecircm proclamando de maneira cada vez mais insistente

II - Teses sobre a relaccedilatildeo entre a Revelaccedilatildeo e a Tradiccedilatildeo

1 A Revelaccedilatildeo e a Escritura A primeira tese em aditamento ao conceito patriacutestico de Escritura e Revelaccedilatildeo

poderia enunciar-se nos seguintes termos o fato de existir uma ldquoTradiccedilatildeordquo repousa antes de tudo na diferenccedila que permeia entre estas duas realidades ldquoRevelaccedilatildeordquo e ldquoEscriturardquo A Revelaccedilatildeo exprime propriamente o falar e o agir de Deus em relaccedilatildeo aos homens Designa uma realidade expressa pela Escritura sem ser contudo a proacutepria Escritura A Revelaccedilatildeo por conseguinte ultrapassa a Escritura na mesma medida em que a realidade ultrapassa a sua expressatildeo escrita12 Poder-se-ia [25] tambeacutem dizer que a Escritura eacute o princiacutepio material da Revelaccedilatildeo (Talvez princiacutepio uacutenico talvez um princiacutepio entre outros isto seraacute esclarecido mais adiante) Ela natildeo eacute poreacutem a proacutepria Revelaccedilatildeo Isto era aliaacutes bem sabido dos proacuteprios Reformadores mas comeccedilou visivelmente a ser esquecido no aceso da controveacutersia entre a teologia catoacutelica poacutes-tridentina e a ortodoxia protestante13 Em nosso seacuteculo foram justamente os teoacutelogos evangeacutelicos Barth e Brunner que redescobriram este fato de todo evidente para a teologia patriacutestica e medieval14

O que acabamos de afirmar ficaraacute mais claro se partirmos de outro princiacutepio a Escritura pode ser possuiacuteda sem que se possua a Revelaccedilatildeo Isto porque a Revelaccedilatildeo eacute sempre e em primeiro plano uma realidade a realidade onde se encontra a feacute Aquele

12 Esta afirmaccedilatildeo natildeo tem o sentido de que a Escritura seja uma mera e vazia narrativa de realidades a ela exteriores Antes como o que se segue iraacute demonstrar indica que a Revelaccedilatildeo eacute realizada na Palavra jaacute que eacute por meio de palavras que ela se comunica aos homens Contudo a mera presenccedila da palavra ainda natildeo eacute a Revelaccedilatildeo Esta eacute mais do que simples ldquopresenccedilardquo Com o que ficou dito salienta-se a diferenccedila que existe entre a palavra e seu conteuacutedo Esta diferenccedila natildeo exclui o caraacuteter verbal da Revelaccedilatildeo 13 Cf A GLOEGE Schriftprinzips RGG V 1540-1543 onde se encontraraacute a mais completa bibliografia LthK VII 1104-1115 J R GEISELMAN Offenbarung in H FRIES Handbuch zum Begriff der Offenbarung cf M VERENO - R SCHNACKENBURG - HRIES in Theologischer Grundbergriffe II Munique 1963 p242-250 e a bibliografia aiacute citada 14 Cf W H VAN DER POL Das reformatorische Christentum Einsiedeln 1956 p117-192

que natildeo crecirc acha-se como que coberto por um veacuteu o veacuteu de que fala Satildeo Paulo no terceiro capiacutetulo da segunda epiacutestola aos Coriacutentios15 Ele pode ler a Escritura e saber o que nela se conteacutem Pode ateacute mesmo apreender de modo puramente intelectual o que aiacute eacute significado e como suas ideacuteias se inter-relacionam Todavia natildeo possui com isto a Revelaccedilatildeo A Revelaccedilatildeo eacute sobretudo possuiacuteda quando aleacutem da expressatildeo material que a atesta se potildee tambeacutem em praacutetica o seu conteuacutedo interno por meio da vivecircncia da feacute Com efeito de certo modo se inclui tambeacutem na Revelaccedilatildeo o sujeito recipiente sem o qual ela natildeo pode existir Natildeo se pode pocircr a Revelaccedilatildeo no bolso como se faz com [26] um livro Ela eacute uma realidade viva Exige homens vivos que a recebam que sirvam de ldquolugarrdquo de sua presenccedila

Repetindo o que ateacute aqui dissemos podemos afirmar que a Revelaccedilatildeo sobreexcede de fato a Escritura em dois sentidos

a) em sentido ascendente ela atinge sempre como realidade procedente de Deus o agir divino sobre as criaturas

b) como realidade que se daacute ao homem por meio da feacute ela atinge igualmente a Escritura

Desta diferenccedila entre a Escritura e a Revelaccedilatildeo resulta claramente que de todo independentemente da questatildeo se a Escritura eacute ou natildeo eacute a uacutenica fonte material em rigor nunca existe para o cristatildeo a sola Scriptura (Isto como ficou dito era claro em princiacutepio para os grandes Reformadores e comeccedilou a ser esquecido na chamada ortodoxia protestante) A Escritura natildeo eacute a Revelaccedilatildeo Eacute sim em uacuteltima anaacutelise uma parte desta realidade mais ampla

2 Os diferentes sentidos da Escritura

no Antigo e Novo testamento A problemaacutetica cristatilde da Revelaccedilatildeo ou o problema ldquoEscritura e Tradiccedilatildeordquo situa-se

melhor se considerarmos o duplo aspecto da mesma Revelaccedilatildeo no Antigo e no Novo Testamento A este duplo aspecto corresponde tambeacutem um duplo sentido da Escritura Assim como os dois Testamentos como tais se distinguem essencialmente assim tambeacutem devemos dizer que a ldquoEscriturardquo como um fato natildeo eacute repetida duas vezes do mesmo modo Isto aparece muito claro nos livros neotestamentaacuterios Sob a expressatildeo ldquoEscriturardquo designam eles somente o Antigo Testamento Para eles o AT eacute e permanece sendo ldquoa Escriturardquo cujo sentido se aclara mediante sua confirmaccedilatildeo no evento da [27] vinda de Cristo16 Os livros do NT natildeo jogam uma Escritura nova contra uma Escritura antiga Nem potildeem uma simplesmente ao lado da outra Potildeem sim em face da uacutenica Escritura ou seja do Antigo Testamento o Cristo-evento como o espiacuterito que explica a letra Esta concepccedilatildeo fundamental ilumina tambeacutem a forma da feacute mais antiga e a torna por primeiro compreensiacutevel O ldquoJesusrdquo formal eacute o ldquoCristordquo expresso no Antigo Testamento Natildeo eacute outra coisa No Jesus Histoacuterico o Cristo-mensagem do

15 Cf sobre estas reflexotildees o importante artigo (ἀποκαλύπτω de A OEPKE in ThWNT III p565-597 16 Ver sobre este ponto as preciosas conclusotildees de G SCHRENK art γραφή ndash γράμμα in ThWNT I p749-769 e a p767

Antigo Testamento atinge a sua consumaccedilatildeo Eacute a partir do AT que se entende quem eacute Jesus E o que o Testamento Antigo expressa pode ser visto agrave luz do Cristo-evento

Esta ideacuteia aparece em Paulo ao apresentar ele o Antigo e o Novo Testamentos como Gramma e Pneuma isto eacute letra e espiacuterito (2Cor 3 6-18) Ele chama ao Senhor de Pneuma A Escritura explica-o como sendo o seu sentido o seu conteuacutedo verdadeiro e vivo e natildeo apenas literaacuterio Paulo se refere agrave concepccedilatildeo do Novo Testamento apresentada por Jeremias (3133) Natildeo eacute mais necessaacuteria nenhuma Escritura porque a lei estaacute escrita nos coraccedilotildees Jaacute natildeo eacute necessaacuteria nenhuma doutrinaccedilatildeo vinda de fora porque o proacuteprio Deus instrui os homens Joatildeo exprime idecircntico pensamento em seguimento ao decircutero-Isaiacuteas (5413) quando descreve a era inaugurada por Cristo como o tempo no qual todos satildeo doutrinados por Deus mesmo E o sermatildeo de Pedro em Pentecostes transmitido pelos Atos dos Apoacutestolos (2 14-36) desenvolve a mesma ideacuteia tirada de Joel (3 1-5) Em todos estes casos aparece a era instaurada por Cristo como resposta agrave esperanccedila no advento de um tempo futuro que em uacuteltima anaacutelise haveria de tornar supeacuterflua a Escritura graccedilas agrave presenccedila imediata do Divino Mestre na Sua humanidade

Quando se pondera o sentido destas afirmaccedilotildees torna-se claro [28] que ao reduzir-se a ldquoEscriturardquo aos escritos do Antigo Testamento natildeo se estaacute apenas usando uma terminologia antiga que teria sido adotada por falta de escritos propriamente neotestamentaacuterios e que teria perdido seu sentido na segunda metade do seacuteculo segundo com o iniacutecio do cacircnon do Novo Testamento Ao contraacuterio Aqui se expressa uma consciecircncia que se tornaria mais niacutetida a partir da formaccedilatildeo da proacutepria Escritura neotestamentaacuteria muito ao inveacutes de cessar ou de desaparecer

Uma coisa eacute certa a ldquoEscriturardquo na nova ordem da salvaccedilatildeo inaugurada por Cristo toma um lugar distinto do que lhe cabia no Antigo Testamento Com isto pode-se ver ateacute que ponto o Antigo Testamento tem sentido autocircnomo O AT certamente natildeo aparecia desde o comeccedilo como Testamento do Gramma Escritura em sentido proacuteprio como ocorreraacute na pena de Satildeo Paulo17 Por outro lado manifesta-se realmente a partir de Jeremias e do decircutero-Isaiacuteas o anelo pela superaccedilatildeo do Gramma mediante uma nova e imediata comunicaccedilatildeo do Espiacuterito de Deus simultaneamente com a progressiva formaccedilatildeo de um princiacutepio da Escritura que mais e mais a transformou em Lei Lei esta que natildeo tornaria os homens vivos mas sim mortos

Desta maneira na concepccedilatildeo neotestamentaacuteria aparece o Antigo Testamento como ldquoEscriturardquo em sentido proacuteprio Escritura que atinge o seu verdadeiro significado atraveacutes do Cristo-evento pelo fato de ser ela inserida no contexto vivo da realidade de Cristo Se no Novo Testamento de facto a Escritura cresceu natildeo pode mais ter aquele sentido uacuteltimo e exclusivo que lhe competia no Antigo segundo a concepccedilatildeo paulina Ao contraacuterio Ela eacute a chave com que se abre o Antigo Testamento deixando-se banhar na claridade do Cristo-evento Ela eacute tambeacutem a ponte permanente que conduz a uma nova interpretaccedilatildeo biacuteblica agrave luz [29] de Cristo Num caso e noutro a Escritura natildeo pretende de modo nenhum ser autocircnoma nem ser a fonte uacutenica e exclusiva de sua exegese literal Mas soacute pode ter sentido na realidade espiritual de Jesus Cristo que

17 Ver a apreciaccedilatildeo feita por G VON RAD Theologie des Alten Testaments II Munique 1960 p402-424

permanece junto dos seus todos os dias ateacute ao fim do mundo (Mt 28 20) Apoacutes a subida ao Calvaacuterio Cristo veio de novo no Espiacuterito Santo (como narra Satildeo Joatildeo) e pelo Espiacuterito ensinou aos disciacutepulos o que eles entatildeo natildeo podiam ainda entender enquanto o Senhor estava entre eles sob forma visiacutevel (Jo 16 12)

3 Cristo a Revelaccedilatildeo de Deus

A realidade que se daacute como um acontecimento na Revelaccedilatildeo cristatilde natildeo eacute nada

mais nada menos do que o proacuteprio Cristo Cristo eacute a Revelaccedilatildeo em sentido proacuteprio ldquoQuem me vecirc vecirc o Pairdquo diz ele no Evangelho de Satildeo Joatildeo (14 9) Vale portanto dizer que receber a Revelaccedilatildeo eacute penetrar na realidade de Cristo no Cristo-evento Daiacute procede o paradoxo descrito por Satildeo Paulo ao fazer ele um trocadilho com as palavras ldquoCristo em noacutesrdquo e ldquonoacutes em Cristordquo

Neste contexto a anaacutelise de frases isoladas torna-se secundaacuteria de vez que elas satildeo apenas explicaccedilotildees do uacutenico misteacuterio de Cristo Consequumlentemente cai por si mesma a questatildeo da suficiecircncia interna da Escritura tatildeo discutida desde o aparecimento das obras de Geiselmann Deveriacuteamos isto sim perguntar que significa em linguagem cristatilde a suficiecircncia interna da Escritura ldquoSuficienterdquo eacute soacute a realidade do Cristo-evento Esta pode ser explicada materialmente em maior ou menor grau E de maneira nunca definitiva Partindo deste princiacutepio podem existir tambeacutem outras explicaccedilotildees segundo a Escritura quando se aprofunda mais este assunto

Este mesmo tema pode ser considerado sob outro aspecto E ter-se-aacute entatildeo dado um passo a mais para a frente A aceitaccedilatildeo [30] da Revelaccedilatildeo pela qual aplicamos a noacutes o Cristo-evento vem na linguagem da Biacuteblia sob o nome de ldquofeacuterdquo Assim talvez se entenderaacute mais claramente de que maneira no Novo Testamento a feacute significa a ldquoin-habitaccedilatildeordquo de Cristo Se admitirmos que na Escritura a presenccedila da Revelaccedilatildeo tem o mesmo sentido que a presenccedila de Cristo entatildeo teremos de fato dado um passo adiante Ora na Escritura encontramos a presenccedila de Cristo apresentada de duas maneiras Ela aparece de um lado como jaacute vimos identificada com a feacute (Ef 317) na qual cada um encontra Cristo e se adentra nele penetrando no dinamismo de sua forccedila salvadora Por outro lado a feacute se oculta tambeacutem sob a expressatildeo paulina ldquoCorpo de Cristordquo o que quer dizer que a comunidade dos fieacuteis ndash a Igreja ndash funda a presenccedila de Cristo neste mundo Nela Cristo reuacutene os homens e os faz partiacutecipes de sua presenccedila dinacircmica18

Tomadas juntas estas duas noccedilotildees significam o seguinte a feacute eacute a adesatildeo iacutentima agrave presenccedila de Cristo realidade de Cristo presente da qual a Escritura nos daacute testemunho sem contudo se identificar de modo nenhum com ela Daiacute resulta que a presenccedila da Revelaccedilatildeo se relaciona essencialmente com a ldquofeacuterdquo e com a ldquoIgrejardquo realidades estas que como vimos estatildeo estreitamente ligadas entre si

Voltamos assim ao que foi afirmado na primeira tese a saber que a Revelaccedilatildeo sobreexcede a Escritura em duplo sentido em relaccedilatildeo a Deus por seu lado ascendente e em relaccedilatildeo tambeacutem ao homem que a recebe Esta asserccedilatildeo que a princiacutepio deixamos

18 H SCHLIER ldquoDie Kirche nach dem Brief an die Epheserrdquo in Die Zeit der Kirche Friburgo 1962 p159-186

um tanto vaga encontramo-la essencialmente concretizada na realidade objetiva do Cristianismo

4 A essecircncia da Tradiccedilatildeo

[31] A transmissatildeo ao povo de Deus do Cristo-evento que eacute a Revelaccedilatildeo e que tem sua bi-presenccedila na feacute e na Igreja faz-se atraveacutes da pregaccedilatildeo Pregaccedilatildeo eacute a ldquoex-posiccedilatildeordquo (Aus-legung) do duplo aspecto da Revelaccedilatildeo no Antigo e no Novo Testamento E isto de duas maneiras

a) ela eacute a exposiccedilatildeo do Antigo Testamento agrave luz do Cristo-evento e para o Cristo-evento

b) a partir do Pneuma e da condiccedilatildeo presente da Igreja Este uacuteltimo aspecto eacute possiacutevel pois Cristo natildeo estaacute morto Estaacute vivo Natildeo eacute

apenas o Cristo de ontem Eacute tambeacutem e a fortiori o Cristo de hoje e de amanhatilde o Cristo vivo e presente em sua Igreja que eacute seu Corpo e na qual o seu espiacuterito opera

Isto poderaacute ser melhor compreendido se partirmos da essecircncia da Igreja Como nos ensina o Novo Testamento a mensagem de Jesus eacute antes de tudo uma mensagem escatoloacutegica com vistas ao reino de Deus natildeo com vistas agrave Igreja O fato de existir a Igreja natildeo se opotildee a esta mensagem mas haacute na marcha gradativa das revelaccedilotildees de Cristo uma segunda possibilidade Assim a atividade dos Doze depois de Pentecostes aponta natildeo para a Igreja mas para o reino de Deus Informam-nos os Atos dos Apoacutestolos que os Doze natildeo se ocuparam primordialmente em missionar os povos Esforccedilaram-se antes muito mais em converter Israel criando deste modo as condiccedilotildees preacutevias para a implantaccedilatildeo do reino De iniacutecio uma seacuterie de obstaacuteculos histoacutericos entre os quais deveriacuteamos citar antes de tudo o martiacuterio de Estevatildeo o supliacutecio de Tiago e por fim o fato decisivo da prisatildeo e da libertaccedilatildeo de Pedro Tais fatos levaram a comunidade primitiva segundo dizem as fontes a reconhecer como definitivo o malogro do esforccedilo de converter Israel E consequumlentemente forccedilaram os Apoacutestolos a partir em busca dos gentios e a cuidar [32] assim da Igreja e natildeo do reino Eles o fazem segundo se depreende das passagens referidas e principalmente dos esclarecimentos do capiacutetulo 15 dos Atos dos Apoacutestolos como uma nova opccedilatildeo feita sob a accedilatildeo do Espiacuterito Santo Com isso iniciou-se uma nova interpretaccedilatildeo da mensagem de Cristo sobre a qual a Igreja essencialmente repousa19

19 Cf as decisivas conclusotildees de E PETERSON ldquoDie Kircherdquo in Theologische Traktate Munique 1951 p 409-429 H SCHLIER Die Entscheidung fuumlr die Heidenmission in der Urchristenheit Die Zeit der Kirche p 90-107 Parece-me certo que nem a anaacutelise da tradiccedilatildeo sinoacutetica relativa agrave mensagem de Jesus e seu caraacuteter escatoloacutegico nem o estudo da histoacuteria da Igreja primitiva com base no material fornecido pelos Atos dos Apoacutestolos autorizam qualquer outra conexatildeo entre a mensagem do reino e a pregaccedilatildeo da Igreja Daiacute natildeo se segue de modo nenhum ndash como muitas vezes se teme ndash que a cruz seja um acidente secundaacuterio que em rigor poderia ter sido evitado Ao contraacuterio A estrutura da Igreja moldada sobre a cruz eacute fundamental porque aiacute eacute que por primeiro se encontra a confirmaccedilatildeo da importacircncia da liberdade humana de Cristo e da sua Paixatildeo bem como a iacutentima dependecircncia da Igreja para com a Cruz donde ela procede

Este fato que baseia o estabelecimento definitivo da Igreja sobre uma decisatildeo tomada ldquono Espiacuterito Santordquo eacute o fundamento para se afirmar que existe uma interpretaccedilatildeo eclesial do Novo Testamento do mesmo modo que existe uma exegese cristoloacutegica do Antigo Daiacute podermos estabelecer as seguintes teses ou proposiccedilotildees agrave luz da analogia fidei

a) Existe uma teologia veterotestamentaacuteria do Antigo Testamento que o exegeta

deduz de seu conteuacutedo interno e que se desenvolve em uma seacuterie de camadas superpostas Segundo ela os textos antigos devem ser relidos e de novo expostos agrave luz dos novos acontecimentos O fenocircmeno da aplicaccedilatildeo dos textos agraves situaccedilotildees novas do desdobramento da Revelaccedilatildeo mediante nova [33] apresentaccedilatildeo do Antigo Testamento estrutura jaacute de modo essencial o conteuacutedo interno veterotestamentaacuterio20

b) Existe uma teologia neotestamentaacuteria do Antigo Testamento que natildeo coincide com

a referida teologia veterotestamentaacuteria Estaacute contudo estreitamente ligada com ela na unidade da analogia fidei21 Talvez partindo daqui se possa esclarecer o que significa a analogia fidei entre Os dois Testamentos A teologia neotestamentaacuteria do Antigo Testamento natildeo eacute como ficou dito idecircntica agrave teologia histoacuterica veterotestamentaacuteria Ao contraacuterio Re-exposiccedilatildeo feita agrave luz do Cristo-evento ela natildeo procede soacute da mera consideraccedilatildeo histoacuterica do Antigo Testamento Sendo embora em seu pleno conceito uma interpretaccedilatildeo relacionada com o Antigo Testamento contudo nada faz com que ela seja internamente estranha agrave sua essecircncia ainda que soacute de fora o atinja Ela amplia a forma estrutural do Antigo Testamento que assim interpretado revive e cresce

c) Existe uma teologia neotestamentaacuteria do Novo Testamento paralela agrave teologia veterotestamentaacuteria do Antigo Ou seja a teologia que o exegeta como tal pode deduzir do conteuacutedo interno do Novo Testamento eacute tambeacutem esta conhecida e estruturada mediante a aplicaccedilatildeo do Antigo Testamento agraves novas situaccedilotildees

d) Existe uma teologia eclesial do Novo Testamento que noacutes [34] chamamos Dogmaacutetica Ela se relaciona com a teologia neotestamentaacuteria do Novo Testamento do mesmo modo que a teologia neotestamentaacuteria do Antigo se relaciona com a respectiva teologia veterotestamentaacuteria Aquele ldquomaisrdquo (das Mehr) que distingue propriamente a Dogmaacutetica da teologia biacuteblica eacute o que designamos com a palavra Tradiccedilatildeo Aliaacutes tambeacutem aqui devemos salientar que a teologia eclesiaacutestica neotestamentaacuteria pela mesma razatildeo natildeo eacute simplesmente idecircntica agrave teologia neotestamentaacuteria interna e

20 Cf H GROSS Motivtransposition als Form- und Traditionsprinzip im Alten Testament in H VORGRIMLER Exegese und Dogmatik Moguacutencia 1962 p134-152 e a bibliografia aiacute fornecida G v RAD Theologie des Alten Testaments II Munique 1960 p332-339 396-401 21 A diferenccedila entre as duas teologias do Antigo Testamento foi vivamente exposta por R BULTMANN ldquoWeissagung und Erfuumlllungrdquo in Glauben und Verstehen II Tubinga 1952 p162-186 - Sobre as necessaacuterias correccedilotildees a se fazerem para que se torne visiacutevel a base histoacuterica do que a teologia sistemaacutetica denomina ldquoanalogia fideirdquo cf G v RAD op cit p329-424 (entre outras) e principalmente a p 420 nota 25 e a p422 nota 29 Sobre o tema ldquoanalogia fideirdquo em ambos os Testamentos cf tambeacutem E PRZYWARA Alter und Neuer Bund Viena-Munique 1956

histoacuterica do Novo Testamento Ultrapassa-a sem contudo ser-lhe puramente externa Com efeito no Novo Testamento comeccedila jaacute o processo da exposiccedilatildeo pela Igreja das verdades reveladas A teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento processa-se dentro dele proacuteprio como de modo clariacutessimo se percebe na histoacuteria da Revelaccedilatildeo sinoacutetica22

Eacute oportuno fazermos ainda uma pequena observaccedilatildeo se cotejarmos atentamente a teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento com a Dogmaacutetica reconheceremos que se impotildee uma outra distinccedilatildeo A Dogmaacutetica como ciecircncia aleacutem da exposiccedilatildeo eclesiaacutestica do Novo Testamento abrange tambeacutem a teologia particular de cada teoacutelogo Neste caso para se falar com precisatildeo dever-se-ia apresentar somente o proacuteprio dogma como teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento

O que acabamos de referir natildeo passa naturalmente de um esboccedilo que necessitaria em seus pormenores de natildeo poucos esclarecimentos e distinccedilotildees a fim de ser completo No caso presente entretanto damos por suficiente este esboccedilo Resumindo o que ateacute aqui expusemos podemos agora destacar vaacuterias ldquoraiacutezesrdquo da Tradiccedilatildeo e apontar vaacuterias camadas em seu seio [35] lordf raiz a maior amplidatildeo da ldquoTradiccedilatildeordquo em referecircncia agrave ldquoEscriturardquo

2ordf raiz o caraacuteter especiacutefico da Revelaccedilatildeo neotestamentaacuteria como Pneuma em contraste com o Gramma Eacute o que na linguagem de Bultmann se poderia chamar de sua condiccedilatildeo de ldquonatildeo-objetordquo (Nichtobjektiviertbarkeit) A praxe eclesiaacutestica e a teologia medieval expressaram este aspecto ao sobreporem a fides agrave Scriptura isto eacute o dogma como regra de feacute agraves minuacutecias da lei escrita23 O dogma eacute como a chave hermenecircutica da Escritura que em uacuteltima anaacutelise sem o auxiacutelio da hermenecircutica ficaria sendo algo fechado

3ordf raiz o caraacuteter presencial do Cristo-evento e a presenccedila dinacircmica do Espiacuterito de Cristo em seu Corpo a Igreja E consequumlentemente o poder que tem a Igreja de fazer a pregaccedilatildeo do Cristo ontem e hoje pregaccedilatildeo esta cuja fonte se encontra na interpretaccedilatildeo eclesiaacutestica da mensagem do reino transmitida pelos Apoacutestolos

Em conexatildeo com estas trecircs raiacutezes da ideacuteia (ou melhor da realidade) da Tradiccedilatildeo podem distinguir-se na mesma as seguintes camadas

a) Na origem de toda Tradiccedilatildeo estaacute o fato de que o Pai enviou o Seu Filho ao mundo e que o Filho por sua vez se [36] entregou ndash como sinal ndash aos ldquopovosrdquo (παραδίδοται) Esta paraacutedosis original em sua forccedila direta e salvadora

22 Cf por exemplo a rica exposiccedilatildeo de G BORNKMANN Jesus von Nazareth Estutegarte 1956 Sobre a questatildeo aqui estudada cf H SCHLIER Uumlber Sinn und Aufgabe einer Theologie des Neuen Testaments in H VORGRIMLER Exegese und Dogmatik Mainz 1962 p6990 23 O que haacute de melhor sobre este assunto no tocante agrave Patriacutestica seraacute encontrado em HARNACK DG II (1931) p84-116 HARNACK diz na p 87 nota 3 o seguinte ldquoO Cacircnon era de iniacutecio a regra da feacute A Escritura estaacute centrada na verdade Sem duacutevida nenhuma sua autoridade funda-se solidamente no Antigo Testamento e nas palavras do Senhorrdquo ndash Que assim tenha pensado tambeacutem a Idade Meacutedia e que aqui aleacutem da revelatio (da qual falaremos na 2ordf parte deste livro) a fides sobrepondo-se agrave Scriptura estabelece a forma essencial do conceito de Tradiccedilatildeo foi o que tentei demonstrar em meu artigo Wesen und Weisen der auctoritas im Werk des heiligen Bonaventura in Die Kirche und ihre Aumlmter und Staumlnde (Festgabe Kardinals Frings publicado por CORSTEN-FROTZ-LINDEN Colocircnia 1960 p 58-72

prolonga-se na permanente presenccedila de Cristo no σῶμα Χριστοῦ ndash no Seu Corpo a Igreja Assim o misteacuterio integral da presenccedila de Cristo eacute antes de tudo a realidade total transmitida pela Tradiccedilatildeo (fato fundamental e decisivo sempre anterior a todas as explicaccedilotildees particulares mesmo as da Escritura) e reguladora do que deve propriamente ser transmitido

b) A Tradiccedilatildeo existe concretamente como presenccedila na feacute Esta por seu turno como ldquoin-habitaccedilatildeordquo de Cristo precede todas as explicaccedilotildees particulares e frutuosa e viva ldquoexplicita-serdquo (explizierend) atraveacutes dos tempos

c) A Tradiccedilatildeo tem seu oacutergatildeo na plenitude dos poderes da Igreja e portanto naqueles que satildeo os legiacutetimos depositaacuterios destes poderes24

d) A Tradiccedilatildeo exprime-se tambeacutem naquilo que emanado da autoridade da Igreja se tornou regra de feacute (Symbolum fides quaelig) Portanto a questatildeo de se saber se certas proposiccedilotildees foram transmitidas desde o

comeccedilo pela Tradiccedilatildeo ao lado da Escritura ou em outros termos se existe desde o comeccedilo um segundo princiacutepio material e autocircnomo ao lado da Escritura torna-se afinal um problema inteiramente secundaacuterio Talvez lhe devamos responder negativamente

5 A funccedilatildeo da exegese [37] Pelo que ateacute aqui dissemos ficaram esclarecidas quase que exclusivamente

trecircs pontos os limites da letra da Escritura a liberdade do Espiacuterito Santo e a autoridade da Igreja Acontece poreacutem que a exposiccedilatildeo que fizemos abriga ainda um sentido diverso relacionado com a justa preocupaccedilatildeo de Lutero da qual partimos

Se ficou estabelecido que a Revelaccedilatildeo se faz presente atraveacutes da pregaccedilatildeo e se pregaccedilatildeo eacute exposiccedilatildeo da palavra revelada entatildeo pode e deve agora ao que precede acrescentar-se o seguinte a Tradiccedilatildeo eacute essencialmente e sempre uma exposiccedilatildeo Natildeo existe de maneira autocircnoma e sim como explicaccedilatildeo como exposiccedilatildeo ldquorelacionada com a Escriturardquo

Isto vale para a pregaccedilatildeo do proacuteprio Jesus Cristo realizaccedilatildeo plena da Revelaccedilatildeo e sua exposiccedilatildeo feita com autoridade A pregaccedilatildeo de Jesus Cristo natildeo aparece como algo absolutamente novo na Escritura Isto eacute como algo ainda natildeo atestado no Antigo Testamento Ela ensina isto sim a essecircncia do que jaacute estava escrito e lhe confere uma vida nova que o simples exegeta natildeo pode comunicar-lhe

O que vale para a mensagem de Cristo que permanece a mesma sob diferentes modalidades de exposiccedilatildeo vale tambeacutem para a pregaccedilatildeo apostoacutelica e a eclesiaacutestica Como ldquoTradiccedilatildeordquo ela deve em uacuteltima anaacutelise ser uma exposiccedilatildeo ldquosegundo a Escriturardquo a ela sujeita e com ela relacionada Sem duacutevida natildeo eacute ela uma exposiccedilatildeo no 24 Estas ideacuteias natildeo podem ser desenvolvidas mais detalhadamente aqui como seria de desejar uma vez que em rigor estamos procurando apenas fundamentar o conceito de Tradiccedilatildeo Em razatildeo da brevidade que me impus contentei-me apenas nas teses precedentes com explanar o assunto ateacute ao ponto em que ficasse patente a relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a ldquoIgrejardquo (cf as teses 4 e 5) Para se descer a maiores detalhes dever-se-ia analisar tambeacutem o conceito de Igreja que supomos conhecido do leitor Para isto cf a nota 6 onde citamos nosso livro sobre o Ofiacutecio e a unidade da Igreja Encontram-se aiacute algumas observaccedilotildees sobre o assunto de que ora tratamos

sentido de mera interpretaccedilatildeo exegeacutetica Mas sim na autoridade espiritual recebida do Senhor a qual se consuma na existecircncia plena da Igreja em sua feacute em sua vida e em seu culto Contudo ela permanece sendo (mais ainda do que o Cristo-evento em que se funda a Igreja) uma ldquoex-posiccedilatildeordquo (Aus-Legung) comprometida com a Histoacuteria e com a Palavra [38] Exprime-se deste modo a sua ligaccedilatildeo com a accedilatildeo concreta de Deus nesta mesma Histoacuteria e em seu caraacuteter de fato histoacuterico uacutenico (o ἑφάπαξ ldquoo ocorrido uma soacute vezrdquo) A realidade cristatilde da Revelaccedilatildeo eacute tatildeo essencial quanto ldquoeternardquo e definitiva Resulta daiacute a unidade entre o Cristo da Feacute e o Jesus da Histoacuteria o Jesus histoacuterico natildeo eacute senatildeo o Cristo da Feacute ainda que a feacute seja sempre algo mais do que a histoacuteria

Segue-se que do mesmo modo que existe um ofiacutecio de custoacutedia da Revelaccedilatildeo por parte da Igreja ofiacutecio por ela mesma atestado existe tambeacutem um ofiacutecio de custoacutedia da mesma Revelaccedilatildeo por parte da exegese que penetra o sentido literal da Escritura e defende a uniatildeo do Logos com a carne contra qualquer perigo de gnose Existe portanto por assim dizer algo como uma autonomia especiacutefica da Escritura como regra objetiva e sob muitos pontos de vista esclarecedora do Magisteacuterio eclesiaacutestico Esta era sem duacutevida uma exigecircncia legiacutetima de Lutero que ainda natildeo foi devidamente acolhida na Igreja catoacutelica por parte do Magisteacuterio cujos limites internos nem sempre foram claramente entendidos

Dever-se-ia partindo daqui salientar uma dupla criteriologia em se tratando da feacute De um lado haacute o que a Igreja antiga chamou de ldquoregra da feacuterdquo norma reguladora da palavra revelada contida na Escritura e sua exposiccedilatildeo Esta praeligscriptio da posse da Escritura como proacutepria segundo Tertuliano exclui a possibilidade de qualquer uso legiacutetimo da mesma Escritura contra a Igreja Por outro lado haacute tambeacutem o limite da littera Scripturaelig ou do sentido literal historicamente fixaacutevel que de acordo com o que ficou dito natildeo constitui nenhum criteacuterio absoluto ou autocircnomo mas sim somente um criteacuterio relativo no confronto da feacute com a ciecircncia O que na Escritura se pode descobrir quer mediante estudo cientiacutefico quer por simples leitura tem a funccedilatildeo de um criteacuterio real a que deve estar atento inclusive o Magisteacuterio em suas explicaccedilotildees Certamente [39] trata-se entatildeo de elementos sub-componentes da ciecircncia que natildeo podem servir para se julgar a feacute mas nela encontram uma instacircncia criacutetica e tecircm tambeacutem um importante papel a exercer o de zelar pela pureza do ἑφάπαξ de tutelar o conteuacutedo da Revelaccedilatildeo e de defender o dualismo histoacuterico carneespiacuterito (ldquodie Sarx der Geschichterdquo) contra os arbiacutetrios da gnose que tende sempre a impor-se

A reformatio na qual estaacute empenhada a Igreja nesta hora histoacuterica tem um papel relevante a desempenhar Eacute a missatildeo de abrir novas perspectivas para o diaacutelogo tentando assim chegar a uma ldquoreformardquo diferente da do passado que culminou com a divisatildeo no seio da Cristandade ocidental Tal missatildeo se exerceraacute em harmonia com o pleno ofiacutecio de testemunho da Igreja que tira seu direito e sua forccedila da presenccedila do Espiacuterito e de Cristo presente em todos os tempos Pois ele eacute sempre o Cristo de agora com a plenitude de seus direitos e de seus poderes Ele eacute quem daacute legitimidade e vigor ao testemunho singular e definitivo da Escritura que por sua vez encontra seu pleno sentido na singularidade da accedilatildeo histoacuterico-salviacutefica de Jesus Cristo Ele deu ao Pai seu Corpo crucificado e dando-se a si mesmo santificou para sempre os que o receberam (cf Hb 1014 727) Ele eacute o Cristo ontem hoje e sempre (Hb 138)

SEGUNDA PARTE

Explicaccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo segundo o Decreto do Conciacutelio de Trento

Parece que a completa elucidaccedilatildeo das razotildees que levaram agrave substituiccedilatildeo do

partim-partim pelo et e consequumlentemente agrave pesquisa dos dados do debate tridentino e de sua preacute-histoacuteria aparentemente favoraacutevel agrave suficiecircncia material da Escritura [40] simplifica indevidamente este problema fazendo-nos perder de vista os proacuteprios antecedentes do Decreto do Conciacutelio de Trento

1 A concepccedilatildeo pneumatoloacutegica da Tradiccedilatildeo no esquema fundamental do Cardeal Cervini

a) O conteuacutedo Um balanccedilo histoacuterico e detalhado do problema em seu conjunto exigiria uma

pesquisa exaustiva que natildeo reduzisse o seu acircmbito como o fez Geiselmann em seu livro25 Natildeo eacute nossa intenccedilatildeo proceder a um exame minucioso do assunto no presente trabalho Aqui soacute seratildeo tratados alguns pontos do debate tridentino com o fim de ampliarmos mais o horizonte de nossas reflexotildees

Fundamental para a compreensatildeo dos debates em pauta bem como do Decreto definitivo do Conciacutelio parece-me ser o Discurso do Cardeal Legado Cervini datado de 18 de fevereiro de 1546 [41] cujas linhas gerais se patenteiam tanto no Decreto como em outras decisotildees conciliares26

Tem o discurso de Cervini o meacuterito de mostrar as linhas diretrizes do Decreto de maneira mais clara do que aparecem estas na uacuteltima redaccedilatildeo do mesmo onde elas se diluem muito devido a uma seacuterie de variadas implicaccedilotildees Eacute ainda de grande auxiacutelio para o entendimento do referido discurso uma carta dos Cardeais Legados ao Cardeal Alexandre Farnese de 28 de fevereiro de 1546 Esta carta revela conteuacutedo idecircntico ndash eacute certamente inspirada pelo mesmo Cervini ndash e oferece ainda alguns outros

25 Eacute lamentaacutevel que Geiselmann em sua anaacutelise da contribuiccedilatildeo medieval sobre este assunto se tenha apoiado apenas em argumentos de segunda matildeo portanto de valor histoacuterico discutiacutevel Queira o leitor ver minhas observaccedilotildees a este respeito in Theol-prakt Quartalschrift 1963 p224-227 As novas (e temperamentais) invectivas de Geiselmann in TThQu 144 (1964) p 31-69 em nada modificaram a minha posiccedilatildeo de vez que natildeo trazem nenhuma contribuiccedilatildeo vaacutelida ao assunto Precioso ao contraacuterio eacute o trabalho de Y CONGAR La Tradition et les traditionshellip Essai historique Paris 1960 Importante eacute tambeacutem a obra de J BEUMER Die muumlndliche uumlberlieferung als Glaubensquelle Friburgo 1962 A respeito do Conciacutelio de Trento cf sobretudo aleacutem do estudo fundamental de JEDIN o artigo de E ORTIGUES Escriture et Traditions apostoliques au Concilie de Trente in RSR 36 (1949) p 271-299 K D SCHMIDT Studien zur Geschichate des Konzilis von Trient Tubinga 1925 p 152-209 26 O discurso nos foi transmitido em duas redaccedilotildees A primeira mais curta encontra-se nas Atas do Conciacutelio in CT V 11 A segunda faz parte do diaacuterio de Massarelli (Diarium III) in CT I p484 Quanto ao conteuacutedo os dois textos se completam Na anaacutelise que aqui ensaiamos as duas versotildees satildeo comparadas entre si de modo a fazerem um todo Sobre a posiccedilatildeo de Cervini no Conciacutelio cf H JEDIN Geschichte des Konzils von Trient II Friburgo 1957 p38-40 A descriccedilatildeo do desenrolar histoacuterico dos debates acha-se em JEDIN op cit p42-82 e supomo-la conhecida do leitor de vez que serve de base para a anaacutelise teoloacutegica do Decreto tridentino

esclarecimentos Cervini sustenta no citado discurso que existem trecircs princiacutepios e fundamentos de nossa feacute

1) Os livros sagrados escritos sob a inspiraccedilatildeo do Espiacuterito Santo 2) O Evangelho que Nosso Senhor natildeo escreveu mas ensinou oralmente e

implantou nos coraccedilotildees Parte do Evangelho foi escrita mais tarde pelos Evangelistas enquanto muita coisa foi simplesmente confiada aos coraccedilotildees dos fieacuteis

3) Porque o Filho de Deus natildeo ia permanecer sempre entre noacutes enviou ele o Espiacuterito Santo que haveria de revelar os misteacuterios no iacutentimo dos fieacuteis e de ensinar agrave Igreja toda a verdade ateacute ao fim dos tempos27

[43] Numa segunda redaccedilatildeo mais detalhada do discurso estas mesmas ideacuteias satildeo

desenvolvidas mais amplamente Aiacute lemos que a Revelaccedilatildeo se apresentou de modo diferente em diversos tempos

1) Nos Patriarcas cuja feacute eacute atestada na Escritura a que chamamos de Antigo Testamento

2) Em Jesus Cristo que implantou o seu Evangelho natildeo por escrito mas oralmente natildeo in charta mas in corde Das coisas que emanaram de Cristo (quaelig a Cristo emanarunt) algumas foram escritas outras permaneceram nos coraccedilotildees dos homens (quaeligdam in cordibus hominum relicta fuerunt) Todo o Evangelho de Cristo que consta desta dupla modalidade forma (tendo como primeiro princiacutepio o Antigo Testamento) o secundum prindipium fidei nostraelig

3) Daiacute surge o terceiro princiacutepio (tertium autem) porque o Filho de Deus natildeo iria permanecer sempre entre noacutes enviou ele ao mundo o Espiacuterito Santo que haveria de explicar os misteacuterios de Deus e tudo o que fosse ainda obscuro para os homens28 De modo semelhante a citada carta ao Cardeal Farnese fala de dois passos (due

passi) Um eacute que a Revelaccedilatildeo de Nosso Senhor natildeo foi totalmente escrita mas permaneceu em parte contida nos coraccedilotildees dos homens e na Tradiccedilatildeo da Igreja O outro [43] passo consiste em confirmar ldquoquello che egrave suggerito lo Spirito Santo in la Chiesa maxime medianti i concilij doppo lAscensione in cielo del Signorerdquo29

Notamos logo que contrariamente ao que esperaacutevamos natildeo dois mas trecircs satildeo os princiacutepios apontados a Escritura o Evangelho e a Revelaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

27 CT V 11 helliptria esse principia et fundamenta nostrae fidei primum libros sacros secundum esse evangelium quod Christus Dominus Noster non scripsit sed ore docuit et in cordibus illud plantavit cujus evangelii nonnulla evangelistaelig scripto mandarunt multa quoque relicta sunt in cordibus hominum Tertium quia non semper filius Dei corporaliter nobiscum mansurus erat misit Spiritum Sanctum qui in cordibus fidelium secreta Dei revelaret et ecclesiam quotidie et usque consummationem saeligculi doceret omnem veritatem et si quid in mentibus hominum dubii occurrisset declararet 28 CT I 484 Digna de nota eacute ainda a foacutermula contida na paacutegina 48514-16 nihil tamen inter scripturas sacras et apostolicas traditianes differt illaelig enim scriptaelig hae per insinuationem habentur utraeque tamen a Spiritu Sancto eodem modo emanataelig Confira-se com CT V 11 19 ab eodem Spiritu et illos (scilicet libros) et istas (scilicet traditiones) descendisse 29 CT X 373

Eacute portanto necessaacuterio observar que sob o termo ldquoEscriturardquo se entende o Antigo Testamento e que aleacutem deste (que eacute Escritura em sentido proacuteprio) aparece como segundo princiacutepio o Evangelho apresentaccedilatildeo do Cristo-evento O Evangelho por sua vez abrange o que estaacute escrito e o que natildeo estaacute escrito mas sim apenas insculpido no coraccedilatildeo dos crentes Deste modo o segundo princiacutepio representa uma vantagem pneumaacutetica sobre o que estaacute escrito o Evangelho eacute nesta concepccedilatildeo algo diferente da letra (Escritura) e soacute em parte vem escrito (Isto natildeo deve ser entendido no sentido de divisatildeo das verdades da feacute fenocircmeno denunciado ldquocom horrorrdquo por Geiselmann Ao contraacuterio Entenda-se apenas no sentido de diferente grau de dignidade no modo de exprimir-se) Em rigor o Evangelho como tal soacute pode ser escrito em parte se considerarmos a sua essecircncia

Finalmente ndash o que eacute muito de se admirar ndash segue-se como terceiro princiacutepio a accedilatildeo visiacutevel do Espiacuterito Santo em todo o tempo da Igreja

Admitimos portanto que o que noacutes geralmente chamamos de Tradiccedilatildeo natildeo aparece aqui como um soacute princiacutepio Biparte-se antes em dois princiacutepios intimamente ligados o ldquoEvangelhordquo princiacutepio apenas em parte identificaacutevel com a Escritura e a accedilatildeo do Espiacuterito Santo no tempo da Igreja Ademais podemos observar que a Escritura do Novo Testamento natildeo aparece como um princiacutepio ao lado da Revelaccedilatildeo apostoacutelica Muito menos como [44] eacute o nosso caso se apresenta a Escritura neotestamentaacuteria juntamente com a veterotestamentaacuteria como uma grandeza uacutenica uma ldquoEscriturardquo soacute agrave qual se poderia contrapor a ldquoTradiccedilatildeordquo como uma segunda grandeza O Novo Testamento em seu conjunto aparece como um segundo e mais amplo princiacutepio ou seja o Evangelho que como tal se opotildee de um lado ao Antigo Testamento e de outro agrave projeccedilatildeo histoacuterica do tempo da Igreja Sua unidade interna eacute evidentemente mais forte e importante do que a sua divisatildeo em escrito e natildeo-escrito Assim o Evangelho como um soacute princiacutepio pode ser contraposto ao Antigo Testamento a despeito desta dupla formalidade A impossibilidade de se representar o Novo Testamento como Escritura impossibilidade esta demonstrada por Satildeo Paulo e pelos primeiros seacuteculos cristatildeos eacute aqui claramente revelada

Ainda uma observaccedilatildeo relativa ao texto a que vimos nos referindo Em nenhum dos dois pontos por noacutes citados no estudo da Tradiccedilatildeo isto eacute nem no elemento contido no primeiro nem no apresentado no terceiro princiacutepio figura a Tradiccedilatildeo como verbal Em ambos os casos ao contraacuterio trata-se mais da Tradiccedilatildeo real com prevalecircncia da realidade sobre as palavras que a atestam Este fato que estaacute claro no terceiro princiacutepio o pneumatoloacutegico vale tambeacutem em relaccedilatildeo agrave implantaccedilatildeo do Evangelho nos coraccedilotildees contida no segundo princiacutepio Tal implantaccedilatildeo vai muito aleacutem do que se encontra expresso na letra da Escritura

Que papel tenham estas ideacuteias exercido nas discussotildees do Conciacutelio pode-se concluir tambeacutem das auctoritates citadas por Cervini entre as quais figuram Jo 16 12 (hellipSpiritus Sanctus suggerethellip) e Fl 3 15 (Quicumque perfecti sumus haeligc sentiamus et si quid aliter sentitis haeligc quoque Deus vobis revelabit) Ambos estes textos satildeo de teor acentuadamente [45] pneumatoloacutegico-presencial30 Que tais ideacuteias natildeo eram

30 CT V 14 e 15 Um exame profundo das auctoritates quer da Escritura quer entre os Santos Padres que neste particular satildeo favoraacuteveis agrave Tradiccedilatildeo seria em si conclusivo para a elaboraccedilatildeo do conceito

estranhas aos Padres conciliares deduz-se ainda de uma seacuterie de outras referecircncias Assim ouvimos o Bispo de Aqui dizer que aleacutem da Sagrada Escritura existe muita coisa na Igreja de Deus que vindo dos Apoacutestolos e passando de geraccedilatildeo a geraccedilatildeo chegou ateacute noacutes assim como muitas outras quaelig etsi scripta Apostoli nobis non reliquerunt per Spiritus Sancti revelationem nobis (tradita) sunt (Tradita estaacute aqui por revelata) 31 Partindo daiacute se poderia descrever a Tradiccedilatildeo justamente como o componente pneumatoloacutegico do Cristo-evento b) A influecircncia do esquema de Cervini em diversas decisotildees conciliares

Eacute verdade que esta concepccedilatildeo tripartida aparece muito atenuada no Decreto

oficial sobre a Tradiccedilatildeo Que poreacutem em suas linhas fundamentais natildeo tenha ela sido de modo nenhum [46] abandonada mostram-no duas outras passagens nas quais o Conciacutelio faz uso por assim dizer in actu das ideacuteias aqui expressas32 Assim na Introduccedilatildeo ao Decreto sobre a Eucaristia (Denz 873) se lecirc Sacrosancta Synodus sanamhellipdoctrinam tradens quam semper catholica Ecclesia ab ipso Jesu Christo Domino Nostro et eius apostolis erudita atque a Spiritu Sancto illi omnem veritatem in dies suggerente (Jo 1416) edocta retinuithellip

Aqui a accedilatildeo proacutepria do Conciacutelio eacute descrita como tradere e a este tradere eacute atribuiacutedo um duplo fundamento De um lado o ensino de Jesus e dos Apoacutestolos (Note-se que este ponto corresponde ao Evangelho segundo a concepccedilatildeo de Cervini E de certo modo tambeacutem pela citaccedilatildeo de Jesus e dos Apoacutestolos se reconhece a dupla modalidade do Evangelho como escrito e como inserido nos coraccedilotildees) De outro lado o ensino dado pelo Espiacuterito Santo que conduz agrave verdade in dies isto eacute no de correr do tempo futuro

O outro texto que pode ser aduzido aqui como prova do que afirmamos encontra-se no Preacircmbulo do Decreto sobre o Purgatoacuterio (Denz 983) Aiacute se lecirc hellipCatholica Ecclesia Spiritu Sancto edocta ex Sacris Litteris et antiqua Patrum traditione in sacris Conciliis et novissime in hac Synodo docuerit A descriccedilatildeo da accedilatildeo proacutepria do

aqui exposto H HOLSTEIN procurou fazer o cotejo destas auctoritates e fecirc-lo de modo admiraacutevel em seu artigo La Tradition dapregraves le Concile de Trente (RSR 47 1959 p367-390 e em particular para o caso em questatildeo a p375) Ele encontra nos textos estudados duas linhas de tendecircncias A linha de Santo Irineu para a qual o testemunho dos Apoacutestolos eacute o de sua personalidade de sua vida e de seu ofiacutecio Aleacutem desta o grupo composto de Tertuliano Cipriano Basiacutelio e Agostinho forma uma corrente que se poderia denominar ldquocerimonialrdquo Oriacutegenes se enquadra em ambos os grupos Existe entre os autores estudados uma seacuterie de textos que se referem agraves observationes consuetudines institutiones e que levam a entender-se a Tradiccedilatildeo neste mesmo sentido Aiacute se vecircem tambeacutem textos que sublinham o aspecto natildeo-escrito do Evangelho enquanto insculpido no coraccedilatildeo dos fieacuteis e aleacutem disso textos que apontam a Igreja como o ldquolugarrdquo da verdade cristatilde 31 CT I 483 (18 de fevereiro de 1546) Em 26 de fevereiro (CT V 18) encontramos Cervini a tratar de novo deste assunto Cf tambeacutem um pronunciamento do Bispo de Fano (CT V 10) nestes termos Cum jam receperimus Scripturas Sacras necessario recipiendaelig sunt traditiones quaelig ab eodem Spiritu Sancto quo scripturaelig dictataelig sunthellip 32 Disto me adverti pela primeira vez atraveacutes de um estudo realizado sob a minha orientaccedilatildeo por CHR LIMBACR a quem sou devedor de muitas informaccedilotildees bibliograacuteficas

Conciacutelio como tradere encontra-se ainda nas declaraccedilotildees sobre o Sacramento da Extrema-Unccedilatildeo (Denz 910)

Finalmente a triacuteplice divisatildeo deixa-se insinuar nas entrelinhas do Decreto sobre a Tradiccedilatildeo embora obscurecida e diluiacuteda por uma seacuterie de acreacutescimos e citaccedilotildees a ele adicionados por outros motivos O Decreto da Tradiccedilatildeo com efeito [47]

1) Fala do Evangelho prometido pelos Profetas na Escritura e refere-se a esta em sentido estrito quer antes quer depois do Antigo Testamento

2) Fala da promulgaccedilatildeo por Cristo do Evangelho que foi transmitido pelos Apoacutestolos sob dupla forma oral e escrita Desta maneira o que natildeo ocorre no exemplo de Cervini aparece aqui antes de tudo o componente pneumatoloacutegico unido com o componente apostoacutelico a ponto de se distinguirem duas modalidades de Tradiccedilatildeo apostoacutelica a que remonta a Cristo e a que remonta ao envio do Espiacuterito Santo Pode-se assim estabelecer que em oposiccedilatildeo ao esquema de Cervini haacute um certo processo de historicizaccedilatildeo que salienta a relaccedilatildeo com o comeccedilo histoacuterico e igualmente parece deslocar o acento da tradiccedilatildeo real para a verbal

3) No epiacutelogo desta parte do Decreto da Tradiccedilatildeo que vimos analisando de novo eacute considerada a ideacuteia da Sagrada Escritura O conceito de Tradiccedilatildeo eacute entatildeo formulado em definitivo e descrito como vel oretenus a Christo vel a Spiritu Sancto dictatas et continua successione in Ecclesia catholica conservatas A referecircncia aos Apoacutestolos eacute omitida Pode-se na verdade considerar tudo isto como uma volta ao que foi dito antes Evidentemente a tradiccedilatildeo ditada pelos Apoacutestolos eacute citada de novo (A expressatildeo continua successione insinua-o) Contudo permanece sempre ainda certa indeterminaccedilatildeo ficando aberta a possibilidade de se encontrar aqui o vestiacutegio do terceiro componente de Cervini o princiacutepio pneumaacutetico propriamente dito Eacute tambeacutem claro que esta ideacuteia eacute discreta sendo adotada uma posiccedilatildeo mais acentuadamente histoacuterica Se agora lanccedilarmos os olhos sobre o que vimos considerando ateacute aqui surgiratildeo

inevitavelmente perguntas qual eacute realmente o sentido proacuteprio da concepccedilatildeo pneumatoloacutegica Como poderia ser perfeitamente entendida a ideacuteia a noacutes estranha de uma revelatio prolongada no tempo em face da unicidade e do caraacuteter [48] histoacuterico da Revelaccedilatildeo que evidentemente era conhecido tanto de Cervini quanto dos Santos Padres e teoacutelogos medievais33

Antes de examinarmos isto devemos esclarecer rapidamente os principais motivos que inspiraram o Decreto tridentino sobre a Escritura e a Tradiccedilatildeo deixando nele um tanto encoberta a concepccedilatildeo pessoal de Cervini Que opiniotildees de teoacutelogos teratildeo intervindo aqui chegando a ser em parte impressas no texto definitivo que resultou do cotejo de muitos pronunciamentos diversos Uma exposiccedilatildeo detalhada deste ponto exorbitaria do acircmbito de nossa anaacutelise Contentemo-nos com umas poucas observaccedilotildees sumaacuterias 33 Sobre este assunto tentei fazer um breve comentaacuterio no meu trabalho ldquoOffenbarung-Schrift-Uberlieferungrdquo in TThZ 67 (1958) p13-27 Cf J BEUMER ldquoDer theoretische Beitrag der Frnhscholastik zum Problem des Dogmenfortschrittsrdquo in ZkTh 72 (1952) p205-226 J de CHELLINCK Pour lrsquohistoire du mot ldquorevelarerdquo in RSR 6 (1916) p149-157

2 Relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a vida da Igreja

em diversas passagens do debate tridentino

Uma primeira seacuterie de motivos entre os quais se compreendem diversos pronunciamentos agraves vezes muito contrastantes em seu aparato exterior patenteia-se na ideacuteia de tradiccedilotildees expressa no Decreto de duas maneiras a) - per manus traditaelig ad nos usque pervenerunt b) - continua successione in Ecclesia catholico conservatas

O que se ocultaraacute sob estas duas foacutermulas que o historiador de hoje tem dificuldades em aceitar justamente por causa do historicismo nelas impliacutecito Podemos dizer que um decisivo papel exerceu aqui o pensamento que sempre aparecia nos debates a saber que as tradiccedilotildees satildeo variaacuteveis que muitas delas foram abolidas pelos Apoacutestolos e que por outro lado se [49] introduziram tradiccedilotildees eclesiaacutesticas que natildeo mais seriam abolidas34 Esta ideacuteia de Tradiccedilatildeo de certo modo se torna clara no tratado escrito sobre o mesmo assunto por Seripando para uso dos Padres Conciliares Seripando fala das Tradiccedilotildees escritas inseridas na Escritura como as claacuteusulas de Tiago o costume de as mulheres se cobrirem com um veacuteu a legislaccedilatildeo sobre o matrimocircnio contida em 1Cor 7 etc E o autor adverte que estas praacuteticas foram abolidas Isto porque embora associadas agrave palavra de Deus na Escritura dela ldquomuito diferemrdquo pois a palavra divina [50] de modo nenhum poderia ser abolida A estas tradiccedilotildees

34 Cabe aqui aduzir uma nova intervenccedilatildeo de Cervini datada de 26 de fevereiro de 1546 (CT I 33 e V 18) onde ele diz que nem todas as tradiccedilotildees procedentes dos Apoacutestolos devem ser conservadas mas somente as que ab Ecclesia receptaelig ad nos usque pervenerunt (V 18) Esta afirmaccedilatildeo anterior agrave formulaccedilatildeo dogmaacutetica feita pelo Concilio deve igualmente ser tida na conta de um autecircntico comentaacuterio do Decreto Aiacute se acentua como condiccedilatildeo essencial das tradiccedilotildees a receptio ecclesiaelig Vem ainda referida uma intervenccedilatildeo do Bispo de Bertinoro em data de 23 de marccedilo (I p 523) na qual ele sublinha que as tradiccedilotildees escritas por vezes foram mudadas Jaacute entre as natildeo-escritas umas foram mudadas e outras natildeo como por exemplo o rito de adicionar aacutegua ao vinho a Crisma a confissatildeo auricular O Bispo de Bertinoro acrescenta que por outro lado alguns pontos existem que permaneceram inteiramente inalterados tais como a crenccedila no descensus ad inferos na virgindade perpeacutetua de Maria a substituiccedilatildeo da observacircncia do saacutebado pela do domingo Temos depois um pronunciamento do Bispo de Bitonto datado de 27 de marccedilo (I 39) Este bispo era de parecer que algumas coisas foram transmitidas pelos Apoacutestolos com a finalidade de serem perpetuamente conservadas (como pertencentes ao depoacutesito da feacute) outras caiacuteram em desuso (como as claacuteusulas de Tiago) e outras enfim foram apenas aconselhadas Assim mesmo na Escritura algumas coisas haacute que foram escritas mas natildeo recebidas em uso por serem mateacuteria de mero conselho Por exemplo ldquose algueacutem te pedir a tuacutenica daacute-lhe tambeacutem o paacutelio se algueacutem te esbofetear numa face oferece-lhe tambeacutem a outrardquo Sem duacutevida excelente ilustraccedilatildeo do sermatildeo da montanha Finalmente consideraccedilotildees idecircnticas podemos encontrar na obra citada de LEJAY Eis outra amostra tirada do discurso de 23 de fevereiro (CT V 13) Nam illaelig (scil traditiones) quaelig ad fidem pertinent eadem sunt recipiendaelig auctoritate qua recipitur evangelium alia autem non ita eum earum plurimaelig immutataelig fuerint ut de bigamis de esu sanguinis et similia De modo semelhante aliaacutes fala tambeacutem Bonuccio (I 525 a 23 de marccedilo de 1546 ecclesia traditiones apostolorum quandoque mutavit verbum autem Dei nunquam mutavit neque mutare potest

Seripando opotildee as natildeo referidas na Biacuteblia e que ora satildeo apostoacutelicas ou oriundas de Conciacutelios universais e aceitas por toda a Igreja ora satildeo particulares e muito variaacuteveis35

Este texto nos leva a uma surpreendente conclusatildeo para Seripando e muitos outros Padres tridentinos36existem tradiccedilotildees na Escritura ldquoTradiccedilatildeordquo natildeo significa o natildeo-escrito Existe quer dentro da Escritura quer fora dela Isto nos conduz a outra pergunta em que consiste para os referidos Padres a essecircncia da tradiccedilatildeo se o que a constitui natildeo eacute o fato de natildeo ser escrita37 Em outros termos como pode a tradiccedilatildeo ser definida positivamente se ela natildeo pode ser suficientemente determinada pela ideacuteia negativa de algo natildeo-escrito

Haacute uma seacuterie de respostas para esta pergunta O proacuteprio Seripando daacute a seguinte definiccedilatildeo Traditiones hoc est Apostolorum seu sanctorum Patrum sanctae et salutares constitutiones38 Mais clara ainda eacute a afirmaccedilatildeo de Cervini citada por Massarelli A objeccedilatildeo do Bispo de Chioggia que aduzia a opiniatildeo de Agostinho de que tudo o que eacute necessaacuterio para a salvaccedilatildeo estava escrito na Biacuteblia respondia Cervini da seguinte maneira Verba illa (isto eacute de Santo Agostinho) formaliter intelligi debent scilicet ad fidem accipiendam ut salvi fiamus Quo vero ad mores et christianam vitam instituendam certo non omnia scripta sunt

[51] E de novo recorre agraves provas tiradas de Jo 1526 e 1426 E indica o princiacutepio pneumatoloacutegico39 O que eacute mais importante eacute que a Tradiccedilatildeo se refere agrave institutio vitaelig agrave presenccedila atuante da Palavra revelada na existecircncia cristatilde Tradiccedilatildeo eacute noutros termos a eficaacutecia da palavra de Deus Sem ela a palavra ficaria esteacuteril 35 Seripando De traditionibus (fevereiro ou marccedilo de 1546) CT XII p517-521 e principalmente a p 521 As expressotildees desta uacuteltima paacutegina chocam-se com a ideacuteia de Cervini sobre a receptio ecclesiaelig 36 Cf o texto citado na nota 11 37 No texto definitivo do Decreto esta ideacuteia natildeo aparece mais Aqui poreacutem com esta primeira designaccedilatildeo expliacutecita da Tradiccedilatildeo vem expressamente acentuado o contraste entre in libris scriptis et sine scripto traditionibus Na segunda redaccedilatildeo o sentido expliacutecito da palavra Tradiccedilatildeo natildeo eacute tatildeo exclusivo Contudo apresenta igual matiz ao se confrontarem as expressotildees omnes libroshellipnec non traditiones ipsas Portanto a ideacuteia positiva da Tradiccedilatildeo que serve de base a esta anaacutelise natildeo deixou de influenciar na redaccedilatildeo do Decreto 38 CT XII 517 39 CT I 494 (26 de fevereiro de 1546) A citada palavra de Santo Agostinho teve o seu papel a desempenhar na discussatildeo em curso Seripando por exemplo a ela se referiu (De traditionibus CT XII 521 47-53) Pensandum denique ne in traditionibus externis vera religio et salutis spes statuatur de quibus Augustinus Omnia quaelig pertinent ad veram religionem quaeligrendam et tenendam divina Scriptura non acuit Conceda-se que nem tudo foi escrito (veja-se Jo 2125) Todavia electa sunt autem quaelig scriberentur quaelig saluti credentium sufficere videbantur Mais do que nos debates do tridentino encontramos aqui um verdadeiro postulado dos Reformadores ldquonatildeo adotar costumes exteriores mas buscar os meios definitivos de salvaccedilatildeo na palavra da Escriturardquo A ldquosuficiecircnciardquo da Escritura de que aqui se fala eacute na verdade algo diverso da suficiecircncia material da mesma Escritura defendida por Geiselmann em sentido muito mais radical Infelizmente ainda natildeo se quis levar na devida consideraccedilatildeo o texto de Santo Agostinho (CT I 494 sugere De doctrina christiana II 9 e De pecc mero et rem II 59) Muito apropriadas nesta ordem de ideacuteias satildeo as observaccedilotildees de H SCHAUF ldquoSchrift und Traditionrdquo in Antonianum 39 (1964) p200-209 feitas no chamado Encontro de Duumlsseldorf Nos textos citados por Schauf com base em Agostinho eacute afirmada a suficiecircncia da Escritura para a salvaccedilatildeo Eacute contudo contestada a sua suficiecircncia para a Igreja em geral De fato esta alternativa parece muito mais vaacutelida e fundamental agrave luz dos postulados dos Reformadores do que a alternativa entre a suficiecircncia ou insuficiecircncia material da Escritura

Na mesma linha de ideacuteias seguem-se duas outras seacuteries de pronunciamentos Vimos na introduccedilatildeo agrave parte anterior que a discussatildeo dogmaacutetica da ideacuteia de

Tradiccedilatildeo foi em parte prejudicada pela questatildeo do meacutetodo a seguir no Conciacutelio dever-se-ia abordar primeiro a reformatio a reforma praacutetica da Igreja como queria o ldquoKaiserrdquo Ou primeiro discutir a questatildeo dogmaacutetica como preferia o Papa40

[52] Este problema do meacutetodo embora resolvido no debate que entatildeo surgiu natildeo afetou diretamente a questatildeo da Tradiccedilatildeo como tal Mas como de fato estas duas questotildees ficaram ligadas entre si daiacute resultou que muitos oradores transformaram a questatildeo do meacutetodo (se se deveria falar dos abusos ou da Tradiccedilatildeo) em parte de sua argumentaccedilatildeo em torno do assunto em pauta41 O problema abusus e o problema Traditio ficaram de tal maneira associados na ocasiatildeo que pareciam formar no fundo um soacute assunto Por isso os oradores ora falavam em sentido positivo ora se pronunciavam em sentido negativo Isto correspondia tambeacutem ao propoacutesito reformista do Conciacutelio as traditiones representavam os abusus aos quais a Igreja se opunha Os Padres estavam cocircnscios de que condenar as traditiones era condenar Os usus ecclesiaelig o modo como a Igreja vivia a sua vida naquela eacutepoca

A outra seacuterie de pronunciamentos que se inclinavam ao mesmo sentido encontramo-la nas proposiccedilotildees que a auctoritas da Igreja apresenta como definitivas indicando uma iacutentima relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a institutio christiana 42

[53] Podemos agora retomar ao nosso ponto de partida e dar resposta agrave pergunta que propriamente significa a foacutermula ad nos usque pervenerunt Objetivamente natildeo se trata aqui de um historicismo que a foacutermula parece expressar Ao contraacuterio Trata-se da fidelidade perseverante da Igreja agrave institutio vitaelig christianaelig da legiacutetima forma de vida cristatilde em concreto no tempo presente da Igreja da institutio christiana que coloca a Escritura em primeiro lugar e que como tal isto eacute como vida decorrente da Escritura eacute fundamentalmente apostoacutelica embora tambeacutem sujeita a mudanccedilas como tudo o que eacute vivo

3 A Tradiccedilatildeo e o dogma eclesiaacutestico

40 Sobre o debate em torno da questatildeo do meacutetodo cf mais uma vez JEDIN op cit p9-82 e outras 41 Assim jaacute no discurso de Cervini antes analisado (CT I 484) no qual ele recorda o dilema do Conciacutelio se nos voltarmos contra as tradiccedilotildees ficaratildeo admirados os Padres Conciliares quasi reformationem fugiamus si ipsam reformationem sumimus iterum objicient traditiones relinquendas non esse Idecircntica era a situaccedilatildeo em que se encontrava o Bispo de Astorga nas duas intervenccedilotildees que fez no dia 23 de fevereiro de 1546 (CT V 13 e 19) segundo Seripando (I 484) helliptraditiones prius pertractandas consulit tantam enim conformitatem abusus qui ex sacris libris descendunt cum iis qui a traditionibus orti sunt habent ut sacris libris et traditionibus absolutis duo illa abusuum genera simul pertractari valeant Segundo Bonuccio (I 484) antes de tudo dever-se-ia tratar das Sagradas Escrituras dos cacircnones apostoacutelicos dos Conciacutelios gerais e das decretais pontifiacutecias Hisque ilusceptis ad abusus ex eisdem dependentes devenire 42 Assim principalmente de acordo com Afonso de Castro (CT I 484) Quoniam ultra traditiones apostolicas ecclesiae auctoritatem habemus quaelig ecclesiaelig auctoritas tonta apud nos est ut aliqui eam maioris roboris quam sacros libros esse sentiant Cf igualmente CT I 491 45 Na mesma linha pode-se ver uma seacuterie de pronunciamentos na citada obra de LEJAY Cf CT XII 524 (Tratado De traditionibus ecclesiaelig fevereiro ou marccedilo de 1546)

Uma segunda seacuterie de motivos eacute expressa no Decreto pela foacutermula traditiones tum ad fidem tum ad mores pertinentes Se como vimos a ideacuteia de Tradiccedilatildeo aparece muito limitada naquilo que os Padres conciliares chamam consuetudines observationes institutiones por outro lado o Procurador do Cardeal de Augsburgo Claudio Lejay SJ se fez o porta-voz de uma expressatildeo que em oposiccedilatildeo agraves traditiones caeligremoniales estabeleceu justamente o sentido da tradiccedilatildeo contida na feacute Seu tratado sobre a Tradiccedilatildeo composto para uso dos Padres conciliares inclui tambeacutem a foacutermula que foi adotada pelo Conciacutelio Aiacute se diz Denique multas veritates tum ad fidem tum ad mores pertinentes Ecclesia novit quas Scriptura aperte et expresse non continet Ele cita como exemplos as palavras persona essentia trinitas no Tratado da Santiacutessima Trindade consubstantialitas na Cristologia do Logos duas naturezas uma soacute Pessoa referentes ao dogma definido pelo Conciacutelio de Calcedocircnia E ainda Cristo Filho uacutenico de Maria duas vontades na uacutenica Pessoa de Cristo uma alma racional aleacutem do espiacuterito divino em Cristo Ana matildee de Maria o costume de fazer sinais da cruz a santificaccedilatildeo do domingo a maneira de rezar com face voltada [54] para o Oriente tudo isto ideacuteias e fatos da tradiccedilatildeo conciliar e da piedade cristatilde43

Cervini que aprovou o discurso de Lejay de 23 de fevereiro de 154644 pocircde dificilmente conciliar esta posiccedilatildeo com a sua expressa na jaacute citada carta ao Cardeal Farnese onde como vimos ele diz que o Espiacuterito Santo falou na Igreja e depois da Ascensatildeo do Senhor fala ainda maxime medianti i concilii45 Ele aiacute viu publicamente sublinhado o fato de que aquele ldquomaisrdquo que a Igreja viva representa em relaccedilatildeo agrave palavra meramente escrita natildeo se referia e natildeo se refere apenas agrave vita instituenda ou como ele prefere agrave caeligremonialia Refere-se tambeacutem agrave essentialia fidei que antes de tudo plenamente se expressam na Tradiccedilatildeo Tambeacutem aqui como se vecirc o interesse dominante natildeo estaacute na apresentaccedilatildeo historicista do assunto a partir do iniacutecio da Igreja mas na ideacuteia de que a influecircncia da Tradiccedilatildeo sobretudo atraveacutes da praxe conciliar eacute de fundamental importacircncia para a feacute para a doutrina crida e natildeo apenas para a piedade viva ou a caeligremonialia

4 O sentido do Decreto tridentino

Se recapitularmos o que ateacute agora dissemos veremos que no conjunto facilmente se podem reconhecer trecircs diferentes concepccedilotildees teoloacutegicas unidas entre si no texto definitivo do Decreto sobre a Tradiccedilatildeo Unidas mas natildeo equiparadas umas agraves outras Pelo contraacuterio apesar de sua grande diferenccedila foram elas apenas [55] mais ou menos justapostas e de novo por forccedila de uma tendecircncia comum relacionadas entre si

1 A concepccedilatildeo de Cervini que designamos como pneumatoloacutegica Com sua doutrina sobre os trecircs principia fidei insiste ele no caraacuteter dinacircmico do Cristo-evento

43 CT XII 523 LEJAY baseia-se evidentemente em listas de tradiccedilotildees confeccionadas naquele tempo (Cf ECK DRIEDO CANO BOTO NOGAROLA) Cf a este respeito Y CONGAR ldquoTraditions apostoliques non eacutecrites et suffisance de lEscrituresrdquo in Istina 6 (1959) p219-306 e principalmente a paacutegina 289 44 CT V 14 45 CT X 373

presente na Igreja Entende assim a Tradiccedilatildeo primariamente como a realidade espiritual da institutio vitaelig christianaelig

2 A concepccedilatildeo que podemos chamar de cerimonial Esta entende a Tradiccedilatildeo essencialmente como a seacuterie de consuetudines existentes ao lado da feacute como os usus ecclesiaelig que os Reformadores falsamente pretendem abolir como abusus Esta concepccedilatildeo chega a condenar a dignidade e Antiguumlidade apostoacutelica das tradiccedilotildees Sua ideacuteia eacute limitada pelo ad nos usque pervenerunt que inclui possibilidade de variar da parte das tradiccedilotildees donde a necessidade de reduccedilotildees Com os termos pervenire e conservare a recepccedilatildeo por parte da Igreja eacute considerada criteacuterio adicional ao lado da Antiguumlidade

3 A concepccedilatildeo que talvez possamos denominar dogmaacutetica Em oposiccedilatildeo agrave fixidez da ideacuteia de Tradiccedilatildeo reduzida agrave consuetudo salienta esta terceira hipoacutetese a extensatildeo do fenocircmeno Tradiccedilatildeo tambeacutem ao acircmbito da fides

Estas trecircs concepccedilotildees deram forma ao texto do Decreto de tal modo que as suas

linhas mestras derivam de Cervini e todo o texto deve ser entendido agrave luz de suas ideacuteias Contudo em duas passagens isto eacute no pervenerunt e no conservatas haacute influecircncia da segunda concepccedilatildeo enquanto no tum ad fidem tum ad mores haacute influecircncia da terceira

Em face destas trecircs concepccedilotildees das quais na realidade existem diversas variantes que tomadas em conjunto satildeo a expressatildeo das ideacuteias dominantes adotadas aparecem as teses de Bonuccio e de Nacchianti tatildeo postas em evidecircncia por Geiselmann como sentenccedilas contraacuterias De fato o parecer de Bonuccio claramente [56] se opotildee agrave segunda concepccedilatildeo (contra a supervalorizaccedilatildeo das consuetudines natildeo per pietatis affectus) ao passo que Nacchianti se levanta antes contra a terceira posiccedilatildeo e salienta a suficiecircncia da feacute recebida por meio da Escritura46

Seria de notar-se ainda que as concepccedilotildees segunda e terceira tecircm algo em comum Ambas opotildeem agrave visatildeo pneumatoloacutegica de Cervini da salvaccedilatildeo sempre presente uma visatildeo mais historicista relacionada com o prolongamento da salvaccedilatildeo operada uma soacute vez ou seja o ἑφάπαξ Na realidade deve-se dizer que embora de um lado tanto a visatildeo presencial de Cervini como tambeacutem a visatildeo historicista do outro grupo se consideradas isoladamente cada qual de per si sejam perigosas se natildeo insustentaacuteveis 46 Aliaacutes de acordo com uma informaccedilatildeo de Cervini parece que o Bispo de Chioggia finalmente renunciou agrave sua tese da suficiecircncia da Escritura na qual se inclinava a recusar as tradiccedilotildees Na carta de Cervini ao Cardeal Farnese de 27 de fevereiro de 1546 lemos hellip Chioggia che (quasi quasi) voleva dire queste traditioni essere superflue perorando che tutto quello che era necessario alla salute era scritto et allegando etiam S Agostino sopra lultimo capitulo di S Giovanni a questo proposito Pure per non poter negare che molte cose appartenenti almeno alli sacramenti non ci fussero venute ex tra ditione et per consequente che non tutte le cose necessarie alia nostra salute erano scritte poiche ebbe fatte molte distintioni concluse che ancor lui accettava queste ldquoche in la chiesa fusse qualque traditione apostolica non scrittardquo (et con queste parole diceva che se ne facesse il decreto) credo che molti sono restati scandalizati di lui (CT X Nr 315 paacutegs 399 411) Cf tambeacutem CT I 494 nota 9 e 495 nota 2 CT V 18 nota 5 e 19 e nota 1 O mesmo protesto que aparece contra Nacchianti manifesta-se tambeacutem na observaccedilatildeo de Massarelli Este chega a chamar aquele de novarum rerum cupidus (1 494 18) e esclarece que reprehensus est a multis (1 494 22) Diante disto eacute de todo destituiacuteda de creacutedito a importacircncia que Geiselmann lhe atribui mesmo se abstrairmos de outras razotildees jaacute conhecidas sobre as quais natildeo precisamos insistir

de outro lado pelo menos tornam possiacutevel uma exata visatildeo do conjunto devido agrave sua muacutetua confluecircncia e limitaccedilatildeo No texto atual estatildeo presentes embora pouco nitidamente ambos os pontos de vista o elemento presencial e o ἑφάπαξ Conveacutem que entendamos assim o texto de modo a considerarmos [57] ambos estes aspectos como essenciais Consequumlentemente reconheceremos que ambos pertencem constitutivamente agrave realidade da vida cristatilde e portanto tambeacutem agravequela parcela do Cristianismo a que damos o nome de Tradiccedilatildeo Estes dois elementos satildeo a presenccedila do Espiacuterito Santo e o seu nexo com o fato singular da salvaccedilatildeo ocorrido uma soacute vez por todas na histoacuteria dos homens

Assim se acharaacute finalmente a resposta agrave pergunta de corno noacutes devemos entender o parecer do Conciacutelio de Trento A primeira e mais importante conclusatildeo parece-me ser o fato de o Conciacutelio ter visto muito claramente o nexo entre Tradiccedilatildeo e Revelaccedilatildeo A seguir elaborou sempre em consonacircncia com a tradiccedilatildeo patriacutestica e medieval um conceito de Revelaccedilatildeo muito menos material do que o que seraacute adotado mais tarde pela teologia dos tempos modernos Somente assim se deve conceber a ideacuteia da Revelaccedilatildeo do Espiacuterito Santo na Igreja Partindo do ramo nitidamente patriacutestico da teologia medieval tatildeo francamente acolhido no discurso de Cervini deveria ser muito menos categoacuterica a opiniatildeo que coloca o teacutermino da Revelaccedilatildeo na morte do uacuteltimo Apoacutestolo Naturalmente esta questatildeo natildeo pode ser aqui estudada com maiores detalhes A sua soluccedilatildeo como entatildeo se apresentava aos teoacutelogos poderia ser hoje impostada apelando-se para as categorias da teologia atual Segundo esta podemos dizer que a Revelaccedilatildeo estaacute encerrada do ponto de vista de seu princiacutepio material Todavia estaacute e continua presente em sua realidade eficaz Noutros termos a Revelaccedilatildeo tem eacute verdade o seu ἑφάπαξ enquanto ela se realizou num determinado dia na Histoacuteria Entretanto ela tem tambeacutem o seu ldquohojerdquo permanente isto eacute o que foi uma vez por todas realizado na feacute da Igreja permanece sempre vivo e operante Assim a feacute cristatilde natildeo se volta apenas para o passado Abrange tambeacutem o presente e o futuro Eacute verdade que a posterior materializaccedilatildeo historicista da ideacuteia de Revelaccedilatildeo aparece jaacute claramente insinuada nos debates tridentinos corno um fato previsto mas ainda [58] natildeo consumado embora talvez se possa dizer que nos textos conciliares ficou definitivamente consagrada a sua aceitaccedilatildeo

Finalmente acrescentemos ainda que com base nos debates do Conciacutelio podemos estabelecer quatro elementos da ideacuteia de Tradiccedilatildeo 1 O aspecto natildeo-escrito da Revelaccedilatildeo ou do Evangelho contido na Biacuteblia e no coraccedilatildeo dos fieacuteis 2 A palavra do Espiacuterito Santo no decorrer de todo o tempo da Igreja

3 A atividade da Igreja nos Conciacutelios 4 A Tradiccedilatildeo lituacutergica e a da vida da Igreja em geral Nestes quatro elementos

que se deve ter sob os olhos pois formam o fundo ideoloacutegico do Decreto expressa-se a realidade uacutenica do tempo presente da Igreja cristatilde Nele estaacute presente todo o passado poacutes-apostoacutelico da Igreja (inclusive o proacuteprio tempo dos apoacutestolos) de modo que toda a sua vida eacute na Sagrada Escritura um elemento central embora natildeo o uacutenico Em suma deve ter ficado claro que o Conciacutelio de Trento a despeito do caraacuteter contrastante e fixo de sua ideacuteia de Revelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeo oferece uma visatildeo muito mais rica destes conceitos do que a que impregnou a mentalidade dos seacuteculos seguintes Justamente por

isso a teologia de hoje pode retirar daiacute novos subsiacutedios novo apoio para suas pesquisas e novas indicaccedilotildees sobre o verdadeiro caminho a seguir

Quadro sinoacutetico do Decreto tridentino sobre a Tradiccedilatildeo

Primeiro princiacutepio conforme Cervini (AT = Escritura)

Sacrosancta œcumenica et generalis Tridentina Synodus in Spiritu Sancto legitime congregata [] hoc sibi perpetuo ante oculos proponens ut sublatis erroribus puritas ipsa EVANGELII in Ecclesia conservetur quod PROMISSUM ANTE PER PROPHETAS IN SCRIPTURIS SANCTIS

Segundo princiacutepio conforme Cervini o Evangelho em parte escrito em parte insculpido nos coraccedilotildees

[59] DOMINUS NOSTER IESUS CHRISTUS DEI FILIUS PROPRIO ORE PRIMUM PROMULGAVIT DEINDE PER SUOS APOSTOLOS TAMQUAM FONTEM OMNIS ET SALUTARIS VERITATIS ET MORUM DISCIPLINAE OMNI CREATURAE PRAEDICARI IUSSIT PERSPICIENSQUE HANC VERITATEM ET DISCIPLINAM CONTINERI IN LIBRIS SCRIPTIS ET SINE SCRIPTO TRADITIONIBUS QUAE AB IPSIUS CHRISTI ORE AB APOSTOLIS ACCEPTAE AUT AB IPSIS APOSTOLIS SPIRITU SANCTO DICTANTE

Seripando Cervini e outros soacute consideram as tradiccedilotildees recebidas pela Igrej (ldquoad nos usquerdquo)

quasi per manus traditae ad nos usque pervenerunt

orthodoxorum Patrum exempla secuta omnes libros tam Veteris quam Novi Testamenti cum utriusque unus Deus sit auctor nec non TRADITIONES IPSAS

Lejay Tradiccedilatildeo contendo natildeo soacute a ldquoconsuetudordquo mas relacionada tambeacutem com a ldquofidesrdquo (foacutermula conciliar)

tum ad fidem tum ad mores pertinentes

Terceiro princiacutepio de Cernini Depois da Ascenccedilatildeo de Cristo o Espiacuterito Santo ensina tambeacutem os misteacuterios de Deus

TAMQUAM VEL ORETENUS A CHRISTO VEL A SPIRITU SANCTO DICTATAS

Seripando Cervini etc soacute satildeo consideradas as coisas recebidas pela Igreja (como acima)

et continua successione in Ecclesia catholica conservatas

Cervini Escritura e Tradiccedilatildeo procedem ambas do mesmo Espiacuterito Santo

pari pietatis affectu ac reverentia suscipit ac veneratur

  • Prefaacutecio
  • SEGUNDA PARTE
  • Explicaccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo
  • segundo o Decreto do Conciacutelio de Trento
Page 13: Revelacao e Tradicao-Joseph Ratzinger (Bom Ler)

Joseph Ratzinger

EXAME DO PROBLEMA DO CONCEITO DE TRADICcedilAtildeO

PRIMEIRA PARTE

Revelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeo

Ensaio de anaacutelise do conceito de Tradiccedilatildeo

I ndash Posiccedilatildeo do Problema

[15] O modo como Cristo Palavra expressa da Revelaccedilatildeo permanece presente na Histoacuteria e vai ao encontro dos homens pertence agravequelas questotildees fundamentais em torno das quais se dividiu a Cristandade ocidental no seacuteculo da Reforma A luta prende-se agrave ideacuteia de ldquoTradiccedilatildeordquo pela qual a Igreja catoacutelica procurou exprimir certa forma de comunicaccedilatildeo da Revelaccedilatildeo ao lado da outra contida na Sagrada Escritura Isto com o fim de desfazer um duplo protesto A Tradiccedilatildeo designava primeiro as chamadas consuetudines ecclesiaelig tais como a santificaccedilatildeo do domingo a oraccedilatildeo voltada para o Oriente o costume de jejuar as vaacuterias becircnccedilatildeos e consagraccedilotildees e outras praacuteticas semelhantes em vigor na piedade dos fieacuteis ao tempo da baixa Idade Meacutedia Tais praacuteticas ora nobres ora ridiacuteculas embora transformassem a Igreja numa espeacutecie de casa assombrada cheia de acircngulos e cantos justificavam-se sob o tiacutetulo de ldquotradiccedilatildeordquo e legitimavam-se como parte essencial da vida cristatilde1

Lutero a quem a simplicidade do Evangelho como urna forccedila explosiva tinha sobremodo impressionado preferiu agrave luz de sua [16] ideacuteia de Deus juiz misericordioso natildeo ver na Tradiccedilatildeo nada mais do que ninharias com as quais a humanidade se ilude e aparentemente se consola buscando uma evasatildeo ante o abuso da proacutepria existecircncia Ainda mais ele viu na Tradiccedilatildeo o retorno da Lei o predomiacutenio do arbiacutetrio humano sobre a palavra de Deus abuso contra o qual Paulo protestara com tanta veemecircncia e que agora de novo se implantara na Igreja A Confessio Augustana ocupou-se tambeacutem destas coisas destacando uma seacuterie de leis cuja violaccedilatildeo segundo a doutrina corrente era tida como pecado mortal a proibiccedilatildeo do trabalho manual aos domingos e dias santos a interrupccedilatildeo das preces canocircnicas diaacuterias os preceitos do jejum etc E Lutero prosseguia ldquoDe onde tiram os Bispos o direito e o poder de imporem tais prescriccedilotildees aos cristatildeos e de ilaquearem assim as consciecircncias Pedro no capiacutetulo 15 dos Atos dos Apoacutestolos proiacutebe se imponha o jugo sobre os ombros dos disciacutepulos E Paulo diz aos Coriacutentios que a autoridade lhe foi dada para salvar e natildeo para condenar Por que entatildeo multiplicam assim os pecados com tais imposiccedilotildeeshellip Se os Bispos tecircm poder de sobrecarregarem as igrejas com inuacutemeras prescriccedilotildees e de onerar as consciecircncias por que entatildeo a Sagrada Escritura proiacutebe tatildeo frequumlentemente que se faccedilam mandamentos

1 Eacute o que se vecirc claramente pela lista de traditiones feitas no tempo do Conciacutelio de Trento Cf a nota 44 da segunda parte desse livro

humanos e se escravizem os homens Porque chama ela a estas coisas de doutrina de Satanaacutes Foi acaso em vatildeo que o Espiacuterito Santo fez tais advertecircnciasrdquo 2

Lutero identificou aqui a traditio com os abusus Tradiccedilatildeo segundo ele eacute lei humana pela qual o homem se esconde de Deus e pior ainda se levanta contra Ele para tomar nas proacuteprias matildeos a tarefa de sua salvaccedilatildeo em vez de esperaacute-la da libeacuterrima graccedila do Senhor A Tradiccedilatildeo assim entendida como Lei eacute contraposta agrave mensagem da graccedila ldquoDevemos aceitar cada [17] um dos artigos do Evangelho para alcanccedilarmos a graccedila de Deus sem meacuterito nosso atraveacutes da feacute em Jesus Cristo e natildeo pretender merececirc-la mediante praacuteticas do culto inventado pelos homensrdquo3

O problema da Tradiccedilatildeo tornou-se ainda mais agudo devido a um segundo aspecto que de resto natildeo conduziu a nenhum resultado positivo Descobrindo o Evangelho teve Lutero igualmente a impressatildeo de libertar a Palavra de Deus da pesada cadeia do Magisteacuterio eclesiaacutestico que se teria apossado desta Palavra e natildeo mais a entendia em seu verdadeiro sentido empregando-a antes a seu bel-prazer A ideacuteia de que a palavra divina aprisionada na Igreja catoacutelica agrave autoridade do Magisteacuterio ficou privada de sua forccedila viva eacute sempre repetida nos escritos dos Reformadores Melanchton poreacutem fecirc-lo talvez de um modo mais humano e flexiacutevel quando apocircs com reservas a sua assinatura aos artigos luteranos de Esmalca ldquo quanto ao Papa acho eu que jaacute que ele quis abandonar o Evangelho devemos noacutes de nossa parte tolerar (e admitir) para o bem da paz e da unidade a sua superioridade sobre os Bispos superioridade esta que ele possui iure humanordquo 4

Este estado de coisas impregnou outrossim a ideacuteia de Igreja da Confessio Augustana uma vez que aiacute se diz que a Igreja eacute a congregatio sanctorum in qua Evangelium pure docetur et recte administrantur Sacramenta5 Assim a Igreja eacute marcada por duplo aspecto pela pureza da doutrina e pela administraccedilatildeo legiacutetima dos Sacramentos Nem uma palavra sobre o Magisteacuterio Na realidade para a elaboraccedilatildeo do conceito de Igreja este silecircncio da CA natildeo eacute menos importante do que o que ela aiacute diz Eacute um silecircncio evidentemente intencional e denuncia a oposiccedilatildeo dos Reformadores agrave concepccedilatildeo catoacutelica de Igreja [18] entatildeo vigente e ateacute hoje conservada Esta consta de trecircs elementos a fides correspondente ao pure docere a communio que corresponde ao sacramenta e a auctoritas6 O Magisteacuterio aparece aqui como criteacuterio da palavra Eacute o seu fiador Segundo Melanchton daacute-se o contraacuterio a palavra eacute que eacute o criteacuterio do Magisteacuterio Este deve em uacuteltima anaacutelise ser provado pela palavra e pode consequumlentemente ser negado A palavra eacute auto-suficiente e paira sobre o Magisteacuterio como uma grandeza autocircnoma Talvez nesta inversatildeo de relaccedilotildees eacute que estaacute propriamente o contraste entre o conceito catoacutelico e o protestante de Igreja Contradiccedilatildeo paralela se daacute em torno da ideacuteia de Tradiccedilatildeo Com efeito a negaccedilatildeo do Magisteacuterio como criteacuterio da palavra significa a reduccedilatildeo da palavra de Deus agrave Escritura que seraacute entatildeo o

2Art 28 39-42 in Die Bekenntnisschriften der evangelisch lutherischen Kirche Gotinga 1952 p126 3 Art 28 52 Op cit p129 4 Op cit p463 5 Art 7 1 paacuteg 61 6 Sobre este ponto e o seguinte cf J RATZINGER ldquoDas geistliche Amt und die Einheit der Kircherdquo in Catholica 17 (1963) p 165-179

uacutenico sustentaacuteculo autocircnomo e autecircntico da palavra natildeo admitindo a Tradiccedilatildeo como uma grandeza em si

O Conciacutelio de Trento em seu estudo sobre a Tradiccedilatildeo teve diante dos olhos os dois pontos de vista contraacuterios e procurou formular sua resposta levando ambos em consideraccedilatildeo Eacute por isso conveniente analisarmos como estas duas posiccedilotildees se inter-relacionam em face da equiparaccedilatildeo feita por Lutero entre a Traditio e os abusus Em outros termos como os Padres conciliares se colocam diante do dilema dever-se-ia responder aos ataques de Lutero diretamente com uma definiccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo Ou antes de tudo com a reformatio a coerccedilatildeo dos abusus7

No tocante agrave doutrina o Conciacutelio refutou ex professo a censura dos Reformadores sustentando que a palavra natildeo eacute uma realidade autocircnoma pairando acima da Igreja Ela eacute dada pelo [19] Senhor agrave Igreja e natildeo entregue ao capricho dos homens Permanece justamente por isso nas Suas matildeos subtraindo-se ao alcance do alvitre humano Na visatildeo dos Padres de Trento deve no fundo ter parecido uma falta de confianccedila o terem os homens receio da palavra escrita entregue agrave Igreja como se a Igreja pudesse abusar dela Como se se pudesse apelar para a palavra da Revelaccedilatildeo contra a Igreja Estava-se inquestionavelmente certo de que o Senhor que instituiu a Igreja como Seu Corpo haveria de se empenhar em tutelaacute-la contra o perigo de abusar de Sua palavra

Hoje decorridos quatro seacuteculos desde a Reforma podemos confessar que na oposiccedilatildeo que dividia entre si Lutero e o Conciacutelio de Trento tanto depois como antes o dilema que dilacerou a Cristandade ocidental de certo modo jaacute desapareceu Vecirc-se isto pela troca de correspondecircncia entre Harnack e Peterson Peterson ao agradecer o tratado de Harnack Das Alte Testament in den Paulinischen Briefen und in den Paulinischen Gemeiden observou que este em seu cotejo da Escritura com a exegese biacuteblica tinha adotado natildeo o princiacutepio protestante mas o catoacutelico Escreveu Harnack ldquoDizer que o chamado lsquoprinciacutepio formalrsquo do Protestantismo primitivo eacute uma impossibilidade criacutetica e que ao contraacuterio o princiacutepio catoacutelico eacute formalmente o melhor eacute um truiacutesmo Materialmente poreacutem o princiacutepio catoacutelico da Tradiccedilatildeo opotildee-se agrave Biacuteblia muito mais diretamente (As tradiccedilotildees satildeo como ervas daninhas a serem cortadas pela tesoura do Magisteacuterio) A melhor fonte eacute o Novo Testamentordquo 8

Nesta formulaccedilatildeo de certo modo geneacuterica e simplista e na oposiccedilatildeo estabelecida entre os aspectos material e formal vem de novo agrave tona o antigo dilema poder-se-aacute confiar a palavra agrave Igreja sem temor de que ela sob a tesoura do Magisteacuterio ou [20] envolta no mato selvagem do sensus fidelium perca a sua forccedila proacutepria e sua vitalidade Esta eacute a pergunta que os Protestantes fazem aos Catoacutelicos Poder-se-aacute aceitar a autonomia da palavra sem com isto ser esta exposta ao arbiacutetrio dos exegetas aos maus tratos por parte dos historiadores e enfim ao completo desamparo Eis como os Catoacutelicos revidam aos Protestantes Com efeito segundo nossa doutrina natildeo eacute a noacutes que compete decidir se queremos ou natildeo confiar a palavra agrave Igreja Foi o proacuteprio Senhor quem lha confiou Note-se entretanto que quando o Catoacutelico encara seriamente este assunto natildeo deixa de considerar o zelo pela pureza da palavra revelada como um dever

7 Ver as notas 41 e 42 na 2ordf parte 8 Citado in E PETERSON Theologische Traktate Munique 1951 p295

da mais alta importacircncia Ele sabe que natildeo cumpre este dever pelo simples fato de apelar para a inerracircncia da Igreja Fazecirc-lo seria menosprezar o sentido da luta de Lutero em favor da Palavra deixando-se de ver nisto uma salutar advertecircncia e um apelo dirigido agraves almas

Natildeo obstante tudo isto a histoacuteria da controveacutersia natildeo se deteve no decurso dos quatro seacuteculos que se seguiram agrave Reforma Duas diferentes tendecircncias se destacam nas relaccedilotildees entre o Protestantismo e o Catolicismo e entre suas respectivas teologias De um lado uma radicalizaccedilatildeo de cada grupo nos proacuteprios pontos de vista Cada grupo a partir de entatildeo fez sua histoacuteria proacutepria e desenvolveu-a em direccedilatildeo oposta um ao outro Por outro lado a distacircncia mantida entre ambos possibilita maior objetividade em seus julgamentos reciacuteprocos Existe finalmente de parte a parte um renovado esforccedilo por superar as fronteiras com vistas a um encontro

Quem entre os Catoacutelicos empreendeu o mais significativo passo para chegar a uma visatildeo nova do problema da Tradiccedilatildeo mediante a superaccedilatildeo de posiccedilotildees unilaterais e anti-reformistas foi em nossos dias o teoacutelogo dogmaacutetico de Tubinga Josef Rupert Geiselmann Seus esforccedilos foram frutuosos fazendo-se sentir a sua influecircncia inclusive nos estudos preparatoacuterios do [21] Conciacutelio e deram agraves incursotildees do Vaticano II nesta aacuterea aquela marcante atualidade que ainda na primeira sessatildeo levou este problema a transcender do ciacuterculo da luta doutrinal entre as vaacuterias escolas teoloacutegicas para se transformar em uma preocupaccedilatildeo de toda a Cristandade catoacutelica9

A tese de Geiselmann eacute conhecida Basta-nos esboccedilaacute-la rapidamente aqui a fim de lanccedilarmos as bases de uma reflexatildeo que procuraraacute aprofundar mais este assunto e talvez dar um modesto passo agrave frente Geiselmann parte de uma interpretaccedilatildeo nova do sentido dado pelo Conciacutelio ao conceito de Tradiccedilatildeo O tridentino estabelecera que a verdade do Evangelho estaacute contida in libris scriptis et sine scripto traditionibus Isto foi e eacute ateacute hoje interpretado como se a Escritura natildeo contivesse toda a veritas evangelii Portanto natildeo eacute possiacutevel admitir-se a sola Scriptura uma vez que uma parte da Revelaccedilatildeo nos eacute transmitida somente pela Tradiccedilatildeo Geiselmann aproveitou a observaccedilatildeo jaacute antes feita por alguns autores de que na primeira redaccedilatildeo do texto focircra adotada a foacutermula segundo a qual a verdade estaria contida partim in libris scriptis partim in sine scripto traditionibus Estaria aqui claramente expressa a doutrina da divisatildeo da verdade revelada em duas fontes (Escritura e Tradiccedilatildeo) O Conciacutelio abandonou a expressatildeo partim ndash partim preferindo usar o simples conectivo et Geiselmann daiacute conclui afastou-se o Conciacutelio da ideacuteia da divisatildeo da verdade em duas fontes diversas Ou pelo menos natildeo a definiu explicitamente E continua o mesmo autor com isto pode tambeacutem o teoacutelogo catoacutelico aceitar a ideacuteia de uma suficiecircncia material da Escritura Pode ainda mesmo permanecendo catoacutelico defender a opiniatildeo de que a Sagrada Escritura eacute suficiente para transmitir-nos a [22] Revelaccedilatildeo Geiselmann admite consequumlentemente que a sola Scriptura pode conceber-se como uma uacutenica fonte

9 Cf R LAURENTIN Lenjeu du Concile Bilan de Ia premiegravere session Paris 1963 p27-45 Y CONGAR Vatican II Le Concile au jour le jour Paris 1963 p63-71 J RATZINGER Die erste Sitzungsperiode des Zweiten Vatikanischen Konzils Colocircnia 1963 p38-50

material da Revelaccedilatildeo Ele crecirc ainda poder mostrar que a tradiccedilatildeo mais forte eacute a favor desta sentenccedila e que o proacuteprio Conciacutelio de Trento se inclina neste sentido10

Eacute faacutecil de se compreender que semelhante tese tenha obtido o apoio de muitos em face das novas possibilidades de encontro entre Catoacutelicos e Evangeacutelicos possibilidades estas que a posiccedilatildeo de Geiselmann parece favorecer11 Que esta tese na realidade constitua um passo consideraacutevel neste sentido parece ser incontestaacutevel Todavia tatildeo logo a analisemos mais de perto em seus fundamentos histoacutericos e reais surge de pronto toda uma seacuterie de dificuldades graves a tornarem impossiacutevel a sua aceitaccedilatildeo

Sobre o aspecto histoacuterico deste problema apresentaremos vaacuterias observaccedilotildees na segunda parte deste nosso opuacutesculo Entrementes consideremos de imediato o lado praacutetico deste assunto Seu exame provoca inicialmente esta pergunta que significa propriamente a expressatildeo ldquosuficiecircncia da Escriturardquo Geiselmann como teoacutelogo catoacutelico que eacute natildeo deixa de sustentar os nossos dogmas Ora nenhum dogma catoacutelico eacute provado sola Scriptura Nem os grandes dogmas primitivos sustentados pelo consensus quinquesaeligcularis nem tampouco o de 1854 e [23] menos ainda o de 1950 Em que sentido entatildeo se pode falar em suficiecircncia da Escritura Natildeo ameaccedilaraacute esta converter-se em perigosa fraude pela qual nos enganamos primeiramente a noacutes proacuteprios e em seguida tambeacutem enganamos aos outros (Ou natildeo seratildeo talvez justamente eles que natildeo se enganam) Ou entatildeo pelo menos para sustentarmos de um lado que a Escritura sozinha conteacutem toda a verdade da Revelaccedilatildeo e de outro lado que o dogma de 1950 eacute verdade revelada natildeo deveremos noacutes refugiar-nos em um conceito tatildeo largo de suficiecircncia que na verdade esta palavra venha a perder todo o seu significado

Com isto abre-se a segunda (que de fato eacute a primeira) questatildeo decisiva a saber seraacute verdade que os debates em torno da ideacuteia da suficiecircncia da Escritura resolveram mesmo o problema do conceito de Tradiccedilatildeo Ou ao contraacuterio natildeo estaremos noacutes aqui diante de um problema de raiacutezes muito mais profundas

Nossas observaccedilotildees introdutoacuterias devem ter deixado claro que esta uacuteltima pergunta deve sem duacutevida nenhuma ser respondida afirmativamente A questatildeo da suficiecircncia da Escritura eacute apenas um problema secundaacuterio no acircmbito da distinccedilatildeo muito mais importante que foi jaacute antes apontada por noacutes ao tratarmos dos conceitos abusus e auctoritas e que gira em torno do nexo entre a autoridade da Igreja e a autoridade da Sagrada Escritura Da compreensatildeo disto depende tudo o mais

Para irmos mais adiante torna-se necessaacuterio analisarmos profundamente o assunto natildeo para nos determos no exame dos conceitos tatildeo relevantes de suficiecircncia ou insuficiecircncia da Escritura mas antes para abordarmos em seu tudo o vasto problema da Palavra revelada e presente no coraccedilatildeo dos fieacuteis Torna-se evidente entatildeo que agrave luz das fontes positivas a Escritura e a Tradiccedilatildeo devem ser postas em relaccedilatildeo tatildeo iacutentima que da

10 Ver sobretudo a obra de J R GEISELMANN Die Heilige Schrift und die Tradition Friburgo 1962 principalmente as p91-107274-282 Entre os trabalhos anteriores escritos por Geiselmann sobre o mesmo tema eacute de particular importacircncia o seguinte Das Konzil von Trient uumlber das Verhaumlltnis der Heiligen Schrift und der nichtgeschriebenen Traditionen in M SCHMAUS Die muumlndliche Uumlberlieterung Munique 1957 p 123-206 11 Uma lista de todos os autores que mais concordaram com Geiselmann eacute fornecida por H KUumlNG em sua tese ldquoKarl Barths Lehre vom Wort Gottes als Frage an die katholische Theologierdquo in Einsicht und Glaube publicado por J RATZINGER-H FRIES Friburgo 1963 p 105 nota 25

fonte interna (a Revelaccedilatildeo) brote a pa1avra de Deus viva sob aquela dupla formalidade A Escritura e a Tradiccedilatildeo natildeo podem [24] ser entendidas uma sem a outra no sentido que ambas tecircm agrave luz da feacute O problema ldquoEscritura e Tradiccedilatildeordquo permaneceraacute insoluacutevel enquanto natildeo for reduzido a uma soacute questatildeo a saber a questatildeo ldquoRevelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeordquo e inserida enfim no amplo contexto a que pertence

Eu gostaria de nas paacuteginas seguintes sem entrar em todos os detalhes tentar desenvolver em forma de teses e de maneira positiva o conceito de Tradiccedilatildeo partindo de sua natureza iacutentima com a esperanccedila de que nele descubramos uma parte da resposta aos anseios dos Reformadores Desta maneira toda esta anaacutelise serviraacute de contribuiccedilatildeo para o diaacutelogo interconfessional cuja necessidade tanto os Catoacutelicos como os Protestantes vecircm proclamando de maneira cada vez mais insistente

II - Teses sobre a relaccedilatildeo entre a Revelaccedilatildeo e a Tradiccedilatildeo

1 A Revelaccedilatildeo e a Escritura A primeira tese em aditamento ao conceito patriacutestico de Escritura e Revelaccedilatildeo

poderia enunciar-se nos seguintes termos o fato de existir uma ldquoTradiccedilatildeordquo repousa antes de tudo na diferenccedila que permeia entre estas duas realidades ldquoRevelaccedilatildeordquo e ldquoEscriturardquo A Revelaccedilatildeo exprime propriamente o falar e o agir de Deus em relaccedilatildeo aos homens Designa uma realidade expressa pela Escritura sem ser contudo a proacutepria Escritura A Revelaccedilatildeo por conseguinte ultrapassa a Escritura na mesma medida em que a realidade ultrapassa a sua expressatildeo escrita12 Poder-se-ia [25] tambeacutem dizer que a Escritura eacute o princiacutepio material da Revelaccedilatildeo (Talvez princiacutepio uacutenico talvez um princiacutepio entre outros isto seraacute esclarecido mais adiante) Ela natildeo eacute poreacutem a proacutepria Revelaccedilatildeo Isto era aliaacutes bem sabido dos proacuteprios Reformadores mas comeccedilou visivelmente a ser esquecido no aceso da controveacutersia entre a teologia catoacutelica poacutes-tridentina e a ortodoxia protestante13 Em nosso seacuteculo foram justamente os teoacutelogos evangeacutelicos Barth e Brunner que redescobriram este fato de todo evidente para a teologia patriacutestica e medieval14

O que acabamos de afirmar ficaraacute mais claro se partirmos de outro princiacutepio a Escritura pode ser possuiacuteda sem que se possua a Revelaccedilatildeo Isto porque a Revelaccedilatildeo eacute sempre e em primeiro plano uma realidade a realidade onde se encontra a feacute Aquele

12 Esta afirmaccedilatildeo natildeo tem o sentido de que a Escritura seja uma mera e vazia narrativa de realidades a ela exteriores Antes como o que se segue iraacute demonstrar indica que a Revelaccedilatildeo eacute realizada na Palavra jaacute que eacute por meio de palavras que ela se comunica aos homens Contudo a mera presenccedila da palavra ainda natildeo eacute a Revelaccedilatildeo Esta eacute mais do que simples ldquopresenccedilardquo Com o que ficou dito salienta-se a diferenccedila que existe entre a palavra e seu conteuacutedo Esta diferenccedila natildeo exclui o caraacuteter verbal da Revelaccedilatildeo 13 Cf A GLOEGE Schriftprinzips RGG V 1540-1543 onde se encontraraacute a mais completa bibliografia LthK VII 1104-1115 J R GEISELMAN Offenbarung in H FRIES Handbuch zum Begriff der Offenbarung cf M VERENO - R SCHNACKENBURG - HRIES in Theologischer Grundbergriffe II Munique 1963 p242-250 e a bibliografia aiacute citada 14 Cf W H VAN DER POL Das reformatorische Christentum Einsiedeln 1956 p117-192

que natildeo crecirc acha-se como que coberto por um veacuteu o veacuteu de que fala Satildeo Paulo no terceiro capiacutetulo da segunda epiacutestola aos Coriacutentios15 Ele pode ler a Escritura e saber o que nela se conteacutem Pode ateacute mesmo apreender de modo puramente intelectual o que aiacute eacute significado e como suas ideacuteias se inter-relacionam Todavia natildeo possui com isto a Revelaccedilatildeo A Revelaccedilatildeo eacute sobretudo possuiacuteda quando aleacutem da expressatildeo material que a atesta se potildee tambeacutem em praacutetica o seu conteuacutedo interno por meio da vivecircncia da feacute Com efeito de certo modo se inclui tambeacutem na Revelaccedilatildeo o sujeito recipiente sem o qual ela natildeo pode existir Natildeo se pode pocircr a Revelaccedilatildeo no bolso como se faz com [26] um livro Ela eacute uma realidade viva Exige homens vivos que a recebam que sirvam de ldquolugarrdquo de sua presenccedila

Repetindo o que ateacute aqui dissemos podemos afirmar que a Revelaccedilatildeo sobreexcede de fato a Escritura em dois sentidos

a) em sentido ascendente ela atinge sempre como realidade procedente de Deus o agir divino sobre as criaturas

b) como realidade que se daacute ao homem por meio da feacute ela atinge igualmente a Escritura

Desta diferenccedila entre a Escritura e a Revelaccedilatildeo resulta claramente que de todo independentemente da questatildeo se a Escritura eacute ou natildeo eacute a uacutenica fonte material em rigor nunca existe para o cristatildeo a sola Scriptura (Isto como ficou dito era claro em princiacutepio para os grandes Reformadores e comeccedilou a ser esquecido na chamada ortodoxia protestante) A Escritura natildeo eacute a Revelaccedilatildeo Eacute sim em uacuteltima anaacutelise uma parte desta realidade mais ampla

2 Os diferentes sentidos da Escritura

no Antigo e Novo testamento A problemaacutetica cristatilde da Revelaccedilatildeo ou o problema ldquoEscritura e Tradiccedilatildeordquo situa-se

melhor se considerarmos o duplo aspecto da mesma Revelaccedilatildeo no Antigo e no Novo Testamento A este duplo aspecto corresponde tambeacutem um duplo sentido da Escritura Assim como os dois Testamentos como tais se distinguem essencialmente assim tambeacutem devemos dizer que a ldquoEscriturardquo como um fato natildeo eacute repetida duas vezes do mesmo modo Isto aparece muito claro nos livros neotestamentaacuterios Sob a expressatildeo ldquoEscriturardquo designam eles somente o Antigo Testamento Para eles o AT eacute e permanece sendo ldquoa Escriturardquo cujo sentido se aclara mediante sua confirmaccedilatildeo no evento da [27] vinda de Cristo16 Os livros do NT natildeo jogam uma Escritura nova contra uma Escritura antiga Nem potildeem uma simplesmente ao lado da outra Potildeem sim em face da uacutenica Escritura ou seja do Antigo Testamento o Cristo-evento como o espiacuterito que explica a letra Esta concepccedilatildeo fundamental ilumina tambeacutem a forma da feacute mais antiga e a torna por primeiro compreensiacutevel O ldquoJesusrdquo formal eacute o ldquoCristordquo expresso no Antigo Testamento Natildeo eacute outra coisa No Jesus Histoacuterico o Cristo-mensagem do

15 Cf sobre estas reflexotildees o importante artigo (ἀποκαλύπτω de A OEPKE in ThWNT III p565-597 16 Ver sobre este ponto as preciosas conclusotildees de G SCHRENK art γραφή ndash γράμμα in ThWNT I p749-769 e a p767

Antigo Testamento atinge a sua consumaccedilatildeo Eacute a partir do AT que se entende quem eacute Jesus E o que o Testamento Antigo expressa pode ser visto agrave luz do Cristo-evento

Esta ideacuteia aparece em Paulo ao apresentar ele o Antigo e o Novo Testamentos como Gramma e Pneuma isto eacute letra e espiacuterito (2Cor 3 6-18) Ele chama ao Senhor de Pneuma A Escritura explica-o como sendo o seu sentido o seu conteuacutedo verdadeiro e vivo e natildeo apenas literaacuterio Paulo se refere agrave concepccedilatildeo do Novo Testamento apresentada por Jeremias (3133) Natildeo eacute mais necessaacuteria nenhuma Escritura porque a lei estaacute escrita nos coraccedilotildees Jaacute natildeo eacute necessaacuteria nenhuma doutrinaccedilatildeo vinda de fora porque o proacuteprio Deus instrui os homens Joatildeo exprime idecircntico pensamento em seguimento ao decircutero-Isaiacuteas (5413) quando descreve a era inaugurada por Cristo como o tempo no qual todos satildeo doutrinados por Deus mesmo E o sermatildeo de Pedro em Pentecostes transmitido pelos Atos dos Apoacutestolos (2 14-36) desenvolve a mesma ideacuteia tirada de Joel (3 1-5) Em todos estes casos aparece a era instaurada por Cristo como resposta agrave esperanccedila no advento de um tempo futuro que em uacuteltima anaacutelise haveria de tornar supeacuterflua a Escritura graccedilas agrave presenccedila imediata do Divino Mestre na Sua humanidade

Quando se pondera o sentido destas afirmaccedilotildees torna-se claro [28] que ao reduzir-se a ldquoEscriturardquo aos escritos do Antigo Testamento natildeo se estaacute apenas usando uma terminologia antiga que teria sido adotada por falta de escritos propriamente neotestamentaacuterios e que teria perdido seu sentido na segunda metade do seacuteculo segundo com o iniacutecio do cacircnon do Novo Testamento Ao contraacuterio Aqui se expressa uma consciecircncia que se tornaria mais niacutetida a partir da formaccedilatildeo da proacutepria Escritura neotestamentaacuteria muito ao inveacutes de cessar ou de desaparecer

Uma coisa eacute certa a ldquoEscriturardquo na nova ordem da salvaccedilatildeo inaugurada por Cristo toma um lugar distinto do que lhe cabia no Antigo Testamento Com isto pode-se ver ateacute que ponto o Antigo Testamento tem sentido autocircnomo O AT certamente natildeo aparecia desde o comeccedilo como Testamento do Gramma Escritura em sentido proacuteprio como ocorreraacute na pena de Satildeo Paulo17 Por outro lado manifesta-se realmente a partir de Jeremias e do decircutero-Isaiacuteas o anelo pela superaccedilatildeo do Gramma mediante uma nova e imediata comunicaccedilatildeo do Espiacuterito de Deus simultaneamente com a progressiva formaccedilatildeo de um princiacutepio da Escritura que mais e mais a transformou em Lei Lei esta que natildeo tornaria os homens vivos mas sim mortos

Desta maneira na concepccedilatildeo neotestamentaacuteria aparece o Antigo Testamento como ldquoEscriturardquo em sentido proacuteprio Escritura que atinge o seu verdadeiro significado atraveacutes do Cristo-evento pelo fato de ser ela inserida no contexto vivo da realidade de Cristo Se no Novo Testamento de facto a Escritura cresceu natildeo pode mais ter aquele sentido uacuteltimo e exclusivo que lhe competia no Antigo segundo a concepccedilatildeo paulina Ao contraacuterio Ela eacute a chave com que se abre o Antigo Testamento deixando-se banhar na claridade do Cristo-evento Ela eacute tambeacutem a ponte permanente que conduz a uma nova interpretaccedilatildeo biacuteblica agrave luz [29] de Cristo Num caso e noutro a Escritura natildeo pretende de modo nenhum ser autocircnoma nem ser a fonte uacutenica e exclusiva de sua exegese literal Mas soacute pode ter sentido na realidade espiritual de Jesus Cristo que

17 Ver a apreciaccedilatildeo feita por G VON RAD Theologie des Alten Testaments II Munique 1960 p402-424

permanece junto dos seus todos os dias ateacute ao fim do mundo (Mt 28 20) Apoacutes a subida ao Calvaacuterio Cristo veio de novo no Espiacuterito Santo (como narra Satildeo Joatildeo) e pelo Espiacuterito ensinou aos disciacutepulos o que eles entatildeo natildeo podiam ainda entender enquanto o Senhor estava entre eles sob forma visiacutevel (Jo 16 12)

3 Cristo a Revelaccedilatildeo de Deus

A realidade que se daacute como um acontecimento na Revelaccedilatildeo cristatilde natildeo eacute nada

mais nada menos do que o proacuteprio Cristo Cristo eacute a Revelaccedilatildeo em sentido proacuteprio ldquoQuem me vecirc vecirc o Pairdquo diz ele no Evangelho de Satildeo Joatildeo (14 9) Vale portanto dizer que receber a Revelaccedilatildeo eacute penetrar na realidade de Cristo no Cristo-evento Daiacute procede o paradoxo descrito por Satildeo Paulo ao fazer ele um trocadilho com as palavras ldquoCristo em noacutesrdquo e ldquonoacutes em Cristordquo

Neste contexto a anaacutelise de frases isoladas torna-se secundaacuteria de vez que elas satildeo apenas explicaccedilotildees do uacutenico misteacuterio de Cristo Consequumlentemente cai por si mesma a questatildeo da suficiecircncia interna da Escritura tatildeo discutida desde o aparecimento das obras de Geiselmann Deveriacuteamos isto sim perguntar que significa em linguagem cristatilde a suficiecircncia interna da Escritura ldquoSuficienterdquo eacute soacute a realidade do Cristo-evento Esta pode ser explicada materialmente em maior ou menor grau E de maneira nunca definitiva Partindo deste princiacutepio podem existir tambeacutem outras explicaccedilotildees segundo a Escritura quando se aprofunda mais este assunto

Este mesmo tema pode ser considerado sob outro aspecto E ter-se-aacute entatildeo dado um passo a mais para a frente A aceitaccedilatildeo [30] da Revelaccedilatildeo pela qual aplicamos a noacutes o Cristo-evento vem na linguagem da Biacuteblia sob o nome de ldquofeacuterdquo Assim talvez se entenderaacute mais claramente de que maneira no Novo Testamento a feacute significa a ldquoin-habitaccedilatildeordquo de Cristo Se admitirmos que na Escritura a presenccedila da Revelaccedilatildeo tem o mesmo sentido que a presenccedila de Cristo entatildeo teremos de fato dado um passo adiante Ora na Escritura encontramos a presenccedila de Cristo apresentada de duas maneiras Ela aparece de um lado como jaacute vimos identificada com a feacute (Ef 317) na qual cada um encontra Cristo e se adentra nele penetrando no dinamismo de sua forccedila salvadora Por outro lado a feacute se oculta tambeacutem sob a expressatildeo paulina ldquoCorpo de Cristordquo o que quer dizer que a comunidade dos fieacuteis ndash a Igreja ndash funda a presenccedila de Cristo neste mundo Nela Cristo reuacutene os homens e os faz partiacutecipes de sua presenccedila dinacircmica18

Tomadas juntas estas duas noccedilotildees significam o seguinte a feacute eacute a adesatildeo iacutentima agrave presenccedila de Cristo realidade de Cristo presente da qual a Escritura nos daacute testemunho sem contudo se identificar de modo nenhum com ela Daiacute resulta que a presenccedila da Revelaccedilatildeo se relaciona essencialmente com a ldquofeacuterdquo e com a ldquoIgrejardquo realidades estas que como vimos estatildeo estreitamente ligadas entre si

Voltamos assim ao que foi afirmado na primeira tese a saber que a Revelaccedilatildeo sobreexcede a Escritura em duplo sentido em relaccedilatildeo a Deus por seu lado ascendente e em relaccedilatildeo tambeacutem ao homem que a recebe Esta asserccedilatildeo que a princiacutepio deixamos

18 H SCHLIER ldquoDie Kirche nach dem Brief an die Epheserrdquo in Die Zeit der Kirche Friburgo 1962 p159-186

um tanto vaga encontramo-la essencialmente concretizada na realidade objetiva do Cristianismo

4 A essecircncia da Tradiccedilatildeo

[31] A transmissatildeo ao povo de Deus do Cristo-evento que eacute a Revelaccedilatildeo e que tem sua bi-presenccedila na feacute e na Igreja faz-se atraveacutes da pregaccedilatildeo Pregaccedilatildeo eacute a ldquoex-posiccedilatildeordquo (Aus-legung) do duplo aspecto da Revelaccedilatildeo no Antigo e no Novo Testamento E isto de duas maneiras

a) ela eacute a exposiccedilatildeo do Antigo Testamento agrave luz do Cristo-evento e para o Cristo-evento

b) a partir do Pneuma e da condiccedilatildeo presente da Igreja Este uacuteltimo aspecto eacute possiacutevel pois Cristo natildeo estaacute morto Estaacute vivo Natildeo eacute

apenas o Cristo de ontem Eacute tambeacutem e a fortiori o Cristo de hoje e de amanhatilde o Cristo vivo e presente em sua Igreja que eacute seu Corpo e na qual o seu espiacuterito opera

Isto poderaacute ser melhor compreendido se partirmos da essecircncia da Igreja Como nos ensina o Novo Testamento a mensagem de Jesus eacute antes de tudo uma mensagem escatoloacutegica com vistas ao reino de Deus natildeo com vistas agrave Igreja O fato de existir a Igreja natildeo se opotildee a esta mensagem mas haacute na marcha gradativa das revelaccedilotildees de Cristo uma segunda possibilidade Assim a atividade dos Doze depois de Pentecostes aponta natildeo para a Igreja mas para o reino de Deus Informam-nos os Atos dos Apoacutestolos que os Doze natildeo se ocuparam primordialmente em missionar os povos Esforccedilaram-se antes muito mais em converter Israel criando deste modo as condiccedilotildees preacutevias para a implantaccedilatildeo do reino De iniacutecio uma seacuterie de obstaacuteculos histoacutericos entre os quais deveriacuteamos citar antes de tudo o martiacuterio de Estevatildeo o supliacutecio de Tiago e por fim o fato decisivo da prisatildeo e da libertaccedilatildeo de Pedro Tais fatos levaram a comunidade primitiva segundo dizem as fontes a reconhecer como definitivo o malogro do esforccedilo de converter Israel E consequumlentemente forccedilaram os Apoacutestolos a partir em busca dos gentios e a cuidar [32] assim da Igreja e natildeo do reino Eles o fazem segundo se depreende das passagens referidas e principalmente dos esclarecimentos do capiacutetulo 15 dos Atos dos Apoacutestolos como uma nova opccedilatildeo feita sob a accedilatildeo do Espiacuterito Santo Com isso iniciou-se uma nova interpretaccedilatildeo da mensagem de Cristo sobre a qual a Igreja essencialmente repousa19

19 Cf as decisivas conclusotildees de E PETERSON ldquoDie Kircherdquo in Theologische Traktate Munique 1951 p 409-429 H SCHLIER Die Entscheidung fuumlr die Heidenmission in der Urchristenheit Die Zeit der Kirche p 90-107 Parece-me certo que nem a anaacutelise da tradiccedilatildeo sinoacutetica relativa agrave mensagem de Jesus e seu caraacuteter escatoloacutegico nem o estudo da histoacuteria da Igreja primitiva com base no material fornecido pelos Atos dos Apoacutestolos autorizam qualquer outra conexatildeo entre a mensagem do reino e a pregaccedilatildeo da Igreja Daiacute natildeo se segue de modo nenhum ndash como muitas vezes se teme ndash que a cruz seja um acidente secundaacuterio que em rigor poderia ter sido evitado Ao contraacuterio A estrutura da Igreja moldada sobre a cruz eacute fundamental porque aiacute eacute que por primeiro se encontra a confirmaccedilatildeo da importacircncia da liberdade humana de Cristo e da sua Paixatildeo bem como a iacutentima dependecircncia da Igreja para com a Cruz donde ela procede

Este fato que baseia o estabelecimento definitivo da Igreja sobre uma decisatildeo tomada ldquono Espiacuterito Santordquo eacute o fundamento para se afirmar que existe uma interpretaccedilatildeo eclesial do Novo Testamento do mesmo modo que existe uma exegese cristoloacutegica do Antigo Daiacute podermos estabelecer as seguintes teses ou proposiccedilotildees agrave luz da analogia fidei

a) Existe uma teologia veterotestamentaacuteria do Antigo Testamento que o exegeta

deduz de seu conteuacutedo interno e que se desenvolve em uma seacuterie de camadas superpostas Segundo ela os textos antigos devem ser relidos e de novo expostos agrave luz dos novos acontecimentos O fenocircmeno da aplicaccedilatildeo dos textos agraves situaccedilotildees novas do desdobramento da Revelaccedilatildeo mediante nova [33] apresentaccedilatildeo do Antigo Testamento estrutura jaacute de modo essencial o conteuacutedo interno veterotestamentaacuterio20

b) Existe uma teologia neotestamentaacuteria do Antigo Testamento que natildeo coincide com

a referida teologia veterotestamentaacuteria Estaacute contudo estreitamente ligada com ela na unidade da analogia fidei21 Talvez partindo daqui se possa esclarecer o que significa a analogia fidei entre Os dois Testamentos A teologia neotestamentaacuteria do Antigo Testamento natildeo eacute como ficou dito idecircntica agrave teologia histoacuterica veterotestamentaacuteria Ao contraacuterio Re-exposiccedilatildeo feita agrave luz do Cristo-evento ela natildeo procede soacute da mera consideraccedilatildeo histoacuterica do Antigo Testamento Sendo embora em seu pleno conceito uma interpretaccedilatildeo relacionada com o Antigo Testamento contudo nada faz com que ela seja internamente estranha agrave sua essecircncia ainda que soacute de fora o atinja Ela amplia a forma estrutural do Antigo Testamento que assim interpretado revive e cresce

c) Existe uma teologia neotestamentaacuteria do Novo Testamento paralela agrave teologia veterotestamentaacuteria do Antigo Ou seja a teologia que o exegeta como tal pode deduzir do conteuacutedo interno do Novo Testamento eacute tambeacutem esta conhecida e estruturada mediante a aplicaccedilatildeo do Antigo Testamento agraves novas situaccedilotildees

d) Existe uma teologia eclesial do Novo Testamento que noacutes [34] chamamos Dogmaacutetica Ela se relaciona com a teologia neotestamentaacuteria do Novo Testamento do mesmo modo que a teologia neotestamentaacuteria do Antigo se relaciona com a respectiva teologia veterotestamentaacuteria Aquele ldquomaisrdquo (das Mehr) que distingue propriamente a Dogmaacutetica da teologia biacuteblica eacute o que designamos com a palavra Tradiccedilatildeo Aliaacutes tambeacutem aqui devemos salientar que a teologia eclesiaacutestica neotestamentaacuteria pela mesma razatildeo natildeo eacute simplesmente idecircntica agrave teologia neotestamentaacuteria interna e

20 Cf H GROSS Motivtransposition als Form- und Traditionsprinzip im Alten Testament in H VORGRIMLER Exegese und Dogmatik Moguacutencia 1962 p134-152 e a bibliografia aiacute fornecida G v RAD Theologie des Alten Testaments II Munique 1960 p332-339 396-401 21 A diferenccedila entre as duas teologias do Antigo Testamento foi vivamente exposta por R BULTMANN ldquoWeissagung und Erfuumlllungrdquo in Glauben und Verstehen II Tubinga 1952 p162-186 - Sobre as necessaacuterias correccedilotildees a se fazerem para que se torne visiacutevel a base histoacuterica do que a teologia sistemaacutetica denomina ldquoanalogia fideirdquo cf G v RAD op cit p329-424 (entre outras) e principalmente a p 420 nota 25 e a p422 nota 29 Sobre o tema ldquoanalogia fideirdquo em ambos os Testamentos cf tambeacutem E PRZYWARA Alter und Neuer Bund Viena-Munique 1956

histoacuterica do Novo Testamento Ultrapassa-a sem contudo ser-lhe puramente externa Com efeito no Novo Testamento comeccedila jaacute o processo da exposiccedilatildeo pela Igreja das verdades reveladas A teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento processa-se dentro dele proacuteprio como de modo clariacutessimo se percebe na histoacuteria da Revelaccedilatildeo sinoacutetica22

Eacute oportuno fazermos ainda uma pequena observaccedilatildeo se cotejarmos atentamente a teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento com a Dogmaacutetica reconheceremos que se impotildee uma outra distinccedilatildeo A Dogmaacutetica como ciecircncia aleacutem da exposiccedilatildeo eclesiaacutestica do Novo Testamento abrange tambeacutem a teologia particular de cada teoacutelogo Neste caso para se falar com precisatildeo dever-se-ia apresentar somente o proacuteprio dogma como teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento

O que acabamos de referir natildeo passa naturalmente de um esboccedilo que necessitaria em seus pormenores de natildeo poucos esclarecimentos e distinccedilotildees a fim de ser completo No caso presente entretanto damos por suficiente este esboccedilo Resumindo o que ateacute aqui expusemos podemos agora destacar vaacuterias ldquoraiacutezesrdquo da Tradiccedilatildeo e apontar vaacuterias camadas em seu seio [35] lordf raiz a maior amplidatildeo da ldquoTradiccedilatildeordquo em referecircncia agrave ldquoEscriturardquo

2ordf raiz o caraacuteter especiacutefico da Revelaccedilatildeo neotestamentaacuteria como Pneuma em contraste com o Gramma Eacute o que na linguagem de Bultmann se poderia chamar de sua condiccedilatildeo de ldquonatildeo-objetordquo (Nichtobjektiviertbarkeit) A praxe eclesiaacutestica e a teologia medieval expressaram este aspecto ao sobreporem a fides agrave Scriptura isto eacute o dogma como regra de feacute agraves minuacutecias da lei escrita23 O dogma eacute como a chave hermenecircutica da Escritura que em uacuteltima anaacutelise sem o auxiacutelio da hermenecircutica ficaria sendo algo fechado

3ordf raiz o caraacuteter presencial do Cristo-evento e a presenccedila dinacircmica do Espiacuterito de Cristo em seu Corpo a Igreja E consequumlentemente o poder que tem a Igreja de fazer a pregaccedilatildeo do Cristo ontem e hoje pregaccedilatildeo esta cuja fonte se encontra na interpretaccedilatildeo eclesiaacutestica da mensagem do reino transmitida pelos Apoacutestolos

Em conexatildeo com estas trecircs raiacutezes da ideacuteia (ou melhor da realidade) da Tradiccedilatildeo podem distinguir-se na mesma as seguintes camadas

a) Na origem de toda Tradiccedilatildeo estaacute o fato de que o Pai enviou o Seu Filho ao mundo e que o Filho por sua vez se [36] entregou ndash como sinal ndash aos ldquopovosrdquo (παραδίδοται) Esta paraacutedosis original em sua forccedila direta e salvadora

22 Cf por exemplo a rica exposiccedilatildeo de G BORNKMANN Jesus von Nazareth Estutegarte 1956 Sobre a questatildeo aqui estudada cf H SCHLIER Uumlber Sinn und Aufgabe einer Theologie des Neuen Testaments in H VORGRIMLER Exegese und Dogmatik Mainz 1962 p6990 23 O que haacute de melhor sobre este assunto no tocante agrave Patriacutestica seraacute encontrado em HARNACK DG II (1931) p84-116 HARNACK diz na p 87 nota 3 o seguinte ldquoO Cacircnon era de iniacutecio a regra da feacute A Escritura estaacute centrada na verdade Sem duacutevida nenhuma sua autoridade funda-se solidamente no Antigo Testamento e nas palavras do Senhorrdquo ndash Que assim tenha pensado tambeacutem a Idade Meacutedia e que aqui aleacutem da revelatio (da qual falaremos na 2ordf parte deste livro) a fides sobrepondo-se agrave Scriptura estabelece a forma essencial do conceito de Tradiccedilatildeo foi o que tentei demonstrar em meu artigo Wesen und Weisen der auctoritas im Werk des heiligen Bonaventura in Die Kirche und ihre Aumlmter und Staumlnde (Festgabe Kardinals Frings publicado por CORSTEN-FROTZ-LINDEN Colocircnia 1960 p 58-72

prolonga-se na permanente presenccedila de Cristo no σῶμα Χριστοῦ ndash no Seu Corpo a Igreja Assim o misteacuterio integral da presenccedila de Cristo eacute antes de tudo a realidade total transmitida pela Tradiccedilatildeo (fato fundamental e decisivo sempre anterior a todas as explicaccedilotildees particulares mesmo as da Escritura) e reguladora do que deve propriamente ser transmitido

b) A Tradiccedilatildeo existe concretamente como presenccedila na feacute Esta por seu turno como ldquoin-habitaccedilatildeordquo de Cristo precede todas as explicaccedilotildees particulares e frutuosa e viva ldquoexplicita-serdquo (explizierend) atraveacutes dos tempos

c) A Tradiccedilatildeo tem seu oacutergatildeo na plenitude dos poderes da Igreja e portanto naqueles que satildeo os legiacutetimos depositaacuterios destes poderes24

d) A Tradiccedilatildeo exprime-se tambeacutem naquilo que emanado da autoridade da Igreja se tornou regra de feacute (Symbolum fides quaelig) Portanto a questatildeo de se saber se certas proposiccedilotildees foram transmitidas desde o

comeccedilo pela Tradiccedilatildeo ao lado da Escritura ou em outros termos se existe desde o comeccedilo um segundo princiacutepio material e autocircnomo ao lado da Escritura torna-se afinal um problema inteiramente secundaacuterio Talvez lhe devamos responder negativamente

5 A funccedilatildeo da exegese [37] Pelo que ateacute aqui dissemos ficaram esclarecidas quase que exclusivamente

trecircs pontos os limites da letra da Escritura a liberdade do Espiacuterito Santo e a autoridade da Igreja Acontece poreacutem que a exposiccedilatildeo que fizemos abriga ainda um sentido diverso relacionado com a justa preocupaccedilatildeo de Lutero da qual partimos

Se ficou estabelecido que a Revelaccedilatildeo se faz presente atraveacutes da pregaccedilatildeo e se pregaccedilatildeo eacute exposiccedilatildeo da palavra revelada entatildeo pode e deve agora ao que precede acrescentar-se o seguinte a Tradiccedilatildeo eacute essencialmente e sempre uma exposiccedilatildeo Natildeo existe de maneira autocircnoma e sim como explicaccedilatildeo como exposiccedilatildeo ldquorelacionada com a Escriturardquo

Isto vale para a pregaccedilatildeo do proacuteprio Jesus Cristo realizaccedilatildeo plena da Revelaccedilatildeo e sua exposiccedilatildeo feita com autoridade A pregaccedilatildeo de Jesus Cristo natildeo aparece como algo absolutamente novo na Escritura Isto eacute como algo ainda natildeo atestado no Antigo Testamento Ela ensina isto sim a essecircncia do que jaacute estava escrito e lhe confere uma vida nova que o simples exegeta natildeo pode comunicar-lhe

O que vale para a mensagem de Cristo que permanece a mesma sob diferentes modalidades de exposiccedilatildeo vale tambeacutem para a pregaccedilatildeo apostoacutelica e a eclesiaacutestica Como ldquoTradiccedilatildeordquo ela deve em uacuteltima anaacutelise ser uma exposiccedilatildeo ldquosegundo a Escriturardquo a ela sujeita e com ela relacionada Sem duacutevida natildeo eacute ela uma exposiccedilatildeo no 24 Estas ideacuteias natildeo podem ser desenvolvidas mais detalhadamente aqui como seria de desejar uma vez que em rigor estamos procurando apenas fundamentar o conceito de Tradiccedilatildeo Em razatildeo da brevidade que me impus contentei-me apenas nas teses precedentes com explanar o assunto ateacute ao ponto em que ficasse patente a relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a ldquoIgrejardquo (cf as teses 4 e 5) Para se descer a maiores detalhes dever-se-ia analisar tambeacutem o conceito de Igreja que supomos conhecido do leitor Para isto cf a nota 6 onde citamos nosso livro sobre o Ofiacutecio e a unidade da Igreja Encontram-se aiacute algumas observaccedilotildees sobre o assunto de que ora tratamos

sentido de mera interpretaccedilatildeo exegeacutetica Mas sim na autoridade espiritual recebida do Senhor a qual se consuma na existecircncia plena da Igreja em sua feacute em sua vida e em seu culto Contudo ela permanece sendo (mais ainda do que o Cristo-evento em que se funda a Igreja) uma ldquoex-posiccedilatildeordquo (Aus-Legung) comprometida com a Histoacuteria e com a Palavra [38] Exprime-se deste modo a sua ligaccedilatildeo com a accedilatildeo concreta de Deus nesta mesma Histoacuteria e em seu caraacuteter de fato histoacuterico uacutenico (o ἑφάπαξ ldquoo ocorrido uma soacute vezrdquo) A realidade cristatilde da Revelaccedilatildeo eacute tatildeo essencial quanto ldquoeternardquo e definitiva Resulta daiacute a unidade entre o Cristo da Feacute e o Jesus da Histoacuteria o Jesus histoacuterico natildeo eacute senatildeo o Cristo da Feacute ainda que a feacute seja sempre algo mais do que a histoacuteria

Segue-se que do mesmo modo que existe um ofiacutecio de custoacutedia da Revelaccedilatildeo por parte da Igreja ofiacutecio por ela mesma atestado existe tambeacutem um ofiacutecio de custoacutedia da mesma Revelaccedilatildeo por parte da exegese que penetra o sentido literal da Escritura e defende a uniatildeo do Logos com a carne contra qualquer perigo de gnose Existe portanto por assim dizer algo como uma autonomia especiacutefica da Escritura como regra objetiva e sob muitos pontos de vista esclarecedora do Magisteacuterio eclesiaacutestico Esta era sem duacutevida uma exigecircncia legiacutetima de Lutero que ainda natildeo foi devidamente acolhida na Igreja catoacutelica por parte do Magisteacuterio cujos limites internos nem sempre foram claramente entendidos

Dever-se-ia partindo daqui salientar uma dupla criteriologia em se tratando da feacute De um lado haacute o que a Igreja antiga chamou de ldquoregra da feacuterdquo norma reguladora da palavra revelada contida na Escritura e sua exposiccedilatildeo Esta praeligscriptio da posse da Escritura como proacutepria segundo Tertuliano exclui a possibilidade de qualquer uso legiacutetimo da mesma Escritura contra a Igreja Por outro lado haacute tambeacutem o limite da littera Scripturaelig ou do sentido literal historicamente fixaacutevel que de acordo com o que ficou dito natildeo constitui nenhum criteacuterio absoluto ou autocircnomo mas sim somente um criteacuterio relativo no confronto da feacute com a ciecircncia O que na Escritura se pode descobrir quer mediante estudo cientiacutefico quer por simples leitura tem a funccedilatildeo de um criteacuterio real a que deve estar atento inclusive o Magisteacuterio em suas explicaccedilotildees Certamente [39] trata-se entatildeo de elementos sub-componentes da ciecircncia que natildeo podem servir para se julgar a feacute mas nela encontram uma instacircncia criacutetica e tecircm tambeacutem um importante papel a exercer o de zelar pela pureza do ἑφάπαξ de tutelar o conteuacutedo da Revelaccedilatildeo e de defender o dualismo histoacuterico carneespiacuterito (ldquodie Sarx der Geschichterdquo) contra os arbiacutetrios da gnose que tende sempre a impor-se

A reformatio na qual estaacute empenhada a Igreja nesta hora histoacuterica tem um papel relevante a desempenhar Eacute a missatildeo de abrir novas perspectivas para o diaacutelogo tentando assim chegar a uma ldquoreformardquo diferente da do passado que culminou com a divisatildeo no seio da Cristandade ocidental Tal missatildeo se exerceraacute em harmonia com o pleno ofiacutecio de testemunho da Igreja que tira seu direito e sua forccedila da presenccedila do Espiacuterito e de Cristo presente em todos os tempos Pois ele eacute sempre o Cristo de agora com a plenitude de seus direitos e de seus poderes Ele eacute quem daacute legitimidade e vigor ao testemunho singular e definitivo da Escritura que por sua vez encontra seu pleno sentido na singularidade da accedilatildeo histoacuterico-salviacutefica de Jesus Cristo Ele deu ao Pai seu Corpo crucificado e dando-se a si mesmo santificou para sempre os que o receberam (cf Hb 1014 727) Ele eacute o Cristo ontem hoje e sempre (Hb 138)

SEGUNDA PARTE

Explicaccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo segundo o Decreto do Conciacutelio de Trento

Parece que a completa elucidaccedilatildeo das razotildees que levaram agrave substituiccedilatildeo do

partim-partim pelo et e consequumlentemente agrave pesquisa dos dados do debate tridentino e de sua preacute-histoacuteria aparentemente favoraacutevel agrave suficiecircncia material da Escritura [40] simplifica indevidamente este problema fazendo-nos perder de vista os proacuteprios antecedentes do Decreto do Conciacutelio de Trento

1 A concepccedilatildeo pneumatoloacutegica da Tradiccedilatildeo no esquema fundamental do Cardeal Cervini

a) O conteuacutedo Um balanccedilo histoacuterico e detalhado do problema em seu conjunto exigiria uma

pesquisa exaustiva que natildeo reduzisse o seu acircmbito como o fez Geiselmann em seu livro25 Natildeo eacute nossa intenccedilatildeo proceder a um exame minucioso do assunto no presente trabalho Aqui soacute seratildeo tratados alguns pontos do debate tridentino com o fim de ampliarmos mais o horizonte de nossas reflexotildees

Fundamental para a compreensatildeo dos debates em pauta bem como do Decreto definitivo do Conciacutelio parece-me ser o Discurso do Cardeal Legado Cervini datado de 18 de fevereiro de 1546 [41] cujas linhas gerais se patenteiam tanto no Decreto como em outras decisotildees conciliares26

Tem o discurso de Cervini o meacuterito de mostrar as linhas diretrizes do Decreto de maneira mais clara do que aparecem estas na uacuteltima redaccedilatildeo do mesmo onde elas se diluem muito devido a uma seacuterie de variadas implicaccedilotildees Eacute ainda de grande auxiacutelio para o entendimento do referido discurso uma carta dos Cardeais Legados ao Cardeal Alexandre Farnese de 28 de fevereiro de 1546 Esta carta revela conteuacutedo idecircntico ndash eacute certamente inspirada pelo mesmo Cervini ndash e oferece ainda alguns outros

25 Eacute lamentaacutevel que Geiselmann em sua anaacutelise da contribuiccedilatildeo medieval sobre este assunto se tenha apoiado apenas em argumentos de segunda matildeo portanto de valor histoacuterico discutiacutevel Queira o leitor ver minhas observaccedilotildees a este respeito in Theol-prakt Quartalschrift 1963 p224-227 As novas (e temperamentais) invectivas de Geiselmann in TThQu 144 (1964) p 31-69 em nada modificaram a minha posiccedilatildeo de vez que natildeo trazem nenhuma contribuiccedilatildeo vaacutelida ao assunto Precioso ao contraacuterio eacute o trabalho de Y CONGAR La Tradition et les traditionshellip Essai historique Paris 1960 Importante eacute tambeacutem a obra de J BEUMER Die muumlndliche uumlberlieferung als Glaubensquelle Friburgo 1962 A respeito do Conciacutelio de Trento cf sobretudo aleacutem do estudo fundamental de JEDIN o artigo de E ORTIGUES Escriture et Traditions apostoliques au Concilie de Trente in RSR 36 (1949) p 271-299 K D SCHMIDT Studien zur Geschichate des Konzilis von Trient Tubinga 1925 p 152-209 26 O discurso nos foi transmitido em duas redaccedilotildees A primeira mais curta encontra-se nas Atas do Conciacutelio in CT V 11 A segunda faz parte do diaacuterio de Massarelli (Diarium III) in CT I p484 Quanto ao conteuacutedo os dois textos se completam Na anaacutelise que aqui ensaiamos as duas versotildees satildeo comparadas entre si de modo a fazerem um todo Sobre a posiccedilatildeo de Cervini no Conciacutelio cf H JEDIN Geschichte des Konzils von Trient II Friburgo 1957 p38-40 A descriccedilatildeo do desenrolar histoacuterico dos debates acha-se em JEDIN op cit p42-82 e supomo-la conhecida do leitor de vez que serve de base para a anaacutelise teoloacutegica do Decreto tridentino

esclarecimentos Cervini sustenta no citado discurso que existem trecircs princiacutepios e fundamentos de nossa feacute

1) Os livros sagrados escritos sob a inspiraccedilatildeo do Espiacuterito Santo 2) O Evangelho que Nosso Senhor natildeo escreveu mas ensinou oralmente e

implantou nos coraccedilotildees Parte do Evangelho foi escrita mais tarde pelos Evangelistas enquanto muita coisa foi simplesmente confiada aos coraccedilotildees dos fieacuteis

3) Porque o Filho de Deus natildeo ia permanecer sempre entre noacutes enviou ele o Espiacuterito Santo que haveria de revelar os misteacuterios no iacutentimo dos fieacuteis e de ensinar agrave Igreja toda a verdade ateacute ao fim dos tempos27

[43] Numa segunda redaccedilatildeo mais detalhada do discurso estas mesmas ideacuteias satildeo

desenvolvidas mais amplamente Aiacute lemos que a Revelaccedilatildeo se apresentou de modo diferente em diversos tempos

1) Nos Patriarcas cuja feacute eacute atestada na Escritura a que chamamos de Antigo Testamento

2) Em Jesus Cristo que implantou o seu Evangelho natildeo por escrito mas oralmente natildeo in charta mas in corde Das coisas que emanaram de Cristo (quaelig a Cristo emanarunt) algumas foram escritas outras permaneceram nos coraccedilotildees dos homens (quaeligdam in cordibus hominum relicta fuerunt) Todo o Evangelho de Cristo que consta desta dupla modalidade forma (tendo como primeiro princiacutepio o Antigo Testamento) o secundum prindipium fidei nostraelig

3) Daiacute surge o terceiro princiacutepio (tertium autem) porque o Filho de Deus natildeo iria permanecer sempre entre noacutes enviou ele ao mundo o Espiacuterito Santo que haveria de explicar os misteacuterios de Deus e tudo o que fosse ainda obscuro para os homens28 De modo semelhante a citada carta ao Cardeal Farnese fala de dois passos (due

passi) Um eacute que a Revelaccedilatildeo de Nosso Senhor natildeo foi totalmente escrita mas permaneceu em parte contida nos coraccedilotildees dos homens e na Tradiccedilatildeo da Igreja O outro [43] passo consiste em confirmar ldquoquello che egrave suggerito lo Spirito Santo in la Chiesa maxime medianti i concilij doppo lAscensione in cielo del Signorerdquo29

Notamos logo que contrariamente ao que esperaacutevamos natildeo dois mas trecircs satildeo os princiacutepios apontados a Escritura o Evangelho e a Revelaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

27 CT V 11 helliptria esse principia et fundamenta nostrae fidei primum libros sacros secundum esse evangelium quod Christus Dominus Noster non scripsit sed ore docuit et in cordibus illud plantavit cujus evangelii nonnulla evangelistaelig scripto mandarunt multa quoque relicta sunt in cordibus hominum Tertium quia non semper filius Dei corporaliter nobiscum mansurus erat misit Spiritum Sanctum qui in cordibus fidelium secreta Dei revelaret et ecclesiam quotidie et usque consummationem saeligculi doceret omnem veritatem et si quid in mentibus hominum dubii occurrisset declararet 28 CT I 484 Digna de nota eacute ainda a foacutermula contida na paacutegina 48514-16 nihil tamen inter scripturas sacras et apostolicas traditianes differt illaelig enim scriptaelig hae per insinuationem habentur utraeque tamen a Spiritu Sancto eodem modo emanataelig Confira-se com CT V 11 19 ab eodem Spiritu et illos (scilicet libros) et istas (scilicet traditiones) descendisse 29 CT X 373

Eacute portanto necessaacuterio observar que sob o termo ldquoEscriturardquo se entende o Antigo Testamento e que aleacutem deste (que eacute Escritura em sentido proacuteprio) aparece como segundo princiacutepio o Evangelho apresentaccedilatildeo do Cristo-evento O Evangelho por sua vez abrange o que estaacute escrito e o que natildeo estaacute escrito mas sim apenas insculpido no coraccedilatildeo dos crentes Deste modo o segundo princiacutepio representa uma vantagem pneumaacutetica sobre o que estaacute escrito o Evangelho eacute nesta concepccedilatildeo algo diferente da letra (Escritura) e soacute em parte vem escrito (Isto natildeo deve ser entendido no sentido de divisatildeo das verdades da feacute fenocircmeno denunciado ldquocom horrorrdquo por Geiselmann Ao contraacuterio Entenda-se apenas no sentido de diferente grau de dignidade no modo de exprimir-se) Em rigor o Evangelho como tal soacute pode ser escrito em parte se considerarmos a sua essecircncia

Finalmente ndash o que eacute muito de se admirar ndash segue-se como terceiro princiacutepio a accedilatildeo visiacutevel do Espiacuterito Santo em todo o tempo da Igreja

Admitimos portanto que o que noacutes geralmente chamamos de Tradiccedilatildeo natildeo aparece aqui como um soacute princiacutepio Biparte-se antes em dois princiacutepios intimamente ligados o ldquoEvangelhordquo princiacutepio apenas em parte identificaacutevel com a Escritura e a accedilatildeo do Espiacuterito Santo no tempo da Igreja Ademais podemos observar que a Escritura do Novo Testamento natildeo aparece como um princiacutepio ao lado da Revelaccedilatildeo apostoacutelica Muito menos como [44] eacute o nosso caso se apresenta a Escritura neotestamentaacuteria juntamente com a veterotestamentaacuteria como uma grandeza uacutenica uma ldquoEscriturardquo soacute agrave qual se poderia contrapor a ldquoTradiccedilatildeordquo como uma segunda grandeza O Novo Testamento em seu conjunto aparece como um segundo e mais amplo princiacutepio ou seja o Evangelho que como tal se opotildee de um lado ao Antigo Testamento e de outro agrave projeccedilatildeo histoacuterica do tempo da Igreja Sua unidade interna eacute evidentemente mais forte e importante do que a sua divisatildeo em escrito e natildeo-escrito Assim o Evangelho como um soacute princiacutepio pode ser contraposto ao Antigo Testamento a despeito desta dupla formalidade A impossibilidade de se representar o Novo Testamento como Escritura impossibilidade esta demonstrada por Satildeo Paulo e pelos primeiros seacuteculos cristatildeos eacute aqui claramente revelada

Ainda uma observaccedilatildeo relativa ao texto a que vimos nos referindo Em nenhum dos dois pontos por noacutes citados no estudo da Tradiccedilatildeo isto eacute nem no elemento contido no primeiro nem no apresentado no terceiro princiacutepio figura a Tradiccedilatildeo como verbal Em ambos os casos ao contraacuterio trata-se mais da Tradiccedilatildeo real com prevalecircncia da realidade sobre as palavras que a atestam Este fato que estaacute claro no terceiro princiacutepio o pneumatoloacutegico vale tambeacutem em relaccedilatildeo agrave implantaccedilatildeo do Evangelho nos coraccedilotildees contida no segundo princiacutepio Tal implantaccedilatildeo vai muito aleacutem do que se encontra expresso na letra da Escritura

Que papel tenham estas ideacuteias exercido nas discussotildees do Conciacutelio pode-se concluir tambeacutem das auctoritates citadas por Cervini entre as quais figuram Jo 16 12 (hellipSpiritus Sanctus suggerethellip) e Fl 3 15 (Quicumque perfecti sumus haeligc sentiamus et si quid aliter sentitis haeligc quoque Deus vobis revelabit) Ambos estes textos satildeo de teor acentuadamente [45] pneumatoloacutegico-presencial30 Que tais ideacuteias natildeo eram

30 CT V 14 e 15 Um exame profundo das auctoritates quer da Escritura quer entre os Santos Padres que neste particular satildeo favoraacuteveis agrave Tradiccedilatildeo seria em si conclusivo para a elaboraccedilatildeo do conceito

estranhas aos Padres conciliares deduz-se ainda de uma seacuterie de outras referecircncias Assim ouvimos o Bispo de Aqui dizer que aleacutem da Sagrada Escritura existe muita coisa na Igreja de Deus que vindo dos Apoacutestolos e passando de geraccedilatildeo a geraccedilatildeo chegou ateacute noacutes assim como muitas outras quaelig etsi scripta Apostoli nobis non reliquerunt per Spiritus Sancti revelationem nobis (tradita) sunt (Tradita estaacute aqui por revelata) 31 Partindo daiacute se poderia descrever a Tradiccedilatildeo justamente como o componente pneumatoloacutegico do Cristo-evento b) A influecircncia do esquema de Cervini em diversas decisotildees conciliares

Eacute verdade que esta concepccedilatildeo tripartida aparece muito atenuada no Decreto

oficial sobre a Tradiccedilatildeo Que poreacutem em suas linhas fundamentais natildeo tenha ela sido de modo nenhum [46] abandonada mostram-no duas outras passagens nas quais o Conciacutelio faz uso por assim dizer in actu das ideacuteias aqui expressas32 Assim na Introduccedilatildeo ao Decreto sobre a Eucaristia (Denz 873) se lecirc Sacrosancta Synodus sanamhellipdoctrinam tradens quam semper catholica Ecclesia ab ipso Jesu Christo Domino Nostro et eius apostolis erudita atque a Spiritu Sancto illi omnem veritatem in dies suggerente (Jo 1416) edocta retinuithellip

Aqui a accedilatildeo proacutepria do Conciacutelio eacute descrita como tradere e a este tradere eacute atribuiacutedo um duplo fundamento De um lado o ensino de Jesus e dos Apoacutestolos (Note-se que este ponto corresponde ao Evangelho segundo a concepccedilatildeo de Cervini E de certo modo tambeacutem pela citaccedilatildeo de Jesus e dos Apoacutestolos se reconhece a dupla modalidade do Evangelho como escrito e como inserido nos coraccedilotildees) De outro lado o ensino dado pelo Espiacuterito Santo que conduz agrave verdade in dies isto eacute no de correr do tempo futuro

O outro texto que pode ser aduzido aqui como prova do que afirmamos encontra-se no Preacircmbulo do Decreto sobre o Purgatoacuterio (Denz 983) Aiacute se lecirc hellipCatholica Ecclesia Spiritu Sancto edocta ex Sacris Litteris et antiqua Patrum traditione in sacris Conciliis et novissime in hac Synodo docuerit A descriccedilatildeo da accedilatildeo proacutepria do

aqui exposto H HOLSTEIN procurou fazer o cotejo destas auctoritates e fecirc-lo de modo admiraacutevel em seu artigo La Tradition dapregraves le Concile de Trente (RSR 47 1959 p367-390 e em particular para o caso em questatildeo a p375) Ele encontra nos textos estudados duas linhas de tendecircncias A linha de Santo Irineu para a qual o testemunho dos Apoacutestolos eacute o de sua personalidade de sua vida e de seu ofiacutecio Aleacutem desta o grupo composto de Tertuliano Cipriano Basiacutelio e Agostinho forma uma corrente que se poderia denominar ldquocerimonialrdquo Oriacutegenes se enquadra em ambos os grupos Existe entre os autores estudados uma seacuterie de textos que se referem agraves observationes consuetudines institutiones e que levam a entender-se a Tradiccedilatildeo neste mesmo sentido Aiacute se vecircem tambeacutem textos que sublinham o aspecto natildeo-escrito do Evangelho enquanto insculpido no coraccedilatildeo dos fieacuteis e aleacutem disso textos que apontam a Igreja como o ldquolugarrdquo da verdade cristatilde 31 CT I 483 (18 de fevereiro de 1546) Em 26 de fevereiro (CT V 18) encontramos Cervini a tratar de novo deste assunto Cf tambeacutem um pronunciamento do Bispo de Fano (CT V 10) nestes termos Cum jam receperimus Scripturas Sacras necessario recipiendaelig sunt traditiones quaelig ab eodem Spiritu Sancto quo scripturaelig dictataelig sunthellip 32 Disto me adverti pela primeira vez atraveacutes de um estudo realizado sob a minha orientaccedilatildeo por CHR LIMBACR a quem sou devedor de muitas informaccedilotildees bibliograacuteficas

Conciacutelio como tradere encontra-se ainda nas declaraccedilotildees sobre o Sacramento da Extrema-Unccedilatildeo (Denz 910)

Finalmente a triacuteplice divisatildeo deixa-se insinuar nas entrelinhas do Decreto sobre a Tradiccedilatildeo embora obscurecida e diluiacuteda por uma seacuterie de acreacutescimos e citaccedilotildees a ele adicionados por outros motivos O Decreto da Tradiccedilatildeo com efeito [47]

1) Fala do Evangelho prometido pelos Profetas na Escritura e refere-se a esta em sentido estrito quer antes quer depois do Antigo Testamento

2) Fala da promulgaccedilatildeo por Cristo do Evangelho que foi transmitido pelos Apoacutestolos sob dupla forma oral e escrita Desta maneira o que natildeo ocorre no exemplo de Cervini aparece aqui antes de tudo o componente pneumatoloacutegico unido com o componente apostoacutelico a ponto de se distinguirem duas modalidades de Tradiccedilatildeo apostoacutelica a que remonta a Cristo e a que remonta ao envio do Espiacuterito Santo Pode-se assim estabelecer que em oposiccedilatildeo ao esquema de Cervini haacute um certo processo de historicizaccedilatildeo que salienta a relaccedilatildeo com o comeccedilo histoacuterico e igualmente parece deslocar o acento da tradiccedilatildeo real para a verbal

3) No epiacutelogo desta parte do Decreto da Tradiccedilatildeo que vimos analisando de novo eacute considerada a ideacuteia da Sagrada Escritura O conceito de Tradiccedilatildeo eacute entatildeo formulado em definitivo e descrito como vel oretenus a Christo vel a Spiritu Sancto dictatas et continua successione in Ecclesia catholica conservatas A referecircncia aos Apoacutestolos eacute omitida Pode-se na verdade considerar tudo isto como uma volta ao que foi dito antes Evidentemente a tradiccedilatildeo ditada pelos Apoacutestolos eacute citada de novo (A expressatildeo continua successione insinua-o) Contudo permanece sempre ainda certa indeterminaccedilatildeo ficando aberta a possibilidade de se encontrar aqui o vestiacutegio do terceiro componente de Cervini o princiacutepio pneumaacutetico propriamente dito Eacute tambeacutem claro que esta ideacuteia eacute discreta sendo adotada uma posiccedilatildeo mais acentuadamente histoacuterica Se agora lanccedilarmos os olhos sobre o que vimos considerando ateacute aqui surgiratildeo

inevitavelmente perguntas qual eacute realmente o sentido proacuteprio da concepccedilatildeo pneumatoloacutegica Como poderia ser perfeitamente entendida a ideacuteia a noacutes estranha de uma revelatio prolongada no tempo em face da unicidade e do caraacuteter [48] histoacuterico da Revelaccedilatildeo que evidentemente era conhecido tanto de Cervini quanto dos Santos Padres e teoacutelogos medievais33

Antes de examinarmos isto devemos esclarecer rapidamente os principais motivos que inspiraram o Decreto tridentino sobre a Escritura e a Tradiccedilatildeo deixando nele um tanto encoberta a concepccedilatildeo pessoal de Cervini Que opiniotildees de teoacutelogos teratildeo intervindo aqui chegando a ser em parte impressas no texto definitivo que resultou do cotejo de muitos pronunciamentos diversos Uma exposiccedilatildeo detalhada deste ponto exorbitaria do acircmbito de nossa anaacutelise Contentemo-nos com umas poucas observaccedilotildees sumaacuterias 33 Sobre este assunto tentei fazer um breve comentaacuterio no meu trabalho ldquoOffenbarung-Schrift-Uberlieferungrdquo in TThZ 67 (1958) p13-27 Cf J BEUMER ldquoDer theoretische Beitrag der Frnhscholastik zum Problem des Dogmenfortschrittsrdquo in ZkTh 72 (1952) p205-226 J de CHELLINCK Pour lrsquohistoire du mot ldquorevelarerdquo in RSR 6 (1916) p149-157

2 Relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a vida da Igreja

em diversas passagens do debate tridentino

Uma primeira seacuterie de motivos entre os quais se compreendem diversos pronunciamentos agraves vezes muito contrastantes em seu aparato exterior patenteia-se na ideacuteia de tradiccedilotildees expressa no Decreto de duas maneiras a) - per manus traditaelig ad nos usque pervenerunt b) - continua successione in Ecclesia catholico conservatas

O que se ocultaraacute sob estas duas foacutermulas que o historiador de hoje tem dificuldades em aceitar justamente por causa do historicismo nelas impliacutecito Podemos dizer que um decisivo papel exerceu aqui o pensamento que sempre aparecia nos debates a saber que as tradiccedilotildees satildeo variaacuteveis que muitas delas foram abolidas pelos Apoacutestolos e que por outro lado se [49] introduziram tradiccedilotildees eclesiaacutesticas que natildeo mais seriam abolidas34 Esta ideacuteia de Tradiccedilatildeo de certo modo se torna clara no tratado escrito sobre o mesmo assunto por Seripando para uso dos Padres Conciliares Seripando fala das Tradiccedilotildees escritas inseridas na Escritura como as claacuteusulas de Tiago o costume de as mulheres se cobrirem com um veacuteu a legislaccedilatildeo sobre o matrimocircnio contida em 1Cor 7 etc E o autor adverte que estas praacuteticas foram abolidas Isto porque embora associadas agrave palavra de Deus na Escritura dela ldquomuito diferemrdquo pois a palavra divina [50] de modo nenhum poderia ser abolida A estas tradiccedilotildees

34 Cabe aqui aduzir uma nova intervenccedilatildeo de Cervini datada de 26 de fevereiro de 1546 (CT I 33 e V 18) onde ele diz que nem todas as tradiccedilotildees procedentes dos Apoacutestolos devem ser conservadas mas somente as que ab Ecclesia receptaelig ad nos usque pervenerunt (V 18) Esta afirmaccedilatildeo anterior agrave formulaccedilatildeo dogmaacutetica feita pelo Concilio deve igualmente ser tida na conta de um autecircntico comentaacuterio do Decreto Aiacute se acentua como condiccedilatildeo essencial das tradiccedilotildees a receptio ecclesiaelig Vem ainda referida uma intervenccedilatildeo do Bispo de Bertinoro em data de 23 de marccedilo (I p 523) na qual ele sublinha que as tradiccedilotildees escritas por vezes foram mudadas Jaacute entre as natildeo-escritas umas foram mudadas e outras natildeo como por exemplo o rito de adicionar aacutegua ao vinho a Crisma a confissatildeo auricular O Bispo de Bertinoro acrescenta que por outro lado alguns pontos existem que permaneceram inteiramente inalterados tais como a crenccedila no descensus ad inferos na virgindade perpeacutetua de Maria a substituiccedilatildeo da observacircncia do saacutebado pela do domingo Temos depois um pronunciamento do Bispo de Bitonto datado de 27 de marccedilo (I 39) Este bispo era de parecer que algumas coisas foram transmitidas pelos Apoacutestolos com a finalidade de serem perpetuamente conservadas (como pertencentes ao depoacutesito da feacute) outras caiacuteram em desuso (como as claacuteusulas de Tiago) e outras enfim foram apenas aconselhadas Assim mesmo na Escritura algumas coisas haacute que foram escritas mas natildeo recebidas em uso por serem mateacuteria de mero conselho Por exemplo ldquose algueacutem te pedir a tuacutenica daacute-lhe tambeacutem o paacutelio se algueacutem te esbofetear numa face oferece-lhe tambeacutem a outrardquo Sem duacutevida excelente ilustraccedilatildeo do sermatildeo da montanha Finalmente consideraccedilotildees idecircnticas podemos encontrar na obra citada de LEJAY Eis outra amostra tirada do discurso de 23 de fevereiro (CT V 13) Nam illaelig (scil traditiones) quaelig ad fidem pertinent eadem sunt recipiendaelig auctoritate qua recipitur evangelium alia autem non ita eum earum plurimaelig immutataelig fuerint ut de bigamis de esu sanguinis et similia De modo semelhante aliaacutes fala tambeacutem Bonuccio (I 525 a 23 de marccedilo de 1546 ecclesia traditiones apostolorum quandoque mutavit verbum autem Dei nunquam mutavit neque mutare potest

Seripando opotildee as natildeo referidas na Biacuteblia e que ora satildeo apostoacutelicas ou oriundas de Conciacutelios universais e aceitas por toda a Igreja ora satildeo particulares e muito variaacuteveis35

Este texto nos leva a uma surpreendente conclusatildeo para Seripando e muitos outros Padres tridentinos36existem tradiccedilotildees na Escritura ldquoTradiccedilatildeordquo natildeo significa o natildeo-escrito Existe quer dentro da Escritura quer fora dela Isto nos conduz a outra pergunta em que consiste para os referidos Padres a essecircncia da tradiccedilatildeo se o que a constitui natildeo eacute o fato de natildeo ser escrita37 Em outros termos como pode a tradiccedilatildeo ser definida positivamente se ela natildeo pode ser suficientemente determinada pela ideacuteia negativa de algo natildeo-escrito

Haacute uma seacuterie de respostas para esta pergunta O proacuteprio Seripando daacute a seguinte definiccedilatildeo Traditiones hoc est Apostolorum seu sanctorum Patrum sanctae et salutares constitutiones38 Mais clara ainda eacute a afirmaccedilatildeo de Cervini citada por Massarelli A objeccedilatildeo do Bispo de Chioggia que aduzia a opiniatildeo de Agostinho de que tudo o que eacute necessaacuterio para a salvaccedilatildeo estava escrito na Biacuteblia respondia Cervini da seguinte maneira Verba illa (isto eacute de Santo Agostinho) formaliter intelligi debent scilicet ad fidem accipiendam ut salvi fiamus Quo vero ad mores et christianam vitam instituendam certo non omnia scripta sunt

[51] E de novo recorre agraves provas tiradas de Jo 1526 e 1426 E indica o princiacutepio pneumatoloacutegico39 O que eacute mais importante eacute que a Tradiccedilatildeo se refere agrave institutio vitaelig agrave presenccedila atuante da Palavra revelada na existecircncia cristatilde Tradiccedilatildeo eacute noutros termos a eficaacutecia da palavra de Deus Sem ela a palavra ficaria esteacuteril 35 Seripando De traditionibus (fevereiro ou marccedilo de 1546) CT XII p517-521 e principalmente a p 521 As expressotildees desta uacuteltima paacutegina chocam-se com a ideacuteia de Cervini sobre a receptio ecclesiaelig 36 Cf o texto citado na nota 11 37 No texto definitivo do Decreto esta ideacuteia natildeo aparece mais Aqui poreacutem com esta primeira designaccedilatildeo expliacutecita da Tradiccedilatildeo vem expressamente acentuado o contraste entre in libris scriptis et sine scripto traditionibus Na segunda redaccedilatildeo o sentido expliacutecito da palavra Tradiccedilatildeo natildeo eacute tatildeo exclusivo Contudo apresenta igual matiz ao se confrontarem as expressotildees omnes libroshellipnec non traditiones ipsas Portanto a ideacuteia positiva da Tradiccedilatildeo que serve de base a esta anaacutelise natildeo deixou de influenciar na redaccedilatildeo do Decreto 38 CT XII 517 39 CT I 494 (26 de fevereiro de 1546) A citada palavra de Santo Agostinho teve o seu papel a desempenhar na discussatildeo em curso Seripando por exemplo a ela se referiu (De traditionibus CT XII 521 47-53) Pensandum denique ne in traditionibus externis vera religio et salutis spes statuatur de quibus Augustinus Omnia quaelig pertinent ad veram religionem quaeligrendam et tenendam divina Scriptura non acuit Conceda-se que nem tudo foi escrito (veja-se Jo 2125) Todavia electa sunt autem quaelig scriberentur quaelig saluti credentium sufficere videbantur Mais do que nos debates do tridentino encontramos aqui um verdadeiro postulado dos Reformadores ldquonatildeo adotar costumes exteriores mas buscar os meios definitivos de salvaccedilatildeo na palavra da Escriturardquo A ldquosuficiecircnciardquo da Escritura de que aqui se fala eacute na verdade algo diverso da suficiecircncia material da mesma Escritura defendida por Geiselmann em sentido muito mais radical Infelizmente ainda natildeo se quis levar na devida consideraccedilatildeo o texto de Santo Agostinho (CT I 494 sugere De doctrina christiana II 9 e De pecc mero et rem II 59) Muito apropriadas nesta ordem de ideacuteias satildeo as observaccedilotildees de H SCHAUF ldquoSchrift und Traditionrdquo in Antonianum 39 (1964) p200-209 feitas no chamado Encontro de Duumlsseldorf Nos textos citados por Schauf com base em Agostinho eacute afirmada a suficiecircncia da Escritura para a salvaccedilatildeo Eacute contudo contestada a sua suficiecircncia para a Igreja em geral De fato esta alternativa parece muito mais vaacutelida e fundamental agrave luz dos postulados dos Reformadores do que a alternativa entre a suficiecircncia ou insuficiecircncia material da Escritura

Na mesma linha de ideacuteias seguem-se duas outras seacuteries de pronunciamentos Vimos na introduccedilatildeo agrave parte anterior que a discussatildeo dogmaacutetica da ideacuteia de

Tradiccedilatildeo foi em parte prejudicada pela questatildeo do meacutetodo a seguir no Conciacutelio dever-se-ia abordar primeiro a reformatio a reforma praacutetica da Igreja como queria o ldquoKaiserrdquo Ou primeiro discutir a questatildeo dogmaacutetica como preferia o Papa40

[52] Este problema do meacutetodo embora resolvido no debate que entatildeo surgiu natildeo afetou diretamente a questatildeo da Tradiccedilatildeo como tal Mas como de fato estas duas questotildees ficaram ligadas entre si daiacute resultou que muitos oradores transformaram a questatildeo do meacutetodo (se se deveria falar dos abusos ou da Tradiccedilatildeo) em parte de sua argumentaccedilatildeo em torno do assunto em pauta41 O problema abusus e o problema Traditio ficaram de tal maneira associados na ocasiatildeo que pareciam formar no fundo um soacute assunto Por isso os oradores ora falavam em sentido positivo ora se pronunciavam em sentido negativo Isto correspondia tambeacutem ao propoacutesito reformista do Conciacutelio as traditiones representavam os abusus aos quais a Igreja se opunha Os Padres estavam cocircnscios de que condenar as traditiones era condenar Os usus ecclesiaelig o modo como a Igreja vivia a sua vida naquela eacutepoca

A outra seacuterie de pronunciamentos que se inclinavam ao mesmo sentido encontramo-la nas proposiccedilotildees que a auctoritas da Igreja apresenta como definitivas indicando uma iacutentima relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a institutio christiana 42

[53] Podemos agora retomar ao nosso ponto de partida e dar resposta agrave pergunta que propriamente significa a foacutermula ad nos usque pervenerunt Objetivamente natildeo se trata aqui de um historicismo que a foacutermula parece expressar Ao contraacuterio Trata-se da fidelidade perseverante da Igreja agrave institutio vitaelig christianaelig da legiacutetima forma de vida cristatilde em concreto no tempo presente da Igreja da institutio christiana que coloca a Escritura em primeiro lugar e que como tal isto eacute como vida decorrente da Escritura eacute fundamentalmente apostoacutelica embora tambeacutem sujeita a mudanccedilas como tudo o que eacute vivo

3 A Tradiccedilatildeo e o dogma eclesiaacutestico

40 Sobre o debate em torno da questatildeo do meacutetodo cf mais uma vez JEDIN op cit p9-82 e outras 41 Assim jaacute no discurso de Cervini antes analisado (CT I 484) no qual ele recorda o dilema do Conciacutelio se nos voltarmos contra as tradiccedilotildees ficaratildeo admirados os Padres Conciliares quasi reformationem fugiamus si ipsam reformationem sumimus iterum objicient traditiones relinquendas non esse Idecircntica era a situaccedilatildeo em que se encontrava o Bispo de Astorga nas duas intervenccedilotildees que fez no dia 23 de fevereiro de 1546 (CT V 13 e 19) segundo Seripando (I 484) helliptraditiones prius pertractandas consulit tantam enim conformitatem abusus qui ex sacris libris descendunt cum iis qui a traditionibus orti sunt habent ut sacris libris et traditionibus absolutis duo illa abusuum genera simul pertractari valeant Segundo Bonuccio (I 484) antes de tudo dever-se-ia tratar das Sagradas Escrituras dos cacircnones apostoacutelicos dos Conciacutelios gerais e das decretais pontifiacutecias Hisque ilusceptis ad abusus ex eisdem dependentes devenire 42 Assim principalmente de acordo com Afonso de Castro (CT I 484) Quoniam ultra traditiones apostolicas ecclesiae auctoritatem habemus quaelig ecclesiaelig auctoritas tonta apud nos est ut aliqui eam maioris roboris quam sacros libros esse sentiant Cf igualmente CT I 491 45 Na mesma linha pode-se ver uma seacuterie de pronunciamentos na citada obra de LEJAY Cf CT XII 524 (Tratado De traditionibus ecclesiaelig fevereiro ou marccedilo de 1546)

Uma segunda seacuterie de motivos eacute expressa no Decreto pela foacutermula traditiones tum ad fidem tum ad mores pertinentes Se como vimos a ideacuteia de Tradiccedilatildeo aparece muito limitada naquilo que os Padres conciliares chamam consuetudines observationes institutiones por outro lado o Procurador do Cardeal de Augsburgo Claudio Lejay SJ se fez o porta-voz de uma expressatildeo que em oposiccedilatildeo agraves traditiones caeligremoniales estabeleceu justamente o sentido da tradiccedilatildeo contida na feacute Seu tratado sobre a Tradiccedilatildeo composto para uso dos Padres conciliares inclui tambeacutem a foacutermula que foi adotada pelo Conciacutelio Aiacute se diz Denique multas veritates tum ad fidem tum ad mores pertinentes Ecclesia novit quas Scriptura aperte et expresse non continet Ele cita como exemplos as palavras persona essentia trinitas no Tratado da Santiacutessima Trindade consubstantialitas na Cristologia do Logos duas naturezas uma soacute Pessoa referentes ao dogma definido pelo Conciacutelio de Calcedocircnia E ainda Cristo Filho uacutenico de Maria duas vontades na uacutenica Pessoa de Cristo uma alma racional aleacutem do espiacuterito divino em Cristo Ana matildee de Maria o costume de fazer sinais da cruz a santificaccedilatildeo do domingo a maneira de rezar com face voltada [54] para o Oriente tudo isto ideacuteias e fatos da tradiccedilatildeo conciliar e da piedade cristatilde43

Cervini que aprovou o discurso de Lejay de 23 de fevereiro de 154644 pocircde dificilmente conciliar esta posiccedilatildeo com a sua expressa na jaacute citada carta ao Cardeal Farnese onde como vimos ele diz que o Espiacuterito Santo falou na Igreja e depois da Ascensatildeo do Senhor fala ainda maxime medianti i concilii45 Ele aiacute viu publicamente sublinhado o fato de que aquele ldquomaisrdquo que a Igreja viva representa em relaccedilatildeo agrave palavra meramente escrita natildeo se referia e natildeo se refere apenas agrave vita instituenda ou como ele prefere agrave caeligremonialia Refere-se tambeacutem agrave essentialia fidei que antes de tudo plenamente se expressam na Tradiccedilatildeo Tambeacutem aqui como se vecirc o interesse dominante natildeo estaacute na apresentaccedilatildeo historicista do assunto a partir do iniacutecio da Igreja mas na ideacuteia de que a influecircncia da Tradiccedilatildeo sobretudo atraveacutes da praxe conciliar eacute de fundamental importacircncia para a feacute para a doutrina crida e natildeo apenas para a piedade viva ou a caeligremonialia

4 O sentido do Decreto tridentino

Se recapitularmos o que ateacute agora dissemos veremos que no conjunto facilmente se podem reconhecer trecircs diferentes concepccedilotildees teoloacutegicas unidas entre si no texto definitivo do Decreto sobre a Tradiccedilatildeo Unidas mas natildeo equiparadas umas agraves outras Pelo contraacuterio apesar de sua grande diferenccedila foram elas apenas [55] mais ou menos justapostas e de novo por forccedila de uma tendecircncia comum relacionadas entre si

1 A concepccedilatildeo de Cervini que designamos como pneumatoloacutegica Com sua doutrina sobre os trecircs principia fidei insiste ele no caraacuteter dinacircmico do Cristo-evento

43 CT XII 523 LEJAY baseia-se evidentemente em listas de tradiccedilotildees confeccionadas naquele tempo (Cf ECK DRIEDO CANO BOTO NOGAROLA) Cf a este respeito Y CONGAR ldquoTraditions apostoliques non eacutecrites et suffisance de lEscrituresrdquo in Istina 6 (1959) p219-306 e principalmente a paacutegina 289 44 CT V 14 45 CT X 373

presente na Igreja Entende assim a Tradiccedilatildeo primariamente como a realidade espiritual da institutio vitaelig christianaelig

2 A concepccedilatildeo que podemos chamar de cerimonial Esta entende a Tradiccedilatildeo essencialmente como a seacuterie de consuetudines existentes ao lado da feacute como os usus ecclesiaelig que os Reformadores falsamente pretendem abolir como abusus Esta concepccedilatildeo chega a condenar a dignidade e Antiguumlidade apostoacutelica das tradiccedilotildees Sua ideacuteia eacute limitada pelo ad nos usque pervenerunt que inclui possibilidade de variar da parte das tradiccedilotildees donde a necessidade de reduccedilotildees Com os termos pervenire e conservare a recepccedilatildeo por parte da Igreja eacute considerada criteacuterio adicional ao lado da Antiguumlidade

3 A concepccedilatildeo que talvez possamos denominar dogmaacutetica Em oposiccedilatildeo agrave fixidez da ideacuteia de Tradiccedilatildeo reduzida agrave consuetudo salienta esta terceira hipoacutetese a extensatildeo do fenocircmeno Tradiccedilatildeo tambeacutem ao acircmbito da fides

Estas trecircs concepccedilotildees deram forma ao texto do Decreto de tal modo que as suas

linhas mestras derivam de Cervini e todo o texto deve ser entendido agrave luz de suas ideacuteias Contudo em duas passagens isto eacute no pervenerunt e no conservatas haacute influecircncia da segunda concepccedilatildeo enquanto no tum ad fidem tum ad mores haacute influecircncia da terceira

Em face destas trecircs concepccedilotildees das quais na realidade existem diversas variantes que tomadas em conjunto satildeo a expressatildeo das ideacuteias dominantes adotadas aparecem as teses de Bonuccio e de Nacchianti tatildeo postas em evidecircncia por Geiselmann como sentenccedilas contraacuterias De fato o parecer de Bonuccio claramente [56] se opotildee agrave segunda concepccedilatildeo (contra a supervalorizaccedilatildeo das consuetudines natildeo per pietatis affectus) ao passo que Nacchianti se levanta antes contra a terceira posiccedilatildeo e salienta a suficiecircncia da feacute recebida por meio da Escritura46

Seria de notar-se ainda que as concepccedilotildees segunda e terceira tecircm algo em comum Ambas opotildeem agrave visatildeo pneumatoloacutegica de Cervini da salvaccedilatildeo sempre presente uma visatildeo mais historicista relacionada com o prolongamento da salvaccedilatildeo operada uma soacute vez ou seja o ἑφάπαξ Na realidade deve-se dizer que embora de um lado tanto a visatildeo presencial de Cervini como tambeacutem a visatildeo historicista do outro grupo se consideradas isoladamente cada qual de per si sejam perigosas se natildeo insustentaacuteveis 46 Aliaacutes de acordo com uma informaccedilatildeo de Cervini parece que o Bispo de Chioggia finalmente renunciou agrave sua tese da suficiecircncia da Escritura na qual se inclinava a recusar as tradiccedilotildees Na carta de Cervini ao Cardeal Farnese de 27 de fevereiro de 1546 lemos hellip Chioggia che (quasi quasi) voleva dire queste traditioni essere superflue perorando che tutto quello che era necessario alla salute era scritto et allegando etiam S Agostino sopra lultimo capitulo di S Giovanni a questo proposito Pure per non poter negare che molte cose appartenenti almeno alli sacramenti non ci fussero venute ex tra ditione et per consequente che non tutte le cose necessarie alia nostra salute erano scritte poiche ebbe fatte molte distintioni concluse che ancor lui accettava queste ldquoche in la chiesa fusse qualque traditione apostolica non scrittardquo (et con queste parole diceva che se ne facesse il decreto) credo che molti sono restati scandalizati di lui (CT X Nr 315 paacutegs 399 411) Cf tambeacutem CT I 494 nota 9 e 495 nota 2 CT V 18 nota 5 e 19 e nota 1 O mesmo protesto que aparece contra Nacchianti manifesta-se tambeacutem na observaccedilatildeo de Massarelli Este chega a chamar aquele de novarum rerum cupidus (1 494 18) e esclarece que reprehensus est a multis (1 494 22) Diante disto eacute de todo destituiacuteda de creacutedito a importacircncia que Geiselmann lhe atribui mesmo se abstrairmos de outras razotildees jaacute conhecidas sobre as quais natildeo precisamos insistir

de outro lado pelo menos tornam possiacutevel uma exata visatildeo do conjunto devido agrave sua muacutetua confluecircncia e limitaccedilatildeo No texto atual estatildeo presentes embora pouco nitidamente ambos os pontos de vista o elemento presencial e o ἑφάπαξ Conveacutem que entendamos assim o texto de modo a considerarmos [57] ambos estes aspectos como essenciais Consequumlentemente reconheceremos que ambos pertencem constitutivamente agrave realidade da vida cristatilde e portanto tambeacutem agravequela parcela do Cristianismo a que damos o nome de Tradiccedilatildeo Estes dois elementos satildeo a presenccedila do Espiacuterito Santo e o seu nexo com o fato singular da salvaccedilatildeo ocorrido uma soacute vez por todas na histoacuteria dos homens

Assim se acharaacute finalmente a resposta agrave pergunta de corno noacutes devemos entender o parecer do Conciacutelio de Trento A primeira e mais importante conclusatildeo parece-me ser o fato de o Conciacutelio ter visto muito claramente o nexo entre Tradiccedilatildeo e Revelaccedilatildeo A seguir elaborou sempre em consonacircncia com a tradiccedilatildeo patriacutestica e medieval um conceito de Revelaccedilatildeo muito menos material do que o que seraacute adotado mais tarde pela teologia dos tempos modernos Somente assim se deve conceber a ideacuteia da Revelaccedilatildeo do Espiacuterito Santo na Igreja Partindo do ramo nitidamente patriacutestico da teologia medieval tatildeo francamente acolhido no discurso de Cervini deveria ser muito menos categoacuterica a opiniatildeo que coloca o teacutermino da Revelaccedilatildeo na morte do uacuteltimo Apoacutestolo Naturalmente esta questatildeo natildeo pode ser aqui estudada com maiores detalhes A sua soluccedilatildeo como entatildeo se apresentava aos teoacutelogos poderia ser hoje impostada apelando-se para as categorias da teologia atual Segundo esta podemos dizer que a Revelaccedilatildeo estaacute encerrada do ponto de vista de seu princiacutepio material Todavia estaacute e continua presente em sua realidade eficaz Noutros termos a Revelaccedilatildeo tem eacute verdade o seu ἑφάπαξ enquanto ela se realizou num determinado dia na Histoacuteria Entretanto ela tem tambeacutem o seu ldquohojerdquo permanente isto eacute o que foi uma vez por todas realizado na feacute da Igreja permanece sempre vivo e operante Assim a feacute cristatilde natildeo se volta apenas para o passado Abrange tambeacutem o presente e o futuro Eacute verdade que a posterior materializaccedilatildeo historicista da ideacuteia de Revelaccedilatildeo aparece jaacute claramente insinuada nos debates tridentinos corno um fato previsto mas ainda [58] natildeo consumado embora talvez se possa dizer que nos textos conciliares ficou definitivamente consagrada a sua aceitaccedilatildeo

Finalmente acrescentemos ainda que com base nos debates do Conciacutelio podemos estabelecer quatro elementos da ideacuteia de Tradiccedilatildeo 1 O aspecto natildeo-escrito da Revelaccedilatildeo ou do Evangelho contido na Biacuteblia e no coraccedilatildeo dos fieacuteis 2 A palavra do Espiacuterito Santo no decorrer de todo o tempo da Igreja

3 A atividade da Igreja nos Conciacutelios 4 A Tradiccedilatildeo lituacutergica e a da vida da Igreja em geral Nestes quatro elementos

que se deve ter sob os olhos pois formam o fundo ideoloacutegico do Decreto expressa-se a realidade uacutenica do tempo presente da Igreja cristatilde Nele estaacute presente todo o passado poacutes-apostoacutelico da Igreja (inclusive o proacuteprio tempo dos apoacutestolos) de modo que toda a sua vida eacute na Sagrada Escritura um elemento central embora natildeo o uacutenico Em suma deve ter ficado claro que o Conciacutelio de Trento a despeito do caraacuteter contrastante e fixo de sua ideacuteia de Revelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeo oferece uma visatildeo muito mais rica destes conceitos do que a que impregnou a mentalidade dos seacuteculos seguintes Justamente por

isso a teologia de hoje pode retirar daiacute novos subsiacutedios novo apoio para suas pesquisas e novas indicaccedilotildees sobre o verdadeiro caminho a seguir

Quadro sinoacutetico do Decreto tridentino sobre a Tradiccedilatildeo

Primeiro princiacutepio conforme Cervini (AT = Escritura)

Sacrosancta œcumenica et generalis Tridentina Synodus in Spiritu Sancto legitime congregata [] hoc sibi perpetuo ante oculos proponens ut sublatis erroribus puritas ipsa EVANGELII in Ecclesia conservetur quod PROMISSUM ANTE PER PROPHETAS IN SCRIPTURIS SANCTIS

Segundo princiacutepio conforme Cervini o Evangelho em parte escrito em parte insculpido nos coraccedilotildees

[59] DOMINUS NOSTER IESUS CHRISTUS DEI FILIUS PROPRIO ORE PRIMUM PROMULGAVIT DEINDE PER SUOS APOSTOLOS TAMQUAM FONTEM OMNIS ET SALUTARIS VERITATIS ET MORUM DISCIPLINAE OMNI CREATURAE PRAEDICARI IUSSIT PERSPICIENSQUE HANC VERITATEM ET DISCIPLINAM CONTINERI IN LIBRIS SCRIPTIS ET SINE SCRIPTO TRADITIONIBUS QUAE AB IPSIUS CHRISTI ORE AB APOSTOLIS ACCEPTAE AUT AB IPSIS APOSTOLIS SPIRITU SANCTO DICTANTE

Seripando Cervini e outros soacute consideram as tradiccedilotildees recebidas pela Igrej (ldquoad nos usquerdquo)

quasi per manus traditae ad nos usque pervenerunt

orthodoxorum Patrum exempla secuta omnes libros tam Veteris quam Novi Testamenti cum utriusque unus Deus sit auctor nec non TRADITIONES IPSAS

Lejay Tradiccedilatildeo contendo natildeo soacute a ldquoconsuetudordquo mas relacionada tambeacutem com a ldquofidesrdquo (foacutermula conciliar)

tum ad fidem tum ad mores pertinentes

Terceiro princiacutepio de Cernini Depois da Ascenccedilatildeo de Cristo o Espiacuterito Santo ensina tambeacutem os misteacuterios de Deus

TAMQUAM VEL ORETENUS A CHRISTO VEL A SPIRITU SANCTO DICTATAS

Seripando Cervini etc soacute satildeo consideradas as coisas recebidas pela Igreja (como acima)

et continua successione in Ecclesia catholica conservatas

Cervini Escritura e Tradiccedilatildeo procedem ambas do mesmo Espiacuterito Santo

pari pietatis affectu ac reverentia suscipit ac veneratur

  • Prefaacutecio
  • SEGUNDA PARTE
  • Explicaccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo
  • segundo o Decreto do Conciacutelio de Trento
Page 14: Revelacao e Tradicao-Joseph Ratzinger (Bom Ler)

humanos e se escravizem os homens Porque chama ela a estas coisas de doutrina de Satanaacutes Foi acaso em vatildeo que o Espiacuterito Santo fez tais advertecircnciasrdquo 2

Lutero identificou aqui a traditio com os abusus Tradiccedilatildeo segundo ele eacute lei humana pela qual o homem se esconde de Deus e pior ainda se levanta contra Ele para tomar nas proacuteprias matildeos a tarefa de sua salvaccedilatildeo em vez de esperaacute-la da libeacuterrima graccedila do Senhor A Tradiccedilatildeo assim entendida como Lei eacute contraposta agrave mensagem da graccedila ldquoDevemos aceitar cada [17] um dos artigos do Evangelho para alcanccedilarmos a graccedila de Deus sem meacuterito nosso atraveacutes da feacute em Jesus Cristo e natildeo pretender merececirc-la mediante praacuteticas do culto inventado pelos homensrdquo3

O problema da Tradiccedilatildeo tornou-se ainda mais agudo devido a um segundo aspecto que de resto natildeo conduziu a nenhum resultado positivo Descobrindo o Evangelho teve Lutero igualmente a impressatildeo de libertar a Palavra de Deus da pesada cadeia do Magisteacuterio eclesiaacutestico que se teria apossado desta Palavra e natildeo mais a entendia em seu verdadeiro sentido empregando-a antes a seu bel-prazer A ideacuteia de que a palavra divina aprisionada na Igreja catoacutelica agrave autoridade do Magisteacuterio ficou privada de sua forccedila viva eacute sempre repetida nos escritos dos Reformadores Melanchton poreacutem fecirc-lo talvez de um modo mais humano e flexiacutevel quando apocircs com reservas a sua assinatura aos artigos luteranos de Esmalca ldquo quanto ao Papa acho eu que jaacute que ele quis abandonar o Evangelho devemos noacutes de nossa parte tolerar (e admitir) para o bem da paz e da unidade a sua superioridade sobre os Bispos superioridade esta que ele possui iure humanordquo 4

Este estado de coisas impregnou outrossim a ideacuteia de Igreja da Confessio Augustana uma vez que aiacute se diz que a Igreja eacute a congregatio sanctorum in qua Evangelium pure docetur et recte administrantur Sacramenta5 Assim a Igreja eacute marcada por duplo aspecto pela pureza da doutrina e pela administraccedilatildeo legiacutetima dos Sacramentos Nem uma palavra sobre o Magisteacuterio Na realidade para a elaboraccedilatildeo do conceito de Igreja este silecircncio da CA natildeo eacute menos importante do que o que ela aiacute diz Eacute um silecircncio evidentemente intencional e denuncia a oposiccedilatildeo dos Reformadores agrave concepccedilatildeo catoacutelica de Igreja [18] entatildeo vigente e ateacute hoje conservada Esta consta de trecircs elementos a fides correspondente ao pure docere a communio que corresponde ao sacramenta e a auctoritas6 O Magisteacuterio aparece aqui como criteacuterio da palavra Eacute o seu fiador Segundo Melanchton daacute-se o contraacuterio a palavra eacute que eacute o criteacuterio do Magisteacuterio Este deve em uacuteltima anaacutelise ser provado pela palavra e pode consequumlentemente ser negado A palavra eacute auto-suficiente e paira sobre o Magisteacuterio como uma grandeza autocircnoma Talvez nesta inversatildeo de relaccedilotildees eacute que estaacute propriamente o contraste entre o conceito catoacutelico e o protestante de Igreja Contradiccedilatildeo paralela se daacute em torno da ideacuteia de Tradiccedilatildeo Com efeito a negaccedilatildeo do Magisteacuterio como criteacuterio da palavra significa a reduccedilatildeo da palavra de Deus agrave Escritura que seraacute entatildeo o

2Art 28 39-42 in Die Bekenntnisschriften der evangelisch lutherischen Kirche Gotinga 1952 p126 3 Art 28 52 Op cit p129 4 Op cit p463 5 Art 7 1 paacuteg 61 6 Sobre este ponto e o seguinte cf J RATZINGER ldquoDas geistliche Amt und die Einheit der Kircherdquo in Catholica 17 (1963) p 165-179

uacutenico sustentaacuteculo autocircnomo e autecircntico da palavra natildeo admitindo a Tradiccedilatildeo como uma grandeza em si

O Conciacutelio de Trento em seu estudo sobre a Tradiccedilatildeo teve diante dos olhos os dois pontos de vista contraacuterios e procurou formular sua resposta levando ambos em consideraccedilatildeo Eacute por isso conveniente analisarmos como estas duas posiccedilotildees se inter-relacionam em face da equiparaccedilatildeo feita por Lutero entre a Traditio e os abusus Em outros termos como os Padres conciliares se colocam diante do dilema dever-se-ia responder aos ataques de Lutero diretamente com uma definiccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo Ou antes de tudo com a reformatio a coerccedilatildeo dos abusus7

No tocante agrave doutrina o Conciacutelio refutou ex professo a censura dos Reformadores sustentando que a palavra natildeo eacute uma realidade autocircnoma pairando acima da Igreja Ela eacute dada pelo [19] Senhor agrave Igreja e natildeo entregue ao capricho dos homens Permanece justamente por isso nas Suas matildeos subtraindo-se ao alcance do alvitre humano Na visatildeo dos Padres de Trento deve no fundo ter parecido uma falta de confianccedila o terem os homens receio da palavra escrita entregue agrave Igreja como se a Igreja pudesse abusar dela Como se se pudesse apelar para a palavra da Revelaccedilatildeo contra a Igreja Estava-se inquestionavelmente certo de que o Senhor que instituiu a Igreja como Seu Corpo haveria de se empenhar em tutelaacute-la contra o perigo de abusar de Sua palavra

Hoje decorridos quatro seacuteculos desde a Reforma podemos confessar que na oposiccedilatildeo que dividia entre si Lutero e o Conciacutelio de Trento tanto depois como antes o dilema que dilacerou a Cristandade ocidental de certo modo jaacute desapareceu Vecirc-se isto pela troca de correspondecircncia entre Harnack e Peterson Peterson ao agradecer o tratado de Harnack Das Alte Testament in den Paulinischen Briefen und in den Paulinischen Gemeiden observou que este em seu cotejo da Escritura com a exegese biacuteblica tinha adotado natildeo o princiacutepio protestante mas o catoacutelico Escreveu Harnack ldquoDizer que o chamado lsquoprinciacutepio formalrsquo do Protestantismo primitivo eacute uma impossibilidade criacutetica e que ao contraacuterio o princiacutepio catoacutelico eacute formalmente o melhor eacute um truiacutesmo Materialmente poreacutem o princiacutepio catoacutelico da Tradiccedilatildeo opotildee-se agrave Biacuteblia muito mais diretamente (As tradiccedilotildees satildeo como ervas daninhas a serem cortadas pela tesoura do Magisteacuterio) A melhor fonte eacute o Novo Testamentordquo 8

Nesta formulaccedilatildeo de certo modo geneacuterica e simplista e na oposiccedilatildeo estabelecida entre os aspectos material e formal vem de novo agrave tona o antigo dilema poder-se-aacute confiar a palavra agrave Igreja sem temor de que ela sob a tesoura do Magisteacuterio ou [20] envolta no mato selvagem do sensus fidelium perca a sua forccedila proacutepria e sua vitalidade Esta eacute a pergunta que os Protestantes fazem aos Catoacutelicos Poder-se-aacute aceitar a autonomia da palavra sem com isto ser esta exposta ao arbiacutetrio dos exegetas aos maus tratos por parte dos historiadores e enfim ao completo desamparo Eis como os Catoacutelicos revidam aos Protestantes Com efeito segundo nossa doutrina natildeo eacute a noacutes que compete decidir se queremos ou natildeo confiar a palavra agrave Igreja Foi o proacuteprio Senhor quem lha confiou Note-se entretanto que quando o Catoacutelico encara seriamente este assunto natildeo deixa de considerar o zelo pela pureza da palavra revelada como um dever

7 Ver as notas 41 e 42 na 2ordf parte 8 Citado in E PETERSON Theologische Traktate Munique 1951 p295

da mais alta importacircncia Ele sabe que natildeo cumpre este dever pelo simples fato de apelar para a inerracircncia da Igreja Fazecirc-lo seria menosprezar o sentido da luta de Lutero em favor da Palavra deixando-se de ver nisto uma salutar advertecircncia e um apelo dirigido agraves almas

Natildeo obstante tudo isto a histoacuteria da controveacutersia natildeo se deteve no decurso dos quatro seacuteculos que se seguiram agrave Reforma Duas diferentes tendecircncias se destacam nas relaccedilotildees entre o Protestantismo e o Catolicismo e entre suas respectivas teologias De um lado uma radicalizaccedilatildeo de cada grupo nos proacuteprios pontos de vista Cada grupo a partir de entatildeo fez sua histoacuteria proacutepria e desenvolveu-a em direccedilatildeo oposta um ao outro Por outro lado a distacircncia mantida entre ambos possibilita maior objetividade em seus julgamentos reciacuteprocos Existe finalmente de parte a parte um renovado esforccedilo por superar as fronteiras com vistas a um encontro

Quem entre os Catoacutelicos empreendeu o mais significativo passo para chegar a uma visatildeo nova do problema da Tradiccedilatildeo mediante a superaccedilatildeo de posiccedilotildees unilaterais e anti-reformistas foi em nossos dias o teoacutelogo dogmaacutetico de Tubinga Josef Rupert Geiselmann Seus esforccedilos foram frutuosos fazendo-se sentir a sua influecircncia inclusive nos estudos preparatoacuterios do [21] Conciacutelio e deram agraves incursotildees do Vaticano II nesta aacuterea aquela marcante atualidade que ainda na primeira sessatildeo levou este problema a transcender do ciacuterculo da luta doutrinal entre as vaacuterias escolas teoloacutegicas para se transformar em uma preocupaccedilatildeo de toda a Cristandade catoacutelica9

A tese de Geiselmann eacute conhecida Basta-nos esboccedilaacute-la rapidamente aqui a fim de lanccedilarmos as bases de uma reflexatildeo que procuraraacute aprofundar mais este assunto e talvez dar um modesto passo agrave frente Geiselmann parte de uma interpretaccedilatildeo nova do sentido dado pelo Conciacutelio ao conceito de Tradiccedilatildeo O tridentino estabelecera que a verdade do Evangelho estaacute contida in libris scriptis et sine scripto traditionibus Isto foi e eacute ateacute hoje interpretado como se a Escritura natildeo contivesse toda a veritas evangelii Portanto natildeo eacute possiacutevel admitir-se a sola Scriptura uma vez que uma parte da Revelaccedilatildeo nos eacute transmitida somente pela Tradiccedilatildeo Geiselmann aproveitou a observaccedilatildeo jaacute antes feita por alguns autores de que na primeira redaccedilatildeo do texto focircra adotada a foacutermula segundo a qual a verdade estaria contida partim in libris scriptis partim in sine scripto traditionibus Estaria aqui claramente expressa a doutrina da divisatildeo da verdade revelada em duas fontes (Escritura e Tradiccedilatildeo) O Conciacutelio abandonou a expressatildeo partim ndash partim preferindo usar o simples conectivo et Geiselmann daiacute conclui afastou-se o Conciacutelio da ideacuteia da divisatildeo da verdade em duas fontes diversas Ou pelo menos natildeo a definiu explicitamente E continua o mesmo autor com isto pode tambeacutem o teoacutelogo catoacutelico aceitar a ideacuteia de uma suficiecircncia material da Escritura Pode ainda mesmo permanecendo catoacutelico defender a opiniatildeo de que a Sagrada Escritura eacute suficiente para transmitir-nos a [22] Revelaccedilatildeo Geiselmann admite consequumlentemente que a sola Scriptura pode conceber-se como uma uacutenica fonte

9 Cf R LAURENTIN Lenjeu du Concile Bilan de Ia premiegravere session Paris 1963 p27-45 Y CONGAR Vatican II Le Concile au jour le jour Paris 1963 p63-71 J RATZINGER Die erste Sitzungsperiode des Zweiten Vatikanischen Konzils Colocircnia 1963 p38-50

material da Revelaccedilatildeo Ele crecirc ainda poder mostrar que a tradiccedilatildeo mais forte eacute a favor desta sentenccedila e que o proacuteprio Conciacutelio de Trento se inclina neste sentido10

Eacute faacutecil de se compreender que semelhante tese tenha obtido o apoio de muitos em face das novas possibilidades de encontro entre Catoacutelicos e Evangeacutelicos possibilidades estas que a posiccedilatildeo de Geiselmann parece favorecer11 Que esta tese na realidade constitua um passo consideraacutevel neste sentido parece ser incontestaacutevel Todavia tatildeo logo a analisemos mais de perto em seus fundamentos histoacutericos e reais surge de pronto toda uma seacuterie de dificuldades graves a tornarem impossiacutevel a sua aceitaccedilatildeo

Sobre o aspecto histoacuterico deste problema apresentaremos vaacuterias observaccedilotildees na segunda parte deste nosso opuacutesculo Entrementes consideremos de imediato o lado praacutetico deste assunto Seu exame provoca inicialmente esta pergunta que significa propriamente a expressatildeo ldquosuficiecircncia da Escriturardquo Geiselmann como teoacutelogo catoacutelico que eacute natildeo deixa de sustentar os nossos dogmas Ora nenhum dogma catoacutelico eacute provado sola Scriptura Nem os grandes dogmas primitivos sustentados pelo consensus quinquesaeligcularis nem tampouco o de 1854 e [23] menos ainda o de 1950 Em que sentido entatildeo se pode falar em suficiecircncia da Escritura Natildeo ameaccedilaraacute esta converter-se em perigosa fraude pela qual nos enganamos primeiramente a noacutes proacuteprios e em seguida tambeacutem enganamos aos outros (Ou natildeo seratildeo talvez justamente eles que natildeo se enganam) Ou entatildeo pelo menos para sustentarmos de um lado que a Escritura sozinha conteacutem toda a verdade da Revelaccedilatildeo e de outro lado que o dogma de 1950 eacute verdade revelada natildeo deveremos noacutes refugiar-nos em um conceito tatildeo largo de suficiecircncia que na verdade esta palavra venha a perder todo o seu significado

Com isto abre-se a segunda (que de fato eacute a primeira) questatildeo decisiva a saber seraacute verdade que os debates em torno da ideacuteia da suficiecircncia da Escritura resolveram mesmo o problema do conceito de Tradiccedilatildeo Ou ao contraacuterio natildeo estaremos noacutes aqui diante de um problema de raiacutezes muito mais profundas

Nossas observaccedilotildees introdutoacuterias devem ter deixado claro que esta uacuteltima pergunta deve sem duacutevida nenhuma ser respondida afirmativamente A questatildeo da suficiecircncia da Escritura eacute apenas um problema secundaacuterio no acircmbito da distinccedilatildeo muito mais importante que foi jaacute antes apontada por noacutes ao tratarmos dos conceitos abusus e auctoritas e que gira em torno do nexo entre a autoridade da Igreja e a autoridade da Sagrada Escritura Da compreensatildeo disto depende tudo o mais

Para irmos mais adiante torna-se necessaacuterio analisarmos profundamente o assunto natildeo para nos determos no exame dos conceitos tatildeo relevantes de suficiecircncia ou insuficiecircncia da Escritura mas antes para abordarmos em seu tudo o vasto problema da Palavra revelada e presente no coraccedilatildeo dos fieacuteis Torna-se evidente entatildeo que agrave luz das fontes positivas a Escritura e a Tradiccedilatildeo devem ser postas em relaccedilatildeo tatildeo iacutentima que da

10 Ver sobretudo a obra de J R GEISELMANN Die Heilige Schrift und die Tradition Friburgo 1962 principalmente as p91-107274-282 Entre os trabalhos anteriores escritos por Geiselmann sobre o mesmo tema eacute de particular importacircncia o seguinte Das Konzil von Trient uumlber das Verhaumlltnis der Heiligen Schrift und der nichtgeschriebenen Traditionen in M SCHMAUS Die muumlndliche Uumlberlieterung Munique 1957 p 123-206 11 Uma lista de todos os autores que mais concordaram com Geiselmann eacute fornecida por H KUumlNG em sua tese ldquoKarl Barths Lehre vom Wort Gottes als Frage an die katholische Theologierdquo in Einsicht und Glaube publicado por J RATZINGER-H FRIES Friburgo 1963 p 105 nota 25

fonte interna (a Revelaccedilatildeo) brote a pa1avra de Deus viva sob aquela dupla formalidade A Escritura e a Tradiccedilatildeo natildeo podem [24] ser entendidas uma sem a outra no sentido que ambas tecircm agrave luz da feacute O problema ldquoEscritura e Tradiccedilatildeordquo permaneceraacute insoluacutevel enquanto natildeo for reduzido a uma soacute questatildeo a saber a questatildeo ldquoRevelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeordquo e inserida enfim no amplo contexto a que pertence

Eu gostaria de nas paacuteginas seguintes sem entrar em todos os detalhes tentar desenvolver em forma de teses e de maneira positiva o conceito de Tradiccedilatildeo partindo de sua natureza iacutentima com a esperanccedila de que nele descubramos uma parte da resposta aos anseios dos Reformadores Desta maneira toda esta anaacutelise serviraacute de contribuiccedilatildeo para o diaacutelogo interconfessional cuja necessidade tanto os Catoacutelicos como os Protestantes vecircm proclamando de maneira cada vez mais insistente

II - Teses sobre a relaccedilatildeo entre a Revelaccedilatildeo e a Tradiccedilatildeo

1 A Revelaccedilatildeo e a Escritura A primeira tese em aditamento ao conceito patriacutestico de Escritura e Revelaccedilatildeo

poderia enunciar-se nos seguintes termos o fato de existir uma ldquoTradiccedilatildeordquo repousa antes de tudo na diferenccedila que permeia entre estas duas realidades ldquoRevelaccedilatildeordquo e ldquoEscriturardquo A Revelaccedilatildeo exprime propriamente o falar e o agir de Deus em relaccedilatildeo aos homens Designa uma realidade expressa pela Escritura sem ser contudo a proacutepria Escritura A Revelaccedilatildeo por conseguinte ultrapassa a Escritura na mesma medida em que a realidade ultrapassa a sua expressatildeo escrita12 Poder-se-ia [25] tambeacutem dizer que a Escritura eacute o princiacutepio material da Revelaccedilatildeo (Talvez princiacutepio uacutenico talvez um princiacutepio entre outros isto seraacute esclarecido mais adiante) Ela natildeo eacute poreacutem a proacutepria Revelaccedilatildeo Isto era aliaacutes bem sabido dos proacuteprios Reformadores mas comeccedilou visivelmente a ser esquecido no aceso da controveacutersia entre a teologia catoacutelica poacutes-tridentina e a ortodoxia protestante13 Em nosso seacuteculo foram justamente os teoacutelogos evangeacutelicos Barth e Brunner que redescobriram este fato de todo evidente para a teologia patriacutestica e medieval14

O que acabamos de afirmar ficaraacute mais claro se partirmos de outro princiacutepio a Escritura pode ser possuiacuteda sem que se possua a Revelaccedilatildeo Isto porque a Revelaccedilatildeo eacute sempre e em primeiro plano uma realidade a realidade onde se encontra a feacute Aquele

12 Esta afirmaccedilatildeo natildeo tem o sentido de que a Escritura seja uma mera e vazia narrativa de realidades a ela exteriores Antes como o que se segue iraacute demonstrar indica que a Revelaccedilatildeo eacute realizada na Palavra jaacute que eacute por meio de palavras que ela se comunica aos homens Contudo a mera presenccedila da palavra ainda natildeo eacute a Revelaccedilatildeo Esta eacute mais do que simples ldquopresenccedilardquo Com o que ficou dito salienta-se a diferenccedila que existe entre a palavra e seu conteuacutedo Esta diferenccedila natildeo exclui o caraacuteter verbal da Revelaccedilatildeo 13 Cf A GLOEGE Schriftprinzips RGG V 1540-1543 onde se encontraraacute a mais completa bibliografia LthK VII 1104-1115 J R GEISELMAN Offenbarung in H FRIES Handbuch zum Begriff der Offenbarung cf M VERENO - R SCHNACKENBURG - HRIES in Theologischer Grundbergriffe II Munique 1963 p242-250 e a bibliografia aiacute citada 14 Cf W H VAN DER POL Das reformatorische Christentum Einsiedeln 1956 p117-192

que natildeo crecirc acha-se como que coberto por um veacuteu o veacuteu de que fala Satildeo Paulo no terceiro capiacutetulo da segunda epiacutestola aos Coriacutentios15 Ele pode ler a Escritura e saber o que nela se conteacutem Pode ateacute mesmo apreender de modo puramente intelectual o que aiacute eacute significado e como suas ideacuteias se inter-relacionam Todavia natildeo possui com isto a Revelaccedilatildeo A Revelaccedilatildeo eacute sobretudo possuiacuteda quando aleacutem da expressatildeo material que a atesta se potildee tambeacutem em praacutetica o seu conteuacutedo interno por meio da vivecircncia da feacute Com efeito de certo modo se inclui tambeacutem na Revelaccedilatildeo o sujeito recipiente sem o qual ela natildeo pode existir Natildeo se pode pocircr a Revelaccedilatildeo no bolso como se faz com [26] um livro Ela eacute uma realidade viva Exige homens vivos que a recebam que sirvam de ldquolugarrdquo de sua presenccedila

Repetindo o que ateacute aqui dissemos podemos afirmar que a Revelaccedilatildeo sobreexcede de fato a Escritura em dois sentidos

a) em sentido ascendente ela atinge sempre como realidade procedente de Deus o agir divino sobre as criaturas

b) como realidade que se daacute ao homem por meio da feacute ela atinge igualmente a Escritura

Desta diferenccedila entre a Escritura e a Revelaccedilatildeo resulta claramente que de todo independentemente da questatildeo se a Escritura eacute ou natildeo eacute a uacutenica fonte material em rigor nunca existe para o cristatildeo a sola Scriptura (Isto como ficou dito era claro em princiacutepio para os grandes Reformadores e comeccedilou a ser esquecido na chamada ortodoxia protestante) A Escritura natildeo eacute a Revelaccedilatildeo Eacute sim em uacuteltima anaacutelise uma parte desta realidade mais ampla

2 Os diferentes sentidos da Escritura

no Antigo e Novo testamento A problemaacutetica cristatilde da Revelaccedilatildeo ou o problema ldquoEscritura e Tradiccedilatildeordquo situa-se

melhor se considerarmos o duplo aspecto da mesma Revelaccedilatildeo no Antigo e no Novo Testamento A este duplo aspecto corresponde tambeacutem um duplo sentido da Escritura Assim como os dois Testamentos como tais se distinguem essencialmente assim tambeacutem devemos dizer que a ldquoEscriturardquo como um fato natildeo eacute repetida duas vezes do mesmo modo Isto aparece muito claro nos livros neotestamentaacuterios Sob a expressatildeo ldquoEscriturardquo designam eles somente o Antigo Testamento Para eles o AT eacute e permanece sendo ldquoa Escriturardquo cujo sentido se aclara mediante sua confirmaccedilatildeo no evento da [27] vinda de Cristo16 Os livros do NT natildeo jogam uma Escritura nova contra uma Escritura antiga Nem potildeem uma simplesmente ao lado da outra Potildeem sim em face da uacutenica Escritura ou seja do Antigo Testamento o Cristo-evento como o espiacuterito que explica a letra Esta concepccedilatildeo fundamental ilumina tambeacutem a forma da feacute mais antiga e a torna por primeiro compreensiacutevel O ldquoJesusrdquo formal eacute o ldquoCristordquo expresso no Antigo Testamento Natildeo eacute outra coisa No Jesus Histoacuterico o Cristo-mensagem do

15 Cf sobre estas reflexotildees o importante artigo (ἀποκαλύπτω de A OEPKE in ThWNT III p565-597 16 Ver sobre este ponto as preciosas conclusotildees de G SCHRENK art γραφή ndash γράμμα in ThWNT I p749-769 e a p767

Antigo Testamento atinge a sua consumaccedilatildeo Eacute a partir do AT que se entende quem eacute Jesus E o que o Testamento Antigo expressa pode ser visto agrave luz do Cristo-evento

Esta ideacuteia aparece em Paulo ao apresentar ele o Antigo e o Novo Testamentos como Gramma e Pneuma isto eacute letra e espiacuterito (2Cor 3 6-18) Ele chama ao Senhor de Pneuma A Escritura explica-o como sendo o seu sentido o seu conteuacutedo verdadeiro e vivo e natildeo apenas literaacuterio Paulo se refere agrave concepccedilatildeo do Novo Testamento apresentada por Jeremias (3133) Natildeo eacute mais necessaacuteria nenhuma Escritura porque a lei estaacute escrita nos coraccedilotildees Jaacute natildeo eacute necessaacuteria nenhuma doutrinaccedilatildeo vinda de fora porque o proacuteprio Deus instrui os homens Joatildeo exprime idecircntico pensamento em seguimento ao decircutero-Isaiacuteas (5413) quando descreve a era inaugurada por Cristo como o tempo no qual todos satildeo doutrinados por Deus mesmo E o sermatildeo de Pedro em Pentecostes transmitido pelos Atos dos Apoacutestolos (2 14-36) desenvolve a mesma ideacuteia tirada de Joel (3 1-5) Em todos estes casos aparece a era instaurada por Cristo como resposta agrave esperanccedila no advento de um tempo futuro que em uacuteltima anaacutelise haveria de tornar supeacuterflua a Escritura graccedilas agrave presenccedila imediata do Divino Mestre na Sua humanidade

Quando se pondera o sentido destas afirmaccedilotildees torna-se claro [28] que ao reduzir-se a ldquoEscriturardquo aos escritos do Antigo Testamento natildeo se estaacute apenas usando uma terminologia antiga que teria sido adotada por falta de escritos propriamente neotestamentaacuterios e que teria perdido seu sentido na segunda metade do seacuteculo segundo com o iniacutecio do cacircnon do Novo Testamento Ao contraacuterio Aqui se expressa uma consciecircncia que se tornaria mais niacutetida a partir da formaccedilatildeo da proacutepria Escritura neotestamentaacuteria muito ao inveacutes de cessar ou de desaparecer

Uma coisa eacute certa a ldquoEscriturardquo na nova ordem da salvaccedilatildeo inaugurada por Cristo toma um lugar distinto do que lhe cabia no Antigo Testamento Com isto pode-se ver ateacute que ponto o Antigo Testamento tem sentido autocircnomo O AT certamente natildeo aparecia desde o comeccedilo como Testamento do Gramma Escritura em sentido proacuteprio como ocorreraacute na pena de Satildeo Paulo17 Por outro lado manifesta-se realmente a partir de Jeremias e do decircutero-Isaiacuteas o anelo pela superaccedilatildeo do Gramma mediante uma nova e imediata comunicaccedilatildeo do Espiacuterito de Deus simultaneamente com a progressiva formaccedilatildeo de um princiacutepio da Escritura que mais e mais a transformou em Lei Lei esta que natildeo tornaria os homens vivos mas sim mortos

Desta maneira na concepccedilatildeo neotestamentaacuteria aparece o Antigo Testamento como ldquoEscriturardquo em sentido proacuteprio Escritura que atinge o seu verdadeiro significado atraveacutes do Cristo-evento pelo fato de ser ela inserida no contexto vivo da realidade de Cristo Se no Novo Testamento de facto a Escritura cresceu natildeo pode mais ter aquele sentido uacuteltimo e exclusivo que lhe competia no Antigo segundo a concepccedilatildeo paulina Ao contraacuterio Ela eacute a chave com que se abre o Antigo Testamento deixando-se banhar na claridade do Cristo-evento Ela eacute tambeacutem a ponte permanente que conduz a uma nova interpretaccedilatildeo biacuteblica agrave luz [29] de Cristo Num caso e noutro a Escritura natildeo pretende de modo nenhum ser autocircnoma nem ser a fonte uacutenica e exclusiva de sua exegese literal Mas soacute pode ter sentido na realidade espiritual de Jesus Cristo que

17 Ver a apreciaccedilatildeo feita por G VON RAD Theologie des Alten Testaments II Munique 1960 p402-424

permanece junto dos seus todos os dias ateacute ao fim do mundo (Mt 28 20) Apoacutes a subida ao Calvaacuterio Cristo veio de novo no Espiacuterito Santo (como narra Satildeo Joatildeo) e pelo Espiacuterito ensinou aos disciacutepulos o que eles entatildeo natildeo podiam ainda entender enquanto o Senhor estava entre eles sob forma visiacutevel (Jo 16 12)

3 Cristo a Revelaccedilatildeo de Deus

A realidade que se daacute como um acontecimento na Revelaccedilatildeo cristatilde natildeo eacute nada

mais nada menos do que o proacuteprio Cristo Cristo eacute a Revelaccedilatildeo em sentido proacuteprio ldquoQuem me vecirc vecirc o Pairdquo diz ele no Evangelho de Satildeo Joatildeo (14 9) Vale portanto dizer que receber a Revelaccedilatildeo eacute penetrar na realidade de Cristo no Cristo-evento Daiacute procede o paradoxo descrito por Satildeo Paulo ao fazer ele um trocadilho com as palavras ldquoCristo em noacutesrdquo e ldquonoacutes em Cristordquo

Neste contexto a anaacutelise de frases isoladas torna-se secundaacuteria de vez que elas satildeo apenas explicaccedilotildees do uacutenico misteacuterio de Cristo Consequumlentemente cai por si mesma a questatildeo da suficiecircncia interna da Escritura tatildeo discutida desde o aparecimento das obras de Geiselmann Deveriacuteamos isto sim perguntar que significa em linguagem cristatilde a suficiecircncia interna da Escritura ldquoSuficienterdquo eacute soacute a realidade do Cristo-evento Esta pode ser explicada materialmente em maior ou menor grau E de maneira nunca definitiva Partindo deste princiacutepio podem existir tambeacutem outras explicaccedilotildees segundo a Escritura quando se aprofunda mais este assunto

Este mesmo tema pode ser considerado sob outro aspecto E ter-se-aacute entatildeo dado um passo a mais para a frente A aceitaccedilatildeo [30] da Revelaccedilatildeo pela qual aplicamos a noacutes o Cristo-evento vem na linguagem da Biacuteblia sob o nome de ldquofeacuterdquo Assim talvez se entenderaacute mais claramente de que maneira no Novo Testamento a feacute significa a ldquoin-habitaccedilatildeordquo de Cristo Se admitirmos que na Escritura a presenccedila da Revelaccedilatildeo tem o mesmo sentido que a presenccedila de Cristo entatildeo teremos de fato dado um passo adiante Ora na Escritura encontramos a presenccedila de Cristo apresentada de duas maneiras Ela aparece de um lado como jaacute vimos identificada com a feacute (Ef 317) na qual cada um encontra Cristo e se adentra nele penetrando no dinamismo de sua forccedila salvadora Por outro lado a feacute se oculta tambeacutem sob a expressatildeo paulina ldquoCorpo de Cristordquo o que quer dizer que a comunidade dos fieacuteis ndash a Igreja ndash funda a presenccedila de Cristo neste mundo Nela Cristo reuacutene os homens e os faz partiacutecipes de sua presenccedila dinacircmica18

Tomadas juntas estas duas noccedilotildees significam o seguinte a feacute eacute a adesatildeo iacutentima agrave presenccedila de Cristo realidade de Cristo presente da qual a Escritura nos daacute testemunho sem contudo se identificar de modo nenhum com ela Daiacute resulta que a presenccedila da Revelaccedilatildeo se relaciona essencialmente com a ldquofeacuterdquo e com a ldquoIgrejardquo realidades estas que como vimos estatildeo estreitamente ligadas entre si

Voltamos assim ao que foi afirmado na primeira tese a saber que a Revelaccedilatildeo sobreexcede a Escritura em duplo sentido em relaccedilatildeo a Deus por seu lado ascendente e em relaccedilatildeo tambeacutem ao homem que a recebe Esta asserccedilatildeo que a princiacutepio deixamos

18 H SCHLIER ldquoDie Kirche nach dem Brief an die Epheserrdquo in Die Zeit der Kirche Friburgo 1962 p159-186

um tanto vaga encontramo-la essencialmente concretizada na realidade objetiva do Cristianismo

4 A essecircncia da Tradiccedilatildeo

[31] A transmissatildeo ao povo de Deus do Cristo-evento que eacute a Revelaccedilatildeo e que tem sua bi-presenccedila na feacute e na Igreja faz-se atraveacutes da pregaccedilatildeo Pregaccedilatildeo eacute a ldquoex-posiccedilatildeordquo (Aus-legung) do duplo aspecto da Revelaccedilatildeo no Antigo e no Novo Testamento E isto de duas maneiras

a) ela eacute a exposiccedilatildeo do Antigo Testamento agrave luz do Cristo-evento e para o Cristo-evento

b) a partir do Pneuma e da condiccedilatildeo presente da Igreja Este uacuteltimo aspecto eacute possiacutevel pois Cristo natildeo estaacute morto Estaacute vivo Natildeo eacute

apenas o Cristo de ontem Eacute tambeacutem e a fortiori o Cristo de hoje e de amanhatilde o Cristo vivo e presente em sua Igreja que eacute seu Corpo e na qual o seu espiacuterito opera

Isto poderaacute ser melhor compreendido se partirmos da essecircncia da Igreja Como nos ensina o Novo Testamento a mensagem de Jesus eacute antes de tudo uma mensagem escatoloacutegica com vistas ao reino de Deus natildeo com vistas agrave Igreja O fato de existir a Igreja natildeo se opotildee a esta mensagem mas haacute na marcha gradativa das revelaccedilotildees de Cristo uma segunda possibilidade Assim a atividade dos Doze depois de Pentecostes aponta natildeo para a Igreja mas para o reino de Deus Informam-nos os Atos dos Apoacutestolos que os Doze natildeo se ocuparam primordialmente em missionar os povos Esforccedilaram-se antes muito mais em converter Israel criando deste modo as condiccedilotildees preacutevias para a implantaccedilatildeo do reino De iniacutecio uma seacuterie de obstaacuteculos histoacutericos entre os quais deveriacuteamos citar antes de tudo o martiacuterio de Estevatildeo o supliacutecio de Tiago e por fim o fato decisivo da prisatildeo e da libertaccedilatildeo de Pedro Tais fatos levaram a comunidade primitiva segundo dizem as fontes a reconhecer como definitivo o malogro do esforccedilo de converter Israel E consequumlentemente forccedilaram os Apoacutestolos a partir em busca dos gentios e a cuidar [32] assim da Igreja e natildeo do reino Eles o fazem segundo se depreende das passagens referidas e principalmente dos esclarecimentos do capiacutetulo 15 dos Atos dos Apoacutestolos como uma nova opccedilatildeo feita sob a accedilatildeo do Espiacuterito Santo Com isso iniciou-se uma nova interpretaccedilatildeo da mensagem de Cristo sobre a qual a Igreja essencialmente repousa19

19 Cf as decisivas conclusotildees de E PETERSON ldquoDie Kircherdquo in Theologische Traktate Munique 1951 p 409-429 H SCHLIER Die Entscheidung fuumlr die Heidenmission in der Urchristenheit Die Zeit der Kirche p 90-107 Parece-me certo que nem a anaacutelise da tradiccedilatildeo sinoacutetica relativa agrave mensagem de Jesus e seu caraacuteter escatoloacutegico nem o estudo da histoacuteria da Igreja primitiva com base no material fornecido pelos Atos dos Apoacutestolos autorizam qualquer outra conexatildeo entre a mensagem do reino e a pregaccedilatildeo da Igreja Daiacute natildeo se segue de modo nenhum ndash como muitas vezes se teme ndash que a cruz seja um acidente secundaacuterio que em rigor poderia ter sido evitado Ao contraacuterio A estrutura da Igreja moldada sobre a cruz eacute fundamental porque aiacute eacute que por primeiro se encontra a confirmaccedilatildeo da importacircncia da liberdade humana de Cristo e da sua Paixatildeo bem como a iacutentima dependecircncia da Igreja para com a Cruz donde ela procede

Este fato que baseia o estabelecimento definitivo da Igreja sobre uma decisatildeo tomada ldquono Espiacuterito Santordquo eacute o fundamento para se afirmar que existe uma interpretaccedilatildeo eclesial do Novo Testamento do mesmo modo que existe uma exegese cristoloacutegica do Antigo Daiacute podermos estabelecer as seguintes teses ou proposiccedilotildees agrave luz da analogia fidei

a) Existe uma teologia veterotestamentaacuteria do Antigo Testamento que o exegeta

deduz de seu conteuacutedo interno e que se desenvolve em uma seacuterie de camadas superpostas Segundo ela os textos antigos devem ser relidos e de novo expostos agrave luz dos novos acontecimentos O fenocircmeno da aplicaccedilatildeo dos textos agraves situaccedilotildees novas do desdobramento da Revelaccedilatildeo mediante nova [33] apresentaccedilatildeo do Antigo Testamento estrutura jaacute de modo essencial o conteuacutedo interno veterotestamentaacuterio20

b) Existe uma teologia neotestamentaacuteria do Antigo Testamento que natildeo coincide com

a referida teologia veterotestamentaacuteria Estaacute contudo estreitamente ligada com ela na unidade da analogia fidei21 Talvez partindo daqui se possa esclarecer o que significa a analogia fidei entre Os dois Testamentos A teologia neotestamentaacuteria do Antigo Testamento natildeo eacute como ficou dito idecircntica agrave teologia histoacuterica veterotestamentaacuteria Ao contraacuterio Re-exposiccedilatildeo feita agrave luz do Cristo-evento ela natildeo procede soacute da mera consideraccedilatildeo histoacuterica do Antigo Testamento Sendo embora em seu pleno conceito uma interpretaccedilatildeo relacionada com o Antigo Testamento contudo nada faz com que ela seja internamente estranha agrave sua essecircncia ainda que soacute de fora o atinja Ela amplia a forma estrutural do Antigo Testamento que assim interpretado revive e cresce

c) Existe uma teologia neotestamentaacuteria do Novo Testamento paralela agrave teologia veterotestamentaacuteria do Antigo Ou seja a teologia que o exegeta como tal pode deduzir do conteuacutedo interno do Novo Testamento eacute tambeacutem esta conhecida e estruturada mediante a aplicaccedilatildeo do Antigo Testamento agraves novas situaccedilotildees

d) Existe uma teologia eclesial do Novo Testamento que noacutes [34] chamamos Dogmaacutetica Ela se relaciona com a teologia neotestamentaacuteria do Novo Testamento do mesmo modo que a teologia neotestamentaacuteria do Antigo se relaciona com a respectiva teologia veterotestamentaacuteria Aquele ldquomaisrdquo (das Mehr) que distingue propriamente a Dogmaacutetica da teologia biacuteblica eacute o que designamos com a palavra Tradiccedilatildeo Aliaacutes tambeacutem aqui devemos salientar que a teologia eclesiaacutestica neotestamentaacuteria pela mesma razatildeo natildeo eacute simplesmente idecircntica agrave teologia neotestamentaacuteria interna e

20 Cf H GROSS Motivtransposition als Form- und Traditionsprinzip im Alten Testament in H VORGRIMLER Exegese und Dogmatik Moguacutencia 1962 p134-152 e a bibliografia aiacute fornecida G v RAD Theologie des Alten Testaments II Munique 1960 p332-339 396-401 21 A diferenccedila entre as duas teologias do Antigo Testamento foi vivamente exposta por R BULTMANN ldquoWeissagung und Erfuumlllungrdquo in Glauben und Verstehen II Tubinga 1952 p162-186 - Sobre as necessaacuterias correccedilotildees a se fazerem para que se torne visiacutevel a base histoacuterica do que a teologia sistemaacutetica denomina ldquoanalogia fideirdquo cf G v RAD op cit p329-424 (entre outras) e principalmente a p 420 nota 25 e a p422 nota 29 Sobre o tema ldquoanalogia fideirdquo em ambos os Testamentos cf tambeacutem E PRZYWARA Alter und Neuer Bund Viena-Munique 1956

histoacuterica do Novo Testamento Ultrapassa-a sem contudo ser-lhe puramente externa Com efeito no Novo Testamento comeccedila jaacute o processo da exposiccedilatildeo pela Igreja das verdades reveladas A teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento processa-se dentro dele proacuteprio como de modo clariacutessimo se percebe na histoacuteria da Revelaccedilatildeo sinoacutetica22

Eacute oportuno fazermos ainda uma pequena observaccedilatildeo se cotejarmos atentamente a teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento com a Dogmaacutetica reconheceremos que se impotildee uma outra distinccedilatildeo A Dogmaacutetica como ciecircncia aleacutem da exposiccedilatildeo eclesiaacutestica do Novo Testamento abrange tambeacutem a teologia particular de cada teoacutelogo Neste caso para se falar com precisatildeo dever-se-ia apresentar somente o proacuteprio dogma como teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento

O que acabamos de referir natildeo passa naturalmente de um esboccedilo que necessitaria em seus pormenores de natildeo poucos esclarecimentos e distinccedilotildees a fim de ser completo No caso presente entretanto damos por suficiente este esboccedilo Resumindo o que ateacute aqui expusemos podemos agora destacar vaacuterias ldquoraiacutezesrdquo da Tradiccedilatildeo e apontar vaacuterias camadas em seu seio [35] lordf raiz a maior amplidatildeo da ldquoTradiccedilatildeordquo em referecircncia agrave ldquoEscriturardquo

2ordf raiz o caraacuteter especiacutefico da Revelaccedilatildeo neotestamentaacuteria como Pneuma em contraste com o Gramma Eacute o que na linguagem de Bultmann se poderia chamar de sua condiccedilatildeo de ldquonatildeo-objetordquo (Nichtobjektiviertbarkeit) A praxe eclesiaacutestica e a teologia medieval expressaram este aspecto ao sobreporem a fides agrave Scriptura isto eacute o dogma como regra de feacute agraves minuacutecias da lei escrita23 O dogma eacute como a chave hermenecircutica da Escritura que em uacuteltima anaacutelise sem o auxiacutelio da hermenecircutica ficaria sendo algo fechado

3ordf raiz o caraacuteter presencial do Cristo-evento e a presenccedila dinacircmica do Espiacuterito de Cristo em seu Corpo a Igreja E consequumlentemente o poder que tem a Igreja de fazer a pregaccedilatildeo do Cristo ontem e hoje pregaccedilatildeo esta cuja fonte se encontra na interpretaccedilatildeo eclesiaacutestica da mensagem do reino transmitida pelos Apoacutestolos

Em conexatildeo com estas trecircs raiacutezes da ideacuteia (ou melhor da realidade) da Tradiccedilatildeo podem distinguir-se na mesma as seguintes camadas

a) Na origem de toda Tradiccedilatildeo estaacute o fato de que o Pai enviou o Seu Filho ao mundo e que o Filho por sua vez se [36] entregou ndash como sinal ndash aos ldquopovosrdquo (παραδίδοται) Esta paraacutedosis original em sua forccedila direta e salvadora

22 Cf por exemplo a rica exposiccedilatildeo de G BORNKMANN Jesus von Nazareth Estutegarte 1956 Sobre a questatildeo aqui estudada cf H SCHLIER Uumlber Sinn und Aufgabe einer Theologie des Neuen Testaments in H VORGRIMLER Exegese und Dogmatik Mainz 1962 p6990 23 O que haacute de melhor sobre este assunto no tocante agrave Patriacutestica seraacute encontrado em HARNACK DG II (1931) p84-116 HARNACK diz na p 87 nota 3 o seguinte ldquoO Cacircnon era de iniacutecio a regra da feacute A Escritura estaacute centrada na verdade Sem duacutevida nenhuma sua autoridade funda-se solidamente no Antigo Testamento e nas palavras do Senhorrdquo ndash Que assim tenha pensado tambeacutem a Idade Meacutedia e que aqui aleacutem da revelatio (da qual falaremos na 2ordf parte deste livro) a fides sobrepondo-se agrave Scriptura estabelece a forma essencial do conceito de Tradiccedilatildeo foi o que tentei demonstrar em meu artigo Wesen und Weisen der auctoritas im Werk des heiligen Bonaventura in Die Kirche und ihre Aumlmter und Staumlnde (Festgabe Kardinals Frings publicado por CORSTEN-FROTZ-LINDEN Colocircnia 1960 p 58-72

prolonga-se na permanente presenccedila de Cristo no σῶμα Χριστοῦ ndash no Seu Corpo a Igreja Assim o misteacuterio integral da presenccedila de Cristo eacute antes de tudo a realidade total transmitida pela Tradiccedilatildeo (fato fundamental e decisivo sempre anterior a todas as explicaccedilotildees particulares mesmo as da Escritura) e reguladora do que deve propriamente ser transmitido

b) A Tradiccedilatildeo existe concretamente como presenccedila na feacute Esta por seu turno como ldquoin-habitaccedilatildeordquo de Cristo precede todas as explicaccedilotildees particulares e frutuosa e viva ldquoexplicita-serdquo (explizierend) atraveacutes dos tempos

c) A Tradiccedilatildeo tem seu oacutergatildeo na plenitude dos poderes da Igreja e portanto naqueles que satildeo os legiacutetimos depositaacuterios destes poderes24

d) A Tradiccedilatildeo exprime-se tambeacutem naquilo que emanado da autoridade da Igreja se tornou regra de feacute (Symbolum fides quaelig) Portanto a questatildeo de se saber se certas proposiccedilotildees foram transmitidas desde o

comeccedilo pela Tradiccedilatildeo ao lado da Escritura ou em outros termos se existe desde o comeccedilo um segundo princiacutepio material e autocircnomo ao lado da Escritura torna-se afinal um problema inteiramente secundaacuterio Talvez lhe devamos responder negativamente

5 A funccedilatildeo da exegese [37] Pelo que ateacute aqui dissemos ficaram esclarecidas quase que exclusivamente

trecircs pontos os limites da letra da Escritura a liberdade do Espiacuterito Santo e a autoridade da Igreja Acontece poreacutem que a exposiccedilatildeo que fizemos abriga ainda um sentido diverso relacionado com a justa preocupaccedilatildeo de Lutero da qual partimos

Se ficou estabelecido que a Revelaccedilatildeo se faz presente atraveacutes da pregaccedilatildeo e se pregaccedilatildeo eacute exposiccedilatildeo da palavra revelada entatildeo pode e deve agora ao que precede acrescentar-se o seguinte a Tradiccedilatildeo eacute essencialmente e sempre uma exposiccedilatildeo Natildeo existe de maneira autocircnoma e sim como explicaccedilatildeo como exposiccedilatildeo ldquorelacionada com a Escriturardquo

Isto vale para a pregaccedilatildeo do proacuteprio Jesus Cristo realizaccedilatildeo plena da Revelaccedilatildeo e sua exposiccedilatildeo feita com autoridade A pregaccedilatildeo de Jesus Cristo natildeo aparece como algo absolutamente novo na Escritura Isto eacute como algo ainda natildeo atestado no Antigo Testamento Ela ensina isto sim a essecircncia do que jaacute estava escrito e lhe confere uma vida nova que o simples exegeta natildeo pode comunicar-lhe

O que vale para a mensagem de Cristo que permanece a mesma sob diferentes modalidades de exposiccedilatildeo vale tambeacutem para a pregaccedilatildeo apostoacutelica e a eclesiaacutestica Como ldquoTradiccedilatildeordquo ela deve em uacuteltima anaacutelise ser uma exposiccedilatildeo ldquosegundo a Escriturardquo a ela sujeita e com ela relacionada Sem duacutevida natildeo eacute ela uma exposiccedilatildeo no 24 Estas ideacuteias natildeo podem ser desenvolvidas mais detalhadamente aqui como seria de desejar uma vez que em rigor estamos procurando apenas fundamentar o conceito de Tradiccedilatildeo Em razatildeo da brevidade que me impus contentei-me apenas nas teses precedentes com explanar o assunto ateacute ao ponto em que ficasse patente a relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a ldquoIgrejardquo (cf as teses 4 e 5) Para se descer a maiores detalhes dever-se-ia analisar tambeacutem o conceito de Igreja que supomos conhecido do leitor Para isto cf a nota 6 onde citamos nosso livro sobre o Ofiacutecio e a unidade da Igreja Encontram-se aiacute algumas observaccedilotildees sobre o assunto de que ora tratamos

sentido de mera interpretaccedilatildeo exegeacutetica Mas sim na autoridade espiritual recebida do Senhor a qual se consuma na existecircncia plena da Igreja em sua feacute em sua vida e em seu culto Contudo ela permanece sendo (mais ainda do que o Cristo-evento em que se funda a Igreja) uma ldquoex-posiccedilatildeordquo (Aus-Legung) comprometida com a Histoacuteria e com a Palavra [38] Exprime-se deste modo a sua ligaccedilatildeo com a accedilatildeo concreta de Deus nesta mesma Histoacuteria e em seu caraacuteter de fato histoacuterico uacutenico (o ἑφάπαξ ldquoo ocorrido uma soacute vezrdquo) A realidade cristatilde da Revelaccedilatildeo eacute tatildeo essencial quanto ldquoeternardquo e definitiva Resulta daiacute a unidade entre o Cristo da Feacute e o Jesus da Histoacuteria o Jesus histoacuterico natildeo eacute senatildeo o Cristo da Feacute ainda que a feacute seja sempre algo mais do que a histoacuteria

Segue-se que do mesmo modo que existe um ofiacutecio de custoacutedia da Revelaccedilatildeo por parte da Igreja ofiacutecio por ela mesma atestado existe tambeacutem um ofiacutecio de custoacutedia da mesma Revelaccedilatildeo por parte da exegese que penetra o sentido literal da Escritura e defende a uniatildeo do Logos com a carne contra qualquer perigo de gnose Existe portanto por assim dizer algo como uma autonomia especiacutefica da Escritura como regra objetiva e sob muitos pontos de vista esclarecedora do Magisteacuterio eclesiaacutestico Esta era sem duacutevida uma exigecircncia legiacutetima de Lutero que ainda natildeo foi devidamente acolhida na Igreja catoacutelica por parte do Magisteacuterio cujos limites internos nem sempre foram claramente entendidos

Dever-se-ia partindo daqui salientar uma dupla criteriologia em se tratando da feacute De um lado haacute o que a Igreja antiga chamou de ldquoregra da feacuterdquo norma reguladora da palavra revelada contida na Escritura e sua exposiccedilatildeo Esta praeligscriptio da posse da Escritura como proacutepria segundo Tertuliano exclui a possibilidade de qualquer uso legiacutetimo da mesma Escritura contra a Igreja Por outro lado haacute tambeacutem o limite da littera Scripturaelig ou do sentido literal historicamente fixaacutevel que de acordo com o que ficou dito natildeo constitui nenhum criteacuterio absoluto ou autocircnomo mas sim somente um criteacuterio relativo no confronto da feacute com a ciecircncia O que na Escritura se pode descobrir quer mediante estudo cientiacutefico quer por simples leitura tem a funccedilatildeo de um criteacuterio real a que deve estar atento inclusive o Magisteacuterio em suas explicaccedilotildees Certamente [39] trata-se entatildeo de elementos sub-componentes da ciecircncia que natildeo podem servir para se julgar a feacute mas nela encontram uma instacircncia criacutetica e tecircm tambeacutem um importante papel a exercer o de zelar pela pureza do ἑφάπαξ de tutelar o conteuacutedo da Revelaccedilatildeo e de defender o dualismo histoacuterico carneespiacuterito (ldquodie Sarx der Geschichterdquo) contra os arbiacutetrios da gnose que tende sempre a impor-se

A reformatio na qual estaacute empenhada a Igreja nesta hora histoacuterica tem um papel relevante a desempenhar Eacute a missatildeo de abrir novas perspectivas para o diaacutelogo tentando assim chegar a uma ldquoreformardquo diferente da do passado que culminou com a divisatildeo no seio da Cristandade ocidental Tal missatildeo se exerceraacute em harmonia com o pleno ofiacutecio de testemunho da Igreja que tira seu direito e sua forccedila da presenccedila do Espiacuterito e de Cristo presente em todos os tempos Pois ele eacute sempre o Cristo de agora com a plenitude de seus direitos e de seus poderes Ele eacute quem daacute legitimidade e vigor ao testemunho singular e definitivo da Escritura que por sua vez encontra seu pleno sentido na singularidade da accedilatildeo histoacuterico-salviacutefica de Jesus Cristo Ele deu ao Pai seu Corpo crucificado e dando-se a si mesmo santificou para sempre os que o receberam (cf Hb 1014 727) Ele eacute o Cristo ontem hoje e sempre (Hb 138)

SEGUNDA PARTE

Explicaccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo segundo o Decreto do Conciacutelio de Trento

Parece que a completa elucidaccedilatildeo das razotildees que levaram agrave substituiccedilatildeo do

partim-partim pelo et e consequumlentemente agrave pesquisa dos dados do debate tridentino e de sua preacute-histoacuteria aparentemente favoraacutevel agrave suficiecircncia material da Escritura [40] simplifica indevidamente este problema fazendo-nos perder de vista os proacuteprios antecedentes do Decreto do Conciacutelio de Trento

1 A concepccedilatildeo pneumatoloacutegica da Tradiccedilatildeo no esquema fundamental do Cardeal Cervini

a) O conteuacutedo Um balanccedilo histoacuterico e detalhado do problema em seu conjunto exigiria uma

pesquisa exaustiva que natildeo reduzisse o seu acircmbito como o fez Geiselmann em seu livro25 Natildeo eacute nossa intenccedilatildeo proceder a um exame minucioso do assunto no presente trabalho Aqui soacute seratildeo tratados alguns pontos do debate tridentino com o fim de ampliarmos mais o horizonte de nossas reflexotildees

Fundamental para a compreensatildeo dos debates em pauta bem como do Decreto definitivo do Conciacutelio parece-me ser o Discurso do Cardeal Legado Cervini datado de 18 de fevereiro de 1546 [41] cujas linhas gerais se patenteiam tanto no Decreto como em outras decisotildees conciliares26

Tem o discurso de Cervini o meacuterito de mostrar as linhas diretrizes do Decreto de maneira mais clara do que aparecem estas na uacuteltima redaccedilatildeo do mesmo onde elas se diluem muito devido a uma seacuterie de variadas implicaccedilotildees Eacute ainda de grande auxiacutelio para o entendimento do referido discurso uma carta dos Cardeais Legados ao Cardeal Alexandre Farnese de 28 de fevereiro de 1546 Esta carta revela conteuacutedo idecircntico ndash eacute certamente inspirada pelo mesmo Cervini ndash e oferece ainda alguns outros

25 Eacute lamentaacutevel que Geiselmann em sua anaacutelise da contribuiccedilatildeo medieval sobre este assunto se tenha apoiado apenas em argumentos de segunda matildeo portanto de valor histoacuterico discutiacutevel Queira o leitor ver minhas observaccedilotildees a este respeito in Theol-prakt Quartalschrift 1963 p224-227 As novas (e temperamentais) invectivas de Geiselmann in TThQu 144 (1964) p 31-69 em nada modificaram a minha posiccedilatildeo de vez que natildeo trazem nenhuma contribuiccedilatildeo vaacutelida ao assunto Precioso ao contraacuterio eacute o trabalho de Y CONGAR La Tradition et les traditionshellip Essai historique Paris 1960 Importante eacute tambeacutem a obra de J BEUMER Die muumlndliche uumlberlieferung als Glaubensquelle Friburgo 1962 A respeito do Conciacutelio de Trento cf sobretudo aleacutem do estudo fundamental de JEDIN o artigo de E ORTIGUES Escriture et Traditions apostoliques au Concilie de Trente in RSR 36 (1949) p 271-299 K D SCHMIDT Studien zur Geschichate des Konzilis von Trient Tubinga 1925 p 152-209 26 O discurso nos foi transmitido em duas redaccedilotildees A primeira mais curta encontra-se nas Atas do Conciacutelio in CT V 11 A segunda faz parte do diaacuterio de Massarelli (Diarium III) in CT I p484 Quanto ao conteuacutedo os dois textos se completam Na anaacutelise que aqui ensaiamos as duas versotildees satildeo comparadas entre si de modo a fazerem um todo Sobre a posiccedilatildeo de Cervini no Conciacutelio cf H JEDIN Geschichte des Konzils von Trient II Friburgo 1957 p38-40 A descriccedilatildeo do desenrolar histoacuterico dos debates acha-se em JEDIN op cit p42-82 e supomo-la conhecida do leitor de vez que serve de base para a anaacutelise teoloacutegica do Decreto tridentino

esclarecimentos Cervini sustenta no citado discurso que existem trecircs princiacutepios e fundamentos de nossa feacute

1) Os livros sagrados escritos sob a inspiraccedilatildeo do Espiacuterito Santo 2) O Evangelho que Nosso Senhor natildeo escreveu mas ensinou oralmente e

implantou nos coraccedilotildees Parte do Evangelho foi escrita mais tarde pelos Evangelistas enquanto muita coisa foi simplesmente confiada aos coraccedilotildees dos fieacuteis

3) Porque o Filho de Deus natildeo ia permanecer sempre entre noacutes enviou ele o Espiacuterito Santo que haveria de revelar os misteacuterios no iacutentimo dos fieacuteis e de ensinar agrave Igreja toda a verdade ateacute ao fim dos tempos27

[43] Numa segunda redaccedilatildeo mais detalhada do discurso estas mesmas ideacuteias satildeo

desenvolvidas mais amplamente Aiacute lemos que a Revelaccedilatildeo se apresentou de modo diferente em diversos tempos

1) Nos Patriarcas cuja feacute eacute atestada na Escritura a que chamamos de Antigo Testamento

2) Em Jesus Cristo que implantou o seu Evangelho natildeo por escrito mas oralmente natildeo in charta mas in corde Das coisas que emanaram de Cristo (quaelig a Cristo emanarunt) algumas foram escritas outras permaneceram nos coraccedilotildees dos homens (quaeligdam in cordibus hominum relicta fuerunt) Todo o Evangelho de Cristo que consta desta dupla modalidade forma (tendo como primeiro princiacutepio o Antigo Testamento) o secundum prindipium fidei nostraelig

3) Daiacute surge o terceiro princiacutepio (tertium autem) porque o Filho de Deus natildeo iria permanecer sempre entre noacutes enviou ele ao mundo o Espiacuterito Santo que haveria de explicar os misteacuterios de Deus e tudo o que fosse ainda obscuro para os homens28 De modo semelhante a citada carta ao Cardeal Farnese fala de dois passos (due

passi) Um eacute que a Revelaccedilatildeo de Nosso Senhor natildeo foi totalmente escrita mas permaneceu em parte contida nos coraccedilotildees dos homens e na Tradiccedilatildeo da Igreja O outro [43] passo consiste em confirmar ldquoquello che egrave suggerito lo Spirito Santo in la Chiesa maxime medianti i concilij doppo lAscensione in cielo del Signorerdquo29

Notamos logo que contrariamente ao que esperaacutevamos natildeo dois mas trecircs satildeo os princiacutepios apontados a Escritura o Evangelho e a Revelaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

27 CT V 11 helliptria esse principia et fundamenta nostrae fidei primum libros sacros secundum esse evangelium quod Christus Dominus Noster non scripsit sed ore docuit et in cordibus illud plantavit cujus evangelii nonnulla evangelistaelig scripto mandarunt multa quoque relicta sunt in cordibus hominum Tertium quia non semper filius Dei corporaliter nobiscum mansurus erat misit Spiritum Sanctum qui in cordibus fidelium secreta Dei revelaret et ecclesiam quotidie et usque consummationem saeligculi doceret omnem veritatem et si quid in mentibus hominum dubii occurrisset declararet 28 CT I 484 Digna de nota eacute ainda a foacutermula contida na paacutegina 48514-16 nihil tamen inter scripturas sacras et apostolicas traditianes differt illaelig enim scriptaelig hae per insinuationem habentur utraeque tamen a Spiritu Sancto eodem modo emanataelig Confira-se com CT V 11 19 ab eodem Spiritu et illos (scilicet libros) et istas (scilicet traditiones) descendisse 29 CT X 373

Eacute portanto necessaacuterio observar que sob o termo ldquoEscriturardquo se entende o Antigo Testamento e que aleacutem deste (que eacute Escritura em sentido proacuteprio) aparece como segundo princiacutepio o Evangelho apresentaccedilatildeo do Cristo-evento O Evangelho por sua vez abrange o que estaacute escrito e o que natildeo estaacute escrito mas sim apenas insculpido no coraccedilatildeo dos crentes Deste modo o segundo princiacutepio representa uma vantagem pneumaacutetica sobre o que estaacute escrito o Evangelho eacute nesta concepccedilatildeo algo diferente da letra (Escritura) e soacute em parte vem escrito (Isto natildeo deve ser entendido no sentido de divisatildeo das verdades da feacute fenocircmeno denunciado ldquocom horrorrdquo por Geiselmann Ao contraacuterio Entenda-se apenas no sentido de diferente grau de dignidade no modo de exprimir-se) Em rigor o Evangelho como tal soacute pode ser escrito em parte se considerarmos a sua essecircncia

Finalmente ndash o que eacute muito de se admirar ndash segue-se como terceiro princiacutepio a accedilatildeo visiacutevel do Espiacuterito Santo em todo o tempo da Igreja

Admitimos portanto que o que noacutes geralmente chamamos de Tradiccedilatildeo natildeo aparece aqui como um soacute princiacutepio Biparte-se antes em dois princiacutepios intimamente ligados o ldquoEvangelhordquo princiacutepio apenas em parte identificaacutevel com a Escritura e a accedilatildeo do Espiacuterito Santo no tempo da Igreja Ademais podemos observar que a Escritura do Novo Testamento natildeo aparece como um princiacutepio ao lado da Revelaccedilatildeo apostoacutelica Muito menos como [44] eacute o nosso caso se apresenta a Escritura neotestamentaacuteria juntamente com a veterotestamentaacuteria como uma grandeza uacutenica uma ldquoEscriturardquo soacute agrave qual se poderia contrapor a ldquoTradiccedilatildeordquo como uma segunda grandeza O Novo Testamento em seu conjunto aparece como um segundo e mais amplo princiacutepio ou seja o Evangelho que como tal se opotildee de um lado ao Antigo Testamento e de outro agrave projeccedilatildeo histoacuterica do tempo da Igreja Sua unidade interna eacute evidentemente mais forte e importante do que a sua divisatildeo em escrito e natildeo-escrito Assim o Evangelho como um soacute princiacutepio pode ser contraposto ao Antigo Testamento a despeito desta dupla formalidade A impossibilidade de se representar o Novo Testamento como Escritura impossibilidade esta demonstrada por Satildeo Paulo e pelos primeiros seacuteculos cristatildeos eacute aqui claramente revelada

Ainda uma observaccedilatildeo relativa ao texto a que vimos nos referindo Em nenhum dos dois pontos por noacutes citados no estudo da Tradiccedilatildeo isto eacute nem no elemento contido no primeiro nem no apresentado no terceiro princiacutepio figura a Tradiccedilatildeo como verbal Em ambos os casos ao contraacuterio trata-se mais da Tradiccedilatildeo real com prevalecircncia da realidade sobre as palavras que a atestam Este fato que estaacute claro no terceiro princiacutepio o pneumatoloacutegico vale tambeacutem em relaccedilatildeo agrave implantaccedilatildeo do Evangelho nos coraccedilotildees contida no segundo princiacutepio Tal implantaccedilatildeo vai muito aleacutem do que se encontra expresso na letra da Escritura

Que papel tenham estas ideacuteias exercido nas discussotildees do Conciacutelio pode-se concluir tambeacutem das auctoritates citadas por Cervini entre as quais figuram Jo 16 12 (hellipSpiritus Sanctus suggerethellip) e Fl 3 15 (Quicumque perfecti sumus haeligc sentiamus et si quid aliter sentitis haeligc quoque Deus vobis revelabit) Ambos estes textos satildeo de teor acentuadamente [45] pneumatoloacutegico-presencial30 Que tais ideacuteias natildeo eram

30 CT V 14 e 15 Um exame profundo das auctoritates quer da Escritura quer entre os Santos Padres que neste particular satildeo favoraacuteveis agrave Tradiccedilatildeo seria em si conclusivo para a elaboraccedilatildeo do conceito

estranhas aos Padres conciliares deduz-se ainda de uma seacuterie de outras referecircncias Assim ouvimos o Bispo de Aqui dizer que aleacutem da Sagrada Escritura existe muita coisa na Igreja de Deus que vindo dos Apoacutestolos e passando de geraccedilatildeo a geraccedilatildeo chegou ateacute noacutes assim como muitas outras quaelig etsi scripta Apostoli nobis non reliquerunt per Spiritus Sancti revelationem nobis (tradita) sunt (Tradita estaacute aqui por revelata) 31 Partindo daiacute se poderia descrever a Tradiccedilatildeo justamente como o componente pneumatoloacutegico do Cristo-evento b) A influecircncia do esquema de Cervini em diversas decisotildees conciliares

Eacute verdade que esta concepccedilatildeo tripartida aparece muito atenuada no Decreto

oficial sobre a Tradiccedilatildeo Que poreacutem em suas linhas fundamentais natildeo tenha ela sido de modo nenhum [46] abandonada mostram-no duas outras passagens nas quais o Conciacutelio faz uso por assim dizer in actu das ideacuteias aqui expressas32 Assim na Introduccedilatildeo ao Decreto sobre a Eucaristia (Denz 873) se lecirc Sacrosancta Synodus sanamhellipdoctrinam tradens quam semper catholica Ecclesia ab ipso Jesu Christo Domino Nostro et eius apostolis erudita atque a Spiritu Sancto illi omnem veritatem in dies suggerente (Jo 1416) edocta retinuithellip

Aqui a accedilatildeo proacutepria do Conciacutelio eacute descrita como tradere e a este tradere eacute atribuiacutedo um duplo fundamento De um lado o ensino de Jesus e dos Apoacutestolos (Note-se que este ponto corresponde ao Evangelho segundo a concepccedilatildeo de Cervini E de certo modo tambeacutem pela citaccedilatildeo de Jesus e dos Apoacutestolos se reconhece a dupla modalidade do Evangelho como escrito e como inserido nos coraccedilotildees) De outro lado o ensino dado pelo Espiacuterito Santo que conduz agrave verdade in dies isto eacute no de correr do tempo futuro

O outro texto que pode ser aduzido aqui como prova do que afirmamos encontra-se no Preacircmbulo do Decreto sobre o Purgatoacuterio (Denz 983) Aiacute se lecirc hellipCatholica Ecclesia Spiritu Sancto edocta ex Sacris Litteris et antiqua Patrum traditione in sacris Conciliis et novissime in hac Synodo docuerit A descriccedilatildeo da accedilatildeo proacutepria do

aqui exposto H HOLSTEIN procurou fazer o cotejo destas auctoritates e fecirc-lo de modo admiraacutevel em seu artigo La Tradition dapregraves le Concile de Trente (RSR 47 1959 p367-390 e em particular para o caso em questatildeo a p375) Ele encontra nos textos estudados duas linhas de tendecircncias A linha de Santo Irineu para a qual o testemunho dos Apoacutestolos eacute o de sua personalidade de sua vida e de seu ofiacutecio Aleacutem desta o grupo composto de Tertuliano Cipriano Basiacutelio e Agostinho forma uma corrente que se poderia denominar ldquocerimonialrdquo Oriacutegenes se enquadra em ambos os grupos Existe entre os autores estudados uma seacuterie de textos que se referem agraves observationes consuetudines institutiones e que levam a entender-se a Tradiccedilatildeo neste mesmo sentido Aiacute se vecircem tambeacutem textos que sublinham o aspecto natildeo-escrito do Evangelho enquanto insculpido no coraccedilatildeo dos fieacuteis e aleacutem disso textos que apontam a Igreja como o ldquolugarrdquo da verdade cristatilde 31 CT I 483 (18 de fevereiro de 1546) Em 26 de fevereiro (CT V 18) encontramos Cervini a tratar de novo deste assunto Cf tambeacutem um pronunciamento do Bispo de Fano (CT V 10) nestes termos Cum jam receperimus Scripturas Sacras necessario recipiendaelig sunt traditiones quaelig ab eodem Spiritu Sancto quo scripturaelig dictataelig sunthellip 32 Disto me adverti pela primeira vez atraveacutes de um estudo realizado sob a minha orientaccedilatildeo por CHR LIMBACR a quem sou devedor de muitas informaccedilotildees bibliograacuteficas

Conciacutelio como tradere encontra-se ainda nas declaraccedilotildees sobre o Sacramento da Extrema-Unccedilatildeo (Denz 910)

Finalmente a triacuteplice divisatildeo deixa-se insinuar nas entrelinhas do Decreto sobre a Tradiccedilatildeo embora obscurecida e diluiacuteda por uma seacuterie de acreacutescimos e citaccedilotildees a ele adicionados por outros motivos O Decreto da Tradiccedilatildeo com efeito [47]

1) Fala do Evangelho prometido pelos Profetas na Escritura e refere-se a esta em sentido estrito quer antes quer depois do Antigo Testamento

2) Fala da promulgaccedilatildeo por Cristo do Evangelho que foi transmitido pelos Apoacutestolos sob dupla forma oral e escrita Desta maneira o que natildeo ocorre no exemplo de Cervini aparece aqui antes de tudo o componente pneumatoloacutegico unido com o componente apostoacutelico a ponto de se distinguirem duas modalidades de Tradiccedilatildeo apostoacutelica a que remonta a Cristo e a que remonta ao envio do Espiacuterito Santo Pode-se assim estabelecer que em oposiccedilatildeo ao esquema de Cervini haacute um certo processo de historicizaccedilatildeo que salienta a relaccedilatildeo com o comeccedilo histoacuterico e igualmente parece deslocar o acento da tradiccedilatildeo real para a verbal

3) No epiacutelogo desta parte do Decreto da Tradiccedilatildeo que vimos analisando de novo eacute considerada a ideacuteia da Sagrada Escritura O conceito de Tradiccedilatildeo eacute entatildeo formulado em definitivo e descrito como vel oretenus a Christo vel a Spiritu Sancto dictatas et continua successione in Ecclesia catholica conservatas A referecircncia aos Apoacutestolos eacute omitida Pode-se na verdade considerar tudo isto como uma volta ao que foi dito antes Evidentemente a tradiccedilatildeo ditada pelos Apoacutestolos eacute citada de novo (A expressatildeo continua successione insinua-o) Contudo permanece sempre ainda certa indeterminaccedilatildeo ficando aberta a possibilidade de se encontrar aqui o vestiacutegio do terceiro componente de Cervini o princiacutepio pneumaacutetico propriamente dito Eacute tambeacutem claro que esta ideacuteia eacute discreta sendo adotada uma posiccedilatildeo mais acentuadamente histoacuterica Se agora lanccedilarmos os olhos sobre o que vimos considerando ateacute aqui surgiratildeo

inevitavelmente perguntas qual eacute realmente o sentido proacuteprio da concepccedilatildeo pneumatoloacutegica Como poderia ser perfeitamente entendida a ideacuteia a noacutes estranha de uma revelatio prolongada no tempo em face da unicidade e do caraacuteter [48] histoacuterico da Revelaccedilatildeo que evidentemente era conhecido tanto de Cervini quanto dos Santos Padres e teoacutelogos medievais33

Antes de examinarmos isto devemos esclarecer rapidamente os principais motivos que inspiraram o Decreto tridentino sobre a Escritura e a Tradiccedilatildeo deixando nele um tanto encoberta a concepccedilatildeo pessoal de Cervini Que opiniotildees de teoacutelogos teratildeo intervindo aqui chegando a ser em parte impressas no texto definitivo que resultou do cotejo de muitos pronunciamentos diversos Uma exposiccedilatildeo detalhada deste ponto exorbitaria do acircmbito de nossa anaacutelise Contentemo-nos com umas poucas observaccedilotildees sumaacuterias 33 Sobre este assunto tentei fazer um breve comentaacuterio no meu trabalho ldquoOffenbarung-Schrift-Uberlieferungrdquo in TThZ 67 (1958) p13-27 Cf J BEUMER ldquoDer theoretische Beitrag der Frnhscholastik zum Problem des Dogmenfortschrittsrdquo in ZkTh 72 (1952) p205-226 J de CHELLINCK Pour lrsquohistoire du mot ldquorevelarerdquo in RSR 6 (1916) p149-157

2 Relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a vida da Igreja

em diversas passagens do debate tridentino

Uma primeira seacuterie de motivos entre os quais se compreendem diversos pronunciamentos agraves vezes muito contrastantes em seu aparato exterior patenteia-se na ideacuteia de tradiccedilotildees expressa no Decreto de duas maneiras a) - per manus traditaelig ad nos usque pervenerunt b) - continua successione in Ecclesia catholico conservatas

O que se ocultaraacute sob estas duas foacutermulas que o historiador de hoje tem dificuldades em aceitar justamente por causa do historicismo nelas impliacutecito Podemos dizer que um decisivo papel exerceu aqui o pensamento que sempre aparecia nos debates a saber que as tradiccedilotildees satildeo variaacuteveis que muitas delas foram abolidas pelos Apoacutestolos e que por outro lado se [49] introduziram tradiccedilotildees eclesiaacutesticas que natildeo mais seriam abolidas34 Esta ideacuteia de Tradiccedilatildeo de certo modo se torna clara no tratado escrito sobre o mesmo assunto por Seripando para uso dos Padres Conciliares Seripando fala das Tradiccedilotildees escritas inseridas na Escritura como as claacuteusulas de Tiago o costume de as mulheres se cobrirem com um veacuteu a legislaccedilatildeo sobre o matrimocircnio contida em 1Cor 7 etc E o autor adverte que estas praacuteticas foram abolidas Isto porque embora associadas agrave palavra de Deus na Escritura dela ldquomuito diferemrdquo pois a palavra divina [50] de modo nenhum poderia ser abolida A estas tradiccedilotildees

34 Cabe aqui aduzir uma nova intervenccedilatildeo de Cervini datada de 26 de fevereiro de 1546 (CT I 33 e V 18) onde ele diz que nem todas as tradiccedilotildees procedentes dos Apoacutestolos devem ser conservadas mas somente as que ab Ecclesia receptaelig ad nos usque pervenerunt (V 18) Esta afirmaccedilatildeo anterior agrave formulaccedilatildeo dogmaacutetica feita pelo Concilio deve igualmente ser tida na conta de um autecircntico comentaacuterio do Decreto Aiacute se acentua como condiccedilatildeo essencial das tradiccedilotildees a receptio ecclesiaelig Vem ainda referida uma intervenccedilatildeo do Bispo de Bertinoro em data de 23 de marccedilo (I p 523) na qual ele sublinha que as tradiccedilotildees escritas por vezes foram mudadas Jaacute entre as natildeo-escritas umas foram mudadas e outras natildeo como por exemplo o rito de adicionar aacutegua ao vinho a Crisma a confissatildeo auricular O Bispo de Bertinoro acrescenta que por outro lado alguns pontos existem que permaneceram inteiramente inalterados tais como a crenccedila no descensus ad inferos na virgindade perpeacutetua de Maria a substituiccedilatildeo da observacircncia do saacutebado pela do domingo Temos depois um pronunciamento do Bispo de Bitonto datado de 27 de marccedilo (I 39) Este bispo era de parecer que algumas coisas foram transmitidas pelos Apoacutestolos com a finalidade de serem perpetuamente conservadas (como pertencentes ao depoacutesito da feacute) outras caiacuteram em desuso (como as claacuteusulas de Tiago) e outras enfim foram apenas aconselhadas Assim mesmo na Escritura algumas coisas haacute que foram escritas mas natildeo recebidas em uso por serem mateacuteria de mero conselho Por exemplo ldquose algueacutem te pedir a tuacutenica daacute-lhe tambeacutem o paacutelio se algueacutem te esbofetear numa face oferece-lhe tambeacutem a outrardquo Sem duacutevida excelente ilustraccedilatildeo do sermatildeo da montanha Finalmente consideraccedilotildees idecircnticas podemos encontrar na obra citada de LEJAY Eis outra amostra tirada do discurso de 23 de fevereiro (CT V 13) Nam illaelig (scil traditiones) quaelig ad fidem pertinent eadem sunt recipiendaelig auctoritate qua recipitur evangelium alia autem non ita eum earum plurimaelig immutataelig fuerint ut de bigamis de esu sanguinis et similia De modo semelhante aliaacutes fala tambeacutem Bonuccio (I 525 a 23 de marccedilo de 1546 ecclesia traditiones apostolorum quandoque mutavit verbum autem Dei nunquam mutavit neque mutare potest

Seripando opotildee as natildeo referidas na Biacuteblia e que ora satildeo apostoacutelicas ou oriundas de Conciacutelios universais e aceitas por toda a Igreja ora satildeo particulares e muito variaacuteveis35

Este texto nos leva a uma surpreendente conclusatildeo para Seripando e muitos outros Padres tridentinos36existem tradiccedilotildees na Escritura ldquoTradiccedilatildeordquo natildeo significa o natildeo-escrito Existe quer dentro da Escritura quer fora dela Isto nos conduz a outra pergunta em que consiste para os referidos Padres a essecircncia da tradiccedilatildeo se o que a constitui natildeo eacute o fato de natildeo ser escrita37 Em outros termos como pode a tradiccedilatildeo ser definida positivamente se ela natildeo pode ser suficientemente determinada pela ideacuteia negativa de algo natildeo-escrito

Haacute uma seacuterie de respostas para esta pergunta O proacuteprio Seripando daacute a seguinte definiccedilatildeo Traditiones hoc est Apostolorum seu sanctorum Patrum sanctae et salutares constitutiones38 Mais clara ainda eacute a afirmaccedilatildeo de Cervini citada por Massarelli A objeccedilatildeo do Bispo de Chioggia que aduzia a opiniatildeo de Agostinho de que tudo o que eacute necessaacuterio para a salvaccedilatildeo estava escrito na Biacuteblia respondia Cervini da seguinte maneira Verba illa (isto eacute de Santo Agostinho) formaliter intelligi debent scilicet ad fidem accipiendam ut salvi fiamus Quo vero ad mores et christianam vitam instituendam certo non omnia scripta sunt

[51] E de novo recorre agraves provas tiradas de Jo 1526 e 1426 E indica o princiacutepio pneumatoloacutegico39 O que eacute mais importante eacute que a Tradiccedilatildeo se refere agrave institutio vitaelig agrave presenccedila atuante da Palavra revelada na existecircncia cristatilde Tradiccedilatildeo eacute noutros termos a eficaacutecia da palavra de Deus Sem ela a palavra ficaria esteacuteril 35 Seripando De traditionibus (fevereiro ou marccedilo de 1546) CT XII p517-521 e principalmente a p 521 As expressotildees desta uacuteltima paacutegina chocam-se com a ideacuteia de Cervini sobre a receptio ecclesiaelig 36 Cf o texto citado na nota 11 37 No texto definitivo do Decreto esta ideacuteia natildeo aparece mais Aqui poreacutem com esta primeira designaccedilatildeo expliacutecita da Tradiccedilatildeo vem expressamente acentuado o contraste entre in libris scriptis et sine scripto traditionibus Na segunda redaccedilatildeo o sentido expliacutecito da palavra Tradiccedilatildeo natildeo eacute tatildeo exclusivo Contudo apresenta igual matiz ao se confrontarem as expressotildees omnes libroshellipnec non traditiones ipsas Portanto a ideacuteia positiva da Tradiccedilatildeo que serve de base a esta anaacutelise natildeo deixou de influenciar na redaccedilatildeo do Decreto 38 CT XII 517 39 CT I 494 (26 de fevereiro de 1546) A citada palavra de Santo Agostinho teve o seu papel a desempenhar na discussatildeo em curso Seripando por exemplo a ela se referiu (De traditionibus CT XII 521 47-53) Pensandum denique ne in traditionibus externis vera religio et salutis spes statuatur de quibus Augustinus Omnia quaelig pertinent ad veram religionem quaeligrendam et tenendam divina Scriptura non acuit Conceda-se que nem tudo foi escrito (veja-se Jo 2125) Todavia electa sunt autem quaelig scriberentur quaelig saluti credentium sufficere videbantur Mais do que nos debates do tridentino encontramos aqui um verdadeiro postulado dos Reformadores ldquonatildeo adotar costumes exteriores mas buscar os meios definitivos de salvaccedilatildeo na palavra da Escriturardquo A ldquosuficiecircnciardquo da Escritura de que aqui se fala eacute na verdade algo diverso da suficiecircncia material da mesma Escritura defendida por Geiselmann em sentido muito mais radical Infelizmente ainda natildeo se quis levar na devida consideraccedilatildeo o texto de Santo Agostinho (CT I 494 sugere De doctrina christiana II 9 e De pecc mero et rem II 59) Muito apropriadas nesta ordem de ideacuteias satildeo as observaccedilotildees de H SCHAUF ldquoSchrift und Traditionrdquo in Antonianum 39 (1964) p200-209 feitas no chamado Encontro de Duumlsseldorf Nos textos citados por Schauf com base em Agostinho eacute afirmada a suficiecircncia da Escritura para a salvaccedilatildeo Eacute contudo contestada a sua suficiecircncia para a Igreja em geral De fato esta alternativa parece muito mais vaacutelida e fundamental agrave luz dos postulados dos Reformadores do que a alternativa entre a suficiecircncia ou insuficiecircncia material da Escritura

Na mesma linha de ideacuteias seguem-se duas outras seacuteries de pronunciamentos Vimos na introduccedilatildeo agrave parte anterior que a discussatildeo dogmaacutetica da ideacuteia de

Tradiccedilatildeo foi em parte prejudicada pela questatildeo do meacutetodo a seguir no Conciacutelio dever-se-ia abordar primeiro a reformatio a reforma praacutetica da Igreja como queria o ldquoKaiserrdquo Ou primeiro discutir a questatildeo dogmaacutetica como preferia o Papa40

[52] Este problema do meacutetodo embora resolvido no debate que entatildeo surgiu natildeo afetou diretamente a questatildeo da Tradiccedilatildeo como tal Mas como de fato estas duas questotildees ficaram ligadas entre si daiacute resultou que muitos oradores transformaram a questatildeo do meacutetodo (se se deveria falar dos abusos ou da Tradiccedilatildeo) em parte de sua argumentaccedilatildeo em torno do assunto em pauta41 O problema abusus e o problema Traditio ficaram de tal maneira associados na ocasiatildeo que pareciam formar no fundo um soacute assunto Por isso os oradores ora falavam em sentido positivo ora se pronunciavam em sentido negativo Isto correspondia tambeacutem ao propoacutesito reformista do Conciacutelio as traditiones representavam os abusus aos quais a Igreja se opunha Os Padres estavam cocircnscios de que condenar as traditiones era condenar Os usus ecclesiaelig o modo como a Igreja vivia a sua vida naquela eacutepoca

A outra seacuterie de pronunciamentos que se inclinavam ao mesmo sentido encontramo-la nas proposiccedilotildees que a auctoritas da Igreja apresenta como definitivas indicando uma iacutentima relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a institutio christiana 42

[53] Podemos agora retomar ao nosso ponto de partida e dar resposta agrave pergunta que propriamente significa a foacutermula ad nos usque pervenerunt Objetivamente natildeo se trata aqui de um historicismo que a foacutermula parece expressar Ao contraacuterio Trata-se da fidelidade perseverante da Igreja agrave institutio vitaelig christianaelig da legiacutetima forma de vida cristatilde em concreto no tempo presente da Igreja da institutio christiana que coloca a Escritura em primeiro lugar e que como tal isto eacute como vida decorrente da Escritura eacute fundamentalmente apostoacutelica embora tambeacutem sujeita a mudanccedilas como tudo o que eacute vivo

3 A Tradiccedilatildeo e o dogma eclesiaacutestico

40 Sobre o debate em torno da questatildeo do meacutetodo cf mais uma vez JEDIN op cit p9-82 e outras 41 Assim jaacute no discurso de Cervini antes analisado (CT I 484) no qual ele recorda o dilema do Conciacutelio se nos voltarmos contra as tradiccedilotildees ficaratildeo admirados os Padres Conciliares quasi reformationem fugiamus si ipsam reformationem sumimus iterum objicient traditiones relinquendas non esse Idecircntica era a situaccedilatildeo em que se encontrava o Bispo de Astorga nas duas intervenccedilotildees que fez no dia 23 de fevereiro de 1546 (CT V 13 e 19) segundo Seripando (I 484) helliptraditiones prius pertractandas consulit tantam enim conformitatem abusus qui ex sacris libris descendunt cum iis qui a traditionibus orti sunt habent ut sacris libris et traditionibus absolutis duo illa abusuum genera simul pertractari valeant Segundo Bonuccio (I 484) antes de tudo dever-se-ia tratar das Sagradas Escrituras dos cacircnones apostoacutelicos dos Conciacutelios gerais e das decretais pontifiacutecias Hisque ilusceptis ad abusus ex eisdem dependentes devenire 42 Assim principalmente de acordo com Afonso de Castro (CT I 484) Quoniam ultra traditiones apostolicas ecclesiae auctoritatem habemus quaelig ecclesiaelig auctoritas tonta apud nos est ut aliqui eam maioris roboris quam sacros libros esse sentiant Cf igualmente CT I 491 45 Na mesma linha pode-se ver uma seacuterie de pronunciamentos na citada obra de LEJAY Cf CT XII 524 (Tratado De traditionibus ecclesiaelig fevereiro ou marccedilo de 1546)

Uma segunda seacuterie de motivos eacute expressa no Decreto pela foacutermula traditiones tum ad fidem tum ad mores pertinentes Se como vimos a ideacuteia de Tradiccedilatildeo aparece muito limitada naquilo que os Padres conciliares chamam consuetudines observationes institutiones por outro lado o Procurador do Cardeal de Augsburgo Claudio Lejay SJ se fez o porta-voz de uma expressatildeo que em oposiccedilatildeo agraves traditiones caeligremoniales estabeleceu justamente o sentido da tradiccedilatildeo contida na feacute Seu tratado sobre a Tradiccedilatildeo composto para uso dos Padres conciliares inclui tambeacutem a foacutermula que foi adotada pelo Conciacutelio Aiacute se diz Denique multas veritates tum ad fidem tum ad mores pertinentes Ecclesia novit quas Scriptura aperte et expresse non continet Ele cita como exemplos as palavras persona essentia trinitas no Tratado da Santiacutessima Trindade consubstantialitas na Cristologia do Logos duas naturezas uma soacute Pessoa referentes ao dogma definido pelo Conciacutelio de Calcedocircnia E ainda Cristo Filho uacutenico de Maria duas vontades na uacutenica Pessoa de Cristo uma alma racional aleacutem do espiacuterito divino em Cristo Ana matildee de Maria o costume de fazer sinais da cruz a santificaccedilatildeo do domingo a maneira de rezar com face voltada [54] para o Oriente tudo isto ideacuteias e fatos da tradiccedilatildeo conciliar e da piedade cristatilde43

Cervini que aprovou o discurso de Lejay de 23 de fevereiro de 154644 pocircde dificilmente conciliar esta posiccedilatildeo com a sua expressa na jaacute citada carta ao Cardeal Farnese onde como vimos ele diz que o Espiacuterito Santo falou na Igreja e depois da Ascensatildeo do Senhor fala ainda maxime medianti i concilii45 Ele aiacute viu publicamente sublinhado o fato de que aquele ldquomaisrdquo que a Igreja viva representa em relaccedilatildeo agrave palavra meramente escrita natildeo se referia e natildeo se refere apenas agrave vita instituenda ou como ele prefere agrave caeligremonialia Refere-se tambeacutem agrave essentialia fidei que antes de tudo plenamente se expressam na Tradiccedilatildeo Tambeacutem aqui como se vecirc o interesse dominante natildeo estaacute na apresentaccedilatildeo historicista do assunto a partir do iniacutecio da Igreja mas na ideacuteia de que a influecircncia da Tradiccedilatildeo sobretudo atraveacutes da praxe conciliar eacute de fundamental importacircncia para a feacute para a doutrina crida e natildeo apenas para a piedade viva ou a caeligremonialia

4 O sentido do Decreto tridentino

Se recapitularmos o que ateacute agora dissemos veremos que no conjunto facilmente se podem reconhecer trecircs diferentes concepccedilotildees teoloacutegicas unidas entre si no texto definitivo do Decreto sobre a Tradiccedilatildeo Unidas mas natildeo equiparadas umas agraves outras Pelo contraacuterio apesar de sua grande diferenccedila foram elas apenas [55] mais ou menos justapostas e de novo por forccedila de uma tendecircncia comum relacionadas entre si

1 A concepccedilatildeo de Cervini que designamos como pneumatoloacutegica Com sua doutrina sobre os trecircs principia fidei insiste ele no caraacuteter dinacircmico do Cristo-evento

43 CT XII 523 LEJAY baseia-se evidentemente em listas de tradiccedilotildees confeccionadas naquele tempo (Cf ECK DRIEDO CANO BOTO NOGAROLA) Cf a este respeito Y CONGAR ldquoTraditions apostoliques non eacutecrites et suffisance de lEscrituresrdquo in Istina 6 (1959) p219-306 e principalmente a paacutegina 289 44 CT V 14 45 CT X 373

presente na Igreja Entende assim a Tradiccedilatildeo primariamente como a realidade espiritual da institutio vitaelig christianaelig

2 A concepccedilatildeo que podemos chamar de cerimonial Esta entende a Tradiccedilatildeo essencialmente como a seacuterie de consuetudines existentes ao lado da feacute como os usus ecclesiaelig que os Reformadores falsamente pretendem abolir como abusus Esta concepccedilatildeo chega a condenar a dignidade e Antiguumlidade apostoacutelica das tradiccedilotildees Sua ideacuteia eacute limitada pelo ad nos usque pervenerunt que inclui possibilidade de variar da parte das tradiccedilotildees donde a necessidade de reduccedilotildees Com os termos pervenire e conservare a recepccedilatildeo por parte da Igreja eacute considerada criteacuterio adicional ao lado da Antiguumlidade

3 A concepccedilatildeo que talvez possamos denominar dogmaacutetica Em oposiccedilatildeo agrave fixidez da ideacuteia de Tradiccedilatildeo reduzida agrave consuetudo salienta esta terceira hipoacutetese a extensatildeo do fenocircmeno Tradiccedilatildeo tambeacutem ao acircmbito da fides

Estas trecircs concepccedilotildees deram forma ao texto do Decreto de tal modo que as suas

linhas mestras derivam de Cervini e todo o texto deve ser entendido agrave luz de suas ideacuteias Contudo em duas passagens isto eacute no pervenerunt e no conservatas haacute influecircncia da segunda concepccedilatildeo enquanto no tum ad fidem tum ad mores haacute influecircncia da terceira

Em face destas trecircs concepccedilotildees das quais na realidade existem diversas variantes que tomadas em conjunto satildeo a expressatildeo das ideacuteias dominantes adotadas aparecem as teses de Bonuccio e de Nacchianti tatildeo postas em evidecircncia por Geiselmann como sentenccedilas contraacuterias De fato o parecer de Bonuccio claramente [56] se opotildee agrave segunda concepccedilatildeo (contra a supervalorizaccedilatildeo das consuetudines natildeo per pietatis affectus) ao passo que Nacchianti se levanta antes contra a terceira posiccedilatildeo e salienta a suficiecircncia da feacute recebida por meio da Escritura46

Seria de notar-se ainda que as concepccedilotildees segunda e terceira tecircm algo em comum Ambas opotildeem agrave visatildeo pneumatoloacutegica de Cervini da salvaccedilatildeo sempre presente uma visatildeo mais historicista relacionada com o prolongamento da salvaccedilatildeo operada uma soacute vez ou seja o ἑφάπαξ Na realidade deve-se dizer que embora de um lado tanto a visatildeo presencial de Cervini como tambeacutem a visatildeo historicista do outro grupo se consideradas isoladamente cada qual de per si sejam perigosas se natildeo insustentaacuteveis 46 Aliaacutes de acordo com uma informaccedilatildeo de Cervini parece que o Bispo de Chioggia finalmente renunciou agrave sua tese da suficiecircncia da Escritura na qual se inclinava a recusar as tradiccedilotildees Na carta de Cervini ao Cardeal Farnese de 27 de fevereiro de 1546 lemos hellip Chioggia che (quasi quasi) voleva dire queste traditioni essere superflue perorando che tutto quello che era necessario alla salute era scritto et allegando etiam S Agostino sopra lultimo capitulo di S Giovanni a questo proposito Pure per non poter negare che molte cose appartenenti almeno alli sacramenti non ci fussero venute ex tra ditione et per consequente che non tutte le cose necessarie alia nostra salute erano scritte poiche ebbe fatte molte distintioni concluse che ancor lui accettava queste ldquoche in la chiesa fusse qualque traditione apostolica non scrittardquo (et con queste parole diceva che se ne facesse il decreto) credo che molti sono restati scandalizati di lui (CT X Nr 315 paacutegs 399 411) Cf tambeacutem CT I 494 nota 9 e 495 nota 2 CT V 18 nota 5 e 19 e nota 1 O mesmo protesto que aparece contra Nacchianti manifesta-se tambeacutem na observaccedilatildeo de Massarelli Este chega a chamar aquele de novarum rerum cupidus (1 494 18) e esclarece que reprehensus est a multis (1 494 22) Diante disto eacute de todo destituiacuteda de creacutedito a importacircncia que Geiselmann lhe atribui mesmo se abstrairmos de outras razotildees jaacute conhecidas sobre as quais natildeo precisamos insistir

de outro lado pelo menos tornam possiacutevel uma exata visatildeo do conjunto devido agrave sua muacutetua confluecircncia e limitaccedilatildeo No texto atual estatildeo presentes embora pouco nitidamente ambos os pontos de vista o elemento presencial e o ἑφάπαξ Conveacutem que entendamos assim o texto de modo a considerarmos [57] ambos estes aspectos como essenciais Consequumlentemente reconheceremos que ambos pertencem constitutivamente agrave realidade da vida cristatilde e portanto tambeacutem agravequela parcela do Cristianismo a que damos o nome de Tradiccedilatildeo Estes dois elementos satildeo a presenccedila do Espiacuterito Santo e o seu nexo com o fato singular da salvaccedilatildeo ocorrido uma soacute vez por todas na histoacuteria dos homens

Assim se acharaacute finalmente a resposta agrave pergunta de corno noacutes devemos entender o parecer do Conciacutelio de Trento A primeira e mais importante conclusatildeo parece-me ser o fato de o Conciacutelio ter visto muito claramente o nexo entre Tradiccedilatildeo e Revelaccedilatildeo A seguir elaborou sempre em consonacircncia com a tradiccedilatildeo patriacutestica e medieval um conceito de Revelaccedilatildeo muito menos material do que o que seraacute adotado mais tarde pela teologia dos tempos modernos Somente assim se deve conceber a ideacuteia da Revelaccedilatildeo do Espiacuterito Santo na Igreja Partindo do ramo nitidamente patriacutestico da teologia medieval tatildeo francamente acolhido no discurso de Cervini deveria ser muito menos categoacuterica a opiniatildeo que coloca o teacutermino da Revelaccedilatildeo na morte do uacuteltimo Apoacutestolo Naturalmente esta questatildeo natildeo pode ser aqui estudada com maiores detalhes A sua soluccedilatildeo como entatildeo se apresentava aos teoacutelogos poderia ser hoje impostada apelando-se para as categorias da teologia atual Segundo esta podemos dizer que a Revelaccedilatildeo estaacute encerrada do ponto de vista de seu princiacutepio material Todavia estaacute e continua presente em sua realidade eficaz Noutros termos a Revelaccedilatildeo tem eacute verdade o seu ἑφάπαξ enquanto ela se realizou num determinado dia na Histoacuteria Entretanto ela tem tambeacutem o seu ldquohojerdquo permanente isto eacute o que foi uma vez por todas realizado na feacute da Igreja permanece sempre vivo e operante Assim a feacute cristatilde natildeo se volta apenas para o passado Abrange tambeacutem o presente e o futuro Eacute verdade que a posterior materializaccedilatildeo historicista da ideacuteia de Revelaccedilatildeo aparece jaacute claramente insinuada nos debates tridentinos corno um fato previsto mas ainda [58] natildeo consumado embora talvez se possa dizer que nos textos conciliares ficou definitivamente consagrada a sua aceitaccedilatildeo

Finalmente acrescentemos ainda que com base nos debates do Conciacutelio podemos estabelecer quatro elementos da ideacuteia de Tradiccedilatildeo 1 O aspecto natildeo-escrito da Revelaccedilatildeo ou do Evangelho contido na Biacuteblia e no coraccedilatildeo dos fieacuteis 2 A palavra do Espiacuterito Santo no decorrer de todo o tempo da Igreja

3 A atividade da Igreja nos Conciacutelios 4 A Tradiccedilatildeo lituacutergica e a da vida da Igreja em geral Nestes quatro elementos

que se deve ter sob os olhos pois formam o fundo ideoloacutegico do Decreto expressa-se a realidade uacutenica do tempo presente da Igreja cristatilde Nele estaacute presente todo o passado poacutes-apostoacutelico da Igreja (inclusive o proacuteprio tempo dos apoacutestolos) de modo que toda a sua vida eacute na Sagrada Escritura um elemento central embora natildeo o uacutenico Em suma deve ter ficado claro que o Conciacutelio de Trento a despeito do caraacuteter contrastante e fixo de sua ideacuteia de Revelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeo oferece uma visatildeo muito mais rica destes conceitos do que a que impregnou a mentalidade dos seacuteculos seguintes Justamente por

isso a teologia de hoje pode retirar daiacute novos subsiacutedios novo apoio para suas pesquisas e novas indicaccedilotildees sobre o verdadeiro caminho a seguir

Quadro sinoacutetico do Decreto tridentino sobre a Tradiccedilatildeo

Primeiro princiacutepio conforme Cervini (AT = Escritura)

Sacrosancta œcumenica et generalis Tridentina Synodus in Spiritu Sancto legitime congregata [] hoc sibi perpetuo ante oculos proponens ut sublatis erroribus puritas ipsa EVANGELII in Ecclesia conservetur quod PROMISSUM ANTE PER PROPHETAS IN SCRIPTURIS SANCTIS

Segundo princiacutepio conforme Cervini o Evangelho em parte escrito em parte insculpido nos coraccedilotildees

[59] DOMINUS NOSTER IESUS CHRISTUS DEI FILIUS PROPRIO ORE PRIMUM PROMULGAVIT DEINDE PER SUOS APOSTOLOS TAMQUAM FONTEM OMNIS ET SALUTARIS VERITATIS ET MORUM DISCIPLINAE OMNI CREATURAE PRAEDICARI IUSSIT PERSPICIENSQUE HANC VERITATEM ET DISCIPLINAM CONTINERI IN LIBRIS SCRIPTIS ET SINE SCRIPTO TRADITIONIBUS QUAE AB IPSIUS CHRISTI ORE AB APOSTOLIS ACCEPTAE AUT AB IPSIS APOSTOLIS SPIRITU SANCTO DICTANTE

Seripando Cervini e outros soacute consideram as tradiccedilotildees recebidas pela Igrej (ldquoad nos usquerdquo)

quasi per manus traditae ad nos usque pervenerunt

orthodoxorum Patrum exempla secuta omnes libros tam Veteris quam Novi Testamenti cum utriusque unus Deus sit auctor nec non TRADITIONES IPSAS

Lejay Tradiccedilatildeo contendo natildeo soacute a ldquoconsuetudordquo mas relacionada tambeacutem com a ldquofidesrdquo (foacutermula conciliar)

tum ad fidem tum ad mores pertinentes

Terceiro princiacutepio de Cernini Depois da Ascenccedilatildeo de Cristo o Espiacuterito Santo ensina tambeacutem os misteacuterios de Deus

TAMQUAM VEL ORETENUS A CHRISTO VEL A SPIRITU SANCTO DICTATAS

Seripando Cervini etc soacute satildeo consideradas as coisas recebidas pela Igreja (como acima)

et continua successione in Ecclesia catholica conservatas

Cervini Escritura e Tradiccedilatildeo procedem ambas do mesmo Espiacuterito Santo

pari pietatis affectu ac reverentia suscipit ac veneratur

  • Prefaacutecio
  • SEGUNDA PARTE
  • Explicaccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo
  • segundo o Decreto do Conciacutelio de Trento
Page 15: Revelacao e Tradicao-Joseph Ratzinger (Bom Ler)

uacutenico sustentaacuteculo autocircnomo e autecircntico da palavra natildeo admitindo a Tradiccedilatildeo como uma grandeza em si

O Conciacutelio de Trento em seu estudo sobre a Tradiccedilatildeo teve diante dos olhos os dois pontos de vista contraacuterios e procurou formular sua resposta levando ambos em consideraccedilatildeo Eacute por isso conveniente analisarmos como estas duas posiccedilotildees se inter-relacionam em face da equiparaccedilatildeo feita por Lutero entre a Traditio e os abusus Em outros termos como os Padres conciliares se colocam diante do dilema dever-se-ia responder aos ataques de Lutero diretamente com uma definiccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo Ou antes de tudo com a reformatio a coerccedilatildeo dos abusus7

No tocante agrave doutrina o Conciacutelio refutou ex professo a censura dos Reformadores sustentando que a palavra natildeo eacute uma realidade autocircnoma pairando acima da Igreja Ela eacute dada pelo [19] Senhor agrave Igreja e natildeo entregue ao capricho dos homens Permanece justamente por isso nas Suas matildeos subtraindo-se ao alcance do alvitre humano Na visatildeo dos Padres de Trento deve no fundo ter parecido uma falta de confianccedila o terem os homens receio da palavra escrita entregue agrave Igreja como se a Igreja pudesse abusar dela Como se se pudesse apelar para a palavra da Revelaccedilatildeo contra a Igreja Estava-se inquestionavelmente certo de que o Senhor que instituiu a Igreja como Seu Corpo haveria de se empenhar em tutelaacute-la contra o perigo de abusar de Sua palavra

Hoje decorridos quatro seacuteculos desde a Reforma podemos confessar que na oposiccedilatildeo que dividia entre si Lutero e o Conciacutelio de Trento tanto depois como antes o dilema que dilacerou a Cristandade ocidental de certo modo jaacute desapareceu Vecirc-se isto pela troca de correspondecircncia entre Harnack e Peterson Peterson ao agradecer o tratado de Harnack Das Alte Testament in den Paulinischen Briefen und in den Paulinischen Gemeiden observou que este em seu cotejo da Escritura com a exegese biacuteblica tinha adotado natildeo o princiacutepio protestante mas o catoacutelico Escreveu Harnack ldquoDizer que o chamado lsquoprinciacutepio formalrsquo do Protestantismo primitivo eacute uma impossibilidade criacutetica e que ao contraacuterio o princiacutepio catoacutelico eacute formalmente o melhor eacute um truiacutesmo Materialmente poreacutem o princiacutepio catoacutelico da Tradiccedilatildeo opotildee-se agrave Biacuteblia muito mais diretamente (As tradiccedilotildees satildeo como ervas daninhas a serem cortadas pela tesoura do Magisteacuterio) A melhor fonte eacute o Novo Testamentordquo 8

Nesta formulaccedilatildeo de certo modo geneacuterica e simplista e na oposiccedilatildeo estabelecida entre os aspectos material e formal vem de novo agrave tona o antigo dilema poder-se-aacute confiar a palavra agrave Igreja sem temor de que ela sob a tesoura do Magisteacuterio ou [20] envolta no mato selvagem do sensus fidelium perca a sua forccedila proacutepria e sua vitalidade Esta eacute a pergunta que os Protestantes fazem aos Catoacutelicos Poder-se-aacute aceitar a autonomia da palavra sem com isto ser esta exposta ao arbiacutetrio dos exegetas aos maus tratos por parte dos historiadores e enfim ao completo desamparo Eis como os Catoacutelicos revidam aos Protestantes Com efeito segundo nossa doutrina natildeo eacute a noacutes que compete decidir se queremos ou natildeo confiar a palavra agrave Igreja Foi o proacuteprio Senhor quem lha confiou Note-se entretanto que quando o Catoacutelico encara seriamente este assunto natildeo deixa de considerar o zelo pela pureza da palavra revelada como um dever

7 Ver as notas 41 e 42 na 2ordf parte 8 Citado in E PETERSON Theologische Traktate Munique 1951 p295

da mais alta importacircncia Ele sabe que natildeo cumpre este dever pelo simples fato de apelar para a inerracircncia da Igreja Fazecirc-lo seria menosprezar o sentido da luta de Lutero em favor da Palavra deixando-se de ver nisto uma salutar advertecircncia e um apelo dirigido agraves almas

Natildeo obstante tudo isto a histoacuteria da controveacutersia natildeo se deteve no decurso dos quatro seacuteculos que se seguiram agrave Reforma Duas diferentes tendecircncias se destacam nas relaccedilotildees entre o Protestantismo e o Catolicismo e entre suas respectivas teologias De um lado uma radicalizaccedilatildeo de cada grupo nos proacuteprios pontos de vista Cada grupo a partir de entatildeo fez sua histoacuteria proacutepria e desenvolveu-a em direccedilatildeo oposta um ao outro Por outro lado a distacircncia mantida entre ambos possibilita maior objetividade em seus julgamentos reciacuteprocos Existe finalmente de parte a parte um renovado esforccedilo por superar as fronteiras com vistas a um encontro

Quem entre os Catoacutelicos empreendeu o mais significativo passo para chegar a uma visatildeo nova do problema da Tradiccedilatildeo mediante a superaccedilatildeo de posiccedilotildees unilaterais e anti-reformistas foi em nossos dias o teoacutelogo dogmaacutetico de Tubinga Josef Rupert Geiselmann Seus esforccedilos foram frutuosos fazendo-se sentir a sua influecircncia inclusive nos estudos preparatoacuterios do [21] Conciacutelio e deram agraves incursotildees do Vaticano II nesta aacuterea aquela marcante atualidade que ainda na primeira sessatildeo levou este problema a transcender do ciacuterculo da luta doutrinal entre as vaacuterias escolas teoloacutegicas para se transformar em uma preocupaccedilatildeo de toda a Cristandade catoacutelica9

A tese de Geiselmann eacute conhecida Basta-nos esboccedilaacute-la rapidamente aqui a fim de lanccedilarmos as bases de uma reflexatildeo que procuraraacute aprofundar mais este assunto e talvez dar um modesto passo agrave frente Geiselmann parte de uma interpretaccedilatildeo nova do sentido dado pelo Conciacutelio ao conceito de Tradiccedilatildeo O tridentino estabelecera que a verdade do Evangelho estaacute contida in libris scriptis et sine scripto traditionibus Isto foi e eacute ateacute hoje interpretado como se a Escritura natildeo contivesse toda a veritas evangelii Portanto natildeo eacute possiacutevel admitir-se a sola Scriptura uma vez que uma parte da Revelaccedilatildeo nos eacute transmitida somente pela Tradiccedilatildeo Geiselmann aproveitou a observaccedilatildeo jaacute antes feita por alguns autores de que na primeira redaccedilatildeo do texto focircra adotada a foacutermula segundo a qual a verdade estaria contida partim in libris scriptis partim in sine scripto traditionibus Estaria aqui claramente expressa a doutrina da divisatildeo da verdade revelada em duas fontes (Escritura e Tradiccedilatildeo) O Conciacutelio abandonou a expressatildeo partim ndash partim preferindo usar o simples conectivo et Geiselmann daiacute conclui afastou-se o Conciacutelio da ideacuteia da divisatildeo da verdade em duas fontes diversas Ou pelo menos natildeo a definiu explicitamente E continua o mesmo autor com isto pode tambeacutem o teoacutelogo catoacutelico aceitar a ideacuteia de uma suficiecircncia material da Escritura Pode ainda mesmo permanecendo catoacutelico defender a opiniatildeo de que a Sagrada Escritura eacute suficiente para transmitir-nos a [22] Revelaccedilatildeo Geiselmann admite consequumlentemente que a sola Scriptura pode conceber-se como uma uacutenica fonte

9 Cf R LAURENTIN Lenjeu du Concile Bilan de Ia premiegravere session Paris 1963 p27-45 Y CONGAR Vatican II Le Concile au jour le jour Paris 1963 p63-71 J RATZINGER Die erste Sitzungsperiode des Zweiten Vatikanischen Konzils Colocircnia 1963 p38-50

material da Revelaccedilatildeo Ele crecirc ainda poder mostrar que a tradiccedilatildeo mais forte eacute a favor desta sentenccedila e que o proacuteprio Conciacutelio de Trento se inclina neste sentido10

Eacute faacutecil de se compreender que semelhante tese tenha obtido o apoio de muitos em face das novas possibilidades de encontro entre Catoacutelicos e Evangeacutelicos possibilidades estas que a posiccedilatildeo de Geiselmann parece favorecer11 Que esta tese na realidade constitua um passo consideraacutevel neste sentido parece ser incontestaacutevel Todavia tatildeo logo a analisemos mais de perto em seus fundamentos histoacutericos e reais surge de pronto toda uma seacuterie de dificuldades graves a tornarem impossiacutevel a sua aceitaccedilatildeo

Sobre o aspecto histoacuterico deste problema apresentaremos vaacuterias observaccedilotildees na segunda parte deste nosso opuacutesculo Entrementes consideremos de imediato o lado praacutetico deste assunto Seu exame provoca inicialmente esta pergunta que significa propriamente a expressatildeo ldquosuficiecircncia da Escriturardquo Geiselmann como teoacutelogo catoacutelico que eacute natildeo deixa de sustentar os nossos dogmas Ora nenhum dogma catoacutelico eacute provado sola Scriptura Nem os grandes dogmas primitivos sustentados pelo consensus quinquesaeligcularis nem tampouco o de 1854 e [23] menos ainda o de 1950 Em que sentido entatildeo se pode falar em suficiecircncia da Escritura Natildeo ameaccedilaraacute esta converter-se em perigosa fraude pela qual nos enganamos primeiramente a noacutes proacuteprios e em seguida tambeacutem enganamos aos outros (Ou natildeo seratildeo talvez justamente eles que natildeo se enganam) Ou entatildeo pelo menos para sustentarmos de um lado que a Escritura sozinha conteacutem toda a verdade da Revelaccedilatildeo e de outro lado que o dogma de 1950 eacute verdade revelada natildeo deveremos noacutes refugiar-nos em um conceito tatildeo largo de suficiecircncia que na verdade esta palavra venha a perder todo o seu significado

Com isto abre-se a segunda (que de fato eacute a primeira) questatildeo decisiva a saber seraacute verdade que os debates em torno da ideacuteia da suficiecircncia da Escritura resolveram mesmo o problema do conceito de Tradiccedilatildeo Ou ao contraacuterio natildeo estaremos noacutes aqui diante de um problema de raiacutezes muito mais profundas

Nossas observaccedilotildees introdutoacuterias devem ter deixado claro que esta uacuteltima pergunta deve sem duacutevida nenhuma ser respondida afirmativamente A questatildeo da suficiecircncia da Escritura eacute apenas um problema secundaacuterio no acircmbito da distinccedilatildeo muito mais importante que foi jaacute antes apontada por noacutes ao tratarmos dos conceitos abusus e auctoritas e que gira em torno do nexo entre a autoridade da Igreja e a autoridade da Sagrada Escritura Da compreensatildeo disto depende tudo o mais

Para irmos mais adiante torna-se necessaacuterio analisarmos profundamente o assunto natildeo para nos determos no exame dos conceitos tatildeo relevantes de suficiecircncia ou insuficiecircncia da Escritura mas antes para abordarmos em seu tudo o vasto problema da Palavra revelada e presente no coraccedilatildeo dos fieacuteis Torna-se evidente entatildeo que agrave luz das fontes positivas a Escritura e a Tradiccedilatildeo devem ser postas em relaccedilatildeo tatildeo iacutentima que da

10 Ver sobretudo a obra de J R GEISELMANN Die Heilige Schrift und die Tradition Friburgo 1962 principalmente as p91-107274-282 Entre os trabalhos anteriores escritos por Geiselmann sobre o mesmo tema eacute de particular importacircncia o seguinte Das Konzil von Trient uumlber das Verhaumlltnis der Heiligen Schrift und der nichtgeschriebenen Traditionen in M SCHMAUS Die muumlndliche Uumlberlieterung Munique 1957 p 123-206 11 Uma lista de todos os autores que mais concordaram com Geiselmann eacute fornecida por H KUumlNG em sua tese ldquoKarl Barths Lehre vom Wort Gottes als Frage an die katholische Theologierdquo in Einsicht und Glaube publicado por J RATZINGER-H FRIES Friburgo 1963 p 105 nota 25

fonte interna (a Revelaccedilatildeo) brote a pa1avra de Deus viva sob aquela dupla formalidade A Escritura e a Tradiccedilatildeo natildeo podem [24] ser entendidas uma sem a outra no sentido que ambas tecircm agrave luz da feacute O problema ldquoEscritura e Tradiccedilatildeordquo permaneceraacute insoluacutevel enquanto natildeo for reduzido a uma soacute questatildeo a saber a questatildeo ldquoRevelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeordquo e inserida enfim no amplo contexto a que pertence

Eu gostaria de nas paacuteginas seguintes sem entrar em todos os detalhes tentar desenvolver em forma de teses e de maneira positiva o conceito de Tradiccedilatildeo partindo de sua natureza iacutentima com a esperanccedila de que nele descubramos uma parte da resposta aos anseios dos Reformadores Desta maneira toda esta anaacutelise serviraacute de contribuiccedilatildeo para o diaacutelogo interconfessional cuja necessidade tanto os Catoacutelicos como os Protestantes vecircm proclamando de maneira cada vez mais insistente

II - Teses sobre a relaccedilatildeo entre a Revelaccedilatildeo e a Tradiccedilatildeo

1 A Revelaccedilatildeo e a Escritura A primeira tese em aditamento ao conceito patriacutestico de Escritura e Revelaccedilatildeo

poderia enunciar-se nos seguintes termos o fato de existir uma ldquoTradiccedilatildeordquo repousa antes de tudo na diferenccedila que permeia entre estas duas realidades ldquoRevelaccedilatildeordquo e ldquoEscriturardquo A Revelaccedilatildeo exprime propriamente o falar e o agir de Deus em relaccedilatildeo aos homens Designa uma realidade expressa pela Escritura sem ser contudo a proacutepria Escritura A Revelaccedilatildeo por conseguinte ultrapassa a Escritura na mesma medida em que a realidade ultrapassa a sua expressatildeo escrita12 Poder-se-ia [25] tambeacutem dizer que a Escritura eacute o princiacutepio material da Revelaccedilatildeo (Talvez princiacutepio uacutenico talvez um princiacutepio entre outros isto seraacute esclarecido mais adiante) Ela natildeo eacute poreacutem a proacutepria Revelaccedilatildeo Isto era aliaacutes bem sabido dos proacuteprios Reformadores mas comeccedilou visivelmente a ser esquecido no aceso da controveacutersia entre a teologia catoacutelica poacutes-tridentina e a ortodoxia protestante13 Em nosso seacuteculo foram justamente os teoacutelogos evangeacutelicos Barth e Brunner que redescobriram este fato de todo evidente para a teologia patriacutestica e medieval14

O que acabamos de afirmar ficaraacute mais claro se partirmos de outro princiacutepio a Escritura pode ser possuiacuteda sem que se possua a Revelaccedilatildeo Isto porque a Revelaccedilatildeo eacute sempre e em primeiro plano uma realidade a realidade onde se encontra a feacute Aquele

12 Esta afirmaccedilatildeo natildeo tem o sentido de que a Escritura seja uma mera e vazia narrativa de realidades a ela exteriores Antes como o que se segue iraacute demonstrar indica que a Revelaccedilatildeo eacute realizada na Palavra jaacute que eacute por meio de palavras que ela se comunica aos homens Contudo a mera presenccedila da palavra ainda natildeo eacute a Revelaccedilatildeo Esta eacute mais do que simples ldquopresenccedilardquo Com o que ficou dito salienta-se a diferenccedila que existe entre a palavra e seu conteuacutedo Esta diferenccedila natildeo exclui o caraacuteter verbal da Revelaccedilatildeo 13 Cf A GLOEGE Schriftprinzips RGG V 1540-1543 onde se encontraraacute a mais completa bibliografia LthK VII 1104-1115 J R GEISELMAN Offenbarung in H FRIES Handbuch zum Begriff der Offenbarung cf M VERENO - R SCHNACKENBURG - HRIES in Theologischer Grundbergriffe II Munique 1963 p242-250 e a bibliografia aiacute citada 14 Cf W H VAN DER POL Das reformatorische Christentum Einsiedeln 1956 p117-192

que natildeo crecirc acha-se como que coberto por um veacuteu o veacuteu de que fala Satildeo Paulo no terceiro capiacutetulo da segunda epiacutestola aos Coriacutentios15 Ele pode ler a Escritura e saber o que nela se conteacutem Pode ateacute mesmo apreender de modo puramente intelectual o que aiacute eacute significado e como suas ideacuteias se inter-relacionam Todavia natildeo possui com isto a Revelaccedilatildeo A Revelaccedilatildeo eacute sobretudo possuiacuteda quando aleacutem da expressatildeo material que a atesta se potildee tambeacutem em praacutetica o seu conteuacutedo interno por meio da vivecircncia da feacute Com efeito de certo modo se inclui tambeacutem na Revelaccedilatildeo o sujeito recipiente sem o qual ela natildeo pode existir Natildeo se pode pocircr a Revelaccedilatildeo no bolso como se faz com [26] um livro Ela eacute uma realidade viva Exige homens vivos que a recebam que sirvam de ldquolugarrdquo de sua presenccedila

Repetindo o que ateacute aqui dissemos podemos afirmar que a Revelaccedilatildeo sobreexcede de fato a Escritura em dois sentidos

a) em sentido ascendente ela atinge sempre como realidade procedente de Deus o agir divino sobre as criaturas

b) como realidade que se daacute ao homem por meio da feacute ela atinge igualmente a Escritura

Desta diferenccedila entre a Escritura e a Revelaccedilatildeo resulta claramente que de todo independentemente da questatildeo se a Escritura eacute ou natildeo eacute a uacutenica fonte material em rigor nunca existe para o cristatildeo a sola Scriptura (Isto como ficou dito era claro em princiacutepio para os grandes Reformadores e comeccedilou a ser esquecido na chamada ortodoxia protestante) A Escritura natildeo eacute a Revelaccedilatildeo Eacute sim em uacuteltima anaacutelise uma parte desta realidade mais ampla

2 Os diferentes sentidos da Escritura

no Antigo e Novo testamento A problemaacutetica cristatilde da Revelaccedilatildeo ou o problema ldquoEscritura e Tradiccedilatildeordquo situa-se

melhor se considerarmos o duplo aspecto da mesma Revelaccedilatildeo no Antigo e no Novo Testamento A este duplo aspecto corresponde tambeacutem um duplo sentido da Escritura Assim como os dois Testamentos como tais se distinguem essencialmente assim tambeacutem devemos dizer que a ldquoEscriturardquo como um fato natildeo eacute repetida duas vezes do mesmo modo Isto aparece muito claro nos livros neotestamentaacuterios Sob a expressatildeo ldquoEscriturardquo designam eles somente o Antigo Testamento Para eles o AT eacute e permanece sendo ldquoa Escriturardquo cujo sentido se aclara mediante sua confirmaccedilatildeo no evento da [27] vinda de Cristo16 Os livros do NT natildeo jogam uma Escritura nova contra uma Escritura antiga Nem potildeem uma simplesmente ao lado da outra Potildeem sim em face da uacutenica Escritura ou seja do Antigo Testamento o Cristo-evento como o espiacuterito que explica a letra Esta concepccedilatildeo fundamental ilumina tambeacutem a forma da feacute mais antiga e a torna por primeiro compreensiacutevel O ldquoJesusrdquo formal eacute o ldquoCristordquo expresso no Antigo Testamento Natildeo eacute outra coisa No Jesus Histoacuterico o Cristo-mensagem do

15 Cf sobre estas reflexotildees o importante artigo (ἀποκαλύπτω de A OEPKE in ThWNT III p565-597 16 Ver sobre este ponto as preciosas conclusotildees de G SCHRENK art γραφή ndash γράμμα in ThWNT I p749-769 e a p767

Antigo Testamento atinge a sua consumaccedilatildeo Eacute a partir do AT que se entende quem eacute Jesus E o que o Testamento Antigo expressa pode ser visto agrave luz do Cristo-evento

Esta ideacuteia aparece em Paulo ao apresentar ele o Antigo e o Novo Testamentos como Gramma e Pneuma isto eacute letra e espiacuterito (2Cor 3 6-18) Ele chama ao Senhor de Pneuma A Escritura explica-o como sendo o seu sentido o seu conteuacutedo verdadeiro e vivo e natildeo apenas literaacuterio Paulo se refere agrave concepccedilatildeo do Novo Testamento apresentada por Jeremias (3133) Natildeo eacute mais necessaacuteria nenhuma Escritura porque a lei estaacute escrita nos coraccedilotildees Jaacute natildeo eacute necessaacuteria nenhuma doutrinaccedilatildeo vinda de fora porque o proacuteprio Deus instrui os homens Joatildeo exprime idecircntico pensamento em seguimento ao decircutero-Isaiacuteas (5413) quando descreve a era inaugurada por Cristo como o tempo no qual todos satildeo doutrinados por Deus mesmo E o sermatildeo de Pedro em Pentecostes transmitido pelos Atos dos Apoacutestolos (2 14-36) desenvolve a mesma ideacuteia tirada de Joel (3 1-5) Em todos estes casos aparece a era instaurada por Cristo como resposta agrave esperanccedila no advento de um tempo futuro que em uacuteltima anaacutelise haveria de tornar supeacuterflua a Escritura graccedilas agrave presenccedila imediata do Divino Mestre na Sua humanidade

Quando se pondera o sentido destas afirmaccedilotildees torna-se claro [28] que ao reduzir-se a ldquoEscriturardquo aos escritos do Antigo Testamento natildeo se estaacute apenas usando uma terminologia antiga que teria sido adotada por falta de escritos propriamente neotestamentaacuterios e que teria perdido seu sentido na segunda metade do seacuteculo segundo com o iniacutecio do cacircnon do Novo Testamento Ao contraacuterio Aqui se expressa uma consciecircncia que se tornaria mais niacutetida a partir da formaccedilatildeo da proacutepria Escritura neotestamentaacuteria muito ao inveacutes de cessar ou de desaparecer

Uma coisa eacute certa a ldquoEscriturardquo na nova ordem da salvaccedilatildeo inaugurada por Cristo toma um lugar distinto do que lhe cabia no Antigo Testamento Com isto pode-se ver ateacute que ponto o Antigo Testamento tem sentido autocircnomo O AT certamente natildeo aparecia desde o comeccedilo como Testamento do Gramma Escritura em sentido proacuteprio como ocorreraacute na pena de Satildeo Paulo17 Por outro lado manifesta-se realmente a partir de Jeremias e do decircutero-Isaiacuteas o anelo pela superaccedilatildeo do Gramma mediante uma nova e imediata comunicaccedilatildeo do Espiacuterito de Deus simultaneamente com a progressiva formaccedilatildeo de um princiacutepio da Escritura que mais e mais a transformou em Lei Lei esta que natildeo tornaria os homens vivos mas sim mortos

Desta maneira na concepccedilatildeo neotestamentaacuteria aparece o Antigo Testamento como ldquoEscriturardquo em sentido proacuteprio Escritura que atinge o seu verdadeiro significado atraveacutes do Cristo-evento pelo fato de ser ela inserida no contexto vivo da realidade de Cristo Se no Novo Testamento de facto a Escritura cresceu natildeo pode mais ter aquele sentido uacuteltimo e exclusivo que lhe competia no Antigo segundo a concepccedilatildeo paulina Ao contraacuterio Ela eacute a chave com que se abre o Antigo Testamento deixando-se banhar na claridade do Cristo-evento Ela eacute tambeacutem a ponte permanente que conduz a uma nova interpretaccedilatildeo biacuteblica agrave luz [29] de Cristo Num caso e noutro a Escritura natildeo pretende de modo nenhum ser autocircnoma nem ser a fonte uacutenica e exclusiva de sua exegese literal Mas soacute pode ter sentido na realidade espiritual de Jesus Cristo que

17 Ver a apreciaccedilatildeo feita por G VON RAD Theologie des Alten Testaments II Munique 1960 p402-424

permanece junto dos seus todos os dias ateacute ao fim do mundo (Mt 28 20) Apoacutes a subida ao Calvaacuterio Cristo veio de novo no Espiacuterito Santo (como narra Satildeo Joatildeo) e pelo Espiacuterito ensinou aos disciacutepulos o que eles entatildeo natildeo podiam ainda entender enquanto o Senhor estava entre eles sob forma visiacutevel (Jo 16 12)

3 Cristo a Revelaccedilatildeo de Deus

A realidade que se daacute como um acontecimento na Revelaccedilatildeo cristatilde natildeo eacute nada

mais nada menos do que o proacuteprio Cristo Cristo eacute a Revelaccedilatildeo em sentido proacuteprio ldquoQuem me vecirc vecirc o Pairdquo diz ele no Evangelho de Satildeo Joatildeo (14 9) Vale portanto dizer que receber a Revelaccedilatildeo eacute penetrar na realidade de Cristo no Cristo-evento Daiacute procede o paradoxo descrito por Satildeo Paulo ao fazer ele um trocadilho com as palavras ldquoCristo em noacutesrdquo e ldquonoacutes em Cristordquo

Neste contexto a anaacutelise de frases isoladas torna-se secundaacuteria de vez que elas satildeo apenas explicaccedilotildees do uacutenico misteacuterio de Cristo Consequumlentemente cai por si mesma a questatildeo da suficiecircncia interna da Escritura tatildeo discutida desde o aparecimento das obras de Geiselmann Deveriacuteamos isto sim perguntar que significa em linguagem cristatilde a suficiecircncia interna da Escritura ldquoSuficienterdquo eacute soacute a realidade do Cristo-evento Esta pode ser explicada materialmente em maior ou menor grau E de maneira nunca definitiva Partindo deste princiacutepio podem existir tambeacutem outras explicaccedilotildees segundo a Escritura quando se aprofunda mais este assunto

Este mesmo tema pode ser considerado sob outro aspecto E ter-se-aacute entatildeo dado um passo a mais para a frente A aceitaccedilatildeo [30] da Revelaccedilatildeo pela qual aplicamos a noacutes o Cristo-evento vem na linguagem da Biacuteblia sob o nome de ldquofeacuterdquo Assim talvez se entenderaacute mais claramente de que maneira no Novo Testamento a feacute significa a ldquoin-habitaccedilatildeordquo de Cristo Se admitirmos que na Escritura a presenccedila da Revelaccedilatildeo tem o mesmo sentido que a presenccedila de Cristo entatildeo teremos de fato dado um passo adiante Ora na Escritura encontramos a presenccedila de Cristo apresentada de duas maneiras Ela aparece de um lado como jaacute vimos identificada com a feacute (Ef 317) na qual cada um encontra Cristo e se adentra nele penetrando no dinamismo de sua forccedila salvadora Por outro lado a feacute se oculta tambeacutem sob a expressatildeo paulina ldquoCorpo de Cristordquo o que quer dizer que a comunidade dos fieacuteis ndash a Igreja ndash funda a presenccedila de Cristo neste mundo Nela Cristo reuacutene os homens e os faz partiacutecipes de sua presenccedila dinacircmica18

Tomadas juntas estas duas noccedilotildees significam o seguinte a feacute eacute a adesatildeo iacutentima agrave presenccedila de Cristo realidade de Cristo presente da qual a Escritura nos daacute testemunho sem contudo se identificar de modo nenhum com ela Daiacute resulta que a presenccedila da Revelaccedilatildeo se relaciona essencialmente com a ldquofeacuterdquo e com a ldquoIgrejardquo realidades estas que como vimos estatildeo estreitamente ligadas entre si

Voltamos assim ao que foi afirmado na primeira tese a saber que a Revelaccedilatildeo sobreexcede a Escritura em duplo sentido em relaccedilatildeo a Deus por seu lado ascendente e em relaccedilatildeo tambeacutem ao homem que a recebe Esta asserccedilatildeo que a princiacutepio deixamos

18 H SCHLIER ldquoDie Kirche nach dem Brief an die Epheserrdquo in Die Zeit der Kirche Friburgo 1962 p159-186

um tanto vaga encontramo-la essencialmente concretizada na realidade objetiva do Cristianismo

4 A essecircncia da Tradiccedilatildeo

[31] A transmissatildeo ao povo de Deus do Cristo-evento que eacute a Revelaccedilatildeo e que tem sua bi-presenccedila na feacute e na Igreja faz-se atraveacutes da pregaccedilatildeo Pregaccedilatildeo eacute a ldquoex-posiccedilatildeordquo (Aus-legung) do duplo aspecto da Revelaccedilatildeo no Antigo e no Novo Testamento E isto de duas maneiras

a) ela eacute a exposiccedilatildeo do Antigo Testamento agrave luz do Cristo-evento e para o Cristo-evento

b) a partir do Pneuma e da condiccedilatildeo presente da Igreja Este uacuteltimo aspecto eacute possiacutevel pois Cristo natildeo estaacute morto Estaacute vivo Natildeo eacute

apenas o Cristo de ontem Eacute tambeacutem e a fortiori o Cristo de hoje e de amanhatilde o Cristo vivo e presente em sua Igreja que eacute seu Corpo e na qual o seu espiacuterito opera

Isto poderaacute ser melhor compreendido se partirmos da essecircncia da Igreja Como nos ensina o Novo Testamento a mensagem de Jesus eacute antes de tudo uma mensagem escatoloacutegica com vistas ao reino de Deus natildeo com vistas agrave Igreja O fato de existir a Igreja natildeo se opotildee a esta mensagem mas haacute na marcha gradativa das revelaccedilotildees de Cristo uma segunda possibilidade Assim a atividade dos Doze depois de Pentecostes aponta natildeo para a Igreja mas para o reino de Deus Informam-nos os Atos dos Apoacutestolos que os Doze natildeo se ocuparam primordialmente em missionar os povos Esforccedilaram-se antes muito mais em converter Israel criando deste modo as condiccedilotildees preacutevias para a implantaccedilatildeo do reino De iniacutecio uma seacuterie de obstaacuteculos histoacutericos entre os quais deveriacuteamos citar antes de tudo o martiacuterio de Estevatildeo o supliacutecio de Tiago e por fim o fato decisivo da prisatildeo e da libertaccedilatildeo de Pedro Tais fatos levaram a comunidade primitiva segundo dizem as fontes a reconhecer como definitivo o malogro do esforccedilo de converter Israel E consequumlentemente forccedilaram os Apoacutestolos a partir em busca dos gentios e a cuidar [32] assim da Igreja e natildeo do reino Eles o fazem segundo se depreende das passagens referidas e principalmente dos esclarecimentos do capiacutetulo 15 dos Atos dos Apoacutestolos como uma nova opccedilatildeo feita sob a accedilatildeo do Espiacuterito Santo Com isso iniciou-se uma nova interpretaccedilatildeo da mensagem de Cristo sobre a qual a Igreja essencialmente repousa19

19 Cf as decisivas conclusotildees de E PETERSON ldquoDie Kircherdquo in Theologische Traktate Munique 1951 p 409-429 H SCHLIER Die Entscheidung fuumlr die Heidenmission in der Urchristenheit Die Zeit der Kirche p 90-107 Parece-me certo que nem a anaacutelise da tradiccedilatildeo sinoacutetica relativa agrave mensagem de Jesus e seu caraacuteter escatoloacutegico nem o estudo da histoacuteria da Igreja primitiva com base no material fornecido pelos Atos dos Apoacutestolos autorizam qualquer outra conexatildeo entre a mensagem do reino e a pregaccedilatildeo da Igreja Daiacute natildeo se segue de modo nenhum ndash como muitas vezes se teme ndash que a cruz seja um acidente secundaacuterio que em rigor poderia ter sido evitado Ao contraacuterio A estrutura da Igreja moldada sobre a cruz eacute fundamental porque aiacute eacute que por primeiro se encontra a confirmaccedilatildeo da importacircncia da liberdade humana de Cristo e da sua Paixatildeo bem como a iacutentima dependecircncia da Igreja para com a Cruz donde ela procede

Este fato que baseia o estabelecimento definitivo da Igreja sobre uma decisatildeo tomada ldquono Espiacuterito Santordquo eacute o fundamento para se afirmar que existe uma interpretaccedilatildeo eclesial do Novo Testamento do mesmo modo que existe uma exegese cristoloacutegica do Antigo Daiacute podermos estabelecer as seguintes teses ou proposiccedilotildees agrave luz da analogia fidei

a) Existe uma teologia veterotestamentaacuteria do Antigo Testamento que o exegeta

deduz de seu conteuacutedo interno e que se desenvolve em uma seacuterie de camadas superpostas Segundo ela os textos antigos devem ser relidos e de novo expostos agrave luz dos novos acontecimentos O fenocircmeno da aplicaccedilatildeo dos textos agraves situaccedilotildees novas do desdobramento da Revelaccedilatildeo mediante nova [33] apresentaccedilatildeo do Antigo Testamento estrutura jaacute de modo essencial o conteuacutedo interno veterotestamentaacuterio20

b) Existe uma teologia neotestamentaacuteria do Antigo Testamento que natildeo coincide com

a referida teologia veterotestamentaacuteria Estaacute contudo estreitamente ligada com ela na unidade da analogia fidei21 Talvez partindo daqui se possa esclarecer o que significa a analogia fidei entre Os dois Testamentos A teologia neotestamentaacuteria do Antigo Testamento natildeo eacute como ficou dito idecircntica agrave teologia histoacuterica veterotestamentaacuteria Ao contraacuterio Re-exposiccedilatildeo feita agrave luz do Cristo-evento ela natildeo procede soacute da mera consideraccedilatildeo histoacuterica do Antigo Testamento Sendo embora em seu pleno conceito uma interpretaccedilatildeo relacionada com o Antigo Testamento contudo nada faz com que ela seja internamente estranha agrave sua essecircncia ainda que soacute de fora o atinja Ela amplia a forma estrutural do Antigo Testamento que assim interpretado revive e cresce

c) Existe uma teologia neotestamentaacuteria do Novo Testamento paralela agrave teologia veterotestamentaacuteria do Antigo Ou seja a teologia que o exegeta como tal pode deduzir do conteuacutedo interno do Novo Testamento eacute tambeacutem esta conhecida e estruturada mediante a aplicaccedilatildeo do Antigo Testamento agraves novas situaccedilotildees

d) Existe uma teologia eclesial do Novo Testamento que noacutes [34] chamamos Dogmaacutetica Ela se relaciona com a teologia neotestamentaacuteria do Novo Testamento do mesmo modo que a teologia neotestamentaacuteria do Antigo se relaciona com a respectiva teologia veterotestamentaacuteria Aquele ldquomaisrdquo (das Mehr) que distingue propriamente a Dogmaacutetica da teologia biacuteblica eacute o que designamos com a palavra Tradiccedilatildeo Aliaacutes tambeacutem aqui devemos salientar que a teologia eclesiaacutestica neotestamentaacuteria pela mesma razatildeo natildeo eacute simplesmente idecircntica agrave teologia neotestamentaacuteria interna e

20 Cf H GROSS Motivtransposition als Form- und Traditionsprinzip im Alten Testament in H VORGRIMLER Exegese und Dogmatik Moguacutencia 1962 p134-152 e a bibliografia aiacute fornecida G v RAD Theologie des Alten Testaments II Munique 1960 p332-339 396-401 21 A diferenccedila entre as duas teologias do Antigo Testamento foi vivamente exposta por R BULTMANN ldquoWeissagung und Erfuumlllungrdquo in Glauben und Verstehen II Tubinga 1952 p162-186 - Sobre as necessaacuterias correccedilotildees a se fazerem para que se torne visiacutevel a base histoacuterica do que a teologia sistemaacutetica denomina ldquoanalogia fideirdquo cf G v RAD op cit p329-424 (entre outras) e principalmente a p 420 nota 25 e a p422 nota 29 Sobre o tema ldquoanalogia fideirdquo em ambos os Testamentos cf tambeacutem E PRZYWARA Alter und Neuer Bund Viena-Munique 1956

histoacuterica do Novo Testamento Ultrapassa-a sem contudo ser-lhe puramente externa Com efeito no Novo Testamento comeccedila jaacute o processo da exposiccedilatildeo pela Igreja das verdades reveladas A teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento processa-se dentro dele proacuteprio como de modo clariacutessimo se percebe na histoacuteria da Revelaccedilatildeo sinoacutetica22

Eacute oportuno fazermos ainda uma pequena observaccedilatildeo se cotejarmos atentamente a teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento com a Dogmaacutetica reconheceremos que se impotildee uma outra distinccedilatildeo A Dogmaacutetica como ciecircncia aleacutem da exposiccedilatildeo eclesiaacutestica do Novo Testamento abrange tambeacutem a teologia particular de cada teoacutelogo Neste caso para se falar com precisatildeo dever-se-ia apresentar somente o proacuteprio dogma como teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento

O que acabamos de referir natildeo passa naturalmente de um esboccedilo que necessitaria em seus pormenores de natildeo poucos esclarecimentos e distinccedilotildees a fim de ser completo No caso presente entretanto damos por suficiente este esboccedilo Resumindo o que ateacute aqui expusemos podemos agora destacar vaacuterias ldquoraiacutezesrdquo da Tradiccedilatildeo e apontar vaacuterias camadas em seu seio [35] lordf raiz a maior amplidatildeo da ldquoTradiccedilatildeordquo em referecircncia agrave ldquoEscriturardquo

2ordf raiz o caraacuteter especiacutefico da Revelaccedilatildeo neotestamentaacuteria como Pneuma em contraste com o Gramma Eacute o que na linguagem de Bultmann se poderia chamar de sua condiccedilatildeo de ldquonatildeo-objetordquo (Nichtobjektiviertbarkeit) A praxe eclesiaacutestica e a teologia medieval expressaram este aspecto ao sobreporem a fides agrave Scriptura isto eacute o dogma como regra de feacute agraves minuacutecias da lei escrita23 O dogma eacute como a chave hermenecircutica da Escritura que em uacuteltima anaacutelise sem o auxiacutelio da hermenecircutica ficaria sendo algo fechado

3ordf raiz o caraacuteter presencial do Cristo-evento e a presenccedila dinacircmica do Espiacuterito de Cristo em seu Corpo a Igreja E consequumlentemente o poder que tem a Igreja de fazer a pregaccedilatildeo do Cristo ontem e hoje pregaccedilatildeo esta cuja fonte se encontra na interpretaccedilatildeo eclesiaacutestica da mensagem do reino transmitida pelos Apoacutestolos

Em conexatildeo com estas trecircs raiacutezes da ideacuteia (ou melhor da realidade) da Tradiccedilatildeo podem distinguir-se na mesma as seguintes camadas

a) Na origem de toda Tradiccedilatildeo estaacute o fato de que o Pai enviou o Seu Filho ao mundo e que o Filho por sua vez se [36] entregou ndash como sinal ndash aos ldquopovosrdquo (παραδίδοται) Esta paraacutedosis original em sua forccedila direta e salvadora

22 Cf por exemplo a rica exposiccedilatildeo de G BORNKMANN Jesus von Nazareth Estutegarte 1956 Sobre a questatildeo aqui estudada cf H SCHLIER Uumlber Sinn und Aufgabe einer Theologie des Neuen Testaments in H VORGRIMLER Exegese und Dogmatik Mainz 1962 p6990 23 O que haacute de melhor sobre este assunto no tocante agrave Patriacutestica seraacute encontrado em HARNACK DG II (1931) p84-116 HARNACK diz na p 87 nota 3 o seguinte ldquoO Cacircnon era de iniacutecio a regra da feacute A Escritura estaacute centrada na verdade Sem duacutevida nenhuma sua autoridade funda-se solidamente no Antigo Testamento e nas palavras do Senhorrdquo ndash Que assim tenha pensado tambeacutem a Idade Meacutedia e que aqui aleacutem da revelatio (da qual falaremos na 2ordf parte deste livro) a fides sobrepondo-se agrave Scriptura estabelece a forma essencial do conceito de Tradiccedilatildeo foi o que tentei demonstrar em meu artigo Wesen und Weisen der auctoritas im Werk des heiligen Bonaventura in Die Kirche und ihre Aumlmter und Staumlnde (Festgabe Kardinals Frings publicado por CORSTEN-FROTZ-LINDEN Colocircnia 1960 p 58-72

prolonga-se na permanente presenccedila de Cristo no σῶμα Χριστοῦ ndash no Seu Corpo a Igreja Assim o misteacuterio integral da presenccedila de Cristo eacute antes de tudo a realidade total transmitida pela Tradiccedilatildeo (fato fundamental e decisivo sempre anterior a todas as explicaccedilotildees particulares mesmo as da Escritura) e reguladora do que deve propriamente ser transmitido

b) A Tradiccedilatildeo existe concretamente como presenccedila na feacute Esta por seu turno como ldquoin-habitaccedilatildeordquo de Cristo precede todas as explicaccedilotildees particulares e frutuosa e viva ldquoexplicita-serdquo (explizierend) atraveacutes dos tempos

c) A Tradiccedilatildeo tem seu oacutergatildeo na plenitude dos poderes da Igreja e portanto naqueles que satildeo os legiacutetimos depositaacuterios destes poderes24

d) A Tradiccedilatildeo exprime-se tambeacutem naquilo que emanado da autoridade da Igreja se tornou regra de feacute (Symbolum fides quaelig) Portanto a questatildeo de se saber se certas proposiccedilotildees foram transmitidas desde o

comeccedilo pela Tradiccedilatildeo ao lado da Escritura ou em outros termos se existe desde o comeccedilo um segundo princiacutepio material e autocircnomo ao lado da Escritura torna-se afinal um problema inteiramente secundaacuterio Talvez lhe devamos responder negativamente

5 A funccedilatildeo da exegese [37] Pelo que ateacute aqui dissemos ficaram esclarecidas quase que exclusivamente

trecircs pontos os limites da letra da Escritura a liberdade do Espiacuterito Santo e a autoridade da Igreja Acontece poreacutem que a exposiccedilatildeo que fizemos abriga ainda um sentido diverso relacionado com a justa preocupaccedilatildeo de Lutero da qual partimos

Se ficou estabelecido que a Revelaccedilatildeo se faz presente atraveacutes da pregaccedilatildeo e se pregaccedilatildeo eacute exposiccedilatildeo da palavra revelada entatildeo pode e deve agora ao que precede acrescentar-se o seguinte a Tradiccedilatildeo eacute essencialmente e sempre uma exposiccedilatildeo Natildeo existe de maneira autocircnoma e sim como explicaccedilatildeo como exposiccedilatildeo ldquorelacionada com a Escriturardquo

Isto vale para a pregaccedilatildeo do proacuteprio Jesus Cristo realizaccedilatildeo plena da Revelaccedilatildeo e sua exposiccedilatildeo feita com autoridade A pregaccedilatildeo de Jesus Cristo natildeo aparece como algo absolutamente novo na Escritura Isto eacute como algo ainda natildeo atestado no Antigo Testamento Ela ensina isto sim a essecircncia do que jaacute estava escrito e lhe confere uma vida nova que o simples exegeta natildeo pode comunicar-lhe

O que vale para a mensagem de Cristo que permanece a mesma sob diferentes modalidades de exposiccedilatildeo vale tambeacutem para a pregaccedilatildeo apostoacutelica e a eclesiaacutestica Como ldquoTradiccedilatildeordquo ela deve em uacuteltima anaacutelise ser uma exposiccedilatildeo ldquosegundo a Escriturardquo a ela sujeita e com ela relacionada Sem duacutevida natildeo eacute ela uma exposiccedilatildeo no 24 Estas ideacuteias natildeo podem ser desenvolvidas mais detalhadamente aqui como seria de desejar uma vez que em rigor estamos procurando apenas fundamentar o conceito de Tradiccedilatildeo Em razatildeo da brevidade que me impus contentei-me apenas nas teses precedentes com explanar o assunto ateacute ao ponto em que ficasse patente a relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a ldquoIgrejardquo (cf as teses 4 e 5) Para se descer a maiores detalhes dever-se-ia analisar tambeacutem o conceito de Igreja que supomos conhecido do leitor Para isto cf a nota 6 onde citamos nosso livro sobre o Ofiacutecio e a unidade da Igreja Encontram-se aiacute algumas observaccedilotildees sobre o assunto de que ora tratamos

sentido de mera interpretaccedilatildeo exegeacutetica Mas sim na autoridade espiritual recebida do Senhor a qual se consuma na existecircncia plena da Igreja em sua feacute em sua vida e em seu culto Contudo ela permanece sendo (mais ainda do que o Cristo-evento em que se funda a Igreja) uma ldquoex-posiccedilatildeordquo (Aus-Legung) comprometida com a Histoacuteria e com a Palavra [38] Exprime-se deste modo a sua ligaccedilatildeo com a accedilatildeo concreta de Deus nesta mesma Histoacuteria e em seu caraacuteter de fato histoacuterico uacutenico (o ἑφάπαξ ldquoo ocorrido uma soacute vezrdquo) A realidade cristatilde da Revelaccedilatildeo eacute tatildeo essencial quanto ldquoeternardquo e definitiva Resulta daiacute a unidade entre o Cristo da Feacute e o Jesus da Histoacuteria o Jesus histoacuterico natildeo eacute senatildeo o Cristo da Feacute ainda que a feacute seja sempre algo mais do que a histoacuteria

Segue-se que do mesmo modo que existe um ofiacutecio de custoacutedia da Revelaccedilatildeo por parte da Igreja ofiacutecio por ela mesma atestado existe tambeacutem um ofiacutecio de custoacutedia da mesma Revelaccedilatildeo por parte da exegese que penetra o sentido literal da Escritura e defende a uniatildeo do Logos com a carne contra qualquer perigo de gnose Existe portanto por assim dizer algo como uma autonomia especiacutefica da Escritura como regra objetiva e sob muitos pontos de vista esclarecedora do Magisteacuterio eclesiaacutestico Esta era sem duacutevida uma exigecircncia legiacutetima de Lutero que ainda natildeo foi devidamente acolhida na Igreja catoacutelica por parte do Magisteacuterio cujos limites internos nem sempre foram claramente entendidos

Dever-se-ia partindo daqui salientar uma dupla criteriologia em se tratando da feacute De um lado haacute o que a Igreja antiga chamou de ldquoregra da feacuterdquo norma reguladora da palavra revelada contida na Escritura e sua exposiccedilatildeo Esta praeligscriptio da posse da Escritura como proacutepria segundo Tertuliano exclui a possibilidade de qualquer uso legiacutetimo da mesma Escritura contra a Igreja Por outro lado haacute tambeacutem o limite da littera Scripturaelig ou do sentido literal historicamente fixaacutevel que de acordo com o que ficou dito natildeo constitui nenhum criteacuterio absoluto ou autocircnomo mas sim somente um criteacuterio relativo no confronto da feacute com a ciecircncia O que na Escritura se pode descobrir quer mediante estudo cientiacutefico quer por simples leitura tem a funccedilatildeo de um criteacuterio real a que deve estar atento inclusive o Magisteacuterio em suas explicaccedilotildees Certamente [39] trata-se entatildeo de elementos sub-componentes da ciecircncia que natildeo podem servir para se julgar a feacute mas nela encontram uma instacircncia criacutetica e tecircm tambeacutem um importante papel a exercer o de zelar pela pureza do ἑφάπαξ de tutelar o conteuacutedo da Revelaccedilatildeo e de defender o dualismo histoacuterico carneespiacuterito (ldquodie Sarx der Geschichterdquo) contra os arbiacutetrios da gnose que tende sempre a impor-se

A reformatio na qual estaacute empenhada a Igreja nesta hora histoacuterica tem um papel relevante a desempenhar Eacute a missatildeo de abrir novas perspectivas para o diaacutelogo tentando assim chegar a uma ldquoreformardquo diferente da do passado que culminou com a divisatildeo no seio da Cristandade ocidental Tal missatildeo se exerceraacute em harmonia com o pleno ofiacutecio de testemunho da Igreja que tira seu direito e sua forccedila da presenccedila do Espiacuterito e de Cristo presente em todos os tempos Pois ele eacute sempre o Cristo de agora com a plenitude de seus direitos e de seus poderes Ele eacute quem daacute legitimidade e vigor ao testemunho singular e definitivo da Escritura que por sua vez encontra seu pleno sentido na singularidade da accedilatildeo histoacuterico-salviacutefica de Jesus Cristo Ele deu ao Pai seu Corpo crucificado e dando-se a si mesmo santificou para sempre os que o receberam (cf Hb 1014 727) Ele eacute o Cristo ontem hoje e sempre (Hb 138)

SEGUNDA PARTE

Explicaccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo segundo o Decreto do Conciacutelio de Trento

Parece que a completa elucidaccedilatildeo das razotildees que levaram agrave substituiccedilatildeo do

partim-partim pelo et e consequumlentemente agrave pesquisa dos dados do debate tridentino e de sua preacute-histoacuteria aparentemente favoraacutevel agrave suficiecircncia material da Escritura [40] simplifica indevidamente este problema fazendo-nos perder de vista os proacuteprios antecedentes do Decreto do Conciacutelio de Trento

1 A concepccedilatildeo pneumatoloacutegica da Tradiccedilatildeo no esquema fundamental do Cardeal Cervini

a) O conteuacutedo Um balanccedilo histoacuterico e detalhado do problema em seu conjunto exigiria uma

pesquisa exaustiva que natildeo reduzisse o seu acircmbito como o fez Geiselmann em seu livro25 Natildeo eacute nossa intenccedilatildeo proceder a um exame minucioso do assunto no presente trabalho Aqui soacute seratildeo tratados alguns pontos do debate tridentino com o fim de ampliarmos mais o horizonte de nossas reflexotildees

Fundamental para a compreensatildeo dos debates em pauta bem como do Decreto definitivo do Conciacutelio parece-me ser o Discurso do Cardeal Legado Cervini datado de 18 de fevereiro de 1546 [41] cujas linhas gerais se patenteiam tanto no Decreto como em outras decisotildees conciliares26

Tem o discurso de Cervini o meacuterito de mostrar as linhas diretrizes do Decreto de maneira mais clara do que aparecem estas na uacuteltima redaccedilatildeo do mesmo onde elas se diluem muito devido a uma seacuterie de variadas implicaccedilotildees Eacute ainda de grande auxiacutelio para o entendimento do referido discurso uma carta dos Cardeais Legados ao Cardeal Alexandre Farnese de 28 de fevereiro de 1546 Esta carta revela conteuacutedo idecircntico ndash eacute certamente inspirada pelo mesmo Cervini ndash e oferece ainda alguns outros

25 Eacute lamentaacutevel que Geiselmann em sua anaacutelise da contribuiccedilatildeo medieval sobre este assunto se tenha apoiado apenas em argumentos de segunda matildeo portanto de valor histoacuterico discutiacutevel Queira o leitor ver minhas observaccedilotildees a este respeito in Theol-prakt Quartalschrift 1963 p224-227 As novas (e temperamentais) invectivas de Geiselmann in TThQu 144 (1964) p 31-69 em nada modificaram a minha posiccedilatildeo de vez que natildeo trazem nenhuma contribuiccedilatildeo vaacutelida ao assunto Precioso ao contraacuterio eacute o trabalho de Y CONGAR La Tradition et les traditionshellip Essai historique Paris 1960 Importante eacute tambeacutem a obra de J BEUMER Die muumlndliche uumlberlieferung als Glaubensquelle Friburgo 1962 A respeito do Conciacutelio de Trento cf sobretudo aleacutem do estudo fundamental de JEDIN o artigo de E ORTIGUES Escriture et Traditions apostoliques au Concilie de Trente in RSR 36 (1949) p 271-299 K D SCHMIDT Studien zur Geschichate des Konzilis von Trient Tubinga 1925 p 152-209 26 O discurso nos foi transmitido em duas redaccedilotildees A primeira mais curta encontra-se nas Atas do Conciacutelio in CT V 11 A segunda faz parte do diaacuterio de Massarelli (Diarium III) in CT I p484 Quanto ao conteuacutedo os dois textos se completam Na anaacutelise que aqui ensaiamos as duas versotildees satildeo comparadas entre si de modo a fazerem um todo Sobre a posiccedilatildeo de Cervini no Conciacutelio cf H JEDIN Geschichte des Konzils von Trient II Friburgo 1957 p38-40 A descriccedilatildeo do desenrolar histoacuterico dos debates acha-se em JEDIN op cit p42-82 e supomo-la conhecida do leitor de vez que serve de base para a anaacutelise teoloacutegica do Decreto tridentino

esclarecimentos Cervini sustenta no citado discurso que existem trecircs princiacutepios e fundamentos de nossa feacute

1) Os livros sagrados escritos sob a inspiraccedilatildeo do Espiacuterito Santo 2) O Evangelho que Nosso Senhor natildeo escreveu mas ensinou oralmente e

implantou nos coraccedilotildees Parte do Evangelho foi escrita mais tarde pelos Evangelistas enquanto muita coisa foi simplesmente confiada aos coraccedilotildees dos fieacuteis

3) Porque o Filho de Deus natildeo ia permanecer sempre entre noacutes enviou ele o Espiacuterito Santo que haveria de revelar os misteacuterios no iacutentimo dos fieacuteis e de ensinar agrave Igreja toda a verdade ateacute ao fim dos tempos27

[43] Numa segunda redaccedilatildeo mais detalhada do discurso estas mesmas ideacuteias satildeo

desenvolvidas mais amplamente Aiacute lemos que a Revelaccedilatildeo se apresentou de modo diferente em diversos tempos

1) Nos Patriarcas cuja feacute eacute atestada na Escritura a que chamamos de Antigo Testamento

2) Em Jesus Cristo que implantou o seu Evangelho natildeo por escrito mas oralmente natildeo in charta mas in corde Das coisas que emanaram de Cristo (quaelig a Cristo emanarunt) algumas foram escritas outras permaneceram nos coraccedilotildees dos homens (quaeligdam in cordibus hominum relicta fuerunt) Todo o Evangelho de Cristo que consta desta dupla modalidade forma (tendo como primeiro princiacutepio o Antigo Testamento) o secundum prindipium fidei nostraelig

3) Daiacute surge o terceiro princiacutepio (tertium autem) porque o Filho de Deus natildeo iria permanecer sempre entre noacutes enviou ele ao mundo o Espiacuterito Santo que haveria de explicar os misteacuterios de Deus e tudo o que fosse ainda obscuro para os homens28 De modo semelhante a citada carta ao Cardeal Farnese fala de dois passos (due

passi) Um eacute que a Revelaccedilatildeo de Nosso Senhor natildeo foi totalmente escrita mas permaneceu em parte contida nos coraccedilotildees dos homens e na Tradiccedilatildeo da Igreja O outro [43] passo consiste em confirmar ldquoquello che egrave suggerito lo Spirito Santo in la Chiesa maxime medianti i concilij doppo lAscensione in cielo del Signorerdquo29

Notamos logo que contrariamente ao que esperaacutevamos natildeo dois mas trecircs satildeo os princiacutepios apontados a Escritura o Evangelho e a Revelaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

27 CT V 11 helliptria esse principia et fundamenta nostrae fidei primum libros sacros secundum esse evangelium quod Christus Dominus Noster non scripsit sed ore docuit et in cordibus illud plantavit cujus evangelii nonnulla evangelistaelig scripto mandarunt multa quoque relicta sunt in cordibus hominum Tertium quia non semper filius Dei corporaliter nobiscum mansurus erat misit Spiritum Sanctum qui in cordibus fidelium secreta Dei revelaret et ecclesiam quotidie et usque consummationem saeligculi doceret omnem veritatem et si quid in mentibus hominum dubii occurrisset declararet 28 CT I 484 Digna de nota eacute ainda a foacutermula contida na paacutegina 48514-16 nihil tamen inter scripturas sacras et apostolicas traditianes differt illaelig enim scriptaelig hae per insinuationem habentur utraeque tamen a Spiritu Sancto eodem modo emanataelig Confira-se com CT V 11 19 ab eodem Spiritu et illos (scilicet libros) et istas (scilicet traditiones) descendisse 29 CT X 373

Eacute portanto necessaacuterio observar que sob o termo ldquoEscriturardquo se entende o Antigo Testamento e que aleacutem deste (que eacute Escritura em sentido proacuteprio) aparece como segundo princiacutepio o Evangelho apresentaccedilatildeo do Cristo-evento O Evangelho por sua vez abrange o que estaacute escrito e o que natildeo estaacute escrito mas sim apenas insculpido no coraccedilatildeo dos crentes Deste modo o segundo princiacutepio representa uma vantagem pneumaacutetica sobre o que estaacute escrito o Evangelho eacute nesta concepccedilatildeo algo diferente da letra (Escritura) e soacute em parte vem escrito (Isto natildeo deve ser entendido no sentido de divisatildeo das verdades da feacute fenocircmeno denunciado ldquocom horrorrdquo por Geiselmann Ao contraacuterio Entenda-se apenas no sentido de diferente grau de dignidade no modo de exprimir-se) Em rigor o Evangelho como tal soacute pode ser escrito em parte se considerarmos a sua essecircncia

Finalmente ndash o que eacute muito de se admirar ndash segue-se como terceiro princiacutepio a accedilatildeo visiacutevel do Espiacuterito Santo em todo o tempo da Igreja

Admitimos portanto que o que noacutes geralmente chamamos de Tradiccedilatildeo natildeo aparece aqui como um soacute princiacutepio Biparte-se antes em dois princiacutepios intimamente ligados o ldquoEvangelhordquo princiacutepio apenas em parte identificaacutevel com a Escritura e a accedilatildeo do Espiacuterito Santo no tempo da Igreja Ademais podemos observar que a Escritura do Novo Testamento natildeo aparece como um princiacutepio ao lado da Revelaccedilatildeo apostoacutelica Muito menos como [44] eacute o nosso caso se apresenta a Escritura neotestamentaacuteria juntamente com a veterotestamentaacuteria como uma grandeza uacutenica uma ldquoEscriturardquo soacute agrave qual se poderia contrapor a ldquoTradiccedilatildeordquo como uma segunda grandeza O Novo Testamento em seu conjunto aparece como um segundo e mais amplo princiacutepio ou seja o Evangelho que como tal se opotildee de um lado ao Antigo Testamento e de outro agrave projeccedilatildeo histoacuterica do tempo da Igreja Sua unidade interna eacute evidentemente mais forte e importante do que a sua divisatildeo em escrito e natildeo-escrito Assim o Evangelho como um soacute princiacutepio pode ser contraposto ao Antigo Testamento a despeito desta dupla formalidade A impossibilidade de se representar o Novo Testamento como Escritura impossibilidade esta demonstrada por Satildeo Paulo e pelos primeiros seacuteculos cristatildeos eacute aqui claramente revelada

Ainda uma observaccedilatildeo relativa ao texto a que vimos nos referindo Em nenhum dos dois pontos por noacutes citados no estudo da Tradiccedilatildeo isto eacute nem no elemento contido no primeiro nem no apresentado no terceiro princiacutepio figura a Tradiccedilatildeo como verbal Em ambos os casos ao contraacuterio trata-se mais da Tradiccedilatildeo real com prevalecircncia da realidade sobre as palavras que a atestam Este fato que estaacute claro no terceiro princiacutepio o pneumatoloacutegico vale tambeacutem em relaccedilatildeo agrave implantaccedilatildeo do Evangelho nos coraccedilotildees contida no segundo princiacutepio Tal implantaccedilatildeo vai muito aleacutem do que se encontra expresso na letra da Escritura

Que papel tenham estas ideacuteias exercido nas discussotildees do Conciacutelio pode-se concluir tambeacutem das auctoritates citadas por Cervini entre as quais figuram Jo 16 12 (hellipSpiritus Sanctus suggerethellip) e Fl 3 15 (Quicumque perfecti sumus haeligc sentiamus et si quid aliter sentitis haeligc quoque Deus vobis revelabit) Ambos estes textos satildeo de teor acentuadamente [45] pneumatoloacutegico-presencial30 Que tais ideacuteias natildeo eram

30 CT V 14 e 15 Um exame profundo das auctoritates quer da Escritura quer entre os Santos Padres que neste particular satildeo favoraacuteveis agrave Tradiccedilatildeo seria em si conclusivo para a elaboraccedilatildeo do conceito

estranhas aos Padres conciliares deduz-se ainda de uma seacuterie de outras referecircncias Assim ouvimos o Bispo de Aqui dizer que aleacutem da Sagrada Escritura existe muita coisa na Igreja de Deus que vindo dos Apoacutestolos e passando de geraccedilatildeo a geraccedilatildeo chegou ateacute noacutes assim como muitas outras quaelig etsi scripta Apostoli nobis non reliquerunt per Spiritus Sancti revelationem nobis (tradita) sunt (Tradita estaacute aqui por revelata) 31 Partindo daiacute se poderia descrever a Tradiccedilatildeo justamente como o componente pneumatoloacutegico do Cristo-evento b) A influecircncia do esquema de Cervini em diversas decisotildees conciliares

Eacute verdade que esta concepccedilatildeo tripartida aparece muito atenuada no Decreto

oficial sobre a Tradiccedilatildeo Que poreacutem em suas linhas fundamentais natildeo tenha ela sido de modo nenhum [46] abandonada mostram-no duas outras passagens nas quais o Conciacutelio faz uso por assim dizer in actu das ideacuteias aqui expressas32 Assim na Introduccedilatildeo ao Decreto sobre a Eucaristia (Denz 873) se lecirc Sacrosancta Synodus sanamhellipdoctrinam tradens quam semper catholica Ecclesia ab ipso Jesu Christo Domino Nostro et eius apostolis erudita atque a Spiritu Sancto illi omnem veritatem in dies suggerente (Jo 1416) edocta retinuithellip

Aqui a accedilatildeo proacutepria do Conciacutelio eacute descrita como tradere e a este tradere eacute atribuiacutedo um duplo fundamento De um lado o ensino de Jesus e dos Apoacutestolos (Note-se que este ponto corresponde ao Evangelho segundo a concepccedilatildeo de Cervini E de certo modo tambeacutem pela citaccedilatildeo de Jesus e dos Apoacutestolos se reconhece a dupla modalidade do Evangelho como escrito e como inserido nos coraccedilotildees) De outro lado o ensino dado pelo Espiacuterito Santo que conduz agrave verdade in dies isto eacute no de correr do tempo futuro

O outro texto que pode ser aduzido aqui como prova do que afirmamos encontra-se no Preacircmbulo do Decreto sobre o Purgatoacuterio (Denz 983) Aiacute se lecirc hellipCatholica Ecclesia Spiritu Sancto edocta ex Sacris Litteris et antiqua Patrum traditione in sacris Conciliis et novissime in hac Synodo docuerit A descriccedilatildeo da accedilatildeo proacutepria do

aqui exposto H HOLSTEIN procurou fazer o cotejo destas auctoritates e fecirc-lo de modo admiraacutevel em seu artigo La Tradition dapregraves le Concile de Trente (RSR 47 1959 p367-390 e em particular para o caso em questatildeo a p375) Ele encontra nos textos estudados duas linhas de tendecircncias A linha de Santo Irineu para a qual o testemunho dos Apoacutestolos eacute o de sua personalidade de sua vida e de seu ofiacutecio Aleacutem desta o grupo composto de Tertuliano Cipriano Basiacutelio e Agostinho forma uma corrente que se poderia denominar ldquocerimonialrdquo Oriacutegenes se enquadra em ambos os grupos Existe entre os autores estudados uma seacuterie de textos que se referem agraves observationes consuetudines institutiones e que levam a entender-se a Tradiccedilatildeo neste mesmo sentido Aiacute se vecircem tambeacutem textos que sublinham o aspecto natildeo-escrito do Evangelho enquanto insculpido no coraccedilatildeo dos fieacuteis e aleacutem disso textos que apontam a Igreja como o ldquolugarrdquo da verdade cristatilde 31 CT I 483 (18 de fevereiro de 1546) Em 26 de fevereiro (CT V 18) encontramos Cervini a tratar de novo deste assunto Cf tambeacutem um pronunciamento do Bispo de Fano (CT V 10) nestes termos Cum jam receperimus Scripturas Sacras necessario recipiendaelig sunt traditiones quaelig ab eodem Spiritu Sancto quo scripturaelig dictataelig sunthellip 32 Disto me adverti pela primeira vez atraveacutes de um estudo realizado sob a minha orientaccedilatildeo por CHR LIMBACR a quem sou devedor de muitas informaccedilotildees bibliograacuteficas

Conciacutelio como tradere encontra-se ainda nas declaraccedilotildees sobre o Sacramento da Extrema-Unccedilatildeo (Denz 910)

Finalmente a triacuteplice divisatildeo deixa-se insinuar nas entrelinhas do Decreto sobre a Tradiccedilatildeo embora obscurecida e diluiacuteda por uma seacuterie de acreacutescimos e citaccedilotildees a ele adicionados por outros motivos O Decreto da Tradiccedilatildeo com efeito [47]

1) Fala do Evangelho prometido pelos Profetas na Escritura e refere-se a esta em sentido estrito quer antes quer depois do Antigo Testamento

2) Fala da promulgaccedilatildeo por Cristo do Evangelho que foi transmitido pelos Apoacutestolos sob dupla forma oral e escrita Desta maneira o que natildeo ocorre no exemplo de Cervini aparece aqui antes de tudo o componente pneumatoloacutegico unido com o componente apostoacutelico a ponto de se distinguirem duas modalidades de Tradiccedilatildeo apostoacutelica a que remonta a Cristo e a que remonta ao envio do Espiacuterito Santo Pode-se assim estabelecer que em oposiccedilatildeo ao esquema de Cervini haacute um certo processo de historicizaccedilatildeo que salienta a relaccedilatildeo com o comeccedilo histoacuterico e igualmente parece deslocar o acento da tradiccedilatildeo real para a verbal

3) No epiacutelogo desta parte do Decreto da Tradiccedilatildeo que vimos analisando de novo eacute considerada a ideacuteia da Sagrada Escritura O conceito de Tradiccedilatildeo eacute entatildeo formulado em definitivo e descrito como vel oretenus a Christo vel a Spiritu Sancto dictatas et continua successione in Ecclesia catholica conservatas A referecircncia aos Apoacutestolos eacute omitida Pode-se na verdade considerar tudo isto como uma volta ao que foi dito antes Evidentemente a tradiccedilatildeo ditada pelos Apoacutestolos eacute citada de novo (A expressatildeo continua successione insinua-o) Contudo permanece sempre ainda certa indeterminaccedilatildeo ficando aberta a possibilidade de se encontrar aqui o vestiacutegio do terceiro componente de Cervini o princiacutepio pneumaacutetico propriamente dito Eacute tambeacutem claro que esta ideacuteia eacute discreta sendo adotada uma posiccedilatildeo mais acentuadamente histoacuterica Se agora lanccedilarmos os olhos sobre o que vimos considerando ateacute aqui surgiratildeo

inevitavelmente perguntas qual eacute realmente o sentido proacuteprio da concepccedilatildeo pneumatoloacutegica Como poderia ser perfeitamente entendida a ideacuteia a noacutes estranha de uma revelatio prolongada no tempo em face da unicidade e do caraacuteter [48] histoacuterico da Revelaccedilatildeo que evidentemente era conhecido tanto de Cervini quanto dos Santos Padres e teoacutelogos medievais33

Antes de examinarmos isto devemos esclarecer rapidamente os principais motivos que inspiraram o Decreto tridentino sobre a Escritura e a Tradiccedilatildeo deixando nele um tanto encoberta a concepccedilatildeo pessoal de Cervini Que opiniotildees de teoacutelogos teratildeo intervindo aqui chegando a ser em parte impressas no texto definitivo que resultou do cotejo de muitos pronunciamentos diversos Uma exposiccedilatildeo detalhada deste ponto exorbitaria do acircmbito de nossa anaacutelise Contentemo-nos com umas poucas observaccedilotildees sumaacuterias 33 Sobre este assunto tentei fazer um breve comentaacuterio no meu trabalho ldquoOffenbarung-Schrift-Uberlieferungrdquo in TThZ 67 (1958) p13-27 Cf J BEUMER ldquoDer theoretische Beitrag der Frnhscholastik zum Problem des Dogmenfortschrittsrdquo in ZkTh 72 (1952) p205-226 J de CHELLINCK Pour lrsquohistoire du mot ldquorevelarerdquo in RSR 6 (1916) p149-157

2 Relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a vida da Igreja

em diversas passagens do debate tridentino

Uma primeira seacuterie de motivos entre os quais se compreendem diversos pronunciamentos agraves vezes muito contrastantes em seu aparato exterior patenteia-se na ideacuteia de tradiccedilotildees expressa no Decreto de duas maneiras a) - per manus traditaelig ad nos usque pervenerunt b) - continua successione in Ecclesia catholico conservatas

O que se ocultaraacute sob estas duas foacutermulas que o historiador de hoje tem dificuldades em aceitar justamente por causa do historicismo nelas impliacutecito Podemos dizer que um decisivo papel exerceu aqui o pensamento que sempre aparecia nos debates a saber que as tradiccedilotildees satildeo variaacuteveis que muitas delas foram abolidas pelos Apoacutestolos e que por outro lado se [49] introduziram tradiccedilotildees eclesiaacutesticas que natildeo mais seriam abolidas34 Esta ideacuteia de Tradiccedilatildeo de certo modo se torna clara no tratado escrito sobre o mesmo assunto por Seripando para uso dos Padres Conciliares Seripando fala das Tradiccedilotildees escritas inseridas na Escritura como as claacuteusulas de Tiago o costume de as mulheres se cobrirem com um veacuteu a legislaccedilatildeo sobre o matrimocircnio contida em 1Cor 7 etc E o autor adverte que estas praacuteticas foram abolidas Isto porque embora associadas agrave palavra de Deus na Escritura dela ldquomuito diferemrdquo pois a palavra divina [50] de modo nenhum poderia ser abolida A estas tradiccedilotildees

34 Cabe aqui aduzir uma nova intervenccedilatildeo de Cervini datada de 26 de fevereiro de 1546 (CT I 33 e V 18) onde ele diz que nem todas as tradiccedilotildees procedentes dos Apoacutestolos devem ser conservadas mas somente as que ab Ecclesia receptaelig ad nos usque pervenerunt (V 18) Esta afirmaccedilatildeo anterior agrave formulaccedilatildeo dogmaacutetica feita pelo Concilio deve igualmente ser tida na conta de um autecircntico comentaacuterio do Decreto Aiacute se acentua como condiccedilatildeo essencial das tradiccedilotildees a receptio ecclesiaelig Vem ainda referida uma intervenccedilatildeo do Bispo de Bertinoro em data de 23 de marccedilo (I p 523) na qual ele sublinha que as tradiccedilotildees escritas por vezes foram mudadas Jaacute entre as natildeo-escritas umas foram mudadas e outras natildeo como por exemplo o rito de adicionar aacutegua ao vinho a Crisma a confissatildeo auricular O Bispo de Bertinoro acrescenta que por outro lado alguns pontos existem que permaneceram inteiramente inalterados tais como a crenccedila no descensus ad inferos na virgindade perpeacutetua de Maria a substituiccedilatildeo da observacircncia do saacutebado pela do domingo Temos depois um pronunciamento do Bispo de Bitonto datado de 27 de marccedilo (I 39) Este bispo era de parecer que algumas coisas foram transmitidas pelos Apoacutestolos com a finalidade de serem perpetuamente conservadas (como pertencentes ao depoacutesito da feacute) outras caiacuteram em desuso (como as claacuteusulas de Tiago) e outras enfim foram apenas aconselhadas Assim mesmo na Escritura algumas coisas haacute que foram escritas mas natildeo recebidas em uso por serem mateacuteria de mero conselho Por exemplo ldquose algueacutem te pedir a tuacutenica daacute-lhe tambeacutem o paacutelio se algueacutem te esbofetear numa face oferece-lhe tambeacutem a outrardquo Sem duacutevida excelente ilustraccedilatildeo do sermatildeo da montanha Finalmente consideraccedilotildees idecircnticas podemos encontrar na obra citada de LEJAY Eis outra amostra tirada do discurso de 23 de fevereiro (CT V 13) Nam illaelig (scil traditiones) quaelig ad fidem pertinent eadem sunt recipiendaelig auctoritate qua recipitur evangelium alia autem non ita eum earum plurimaelig immutataelig fuerint ut de bigamis de esu sanguinis et similia De modo semelhante aliaacutes fala tambeacutem Bonuccio (I 525 a 23 de marccedilo de 1546 ecclesia traditiones apostolorum quandoque mutavit verbum autem Dei nunquam mutavit neque mutare potest

Seripando opotildee as natildeo referidas na Biacuteblia e que ora satildeo apostoacutelicas ou oriundas de Conciacutelios universais e aceitas por toda a Igreja ora satildeo particulares e muito variaacuteveis35

Este texto nos leva a uma surpreendente conclusatildeo para Seripando e muitos outros Padres tridentinos36existem tradiccedilotildees na Escritura ldquoTradiccedilatildeordquo natildeo significa o natildeo-escrito Existe quer dentro da Escritura quer fora dela Isto nos conduz a outra pergunta em que consiste para os referidos Padres a essecircncia da tradiccedilatildeo se o que a constitui natildeo eacute o fato de natildeo ser escrita37 Em outros termos como pode a tradiccedilatildeo ser definida positivamente se ela natildeo pode ser suficientemente determinada pela ideacuteia negativa de algo natildeo-escrito

Haacute uma seacuterie de respostas para esta pergunta O proacuteprio Seripando daacute a seguinte definiccedilatildeo Traditiones hoc est Apostolorum seu sanctorum Patrum sanctae et salutares constitutiones38 Mais clara ainda eacute a afirmaccedilatildeo de Cervini citada por Massarelli A objeccedilatildeo do Bispo de Chioggia que aduzia a opiniatildeo de Agostinho de que tudo o que eacute necessaacuterio para a salvaccedilatildeo estava escrito na Biacuteblia respondia Cervini da seguinte maneira Verba illa (isto eacute de Santo Agostinho) formaliter intelligi debent scilicet ad fidem accipiendam ut salvi fiamus Quo vero ad mores et christianam vitam instituendam certo non omnia scripta sunt

[51] E de novo recorre agraves provas tiradas de Jo 1526 e 1426 E indica o princiacutepio pneumatoloacutegico39 O que eacute mais importante eacute que a Tradiccedilatildeo se refere agrave institutio vitaelig agrave presenccedila atuante da Palavra revelada na existecircncia cristatilde Tradiccedilatildeo eacute noutros termos a eficaacutecia da palavra de Deus Sem ela a palavra ficaria esteacuteril 35 Seripando De traditionibus (fevereiro ou marccedilo de 1546) CT XII p517-521 e principalmente a p 521 As expressotildees desta uacuteltima paacutegina chocam-se com a ideacuteia de Cervini sobre a receptio ecclesiaelig 36 Cf o texto citado na nota 11 37 No texto definitivo do Decreto esta ideacuteia natildeo aparece mais Aqui poreacutem com esta primeira designaccedilatildeo expliacutecita da Tradiccedilatildeo vem expressamente acentuado o contraste entre in libris scriptis et sine scripto traditionibus Na segunda redaccedilatildeo o sentido expliacutecito da palavra Tradiccedilatildeo natildeo eacute tatildeo exclusivo Contudo apresenta igual matiz ao se confrontarem as expressotildees omnes libroshellipnec non traditiones ipsas Portanto a ideacuteia positiva da Tradiccedilatildeo que serve de base a esta anaacutelise natildeo deixou de influenciar na redaccedilatildeo do Decreto 38 CT XII 517 39 CT I 494 (26 de fevereiro de 1546) A citada palavra de Santo Agostinho teve o seu papel a desempenhar na discussatildeo em curso Seripando por exemplo a ela se referiu (De traditionibus CT XII 521 47-53) Pensandum denique ne in traditionibus externis vera religio et salutis spes statuatur de quibus Augustinus Omnia quaelig pertinent ad veram religionem quaeligrendam et tenendam divina Scriptura non acuit Conceda-se que nem tudo foi escrito (veja-se Jo 2125) Todavia electa sunt autem quaelig scriberentur quaelig saluti credentium sufficere videbantur Mais do que nos debates do tridentino encontramos aqui um verdadeiro postulado dos Reformadores ldquonatildeo adotar costumes exteriores mas buscar os meios definitivos de salvaccedilatildeo na palavra da Escriturardquo A ldquosuficiecircnciardquo da Escritura de que aqui se fala eacute na verdade algo diverso da suficiecircncia material da mesma Escritura defendida por Geiselmann em sentido muito mais radical Infelizmente ainda natildeo se quis levar na devida consideraccedilatildeo o texto de Santo Agostinho (CT I 494 sugere De doctrina christiana II 9 e De pecc mero et rem II 59) Muito apropriadas nesta ordem de ideacuteias satildeo as observaccedilotildees de H SCHAUF ldquoSchrift und Traditionrdquo in Antonianum 39 (1964) p200-209 feitas no chamado Encontro de Duumlsseldorf Nos textos citados por Schauf com base em Agostinho eacute afirmada a suficiecircncia da Escritura para a salvaccedilatildeo Eacute contudo contestada a sua suficiecircncia para a Igreja em geral De fato esta alternativa parece muito mais vaacutelida e fundamental agrave luz dos postulados dos Reformadores do que a alternativa entre a suficiecircncia ou insuficiecircncia material da Escritura

Na mesma linha de ideacuteias seguem-se duas outras seacuteries de pronunciamentos Vimos na introduccedilatildeo agrave parte anterior que a discussatildeo dogmaacutetica da ideacuteia de

Tradiccedilatildeo foi em parte prejudicada pela questatildeo do meacutetodo a seguir no Conciacutelio dever-se-ia abordar primeiro a reformatio a reforma praacutetica da Igreja como queria o ldquoKaiserrdquo Ou primeiro discutir a questatildeo dogmaacutetica como preferia o Papa40

[52] Este problema do meacutetodo embora resolvido no debate que entatildeo surgiu natildeo afetou diretamente a questatildeo da Tradiccedilatildeo como tal Mas como de fato estas duas questotildees ficaram ligadas entre si daiacute resultou que muitos oradores transformaram a questatildeo do meacutetodo (se se deveria falar dos abusos ou da Tradiccedilatildeo) em parte de sua argumentaccedilatildeo em torno do assunto em pauta41 O problema abusus e o problema Traditio ficaram de tal maneira associados na ocasiatildeo que pareciam formar no fundo um soacute assunto Por isso os oradores ora falavam em sentido positivo ora se pronunciavam em sentido negativo Isto correspondia tambeacutem ao propoacutesito reformista do Conciacutelio as traditiones representavam os abusus aos quais a Igreja se opunha Os Padres estavam cocircnscios de que condenar as traditiones era condenar Os usus ecclesiaelig o modo como a Igreja vivia a sua vida naquela eacutepoca

A outra seacuterie de pronunciamentos que se inclinavam ao mesmo sentido encontramo-la nas proposiccedilotildees que a auctoritas da Igreja apresenta como definitivas indicando uma iacutentima relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a institutio christiana 42

[53] Podemos agora retomar ao nosso ponto de partida e dar resposta agrave pergunta que propriamente significa a foacutermula ad nos usque pervenerunt Objetivamente natildeo se trata aqui de um historicismo que a foacutermula parece expressar Ao contraacuterio Trata-se da fidelidade perseverante da Igreja agrave institutio vitaelig christianaelig da legiacutetima forma de vida cristatilde em concreto no tempo presente da Igreja da institutio christiana que coloca a Escritura em primeiro lugar e que como tal isto eacute como vida decorrente da Escritura eacute fundamentalmente apostoacutelica embora tambeacutem sujeita a mudanccedilas como tudo o que eacute vivo

3 A Tradiccedilatildeo e o dogma eclesiaacutestico

40 Sobre o debate em torno da questatildeo do meacutetodo cf mais uma vez JEDIN op cit p9-82 e outras 41 Assim jaacute no discurso de Cervini antes analisado (CT I 484) no qual ele recorda o dilema do Conciacutelio se nos voltarmos contra as tradiccedilotildees ficaratildeo admirados os Padres Conciliares quasi reformationem fugiamus si ipsam reformationem sumimus iterum objicient traditiones relinquendas non esse Idecircntica era a situaccedilatildeo em que se encontrava o Bispo de Astorga nas duas intervenccedilotildees que fez no dia 23 de fevereiro de 1546 (CT V 13 e 19) segundo Seripando (I 484) helliptraditiones prius pertractandas consulit tantam enim conformitatem abusus qui ex sacris libris descendunt cum iis qui a traditionibus orti sunt habent ut sacris libris et traditionibus absolutis duo illa abusuum genera simul pertractari valeant Segundo Bonuccio (I 484) antes de tudo dever-se-ia tratar das Sagradas Escrituras dos cacircnones apostoacutelicos dos Conciacutelios gerais e das decretais pontifiacutecias Hisque ilusceptis ad abusus ex eisdem dependentes devenire 42 Assim principalmente de acordo com Afonso de Castro (CT I 484) Quoniam ultra traditiones apostolicas ecclesiae auctoritatem habemus quaelig ecclesiaelig auctoritas tonta apud nos est ut aliqui eam maioris roboris quam sacros libros esse sentiant Cf igualmente CT I 491 45 Na mesma linha pode-se ver uma seacuterie de pronunciamentos na citada obra de LEJAY Cf CT XII 524 (Tratado De traditionibus ecclesiaelig fevereiro ou marccedilo de 1546)

Uma segunda seacuterie de motivos eacute expressa no Decreto pela foacutermula traditiones tum ad fidem tum ad mores pertinentes Se como vimos a ideacuteia de Tradiccedilatildeo aparece muito limitada naquilo que os Padres conciliares chamam consuetudines observationes institutiones por outro lado o Procurador do Cardeal de Augsburgo Claudio Lejay SJ se fez o porta-voz de uma expressatildeo que em oposiccedilatildeo agraves traditiones caeligremoniales estabeleceu justamente o sentido da tradiccedilatildeo contida na feacute Seu tratado sobre a Tradiccedilatildeo composto para uso dos Padres conciliares inclui tambeacutem a foacutermula que foi adotada pelo Conciacutelio Aiacute se diz Denique multas veritates tum ad fidem tum ad mores pertinentes Ecclesia novit quas Scriptura aperte et expresse non continet Ele cita como exemplos as palavras persona essentia trinitas no Tratado da Santiacutessima Trindade consubstantialitas na Cristologia do Logos duas naturezas uma soacute Pessoa referentes ao dogma definido pelo Conciacutelio de Calcedocircnia E ainda Cristo Filho uacutenico de Maria duas vontades na uacutenica Pessoa de Cristo uma alma racional aleacutem do espiacuterito divino em Cristo Ana matildee de Maria o costume de fazer sinais da cruz a santificaccedilatildeo do domingo a maneira de rezar com face voltada [54] para o Oriente tudo isto ideacuteias e fatos da tradiccedilatildeo conciliar e da piedade cristatilde43

Cervini que aprovou o discurso de Lejay de 23 de fevereiro de 154644 pocircde dificilmente conciliar esta posiccedilatildeo com a sua expressa na jaacute citada carta ao Cardeal Farnese onde como vimos ele diz que o Espiacuterito Santo falou na Igreja e depois da Ascensatildeo do Senhor fala ainda maxime medianti i concilii45 Ele aiacute viu publicamente sublinhado o fato de que aquele ldquomaisrdquo que a Igreja viva representa em relaccedilatildeo agrave palavra meramente escrita natildeo se referia e natildeo se refere apenas agrave vita instituenda ou como ele prefere agrave caeligremonialia Refere-se tambeacutem agrave essentialia fidei que antes de tudo plenamente se expressam na Tradiccedilatildeo Tambeacutem aqui como se vecirc o interesse dominante natildeo estaacute na apresentaccedilatildeo historicista do assunto a partir do iniacutecio da Igreja mas na ideacuteia de que a influecircncia da Tradiccedilatildeo sobretudo atraveacutes da praxe conciliar eacute de fundamental importacircncia para a feacute para a doutrina crida e natildeo apenas para a piedade viva ou a caeligremonialia

4 O sentido do Decreto tridentino

Se recapitularmos o que ateacute agora dissemos veremos que no conjunto facilmente se podem reconhecer trecircs diferentes concepccedilotildees teoloacutegicas unidas entre si no texto definitivo do Decreto sobre a Tradiccedilatildeo Unidas mas natildeo equiparadas umas agraves outras Pelo contraacuterio apesar de sua grande diferenccedila foram elas apenas [55] mais ou menos justapostas e de novo por forccedila de uma tendecircncia comum relacionadas entre si

1 A concepccedilatildeo de Cervini que designamos como pneumatoloacutegica Com sua doutrina sobre os trecircs principia fidei insiste ele no caraacuteter dinacircmico do Cristo-evento

43 CT XII 523 LEJAY baseia-se evidentemente em listas de tradiccedilotildees confeccionadas naquele tempo (Cf ECK DRIEDO CANO BOTO NOGAROLA) Cf a este respeito Y CONGAR ldquoTraditions apostoliques non eacutecrites et suffisance de lEscrituresrdquo in Istina 6 (1959) p219-306 e principalmente a paacutegina 289 44 CT V 14 45 CT X 373

presente na Igreja Entende assim a Tradiccedilatildeo primariamente como a realidade espiritual da institutio vitaelig christianaelig

2 A concepccedilatildeo que podemos chamar de cerimonial Esta entende a Tradiccedilatildeo essencialmente como a seacuterie de consuetudines existentes ao lado da feacute como os usus ecclesiaelig que os Reformadores falsamente pretendem abolir como abusus Esta concepccedilatildeo chega a condenar a dignidade e Antiguumlidade apostoacutelica das tradiccedilotildees Sua ideacuteia eacute limitada pelo ad nos usque pervenerunt que inclui possibilidade de variar da parte das tradiccedilotildees donde a necessidade de reduccedilotildees Com os termos pervenire e conservare a recepccedilatildeo por parte da Igreja eacute considerada criteacuterio adicional ao lado da Antiguumlidade

3 A concepccedilatildeo que talvez possamos denominar dogmaacutetica Em oposiccedilatildeo agrave fixidez da ideacuteia de Tradiccedilatildeo reduzida agrave consuetudo salienta esta terceira hipoacutetese a extensatildeo do fenocircmeno Tradiccedilatildeo tambeacutem ao acircmbito da fides

Estas trecircs concepccedilotildees deram forma ao texto do Decreto de tal modo que as suas

linhas mestras derivam de Cervini e todo o texto deve ser entendido agrave luz de suas ideacuteias Contudo em duas passagens isto eacute no pervenerunt e no conservatas haacute influecircncia da segunda concepccedilatildeo enquanto no tum ad fidem tum ad mores haacute influecircncia da terceira

Em face destas trecircs concepccedilotildees das quais na realidade existem diversas variantes que tomadas em conjunto satildeo a expressatildeo das ideacuteias dominantes adotadas aparecem as teses de Bonuccio e de Nacchianti tatildeo postas em evidecircncia por Geiselmann como sentenccedilas contraacuterias De fato o parecer de Bonuccio claramente [56] se opotildee agrave segunda concepccedilatildeo (contra a supervalorizaccedilatildeo das consuetudines natildeo per pietatis affectus) ao passo que Nacchianti se levanta antes contra a terceira posiccedilatildeo e salienta a suficiecircncia da feacute recebida por meio da Escritura46

Seria de notar-se ainda que as concepccedilotildees segunda e terceira tecircm algo em comum Ambas opotildeem agrave visatildeo pneumatoloacutegica de Cervini da salvaccedilatildeo sempre presente uma visatildeo mais historicista relacionada com o prolongamento da salvaccedilatildeo operada uma soacute vez ou seja o ἑφάπαξ Na realidade deve-se dizer que embora de um lado tanto a visatildeo presencial de Cervini como tambeacutem a visatildeo historicista do outro grupo se consideradas isoladamente cada qual de per si sejam perigosas se natildeo insustentaacuteveis 46 Aliaacutes de acordo com uma informaccedilatildeo de Cervini parece que o Bispo de Chioggia finalmente renunciou agrave sua tese da suficiecircncia da Escritura na qual se inclinava a recusar as tradiccedilotildees Na carta de Cervini ao Cardeal Farnese de 27 de fevereiro de 1546 lemos hellip Chioggia che (quasi quasi) voleva dire queste traditioni essere superflue perorando che tutto quello che era necessario alla salute era scritto et allegando etiam S Agostino sopra lultimo capitulo di S Giovanni a questo proposito Pure per non poter negare che molte cose appartenenti almeno alli sacramenti non ci fussero venute ex tra ditione et per consequente che non tutte le cose necessarie alia nostra salute erano scritte poiche ebbe fatte molte distintioni concluse che ancor lui accettava queste ldquoche in la chiesa fusse qualque traditione apostolica non scrittardquo (et con queste parole diceva che se ne facesse il decreto) credo che molti sono restati scandalizati di lui (CT X Nr 315 paacutegs 399 411) Cf tambeacutem CT I 494 nota 9 e 495 nota 2 CT V 18 nota 5 e 19 e nota 1 O mesmo protesto que aparece contra Nacchianti manifesta-se tambeacutem na observaccedilatildeo de Massarelli Este chega a chamar aquele de novarum rerum cupidus (1 494 18) e esclarece que reprehensus est a multis (1 494 22) Diante disto eacute de todo destituiacuteda de creacutedito a importacircncia que Geiselmann lhe atribui mesmo se abstrairmos de outras razotildees jaacute conhecidas sobre as quais natildeo precisamos insistir

de outro lado pelo menos tornam possiacutevel uma exata visatildeo do conjunto devido agrave sua muacutetua confluecircncia e limitaccedilatildeo No texto atual estatildeo presentes embora pouco nitidamente ambos os pontos de vista o elemento presencial e o ἑφάπαξ Conveacutem que entendamos assim o texto de modo a considerarmos [57] ambos estes aspectos como essenciais Consequumlentemente reconheceremos que ambos pertencem constitutivamente agrave realidade da vida cristatilde e portanto tambeacutem agravequela parcela do Cristianismo a que damos o nome de Tradiccedilatildeo Estes dois elementos satildeo a presenccedila do Espiacuterito Santo e o seu nexo com o fato singular da salvaccedilatildeo ocorrido uma soacute vez por todas na histoacuteria dos homens

Assim se acharaacute finalmente a resposta agrave pergunta de corno noacutes devemos entender o parecer do Conciacutelio de Trento A primeira e mais importante conclusatildeo parece-me ser o fato de o Conciacutelio ter visto muito claramente o nexo entre Tradiccedilatildeo e Revelaccedilatildeo A seguir elaborou sempre em consonacircncia com a tradiccedilatildeo patriacutestica e medieval um conceito de Revelaccedilatildeo muito menos material do que o que seraacute adotado mais tarde pela teologia dos tempos modernos Somente assim se deve conceber a ideacuteia da Revelaccedilatildeo do Espiacuterito Santo na Igreja Partindo do ramo nitidamente patriacutestico da teologia medieval tatildeo francamente acolhido no discurso de Cervini deveria ser muito menos categoacuterica a opiniatildeo que coloca o teacutermino da Revelaccedilatildeo na morte do uacuteltimo Apoacutestolo Naturalmente esta questatildeo natildeo pode ser aqui estudada com maiores detalhes A sua soluccedilatildeo como entatildeo se apresentava aos teoacutelogos poderia ser hoje impostada apelando-se para as categorias da teologia atual Segundo esta podemos dizer que a Revelaccedilatildeo estaacute encerrada do ponto de vista de seu princiacutepio material Todavia estaacute e continua presente em sua realidade eficaz Noutros termos a Revelaccedilatildeo tem eacute verdade o seu ἑφάπαξ enquanto ela se realizou num determinado dia na Histoacuteria Entretanto ela tem tambeacutem o seu ldquohojerdquo permanente isto eacute o que foi uma vez por todas realizado na feacute da Igreja permanece sempre vivo e operante Assim a feacute cristatilde natildeo se volta apenas para o passado Abrange tambeacutem o presente e o futuro Eacute verdade que a posterior materializaccedilatildeo historicista da ideacuteia de Revelaccedilatildeo aparece jaacute claramente insinuada nos debates tridentinos corno um fato previsto mas ainda [58] natildeo consumado embora talvez se possa dizer que nos textos conciliares ficou definitivamente consagrada a sua aceitaccedilatildeo

Finalmente acrescentemos ainda que com base nos debates do Conciacutelio podemos estabelecer quatro elementos da ideacuteia de Tradiccedilatildeo 1 O aspecto natildeo-escrito da Revelaccedilatildeo ou do Evangelho contido na Biacuteblia e no coraccedilatildeo dos fieacuteis 2 A palavra do Espiacuterito Santo no decorrer de todo o tempo da Igreja

3 A atividade da Igreja nos Conciacutelios 4 A Tradiccedilatildeo lituacutergica e a da vida da Igreja em geral Nestes quatro elementos

que se deve ter sob os olhos pois formam o fundo ideoloacutegico do Decreto expressa-se a realidade uacutenica do tempo presente da Igreja cristatilde Nele estaacute presente todo o passado poacutes-apostoacutelico da Igreja (inclusive o proacuteprio tempo dos apoacutestolos) de modo que toda a sua vida eacute na Sagrada Escritura um elemento central embora natildeo o uacutenico Em suma deve ter ficado claro que o Conciacutelio de Trento a despeito do caraacuteter contrastante e fixo de sua ideacuteia de Revelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeo oferece uma visatildeo muito mais rica destes conceitos do que a que impregnou a mentalidade dos seacuteculos seguintes Justamente por

isso a teologia de hoje pode retirar daiacute novos subsiacutedios novo apoio para suas pesquisas e novas indicaccedilotildees sobre o verdadeiro caminho a seguir

Quadro sinoacutetico do Decreto tridentino sobre a Tradiccedilatildeo

Primeiro princiacutepio conforme Cervini (AT = Escritura)

Sacrosancta œcumenica et generalis Tridentina Synodus in Spiritu Sancto legitime congregata [] hoc sibi perpetuo ante oculos proponens ut sublatis erroribus puritas ipsa EVANGELII in Ecclesia conservetur quod PROMISSUM ANTE PER PROPHETAS IN SCRIPTURIS SANCTIS

Segundo princiacutepio conforme Cervini o Evangelho em parte escrito em parte insculpido nos coraccedilotildees

[59] DOMINUS NOSTER IESUS CHRISTUS DEI FILIUS PROPRIO ORE PRIMUM PROMULGAVIT DEINDE PER SUOS APOSTOLOS TAMQUAM FONTEM OMNIS ET SALUTARIS VERITATIS ET MORUM DISCIPLINAE OMNI CREATURAE PRAEDICARI IUSSIT PERSPICIENSQUE HANC VERITATEM ET DISCIPLINAM CONTINERI IN LIBRIS SCRIPTIS ET SINE SCRIPTO TRADITIONIBUS QUAE AB IPSIUS CHRISTI ORE AB APOSTOLIS ACCEPTAE AUT AB IPSIS APOSTOLIS SPIRITU SANCTO DICTANTE

Seripando Cervini e outros soacute consideram as tradiccedilotildees recebidas pela Igrej (ldquoad nos usquerdquo)

quasi per manus traditae ad nos usque pervenerunt

orthodoxorum Patrum exempla secuta omnes libros tam Veteris quam Novi Testamenti cum utriusque unus Deus sit auctor nec non TRADITIONES IPSAS

Lejay Tradiccedilatildeo contendo natildeo soacute a ldquoconsuetudordquo mas relacionada tambeacutem com a ldquofidesrdquo (foacutermula conciliar)

tum ad fidem tum ad mores pertinentes

Terceiro princiacutepio de Cernini Depois da Ascenccedilatildeo de Cristo o Espiacuterito Santo ensina tambeacutem os misteacuterios de Deus

TAMQUAM VEL ORETENUS A CHRISTO VEL A SPIRITU SANCTO DICTATAS

Seripando Cervini etc soacute satildeo consideradas as coisas recebidas pela Igreja (como acima)

et continua successione in Ecclesia catholica conservatas

Cervini Escritura e Tradiccedilatildeo procedem ambas do mesmo Espiacuterito Santo

pari pietatis affectu ac reverentia suscipit ac veneratur

  • Prefaacutecio
  • SEGUNDA PARTE
  • Explicaccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo
  • segundo o Decreto do Conciacutelio de Trento
Page 16: Revelacao e Tradicao-Joseph Ratzinger (Bom Ler)

da mais alta importacircncia Ele sabe que natildeo cumpre este dever pelo simples fato de apelar para a inerracircncia da Igreja Fazecirc-lo seria menosprezar o sentido da luta de Lutero em favor da Palavra deixando-se de ver nisto uma salutar advertecircncia e um apelo dirigido agraves almas

Natildeo obstante tudo isto a histoacuteria da controveacutersia natildeo se deteve no decurso dos quatro seacuteculos que se seguiram agrave Reforma Duas diferentes tendecircncias se destacam nas relaccedilotildees entre o Protestantismo e o Catolicismo e entre suas respectivas teologias De um lado uma radicalizaccedilatildeo de cada grupo nos proacuteprios pontos de vista Cada grupo a partir de entatildeo fez sua histoacuteria proacutepria e desenvolveu-a em direccedilatildeo oposta um ao outro Por outro lado a distacircncia mantida entre ambos possibilita maior objetividade em seus julgamentos reciacuteprocos Existe finalmente de parte a parte um renovado esforccedilo por superar as fronteiras com vistas a um encontro

Quem entre os Catoacutelicos empreendeu o mais significativo passo para chegar a uma visatildeo nova do problema da Tradiccedilatildeo mediante a superaccedilatildeo de posiccedilotildees unilaterais e anti-reformistas foi em nossos dias o teoacutelogo dogmaacutetico de Tubinga Josef Rupert Geiselmann Seus esforccedilos foram frutuosos fazendo-se sentir a sua influecircncia inclusive nos estudos preparatoacuterios do [21] Conciacutelio e deram agraves incursotildees do Vaticano II nesta aacuterea aquela marcante atualidade que ainda na primeira sessatildeo levou este problema a transcender do ciacuterculo da luta doutrinal entre as vaacuterias escolas teoloacutegicas para se transformar em uma preocupaccedilatildeo de toda a Cristandade catoacutelica9

A tese de Geiselmann eacute conhecida Basta-nos esboccedilaacute-la rapidamente aqui a fim de lanccedilarmos as bases de uma reflexatildeo que procuraraacute aprofundar mais este assunto e talvez dar um modesto passo agrave frente Geiselmann parte de uma interpretaccedilatildeo nova do sentido dado pelo Conciacutelio ao conceito de Tradiccedilatildeo O tridentino estabelecera que a verdade do Evangelho estaacute contida in libris scriptis et sine scripto traditionibus Isto foi e eacute ateacute hoje interpretado como se a Escritura natildeo contivesse toda a veritas evangelii Portanto natildeo eacute possiacutevel admitir-se a sola Scriptura uma vez que uma parte da Revelaccedilatildeo nos eacute transmitida somente pela Tradiccedilatildeo Geiselmann aproveitou a observaccedilatildeo jaacute antes feita por alguns autores de que na primeira redaccedilatildeo do texto focircra adotada a foacutermula segundo a qual a verdade estaria contida partim in libris scriptis partim in sine scripto traditionibus Estaria aqui claramente expressa a doutrina da divisatildeo da verdade revelada em duas fontes (Escritura e Tradiccedilatildeo) O Conciacutelio abandonou a expressatildeo partim ndash partim preferindo usar o simples conectivo et Geiselmann daiacute conclui afastou-se o Conciacutelio da ideacuteia da divisatildeo da verdade em duas fontes diversas Ou pelo menos natildeo a definiu explicitamente E continua o mesmo autor com isto pode tambeacutem o teoacutelogo catoacutelico aceitar a ideacuteia de uma suficiecircncia material da Escritura Pode ainda mesmo permanecendo catoacutelico defender a opiniatildeo de que a Sagrada Escritura eacute suficiente para transmitir-nos a [22] Revelaccedilatildeo Geiselmann admite consequumlentemente que a sola Scriptura pode conceber-se como uma uacutenica fonte

9 Cf R LAURENTIN Lenjeu du Concile Bilan de Ia premiegravere session Paris 1963 p27-45 Y CONGAR Vatican II Le Concile au jour le jour Paris 1963 p63-71 J RATZINGER Die erste Sitzungsperiode des Zweiten Vatikanischen Konzils Colocircnia 1963 p38-50

material da Revelaccedilatildeo Ele crecirc ainda poder mostrar que a tradiccedilatildeo mais forte eacute a favor desta sentenccedila e que o proacuteprio Conciacutelio de Trento se inclina neste sentido10

Eacute faacutecil de se compreender que semelhante tese tenha obtido o apoio de muitos em face das novas possibilidades de encontro entre Catoacutelicos e Evangeacutelicos possibilidades estas que a posiccedilatildeo de Geiselmann parece favorecer11 Que esta tese na realidade constitua um passo consideraacutevel neste sentido parece ser incontestaacutevel Todavia tatildeo logo a analisemos mais de perto em seus fundamentos histoacutericos e reais surge de pronto toda uma seacuterie de dificuldades graves a tornarem impossiacutevel a sua aceitaccedilatildeo

Sobre o aspecto histoacuterico deste problema apresentaremos vaacuterias observaccedilotildees na segunda parte deste nosso opuacutesculo Entrementes consideremos de imediato o lado praacutetico deste assunto Seu exame provoca inicialmente esta pergunta que significa propriamente a expressatildeo ldquosuficiecircncia da Escriturardquo Geiselmann como teoacutelogo catoacutelico que eacute natildeo deixa de sustentar os nossos dogmas Ora nenhum dogma catoacutelico eacute provado sola Scriptura Nem os grandes dogmas primitivos sustentados pelo consensus quinquesaeligcularis nem tampouco o de 1854 e [23] menos ainda o de 1950 Em que sentido entatildeo se pode falar em suficiecircncia da Escritura Natildeo ameaccedilaraacute esta converter-se em perigosa fraude pela qual nos enganamos primeiramente a noacutes proacuteprios e em seguida tambeacutem enganamos aos outros (Ou natildeo seratildeo talvez justamente eles que natildeo se enganam) Ou entatildeo pelo menos para sustentarmos de um lado que a Escritura sozinha conteacutem toda a verdade da Revelaccedilatildeo e de outro lado que o dogma de 1950 eacute verdade revelada natildeo deveremos noacutes refugiar-nos em um conceito tatildeo largo de suficiecircncia que na verdade esta palavra venha a perder todo o seu significado

Com isto abre-se a segunda (que de fato eacute a primeira) questatildeo decisiva a saber seraacute verdade que os debates em torno da ideacuteia da suficiecircncia da Escritura resolveram mesmo o problema do conceito de Tradiccedilatildeo Ou ao contraacuterio natildeo estaremos noacutes aqui diante de um problema de raiacutezes muito mais profundas

Nossas observaccedilotildees introdutoacuterias devem ter deixado claro que esta uacuteltima pergunta deve sem duacutevida nenhuma ser respondida afirmativamente A questatildeo da suficiecircncia da Escritura eacute apenas um problema secundaacuterio no acircmbito da distinccedilatildeo muito mais importante que foi jaacute antes apontada por noacutes ao tratarmos dos conceitos abusus e auctoritas e que gira em torno do nexo entre a autoridade da Igreja e a autoridade da Sagrada Escritura Da compreensatildeo disto depende tudo o mais

Para irmos mais adiante torna-se necessaacuterio analisarmos profundamente o assunto natildeo para nos determos no exame dos conceitos tatildeo relevantes de suficiecircncia ou insuficiecircncia da Escritura mas antes para abordarmos em seu tudo o vasto problema da Palavra revelada e presente no coraccedilatildeo dos fieacuteis Torna-se evidente entatildeo que agrave luz das fontes positivas a Escritura e a Tradiccedilatildeo devem ser postas em relaccedilatildeo tatildeo iacutentima que da

10 Ver sobretudo a obra de J R GEISELMANN Die Heilige Schrift und die Tradition Friburgo 1962 principalmente as p91-107274-282 Entre os trabalhos anteriores escritos por Geiselmann sobre o mesmo tema eacute de particular importacircncia o seguinte Das Konzil von Trient uumlber das Verhaumlltnis der Heiligen Schrift und der nichtgeschriebenen Traditionen in M SCHMAUS Die muumlndliche Uumlberlieterung Munique 1957 p 123-206 11 Uma lista de todos os autores que mais concordaram com Geiselmann eacute fornecida por H KUumlNG em sua tese ldquoKarl Barths Lehre vom Wort Gottes als Frage an die katholische Theologierdquo in Einsicht und Glaube publicado por J RATZINGER-H FRIES Friburgo 1963 p 105 nota 25

fonte interna (a Revelaccedilatildeo) brote a pa1avra de Deus viva sob aquela dupla formalidade A Escritura e a Tradiccedilatildeo natildeo podem [24] ser entendidas uma sem a outra no sentido que ambas tecircm agrave luz da feacute O problema ldquoEscritura e Tradiccedilatildeordquo permaneceraacute insoluacutevel enquanto natildeo for reduzido a uma soacute questatildeo a saber a questatildeo ldquoRevelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeordquo e inserida enfim no amplo contexto a que pertence

Eu gostaria de nas paacuteginas seguintes sem entrar em todos os detalhes tentar desenvolver em forma de teses e de maneira positiva o conceito de Tradiccedilatildeo partindo de sua natureza iacutentima com a esperanccedila de que nele descubramos uma parte da resposta aos anseios dos Reformadores Desta maneira toda esta anaacutelise serviraacute de contribuiccedilatildeo para o diaacutelogo interconfessional cuja necessidade tanto os Catoacutelicos como os Protestantes vecircm proclamando de maneira cada vez mais insistente

II - Teses sobre a relaccedilatildeo entre a Revelaccedilatildeo e a Tradiccedilatildeo

1 A Revelaccedilatildeo e a Escritura A primeira tese em aditamento ao conceito patriacutestico de Escritura e Revelaccedilatildeo

poderia enunciar-se nos seguintes termos o fato de existir uma ldquoTradiccedilatildeordquo repousa antes de tudo na diferenccedila que permeia entre estas duas realidades ldquoRevelaccedilatildeordquo e ldquoEscriturardquo A Revelaccedilatildeo exprime propriamente o falar e o agir de Deus em relaccedilatildeo aos homens Designa uma realidade expressa pela Escritura sem ser contudo a proacutepria Escritura A Revelaccedilatildeo por conseguinte ultrapassa a Escritura na mesma medida em que a realidade ultrapassa a sua expressatildeo escrita12 Poder-se-ia [25] tambeacutem dizer que a Escritura eacute o princiacutepio material da Revelaccedilatildeo (Talvez princiacutepio uacutenico talvez um princiacutepio entre outros isto seraacute esclarecido mais adiante) Ela natildeo eacute poreacutem a proacutepria Revelaccedilatildeo Isto era aliaacutes bem sabido dos proacuteprios Reformadores mas comeccedilou visivelmente a ser esquecido no aceso da controveacutersia entre a teologia catoacutelica poacutes-tridentina e a ortodoxia protestante13 Em nosso seacuteculo foram justamente os teoacutelogos evangeacutelicos Barth e Brunner que redescobriram este fato de todo evidente para a teologia patriacutestica e medieval14

O que acabamos de afirmar ficaraacute mais claro se partirmos de outro princiacutepio a Escritura pode ser possuiacuteda sem que se possua a Revelaccedilatildeo Isto porque a Revelaccedilatildeo eacute sempre e em primeiro plano uma realidade a realidade onde se encontra a feacute Aquele

12 Esta afirmaccedilatildeo natildeo tem o sentido de que a Escritura seja uma mera e vazia narrativa de realidades a ela exteriores Antes como o que se segue iraacute demonstrar indica que a Revelaccedilatildeo eacute realizada na Palavra jaacute que eacute por meio de palavras que ela se comunica aos homens Contudo a mera presenccedila da palavra ainda natildeo eacute a Revelaccedilatildeo Esta eacute mais do que simples ldquopresenccedilardquo Com o que ficou dito salienta-se a diferenccedila que existe entre a palavra e seu conteuacutedo Esta diferenccedila natildeo exclui o caraacuteter verbal da Revelaccedilatildeo 13 Cf A GLOEGE Schriftprinzips RGG V 1540-1543 onde se encontraraacute a mais completa bibliografia LthK VII 1104-1115 J R GEISELMAN Offenbarung in H FRIES Handbuch zum Begriff der Offenbarung cf M VERENO - R SCHNACKENBURG - HRIES in Theologischer Grundbergriffe II Munique 1963 p242-250 e a bibliografia aiacute citada 14 Cf W H VAN DER POL Das reformatorische Christentum Einsiedeln 1956 p117-192

que natildeo crecirc acha-se como que coberto por um veacuteu o veacuteu de que fala Satildeo Paulo no terceiro capiacutetulo da segunda epiacutestola aos Coriacutentios15 Ele pode ler a Escritura e saber o que nela se conteacutem Pode ateacute mesmo apreender de modo puramente intelectual o que aiacute eacute significado e como suas ideacuteias se inter-relacionam Todavia natildeo possui com isto a Revelaccedilatildeo A Revelaccedilatildeo eacute sobretudo possuiacuteda quando aleacutem da expressatildeo material que a atesta se potildee tambeacutem em praacutetica o seu conteuacutedo interno por meio da vivecircncia da feacute Com efeito de certo modo se inclui tambeacutem na Revelaccedilatildeo o sujeito recipiente sem o qual ela natildeo pode existir Natildeo se pode pocircr a Revelaccedilatildeo no bolso como se faz com [26] um livro Ela eacute uma realidade viva Exige homens vivos que a recebam que sirvam de ldquolugarrdquo de sua presenccedila

Repetindo o que ateacute aqui dissemos podemos afirmar que a Revelaccedilatildeo sobreexcede de fato a Escritura em dois sentidos

a) em sentido ascendente ela atinge sempre como realidade procedente de Deus o agir divino sobre as criaturas

b) como realidade que se daacute ao homem por meio da feacute ela atinge igualmente a Escritura

Desta diferenccedila entre a Escritura e a Revelaccedilatildeo resulta claramente que de todo independentemente da questatildeo se a Escritura eacute ou natildeo eacute a uacutenica fonte material em rigor nunca existe para o cristatildeo a sola Scriptura (Isto como ficou dito era claro em princiacutepio para os grandes Reformadores e comeccedilou a ser esquecido na chamada ortodoxia protestante) A Escritura natildeo eacute a Revelaccedilatildeo Eacute sim em uacuteltima anaacutelise uma parte desta realidade mais ampla

2 Os diferentes sentidos da Escritura

no Antigo e Novo testamento A problemaacutetica cristatilde da Revelaccedilatildeo ou o problema ldquoEscritura e Tradiccedilatildeordquo situa-se

melhor se considerarmos o duplo aspecto da mesma Revelaccedilatildeo no Antigo e no Novo Testamento A este duplo aspecto corresponde tambeacutem um duplo sentido da Escritura Assim como os dois Testamentos como tais se distinguem essencialmente assim tambeacutem devemos dizer que a ldquoEscriturardquo como um fato natildeo eacute repetida duas vezes do mesmo modo Isto aparece muito claro nos livros neotestamentaacuterios Sob a expressatildeo ldquoEscriturardquo designam eles somente o Antigo Testamento Para eles o AT eacute e permanece sendo ldquoa Escriturardquo cujo sentido se aclara mediante sua confirmaccedilatildeo no evento da [27] vinda de Cristo16 Os livros do NT natildeo jogam uma Escritura nova contra uma Escritura antiga Nem potildeem uma simplesmente ao lado da outra Potildeem sim em face da uacutenica Escritura ou seja do Antigo Testamento o Cristo-evento como o espiacuterito que explica a letra Esta concepccedilatildeo fundamental ilumina tambeacutem a forma da feacute mais antiga e a torna por primeiro compreensiacutevel O ldquoJesusrdquo formal eacute o ldquoCristordquo expresso no Antigo Testamento Natildeo eacute outra coisa No Jesus Histoacuterico o Cristo-mensagem do

15 Cf sobre estas reflexotildees o importante artigo (ἀποκαλύπτω de A OEPKE in ThWNT III p565-597 16 Ver sobre este ponto as preciosas conclusotildees de G SCHRENK art γραφή ndash γράμμα in ThWNT I p749-769 e a p767

Antigo Testamento atinge a sua consumaccedilatildeo Eacute a partir do AT que se entende quem eacute Jesus E o que o Testamento Antigo expressa pode ser visto agrave luz do Cristo-evento

Esta ideacuteia aparece em Paulo ao apresentar ele o Antigo e o Novo Testamentos como Gramma e Pneuma isto eacute letra e espiacuterito (2Cor 3 6-18) Ele chama ao Senhor de Pneuma A Escritura explica-o como sendo o seu sentido o seu conteuacutedo verdadeiro e vivo e natildeo apenas literaacuterio Paulo se refere agrave concepccedilatildeo do Novo Testamento apresentada por Jeremias (3133) Natildeo eacute mais necessaacuteria nenhuma Escritura porque a lei estaacute escrita nos coraccedilotildees Jaacute natildeo eacute necessaacuteria nenhuma doutrinaccedilatildeo vinda de fora porque o proacuteprio Deus instrui os homens Joatildeo exprime idecircntico pensamento em seguimento ao decircutero-Isaiacuteas (5413) quando descreve a era inaugurada por Cristo como o tempo no qual todos satildeo doutrinados por Deus mesmo E o sermatildeo de Pedro em Pentecostes transmitido pelos Atos dos Apoacutestolos (2 14-36) desenvolve a mesma ideacuteia tirada de Joel (3 1-5) Em todos estes casos aparece a era instaurada por Cristo como resposta agrave esperanccedila no advento de um tempo futuro que em uacuteltima anaacutelise haveria de tornar supeacuterflua a Escritura graccedilas agrave presenccedila imediata do Divino Mestre na Sua humanidade

Quando se pondera o sentido destas afirmaccedilotildees torna-se claro [28] que ao reduzir-se a ldquoEscriturardquo aos escritos do Antigo Testamento natildeo se estaacute apenas usando uma terminologia antiga que teria sido adotada por falta de escritos propriamente neotestamentaacuterios e que teria perdido seu sentido na segunda metade do seacuteculo segundo com o iniacutecio do cacircnon do Novo Testamento Ao contraacuterio Aqui se expressa uma consciecircncia que se tornaria mais niacutetida a partir da formaccedilatildeo da proacutepria Escritura neotestamentaacuteria muito ao inveacutes de cessar ou de desaparecer

Uma coisa eacute certa a ldquoEscriturardquo na nova ordem da salvaccedilatildeo inaugurada por Cristo toma um lugar distinto do que lhe cabia no Antigo Testamento Com isto pode-se ver ateacute que ponto o Antigo Testamento tem sentido autocircnomo O AT certamente natildeo aparecia desde o comeccedilo como Testamento do Gramma Escritura em sentido proacuteprio como ocorreraacute na pena de Satildeo Paulo17 Por outro lado manifesta-se realmente a partir de Jeremias e do decircutero-Isaiacuteas o anelo pela superaccedilatildeo do Gramma mediante uma nova e imediata comunicaccedilatildeo do Espiacuterito de Deus simultaneamente com a progressiva formaccedilatildeo de um princiacutepio da Escritura que mais e mais a transformou em Lei Lei esta que natildeo tornaria os homens vivos mas sim mortos

Desta maneira na concepccedilatildeo neotestamentaacuteria aparece o Antigo Testamento como ldquoEscriturardquo em sentido proacuteprio Escritura que atinge o seu verdadeiro significado atraveacutes do Cristo-evento pelo fato de ser ela inserida no contexto vivo da realidade de Cristo Se no Novo Testamento de facto a Escritura cresceu natildeo pode mais ter aquele sentido uacuteltimo e exclusivo que lhe competia no Antigo segundo a concepccedilatildeo paulina Ao contraacuterio Ela eacute a chave com que se abre o Antigo Testamento deixando-se banhar na claridade do Cristo-evento Ela eacute tambeacutem a ponte permanente que conduz a uma nova interpretaccedilatildeo biacuteblica agrave luz [29] de Cristo Num caso e noutro a Escritura natildeo pretende de modo nenhum ser autocircnoma nem ser a fonte uacutenica e exclusiva de sua exegese literal Mas soacute pode ter sentido na realidade espiritual de Jesus Cristo que

17 Ver a apreciaccedilatildeo feita por G VON RAD Theologie des Alten Testaments II Munique 1960 p402-424

permanece junto dos seus todos os dias ateacute ao fim do mundo (Mt 28 20) Apoacutes a subida ao Calvaacuterio Cristo veio de novo no Espiacuterito Santo (como narra Satildeo Joatildeo) e pelo Espiacuterito ensinou aos disciacutepulos o que eles entatildeo natildeo podiam ainda entender enquanto o Senhor estava entre eles sob forma visiacutevel (Jo 16 12)

3 Cristo a Revelaccedilatildeo de Deus

A realidade que se daacute como um acontecimento na Revelaccedilatildeo cristatilde natildeo eacute nada

mais nada menos do que o proacuteprio Cristo Cristo eacute a Revelaccedilatildeo em sentido proacuteprio ldquoQuem me vecirc vecirc o Pairdquo diz ele no Evangelho de Satildeo Joatildeo (14 9) Vale portanto dizer que receber a Revelaccedilatildeo eacute penetrar na realidade de Cristo no Cristo-evento Daiacute procede o paradoxo descrito por Satildeo Paulo ao fazer ele um trocadilho com as palavras ldquoCristo em noacutesrdquo e ldquonoacutes em Cristordquo

Neste contexto a anaacutelise de frases isoladas torna-se secundaacuteria de vez que elas satildeo apenas explicaccedilotildees do uacutenico misteacuterio de Cristo Consequumlentemente cai por si mesma a questatildeo da suficiecircncia interna da Escritura tatildeo discutida desde o aparecimento das obras de Geiselmann Deveriacuteamos isto sim perguntar que significa em linguagem cristatilde a suficiecircncia interna da Escritura ldquoSuficienterdquo eacute soacute a realidade do Cristo-evento Esta pode ser explicada materialmente em maior ou menor grau E de maneira nunca definitiva Partindo deste princiacutepio podem existir tambeacutem outras explicaccedilotildees segundo a Escritura quando se aprofunda mais este assunto

Este mesmo tema pode ser considerado sob outro aspecto E ter-se-aacute entatildeo dado um passo a mais para a frente A aceitaccedilatildeo [30] da Revelaccedilatildeo pela qual aplicamos a noacutes o Cristo-evento vem na linguagem da Biacuteblia sob o nome de ldquofeacuterdquo Assim talvez se entenderaacute mais claramente de que maneira no Novo Testamento a feacute significa a ldquoin-habitaccedilatildeordquo de Cristo Se admitirmos que na Escritura a presenccedila da Revelaccedilatildeo tem o mesmo sentido que a presenccedila de Cristo entatildeo teremos de fato dado um passo adiante Ora na Escritura encontramos a presenccedila de Cristo apresentada de duas maneiras Ela aparece de um lado como jaacute vimos identificada com a feacute (Ef 317) na qual cada um encontra Cristo e se adentra nele penetrando no dinamismo de sua forccedila salvadora Por outro lado a feacute se oculta tambeacutem sob a expressatildeo paulina ldquoCorpo de Cristordquo o que quer dizer que a comunidade dos fieacuteis ndash a Igreja ndash funda a presenccedila de Cristo neste mundo Nela Cristo reuacutene os homens e os faz partiacutecipes de sua presenccedila dinacircmica18

Tomadas juntas estas duas noccedilotildees significam o seguinte a feacute eacute a adesatildeo iacutentima agrave presenccedila de Cristo realidade de Cristo presente da qual a Escritura nos daacute testemunho sem contudo se identificar de modo nenhum com ela Daiacute resulta que a presenccedila da Revelaccedilatildeo se relaciona essencialmente com a ldquofeacuterdquo e com a ldquoIgrejardquo realidades estas que como vimos estatildeo estreitamente ligadas entre si

Voltamos assim ao que foi afirmado na primeira tese a saber que a Revelaccedilatildeo sobreexcede a Escritura em duplo sentido em relaccedilatildeo a Deus por seu lado ascendente e em relaccedilatildeo tambeacutem ao homem que a recebe Esta asserccedilatildeo que a princiacutepio deixamos

18 H SCHLIER ldquoDie Kirche nach dem Brief an die Epheserrdquo in Die Zeit der Kirche Friburgo 1962 p159-186

um tanto vaga encontramo-la essencialmente concretizada na realidade objetiva do Cristianismo

4 A essecircncia da Tradiccedilatildeo

[31] A transmissatildeo ao povo de Deus do Cristo-evento que eacute a Revelaccedilatildeo e que tem sua bi-presenccedila na feacute e na Igreja faz-se atraveacutes da pregaccedilatildeo Pregaccedilatildeo eacute a ldquoex-posiccedilatildeordquo (Aus-legung) do duplo aspecto da Revelaccedilatildeo no Antigo e no Novo Testamento E isto de duas maneiras

a) ela eacute a exposiccedilatildeo do Antigo Testamento agrave luz do Cristo-evento e para o Cristo-evento

b) a partir do Pneuma e da condiccedilatildeo presente da Igreja Este uacuteltimo aspecto eacute possiacutevel pois Cristo natildeo estaacute morto Estaacute vivo Natildeo eacute

apenas o Cristo de ontem Eacute tambeacutem e a fortiori o Cristo de hoje e de amanhatilde o Cristo vivo e presente em sua Igreja que eacute seu Corpo e na qual o seu espiacuterito opera

Isto poderaacute ser melhor compreendido se partirmos da essecircncia da Igreja Como nos ensina o Novo Testamento a mensagem de Jesus eacute antes de tudo uma mensagem escatoloacutegica com vistas ao reino de Deus natildeo com vistas agrave Igreja O fato de existir a Igreja natildeo se opotildee a esta mensagem mas haacute na marcha gradativa das revelaccedilotildees de Cristo uma segunda possibilidade Assim a atividade dos Doze depois de Pentecostes aponta natildeo para a Igreja mas para o reino de Deus Informam-nos os Atos dos Apoacutestolos que os Doze natildeo se ocuparam primordialmente em missionar os povos Esforccedilaram-se antes muito mais em converter Israel criando deste modo as condiccedilotildees preacutevias para a implantaccedilatildeo do reino De iniacutecio uma seacuterie de obstaacuteculos histoacutericos entre os quais deveriacuteamos citar antes de tudo o martiacuterio de Estevatildeo o supliacutecio de Tiago e por fim o fato decisivo da prisatildeo e da libertaccedilatildeo de Pedro Tais fatos levaram a comunidade primitiva segundo dizem as fontes a reconhecer como definitivo o malogro do esforccedilo de converter Israel E consequumlentemente forccedilaram os Apoacutestolos a partir em busca dos gentios e a cuidar [32] assim da Igreja e natildeo do reino Eles o fazem segundo se depreende das passagens referidas e principalmente dos esclarecimentos do capiacutetulo 15 dos Atos dos Apoacutestolos como uma nova opccedilatildeo feita sob a accedilatildeo do Espiacuterito Santo Com isso iniciou-se uma nova interpretaccedilatildeo da mensagem de Cristo sobre a qual a Igreja essencialmente repousa19

19 Cf as decisivas conclusotildees de E PETERSON ldquoDie Kircherdquo in Theologische Traktate Munique 1951 p 409-429 H SCHLIER Die Entscheidung fuumlr die Heidenmission in der Urchristenheit Die Zeit der Kirche p 90-107 Parece-me certo que nem a anaacutelise da tradiccedilatildeo sinoacutetica relativa agrave mensagem de Jesus e seu caraacuteter escatoloacutegico nem o estudo da histoacuteria da Igreja primitiva com base no material fornecido pelos Atos dos Apoacutestolos autorizam qualquer outra conexatildeo entre a mensagem do reino e a pregaccedilatildeo da Igreja Daiacute natildeo se segue de modo nenhum ndash como muitas vezes se teme ndash que a cruz seja um acidente secundaacuterio que em rigor poderia ter sido evitado Ao contraacuterio A estrutura da Igreja moldada sobre a cruz eacute fundamental porque aiacute eacute que por primeiro se encontra a confirmaccedilatildeo da importacircncia da liberdade humana de Cristo e da sua Paixatildeo bem como a iacutentima dependecircncia da Igreja para com a Cruz donde ela procede

Este fato que baseia o estabelecimento definitivo da Igreja sobre uma decisatildeo tomada ldquono Espiacuterito Santordquo eacute o fundamento para se afirmar que existe uma interpretaccedilatildeo eclesial do Novo Testamento do mesmo modo que existe uma exegese cristoloacutegica do Antigo Daiacute podermos estabelecer as seguintes teses ou proposiccedilotildees agrave luz da analogia fidei

a) Existe uma teologia veterotestamentaacuteria do Antigo Testamento que o exegeta

deduz de seu conteuacutedo interno e que se desenvolve em uma seacuterie de camadas superpostas Segundo ela os textos antigos devem ser relidos e de novo expostos agrave luz dos novos acontecimentos O fenocircmeno da aplicaccedilatildeo dos textos agraves situaccedilotildees novas do desdobramento da Revelaccedilatildeo mediante nova [33] apresentaccedilatildeo do Antigo Testamento estrutura jaacute de modo essencial o conteuacutedo interno veterotestamentaacuterio20

b) Existe uma teologia neotestamentaacuteria do Antigo Testamento que natildeo coincide com

a referida teologia veterotestamentaacuteria Estaacute contudo estreitamente ligada com ela na unidade da analogia fidei21 Talvez partindo daqui se possa esclarecer o que significa a analogia fidei entre Os dois Testamentos A teologia neotestamentaacuteria do Antigo Testamento natildeo eacute como ficou dito idecircntica agrave teologia histoacuterica veterotestamentaacuteria Ao contraacuterio Re-exposiccedilatildeo feita agrave luz do Cristo-evento ela natildeo procede soacute da mera consideraccedilatildeo histoacuterica do Antigo Testamento Sendo embora em seu pleno conceito uma interpretaccedilatildeo relacionada com o Antigo Testamento contudo nada faz com que ela seja internamente estranha agrave sua essecircncia ainda que soacute de fora o atinja Ela amplia a forma estrutural do Antigo Testamento que assim interpretado revive e cresce

c) Existe uma teologia neotestamentaacuteria do Novo Testamento paralela agrave teologia veterotestamentaacuteria do Antigo Ou seja a teologia que o exegeta como tal pode deduzir do conteuacutedo interno do Novo Testamento eacute tambeacutem esta conhecida e estruturada mediante a aplicaccedilatildeo do Antigo Testamento agraves novas situaccedilotildees

d) Existe uma teologia eclesial do Novo Testamento que noacutes [34] chamamos Dogmaacutetica Ela se relaciona com a teologia neotestamentaacuteria do Novo Testamento do mesmo modo que a teologia neotestamentaacuteria do Antigo se relaciona com a respectiva teologia veterotestamentaacuteria Aquele ldquomaisrdquo (das Mehr) que distingue propriamente a Dogmaacutetica da teologia biacuteblica eacute o que designamos com a palavra Tradiccedilatildeo Aliaacutes tambeacutem aqui devemos salientar que a teologia eclesiaacutestica neotestamentaacuteria pela mesma razatildeo natildeo eacute simplesmente idecircntica agrave teologia neotestamentaacuteria interna e

20 Cf H GROSS Motivtransposition als Form- und Traditionsprinzip im Alten Testament in H VORGRIMLER Exegese und Dogmatik Moguacutencia 1962 p134-152 e a bibliografia aiacute fornecida G v RAD Theologie des Alten Testaments II Munique 1960 p332-339 396-401 21 A diferenccedila entre as duas teologias do Antigo Testamento foi vivamente exposta por R BULTMANN ldquoWeissagung und Erfuumlllungrdquo in Glauben und Verstehen II Tubinga 1952 p162-186 - Sobre as necessaacuterias correccedilotildees a se fazerem para que se torne visiacutevel a base histoacuterica do que a teologia sistemaacutetica denomina ldquoanalogia fideirdquo cf G v RAD op cit p329-424 (entre outras) e principalmente a p 420 nota 25 e a p422 nota 29 Sobre o tema ldquoanalogia fideirdquo em ambos os Testamentos cf tambeacutem E PRZYWARA Alter und Neuer Bund Viena-Munique 1956

histoacuterica do Novo Testamento Ultrapassa-a sem contudo ser-lhe puramente externa Com efeito no Novo Testamento comeccedila jaacute o processo da exposiccedilatildeo pela Igreja das verdades reveladas A teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento processa-se dentro dele proacuteprio como de modo clariacutessimo se percebe na histoacuteria da Revelaccedilatildeo sinoacutetica22

Eacute oportuno fazermos ainda uma pequena observaccedilatildeo se cotejarmos atentamente a teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento com a Dogmaacutetica reconheceremos que se impotildee uma outra distinccedilatildeo A Dogmaacutetica como ciecircncia aleacutem da exposiccedilatildeo eclesiaacutestica do Novo Testamento abrange tambeacutem a teologia particular de cada teoacutelogo Neste caso para se falar com precisatildeo dever-se-ia apresentar somente o proacuteprio dogma como teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento

O que acabamos de referir natildeo passa naturalmente de um esboccedilo que necessitaria em seus pormenores de natildeo poucos esclarecimentos e distinccedilotildees a fim de ser completo No caso presente entretanto damos por suficiente este esboccedilo Resumindo o que ateacute aqui expusemos podemos agora destacar vaacuterias ldquoraiacutezesrdquo da Tradiccedilatildeo e apontar vaacuterias camadas em seu seio [35] lordf raiz a maior amplidatildeo da ldquoTradiccedilatildeordquo em referecircncia agrave ldquoEscriturardquo

2ordf raiz o caraacuteter especiacutefico da Revelaccedilatildeo neotestamentaacuteria como Pneuma em contraste com o Gramma Eacute o que na linguagem de Bultmann se poderia chamar de sua condiccedilatildeo de ldquonatildeo-objetordquo (Nichtobjektiviertbarkeit) A praxe eclesiaacutestica e a teologia medieval expressaram este aspecto ao sobreporem a fides agrave Scriptura isto eacute o dogma como regra de feacute agraves minuacutecias da lei escrita23 O dogma eacute como a chave hermenecircutica da Escritura que em uacuteltima anaacutelise sem o auxiacutelio da hermenecircutica ficaria sendo algo fechado

3ordf raiz o caraacuteter presencial do Cristo-evento e a presenccedila dinacircmica do Espiacuterito de Cristo em seu Corpo a Igreja E consequumlentemente o poder que tem a Igreja de fazer a pregaccedilatildeo do Cristo ontem e hoje pregaccedilatildeo esta cuja fonte se encontra na interpretaccedilatildeo eclesiaacutestica da mensagem do reino transmitida pelos Apoacutestolos

Em conexatildeo com estas trecircs raiacutezes da ideacuteia (ou melhor da realidade) da Tradiccedilatildeo podem distinguir-se na mesma as seguintes camadas

a) Na origem de toda Tradiccedilatildeo estaacute o fato de que o Pai enviou o Seu Filho ao mundo e que o Filho por sua vez se [36] entregou ndash como sinal ndash aos ldquopovosrdquo (παραδίδοται) Esta paraacutedosis original em sua forccedila direta e salvadora

22 Cf por exemplo a rica exposiccedilatildeo de G BORNKMANN Jesus von Nazareth Estutegarte 1956 Sobre a questatildeo aqui estudada cf H SCHLIER Uumlber Sinn und Aufgabe einer Theologie des Neuen Testaments in H VORGRIMLER Exegese und Dogmatik Mainz 1962 p6990 23 O que haacute de melhor sobre este assunto no tocante agrave Patriacutestica seraacute encontrado em HARNACK DG II (1931) p84-116 HARNACK diz na p 87 nota 3 o seguinte ldquoO Cacircnon era de iniacutecio a regra da feacute A Escritura estaacute centrada na verdade Sem duacutevida nenhuma sua autoridade funda-se solidamente no Antigo Testamento e nas palavras do Senhorrdquo ndash Que assim tenha pensado tambeacutem a Idade Meacutedia e que aqui aleacutem da revelatio (da qual falaremos na 2ordf parte deste livro) a fides sobrepondo-se agrave Scriptura estabelece a forma essencial do conceito de Tradiccedilatildeo foi o que tentei demonstrar em meu artigo Wesen und Weisen der auctoritas im Werk des heiligen Bonaventura in Die Kirche und ihre Aumlmter und Staumlnde (Festgabe Kardinals Frings publicado por CORSTEN-FROTZ-LINDEN Colocircnia 1960 p 58-72

prolonga-se na permanente presenccedila de Cristo no σῶμα Χριστοῦ ndash no Seu Corpo a Igreja Assim o misteacuterio integral da presenccedila de Cristo eacute antes de tudo a realidade total transmitida pela Tradiccedilatildeo (fato fundamental e decisivo sempre anterior a todas as explicaccedilotildees particulares mesmo as da Escritura) e reguladora do que deve propriamente ser transmitido

b) A Tradiccedilatildeo existe concretamente como presenccedila na feacute Esta por seu turno como ldquoin-habitaccedilatildeordquo de Cristo precede todas as explicaccedilotildees particulares e frutuosa e viva ldquoexplicita-serdquo (explizierend) atraveacutes dos tempos

c) A Tradiccedilatildeo tem seu oacutergatildeo na plenitude dos poderes da Igreja e portanto naqueles que satildeo os legiacutetimos depositaacuterios destes poderes24

d) A Tradiccedilatildeo exprime-se tambeacutem naquilo que emanado da autoridade da Igreja se tornou regra de feacute (Symbolum fides quaelig) Portanto a questatildeo de se saber se certas proposiccedilotildees foram transmitidas desde o

comeccedilo pela Tradiccedilatildeo ao lado da Escritura ou em outros termos se existe desde o comeccedilo um segundo princiacutepio material e autocircnomo ao lado da Escritura torna-se afinal um problema inteiramente secundaacuterio Talvez lhe devamos responder negativamente

5 A funccedilatildeo da exegese [37] Pelo que ateacute aqui dissemos ficaram esclarecidas quase que exclusivamente

trecircs pontos os limites da letra da Escritura a liberdade do Espiacuterito Santo e a autoridade da Igreja Acontece poreacutem que a exposiccedilatildeo que fizemos abriga ainda um sentido diverso relacionado com a justa preocupaccedilatildeo de Lutero da qual partimos

Se ficou estabelecido que a Revelaccedilatildeo se faz presente atraveacutes da pregaccedilatildeo e se pregaccedilatildeo eacute exposiccedilatildeo da palavra revelada entatildeo pode e deve agora ao que precede acrescentar-se o seguinte a Tradiccedilatildeo eacute essencialmente e sempre uma exposiccedilatildeo Natildeo existe de maneira autocircnoma e sim como explicaccedilatildeo como exposiccedilatildeo ldquorelacionada com a Escriturardquo

Isto vale para a pregaccedilatildeo do proacuteprio Jesus Cristo realizaccedilatildeo plena da Revelaccedilatildeo e sua exposiccedilatildeo feita com autoridade A pregaccedilatildeo de Jesus Cristo natildeo aparece como algo absolutamente novo na Escritura Isto eacute como algo ainda natildeo atestado no Antigo Testamento Ela ensina isto sim a essecircncia do que jaacute estava escrito e lhe confere uma vida nova que o simples exegeta natildeo pode comunicar-lhe

O que vale para a mensagem de Cristo que permanece a mesma sob diferentes modalidades de exposiccedilatildeo vale tambeacutem para a pregaccedilatildeo apostoacutelica e a eclesiaacutestica Como ldquoTradiccedilatildeordquo ela deve em uacuteltima anaacutelise ser uma exposiccedilatildeo ldquosegundo a Escriturardquo a ela sujeita e com ela relacionada Sem duacutevida natildeo eacute ela uma exposiccedilatildeo no 24 Estas ideacuteias natildeo podem ser desenvolvidas mais detalhadamente aqui como seria de desejar uma vez que em rigor estamos procurando apenas fundamentar o conceito de Tradiccedilatildeo Em razatildeo da brevidade que me impus contentei-me apenas nas teses precedentes com explanar o assunto ateacute ao ponto em que ficasse patente a relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a ldquoIgrejardquo (cf as teses 4 e 5) Para se descer a maiores detalhes dever-se-ia analisar tambeacutem o conceito de Igreja que supomos conhecido do leitor Para isto cf a nota 6 onde citamos nosso livro sobre o Ofiacutecio e a unidade da Igreja Encontram-se aiacute algumas observaccedilotildees sobre o assunto de que ora tratamos

sentido de mera interpretaccedilatildeo exegeacutetica Mas sim na autoridade espiritual recebida do Senhor a qual se consuma na existecircncia plena da Igreja em sua feacute em sua vida e em seu culto Contudo ela permanece sendo (mais ainda do que o Cristo-evento em que se funda a Igreja) uma ldquoex-posiccedilatildeordquo (Aus-Legung) comprometida com a Histoacuteria e com a Palavra [38] Exprime-se deste modo a sua ligaccedilatildeo com a accedilatildeo concreta de Deus nesta mesma Histoacuteria e em seu caraacuteter de fato histoacuterico uacutenico (o ἑφάπαξ ldquoo ocorrido uma soacute vezrdquo) A realidade cristatilde da Revelaccedilatildeo eacute tatildeo essencial quanto ldquoeternardquo e definitiva Resulta daiacute a unidade entre o Cristo da Feacute e o Jesus da Histoacuteria o Jesus histoacuterico natildeo eacute senatildeo o Cristo da Feacute ainda que a feacute seja sempre algo mais do que a histoacuteria

Segue-se que do mesmo modo que existe um ofiacutecio de custoacutedia da Revelaccedilatildeo por parte da Igreja ofiacutecio por ela mesma atestado existe tambeacutem um ofiacutecio de custoacutedia da mesma Revelaccedilatildeo por parte da exegese que penetra o sentido literal da Escritura e defende a uniatildeo do Logos com a carne contra qualquer perigo de gnose Existe portanto por assim dizer algo como uma autonomia especiacutefica da Escritura como regra objetiva e sob muitos pontos de vista esclarecedora do Magisteacuterio eclesiaacutestico Esta era sem duacutevida uma exigecircncia legiacutetima de Lutero que ainda natildeo foi devidamente acolhida na Igreja catoacutelica por parte do Magisteacuterio cujos limites internos nem sempre foram claramente entendidos

Dever-se-ia partindo daqui salientar uma dupla criteriologia em se tratando da feacute De um lado haacute o que a Igreja antiga chamou de ldquoregra da feacuterdquo norma reguladora da palavra revelada contida na Escritura e sua exposiccedilatildeo Esta praeligscriptio da posse da Escritura como proacutepria segundo Tertuliano exclui a possibilidade de qualquer uso legiacutetimo da mesma Escritura contra a Igreja Por outro lado haacute tambeacutem o limite da littera Scripturaelig ou do sentido literal historicamente fixaacutevel que de acordo com o que ficou dito natildeo constitui nenhum criteacuterio absoluto ou autocircnomo mas sim somente um criteacuterio relativo no confronto da feacute com a ciecircncia O que na Escritura se pode descobrir quer mediante estudo cientiacutefico quer por simples leitura tem a funccedilatildeo de um criteacuterio real a que deve estar atento inclusive o Magisteacuterio em suas explicaccedilotildees Certamente [39] trata-se entatildeo de elementos sub-componentes da ciecircncia que natildeo podem servir para se julgar a feacute mas nela encontram uma instacircncia criacutetica e tecircm tambeacutem um importante papel a exercer o de zelar pela pureza do ἑφάπαξ de tutelar o conteuacutedo da Revelaccedilatildeo e de defender o dualismo histoacuterico carneespiacuterito (ldquodie Sarx der Geschichterdquo) contra os arbiacutetrios da gnose que tende sempre a impor-se

A reformatio na qual estaacute empenhada a Igreja nesta hora histoacuterica tem um papel relevante a desempenhar Eacute a missatildeo de abrir novas perspectivas para o diaacutelogo tentando assim chegar a uma ldquoreformardquo diferente da do passado que culminou com a divisatildeo no seio da Cristandade ocidental Tal missatildeo se exerceraacute em harmonia com o pleno ofiacutecio de testemunho da Igreja que tira seu direito e sua forccedila da presenccedila do Espiacuterito e de Cristo presente em todos os tempos Pois ele eacute sempre o Cristo de agora com a plenitude de seus direitos e de seus poderes Ele eacute quem daacute legitimidade e vigor ao testemunho singular e definitivo da Escritura que por sua vez encontra seu pleno sentido na singularidade da accedilatildeo histoacuterico-salviacutefica de Jesus Cristo Ele deu ao Pai seu Corpo crucificado e dando-se a si mesmo santificou para sempre os que o receberam (cf Hb 1014 727) Ele eacute o Cristo ontem hoje e sempre (Hb 138)

SEGUNDA PARTE

Explicaccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo segundo o Decreto do Conciacutelio de Trento

Parece que a completa elucidaccedilatildeo das razotildees que levaram agrave substituiccedilatildeo do

partim-partim pelo et e consequumlentemente agrave pesquisa dos dados do debate tridentino e de sua preacute-histoacuteria aparentemente favoraacutevel agrave suficiecircncia material da Escritura [40] simplifica indevidamente este problema fazendo-nos perder de vista os proacuteprios antecedentes do Decreto do Conciacutelio de Trento

1 A concepccedilatildeo pneumatoloacutegica da Tradiccedilatildeo no esquema fundamental do Cardeal Cervini

a) O conteuacutedo Um balanccedilo histoacuterico e detalhado do problema em seu conjunto exigiria uma

pesquisa exaustiva que natildeo reduzisse o seu acircmbito como o fez Geiselmann em seu livro25 Natildeo eacute nossa intenccedilatildeo proceder a um exame minucioso do assunto no presente trabalho Aqui soacute seratildeo tratados alguns pontos do debate tridentino com o fim de ampliarmos mais o horizonte de nossas reflexotildees

Fundamental para a compreensatildeo dos debates em pauta bem como do Decreto definitivo do Conciacutelio parece-me ser o Discurso do Cardeal Legado Cervini datado de 18 de fevereiro de 1546 [41] cujas linhas gerais se patenteiam tanto no Decreto como em outras decisotildees conciliares26

Tem o discurso de Cervini o meacuterito de mostrar as linhas diretrizes do Decreto de maneira mais clara do que aparecem estas na uacuteltima redaccedilatildeo do mesmo onde elas se diluem muito devido a uma seacuterie de variadas implicaccedilotildees Eacute ainda de grande auxiacutelio para o entendimento do referido discurso uma carta dos Cardeais Legados ao Cardeal Alexandre Farnese de 28 de fevereiro de 1546 Esta carta revela conteuacutedo idecircntico ndash eacute certamente inspirada pelo mesmo Cervini ndash e oferece ainda alguns outros

25 Eacute lamentaacutevel que Geiselmann em sua anaacutelise da contribuiccedilatildeo medieval sobre este assunto se tenha apoiado apenas em argumentos de segunda matildeo portanto de valor histoacuterico discutiacutevel Queira o leitor ver minhas observaccedilotildees a este respeito in Theol-prakt Quartalschrift 1963 p224-227 As novas (e temperamentais) invectivas de Geiselmann in TThQu 144 (1964) p 31-69 em nada modificaram a minha posiccedilatildeo de vez que natildeo trazem nenhuma contribuiccedilatildeo vaacutelida ao assunto Precioso ao contraacuterio eacute o trabalho de Y CONGAR La Tradition et les traditionshellip Essai historique Paris 1960 Importante eacute tambeacutem a obra de J BEUMER Die muumlndliche uumlberlieferung als Glaubensquelle Friburgo 1962 A respeito do Conciacutelio de Trento cf sobretudo aleacutem do estudo fundamental de JEDIN o artigo de E ORTIGUES Escriture et Traditions apostoliques au Concilie de Trente in RSR 36 (1949) p 271-299 K D SCHMIDT Studien zur Geschichate des Konzilis von Trient Tubinga 1925 p 152-209 26 O discurso nos foi transmitido em duas redaccedilotildees A primeira mais curta encontra-se nas Atas do Conciacutelio in CT V 11 A segunda faz parte do diaacuterio de Massarelli (Diarium III) in CT I p484 Quanto ao conteuacutedo os dois textos se completam Na anaacutelise que aqui ensaiamos as duas versotildees satildeo comparadas entre si de modo a fazerem um todo Sobre a posiccedilatildeo de Cervini no Conciacutelio cf H JEDIN Geschichte des Konzils von Trient II Friburgo 1957 p38-40 A descriccedilatildeo do desenrolar histoacuterico dos debates acha-se em JEDIN op cit p42-82 e supomo-la conhecida do leitor de vez que serve de base para a anaacutelise teoloacutegica do Decreto tridentino

esclarecimentos Cervini sustenta no citado discurso que existem trecircs princiacutepios e fundamentos de nossa feacute

1) Os livros sagrados escritos sob a inspiraccedilatildeo do Espiacuterito Santo 2) O Evangelho que Nosso Senhor natildeo escreveu mas ensinou oralmente e

implantou nos coraccedilotildees Parte do Evangelho foi escrita mais tarde pelos Evangelistas enquanto muita coisa foi simplesmente confiada aos coraccedilotildees dos fieacuteis

3) Porque o Filho de Deus natildeo ia permanecer sempre entre noacutes enviou ele o Espiacuterito Santo que haveria de revelar os misteacuterios no iacutentimo dos fieacuteis e de ensinar agrave Igreja toda a verdade ateacute ao fim dos tempos27

[43] Numa segunda redaccedilatildeo mais detalhada do discurso estas mesmas ideacuteias satildeo

desenvolvidas mais amplamente Aiacute lemos que a Revelaccedilatildeo se apresentou de modo diferente em diversos tempos

1) Nos Patriarcas cuja feacute eacute atestada na Escritura a que chamamos de Antigo Testamento

2) Em Jesus Cristo que implantou o seu Evangelho natildeo por escrito mas oralmente natildeo in charta mas in corde Das coisas que emanaram de Cristo (quaelig a Cristo emanarunt) algumas foram escritas outras permaneceram nos coraccedilotildees dos homens (quaeligdam in cordibus hominum relicta fuerunt) Todo o Evangelho de Cristo que consta desta dupla modalidade forma (tendo como primeiro princiacutepio o Antigo Testamento) o secundum prindipium fidei nostraelig

3) Daiacute surge o terceiro princiacutepio (tertium autem) porque o Filho de Deus natildeo iria permanecer sempre entre noacutes enviou ele ao mundo o Espiacuterito Santo que haveria de explicar os misteacuterios de Deus e tudo o que fosse ainda obscuro para os homens28 De modo semelhante a citada carta ao Cardeal Farnese fala de dois passos (due

passi) Um eacute que a Revelaccedilatildeo de Nosso Senhor natildeo foi totalmente escrita mas permaneceu em parte contida nos coraccedilotildees dos homens e na Tradiccedilatildeo da Igreja O outro [43] passo consiste em confirmar ldquoquello che egrave suggerito lo Spirito Santo in la Chiesa maxime medianti i concilij doppo lAscensione in cielo del Signorerdquo29

Notamos logo que contrariamente ao que esperaacutevamos natildeo dois mas trecircs satildeo os princiacutepios apontados a Escritura o Evangelho e a Revelaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

27 CT V 11 helliptria esse principia et fundamenta nostrae fidei primum libros sacros secundum esse evangelium quod Christus Dominus Noster non scripsit sed ore docuit et in cordibus illud plantavit cujus evangelii nonnulla evangelistaelig scripto mandarunt multa quoque relicta sunt in cordibus hominum Tertium quia non semper filius Dei corporaliter nobiscum mansurus erat misit Spiritum Sanctum qui in cordibus fidelium secreta Dei revelaret et ecclesiam quotidie et usque consummationem saeligculi doceret omnem veritatem et si quid in mentibus hominum dubii occurrisset declararet 28 CT I 484 Digna de nota eacute ainda a foacutermula contida na paacutegina 48514-16 nihil tamen inter scripturas sacras et apostolicas traditianes differt illaelig enim scriptaelig hae per insinuationem habentur utraeque tamen a Spiritu Sancto eodem modo emanataelig Confira-se com CT V 11 19 ab eodem Spiritu et illos (scilicet libros) et istas (scilicet traditiones) descendisse 29 CT X 373

Eacute portanto necessaacuterio observar que sob o termo ldquoEscriturardquo se entende o Antigo Testamento e que aleacutem deste (que eacute Escritura em sentido proacuteprio) aparece como segundo princiacutepio o Evangelho apresentaccedilatildeo do Cristo-evento O Evangelho por sua vez abrange o que estaacute escrito e o que natildeo estaacute escrito mas sim apenas insculpido no coraccedilatildeo dos crentes Deste modo o segundo princiacutepio representa uma vantagem pneumaacutetica sobre o que estaacute escrito o Evangelho eacute nesta concepccedilatildeo algo diferente da letra (Escritura) e soacute em parte vem escrito (Isto natildeo deve ser entendido no sentido de divisatildeo das verdades da feacute fenocircmeno denunciado ldquocom horrorrdquo por Geiselmann Ao contraacuterio Entenda-se apenas no sentido de diferente grau de dignidade no modo de exprimir-se) Em rigor o Evangelho como tal soacute pode ser escrito em parte se considerarmos a sua essecircncia

Finalmente ndash o que eacute muito de se admirar ndash segue-se como terceiro princiacutepio a accedilatildeo visiacutevel do Espiacuterito Santo em todo o tempo da Igreja

Admitimos portanto que o que noacutes geralmente chamamos de Tradiccedilatildeo natildeo aparece aqui como um soacute princiacutepio Biparte-se antes em dois princiacutepios intimamente ligados o ldquoEvangelhordquo princiacutepio apenas em parte identificaacutevel com a Escritura e a accedilatildeo do Espiacuterito Santo no tempo da Igreja Ademais podemos observar que a Escritura do Novo Testamento natildeo aparece como um princiacutepio ao lado da Revelaccedilatildeo apostoacutelica Muito menos como [44] eacute o nosso caso se apresenta a Escritura neotestamentaacuteria juntamente com a veterotestamentaacuteria como uma grandeza uacutenica uma ldquoEscriturardquo soacute agrave qual se poderia contrapor a ldquoTradiccedilatildeordquo como uma segunda grandeza O Novo Testamento em seu conjunto aparece como um segundo e mais amplo princiacutepio ou seja o Evangelho que como tal se opotildee de um lado ao Antigo Testamento e de outro agrave projeccedilatildeo histoacuterica do tempo da Igreja Sua unidade interna eacute evidentemente mais forte e importante do que a sua divisatildeo em escrito e natildeo-escrito Assim o Evangelho como um soacute princiacutepio pode ser contraposto ao Antigo Testamento a despeito desta dupla formalidade A impossibilidade de se representar o Novo Testamento como Escritura impossibilidade esta demonstrada por Satildeo Paulo e pelos primeiros seacuteculos cristatildeos eacute aqui claramente revelada

Ainda uma observaccedilatildeo relativa ao texto a que vimos nos referindo Em nenhum dos dois pontos por noacutes citados no estudo da Tradiccedilatildeo isto eacute nem no elemento contido no primeiro nem no apresentado no terceiro princiacutepio figura a Tradiccedilatildeo como verbal Em ambos os casos ao contraacuterio trata-se mais da Tradiccedilatildeo real com prevalecircncia da realidade sobre as palavras que a atestam Este fato que estaacute claro no terceiro princiacutepio o pneumatoloacutegico vale tambeacutem em relaccedilatildeo agrave implantaccedilatildeo do Evangelho nos coraccedilotildees contida no segundo princiacutepio Tal implantaccedilatildeo vai muito aleacutem do que se encontra expresso na letra da Escritura

Que papel tenham estas ideacuteias exercido nas discussotildees do Conciacutelio pode-se concluir tambeacutem das auctoritates citadas por Cervini entre as quais figuram Jo 16 12 (hellipSpiritus Sanctus suggerethellip) e Fl 3 15 (Quicumque perfecti sumus haeligc sentiamus et si quid aliter sentitis haeligc quoque Deus vobis revelabit) Ambos estes textos satildeo de teor acentuadamente [45] pneumatoloacutegico-presencial30 Que tais ideacuteias natildeo eram

30 CT V 14 e 15 Um exame profundo das auctoritates quer da Escritura quer entre os Santos Padres que neste particular satildeo favoraacuteveis agrave Tradiccedilatildeo seria em si conclusivo para a elaboraccedilatildeo do conceito

estranhas aos Padres conciliares deduz-se ainda de uma seacuterie de outras referecircncias Assim ouvimos o Bispo de Aqui dizer que aleacutem da Sagrada Escritura existe muita coisa na Igreja de Deus que vindo dos Apoacutestolos e passando de geraccedilatildeo a geraccedilatildeo chegou ateacute noacutes assim como muitas outras quaelig etsi scripta Apostoli nobis non reliquerunt per Spiritus Sancti revelationem nobis (tradita) sunt (Tradita estaacute aqui por revelata) 31 Partindo daiacute se poderia descrever a Tradiccedilatildeo justamente como o componente pneumatoloacutegico do Cristo-evento b) A influecircncia do esquema de Cervini em diversas decisotildees conciliares

Eacute verdade que esta concepccedilatildeo tripartida aparece muito atenuada no Decreto

oficial sobre a Tradiccedilatildeo Que poreacutem em suas linhas fundamentais natildeo tenha ela sido de modo nenhum [46] abandonada mostram-no duas outras passagens nas quais o Conciacutelio faz uso por assim dizer in actu das ideacuteias aqui expressas32 Assim na Introduccedilatildeo ao Decreto sobre a Eucaristia (Denz 873) se lecirc Sacrosancta Synodus sanamhellipdoctrinam tradens quam semper catholica Ecclesia ab ipso Jesu Christo Domino Nostro et eius apostolis erudita atque a Spiritu Sancto illi omnem veritatem in dies suggerente (Jo 1416) edocta retinuithellip

Aqui a accedilatildeo proacutepria do Conciacutelio eacute descrita como tradere e a este tradere eacute atribuiacutedo um duplo fundamento De um lado o ensino de Jesus e dos Apoacutestolos (Note-se que este ponto corresponde ao Evangelho segundo a concepccedilatildeo de Cervini E de certo modo tambeacutem pela citaccedilatildeo de Jesus e dos Apoacutestolos se reconhece a dupla modalidade do Evangelho como escrito e como inserido nos coraccedilotildees) De outro lado o ensino dado pelo Espiacuterito Santo que conduz agrave verdade in dies isto eacute no de correr do tempo futuro

O outro texto que pode ser aduzido aqui como prova do que afirmamos encontra-se no Preacircmbulo do Decreto sobre o Purgatoacuterio (Denz 983) Aiacute se lecirc hellipCatholica Ecclesia Spiritu Sancto edocta ex Sacris Litteris et antiqua Patrum traditione in sacris Conciliis et novissime in hac Synodo docuerit A descriccedilatildeo da accedilatildeo proacutepria do

aqui exposto H HOLSTEIN procurou fazer o cotejo destas auctoritates e fecirc-lo de modo admiraacutevel em seu artigo La Tradition dapregraves le Concile de Trente (RSR 47 1959 p367-390 e em particular para o caso em questatildeo a p375) Ele encontra nos textos estudados duas linhas de tendecircncias A linha de Santo Irineu para a qual o testemunho dos Apoacutestolos eacute o de sua personalidade de sua vida e de seu ofiacutecio Aleacutem desta o grupo composto de Tertuliano Cipriano Basiacutelio e Agostinho forma uma corrente que se poderia denominar ldquocerimonialrdquo Oriacutegenes se enquadra em ambos os grupos Existe entre os autores estudados uma seacuterie de textos que se referem agraves observationes consuetudines institutiones e que levam a entender-se a Tradiccedilatildeo neste mesmo sentido Aiacute se vecircem tambeacutem textos que sublinham o aspecto natildeo-escrito do Evangelho enquanto insculpido no coraccedilatildeo dos fieacuteis e aleacutem disso textos que apontam a Igreja como o ldquolugarrdquo da verdade cristatilde 31 CT I 483 (18 de fevereiro de 1546) Em 26 de fevereiro (CT V 18) encontramos Cervini a tratar de novo deste assunto Cf tambeacutem um pronunciamento do Bispo de Fano (CT V 10) nestes termos Cum jam receperimus Scripturas Sacras necessario recipiendaelig sunt traditiones quaelig ab eodem Spiritu Sancto quo scripturaelig dictataelig sunthellip 32 Disto me adverti pela primeira vez atraveacutes de um estudo realizado sob a minha orientaccedilatildeo por CHR LIMBACR a quem sou devedor de muitas informaccedilotildees bibliograacuteficas

Conciacutelio como tradere encontra-se ainda nas declaraccedilotildees sobre o Sacramento da Extrema-Unccedilatildeo (Denz 910)

Finalmente a triacuteplice divisatildeo deixa-se insinuar nas entrelinhas do Decreto sobre a Tradiccedilatildeo embora obscurecida e diluiacuteda por uma seacuterie de acreacutescimos e citaccedilotildees a ele adicionados por outros motivos O Decreto da Tradiccedilatildeo com efeito [47]

1) Fala do Evangelho prometido pelos Profetas na Escritura e refere-se a esta em sentido estrito quer antes quer depois do Antigo Testamento

2) Fala da promulgaccedilatildeo por Cristo do Evangelho que foi transmitido pelos Apoacutestolos sob dupla forma oral e escrita Desta maneira o que natildeo ocorre no exemplo de Cervini aparece aqui antes de tudo o componente pneumatoloacutegico unido com o componente apostoacutelico a ponto de se distinguirem duas modalidades de Tradiccedilatildeo apostoacutelica a que remonta a Cristo e a que remonta ao envio do Espiacuterito Santo Pode-se assim estabelecer que em oposiccedilatildeo ao esquema de Cervini haacute um certo processo de historicizaccedilatildeo que salienta a relaccedilatildeo com o comeccedilo histoacuterico e igualmente parece deslocar o acento da tradiccedilatildeo real para a verbal

3) No epiacutelogo desta parte do Decreto da Tradiccedilatildeo que vimos analisando de novo eacute considerada a ideacuteia da Sagrada Escritura O conceito de Tradiccedilatildeo eacute entatildeo formulado em definitivo e descrito como vel oretenus a Christo vel a Spiritu Sancto dictatas et continua successione in Ecclesia catholica conservatas A referecircncia aos Apoacutestolos eacute omitida Pode-se na verdade considerar tudo isto como uma volta ao que foi dito antes Evidentemente a tradiccedilatildeo ditada pelos Apoacutestolos eacute citada de novo (A expressatildeo continua successione insinua-o) Contudo permanece sempre ainda certa indeterminaccedilatildeo ficando aberta a possibilidade de se encontrar aqui o vestiacutegio do terceiro componente de Cervini o princiacutepio pneumaacutetico propriamente dito Eacute tambeacutem claro que esta ideacuteia eacute discreta sendo adotada uma posiccedilatildeo mais acentuadamente histoacuterica Se agora lanccedilarmos os olhos sobre o que vimos considerando ateacute aqui surgiratildeo

inevitavelmente perguntas qual eacute realmente o sentido proacuteprio da concepccedilatildeo pneumatoloacutegica Como poderia ser perfeitamente entendida a ideacuteia a noacutes estranha de uma revelatio prolongada no tempo em face da unicidade e do caraacuteter [48] histoacuterico da Revelaccedilatildeo que evidentemente era conhecido tanto de Cervini quanto dos Santos Padres e teoacutelogos medievais33

Antes de examinarmos isto devemos esclarecer rapidamente os principais motivos que inspiraram o Decreto tridentino sobre a Escritura e a Tradiccedilatildeo deixando nele um tanto encoberta a concepccedilatildeo pessoal de Cervini Que opiniotildees de teoacutelogos teratildeo intervindo aqui chegando a ser em parte impressas no texto definitivo que resultou do cotejo de muitos pronunciamentos diversos Uma exposiccedilatildeo detalhada deste ponto exorbitaria do acircmbito de nossa anaacutelise Contentemo-nos com umas poucas observaccedilotildees sumaacuterias 33 Sobre este assunto tentei fazer um breve comentaacuterio no meu trabalho ldquoOffenbarung-Schrift-Uberlieferungrdquo in TThZ 67 (1958) p13-27 Cf J BEUMER ldquoDer theoretische Beitrag der Frnhscholastik zum Problem des Dogmenfortschrittsrdquo in ZkTh 72 (1952) p205-226 J de CHELLINCK Pour lrsquohistoire du mot ldquorevelarerdquo in RSR 6 (1916) p149-157

2 Relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a vida da Igreja

em diversas passagens do debate tridentino

Uma primeira seacuterie de motivos entre os quais se compreendem diversos pronunciamentos agraves vezes muito contrastantes em seu aparato exterior patenteia-se na ideacuteia de tradiccedilotildees expressa no Decreto de duas maneiras a) - per manus traditaelig ad nos usque pervenerunt b) - continua successione in Ecclesia catholico conservatas

O que se ocultaraacute sob estas duas foacutermulas que o historiador de hoje tem dificuldades em aceitar justamente por causa do historicismo nelas impliacutecito Podemos dizer que um decisivo papel exerceu aqui o pensamento que sempre aparecia nos debates a saber que as tradiccedilotildees satildeo variaacuteveis que muitas delas foram abolidas pelos Apoacutestolos e que por outro lado se [49] introduziram tradiccedilotildees eclesiaacutesticas que natildeo mais seriam abolidas34 Esta ideacuteia de Tradiccedilatildeo de certo modo se torna clara no tratado escrito sobre o mesmo assunto por Seripando para uso dos Padres Conciliares Seripando fala das Tradiccedilotildees escritas inseridas na Escritura como as claacuteusulas de Tiago o costume de as mulheres se cobrirem com um veacuteu a legislaccedilatildeo sobre o matrimocircnio contida em 1Cor 7 etc E o autor adverte que estas praacuteticas foram abolidas Isto porque embora associadas agrave palavra de Deus na Escritura dela ldquomuito diferemrdquo pois a palavra divina [50] de modo nenhum poderia ser abolida A estas tradiccedilotildees

34 Cabe aqui aduzir uma nova intervenccedilatildeo de Cervini datada de 26 de fevereiro de 1546 (CT I 33 e V 18) onde ele diz que nem todas as tradiccedilotildees procedentes dos Apoacutestolos devem ser conservadas mas somente as que ab Ecclesia receptaelig ad nos usque pervenerunt (V 18) Esta afirmaccedilatildeo anterior agrave formulaccedilatildeo dogmaacutetica feita pelo Concilio deve igualmente ser tida na conta de um autecircntico comentaacuterio do Decreto Aiacute se acentua como condiccedilatildeo essencial das tradiccedilotildees a receptio ecclesiaelig Vem ainda referida uma intervenccedilatildeo do Bispo de Bertinoro em data de 23 de marccedilo (I p 523) na qual ele sublinha que as tradiccedilotildees escritas por vezes foram mudadas Jaacute entre as natildeo-escritas umas foram mudadas e outras natildeo como por exemplo o rito de adicionar aacutegua ao vinho a Crisma a confissatildeo auricular O Bispo de Bertinoro acrescenta que por outro lado alguns pontos existem que permaneceram inteiramente inalterados tais como a crenccedila no descensus ad inferos na virgindade perpeacutetua de Maria a substituiccedilatildeo da observacircncia do saacutebado pela do domingo Temos depois um pronunciamento do Bispo de Bitonto datado de 27 de marccedilo (I 39) Este bispo era de parecer que algumas coisas foram transmitidas pelos Apoacutestolos com a finalidade de serem perpetuamente conservadas (como pertencentes ao depoacutesito da feacute) outras caiacuteram em desuso (como as claacuteusulas de Tiago) e outras enfim foram apenas aconselhadas Assim mesmo na Escritura algumas coisas haacute que foram escritas mas natildeo recebidas em uso por serem mateacuteria de mero conselho Por exemplo ldquose algueacutem te pedir a tuacutenica daacute-lhe tambeacutem o paacutelio se algueacutem te esbofetear numa face oferece-lhe tambeacutem a outrardquo Sem duacutevida excelente ilustraccedilatildeo do sermatildeo da montanha Finalmente consideraccedilotildees idecircnticas podemos encontrar na obra citada de LEJAY Eis outra amostra tirada do discurso de 23 de fevereiro (CT V 13) Nam illaelig (scil traditiones) quaelig ad fidem pertinent eadem sunt recipiendaelig auctoritate qua recipitur evangelium alia autem non ita eum earum plurimaelig immutataelig fuerint ut de bigamis de esu sanguinis et similia De modo semelhante aliaacutes fala tambeacutem Bonuccio (I 525 a 23 de marccedilo de 1546 ecclesia traditiones apostolorum quandoque mutavit verbum autem Dei nunquam mutavit neque mutare potest

Seripando opotildee as natildeo referidas na Biacuteblia e que ora satildeo apostoacutelicas ou oriundas de Conciacutelios universais e aceitas por toda a Igreja ora satildeo particulares e muito variaacuteveis35

Este texto nos leva a uma surpreendente conclusatildeo para Seripando e muitos outros Padres tridentinos36existem tradiccedilotildees na Escritura ldquoTradiccedilatildeordquo natildeo significa o natildeo-escrito Existe quer dentro da Escritura quer fora dela Isto nos conduz a outra pergunta em que consiste para os referidos Padres a essecircncia da tradiccedilatildeo se o que a constitui natildeo eacute o fato de natildeo ser escrita37 Em outros termos como pode a tradiccedilatildeo ser definida positivamente se ela natildeo pode ser suficientemente determinada pela ideacuteia negativa de algo natildeo-escrito

Haacute uma seacuterie de respostas para esta pergunta O proacuteprio Seripando daacute a seguinte definiccedilatildeo Traditiones hoc est Apostolorum seu sanctorum Patrum sanctae et salutares constitutiones38 Mais clara ainda eacute a afirmaccedilatildeo de Cervini citada por Massarelli A objeccedilatildeo do Bispo de Chioggia que aduzia a opiniatildeo de Agostinho de que tudo o que eacute necessaacuterio para a salvaccedilatildeo estava escrito na Biacuteblia respondia Cervini da seguinte maneira Verba illa (isto eacute de Santo Agostinho) formaliter intelligi debent scilicet ad fidem accipiendam ut salvi fiamus Quo vero ad mores et christianam vitam instituendam certo non omnia scripta sunt

[51] E de novo recorre agraves provas tiradas de Jo 1526 e 1426 E indica o princiacutepio pneumatoloacutegico39 O que eacute mais importante eacute que a Tradiccedilatildeo se refere agrave institutio vitaelig agrave presenccedila atuante da Palavra revelada na existecircncia cristatilde Tradiccedilatildeo eacute noutros termos a eficaacutecia da palavra de Deus Sem ela a palavra ficaria esteacuteril 35 Seripando De traditionibus (fevereiro ou marccedilo de 1546) CT XII p517-521 e principalmente a p 521 As expressotildees desta uacuteltima paacutegina chocam-se com a ideacuteia de Cervini sobre a receptio ecclesiaelig 36 Cf o texto citado na nota 11 37 No texto definitivo do Decreto esta ideacuteia natildeo aparece mais Aqui poreacutem com esta primeira designaccedilatildeo expliacutecita da Tradiccedilatildeo vem expressamente acentuado o contraste entre in libris scriptis et sine scripto traditionibus Na segunda redaccedilatildeo o sentido expliacutecito da palavra Tradiccedilatildeo natildeo eacute tatildeo exclusivo Contudo apresenta igual matiz ao se confrontarem as expressotildees omnes libroshellipnec non traditiones ipsas Portanto a ideacuteia positiva da Tradiccedilatildeo que serve de base a esta anaacutelise natildeo deixou de influenciar na redaccedilatildeo do Decreto 38 CT XII 517 39 CT I 494 (26 de fevereiro de 1546) A citada palavra de Santo Agostinho teve o seu papel a desempenhar na discussatildeo em curso Seripando por exemplo a ela se referiu (De traditionibus CT XII 521 47-53) Pensandum denique ne in traditionibus externis vera religio et salutis spes statuatur de quibus Augustinus Omnia quaelig pertinent ad veram religionem quaeligrendam et tenendam divina Scriptura non acuit Conceda-se que nem tudo foi escrito (veja-se Jo 2125) Todavia electa sunt autem quaelig scriberentur quaelig saluti credentium sufficere videbantur Mais do que nos debates do tridentino encontramos aqui um verdadeiro postulado dos Reformadores ldquonatildeo adotar costumes exteriores mas buscar os meios definitivos de salvaccedilatildeo na palavra da Escriturardquo A ldquosuficiecircnciardquo da Escritura de que aqui se fala eacute na verdade algo diverso da suficiecircncia material da mesma Escritura defendida por Geiselmann em sentido muito mais radical Infelizmente ainda natildeo se quis levar na devida consideraccedilatildeo o texto de Santo Agostinho (CT I 494 sugere De doctrina christiana II 9 e De pecc mero et rem II 59) Muito apropriadas nesta ordem de ideacuteias satildeo as observaccedilotildees de H SCHAUF ldquoSchrift und Traditionrdquo in Antonianum 39 (1964) p200-209 feitas no chamado Encontro de Duumlsseldorf Nos textos citados por Schauf com base em Agostinho eacute afirmada a suficiecircncia da Escritura para a salvaccedilatildeo Eacute contudo contestada a sua suficiecircncia para a Igreja em geral De fato esta alternativa parece muito mais vaacutelida e fundamental agrave luz dos postulados dos Reformadores do que a alternativa entre a suficiecircncia ou insuficiecircncia material da Escritura

Na mesma linha de ideacuteias seguem-se duas outras seacuteries de pronunciamentos Vimos na introduccedilatildeo agrave parte anterior que a discussatildeo dogmaacutetica da ideacuteia de

Tradiccedilatildeo foi em parte prejudicada pela questatildeo do meacutetodo a seguir no Conciacutelio dever-se-ia abordar primeiro a reformatio a reforma praacutetica da Igreja como queria o ldquoKaiserrdquo Ou primeiro discutir a questatildeo dogmaacutetica como preferia o Papa40

[52] Este problema do meacutetodo embora resolvido no debate que entatildeo surgiu natildeo afetou diretamente a questatildeo da Tradiccedilatildeo como tal Mas como de fato estas duas questotildees ficaram ligadas entre si daiacute resultou que muitos oradores transformaram a questatildeo do meacutetodo (se se deveria falar dos abusos ou da Tradiccedilatildeo) em parte de sua argumentaccedilatildeo em torno do assunto em pauta41 O problema abusus e o problema Traditio ficaram de tal maneira associados na ocasiatildeo que pareciam formar no fundo um soacute assunto Por isso os oradores ora falavam em sentido positivo ora se pronunciavam em sentido negativo Isto correspondia tambeacutem ao propoacutesito reformista do Conciacutelio as traditiones representavam os abusus aos quais a Igreja se opunha Os Padres estavam cocircnscios de que condenar as traditiones era condenar Os usus ecclesiaelig o modo como a Igreja vivia a sua vida naquela eacutepoca

A outra seacuterie de pronunciamentos que se inclinavam ao mesmo sentido encontramo-la nas proposiccedilotildees que a auctoritas da Igreja apresenta como definitivas indicando uma iacutentima relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a institutio christiana 42

[53] Podemos agora retomar ao nosso ponto de partida e dar resposta agrave pergunta que propriamente significa a foacutermula ad nos usque pervenerunt Objetivamente natildeo se trata aqui de um historicismo que a foacutermula parece expressar Ao contraacuterio Trata-se da fidelidade perseverante da Igreja agrave institutio vitaelig christianaelig da legiacutetima forma de vida cristatilde em concreto no tempo presente da Igreja da institutio christiana que coloca a Escritura em primeiro lugar e que como tal isto eacute como vida decorrente da Escritura eacute fundamentalmente apostoacutelica embora tambeacutem sujeita a mudanccedilas como tudo o que eacute vivo

3 A Tradiccedilatildeo e o dogma eclesiaacutestico

40 Sobre o debate em torno da questatildeo do meacutetodo cf mais uma vez JEDIN op cit p9-82 e outras 41 Assim jaacute no discurso de Cervini antes analisado (CT I 484) no qual ele recorda o dilema do Conciacutelio se nos voltarmos contra as tradiccedilotildees ficaratildeo admirados os Padres Conciliares quasi reformationem fugiamus si ipsam reformationem sumimus iterum objicient traditiones relinquendas non esse Idecircntica era a situaccedilatildeo em que se encontrava o Bispo de Astorga nas duas intervenccedilotildees que fez no dia 23 de fevereiro de 1546 (CT V 13 e 19) segundo Seripando (I 484) helliptraditiones prius pertractandas consulit tantam enim conformitatem abusus qui ex sacris libris descendunt cum iis qui a traditionibus orti sunt habent ut sacris libris et traditionibus absolutis duo illa abusuum genera simul pertractari valeant Segundo Bonuccio (I 484) antes de tudo dever-se-ia tratar das Sagradas Escrituras dos cacircnones apostoacutelicos dos Conciacutelios gerais e das decretais pontifiacutecias Hisque ilusceptis ad abusus ex eisdem dependentes devenire 42 Assim principalmente de acordo com Afonso de Castro (CT I 484) Quoniam ultra traditiones apostolicas ecclesiae auctoritatem habemus quaelig ecclesiaelig auctoritas tonta apud nos est ut aliqui eam maioris roboris quam sacros libros esse sentiant Cf igualmente CT I 491 45 Na mesma linha pode-se ver uma seacuterie de pronunciamentos na citada obra de LEJAY Cf CT XII 524 (Tratado De traditionibus ecclesiaelig fevereiro ou marccedilo de 1546)

Uma segunda seacuterie de motivos eacute expressa no Decreto pela foacutermula traditiones tum ad fidem tum ad mores pertinentes Se como vimos a ideacuteia de Tradiccedilatildeo aparece muito limitada naquilo que os Padres conciliares chamam consuetudines observationes institutiones por outro lado o Procurador do Cardeal de Augsburgo Claudio Lejay SJ se fez o porta-voz de uma expressatildeo que em oposiccedilatildeo agraves traditiones caeligremoniales estabeleceu justamente o sentido da tradiccedilatildeo contida na feacute Seu tratado sobre a Tradiccedilatildeo composto para uso dos Padres conciliares inclui tambeacutem a foacutermula que foi adotada pelo Conciacutelio Aiacute se diz Denique multas veritates tum ad fidem tum ad mores pertinentes Ecclesia novit quas Scriptura aperte et expresse non continet Ele cita como exemplos as palavras persona essentia trinitas no Tratado da Santiacutessima Trindade consubstantialitas na Cristologia do Logos duas naturezas uma soacute Pessoa referentes ao dogma definido pelo Conciacutelio de Calcedocircnia E ainda Cristo Filho uacutenico de Maria duas vontades na uacutenica Pessoa de Cristo uma alma racional aleacutem do espiacuterito divino em Cristo Ana matildee de Maria o costume de fazer sinais da cruz a santificaccedilatildeo do domingo a maneira de rezar com face voltada [54] para o Oriente tudo isto ideacuteias e fatos da tradiccedilatildeo conciliar e da piedade cristatilde43

Cervini que aprovou o discurso de Lejay de 23 de fevereiro de 154644 pocircde dificilmente conciliar esta posiccedilatildeo com a sua expressa na jaacute citada carta ao Cardeal Farnese onde como vimos ele diz que o Espiacuterito Santo falou na Igreja e depois da Ascensatildeo do Senhor fala ainda maxime medianti i concilii45 Ele aiacute viu publicamente sublinhado o fato de que aquele ldquomaisrdquo que a Igreja viva representa em relaccedilatildeo agrave palavra meramente escrita natildeo se referia e natildeo se refere apenas agrave vita instituenda ou como ele prefere agrave caeligremonialia Refere-se tambeacutem agrave essentialia fidei que antes de tudo plenamente se expressam na Tradiccedilatildeo Tambeacutem aqui como se vecirc o interesse dominante natildeo estaacute na apresentaccedilatildeo historicista do assunto a partir do iniacutecio da Igreja mas na ideacuteia de que a influecircncia da Tradiccedilatildeo sobretudo atraveacutes da praxe conciliar eacute de fundamental importacircncia para a feacute para a doutrina crida e natildeo apenas para a piedade viva ou a caeligremonialia

4 O sentido do Decreto tridentino

Se recapitularmos o que ateacute agora dissemos veremos que no conjunto facilmente se podem reconhecer trecircs diferentes concepccedilotildees teoloacutegicas unidas entre si no texto definitivo do Decreto sobre a Tradiccedilatildeo Unidas mas natildeo equiparadas umas agraves outras Pelo contraacuterio apesar de sua grande diferenccedila foram elas apenas [55] mais ou menos justapostas e de novo por forccedila de uma tendecircncia comum relacionadas entre si

1 A concepccedilatildeo de Cervini que designamos como pneumatoloacutegica Com sua doutrina sobre os trecircs principia fidei insiste ele no caraacuteter dinacircmico do Cristo-evento

43 CT XII 523 LEJAY baseia-se evidentemente em listas de tradiccedilotildees confeccionadas naquele tempo (Cf ECK DRIEDO CANO BOTO NOGAROLA) Cf a este respeito Y CONGAR ldquoTraditions apostoliques non eacutecrites et suffisance de lEscrituresrdquo in Istina 6 (1959) p219-306 e principalmente a paacutegina 289 44 CT V 14 45 CT X 373

presente na Igreja Entende assim a Tradiccedilatildeo primariamente como a realidade espiritual da institutio vitaelig christianaelig

2 A concepccedilatildeo que podemos chamar de cerimonial Esta entende a Tradiccedilatildeo essencialmente como a seacuterie de consuetudines existentes ao lado da feacute como os usus ecclesiaelig que os Reformadores falsamente pretendem abolir como abusus Esta concepccedilatildeo chega a condenar a dignidade e Antiguumlidade apostoacutelica das tradiccedilotildees Sua ideacuteia eacute limitada pelo ad nos usque pervenerunt que inclui possibilidade de variar da parte das tradiccedilotildees donde a necessidade de reduccedilotildees Com os termos pervenire e conservare a recepccedilatildeo por parte da Igreja eacute considerada criteacuterio adicional ao lado da Antiguumlidade

3 A concepccedilatildeo que talvez possamos denominar dogmaacutetica Em oposiccedilatildeo agrave fixidez da ideacuteia de Tradiccedilatildeo reduzida agrave consuetudo salienta esta terceira hipoacutetese a extensatildeo do fenocircmeno Tradiccedilatildeo tambeacutem ao acircmbito da fides

Estas trecircs concepccedilotildees deram forma ao texto do Decreto de tal modo que as suas

linhas mestras derivam de Cervini e todo o texto deve ser entendido agrave luz de suas ideacuteias Contudo em duas passagens isto eacute no pervenerunt e no conservatas haacute influecircncia da segunda concepccedilatildeo enquanto no tum ad fidem tum ad mores haacute influecircncia da terceira

Em face destas trecircs concepccedilotildees das quais na realidade existem diversas variantes que tomadas em conjunto satildeo a expressatildeo das ideacuteias dominantes adotadas aparecem as teses de Bonuccio e de Nacchianti tatildeo postas em evidecircncia por Geiselmann como sentenccedilas contraacuterias De fato o parecer de Bonuccio claramente [56] se opotildee agrave segunda concepccedilatildeo (contra a supervalorizaccedilatildeo das consuetudines natildeo per pietatis affectus) ao passo que Nacchianti se levanta antes contra a terceira posiccedilatildeo e salienta a suficiecircncia da feacute recebida por meio da Escritura46

Seria de notar-se ainda que as concepccedilotildees segunda e terceira tecircm algo em comum Ambas opotildeem agrave visatildeo pneumatoloacutegica de Cervini da salvaccedilatildeo sempre presente uma visatildeo mais historicista relacionada com o prolongamento da salvaccedilatildeo operada uma soacute vez ou seja o ἑφάπαξ Na realidade deve-se dizer que embora de um lado tanto a visatildeo presencial de Cervini como tambeacutem a visatildeo historicista do outro grupo se consideradas isoladamente cada qual de per si sejam perigosas se natildeo insustentaacuteveis 46 Aliaacutes de acordo com uma informaccedilatildeo de Cervini parece que o Bispo de Chioggia finalmente renunciou agrave sua tese da suficiecircncia da Escritura na qual se inclinava a recusar as tradiccedilotildees Na carta de Cervini ao Cardeal Farnese de 27 de fevereiro de 1546 lemos hellip Chioggia che (quasi quasi) voleva dire queste traditioni essere superflue perorando che tutto quello che era necessario alla salute era scritto et allegando etiam S Agostino sopra lultimo capitulo di S Giovanni a questo proposito Pure per non poter negare che molte cose appartenenti almeno alli sacramenti non ci fussero venute ex tra ditione et per consequente che non tutte le cose necessarie alia nostra salute erano scritte poiche ebbe fatte molte distintioni concluse che ancor lui accettava queste ldquoche in la chiesa fusse qualque traditione apostolica non scrittardquo (et con queste parole diceva che se ne facesse il decreto) credo che molti sono restati scandalizati di lui (CT X Nr 315 paacutegs 399 411) Cf tambeacutem CT I 494 nota 9 e 495 nota 2 CT V 18 nota 5 e 19 e nota 1 O mesmo protesto que aparece contra Nacchianti manifesta-se tambeacutem na observaccedilatildeo de Massarelli Este chega a chamar aquele de novarum rerum cupidus (1 494 18) e esclarece que reprehensus est a multis (1 494 22) Diante disto eacute de todo destituiacuteda de creacutedito a importacircncia que Geiselmann lhe atribui mesmo se abstrairmos de outras razotildees jaacute conhecidas sobre as quais natildeo precisamos insistir

de outro lado pelo menos tornam possiacutevel uma exata visatildeo do conjunto devido agrave sua muacutetua confluecircncia e limitaccedilatildeo No texto atual estatildeo presentes embora pouco nitidamente ambos os pontos de vista o elemento presencial e o ἑφάπαξ Conveacutem que entendamos assim o texto de modo a considerarmos [57] ambos estes aspectos como essenciais Consequumlentemente reconheceremos que ambos pertencem constitutivamente agrave realidade da vida cristatilde e portanto tambeacutem agravequela parcela do Cristianismo a que damos o nome de Tradiccedilatildeo Estes dois elementos satildeo a presenccedila do Espiacuterito Santo e o seu nexo com o fato singular da salvaccedilatildeo ocorrido uma soacute vez por todas na histoacuteria dos homens

Assim se acharaacute finalmente a resposta agrave pergunta de corno noacutes devemos entender o parecer do Conciacutelio de Trento A primeira e mais importante conclusatildeo parece-me ser o fato de o Conciacutelio ter visto muito claramente o nexo entre Tradiccedilatildeo e Revelaccedilatildeo A seguir elaborou sempre em consonacircncia com a tradiccedilatildeo patriacutestica e medieval um conceito de Revelaccedilatildeo muito menos material do que o que seraacute adotado mais tarde pela teologia dos tempos modernos Somente assim se deve conceber a ideacuteia da Revelaccedilatildeo do Espiacuterito Santo na Igreja Partindo do ramo nitidamente patriacutestico da teologia medieval tatildeo francamente acolhido no discurso de Cervini deveria ser muito menos categoacuterica a opiniatildeo que coloca o teacutermino da Revelaccedilatildeo na morte do uacuteltimo Apoacutestolo Naturalmente esta questatildeo natildeo pode ser aqui estudada com maiores detalhes A sua soluccedilatildeo como entatildeo se apresentava aos teoacutelogos poderia ser hoje impostada apelando-se para as categorias da teologia atual Segundo esta podemos dizer que a Revelaccedilatildeo estaacute encerrada do ponto de vista de seu princiacutepio material Todavia estaacute e continua presente em sua realidade eficaz Noutros termos a Revelaccedilatildeo tem eacute verdade o seu ἑφάπαξ enquanto ela se realizou num determinado dia na Histoacuteria Entretanto ela tem tambeacutem o seu ldquohojerdquo permanente isto eacute o que foi uma vez por todas realizado na feacute da Igreja permanece sempre vivo e operante Assim a feacute cristatilde natildeo se volta apenas para o passado Abrange tambeacutem o presente e o futuro Eacute verdade que a posterior materializaccedilatildeo historicista da ideacuteia de Revelaccedilatildeo aparece jaacute claramente insinuada nos debates tridentinos corno um fato previsto mas ainda [58] natildeo consumado embora talvez se possa dizer que nos textos conciliares ficou definitivamente consagrada a sua aceitaccedilatildeo

Finalmente acrescentemos ainda que com base nos debates do Conciacutelio podemos estabelecer quatro elementos da ideacuteia de Tradiccedilatildeo 1 O aspecto natildeo-escrito da Revelaccedilatildeo ou do Evangelho contido na Biacuteblia e no coraccedilatildeo dos fieacuteis 2 A palavra do Espiacuterito Santo no decorrer de todo o tempo da Igreja

3 A atividade da Igreja nos Conciacutelios 4 A Tradiccedilatildeo lituacutergica e a da vida da Igreja em geral Nestes quatro elementos

que se deve ter sob os olhos pois formam o fundo ideoloacutegico do Decreto expressa-se a realidade uacutenica do tempo presente da Igreja cristatilde Nele estaacute presente todo o passado poacutes-apostoacutelico da Igreja (inclusive o proacuteprio tempo dos apoacutestolos) de modo que toda a sua vida eacute na Sagrada Escritura um elemento central embora natildeo o uacutenico Em suma deve ter ficado claro que o Conciacutelio de Trento a despeito do caraacuteter contrastante e fixo de sua ideacuteia de Revelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeo oferece uma visatildeo muito mais rica destes conceitos do que a que impregnou a mentalidade dos seacuteculos seguintes Justamente por

isso a teologia de hoje pode retirar daiacute novos subsiacutedios novo apoio para suas pesquisas e novas indicaccedilotildees sobre o verdadeiro caminho a seguir

Quadro sinoacutetico do Decreto tridentino sobre a Tradiccedilatildeo

Primeiro princiacutepio conforme Cervini (AT = Escritura)

Sacrosancta œcumenica et generalis Tridentina Synodus in Spiritu Sancto legitime congregata [] hoc sibi perpetuo ante oculos proponens ut sublatis erroribus puritas ipsa EVANGELII in Ecclesia conservetur quod PROMISSUM ANTE PER PROPHETAS IN SCRIPTURIS SANCTIS

Segundo princiacutepio conforme Cervini o Evangelho em parte escrito em parte insculpido nos coraccedilotildees

[59] DOMINUS NOSTER IESUS CHRISTUS DEI FILIUS PROPRIO ORE PRIMUM PROMULGAVIT DEINDE PER SUOS APOSTOLOS TAMQUAM FONTEM OMNIS ET SALUTARIS VERITATIS ET MORUM DISCIPLINAE OMNI CREATURAE PRAEDICARI IUSSIT PERSPICIENSQUE HANC VERITATEM ET DISCIPLINAM CONTINERI IN LIBRIS SCRIPTIS ET SINE SCRIPTO TRADITIONIBUS QUAE AB IPSIUS CHRISTI ORE AB APOSTOLIS ACCEPTAE AUT AB IPSIS APOSTOLIS SPIRITU SANCTO DICTANTE

Seripando Cervini e outros soacute consideram as tradiccedilotildees recebidas pela Igrej (ldquoad nos usquerdquo)

quasi per manus traditae ad nos usque pervenerunt

orthodoxorum Patrum exempla secuta omnes libros tam Veteris quam Novi Testamenti cum utriusque unus Deus sit auctor nec non TRADITIONES IPSAS

Lejay Tradiccedilatildeo contendo natildeo soacute a ldquoconsuetudordquo mas relacionada tambeacutem com a ldquofidesrdquo (foacutermula conciliar)

tum ad fidem tum ad mores pertinentes

Terceiro princiacutepio de Cernini Depois da Ascenccedilatildeo de Cristo o Espiacuterito Santo ensina tambeacutem os misteacuterios de Deus

TAMQUAM VEL ORETENUS A CHRISTO VEL A SPIRITU SANCTO DICTATAS

Seripando Cervini etc soacute satildeo consideradas as coisas recebidas pela Igreja (como acima)

et continua successione in Ecclesia catholica conservatas

Cervini Escritura e Tradiccedilatildeo procedem ambas do mesmo Espiacuterito Santo

pari pietatis affectu ac reverentia suscipit ac veneratur

  • Prefaacutecio
  • SEGUNDA PARTE
  • Explicaccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo
  • segundo o Decreto do Conciacutelio de Trento
Page 17: Revelacao e Tradicao-Joseph Ratzinger (Bom Ler)

material da Revelaccedilatildeo Ele crecirc ainda poder mostrar que a tradiccedilatildeo mais forte eacute a favor desta sentenccedila e que o proacuteprio Conciacutelio de Trento se inclina neste sentido10

Eacute faacutecil de se compreender que semelhante tese tenha obtido o apoio de muitos em face das novas possibilidades de encontro entre Catoacutelicos e Evangeacutelicos possibilidades estas que a posiccedilatildeo de Geiselmann parece favorecer11 Que esta tese na realidade constitua um passo consideraacutevel neste sentido parece ser incontestaacutevel Todavia tatildeo logo a analisemos mais de perto em seus fundamentos histoacutericos e reais surge de pronto toda uma seacuterie de dificuldades graves a tornarem impossiacutevel a sua aceitaccedilatildeo

Sobre o aspecto histoacuterico deste problema apresentaremos vaacuterias observaccedilotildees na segunda parte deste nosso opuacutesculo Entrementes consideremos de imediato o lado praacutetico deste assunto Seu exame provoca inicialmente esta pergunta que significa propriamente a expressatildeo ldquosuficiecircncia da Escriturardquo Geiselmann como teoacutelogo catoacutelico que eacute natildeo deixa de sustentar os nossos dogmas Ora nenhum dogma catoacutelico eacute provado sola Scriptura Nem os grandes dogmas primitivos sustentados pelo consensus quinquesaeligcularis nem tampouco o de 1854 e [23] menos ainda o de 1950 Em que sentido entatildeo se pode falar em suficiecircncia da Escritura Natildeo ameaccedilaraacute esta converter-se em perigosa fraude pela qual nos enganamos primeiramente a noacutes proacuteprios e em seguida tambeacutem enganamos aos outros (Ou natildeo seratildeo talvez justamente eles que natildeo se enganam) Ou entatildeo pelo menos para sustentarmos de um lado que a Escritura sozinha conteacutem toda a verdade da Revelaccedilatildeo e de outro lado que o dogma de 1950 eacute verdade revelada natildeo deveremos noacutes refugiar-nos em um conceito tatildeo largo de suficiecircncia que na verdade esta palavra venha a perder todo o seu significado

Com isto abre-se a segunda (que de fato eacute a primeira) questatildeo decisiva a saber seraacute verdade que os debates em torno da ideacuteia da suficiecircncia da Escritura resolveram mesmo o problema do conceito de Tradiccedilatildeo Ou ao contraacuterio natildeo estaremos noacutes aqui diante de um problema de raiacutezes muito mais profundas

Nossas observaccedilotildees introdutoacuterias devem ter deixado claro que esta uacuteltima pergunta deve sem duacutevida nenhuma ser respondida afirmativamente A questatildeo da suficiecircncia da Escritura eacute apenas um problema secundaacuterio no acircmbito da distinccedilatildeo muito mais importante que foi jaacute antes apontada por noacutes ao tratarmos dos conceitos abusus e auctoritas e que gira em torno do nexo entre a autoridade da Igreja e a autoridade da Sagrada Escritura Da compreensatildeo disto depende tudo o mais

Para irmos mais adiante torna-se necessaacuterio analisarmos profundamente o assunto natildeo para nos determos no exame dos conceitos tatildeo relevantes de suficiecircncia ou insuficiecircncia da Escritura mas antes para abordarmos em seu tudo o vasto problema da Palavra revelada e presente no coraccedilatildeo dos fieacuteis Torna-se evidente entatildeo que agrave luz das fontes positivas a Escritura e a Tradiccedilatildeo devem ser postas em relaccedilatildeo tatildeo iacutentima que da

10 Ver sobretudo a obra de J R GEISELMANN Die Heilige Schrift und die Tradition Friburgo 1962 principalmente as p91-107274-282 Entre os trabalhos anteriores escritos por Geiselmann sobre o mesmo tema eacute de particular importacircncia o seguinte Das Konzil von Trient uumlber das Verhaumlltnis der Heiligen Schrift und der nichtgeschriebenen Traditionen in M SCHMAUS Die muumlndliche Uumlberlieterung Munique 1957 p 123-206 11 Uma lista de todos os autores que mais concordaram com Geiselmann eacute fornecida por H KUumlNG em sua tese ldquoKarl Barths Lehre vom Wort Gottes als Frage an die katholische Theologierdquo in Einsicht und Glaube publicado por J RATZINGER-H FRIES Friburgo 1963 p 105 nota 25

fonte interna (a Revelaccedilatildeo) brote a pa1avra de Deus viva sob aquela dupla formalidade A Escritura e a Tradiccedilatildeo natildeo podem [24] ser entendidas uma sem a outra no sentido que ambas tecircm agrave luz da feacute O problema ldquoEscritura e Tradiccedilatildeordquo permaneceraacute insoluacutevel enquanto natildeo for reduzido a uma soacute questatildeo a saber a questatildeo ldquoRevelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeordquo e inserida enfim no amplo contexto a que pertence

Eu gostaria de nas paacuteginas seguintes sem entrar em todos os detalhes tentar desenvolver em forma de teses e de maneira positiva o conceito de Tradiccedilatildeo partindo de sua natureza iacutentima com a esperanccedila de que nele descubramos uma parte da resposta aos anseios dos Reformadores Desta maneira toda esta anaacutelise serviraacute de contribuiccedilatildeo para o diaacutelogo interconfessional cuja necessidade tanto os Catoacutelicos como os Protestantes vecircm proclamando de maneira cada vez mais insistente

II - Teses sobre a relaccedilatildeo entre a Revelaccedilatildeo e a Tradiccedilatildeo

1 A Revelaccedilatildeo e a Escritura A primeira tese em aditamento ao conceito patriacutestico de Escritura e Revelaccedilatildeo

poderia enunciar-se nos seguintes termos o fato de existir uma ldquoTradiccedilatildeordquo repousa antes de tudo na diferenccedila que permeia entre estas duas realidades ldquoRevelaccedilatildeordquo e ldquoEscriturardquo A Revelaccedilatildeo exprime propriamente o falar e o agir de Deus em relaccedilatildeo aos homens Designa uma realidade expressa pela Escritura sem ser contudo a proacutepria Escritura A Revelaccedilatildeo por conseguinte ultrapassa a Escritura na mesma medida em que a realidade ultrapassa a sua expressatildeo escrita12 Poder-se-ia [25] tambeacutem dizer que a Escritura eacute o princiacutepio material da Revelaccedilatildeo (Talvez princiacutepio uacutenico talvez um princiacutepio entre outros isto seraacute esclarecido mais adiante) Ela natildeo eacute poreacutem a proacutepria Revelaccedilatildeo Isto era aliaacutes bem sabido dos proacuteprios Reformadores mas comeccedilou visivelmente a ser esquecido no aceso da controveacutersia entre a teologia catoacutelica poacutes-tridentina e a ortodoxia protestante13 Em nosso seacuteculo foram justamente os teoacutelogos evangeacutelicos Barth e Brunner que redescobriram este fato de todo evidente para a teologia patriacutestica e medieval14

O que acabamos de afirmar ficaraacute mais claro se partirmos de outro princiacutepio a Escritura pode ser possuiacuteda sem que se possua a Revelaccedilatildeo Isto porque a Revelaccedilatildeo eacute sempre e em primeiro plano uma realidade a realidade onde se encontra a feacute Aquele

12 Esta afirmaccedilatildeo natildeo tem o sentido de que a Escritura seja uma mera e vazia narrativa de realidades a ela exteriores Antes como o que se segue iraacute demonstrar indica que a Revelaccedilatildeo eacute realizada na Palavra jaacute que eacute por meio de palavras que ela se comunica aos homens Contudo a mera presenccedila da palavra ainda natildeo eacute a Revelaccedilatildeo Esta eacute mais do que simples ldquopresenccedilardquo Com o que ficou dito salienta-se a diferenccedila que existe entre a palavra e seu conteuacutedo Esta diferenccedila natildeo exclui o caraacuteter verbal da Revelaccedilatildeo 13 Cf A GLOEGE Schriftprinzips RGG V 1540-1543 onde se encontraraacute a mais completa bibliografia LthK VII 1104-1115 J R GEISELMAN Offenbarung in H FRIES Handbuch zum Begriff der Offenbarung cf M VERENO - R SCHNACKENBURG - HRIES in Theologischer Grundbergriffe II Munique 1963 p242-250 e a bibliografia aiacute citada 14 Cf W H VAN DER POL Das reformatorische Christentum Einsiedeln 1956 p117-192

que natildeo crecirc acha-se como que coberto por um veacuteu o veacuteu de que fala Satildeo Paulo no terceiro capiacutetulo da segunda epiacutestola aos Coriacutentios15 Ele pode ler a Escritura e saber o que nela se conteacutem Pode ateacute mesmo apreender de modo puramente intelectual o que aiacute eacute significado e como suas ideacuteias se inter-relacionam Todavia natildeo possui com isto a Revelaccedilatildeo A Revelaccedilatildeo eacute sobretudo possuiacuteda quando aleacutem da expressatildeo material que a atesta se potildee tambeacutem em praacutetica o seu conteuacutedo interno por meio da vivecircncia da feacute Com efeito de certo modo se inclui tambeacutem na Revelaccedilatildeo o sujeito recipiente sem o qual ela natildeo pode existir Natildeo se pode pocircr a Revelaccedilatildeo no bolso como se faz com [26] um livro Ela eacute uma realidade viva Exige homens vivos que a recebam que sirvam de ldquolugarrdquo de sua presenccedila

Repetindo o que ateacute aqui dissemos podemos afirmar que a Revelaccedilatildeo sobreexcede de fato a Escritura em dois sentidos

a) em sentido ascendente ela atinge sempre como realidade procedente de Deus o agir divino sobre as criaturas

b) como realidade que se daacute ao homem por meio da feacute ela atinge igualmente a Escritura

Desta diferenccedila entre a Escritura e a Revelaccedilatildeo resulta claramente que de todo independentemente da questatildeo se a Escritura eacute ou natildeo eacute a uacutenica fonte material em rigor nunca existe para o cristatildeo a sola Scriptura (Isto como ficou dito era claro em princiacutepio para os grandes Reformadores e comeccedilou a ser esquecido na chamada ortodoxia protestante) A Escritura natildeo eacute a Revelaccedilatildeo Eacute sim em uacuteltima anaacutelise uma parte desta realidade mais ampla

2 Os diferentes sentidos da Escritura

no Antigo e Novo testamento A problemaacutetica cristatilde da Revelaccedilatildeo ou o problema ldquoEscritura e Tradiccedilatildeordquo situa-se

melhor se considerarmos o duplo aspecto da mesma Revelaccedilatildeo no Antigo e no Novo Testamento A este duplo aspecto corresponde tambeacutem um duplo sentido da Escritura Assim como os dois Testamentos como tais se distinguem essencialmente assim tambeacutem devemos dizer que a ldquoEscriturardquo como um fato natildeo eacute repetida duas vezes do mesmo modo Isto aparece muito claro nos livros neotestamentaacuterios Sob a expressatildeo ldquoEscriturardquo designam eles somente o Antigo Testamento Para eles o AT eacute e permanece sendo ldquoa Escriturardquo cujo sentido se aclara mediante sua confirmaccedilatildeo no evento da [27] vinda de Cristo16 Os livros do NT natildeo jogam uma Escritura nova contra uma Escritura antiga Nem potildeem uma simplesmente ao lado da outra Potildeem sim em face da uacutenica Escritura ou seja do Antigo Testamento o Cristo-evento como o espiacuterito que explica a letra Esta concepccedilatildeo fundamental ilumina tambeacutem a forma da feacute mais antiga e a torna por primeiro compreensiacutevel O ldquoJesusrdquo formal eacute o ldquoCristordquo expresso no Antigo Testamento Natildeo eacute outra coisa No Jesus Histoacuterico o Cristo-mensagem do

15 Cf sobre estas reflexotildees o importante artigo (ἀποκαλύπτω de A OEPKE in ThWNT III p565-597 16 Ver sobre este ponto as preciosas conclusotildees de G SCHRENK art γραφή ndash γράμμα in ThWNT I p749-769 e a p767

Antigo Testamento atinge a sua consumaccedilatildeo Eacute a partir do AT que se entende quem eacute Jesus E o que o Testamento Antigo expressa pode ser visto agrave luz do Cristo-evento

Esta ideacuteia aparece em Paulo ao apresentar ele o Antigo e o Novo Testamentos como Gramma e Pneuma isto eacute letra e espiacuterito (2Cor 3 6-18) Ele chama ao Senhor de Pneuma A Escritura explica-o como sendo o seu sentido o seu conteuacutedo verdadeiro e vivo e natildeo apenas literaacuterio Paulo se refere agrave concepccedilatildeo do Novo Testamento apresentada por Jeremias (3133) Natildeo eacute mais necessaacuteria nenhuma Escritura porque a lei estaacute escrita nos coraccedilotildees Jaacute natildeo eacute necessaacuteria nenhuma doutrinaccedilatildeo vinda de fora porque o proacuteprio Deus instrui os homens Joatildeo exprime idecircntico pensamento em seguimento ao decircutero-Isaiacuteas (5413) quando descreve a era inaugurada por Cristo como o tempo no qual todos satildeo doutrinados por Deus mesmo E o sermatildeo de Pedro em Pentecostes transmitido pelos Atos dos Apoacutestolos (2 14-36) desenvolve a mesma ideacuteia tirada de Joel (3 1-5) Em todos estes casos aparece a era instaurada por Cristo como resposta agrave esperanccedila no advento de um tempo futuro que em uacuteltima anaacutelise haveria de tornar supeacuterflua a Escritura graccedilas agrave presenccedila imediata do Divino Mestre na Sua humanidade

Quando se pondera o sentido destas afirmaccedilotildees torna-se claro [28] que ao reduzir-se a ldquoEscriturardquo aos escritos do Antigo Testamento natildeo se estaacute apenas usando uma terminologia antiga que teria sido adotada por falta de escritos propriamente neotestamentaacuterios e que teria perdido seu sentido na segunda metade do seacuteculo segundo com o iniacutecio do cacircnon do Novo Testamento Ao contraacuterio Aqui se expressa uma consciecircncia que se tornaria mais niacutetida a partir da formaccedilatildeo da proacutepria Escritura neotestamentaacuteria muito ao inveacutes de cessar ou de desaparecer

Uma coisa eacute certa a ldquoEscriturardquo na nova ordem da salvaccedilatildeo inaugurada por Cristo toma um lugar distinto do que lhe cabia no Antigo Testamento Com isto pode-se ver ateacute que ponto o Antigo Testamento tem sentido autocircnomo O AT certamente natildeo aparecia desde o comeccedilo como Testamento do Gramma Escritura em sentido proacuteprio como ocorreraacute na pena de Satildeo Paulo17 Por outro lado manifesta-se realmente a partir de Jeremias e do decircutero-Isaiacuteas o anelo pela superaccedilatildeo do Gramma mediante uma nova e imediata comunicaccedilatildeo do Espiacuterito de Deus simultaneamente com a progressiva formaccedilatildeo de um princiacutepio da Escritura que mais e mais a transformou em Lei Lei esta que natildeo tornaria os homens vivos mas sim mortos

Desta maneira na concepccedilatildeo neotestamentaacuteria aparece o Antigo Testamento como ldquoEscriturardquo em sentido proacuteprio Escritura que atinge o seu verdadeiro significado atraveacutes do Cristo-evento pelo fato de ser ela inserida no contexto vivo da realidade de Cristo Se no Novo Testamento de facto a Escritura cresceu natildeo pode mais ter aquele sentido uacuteltimo e exclusivo que lhe competia no Antigo segundo a concepccedilatildeo paulina Ao contraacuterio Ela eacute a chave com que se abre o Antigo Testamento deixando-se banhar na claridade do Cristo-evento Ela eacute tambeacutem a ponte permanente que conduz a uma nova interpretaccedilatildeo biacuteblica agrave luz [29] de Cristo Num caso e noutro a Escritura natildeo pretende de modo nenhum ser autocircnoma nem ser a fonte uacutenica e exclusiva de sua exegese literal Mas soacute pode ter sentido na realidade espiritual de Jesus Cristo que

17 Ver a apreciaccedilatildeo feita por G VON RAD Theologie des Alten Testaments II Munique 1960 p402-424

permanece junto dos seus todos os dias ateacute ao fim do mundo (Mt 28 20) Apoacutes a subida ao Calvaacuterio Cristo veio de novo no Espiacuterito Santo (como narra Satildeo Joatildeo) e pelo Espiacuterito ensinou aos disciacutepulos o que eles entatildeo natildeo podiam ainda entender enquanto o Senhor estava entre eles sob forma visiacutevel (Jo 16 12)

3 Cristo a Revelaccedilatildeo de Deus

A realidade que se daacute como um acontecimento na Revelaccedilatildeo cristatilde natildeo eacute nada

mais nada menos do que o proacuteprio Cristo Cristo eacute a Revelaccedilatildeo em sentido proacuteprio ldquoQuem me vecirc vecirc o Pairdquo diz ele no Evangelho de Satildeo Joatildeo (14 9) Vale portanto dizer que receber a Revelaccedilatildeo eacute penetrar na realidade de Cristo no Cristo-evento Daiacute procede o paradoxo descrito por Satildeo Paulo ao fazer ele um trocadilho com as palavras ldquoCristo em noacutesrdquo e ldquonoacutes em Cristordquo

Neste contexto a anaacutelise de frases isoladas torna-se secundaacuteria de vez que elas satildeo apenas explicaccedilotildees do uacutenico misteacuterio de Cristo Consequumlentemente cai por si mesma a questatildeo da suficiecircncia interna da Escritura tatildeo discutida desde o aparecimento das obras de Geiselmann Deveriacuteamos isto sim perguntar que significa em linguagem cristatilde a suficiecircncia interna da Escritura ldquoSuficienterdquo eacute soacute a realidade do Cristo-evento Esta pode ser explicada materialmente em maior ou menor grau E de maneira nunca definitiva Partindo deste princiacutepio podem existir tambeacutem outras explicaccedilotildees segundo a Escritura quando se aprofunda mais este assunto

Este mesmo tema pode ser considerado sob outro aspecto E ter-se-aacute entatildeo dado um passo a mais para a frente A aceitaccedilatildeo [30] da Revelaccedilatildeo pela qual aplicamos a noacutes o Cristo-evento vem na linguagem da Biacuteblia sob o nome de ldquofeacuterdquo Assim talvez se entenderaacute mais claramente de que maneira no Novo Testamento a feacute significa a ldquoin-habitaccedilatildeordquo de Cristo Se admitirmos que na Escritura a presenccedila da Revelaccedilatildeo tem o mesmo sentido que a presenccedila de Cristo entatildeo teremos de fato dado um passo adiante Ora na Escritura encontramos a presenccedila de Cristo apresentada de duas maneiras Ela aparece de um lado como jaacute vimos identificada com a feacute (Ef 317) na qual cada um encontra Cristo e se adentra nele penetrando no dinamismo de sua forccedila salvadora Por outro lado a feacute se oculta tambeacutem sob a expressatildeo paulina ldquoCorpo de Cristordquo o que quer dizer que a comunidade dos fieacuteis ndash a Igreja ndash funda a presenccedila de Cristo neste mundo Nela Cristo reuacutene os homens e os faz partiacutecipes de sua presenccedila dinacircmica18

Tomadas juntas estas duas noccedilotildees significam o seguinte a feacute eacute a adesatildeo iacutentima agrave presenccedila de Cristo realidade de Cristo presente da qual a Escritura nos daacute testemunho sem contudo se identificar de modo nenhum com ela Daiacute resulta que a presenccedila da Revelaccedilatildeo se relaciona essencialmente com a ldquofeacuterdquo e com a ldquoIgrejardquo realidades estas que como vimos estatildeo estreitamente ligadas entre si

Voltamos assim ao que foi afirmado na primeira tese a saber que a Revelaccedilatildeo sobreexcede a Escritura em duplo sentido em relaccedilatildeo a Deus por seu lado ascendente e em relaccedilatildeo tambeacutem ao homem que a recebe Esta asserccedilatildeo que a princiacutepio deixamos

18 H SCHLIER ldquoDie Kirche nach dem Brief an die Epheserrdquo in Die Zeit der Kirche Friburgo 1962 p159-186

um tanto vaga encontramo-la essencialmente concretizada na realidade objetiva do Cristianismo

4 A essecircncia da Tradiccedilatildeo

[31] A transmissatildeo ao povo de Deus do Cristo-evento que eacute a Revelaccedilatildeo e que tem sua bi-presenccedila na feacute e na Igreja faz-se atraveacutes da pregaccedilatildeo Pregaccedilatildeo eacute a ldquoex-posiccedilatildeordquo (Aus-legung) do duplo aspecto da Revelaccedilatildeo no Antigo e no Novo Testamento E isto de duas maneiras

a) ela eacute a exposiccedilatildeo do Antigo Testamento agrave luz do Cristo-evento e para o Cristo-evento

b) a partir do Pneuma e da condiccedilatildeo presente da Igreja Este uacuteltimo aspecto eacute possiacutevel pois Cristo natildeo estaacute morto Estaacute vivo Natildeo eacute

apenas o Cristo de ontem Eacute tambeacutem e a fortiori o Cristo de hoje e de amanhatilde o Cristo vivo e presente em sua Igreja que eacute seu Corpo e na qual o seu espiacuterito opera

Isto poderaacute ser melhor compreendido se partirmos da essecircncia da Igreja Como nos ensina o Novo Testamento a mensagem de Jesus eacute antes de tudo uma mensagem escatoloacutegica com vistas ao reino de Deus natildeo com vistas agrave Igreja O fato de existir a Igreja natildeo se opotildee a esta mensagem mas haacute na marcha gradativa das revelaccedilotildees de Cristo uma segunda possibilidade Assim a atividade dos Doze depois de Pentecostes aponta natildeo para a Igreja mas para o reino de Deus Informam-nos os Atos dos Apoacutestolos que os Doze natildeo se ocuparam primordialmente em missionar os povos Esforccedilaram-se antes muito mais em converter Israel criando deste modo as condiccedilotildees preacutevias para a implantaccedilatildeo do reino De iniacutecio uma seacuterie de obstaacuteculos histoacutericos entre os quais deveriacuteamos citar antes de tudo o martiacuterio de Estevatildeo o supliacutecio de Tiago e por fim o fato decisivo da prisatildeo e da libertaccedilatildeo de Pedro Tais fatos levaram a comunidade primitiva segundo dizem as fontes a reconhecer como definitivo o malogro do esforccedilo de converter Israel E consequumlentemente forccedilaram os Apoacutestolos a partir em busca dos gentios e a cuidar [32] assim da Igreja e natildeo do reino Eles o fazem segundo se depreende das passagens referidas e principalmente dos esclarecimentos do capiacutetulo 15 dos Atos dos Apoacutestolos como uma nova opccedilatildeo feita sob a accedilatildeo do Espiacuterito Santo Com isso iniciou-se uma nova interpretaccedilatildeo da mensagem de Cristo sobre a qual a Igreja essencialmente repousa19

19 Cf as decisivas conclusotildees de E PETERSON ldquoDie Kircherdquo in Theologische Traktate Munique 1951 p 409-429 H SCHLIER Die Entscheidung fuumlr die Heidenmission in der Urchristenheit Die Zeit der Kirche p 90-107 Parece-me certo que nem a anaacutelise da tradiccedilatildeo sinoacutetica relativa agrave mensagem de Jesus e seu caraacuteter escatoloacutegico nem o estudo da histoacuteria da Igreja primitiva com base no material fornecido pelos Atos dos Apoacutestolos autorizam qualquer outra conexatildeo entre a mensagem do reino e a pregaccedilatildeo da Igreja Daiacute natildeo se segue de modo nenhum ndash como muitas vezes se teme ndash que a cruz seja um acidente secundaacuterio que em rigor poderia ter sido evitado Ao contraacuterio A estrutura da Igreja moldada sobre a cruz eacute fundamental porque aiacute eacute que por primeiro se encontra a confirmaccedilatildeo da importacircncia da liberdade humana de Cristo e da sua Paixatildeo bem como a iacutentima dependecircncia da Igreja para com a Cruz donde ela procede

Este fato que baseia o estabelecimento definitivo da Igreja sobre uma decisatildeo tomada ldquono Espiacuterito Santordquo eacute o fundamento para se afirmar que existe uma interpretaccedilatildeo eclesial do Novo Testamento do mesmo modo que existe uma exegese cristoloacutegica do Antigo Daiacute podermos estabelecer as seguintes teses ou proposiccedilotildees agrave luz da analogia fidei

a) Existe uma teologia veterotestamentaacuteria do Antigo Testamento que o exegeta

deduz de seu conteuacutedo interno e que se desenvolve em uma seacuterie de camadas superpostas Segundo ela os textos antigos devem ser relidos e de novo expostos agrave luz dos novos acontecimentos O fenocircmeno da aplicaccedilatildeo dos textos agraves situaccedilotildees novas do desdobramento da Revelaccedilatildeo mediante nova [33] apresentaccedilatildeo do Antigo Testamento estrutura jaacute de modo essencial o conteuacutedo interno veterotestamentaacuterio20

b) Existe uma teologia neotestamentaacuteria do Antigo Testamento que natildeo coincide com

a referida teologia veterotestamentaacuteria Estaacute contudo estreitamente ligada com ela na unidade da analogia fidei21 Talvez partindo daqui se possa esclarecer o que significa a analogia fidei entre Os dois Testamentos A teologia neotestamentaacuteria do Antigo Testamento natildeo eacute como ficou dito idecircntica agrave teologia histoacuterica veterotestamentaacuteria Ao contraacuterio Re-exposiccedilatildeo feita agrave luz do Cristo-evento ela natildeo procede soacute da mera consideraccedilatildeo histoacuterica do Antigo Testamento Sendo embora em seu pleno conceito uma interpretaccedilatildeo relacionada com o Antigo Testamento contudo nada faz com que ela seja internamente estranha agrave sua essecircncia ainda que soacute de fora o atinja Ela amplia a forma estrutural do Antigo Testamento que assim interpretado revive e cresce

c) Existe uma teologia neotestamentaacuteria do Novo Testamento paralela agrave teologia veterotestamentaacuteria do Antigo Ou seja a teologia que o exegeta como tal pode deduzir do conteuacutedo interno do Novo Testamento eacute tambeacutem esta conhecida e estruturada mediante a aplicaccedilatildeo do Antigo Testamento agraves novas situaccedilotildees

d) Existe uma teologia eclesial do Novo Testamento que noacutes [34] chamamos Dogmaacutetica Ela se relaciona com a teologia neotestamentaacuteria do Novo Testamento do mesmo modo que a teologia neotestamentaacuteria do Antigo se relaciona com a respectiva teologia veterotestamentaacuteria Aquele ldquomaisrdquo (das Mehr) que distingue propriamente a Dogmaacutetica da teologia biacuteblica eacute o que designamos com a palavra Tradiccedilatildeo Aliaacutes tambeacutem aqui devemos salientar que a teologia eclesiaacutestica neotestamentaacuteria pela mesma razatildeo natildeo eacute simplesmente idecircntica agrave teologia neotestamentaacuteria interna e

20 Cf H GROSS Motivtransposition als Form- und Traditionsprinzip im Alten Testament in H VORGRIMLER Exegese und Dogmatik Moguacutencia 1962 p134-152 e a bibliografia aiacute fornecida G v RAD Theologie des Alten Testaments II Munique 1960 p332-339 396-401 21 A diferenccedila entre as duas teologias do Antigo Testamento foi vivamente exposta por R BULTMANN ldquoWeissagung und Erfuumlllungrdquo in Glauben und Verstehen II Tubinga 1952 p162-186 - Sobre as necessaacuterias correccedilotildees a se fazerem para que se torne visiacutevel a base histoacuterica do que a teologia sistemaacutetica denomina ldquoanalogia fideirdquo cf G v RAD op cit p329-424 (entre outras) e principalmente a p 420 nota 25 e a p422 nota 29 Sobre o tema ldquoanalogia fideirdquo em ambos os Testamentos cf tambeacutem E PRZYWARA Alter und Neuer Bund Viena-Munique 1956

histoacuterica do Novo Testamento Ultrapassa-a sem contudo ser-lhe puramente externa Com efeito no Novo Testamento comeccedila jaacute o processo da exposiccedilatildeo pela Igreja das verdades reveladas A teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento processa-se dentro dele proacuteprio como de modo clariacutessimo se percebe na histoacuteria da Revelaccedilatildeo sinoacutetica22

Eacute oportuno fazermos ainda uma pequena observaccedilatildeo se cotejarmos atentamente a teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento com a Dogmaacutetica reconheceremos que se impotildee uma outra distinccedilatildeo A Dogmaacutetica como ciecircncia aleacutem da exposiccedilatildeo eclesiaacutestica do Novo Testamento abrange tambeacutem a teologia particular de cada teoacutelogo Neste caso para se falar com precisatildeo dever-se-ia apresentar somente o proacuteprio dogma como teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento

O que acabamos de referir natildeo passa naturalmente de um esboccedilo que necessitaria em seus pormenores de natildeo poucos esclarecimentos e distinccedilotildees a fim de ser completo No caso presente entretanto damos por suficiente este esboccedilo Resumindo o que ateacute aqui expusemos podemos agora destacar vaacuterias ldquoraiacutezesrdquo da Tradiccedilatildeo e apontar vaacuterias camadas em seu seio [35] lordf raiz a maior amplidatildeo da ldquoTradiccedilatildeordquo em referecircncia agrave ldquoEscriturardquo

2ordf raiz o caraacuteter especiacutefico da Revelaccedilatildeo neotestamentaacuteria como Pneuma em contraste com o Gramma Eacute o que na linguagem de Bultmann se poderia chamar de sua condiccedilatildeo de ldquonatildeo-objetordquo (Nichtobjektiviertbarkeit) A praxe eclesiaacutestica e a teologia medieval expressaram este aspecto ao sobreporem a fides agrave Scriptura isto eacute o dogma como regra de feacute agraves minuacutecias da lei escrita23 O dogma eacute como a chave hermenecircutica da Escritura que em uacuteltima anaacutelise sem o auxiacutelio da hermenecircutica ficaria sendo algo fechado

3ordf raiz o caraacuteter presencial do Cristo-evento e a presenccedila dinacircmica do Espiacuterito de Cristo em seu Corpo a Igreja E consequumlentemente o poder que tem a Igreja de fazer a pregaccedilatildeo do Cristo ontem e hoje pregaccedilatildeo esta cuja fonte se encontra na interpretaccedilatildeo eclesiaacutestica da mensagem do reino transmitida pelos Apoacutestolos

Em conexatildeo com estas trecircs raiacutezes da ideacuteia (ou melhor da realidade) da Tradiccedilatildeo podem distinguir-se na mesma as seguintes camadas

a) Na origem de toda Tradiccedilatildeo estaacute o fato de que o Pai enviou o Seu Filho ao mundo e que o Filho por sua vez se [36] entregou ndash como sinal ndash aos ldquopovosrdquo (παραδίδοται) Esta paraacutedosis original em sua forccedila direta e salvadora

22 Cf por exemplo a rica exposiccedilatildeo de G BORNKMANN Jesus von Nazareth Estutegarte 1956 Sobre a questatildeo aqui estudada cf H SCHLIER Uumlber Sinn und Aufgabe einer Theologie des Neuen Testaments in H VORGRIMLER Exegese und Dogmatik Mainz 1962 p6990 23 O que haacute de melhor sobre este assunto no tocante agrave Patriacutestica seraacute encontrado em HARNACK DG II (1931) p84-116 HARNACK diz na p 87 nota 3 o seguinte ldquoO Cacircnon era de iniacutecio a regra da feacute A Escritura estaacute centrada na verdade Sem duacutevida nenhuma sua autoridade funda-se solidamente no Antigo Testamento e nas palavras do Senhorrdquo ndash Que assim tenha pensado tambeacutem a Idade Meacutedia e que aqui aleacutem da revelatio (da qual falaremos na 2ordf parte deste livro) a fides sobrepondo-se agrave Scriptura estabelece a forma essencial do conceito de Tradiccedilatildeo foi o que tentei demonstrar em meu artigo Wesen und Weisen der auctoritas im Werk des heiligen Bonaventura in Die Kirche und ihre Aumlmter und Staumlnde (Festgabe Kardinals Frings publicado por CORSTEN-FROTZ-LINDEN Colocircnia 1960 p 58-72

prolonga-se na permanente presenccedila de Cristo no σῶμα Χριστοῦ ndash no Seu Corpo a Igreja Assim o misteacuterio integral da presenccedila de Cristo eacute antes de tudo a realidade total transmitida pela Tradiccedilatildeo (fato fundamental e decisivo sempre anterior a todas as explicaccedilotildees particulares mesmo as da Escritura) e reguladora do que deve propriamente ser transmitido

b) A Tradiccedilatildeo existe concretamente como presenccedila na feacute Esta por seu turno como ldquoin-habitaccedilatildeordquo de Cristo precede todas as explicaccedilotildees particulares e frutuosa e viva ldquoexplicita-serdquo (explizierend) atraveacutes dos tempos

c) A Tradiccedilatildeo tem seu oacutergatildeo na plenitude dos poderes da Igreja e portanto naqueles que satildeo os legiacutetimos depositaacuterios destes poderes24

d) A Tradiccedilatildeo exprime-se tambeacutem naquilo que emanado da autoridade da Igreja se tornou regra de feacute (Symbolum fides quaelig) Portanto a questatildeo de se saber se certas proposiccedilotildees foram transmitidas desde o

comeccedilo pela Tradiccedilatildeo ao lado da Escritura ou em outros termos se existe desde o comeccedilo um segundo princiacutepio material e autocircnomo ao lado da Escritura torna-se afinal um problema inteiramente secundaacuterio Talvez lhe devamos responder negativamente

5 A funccedilatildeo da exegese [37] Pelo que ateacute aqui dissemos ficaram esclarecidas quase que exclusivamente

trecircs pontos os limites da letra da Escritura a liberdade do Espiacuterito Santo e a autoridade da Igreja Acontece poreacutem que a exposiccedilatildeo que fizemos abriga ainda um sentido diverso relacionado com a justa preocupaccedilatildeo de Lutero da qual partimos

Se ficou estabelecido que a Revelaccedilatildeo se faz presente atraveacutes da pregaccedilatildeo e se pregaccedilatildeo eacute exposiccedilatildeo da palavra revelada entatildeo pode e deve agora ao que precede acrescentar-se o seguinte a Tradiccedilatildeo eacute essencialmente e sempre uma exposiccedilatildeo Natildeo existe de maneira autocircnoma e sim como explicaccedilatildeo como exposiccedilatildeo ldquorelacionada com a Escriturardquo

Isto vale para a pregaccedilatildeo do proacuteprio Jesus Cristo realizaccedilatildeo plena da Revelaccedilatildeo e sua exposiccedilatildeo feita com autoridade A pregaccedilatildeo de Jesus Cristo natildeo aparece como algo absolutamente novo na Escritura Isto eacute como algo ainda natildeo atestado no Antigo Testamento Ela ensina isto sim a essecircncia do que jaacute estava escrito e lhe confere uma vida nova que o simples exegeta natildeo pode comunicar-lhe

O que vale para a mensagem de Cristo que permanece a mesma sob diferentes modalidades de exposiccedilatildeo vale tambeacutem para a pregaccedilatildeo apostoacutelica e a eclesiaacutestica Como ldquoTradiccedilatildeordquo ela deve em uacuteltima anaacutelise ser uma exposiccedilatildeo ldquosegundo a Escriturardquo a ela sujeita e com ela relacionada Sem duacutevida natildeo eacute ela uma exposiccedilatildeo no 24 Estas ideacuteias natildeo podem ser desenvolvidas mais detalhadamente aqui como seria de desejar uma vez que em rigor estamos procurando apenas fundamentar o conceito de Tradiccedilatildeo Em razatildeo da brevidade que me impus contentei-me apenas nas teses precedentes com explanar o assunto ateacute ao ponto em que ficasse patente a relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a ldquoIgrejardquo (cf as teses 4 e 5) Para se descer a maiores detalhes dever-se-ia analisar tambeacutem o conceito de Igreja que supomos conhecido do leitor Para isto cf a nota 6 onde citamos nosso livro sobre o Ofiacutecio e a unidade da Igreja Encontram-se aiacute algumas observaccedilotildees sobre o assunto de que ora tratamos

sentido de mera interpretaccedilatildeo exegeacutetica Mas sim na autoridade espiritual recebida do Senhor a qual se consuma na existecircncia plena da Igreja em sua feacute em sua vida e em seu culto Contudo ela permanece sendo (mais ainda do que o Cristo-evento em que se funda a Igreja) uma ldquoex-posiccedilatildeordquo (Aus-Legung) comprometida com a Histoacuteria e com a Palavra [38] Exprime-se deste modo a sua ligaccedilatildeo com a accedilatildeo concreta de Deus nesta mesma Histoacuteria e em seu caraacuteter de fato histoacuterico uacutenico (o ἑφάπαξ ldquoo ocorrido uma soacute vezrdquo) A realidade cristatilde da Revelaccedilatildeo eacute tatildeo essencial quanto ldquoeternardquo e definitiva Resulta daiacute a unidade entre o Cristo da Feacute e o Jesus da Histoacuteria o Jesus histoacuterico natildeo eacute senatildeo o Cristo da Feacute ainda que a feacute seja sempre algo mais do que a histoacuteria

Segue-se que do mesmo modo que existe um ofiacutecio de custoacutedia da Revelaccedilatildeo por parte da Igreja ofiacutecio por ela mesma atestado existe tambeacutem um ofiacutecio de custoacutedia da mesma Revelaccedilatildeo por parte da exegese que penetra o sentido literal da Escritura e defende a uniatildeo do Logos com a carne contra qualquer perigo de gnose Existe portanto por assim dizer algo como uma autonomia especiacutefica da Escritura como regra objetiva e sob muitos pontos de vista esclarecedora do Magisteacuterio eclesiaacutestico Esta era sem duacutevida uma exigecircncia legiacutetima de Lutero que ainda natildeo foi devidamente acolhida na Igreja catoacutelica por parte do Magisteacuterio cujos limites internos nem sempre foram claramente entendidos

Dever-se-ia partindo daqui salientar uma dupla criteriologia em se tratando da feacute De um lado haacute o que a Igreja antiga chamou de ldquoregra da feacuterdquo norma reguladora da palavra revelada contida na Escritura e sua exposiccedilatildeo Esta praeligscriptio da posse da Escritura como proacutepria segundo Tertuliano exclui a possibilidade de qualquer uso legiacutetimo da mesma Escritura contra a Igreja Por outro lado haacute tambeacutem o limite da littera Scripturaelig ou do sentido literal historicamente fixaacutevel que de acordo com o que ficou dito natildeo constitui nenhum criteacuterio absoluto ou autocircnomo mas sim somente um criteacuterio relativo no confronto da feacute com a ciecircncia O que na Escritura se pode descobrir quer mediante estudo cientiacutefico quer por simples leitura tem a funccedilatildeo de um criteacuterio real a que deve estar atento inclusive o Magisteacuterio em suas explicaccedilotildees Certamente [39] trata-se entatildeo de elementos sub-componentes da ciecircncia que natildeo podem servir para se julgar a feacute mas nela encontram uma instacircncia criacutetica e tecircm tambeacutem um importante papel a exercer o de zelar pela pureza do ἑφάπαξ de tutelar o conteuacutedo da Revelaccedilatildeo e de defender o dualismo histoacuterico carneespiacuterito (ldquodie Sarx der Geschichterdquo) contra os arbiacutetrios da gnose que tende sempre a impor-se

A reformatio na qual estaacute empenhada a Igreja nesta hora histoacuterica tem um papel relevante a desempenhar Eacute a missatildeo de abrir novas perspectivas para o diaacutelogo tentando assim chegar a uma ldquoreformardquo diferente da do passado que culminou com a divisatildeo no seio da Cristandade ocidental Tal missatildeo se exerceraacute em harmonia com o pleno ofiacutecio de testemunho da Igreja que tira seu direito e sua forccedila da presenccedila do Espiacuterito e de Cristo presente em todos os tempos Pois ele eacute sempre o Cristo de agora com a plenitude de seus direitos e de seus poderes Ele eacute quem daacute legitimidade e vigor ao testemunho singular e definitivo da Escritura que por sua vez encontra seu pleno sentido na singularidade da accedilatildeo histoacuterico-salviacutefica de Jesus Cristo Ele deu ao Pai seu Corpo crucificado e dando-se a si mesmo santificou para sempre os que o receberam (cf Hb 1014 727) Ele eacute o Cristo ontem hoje e sempre (Hb 138)

SEGUNDA PARTE

Explicaccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo segundo o Decreto do Conciacutelio de Trento

Parece que a completa elucidaccedilatildeo das razotildees que levaram agrave substituiccedilatildeo do

partim-partim pelo et e consequumlentemente agrave pesquisa dos dados do debate tridentino e de sua preacute-histoacuteria aparentemente favoraacutevel agrave suficiecircncia material da Escritura [40] simplifica indevidamente este problema fazendo-nos perder de vista os proacuteprios antecedentes do Decreto do Conciacutelio de Trento

1 A concepccedilatildeo pneumatoloacutegica da Tradiccedilatildeo no esquema fundamental do Cardeal Cervini

a) O conteuacutedo Um balanccedilo histoacuterico e detalhado do problema em seu conjunto exigiria uma

pesquisa exaustiva que natildeo reduzisse o seu acircmbito como o fez Geiselmann em seu livro25 Natildeo eacute nossa intenccedilatildeo proceder a um exame minucioso do assunto no presente trabalho Aqui soacute seratildeo tratados alguns pontos do debate tridentino com o fim de ampliarmos mais o horizonte de nossas reflexotildees

Fundamental para a compreensatildeo dos debates em pauta bem como do Decreto definitivo do Conciacutelio parece-me ser o Discurso do Cardeal Legado Cervini datado de 18 de fevereiro de 1546 [41] cujas linhas gerais se patenteiam tanto no Decreto como em outras decisotildees conciliares26

Tem o discurso de Cervini o meacuterito de mostrar as linhas diretrizes do Decreto de maneira mais clara do que aparecem estas na uacuteltima redaccedilatildeo do mesmo onde elas se diluem muito devido a uma seacuterie de variadas implicaccedilotildees Eacute ainda de grande auxiacutelio para o entendimento do referido discurso uma carta dos Cardeais Legados ao Cardeal Alexandre Farnese de 28 de fevereiro de 1546 Esta carta revela conteuacutedo idecircntico ndash eacute certamente inspirada pelo mesmo Cervini ndash e oferece ainda alguns outros

25 Eacute lamentaacutevel que Geiselmann em sua anaacutelise da contribuiccedilatildeo medieval sobre este assunto se tenha apoiado apenas em argumentos de segunda matildeo portanto de valor histoacuterico discutiacutevel Queira o leitor ver minhas observaccedilotildees a este respeito in Theol-prakt Quartalschrift 1963 p224-227 As novas (e temperamentais) invectivas de Geiselmann in TThQu 144 (1964) p 31-69 em nada modificaram a minha posiccedilatildeo de vez que natildeo trazem nenhuma contribuiccedilatildeo vaacutelida ao assunto Precioso ao contraacuterio eacute o trabalho de Y CONGAR La Tradition et les traditionshellip Essai historique Paris 1960 Importante eacute tambeacutem a obra de J BEUMER Die muumlndliche uumlberlieferung als Glaubensquelle Friburgo 1962 A respeito do Conciacutelio de Trento cf sobretudo aleacutem do estudo fundamental de JEDIN o artigo de E ORTIGUES Escriture et Traditions apostoliques au Concilie de Trente in RSR 36 (1949) p 271-299 K D SCHMIDT Studien zur Geschichate des Konzilis von Trient Tubinga 1925 p 152-209 26 O discurso nos foi transmitido em duas redaccedilotildees A primeira mais curta encontra-se nas Atas do Conciacutelio in CT V 11 A segunda faz parte do diaacuterio de Massarelli (Diarium III) in CT I p484 Quanto ao conteuacutedo os dois textos se completam Na anaacutelise que aqui ensaiamos as duas versotildees satildeo comparadas entre si de modo a fazerem um todo Sobre a posiccedilatildeo de Cervini no Conciacutelio cf H JEDIN Geschichte des Konzils von Trient II Friburgo 1957 p38-40 A descriccedilatildeo do desenrolar histoacuterico dos debates acha-se em JEDIN op cit p42-82 e supomo-la conhecida do leitor de vez que serve de base para a anaacutelise teoloacutegica do Decreto tridentino

esclarecimentos Cervini sustenta no citado discurso que existem trecircs princiacutepios e fundamentos de nossa feacute

1) Os livros sagrados escritos sob a inspiraccedilatildeo do Espiacuterito Santo 2) O Evangelho que Nosso Senhor natildeo escreveu mas ensinou oralmente e

implantou nos coraccedilotildees Parte do Evangelho foi escrita mais tarde pelos Evangelistas enquanto muita coisa foi simplesmente confiada aos coraccedilotildees dos fieacuteis

3) Porque o Filho de Deus natildeo ia permanecer sempre entre noacutes enviou ele o Espiacuterito Santo que haveria de revelar os misteacuterios no iacutentimo dos fieacuteis e de ensinar agrave Igreja toda a verdade ateacute ao fim dos tempos27

[43] Numa segunda redaccedilatildeo mais detalhada do discurso estas mesmas ideacuteias satildeo

desenvolvidas mais amplamente Aiacute lemos que a Revelaccedilatildeo se apresentou de modo diferente em diversos tempos

1) Nos Patriarcas cuja feacute eacute atestada na Escritura a que chamamos de Antigo Testamento

2) Em Jesus Cristo que implantou o seu Evangelho natildeo por escrito mas oralmente natildeo in charta mas in corde Das coisas que emanaram de Cristo (quaelig a Cristo emanarunt) algumas foram escritas outras permaneceram nos coraccedilotildees dos homens (quaeligdam in cordibus hominum relicta fuerunt) Todo o Evangelho de Cristo que consta desta dupla modalidade forma (tendo como primeiro princiacutepio o Antigo Testamento) o secundum prindipium fidei nostraelig

3) Daiacute surge o terceiro princiacutepio (tertium autem) porque o Filho de Deus natildeo iria permanecer sempre entre noacutes enviou ele ao mundo o Espiacuterito Santo que haveria de explicar os misteacuterios de Deus e tudo o que fosse ainda obscuro para os homens28 De modo semelhante a citada carta ao Cardeal Farnese fala de dois passos (due

passi) Um eacute que a Revelaccedilatildeo de Nosso Senhor natildeo foi totalmente escrita mas permaneceu em parte contida nos coraccedilotildees dos homens e na Tradiccedilatildeo da Igreja O outro [43] passo consiste em confirmar ldquoquello che egrave suggerito lo Spirito Santo in la Chiesa maxime medianti i concilij doppo lAscensione in cielo del Signorerdquo29

Notamos logo que contrariamente ao que esperaacutevamos natildeo dois mas trecircs satildeo os princiacutepios apontados a Escritura o Evangelho e a Revelaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

27 CT V 11 helliptria esse principia et fundamenta nostrae fidei primum libros sacros secundum esse evangelium quod Christus Dominus Noster non scripsit sed ore docuit et in cordibus illud plantavit cujus evangelii nonnulla evangelistaelig scripto mandarunt multa quoque relicta sunt in cordibus hominum Tertium quia non semper filius Dei corporaliter nobiscum mansurus erat misit Spiritum Sanctum qui in cordibus fidelium secreta Dei revelaret et ecclesiam quotidie et usque consummationem saeligculi doceret omnem veritatem et si quid in mentibus hominum dubii occurrisset declararet 28 CT I 484 Digna de nota eacute ainda a foacutermula contida na paacutegina 48514-16 nihil tamen inter scripturas sacras et apostolicas traditianes differt illaelig enim scriptaelig hae per insinuationem habentur utraeque tamen a Spiritu Sancto eodem modo emanataelig Confira-se com CT V 11 19 ab eodem Spiritu et illos (scilicet libros) et istas (scilicet traditiones) descendisse 29 CT X 373

Eacute portanto necessaacuterio observar que sob o termo ldquoEscriturardquo se entende o Antigo Testamento e que aleacutem deste (que eacute Escritura em sentido proacuteprio) aparece como segundo princiacutepio o Evangelho apresentaccedilatildeo do Cristo-evento O Evangelho por sua vez abrange o que estaacute escrito e o que natildeo estaacute escrito mas sim apenas insculpido no coraccedilatildeo dos crentes Deste modo o segundo princiacutepio representa uma vantagem pneumaacutetica sobre o que estaacute escrito o Evangelho eacute nesta concepccedilatildeo algo diferente da letra (Escritura) e soacute em parte vem escrito (Isto natildeo deve ser entendido no sentido de divisatildeo das verdades da feacute fenocircmeno denunciado ldquocom horrorrdquo por Geiselmann Ao contraacuterio Entenda-se apenas no sentido de diferente grau de dignidade no modo de exprimir-se) Em rigor o Evangelho como tal soacute pode ser escrito em parte se considerarmos a sua essecircncia

Finalmente ndash o que eacute muito de se admirar ndash segue-se como terceiro princiacutepio a accedilatildeo visiacutevel do Espiacuterito Santo em todo o tempo da Igreja

Admitimos portanto que o que noacutes geralmente chamamos de Tradiccedilatildeo natildeo aparece aqui como um soacute princiacutepio Biparte-se antes em dois princiacutepios intimamente ligados o ldquoEvangelhordquo princiacutepio apenas em parte identificaacutevel com a Escritura e a accedilatildeo do Espiacuterito Santo no tempo da Igreja Ademais podemos observar que a Escritura do Novo Testamento natildeo aparece como um princiacutepio ao lado da Revelaccedilatildeo apostoacutelica Muito menos como [44] eacute o nosso caso se apresenta a Escritura neotestamentaacuteria juntamente com a veterotestamentaacuteria como uma grandeza uacutenica uma ldquoEscriturardquo soacute agrave qual se poderia contrapor a ldquoTradiccedilatildeordquo como uma segunda grandeza O Novo Testamento em seu conjunto aparece como um segundo e mais amplo princiacutepio ou seja o Evangelho que como tal se opotildee de um lado ao Antigo Testamento e de outro agrave projeccedilatildeo histoacuterica do tempo da Igreja Sua unidade interna eacute evidentemente mais forte e importante do que a sua divisatildeo em escrito e natildeo-escrito Assim o Evangelho como um soacute princiacutepio pode ser contraposto ao Antigo Testamento a despeito desta dupla formalidade A impossibilidade de se representar o Novo Testamento como Escritura impossibilidade esta demonstrada por Satildeo Paulo e pelos primeiros seacuteculos cristatildeos eacute aqui claramente revelada

Ainda uma observaccedilatildeo relativa ao texto a que vimos nos referindo Em nenhum dos dois pontos por noacutes citados no estudo da Tradiccedilatildeo isto eacute nem no elemento contido no primeiro nem no apresentado no terceiro princiacutepio figura a Tradiccedilatildeo como verbal Em ambos os casos ao contraacuterio trata-se mais da Tradiccedilatildeo real com prevalecircncia da realidade sobre as palavras que a atestam Este fato que estaacute claro no terceiro princiacutepio o pneumatoloacutegico vale tambeacutem em relaccedilatildeo agrave implantaccedilatildeo do Evangelho nos coraccedilotildees contida no segundo princiacutepio Tal implantaccedilatildeo vai muito aleacutem do que se encontra expresso na letra da Escritura

Que papel tenham estas ideacuteias exercido nas discussotildees do Conciacutelio pode-se concluir tambeacutem das auctoritates citadas por Cervini entre as quais figuram Jo 16 12 (hellipSpiritus Sanctus suggerethellip) e Fl 3 15 (Quicumque perfecti sumus haeligc sentiamus et si quid aliter sentitis haeligc quoque Deus vobis revelabit) Ambos estes textos satildeo de teor acentuadamente [45] pneumatoloacutegico-presencial30 Que tais ideacuteias natildeo eram

30 CT V 14 e 15 Um exame profundo das auctoritates quer da Escritura quer entre os Santos Padres que neste particular satildeo favoraacuteveis agrave Tradiccedilatildeo seria em si conclusivo para a elaboraccedilatildeo do conceito

estranhas aos Padres conciliares deduz-se ainda de uma seacuterie de outras referecircncias Assim ouvimos o Bispo de Aqui dizer que aleacutem da Sagrada Escritura existe muita coisa na Igreja de Deus que vindo dos Apoacutestolos e passando de geraccedilatildeo a geraccedilatildeo chegou ateacute noacutes assim como muitas outras quaelig etsi scripta Apostoli nobis non reliquerunt per Spiritus Sancti revelationem nobis (tradita) sunt (Tradita estaacute aqui por revelata) 31 Partindo daiacute se poderia descrever a Tradiccedilatildeo justamente como o componente pneumatoloacutegico do Cristo-evento b) A influecircncia do esquema de Cervini em diversas decisotildees conciliares

Eacute verdade que esta concepccedilatildeo tripartida aparece muito atenuada no Decreto

oficial sobre a Tradiccedilatildeo Que poreacutem em suas linhas fundamentais natildeo tenha ela sido de modo nenhum [46] abandonada mostram-no duas outras passagens nas quais o Conciacutelio faz uso por assim dizer in actu das ideacuteias aqui expressas32 Assim na Introduccedilatildeo ao Decreto sobre a Eucaristia (Denz 873) se lecirc Sacrosancta Synodus sanamhellipdoctrinam tradens quam semper catholica Ecclesia ab ipso Jesu Christo Domino Nostro et eius apostolis erudita atque a Spiritu Sancto illi omnem veritatem in dies suggerente (Jo 1416) edocta retinuithellip

Aqui a accedilatildeo proacutepria do Conciacutelio eacute descrita como tradere e a este tradere eacute atribuiacutedo um duplo fundamento De um lado o ensino de Jesus e dos Apoacutestolos (Note-se que este ponto corresponde ao Evangelho segundo a concepccedilatildeo de Cervini E de certo modo tambeacutem pela citaccedilatildeo de Jesus e dos Apoacutestolos se reconhece a dupla modalidade do Evangelho como escrito e como inserido nos coraccedilotildees) De outro lado o ensino dado pelo Espiacuterito Santo que conduz agrave verdade in dies isto eacute no de correr do tempo futuro

O outro texto que pode ser aduzido aqui como prova do que afirmamos encontra-se no Preacircmbulo do Decreto sobre o Purgatoacuterio (Denz 983) Aiacute se lecirc hellipCatholica Ecclesia Spiritu Sancto edocta ex Sacris Litteris et antiqua Patrum traditione in sacris Conciliis et novissime in hac Synodo docuerit A descriccedilatildeo da accedilatildeo proacutepria do

aqui exposto H HOLSTEIN procurou fazer o cotejo destas auctoritates e fecirc-lo de modo admiraacutevel em seu artigo La Tradition dapregraves le Concile de Trente (RSR 47 1959 p367-390 e em particular para o caso em questatildeo a p375) Ele encontra nos textos estudados duas linhas de tendecircncias A linha de Santo Irineu para a qual o testemunho dos Apoacutestolos eacute o de sua personalidade de sua vida e de seu ofiacutecio Aleacutem desta o grupo composto de Tertuliano Cipriano Basiacutelio e Agostinho forma uma corrente que se poderia denominar ldquocerimonialrdquo Oriacutegenes se enquadra em ambos os grupos Existe entre os autores estudados uma seacuterie de textos que se referem agraves observationes consuetudines institutiones e que levam a entender-se a Tradiccedilatildeo neste mesmo sentido Aiacute se vecircem tambeacutem textos que sublinham o aspecto natildeo-escrito do Evangelho enquanto insculpido no coraccedilatildeo dos fieacuteis e aleacutem disso textos que apontam a Igreja como o ldquolugarrdquo da verdade cristatilde 31 CT I 483 (18 de fevereiro de 1546) Em 26 de fevereiro (CT V 18) encontramos Cervini a tratar de novo deste assunto Cf tambeacutem um pronunciamento do Bispo de Fano (CT V 10) nestes termos Cum jam receperimus Scripturas Sacras necessario recipiendaelig sunt traditiones quaelig ab eodem Spiritu Sancto quo scripturaelig dictataelig sunthellip 32 Disto me adverti pela primeira vez atraveacutes de um estudo realizado sob a minha orientaccedilatildeo por CHR LIMBACR a quem sou devedor de muitas informaccedilotildees bibliograacuteficas

Conciacutelio como tradere encontra-se ainda nas declaraccedilotildees sobre o Sacramento da Extrema-Unccedilatildeo (Denz 910)

Finalmente a triacuteplice divisatildeo deixa-se insinuar nas entrelinhas do Decreto sobre a Tradiccedilatildeo embora obscurecida e diluiacuteda por uma seacuterie de acreacutescimos e citaccedilotildees a ele adicionados por outros motivos O Decreto da Tradiccedilatildeo com efeito [47]

1) Fala do Evangelho prometido pelos Profetas na Escritura e refere-se a esta em sentido estrito quer antes quer depois do Antigo Testamento

2) Fala da promulgaccedilatildeo por Cristo do Evangelho que foi transmitido pelos Apoacutestolos sob dupla forma oral e escrita Desta maneira o que natildeo ocorre no exemplo de Cervini aparece aqui antes de tudo o componente pneumatoloacutegico unido com o componente apostoacutelico a ponto de se distinguirem duas modalidades de Tradiccedilatildeo apostoacutelica a que remonta a Cristo e a que remonta ao envio do Espiacuterito Santo Pode-se assim estabelecer que em oposiccedilatildeo ao esquema de Cervini haacute um certo processo de historicizaccedilatildeo que salienta a relaccedilatildeo com o comeccedilo histoacuterico e igualmente parece deslocar o acento da tradiccedilatildeo real para a verbal

3) No epiacutelogo desta parte do Decreto da Tradiccedilatildeo que vimos analisando de novo eacute considerada a ideacuteia da Sagrada Escritura O conceito de Tradiccedilatildeo eacute entatildeo formulado em definitivo e descrito como vel oretenus a Christo vel a Spiritu Sancto dictatas et continua successione in Ecclesia catholica conservatas A referecircncia aos Apoacutestolos eacute omitida Pode-se na verdade considerar tudo isto como uma volta ao que foi dito antes Evidentemente a tradiccedilatildeo ditada pelos Apoacutestolos eacute citada de novo (A expressatildeo continua successione insinua-o) Contudo permanece sempre ainda certa indeterminaccedilatildeo ficando aberta a possibilidade de se encontrar aqui o vestiacutegio do terceiro componente de Cervini o princiacutepio pneumaacutetico propriamente dito Eacute tambeacutem claro que esta ideacuteia eacute discreta sendo adotada uma posiccedilatildeo mais acentuadamente histoacuterica Se agora lanccedilarmos os olhos sobre o que vimos considerando ateacute aqui surgiratildeo

inevitavelmente perguntas qual eacute realmente o sentido proacuteprio da concepccedilatildeo pneumatoloacutegica Como poderia ser perfeitamente entendida a ideacuteia a noacutes estranha de uma revelatio prolongada no tempo em face da unicidade e do caraacuteter [48] histoacuterico da Revelaccedilatildeo que evidentemente era conhecido tanto de Cervini quanto dos Santos Padres e teoacutelogos medievais33

Antes de examinarmos isto devemos esclarecer rapidamente os principais motivos que inspiraram o Decreto tridentino sobre a Escritura e a Tradiccedilatildeo deixando nele um tanto encoberta a concepccedilatildeo pessoal de Cervini Que opiniotildees de teoacutelogos teratildeo intervindo aqui chegando a ser em parte impressas no texto definitivo que resultou do cotejo de muitos pronunciamentos diversos Uma exposiccedilatildeo detalhada deste ponto exorbitaria do acircmbito de nossa anaacutelise Contentemo-nos com umas poucas observaccedilotildees sumaacuterias 33 Sobre este assunto tentei fazer um breve comentaacuterio no meu trabalho ldquoOffenbarung-Schrift-Uberlieferungrdquo in TThZ 67 (1958) p13-27 Cf J BEUMER ldquoDer theoretische Beitrag der Frnhscholastik zum Problem des Dogmenfortschrittsrdquo in ZkTh 72 (1952) p205-226 J de CHELLINCK Pour lrsquohistoire du mot ldquorevelarerdquo in RSR 6 (1916) p149-157

2 Relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a vida da Igreja

em diversas passagens do debate tridentino

Uma primeira seacuterie de motivos entre os quais se compreendem diversos pronunciamentos agraves vezes muito contrastantes em seu aparato exterior patenteia-se na ideacuteia de tradiccedilotildees expressa no Decreto de duas maneiras a) - per manus traditaelig ad nos usque pervenerunt b) - continua successione in Ecclesia catholico conservatas

O que se ocultaraacute sob estas duas foacutermulas que o historiador de hoje tem dificuldades em aceitar justamente por causa do historicismo nelas impliacutecito Podemos dizer que um decisivo papel exerceu aqui o pensamento que sempre aparecia nos debates a saber que as tradiccedilotildees satildeo variaacuteveis que muitas delas foram abolidas pelos Apoacutestolos e que por outro lado se [49] introduziram tradiccedilotildees eclesiaacutesticas que natildeo mais seriam abolidas34 Esta ideacuteia de Tradiccedilatildeo de certo modo se torna clara no tratado escrito sobre o mesmo assunto por Seripando para uso dos Padres Conciliares Seripando fala das Tradiccedilotildees escritas inseridas na Escritura como as claacuteusulas de Tiago o costume de as mulheres se cobrirem com um veacuteu a legislaccedilatildeo sobre o matrimocircnio contida em 1Cor 7 etc E o autor adverte que estas praacuteticas foram abolidas Isto porque embora associadas agrave palavra de Deus na Escritura dela ldquomuito diferemrdquo pois a palavra divina [50] de modo nenhum poderia ser abolida A estas tradiccedilotildees

34 Cabe aqui aduzir uma nova intervenccedilatildeo de Cervini datada de 26 de fevereiro de 1546 (CT I 33 e V 18) onde ele diz que nem todas as tradiccedilotildees procedentes dos Apoacutestolos devem ser conservadas mas somente as que ab Ecclesia receptaelig ad nos usque pervenerunt (V 18) Esta afirmaccedilatildeo anterior agrave formulaccedilatildeo dogmaacutetica feita pelo Concilio deve igualmente ser tida na conta de um autecircntico comentaacuterio do Decreto Aiacute se acentua como condiccedilatildeo essencial das tradiccedilotildees a receptio ecclesiaelig Vem ainda referida uma intervenccedilatildeo do Bispo de Bertinoro em data de 23 de marccedilo (I p 523) na qual ele sublinha que as tradiccedilotildees escritas por vezes foram mudadas Jaacute entre as natildeo-escritas umas foram mudadas e outras natildeo como por exemplo o rito de adicionar aacutegua ao vinho a Crisma a confissatildeo auricular O Bispo de Bertinoro acrescenta que por outro lado alguns pontos existem que permaneceram inteiramente inalterados tais como a crenccedila no descensus ad inferos na virgindade perpeacutetua de Maria a substituiccedilatildeo da observacircncia do saacutebado pela do domingo Temos depois um pronunciamento do Bispo de Bitonto datado de 27 de marccedilo (I 39) Este bispo era de parecer que algumas coisas foram transmitidas pelos Apoacutestolos com a finalidade de serem perpetuamente conservadas (como pertencentes ao depoacutesito da feacute) outras caiacuteram em desuso (como as claacuteusulas de Tiago) e outras enfim foram apenas aconselhadas Assim mesmo na Escritura algumas coisas haacute que foram escritas mas natildeo recebidas em uso por serem mateacuteria de mero conselho Por exemplo ldquose algueacutem te pedir a tuacutenica daacute-lhe tambeacutem o paacutelio se algueacutem te esbofetear numa face oferece-lhe tambeacutem a outrardquo Sem duacutevida excelente ilustraccedilatildeo do sermatildeo da montanha Finalmente consideraccedilotildees idecircnticas podemos encontrar na obra citada de LEJAY Eis outra amostra tirada do discurso de 23 de fevereiro (CT V 13) Nam illaelig (scil traditiones) quaelig ad fidem pertinent eadem sunt recipiendaelig auctoritate qua recipitur evangelium alia autem non ita eum earum plurimaelig immutataelig fuerint ut de bigamis de esu sanguinis et similia De modo semelhante aliaacutes fala tambeacutem Bonuccio (I 525 a 23 de marccedilo de 1546 ecclesia traditiones apostolorum quandoque mutavit verbum autem Dei nunquam mutavit neque mutare potest

Seripando opotildee as natildeo referidas na Biacuteblia e que ora satildeo apostoacutelicas ou oriundas de Conciacutelios universais e aceitas por toda a Igreja ora satildeo particulares e muito variaacuteveis35

Este texto nos leva a uma surpreendente conclusatildeo para Seripando e muitos outros Padres tridentinos36existem tradiccedilotildees na Escritura ldquoTradiccedilatildeordquo natildeo significa o natildeo-escrito Existe quer dentro da Escritura quer fora dela Isto nos conduz a outra pergunta em que consiste para os referidos Padres a essecircncia da tradiccedilatildeo se o que a constitui natildeo eacute o fato de natildeo ser escrita37 Em outros termos como pode a tradiccedilatildeo ser definida positivamente se ela natildeo pode ser suficientemente determinada pela ideacuteia negativa de algo natildeo-escrito

Haacute uma seacuterie de respostas para esta pergunta O proacuteprio Seripando daacute a seguinte definiccedilatildeo Traditiones hoc est Apostolorum seu sanctorum Patrum sanctae et salutares constitutiones38 Mais clara ainda eacute a afirmaccedilatildeo de Cervini citada por Massarelli A objeccedilatildeo do Bispo de Chioggia que aduzia a opiniatildeo de Agostinho de que tudo o que eacute necessaacuterio para a salvaccedilatildeo estava escrito na Biacuteblia respondia Cervini da seguinte maneira Verba illa (isto eacute de Santo Agostinho) formaliter intelligi debent scilicet ad fidem accipiendam ut salvi fiamus Quo vero ad mores et christianam vitam instituendam certo non omnia scripta sunt

[51] E de novo recorre agraves provas tiradas de Jo 1526 e 1426 E indica o princiacutepio pneumatoloacutegico39 O que eacute mais importante eacute que a Tradiccedilatildeo se refere agrave institutio vitaelig agrave presenccedila atuante da Palavra revelada na existecircncia cristatilde Tradiccedilatildeo eacute noutros termos a eficaacutecia da palavra de Deus Sem ela a palavra ficaria esteacuteril 35 Seripando De traditionibus (fevereiro ou marccedilo de 1546) CT XII p517-521 e principalmente a p 521 As expressotildees desta uacuteltima paacutegina chocam-se com a ideacuteia de Cervini sobre a receptio ecclesiaelig 36 Cf o texto citado na nota 11 37 No texto definitivo do Decreto esta ideacuteia natildeo aparece mais Aqui poreacutem com esta primeira designaccedilatildeo expliacutecita da Tradiccedilatildeo vem expressamente acentuado o contraste entre in libris scriptis et sine scripto traditionibus Na segunda redaccedilatildeo o sentido expliacutecito da palavra Tradiccedilatildeo natildeo eacute tatildeo exclusivo Contudo apresenta igual matiz ao se confrontarem as expressotildees omnes libroshellipnec non traditiones ipsas Portanto a ideacuteia positiva da Tradiccedilatildeo que serve de base a esta anaacutelise natildeo deixou de influenciar na redaccedilatildeo do Decreto 38 CT XII 517 39 CT I 494 (26 de fevereiro de 1546) A citada palavra de Santo Agostinho teve o seu papel a desempenhar na discussatildeo em curso Seripando por exemplo a ela se referiu (De traditionibus CT XII 521 47-53) Pensandum denique ne in traditionibus externis vera religio et salutis spes statuatur de quibus Augustinus Omnia quaelig pertinent ad veram religionem quaeligrendam et tenendam divina Scriptura non acuit Conceda-se que nem tudo foi escrito (veja-se Jo 2125) Todavia electa sunt autem quaelig scriberentur quaelig saluti credentium sufficere videbantur Mais do que nos debates do tridentino encontramos aqui um verdadeiro postulado dos Reformadores ldquonatildeo adotar costumes exteriores mas buscar os meios definitivos de salvaccedilatildeo na palavra da Escriturardquo A ldquosuficiecircnciardquo da Escritura de que aqui se fala eacute na verdade algo diverso da suficiecircncia material da mesma Escritura defendida por Geiselmann em sentido muito mais radical Infelizmente ainda natildeo se quis levar na devida consideraccedilatildeo o texto de Santo Agostinho (CT I 494 sugere De doctrina christiana II 9 e De pecc mero et rem II 59) Muito apropriadas nesta ordem de ideacuteias satildeo as observaccedilotildees de H SCHAUF ldquoSchrift und Traditionrdquo in Antonianum 39 (1964) p200-209 feitas no chamado Encontro de Duumlsseldorf Nos textos citados por Schauf com base em Agostinho eacute afirmada a suficiecircncia da Escritura para a salvaccedilatildeo Eacute contudo contestada a sua suficiecircncia para a Igreja em geral De fato esta alternativa parece muito mais vaacutelida e fundamental agrave luz dos postulados dos Reformadores do que a alternativa entre a suficiecircncia ou insuficiecircncia material da Escritura

Na mesma linha de ideacuteias seguem-se duas outras seacuteries de pronunciamentos Vimos na introduccedilatildeo agrave parte anterior que a discussatildeo dogmaacutetica da ideacuteia de

Tradiccedilatildeo foi em parte prejudicada pela questatildeo do meacutetodo a seguir no Conciacutelio dever-se-ia abordar primeiro a reformatio a reforma praacutetica da Igreja como queria o ldquoKaiserrdquo Ou primeiro discutir a questatildeo dogmaacutetica como preferia o Papa40

[52] Este problema do meacutetodo embora resolvido no debate que entatildeo surgiu natildeo afetou diretamente a questatildeo da Tradiccedilatildeo como tal Mas como de fato estas duas questotildees ficaram ligadas entre si daiacute resultou que muitos oradores transformaram a questatildeo do meacutetodo (se se deveria falar dos abusos ou da Tradiccedilatildeo) em parte de sua argumentaccedilatildeo em torno do assunto em pauta41 O problema abusus e o problema Traditio ficaram de tal maneira associados na ocasiatildeo que pareciam formar no fundo um soacute assunto Por isso os oradores ora falavam em sentido positivo ora se pronunciavam em sentido negativo Isto correspondia tambeacutem ao propoacutesito reformista do Conciacutelio as traditiones representavam os abusus aos quais a Igreja se opunha Os Padres estavam cocircnscios de que condenar as traditiones era condenar Os usus ecclesiaelig o modo como a Igreja vivia a sua vida naquela eacutepoca

A outra seacuterie de pronunciamentos que se inclinavam ao mesmo sentido encontramo-la nas proposiccedilotildees que a auctoritas da Igreja apresenta como definitivas indicando uma iacutentima relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a institutio christiana 42

[53] Podemos agora retomar ao nosso ponto de partida e dar resposta agrave pergunta que propriamente significa a foacutermula ad nos usque pervenerunt Objetivamente natildeo se trata aqui de um historicismo que a foacutermula parece expressar Ao contraacuterio Trata-se da fidelidade perseverante da Igreja agrave institutio vitaelig christianaelig da legiacutetima forma de vida cristatilde em concreto no tempo presente da Igreja da institutio christiana que coloca a Escritura em primeiro lugar e que como tal isto eacute como vida decorrente da Escritura eacute fundamentalmente apostoacutelica embora tambeacutem sujeita a mudanccedilas como tudo o que eacute vivo

3 A Tradiccedilatildeo e o dogma eclesiaacutestico

40 Sobre o debate em torno da questatildeo do meacutetodo cf mais uma vez JEDIN op cit p9-82 e outras 41 Assim jaacute no discurso de Cervini antes analisado (CT I 484) no qual ele recorda o dilema do Conciacutelio se nos voltarmos contra as tradiccedilotildees ficaratildeo admirados os Padres Conciliares quasi reformationem fugiamus si ipsam reformationem sumimus iterum objicient traditiones relinquendas non esse Idecircntica era a situaccedilatildeo em que se encontrava o Bispo de Astorga nas duas intervenccedilotildees que fez no dia 23 de fevereiro de 1546 (CT V 13 e 19) segundo Seripando (I 484) helliptraditiones prius pertractandas consulit tantam enim conformitatem abusus qui ex sacris libris descendunt cum iis qui a traditionibus orti sunt habent ut sacris libris et traditionibus absolutis duo illa abusuum genera simul pertractari valeant Segundo Bonuccio (I 484) antes de tudo dever-se-ia tratar das Sagradas Escrituras dos cacircnones apostoacutelicos dos Conciacutelios gerais e das decretais pontifiacutecias Hisque ilusceptis ad abusus ex eisdem dependentes devenire 42 Assim principalmente de acordo com Afonso de Castro (CT I 484) Quoniam ultra traditiones apostolicas ecclesiae auctoritatem habemus quaelig ecclesiaelig auctoritas tonta apud nos est ut aliqui eam maioris roboris quam sacros libros esse sentiant Cf igualmente CT I 491 45 Na mesma linha pode-se ver uma seacuterie de pronunciamentos na citada obra de LEJAY Cf CT XII 524 (Tratado De traditionibus ecclesiaelig fevereiro ou marccedilo de 1546)

Uma segunda seacuterie de motivos eacute expressa no Decreto pela foacutermula traditiones tum ad fidem tum ad mores pertinentes Se como vimos a ideacuteia de Tradiccedilatildeo aparece muito limitada naquilo que os Padres conciliares chamam consuetudines observationes institutiones por outro lado o Procurador do Cardeal de Augsburgo Claudio Lejay SJ se fez o porta-voz de uma expressatildeo que em oposiccedilatildeo agraves traditiones caeligremoniales estabeleceu justamente o sentido da tradiccedilatildeo contida na feacute Seu tratado sobre a Tradiccedilatildeo composto para uso dos Padres conciliares inclui tambeacutem a foacutermula que foi adotada pelo Conciacutelio Aiacute se diz Denique multas veritates tum ad fidem tum ad mores pertinentes Ecclesia novit quas Scriptura aperte et expresse non continet Ele cita como exemplos as palavras persona essentia trinitas no Tratado da Santiacutessima Trindade consubstantialitas na Cristologia do Logos duas naturezas uma soacute Pessoa referentes ao dogma definido pelo Conciacutelio de Calcedocircnia E ainda Cristo Filho uacutenico de Maria duas vontades na uacutenica Pessoa de Cristo uma alma racional aleacutem do espiacuterito divino em Cristo Ana matildee de Maria o costume de fazer sinais da cruz a santificaccedilatildeo do domingo a maneira de rezar com face voltada [54] para o Oriente tudo isto ideacuteias e fatos da tradiccedilatildeo conciliar e da piedade cristatilde43

Cervini que aprovou o discurso de Lejay de 23 de fevereiro de 154644 pocircde dificilmente conciliar esta posiccedilatildeo com a sua expressa na jaacute citada carta ao Cardeal Farnese onde como vimos ele diz que o Espiacuterito Santo falou na Igreja e depois da Ascensatildeo do Senhor fala ainda maxime medianti i concilii45 Ele aiacute viu publicamente sublinhado o fato de que aquele ldquomaisrdquo que a Igreja viva representa em relaccedilatildeo agrave palavra meramente escrita natildeo se referia e natildeo se refere apenas agrave vita instituenda ou como ele prefere agrave caeligremonialia Refere-se tambeacutem agrave essentialia fidei que antes de tudo plenamente se expressam na Tradiccedilatildeo Tambeacutem aqui como se vecirc o interesse dominante natildeo estaacute na apresentaccedilatildeo historicista do assunto a partir do iniacutecio da Igreja mas na ideacuteia de que a influecircncia da Tradiccedilatildeo sobretudo atraveacutes da praxe conciliar eacute de fundamental importacircncia para a feacute para a doutrina crida e natildeo apenas para a piedade viva ou a caeligremonialia

4 O sentido do Decreto tridentino

Se recapitularmos o que ateacute agora dissemos veremos que no conjunto facilmente se podem reconhecer trecircs diferentes concepccedilotildees teoloacutegicas unidas entre si no texto definitivo do Decreto sobre a Tradiccedilatildeo Unidas mas natildeo equiparadas umas agraves outras Pelo contraacuterio apesar de sua grande diferenccedila foram elas apenas [55] mais ou menos justapostas e de novo por forccedila de uma tendecircncia comum relacionadas entre si

1 A concepccedilatildeo de Cervini que designamos como pneumatoloacutegica Com sua doutrina sobre os trecircs principia fidei insiste ele no caraacuteter dinacircmico do Cristo-evento

43 CT XII 523 LEJAY baseia-se evidentemente em listas de tradiccedilotildees confeccionadas naquele tempo (Cf ECK DRIEDO CANO BOTO NOGAROLA) Cf a este respeito Y CONGAR ldquoTraditions apostoliques non eacutecrites et suffisance de lEscrituresrdquo in Istina 6 (1959) p219-306 e principalmente a paacutegina 289 44 CT V 14 45 CT X 373

presente na Igreja Entende assim a Tradiccedilatildeo primariamente como a realidade espiritual da institutio vitaelig christianaelig

2 A concepccedilatildeo que podemos chamar de cerimonial Esta entende a Tradiccedilatildeo essencialmente como a seacuterie de consuetudines existentes ao lado da feacute como os usus ecclesiaelig que os Reformadores falsamente pretendem abolir como abusus Esta concepccedilatildeo chega a condenar a dignidade e Antiguumlidade apostoacutelica das tradiccedilotildees Sua ideacuteia eacute limitada pelo ad nos usque pervenerunt que inclui possibilidade de variar da parte das tradiccedilotildees donde a necessidade de reduccedilotildees Com os termos pervenire e conservare a recepccedilatildeo por parte da Igreja eacute considerada criteacuterio adicional ao lado da Antiguumlidade

3 A concepccedilatildeo que talvez possamos denominar dogmaacutetica Em oposiccedilatildeo agrave fixidez da ideacuteia de Tradiccedilatildeo reduzida agrave consuetudo salienta esta terceira hipoacutetese a extensatildeo do fenocircmeno Tradiccedilatildeo tambeacutem ao acircmbito da fides

Estas trecircs concepccedilotildees deram forma ao texto do Decreto de tal modo que as suas

linhas mestras derivam de Cervini e todo o texto deve ser entendido agrave luz de suas ideacuteias Contudo em duas passagens isto eacute no pervenerunt e no conservatas haacute influecircncia da segunda concepccedilatildeo enquanto no tum ad fidem tum ad mores haacute influecircncia da terceira

Em face destas trecircs concepccedilotildees das quais na realidade existem diversas variantes que tomadas em conjunto satildeo a expressatildeo das ideacuteias dominantes adotadas aparecem as teses de Bonuccio e de Nacchianti tatildeo postas em evidecircncia por Geiselmann como sentenccedilas contraacuterias De fato o parecer de Bonuccio claramente [56] se opotildee agrave segunda concepccedilatildeo (contra a supervalorizaccedilatildeo das consuetudines natildeo per pietatis affectus) ao passo que Nacchianti se levanta antes contra a terceira posiccedilatildeo e salienta a suficiecircncia da feacute recebida por meio da Escritura46

Seria de notar-se ainda que as concepccedilotildees segunda e terceira tecircm algo em comum Ambas opotildeem agrave visatildeo pneumatoloacutegica de Cervini da salvaccedilatildeo sempre presente uma visatildeo mais historicista relacionada com o prolongamento da salvaccedilatildeo operada uma soacute vez ou seja o ἑφάπαξ Na realidade deve-se dizer que embora de um lado tanto a visatildeo presencial de Cervini como tambeacutem a visatildeo historicista do outro grupo se consideradas isoladamente cada qual de per si sejam perigosas se natildeo insustentaacuteveis 46 Aliaacutes de acordo com uma informaccedilatildeo de Cervini parece que o Bispo de Chioggia finalmente renunciou agrave sua tese da suficiecircncia da Escritura na qual se inclinava a recusar as tradiccedilotildees Na carta de Cervini ao Cardeal Farnese de 27 de fevereiro de 1546 lemos hellip Chioggia che (quasi quasi) voleva dire queste traditioni essere superflue perorando che tutto quello che era necessario alla salute era scritto et allegando etiam S Agostino sopra lultimo capitulo di S Giovanni a questo proposito Pure per non poter negare che molte cose appartenenti almeno alli sacramenti non ci fussero venute ex tra ditione et per consequente che non tutte le cose necessarie alia nostra salute erano scritte poiche ebbe fatte molte distintioni concluse che ancor lui accettava queste ldquoche in la chiesa fusse qualque traditione apostolica non scrittardquo (et con queste parole diceva che se ne facesse il decreto) credo che molti sono restati scandalizati di lui (CT X Nr 315 paacutegs 399 411) Cf tambeacutem CT I 494 nota 9 e 495 nota 2 CT V 18 nota 5 e 19 e nota 1 O mesmo protesto que aparece contra Nacchianti manifesta-se tambeacutem na observaccedilatildeo de Massarelli Este chega a chamar aquele de novarum rerum cupidus (1 494 18) e esclarece que reprehensus est a multis (1 494 22) Diante disto eacute de todo destituiacuteda de creacutedito a importacircncia que Geiselmann lhe atribui mesmo se abstrairmos de outras razotildees jaacute conhecidas sobre as quais natildeo precisamos insistir

de outro lado pelo menos tornam possiacutevel uma exata visatildeo do conjunto devido agrave sua muacutetua confluecircncia e limitaccedilatildeo No texto atual estatildeo presentes embora pouco nitidamente ambos os pontos de vista o elemento presencial e o ἑφάπαξ Conveacutem que entendamos assim o texto de modo a considerarmos [57] ambos estes aspectos como essenciais Consequumlentemente reconheceremos que ambos pertencem constitutivamente agrave realidade da vida cristatilde e portanto tambeacutem agravequela parcela do Cristianismo a que damos o nome de Tradiccedilatildeo Estes dois elementos satildeo a presenccedila do Espiacuterito Santo e o seu nexo com o fato singular da salvaccedilatildeo ocorrido uma soacute vez por todas na histoacuteria dos homens

Assim se acharaacute finalmente a resposta agrave pergunta de corno noacutes devemos entender o parecer do Conciacutelio de Trento A primeira e mais importante conclusatildeo parece-me ser o fato de o Conciacutelio ter visto muito claramente o nexo entre Tradiccedilatildeo e Revelaccedilatildeo A seguir elaborou sempre em consonacircncia com a tradiccedilatildeo patriacutestica e medieval um conceito de Revelaccedilatildeo muito menos material do que o que seraacute adotado mais tarde pela teologia dos tempos modernos Somente assim se deve conceber a ideacuteia da Revelaccedilatildeo do Espiacuterito Santo na Igreja Partindo do ramo nitidamente patriacutestico da teologia medieval tatildeo francamente acolhido no discurso de Cervini deveria ser muito menos categoacuterica a opiniatildeo que coloca o teacutermino da Revelaccedilatildeo na morte do uacuteltimo Apoacutestolo Naturalmente esta questatildeo natildeo pode ser aqui estudada com maiores detalhes A sua soluccedilatildeo como entatildeo se apresentava aos teoacutelogos poderia ser hoje impostada apelando-se para as categorias da teologia atual Segundo esta podemos dizer que a Revelaccedilatildeo estaacute encerrada do ponto de vista de seu princiacutepio material Todavia estaacute e continua presente em sua realidade eficaz Noutros termos a Revelaccedilatildeo tem eacute verdade o seu ἑφάπαξ enquanto ela se realizou num determinado dia na Histoacuteria Entretanto ela tem tambeacutem o seu ldquohojerdquo permanente isto eacute o que foi uma vez por todas realizado na feacute da Igreja permanece sempre vivo e operante Assim a feacute cristatilde natildeo se volta apenas para o passado Abrange tambeacutem o presente e o futuro Eacute verdade que a posterior materializaccedilatildeo historicista da ideacuteia de Revelaccedilatildeo aparece jaacute claramente insinuada nos debates tridentinos corno um fato previsto mas ainda [58] natildeo consumado embora talvez se possa dizer que nos textos conciliares ficou definitivamente consagrada a sua aceitaccedilatildeo

Finalmente acrescentemos ainda que com base nos debates do Conciacutelio podemos estabelecer quatro elementos da ideacuteia de Tradiccedilatildeo 1 O aspecto natildeo-escrito da Revelaccedilatildeo ou do Evangelho contido na Biacuteblia e no coraccedilatildeo dos fieacuteis 2 A palavra do Espiacuterito Santo no decorrer de todo o tempo da Igreja

3 A atividade da Igreja nos Conciacutelios 4 A Tradiccedilatildeo lituacutergica e a da vida da Igreja em geral Nestes quatro elementos

que se deve ter sob os olhos pois formam o fundo ideoloacutegico do Decreto expressa-se a realidade uacutenica do tempo presente da Igreja cristatilde Nele estaacute presente todo o passado poacutes-apostoacutelico da Igreja (inclusive o proacuteprio tempo dos apoacutestolos) de modo que toda a sua vida eacute na Sagrada Escritura um elemento central embora natildeo o uacutenico Em suma deve ter ficado claro que o Conciacutelio de Trento a despeito do caraacuteter contrastante e fixo de sua ideacuteia de Revelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeo oferece uma visatildeo muito mais rica destes conceitos do que a que impregnou a mentalidade dos seacuteculos seguintes Justamente por

isso a teologia de hoje pode retirar daiacute novos subsiacutedios novo apoio para suas pesquisas e novas indicaccedilotildees sobre o verdadeiro caminho a seguir

Quadro sinoacutetico do Decreto tridentino sobre a Tradiccedilatildeo

Primeiro princiacutepio conforme Cervini (AT = Escritura)

Sacrosancta œcumenica et generalis Tridentina Synodus in Spiritu Sancto legitime congregata [] hoc sibi perpetuo ante oculos proponens ut sublatis erroribus puritas ipsa EVANGELII in Ecclesia conservetur quod PROMISSUM ANTE PER PROPHETAS IN SCRIPTURIS SANCTIS

Segundo princiacutepio conforme Cervini o Evangelho em parte escrito em parte insculpido nos coraccedilotildees

[59] DOMINUS NOSTER IESUS CHRISTUS DEI FILIUS PROPRIO ORE PRIMUM PROMULGAVIT DEINDE PER SUOS APOSTOLOS TAMQUAM FONTEM OMNIS ET SALUTARIS VERITATIS ET MORUM DISCIPLINAE OMNI CREATURAE PRAEDICARI IUSSIT PERSPICIENSQUE HANC VERITATEM ET DISCIPLINAM CONTINERI IN LIBRIS SCRIPTIS ET SINE SCRIPTO TRADITIONIBUS QUAE AB IPSIUS CHRISTI ORE AB APOSTOLIS ACCEPTAE AUT AB IPSIS APOSTOLIS SPIRITU SANCTO DICTANTE

Seripando Cervini e outros soacute consideram as tradiccedilotildees recebidas pela Igrej (ldquoad nos usquerdquo)

quasi per manus traditae ad nos usque pervenerunt

orthodoxorum Patrum exempla secuta omnes libros tam Veteris quam Novi Testamenti cum utriusque unus Deus sit auctor nec non TRADITIONES IPSAS

Lejay Tradiccedilatildeo contendo natildeo soacute a ldquoconsuetudordquo mas relacionada tambeacutem com a ldquofidesrdquo (foacutermula conciliar)

tum ad fidem tum ad mores pertinentes

Terceiro princiacutepio de Cernini Depois da Ascenccedilatildeo de Cristo o Espiacuterito Santo ensina tambeacutem os misteacuterios de Deus

TAMQUAM VEL ORETENUS A CHRISTO VEL A SPIRITU SANCTO DICTATAS

Seripando Cervini etc soacute satildeo consideradas as coisas recebidas pela Igreja (como acima)

et continua successione in Ecclesia catholica conservatas

Cervini Escritura e Tradiccedilatildeo procedem ambas do mesmo Espiacuterito Santo

pari pietatis affectu ac reverentia suscipit ac veneratur

  • Prefaacutecio
  • SEGUNDA PARTE
  • Explicaccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo
  • segundo o Decreto do Conciacutelio de Trento
Page 18: Revelacao e Tradicao-Joseph Ratzinger (Bom Ler)

fonte interna (a Revelaccedilatildeo) brote a pa1avra de Deus viva sob aquela dupla formalidade A Escritura e a Tradiccedilatildeo natildeo podem [24] ser entendidas uma sem a outra no sentido que ambas tecircm agrave luz da feacute O problema ldquoEscritura e Tradiccedilatildeordquo permaneceraacute insoluacutevel enquanto natildeo for reduzido a uma soacute questatildeo a saber a questatildeo ldquoRevelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeordquo e inserida enfim no amplo contexto a que pertence

Eu gostaria de nas paacuteginas seguintes sem entrar em todos os detalhes tentar desenvolver em forma de teses e de maneira positiva o conceito de Tradiccedilatildeo partindo de sua natureza iacutentima com a esperanccedila de que nele descubramos uma parte da resposta aos anseios dos Reformadores Desta maneira toda esta anaacutelise serviraacute de contribuiccedilatildeo para o diaacutelogo interconfessional cuja necessidade tanto os Catoacutelicos como os Protestantes vecircm proclamando de maneira cada vez mais insistente

II - Teses sobre a relaccedilatildeo entre a Revelaccedilatildeo e a Tradiccedilatildeo

1 A Revelaccedilatildeo e a Escritura A primeira tese em aditamento ao conceito patriacutestico de Escritura e Revelaccedilatildeo

poderia enunciar-se nos seguintes termos o fato de existir uma ldquoTradiccedilatildeordquo repousa antes de tudo na diferenccedila que permeia entre estas duas realidades ldquoRevelaccedilatildeordquo e ldquoEscriturardquo A Revelaccedilatildeo exprime propriamente o falar e o agir de Deus em relaccedilatildeo aos homens Designa uma realidade expressa pela Escritura sem ser contudo a proacutepria Escritura A Revelaccedilatildeo por conseguinte ultrapassa a Escritura na mesma medida em que a realidade ultrapassa a sua expressatildeo escrita12 Poder-se-ia [25] tambeacutem dizer que a Escritura eacute o princiacutepio material da Revelaccedilatildeo (Talvez princiacutepio uacutenico talvez um princiacutepio entre outros isto seraacute esclarecido mais adiante) Ela natildeo eacute poreacutem a proacutepria Revelaccedilatildeo Isto era aliaacutes bem sabido dos proacuteprios Reformadores mas comeccedilou visivelmente a ser esquecido no aceso da controveacutersia entre a teologia catoacutelica poacutes-tridentina e a ortodoxia protestante13 Em nosso seacuteculo foram justamente os teoacutelogos evangeacutelicos Barth e Brunner que redescobriram este fato de todo evidente para a teologia patriacutestica e medieval14

O que acabamos de afirmar ficaraacute mais claro se partirmos de outro princiacutepio a Escritura pode ser possuiacuteda sem que se possua a Revelaccedilatildeo Isto porque a Revelaccedilatildeo eacute sempre e em primeiro plano uma realidade a realidade onde se encontra a feacute Aquele

12 Esta afirmaccedilatildeo natildeo tem o sentido de que a Escritura seja uma mera e vazia narrativa de realidades a ela exteriores Antes como o que se segue iraacute demonstrar indica que a Revelaccedilatildeo eacute realizada na Palavra jaacute que eacute por meio de palavras que ela se comunica aos homens Contudo a mera presenccedila da palavra ainda natildeo eacute a Revelaccedilatildeo Esta eacute mais do que simples ldquopresenccedilardquo Com o que ficou dito salienta-se a diferenccedila que existe entre a palavra e seu conteuacutedo Esta diferenccedila natildeo exclui o caraacuteter verbal da Revelaccedilatildeo 13 Cf A GLOEGE Schriftprinzips RGG V 1540-1543 onde se encontraraacute a mais completa bibliografia LthK VII 1104-1115 J R GEISELMAN Offenbarung in H FRIES Handbuch zum Begriff der Offenbarung cf M VERENO - R SCHNACKENBURG - HRIES in Theologischer Grundbergriffe II Munique 1963 p242-250 e a bibliografia aiacute citada 14 Cf W H VAN DER POL Das reformatorische Christentum Einsiedeln 1956 p117-192

que natildeo crecirc acha-se como que coberto por um veacuteu o veacuteu de que fala Satildeo Paulo no terceiro capiacutetulo da segunda epiacutestola aos Coriacutentios15 Ele pode ler a Escritura e saber o que nela se conteacutem Pode ateacute mesmo apreender de modo puramente intelectual o que aiacute eacute significado e como suas ideacuteias se inter-relacionam Todavia natildeo possui com isto a Revelaccedilatildeo A Revelaccedilatildeo eacute sobretudo possuiacuteda quando aleacutem da expressatildeo material que a atesta se potildee tambeacutem em praacutetica o seu conteuacutedo interno por meio da vivecircncia da feacute Com efeito de certo modo se inclui tambeacutem na Revelaccedilatildeo o sujeito recipiente sem o qual ela natildeo pode existir Natildeo se pode pocircr a Revelaccedilatildeo no bolso como se faz com [26] um livro Ela eacute uma realidade viva Exige homens vivos que a recebam que sirvam de ldquolugarrdquo de sua presenccedila

Repetindo o que ateacute aqui dissemos podemos afirmar que a Revelaccedilatildeo sobreexcede de fato a Escritura em dois sentidos

a) em sentido ascendente ela atinge sempre como realidade procedente de Deus o agir divino sobre as criaturas

b) como realidade que se daacute ao homem por meio da feacute ela atinge igualmente a Escritura

Desta diferenccedila entre a Escritura e a Revelaccedilatildeo resulta claramente que de todo independentemente da questatildeo se a Escritura eacute ou natildeo eacute a uacutenica fonte material em rigor nunca existe para o cristatildeo a sola Scriptura (Isto como ficou dito era claro em princiacutepio para os grandes Reformadores e comeccedilou a ser esquecido na chamada ortodoxia protestante) A Escritura natildeo eacute a Revelaccedilatildeo Eacute sim em uacuteltima anaacutelise uma parte desta realidade mais ampla

2 Os diferentes sentidos da Escritura

no Antigo e Novo testamento A problemaacutetica cristatilde da Revelaccedilatildeo ou o problema ldquoEscritura e Tradiccedilatildeordquo situa-se

melhor se considerarmos o duplo aspecto da mesma Revelaccedilatildeo no Antigo e no Novo Testamento A este duplo aspecto corresponde tambeacutem um duplo sentido da Escritura Assim como os dois Testamentos como tais se distinguem essencialmente assim tambeacutem devemos dizer que a ldquoEscriturardquo como um fato natildeo eacute repetida duas vezes do mesmo modo Isto aparece muito claro nos livros neotestamentaacuterios Sob a expressatildeo ldquoEscriturardquo designam eles somente o Antigo Testamento Para eles o AT eacute e permanece sendo ldquoa Escriturardquo cujo sentido se aclara mediante sua confirmaccedilatildeo no evento da [27] vinda de Cristo16 Os livros do NT natildeo jogam uma Escritura nova contra uma Escritura antiga Nem potildeem uma simplesmente ao lado da outra Potildeem sim em face da uacutenica Escritura ou seja do Antigo Testamento o Cristo-evento como o espiacuterito que explica a letra Esta concepccedilatildeo fundamental ilumina tambeacutem a forma da feacute mais antiga e a torna por primeiro compreensiacutevel O ldquoJesusrdquo formal eacute o ldquoCristordquo expresso no Antigo Testamento Natildeo eacute outra coisa No Jesus Histoacuterico o Cristo-mensagem do

15 Cf sobre estas reflexotildees o importante artigo (ἀποκαλύπτω de A OEPKE in ThWNT III p565-597 16 Ver sobre este ponto as preciosas conclusotildees de G SCHRENK art γραφή ndash γράμμα in ThWNT I p749-769 e a p767

Antigo Testamento atinge a sua consumaccedilatildeo Eacute a partir do AT que se entende quem eacute Jesus E o que o Testamento Antigo expressa pode ser visto agrave luz do Cristo-evento

Esta ideacuteia aparece em Paulo ao apresentar ele o Antigo e o Novo Testamentos como Gramma e Pneuma isto eacute letra e espiacuterito (2Cor 3 6-18) Ele chama ao Senhor de Pneuma A Escritura explica-o como sendo o seu sentido o seu conteuacutedo verdadeiro e vivo e natildeo apenas literaacuterio Paulo se refere agrave concepccedilatildeo do Novo Testamento apresentada por Jeremias (3133) Natildeo eacute mais necessaacuteria nenhuma Escritura porque a lei estaacute escrita nos coraccedilotildees Jaacute natildeo eacute necessaacuteria nenhuma doutrinaccedilatildeo vinda de fora porque o proacuteprio Deus instrui os homens Joatildeo exprime idecircntico pensamento em seguimento ao decircutero-Isaiacuteas (5413) quando descreve a era inaugurada por Cristo como o tempo no qual todos satildeo doutrinados por Deus mesmo E o sermatildeo de Pedro em Pentecostes transmitido pelos Atos dos Apoacutestolos (2 14-36) desenvolve a mesma ideacuteia tirada de Joel (3 1-5) Em todos estes casos aparece a era instaurada por Cristo como resposta agrave esperanccedila no advento de um tempo futuro que em uacuteltima anaacutelise haveria de tornar supeacuterflua a Escritura graccedilas agrave presenccedila imediata do Divino Mestre na Sua humanidade

Quando se pondera o sentido destas afirmaccedilotildees torna-se claro [28] que ao reduzir-se a ldquoEscriturardquo aos escritos do Antigo Testamento natildeo se estaacute apenas usando uma terminologia antiga que teria sido adotada por falta de escritos propriamente neotestamentaacuterios e que teria perdido seu sentido na segunda metade do seacuteculo segundo com o iniacutecio do cacircnon do Novo Testamento Ao contraacuterio Aqui se expressa uma consciecircncia que se tornaria mais niacutetida a partir da formaccedilatildeo da proacutepria Escritura neotestamentaacuteria muito ao inveacutes de cessar ou de desaparecer

Uma coisa eacute certa a ldquoEscriturardquo na nova ordem da salvaccedilatildeo inaugurada por Cristo toma um lugar distinto do que lhe cabia no Antigo Testamento Com isto pode-se ver ateacute que ponto o Antigo Testamento tem sentido autocircnomo O AT certamente natildeo aparecia desde o comeccedilo como Testamento do Gramma Escritura em sentido proacuteprio como ocorreraacute na pena de Satildeo Paulo17 Por outro lado manifesta-se realmente a partir de Jeremias e do decircutero-Isaiacuteas o anelo pela superaccedilatildeo do Gramma mediante uma nova e imediata comunicaccedilatildeo do Espiacuterito de Deus simultaneamente com a progressiva formaccedilatildeo de um princiacutepio da Escritura que mais e mais a transformou em Lei Lei esta que natildeo tornaria os homens vivos mas sim mortos

Desta maneira na concepccedilatildeo neotestamentaacuteria aparece o Antigo Testamento como ldquoEscriturardquo em sentido proacuteprio Escritura que atinge o seu verdadeiro significado atraveacutes do Cristo-evento pelo fato de ser ela inserida no contexto vivo da realidade de Cristo Se no Novo Testamento de facto a Escritura cresceu natildeo pode mais ter aquele sentido uacuteltimo e exclusivo que lhe competia no Antigo segundo a concepccedilatildeo paulina Ao contraacuterio Ela eacute a chave com que se abre o Antigo Testamento deixando-se banhar na claridade do Cristo-evento Ela eacute tambeacutem a ponte permanente que conduz a uma nova interpretaccedilatildeo biacuteblica agrave luz [29] de Cristo Num caso e noutro a Escritura natildeo pretende de modo nenhum ser autocircnoma nem ser a fonte uacutenica e exclusiva de sua exegese literal Mas soacute pode ter sentido na realidade espiritual de Jesus Cristo que

17 Ver a apreciaccedilatildeo feita por G VON RAD Theologie des Alten Testaments II Munique 1960 p402-424

permanece junto dos seus todos os dias ateacute ao fim do mundo (Mt 28 20) Apoacutes a subida ao Calvaacuterio Cristo veio de novo no Espiacuterito Santo (como narra Satildeo Joatildeo) e pelo Espiacuterito ensinou aos disciacutepulos o que eles entatildeo natildeo podiam ainda entender enquanto o Senhor estava entre eles sob forma visiacutevel (Jo 16 12)

3 Cristo a Revelaccedilatildeo de Deus

A realidade que se daacute como um acontecimento na Revelaccedilatildeo cristatilde natildeo eacute nada

mais nada menos do que o proacuteprio Cristo Cristo eacute a Revelaccedilatildeo em sentido proacuteprio ldquoQuem me vecirc vecirc o Pairdquo diz ele no Evangelho de Satildeo Joatildeo (14 9) Vale portanto dizer que receber a Revelaccedilatildeo eacute penetrar na realidade de Cristo no Cristo-evento Daiacute procede o paradoxo descrito por Satildeo Paulo ao fazer ele um trocadilho com as palavras ldquoCristo em noacutesrdquo e ldquonoacutes em Cristordquo

Neste contexto a anaacutelise de frases isoladas torna-se secundaacuteria de vez que elas satildeo apenas explicaccedilotildees do uacutenico misteacuterio de Cristo Consequumlentemente cai por si mesma a questatildeo da suficiecircncia interna da Escritura tatildeo discutida desde o aparecimento das obras de Geiselmann Deveriacuteamos isto sim perguntar que significa em linguagem cristatilde a suficiecircncia interna da Escritura ldquoSuficienterdquo eacute soacute a realidade do Cristo-evento Esta pode ser explicada materialmente em maior ou menor grau E de maneira nunca definitiva Partindo deste princiacutepio podem existir tambeacutem outras explicaccedilotildees segundo a Escritura quando se aprofunda mais este assunto

Este mesmo tema pode ser considerado sob outro aspecto E ter-se-aacute entatildeo dado um passo a mais para a frente A aceitaccedilatildeo [30] da Revelaccedilatildeo pela qual aplicamos a noacutes o Cristo-evento vem na linguagem da Biacuteblia sob o nome de ldquofeacuterdquo Assim talvez se entenderaacute mais claramente de que maneira no Novo Testamento a feacute significa a ldquoin-habitaccedilatildeordquo de Cristo Se admitirmos que na Escritura a presenccedila da Revelaccedilatildeo tem o mesmo sentido que a presenccedila de Cristo entatildeo teremos de fato dado um passo adiante Ora na Escritura encontramos a presenccedila de Cristo apresentada de duas maneiras Ela aparece de um lado como jaacute vimos identificada com a feacute (Ef 317) na qual cada um encontra Cristo e se adentra nele penetrando no dinamismo de sua forccedila salvadora Por outro lado a feacute se oculta tambeacutem sob a expressatildeo paulina ldquoCorpo de Cristordquo o que quer dizer que a comunidade dos fieacuteis ndash a Igreja ndash funda a presenccedila de Cristo neste mundo Nela Cristo reuacutene os homens e os faz partiacutecipes de sua presenccedila dinacircmica18

Tomadas juntas estas duas noccedilotildees significam o seguinte a feacute eacute a adesatildeo iacutentima agrave presenccedila de Cristo realidade de Cristo presente da qual a Escritura nos daacute testemunho sem contudo se identificar de modo nenhum com ela Daiacute resulta que a presenccedila da Revelaccedilatildeo se relaciona essencialmente com a ldquofeacuterdquo e com a ldquoIgrejardquo realidades estas que como vimos estatildeo estreitamente ligadas entre si

Voltamos assim ao que foi afirmado na primeira tese a saber que a Revelaccedilatildeo sobreexcede a Escritura em duplo sentido em relaccedilatildeo a Deus por seu lado ascendente e em relaccedilatildeo tambeacutem ao homem que a recebe Esta asserccedilatildeo que a princiacutepio deixamos

18 H SCHLIER ldquoDie Kirche nach dem Brief an die Epheserrdquo in Die Zeit der Kirche Friburgo 1962 p159-186

um tanto vaga encontramo-la essencialmente concretizada na realidade objetiva do Cristianismo

4 A essecircncia da Tradiccedilatildeo

[31] A transmissatildeo ao povo de Deus do Cristo-evento que eacute a Revelaccedilatildeo e que tem sua bi-presenccedila na feacute e na Igreja faz-se atraveacutes da pregaccedilatildeo Pregaccedilatildeo eacute a ldquoex-posiccedilatildeordquo (Aus-legung) do duplo aspecto da Revelaccedilatildeo no Antigo e no Novo Testamento E isto de duas maneiras

a) ela eacute a exposiccedilatildeo do Antigo Testamento agrave luz do Cristo-evento e para o Cristo-evento

b) a partir do Pneuma e da condiccedilatildeo presente da Igreja Este uacuteltimo aspecto eacute possiacutevel pois Cristo natildeo estaacute morto Estaacute vivo Natildeo eacute

apenas o Cristo de ontem Eacute tambeacutem e a fortiori o Cristo de hoje e de amanhatilde o Cristo vivo e presente em sua Igreja que eacute seu Corpo e na qual o seu espiacuterito opera

Isto poderaacute ser melhor compreendido se partirmos da essecircncia da Igreja Como nos ensina o Novo Testamento a mensagem de Jesus eacute antes de tudo uma mensagem escatoloacutegica com vistas ao reino de Deus natildeo com vistas agrave Igreja O fato de existir a Igreja natildeo se opotildee a esta mensagem mas haacute na marcha gradativa das revelaccedilotildees de Cristo uma segunda possibilidade Assim a atividade dos Doze depois de Pentecostes aponta natildeo para a Igreja mas para o reino de Deus Informam-nos os Atos dos Apoacutestolos que os Doze natildeo se ocuparam primordialmente em missionar os povos Esforccedilaram-se antes muito mais em converter Israel criando deste modo as condiccedilotildees preacutevias para a implantaccedilatildeo do reino De iniacutecio uma seacuterie de obstaacuteculos histoacutericos entre os quais deveriacuteamos citar antes de tudo o martiacuterio de Estevatildeo o supliacutecio de Tiago e por fim o fato decisivo da prisatildeo e da libertaccedilatildeo de Pedro Tais fatos levaram a comunidade primitiva segundo dizem as fontes a reconhecer como definitivo o malogro do esforccedilo de converter Israel E consequumlentemente forccedilaram os Apoacutestolos a partir em busca dos gentios e a cuidar [32] assim da Igreja e natildeo do reino Eles o fazem segundo se depreende das passagens referidas e principalmente dos esclarecimentos do capiacutetulo 15 dos Atos dos Apoacutestolos como uma nova opccedilatildeo feita sob a accedilatildeo do Espiacuterito Santo Com isso iniciou-se uma nova interpretaccedilatildeo da mensagem de Cristo sobre a qual a Igreja essencialmente repousa19

19 Cf as decisivas conclusotildees de E PETERSON ldquoDie Kircherdquo in Theologische Traktate Munique 1951 p 409-429 H SCHLIER Die Entscheidung fuumlr die Heidenmission in der Urchristenheit Die Zeit der Kirche p 90-107 Parece-me certo que nem a anaacutelise da tradiccedilatildeo sinoacutetica relativa agrave mensagem de Jesus e seu caraacuteter escatoloacutegico nem o estudo da histoacuteria da Igreja primitiva com base no material fornecido pelos Atos dos Apoacutestolos autorizam qualquer outra conexatildeo entre a mensagem do reino e a pregaccedilatildeo da Igreja Daiacute natildeo se segue de modo nenhum ndash como muitas vezes se teme ndash que a cruz seja um acidente secundaacuterio que em rigor poderia ter sido evitado Ao contraacuterio A estrutura da Igreja moldada sobre a cruz eacute fundamental porque aiacute eacute que por primeiro se encontra a confirmaccedilatildeo da importacircncia da liberdade humana de Cristo e da sua Paixatildeo bem como a iacutentima dependecircncia da Igreja para com a Cruz donde ela procede

Este fato que baseia o estabelecimento definitivo da Igreja sobre uma decisatildeo tomada ldquono Espiacuterito Santordquo eacute o fundamento para se afirmar que existe uma interpretaccedilatildeo eclesial do Novo Testamento do mesmo modo que existe uma exegese cristoloacutegica do Antigo Daiacute podermos estabelecer as seguintes teses ou proposiccedilotildees agrave luz da analogia fidei

a) Existe uma teologia veterotestamentaacuteria do Antigo Testamento que o exegeta

deduz de seu conteuacutedo interno e que se desenvolve em uma seacuterie de camadas superpostas Segundo ela os textos antigos devem ser relidos e de novo expostos agrave luz dos novos acontecimentos O fenocircmeno da aplicaccedilatildeo dos textos agraves situaccedilotildees novas do desdobramento da Revelaccedilatildeo mediante nova [33] apresentaccedilatildeo do Antigo Testamento estrutura jaacute de modo essencial o conteuacutedo interno veterotestamentaacuterio20

b) Existe uma teologia neotestamentaacuteria do Antigo Testamento que natildeo coincide com

a referida teologia veterotestamentaacuteria Estaacute contudo estreitamente ligada com ela na unidade da analogia fidei21 Talvez partindo daqui se possa esclarecer o que significa a analogia fidei entre Os dois Testamentos A teologia neotestamentaacuteria do Antigo Testamento natildeo eacute como ficou dito idecircntica agrave teologia histoacuterica veterotestamentaacuteria Ao contraacuterio Re-exposiccedilatildeo feita agrave luz do Cristo-evento ela natildeo procede soacute da mera consideraccedilatildeo histoacuterica do Antigo Testamento Sendo embora em seu pleno conceito uma interpretaccedilatildeo relacionada com o Antigo Testamento contudo nada faz com que ela seja internamente estranha agrave sua essecircncia ainda que soacute de fora o atinja Ela amplia a forma estrutural do Antigo Testamento que assim interpretado revive e cresce

c) Existe uma teologia neotestamentaacuteria do Novo Testamento paralela agrave teologia veterotestamentaacuteria do Antigo Ou seja a teologia que o exegeta como tal pode deduzir do conteuacutedo interno do Novo Testamento eacute tambeacutem esta conhecida e estruturada mediante a aplicaccedilatildeo do Antigo Testamento agraves novas situaccedilotildees

d) Existe uma teologia eclesial do Novo Testamento que noacutes [34] chamamos Dogmaacutetica Ela se relaciona com a teologia neotestamentaacuteria do Novo Testamento do mesmo modo que a teologia neotestamentaacuteria do Antigo se relaciona com a respectiva teologia veterotestamentaacuteria Aquele ldquomaisrdquo (das Mehr) que distingue propriamente a Dogmaacutetica da teologia biacuteblica eacute o que designamos com a palavra Tradiccedilatildeo Aliaacutes tambeacutem aqui devemos salientar que a teologia eclesiaacutestica neotestamentaacuteria pela mesma razatildeo natildeo eacute simplesmente idecircntica agrave teologia neotestamentaacuteria interna e

20 Cf H GROSS Motivtransposition als Form- und Traditionsprinzip im Alten Testament in H VORGRIMLER Exegese und Dogmatik Moguacutencia 1962 p134-152 e a bibliografia aiacute fornecida G v RAD Theologie des Alten Testaments II Munique 1960 p332-339 396-401 21 A diferenccedila entre as duas teologias do Antigo Testamento foi vivamente exposta por R BULTMANN ldquoWeissagung und Erfuumlllungrdquo in Glauben und Verstehen II Tubinga 1952 p162-186 - Sobre as necessaacuterias correccedilotildees a se fazerem para que se torne visiacutevel a base histoacuterica do que a teologia sistemaacutetica denomina ldquoanalogia fideirdquo cf G v RAD op cit p329-424 (entre outras) e principalmente a p 420 nota 25 e a p422 nota 29 Sobre o tema ldquoanalogia fideirdquo em ambos os Testamentos cf tambeacutem E PRZYWARA Alter und Neuer Bund Viena-Munique 1956

histoacuterica do Novo Testamento Ultrapassa-a sem contudo ser-lhe puramente externa Com efeito no Novo Testamento comeccedila jaacute o processo da exposiccedilatildeo pela Igreja das verdades reveladas A teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento processa-se dentro dele proacuteprio como de modo clariacutessimo se percebe na histoacuteria da Revelaccedilatildeo sinoacutetica22

Eacute oportuno fazermos ainda uma pequena observaccedilatildeo se cotejarmos atentamente a teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento com a Dogmaacutetica reconheceremos que se impotildee uma outra distinccedilatildeo A Dogmaacutetica como ciecircncia aleacutem da exposiccedilatildeo eclesiaacutestica do Novo Testamento abrange tambeacutem a teologia particular de cada teoacutelogo Neste caso para se falar com precisatildeo dever-se-ia apresentar somente o proacuteprio dogma como teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento

O que acabamos de referir natildeo passa naturalmente de um esboccedilo que necessitaria em seus pormenores de natildeo poucos esclarecimentos e distinccedilotildees a fim de ser completo No caso presente entretanto damos por suficiente este esboccedilo Resumindo o que ateacute aqui expusemos podemos agora destacar vaacuterias ldquoraiacutezesrdquo da Tradiccedilatildeo e apontar vaacuterias camadas em seu seio [35] lordf raiz a maior amplidatildeo da ldquoTradiccedilatildeordquo em referecircncia agrave ldquoEscriturardquo

2ordf raiz o caraacuteter especiacutefico da Revelaccedilatildeo neotestamentaacuteria como Pneuma em contraste com o Gramma Eacute o que na linguagem de Bultmann se poderia chamar de sua condiccedilatildeo de ldquonatildeo-objetordquo (Nichtobjektiviertbarkeit) A praxe eclesiaacutestica e a teologia medieval expressaram este aspecto ao sobreporem a fides agrave Scriptura isto eacute o dogma como regra de feacute agraves minuacutecias da lei escrita23 O dogma eacute como a chave hermenecircutica da Escritura que em uacuteltima anaacutelise sem o auxiacutelio da hermenecircutica ficaria sendo algo fechado

3ordf raiz o caraacuteter presencial do Cristo-evento e a presenccedila dinacircmica do Espiacuterito de Cristo em seu Corpo a Igreja E consequumlentemente o poder que tem a Igreja de fazer a pregaccedilatildeo do Cristo ontem e hoje pregaccedilatildeo esta cuja fonte se encontra na interpretaccedilatildeo eclesiaacutestica da mensagem do reino transmitida pelos Apoacutestolos

Em conexatildeo com estas trecircs raiacutezes da ideacuteia (ou melhor da realidade) da Tradiccedilatildeo podem distinguir-se na mesma as seguintes camadas

a) Na origem de toda Tradiccedilatildeo estaacute o fato de que o Pai enviou o Seu Filho ao mundo e que o Filho por sua vez se [36] entregou ndash como sinal ndash aos ldquopovosrdquo (παραδίδοται) Esta paraacutedosis original em sua forccedila direta e salvadora

22 Cf por exemplo a rica exposiccedilatildeo de G BORNKMANN Jesus von Nazareth Estutegarte 1956 Sobre a questatildeo aqui estudada cf H SCHLIER Uumlber Sinn und Aufgabe einer Theologie des Neuen Testaments in H VORGRIMLER Exegese und Dogmatik Mainz 1962 p6990 23 O que haacute de melhor sobre este assunto no tocante agrave Patriacutestica seraacute encontrado em HARNACK DG II (1931) p84-116 HARNACK diz na p 87 nota 3 o seguinte ldquoO Cacircnon era de iniacutecio a regra da feacute A Escritura estaacute centrada na verdade Sem duacutevida nenhuma sua autoridade funda-se solidamente no Antigo Testamento e nas palavras do Senhorrdquo ndash Que assim tenha pensado tambeacutem a Idade Meacutedia e que aqui aleacutem da revelatio (da qual falaremos na 2ordf parte deste livro) a fides sobrepondo-se agrave Scriptura estabelece a forma essencial do conceito de Tradiccedilatildeo foi o que tentei demonstrar em meu artigo Wesen und Weisen der auctoritas im Werk des heiligen Bonaventura in Die Kirche und ihre Aumlmter und Staumlnde (Festgabe Kardinals Frings publicado por CORSTEN-FROTZ-LINDEN Colocircnia 1960 p 58-72

prolonga-se na permanente presenccedila de Cristo no σῶμα Χριστοῦ ndash no Seu Corpo a Igreja Assim o misteacuterio integral da presenccedila de Cristo eacute antes de tudo a realidade total transmitida pela Tradiccedilatildeo (fato fundamental e decisivo sempre anterior a todas as explicaccedilotildees particulares mesmo as da Escritura) e reguladora do que deve propriamente ser transmitido

b) A Tradiccedilatildeo existe concretamente como presenccedila na feacute Esta por seu turno como ldquoin-habitaccedilatildeordquo de Cristo precede todas as explicaccedilotildees particulares e frutuosa e viva ldquoexplicita-serdquo (explizierend) atraveacutes dos tempos

c) A Tradiccedilatildeo tem seu oacutergatildeo na plenitude dos poderes da Igreja e portanto naqueles que satildeo os legiacutetimos depositaacuterios destes poderes24

d) A Tradiccedilatildeo exprime-se tambeacutem naquilo que emanado da autoridade da Igreja se tornou regra de feacute (Symbolum fides quaelig) Portanto a questatildeo de se saber se certas proposiccedilotildees foram transmitidas desde o

comeccedilo pela Tradiccedilatildeo ao lado da Escritura ou em outros termos se existe desde o comeccedilo um segundo princiacutepio material e autocircnomo ao lado da Escritura torna-se afinal um problema inteiramente secundaacuterio Talvez lhe devamos responder negativamente

5 A funccedilatildeo da exegese [37] Pelo que ateacute aqui dissemos ficaram esclarecidas quase que exclusivamente

trecircs pontos os limites da letra da Escritura a liberdade do Espiacuterito Santo e a autoridade da Igreja Acontece poreacutem que a exposiccedilatildeo que fizemos abriga ainda um sentido diverso relacionado com a justa preocupaccedilatildeo de Lutero da qual partimos

Se ficou estabelecido que a Revelaccedilatildeo se faz presente atraveacutes da pregaccedilatildeo e se pregaccedilatildeo eacute exposiccedilatildeo da palavra revelada entatildeo pode e deve agora ao que precede acrescentar-se o seguinte a Tradiccedilatildeo eacute essencialmente e sempre uma exposiccedilatildeo Natildeo existe de maneira autocircnoma e sim como explicaccedilatildeo como exposiccedilatildeo ldquorelacionada com a Escriturardquo

Isto vale para a pregaccedilatildeo do proacuteprio Jesus Cristo realizaccedilatildeo plena da Revelaccedilatildeo e sua exposiccedilatildeo feita com autoridade A pregaccedilatildeo de Jesus Cristo natildeo aparece como algo absolutamente novo na Escritura Isto eacute como algo ainda natildeo atestado no Antigo Testamento Ela ensina isto sim a essecircncia do que jaacute estava escrito e lhe confere uma vida nova que o simples exegeta natildeo pode comunicar-lhe

O que vale para a mensagem de Cristo que permanece a mesma sob diferentes modalidades de exposiccedilatildeo vale tambeacutem para a pregaccedilatildeo apostoacutelica e a eclesiaacutestica Como ldquoTradiccedilatildeordquo ela deve em uacuteltima anaacutelise ser uma exposiccedilatildeo ldquosegundo a Escriturardquo a ela sujeita e com ela relacionada Sem duacutevida natildeo eacute ela uma exposiccedilatildeo no 24 Estas ideacuteias natildeo podem ser desenvolvidas mais detalhadamente aqui como seria de desejar uma vez que em rigor estamos procurando apenas fundamentar o conceito de Tradiccedilatildeo Em razatildeo da brevidade que me impus contentei-me apenas nas teses precedentes com explanar o assunto ateacute ao ponto em que ficasse patente a relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a ldquoIgrejardquo (cf as teses 4 e 5) Para se descer a maiores detalhes dever-se-ia analisar tambeacutem o conceito de Igreja que supomos conhecido do leitor Para isto cf a nota 6 onde citamos nosso livro sobre o Ofiacutecio e a unidade da Igreja Encontram-se aiacute algumas observaccedilotildees sobre o assunto de que ora tratamos

sentido de mera interpretaccedilatildeo exegeacutetica Mas sim na autoridade espiritual recebida do Senhor a qual se consuma na existecircncia plena da Igreja em sua feacute em sua vida e em seu culto Contudo ela permanece sendo (mais ainda do que o Cristo-evento em que se funda a Igreja) uma ldquoex-posiccedilatildeordquo (Aus-Legung) comprometida com a Histoacuteria e com a Palavra [38] Exprime-se deste modo a sua ligaccedilatildeo com a accedilatildeo concreta de Deus nesta mesma Histoacuteria e em seu caraacuteter de fato histoacuterico uacutenico (o ἑφάπαξ ldquoo ocorrido uma soacute vezrdquo) A realidade cristatilde da Revelaccedilatildeo eacute tatildeo essencial quanto ldquoeternardquo e definitiva Resulta daiacute a unidade entre o Cristo da Feacute e o Jesus da Histoacuteria o Jesus histoacuterico natildeo eacute senatildeo o Cristo da Feacute ainda que a feacute seja sempre algo mais do que a histoacuteria

Segue-se que do mesmo modo que existe um ofiacutecio de custoacutedia da Revelaccedilatildeo por parte da Igreja ofiacutecio por ela mesma atestado existe tambeacutem um ofiacutecio de custoacutedia da mesma Revelaccedilatildeo por parte da exegese que penetra o sentido literal da Escritura e defende a uniatildeo do Logos com a carne contra qualquer perigo de gnose Existe portanto por assim dizer algo como uma autonomia especiacutefica da Escritura como regra objetiva e sob muitos pontos de vista esclarecedora do Magisteacuterio eclesiaacutestico Esta era sem duacutevida uma exigecircncia legiacutetima de Lutero que ainda natildeo foi devidamente acolhida na Igreja catoacutelica por parte do Magisteacuterio cujos limites internos nem sempre foram claramente entendidos

Dever-se-ia partindo daqui salientar uma dupla criteriologia em se tratando da feacute De um lado haacute o que a Igreja antiga chamou de ldquoregra da feacuterdquo norma reguladora da palavra revelada contida na Escritura e sua exposiccedilatildeo Esta praeligscriptio da posse da Escritura como proacutepria segundo Tertuliano exclui a possibilidade de qualquer uso legiacutetimo da mesma Escritura contra a Igreja Por outro lado haacute tambeacutem o limite da littera Scripturaelig ou do sentido literal historicamente fixaacutevel que de acordo com o que ficou dito natildeo constitui nenhum criteacuterio absoluto ou autocircnomo mas sim somente um criteacuterio relativo no confronto da feacute com a ciecircncia O que na Escritura se pode descobrir quer mediante estudo cientiacutefico quer por simples leitura tem a funccedilatildeo de um criteacuterio real a que deve estar atento inclusive o Magisteacuterio em suas explicaccedilotildees Certamente [39] trata-se entatildeo de elementos sub-componentes da ciecircncia que natildeo podem servir para se julgar a feacute mas nela encontram uma instacircncia criacutetica e tecircm tambeacutem um importante papel a exercer o de zelar pela pureza do ἑφάπαξ de tutelar o conteuacutedo da Revelaccedilatildeo e de defender o dualismo histoacuterico carneespiacuterito (ldquodie Sarx der Geschichterdquo) contra os arbiacutetrios da gnose que tende sempre a impor-se

A reformatio na qual estaacute empenhada a Igreja nesta hora histoacuterica tem um papel relevante a desempenhar Eacute a missatildeo de abrir novas perspectivas para o diaacutelogo tentando assim chegar a uma ldquoreformardquo diferente da do passado que culminou com a divisatildeo no seio da Cristandade ocidental Tal missatildeo se exerceraacute em harmonia com o pleno ofiacutecio de testemunho da Igreja que tira seu direito e sua forccedila da presenccedila do Espiacuterito e de Cristo presente em todos os tempos Pois ele eacute sempre o Cristo de agora com a plenitude de seus direitos e de seus poderes Ele eacute quem daacute legitimidade e vigor ao testemunho singular e definitivo da Escritura que por sua vez encontra seu pleno sentido na singularidade da accedilatildeo histoacuterico-salviacutefica de Jesus Cristo Ele deu ao Pai seu Corpo crucificado e dando-se a si mesmo santificou para sempre os que o receberam (cf Hb 1014 727) Ele eacute o Cristo ontem hoje e sempre (Hb 138)

SEGUNDA PARTE

Explicaccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo segundo o Decreto do Conciacutelio de Trento

Parece que a completa elucidaccedilatildeo das razotildees que levaram agrave substituiccedilatildeo do

partim-partim pelo et e consequumlentemente agrave pesquisa dos dados do debate tridentino e de sua preacute-histoacuteria aparentemente favoraacutevel agrave suficiecircncia material da Escritura [40] simplifica indevidamente este problema fazendo-nos perder de vista os proacuteprios antecedentes do Decreto do Conciacutelio de Trento

1 A concepccedilatildeo pneumatoloacutegica da Tradiccedilatildeo no esquema fundamental do Cardeal Cervini

a) O conteuacutedo Um balanccedilo histoacuterico e detalhado do problema em seu conjunto exigiria uma

pesquisa exaustiva que natildeo reduzisse o seu acircmbito como o fez Geiselmann em seu livro25 Natildeo eacute nossa intenccedilatildeo proceder a um exame minucioso do assunto no presente trabalho Aqui soacute seratildeo tratados alguns pontos do debate tridentino com o fim de ampliarmos mais o horizonte de nossas reflexotildees

Fundamental para a compreensatildeo dos debates em pauta bem como do Decreto definitivo do Conciacutelio parece-me ser o Discurso do Cardeal Legado Cervini datado de 18 de fevereiro de 1546 [41] cujas linhas gerais se patenteiam tanto no Decreto como em outras decisotildees conciliares26

Tem o discurso de Cervini o meacuterito de mostrar as linhas diretrizes do Decreto de maneira mais clara do que aparecem estas na uacuteltima redaccedilatildeo do mesmo onde elas se diluem muito devido a uma seacuterie de variadas implicaccedilotildees Eacute ainda de grande auxiacutelio para o entendimento do referido discurso uma carta dos Cardeais Legados ao Cardeal Alexandre Farnese de 28 de fevereiro de 1546 Esta carta revela conteuacutedo idecircntico ndash eacute certamente inspirada pelo mesmo Cervini ndash e oferece ainda alguns outros

25 Eacute lamentaacutevel que Geiselmann em sua anaacutelise da contribuiccedilatildeo medieval sobre este assunto se tenha apoiado apenas em argumentos de segunda matildeo portanto de valor histoacuterico discutiacutevel Queira o leitor ver minhas observaccedilotildees a este respeito in Theol-prakt Quartalschrift 1963 p224-227 As novas (e temperamentais) invectivas de Geiselmann in TThQu 144 (1964) p 31-69 em nada modificaram a minha posiccedilatildeo de vez que natildeo trazem nenhuma contribuiccedilatildeo vaacutelida ao assunto Precioso ao contraacuterio eacute o trabalho de Y CONGAR La Tradition et les traditionshellip Essai historique Paris 1960 Importante eacute tambeacutem a obra de J BEUMER Die muumlndliche uumlberlieferung als Glaubensquelle Friburgo 1962 A respeito do Conciacutelio de Trento cf sobretudo aleacutem do estudo fundamental de JEDIN o artigo de E ORTIGUES Escriture et Traditions apostoliques au Concilie de Trente in RSR 36 (1949) p 271-299 K D SCHMIDT Studien zur Geschichate des Konzilis von Trient Tubinga 1925 p 152-209 26 O discurso nos foi transmitido em duas redaccedilotildees A primeira mais curta encontra-se nas Atas do Conciacutelio in CT V 11 A segunda faz parte do diaacuterio de Massarelli (Diarium III) in CT I p484 Quanto ao conteuacutedo os dois textos se completam Na anaacutelise que aqui ensaiamos as duas versotildees satildeo comparadas entre si de modo a fazerem um todo Sobre a posiccedilatildeo de Cervini no Conciacutelio cf H JEDIN Geschichte des Konzils von Trient II Friburgo 1957 p38-40 A descriccedilatildeo do desenrolar histoacuterico dos debates acha-se em JEDIN op cit p42-82 e supomo-la conhecida do leitor de vez que serve de base para a anaacutelise teoloacutegica do Decreto tridentino

esclarecimentos Cervini sustenta no citado discurso que existem trecircs princiacutepios e fundamentos de nossa feacute

1) Os livros sagrados escritos sob a inspiraccedilatildeo do Espiacuterito Santo 2) O Evangelho que Nosso Senhor natildeo escreveu mas ensinou oralmente e

implantou nos coraccedilotildees Parte do Evangelho foi escrita mais tarde pelos Evangelistas enquanto muita coisa foi simplesmente confiada aos coraccedilotildees dos fieacuteis

3) Porque o Filho de Deus natildeo ia permanecer sempre entre noacutes enviou ele o Espiacuterito Santo que haveria de revelar os misteacuterios no iacutentimo dos fieacuteis e de ensinar agrave Igreja toda a verdade ateacute ao fim dos tempos27

[43] Numa segunda redaccedilatildeo mais detalhada do discurso estas mesmas ideacuteias satildeo

desenvolvidas mais amplamente Aiacute lemos que a Revelaccedilatildeo se apresentou de modo diferente em diversos tempos

1) Nos Patriarcas cuja feacute eacute atestada na Escritura a que chamamos de Antigo Testamento

2) Em Jesus Cristo que implantou o seu Evangelho natildeo por escrito mas oralmente natildeo in charta mas in corde Das coisas que emanaram de Cristo (quaelig a Cristo emanarunt) algumas foram escritas outras permaneceram nos coraccedilotildees dos homens (quaeligdam in cordibus hominum relicta fuerunt) Todo o Evangelho de Cristo que consta desta dupla modalidade forma (tendo como primeiro princiacutepio o Antigo Testamento) o secundum prindipium fidei nostraelig

3) Daiacute surge o terceiro princiacutepio (tertium autem) porque o Filho de Deus natildeo iria permanecer sempre entre noacutes enviou ele ao mundo o Espiacuterito Santo que haveria de explicar os misteacuterios de Deus e tudo o que fosse ainda obscuro para os homens28 De modo semelhante a citada carta ao Cardeal Farnese fala de dois passos (due

passi) Um eacute que a Revelaccedilatildeo de Nosso Senhor natildeo foi totalmente escrita mas permaneceu em parte contida nos coraccedilotildees dos homens e na Tradiccedilatildeo da Igreja O outro [43] passo consiste em confirmar ldquoquello che egrave suggerito lo Spirito Santo in la Chiesa maxime medianti i concilij doppo lAscensione in cielo del Signorerdquo29

Notamos logo que contrariamente ao que esperaacutevamos natildeo dois mas trecircs satildeo os princiacutepios apontados a Escritura o Evangelho e a Revelaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

27 CT V 11 helliptria esse principia et fundamenta nostrae fidei primum libros sacros secundum esse evangelium quod Christus Dominus Noster non scripsit sed ore docuit et in cordibus illud plantavit cujus evangelii nonnulla evangelistaelig scripto mandarunt multa quoque relicta sunt in cordibus hominum Tertium quia non semper filius Dei corporaliter nobiscum mansurus erat misit Spiritum Sanctum qui in cordibus fidelium secreta Dei revelaret et ecclesiam quotidie et usque consummationem saeligculi doceret omnem veritatem et si quid in mentibus hominum dubii occurrisset declararet 28 CT I 484 Digna de nota eacute ainda a foacutermula contida na paacutegina 48514-16 nihil tamen inter scripturas sacras et apostolicas traditianes differt illaelig enim scriptaelig hae per insinuationem habentur utraeque tamen a Spiritu Sancto eodem modo emanataelig Confira-se com CT V 11 19 ab eodem Spiritu et illos (scilicet libros) et istas (scilicet traditiones) descendisse 29 CT X 373

Eacute portanto necessaacuterio observar que sob o termo ldquoEscriturardquo se entende o Antigo Testamento e que aleacutem deste (que eacute Escritura em sentido proacuteprio) aparece como segundo princiacutepio o Evangelho apresentaccedilatildeo do Cristo-evento O Evangelho por sua vez abrange o que estaacute escrito e o que natildeo estaacute escrito mas sim apenas insculpido no coraccedilatildeo dos crentes Deste modo o segundo princiacutepio representa uma vantagem pneumaacutetica sobre o que estaacute escrito o Evangelho eacute nesta concepccedilatildeo algo diferente da letra (Escritura) e soacute em parte vem escrito (Isto natildeo deve ser entendido no sentido de divisatildeo das verdades da feacute fenocircmeno denunciado ldquocom horrorrdquo por Geiselmann Ao contraacuterio Entenda-se apenas no sentido de diferente grau de dignidade no modo de exprimir-se) Em rigor o Evangelho como tal soacute pode ser escrito em parte se considerarmos a sua essecircncia

Finalmente ndash o que eacute muito de se admirar ndash segue-se como terceiro princiacutepio a accedilatildeo visiacutevel do Espiacuterito Santo em todo o tempo da Igreja

Admitimos portanto que o que noacutes geralmente chamamos de Tradiccedilatildeo natildeo aparece aqui como um soacute princiacutepio Biparte-se antes em dois princiacutepios intimamente ligados o ldquoEvangelhordquo princiacutepio apenas em parte identificaacutevel com a Escritura e a accedilatildeo do Espiacuterito Santo no tempo da Igreja Ademais podemos observar que a Escritura do Novo Testamento natildeo aparece como um princiacutepio ao lado da Revelaccedilatildeo apostoacutelica Muito menos como [44] eacute o nosso caso se apresenta a Escritura neotestamentaacuteria juntamente com a veterotestamentaacuteria como uma grandeza uacutenica uma ldquoEscriturardquo soacute agrave qual se poderia contrapor a ldquoTradiccedilatildeordquo como uma segunda grandeza O Novo Testamento em seu conjunto aparece como um segundo e mais amplo princiacutepio ou seja o Evangelho que como tal se opotildee de um lado ao Antigo Testamento e de outro agrave projeccedilatildeo histoacuterica do tempo da Igreja Sua unidade interna eacute evidentemente mais forte e importante do que a sua divisatildeo em escrito e natildeo-escrito Assim o Evangelho como um soacute princiacutepio pode ser contraposto ao Antigo Testamento a despeito desta dupla formalidade A impossibilidade de se representar o Novo Testamento como Escritura impossibilidade esta demonstrada por Satildeo Paulo e pelos primeiros seacuteculos cristatildeos eacute aqui claramente revelada

Ainda uma observaccedilatildeo relativa ao texto a que vimos nos referindo Em nenhum dos dois pontos por noacutes citados no estudo da Tradiccedilatildeo isto eacute nem no elemento contido no primeiro nem no apresentado no terceiro princiacutepio figura a Tradiccedilatildeo como verbal Em ambos os casos ao contraacuterio trata-se mais da Tradiccedilatildeo real com prevalecircncia da realidade sobre as palavras que a atestam Este fato que estaacute claro no terceiro princiacutepio o pneumatoloacutegico vale tambeacutem em relaccedilatildeo agrave implantaccedilatildeo do Evangelho nos coraccedilotildees contida no segundo princiacutepio Tal implantaccedilatildeo vai muito aleacutem do que se encontra expresso na letra da Escritura

Que papel tenham estas ideacuteias exercido nas discussotildees do Conciacutelio pode-se concluir tambeacutem das auctoritates citadas por Cervini entre as quais figuram Jo 16 12 (hellipSpiritus Sanctus suggerethellip) e Fl 3 15 (Quicumque perfecti sumus haeligc sentiamus et si quid aliter sentitis haeligc quoque Deus vobis revelabit) Ambos estes textos satildeo de teor acentuadamente [45] pneumatoloacutegico-presencial30 Que tais ideacuteias natildeo eram

30 CT V 14 e 15 Um exame profundo das auctoritates quer da Escritura quer entre os Santos Padres que neste particular satildeo favoraacuteveis agrave Tradiccedilatildeo seria em si conclusivo para a elaboraccedilatildeo do conceito

estranhas aos Padres conciliares deduz-se ainda de uma seacuterie de outras referecircncias Assim ouvimos o Bispo de Aqui dizer que aleacutem da Sagrada Escritura existe muita coisa na Igreja de Deus que vindo dos Apoacutestolos e passando de geraccedilatildeo a geraccedilatildeo chegou ateacute noacutes assim como muitas outras quaelig etsi scripta Apostoli nobis non reliquerunt per Spiritus Sancti revelationem nobis (tradita) sunt (Tradita estaacute aqui por revelata) 31 Partindo daiacute se poderia descrever a Tradiccedilatildeo justamente como o componente pneumatoloacutegico do Cristo-evento b) A influecircncia do esquema de Cervini em diversas decisotildees conciliares

Eacute verdade que esta concepccedilatildeo tripartida aparece muito atenuada no Decreto

oficial sobre a Tradiccedilatildeo Que poreacutem em suas linhas fundamentais natildeo tenha ela sido de modo nenhum [46] abandonada mostram-no duas outras passagens nas quais o Conciacutelio faz uso por assim dizer in actu das ideacuteias aqui expressas32 Assim na Introduccedilatildeo ao Decreto sobre a Eucaristia (Denz 873) se lecirc Sacrosancta Synodus sanamhellipdoctrinam tradens quam semper catholica Ecclesia ab ipso Jesu Christo Domino Nostro et eius apostolis erudita atque a Spiritu Sancto illi omnem veritatem in dies suggerente (Jo 1416) edocta retinuithellip

Aqui a accedilatildeo proacutepria do Conciacutelio eacute descrita como tradere e a este tradere eacute atribuiacutedo um duplo fundamento De um lado o ensino de Jesus e dos Apoacutestolos (Note-se que este ponto corresponde ao Evangelho segundo a concepccedilatildeo de Cervini E de certo modo tambeacutem pela citaccedilatildeo de Jesus e dos Apoacutestolos se reconhece a dupla modalidade do Evangelho como escrito e como inserido nos coraccedilotildees) De outro lado o ensino dado pelo Espiacuterito Santo que conduz agrave verdade in dies isto eacute no de correr do tempo futuro

O outro texto que pode ser aduzido aqui como prova do que afirmamos encontra-se no Preacircmbulo do Decreto sobre o Purgatoacuterio (Denz 983) Aiacute se lecirc hellipCatholica Ecclesia Spiritu Sancto edocta ex Sacris Litteris et antiqua Patrum traditione in sacris Conciliis et novissime in hac Synodo docuerit A descriccedilatildeo da accedilatildeo proacutepria do

aqui exposto H HOLSTEIN procurou fazer o cotejo destas auctoritates e fecirc-lo de modo admiraacutevel em seu artigo La Tradition dapregraves le Concile de Trente (RSR 47 1959 p367-390 e em particular para o caso em questatildeo a p375) Ele encontra nos textos estudados duas linhas de tendecircncias A linha de Santo Irineu para a qual o testemunho dos Apoacutestolos eacute o de sua personalidade de sua vida e de seu ofiacutecio Aleacutem desta o grupo composto de Tertuliano Cipriano Basiacutelio e Agostinho forma uma corrente que se poderia denominar ldquocerimonialrdquo Oriacutegenes se enquadra em ambos os grupos Existe entre os autores estudados uma seacuterie de textos que se referem agraves observationes consuetudines institutiones e que levam a entender-se a Tradiccedilatildeo neste mesmo sentido Aiacute se vecircem tambeacutem textos que sublinham o aspecto natildeo-escrito do Evangelho enquanto insculpido no coraccedilatildeo dos fieacuteis e aleacutem disso textos que apontam a Igreja como o ldquolugarrdquo da verdade cristatilde 31 CT I 483 (18 de fevereiro de 1546) Em 26 de fevereiro (CT V 18) encontramos Cervini a tratar de novo deste assunto Cf tambeacutem um pronunciamento do Bispo de Fano (CT V 10) nestes termos Cum jam receperimus Scripturas Sacras necessario recipiendaelig sunt traditiones quaelig ab eodem Spiritu Sancto quo scripturaelig dictataelig sunthellip 32 Disto me adverti pela primeira vez atraveacutes de um estudo realizado sob a minha orientaccedilatildeo por CHR LIMBACR a quem sou devedor de muitas informaccedilotildees bibliograacuteficas

Conciacutelio como tradere encontra-se ainda nas declaraccedilotildees sobre o Sacramento da Extrema-Unccedilatildeo (Denz 910)

Finalmente a triacuteplice divisatildeo deixa-se insinuar nas entrelinhas do Decreto sobre a Tradiccedilatildeo embora obscurecida e diluiacuteda por uma seacuterie de acreacutescimos e citaccedilotildees a ele adicionados por outros motivos O Decreto da Tradiccedilatildeo com efeito [47]

1) Fala do Evangelho prometido pelos Profetas na Escritura e refere-se a esta em sentido estrito quer antes quer depois do Antigo Testamento

2) Fala da promulgaccedilatildeo por Cristo do Evangelho que foi transmitido pelos Apoacutestolos sob dupla forma oral e escrita Desta maneira o que natildeo ocorre no exemplo de Cervini aparece aqui antes de tudo o componente pneumatoloacutegico unido com o componente apostoacutelico a ponto de se distinguirem duas modalidades de Tradiccedilatildeo apostoacutelica a que remonta a Cristo e a que remonta ao envio do Espiacuterito Santo Pode-se assim estabelecer que em oposiccedilatildeo ao esquema de Cervini haacute um certo processo de historicizaccedilatildeo que salienta a relaccedilatildeo com o comeccedilo histoacuterico e igualmente parece deslocar o acento da tradiccedilatildeo real para a verbal

3) No epiacutelogo desta parte do Decreto da Tradiccedilatildeo que vimos analisando de novo eacute considerada a ideacuteia da Sagrada Escritura O conceito de Tradiccedilatildeo eacute entatildeo formulado em definitivo e descrito como vel oretenus a Christo vel a Spiritu Sancto dictatas et continua successione in Ecclesia catholica conservatas A referecircncia aos Apoacutestolos eacute omitida Pode-se na verdade considerar tudo isto como uma volta ao que foi dito antes Evidentemente a tradiccedilatildeo ditada pelos Apoacutestolos eacute citada de novo (A expressatildeo continua successione insinua-o) Contudo permanece sempre ainda certa indeterminaccedilatildeo ficando aberta a possibilidade de se encontrar aqui o vestiacutegio do terceiro componente de Cervini o princiacutepio pneumaacutetico propriamente dito Eacute tambeacutem claro que esta ideacuteia eacute discreta sendo adotada uma posiccedilatildeo mais acentuadamente histoacuterica Se agora lanccedilarmos os olhos sobre o que vimos considerando ateacute aqui surgiratildeo

inevitavelmente perguntas qual eacute realmente o sentido proacuteprio da concepccedilatildeo pneumatoloacutegica Como poderia ser perfeitamente entendida a ideacuteia a noacutes estranha de uma revelatio prolongada no tempo em face da unicidade e do caraacuteter [48] histoacuterico da Revelaccedilatildeo que evidentemente era conhecido tanto de Cervini quanto dos Santos Padres e teoacutelogos medievais33

Antes de examinarmos isto devemos esclarecer rapidamente os principais motivos que inspiraram o Decreto tridentino sobre a Escritura e a Tradiccedilatildeo deixando nele um tanto encoberta a concepccedilatildeo pessoal de Cervini Que opiniotildees de teoacutelogos teratildeo intervindo aqui chegando a ser em parte impressas no texto definitivo que resultou do cotejo de muitos pronunciamentos diversos Uma exposiccedilatildeo detalhada deste ponto exorbitaria do acircmbito de nossa anaacutelise Contentemo-nos com umas poucas observaccedilotildees sumaacuterias 33 Sobre este assunto tentei fazer um breve comentaacuterio no meu trabalho ldquoOffenbarung-Schrift-Uberlieferungrdquo in TThZ 67 (1958) p13-27 Cf J BEUMER ldquoDer theoretische Beitrag der Frnhscholastik zum Problem des Dogmenfortschrittsrdquo in ZkTh 72 (1952) p205-226 J de CHELLINCK Pour lrsquohistoire du mot ldquorevelarerdquo in RSR 6 (1916) p149-157

2 Relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a vida da Igreja

em diversas passagens do debate tridentino

Uma primeira seacuterie de motivos entre os quais se compreendem diversos pronunciamentos agraves vezes muito contrastantes em seu aparato exterior patenteia-se na ideacuteia de tradiccedilotildees expressa no Decreto de duas maneiras a) - per manus traditaelig ad nos usque pervenerunt b) - continua successione in Ecclesia catholico conservatas

O que se ocultaraacute sob estas duas foacutermulas que o historiador de hoje tem dificuldades em aceitar justamente por causa do historicismo nelas impliacutecito Podemos dizer que um decisivo papel exerceu aqui o pensamento que sempre aparecia nos debates a saber que as tradiccedilotildees satildeo variaacuteveis que muitas delas foram abolidas pelos Apoacutestolos e que por outro lado se [49] introduziram tradiccedilotildees eclesiaacutesticas que natildeo mais seriam abolidas34 Esta ideacuteia de Tradiccedilatildeo de certo modo se torna clara no tratado escrito sobre o mesmo assunto por Seripando para uso dos Padres Conciliares Seripando fala das Tradiccedilotildees escritas inseridas na Escritura como as claacuteusulas de Tiago o costume de as mulheres se cobrirem com um veacuteu a legislaccedilatildeo sobre o matrimocircnio contida em 1Cor 7 etc E o autor adverte que estas praacuteticas foram abolidas Isto porque embora associadas agrave palavra de Deus na Escritura dela ldquomuito diferemrdquo pois a palavra divina [50] de modo nenhum poderia ser abolida A estas tradiccedilotildees

34 Cabe aqui aduzir uma nova intervenccedilatildeo de Cervini datada de 26 de fevereiro de 1546 (CT I 33 e V 18) onde ele diz que nem todas as tradiccedilotildees procedentes dos Apoacutestolos devem ser conservadas mas somente as que ab Ecclesia receptaelig ad nos usque pervenerunt (V 18) Esta afirmaccedilatildeo anterior agrave formulaccedilatildeo dogmaacutetica feita pelo Concilio deve igualmente ser tida na conta de um autecircntico comentaacuterio do Decreto Aiacute se acentua como condiccedilatildeo essencial das tradiccedilotildees a receptio ecclesiaelig Vem ainda referida uma intervenccedilatildeo do Bispo de Bertinoro em data de 23 de marccedilo (I p 523) na qual ele sublinha que as tradiccedilotildees escritas por vezes foram mudadas Jaacute entre as natildeo-escritas umas foram mudadas e outras natildeo como por exemplo o rito de adicionar aacutegua ao vinho a Crisma a confissatildeo auricular O Bispo de Bertinoro acrescenta que por outro lado alguns pontos existem que permaneceram inteiramente inalterados tais como a crenccedila no descensus ad inferos na virgindade perpeacutetua de Maria a substituiccedilatildeo da observacircncia do saacutebado pela do domingo Temos depois um pronunciamento do Bispo de Bitonto datado de 27 de marccedilo (I 39) Este bispo era de parecer que algumas coisas foram transmitidas pelos Apoacutestolos com a finalidade de serem perpetuamente conservadas (como pertencentes ao depoacutesito da feacute) outras caiacuteram em desuso (como as claacuteusulas de Tiago) e outras enfim foram apenas aconselhadas Assim mesmo na Escritura algumas coisas haacute que foram escritas mas natildeo recebidas em uso por serem mateacuteria de mero conselho Por exemplo ldquose algueacutem te pedir a tuacutenica daacute-lhe tambeacutem o paacutelio se algueacutem te esbofetear numa face oferece-lhe tambeacutem a outrardquo Sem duacutevida excelente ilustraccedilatildeo do sermatildeo da montanha Finalmente consideraccedilotildees idecircnticas podemos encontrar na obra citada de LEJAY Eis outra amostra tirada do discurso de 23 de fevereiro (CT V 13) Nam illaelig (scil traditiones) quaelig ad fidem pertinent eadem sunt recipiendaelig auctoritate qua recipitur evangelium alia autem non ita eum earum plurimaelig immutataelig fuerint ut de bigamis de esu sanguinis et similia De modo semelhante aliaacutes fala tambeacutem Bonuccio (I 525 a 23 de marccedilo de 1546 ecclesia traditiones apostolorum quandoque mutavit verbum autem Dei nunquam mutavit neque mutare potest

Seripando opotildee as natildeo referidas na Biacuteblia e que ora satildeo apostoacutelicas ou oriundas de Conciacutelios universais e aceitas por toda a Igreja ora satildeo particulares e muito variaacuteveis35

Este texto nos leva a uma surpreendente conclusatildeo para Seripando e muitos outros Padres tridentinos36existem tradiccedilotildees na Escritura ldquoTradiccedilatildeordquo natildeo significa o natildeo-escrito Existe quer dentro da Escritura quer fora dela Isto nos conduz a outra pergunta em que consiste para os referidos Padres a essecircncia da tradiccedilatildeo se o que a constitui natildeo eacute o fato de natildeo ser escrita37 Em outros termos como pode a tradiccedilatildeo ser definida positivamente se ela natildeo pode ser suficientemente determinada pela ideacuteia negativa de algo natildeo-escrito

Haacute uma seacuterie de respostas para esta pergunta O proacuteprio Seripando daacute a seguinte definiccedilatildeo Traditiones hoc est Apostolorum seu sanctorum Patrum sanctae et salutares constitutiones38 Mais clara ainda eacute a afirmaccedilatildeo de Cervini citada por Massarelli A objeccedilatildeo do Bispo de Chioggia que aduzia a opiniatildeo de Agostinho de que tudo o que eacute necessaacuterio para a salvaccedilatildeo estava escrito na Biacuteblia respondia Cervini da seguinte maneira Verba illa (isto eacute de Santo Agostinho) formaliter intelligi debent scilicet ad fidem accipiendam ut salvi fiamus Quo vero ad mores et christianam vitam instituendam certo non omnia scripta sunt

[51] E de novo recorre agraves provas tiradas de Jo 1526 e 1426 E indica o princiacutepio pneumatoloacutegico39 O que eacute mais importante eacute que a Tradiccedilatildeo se refere agrave institutio vitaelig agrave presenccedila atuante da Palavra revelada na existecircncia cristatilde Tradiccedilatildeo eacute noutros termos a eficaacutecia da palavra de Deus Sem ela a palavra ficaria esteacuteril 35 Seripando De traditionibus (fevereiro ou marccedilo de 1546) CT XII p517-521 e principalmente a p 521 As expressotildees desta uacuteltima paacutegina chocam-se com a ideacuteia de Cervini sobre a receptio ecclesiaelig 36 Cf o texto citado na nota 11 37 No texto definitivo do Decreto esta ideacuteia natildeo aparece mais Aqui poreacutem com esta primeira designaccedilatildeo expliacutecita da Tradiccedilatildeo vem expressamente acentuado o contraste entre in libris scriptis et sine scripto traditionibus Na segunda redaccedilatildeo o sentido expliacutecito da palavra Tradiccedilatildeo natildeo eacute tatildeo exclusivo Contudo apresenta igual matiz ao se confrontarem as expressotildees omnes libroshellipnec non traditiones ipsas Portanto a ideacuteia positiva da Tradiccedilatildeo que serve de base a esta anaacutelise natildeo deixou de influenciar na redaccedilatildeo do Decreto 38 CT XII 517 39 CT I 494 (26 de fevereiro de 1546) A citada palavra de Santo Agostinho teve o seu papel a desempenhar na discussatildeo em curso Seripando por exemplo a ela se referiu (De traditionibus CT XII 521 47-53) Pensandum denique ne in traditionibus externis vera religio et salutis spes statuatur de quibus Augustinus Omnia quaelig pertinent ad veram religionem quaeligrendam et tenendam divina Scriptura non acuit Conceda-se que nem tudo foi escrito (veja-se Jo 2125) Todavia electa sunt autem quaelig scriberentur quaelig saluti credentium sufficere videbantur Mais do que nos debates do tridentino encontramos aqui um verdadeiro postulado dos Reformadores ldquonatildeo adotar costumes exteriores mas buscar os meios definitivos de salvaccedilatildeo na palavra da Escriturardquo A ldquosuficiecircnciardquo da Escritura de que aqui se fala eacute na verdade algo diverso da suficiecircncia material da mesma Escritura defendida por Geiselmann em sentido muito mais radical Infelizmente ainda natildeo se quis levar na devida consideraccedilatildeo o texto de Santo Agostinho (CT I 494 sugere De doctrina christiana II 9 e De pecc mero et rem II 59) Muito apropriadas nesta ordem de ideacuteias satildeo as observaccedilotildees de H SCHAUF ldquoSchrift und Traditionrdquo in Antonianum 39 (1964) p200-209 feitas no chamado Encontro de Duumlsseldorf Nos textos citados por Schauf com base em Agostinho eacute afirmada a suficiecircncia da Escritura para a salvaccedilatildeo Eacute contudo contestada a sua suficiecircncia para a Igreja em geral De fato esta alternativa parece muito mais vaacutelida e fundamental agrave luz dos postulados dos Reformadores do que a alternativa entre a suficiecircncia ou insuficiecircncia material da Escritura

Na mesma linha de ideacuteias seguem-se duas outras seacuteries de pronunciamentos Vimos na introduccedilatildeo agrave parte anterior que a discussatildeo dogmaacutetica da ideacuteia de

Tradiccedilatildeo foi em parte prejudicada pela questatildeo do meacutetodo a seguir no Conciacutelio dever-se-ia abordar primeiro a reformatio a reforma praacutetica da Igreja como queria o ldquoKaiserrdquo Ou primeiro discutir a questatildeo dogmaacutetica como preferia o Papa40

[52] Este problema do meacutetodo embora resolvido no debate que entatildeo surgiu natildeo afetou diretamente a questatildeo da Tradiccedilatildeo como tal Mas como de fato estas duas questotildees ficaram ligadas entre si daiacute resultou que muitos oradores transformaram a questatildeo do meacutetodo (se se deveria falar dos abusos ou da Tradiccedilatildeo) em parte de sua argumentaccedilatildeo em torno do assunto em pauta41 O problema abusus e o problema Traditio ficaram de tal maneira associados na ocasiatildeo que pareciam formar no fundo um soacute assunto Por isso os oradores ora falavam em sentido positivo ora se pronunciavam em sentido negativo Isto correspondia tambeacutem ao propoacutesito reformista do Conciacutelio as traditiones representavam os abusus aos quais a Igreja se opunha Os Padres estavam cocircnscios de que condenar as traditiones era condenar Os usus ecclesiaelig o modo como a Igreja vivia a sua vida naquela eacutepoca

A outra seacuterie de pronunciamentos que se inclinavam ao mesmo sentido encontramo-la nas proposiccedilotildees que a auctoritas da Igreja apresenta como definitivas indicando uma iacutentima relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a institutio christiana 42

[53] Podemos agora retomar ao nosso ponto de partida e dar resposta agrave pergunta que propriamente significa a foacutermula ad nos usque pervenerunt Objetivamente natildeo se trata aqui de um historicismo que a foacutermula parece expressar Ao contraacuterio Trata-se da fidelidade perseverante da Igreja agrave institutio vitaelig christianaelig da legiacutetima forma de vida cristatilde em concreto no tempo presente da Igreja da institutio christiana que coloca a Escritura em primeiro lugar e que como tal isto eacute como vida decorrente da Escritura eacute fundamentalmente apostoacutelica embora tambeacutem sujeita a mudanccedilas como tudo o que eacute vivo

3 A Tradiccedilatildeo e o dogma eclesiaacutestico

40 Sobre o debate em torno da questatildeo do meacutetodo cf mais uma vez JEDIN op cit p9-82 e outras 41 Assim jaacute no discurso de Cervini antes analisado (CT I 484) no qual ele recorda o dilema do Conciacutelio se nos voltarmos contra as tradiccedilotildees ficaratildeo admirados os Padres Conciliares quasi reformationem fugiamus si ipsam reformationem sumimus iterum objicient traditiones relinquendas non esse Idecircntica era a situaccedilatildeo em que se encontrava o Bispo de Astorga nas duas intervenccedilotildees que fez no dia 23 de fevereiro de 1546 (CT V 13 e 19) segundo Seripando (I 484) helliptraditiones prius pertractandas consulit tantam enim conformitatem abusus qui ex sacris libris descendunt cum iis qui a traditionibus orti sunt habent ut sacris libris et traditionibus absolutis duo illa abusuum genera simul pertractari valeant Segundo Bonuccio (I 484) antes de tudo dever-se-ia tratar das Sagradas Escrituras dos cacircnones apostoacutelicos dos Conciacutelios gerais e das decretais pontifiacutecias Hisque ilusceptis ad abusus ex eisdem dependentes devenire 42 Assim principalmente de acordo com Afonso de Castro (CT I 484) Quoniam ultra traditiones apostolicas ecclesiae auctoritatem habemus quaelig ecclesiaelig auctoritas tonta apud nos est ut aliqui eam maioris roboris quam sacros libros esse sentiant Cf igualmente CT I 491 45 Na mesma linha pode-se ver uma seacuterie de pronunciamentos na citada obra de LEJAY Cf CT XII 524 (Tratado De traditionibus ecclesiaelig fevereiro ou marccedilo de 1546)

Uma segunda seacuterie de motivos eacute expressa no Decreto pela foacutermula traditiones tum ad fidem tum ad mores pertinentes Se como vimos a ideacuteia de Tradiccedilatildeo aparece muito limitada naquilo que os Padres conciliares chamam consuetudines observationes institutiones por outro lado o Procurador do Cardeal de Augsburgo Claudio Lejay SJ se fez o porta-voz de uma expressatildeo que em oposiccedilatildeo agraves traditiones caeligremoniales estabeleceu justamente o sentido da tradiccedilatildeo contida na feacute Seu tratado sobre a Tradiccedilatildeo composto para uso dos Padres conciliares inclui tambeacutem a foacutermula que foi adotada pelo Conciacutelio Aiacute se diz Denique multas veritates tum ad fidem tum ad mores pertinentes Ecclesia novit quas Scriptura aperte et expresse non continet Ele cita como exemplos as palavras persona essentia trinitas no Tratado da Santiacutessima Trindade consubstantialitas na Cristologia do Logos duas naturezas uma soacute Pessoa referentes ao dogma definido pelo Conciacutelio de Calcedocircnia E ainda Cristo Filho uacutenico de Maria duas vontades na uacutenica Pessoa de Cristo uma alma racional aleacutem do espiacuterito divino em Cristo Ana matildee de Maria o costume de fazer sinais da cruz a santificaccedilatildeo do domingo a maneira de rezar com face voltada [54] para o Oriente tudo isto ideacuteias e fatos da tradiccedilatildeo conciliar e da piedade cristatilde43

Cervini que aprovou o discurso de Lejay de 23 de fevereiro de 154644 pocircde dificilmente conciliar esta posiccedilatildeo com a sua expressa na jaacute citada carta ao Cardeal Farnese onde como vimos ele diz que o Espiacuterito Santo falou na Igreja e depois da Ascensatildeo do Senhor fala ainda maxime medianti i concilii45 Ele aiacute viu publicamente sublinhado o fato de que aquele ldquomaisrdquo que a Igreja viva representa em relaccedilatildeo agrave palavra meramente escrita natildeo se referia e natildeo se refere apenas agrave vita instituenda ou como ele prefere agrave caeligremonialia Refere-se tambeacutem agrave essentialia fidei que antes de tudo plenamente se expressam na Tradiccedilatildeo Tambeacutem aqui como se vecirc o interesse dominante natildeo estaacute na apresentaccedilatildeo historicista do assunto a partir do iniacutecio da Igreja mas na ideacuteia de que a influecircncia da Tradiccedilatildeo sobretudo atraveacutes da praxe conciliar eacute de fundamental importacircncia para a feacute para a doutrina crida e natildeo apenas para a piedade viva ou a caeligremonialia

4 O sentido do Decreto tridentino

Se recapitularmos o que ateacute agora dissemos veremos que no conjunto facilmente se podem reconhecer trecircs diferentes concepccedilotildees teoloacutegicas unidas entre si no texto definitivo do Decreto sobre a Tradiccedilatildeo Unidas mas natildeo equiparadas umas agraves outras Pelo contraacuterio apesar de sua grande diferenccedila foram elas apenas [55] mais ou menos justapostas e de novo por forccedila de uma tendecircncia comum relacionadas entre si

1 A concepccedilatildeo de Cervini que designamos como pneumatoloacutegica Com sua doutrina sobre os trecircs principia fidei insiste ele no caraacuteter dinacircmico do Cristo-evento

43 CT XII 523 LEJAY baseia-se evidentemente em listas de tradiccedilotildees confeccionadas naquele tempo (Cf ECK DRIEDO CANO BOTO NOGAROLA) Cf a este respeito Y CONGAR ldquoTraditions apostoliques non eacutecrites et suffisance de lEscrituresrdquo in Istina 6 (1959) p219-306 e principalmente a paacutegina 289 44 CT V 14 45 CT X 373

presente na Igreja Entende assim a Tradiccedilatildeo primariamente como a realidade espiritual da institutio vitaelig christianaelig

2 A concepccedilatildeo que podemos chamar de cerimonial Esta entende a Tradiccedilatildeo essencialmente como a seacuterie de consuetudines existentes ao lado da feacute como os usus ecclesiaelig que os Reformadores falsamente pretendem abolir como abusus Esta concepccedilatildeo chega a condenar a dignidade e Antiguumlidade apostoacutelica das tradiccedilotildees Sua ideacuteia eacute limitada pelo ad nos usque pervenerunt que inclui possibilidade de variar da parte das tradiccedilotildees donde a necessidade de reduccedilotildees Com os termos pervenire e conservare a recepccedilatildeo por parte da Igreja eacute considerada criteacuterio adicional ao lado da Antiguumlidade

3 A concepccedilatildeo que talvez possamos denominar dogmaacutetica Em oposiccedilatildeo agrave fixidez da ideacuteia de Tradiccedilatildeo reduzida agrave consuetudo salienta esta terceira hipoacutetese a extensatildeo do fenocircmeno Tradiccedilatildeo tambeacutem ao acircmbito da fides

Estas trecircs concepccedilotildees deram forma ao texto do Decreto de tal modo que as suas

linhas mestras derivam de Cervini e todo o texto deve ser entendido agrave luz de suas ideacuteias Contudo em duas passagens isto eacute no pervenerunt e no conservatas haacute influecircncia da segunda concepccedilatildeo enquanto no tum ad fidem tum ad mores haacute influecircncia da terceira

Em face destas trecircs concepccedilotildees das quais na realidade existem diversas variantes que tomadas em conjunto satildeo a expressatildeo das ideacuteias dominantes adotadas aparecem as teses de Bonuccio e de Nacchianti tatildeo postas em evidecircncia por Geiselmann como sentenccedilas contraacuterias De fato o parecer de Bonuccio claramente [56] se opotildee agrave segunda concepccedilatildeo (contra a supervalorizaccedilatildeo das consuetudines natildeo per pietatis affectus) ao passo que Nacchianti se levanta antes contra a terceira posiccedilatildeo e salienta a suficiecircncia da feacute recebida por meio da Escritura46

Seria de notar-se ainda que as concepccedilotildees segunda e terceira tecircm algo em comum Ambas opotildeem agrave visatildeo pneumatoloacutegica de Cervini da salvaccedilatildeo sempre presente uma visatildeo mais historicista relacionada com o prolongamento da salvaccedilatildeo operada uma soacute vez ou seja o ἑφάπαξ Na realidade deve-se dizer que embora de um lado tanto a visatildeo presencial de Cervini como tambeacutem a visatildeo historicista do outro grupo se consideradas isoladamente cada qual de per si sejam perigosas se natildeo insustentaacuteveis 46 Aliaacutes de acordo com uma informaccedilatildeo de Cervini parece que o Bispo de Chioggia finalmente renunciou agrave sua tese da suficiecircncia da Escritura na qual se inclinava a recusar as tradiccedilotildees Na carta de Cervini ao Cardeal Farnese de 27 de fevereiro de 1546 lemos hellip Chioggia che (quasi quasi) voleva dire queste traditioni essere superflue perorando che tutto quello che era necessario alla salute era scritto et allegando etiam S Agostino sopra lultimo capitulo di S Giovanni a questo proposito Pure per non poter negare che molte cose appartenenti almeno alli sacramenti non ci fussero venute ex tra ditione et per consequente che non tutte le cose necessarie alia nostra salute erano scritte poiche ebbe fatte molte distintioni concluse che ancor lui accettava queste ldquoche in la chiesa fusse qualque traditione apostolica non scrittardquo (et con queste parole diceva che se ne facesse il decreto) credo che molti sono restati scandalizati di lui (CT X Nr 315 paacutegs 399 411) Cf tambeacutem CT I 494 nota 9 e 495 nota 2 CT V 18 nota 5 e 19 e nota 1 O mesmo protesto que aparece contra Nacchianti manifesta-se tambeacutem na observaccedilatildeo de Massarelli Este chega a chamar aquele de novarum rerum cupidus (1 494 18) e esclarece que reprehensus est a multis (1 494 22) Diante disto eacute de todo destituiacuteda de creacutedito a importacircncia que Geiselmann lhe atribui mesmo se abstrairmos de outras razotildees jaacute conhecidas sobre as quais natildeo precisamos insistir

de outro lado pelo menos tornam possiacutevel uma exata visatildeo do conjunto devido agrave sua muacutetua confluecircncia e limitaccedilatildeo No texto atual estatildeo presentes embora pouco nitidamente ambos os pontos de vista o elemento presencial e o ἑφάπαξ Conveacutem que entendamos assim o texto de modo a considerarmos [57] ambos estes aspectos como essenciais Consequumlentemente reconheceremos que ambos pertencem constitutivamente agrave realidade da vida cristatilde e portanto tambeacutem agravequela parcela do Cristianismo a que damos o nome de Tradiccedilatildeo Estes dois elementos satildeo a presenccedila do Espiacuterito Santo e o seu nexo com o fato singular da salvaccedilatildeo ocorrido uma soacute vez por todas na histoacuteria dos homens

Assim se acharaacute finalmente a resposta agrave pergunta de corno noacutes devemos entender o parecer do Conciacutelio de Trento A primeira e mais importante conclusatildeo parece-me ser o fato de o Conciacutelio ter visto muito claramente o nexo entre Tradiccedilatildeo e Revelaccedilatildeo A seguir elaborou sempre em consonacircncia com a tradiccedilatildeo patriacutestica e medieval um conceito de Revelaccedilatildeo muito menos material do que o que seraacute adotado mais tarde pela teologia dos tempos modernos Somente assim se deve conceber a ideacuteia da Revelaccedilatildeo do Espiacuterito Santo na Igreja Partindo do ramo nitidamente patriacutestico da teologia medieval tatildeo francamente acolhido no discurso de Cervini deveria ser muito menos categoacuterica a opiniatildeo que coloca o teacutermino da Revelaccedilatildeo na morte do uacuteltimo Apoacutestolo Naturalmente esta questatildeo natildeo pode ser aqui estudada com maiores detalhes A sua soluccedilatildeo como entatildeo se apresentava aos teoacutelogos poderia ser hoje impostada apelando-se para as categorias da teologia atual Segundo esta podemos dizer que a Revelaccedilatildeo estaacute encerrada do ponto de vista de seu princiacutepio material Todavia estaacute e continua presente em sua realidade eficaz Noutros termos a Revelaccedilatildeo tem eacute verdade o seu ἑφάπαξ enquanto ela se realizou num determinado dia na Histoacuteria Entretanto ela tem tambeacutem o seu ldquohojerdquo permanente isto eacute o que foi uma vez por todas realizado na feacute da Igreja permanece sempre vivo e operante Assim a feacute cristatilde natildeo se volta apenas para o passado Abrange tambeacutem o presente e o futuro Eacute verdade que a posterior materializaccedilatildeo historicista da ideacuteia de Revelaccedilatildeo aparece jaacute claramente insinuada nos debates tridentinos corno um fato previsto mas ainda [58] natildeo consumado embora talvez se possa dizer que nos textos conciliares ficou definitivamente consagrada a sua aceitaccedilatildeo

Finalmente acrescentemos ainda que com base nos debates do Conciacutelio podemos estabelecer quatro elementos da ideacuteia de Tradiccedilatildeo 1 O aspecto natildeo-escrito da Revelaccedilatildeo ou do Evangelho contido na Biacuteblia e no coraccedilatildeo dos fieacuteis 2 A palavra do Espiacuterito Santo no decorrer de todo o tempo da Igreja

3 A atividade da Igreja nos Conciacutelios 4 A Tradiccedilatildeo lituacutergica e a da vida da Igreja em geral Nestes quatro elementos

que se deve ter sob os olhos pois formam o fundo ideoloacutegico do Decreto expressa-se a realidade uacutenica do tempo presente da Igreja cristatilde Nele estaacute presente todo o passado poacutes-apostoacutelico da Igreja (inclusive o proacuteprio tempo dos apoacutestolos) de modo que toda a sua vida eacute na Sagrada Escritura um elemento central embora natildeo o uacutenico Em suma deve ter ficado claro que o Conciacutelio de Trento a despeito do caraacuteter contrastante e fixo de sua ideacuteia de Revelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeo oferece uma visatildeo muito mais rica destes conceitos do que a que impregnou a mentalidade dos seacuteculos seguintes Justamente por

isso a teologia de hoje pode retirar daiacute novos subsiacutedios novo apoio para suas pesquisas e novas indicaccedilotildees sobre o verdadeiro caminho a seguir

Quadro sinoacutetico do Decreto tridentino sobre a Tradiccedilatildeo

Primeiro princiacutepio conforme Cervini (AT = Escritura)

Sacrosancta œcumenica et generalis Tridentina Synodus in Spiritu Sancto legitime congregata [] hoc sibi perpetuo ante oculos proponens ut sublatis erroribus puritas ipsa EVANGELII in Ecclesia conservetur quod PROMISSUM ANTE PER PROPHETAS IN SCRIPTURIS SANCTIS

Segundo princiacutepio conforme Cervini o Evangelho em parte escrito em parte insculpido nos coraccedilotildees

[59] DOMINUS NOSTER IESUS CHRISTUS DEI FILIUS PROPRIO ORE PRIMUM PROMULGAVIT DEINDE PER SUOS APOSTOLOS TAMQUAM FONTEM OMNIS ET SALUTARIS VERITATIS ET MORUM DISCIPLINAE OMNI CREATURAE PRAEDICARI IUSSIT PERSPICIENSQUE HANC VERITATEM ET DISCIPLINAM CONTINERI IN LIBRIS SCRIPTIS ET SINE SCRIPTO TRADITIONIBUS QUAE AB IPSIUS CHRISTI ORE AB APOSTOLIS ACCEPTAE AUT AB IPSIS APOSTOLIS SPIRITU SANCTO DICTANTE

Seripando Cervini e outros soacute consideram as tradiccedilotildees recebidas pela Igrej (ldquoad nos usquerdquo)

quasi per manus traditae ad nos usque pervenerunt

orthodoxorum Patrum exempla secuta omnes libros tam Veteris quam Novi Testamenti cum utriusque unus Deus sit auctor nec non TRADITIONES IPSAS

Lejay Tradiccedilatildeo contendo natildeo soacute a ldquoconsuetudordquo mas relacionada tambeacutem com a ldquofidesrdquo (foacutermula conciliar)

tum ad fidem tum ad mores pertinentes

Terceiro princiacutepio de Cernini Depois da Ascenccedilatildeo de Cristo o Espiacuterito Santo ensina tambeacutem os misteacuterios de Deus

TAMQUAM VEL ORETENUS A CHRISTO VEL A SPIRITU SANCTO DICTATAS

Seripando Cervini etc soacute satildeo consideradas as coisas recebidas pela Igreja (como acima)

et continua successione in Ecclesia catholica conservatas

Cervini Escritura e Tradiccedilatildeo procedem ambas do mesmo Espiacuterito Santo

pari pietatis affectu ac reverentia suscipit ac veneratur

  • Prefaacutecio
  • SEGUNDA PARTE
  • Explicaccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo
  • segundo o Decreto do Conciacutelio de Trento
Page 19: Revelacao e Tradicao-Joseph Ratzinger (Bom Ler)

que natildeo crecirc acha-se como que coberto por um veacuteu o veacuteu de que fala Satildeo Paulo no terceiro capiacutetulo da segunda epiacutestola aos Coriacutentios15 Ele pode ler a Escritura e saber o que nela se conteacutem Pode ateacute mesmo apreender de modo puramente intelectual o que aiacute eacute significado e como suas ideacuteias se inter-relacionam Todavia natildeo possui com isto a Revelaccedilatildeo A Revelaccedilatildeo eacute sobretudo possuiacuteda quando aleacutem da expressatildeo material que a atesta se potildee tambeacutem em praacutetica o seu conteuacutedo interno por meio da vivecircncia da feacute Com efeito de certo modo se inclui tambeacutem na Revelaccedilatildeo o sujeito recipiente sem o qual ela natildeo pode existir Natildeo se pode pocircr a Revelaccedilatildeo no bolso como se faz com [26] um livro Ela eacute uma realidade viva Exige homens vivos que a recebam que sirvam de ldquolugarrdquo de sua presenccedila

Repetindo o que ateacute aqui dissemos podemos afirmar que a Revelaccedilatildeo sobreexcede de fato a Escritura em dois sentidos

a) em sentido ascendente ela atinge sempre como realidade procedente de Deus o agir divino sobre as criaturas

b) como realidade que se daacute ao homem por meio da feacute ela atinge igualmente a Escritura

Desta diferenccedila entre a Escritura e a Revelaccedilatildeo resulta claramente que de todo independentemente da questatildeo se a Escritura eacute ou natildeo eacute a uacutenica fonte material em rigor nunca existe para o cristatildeo a sola Scriptura (Isto como ficou dito era claro em princiacutepio para os grandes Reformadores e comeccedilou a ser esquecido na chamada ortodoxia protestante) A Escritura natildeo eacute a Revelaccedilatildeo Eacute sim em uacuteltima anaacutelise uma parte desta realidade mais ampla

2 Os diferentes sentidos da Escritura

no Antigo e Novo testamento A problemaacutetica cristatilde da Revelaccedilatildeo ou o problema ldquoEscritura e Tradiccedilatildeordquo situa-se

melhor se considerarmos o duplo aspecto da mesma Revelaccedilatildeo no Antigo e no Novo Testamento A este duplo aspecto corresponde tambeacutem um duplo sentido da Escritura Assim como os dois Testamentos como tais se distinguem essencialmente assim tambeacutem devemos dizer que a ldquoEscriturardquo como um fato natildeo eacute repetida duas vezes do mesmo modo Isto aparece muito claro nos livros neotestamentaacuterios Sob a expressatildeo ldquoEscriturardquo designam eles somente o Antigo Testamento Para eles o AT eacute e permanece sendo ldquoa Escriturardquo cujo sentido se aclara mediante sua confirmaccedilatildeo no evento da [27] vinda de Cristo16 Os livros do NT natildeo jogam uma Escritura nova contra uma Escritura antiga Nem potildeem uma simplesmente ao lado da outra Potildeem sim em face da uacutenica Escritura ou seja do Antigo Testamento o Cristo-evento como o espiacuterito que explica a letra Esta concepccedilatildeo fundamental ilumina tambeacutem a forma da feacute mais antiga e a torna por primeiro compreensiacutevel O ldquoJesusrdquo formal eacute o ldquoCristordquo expresso no Antigo Testamento Natildeo eacute outra coisa No Jesus Histoacuterico o Cristo-mensagem do

15 Cf sobre estas reflexotildees o importante artigo (ἀποκαλύπτω de A OEPKE in ThWNT III p565-597 16 Ver sobre este ponto as preciosas conclusotildees de G SCHRENK art γραφή ndash γράμμα in ThWNT I p749-769 e a p767

Antigo Testamento atinge a sua consumaccedilatildeo Eacute a partir do AT que se entende quem eacute Jesus E o que o Testamento Antigo expressa pode ser visto agrave luz do Cristo-evento

Esta ideacuteia aparece em Paulo ao apresentar ele o Antigo e o Novo Testamentos como Gramma e Pneuma isto eacute letra e espiacuterito (2Cor 3 6-18) Ele chama ao Senhor de Pneuma A Escritura explica-o como sendo o seu sentido o seu conteuacutedo verdadeiro e vivo e natildeo apenas literaacuterio Paulo se refere agrave concepccedilatildeo do Novo Testamento apresentada por Jeremias (3133) Natildeo eacute mais necessaacuteria nenhuma Escritura porque a lei estaacute escrita nos coraccedilotildees Jaacute natildeo eacute necessaacuteria nenhuma doutrinaccedilatildeo vinda de fora porque o proacuteprio Deus instrui os homens Joatildeo exprime idecircntico pensamento em seguimento ao decircutero-Isaiacuteas (5413) quando descreve a era inaugurada por Cristo como o tempo no qual todos satildeo doutrinados por Deus mesmo E o sermatildeo de Pedro em Pentecostes transmitido pelos Atos dos Apoacutestolos (2 14-36) desenvolve a mesma ideacuteia tirada de Joel (3 1-5) Em todos estes casos aparece a era instaurada por Cristo como resposta agrave esperanccedila no advento de um tempo futuro que em uacuteltima anaacutelise haveria de tornar supeacuterflua a Escritura graccedilas agrave presenccedila imediata do Divino Mestre na Sua humanidade

Quando se pondera o sentido destas afirmaccedilotildees torna-se claro [28] que ao reduzir-se a ldquoEscriturardquo aos escritos do Antigo Testamento natildeo se estaacute apenas usando uma terminologia antiga que teria sido adotada por falta de escritos propriamente neotestamentaacuterios e que teria perdido seu sentido na segunda metade do seacuteculo segundo com o iniacutecio do cacircnon do Novo Testamento Ao contraacuterio Aqui se expressa uma consciecircncia que se tornaria mais niacutetida a partir da formaccedilatildeo da proacutepria Escritura neotestamentaacuteria muito ao inveacutes de cessar ou de desaparecer

Uma coisa eacute certa a ldquoEscriturardquo na nova ordem da salvaccedilatildeo inaugurada por Cristo toma um lugar distinto do que lhe cabia no Antigo Testamento Com isto pode-se ver ateacute que ponto o Antigo Testamento tem sentido autocircnomo O AT certamente natildeo aparecia desde o comeccedilo como Testamento do Gramma Escritura em sentido proacuteprio como ocorreraacute na pena de Satildeo Paulo17 Por outro lado manifesta-se realmente a partir de Jeremias e do decircutero-Isaiacuteas o anelo pela superaccedilatildeo do Gramma mediante uma nova e imediata comunicaccedilatildeo do Espiacuterito de Deus simultaneamente com a progressiva formaccedilatildeo de um princiacutepio da Escritura que mais e mais a transformou em Lei Lei esta que natildeo tornaria os homens vivos mas sim mortos

Desta maneira na concepccedilatildeo neotestamentaacuteria aparece o Antigo Testamento como ldquoEscriturardquo em sentido proacuteprio Escritura que atinge o seu verdadeiro significado atraveacutes do Cristo-evento pelo fato de ser ela inserida no contexto vivo da realidade de Cristo Se no Novo Testamento de facto a Escritura cresceu natildeo pode mais ter aquele sentido uacuteltimo e exclusivo que lhe competia no Antigo segundo a concepccedilatildeo paulina Ao contraacuterio Ela eacute a chave com que se abre o Antigo Testamento deixando-se banhar na claridade do Cristo-evento Ela eacute tambeacutem a ponte permanente que conduz a uma nova interpretaccedilatildeo biacuteblica agrave luz [29] de Cristo Num caso e noutro a Escritura natildeo pretende de modo nenhum ser autocircnoma nem ser a fonte uacutenica e exclusiva de sua exegese literal Mas soacute pode ter sentido na realidade espiritual de Jesus Cristo que

17 Ver a apreciaccedilatildeo feita por G VON RAD Theologie des Alten Testaments II Munique 1960 p402-424

permanece junto dos seus todos os dias ateacute ao fim do mundo (Mt 28 20) Apoacutes a subida ao Calvaacuterio Cristo veio de novo no Espiacuterito Santo (como narra Satildeo Joatildeo) e pelo Espiacuterito ensinou aos disciacutepulos o que eles entatildeo natildeo podiam ainda entender enquanto o Senhor estava entre eles sob forma visiacutevel (Jo 16 12)

3 Cristo a Revelaccedilatildeo de Deus

A realidade que se daacute como um acontecimento na Revelaccedilatildeo cristatilde natildeo eacute nada

mais nada menos do que o proacuteprio Cristo Cristo eacute a Revelaccedilatildeo em sentido proacuteprio ldquoQuem me vecirc vecirc o Pairdquo diz ele no Evangelho de Satildeo Joatildeo (14 9) Vale portanto dizer que receber a Revelaccedilatildeo eacute penetrar na realidade de Cristo no Cristo-evento Daiacute procede o paradoxo descrito por Satildeo Paulo ao fazer ele um trocadilho com as palavras ldquoCristo em noacutesrdquo e ldquonoacutes em Cristordquo

Neste contexto a anaacutelise de frases isoladas torna-se secundaacuteria de vez que elas satildeo apenas explicaccedilotildees do uacutenico misteacuterio de Cristo Consequumlentemente cai por si mesma a questatildeo da suficiecircncia interna da Escritura tatildeo discutida desde o aparecimento das obras de Geiselmann Deveriacuteamos isto sim perguntar que significa em linguagem cristatilde a suficiecircncia interna da Escritura ldquoSuficienterdquo eacute soacute a realidade do Cristo-evento Esta pode ser explicada materialmente em maior ou menor grau E de maneira nunca definitiva Partindo deste princiacutepio podem existir tambeacutem outras explicaccedilotildees segundo a Escritura quando se aprofunda mais este assunto

Este mesmo tema pode ser considerado sob outro aspecto E ter-se-aacute entatildeo dado um passo a mais para a frente A aceitaccedilatildeo [30] da Revelaccedilatildeo pela qual aplicamos a noacutes o Cristo-evento vem na linguagem da Biacuteblia sob o nome de ldquofeacuterdquo Assim talvez se entenderaacute mais claramente de que maneira no Novo Testamento a feacute significa a ldquoin-habitaccedilatildeordquo de Cristo Se admitirmos que na Escritura a presenccedila da Revelaccedilatildeo tem o mesmo sentido que a presenccedila de Cristo entatildeo teremos de fato dado um passo adiante Ora na Escritura encontramos a presenccedila de Cristo apresentada de duas maneiras Ela aparece de um lado como jaacute vimos identificada com a feacute (Ef 317) na qual cada um encontra Cristo e se adentra nele penetrando no dinamismo de sua forccedila salvadora Por outro lado a feacute se oculta tambeacutem sob a expressatildeo paulina ldquoCorpo de Cristordquo o que quer dizer que a comunidade dos fieacuteis ndash a Igreja ndash funda a presenccedila de Cristo neste mundo Nela Cristo reuacutene os homens e os faz partiacutecipes de sua presenccedila dinacircmica18

Tomadas juntas estas duas noccedilotildees significam o seguinte a feacute eacute a adesatildeo iacutentima agrave presenccedila de Cristo realidade de Cristo presente da qual a Escritura nos daacute testemunho sem contudo se identificar de modo nenhum com ela Daiacute resulta que a presenccedila da Revelaccedilatildeo se relaciona essencialmente com a ldquofeacuterdquo e com a ldquoIgrejardquo realidades estas que como vimos estatildeo estreitamente ligadas entre si

Voltamos assim ao que foi afirmado na primeira tese a saber que a Revelaccedilatildeo sobreexcede a Escritura em duplo sentido em relaccedilatildeo a Deus por seu lado ascendente e em relaccedilatildeo tambeacutem ao homem que a recebe Esta asserccedilatildeo que a princiacutepio deixamos

18 H SCHLIER ldquoDie Kirche nach dem Brief an die Epheserrdquo in Die Zeit der Kirche Friburgo 1962 p159-186

um tanto vaga encontramo-la essencialmente concretizada na realidade objetiva do Cristianismo

4 A essecircncia da Tradiccedilatildeo

[31] A transmissatildeo ao povo de Deus do Cristo-evento que eacute a Revelaccedilatildeo e que tem sua bi-presenccedila na feacute e na Igreja faz-se atraveacutes da pregaccedilatildeo Pregaccedilatildeo eacute a ldquoex-posiccedilatildeordquo (Aus-legung) do duplo aspecto da Revelaccedilatildeo no Antigo e no Novo Testamento E isto de duas maneiras

a) ela eacute a exposiccedilatildeo do Antigo Testamento agrave luz do Cristo-evento e para o Cristo-evento

b) a partir do Pneuma e da condiccedilatildeo presente da Igreja Este uacuteltimo aspecto eacute possiacutevel pois Cristo natildeo estaacute morto Estaacute vivo Natildeo eacute

apenas o Cristo de ontem Eacute tambeacutem e a fortiori o Cristo de hoje e de amanhatilde o Cristo vivo e presente em sua Igreja que eacute seu Corpo e na qual o seu espiacuterito opera

Isto poderaacute ser melhor compreendido se partirmos da essecircncia da Igreja Como nos ensina o Novo Testamento a mensagem de Jesus eacute antes de tudo uma mensagem escatoloacutegica com vistas ao reino de Deus natildeo com vistas agrave Igreja O fato de existir a Igreja natildeo se opotildee a esta mensagem mas haacute na marcha gradativa das revelaccedilotildees de Cristo uma segunda possibilidade Assim a atividade dos Doze depois de Pentecostes aponta natildeo para a Igreja mas para o reino de Deus Informam-nos os Atos dos Apoacutestolos que os Doze natildeo se ocuparam primordialmente em missionar os povos Esforccedilaram-se antes muito mais em converter Israel criando deste modo as condiccedilotildees preacutevias para a implantaccedilatildeo do reino De iniacutecio uma seacuterie de obstaacuteculos histoacutericos entre os quais deveriacuteamos citar antes de tudo o martiacuterio de Estevatildeo o supliacutecio de Tiago e por fim o fato decisivo da prisatildeo e da libertaccedilatildeo de Pedro Tais fatos levaram a comunidade primitiva segundo dizem as fontes a reconhecer como definitivo o malogro do esforccedilo de converter Israel E consequumlentemente forccedilaram os Apoacutestolos a partir em busca dos gentios e a cuidar [32] assim da Igreja e natildeo do reino Eles o fazem segundo se depreende das passagens referidas e principalmente dos esclarecimentos do capiacutetulo 15 dos Atos dos Apoacutestolos como uma nova opccedilatildeo feita sob a accedilatildeo do Espiacuterito Santo Com isso iniciou-se uma nova interpretaccedilatildeo da mensagem de Cristo sobre a qual a Igreja essencialmente repousa19

19 Cf as decisivas conclusotildees de E PETERSON ldquoDie Kircherdquo in Theologische Traktate Munique 1951 p 409-429 H SCHLIER Die Entscheidung fuumlr die Heidenmission in der Urchristenheit Die Zeit der Kirche p 90-107 Parece-me certo que nem a anaacutelise da tradiccedilatildeo sinoacutetica relativa agrave mensagem de Jesus e seu caraacuteter escatoloacutegico nem o estudo da histoacuteria da Igreja primitiva com base no material fornecido pelos Atos dos Apoacutestolos autorizam qualquer outra conexatildeo entre a mensagem do reino e a pregaccedilatildeo da Igreja Daiacute natildeo se segue de modo nenhum ndash como muitas vezes se teme ndash que a cruz seja um acidente secundaacuterio que em rigor poderia ter sido evitado Ao contraacuterio A estrutura da Igreja moldada sobre a cruz eacute fundamental porque aiacute eacute que por primeiro se encontra a confirmaccedilatildeo da importacircncia da liberdade humana de Cristo e da sua Paixatildeo bem como a iacutentima dependecircncia da Igreja para com a Cruz donde ela procede

Este fato que baseia o estabelecimento definitivo da Igreja sobre uma decisatildeo tomada ldquono Espiacuterito Santordquo eacute o fundamento para se afirmar que existe uma interpretaccedilatildeo eclesial do Novo Testamento do mesmo modo que existe uma exegese cristoloacutegica do Antigo Daiacute podermos estabelecer as seguintes teses ou proposiccedilotildees agrave luz da analogia fidei

a) Existe uma teologia veterotestamentaacuteria do Antigo Testamento que o exegeta

deduz de seu conteuacutedo interno e que se desenvolve em uma seacuterie de camadas superpostas Segundo ela os textos antigos devem ser relidos e de novo expostos agrave luz dos novos acontecimentos O fenocircmeno da aplicaccedilatildeo dos textos agraves situaccedilotildees novas do desdobramento da Revelaccedilatildeo mediante nova [33] apresentaccedilatildeo do Antigo Testamento estrutura jaacute de modo essencial o conteuacutedo interno veterotestamentaacuterio20

b) Existe uma teologia neotestamentaacuteria do Antigo Testamento que natildeo coincide com

a referida teologia veterotestamentaacuteria Estaacute contudo estreitamente ligada com ela na unidade da analogia fidei21 Talvez partindo daqui se possa esclarecer o que significa a analogia fidei entre Os dois Testamentos A teologia neotestamentaacuteria do Antigo Testamento natildeo eacute como ficou dito idecircntica agrave teologia histoacuterica veterotestamentaacuteria Ao contraacuterio Re-exposiccedilatildeo feita agrave luz do Cristo-evento ela natildeo procede soacute da mera consideraccedilatildeo histoacuterica do Antigo Testamento Sendo embora em seu pleno conceito uma interpretaccedilatildeo relacionada com o Antigo Testamento contudo nada faz com que ela seja internamente estranha agrave sua essecircncia ainda que soacute de fora o atinja Ela amplia a forma estrutural do Antigo Testamento que assim interpretado revive e cresce

c) Existe uma teologia neotestamentaacuteria do Novo Testamento paralela agrave teologia veterotestamentaacuteria do Antigo Ou seja a teologia que o exegeta como tal pode deduzir do conteuacutedo interno do Novo Testamento eacute tambeacutem esta conhecida e estruturada mediante a aplicaccedilatildeo do Antigo Testamento agraves novas situaccedilotildees

d) Existe uma teologia eclesial do Novo Testamento que noacutes [34] chamamos Dogmaacutetica Ela se relaciona com a teologia neotestamentaacuteria do Novo Testamento do mesmo modo que a teologia neotestamentaacuteria do Antigo se relaciona com a respectiva teologia veterotestamentaacuteria Aquele ldquomaisrdquo (das Mehr) que distingue propriamente a Dogmaacutetica da teologia biacuteblica eacute o que designamos com a palavra Tradiccedilatildeo Aliaacutes tambeacutem aqui devemos salientar que a teologia eclesiaacutestica neotestamentaacuteria pela mesma razatildeo natildeo eacute simplesmente idecircntica agrave teologia neotestamentaacuteria interna e

20 Cf H GROSS Motivtransposition als Form- und Traditionsprinzip im Alten Testament in H VORGRIMLER Exegese und Dogmatik Moguacutencia 1962 p134-152 e a bibliografia aiacute fornecida G v RAD Theologie des Alten Testaments II Munique 1960 p332-339 396-401 21 A diferenccedila entre as duas teologias do Antigo Testamento foi vivamente exposta por R BULTMANN ldquoWeissagung und Erfuumlllungrdquo in Glauben und Verstehen II Tubinga 1952 p162-186 - Sobre as necessaacuterias correccedilotildees a se fazerem para que se torne visiacutevel a base histoacuterica do que a teologia sistemaacutetica denomina ldquoanalogia fideirdquo cf G v RAD op cit p329-424 (entre outras) e principalmente a p 420 nota 25 e a p422 nota 29 Sobre o tema ldquoanalogia fideirdquo em ambos os Testamentos cf tambeacutem E PRZYWARA Alter und Neuer Bund Viena-Munique 1956

histoacuterica do Novo Testamento Ultrapassa-a sem contudo ser-lhe puramente externa Com efeito no Novo Testamento comeccedila jaacute o processo da exposiccedilatildeo pela Igreja das verdades reveladas A teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento processa-se dentro dele proacuteprio como de modo clariacutessimo se percebe na histoacuteria da Revelaccedilatildeo sinoacutetica22

Eacute oportuno fazermos ainda uma pequena observaccedilatildeo se cotejarmos atentamente a teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento com a Dogmaacutetica reconheceremos que se impotildee uma outra distinccedilatildeo A Dogmaacutetica como ciecircncia aleacutem da exposiccedilatildeo eclesiaacutestica do Novo Testamento abrange tambeacutem a teologia particular de cada teoacutelogo Neste caso para se falar com precisatildeo dever-se-ia apresentar somente o proacuteprio dogma como teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento

O que acabamos de referir natildeo passa naturalmente de um esboccedilo que necessitaria em seus pormenores de natildeo poucos esclarecimentos e distinccedilotildees a fim de ser completo No caso presente entretanto damos por suficiente este esboccedilo Resumindo o que ateacute aqui expusemos podemos agora destacar vaacuterias ldquoraiacutezesrdquo da Tradiccedilatildeo e apontar vaacuterias camadas em seu seio [35] lordf raiz a maior amplidatildeo da ldquoTradiccedilatildeordquo em referecircncia agrave ldquoEscriturardquo

2ordf raiz o caraacuteter especiacutefico da Revelaccedilatildeo neotestamentaacuteria como Pneuma em contraste com o Gramma Eacute o que na linguagem de Bultmann se poderia chamar de sua condiccedilatildeo de ldquonatildeo-objetordquo (Nichtobjektiviertbarkeit) A praxe eclesiaacutestica e a teologia medieval expressaram este aspecto ao sobreporem a fides agrave Scriptura isto eacute o dogma como regra de feacute agraves minuacutecias da lei escrita23 O dogma eacute como a chave hermenecircutica da Escritura que em uacuteltima anaacutelise sem o auxiacutelio da hermenecircutica ficaria sendo algo fechado

3ordf raiz o caraacuteter presencial do Cristo-evento e a presenccedila dinacircmica do Espiacuterito de Cristo em seu Corpo a Igreja E consequumlentemente o poder que tem a Igreja de fazer a pregaccedilatildeo do Cristo ontem e hoje pregaccedilatildeo esta cuja fonte se encontra na interpretaccedilatildeo eclesiaacutestica da mensagem do reino transmitida pelos Apoacutestolos

Em conexatildeo com estas trecircs raiacutezes da ideacuteia (ou melhor da realidade) da Tradiccedilatildeo podem distinguir-se na mesma as seguintes camadas

a) Na origem de toda Tradiccedilatildeo estaacute o fato de que o Pai enviou o Seu Filho ao mundo e que o Filho por sua vez se [36] entregou ndash como sinal ndash aos ldquopovosrdquo (παραδίδοται) Esta paraacutedosis original em sua forccedila direta e salvadora

22 Cf por exemplo a rica exposiccedilatildeo de G BORNKMANN Jesus von Nazareth Estutegarte 1956 Sobre a questatildeo aqui estudada cf H SCHLIER Uumlber Sinn und Aufgabe einer Theologie des Neuen Testaments in H VORGRIMLER Exegese und Dogmatik Mainz 1962 p6990 23 O que haacute de melhor sobre este assunto no tocante agrave Patriacutestica seraacute encontrado em HARNACK DG II (1931) p84-116 HARNACK diz na p 87 nota 3 o seguinte ldquoO Cacircnon era de iniacutecio a regra da feacute A Escritura estaacute centrada na verdade Sem duacutevida nenhuma sua autoridade funda-se solidamente no Antigo Testamento e nas palavras do Senhorrdquo ndash Que assim tenha pensado tambeacutem a Idade Meacutedia e que aqui aleacutem da revelatio (da qual falaremos na 2ordf parte deste livro) a fides sobrepondo-se agrave Scriptura estabelece a forma essencial do conceito de Tradiccedilatildeo foi o que tentei demonstrar em meu artigo Wesen und Weisen der auctoritas im Werk des heiligen Bonaventura in Die Kirche und ihre Aumlmter und Staumlnde (Festgabe Kardinals Frings publicado por CORSTEN-FROTZ-LINDEN Colocircnia 1960 p 58-72

prolonga-se na permanente presenccedila de Cristo no σῶμα Χριστοῦ ndash no Seu Corpo a Igreja Assim o misteacuterio integral da presenccedila de Cristo eacute antes de tudo a realidade total transmitida pela Tradiccedilatildeo (fato fundamental e decisivo sempre anterior a todas as explicaccedilotildees particulares mesmo as da Escritura) e reguladora do que deve propriamente ser transmitido

b) A Tradiccedilatildeo existe concretamente como presenccedila na feacute Esta por seu turno como ldquoin-habitaccedilatildeordquo de Cristo precede todas as explicaccedilotildees particulares e frutuosa e viva ldquoexplicita-serdquo (explizierend) atraveacutes dos tempos

c) A Tradiccedilatildeo tem seu oacutergatildeo na plenitude dos poderes da Igreja e portanto naqueles que satildeo os legiacutetimos depositaacuterios destes poderes24

d) A Tradiccedilatildeo exprime-se tambeacutem naquilo que emanado da autoridade da Igreja se tornou regra de feacute (Symbolum fides quaelig) Portanto a questatildeo de se saber se certas proposiccedilotildees foram transmitidas desde o

comeccedilo pela Tradiccedilatildeo ao lado da Escritura ou em outros termos se existe desde o comeccedilo um segundo princiacutepio material e autocircnomo ao lado da Escritura torna-se afinal um problema inteiramente secundaacuterio Talvez lhe devamos responder negativamente

5 A funccedilatildeo da exegese [37] Pelo que ateacute aqui dissemos ficaram esclarecidas quase que exclusivamente

trecircs pontos os limites da letra da Escritura a liberdade do Espiacuterito Santo e a autoridade da Igreja Acontece poreacutem que a exposiccedilatildeo que fizemos abriga ainda um sentido diverso relacionado com a justa preocupaccedilatildeo de Lutero da qual partimos

Se ficou estabelecido que a Revelaccedilatildeo se faz presente atraveacutes da pregaccedilatildeo e se pregaccedilatildeo eacute exposiccedilatildeo da palavra revelada entatildeo pode e deve agora ao que precede acrescentar-se o seguinte a Tradiccedilatildeo eacute essencialmente e sempre uma exposiccedilatildeo Natildeo existe de maneira autocircnoma e sim como explicaccedilatildeo como exposiccedilatildeo ldquorelacionada com a Escriturardquo

Isto vale para a pregaccedilatildeo do proacuteprio Jesus Cristo realizaccedilatildeo plena da Revelaccedilatildeo e sua exposiccedilatildeo feita com autoridade A pregaccedilatildeo de Jesus Cristo natildeo aparece como algo absolutamente novo na Escritura Isto eacute como algo ainda natildeo atestado no Antigo Testamento Ela ensina isto sim a essecircncia do que jaacute estava escrito e lhe confere uma vida nova que o simples exegeta natildeo pode comunicar-lhe

O que vale para a mensagem de Cristo que permanece a mesma sob diferentes modalidades de exposiccedilatildeo vale tambeacutem para a pregaccedilatildeo apostoacutelica e a eclesiaacutestica Como ldquoTradiccedilatildeordquo ela deve em uacuteltima anaacutelise ser uma exposiccedilatildeo ldquosegundo a Escriturardquo a ela sujeita e com ela relacionada Sem duacutevida natildeo eacute ela uma exposiccedilatildeo no 24 Estas ideacuteias natildeo podem ser desenvolvidas mais detalhadamente aqui como seria de desejar uma vez que em rigor estamos procurando apenas fundamentar o conceito de Tradiccedilatildeo Em razatildeo da brevidade que me impus contentei-me apenas nas teses precedentes com explanar o assunto ateacute ao ponto em que ficasse patente a relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a ldquoIgrejardquo (cf as teses 4 e 5) Para se descer a maiores detalhes dever-se-ia analisar tambeacutem o conceito de Igreja que supomos conhecido do leitor Para isto cf a nota 6 onde citamos nosso livro sobre o Ofiacutecio e a unidade da Igreja Encontram-se aiacute algumas observaccedilotildees sobre o assunto de que ora tratamos

sentido de mera interpretaccedilatildeo exegeacutetica Mas sim na autoridade espiritual recebida do Senhor a qual se consuma na existecircncia plena da Igreja em sua feacute em sua vida e em seu culto Contudo ela permanece sendo (mais ainda do que o Cristo-evento em que se funda a Igreja) uma ldquoex-posiccedilatildeordquo (Aus-Legung) comprometida com a Histoacuteria e com a Palavra [38] Exprime-se deste modo a sua ligaccedilatildeo com a accedilatildeo concreta de Deus nesta mesma Histoacuteria e em seu caraacuteter de fato histoacuterico uacutenico (o ἑφάπαξ ldquoo ocorrido uma soacute vezrdquo) A realidade cristatilde da Revelaccedilatildeo eacute tatildeo essencial quanto ldquoeternardquo e definitiva Resulta daiacute a unidade entre o Cristo da Feacute e o Jesus da Histoacuteria o Jesus histoacuterico natildeo eacute senatildeo o Cristo da Feacute ainda que a feacute seja sempre algo mais do que a histoacuteria

Segue-se que do mesmo modo que existe um ofiacutecio de custoacutedia da Revelaccedilatildeo por parte da Igreja ofiacutecio por ela mesma atestado existe tambeacutem um ofiacutecio de custoacutedia da mesma Revelaccedilatildeo por parte da exegese que penetra o sentido literal da Escritura e defende a uniatildeo do Logos com a carne contra qualquer perigo de gnose Existe portanto por assim dizer algo como uma autonomia especiacutefica da Escritura como regra objetiva e sob muitos pontos de vista esclarecedora do Magisteacuterio eclesiaacutestico Esta era sem duacutevida uma exigecircncia legiacutetima de Lutero que ainda natildeo foi devidamente acolhida na Igreja catoacutelica por parte do Magisteacuterio cujos limites internos nem sempre foram claramente entendidos

Dever-se-ia partindo daqui salientar uma dupla criteriologia em se tratando da feacute De um lado haacute o que a Igreja antiga chamou de ldquoregra da feacuterdquo norma reguladora da palavra revelada contida na Escritura e sua exposiccedilatildeo Esta praeligscriptio da posse da Escritura como proacutepria segundo Tertuliano exclui a possibilidade de qualquer uso legiacutetimo da mesma Escritura contra a Igreja Por outro lado haacute tambeacutem o limite da littera Scripturaelig ou do sentido literal historicamente fixaacutevel que de acordo com o que ficou dito natildeo constitui nenhum criteacuterio absoluto ou autocircnomo mas sim somente um criteacuterio relativo no confronto da feacute com a ciecircncia O que na Escritura se pode descobrir quer mediante estudo cientiacutefico quer por simples leitura tem a funccedilatildeo de um criteacuterio real a que deve estar atento inclusive o Magisteacuterio em suas explicaccedilotildees Certamente [39] trata-se entatildeo de elementos sub-componentes da ciecircncia que natildeo podem servir para se julgar a feacute mas nela encontram uma instacircncia criacutetica e tecircm tambeacutem um importante papel a exercer o de zelar pela pureza do ἑφάπαξ de tutelar o conteuacutedo da Revelaccedilatildeo e de defender o dualismo histoacuterico carneespiacuterito (ldquodie Sarx der Geschichterdquo) contra os arbiacutetrios da gnose que tende sempre a impor-se

A reformatio na qual estaacute empenhada a Igreja nesta hora histoacuterica tem um papel relevante a desempenhar Eacute a missatildeo de abrir novas perspectivas para o diaacutelogo tentando assim chegar a uma ldquoreformardquo diferente da do passado que culminou com a divisatildeo no seio da Cristandade ocidental Tal missatildeo se exerceraacute em harmonia com o pleno ofiacutecio de testemunho da Igreja que tira seu direito e sua forccedila da presenccedila do Espiacuterito e de Cristo presente em todos os tempos Pois ele eacute sempre o Cristo de agora com a plenitude de seus direitos e de seus poderes Ele eacute quem daacute legitimidade e vigor ao testemunho singular e definitivo da Escritura que por sua vez encontra seu pleno sentido na singularidade da accedilatildeo histoacuterico-salviacutefica de Jesus Cristo Ele deu ao Pai seu Corpo crucificado e dando-se a si mesmo santificou para sempre os que o receberam (cf Hb 1014 727) Ele eacute o Cristo ontem hoje e sempre (Hb 138)

SEGUNDA PARTE

Explicaccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo segundo o Decreto do Conciacutelio de Trento

Parece que a completa elucidaccedilatildeo das razotildees que levaram agrave substituiccedilatildeo do

partim-partim pelo et e consequumlentemente agrave pesquisa dos dados do debate tridentino e de sua preacute-histoacuteria aparentemente favoraacutevel agrave suficiecircncia material da Escritura [40] simplifica indevidamente este problema fazendo-nos perder de vista os proacuteprios antecedentes do Decreto do Conciacutelio de Trento

1 A concepccedilatildeo pneumatoloacutegica da Tradiccedilatildeo no esquema fundamental do Cardeal Cervini

a) O conteuacutedo Um balanccedilo histoacuterico e detalhado do problema em seu conjunto exigiria uma

pesquisa exaustiva que natildeo reduzisse o seu acircmbito como o fez Geiselmann em seu livro25 Natildeo eacute nossa intenccedilatildeo proceder a um exame minucioso do assunto no presente trabalho Aqui soacute seratildeo tratados alguns pontos do debate tridentino com o fim de ampliarmos mais o horizonte de nossas reflexotildees

Fundamental para a compreensatildeo dos debates em pauta bem como do Decreto definitivo do Conciacutelio parece-me ser o Discurso do Cardeal Legado Cervini datado de 18 de fevereiro de 1546 [41] cujas linhas gerais se patenteiam tanto no Decreto como em outras decisotildees conciliares26

Tem o discurso de Cervini o meacuterito de mostrar as linhas diretrizes do Decreto de maneira mais clara do que aparecem estas na uacuteltima redaccedilatildeo do mesmo onde elas se diluem muito devido a uma seacuterie de variadas implicaccedilotildees Eacute ainda de grande auxiacutelio para o entendimento do referido discurso uma carta dos Cardeais Legados ao Cardeal Alexandre Farnese de 28 de fevereiro de 1546 Esta carta revela conteuacutedo idecircntico ndash eacute certamente inspirada pelo mesmo Cervini ndash e oferece ainda alguns outros

25 Eacute lamentaacutevel que Geiselmann em sua anaacutelise da contribuiccedilatildeo medieval sobre este assunto se tenha apoiado apenas em argumentos de segunda matildeo portanto de valor histoacuterico discutiacutevel Queira o leitor ver minhas observaccedilotildees a este respeito in Theol-prakt Quartalschrift 1963 p224-227 As novas (e temperamentais) invectivas de Geiselmann in TThQu 144 (1964) p 31-69 em nada modificaram a minha posiccedilatildeo de vez que natildeo trazem nenhuma contribuiccedilatildeo vaacutelida ao assunto Precioso ao contraacuterio eacute o trabalho de Y CONGAR La Tradition et les traditionshellip Essai historique Paris 1960 Importante eacute tambeacutem a obra de J BEUMER Die muumlndliche uumlberlieferung als Glaubensquelle Friburgo 1962 A respeito do Conciacutelio de Trento cf sobretudo aleacutem do estudo fundamental de JEDIN o artigo de E ORTIGUES Escriture et Traditions apostoliques au Concilie de Trente in RSR 36 (1949) p 271-299 K D SCHMIDT Studien zur Geschichate des Konzilis von Trient Tubinga 1925 p 152-209 26 O discurso nos foi transmitido em duas redaccedilotildees A primeira mais curta encontra-se nas Atas do Conciacutelio in CT V 11 A segunda faz parte do diaacuterio de Massarelli (Diarium III) in CT I p484 Quanto ao conteuacutedo os dois textos se completam Na anaacutelise que aqui ensaiamos as duas versotildees satildeo comparadas entre si de modo a fazerem um todo Sobre a posiccedilatildeo de Cervini no Conciacutelio cf H JEDIN Geschichte des Konzils von Trient II Friburgo 1957 p38-40 A descriccedilatildeo do desenrolar histoacuterico dos debates acha-se em JEDIN op cit p42-82 e supomo-la conhecida do leitor de vez que serve de base para a anaacutelise teoloacutegica do Decreto tridentino

esclarecimentos Cervini sustenta no citado discurso que existem trecircs princiacutepios e fundamentos de nossa feacute

1) Os livros sagrados escritos sob a inspiraccedilatildeo do Espiacuterito Santo 2) O Evangelho que Nosso Senhor natildeo escreveu mas ensinou oralmente e

implantou nos coraccedilotildees Parte do Evangelho foi escrita mais tarde pelos Evangelistas enquanto muita coisa foi simplesmente confiada aos coraccedilotildees dos fieacuteis

3) Porque o Filho de Deus natildeo ia permanecer sempre entre noacutes enviou ele o Espiacuterito Santo que haveria de revelar os misteacuterios no iacutentimo dos fieacuteis e de ensinar agrave Igreja toda a verdade ateacute ao fim dos tempos27

[43] Numa segunda redaccedilatildeo mais detalhada do discurso estas mesmas ideacuteias satildeo

desenvolvidas mais amplamente Aiacute lemos que a Revelaccedilatildeo se apresentou de modo diferente em diversos tempos

1) Nos Patriarcas cuja feacute eacute atestada na Escritura a que chamamos de Antigo Testamento

2) Em Jesus Cristo que implantou o seu Evangelho natildeo por escrito mas oralmente natildeo in charta mas in corde Das coisas que emanaram de Cristo (quaelig a Cristo emanarunt) algumas foram escritas outras permaneceram nos coraccedilotildees dos homens (quaeligdam in cordibus hominum relicta fuerunt) Todo o Evangelho de Cristo que consta desta dupla modalidade forma (tendo como primeiro princiacutepio o Antigo Testamento) o secundum prindipium fidei nostraelig

3) Daiacute surge o terceiro princiacutepio (tertium autem) porque o Filho de Deus natildeo iria permanecer sempre entre noacutes enviou ele ao mundo o Espiacuterito Santo que haveria de explicar os misteacuterios de Deus e tudo o que fosse ainda obscuro para os homens28 De modo semelhante a citada carta ao Cardeal Farnese fala de dois passos (due

passi) Um eacute que a Revelaccedilatildeo de Nosso Senhor natildeo foi totalmente escrita mas permaneceu em parte contida nos coraccedilotildees dos homens e na Tradiccedilatildeo da Igreja O outro [43] passo consiste em confirmar ldquoquello che egrave suggerito lo Spirito Santo in la Chiesa maxime medianti i concilij doppo lAscensione in cielo del Signorerdquo29

Notamos logo que contrariamente ao que esperaacutevamos natildeo dois mas trecircs satildeo os princiacutepios apontados a Escritura o Evangelho e a Revelaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

27 CT V 11 helliptria esse principia et fundamenta nostrae fidei primum libros sacros secundum esse evangelium quod Christus Dominus Noster non scripsit sed ore docuit et in cordibus illud plantavit cujus evangelii nonnulla evangelistaelig scripto mandarunt multa quoque relicta sunt in cordibus hominum Tertium quia non semper filius Dei corporaliter nobiscum mansurus erat misit Spiritum Sanctum qui in cordibus fidelium secreta Dei revelaret et ecclesiam quotidie et usque consummationem saeligculi doceret omnem veritatem et si quid in mentibus hominum dubii occurrisset declararet 28 CT I 484 Digna de nota eacute ainda a foacutermula contida na paacutegina 48514-16 nihil tamen inter scripturas sacras et apostolicas traditianes differt illaelig enim scriptaelig hae per insinuationem habentur utraeque tamen a Spiritu Sancto eodem modo emanataelig Confira-se com CT V 11 19 ab eodem Spiritu et illos (scilicet libros) et istas (scilicet traditiones) descendisse 29 CT X 373

Eacute portanto necessaacuterio observar que sob o termo ldquoEscriturardquo se entende o Antigo Testamento e que aleacutem deste (que eacute Escritura em sentido proacuteprio) aparece como segundo princiacutepio o Evangelho apresentaccedilatildeo do Cristo-evento O Evangelho por sua vez abrange o que estaacute escrito e o que natildeo estaacute escrito mas sim apenas insculpido no coraccedilatildeo dos crentes Deste modo o segundo princiacutepio representa uma vantagem pneumaacutetica sobre o que estaacute escrito o Evangelho eacute nesta concepccedilatildeo algo diferente da letra (Escritura) e soacute em parte vem escrito (Isto natildeo deve ser entendido no sentido de divisatildeo das verdades da feacute fenocircmeno denunciado ldquocom horrorrdquo por Geiselmann Ao contraacuterio Entenda-se apenas no sentido de diferente grau de dignidade no modo de exprimir-se) Em rigor o Evangelho como tal soacute pode ser escrito em parte se considerarmos a sua essecircncia

Finalmente ndash o que eacute muito de se admirar ndash segue-se como terceiro princiacutepio a accedilatildeo visiacutevel do Espiacuterito Santo em todo o tempo da Igreja

Admitimos portanto que o que noacutes geralmente chamamos de Tradiccedilatildeo natildeo aparece aqui como um soacute princiacutepio Biparte-se antes em dois princiacutepios intimamente ligados o ldquoEvangelhordquo princiacutepio apenas em parte identificaacutevel com a Escritura e a accedilatildeo do Espiacuterito Santo no tempo da Igreja Ademais podemos observar que a Escritura do Novo Testamento natildeo aparece como um princiacutepio ao lado da Revelaccedilatildeo apostoacutelica Muito menos como [44] eacute o nosso caso se apresenta a Escritura neotestamentaacuteria juntamente com a veterotestamentaacuteria como uma grandeza uacutenica uma ldquoEscriturardquo soacute agrave qual se poderia contrapor a ldquoTradiccedilatildeordquo como uma segunda grandeza O Novo Testamento em seu conjunto aparece como um segundo e mais amplo princiacutepio ou seja o Evangelho que como tal se opotildee de um lado ao Antigo Testamento e de outro agrave projeccedilatildeo histoacuterica do tempo da Igreja Sua unidade interna eacute evidentemente mais forte e importante do que a sua divisatildeo em escrito e natildeo-escrito Assim o Evangelho como um soacute princiacutepio pode ser contraposto ao Antigo Testamento a despeito desta dupla formalidade A impossibilidade de se representar o Novo Testamento como Escritura impossibilidade esta demonstrada por Satildeo Paulo e pelos primeiros seacuteculos cristatildeos eacute aqui claramente revelada

Ainda uma observaccedilatildeo relativa ao texto a que vimos nos referindo Em nenhum dos dois pontos por noacutes citados no estudo da Tradiccedilatildeo isto eacute nem no elemento contido no primeiro nem no apresentado no terceiro princiacutepio figura a Tradiccedilatildeo como verbal Em ambos os casos ao contraacuterio trata-se mais da Tradiccedilatildeo real com prevalecircncia da realidade sobre as palavras que a atestam Este fato que estaacute claro no terceiro princiacutepio o pneumatoloacutegico vale tambeacutem em relaccedilatildeo agrave implantaccedilatildeo do Evangelho nos coraccedilotildees contida no segundo princiacutepio Tal implantaccedilatildeo vai muito aleacutem do que se encontra expresso na letra da Escritura

Que papel tenham estas ideacuteias exercido nas discussotildees do Conciacutelio pode-se concluir tambeacutem das auctoritates citadas por Cervini entre as quais figuram Jo 16 12 (hellipSpiritus Sanctus suggerethellip) e Fl 3 15 (Quicumque perfecti sumus haeligc sentiamus et si quid aliter sentitis haeligc quoque Deus vobis revelabit) Ambos estes textos satildeo de teor acentuadamente [45] pneumatoloacutegico-presencial30 Que tais ideacuteias natildeo eram

30 CT V 14 e 15 Um exame profundo das auctoritates quer da Escritura quer entre os Santos Padres que neste particular satildeo favoraacuteveis agrave Tradiccedilatildeo seria em si conclusivo para a elaboraccedilatildeo do conceito

estranhas aos Padres conciliares deduz-se ainda de uma seacuterie de outras referecircncias Assim ouvimos o Bispo de Aqui dizer que aleacutem da Sagrada Escritura existe muita coisa na Igreja de Deus que vindo dos Apoacutestolos e passando de geraccedilatildeo a geraccedilatildeo chegou ateacute noacutes assim como muitas outras quaelig etsi scripta Apostoli nobis non reliquerunt per Spiritus Sancti revelationem nobis (tradita) sunt (Tradita estaacute aqui por revelata) 31 Partindo daiacute se poderia descrever a Tradiccedilatildeo justamente como o componente pneumatoloacutegico do Cristo-evento b) A influecircncia do esquema de Cervini em diversas decisotildees conciliares

Eacute verdade que esta concepccedilatildeo tripartida aparece muito atenuada no Decreto

oficial sobre a Tradiccedilatildeo Que poreacutem em suas linhas fundamentais natildeo tenha ela sido de modo nenhum [46] abandonada mostram-no duas outras passagens nas quais o Conciacutelio faz uso por assim dizer in actu das ideacuteias aqui expressas32 Assim na Introduccedilatildeo ao Decreto sobre a Eucaristia (Denz 873) se lecirc Sacrosancta Synodus sanamhellipdoctrinam tradens quam semper catholica Ecclesia ab ipso Jesu Christo Domino Nostro et eius apostolis erudita atque a Spiritu Sancto illi omnem veritatem in dies suggerente (Jo 1416) edocta retinuithellip

Aqui a accedilatildeo proacutepria do Conciacutelio eacute descrita como tradere e a este tradere eacute atribuiacutedo um duplo fundamento De um lado o ensino de Jesus e dos Apoacutestolos (Note-se que este ponto corresponde ao Evangelho segundo a concepccedilatildeo de Cervini E de certo modo tambeacutem pela citaccedilatildeo de Jesus e dos Apoacutestolos se reconhece a dupla modalidade do Evangelho como escrito e como inserido nos coraccedilotildees) De outro lado o ensino dado pelo Espiacuterito Santo que conduz agrave verdade in dies isto eacute no de correr do tempo futuro

O outro texto que pode ser aduzido aqui como prova do que afirmamos encontra-se no Preacircmbulo do Decreto sobre o Purgatoacuterio (Denz 983) Aiacute se lecirc hellipCatholica Ecclesia Spiritu Sancto edocta ex Sacris Litteris et antiqua Patrum traditione in sacris Conciliis et novissime in hac Synodo docuerit A descriccedilatildeo da accedilatildeo proacutepria do

aqui exposto H HOLSTEIN procurou fazer o cotejo destas auctoritates e fecirc-lo de modo admiraacutevel em seu artigo La Tradition dapregraves le Concile de Trente (RSR 47 1959 p367-390 e em particular para o caso em questatildeo a p375) Ele encontra nos textos estudados duas linhas de tendecircncias A linha de Santo Irineu para a qual o testemunho dos Apoacutestolos eacute o de sua personalidade de sua vida e de seu ofiacutecio Aleacutem desta o grupo composto de Tertuliano Cipriano Basiacutelio e Agostinho forma uma corrente que se poderia denominar ldquocerimonialrdquo Oriacutegenes se enquadra em ambos os grupos Existe entre os autores estudados uma seacuterie de textos que se referem agraves observationes consuetudines institutiones e que levam a entender-se a Tradiccedilatildeo neste mesmo sentido Aiacute se vecircem tambeacutem textos que sublinham o aspecto natildeo-escrito do Evangelho enquanto insculpido no coraccedilatildeo dos fieacuteis e aleacutem disso textos que apontam a Igreja como o ldquolugarrdquo da verdade cristatilde 31 CT I 483 (18 de fevereiro de 1546) Em 26 de fevereiro (CT V 18) encontramos Cervini a tratar de novo deste assunto Cf tambeacutem um pronunciamento do Bispo de Fano (CT V 10) nestes termos Cum jam receperimus Scripturas Sacras necessario recipiendaelig sunt traditiones quaelig ab eodem Spiritu Sancto quo scripturaelig dictataelig sunthellip 32 Disto me adverti pela primeira vez atraveacutes de um estudo realizado sob a minha orientaccedilatildeo por CHR LIMBACR a quem sou devedor de muitas informaccedilotildees bibliograacuteficas

Conciacutelio como tradere encontra-se ainda nas declaraccedilotildees sobre o Sacramento da Extrema-Unccedilatildeo (Denz 910)

Finalmente a triacuteplice divisatildeo deixa-se insinuar nas entrelinhas do Decreto sobre a Tradiccedilatildeo embora obscurecida e diluiacuteda por uma seacuterie de acreacutescimos e citaccedilotildees a ele adicionados por outros motivos O Decreto da Tradiccedilatildeo com efeito [47]

1) Fala do Evangelho prometido pelos Profetas na Escritura e refere-se a esta em sentido estrito quer antes quer depois do Antigo Testamento

2) Fala da promulgaccedilatildeo por Cristo do Evangelho que foi transmitido pelos Apoacutestolos sob dupla forma oral e escrita Desta maneira o que natildeo ocorre no exemplo de Cervini aparece aqui antes de tudo o componente pneumatoloacutegico unido com o componente apostoacutelico a ponto de se distinguirem duas modalidades de Tradiccedilatildeo apostoacutelica a que remonta a Cristo e a que remonta ao envio do Espiacuterito Santo Pode-se assim estabelecer que em oposiccedilatildeo ao esquema de Cervini haacute um certo processo de historicizaccedilatildeo que salienta a relaccedilatildeo com o comeccedilo histoacuterico e igualmente parece deslocar o acento da tradiccedilatildeo real para a verbal

3) No epiacutelogo desta parte do Decreto da Tradiccedilatildeo que vimos analisando de novo eacute considerada a ideacuteia da Sagrada Escritura O conceito de Tradiccedilatildeo eacute entatildeo formulado em definitivo e descrito como vel oretenus a Christo vel a Spiritu Sancto dictatas et continua successione in Ecclesia catholica conservatas A referecircncia aos Apoacutestolos eacute omitida Pode-se na verdade considerar tudo isto como uma volta ao que foi dito antes Evidentemente a tradiccedilatildeo ditada pelos Apoacutestolos eacute citada de novo (A expressatildeo continua successione insinua-o) Contudo permanece sempre ainda certa indeterminaccedilatildeo ficando aberta a possibilidade de se encontrar aqui o vestiacutegio do terceiro componente de Cervini o princiacutepio pneumaacutetico propriamente dito Eacute tambeacutem claro que esta ideacuteia eacute discreta sendo adotada uma posiccedilatildeo mais acentuadamente histoacuterica Se agora lanccedilarmos os olhos sobre o que vimos considerando ateacute aqui surgiratildeo

inevitavelmente perguntas qual eacute realmente o sentido proacuteprio da concepccedilatildeo pneumatoloacutegica Como poderia ser perfeitamente entendida a ideacuteia a noacutes estranha de uma revelatio prolongada no tempo em face da unicidade e do caraacuteter [48] histoacuterico da Revelaccedilatildeo que evidentemente era conhecido tanto de Cervini quanto dos Santos Padres e teoacutelogos medievais33

Antes de examinarmos isto devemos esclarecer rapidamente os principais motivos que inspiraram o Decreto tridentino sobre a Escritura e a Tradiccedilatildeo deixando nele um tanto encoberta a concepccedilatildeo pessoal de Cervini Que opiniotildees de teoacutelogos teratildeo intervindo aqui chegando a ser em parte impressas no texto definitivo que resultou do cotejo de muitos pronunciamentos diversos Uma exposiccedilatildeo detalhada deste ponto exorbitaria do acircmbito de nossa anaacutelise Contentemo-nos com umas poucas observaccedilotildees sumaacuterias 33 Sobre este assunto tentei fazer um breve comentaacuterio no meu trabalho ldquoOffenbarung-Schrift-Uberlieferungrdquo in TThZ 67 (1958) p13-27 Cf J BEUMER ldquoDer theoretische Beitrag der Frnhscholastik zum Problem des Dogmenfortschrittsrdquo in ZkTh 72 (1952) p205-226 J de CHELLINCK Pour lrsquohistoire du mot ldquorevelarerdquo in RSR 6 (1916) p149-157

2 Relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a vida da Igreja

em diversas passagens do debate tridentino

Uma primeira seacuterie de motivos entre os quais se compreendem diversos pronunciamentos agraves vezes muito contrastantes em seu aparato exterior patenteia-se na ideacuteia de tradiccedilotildees expressa no Decreto de duas maneiras a) - per manus traditaelig ad nos usque pervenerunt b) - continua successione in Ecclesia catholico conservatas

O que se ocultaraacute sob estas duas foacutermulas que o historiador de hoje tem dificuldades em aceitar justamente por causa do historicismo nelas impliacutecito Podemos dizer que um decisivo papel exerceu aqui o pensamento que sempre aparecia nos debates a saber que as tradiccedilotildees satildeo variaacuteveis que muitas delas foram abolidas pelos Apoacutestolos e que por outro lado se [49] introduziram tradiccedilotildees eclesiaacutesticas que natildeo mais seriam abolidas34 Esta ideacuteia de Tradiccedilatildeo de certo modo se torna clara no tratado escrito sobre o mesmo assunto por Seripando para uso dos Padres Conciliares Seripando fala das Tradiccedilotildees escritas inseridas na Escritura como as claacuteusulas de Tiago o costume de as mulheres se cobrirem com um veacuteu a legislaccedilatildeo sobre o matrimocircnio contida em 1Cor 7 etc E o autor adverte que estas praacuteticas foram abolidas Isto porque embora associadas agrave palavra de Deus na Escritura dela ldquomuito diferemrdquo pois a palavra divina [50] de modo nenhum poderia ser abolida A estas tradiccedilotildees

34 Cabe aqui aduzir uma nova intervenccedilatildeo de Cervini datada de 26 de fevereiro de 1546 (CT I 33 e V 18) onde ele diz que nem todas as tradiccedilotildees procedentes dos Apoacutestolos devem ser conservadas mas somente as que ab Ecclesia receptaelig ad nos usque pervenerunt (V 18) Esta afirmaccedilatildeo anterior agrave formulaccedilatildeo dogmaacutetica feita pelo Concilio deve igualmente ser tida na conta de um autecircntico comentaacuterio do Decreto Aiacute se acentua como condiccedilatildeo essencial das tradiccedilotildees a receptio ecclesiaelig Vem ainda referida uma intervenccedilatildeo do Bispo de Bertinoro em data de 23 de marccedilo (I p 523) na qual ele sublinha que as tradiccedilotildees escritas por vezes foram mudadas Jaacute entre as natildeo-escritas umas foram mudadas e outras natildeo como por exemplo o rito de adicionar aacutegua ao vinho a Crisma a confissatildeo auricular O Bispo de Bertinoro acrescenta que por outro lado alguns pontos existem que permaneceram inteiramente inalterados tais como a crenccedila no descensus ad inferos na virgindade perpeacutetua de Maria a substituiccedilatildeo da observacircncia do saacutebado pela do domingo Temos depois um pronunciamento do Bispo de Bitonto datado de 27 de marccedilo (I 39) Este bispo era de parecer que algumas coisas foram transmitidas pelos Apoacutestolos com a finalidade de serem perpetuamente conservadas (como pertencentes ao depoacutesito da feacute) outras caiacuteram em desuso (como as claacuteusulas de Tiago) e outras enfim foram apenas aconselhadas Assim mesmo na Escritura algumas coisas haacute que foram escritas mas natildeo recebidas em uso por serem mateacuteria de mero conselho Por exemplo ldquose algueacutem te pedir a tuacutenica daacute-lhe tambeacutem o paacutelio se algueacutem te esbofetear numa face oferece-lhe tambeacutem a outrardquo Sem duacutevida excelente ilustraccedilatildeo do sermatildeo da montanha Finalmente consideraccedilotildees idecircnticas podemos encontrar na obra citada de LEJAY Eis outra amostra tirada do discurso de 23 de fevereiro (CT V 13) Nam illaelig (scil traditiones) quaelig ad fidem pertinent eadem sunt recipiendaelig auctoritate qua recipitur evangelium alia autem non ita eum earum plurimaelig immutataelig fuerint ut de bigamis de esu sanguinis et similia De modo semelhante aliaacutes fala tambeacutem Bonuccio (I 525 a 23 de marccedilo de 1546 ecclesia traditiones apostolorum quandoque mutavit verbum autem Dei nunquam mutavit neque mutare potest

Seripando opotildee as natildeo referidas na Biacuteblia e que ora satildeo apostoacutelicas ou oriundas de Conciacutelios universais e aceitas por toda a Igreja ora satildeo particulares e muito variaacuteveis35

Este texto nos leva a uma surpreendente conclusatildeo para Seripando e muitos outros Padres tridentinos36existem tradiccedilotildees na Escritura ldquoTradiccedilatildeordquo natildeo significa o natildeo-escrito Existe quer dentro da Escritura quer fora dela Isto nos conduz a outra pergunta em que consiste para os referidos Padres a essecircncia da tradiccedilatildeo se o que a constitui natildeo eacute o fato de natildeo ser escrita37 Em outros termos como pode a tradiccedilatildeo ser definida positivamente se ela natildeo pode ser suficientemente determinada pela ideacuteia negativa de algo natildeo-escrito

Haacute uma seacuterie de respostas para esta pergunta O proacuteprio Seripando daacute a seguinte definiccedilatildeo Traditiones hoc est Apostolorum seu sanctorum Patrum sanctae et salutares constitutiones38 Mais clara ainda eacute a afirmaccedilatildeo de Cervini citada por Massarelli A objeccedilatildeo do Bispo de Chioggia que aduzia a opiniatildeo de Agostinho de que tudo o que eacute necessaacuterio para a salvaccedilatildeo estava escrito na Biacuteblia respondia Cervini da seguinte maneira Verba illa (isto eacute de Santo Agostinho) formaliter intelligi debent scilicet ad fidem accipiendam ut salvi fiamus Quo vero ad mores et christianam vitam instituendam certo non omnia scripta sunt

[51] E de novo recorre agraves provas tiradas de Jo 1526 e 1426 E indica o princiacutepio pneumatoloacutegico39 O que eacute mais importante eacute que a Tradiccedilatildeo se refere agrave institutio vitaelig agrave presenccedila atuante da Palavra revelada na existecircncia cristatilde Tradiccedilatildeo eacute noutros termos a eficaacutecia da palavra de Deus Sem ela a palavra ficaria esteacuteril 35 Seripando De traditionibus (fevereiro ou marccedilo de 1546) CT XII p517-521 e principalmente a p 521 As expressotildees desta uacuteltima paacutegina chocam-se com a ideacuteia de Cervini sobre a receptio ecclesiaelig 36 Cf o texto citado na nota 11 37 No texto definitivo do Decreto esta ideacuteia natildeo aparece mais Aqui poreacutem com esta primeira designaccedilatildeo expliacutecita da Tradiccedilatildeo vem expressamente acentuado o contraste entre in libris scriptis et sine scripto traditionibus Na segunda redaccedilatildeo o sentido expliacutecito da palavra Tradiccedilatildeo natildeo eacute tatildeo exclusivo Contudo apresenta igual matiz ao se confrontarem as expressotildees omnes libroshellipnec non traditiones ipsas Portanto a ideacuteia positiva da Tradiccedilatildeo que serve de base a esta anaacutelise natildeo deixou de influenciar na redaccedilatildeo do Decreto 38 CT XII 517 39 CT I 494 (26 de fevereiro de 1546) A citada palavra de Santo Agostinho teve o seu papel a desempenhar na discussatildeo em curso Seripando por exemplo a ela se referiu (De traditionibus CT XII 521 47-53) Pensandum denique ne in traditionibus externis vera religio et salutis spes statuatur de quibus Augustinus Omnia quaelig pertinent ad veram religionem quaeligrendam et tenendam divina Scriptura non acuit Conceda-se que nem tudo foi escrito (veja-se Jo 2125) Todavia electa sunt autem quaelig scriberentur quaelig saluti credentium sufficere videbantur Mais do que nos debates do tridentino encontramos aqui um verdadeiro postulado dos Reformadores ldquonatildeo adotar costumes exteriores mas buscar os meios definitivos de salvaccedilatildeo na palavra da Escriturardquo A ldquosuficiecircnciardquo da Escritura de que aqui se fala eacute na verdade algo diverso da suficiecircncia material da mesma Escritura defendida por Geiselmann em sentido muito mais radical Infelizmente ainda natildeo se quis levar na devida consideraccedilatildeo o texto de Santo Agostinho (CT I 494 sugere De doctrina christiana II 9 e De pecc mero et rem II 59) Muito apropriadas nesta ordem de ideacuteias satildeo as observaccedilotildees de H SCHAUF ldquoSchrift und Traditionrdquo in Antonianum 39 (1964) p200-209 feitas no chamado Encontro de Duumlsseldorf Nos textos citados por Schauf com base em Agostinho eacute afirmada a suficiecircncia da Escritura para a salvaccedilatildeo Eacute contudo contestada a sua suficiecircncia para a Igreja em geral De fato esta alternativa parece muito mais vaacutelida e fundamental agrave luz dos postulados dos Reformadores do que a alternativa entre a suficiecircncia ou insuficiecircncia material da Escritura

Na mesma linha de ideacuteias seguem-se duas outras seacuteries de pronunciamentos Vimos na introduccedilatildeo agrave parte anterior que a discussatildeo dogmaacutetica da ideacuteia de

Tradiccedilatildeo foi em parte prejudicada pela questatildeo do meacutetodo a seguir no Conciacutelio dever-se-ia abordar primeiro a reformatio a reforma praacutetica da Igreja como queria o ldquoKaiserrdquo Ou primeiro discutir a questatildeo dogmaacutetica como preferia o Papa40

[52] Este problema do meacutetodo embora resolvido no debate que entatildeo surgiu natildeo afetou diretamente a questatildeo da Tradiccedilatildeo como tal Mas como de fato estas duas questotildees ficaram ligadas entre si daiacute resultou que muitos oradores transformaram a questatildeo do meacutetodo (se se deveria falar dos abusos ou da Tradiccedilatildeo) em parte de sua argumentaccedilatildeo em torno do assunto em pauta41 O problema abusus e o problema Traditio ficaram de tal maneira associados na ocasiatildeo que pareciam formar no fundo um soacute assunto Por isso os oradores ora falavam em sentido positivo ora se pronunciavam em sentido negativo Isto correspondia tambeacutem ao propoacutesito reformista do Conciacutelio as traditiones representavam os abusus aos quais a Igreja se opunha Os Padres estavam cocircnscios de que condenar as traditiones era condenar Os usus ecclesiaelig o modo como a Igreja vivia a sua vida naquela eacutepoca

A outra seacuterie de pronunciamentos que se inclinavam ao mesmo sentido encontramo-la nas proposiccedilotildees que a auctoritas da Igreja apresenta como definitivas indicando uma iacutentima relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a institutio christiana 42

[53] Podemos agora retomar ao nosso ponto de partida e dar resposta agrave pergunta que propriamente significa a foacutermula ad nos usque pervenerunt Objetivamente natildeo se trata aqui de um historicismo que a foacutermula parece expressar Ao contraacuterio Trata-se da fidelidade perseverante da Igreja agrave institutio vitaelig christianaelig da legiacutetima forma de vida cristatilde em concreto no tempo presente da Igreja da institutio christiana que coloca a Escritura em primeiro lugar e que como tal isto eacute como vida decorrente da Escritura eacute fundamentalmente apostoacutelica embora tambeacutem sujeita a mudanccedilas como tudo o que eacute vivo

3 A Tradiccedilatildeo e o dogma eclesiaacutestico

40 Sobre o debate em torno da questatildeo do meacutetodo cf mais uma vez JEDIN op cit p9-82 e outras 41 Assim jaacute no discurso de Cervini antes analisado (CT I 484) no qual ele recorda o dilema do Conciacutelio se nos voltarmos contra as tradiccedilotildees ficaratildeo admirados os Padres Conciliares quasi reformationem fugiamus si ipsam reformationem sumimus iterum objicient traditiones relinquendas non esse Idecircntica era a situaccedilatildeo em que se encontrava o Bispo de Astorga nas duas intervenccedilotildees que fez no dia 23 de fevereiro de 1546 (CT V 13 e 19) segundo Seripando (I 484) helliptraditiones prius pertractandas consulit tantam enim conformitatem abusus qui ex sacris libris descendunt cum iis qui a traditionibus orti sunt habent ut sacris libris et traditionibus absolutis duo illa abusuum genera simul pertractari valeant Segundo Bonuccio (I 484) antes de tudo dever-se-ia tratar das Sagradas Escrituras dos cacircnones apostoacutelicos dos Conciacutelios gerais e das decretais pontifiacutecias Hisque ilusceptis ad abusus ex eisdem dependentes devenire 42 Assim principalmente de acordo com Afonso de Castro (CT I 484) Quoniam ultra traditiones apostolicas ecclesiae auctoritatem habemus quaelig ecclesiaelig auctoritas tonta apud nos est ut aliqui eam maioris roboris quam sacros libros esse sentiant Cf igualmente CT I 491 45 Na mesma linha pode-se ver uma seacuterie de pronunciamentos na citada obra de LEJAY Cf CT XII 524 (Tratado De traditionibus ecclesiaelig fevereiro ou marccedilo de 1546)

Uma segunda seacuterie de motivos eacute expressa no Decreto pela foacutermula traditiones tum ad fidem tum ad mores pertinentes Se como vimos a ideacuteia de Tradiccedilatildeo aparece muito limitada naquilo que os Padres conciliares chamam consuetudines observationes institutiones por outro lado o Procurador do Cardeal de Augsburgo Claudio Lejay SJ se fez o porta-voz de uma expressatildeo que em oposiccedilatildeo agraves traditiones caeligremoniales estabeleceu justamente o sentido da tradiccedilatildeo contida na feacute Seu tratado sobre a Tradiccedilatildeo composto para uso dos Padres conciliares inclui tambeacutem a foacutermula que foi adotada pelo Conciacutelio Aiacute se diz Denique multas veritates tum ad fidem tum ad mores pertinentes Ecclesia novit quas Scriptura aperte et expresse non continet Ele cita como exemplos as palavras persona essentia trinitas no Tratado da Santiacutessima Trindade consubstantialitas na Cristologia do Logos duas naturezas uma soacute Pessoa referentes ao dogma definido pelo Conciacutelio de Calcedocircnia E ainda Cristo Filho uacutenico de Maria duas vontades na uacutenica Pessoa de Cristo uma alma racional aleacutem do espiacuterito divino em Cristo Ana matildee de Maria o costume de fazer sinais da cruz a santificaccedilatildeo do domingo a maneira de rezar com face voltada [54] para o Oriente tudo isto ideacuteias e fatos da tradiccedilatildeo conciliar e da piedade cristatilde43

Cervini que aprovou o discurso de Lejay de 23 de fevereiro de 154644 pocircde dificilmente conciliar esta posiccedilatildeo com a sua expressa na jaacute citada carta ao Cardeal Farnese onde como vimos ele diz que o Espiacuterito Santo falou na Igreja e depois da Ascensatildeo do Senhor fala ainda maxime medianti i concilii45 Ele aiacute viu publicamente sublinhado o fato de que aquele ldquomaisrdquo que a Igreja viva representa em relaccedilatildeo agrave palavra meramente escrita natildeo se referia e natildeo se refere apenas agrave vita instituenda ou como ele prefere agrave caeligremonialia Refere-se tambeacutem agrave essentialia fidei que antes de tudo plenamente se expressam na Tradiccedilatildeo Tambeacutem aqui como se vecirc o interesse dominante natildeo estaacute na apresentaccedilatildeo historicista do assunto a partir do iniacutecio da Igreja mas na ideacuteia de que a influecircncia da Tradiccedilatildeo sobretudo atraveacutes da praxe conciliar eacute de fundamental importacircncia para a feacute para a doutrina crida e natildeo apenas para a piedade viva ou a caeligremonialia

4 O sentido do Decreto tridentino

Se recapitularmos o que ateacute agora dissemos veremos que no conjunto facilmente se podem reconhecer trecircs diferentes concepccedilotildees teoloacutegicas unidas entre si no texto definitivo do Decreto sobre a Tradiccedilatildeo Unidas mas natildeo equiparadas umas agraves outras Pelo contraacuterio apesar de sua grande diferenccedila foram elas apenas [55] mais ou menos justapostas e de novo por forccedila de uma tendecircncia comum relacionadas entre si

1 A concepccedilatildeo de Cervini que designamos como pneumatoloacutegica Com sua doutrina sobre os trecircs principia fidei insiste ele no caraacuteter dinacircmico do Cristo-evento

43 CT XII 523 LEJAY baseia-se evidentemente em listas de tradiccedilotildees confeccionadas naquele tempo (Cf ECK DRIEDO CANO BOTO NOGAROLA) Cf a este respeito Y CONGAR ldquoTraditions apostoliques non eacutecrites et suffisance de lEscrituresrdquo in Istina 6 (1959) p219-306 e principalmente a paacutegina 289 44 CT V 14 45 CT X 373

presente na Igreja Entende assim a Tradiccedilatildeo primariamente como a realidade espiritual da institutio vitaelig christianaelig

2 A concepccedilatildeo que podemos chamar de cerimonial Esta entende a Tradiccedilatildeo essencialmente como a seacuterie de consuetudines existentes ao lado da feacute como os usus ecclesiaelig que os Reformadores falsamente pretendem abolir como abusus Esta concepccedilatildeo chega a condenar a dignidade e Antiguumlidade apostoacutelica das tradiccedilotildees Sua ideacuteia eacute limitada pelo ad nos usque pervenerunt que inclui possibilidade de variar da parte das tradiccedilotildees donde a necessidade de reduccedilotildees Com os termos pervenire e conservare a recepccedilatildeo por parte da Igreja eacute considerada criteacuterio adicional ao lado da Antiguumlidade

3 A concepccedilatildeo que talvez possamos denominar dogmaacutetica Em oposiccedilatildeo agrave fixidez da ideacuteia de Tradiccedilatildeo reduzida agrave consuetudo salienta esta terceira hipoacutetese a extensatildeo do fenocircmeno Tradiccedilatildeo tambeacutem ao acircmbito da fides

Estas trecircs concepccedilotildees deram forma ao texto do Decreto de tal modo que as suas

linhas mestras derivam de Cervini e todo o texto deve ser entendido agrave luz de suas ideacuteias Contudo em duas passagens isto eacute no pervenerunt e no conservatas haacute influecircncia da segunda concepccedilatildeo enquanto no tum ad fidem tum ad mores haacute influecircncia da terceira

Em face destas trecircs concepccedilotildees das quais na realidade existem diversas variantes que tomadas em conjunto satildeo a expressatildeo das ideacuteias dominantes adotadas aparecem as teses de Bonuccio e de Nacchianti tatildeo postas em evidecircncia por Geiselmann como sentenccedilas contraacuterias De fato o parecer de Bonuccio claramente [56] se opotildee agrave segunda concepccedilatildeo (contra a supervalorizaccedilatildeo das consuetudines natildeo per pietatis affectus) ao passo que Nacchianti se levanta antes contra a terceira posiccedilatildeo e salienta a suficiecircncia da feacute recebida por meio da Escritura46

Seria de notar-se ainda que as concepccedilotildees segunda e terceira tecircm algo em comum Ambas opotildeem agrave visatildeo pneumatoloacutegica de Cervini da salvaccedilatildeo sempre presente uma visatildeo mais historicista relacionada com o prolongamento da salvaccedilatildeo operada uma soacute vez ou seja o ἑφάπαξ Na realidade deve-se dizer que embora de um lado tanto a visatildeo presencial de Cervini como tambeacutem a visatildeo historicista do outro grupo se consideradas isoladamente cada qual de per si sejam perigosas se natildeo insustentaacuteveis 46 Aliaacutes de acordo com uma informaccedilatildeo de Cervini parece que o Bispo de Chioggia finalmente renunciou agrave sua tese da suficiecircncia da Escritura na qual se inclinava a recusar as tradiccedilotildees Na carta de Cervini ao Cardeal Farnese de 27 de fevereiro de 1546 lemos hellip Chioggia che (quasi quasi) voleva dire queste traditioni essere superflue perorando che tutto quello che era necessario alla salute era scritto et allegando etiam S Agostino sopra lultimo capitulo di S Giovanni a questo proposito Pure per non poter negare che molte cose appartenenti almeno alli sacramenti non ci fussero venute ex tra ditione et per consequente che non tutte le cose necessarie alia nostra salute erano scritte poiche ebbe fatte molte distintioni concluse che ancor lui accettava queste ldquoche in la chiesa fusse qualque traditione apostolica non scrittardquo (et con queste parole diceva che se ne facesse il decreto) credo che molti sono restati scandalizati di lui (CT X Nr 315 paacutegs 399 411) Cf tambeacutem CT I 494 nota 9 e 495 nota 2 CT V 18 nota 5 e 19 e nota 1 O mesmo protesto que aparece contra Nacchianti manifesta-se tambeacutem na observaccedilatildeo de Massarelli Este chega a chamar aquele de novarum rerum cupidus (1 494 18) e esclarece que reprehensus est a multis (1 494 22) Diante disto eacute de todo destituiacuteda de creacutedito a importacircncia que Geiselmann lhe atribui mesmo se abstrairmos de outras razotildees jaacute conhecidas sobre as quais natildeo precisamos insistir

de outro lado pelo menos tornam possiacutevel uma exata visatildeo do conjunto devido agrave sua muacutetua confluecircncia e limitaccedilatildeo No texto atual estatildeo presentes embora pouco nitidamente ambos os pontos de vista o elemento presencial e o ἑφάπαξ Conveacutem que entendamos assim o texto de modo a considerarmos [57] ambos estes aspectos como essenciais Consequumlentemente reconheceremos que ambos pertencem constitutivamente agrave realidade da vida cristatilde e portanto tambeacutem agravequela parcela do Cristianismo a que damos o nome de Tradiccedilatildeo Estes dois elementos satildeo a presenccedila do Espiacuterito Santo e o seu nexo com o fato singular da salvaccedilatildeo ocorrido uma soacute vez por todas na histoacuteria dos homens

Assim se acharaacute finalmente a resposta agrave pergunta de corno noacutes devemos entender o parecer do Conciacutelio de Trento A primeira e mais importante conclusatildeo parece-me ser o fato de o Conciacutelio ter visto muito claramente o nexo entre Tradiccedilatildeo e Revelaccedilatildeo A seguir elaborou sempre em consonacircncia com a tradiccedilatildeo patriacutestica e medieval um conceito de Revelaccedilatildeo muito menos material do que o que seraacute adotado mais tarde pela teologia dos tempos modernos Somente assim se deve conceber a ideacuteia da Revelaccedilatildeo do Espiacuterito Santo na Igreja Partindo do ramo nitidamente patriacutestico da teologia medieval tatildeo francamente acolhido no discurso de Cervini deveria ser muito menos categoacuterica a opiniatildeo que coloca o teacutermino da Revelaccedilatildeo na morte do uacuteltimo Apoacutestolo Naturalmente esta questatildeo natildeo pode ser aqui estudada com maiores detalhes A sua soluccedilatildeo como entatildeo se apresentava aos teoacutelogos poderia ser hoje impostada apelando-se para as categorias da teologia atual Segundo esta podemos dizer que a Revelaccedilatildeo estaacute encerrada do ponto de vista de seu princiacutepio material Todavia estaacute e continua presente em sua realidade eficaz Noutros termos a Revelaccedilatildeo tem eacute verdade o seu ἑφάπαξ enquanto ela se realizou num determinado dia na Histoacuteria Entretanto ela tem tambeacutem o seu ldquohojerdquo permanente isto eacute o que foi uma vez por todas realizado na feacute da Igreja permanece sempre vivo e operante Assim a feacute cristatilde natildeo se volta apenas para o passado Abrange tambeacutem o presente e o futuro Eacute verdade que a posterior materializaccedilatildeo historicista da ideacuteia de Revelaccedilatildeo aparece jaacute claramente insinuada nos debates tridentinos corno um fato previsto mas ainda [58] natildeo consumado embora talvez se possa dizer que nos textos conciliares ficou definitivamente consagrada a sua aceitaccedilatildeo

Finalmente acrescentemos ainda que com base nos debates do Conciacutelio podemos estabelecer quatro elementos da ideacuteia de Tradiccedilatildeo 1 O aspecto natildeo-escrito da Revelaccedilatildeo ou do Evangelho contido na Biacuteblia e no coraccedilatildeo dos fieacuteis 2 A palavra do Espiacuterito Santo no decorrer de todo o tempo da Igreja

3 A atividade da Igreja nos Conciacutelios 4 A Tradiccedilatildeo lituacutergica e a da vida da Igreja em geral Nestes quatro elementos

que se deve ter sob os olhos pois formam o fundo ideoloacutegico do Decreto expressa-se a realidade uacutenica do tempo presente da Igreja cristatilde Nele estaacute presente todo o passado poacutes-apostoacutelico da Igreja (inclusive o proacuteprio tempo dos apoacutestolos) de modo que toda a sua vida eacute na Sagrada Escritura um elemento central embora natildeo o uacutenico Em suma deve ter ficado claro que o Conciacutelio de Trento a despeito do caraacuteter contrastante e fixo de sua ideacuteia de Revelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeo oferece uma visatildeo muito mais rica destes conceitos do que a que impregnou a mentalidade dos seacuteculos seguintes Justamente por

isso a teologia de hoje pode retirar daiacute novos subsiacutedios novo apoio para suas pesquisas e novas indicaccedilotildees sobre o verdadeiro caminho a seguir

Quadro sinoacutetico do Decreto tridentino sobre a Tradiccedilatildeo

Primeiro princiacutepio conforme Cervini (AT = Escritura)

Sacrosancta œcumenica et generalis Tridentina Synodus in Spiritu Sancto legitime congregata [] hoc sibi perpetuo ante oculos proponens ut sublatis erroribus puritas ipsa EVANGELII in Ecclesia conservetur quod PROMISSUM ANTE PER PROPHETAS IN SCRIPTURIS SANCTIS

Segundo princiacutepio conforme Cervini o Evangelho em parte escrito em parte insculpido nos coraccedilotildees

[59] DOMINUS NOSTER IESUS CHRISTUS DEI FILIUS PROPRIO ORE PRIMUM PROMULGAVIT DEINDE PER SUOS APOSTOLOS TAMQUAM FONTEM OMNIS ET SALUTARIS VERITATIS ET MORUM DISCIPLINAE OMNI CREATURAE PRAEDICARI IUSSIT PERSPICIENSQUE HANC VERITATEM ET DISCIPLINAM CONTINERI IN LIBRIS SCRIPTIS ET SINE SCRIPTO TRADITIONIBUS QUAE AB IPSIUS CHRISTI ORE AB APOSTOLIS ACCEPTAE AUT AB IPSIS APOSTOLIS SPIRITU SANCTO DICTANTE

Seripando Cervini e outros soacute consideram as tradiccedilotildees recebidas pela Igrej (ldquoad nos usquerdquo)

quasi per manus traditae ad nos usque pervenerunt

orthodoxorum Patrum exempla secuta omnes libros tam Veteris quam Novi Testamenti cum utriusque unus Deus sit auctor nec non TRADITIONES IPSAS

Lejay Tradiccedilatildeo contendo natildeo soacute a ldquoconsuetudordquo mas relacionada tambeacutem com a ldquofidesrdquo (foacutermula conciliar)

tum ad fidem tum ad mores pertinentes

Terceiro princiacutepio de Cernini Depois da Ascenccedilatildeo de Cristo o Espiacuterito Santo ensina tambeacutem os misteacuterios de Deus

TAMQUAM VEL ORETENUS A CHRISTO VEL A SPIRITU SANCTO DICTATAS

Seripando Cervini etc soacute satildeo consideradas as coisas recebidas pela Igreja (como acima)

et continua successione in Ecclesia catholica conservatas

Cervini Escritura e Tradiccedilatildeo procedem ambas do mesmo Espiacuterito Santo

pari pietatis affectu ac reverentia suscipit ac veneratur

  • Prefaacutecio
  • SEGUNDA PARTE
  • Explicaccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo
  • segundo o Decreto do Conciacutelio de Trento
Page 20: Revelacao e Tradicao-Joseph Ratzinger (Bom Ler)

Antigo Testamento atinge a sua consumaccedilatildeo Eacute a partir do AT que se entende quem eacute Jesus E o que o Testamento Antigo expressa pode ser visto agrave luz do Cristo-evento

Esta ideacuteia aparece em Paulo ao apresentar ele o Antigo e o Novo Testamentos como Gramma e Pneuma isto eacute letra e espiacuterito (2Cor 3 6-18) Ele chama ao Senhor de Pneuma A Escritura explica-o como sendo o seu sentido o seu conteuacutedo verdadeiro e vivo e natildeo apenas literaacuterio Paulo se refere agrave concepccedilatildeo do Novo Testamento apresentada por Jeremias (3133) Natildeo eacute mais necessaacuteria nenhuma Escritura porque a lei estaacute escrita nos coraccedilotildees Jaacute natildeo eacute necessaacuteria nenhuma doutrinaccedilatildeo vinda de fora porque o proacuteprio Deus instrui os homens Joatildeo exprime idecircntico pensamento em seguimento ao decircutero-Isaiacuteas (5413) quando descreve a era inaugurada por Cristo como o tempo no qual todos satildeo doutrinados por Deus mesmo E o sermatildeo de Pedro em Pentecostes transmitido pelos Atos dos Apoacutestolos (2 14-36) desenvolve a mesma ideacuteia tirada de Joel (3 1-5) Em todos estes casos aparece a era instaurada por Cristo como resposta agrave esperanccedila no advento de um tempo futuro que em uacuteltima anaacutelise haveria de tornar supeacuterflua a Escritura graccedilas agrave presenccedila imediata do Divino Mestre na Sua humanidade

Quando se pondera o sentido destas afirmaccedilotildees torna-se claro [28] que ao reduzir-se a ldquoEscriturardquo aos escritos do Antigo Testamento natildeo se estaacute apenas usando uma terminologia antiga que teria sido adotada por falta de escritos propriamente neotestamentaacuterios e que teria perdido seu sentido na segunda metade do seacuteculo segundo com o iniacutecio do cacircnon do Novo Testamento Ao contraacuterio Aqui se expressa uma consciecircncia que se tornaria mais niacutetida a partir da formaccedilatildeo da proacutepria Escritura neotestamentaacuteria muito ao inveacutes de cessar ou de desaparecer

Uma coisa eacute certa a ldquoEscriturardquo na nova ordem da salvaccedilatildeo inaugurada por Cristo toma um lugar distinto do que lhe cabia no Antigo Testamento Com isto pode-se ver ateacute que ponto o Antigo Testamento tem sentido autocircnomo O AT certamente natildeo aparecia desde o comeccedilo como Testamento do Gramma Escritura em sentido proacuteprio como ocorreraacute na pena de Satildeo Paulo17 Por outro lado manifesta-se realmente a partir de Jeremias e do decircutero-Isaiacuteas o anelo pela superaccedilatildeo do Gramma mediante uma nova e imediata comunicaccedilatildeo do Espiacuterito de Deus simultaneamente com a progressiva formaccedilatildeo de um princiacutepio da Escritura que mais e mais a transformou em Lei Lei esta que natildeo tornaria os homens vivos mas sim mortos

Desta maneira na concepccedilatildeo neotestamentaacuteria aparece o Antigo Testamento como ldquoEscriturardquo em sentido proacuteprio Escritura que atinge o seu verdadeiro significado atraveacutes do Cristo-evento pelo fato de ser ela inserida no contexto vivo da realidade de Cristo Se no Novo Testamento de facto a Escritura cresceu natildeo pode mais ter aquele sentido uacuteltimo e exclusivo que lhe competia no Antigo segundo a concepccedilatildeo paulina Ao contraacuterio Ela eacute a chave com que se abre o Antigo Testamento deixando-se banhar na claridade do Cristo-evento Ela eacute tambeacutem a ponte permanente que conduz a uma nova interpretaccedilatildeo biacuteblica agrave luz [29] de Cristo Num caso e noutro a Escritura natildeo pretende de modo nenhum ser autocircnoma nem ser a fonte uacutenica e exclusiva de sua exegese literal Mas soacute pode ter sentido na realidade espiritual de Jesus Cristo que

17 Ver a apreciaccedilatildeo feita por G VON RAD Theologie des Alten Testaments II Munique 1960 p402-424

permanece junto dos seus todos os dias ateacute ao fim do mundo (Mt 28 20) Apoacutes a subida ao Calvaacuterio Cristo veio de novo no Espiacuterito Santo (como narra Satildeo Joatildeo) e pelo Espiacuterito ensinou aos disciacutepulos o que eles entatildeo natildeo podiam ainda entender enquanto o Senhor estava entre eles sob forma visiacutevel (Jo 16 12)

3 Cristo a Revelaccedilatildeo de Deus

A realidade que se daacute como um acontecimento na Revelaccedilatildeo cristatilde natildeo eacute nada

mais nada menos do que o proacuteprio Cristo Cristo eacute a Revelaccedilatildeo em sentido proacuteprio ldquoQuem me vecirc vecirc o Pairdquo diz ele no Evangelho de Satildeo Joatildeo (14 9) Vale portanto dizer que receber a Revelaccedilatildeo eacute penetrar na realidade de Cristo no Cristo-evento Daiacute procede o paradoxo descrito por Satildeo Paulo ao fazer ele um trocadilho com as palavras ldquoCristo em noacutesrdquo e ldquonoacutes em Cristordquo

Neste contexto a anaacutelise de frases isoladas torna-se secundaacuteria de vez que elas satildeo apenas explicaccedilotildees do uacutenico misteacuterio de Cristo Consequumlentemente cai por si mesma a questatildeo da suficiecircncia interna da Escritura tatildeo discutida desde o aparecimento das obras de Geiselmann Deveriacuteamos isto sim perguntar que significa em linguagem cristatilde a suficiecircncia interna da Escritura ldquoSuficienterdquo eacute soacute a realidade do Cristo-evento Esta pode ser explicada materialmente em maior ou menor grau E de maneira nunca definitiva Partindo deste princiacutepio podem existir tambeacutem outras explicaccedilotildees segundo a Escritura quando se aprofunda mais este assunto

Este mesmo tema pode ser considerado sob outro aspecto E ter-se-aacute entatildeo dado um passo a mais para a frente A aceitaccedilatildeo [30] da Revelaccedilatildeo pela qual aplicamos a noacutes o Cristo-evento vem na linguagem da Biacuteblia sob o nome de ldquofeacuterdquo Assim talvez se entenderaacute mais claramente de que maneira no Novo Testamento a feacute significa a ldquoin-habitaccedilatildeordquo de Cristo Se admitirmos que na Escritura a presenccedila da Revelaccedilatildeo tem o mesmo sentido que a presenccedila de Cristo entatildeo teremos de fato dado um passo adiante Ora na Escritura encontramos a presenccedila de Cristo apresentada de duas maneiras Ela aparece de um lado como jaacute vimos identificada com a feacute (Ef 317) na qual cada um encontra Cristo e se adentra nele penetrando no dinamismo de sua forccedila salvadora Por outro lado a feacute se oculta tambeacutem sob a expressatildeo paulina ldquoCorpo de Cristordquo o que quer dizer que a comunidade dos fieacuteis ndash a Igreja ndash funda a presenccedila de Cristo neste mundo Nela Cristo reuacutene os homens e os faz partiacutecipes de sua presenccedila dinacircmica18

Tomadas juntas estas duas noccedilotildees significam o seguinte a feacute eacute a adesatildeo iacutentima agrave presenccedila de Cristo realidade de Cristo presente da qual a Escritura nos daacute testemunho sem contudo se identificar de modo nenhum com ela Daiacute resulta que a presenccedila da Revelaccedilatildeo se relaciona essencialmente com a ldquofeacuterdquo e com a ldquoIgrejardquo realidades estas que como vimos estatildeo estreitamente ligadas entre si

Voltamos assim ao que foi afirmado na primeira tese a saber que a Revelaccedilatildeo sobreexcede a Escritura em duplo sentido em relaccedilatildeo a Deus por seu lado ascendente e em relaccedilatildeo tambeacutem ao homem que a recebe Esta asserccedilatildeo que a princiacutepio deixamos

18 H SCHLIER ldquoDie Kirche nach dem Brief an die Epheserrdquo in Die Zeit der Kirche Friburgo 1962 p159-186

um tanto vaga encontramo-la essencialmente concretizada na realidade objetiva do Cristianismo

4 A essecircncia da Tradiccedilatildeo

[31] A transmissatildeo ao povo de Deus do Cristo-evento que eacute a Revelaccedilatildeo e que tem sua bi-presenccedila na feacute e na Igreja faz-se atraveacutes da pregaccedilatildeo Pregaccedilatildeo eacute a ldquoex-posiccedilatildeordquo (Aus-legung) do duplo aspecto da Revelaccedilatildeo no Antigo e no Novo Testamento E isto de duas maneiras

a) ela eacute a exposiccedilatildeo do Antigo Testamento agrave luz do Cristo-evento e para o Cristo-evento

b) a partir do Pneuma e da condiccedilatildeo presente da Igreja Este uacuteltimo aspecto eacute possiacutevel pois Cristo natildeo estaacute morto Estaacute vivo Natildeo eacute

apenas o Cristo de ontem Eacute tambeacutem e a fortiori o Cristo de hoje e de amanhatilde o Cristo vivo e presente em sua Igreja que eacute seu Corpo e na qual o seu espiacuterito opera

Isto poderaacute ser melhor compreendido se partirmos da essecircncia da Igreja Como nos ensina o Novo Testamento a mensagem de Jesus eacute antes de tudo uma mensagem escatoloacutegica com vistas ao reino de Deus natildeo com vistas agrave Igreja O fato de existir a Igreja natildeo se opotildee a esta mensagem mas haacute na marcha gradativa das revelaccedilotildees de Cristo uma segunda possibilidade Assim a atividade dos Doze depois de Pentecostes aponta natildeo para a Igreja mas para o reino de Deus Informam-nos os Atos dos Apoacutestolos que os Doze natildeo se ocuparam primordialmente em missionar os povos Esforccedilaram-se antes muito mais em converter Israel criando deste modo as condiccedilotildees preacutevias para a implantaccedilatildeo do reino De iniacutecio uma seacuterie de obstaacuteculos histoacutericos entre os quais deveriacuteamos citar antes de tudo o martiacuterio de Estevatildeo o supliacutecio de Tiago e por fim o fato decisivo da prisatildeo e da libertaccedilatildeo de Pedro Tais fatos levaram a comunidade primitiva segundo dizem as fontes a reconhecer como definitivo o malogro do esforccedilo de converter Israel E consequumlentemente forccedilaram os Apoacutestolos a partir em busca dos gentios e a cuidar [32] assim da Igreja e natildeo do reino Eles o fazem segundo se depreende das passagens referidas e principalmente dos esclarecimentos do capiacutetulo 15 dos Atos dos Apoacutestolos como uma nova opccedilatildeo feita sob a accedilatildeo do Espiacuterito Santo Com isso iniciou-se uma nova interpretaccedilatildeo da mensagem de Cristo sobre a qual a Igreja essencialmente repousa19

19 Cf as decisivas conclusotildees de E PETERSON ldquoDie Kircherdquo in Theologische Traktate Munique 1951 p 409-429 H SCHLIER Die Entscheidung fuumlr die Heidenmission in der Urchristenheit Die Zeit der Kirche p 90-107 Parece-me certo que nem a anaacutelise da tradiccedilatildeo sinoacutetica relativa agrave mensagem de Jesus e seu caraacuteter escatoloacutegico nem o estudo da histoacuteria da Igreja primitiva com base no material fornecido pelos Atos dos Apoacutestolos autorizam qualquer outra conexatildeo entre a mensagem do reino e a pregaccedilatildeo da Igreja Daiacute natildeo se segue de modo nenhum ndash como muitas vezes se teme ndash que a cruz seja um acidente secundaacuterio que em rigor poderia ter sido evitado Ao contraacuterio A estrutura da Igreja moldada sobre a cruz eacute fundamental porque aiacute eacute que por primeiro se encontra a confirmaccedilatildeo da importacircncia da liberdade humana de Cristo e da sua Paixatildeo bem como a iacutentima dependecircncia da Igreja para com a Cruz donde ela procede

Este fato que baseia o estabelecimento definitivo da Igreja sobre uma decisatildeo tomada ldquono Espiacuterito Santordquo eacute o fundamento para se afirmar que existe uma interpretaccedilatildeo eclesial do Novo Testamento do mesmo modo que existe uma exegese cristoloacutegica do Antigo Daiacute podermos estabelecer as seguintes teses ou proposiccedilotildees agrave luz da analogia fidei

a) Existe uma teologia veterotestamentaacuteria do Antigo Testamento que o exegeta

deduz de seu conteuacutedo interno e que se desenvolve em uma seacuterie de camadas superpostas Segundo ela os textos antigos devem ser relidos e de novo expostos agrave luz dos novos acontecimentos O fenocircmeno da aplicaccedilatildeo dos textos agraves situaccedilotildees novas do desdobramento da Revelaccedilatildeo mediante nova [33] apresentaccedilatildeo do Antigo Testamento estrutura jaacute de modo essencial o conteuacutedo interno veterotestamentaacuterio20

b) Existe uma teologia neotestamentaacuteria do Antigo Testamento que natildeo coincide com

a referida teologia veterotestamentaacuteria Estaacute contudo estreitamente ligada com ela na unidade da analogia fidei21 Talvez partindo daqui se possa esclarecer o que significa a analogia fidei entre Os dois Testamentos A teologia neotestamentaacuteria do Antigo Testamento natildeo eacute como ficou dito idecircntica agrave teologia histoacuterica veterotestamentaacuteria Ao contraacuterio Re-exposiccedilatildeo feita agrave luz do Cristo-evento ela natildeo procede soacute da mera consideraccedilatildeo histoacuterica do Antigo Testamento Sendo embora em seu pleno conceito uma interpretaccedilatildeo relacionada com o Antigo Testamento contudo nada faz com que ela seja internamente estranha agrave sua essecircncia ainda que soacute de fora o atinja Ela amplia a forma estrutural do Antigo Testamento que assim interpretado revive e cresce

c) Existe uma teologia neotestamentaacuteria do Novo Testamento paralela agrave teologia veterotestamentaacuteria do Antigo Ou seja a teologia que o exegeta como tal pode deduzir do conteuacutedo interno do Novo Testamento eacute tambeacutem esta conhecida e estruturada mediante a aplicaccedilatildeo do Antigo Testamento agraves novas situaccedilotildees

d) Existe uma teologia eclesial do Novo Testamento que noacutes [34] chamamos Dogmaacutetica Ela se relaciona com a teologia neotestamentaacuteria do Novo Testamento do mesmo modo que a teologia neotestamentaacuteria do Antigo se relaciona com a respectiva teologia veterotestamentaacuteria Aquele ldquomaisrdquo (das Mehr) que distingue propriamente a Dogmaacutetica da teologia biacuteblica eacute o que designamos com a palavra Tradiccedilatildeo Aliaacutes tambeacutem aqui devemos salientar que a teologia eclesiaacutestica neotestamentaacuteria pela mesma razatildeo natildeo eacute simplesmente idecircntica agrave teologia neotestamentaacuteria interna e

20 Cf H GROSS Motivtransposition als Form- und Traditionsprinzip im Alten Testament in H VORGRIMLER Exegese und Dogmatik Moguacutencia 1962 p134-152 e a bibliografia aiacute fornecida G v RAD Theologie des Alten Testaments II Munique 1960 p332-339 396-401 21 A diferenccedila entre as duas teologias do Antigo Testamento foi vivamente exposta por R BULTMANN ldquoWeissagung und Erfuumlllungrdquo in Glauben und Verstehen II Tubinga 1952 p162-186 - Sobre as necessaacuterias correccedilotildees a se fazerem para que se torne visiacutevel a base histoacuterica do que a teologia sistemaacutetica denomina ldquoanalogia fideirdquo cf G v RAD op cit p329-424 (entre outras) e principalmente a p 420 nota 25 e a p422 nota 29 Sobre o tema ldquoanalogia fideirdquo em ambos os Testamentos cf tambeacutem E PRZYWARA Alter und Neuer Bund Viena-Munique 1956

histoacuterica do Novo Testamento Ultrapassa-a sem contudo ser-lhe puramente externa Com efeito no Novo Testamento comeccedila jaacute o processo da exposiccedilatildeo pela Igreja das verdades reveladas A teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento processa-se dentro dele proacuteprio como de modo clariacutessimo se percebe na histoacuteria da Revelaccedilatildeo sinoacutetica22

Eacute oportuno fazermos ainda uma pequena observaccedilatildeo se cotejarmos atentamente a teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento com a Dogmaacutetica reconheceremos que se impotildee uma outra distinccedilatildeo A Dogmaacutetica como ciecircncia aleacutem da exposiccedilatildeo eclesiaacutestica do Novo Testamento abrange tambeacutem a teologia particular de cada teoacutelogo Neste caso para se falar com precisatildeo dever-se-ia apresentar somente o proacuteprio dogma como teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento

O que acabamos de referir natildeo passa naturalmente de um esboccedilo que necessitaria em seus pormenores de natildeo poucos esclarecimentos e distinccedilotildees a fim de ser completo No caso presente entretanto damos por suficiente este esboccedilo Resumindo o que ateacute aqui expusemos podemos agora destacar vaacuterias ldquoraiacutezesrdquo da Tradiccedilatildeo e apontar vaacuterias camadas em seu seio [35] lordf raiz a maior amplidatildeo da ldquoTradiccedilatildeordquo em referecircncia agrave ldquoEscriturardquo

2ordf raiz o caraacuteter especiacutefico da Revelaccedilatildeo neotestamentaacuteria como Pneuma em contraste com o Gramma Eacute o que na linguagem de Bultmann se poderia chamar de sua condiccedilatildeo de ldquonatildeo-objetordquo (Nichtobjektiviertbarkeit) A praxe eclesiaacutestica e a teologia medieval expressaram este aspecto ao sobreporem a fides agrave Scriptura isto eacute o dogma como regra de feacute agraves minuacutecias da lei escrita23 O dogma eacute como a chave hermenecircutica da Escritura que em uacuteltima anaacutelise sem o auxiacutelio da hermenecircutica ficaria sendo algo fechado

3ordf raiz o caraacuteter presencial do Cristo-evento e a presenccedila dinacircmica do Espiacuterito de Cristo em seu Corpo a Igreja E consequumlentemente o poder que tem a Igreja de fazer a pregaccedilatildeo do Cristo ontem e hoje pregaccedilatildeo esta cuja fonte se encontra na interpretaccedilatildeo eclesiaacutestica da mensagem do reino transmitida pelos Apoacutestolos

Em conexatildeo com estas trecircs raiacutezes da ideacuteia (ou melhor da realidade) da Tradiccedilatildeo podem distinguir-se na mesma as seguintes camadas

a) Na origem de toda Tradiccedilatildeo estaacute o fato de que o Pai enviou o Seu Filho ao mundo e que o Filho por sua vez se [36] entregou ndash como sinal ndash aos ldquopovosrdquo (παραδίδοται) Esta paraacutedosis original em sua forccedila direta e salvadora

22 Cf por exemplo a rica exposiccedilatildeo de G BORNKMANN Jesus von Nazareth Estutegarte 1956 Sobre a questatildeo aqui estudada cf H SCHLIER Uumlber Sinn und Aufgabe einer Theologie des Neuen Testaments in H VORGRIMLER Exegese und Dogmatik Mainz 1962 p6990 23 O que haacute de melhor sobre este assunto no tocante agrave Patriacutestica seraacute encontrado em HARNACK DG II (1931) p84-116 HARNACK diz na p 87 nota 3 o seguinte ldquoO Cacircnon era de iniacutecio a regra da feacute A Escritura estaacute centrada na verdade Sem duacutevida nenhuma sua autoridade funda-se solidamente no Antigo Testamento e nas palavras do Senhorrdquo ndash Que assim tenha pensado tambeacutem a Idade Meacutedia e que aqui aleacutem da revelatio (da qual falaremos na 2ordf parte deste livro) a fides sobrepondo-se agrave Scriptura estabelece a forma essencial do conceito de Tradiccedilatildeo foi o que tentei demonstrar em meu artigo Wesen und Weisen der auctoritas im Werk des heiligen Bonaventura in Die Kirche und ihre Aumlmter und Staumlnde (Festgabe Kardinals Frings publicado por CORSTEN-FROTZ-LINDEN Colocircnia 1960 p 58-72

prolonga-se na permanente presenccedila de Cristo no σῶμα Χριστοῦ ndash no Seu Corpo a Igreja Assim o misteacuterio integral da presenccedila de Cristo eacute antes de tudo a realidade total transmitida pela Tradiccedilatildeo (fato fundamental e decisivo sempre anterior a todas as explicaccedilotildees particulares mesmo as da Escritura) e reguladora do que deve propriamente ser transmitido

b) A Tradiccedilatildeo existe concretamente como presenccedila na feacute Esta por seu turno como ldquoin-habitaccedilatildeordquo de Cristo precede todas as explicaccedilotildees particulares e frutuosa e viva ldquoexplicita-serdquo (explizierend) atraveacutes dos tempos

c) A Tradiccedilatildeo tem seu oacutergatildeo na plenitude dos poderes da Igreja e portanto naqueles que satildeo os legiacutetimos depositaacuterios destes poderes24

d) A Tradiccedilatildeo exprime-se tambeacutem naquilo que emanado da autoridade da Igreja se tornou regra de feacute (Symbolum fides quaelig) Portanto a questatildeo de se saber se certas proposiccedilotildees foram transmitidas desde o

comeccedilo pela Tradiccedilatildeo ao lado da Escritura ou em outros termos se existe desde o comeccedilo um segundo princiacutepio material e autocircnomo ao lado da Escritura torna-se afinal um problema inteiramente secundaacuterio Talvez lhe devamos responder negativamente

5 A funccedilatildeo da exegese [37] Pelo que ateacute aqui dissemos ficaram esclarecidas quase que exclusivamente

trecircs pontos os limites da letra da Escritura a liberdade do Espiacuterito Santo e a autoridade da Igreja Acontece poreacutem que a exposiccedilatildeo que fizemos abriga ainda um sentido diverso relacionado com a justa preocupaccedilatildeo de Lutero da qual partimos

Se ficou estabelecido que a Revelaccedilatildeo se faz presente atraveacutes da pregaccedilatildeo e se pregaccedilatildeo eacute exposiccedilatildeo da palavra revelada entatildeo pode e deve agora ao que precede acrescentar-se o seguinte a Tradiccedilatildeo eacute essencialmente e sempre uma exposiccedilatildeo Natildeo existe de maneira autocircnoma e sim como explicaccedilatildeo como exposiccedilatildeo ldquorelacionada com a Escriturardquo

Isto vale para a pregaccedilatildeo do proacuteprio Jesus Cristo realizaccedilatildeo plena da Revelaccedilatildeo e sua exposiccedilatildeo feita com autoridade A pregaccedilatildeo de Jesus Cristo natildeo aparece como algo absolutamente novo na Escritura Isto eacute como algo ainda natildeo atestado no Antigo Testamento Ela ensina isto sim a essecircncia do que jaacute estava escrito e lhe confere uma vida nova que o simples exegeta natildeo pode comunicar-lhe

O que vale para a mensagem de Cristo que permanece a mesma sob diferentes modalidades de exposiccedilatildeo vale tambeacutem para a pregaccedilatildeo apostoacutelica e a eclesiaacutestica Como ldquoTradiccedilatildeordquo ela deve em uacuteltima anaacutelise ser uma exposiccedilatildeo ldquosegundo a Escriturardquo a ela sujeita e com ela relacionada Sem duacutevida natildeo eacute ela uma exposiccedilatildeo no 24 Estas ideacuteias natildeo podem ser desenvolvidas mais detalhadamente aqui como seria de desejar uma vez que em rigor estamos procurando apenas fundamentar o conceito de Tradiccedilatildeo Em razatildeo da brevidade que me impus contentei-me apenas nas teses precedentes com explanar o assunto ateacute ao ponto em que ficasse patente a relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a ldquoIgrejardquo (cf as teses 4 e 5) Para se descer a maiores detalhes dever-se-ia analisar tambeacutem o conceito de Igreja que supomos conhecido do leitor Para isto cf a nota 6 onde citamos nosso livro sobre o Ofiacutecio e a unidade da Igreja Encontram-se aiacute algumas observaccedilotildees sobre o assunto de que ora tratamos

sentido de mera interpretaccedilatildeo exegeacutetica Mas sim na autoridade espiritual recebida do Senhor a qual se consuma na existecircncia plena da Igreja em sua feacute em sua vida e em seu culto Contudo ela permanece sendo (mais ainda do que o Cristo-evento em que se funda a Igreja) uma ldquoex-posiccedilatildeordquo (Aus-Legung) comprometida com a Histoacuteria e com a Palavra [38] Exprime-se deste modo a sua ligaccedilatildeo com a accedilatildeo concreta de Deus nesta mesma Histoacuteria e em seu caraacuteter de fato histoacuterico uacutenico (o ἑφάπαξ ldquoo ocorrido uma soacute vezrdquo) A realidade cristatilde da Revelaccedilatildeo eacute tatildeo essencial quanto ldquoeternardquo e definitiva Resulta daiacute a unidade entre o Cristo da Feacute e o Jesus da Histoacuteria o Jesus histoacuterico natildeo eacute senatildeo o Cristo da Feacute ainda que a feacute seja sempre algo mais do que a histoacuteria

Segue-se que do mesmo modo que existe um ofiacutecio de custoacutedia da Revelaccedilatildeo por parte da Igreja ofiacutecio por ela mesma atestado existe tambeacutem um ofiacutecio de custoacutedia da mesma Revelaccedilatildeo por parte da exegese que penetra o sentido literal da Escritura e defende a uniatildeo do Logos com a carne contra qualquer perigo de gnose Existe portanto por assim dizer algo como uma autonomia especiacutefica da Escritura como regra objetiva e sob muitos pontos de vista esclarecedora do Magisteacuterio eclesiaacutestico Esta era sem duacutevida uma exigecircncia legiacutetima de Lutero que ainda natildeo foi devidamente acolhida na Igreja catoacutelica por parte do Magisteacuterio cujos limites internos nem sempre foram claramente entendidos

Dever-se-ia partindo daqui salientar uma dupla criteriologia em se tratando da feacute De um lado haacute o que a Igreja antiga chamou de ldquoregra da feacuterdquo norma reguladora da palavra revelada contida na Escritura e sua exposiccedilatildeo Esta praeligscriptio da posse da Escritura como proacutepria segundo Tertuliano exclui a possibilidade de qualquer uso legiacutetimo da mesma Escritura contra a Igreja Por outro lado haacute tambeacutem o limite da littera Scripturaelig ou do sentido literal historicamente fixaacutevel que de acordo com o que ficou dito natildeo constitui nenhum criteacuterio absoluto ou autocircnomo mas sim somente um criteacuterio relativo no confronto da feacute com a ciecircncia O que na Escritura se pode descobrir quer mediante estudo cientiacutefico quer por simples leitura tem a funccedilatildeo de um criteacuterio real a que deve estar atento inclusive o Magisteacuterio em suas explicaccedilotildees Certamente [39] trata-se entatildeo de elementos sub-componentes da ciecircncia que natildeo podem servir para se julgar a feacute mas nela encontram uma instacircncia criacutetica e tecircm tambeacutem um importante papel a exercer o de zelar pela pureza do ἑφάπαξ de tutelar o conteuacutedo da Revelaccedilatildeo e de defender o dualismo histoacuterico carneespiacuterito (ldquodie Sarx der Geschichterdquo) contra os arbiacutetrios da gnose que tende sempre a impor-se

A reformatio na qual estaacute empenhada a Igreja nesta hora histoacuterica tem um papel relevante a desempenhar Eacute a missatildeo de abrir novas perspectivas para o diaacutelogo tentando assim chegar a uma ldquoreformardquo diferente da do passado que culminou com a divisatildeo no seio da Cristandade ocidental Tal missatildeo se exerceraacute em harmonia com o pleno ofiacutecio de testemunho da Igreja que tira seu direito e sua forccedila da presenccedila do Espiacuterito e de Cristo presente em todos os tempos Pois ele eacute sempre o Cristo de agora com a plenitude de seus direitos e de seus poderes Ele eacute quem daacute legitimidade e vigor ao testemunho singular e definitivo da Escritura que por sua vez encontra seu pleno sentido na singularidade da accedilatildeo histoacuterico-salviacutefica de Jesus Cristo Ele deu ao Pai seu Corpo crucificado e dando-se a si mesmo santificou para sempre os que o receberam (cf Hb 1014 727) Ele eacute o Cristo ontem hoje e sempre (Hb 138)

SEGUNDA PARTE

Explicaccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo segundo o Decreto do Conciacutelio de Trento

Parece que a completa elucidaccedilatildeo das razotildees que levaram agrave substituiccedilatildeo do

partim-partim pelo et e consequumlentemente agrave pesquisa dos dados do debate tridentino e de sua preacute-histoacuteria aparentemente favoraacutevel agrave suficiecircncia material da Escritura [40] simplifica indevidamente este problema fazendo-nos perder de vista os proacuteprios antecedentes do Decreto do Conciacutelio de Trento

1 A concepccedilatildeo pneumatoloacutegica da Tradiccedilatildeo no esquema fundamental do Cardeal Cervini

a) O conteuacutedo Um balanccedilo histoacuterico e detalhado do problema em seu conjunto exigiria uma

pesquisa exaustiva que natildeo reduzisse o seu acircmbito como o fez Geiselmann em seu livro25 Natildeo eacute nossa intenccedilatildeo proceder a um exame minucioso do assunto no presente trabalho Aqui soacute seratildeo tratados alguns pontos do debate tridentino com o fim de ampliarmos mais o horizonte de nossas reflexotildees

Fundamental para a compreensatildeo dos debates em pauta bem como do Decreto definitivo do Conciacutelio parece-me ser o Discurso do Cardeal Legado Cervini datado de 18 de fevereiro de 1546 [41] cujas linhas gerais se patenteiam tanto no Decreto como em outras decisotildees conciliares26

Tem o discurso de Cervini o meacuterito de mostrar as linhas diretrizes do Decreto de maneira mais clara do que aparecem estas na uacuteltima redaccedilatildeo do mesmo onde elas se diluem muito devido a uma seacuterie de variadas implicaccedilotildees Eacute ainda de grande auxiacutelio para o entendimento do referido discurso uma carta dos Cardeais Legados ao Cardeal Alexandre Farnese de 28 de fevereiro de 1546 Esta carta revela conteuacutedo idecircntico ndash eacute certamente inspirada pelo mesmo Cervini ndash e oferece ainda alguns outros

25 Eacute lamentaacutevel que Geiselmann em sua anaacutelise da contribuiccedilatildeo medieval sobre este assunto se tenha apoiado apenas em argumentos de segunda matildeo portanto de valor histoacuterico discutiacutevel Queira o leitor ver minhas observaccedilotildees a este respeito in Theol-prakt Quartalschrift 1963 p224-227 As novas (e temperamentais) invectivas de Geiselmann in TThQu 144 (1964) p 31-69 em nada modificaram a minha posiccedilatildeo de vez que natildeo trazem nenhuma contribuiccedilatildeo vaacutelida ao assunto Precioso ao contraacuterio eacute o trabalho de Y CONGAR La Tradition et les traditionshellip Essai historique Paris 1960 Importante eacute tambeacutem a obra de J BEUMER Die muumlndliche uumlberlieferung als Glaubensquelle Friburgo 1962 A respeito do Conciacutelio de Trento cf sobretudo aleacutem do estudo fundamental de JEDIN o artigo de E ORTIGUES Escriture et Traditions apostoliques au Concilie de Trente in RSR 36 (1949) p 271-299 K D SCHMIDT Studien zur Geschichate des Konzilis von Trient Tubinga 1925 p 152-209 26 O discurso nos foi transmitido em duas redaccedilotildees A primeira mais curta encontra-se nas Atas do Conciacutelio in CT V 11 A segunda faz parte do diaacuterio de Massarelli (Diarium III) in CT I p484 Quanto ao conteuacutedo os dois textos se completam Na anaacutelise que aqui ensaiamos as duas versotildees satildeo comparadas entre si de modo a fazerem um todo Sobre a posiccedilatildeo de Cervini no Conciacutelio cf H JEDIN Geschichte des Konzils von Trient II Friburgo 1957 p38-40 A descriccedilatildeo do desenrolar histoacuterico dos debates acha-se em JEDIN op cit p42-82 e supomo-la conhecida do leitor de vez que serve de base para a anaacutelise teoloacutegica do Decreto tridentino

esclarecimentos Cervini sustenta no citado discurso que existem trecircs princiacutepios e fundamentos de nossa feacute

1) Os livros sagrados escritos sob a inspiraccedilatildeo do Espiacuterito Santo 2) O Evangelho que Nosso Senhor natildeo escreveu mas ensinou oralmente e

implantou nos coraccedilotildees Parte do Evangelho foi escrita mais tarde pelos Evangelistas enquanto muita coisa foi simplesmente confiada aos coraccedilotildees dos fieacuteis

3) Porque o Filho de Deus natildeo ia permanecer sempre entre noacutes enviou ele o Espiacuterito Santo que haveria de revelar os misteacuterios no iacutentimo dos fieacuteis e de ensinar agrave Igreja toda a verdade ateacute ao fim dos tempos27

[43] Numa segunda redaccedilatildeo mais detalhada do discurso estas mesmas ideacuteias satildeo

desenvolvidas mais amplamente Aiacute lemos que a Revelaccedilatildeo se apresentou de modo diferente em diversos tempos

1) Nos Patriarcas cuja feacute eacute atestada na Escritura a que chamamos de Antigo Testamento

2) Em Jesus Cristo que implantou o seu Evangelho natildeo por escrito mas oralmente natildeo in charta mas in corde Das coisas que emanaram de Cristo (quaelig a Cristo emanarunt) algumas foram escritas outras permaneceram nos coraccedilotildees dos homens (quaeligdam in cordibus hominum relicta fuerunt) Todo o Evangelho de Cristo que consta desta dupla modalidade forma (tendo como primeiro princiacutepio o Antigo Testamento) o secundum prindipium fidei nostraelig

3) Daiacute surge o terceiro princiacutepio (tertium autem) porque o Filho de Deus natildeo iria permanecer sempre entre noacutes enviou ele ao mundo o Espiacuterito Santo que haveria de explicar os misteacuterios de Deus e tudo o que fosse ainda obscuro para os homens28 De modo semelhante a citada carta ao Cardeal Farnese fala de dois passos (due

passi) Um eacute que a Revelaccedilatildeo de Nosso Senhor natildeo foi totalmente escrita mas permaneceu em parte contida nos coraccedilotildees dos homens e na Tradiccedilatildeo da Igreja O outro [43] passo consiste em confirmar ldquoquello che egrave suggerito lo Spirito Santo in la Chiesa maxime medianti i concilij doppo lAscensione in cielo del Signorerdquo29

Notamos logo que contrariamente ao que esperaacutevamos natildeo dois mas trecircs satildeo os princiacutepios apontados a Escritura o Evangelho e a Revelaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

27 CT V 11 helliptria esse principia et fundamenta nostrae fidei primum libros sacros secundum esse evangelium quod Christus Dominus Noster non scripsit sed ore docuit et in cordibus illud plantavit cujus evangelii nonnulla evangelistaelig scripto mandarunt multa quoque relicta sunt in cordibus hominum Tertium quia non semper filius Dei corporaliter nobiscum mansurus erat misit Spiritum Sanctum qui in cordibus fidelium secreta Dei revelaret et ecclesiam quotidie et usque consummationem saeligculi doceret omnem veritatem et si quid in mentibus hominum dubii occurrisset declararet 28 CT I 484 Digna de nota eacute ainda a foacutermula contida na paacutegina 48514-16 nihil tamen inter scripturas sacras et apostolicas traditianes differt illaelig enim scriptaelig hae per insinuationem habentur utraeque tamen a Spiritu Sancto eodem modo emanataelig Confira-se com CT V 11 19 ab eodem Spiritu et illos (scilicet libros) et istas (scilicet traditiones) descendisse 29 CT X 373

Eacute portanto necessaacuterio observar que sob o termo ldquoEscriturardquo se entende o Antigo Testamento e que aleacutem deste (que eacute Escritura em sentido proacuteprio) aparece como segundo princiacutepio o Evangelho apresentaccedilatildeo do Cristo-evento O Evangelho por sua vez abrange o que estaacute escrito e o que natildeo estaacute escrito mas sim apenas insculpido no coraccedilatildeo dos crentes Deste modo o segundo princiacutepio representa uma vantagem pneumaacutetica sobre o que estaacute escrito o Evangelho eacute nesta concepccedilatildeo algo diferente da letra (Escritura) e soacute em parte vem escrito (Isto natildeo deve ser entendido no sentido de divisatildeo das verdades da feacute fenocircmeno denunciado ldquocom horrorrdquo por Geiselmann Ao contraacuterio Entenda-se apenas no sentido de diferente grau de dignidade no modo de exprimir-se) Em rigor o Evangelho como tal soacute pode ser escrito em parte se considerarmos a sua essecircncia

Finalmente ndash o que eacute muito de se admirar ndash segue-se como terceiro princiacutepio a accedilatildeo visiacutevel do Espiacuterito Santo em todo o tempo da Igreja

Admitimos portanto que o que noacutes geralmente chamamos de Tradiccedilatildeo natildeo aparece aqui como um soacute princiacutepio Biparte-se antes em dois princiacutepios intimamente ligados o ldquoEvangelhordquo princiacutepio apenas em parte identificaacutevel com a Escritura e a accedilatildeo do Espiacuterito Santo no tempo da Igreja Ademais podemos observar que a Escritura do Novo Testamento natildeo aparece como um princiacutepio ao lado da Revelaccedilatildeo apostoacutelica Muito menos como [44] eacute o nosso caso se apresenta a Escritura neotestamentaacuteria juntamente com a veterotestamentaacuteria como uma grandeza uacutenica uma ldquoEscriturardquo soacute agrave qual se poderia contrapor a ldquoTradiccedilatildeordquo como uma segunda grandeza O Novo Testamento em seu conjunto aparece como um segundo e mais amplo princiacutepio ou seja o Evangelho que como tal se opotildee de um lado ao Antigo Testamento e de outro agrave projeccedilatildeo histoacuterica do tempo da Igreja Sua unidade interna eacute evidentemente mais forte e importante do que a sua divisatildeo em escrito e natildeo-escrito Assim o Evangelho como um soacute princiacutepio pode ser contraposto ao Antigo Testamento a despeito desta dupla formalidade A impossibilidade de se representar o Novo Testamento como Escritura impossibilidade esta demonstrada por Satildeo Paulo e pelos primeiros seacuteculos cristatildeos eacute aqui claramente revelada

Ainda uma observaccedilatildeo relativa ao texto a que vimos nos referindo Em nenhum dos dois pontos por noacutes citados no estudo da Tradiccedilatildeo isto eacute nem no elemento contido no primeiro nem no apresentado no terceiro princiacutepio figura a Tradiccedilatildeo como verbal Em ambos os casos ao contraacuterio trata-se mais da Tradiccedilatildeo real com prevalecircncia da realidade sobre as palavras que a atestam Este fato que estaacute claro no terceiro princiacutepio o pneumatoloacutegico vale tambeacutem em relaccedilatildeo agrave implantaccedilatildeo do Evangelho nos coraccedilotildees contida no segundo princiacutepio Tal implantaccedilatildeo vai muito aleacutem do que se encontra expresso na letra da Escritura

Que papel tenham estas ideacuteias exercido nas discussotildees do Conciacutelio pode-se concluir tambeacutem das auctoritates citadas por Cervini entre as quais figuram Jo 16 12 (hellipSpiritus Sanctus suggerethellip) e Fl 3 15 (Quicumque perfecti sumus haeligc sentiamus et si quid aliter sentitis haeligc quoque Deus vobis revelabit) Ambos estes textos satildeo de teor acentuadamente [45] pneumatoloacutegico-presencial30 Que tais ideacuteias natildeo eram

30 CT V 14 e 15 Um exame profundo das auctoritates quer da Escritura quer entre os Santos Padres que neste particular satildeo favoraacuteveis agrave Tradiccedilatildeo seria em si conclusivo para a elaboraccedilatildeo do conceito

estranhas aos Padres conciliares deduz-se ainda de uma seacuterie de outras referecircncias Assim ouvimos o Bispo de Aqui dizer que aleacutem da Sagrada Escritura existe muita coisa na Igreja de Deus que vindo dos Apoacutestolos e passando de geraccedilatildeo a geraccedilatildeo chegou ateacute noacutes assim como muitas outras quaelig etsi scripta Apostoli nobis non reliquerunt per Spiritus Sancti revelationem nobis (tradita) sunt (Tradita estaacute aqui por revelata) 31 Partindo daiacute se poderia descrever a Tradiccedilatildeo justamente como o componente pneumatoloacutegico do Cristo-evento b) A influecircncia do esquema de Cervini em diversas decisotildees conciliares

Eacute verdade que esta concepccedilatildeo tripartida aparece muito atenuada no Decreto

oficial sobre a Tradiccedilatildeo Que poreacutem em suas linhas fundamentais natildeo tenha ela sido de modo nenhum [46] abandonada mostram-no duas outras passagens nas quais o Conciacutelio faz uso por assim dizer in actu das ideacuteias aqui expressas32 Assim na Introduccedilatildeo ao Decreto sobre a Eucaristia (Denz 873) se lecirc Sacrosancta Synodus sanamhellipdoctrinam tradens quam semper catholica Ecclesia ab ipso Jesu Christo Domino Nostro et eius apostolis erudita atque a Spiritu Sancto illi omnem veritatem in dies suggerente (Jo 1416) edocta retinuithellip

Aqui a accedilatildeo proacutepria do Conciacutelio eacute descrita como tradere e a este tradere eacute atribuiacutedo um duplo fundamento De um lado o ensino de Jesus e dos Apoacutestolos (Note-se que este ponto corresponde ao Evangelho segundo a concepccedilatildeo de Cervini E de certo modo tambeacutem pela citaccedilatildeo de Jesus e dos Apoacutestolos se reconhece a dupla modalidade do Evangelho como escrito e como inserido nos coraccedilotildees) De outro lado o ensino dado pelo Espiacuterito Santo que conduz agrave verdade in dies isto eacute no de correr do tempo futuro

O outro texto que pode ser aduzido aqui como prova do que afirmamos encontra-se no Preacircmbulo do Decreto sobre o Purgatoacuterio (Denz 983) Aiacute se lecirc hellipCatholica Ecclesia Spiritu Sancto edocta ex Sacris Litteris et antiqua Patrum traditione in sacris Conciliis et novissime in hac Synodo docuerit A descriccedilatildeo da accedilatildeo proacutepria do

aqui exposto H HOLSTEIN procurou fazer o cotejo destas auctoritates e fecirc-lo de modo admiraacutevel em seu artigo La Tradition dapregraves le Concile de Trente (RSR 47 1959 p367-390 e em particular para o caso em questatildeo a p375) Ele encontra nos textos estudados duas linhas de tendecircncias A linha de Santo Irineu para a qual o testemunho dos Apoacutestolos eacute o de sua personalidade de sua vida e de seu ofiacutecio Aleacutem desta o grupo composto de Tertuliano Cipriano Basiacutelio e Agostinho forma uma corrente que se poderia denominar ldquocerimonialrdquo Oriacutegenes se enquadra em ambos os grupos Existe entre os autores estudados uma seacuterie de textos que se referem agraves observationes consuetudines institutiones e que levam a entender-se a Tradiccedilatildeo neste mesmo sentido Aiacute se vecircem tambeacutem textos que sublinham o aspecto natildeo-escrito do Evangelho enquanto insculpido no coraccedilatildeo dos fieacuteis e aleacutem disso textos que apontam a Igreja como o ldquolugarrdquo da verdade cristatilde 31 CT I 483 (18 de fevereiro de 1546) Em 26 de fevereiro (CT V 18) encontramos Cervini a tratar de novo deste assunto Cf tambeacutem um pronunciamento do Bispo de Fano (CT V 10) nestes termos Cum jam receperimus Scripturas Sacras necessario recipiendaelig sunt traditiones quaelig ab eodem Spiritu Sancto quo scripturaelig dictataelig sunthellip 32 Disto me adverti pela primeira vez atraveacutes de um estudo realizado sob a minha orientaccedilatildeo por CHR LIMBACR a quem sou devedor de muitas informaccedilotildees bibliograacuteficas

Conciacutelio como tradere encontra-se ainda nas declaraccedilotildees sobre o Sacramento da Extrema-Unccedilatildeo (Denz 910)

Finalmente a triacuteplice divisatildeo deixa-se insinuar nas entrelinhas do Decreto sobre a Tradiccedilatildeo embora obscurecida e diluiacuteda por uma seacuterie de acreacutescimos e citaccedilotildees a ele adicionados por outros motivos O Decreto da Tradiccedilatildeo com efeito [47]

1) Fala do Evangelho prometido pelos Profetas na Escritura e refere-se a esta em sentido estrito quer antes quer depois do Antigo Testamento

2) Fala da promulgaccedilatildeo por Cristo do Evangelho que foi transmitido pelos Apoacutestolos sob dupla forma oral e escrita Desta maneira o que natildeo ocorre no exemplo de Cervini aparece aqui antes de tudo o componente pneumatoloacutegico unido com o componente apostoacutelico a ponto de se distinguirem duas modalidades de Tradiccedilatildeo apostoacutelica a que remonta a Cristo e a que remonta ao envio do Espiacuterito Santo Pode-se assim estabelecer que em oposiccedilatildeo ao esquema de Cervini haacute um certo processo de historicizaccedilatildeo que salienta a relaccedilatildeo com o comeccedilo histoacuterico e igualmente parece deslocar o acento da tradiccedilatildeo real para a verbal

3) No epiacutelogo desta parte do Decreto da Tradiccedilatildeo que vimos analisando de novo eacute considerada a ideacuteia da Sagrada Escritura O conceito de Tradiccedilatildeo eacute entatildeo formulado em definitivo e descrito como vel oretenus a Christo vel a Spiritu Sancto dictatas et continua successione in Ecclesia catholica conservatas A referecircncia aos Apoacutestolos eacute omitida Pode-se na verdade considerar tudo isto como uma volta ao que foi dito antes Evidentemente a tradiccedilatildeo ditada pelos Apoacutestolos eacute citada de novo (A expressatildeo continua successione insinua-o) Contudo permanece sempre ainda certa indeterminaccedilatildeo ficando aberta a possibilidade de se encontrar aqui o vestiacutegio do terceiro componente de Cervini o princiacutepio pneumaacutetico propriamente dito Eacute tambeacutem claro que esta ideacuteia eacute discreta sendo adotada uma posiccedilatildeo mais acentuadamente histoacuterica Se agora lanccedilarmos os olhos sobre o que vimos considerando ateacute aqui surgiratildeo

inevitavelmente perguntas qual eacute realmente o sentido proacuteprio da concepccedilatildeo pneumatoloacutegica Como poderia ser perfeitamente entendida a ideacuteia a noacutes estranha de uma revelatio prolongada no tempo em face da unicidade e do caraacuteter [48] histoacuterico da Revelaccedilatildeo que evidentemente era conhecido tanto de Cervini quanto dos Santos Padres e teoacutelogos medievais33

Antes de examinarmos isto devemos esclarecer rapidamente os principais motivos que inspiraram o Decreto tridentino sobre a Escritura e a Tradiccedilatildeo deixando nele um tanto encoberta a concepccedilatildeo pessoal de Cervini Que opiniotildees de teoacutelogos teratildeo intervindo aqui chegando a ser em parte impressas no texto definitivo que resultou do cotejo de muitos pronunciamentos diversos Uma exposiccedilatildeo detalhada deste ponto exorbitaria do acircmbito de nossa anaacutelise Contentemo-nos com umas poucas observaccedilotildees sumaacuterias 33 Sobre este assunto tentei fazer um breve comentaacuterio no meu trabalho ldquoOffenbarung-Schrift-Uberlieferungrdquo in TThZ 67 (1958) p13-27 Cf J BEUMER ldquoDer theoretische Beitrag der Frnhscholastik zum Problem des Dogmenfortschrittsrdquo in ZkTh 72 (1952) p205-226 J de CHELLINCK Pour lrsquohistoire du mot ldquorevelarerdquo in RSR 6 (1916) p149-157

2 Relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a vida da Igreja

em diversas passagens do debate tridentino

Uma primeira seacuterie de motivos entre os quais se compreendem diversos pronunciamentos agraves vezes muito contrastantes em seu aparato exterior patenteia-se na ideacuteia de tradiccedilotildees expressa no Decreto de duas maneiras a) - per manus traditaelig ad nos usque pervenerunt b) - continua successione in Ecclesia catholico conservatas

O que se ocultaraacute sob estas duas foacutermulas que o historiador de hoje tem dificuldades em aceitar justamente por causa do historicismo nelas impliacutecito Podemos dizer que um decisivo papel exerceu aqui o pensamento que sempre aparecia nos debates a saber que as tradiccedilotildees satildeo variaacuteveis que muitas delas foram abolidas pelos Apoacutestolos e que por outro lado se [49] introduziram tradiccedilotildees eclesiaacutesticas que natildeo mais seriam abolidas34 Esta ideacuteia de Tradiccedilatildeo de certo modo se torna clara no tratado escrito sobre o mesmo assunto por Seripando para uso dos Padres Conciliares Seripando fala das Tradiccedilotildees escritas inseridas na Escritura como as claacuteusulas de Tiago o costume de as mulheres se cobrirem com um veacuteu a legislaccedilatildeo sobre o matrimocircnio contida em 1Cor 7 etc E o autor adverte que estas praacuteticas foram abolidas Isto porque embora associadas agrave palavra de Deus na Escritura dela ldquomuito diferemrdquo pois a palavra divina [50] de modo nenhum poderia ser abolida A estas tradiccedilotildees

34 Cabe aqui aduzir uma nova intervenccedilatildeo de Cervini datada de 26 de fevereiro de 1546 (CT I 33 e V 18) onde ele diz que nem todas as tradiccedilotildees procedentes dos Apoacutestolos devem ser conservadas mas somente as que ab Ecclesia receptaelig ad nos usque pervenerunt (V 18) Esta afirmaccedilatildeo anterior agrave formulaccedilatildeo dogmaacutetica feita pelo Concilio deve igualmente ser tida na conta de um autecircntico comentaacuterio do Decreto Aiacute se acentua como condiccedilatildeo essencial das tradiccedilotildees a receptio ecclesiaelig Vem ainda referida uma intervenccedilatildeo do Bispo de Bertinoro em data de 23 de marccedilo (I p 523) na qual ele sublinha que as tradiccedilotildees escritas por vezes foram mudadas Jaacute entre as natildeo-escritas umas foram mudadas e outras natildeo como por exemplo o rito de adicionar aacutegua ao vinho a Crisma a confissatildeo auricular O Bispo de Bertinoro acrescenta que por outro lado alguns pontos existem que permaneceram inteiramente inalterados tais como a crenccedila no descensus ad inferos na virgindade perpeacutetua de Maria a substituiccedilatildeo da observacircncia do saacutebado pela do domingo Temos depois um pronunciamento do Bispo de Bitonto datado de 27 de marccedilo (I 39) Este bispo era de parecer que algumas coisas foram transmitidas pelos Apoacutestolos com a finalidade de serem perpetuamente conservadas (como pertencentes ao depoacutesito da feacute) outras caiacuteram em desuso (como as claacuteusulas de Tiago) e outras enfim foram apenas aconselhadas Assim mesmo na Escritura algumas coisas haacute que foram escritas mas natildeo recebidas em uso por serem mateacuteria de mero conselho Por exemplo ldquose algueacutem te pedir a tuacutenica daacute-lhe tambeacutem o paacutelio se algueacutem te esbofetear numa face oferece-lhe tambeacutem a outrardquo Sem duacutevida excelente ilustraccedilatildeo do sermatildeo da montanha Finalmente consideraccedilotildees idecircnticas podemos encontrar na obra citada de LEJAY Eis outra amostra tirada do discurso de 23 de fevereiro (CT V 13) Nam illaelig (scil traditiones) quaelig ad fidem pertinent eadem sunt recipiendaelig auctoritate qua recipitur evangelium alia autem non ita eum earum plurimaelig immutataelig fuerint ut de bigamis de esu sanguinis et similia De modo semelhante aliaacutes fala tambeacutem Bonuccio (I 525 a 23 de marccedilo de 1546 ecclesia traditiones apostolorum quandoque mutavit verbum autem Dei nunquam mutavit neque mutare potest

Seripando opotildee as natildeo referidas na Biacuteblia e que ora satildeo apostoacutelicas ou oriundas de Conciacutelios universais e aceitas por toda a Igreja ora satildeo particulares e muito variaacuteveis35

Este texto nos leva a uma surpreendente conclusatildeo para Seripando e muitos outros Padres tridentinos36existem tradiccedilotildees na Escritura ldquoTradiccedilatildeordquo natildeo significa o natildeo-escrito Existe quer dentro da Escritura quer fora dela Isto nos conduz a outra pergunta em que consiste para os referidos Padres a essecircncia da tradiccedilatildeo se o que a constitui natildeo eacute o fato de natildeo ser escrita37 Em outros termos como pode a tradiccedilatildeo ser definida positivamente se ela natildeo pode ser suficientemente determinada pela ideacuteia negativa de algo natildeo-escrito

Haacute uma seacuterie de respostas para esta pergunta O proacuteprio Seripando daacute a seguinte definiccedilatildeo Traditiones hoc est Apostolorum seu sanctorum Patrum sanctae et salutares constitutiones38 Mais clara ainda eacute a afirmaccedilatildeo de Cervini citada por Massarelli A objeccedilatildeo do Bispo de Chioggia que aduzia a opiniatildeo de Agostinho de que tudo o que eacute necessaacuterio para a salvaccedilatildeo estava escrito na Biacuteblia respondia Cervini da seguinte maneira Verba illa (isto eacute de Santo Agostinho) formaliter intelligi debent scilicet ad fidem accipiendam ut salvi fiamus Quo vero ad mores et christianam vitam instituendam certo non omnia scripta sunt

[51] E de novo recorre agraves provas tiradas de Jo 1526 e 1426 E indica o princiacutepio pneumatoloacutegico39 O que eacute mais importante eacute que a Tradiccedilatildeo se refere agrave institutio vitaelig agrave presenccedila atuante da Palavra revelada na existecircncia cristatilde Tradiccedilatildeo eacute noutros termos a eficaacutecia da palavra de Deus Sem ela a palavra ficaria esteacuteril 35 Seripando De traditionibus (fevereiro ou marccedilo de 1546) CT XII p517-521 e principalmente a p 521 As expressotildees desta uacuteltima paacutegina chocam-se com a ideacuteia de Cervini sobre a receptio ecclesiaelig 36 Cf o texto citado na nota 11 37 No texto definitivo do Decreto esta ideacuteia natildeo aparece mais Aqui poreacutem com esta primeira designaccedilatildeo expliacutecita da Tradiccedilatildeo vem expressamente acentuado o contraste entre in libris scriptis et sine scripto traditionibus Na segunda redaccedilatildeo o sentido expliacutecito da palavra Tradiccedilatildeo natildeo eacute tatildeo exclusivo Contudo apresenta igual matiz ao se confrontarem as expressotildees omnes libroshellipnec non traditiones ipsas Portanto a ideacuteia positiva da Tradiccedilatildeo que serve de base a esta anaacutelise natildeo deixou de influenciar na redaccedilatildeo do Decreto 38 CT XII 517 39 CT I 494 (26 de fevereiro de 1546) A citada palavra de Santo Agostinho teve o seu papel a desempenhar na discussatildeo em curso Seripando por exemplo a ela se referiu (De traditionibus CT XII 521 47-53) Pensandum denique ne in traditionibus externis vera religio et salutis spes statuatur de quibus Augustinus Omnia quaelig pertinent ad veram religionem quaeligrendam et tenendam divina Scriptura non acuit Conceda-se que nem tudo foi escrito (veja-se Jo 2125) Todavia electa sunt autem quaelig scriberentur quaelig saluti credentium sufficere videbantur Mais do que nos debates do tridentino encontramos aqui um verdadeiro postulado dos Reformadores ldquonatildeo adotar costumes exteriores mas buscar os meios definitivos de salvaccedilatildeo na palavra da Escriturardquo A ldquosuficiecircnciardquo da Escritura de que aqui se fala eacute na verdade algo diverso da suficiecircncia material da mesma Escritura defendida por Geiselmann em sentido muito mais radical Infelizmente ainda natildeo se quis levar na devida consideraccedilatildeo o texto de Santo Agostinho (CT I 494 sugere De doctrina christiana II 9 e De pecc mero et rem II 59) Muito apropriadas nesta ordem de ideacuteias satildeo as observaccedilotildees de H SCHAUF ldquoSchrift und Traditionrdquo in Antonianum 39 (1964) p200-209 feitas no chamado Encontro de Duumlsseldorf Nos textos citados por Schauf com base em Agostinho eacute afirmada a suficiecircncia da Escritura para a salvaccedilatildeo Eacute contudo contestada a sua suficiecircncia para a Igreja em geral De fato esta alternativa parece muito mais vaacutelida e fundamental agrave luz dos postulados dos Reformadores do que a alternativa entre a suficiecircncia ou insuficiecircncia material da Escritura

Na mesma linha de ideacuteias seguem-se duas outras seacuteries de pronunciamentos Vimos na introduccedilatildeo agrave parte anterior que a discussatildeo dogmaacutetica da ideacuteia de

Tradiccedilatildeo foi em parte prejudicada pela questatildeo do meacutetodo a seguir no Conciacutelio dever-se-ia abordar primeiro a reformatio a reforma praacutetica da Igreja como queria o ldquoKaiserrdquo Ou primeiro discutir a questatildeo dogmaacutetica como preferia o Papa40

[52] Este problema do meacutetodo embora resolvido no debate que entatildeo surgiu natildeo afetou diretamente a questatildeo da Tradiccedilatildeo como tal Mas como de fato estas duas questotildees ficaram ligadas entre si daiacute resultou que muitos oradores transformaram a questatildeo do meacutetodo (se se deveria falar dos abusos ou da Tradiccedilatildeo) em parte de sua argumentaccedilatildeo em torno do assunto em pauta41 O problema abusus e o problema Traditio ficaram de tal maneira associados na ocasiatildeo que pareciam formar no fundo um soacute assunto Por isso os oradores ora falavam em sentido positivo ora se pronunciavam em sentido negativo Isto correspondia tambeacutem ao propoacutesito reformista do Conciacutelio as traditiones representavam os abusus aos quais a Igreja se opunha Os Padres estavam cocircnscios de que condenar as traditiones era condenar Os usus ecclesiaelig o modo como a Igreja vivia a sua vida naquela eacutepoca

A outra seacuterie de pronunciamentos que se inclinavam ao mesmo sentido encontramo-la nas proposiccedilotildees que a auctoritas da Igreja apresenta como definitivas indicando uma iacutentima relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a institutio christiana 42

[53] Podemos agora retomar ao nosso ponto de partida e dar resposta agrave pergunta que propriamente significa a foacutermula ad nos usque pervenerunt Objetivamente natildeo se trata aqui de um historicismo que a foacutermula parece expressar Ao contraacuterio Trata-se da fidelidade perseverante da Igreja agrave institutio vitaelig christianaelig da legiacutetima forma de vida cristatilde em concreto no tempo presente da Igreja da institutio christiana que coloca a Escritura em primeiro lugar e que como tal isto eacute como vida decorrente da Escritura eacute fundamentalmente apostoacutelica embora tambeacutem sujeita a mudanccedilas como tudo o que eacute vivo

3 A Tradiccedilatildeo e o dogma eclesiaacutestico

40 Sobre o debate em torno da questatildeo do meacutetodo cf mais uma vez JEDIN op cit p9-82 e outras 41 Assim jaacute no discurso de Cervini antes analisado (CT I 484) no qual ele recorda o dilema do Conciacutelio se nos voltarmos contra as tradiccedilotildees ficaratildeo admirados os Padres Conciliares quasi reformationem fugiamus si ipsam reformationem sumimus iterum objicient traditiones relinquendas non esse Idecircntica era a situaccedilatildeo em que se encontrava o Bispo de Astorga nas duas intervenccedilotildees que fez no dia 23 de fevereiro de 1546 (CT V 13 e 19) segundo Seripando (I 484) helliptraditiones prius pertractandas consulit tantam enim conformitatem abusus qui ex sacris libris descendunt cum iis qui a traditionibus orti sunt habent ut sacris libris et traditionibus absolutis duo illa abusuum genera simul pertractari valeant Segundo Bonuccio (I 484) antes de tudo dever-se-ia tratar das Sagradas Escrituras dos cacircnones apostoacutelicos dos Conciacutelios gerais e das decretais pontifiacutecias Hisque ilusceptis ad abusus ex eisdem dependentes devenire 42 Assim principalmente de acordo com Afonso de Castro (CT I 484) Quoniam ultra traditiones apostolicas ecclesiae auctoritatem habemus quaelig ecclesiaelig auctoritas tonta apud nos est ut aliqui eam maioris roboris quam sacros libros esse sentiant Cf igualmente CT I 491 45 Na mesma linha pode-se ver uma seacuterie de pronunciamentos na citada obra de LEJAY Cf CT XII 524 (Tratado De traditionibus ecclesiaelig fevereiro ou marccedilo de 1546)

Uma segunda seacuterie de motivos eacute expressa no Decreto pela foacutermula traditiones tum ad fidem tum ad mores pertinentes Se como vimos a ideacuteia de Tradiccedilatildeo aparece muito limitada naquilo que os Padres conciliares chamam consuetudines observationes institutiones por outro lado o Procurador do Cardeal de Augsburgo Claudio Lejay SJ se fez o porta-voz de uma expressatildeo que em oposiccedilatildeo agraves traditiones caeligremoniales estabeleceu justamente o sentido da tradiccedilatildeo contida na feacute Seu tratado sobre a Tradiccedilatildeo composto para uso dos Padres conciliares inclui tambeacutem a foacutermula que foi adotada pelo Conciacutelio Aiacute se diz Denique multas veritates tum ad fidem tum ad mores pertinentes Ecclesia novit quas Scriptura aperte et expresse non continet Ele cita como exemplos as palavras persona essentia trinitas no Tratado da Santiacutessima Trindade consubstantialitas na Cristologia do Logos duas naturezas uma soacute Pessoa referentes ao dogma definido pelo Conciacutelio de Calcedocircnia E ainda Cristo Filho uacutenico de Maria duas vontades na uacutenica Pessoa de Cristo uma alma racional aleacutem do espiacuterito divino em Cristo Ana matildee de Maria o costume de fazer sinais da cruz a santificaccedilatildeo do domingo a maneira de rezar com face voltada [54] para o Oriente tudo isto ideacuteias e fatos da tradiccedilatildeo conciliar e da piedade cristatilde43

Cervini que aprovou o discurso de Lejay de 23 de fevereiro de 154644 pocircde dificilmente conciliar esta posiccedilatildeo com a sua expressa na jaacute citada carta ao Cardeal Farnese onde como vimos ele diz que o Espiacuterito Santo falou na Igreja e depois da Ascensatildeo do Senhor fala ainda maxime medianti i concilii45 Ele aiacute viu publicamente sublinhado o fato de que aquele ldquomaisrdquo que a Igreja viva representa em relaccedilatildeo agrave palavra meramente escrita natildeo se referia e natildeo se refere apenas agrave vita instituenda ou como ele prefere agrave caeligremonialia Refere-se tambeacutem agrave essentialia fidei que antes de tudo plenamente se expressam na Tradiccedilatildeo Tambeacutem aqui como se vecirc o interesse dominante natildeo estaacute na apresentaccedilatildeo historicista do assunto a partir do iniacutecio da Igreja mas na ideacuteia de que a influecircncia da Tradiccedilatildeo sobretudo atraveacutes da praxe conciliar eacute de fundamental importacircncia para a feacute para a doutrina crida e natildeo apenas para a piedade viva ou a caeligremonialia

4 O sentido do Decreto tridentino

Se recapitularmos o que ateacute agora dissemos veremos que no conjunto facilmente se podem reconhecer trecircs diferentes concepccedilotildees teoloacutegicas unidas entre si no texto definitivo do Decreto sobre a Tradiccedilatildeo Unidas mas natildeo equiparadas umas agraves outras Pelo contraacuterio apesar de sua grande diferenccedila foram elas apenas [55] mais ou menos justapostas e de novo por forccedila de uma tendecircncia comum relacionadas entre si

1 A concepccedilatildeo de Cervini que designamos como pneumatoloacutegica Com sua doutrina sobre os trecircs principia fidei insiste ele no caraacuteter dinacircmico do Cristo-evento

43 CT XII 523 LEJAY baseia-se evidentemente em listas de tradiccedilotildees confeccionadas naquele tempo (Cf ECK DRIEDO CANO BOTO NOGAROLA) Cf a este respeito Y CONGAR ldquoTraditions apostoliques non eacutecrites et suffisance de lEscrituresrdquo in Istina 6 (1959) p219-306 e principalmente a paacutegina 289 44 CT V 14 45 CT X 373

presente na Igreja Entende assim a Tradiccedilatildeo primariamente como a realidade espiritual da institutio vitaelig christianaelig

2 A concepccedilatildeo que podemos chamar de cerimonial Esta entende a Tradiccedilatildeo essencialmente como a seacuterie de consuetudines existentes ao lado da feacute como os usus ecclesiaelig que os Reformadores falsamente pretendem abolir como abusus Esta concepccedilatildeo chega a condenar a dignidade e Antiguumlidade apostoacutelica das tradiccedilotildees Sua ideacuteia eacute limitada pelo ad nos usque pervenerunt que inclui possibilidade de variar da parte das tradiccedilotildees donde a necessidade de reduccedilotildees Com os termos pervenire e conservare a recepccedilatildeo por parte da Igreja eacute considerada criteacuterio adicional ao lado da Antiguumlidade

3 A concepccedilatildeo que talvez possamos denominar dogmaacutetica Em oposiccedilatildeo agrave fixidez da ideacuteia de Tradiccedilatildeo reduzida agrave consuetudo salienta esta terceira hipoacutetese a extensatildeo do fenocircmeno Tradiccedilatildeo tambeacutem ao acircmbito da fides

Estas trecircs concepccedilotildees deram forma ao texto do Decreto de tal modo que as suas

linhas mestras derivam de Cervini e todo o texto deve ser entendido agrave luz de suas ideacuteias Contudo em duas passagens isto eacute no pervenerunt e no conservatas haacute influecircncia da segunda concepccedilatildeo enquanto no tum ad fidem tum ad mores haacute influecircncia da terceira

Em face destas trecircs concepccedilotildees das quais na realidade existem diversas variantes que tomadas em conjunto satildeo a expressatildeo das ideacuteias dominantes adotadas aparecem as teses de Bonuccio e de Nacchianti tatildeo postas em evidecircncia por Geiselmann como sentenccedilas contraacuterias De fato o parecer de Bonuccio claramente [56] se opotildee agrave segunda concepccedilatildeo (contra a supervalorizaccedilatildeo das consuetudines natildeo per pietatis affectus) ao passo que Nacchianti se levanta antes contra a terceira posiccedilatildeo e salienta a suficiecircncia da feacute recebida por meio da Escritura46

Seria de notar-se ainda que as concepccedilotildees segunda e terceira tecircm algo em comum Ambas opotildeem agrave visatildeo pneumatoloacutegica de Cervini da salvaccedilatildeo sempre presente uma visatildeo mais historicista relacionada com o prolongamento da salvaccedilatildeo operada uma soacute vez ou seja o ἑφάπαξ Na realidade deve-se dizer que embora de um lado tanto a visatildeo presencial de Cervini como tambeacutem a visatildeo historicista do outro grupo se consideradas isoladamente cada qual de per si sejam perigosas se natildeo insustentaacuteveis 46 Aliaacutes de acordo com uma informaccedilatildeo de Cervini parece que o Bispo de Chioggia finalmente renunciou agrave sua tese da suficiecircncia da Escritura na qual se inclinava a recusar as tradiccedilotildees Na carta de Cervini ao Cardeal Farnese de 27 de fevereiro de 1546 lemos hellip Chioggia che (quasi quasi) voleva dire queste traditioni essere superflue perorando che tutto quello che era necessario alla salute era scritto et allegando etiam S Agostino sopra lultimo capitulo di S Giovanni a questo proposito Pure per non poter negare che molte cose appartenenti almeno alli sacramenti non ci fussero venute ex tra ditione et per consequente che non tutte le cose necessarie alia nostra salute erano scritte poiche ebbe fatte molte distintioni concluse che ancor lui accettava queste ldquoche in la chiesa fusse qualque traditione apostolica non scrittardquo (et con queste parole diceva che se ne facesse il decreto) credo che molti sono restati scandalizati di lui (CT X Nr 315 paacutegs 399 411) Cf tambeacutem CT I 494 nota 9 e 495 nota 2 CT V 18 nota 5 e 19 e nota 1 O mesmo protesto que aparece contra Nacchianti manifesta-se tambeacutem na observaccedilatildeo de Massarelli Este chega a chamar aquele de novarum rerum cupidus (1 494 18) e esclarece que reprehensus est a multis (1 494 22) Diante disto eacute de todo destituiacuteda de creacutedito a importacircncia que Geiselmann lhe atribui mesmo se abstrairmos de outras razotildees jaacute conhecidas sobre as quais natildeo precisamos insistir

de outro lado pelo menos tornam possiacutevel uma exata visatildeo do conjunto devido agrave sua muacutetua confluecircncia e limitaccedilatildeo No texto atual estatildeo presentes embora pouco nitidamente ambos os pontos de vista o elemento presencial e o ἑφάπαξ Conveacutem que entendamos assim o texto de modo a considerarmos [57] ambos estes aspectos como essenciais Consequumlentemente reconheceremos que ambos pertencem constitutivamente agrave realidade da vida cristatilde e portanto tambeacutem agravequela parcela do Cristianismo a que damos o nome de Tradiccedilatildeo Estes dois elementos satildeo a presenccedila do Espiacuterito Santo e o seu nexo com o fato singular da salvaccedilatildeo ocorrido uma soacute vez por todas na histoacuteria dos homens

Assim se acharaacute finalmente a resposta agrave pergunta de corno noacutes devemos entender o parecer do Conciacutelio de Trento A primeira e mais importante conclusatildeo parece-me ser o fato de o Conciacutelio ter visto muito claramente o nexo entre Tradiccedilatildeo e Revelaccedilatildeo A seguir elaborou sempre em consonacircncia com a tradiccedilatildeo patriacutestica e medieval um conceito de Revelaccedilatildeo muito menos material do que o que seraacute adotado mais tarde pela teologia dos tempos modernos Somente assim se deve conceber a ideacuteia da Revelaccedilatildeo do Espiacuterito Santo na Igreja Partindo do ramo nitidamente patriacutestico da teologia medieval tatildeo francamente acolhido no discurso de Cervini deveria ser muito menos categoacuterica a opiniatildeo que coloca o teacutermino da Revelaccedilatildeo na morte do uacuteltimo Apoacutestolo Naturalmente esta questatildeo natildeo pode ser aqui estudada com maiores detalhes A sua soluccedilatildeo como entatildeo se apresentava aos teoacutelogos poderia ser hoje impostada apelando-se para as categorias da teologia atual Segundo esta podemos dizer que a Revelaccedilatildeo estaacute encerrada do ponto de vista de seu princiacutepio material Todavia estaacute e continua presente em sua realidade eficaz Noutros termos a Revelaccedilatildeo tem eacute verdade o seu ἑφάπαξ enquanto ela se realizou num determinado dia na Histoacuteria Entretanto ela tem tambeacutem o seu ldquohojerdquo permanente isto eacute o que foi uma vez por todas realizado na feacute da Igreja permanece sempre vivo e operante Assim a feacute cristatilde natildeo se volta apenas para o passado Abrange tambeacutem o presente e o futuro Eacute verdade que a posterior materializaccedilatildeo historicista da ideacuteia de Revelaccedilatildeo aparece jaacute claramente insinuada nos debates tridentinos corno um fato previsto mas ainda [58] natildeo consumado embora talvez se possa dizer que nos textos conciliares ficou definitivamente consagrada a sua aceitaccedilatildeo

Finalmente acrescentemos ainda que com base nos debates do Conciacutelio podemos estabelecer quatro elementos da ideacuteia de Tradiccedilatildeo 1 O aspecto natildeo-escrito da Revelaccedilatildeo ou do Evangelho contido na Biacuteblia e no coraccedilatildeo dos fieacuteis 2 A palavra do Espiacuterito Santo no decorrer de todo o tempo da Igreja

3 A atividade da Igreja nos Conciacutelios 4 A Tradiccedilatildeo lituacutergica e a da vida da Igreja em geral Nestes quatro elementos

que se deve ter sob os olhos pois formam o fundo ideoloacutegico do Decreto expressa-se a realidade uacutenica do tempo presente da Igreja cristatilde Nele estaacute presente todo o passado poacutes-apostoacutelico da Igreja (inclusive o proacuteprio tempo dos apoacutestolos) de modo que toda a sua vida eacute na Sagrada Escritura um elemento central embora natildeo o uacutenico Em suma deve ter ficado claro que o Conciacutelio de Trento a despeito do caraacuteter contrastante e fixo de sua ideacuteia de Revelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeo oferece uma visatildeo muito mais rica destes conceitos do que a que impregnou a mentalidade dos seacuteculos seguintes Justamente por

isso a teologia de hoje pode retirar daiacute novos subsiacutedios novo apoio para suas pesquisas e novas indicaccedilotildees sobre o verdadeiro caminho a seguir

Quadro sinoacutetico do Decreto tridentino sobre a Tradiccedilatildeo

Primeiro princiacutepio conforme Cervini (AT = Escritura)

Sacrosancta œcumenica et generalis Tridentina Synodus in Spiritu Sancto legitime congregata [] hoc sibi perpetuo ante oculos proponens ut sublatis erroribus puritas ipsa EVANGELII in Ecclesia conservetur quod PROMISSUM ANTE PER PROPHETAS IN SCRIPTURIS SANCTIS

Segundo princiacutepio conforme Cervini o Evangelho em parte escrito em parte insculpido nos coraccedilotildees

[59] DOMINUS NOSTER IESUS CHRISTUS DEI FILIUS PROPRIO ORE PRIMUM PROMULGAVIT DEINDE PER SUOS APOSTOLOS TAMQUAM FONTEM OMNIS ET SALUTARIS VERITATIS ET MORUM DISCIPLINAE OMNI CREATURAE PRAEDICARI IUSSIT PERSPICIENSQUE HANC VERITATEM ET DISCIPLINAM CONTINERI IN LIBRIS SCRIPTIS ET SINE SCRIPTO TRADITIONIBUS QUAE AB IPSIUS CHRISTI ORE AB APOSTOLIS ACCEPTAE AUT AB IPSIS APOSTOLIS SPIRITU SANCTO DICTANTE

Seripando Cervini e outros soacute consideram as tradiccedilotildees recebidas pela Igrej (ldquoad nos usquerdquo)

quasi per manus traditae ad nos usque pervenerunt

orthodoxorum Patrum exempla secuta omnes libros tam Veteris quam Novi Testamenti cum utriusque unus Deus sit auctor nec non TRADITIONES IPSAS

Lejay Tradiccedilatildeo contendo natildeo soacute a ldquoconsuetudordquo mas relacionada tambeacutem com a ldquofidesrdquo (foacutermula conciliar)

tum ad fidem tum ad mores pertinentes

Terceiro princiacutepio de Cernini Depois da Ascenccedilatildeo de Cristo o Espiacuterito Santo ensina tambeacutem os misteacuterios de Deus

TAMQUAM VEL ORETENUS A CHRISTO VEL A SPIRITU SANCTO DICTATAS

Seripando Cervini etc soacute satildeo consideradas as coisas recebidas pela Igreja (como acima)

et continua successione in Ecclesia catholica conservatas

Cervini Escritura e Tradiccedilatildeo procedem ambas do mesmo Espiacuterito Santo

pari pietatis affectu ac reverentia suscipit ac veneratur

  • Prefaacutecio
  • SEGUNDA PARTE
  • Explicaccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo
  • segundo o Decreto do Conciacutelio de Trento
Page 21: Revelacao e Tradicao-Joseph Ratzinger (Bom Ler)

permanece junto dos seus todos os dias ateacute ao fim do mundo (Mt 28 20) Apoacutes a subida ao Calvaacuterio Cristo veio de novo no Espiacuterito Santo (como narra Satildeo Joatildeo) e pelo Espiacuterito ensinou aos disciacutepulos o que eles entatildeo natildeo podiam ainda entender enquanto o Senhor estava entre eles sob forma visiacutevel (Jo 16 12)

3 Cristo a Revelaccedilatildeo de Deus

A realidade que se daacute como um acontecimento na Revelaccedilatildeo cristatilde natildeo eacute nada

mais nada menos do que o proacuteprio Cristo Cristo eacute a Revelaccedilatildeo em sentido proacuteprio ldquoQuem me vecirc vecirc o Pairdquo diz ele no Evangelho de Satildeo Joatildeo (14 9) Vale portanto dizer que receber a Revelaccedilatildeo eacute penetrar na realidade de Cristo no Cristo-evento Daiacute procede o paradoxo descrito por Satildeo Paulo ao fazer ele um trocadilho com as palavras ldquoCristo em noacutesrdquo e ldquonoacutes em Cristordquo

Neste contexto a anaacutelise de frases isoladas torna-se secundaacuteria de vez que elas satildeo apenas explicaccedilotildees do uacutenico misteacuterio de Cristo Consequumlentemente cai por si mesma a questatildeo da suficiecircncia interna da Escritura tatildeo discutida desde o aparecimento das obras de Geiselmann Deveriacuteamos isto sim perguntar que significa em linguagem cristatilde a suficiecircncia interna da Escritura ldquoSuficienterdquo eacute soacute a realidade do Cristo-evento Esta pode ser explicada materialmente em maior ou menor grau E de maneira nunca definitiva Partindo deste princiacutepio podem existir tambeacutem outras explicaccedilotildees segundo a Escritura quando se aprofunda mais este assunto

Este mesmo tema pode ser considerado sob outro aspecto E ter-se-aacute entatildeo dado um passo a mais para a frente A aceitaccedilatildeo [30] da Revelaccedilatildeo pela qual aplicamos a noacutes o Cristo-evento vem na linguagem da Biacuteblia sob o nome de ldquofeacuterdquo Assim talvez se entenderaacute mais claramente de que maneira no Novo Testamento a feacute significa a ldquoin-habitaccedilatildeordquo de Cristo Se admitirmos que na Escritura a presenccedila da Revelaccedilatildeo tem o mesmo sentido que a presenccedila de Cristo entatildeo teremos de fato dado um passo adiante Ora na Escritura encontramos a presenccedila de Cristo apresentada de duas maneiras Ela aparece de um lado como jaacute vimos identificada com a feacute (Ef 317) na qual cada um encontra Cristo e se adentra nele penetrando no dinamismo de sua forccedila salvadora Por outro lado a feacute se oculta tambeacutem sob a expressatildeo paulina ldquoCorpo de Cristordquo o que quer dizer que a comunidade dos fieacuteis ndash a Igreja ndash funda a presenccedila de Cristo neste mundo Nela Cristo reuacutene os homens e os faz partiacutecipes de sua presenccedila dinacircmica18

Tomadas juntas estas duas noccedilotildees significam o seguinte a feacute eacute a adesatildeo iacutentima agrave presenccedila de Cristo realidade de Cristo presente da qual a Escritura nos daacute testemunho sem contudo se identificar de modo nenhum com ela Daiacute resulta que a presenccedila da Revelaccedilatildeo se relaciona essencialmente com a ldquofeacuterdquo e com a ldquoIgrejardquo realidades estas que como vimos estatildeo estreitamente ligadas entre si

Voltamos assim ao que foi afirmado na primeira tese a saber que a Revelaccedilatildeo sobreexcede a Escritura em duplo sentido em relaccedilatildeo a Deus por seu lado ascendente e em relaccedilatildeo tambeacutem ao homem que a recebe Esta asserccedilatildeo que a princiacutepio deixamos

18 H SCHLIER ldquoDie Kirche nach dem Brief an die Epheserrdquo in Die Zeit der Kirche Friburgo 1962 p159-186

um tanto vaga encontramo-la essencialmente concretizada na realidade objetiva do Cristianismo

4 A essecircncia da Tradiccedilatildeo

[31] A transmissatildeo ao povo de Deus do Cristo-evento que eacute a Revelaccedilatildeo e que tem sua bi-presenccedila na feacute e na Igreja faz-se atraveacutes da pregaccedilatildeo Pregaccedilatildeo eacute a ldquoex-posiccedilatildeordquo (Aus-legung) do duplo aspecto da Revelaccedilatildeo no Antigo e no Novo Testamento E isto de duas maneiras

a) ela eacute a exposiccedilatildeo do Antigo Testamento agrave luz do Cristo-evento e para o Cristo-evento

b) a partir do Pneuma e da condiccedilatildeo presente da Igreja Este uacuteltimo aspecto eacute possiacutevel pois Cristo natildeo estaacute morto Estaacute vivo Natildeo eacute

apenas o Cristo de ontem Eacute tambeacutem e a fortiori o Cristo de hoje e de amanhatilde o Cristo vivo e presente em sua Igreja que eacute seu Corpo e na qual o seu espiacuterito opera

Isto poderaacute ser melhor compreendido se partirmos da essecircncia da Igreja Como nos ensina o Novo Testamento a mensagem de Jesus eacute antes de tudo uma mensagem escatoloacutegica com vistas ao reino de Deus natildeo com vistas agrave Igreja O fato de existir a Igreja natildeo se opotildee a esta mensagem mas haacute na marcha gradativa das revelaccedilotildees de Cristo uma segunda possibilidade Assim a atividade dos Doze depois de Pentecostes aponta natildeo para a Igreja mas para o reino de Deus Informam-nos os Atos dos Apoacutestolos que os Doze natildeo se ocuparam primordialmente em missionar os povos Esforccedilaram-se antes muito mais em converter Israel criando deste modo as condiccedilotildees preacutevias para a implantaccedilatildeo do reino De iniacutecio uma seacuterie de obstaacuteculos histoacutericos entre os quais deveriacuteamos citar antes de tudo o martiacuterio de Estevatildeo o supliacutecio de Tiago e por fim o fato decisivo da prisatildeo e da libertaccedilatildeo de Pedro Tais fatos levaram a comunidade primitiva segundo dizem as fontes a reconhecer como definitivo o malogro do esforccedilo de converter Israel E consequumlentemente forccedilaram os Apoacutestolos a partir em busca dos gentios e a cuidar [32] assim da Igreja e natildeo do reino Eles o fazem segundo se depreende das passagens referidas e principalmente dos esclarecimentos do capiacutetulo 15 dos Atos dos Apoacutestolos como uma nova opccedilatildeo feita sob a accedilatildeo do Espiacuterito Santo Com isso iniciou-se uma nova interpretaccedilatildeo da mensagem de Cristo sobre a qual a Igreja essencialmente repousa19

19 Cf as decisivas conclusotildees de E PETERSON ldquoDie Kircherdquo in Theologische Traktate Munique 1951 p 409-429 H SCHLIER Die Entscheidung fuumlr die Heidenmission in der Urchristenheit Die Zeit der Kirche p 90-107 Parece-me certo que nem a anaacutelise da tradiccedilatildeo sinoacutetica relativa agrave mensagem de Jesus e seu caraacuteter escatoloacutegico nem o estudo da histoacuteria da Igreja primitiva com base no material fornecido pelos Atos dos Apoacutestolos autorizam qualquer outra conexatildeo entre a mensagem do reino e a pregaccedilatildeo da Igreja Daiacute natildeo se segue de modo nenhum ndash como muitas vezes se teme ndash que a cruz seja um acidente secundaacuterio que em rigor poderia ter sido evitado Ao contraacuterio A estrutura da Igreja moldada sobre a cruz eacute fundamental porque aiacute eacute que por primeiro se encontra a confirmaccedilatildeo da importacircncia da liberdade humana de Cristo e da sua Paixatildeo bem como a iacutentima dependecircncia da Igreja para com a Cruz donde ela procede

Este fato que baseia o estabelecimento definitivo da Igreja sobre uma decisatildeo tomada ldquono Espiacuterito Santordquo eacute o fundamento para se afirmar que existe uma interpretaccedilatildeo eclesial do Novo Testamento do mesmo modo que existe uma exegese cristoloacutegica do Antigo Daiacute podermos estabelecer as seguintes teses ou proposiccedilotildees agrave luz da analogia fidei

a) Existe uma teologia veterotestamentaacuteria do Antigo Testamento que o exegeta

deduz de seu conteuacutedo interno e que se desenvolve em uma seacuterie de camadas superpostas Segundo ela os textos antigos devem ser relidos e de novo expostos agrave luz dos novos acontecimentos O fenocircmeno da aplicaccedilatildeo dos textos agraves situaccedilotildees novas do desdobramento da Revelaccedilatildeo mediante nova [33] apresentaccedilatildeo do Antigo Testamento estrutura jaacute de modo essencial o conteuacutedo interno veterotestamentaacuterio20

b) Existe uma teologia neotestamentaacuteria do Antigo Testamento que natildeo coincide com

a referida teologia veterotestamentaacuteria Estaacute contudo estreitamente ligada com ela na unidade da analogia fidei21 Talvez partindo daqui se possa esclarecer o que significa a analogia fidei entre Os dois Testamentos A teologia neotestamentaacuteria do Antigo Testamento natildeo eacute como ficou dito idecircntica agrave teologia histoacuterica veterotestamentaacuteria Ao contraacuterio Re-exposiccedilatildeo feita agrave luz do Cristo-evento ela natildeo procede soacute da mera consideraccedilatildeo histoacuterica do Antigo Testamento Sendo embora em seu pleno conceito uma interpretaccedilatildeo relacionada com o Antigo Testamento contudo nada faz com que ela seja internamente estranha agrave sua essecircncia ainda que soacute de fora o atinja Ela amplia a forma estrutural do Antigo Testamento que assim interpretado revive e cresce

c) Existe uma teologia neotestamentaacuteria do Novo Testamento paralela agrave teologia veterotestamentaacuteria do Antigo Ou seja a teologia que o exegeta como tal pode deduzir do conteuacutedo interno do Novo Testamento eacute tambeacutem esta conhecida e estruturada mediante a aplicaccedilatildeo do Antigo Testamento agraves novas situaccedilotildees

d) Existe uma teologia eclesial do Novo Testamento que noacutes [34] chamamos Dogmaacutetica Ela se relaciona com a teologia neotestamentaacuteria do Novo Testamento do mesmo modo que a teologia neotestamentaacuteria do Antigo se relaciona com a respectiva teologia veterotestamentaacuteria Aquele ldquomaisrdquo (das Mehr) que distingue propriamente a Dogmaacutetica da teologia biacuteblica eacute o que designamos com a palavra Tradiccedilatildeo Aliaacutes tambeacutem aqui devemos salientar que a teologia eclesiaacutestica neotestamentaacuteria pela mesma razatildeo natildeo eacute simplesmente idecircntica agrave teologia neotestamentaacuteria interna e

20 Cf H GROSS Motivtransposition als Form- und Traditionsprinzip im Alten Testament in H VORGRIMLER Exegese und Dogmatik Moguacutencia 1962 p134-152 e a bibliografia aiacute fornecida G v RAD Theologie des Alten Testaments II Munique 1960 p332-339 396-401 21 A diferenccedila entre as duas teologias do Antigo Testamento foi vivamente exposta por R BULTMANN ldquoWeissagung und Erfuumlllungrdquo in Glauben und Verstehen II Tubinga 1952 p162-186 - Sobre as necessaacuterias correccedilotildees a se fazerem para que se torne visiacutevel a base histoacuterica do que a teologia sistemaacutetica denomina ldquoanalogia fideirdquo cf G v RAD op cit p329-424 (entre outras) e principalmente a p 420 nota 25 e a p422 nota 29 Sobre o tema ldquoanalogia fideirdquo em ambos os Testamentos cf tambeacutem E PRZYWARA Alter und Neuer Bund Viena-Munique 1956

histoacuterica do Novo Testamento Ultrapassa-a sem contudo ser-lhe puramente externa Com efeito no Novo Testamento comeccedila jaacute o processo da exposiccedilatildeo pela Igreja das verdades reveladas A teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento processa-se dentro dele proacuteprio como de modo clariacutessimo se percebe na histoacuteria da Revelaccedilatildeo sinoacutetica22

Eacute oportuno fazermos ainda uma pequena observaccedilatildeo se cotejarmos atentamente a teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento com a Dogmaacutetica reconheceremos que se impotildee uma outra distinccedilatildeo A Dogmaacutetica como ciecircncia aleacutem da exposiccedilatildeo eclesiaacutestica do Novo Testamento abrange tambeacutem a teologia particular de cada teoacutelogo Neste caso para se falar com precisatildeo dever-se-ia apresentar somente o proacuteprio dogma como teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento

O que acabamos de referir natildeo passa naturalmente de um esboccedilo que necessitaria em seus pormenores de natildeo poucos esclarecimentos e distinccedilotildees a fim de ser completo No caso presente entretanto damos por suficiente este esboccedilo Resumindo o que ateacute aqui expusemos podemos agora destacar vaacuterias ldquoraiacutezesrdquo da Tradiccedilatildeo e apontar vaacuterias camadas em seu seio [35] lordf raiz a maior amplidatildeo da ldquoTradiccedilatildeordquo em referecircncia agrave ldquoEscriturardquo

2ordf raiz o caraacuteter especiacutefico da Revelaccedilatildeo neotestamentaacuteria como Pneuma em contraste com o Gramma Eacute o que na linguagem de Bultmann se poderia chamar de sua condiccedilatildeo de ldquonatildeo-objetordquo (Nichtobjektiviertbarkeit) A praxe eclesiaacutestica e a teologia medieval expressaram este aspecto ao sobreporem a fides agrave Scriptura isto eacute o dogma como regra de feacute agraves minuacutecias da lei escrita23 O dogma eacute como a chave hermenecircutica da Escritura que em uacuteltima anaacutelise sem o auxiacutelio da hermenecircutica ficaria sendo algo fechado

3ordf raiz o caraacuteter presencial do Cristo-evento e a presenccedila dinacircmica do Espiacuterito de Cristo em seu Corpo a Igreja E consequumlentemente o poder que tem a Igreja de fazer a pregaccedilatildeo do Cristo ontem e hoje pregaccedilatildeo esta cuja fonte se encontra na interpretaccedilatildeo eclesiaacutestica da mensagem do reino transmitida pelos Apoacutestolos

Em conexatildeo com estas trecircs raiacutezes da ideacuteia (ou melhor da realidade) da Tradiccedilatildeo podem distinguir-se na mesma as seguintes camadas

a) Na origem de toda Tradiccedilatildeo estaacute o fato de que o Pai enviou o Seu Filho ao mundo e que o Filho por sua vez se [36] entregou ndash como sinal ndash aos ldquopovosrdquo (παραδίδοται) Esta paraacutedosis original em sua forccedila direta e salvadora

22 Cf por exemplo a rica exposiccedilatildeo de G BORNKMANN Jesus von Nazareth Estutegarte 1956 Sobre a questatildeo aqui estudada cf H SCHLIER Uumlber Sinn und Aufgabe einer Theologie des Neuen Testaments in H VORGRIMLER Exegese und Dogmatik Mainz 1962 p6990 23 O que haacute de melhor sobre este assunto no tocante agrave Patriacutestica seraacute encontrado em HARNACK DG II (1931) p84-116 HARNACK diz na p 87 nota 3 o seguinte ldquoO Cacircnon era de iniacutecio a regra da feacute A Escritura estaacute centrada na verdade Sem duacutevida nenhuma sua autoridade funda-se solidamente no Antigo Testamento e nas palavras do Senhorrdquo ndash Que assim tenha pensado tambeacutem a Idade Meacutedia e que aqui aleacutem da revelatio (da qual falaremos na 2ordf parte deste livro) a fides sobrepondo-se agrave Scriptura estabelece a forma essencial do conceito de Tradiccedilatildeo foi o que tentei demonstrar em meu artigo Wesen und Weisen der auctoritas im Werk des heiligen Bonaventura in Die Kirche und ihre Aumlmter und Staumlnde (Festgabe Kardinals Frings publicado por CORSTEN-FROTZ-LINDEN Colocircnia 1960 p 58-72

prolonga-se na permanente presenccedila de Cristo no σῶμα Χριστοῦ ndash no Seu Corpo a Igreja Assim o misteacuterio integral da presenccedila de Cristo eacute antes de tudo a realidade total transmitida pela Tradiccedilatildeo (fato fundamental e decisivo sempre anterior a todas as explicaccedilotildees particulares mesmo as da Escritura) e reguladora do que deve propriamente ser transmitido

b) A Tradiccedilatildeo existe concretamente como presenccedila na feacute Esta por seu turno como ldquoin-habitaccedilatildeordquo de Cristo precede todas as explicaccedilotildees particulares e frutuosa e viva ldquoexplicita-serdquo (explizierend) atraveacutes dos tempos

c) A Tradiccedilatildeo tem seu oacutergatildeo na plenitude dos poderes da Igreja e portanto naqueles que satildeo os legiacutetimos depositaacuterios destes poderes24

d) A Tradiccedilatildeo exprime-se tambeacutem naquilo que emanado da autoridade da Igreja se tornou regra de feacute (Symbolum fides quaelig) Portanto a questatildeo de se saber se certas proposiccedilotildees foram transmitidas desde o

comeccedilo pela Tradiccedilatildeo ao lado da Escritura ou em outros termos se existe desde o comeccedilo um segundo princiacutepio material e autocircnomo ao lado da Escritura torna-se afinal um problema inteiramente secundaacuterio Talvez lhe devamos responder negativamente

5 A funccedilatildeo da exegese [37] Pelo que ateacute aqui dissemos ficaram esclarecidas quase que exclusivamente

trecircs pontos os limites da letra da Escritura a liberdade do Espiacuterito Santo e a autoridade da Igreja Acontece poreacutem que a exposiccedilatildeo que fizemos abriga ainda um sentido diverso relacionado com a justa preocupaccedilatildeo de Lutero da qual partimos

Se ficou estabelecido que a Revelaccedilatildeo se faz presente atraveacutes da pregaccedilatildeo e se pregaccedilatildeo eacute exposiccedilatildeo da palavra revelada entatildeo pode e deve agora ao que precede acrescentar-se o seguinte a Tradiccedilatildeo eacute essencialmente e sempre uma exposiccedilatildeo Natildeo existe de maneira autocircnoma e sim como explicaccedilatildeo como exposiccedilatildeo ldquorelacionada com a Escriturardquo

Isto vale para a pregaccedilatildeo do proacuteprio Jesus Cristo realizaccedilatildeo plena da Revelaccedilatildeo e sua exposiccedilatildeo feita com autoridade A pregaccedilatildeo de Jesus Cristo natildeo aparece como algo absolutamente novo na Escritura Isto eacute como algo ainda natildeo atestado no Antigo Testamento Ela ensina isto sim a essecircncia do que jaacute estava escrito e lhe confere uma vida nova que o simples exegeta natildeo pode comunicar-lhe

O que vale para a mensagem de Cristo que permanece a mesma sob diferentes modalidades de exposiccedilatildeo vale tambeacutem para a pregaccedilatildeo apostoacutelica e a eclesiaacutestica Como ldquoTradiccedilatildeordquo ela deve em uacuteltima anaacutelise ser uma exposiccedilatildeo ldquosegundo a Escriturardquo a ela sujeita e com ela relacionada Sem duacutevida natildeo eacute ela uma exposiccedilatildeo no 24 Estas ideacuteias natildeo podem ser desenvolvidas mais detalhadamente aqui como seria de desejar uma vez que em rigor estamos procurando apenas fundamentar o conceito de Tradiccedilatildeo Em razatildeo da brevidade que me impus contentei-me apenas nas teses precedentes com explanar o assunto ateacute ao ponto em que ficasse patente a relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a ldquoIgrejardquo (cf as teses 4 e 5) Para se descer a maiores detalhes dever-se-ia analisar tambeacutem o conceito de Igreja que supomos conhecido do leitor Para isto cf a nota 6 onde citamos nosso livro sobre o Ofiacutecio e a unidade da Igreja Encontram-se aiacute algumas observaccedilotildees sobre o assunto de que ora tratamos

sentido de mera interpretaccedilatildeo exegeacutetica Mas sim na autoridade espiritual recebida do Senhor a qual se consuma na existecircncia plena da Igreja em sua feacute em sua vida e em seu culto Contudo ela permanece sendo (mais ainda do que o Cristo-evento em que se funda a Igreja) uma ldquoex-posiccedilatildeordquo (Aus-Legung) comprometida com a Histoacuteria e com a Palavra [38] Exprime-se deste modo a sua ligaccedilatildeo com a accedilatildeo concreta de Deus nesta mesma Histoacuteria e em seu caraacuteter de fato histoacuterico uacutenico (o ἑφάπαξ ldquoo ocorrido uma soacute vezrdquo) A realidade cristatilde da Revelaccedilatildeo eacute tatildeo essencial quanto ldquoeternardquo e definitiva Resulta daiacute a unidade entre o Cristo da Feacute e o Jesus da Histoacuteria o Jesus histoacuterico natildeo eacute senatildeo o Cristo da Feacute ainda que a feacute seja sempre algo mais do que a histoacuteria

Segue-se que do mesmo modo que existe um ofiacutecio de custoacutedia da Revelaccedilatildeo por parte da Igreja ofiacutecio por ela mesma atestado existe tambeacutem um ofiacutecio de custoacutedia da mesma Revelaccedilatildeo por parte da exegese que penetra o sentido literal da Escritura e defende a uniatildeo do Logos com a carne contra qualquer perigo de gnose Existe portanto por assim dizer algo como uma autonomia especiacutefica da Escritura como regra objetiva e sob muitos pontos de vista esclarecedora do Magisteacuterio eclesiaacutestico Esta era sem duacutevida uma exigecircncia legiacutetima de Lutero que ainda natildeo foi devidamente acolhida na Igreja catoacutelica por parte do Magisteacuterio cujos limites internos nem sempre foram claramente entendidos

Dever-se-ia partindo daqui salientar uma dupla criteriologia em se tratando da feacute De um lado haacute o que a Igreja antiga chamou de ldquoregra da feacuterdquo norma reguladora da palavra revelada contida na Escritura e sua exposiccedilatildeo Esta praeligscriptio da posse da Escritura como proacutepria segundo Tertuliano exclui a possibilidade de qualquer uso legiacutetimo da mesma Escritura contra a Igreja Por outro lado haacute tambeacutem o limite da littera Scripturaelig ou do sentido literal historicamente fixaacutevel que de acordo com o que ficou dito natildeo constitui nenhum criteacuterio absoluto ou autocircnomo mas sim somente um criteacuterio relativo no confronto da feacute com a ciecircncia O que na Escritura se pode descobrir quer mediante estudo cientiacutefico quer por simples leitura tem a funccedilatildeo de um criteacuterio real a que deve estar atento inclusive o Magisteacuterio em suas explicaccedilotildees Certamente [39] trata-se entatildeo de elementos sub-componentes da ciecircncia que natildeo podem servir para se julgar a feacute mas nela encontram uma instacircncia criacutetica e tecircm tambeacutem um importante papel a exercer o de zelar pela pureza do ἑφάπαξ de tutelar o conteuacutedo da Revelaccedilatildeo e de defender o dualismo histoacuterico carneespiacuterito (ldquodie Sarx der Geschichterdquo) contra os arbiacutetrios da gnose que tende sempre a impor-se

A reformatio na qual estaacute empenhada a Igreja nesta hora histoacuterica tem um papel relevante a desempenhar Eacute a missatildeo de abrir novas perspectivas para o diaacutelogo tentando assim chegar a uma ldquoreformardquo diferente da do passado que culminou com a divisatildeo no seio da Cristandade ocidental Tal missatildeo se exerceraacute em harmonia com o pleno ofiacutecio de testemunho da Igreja que tira seu direito e sua forccedila da presenccedila do Espiacuterito e de Cristo presente em todos os tempos Pois ele eacute sempre o Cristo de agora com a plenitude de seus direitos e de seus poderes Ele eacute quem daacute legitimidade e vigor ao testemunho singular e definitivo da Escritura que por sua vez encontra seu pleno sentido na singularidade da accedilatildeo histoacuterico-salviacutefica de Jesus Cristo Ele deu ao Pai seu Corpo crucificado e dando-se a si mesmo santificou para sempre os que o receberam (cf Hb 1014 727) Ele eacute o Cristo ontem hoje e sempre (Hb 138)

SEGUNDA PARTE

Explicaccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo segundo o Decreto do Conciacutelio de Trento

Parece que a completa elucidaccedilatildeo das razotildees que levaram agrave substituiccedilatildeo do

partim-partim pelo et e consequumlentemente agrave pesquisa dos dados do debate tridentino e de sua preacute-histoacuteria aparentemente favoraacutevel agrave suficiecircncia material da Escritura [40] simplifica indevidamente este problema fazendo-nos perder de vista os proacuteprios antecedentes do Decreto do Conciacutelio de Trento

1 A concepccedilatildeo pneumatoloacutegica da Tradiccedilatildeo no esquema fundamental do Cardeal Cervini

a) O conteuacutedo Um balanccedilo histoacuterico e detalhado do problema em seu conjunto exigiria uma

pesquisa exaustiva que natildeo reduzisse o seu acircmbito como o fez Geiselmann em seu livro25 Natildeo eacute nossa intenccedilatildeo proceder a um exame minucioso do assunto no presente trabalho Aqui soacute seratildeo tratados alguns pontos do debate tridentino com o fim de ampliarmos mais o horizonte de nossas reflexotildees

Fundamental para a compreensatildeo dos debates em pauta bem como do Decreto definitivo do Conciacutelio parece-me ser o Discurso do Cardeal Legado Cervini datado de 18 de fevereiro de 1546 [41] cujas linhas gerais se patenteiam tanto no Decreto como em outras decisotildees conciliares26

Tem o discurso de Cervini o meacuterito de mostrar as linhas diretrizes do Decreto de maneira mais clara do que aparecem estas na uacuteltima redaccedilatildeo do mesmo onde elas se diluem muito devido a uma seacuterie de variadas implicaccedilotildees Eacute ainda de grande auxiacutelio para o entendimento do referido discurso uma carta dos Cardeais Legados ao Cardeal Alexandre Farnese de 28 de fevereiro de 1546 Esta carta revela conteuacutedo idecircntico ndash eacute certamente inspirada pelo mesmo Cervini ndash e oferece ainda alguns outros

25 Eacute lamentaacutevel que Geiselmann em sua anaacutelise da contribuiccedilatildeo medieval sobre este assunto se tenha apoiado apenas em argumentos de segunda matildeo portanto de valor histoacuterico discutiacutevel Queira o leitor ver minhas observaccedilotildees a este respeito in Theol-prakt Quartalschrift 1963 p224-227 As novas (e temperamentais) invectivas de Geiselmann in TThQu 144 (1964) p 31-69 em nada modificaram a minha posiccedilatildeo de vez que natildeo trazem nenhuma contribuiccedilatildeo vaacutelida ao assunto Precioso ao contraacuterio eacute o trabalho de Y CONGAR La Tradition et les traditionshellip Essai historique Paris 1960 Importante eacute tambeacutem a obra de J BEUMER Die muumlndliche uumlberlieferung als Glaubensquelle Friburgo 1962 A respeito do Conciacutelio de Trento cf sobretudo aleacutem do estudo fundamental de JEDIN o artigo de E ORTIGUES Escriture et Traditions apostoliques au Concilie de Trente in RSR 36 (1949) p 271-299 K D SCHMIDT Studien zur Geschichate des Konzilis von Trient Tubinga 1925 p 152-209 26 O discurso nos foi transmitido em duas redaccedilotildees A primeira mais curta encontra-se nas Atas do Conciacutelio in CT V 11 A segunda faz parte do diaacuterio de Massarelli (Diarium III) in CT I p484 Quanto ao conteuacutedo os dois textos se completam Na anaacutelise que aqui ensaiamos as duas versotildees satildeo comparadas entre si de modo a fazerem um todo Sobre a posiccedilatildeo de Cervini no Conciacutelio cf H JEDIN Geschichte des Konzils von Trient II Friburgo 1957 p38-40 A descriccedilatildeo do desenrolar histoacuterico dos debates acha-se em JEDIN op cit p42-82 e supomo-la conhecida do leitor de vez que serve de base para a anaacutelise teoloacutegica do Decreto tridentino

esclarecimentos Cervini sustenta no citado discurso que existem trecircs princiacutepios e fundamentos de nossa feacute

1) Os livros sagrados escritos sob a inspiraccedilatildeo do Espiacuterito Santo 2) O Evangelho que Nosso Senhor natildeo escreveu mas ensinou oralmente e

implantou nos coraccedilotildees Parte do Evangelho foi escrita mais tarde pelos Evangelistas enquanto muita coisa foi simplesmente confiada aos coraccedilotildees dos fieacuteis

3) Porque o Filho de Deus natildeo ia permanecer sempre entre noacutes enviou ele o Espiacuterito Santo que haveria de revelar os misteacuterios no iacutentimo dos fieacuteis e de ensinar agrave Igreja toda a verdade ateacute ao fim dos tempos27

[43] Numa segunda redaccedilatildeo mais detalhada do discurso estas mesmas ideacuteias satildeo

desenvolvidas mais amplamente Aiacute lemos que a Revelaccedilatildeo se apresentou de modo diferente em diversos tempos

1) Nos Patriarcas cuja feacute eacute atestada na Escritura a que chamamos de Antigo Testamento

2) Em Jesus Cristo que implantou o seu Evangelho natildeo por escrito mas oralmente natildeo in charta mas in corde Das coisas que emanaram de Cristo (quaelig a Cristo emanarunt) algumas foram escritas outras permaneceram nos coraccedilotildees dos homens (quaeligdam in cordibus hominum relicta fuerunt) Todo o Evangelho de Cristo que consta desta dupla modalidade forma (tendo como primeiro princiacutepio o Antigo Testamento) o secundum prindipium fidei nostraelig

3) Daiacute surge o terceiro princiacutepio (tertium autem) porque o Filho de Deus natildeo iria permanecer sempre entre noacutes enviou ele ao mundo o Espiacuterito Santo que haveria de explicar os misteacuterios de Deus e tudo o que fosse ainda obscuro para os homens28 De modo semelhante a citada carta ao Cardeal Farnese fala de dois passos (due

passi) Um eacute que a Revelaccedilatildeo de Nosso Senhor natildeo foi totalmente escrita mas permaneceu em parte contida nos coraccedilotildees dos homens e na Tradiccedilatildeo da Igreja O outro [43] passo consiste em confirmar ldquoquello che egrave suggerito lo Spirito Santo in la Chiesa maxime medianti i concilij doppo lAscensione in cielo del Signorerdquo29

Notamos logo que contrariamente ao que esperaacutevamos natildeo dois mas trecircs satildeo os princiacutepios apontados a Escritura o Evangelho e a Revelaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

27 CT V 11 helliptria esse principia et fundamenta nostrae fidei primum libros sacros secundum esse evangelium quod Christus Dominus Noster non scripsit sed ore docuit et in cordibus illud plantavit cujus evangelii nonnulla evangelistaelig scripto mandarunt multa quoque relicta sunt in cordibus hominum Tertium quia non semper filius Dei corporaliter nobiscum mansurus erat misit Spiritum Sanctum qui in cordibus fidelium secreta Dei revelaret et ecclesiam quotidie et usque consummationem saeligculi doceret omnem veritatem et si quid in mentibus hominum dubii occurrisset declararet 28 CT I 484 Digna de nota eacute ainda a foacutermula contida na paacutegina 48514-16 nihil tamen inter scripturas sacras et apostolicas traditianes differt illaelig enim scriptaelig hae per insinuationem habentur utraeque tamen a Spiritu Sancto eodem modo emanataelig Confira-se com CT V 11 19 ab eodem Spiritu et illos (scilicet libros) et istas (scilicet traditiones) descendisse 29 CT X 373

Eacute portanto necessaacuterio observar que sob o termo ldquoEscriturardquo se entende o Antigo Testamento e que aleacutem deste (que eacute Escritura em sentido proacuteprio) aparece como segundo princiacutepio o Evangelho apresentaccedilatildeo do Cristo-evento O Evangelho por sua vez abrange o que estaacute escrito e o que natildeo estaacute escrito mas sim apenas insculpido no coraccedilatildeo dos crentes Deste modo o segundo princiacutepio representa uma vantagem pneumaacutetica sobre o que estaacute escrito o Evangelho eacute nesta concepccedilatildeo algo diferente da letra (Escritura) e soacute em parte vem escrito (Isto natildeo deve ser entendido no sentido de divisatildeo das verdades da feacute fenocircmeno denunciado ldquocom horrorrdquo por Geiselmann Ao contraacuterio Entenda-se apenas no sentido de diferente grau de dignidade no modo de exprimir-se) Em rigor o Evangelho como tal soacute pode ser escrito em parte se considerarmos a sua essecircncia

Finalmente ndash o que eacute muito de se admirar ndash segue-se como terceiro princiacutepio a accedilatildeo visiacutevel do Espiacuterito Santo em todo o tempo da Igreja

Admitimos portanto que o que noacutes geralmente chamamos de Tradiccedilatildeo natildeo aparece aqui como um soacute princiacutepio Biparte-se antes em dois princiacutepios intimamente ligados o ldquoEvangelhordquo princiacutepio apenas em parte identificaacutevel com a Escritura e a accedilatildeo do Espiacuterito Santo no tempo da Igreja Ademais podemos observar que a Escritura do Novo Testamento natildeo aparece como um princiacutepio ao lado da Revelaccedilatildeo apostoacutelica Muito menos como [44] eacute o nosso caso se apresenta a Escritura neotestamentaacuteria juntamente com a veterotestamentaacuteria como uma grandeza uacutenica uma ldquoEscriturardquo soacute agrave qual se poderia contrapor a ldquoTradiccedilatildeordquo como uma segunda grandeza O Novo Testamento em seu conjunto aparece como um segundo e mais amplo princiacutepio ou seja o Evangelho que como tal se opotildee de um lado ao Antigo Testamento e de outro agrave projeccedilatildeo histoacuterica do tempo da Igreja Sua unidade interna eacute evidentemente mais forte e importante do que a sua divisatildeo em escrito e natildeo-escrito Assim o Evangelho como um soacute princiacutepio pode ser contraposto ao Antigo Testamento a despeito desta dupla formalidade A impossibilidade de se representar o Novo Testamento como Escritura impossibilidade esta demonstrada por Satildeo Paulo e pelos primeiros seacuteculos cristatildeos eacute aqui claramente revelada

Ainda uma observaccedilatildeo relativa ao texto a que vimos nos referindo Em nenhum dos dois pontos por noacutes citados no estudo da Tradiccedilatildeo isto eacute nem no elemento contido no primeiro nem no apresentado no terceiro princiacutepio figura a Tradiccedilatildeo como verbal Em ambos os casos ao contraacuterio trata-se mais da Tradiccedilatildeo real com prevalecircncia da realidade sobre as palavras que a atestam Este fato que estaacute claro no terceiro princiacutepio o pneumatoloacutegico vale tambeacutem em relaccedilatildeo agrave implantaccedilatildeo do Evangelho nos coraccedilotildees contida no segundo princiacutepio Tal implantaccedilatildeo vai muito aleacutem do que se encontra expresso na letra da Escritura

Que papel tenham estas ideacuteias exercido nas discussotildees do Conciacutelio pode-se concluir tambeacutem das auctoritates citadas por Cervini entre as quais figuram Jo 16 12 (hellipSpiritus Sanctus suggerethellip) e Fl 3 15 (Quicumque perfecti sumus haeligc sentiamus et si quid aliter sentitis haeligc quoque Deus vobis revelabit) Ambos estes textos satildeo de teor acentuadamente [45] pneumatoloacutegico-presencial30 Que tais ideacuteias natildeo eram

30 CT V 14 e 15 Um exame profundo das auctoritates quer da Escritura quer entre os Santos Padres que neste particular satildeo favoraacuteveis agrave Tradiccedilatildeo seria em si conclusivo para a elaboraccedilatildeo do conceito

estranhas aos Padres conciliares deduz-se ainda de uma seacuterie de outras referecircncias Assim ouvimos o Bispo de Aqui dizer que aleacutem da Sagrada Escritura existe muita coisa na Igreja de Deus que vindo dos Apoacutestolos e passando de geraccedilatildeo a geraccedilatildeo chegou ateacute noacutes assim como muitas outras quaelig etsi scripta Apostoli nobis non reliquerunt per Spiritus Sancti revelationem nobis (tradita) sunt (Tradita estaacute aqui por revelata) 31 Partindo daiacute se poderia descrever a Tradiccedilatildeo justamente como o componente pneumatoloacutegico do Cristo-evento b) A influecircncia do esquema de Cervini em diversas decisotildees conciliares

Eacute verdade que esta concepccedilatildeo tripartida aparece muito atenuada no Decreto

oficial sobre a Tradiccedilatildeo Que poreacutem em suas linhas fundamentais natildeo tenha ela sido de modo nenhum [46] abandonada mostram-no duas outras passagens nas quais o Conciacutelio faz uso por assim dizer in actu das ideacuteias aqui expressas32 Assim na Introduccedilatildeo ao Decreto sobre a Eucaristia (Denz 873) se lecirc Sacrosancta Synodus sanamhellipdoctrinam tradens quam semper catholica Ecclesia ab ipso Jesu Christo Domino Nostro et eius apostolis erudita atque a Spiritu Sancto illi omnem veritatem in dies suggerente (Jo 1416) edocta retinuithellip

Aqui a accedilatildeo proacutepria do Conciacutelio eacute descrita como tradere e a este tradere eacute atribuiacutedo um duplo fundamento De um lado o ensino de Jesus e dos Apoacutestolos (Note-se que este ponto corresponde ao Evangelho segundo a concepccedilatildeo de Cervini E de certo modo tambeacutem pela citaccedilatildeo de Jesus e dos Apoacutestolos se reconhece a dupla modalidade do Evangelho como escrito e como inserido nos coraccedilotildees) De outro lado o ensino dado pelo Espiacuterito Santo que conduz agrave verdade in dies isto eacute no de correr do tempo futuro

O outro texto que pode ser aduzido aqui como prova do que afirmamos encontra-se no Preacircmbulo do Decreto sobre o Purgatoacuterio (Denz 983) Aiacute se lecirc hellipCatholica Ecclesia Spiritu Sancto edocta ex Sacris Litteris et antiqua Patrum traditione in sacris Conciliis et novissime in hac Synodo docuerit A descriccedilatildeo da accedilatildeo proacutepria do

aqui exposto H HOLSTEIN procurou fazer o cotejo destas auctoritates e fecirc-lo de modo admiraacutevel em seu artigo La Tradition dapregraves le Concile de Trente (RSR 47 1959 p367-390 e em particular para o caso em questatildeo a p375) Ele encontra nos textos estudados duas linhas de tendecircncias A linha de Santo Irineu para a qual o testemunho dos Apoacutestolos eacute o de sua personalidade de sua vida e de seu ofiacutecio Aleacutem desta o grupo composto de Tertuliano Cipriano Basiacutelio e Agostinho forma uma corrente que se poderia denominar ldquocerimonialrdquo Oriacutegenes se enquadra em ambos os grupos Existe entre os autores estudados uma seacuterie de textos que se referem agraves observationes consuetudines institutiones e que levam a entender-se a Tradiccedilatildeo neste mesmo sentido Aiacute se vecircem tambeacutem textos que sublinham o aspecto natildeo-escrito do Evangelho enquanto insculpido no coraccedilatildeo dos fieacuteis e aleacutem disso textos que apontam a Igreja como o ldquolugarrdquo da verdade cristatilde 31 CT I 483 (18 de fevereiro de 1546) Em 26 de fevereiro (CT V 18) encontramos Cervini a tratar de novo deste assunto Cf tambeacutem um pronunciamento do Bispo de Fano (CT V 10) nestes termos Cum jam receperimus Scripturas Sacras necessario recipiendaelig sunt traditiones quaelig ab eodem Spiritu Sancto quo scripturaelig dictataelig sunthellip 32 Disto me adverti pela primeira vez atraveacutes de um estudo realizado sob a minha orientaccedilatildeo por CHR LIMBACR a quem sou devedor de muitas informaccedilotildees bibliograacuteficas

Conciacutelio como tradere encontra-se ainda nas declaraccedilotildees sobre o Sacramento da Extrema-Unccedilatildeo (Denz 910)

Finalmente a triacuteplice divisatildeo deixa-se insinuar nas entrelinhas do Decreto sobre a Tradiccedilatildeo embora obscurecida e diluiacuteda por uma seacuterie de acreacutescimos e citaccedilotildees a ele adicionados por outros motivos O Decreto da Tradiccedilatildeo com efeito [47]

1) Fala do Evangelho prometido pelos Profetas na Escritura e refere-se a esta em sentido estrito quer antes quer depois do Antigo Testamento

2) Fala da promulgaccedilatildeo por Cristo do Evangelho que foi transmitido pelos Apoacutestolos sob dupla forma oral e escrita Desta maneira o que natildeo ocorre no exemplo de Cervini aparece aqui antes de tudo o componente pneumatoloacutegico unido com o componente apostoacutelico a ponto de se distinguirem duas modalidades de Tradiccedilatildeo apostoacutelica a que remonta a Cristo e a que remonta ao envio do Espiacuterito Santo Pode-se assim estabelecer que em oposiccedilatildeo ao esquema de Cervini haacute um certo processo de historicizaccedilatildeo que salienta a relaccedilatildeo com o comeccedilo histoacuterico e igualmente parece deslocar o acento da tradiccedilatildeo real para a verbal

3) No epiacutelogo desta parte do Decreto da Tradiccedilatildeo que vimos analisando de novo eacute considerada a ideacuteia da Sagrada Escritura O conceito de Tradiccedilatildeo eacute entatildeo formulado em definitivo e descrito como vel oretenus a Christo vel a Spiritu Sancto dictatas et continua successione in Ecclesia catholica conservatas A referecircncia aos Apoacutestolos eacute omitida Pode-se na verdade considerar tudo isto como uma volta ao que foi dito antes Evidentemente a tradiccedilatildeo ditada pelos Apoacutestolos eacute citada de novo (A expressatildeo continua successione insinua-o) Contudo permanece sempre ainda certa indeterminaccedilatildeo ficando aberta a possibilidade de se encontrar aqui o vestiacutegio do terceiro componente de Cervini o princiacutepio pneumaacutetico propriamente dito Eacute tambeacutem claro que esta ideacuteia eacute discreta sendo adotada uma posiccedilatildeo mais acentuadamente histoacuterica Se agora lanccedilarmos os olhos sobre o que vimos considerando ateacute aqui surgiratildeo

inevitavelmente perguntas qual eacute realmente o sentido proacuteprio da concepccedilatildeo pneumatoloacutegica Como poderia ser perfeitamente entendida a ideacuteia a noacutes estranha de uma revelatio prolongada no tempo em face da unicidade e do caraacuteter [48] histoacuterico da Revelaccedilatildeo que evidentemente era conhecido tanto de Cervini quanto dos Santos Padres e teoacutelogos medievais33

Antes de examinarmos isto devemos esclarecer rapidamente os principais motivos que inspiraram o Decreto tridentino sobre a Escritura e a Tradiccedilatildeo deixando nele um tanto encoberta a concepccedilatildeo pessoal de Cervini Que opiniotildees de teoacutelogos teratildeo intervindo aqui chegando a ser em parte impressas no texto definitivo que resultou do cotejo de muitos pronunciamentos diversos Uma exposiccedilatildeo detalhada deste ponto exorbitaria do acircmbito de nossa anaacutelise Contentemo-nos com umas poucas observaccedilotildees sumaacuterias 33 Sobre este assunto tentei fazer um breve comentaacuterio no meu trabalho ldquoOffenbarung-Schrift-Uberlieferungrdquo in TThZ 67 (1958) p13-27 Cf J BEUMER ldquoDer theoretische Beitrag der Frnhscholastik zum Problem des Dogmenfortschrittsrdquo in ZkTh 72 (1952) p205-226 J de CHELLINCK Pour lrsquohistoire du mot ldquorevelarerdquo in RSR 6 (1916) p149-157

2 Relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a vida da Igreja

em diversas passagens do debate tridentino

Uma primeira seacuterie de motivos entre os quais se compreendem diversos pronunciamentos agraves vezes muito contrastantes em seu aparato exterior patenteia-se na ideacuteia de tradiccedilotildees expressa no Decreto de duas maneiras a) - per manus traditaelig ad nos usque pervenerunt b) - continua successione in Ecclesia catholico conservatas

O que se ocultaraacute sob estas duas foacutermulas que o historiador de hoje tem dificuldades em aceitar justamente por causa do historicismo nelas impliacutecito Podemos dizer que um decisivo papel exerceu aqui o pensamento que sempre aparecia nos debates a saber que as tradiccedilotildees satildeo variaacuteveis que muitas delas foram abolidas pelos Apoacutestolos e que por outro lado se [49] introduziram tradiccedilotildees eclesiaacutesticas que natildeo mais seriam abolidas34 Esta ideacuteia de Tradiccedilatildeo de certo modo se torna clara no tratado escrito sobre o mesmo assunto por Seripando para uso dos Padres Conciliares Seripando fala das Tradiccedilotildees escritas inseridas na Escritura como as claacuteusulas de Tiago o costume de as mulheres se cobrirem com um veacuteu a legislaccedilatildeo sobre o matrimocircnio contida em 1Cor 7 etc E o autor adverte que estas praacuteticas foram abolidas Isto porque embora associadas agrave palavra de Deus na Escritura dela ldquomuito diferemrdquo pois a palavra divina [50] de modo nenhum poderia ser abolida A estas tradiccedilotildees

34 Cabe aqui aduzir uma nova intervenccedilatildeo de Cervini datada de 26 de fevereiro de 1546 (CT I 33 e V 18) onde ele diz que nem todas as tradiccedilotildees procedentes dos Apoacutestolos devem ser conservadas mas somente as que ab Ecclesia receptaelig ad nos usque pervenerunt (V 18) Esta afirmaccedilatildeo anterior agrave formulaccedilatildeo dogmaacutetica feita pelo Concilio deve igualmente ser tida na conta de um autecircntico comentaacuterio do Decreto Aiacute se acentua como condiccedilatildeo essencial das tradiccedilotildees a receptio ecclesiaelig Vem ainda referida uma intervenccedilatildeo do Bispo de Bertinoro em data de 23 de marccedilo (I p 523) na qual ele sublinha que as tradiccedilotildees escritas por vezes foram mudadas Jaacute entre as natildeo-escritas umas foram mudadas e outras natildeo como por exemplo o rito de adicionar aacutegua ao vinho a Crisma a confissatildeo auricular O Bispo de Bertinoro acrescenta que por outro lado alguns pontos existem que permaneceram inteiramente inalterados tais como a crenccedila no descensus ad inferos na virgindade perpeacutetua de Maria a substituiccedilatildeo da observacircncia do saacutebado pela do domingo Temos depois um pronunciamento do Bispo de Bitonto datado de 27 de marccedilo (I 39) Este bispo era de parecer que algumas coisas foram transmitidas pelos Apoacutestolos com a finalidade de serem perpetuamente conservadas (como pertencentes ao depoacutesito da feacute) outras caiacuteram em desuso (como as claacuteusulas de Tiago) e outras enfim foram apenas aconselhadas Assim mesmo na Escritura algumas coisas haacute que foram escritas mas natildeo recebidas em uso por serem mateacuteria de mero conselho Por exemplo ldquose algueacutem te pedir a tuacutenica daacute-lhe tambeacutem o paacutelio se algueacutem te esbofetear numa face oferece-lhe tambeacutem a outrardquo Sem duacutevida excelente ilustraccedilatildeo do sermatildeo da montanha Finalmente consideraccedilotildees idecircnticas podemos encontrar na obra citada de LEJAY Eis outra amostra tirada do discurso de 23 de fevereiro (CT V 13) Nam illaelig (scil traditiones) quaelig ad fidem pertinent eadem sunt recipiendaelig auctoritate qua recipitur evangelium alia autem non ita eum earum plurimaelig immutataelig fuerint ut de bigamis de esu sanguinis et similia De modo semelhante aliaacutes fala tambeacutem Bonuccio (I 525 a 23 de marccedilo de 1546 ecclesia traditiones apostolorum quandoque mutavit verbum autem Dei nunquam mutavit neque mutare potest

Seripando opotildee as natildeo referidas na Biacuteblia e que ora satildeo apostoacutelicas ou oriundas de Conciacutelios universais e aceitas por toda a Igreja ora satildeo particulares e muito variaacuteveis35

Este texto nos leva a uma surpreendente conclusatildeo para Seripando e muitos outros Padres tridentinos36existem tradiccedilotildees na Escritura ldquoTradiccedilatildeordquo natildeo significa o natildeo-escrito Existe quer dentro da Escritura quer fora dela Isto nos conduz a outra pergunta em que consiste para os referidos Padres a essecircncia da tradiccedilatildeo se o que a constitui natildeo eacute o fato de natildeo ser escrita37 Em outros termos como pode a tradiccedilatildeo ser definida positivamente se ela natildeo pode ser suficientemente determinada pela ideacuteia negativa de algo natildeo-escrito

Haacute uma seacuterie de respostas para esta pergunta O proacuteprio Seripando daacute a seguinte definiccedilatildeo Traditiones hoc est Apostolorum seu sanctorum Patrum sanctae et salutares constitutiones38 Mais clara ainda eacute a afirmaccedilatildeo de Cervini citada por Massarelli A objeccedilatildeo do Bispo de Chioggia que aduzia a opiniatildeo de Agostinho de que tudo o que eacute necessaacuterio para a salvaccedilatildeo estava escrito na Biacuteblia respondia Cervini da seguinte maneira Verba illa (isto eacute de Santo Agostinho) formaliter intelligi debent scilicet ad fidem accipiendam ut salvi fiamus Quo vero ad mores et christianam vitam instituendam certo non omnia scripta sunt

[51] E de novo recorre agraves provas tiradas de Jo 1526 e 1426 E indica o princiacutepio pneumatoloacutegico39 O que eacute mais importante eacute que a Tradiccedilatildeo se refere agrave institutio vitaelig agrave presenccedila atuante da Palavra revelada na existecircncia cristatilde Tradiccedilatildeo eacute noutros termos a eficaacutecia da palavra de Deus Sem ela a palavra ficaria esteacuteril 35 Seripando De traditionibus (fevereiro ou marccedilo de 1546) CT XII p517-521 e principalmente a p 521 As expressotildees desta uacuteltima paacutegina chocam-se com a ideacuteia de Cervini sobre a receptio ecclesiaelig 36 Cf o texto citado na nota 11 37 No texto definitivo do Decreto esta ideacuteia natildeo aparece mais Aqui poreacutem com esta primeira designaccedilatildeo expliacutecita da Tradiccedilatildeo vem expressamente acentuado o contraste entre in libris scriptis et sine scripto traditionibus Na segunda redaccedilatildeo o sentido expliacutecito da palavra Tradiccedilatildeo natildeo eacute tatildeo exclusivo Contudo apresenta igual matiz ao se confrontarem as expressotildees omnes libroshellipnec non traditiones ipsas Portanto a ideacuteia positiva da Tradiccedilatildeo que serve de base a esta anaacutelise natildeo deixou de influenciar na redaccedilatildeo do Decreto 38 CT XII 517 39 CT I 494 (26 de fevereiro de 1546) A citada palavra de Santo Agostinho teve o seu papel a desempenhar na discussatildeo em curso Seripando por exemplo a ela se referiu (De traditionibus CT XII 521 47-53) Pensandum denique ne in traditionibus externis vera religio et salutis spes statuatur de quibus Augustinus Omnia quaelig pertinent ad veram religionem quaeligrendam et tenendam divina Scriptura non acuit Conceda-se que nem tudo foi escrito (veja-se Jo 2125) Todavia electa sunt autem quaelig scriberentur quaelig saluti credentium sufficere videbantur Mais do que nos debates do tridentino encontramos aqui um verdadeiro postulado dos Reformadores ldquonatildeo adotar costumes exteriores mas buscar os meios definitivos de salvaccedilatildeo na palavra da Escriturardquo A ldquosuficiecircnciardquo da Escritura de que aqui se fala eacute na verdade algo diverso da suficiecircncia material da mesma Escritura defendida por Geiselmann em sentido muito mais radical Infelizmente ainda natildeo se quis levar na devida consideraccedilatildeo o texto de Santo Agostinho (CT I 494 sugere De doctrina christiana II 9 e De pecc mero et rem II 59) Muito apropriadas nesta ordem de ideacuteias satildeo as observaccedilotildees de H SCHAUF ldquoSchrift und Traditionrdquo in Antonianum 39 (1964) p200-209 feitas no chamado Encontro de Duumlsseldorf Nos textos citados por Schauf com base em Agostinho eacute afirmada a suficiecircncia da Escritura para a salvaccedilatildeo Eacute contudo contestada a sua suficiecircncia para a Igreja em geral De fato esta alternativa parece muito mais vaacutelida e fundamental agrave luz dos postulados dos Reformadores do que a alternativa entre a suficiecircncia ou insuficiecircncia material da Escritura

Na mesma linha de ideacuteias seguem-se duas outras seacuteries de pronunciamentos Vimos na introduccedilatildeo agrave parte anterior que a discussatildeo dogmaacutetica da ideacuteia de

Tradiccedilatildeo foi em parte prejudicada pela questatildeo do meacutetodo a seguir no Conciacutelio dever-se-ia abordar primeiro a reformatio a reforma praacutetica da Igreja como queria o ldquoKaiserrdquo Ou primeiro discutir a questatildeo dogmaacutetica como preferia o Papa40

[52] Este problema do meacutetodo embora resolvido no debate que entatildeo surgiu natildeo afetou diretamente a questatildeo da Tradiccedilatildeo como tal Mas como de fato estas duas questotildees ficaram ligadas entre si daiacute resultou que muitos oradores transformaram a questatildeo do meacutetodo (se se deveria falar dos abusos ou da Tradiccedilatildeo) em parte de sua argumentaccedilatildeo em torno do assunto em pauta41 O problema abusus e o problema Traditio ficaram de tal maneira associados na ocasiatildeo que pareciam formar no fundo um soacute assunto Por isso os oradores ora falavam em sentido positivo ora se pronunciavam em sentido negativo Isto correspondia tambeacutem ao propoacutesito reformista do Conciacutelio as traditiones representavam os abusus aos quais a Igreja se opunha Os Padres estavam cocircnscios de que condenar as traditiones era condenar Os usus ecclesiaelig o modo como a Igreja vivia a sua vida naquela eacutepoca

A outra seacuterie de pronunciamentos que se inclinavam ao mesmo sentido encontramo-la nas proposiccedilotildees que a auctoritas da Igreja apresenta como definitivas indicando uma iacutentima relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a institutio christiana 42

[53] Podemos agora retomar ao nosso ponto de partida e dar resposta agrave pergunta que propriamente significa a foacutermula ad nos usque pervenerunt Objetivamente natildeo se trata aqui de um historicismo que a foacutermula parece expressar Ao contraacuterio Trata-se da fidelidade perseverante da Igreja agrave institutio vitaelig christianaelig da legiacutetima forma de vida cristatilde em concreto no tempo presente da Igreja da institutio christiana que coloca a Escritura em primeiro lugar e que como tal isto eacute como vida decorrente da Escritura eacute fundamentalmente apostoacutelica embora tambeacutem sujeita a mudanccedilas como tudo o que eacute vivo

3 A Tradiccedilatildeo e o dogma eclesiaacutestico

40 Sobre o debate em torno da questatildeo do meacutetodo cf mais uma vez JEDIN op cit p9-82 e outras 41 Assim jaacute no discurso de Cervini antes analisado (CT I 484) no qual ele recorda o dilema do Conciacutelio se nos voltarmos contra as tradiccedilotildees ficaratildeo admirados os Padres Conciliares quasi reformationem fugiamus si ipsam reformationem sumimus iterum objicient traditiones relinquendas non esse Idecircntica era a situaccedilatildeo em que se encontrava o Bispo de Astorga nas duas intervenccedilotildees que fez no dia 23 de fevereiro de 1546 (CT V 13 e 19) segundo Seripando (I 484) helliptraditiones prius pertractandas consulit tantam enim conformitatem abusus qui ex sacris libris descendunt cum iis qui a traditionibus orti sunt habent ut sacris libris et traditionibus absolutis duo illa abusuum genera simul pertractari valeant Segundo Bonuccio (I 484) antes de tudo dever-se-ia tratar das Sagradas Escrituras dos cacircnones apostoacutelicos dos Conciacutelios gerais e das decretais pontifiacutecias Hisque ilusceptis ad abusus ex eisdem dependentes devenire 42 Assim principalmente de acordo com Afonso de Castro (CT I 484) Quoniam ultra traditiones apostolicas ecclesiae auctoritatem habemus quaelig ecclesiaelig auctoritas tonta apud nos est ut aliqui eam maioris roboris quam sacros libros esse sentiant Cf igualmente CT I 491 45 Na mesma linha pode-se ver uma seacuterie de pronunciamentos na citada obra de LEJAY Cf CT XII 524 (Tratado De traditionibus ecclesiaelig fevereiro ou marccedilo de 1546)

Uma segunda seacuterie de motivos eacute expressa no Decreto pela foacutermula traditiones tum ad fidem tum ad mores pertinentes Se como vimos a ideacuteia de Tradiccedilatildeo aparece muito limitada naquilo que os Padres conciliares chamam consuetudines observationes institutiones por outro lado o Procurador do Cardeal de Augsburgo Claudio Lejay SJ se fez o porta-voz de uma expressatildeo que em oposiccedilatildeo agraves traditiones caeligremoniales estabeleceu justamente o sentido da tradiccedilatildeo contida na feacute Seu tratado sobre a Tradiccedilatildeo composto para uso dos Padres conciliares inclui tambeacutem a foacutermula que foi adotada pelo Conciacutelio Aiacute se diz Denique multas veritates tum ad fidem tum ad mores pertinentes Ecclesia novit quas Scriptura aperte et expresse non continet Ele cita como exemplos as palavras persona essentia trinitas no Tratado da Santiacutessima Trindade consubstantialitas na Cristologia do Logos duas naturezas uma soacute Pessoa referentes ao dogma definido pelo Conciacutelio de Calcedocircnia E ainda Cristo Filho uacutenico de Maria duas vontades na uacutenica Pessoa de Cristo uma alma racional aleacutem do espiacuterito divino em Cristo Ana matildee de Maria o costume de fazer sinais da cruz a santificaccedilatildeo do domingo a maneira de rezar com face voltada [54] para o Oriente tudo isto ideacuteias e fatos da tradiccedilatildeo conciliar e da piedade cristatilde43

Cervini que aprovou o discurso de Lejay de 23 de fevereiro de 154644 pocircde dificilmente conciliar esta posiccedilatildeo com a sua expressa na jaacute citada carta ao Cardeal Farnese onde como vimos ele diz que o Espiacuterito Santo falou na Igreja e depois da Ascensatildeo do Senhor fala ainda maxime medianti i concilii45 Ele aiacute viu publicamente sublinhado o fato de que aquele ldquomaisrdquo que a Igreja viva representa em relaccedilatildeo agrave palavra meramente escrita natildeo se referia e natildeo se refere apenas agrave vita instituenda ou como ele prefere agrave caeligremonialia Refere-se tambeacutem agrave essentialia fidei que antes de tudo plenamente se expressam na Tradiccedilatildeo Tambeacutem aqui como se vecirc o interesse dominante natildeo estaacute na apresentaccedilatildeo historicista do assunto a partir do iniacutecio da Igreja mas na ideacuteia de que a influecircncia da Tradiccedilatildeo sobretudo atraveacutes da praxe conciliar eacute de fundamental importacircncia para a feacute para a doutrina crida e natildeo apenas para a piedade viva ou a caeligremonialia

4 O sentido do Decreto tridentino

Se recapitularmos o que ateacute agora dissemos veremos que no conjunto facilmente se podem reconhecer trecircs diferentes concepccedilotildees teoloacutegicas unidas entre si no texto definitivo do Decreto sobre a Tradiccedilatildeo Unidas mas natildeo equiparadas umas agraves outras Pelo contraacuterio apesar de sua grande diferenccedila foram elas apenas [55] mais ou menos justapostas e de novo por forccedila de uma tendecircncia comum relacionadas entre si

1 A concepccedilatildeo de Cervini que designamos como pneumatoloacutegica Com sua doutrina sobre os trecircs principia fidei insiste ele no caraacuteter dinacircmico do Cristo-evento

43 CT XII 523 LEJAY baseia-se evidentemente em listas de tradiccedilotildees confeccionadas naquele tempo (Cf ECK DRIEDO CANO BOTO NOGAROLA) Cf a este respeito Y CONGAR ldquoTraditions apostoliques non eacutecrites et suffisance de lEscrituresrdquo in Istina 6 (1959) p219-306 e principalmente a paacutegina 289 44 CT V 14 45 CT X 373

presente na Igreja Entende assim a Tradiccedilatildeo primariamente como a realidade espiritual da institutio vitaelig christianaelig

2 A concepccedilatildeo que podemos chamar de cerimonial Esta entende a Tradiccedilatildeo essencialmente como a seacuterie de consuetudines existentes ao lado da feacute como os usus ecclesiaelig que os Reformadores falsamente pretendem abolir como abusus Esta concepccedilatildeo chega a condenar a dignidade e Antiguumlidade apostoacutelica das tradiccedilotildees Sua ideacuteia eacute limitada pelo ad nos usque pervenerunt que inclui possibilidade de variar da parte das tradiccedilotildees donde a necessidade de reduccedilotildees Com os termos pervenire e conservare a recepccedilatildeo por parte da Igreja eacute considerada criteacuterio adicional ao lado da Antiguumlidade

3 A concepccedilatildeo que talvez possamos denominar dogmaacutetica Em oposiccedilatildeo agrave fixidez da ideacuteia de Tradiccedilatildeo reduzida agrave consuetudo salienta esta terceira hipoacutetese a extensatildeo do fenocircmeno Tradiccedilatildeo tambeacutem ao acircmbito da fides

Estas trecircs concepccedilotildees deram forma ao texto do Decreto de tal modo que as suas

linhas mestras derivam de Cervini e todo o texto deve ser entendido agrave luz de suas ideacuteias Contudo em duas passagens isto eacute no pervenerunt e no conservatas haacute influecircncia da segunda concepccedilatildeo enquanto no tum ad fidem tum ad mores haacute influecircncia da terceira

Em face destas trecircs concepccedilotildees das quais na realidade existem diversas variantes que tomadas em conjunto satildeo a expressatildeo das ideacuteias dominantes adotadas aparecem as teses de Bonuccio e de Nacchianti tatildeo postas em evidecircncia por Geiselmann como sentenccedilas contraacuterias De fato o parecer de Bonuccio claramente [56] se opotildee agrave segunda concepccedilatildeo (contra a supervalorizaccedilatildeo das consuetudines natildeo per pietatis affectus) ao passo que Nacchianti se levanta antes contra a terceira posiccedilatildeo e salienta a suficiecircncia da feacute recebida por meio da Escritura46

Seria de notar-se ainda que as concepccedilotildees segunda e terceira tecircm algo em comum Ambas opotildeem agrave visatildeo pneumatoloacutegica de Cervini da salvaccedilatildeo sempre presente uma visatildeo mais historicista relacionada com o prolongamento da salvaccedilatildeo operada uma soacute vez ou seja o ἑφάπαξ Na realidade deve-se dizer que embora de um lado tanto a visatildeo presencial de Cervini como tambeacutem a visatildeo historicista do outro grupo se consideradas isoladamente cada qual de per si sejam perigosas se natildeo insustentaacuteveis 46 Aliaacutes de acordo com uma informaccedilatildeo de Cervini parece que o Bispo de Chioggia finalmente renunciou agrave sua tese da suficiecircncia da Escritura na qual se inclinava a recusar as tradiccedilotildees Na carta de Cervini ao Cardeal Farnese de 27 de fevereiro de 1546 lemos hellip Chioggia che (quasi quasi) voleva dire queste traditioni essere superflue perorando che tutto quello che era necessario alla salute era scritto et allegando etiam S Agostino sopra lultimo capitulo di S Giovanni a questo proposito Pure per non poter negare che molte cose appartenenti almeno alli sacramenti non ci fussero venute ex tra ditione et per consequente che non tutte le cose necessarie alia nostra salute erano scritte poiche ebbe fatte molte distintioni concluse che ancor lui accettava queste ldquoche in la chiesa fusse qualque traditione apostolica non scrittardquo (et con queste parole diceva che se ne facesse il decreto) credo che molti sono restati scandalizati di lui (CT X Nr 315 paacutegs 399 411) Cf tambeacutem CT I 494 nota 9 e 495 nota 2 CT V 18 nota 5 e 19 e nota 1 O mesmo protesto que aparece contra Nacchianti manifesta-se tambeacutem na observaccedilatildeo de Massarelli Este chega a chamar aquele de novarum rerum cupidus (1 494 18) e esclarece que reprehensus est a multis (1 494 22) Diante disto eacute de todo destituiacuteda de creacutedito a importacircncia que Geiselmann lhe atribui mesmo se abstrairmos de outras razotildees jaacute conhecidas sobre as quais natildeo precisamos insistir

de outro lado pelo menos tornam possiacutevel uma exata visatildeo do conjunto devido agrave sua muacutetua confluecircncia e limitaccedilatildeo No texto atual estatildeo presentes embora pouco nitidamente ambos os pontos de vista o elemento presencial e o ἑφάπαξ Conveacutem que entendamos assim o texto de modo a considerarmos [57] ambos estes aspectos como essenciais Consequumlentemente reconheceremos que ambos pertencem constitutivamente agrave realidade da vida cristatilde e portanto tambeacutem agravequela parcela do Cristianismo a que damos o nome de Tradiccedilatildeo Estes dois elementos satildeo a presenccedila do Espiacuterito Santo e o seu nexo com o fato singular da salvaccedilatildeo ocorrido uma soacute vez por todas na histoacuteria dos homens

Assim se acharaacute finalmente a resposta agrave pergunta de corno noacutes devemos entender o parecer do Conciacutelio de Trento A primeira e mais importante conclusatildeo parece-me ser o fato de o Conciacutelio ter visto muito claramente o nexo entre Tradiccedilatildeo e Revelaccedilatildeo A seguir elaborou sempre em consonacircncia com a tradiccedilatildeo patriacutestica e medieval um conceito de Revelaccedilatildeo muito menos material do que o que seraacute adotado mais tarde pela teologia dos tempos modernos Somente assim se deve conceber a ideacuteia da Revelaccedilatildeo do Espiacuterito Santo na Igreja Partindo do ramo nitidamente patriacutestico da teologia medieval tatildeo francamente acolhido no discurso de Cervini deveria ser muito menos categoacuterica a opiniatildeo que coloca o teacutermino da Revelaccedilatildeo na morte do uacuteltimo Apoacutestolo Naturalmente esta questatildeo natildeo pode ser aqui estudada com maiores detalhes A sua soluccedilatildeo como entatildeo se apresentava aos teoacutelogos poderia ser hoje impostada apelando-se para as categorias da teologia atual Segundo esta podemos dizer que a Revelaccedilatildeo estaacute encerrada do ponto de vista de seu princiacutepio material Todavia estaacute e continua presente em sua realidade eficaz Noutros termos a Revelaccedilatildeo tem eacute verdade o seu ἑφάπαξ enquanto ela se realizou num determinado dia na Histoacuteria Entretanto ela tem tambeacutem o seu ldquohojerdquo permanente isto eacute o que foi uma vez por todas realizado na feacute da Igreja permanece sempre vivo e operante Assim a feacute cristatilde natildeo se volta apenas para o passado Abrange tambeacutem o presente e o futuro Eacute verdade que a posterior materializaccedilatildeo historicista da ideacuteia de Revelaccedilatildeo aparece jaacute claramente insinuada nos debates tridentinos corno um fato previsto mas ainda [58] natildeo consumado embora talvez se possa dizer que nos textos conciliares ficou definitivamente consagrada a sua aceitaccedilatildeo

Finalmente acrescentemos ainda que com base nos debates do Conciacutelio podemos estabelecer quatro elementos da ideacuteia de Tradiccedilatildeo 1 O aspecto natildeo-escrito da Revelaccedilatildeo ou do Evangelho contido na Biacuteblia e no coraccedilatildeo dos fieacuteis 2 A palavra do Espiacuterito Santo no decorrer de todo o tempo da Igreja

3 A atividade da Igreja nos Conciacutelios 4 A Tradiccedilatildeo lituacutergica e a da vida da Igreja em geral Nestes quatro elementos

que se deve ter sob os olhos pois formam o fundo ideoloacutegico do Decreto expressa-se a realidade uacutenica do tempo presente da Igreja cristatilde Nele estaacute presente todo o passado poacutes-apostoacutelico da Igreja (inclusive o proacuteprio tempo dos apoacutestolos) de modo que toda a sua vida eacute na Sagrada Escritura um elemento central embora natildeo o uacutenico Em suma deve ter ficado claro que o Conciacutelio de Trento a despeito do caraacuteter contrastante e fixo de sua ideacuteia de Revelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeo oferece uma visatildeo muito mais rica destes conceitos do que a que impregnou a mentalidade dos seacuteculos seguintes Justamente por

isso a teologia de hoje pode retirar daiacute novos subsiacutedios novo apoio para suas pesquisas e novas indicaccedilotildees sobre o verdadeiro caminho a seguir

Quadro sinoacutetico do Decreto tridentino sobre a Tradiccedilatildeo

Primeiro princiacutepio conforme Cervini (AT = Escritura)

Sacrosancta œcumenica et generalis Tridentina Synodus in Spiritu Sancto legitime congregata [] hoc sibi perpetuo ante oculos proponens ut sublatis erroribus puritas ipsa EVANGELII in Ecclesia conservetur quod PROMISSUM ANTE PER PROPHETAS IN SCRIPTURIS SANCTIS

Segundo princiacutepio conforme Cervini o Evangelho em parte escrito em parte insculpido nos coraccedilotildees

[59] DOMINUS NOSTER IESUS CHRISTUS DEI FILIUS PROPRIO ORE PRIMUM PROMULGAVIT DEINDE PER SUOS APOSTOLOS TAMQUAM FONTEM OMNIS ET SALUTARIS VERITATIS ET MORUM DISCIPLINAE OMNI CREATURAE PRAEDICARI IUSSIT PERSPICIENSQUE HANC VERITATEM ET DISCIPLINAM CONTINERI IN LIBRIS SCRIPTIS ET SINE SCRIPTO TRADITIONIBUS QUAE AB IPSIUS CHRISTI ORE AB APOSTOLIS ACCEPTAE AUT AB IPSIS APOSTOLIS SPIRITU SANCTO DICTANTE

Seripando Cervini e outros soacute consideram as tradiccedilotildees recebidas pela Igrej (ldquoad nos usquerdquo)

quasi per manus traditae ad nos usque pervenerunt

orthodoxorum Patrum exempla secuta omnes libros tam Veteris quam Novi Testamenti cum utriusque unus Deus sit auctor nec non TRADITIONES IPSAS

Lejay Tradiccedilatildeo contendo natildeo soacute a ldquoconsuetudordquo mas relacionada tambeacutem com a ldquofidesrdquo (foacutermula conciliar)

tum ad fidem tum ad mores pertinentes

Terceiro princiacutepio de Cernini Depois da Ascenccedilatildeo de Cristo o Espiacuterito Santo ensina tambeacutem os misteacuterios de Deus

TAMQUAM VEL ORETENUS A CHRISTO VEL A SPIRITU SANCTO DICTATAS

Seripando Cervini etc soacute satildeo consideradas as coisas recebidas pela Igreja (como acima)

et continua successione in Ecclesia catholica conservatas

Cervini Escritura e Tradiccedilatildeo procedem ambas do mesmo Espiacuterito Santo

pari pietatis affectu ac reverentia suscipit ac veneratur

  • Prefaacutecio
  • SEGUNDA PARTE
  • Explicaccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo
  • segundo o Decreto do Conciacutelio de Trento
Page 22: Revelacao e Tradicao-Joseph Ratzinger (Bom Ler)

um tanto vaga encontramo-la essencialmente concretizada na realidade objetiva do Cristianismo

4 A essecircncia da Tradiccedilatildeo

[31] A transmissatildeo ao povo de Deus do Cristo-evento que eacute a Revelaccedilatildeo e que tem sua bi-presenccedila na feacute e na Igreja faz-se atraveacutes da pregaccedilatildeo Pregaccedilatildeo eacute a ldquoex-posiccedilatildeordquo (Aus-legung) do duplo aspecto da Revelaccedilatildeo no Antigo e no Novo Testamento E isto de duas maneiras

a) ela eacute a exposiccedilatildeo do Antigo Testamento agrave luz do Cristo-evento e para o Cristo-evento

b) a partir do Pneuma e da condiccedilatildeo presente da Igreja Este uacuteltimo aspecto eacute possiacutevel pois Cristo natildeo estaacute morto Estaacute vivo Natildeo eacute

apenas o Cristo de ontem Eacute tambeacutem e a fortiori o Cristo de hoje e de amanhatilde o Cristo vivo e presente em sua Igreja que eacute seu Corpo e na qual o seu espiacuterito opera

Isto poderaacute ser melhor compreendido se partirmos da essecircncia da Igreja Como nos ensina o Novo Testamento a mensagem de Jesus eacute antes de tudo uma mensagem escatoloacutegica com vistas ao reino de Deus natildeo com vistas agrave Igreja O fato de existir a Igreja natildeo se opotildee a esta mensagem mas haacute na marcha gradativa das revelaccedilotildees de Cristo uma segunda possibilidade Assim a atividade dos Doze depois de Pentecostes aponta natildeo para a Igreja mas para o reino de Deus Informam-nos os Atos dos Apoacutestolos que os Doze natildeo se ocuparam primordialmente em missionar os povos Esforccedilaram-se antes muito mais em converter Israel criando deste modo as condiccedilotildees preacutevias para a implantaccedilatildeo do reino De iniacutecio uma seacuterie de obstaacuteculos histoacutericos entre os quais deveriacuteamos citar antes de tudo o martiacuterio de Estevatildeo o supliacutecio de Tiago e por fim o fato decisivo da prisatildeo e da libertaccedilatildeo de Pedro Tais fatos levaram a comunidade primitiva segundo dizem as fontes a reconhecer como definitivo o malogro do esforccedilo de converter Israel E consequumlentemente forccedilaram os Apoacutestolos a partir em busca dos gentios e a cuidar [32] assim da Igreja e natildeo do reino Eles o fazem segundo se depreende das passagens referidas e principalmente dos esclarecimentos do capiacutetulo 15 dos Atos dos Apoacutestolos como uma nova opccedilatildeo feita sob a accedilatildeo do Espiacuterito Santo Com isso iniciou-se uma nova interpretaccedilatildeo da mensagem de Cristo sobre a qual a Igreja essencialmente repousa19

19 Cf as decisivas conclusotildees de E PETERSON ldquoDie Kircherdquo in Theologische Traktate Munique 1951 p 409-429 H SCHLIER Die Entscheidung fuumlr die Heidenmission in der Urchristenheit Die Zeit der Kirche p 90-107 Parece-me certo que nem a anaacutelise da tradiccedilatildeo sinoacutetica relativa agrave mensagem de Jesus e seu caraacuteter escatoloacutegico nem o estudo da histoacuteria da Igreja primitiva com base no material fornecido pelos Atos dos Apoacutestolos autorizam qualquer outra conexatildeo entre a mensagem do reino e a pregaccedilatildeo da Igreja Daiacute natildeo se segue de modo nenhum ndash como muitas vezes se teme ndash que a cruz seja um acidente secundaacuterio que em rigor poderia ter sido evitado Ao contraacuterio A estrutura da Igreja moldada sobre a cruz eacute fundamental porque aiacute eacute que por primeiro se encontra a confirmaccedilatildeo da importacircncia da liberdade humana de Cristo e da sua Paixatildeo bem como a iacutentima dependecircncia da Igreja para com a Cruz donde ela procede

Este fato que baseia o estabelecimento definitivo da Igreja sobre uma decisatildeo tomada ldquono Espiacuterito Santordquo eacute o fundamento para se afirmar que existe uma interpretaccedilatildeo eclesial do Novo Testamento do mesmo modo que existe uma exegese cristoloacutegica do Antigo Daiacute podermos estabelecer as seguintes teses ou proposiccedilotildees agrave luz da analogia fidei

a) Existe uma teologia veterotestamentaacuteria do Antigo Testamento que o exegeta

deduz de seu conteuacutedo interno e que se desenvolve em uma seacuterie de camadas superpostas Segundo ela os textos antigos devem ser relidos e de novo expostos agrave luz dos novos acontecimentos O fenocircmeno da aplicaccedilatildeo dos textos agraves situaccedilotildees novas do desdobramento da Revelaccedilatildeo mediante nova [33] apresentaccedilatildeo do Antigo Testamento estrutura jaacute de modo essencial o conteuacutedo interno veterotestamentaacuterio20

b) Existe uma teologia neotestamentaacuteria do Antigo Testamento que natildeo coincide com

a referida teologia veterotestamentaacuteria Estaacute contudo estreitamente ligada com ela na unidade da analogia fidei21 Talvez partindo daqui se possa esclarecer o que significa a analogia fidei entre Os dois Testamentos A teologia neotestamentaacuteria do Antigo Testamento natildeo eacute como ficou dito idecircntica agrave teologia histoacuterica veterotestamentaacuteria Ao contraacuterio Re-exposiccedilatildeo feita agrave luz do Cristo-evento ela natildeo procede soacute da mera consideraccedilatildeo histoacuterica do Antigo Testamento Sendo embora em seu pleno conceito uma interpretaccedilatildeo relacionada com o Antigo Testamento contudo nada faz com que ela seja internamente estranha agrave sua essecircncia ainda que soacute de fora o atinja Ela amplia a forma estrutural do Antigo Testamento que assim interpretado revive e cresce

c) Existe uma teologia neotestamentaacuteria do Novo Testamento paralela agrave teologia veterotestamentaacuteria do Antigo Ou seja a teologia que o exegeta como tal pode deduzir do conteuacutedo interno do Novo Testamento eacute tambeacutem esta conhecida e estruturada mediante a aplicaccedilatildeo do Antigo Testamento agraves novas situaccedilotildees

d) Existe uma teologia eclesial do Novo Testamento que noacutes [34] chamamos Dogmaacutetica Ela se relaciona com a teologia neotestamentaacuteria do Novo Testamento do mesmo modo que a teologia neotestamentaacuteria do Antigo se relaciona com a respectiva teologia veterotestamentaacuteria Aquele ldquomaisrdquo (das Mehr) que distingue propriamente a Dogmaacutetica da teologia biacuteblica eacute o que designamos com a palavra Tradiccedilatildeo Aliaacutes tambeacutem aqui devemos salientar que a teologia eclesiaacutestica neotestamentaacuteria pela mesma razatildeo natildeo eacute simplesmente idecircntica agrave teologia neotestamentaacuteria interna e

20 Cf H GROSS Motivtransposition als Form- und Traditionsprinzip im Alten Testament in H VORGRIMLER Exegese und Dogmatik Moguacutencia 1962 p134-152 e a bibliografia aiacute fornecida G v RAD Theologie des Alten Testaments II Munique 1960 p332-339 396-401 21 A diferenccedila entre as duas teologias do Antigo Testamento foi vivamente exposta por R BULTMANN ldquoWeissagung und Erfuumlllungrdquo in Glauben und Verstehen II Tubinga 1952 p162-186 - Sobre as necessaacuterias correccedilotildees a se fazerem para que se torne visiacutevel a base histoacuterica do que a teologia sistemaacutetica denomina ldquoanalogia fideirdquo cf G v RAD op cit p329-424 (entre outras) e principalmente a p 420 nota 25 e a p422 nota 29 Sobre o tema ldquoanalogia fideirdquo em ambos os Testamentos cf tambeacutem E PRZYWARA Alter und Neuer Bund Viena-Munique 1956

histoacuterica do Novo Testamento Ultrapassa-a sem contudo ser-lhe puramente externa Com efeito no Novo Testamento comeccedila jaacute o processo da exposiccedilatildeo pela Igreja das verdades reveladas A teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento processa-se dentro dele proacuteprio como de modo clariacutessimo se percebe na histoacuteria da Revelaccedilatildeo sinoacutetica22

Eacute oportuno fazermos ainda uma pequena observaccedilatildeo se cotejarmos atentamente a teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento com a Dogmaacutetica reconheceremos que se impotildee uma outra distinccedilatildeo A Dogmaacutetica como ciecircncia aleacutem da exposiccedilatildeo eclesiaacutestica do Novo Testamento abrange tambeacutem a teologia particular de cada teoacutelogo Neste caso para se falar com precisatildeo dever-se-ia apresentar somente o proacuteprio dogma como teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento

O que acabamos de referir natildeo passa naturalmente de um esboccedilo que necessitaria em seus pormenores de natildeo poucos esclarecimentos e distinccedilotildees a fim de ser completo No caso presente entretanto damos por suficiente este esboccedilo Resumindo o que ateacute aqui expusemos podemos agora destacar vaacuterias ldquoraiacutezesrdquo da Tradiccedilatildeo e apontar vaacuterias camadas em seu seio [35] lordf raiz a maior amplidatildeo da ldquoTradiccedilatildeordquo em referecircncia agrave ldquoEscriturardquo

2ordf raiz o caraacuteter especiacutefico da Revelaccedilatildeo neotestamentaacuteria como Pneuma em contraste com o Gramma Eacute o que na linguagem de Bultmann se poderia chamar de sua condiccedilatildeo de ldquonatildeo-objetordquo (Nichtobjektiviertbarkeit) A praxe eclesiaacutestica e a teologia medieval expressaram este aspecto ao sobreporem a fides agrave Scriptura isto eacute o dogma como regra de feacute agraves minuacutecias da lei escrita23 O dogma eacute como a chave hermenecircutica da Escritura que em uacuteltima anaacutelise sem o auxiacutelio da hermenecircutica ficaria sendo algo fechado

3ordf raiz o caraacuteter presencial do Cristo-evento e a presenccedila dinacircmica do Espiacuterito de Cristo em seu Corpo a Igreja E consequumlentemente o poder que tem a Igreja de fazer a pregaccedilatildeo do Cristo ontem e hoje pregaccedilatildeo esta cuja fonte se encontra na interpretaccedilatildeo eclesiaacutestica da mensagem do reino transmitida pelos Apoacutestolos

Em conexatildeo com estas trecircs raiacutezes da ideacuteia (ou melhor da realidade) da Tradiccedilatildeo podem distinguir-se na mesma as seguintes camadas

a) Na origem de toda Tradiccedilatildeo estaacute o fato de que o Pai enviou o Seu Filho ao mundo e que o Filho por sua vez se [36] entregou ndash como sinal ndash aos ldquopovosrdquo (παραδίδοται) Esta paraacutedosis original em sua forccedila direta e salvadora

22 Cf por exemplo a rica exposiccedilatildeo de G BORNKMANN Jesus von Nazareth Estutegarte 1956 Sobre a questatildeo aqui estudada cf H SCHLIER Uumlber Sinn und Aufgabe einer Theologie des Neuen Testaments in H VORGRIMLER Exegese und Dogmatik Mainz 1962 p6990 23 O que haacute de melhor sobre este assunto no tocante agrave Patriacutestica seraacute encontrado em HARNACK DG II (1931) p84-116 HARNACK diz na p 87 nota 3 o seguinte ldquoO Cacircnon era de iniacutecio a regra da feacute A Escritura estaacute centrada na verdade Sem duacutevida nenhuma sua autoridade funda-se solidamente no Antigo Testamento e nas palavras do Senhorrdquo ndash Que assim tenha pensado tambeacutem a Idade Meacutedia e que aqui aleacutem da revelatio (da qual falaremos na 2ordf parte deste livro) a fides sobrepondo-se agrave Scriptura estabelece a forma essencial do conceito de Tradiccedilatildeo foi o que tentei demonstrar em meu artigo Wesen und Weisen der auctoritas im Werk des heiligen Bonaventura in Die Kirche und ihre Aumlmter und Staumlnde (Festgabe Kardinals Frings publicado por CORSTEN-FROTZ-LINDEN Colocircnia 1960 p 58-72

prolonga-se na permanente presenccedila de Cristo no σῶμα Χριστοῦ ndash no Seu Corpo a Igreja Assim o misteacuterio integral da presenccedila de Cristo eacute antes de tudo a realidade total transmitida pela Tradiccedilatildeo (fato fundamental e decisivo sempre anterior a todas as explicaccedilotildees particulares mesmo as da Escritura) e reguladora do que deve propriamente ser transmitido

b) A Tradiccedilatildeo existe concretamente como presenccedila na feacute Esta por seu turno como ldquoin-habitaccedilatildeordquo de Cristo precede todas as explicaccedilotildees particulares e frutuosa e viva ldquoexplicita-serdquo (explizierend) atraveacutes dos tempos

c) A Tradiccedilatildeo tem seu oacutergatildeo na plenitude dos poderes da Igreja e portanto naqueles que satildeo os legiacutetimos depositaacuterios destes poderes24

d) A Tradiccedilatildeo exprime-se tambeacutem naquilo que emanado da autoridade da Igreja se tornou regra de feacute (Symbolum fides quaelig) Portanto a questatildeo de se saber se certas proposiccedilotildees foram transmitidas desde o

comeccedilo pela Tradiccedilatildeo ao lado da Escritura ou em outros termos se existe desde o comeccedilo um segundo princiacutepio material e autocircnomo ao lado da Escritura torna-se afinal um problema inteiramente secundaacuterio Talvez lhe devamos responder negativamente

5 A funccedilatildeo da exegese [37] Pelo que ateacute aqui dissemos ficaram esclarecidas quase que exclusivamente

trecircs pontos os limites da letra da Escritura a liberdade do Espiacuterito Santo e a autoridade da Igreja Acontece poreacutem que a exposiccedilatildeo que fizemos abriga ainda um sentido diverso relacionado com a justa preocupaccedilatildeo de Lutero da qual partimos

Se ficou estabelecido que a Revelaccedilatildeo se faz presente atraveacutes da pregaccedilatildeo e se pregaccedilatildeo eacute exposiccedilatildeo da palavra revelada entatildeo pode e deve agora ao que precede acrescentar-se o seguinte a Tradiccedilatildeo eacute essencialmente e sempre uma exposiccedilatildeo Natildeo existe de maneira autocircnoma e sim como explicaccedilatildeo como exposiccedilatildeo ldquorelacionada com a Escriturardquo

Isto vale para a pregaccedilatildeo do proacuteprio Jesus Cristo realizaccedilatildeo plena da Revelaccedilatildeo e sua exposiccedilatildeo feita com autoridade A pregaccedilatildeo de Jesus Cristo natildeo aparece como algo absolutamente novo na Escritura Isto eacute como algo ainda natildeo atestado no Antigo Testamento Ela ensina isto sim a essecircncia do que jaacute estava escrito e lhe confere uma vida nova que o simples exegeta natildeo pode comunicar-lhe

O que vale para a mensagem de Cristo que permanece a mesma sob diferentes modalidades de exposiccedilatildeo vale tambeacutem para a pregaccedilatildeo apostoacutelica e a eclesiaacutestica Como ldquoTradiccedilatildeordquo ela deve em uacuteltima anaacutelise ser uma exposiccedilatildeo ldquosegundo a Escriturardquo a ela sujeita e com ela relacionada Sem duacutevida natildeo eacute ela uma exposiccedilatildeo no 24 Estas ideacuteias natildeo podem ser desenvolvidas mais detalhadamente aqui como seria de desejar uma vez que em rigor estamos procurando apenas fundamentar o conceito de Tradiccedilatildeo Em razatildeo da brevidade que me impus contentei-me apenas nas teses precedentes com explanar o assunto ateacute ao ponto em que ficasse patente a relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a ldquoIgrejardquo (cf as teses 4 e 5) Para se descer a maiores detalhes dever-se-ia analisar tambeacutem o conceito de Igreja que supomos conhecido do leitor Para isto cf a nota 6 onde citamos nosso livro sobre o Ofiacutecio e a unidade da Igreja Encontram-se aiacute algumas observaccedilotildees sobre o assunto de que ora tratamos

sentido de mera interpretaccedilatildeo exegeacutetica Mas sim na autoridade espiritual recebida do Senhor a qual se consuma na existecircncia plena da Igreja em sua feacute em sua vida e em seu culto Contudo ela permanece sendo (mais ainda do que o Cristo-evento em que se funda a Igreja) uma ldquoex-posiccedilatildeordquo (Aus-Legung) comprometida com a Histoacuteria e com a Palavra [38] Exprime-se deste modo a sua ligaccedilatildeo com a accedilatildeo concreta de Deus nesta mesma Histoacuteria e em seu caraacuteter de fato histoacuterico uacutenico (o ἑφάπαξ ldquoo ocorrido uma soacute vezrdquo) A realidade cristatilde da Revelaccedilatildeo eacute tatildeo essencial quanto ldquoeternardquo e definitiva Resulta daiacute a unidade entre o Cristo da Feacute e o Jesus da Histoacuteria o Jesus histoacuterico natildeo eacute senatildeo o Cristo da Feacute ainda que a feacute seja sempre algo mais do que a histoacuteria

Segue-se que do mesmo modo que existe um ofiacutecio de custoacutedia da Revelaccedilatildeo por parte da Igreja ofiacutecio por ela mesma atestado existe tambeacutem um ofiacutecio de custoacutedia da mesma Revelaccedilatildeo por parte da exegese que penetra o sentido literal da Escritura e defende a uniatildeo do Logos com a carne contra qualquer perigo de gnose Existe portanto por assim dizer algo como uma autonomia especiacutefica da Escritura como regra objetiva e sob muitos pontos de vista esclarecedora do Magisteacuterio eclesiaacutestico Esta era sem duacutevida uma exigecircncia legiacutetima de Lutero que ainda natildeo foi devidamente acolhida na Igreja catoacutelica por parte do Magisteacuterio cujos limites internos nem sempre foram claramente entendidos

Dever-se-ia partindo daqui salientar uma dupla criteriologia em se tratando da feacute De um lado haacute o que a Igreja antiga chamou de ldquoregra da feacuterdquo norma reguladora da palavra revelada contida na Escritura e sua exposiccedilatildeo Esta praeligscriptio da posse da Escritura como proacutepria segundo Tertuliano exclui a possibilidade de qualquer uso legiacutetimo da mesma Escritura contra a Igreja Por outro lado haacute tambeacutem o limite da littera Scripturaelig ou do sentido literal historicamente fixaacutevel que de acordo com o que ficou dito natildeo constitui nenhum criteacuterio absoluto ou autocircnomo mas sim somente um criteacuterio relativo no confronto da feacute com a ciecircncia O que na Escritura se pode descobrir quer mediante estudo cientiacutefico quer por simples leitura tem a funccedilatildeo de um criteacuterio real a que deve estar atento inclusive o Magisteacuterio em suas explicaccedilotildees Certamente [39] trata-se entatildeo de elementos sub-componentes da ciecircncia que natildeo podem servir para se julgar a feacute mas nela encontram uma instacircncia criacutetica e tecircm tambeacutem um importante papel a exercer o de zelar pela pureza do ἑφάπαξ de tutelar o conteuacutedo da Revelaccedilatildeo e de defender o dualismo histoacuterico carneespiacuterito (ldquodie Sarx der Geschichterdquo) contra os arbiacutetrios da gnose que tende sempre a impor-se

A reformatio na qual estaacute empenhada a Igreja nesta hora histoacuterica tem um papel relevante a desempenhar Eacute a missatildeo de abrir novas perspectivas para o diaacutelogo tentando assim chegar a uma ldquoreformardquo diferente da do passado que culminou com a divisatildeo no seio da Cristandade ocidental Tal missatildeo se exerceraacute em harmonia com o pleno ofiacutecio de testemunho da Igreja que tira seu direito e sua forccedila da presenccedila do Espiacuterito e de Cristo presente em todos os tempos Pois ele eacute sempre o Cristo de agora com a plenitude de seus direitos e de seus poderes Ele eacute quem daacute legitimidade e vigor ao testemunho singular e definitivo da Escritura que por sua vez encontra seu pleno sentido na singularidade da accedilatildeo histoacuterico-salviacutefica de Jesus Cristo Ele deu ao Pai seu Corpo crucificado e dando-se a si mesmo santificou para sempre os que o receberam (cf Hb 1014 727) Ele eacute o Cristo ontem hoje e sempre (Hb 138)

SEGUNDA PARTE

Explicaccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo segundo o Decreto do Conciacutelio de Trento

Parece que a completa elucidaccedilatildeo das razotildees que levaram agrave substituiccedilatildeo do

partim-partim pelo et e consequumlentemente agrave pesquisa dos dados do debate tridentino e de sua preacute-histoacuteria aparentemente favoraacutevel agrave suficiecircncia material da Escritura [40] simplifica indevidamente este problema fazendo-nos perder de vista os proacuteprios antecedentes do Decreto do Conciacutelio de Trento

1 A concepccedilatildeo pneumatoloacutegica da Tradiccedilatildeo no esquema fundamental do Cardeal Cervini

a) O conteuacutedo Um balanccedilo histoacuterico e detalhado do problema em seu conjunto exigiria uma

pesquisa exaustiva que natildeo reduzisse o seu acircmbito como o fez Geiselmann em seu livro25 Natildeo eacute nossa intenccedilatildeo proceder a um exame minucioso do assunto no presente trabalho Aqui soacute seratildeo tratados alguns pontos do debate tridentino com o fim de ampliarmos mais o horizonte de nossas reflexotildees

Fundamental para a compreensatildeo dos debates em pauta bem como do Decreto definitivo do Conciacutelio parece-me ser o Discurso do Cardeal Legado Cervini datado de 18 de fevereiro de 1546 [41] cujas linhas gerais se patenteiam tanto no Decreto como em outras decisotildees conciliares26

Tem o discurso de Cervini o meacuterito de mostrar as linhas diretrizes do Decreto de maneira mais clara do que aparecem estas na uacuteltima redaccedilatildeo do mesmo onde elas se diluem muito devido a uma seacuterie de variadas implicaccedilotildees Eacute ainda de grande auxiacutelio para o entendimento do referido discurso uma carta dos Cardeais Legados ao Cardeal Alexandre Farnese de 28 de fevereiro de 1546 Esta carta revela conteuacutedo idecircntico ndash eacute certamente inspirada pelo mesmo Cervini ndash e oferece ainda alguns outros

25 Eacute lamentaacutevel que Geiselmann em sua anaacutelise da contribuiccedilatildeo medieval sobre este assunto se tenha apoiado apenas em argumentos de segunda matildeo portanto de valor histoacuterico discutiacutevel Queira o leitor ver minhas observaccedilotildees a este respeito in Theol-prakt Quartalschrift 1963 p224-227 As novas (e temperamentais) invectivas de Geiselmann in TThQu 144 (1964) p 31-69 em nada modificaram a minha posiccedilatildeo de vez que natildeo trazem nenhuma contribuiccedilatildeo vaacutelida ao assunto Precioso ao contraacuterio eacute o trabalho de Y CONGAR La Tradition et les traditionshellip Essai historique Paris 1960 Importante eacute tambeacutem a obra de J BEUMER Die muumlndliche uumlberlieferung als Glaubensquelle Friburgo 1962 A respeito do Conciacutelio de Trento cf sobretudo aleacutem do estudo fundamental de JEDIN o artigo de E ORTIGUES Escriture et Traditions apostoliques au Concilie de Trente in RSR 36 (1949) p 271-299 K D SCHMIDT Studien zur Geschichate des Konzilis von Trient Tubinga 1925 p 152-209 26 O discurso nos foi transmitido em duas redaccedilotildees A primeira mais curta encontra-se nas Atas do Conciacutelio in CT V 11 A segunda faz parte do diaacuterio de Massarelli (Diarium III) in CT I p484 Quanto ao conteuacutedo os dois textos se completam Na anaacutelise que aqui ensaiamos as duas versotildees satildeo comparadas entre si de modo a fazerem um todo Sobre a posiccedilatildeo de Cervini no Conciacutelio cf H JEDIN Geschichte des Konzils von Trient II Friburgo 1957 p38-40 A descriccedilatildeo do desenrolar histoacuterico dos debates acha-se em JEDIN op cit p42-82 e supomo-la conhecida do leitor de vez que serve de base para a anaacutelise teoloacutegica do Decreto tridentino

esclarecimentos Cervini sustenta no citado discurso que existem trecircs princiacutepios e fundamentos de nossa feacute

1) Os livros sagrados escritos sob a inspiraccedilatildeo do Espiacuterito Santo 2) O Evangelho que Nosso Senhor natildeo escreveu mas ensinou oralmente e

implantou nos coraccedilotildees Parte do Evangelho foi escrita mais tarde pelos Evangelistas enquanto muita coisa foi simplesmente confiada aos coraccedilotildees dos fieacuteis

3) Porque o Filho de Deus natildeo ia permanecer sempre entre noacutes enviou ele o Espiacuterito Santo que haveria de revelar os misteacuterios no iacutentimo dos fieacuteis e de ensinar agrave Igreja toda a verdade ateacute ao fim dos tempos27

[43] Numa segunda redaccedilatildeo mais detalhada do discurso estas mesmas ideacuteias satildeo

desenvolvidas mais amplamente Aiacute lemos que a Revelaccedilatildeo se apresentou de modo diferente em diversos tempos

1) Nos Patriarcas cuja feacute eacute atestada na Escritura a que chamamos de Antigo Testamento

2) Em Jesus Cristo que implantou o seu Evangelho natildeo por escrito mas oralmente natildeo in charta mas in corde Das coisas que emanaram de Cristo (quaelig a Cristo emanarunt) algumas foram escritas outras permaneceram nos coraccedilotildees dos homens (quaeligdam in cordibus hominum relicta fuerunt) Todo o Evangelho de Cristo que consta desta dupla modalidade forma (tendo como primeiro princiacutepio o Antigo Testamento) o secundum prindipium fidei nostraelig

3) Daiacute surge o terceiro princiacutepio (tertium autem) porque o Filho de Deus natildeo iria permanecer sempre entre noacutes enviou ele ao mundo o Espiacuterito Santo que haveria de explicar os misteacuterios de Deus e tudo o que fosse ainda obscuro para os homens28 De modo semelhante a citada carta ao Cardeal Farnese fala de dois passos (due

passi) Um eacute que a Revelaccedilatildeo de Nosso Senhor natildeo foi totalmente escrita mas permaneceu em parte contida nos coraccedilotildees dos homens e na Tradiccedilatildeo da Igreja O outro [43] passo consiste em confirmar ldquoquello che egrave suggerito lo Spirito Santo in la Chiesa maxime medianti i concilij doppo lAscensione in cielo del Signorerdquo29

Notamos logo que contrariamente ao que esperaacutevamos natildeo dois mas trecircs satildeo os princiacutepios apontados a Escritura o Evangelho e a Revelaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

27 CT V 11 helliptria esse principia et fundamenta nostrae fidei primum libros sacros secundum esse evangelium quod Christus Dominus Noster non scripsit sed ore docuit et in cordibus illud plantavit cujus evangelii nonnulla evangelistaelig scripto mandarunt multa quoque relicta sunt in cordibus hominum Tertium quia non semper filius Dei corporaliter nobiscum mansurus erat misit Spiritum Sanctum qui in cordibus fidelium secreta Dei revelaret et ecclesiam quotidie et usque consummationem saeligculi doceret omnem veritatem et si quid in mentibus hominum dubii occurrisset declararet 28 CT I 484 Digna de nota eacute ainda a foacutermula contida na paacutegina 48514-16 nihil tamen inter scripturas sacras et apostolicas traditianes differt illaelig enim scriptaelig hae per insinuationem habentur utraeque tamen a Spiritu Sancto eodem modo emanataelig Confira-se com CT V 11 19 ab eodem Spiritu et illos (scilicet libros) et istas (scilicet traditiones) descendisse 29 CT X 373

Eacute portanto necessaacuterio observar que sob o termo ldquoEscriturardquo se entende o Antigo Testamento e que aleacutem deste (que eacute Escritura em sentido proacuteprio) aparece como segundo princiacutepio o Evangelho apresentaccedilatildeo do Cristo-evento O Evangelho por sua vez abrange o que estaacute escrito e o que natildeo estaacute escrito mas sim apenas insculpido no coraccedilatildeo dos crentes Deste modo o segundo princiacutepio representa uma vantagem pneumaacutetica sobre o que estaacute escrito o Evangelho eacute nesta concepccedilatildeo algo diferente da letra (Escritura) e soacute em parte vem escrito (Isto natildeo deve ser entendido no sentido de divisatildeo das verdades da feacute fenocircmeno denunciado ldquocom horrorrdquo por Geiselmann Ao contraacuterio Entenda-se apenas no sentido de diferente grau de dignidade no modo de exprimir-se) Em rigor o Evangelho como tal soacute pode ser escrito em parte se considerarmos a sua essecircncia

Finalmente ndash o que eacute muito de se admirar ndash segue-se como terceiro princiacutepio a accedilatildeo visiacutevel do Espiacuterito Santo em todo o tempo da Igreja

Admitimos portanto que o que noacutes geralmente chamamos de Tradiccedilatildeo natildeo aparece aqui como um soacute princiacutepio Biparte-se antes em dois princiacutepios intimamente ligados o ldquoEvangelhordquo princiacutepio apenas em parte identificaacutevel com a Escritura e a accedilatildeo do Espiacuterito Santo no tempo da Igreja Ademais podemos observar que a Escritura do Novo Testamento natildeo aparece como um princiacutepio ao lado da Revelaccedilatildeo apostoacutelica Muito menos como [44] eacute o nosso caso se apresenta a Escritura neotestamentaacuteria juntamente com a veterotestamentaacuteria como uma grandeza uacutenica uma ldquoEscriturardquo soacute agrave qual se poderia contrapor a ldquoTradiccedilatildeordquo como uma segunda grandeza O Novo Testamento em seu conjunto aparece como um segundo e mais amplo princiacutepio ou seja o Evangelho que como tal se opotildee de um lado ao Antigo Testamento e de outro agrave projeccedilatildeo histoacuterica do tempo da Igreja Sua unidade interna eacute evidentemente mais forte e importante do que a sua divisatildeo em escrito e natildeo-escrito Assim o Evangelho como um soacute princiacutepio pode ser contraposto ao Antigo Testamento a despeito desta dupla formalidade A impossibilidade de se representar o Novo Testamento como Escritura impossibilidade esta demonstrada por Satildeo Paulo e pelos primeiros seacuteculos cristatildeos eacute aqui claramente revelada

Ainda uma observaccedilatildeo relativa ao texto a que vimos nos referindo Em nenhum dos dois pontos por noacutes citados no estudo da Tradiccedilatildeo isto eacute nem no elemento contido no primeiro nem no apresentado no terceiro princiacutepio figura a Tradiccedilatildeo como verbal Em ambos os casos ao contraacuterio trata-se mais da Tradiccedilatildeo real com prevalecircncia da realidade sobre as palavras que a atestam Este fato que estaacute claro no terceiro princiacutepio o pneumatoloacutegico vale tambeacutem em relaccedilatildeo agrave implantaccedilatildeo do Evangelho nos coraccedilotildees contida no segundo princiacutepio Tal implantaccedilatildeo vai muito aleacutem do que se encontra expresso na letra da Escritura

Que papel tenham estas ideacuteias exercido nas discussotildees do Conciacutelio pode-se concluir tambeacutem das auctoritates citadas por Cervini entre as quais figuram Jo 16 12 (hellipSpiritus Sanctus suggerethellip) e Fl 3 15 (Quicumque perfecti sumus haeligc sentiamus et si quid aliter sentitis haeligc quoque Deus vobis revelabit) Ambos estes textos satildeo de teor acentuadamente [45] pneumatoloacutegico-presencial30 Que tais ideacuteias natildeo eram

30 CT V 14 e 15 Um exame profundo das auctoritates quer da Escritura quer entre os Santos Padres que neste particular satildeo favoraacuteveis agrave Tradiccedilatildeo seria em si conclusivo para a elaboraccedilatildeo do conceito

estranhas aos Padres conciliares deduz-se ainda de uma seacuterie de outras referecircncias Assim ouvimos o Bispo de Aqui dizer que aleacutem da Sagrada Escritura existe muita coisa na Igreja de Deus que vindo dos Apoacutestolos e passando de geraccedilatildeo a geraccedilatildeo chegou ateacute noacutes assim como muitas outras quaelig etsi scripta Apostoli nobis non reliquerunt per Spiritus Sancti revelationem nobis (tradita) sunt (Tradita estaacute aqui por revelata) 31 Partindo daiacute se poderia descrever a Tradiccedilatildeo justamente como o componente pneumatoloacutegico do Cristo-evento b) A influecircncia do esquema de Cervini em diversas decisotildees conciliares

Eacute verdade que esta concepccedilatildeo tripartida aparece muito atenuada no Decreto

oficial sobre a Tradiccedilatildeo Que poreacutem em suas linhas fundamentais natildeo tenha ela sido de modo nenhum [46] abandonada mostram-no duas outras passagens nas quais o Conciacutelio faz uso por assim dizer in actu das ideacuteias aqui expressas32 Assim na Introduccedilatildeo ao Decreto sobre a Eucaristia (Denz 873) se lecirc Sacrosancta Synodus sanamhellipdoctrinam tradens quam semper catholica Ecclesia ab ipso Jesu Christo Domino Nostro et eius apostolis erudita atque a Spiritu Sancto illi omnem veritatem in dies suggerente (Jo 1416) edocta retinuithellip

Aqui a accedilatildeo proacutepria do Conciacutelio eacute descrita como tradere e a este tradere eacute atribuiacutedo um duplo fundamento De um lado o ensino de Jesus e dos Apoacutestolos (Note-se que este ponto corresponde ao Evangelho segundo a concepccedilatildeo de Cervini E de certo modo tambeacutem pela citaccedilatildeo de Jesus e dos Apoacutestolos se reconhece a dupla modalidade do Evangelho como escrito e como inserido nos coraccedilotildees) De outro lado o ensino dado pelo Espiacuterito Santo que conduz agrave verdade in dies isto eacute no de correr do tempo futuro

O outro texto que pode ser aduzido aqui como prova do que afirmamos encontra-se no Preacircmbulo do Decreto sobre o Purgatoacuterio (Denz 983) Aiacute se lecirc hellipCatholica Ecclesia Spiritu Sancto edocta ex Sacris Litteris et antiqua Patrum traditione in sacris Conciliis et novissime in hac Synodo docuerit A descriccedilatildeo da accedilatildeo proacutepria do

aqui exposto H HOLSTEIN procurou fazer o cotejo destas auctoritates e fecirc-lo de modo admiraacutevel em seu artigo La Tradition dapregraves le Concile de Trente (RSR 47 1959 p367-390 e em particular para o caso em questatildeo a p375) Ele encontra nos textos estudados duas linhas de tendecircncias A linha de Santo Irineu para a qual o testemunho dos Apoacutestolos eacute o de sua personalidade de sua vida e de seu ofiacutecio Aleacutem desta o grupo composto de Tertuliano Cipriano Basiacutelio e Agostinho forma uma corrente que se poderia denominar ldquocerimonialrdquo Oriacutegenes se enquadra em ambos os grupos Existe entre os autores estudados uma seacuterie de textos que se referem agraves observationes consuetudines institutiones e que levam a entender-se a Tradiccedilatildeo neste mesmo sentido Aiacute se vecircem tambeacutem textos que sublinham o aspecto natildeo-escrito do Evangelho enquanto insculpido no coraccedilatildeo dos fieacuteis e aleacutem disso textos que apontam a Igreja como o ldquolugarrdquo da verdade cristatilde 31 CT I 483 (18 de fevereiro de 1546) Em 26 de fevereiro (CT V 18) encontramos Cervini a tratar de novo deste assunto Cf tambeacutem um pronunciamento do Bispo de Fano (CT V 10) nestes termos Cum jam receperimus Scripturas Sacras necessario recipiendaelig sunt traditiones quaelig ab eodem Spiritu Sancto quo scripturaelig dictataelig sunthellip 32 Disto me adverti pela primeira vez atraveacutes de um estudo realizado sob a minha orientaccedilatildeo por CHR LIMBACR a quem sou devedor de muitas informaccedilotildees bibliograacuteficas

Conciacutelio como tradere encontra-se ainda nas declaraccedilotildees sobre o Sacramento da Extrema-Unccedilatildeo (Denz 910)

Finalmente a triacuteplice divisatildeo deixa-se insinuar nas entrelinhas do Decreto sobre a Tradiccedilatildeo embora obscurecida e diluiacuteda por uma seacuterie de acreacutescimos e citaccedilotildees a ele adicionados por outros motivos O Decreto da Tradiccedilatildeo com efeito [47]

1) Fala do Evangelho prometido pelos Profetas na Escritura e refere-se a esta em sentido estrito quer antes quer depois do Antigo Testamento

2) Fala da promulgaccedilatildeo por Cristo do Evangelho que foi transmitido pelos Apoacutestolos sob dupla forma oral e escrita Desta maneira o que natildeo ocorre no exemplo de Cervini aparece aqui antes de tudo o componente pneumatoloacutegico unido com o componente apostoacutelico a ponto de se distinguirem duas modalidades de Tradiccedilatildeo apostoacutelica a que remonta a Cristo e a que remonta ao envio do Espiacuterito Santo Pode-se assim estabelecer que em oposiccedilatildeo ao esquema de Cervini haacute um certo processo de historicizaccedilatildeo que salienta a relaccedilatildeo com o comeccedilo histoacuterico e igualmente parece deslocar o acento da tradiccedilatildeo real para a verbal

3) No epiacutelogo desta parte do Decreto da Tradiccedilatildeo que vimos analisando de novo eacute considerada a ideacuteia da Sagrada Escritura O conceito de Tradiccedilatildeo eacute entatildeo formulado em definitivo e descrito como vel oretenus a Christo vel a Spiritu Sancto dictatas et continua successione in Ecclesia catholica conservatas A referecircncia aos Apoacutestolos eacute omitida Pode-se na verdade considerar tudo isto como uma volta ao que foi dito antes Evidentemente a tradiccedilatildeo ditada pelos Apoacutestolos eacute citada de novo (A expressatildeo continua successione insinua-o) Contudo permanece sempre ainda certa indeterminaccedilatildeo ficando aberta a possibilidade de se encontrar aqui o vestiacutegio do terceiro componente de Cervini o princiacutepio pneumaacutetico propriamente dito Eacute tambeacutem claro que esta ideacuteia eacute discreta sendo adotada uma posiccedilatildeo mais acentuadamente histoacuterica Se agora lanccedilarmos os olhos sobre o que vimos considerando ateacute aqui surgiratildeo

inevitavelmente perguntas qual eacute realmente o sentido proacuteprio da concepccedilatildeo pneumatoloacutegica Como poderia ser perfeitamente entendida a ideacuteia a noacutes estranha de uma revelatio prolongada no tempo em face da unicidade e do caraacuteter [48] histoacuterico da Revelaccedilatildeo que evidentemente era conhecido tanto de Cervini quanto dos Santos Padres e teoacutelogos medievais33

Antes de examinarmos isto devemos esclarecer rapidamente os principais motivos que inspiraram o Decreto tridentino sobre a Escritura e a Tradiccedilatildeo deixando nele um tanto encoberta a concepccedilatildeo pessoal de Cervini Que opiniotildees de teoacutelogos teratildeo intervindo aqui chegando a ser em parte impressas no texto definitivo que resultou do cotejo de muitos pronunciamentos diversos Uma exposiccedilatildeo detalhada deste ponto exorbitaria do acircmbito de nossa anaacutelise Contentemo-nos com umas poucas observaccedilotildees sumaacuterias 33 Sobre este assunto tentei fazer um breve comentaacuterio no meu trabalho ldquoOffenbarung-Schrift-Uberlieferungrdquo in TThZ 67 (1958) p13-27 Cf J BEUMER ldquoDer theoretische Beitrag der Frnhscholastik zum Problem des Dogmenfortschrittsrdquo in ZkTh 72 (1952) p205-226 J de CHELLINCK Pour lrsquohistoire du mot ldquorevelarerdquo in RSR 6 (1916) p149-157

2 Relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a vida da Igreja

em diversas passagens do debate tridentino

Uma primeira seacuterie de motivos entre os quais se compreendem diversos pronunciamentos agraves vezes muito contrastantes em seu aparato exterior patenteia-se na ideacuteia de tradiccedilotildees expressa no Decreto de duas maneiras a) - per manus traditaelig ad nos usque pervenerunt b) - continua successione in Ecclesia catholico conservatas

O que se ocultaraacute sob estas duas foacutermulas que o historiador de hoje tem dificuldades em aceitar justamente por causa do historicismo nelas impliacutecito Podemos dizer que um decisivo papel exerceu aqui o pensamento que sempre aparecia nos debates a saber que as tradiccedilotildees satildeo variaacuteveis que muitas delas foram abolidas pelos Apoacutestolos e que por outro lado se [49] introduziram tradiccedilotildees eclesiaacutesticas que natildeo mais seriam abolidas34 Esta ideacuteia de Tradiccedilatildeo de certo modo se torna clara no tratado escrito sobre o mesmo assunto por Seripando para uso dos Padres Conciliares Seripando fala das Tradiccedilotildees escritas inseridas na Escritura como as claacuteusulas de Tiago o costume de as mulheres se cobrirem com um veacuteu a legislaccedilatildeo sobre o matrimocircnio contida em 1Cor 7 etc E o autor adverte que estas praacuteticas foram abolidas Isto porque embora associadas agrave palavra de Deus na Escritura dela ldquomuito diferemrdquo pois a palavra divina [50] de modo nenhum poderia ser abolida A estas tradiccedilotildees

34 Cabe aqui aduzir uma nova intervenccedilatildeo de Cervini datada de 26 de fevereiro de 1546 (CT I 33 e V 18) onde ele diz que nem todas as tradiccedilotildees procedentes dos Apoacutestolos devem ser conservadas mas somente as que ab Ecclesia receptaelig ad nos usque pervenerunt (V 18) Esta afirmaccedilatildeo anterior agrave formulaccedilatildeo dogmaacutetica feita pelo Concilio deve igualmente ser tida na conta de um autecircntico comentaacuterio do Decreto Aiacute se acentua como condiccedilatildeo essencial das tradiccedilotildees a receptio ecclesiaelig Vem ainda referida uma intervenccedilatildeo do Bispo de Bertinoro em data de 23 de marccedilo (I p 523) na qual ele sublinha que as tradiccedilotildees escritas por vezes foram mudadas Jaacute entre as natildeo-escritas umas foram mudadas e outras natildeo como por exemplo o rito de adicionar aacutegua ao vinho a Crisma a confissatildeo auricular O Bispo de Bertinoro acrescenta que por outro lado alguns pontos existem que permaneceram inteiramente inalterados tais como a crenccedila no descensus ad inferos na virgindade perpeacutetua de Maria a substituiccedilatildeo da observacircncia do saacutebado pela do domingo Temos depois um pronunciamento do Bispo de Bitonto datado de 27 de marccedilo (I 39) Este bispo era de parecer que algumas coisas foram transmitidas pelos Apoacutestolos com a finalidade de serem perpetuamente conservadas (como pertencentes ao depoacutesito da feacute) outras caiacuteram em desuso (como as claacuteusulas de Tiago) e outras enfim foram apenas aconselhadas Assim mesmo na Escritura algumas coisas haacute que foram escritas mas natildeo recebidas em uso por serem mateacuteria de mero conselho Por exemplo ldquose algueacutem te pedir a tuacutenica daacute-lhe tambeacutem o paacutelio se algueacutem te esbofetear numa face oferece-lhe tambeacutem a outrardquo Sem duacutevida excelente ilustraccedilatildeo do sermatildeo da montanha Finalmente consideraccedilotildees idecircnticas podemos encontrar na obra citada de LEJAY Eis outra amostra tirada do discurso de 23 de fevereiro (CT V 13) Nam illaelig (scil traditiones) quaelig ad fidem pertinent eadem sunt recipiendaelig auctoritate qua recipitur evangelium alia autem non ita eum earum plurimaelig immutataelig fuerint ut de bigamis de esu sanguinis et similia De modo semelhante aliaacutes fala tambeacutem Bonuccio (I 525 a 23 de marccedilo de 1546 ecclesia traditiones apostolorum quandoque mutavit verbum autem Dei nunquam mutavit neque mutare potest

Seripando opotildee as natildeo referidas na Biacuteblia e que ora satildeo apostoacutelicas ou oriundas de Conciacutelios universais e aceitas por toda a Igreja ora satildeo particulares e muito variaacuteveis35

Este texto nos leva a uma surpreendente conclusatildeo para Seripando e muitos outros Padres tridentinos36existem tradiccedilotildees na Escritura ldquoTradiccedilatildeordquo natildeo significa o natildeo-escrito Existe quer dentro da Escritura quer fora dela Isto nos conduz a outra pergunta em que consiste para os referidos Padres a essecircncia da tradiccedilatildeo se o que a constitui natildeo eacute o fato de natildeo ser escrita37 Em outros termos como pode a tradiccedilatildeo ser definida positivamente se ela natildeo pode ser suficientemente determinada pela ideacuteia negativa de algo natildeo-escrito

Haacute uma seacuterie de respostas para esta pergunta O proacuteprio Seripando daacute a seguinte definiccedilatildeo Traditiones hoc est Apostolorum seu sanctorum Patrum sanctae et salutares constitutiones38 Mais clara ainda eacute a afirmaccedilatildeo de Cervini citada por Massarelli A objeccedilatildeo do Bispo de Chioggia que aduzia a opiniatildeo de Agostinho de que tudo o que eacute necessaacuterio para a salvaccedilatildeo estava escrito na Biacuteblia respondia Cervini da seguinte maneira Verba illa (isto eacute de Santo Agostinho) formaliter intelligi debent scilicet ad fidem accipiendam ut salvi fiamus Quo vero ad mores et christianam vitam instituendam certo non omnia scripta sunt

[51] E de novo recorre agraves provas tiradas de Jo 1526 e 1426 E indica o princiacutepio pneumatoloacutegico39 O que eacute mais importante eacute que a Tradiccedilatildeo se refere agrave institutio vitaelig agrave presenccedila atuante da Palavra revelada na existecircncia cristatilde Tradiccedilatildeo eacute noutros termos a eficaacutecia da palavra de Deus Sem ela a palavra ficaria esteacuteril 35 Seripando De traditionibus (fevereiro ou marccedilo de 1546) CT XII p517-521 e principalmente a p 521 As expressotildees desta uacuteltima paacutegina chocam-se com a ideacuteia de Cervini sobre a receptio ecclesiaelig 36 Cf o texto citado na nota 11 37 No texto definitivo do Decreto esta ideacuteia natildeo aparece mais Aqui poreacutem com esta primeira designaccedilatildeo expliacutecita da Tradiccedilatildeo vem expressamente acentuado o contraste entre in libris scriptis et sine scripto traditionibus Na segunda redaccedilatildeo o sentido expliacutecito da palavra Tradiccedilatildeo natildeo eacute tatildeo exclusivo Contudo apresenta igual matiz ao se confrontarem as expressotildees omnes libroshellipnec non traditiones ipsas Portanto a ideacuteia positiva da Tradiccedilatildeo que serve de base a esta anaacutelise natildeo deixou de influenciar na redaccedilatildeo do Decreto 38 CT XII 517 39 CT I 494 (26 de fevereiro de 1546) A citada palavra de Santo Agostinho teve o seu papel a desempenhar na discussatildeo em curso Seripando por exemplo a ela se referiu (De traditionibus CT XII 521 47-53) Pensandum denique ne in traditionibus externis vera religio et salutis spes statuatur de quibus Augustinus Omnia quaelig pertinent ad veram religionem quaeligrendam et tenendam divina Scriptura non acuit Conceda-se que nem tudo foi escrito (veja-se Jo 2125) Todavia electa sunt autem quaelig scriberentur quaelig saluti credentium sufficere videbantur Mais do que nos debates do tridentino encontramos aqui um verdadeiro postulado dos Reformadores ldquonatildeo adotar costumes exteriores mas buscar os meios definitivos de salvaccedilatildeo na palavra da Escriturardquo A ldquosuficiecircnciardquo da Escritura de que aqui se fala eacute na verdade algo diverso da suficiecircncia material da mesma Escritura defendida por Geiselmann em sentido muito mais radical Infelizmente ainda natildeo se quis levar na devida consideraccedilatildeo o texto de Santo Agostinho (CT I 494 sugere De doctrina christiana II 9 e De pecc mero et rem II 59) Muito apropriadas nesta ordem de ideacuteias satildeo as observaccedilotildees de H SCHAUF ldquoSchrift und Traditionrdquo in Antonianum 39 (1964) p200-209 feitas no chamado Encontro de Duumlsseldorf Nos textos citados por Schauf com base em Agostinho eacute afirmada a suficiecircncia da Escritura para a salvaccedilatildeo Eacute contudo contestada a sua suficiecircncia para a Igreja em geral De fato esta alternativa parece muito mais vaacutelida e fundamental agrave luz dos postulados dos Reformadores do que a alternativa entre a suficiecircncia ou insuficiecircncia material da Escritura

Na mesma linha de ideacuteias seguem-se duas outras seacuteries de pronunciamentos Vimos na introduccedilatildeo agrave parte anterior que a discussatildeo dogmaacutetica da ideacuteia de

Tradiccedilatildeo foi em parte prejudicada pela questatildeo do meacutetodo a seguir no Conciacutelio dever-se-ia abordar primeiro a reformatio a reforma praacutetica da Igreja como queria o ldquoKaiserrdquo Ou primeiro discutir a questatildeo dogmaacutetica como preferia o Papa40

[52] Este problema do meacutetodo embora resolvido no debate que entatildeo surgiu natildeo afetou diretamente a questatildeo da Tradiccedilatildeo como tal Mas como de fato estas duas questotildees ficaram ligadas entre si daiacute resultou que muitos oradores transformaram a questatildeo do meacutetodo (se se deveria falar dos abusos ou da Tradiccedilatildeo) em parte de sua argumentaccedilatildeo em torno do assunto em pauta41 O problema abusus e o problema Traditio ficaram de tal maneira associados na ocasiatildeo que pareciam formar no fundo um soacute assunto Por isso os oradores ora falavam em sentido positivo ora se pronunciavam em sentido negativo Isto correspondia tambeacutem ao propoacutesito reformista do Conciacutelio as traditiones representavam os abusus aos quais a Igreja se opunha Os Padres estavam cocircnscios de que condenar as traditiones era condenar Os usus ecclesiaelig o modo como a Igreja vivia a sua vida naquela eacutepoca

A outra seacuterie de pronunciamentos que se inclinavam ao mesmo sentido encontramo-la nas proposiccedilotildees que a auctoritas da Igreja apresenta como definitivas indicando uma iacutentima relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a institutio christiana 42

[53] Podemos agora retomar ao nosso ponto de partida e dar resposta agrave pergunta que propriamente significa a foacutermula ad nos usque pervenerunt Objetivamente natildeo se trata aqui de um historicismo que a foacutermula parece expressar Ao contraacuterio Trata-se da fidelidade perseverante da Igreja agrave institutio vitaelig christianaelig da legiacutetima forma de vida cristatilde em concreto no tempo presente da Igreja da institutio christiana que coloca a Escritura em primeiro lugar e que como tal isto eacute como vida decorrente da Escritura eacute fundamentalmente apostoacutelica embora tambeacutem sujeita a mudanccedilas como tudo o que eacute vivo

3 A Tradiccedilatildeo e o dogma eclesiaacutestico

40 Sobre o debate em torno da questatildeo do meacutetodo cf mais uma vez JEDIN op cit p9-82 e outras 41 Assim jaacute no discurso de Cervini antes analisado (CT I 484) no qual ele recorda o dilema do Conciacutelio se nos voltarmos contra as tradiccedilotildees ficaratildeo admirados os Padres Conciliares quasi reformationem fugiamus si ipsam reformationem sumimus iterum objicient traditiones relinquendas non esse Idecircntica era a situaccedilatildeo em que se encontrava o Bispo de Astorga nas duas intervenccedilotildees que fez no dia 23 de fevereiro de 1546 (CT V 13 e 19) segundo Seripando (I 484) helliptraditiones prius pertractandas consulit tantam enim conformitatem abusus qui ex sacris libris descendunt cum iis qui a traditionibus orti sunt habent ut sacris libris et traditionibus absolutis duo illa abusuum genera simul pertractari valeant Segundo Bonuccio (I 484) antes de tudo dever-se-ia tratar das Sagradas Escrituras dos cacircnones apostoacutelicos dos Conciacutelios gerais e das decretais pontifiacutecias Hisque ilusceptis ad abusus ex eisdem dependentes devenire 42 Assim principalmente de acordo com Afonso de Castro (CT I 484) Quoniam ultra traditiones apostolicas ecclesiae auctoritatem habemus quaelig ecclesiaelig auctoritas tonta apud nos est ut aliqui eam maioris roboris quam sacros libros esse sentiant Cf igualmente CT I 491 45 Na mesma linha pode-se ver uma seacuterie de pronunciamentos na citada obra de LEJAY Cf CT XII 524 (Tratado De traditionibus ecclesiaelig fevereiro ou marccedilo de 1546)

Uma segunda seacuterie de motivos eacute expressa no Decreto pela foacutermula traditiones tum ad fidem tum ad mores pertinentes Se como vimos a ideacuteia de Tradiccedilatildeo aparece muito limitada naquilo que os Padres conciliares chamam consuetudines observationes institutiones por outro lado o Procurador do Cardeal de Augsburgo Claudio Lejay SJ se fez o porta-voz de uma expressatildeo que em oposiccedilatildeo agraves traditiones caeligremoniales estabeleceu justamente o sentido da tradiccedilatildeo contida na feacute Seu tratado sobre a Tradiccedilatildeo composto para uso dos Padres conciliares inclui tambeacutem a foacutermula que foi adotada pelo Conciacutelio Aiacute se diz Denique multas veritates tum ad fidem tum ad mores pertinentes Ecclesia novit quas Scriptura aperte et expresse non continet Ele cita como exemplos as palavras persona essentia trinitas no Tratado da Santiacutessima Trindade consubstantialitas na Cristologia do Logos duas naturezas uma soacute Pessoa referentes ao dogma definido pelo Conciacutelio de Calcedocircnia E ainda Cristo Filho uacutenico de Maria duas vontades na uacutenica Pessoa de Cristo uma alma racional aleacutem do espiacuterito divino em Cristo Ana matildee de Maria o costume de fazer sinais da cruz a santificaccedilatildeo do domingo a maneira de rezar com face voltada [54] para o Oriente tudo isto ideacuteias e fatos da tradiccedilatildeo conciliar e da piedade cristatilde43

Cervini que aprovou o discurso de Lejay de 23 de fevereiro de 154644 pocircde dificilmente conciliar esta posiccedilatildeo com a sua expressa na jaacute citada carta ao Cardeal Farnese onde como vimos ele diz que o Espiacuterito Santo falou na Igreja e depois da Ascensatildeo do Senhor fala ainda maxime medianti i concilii45 Ele aiacute viu publicamente sublinhado o fato de que aquele ldquomaisrdquo que a Igreja viva representa em relaccedilatildeo agrave palavra meramente escrita natildeo se referia e natildeo se refere apenas agrave vita instituenda ou como ele prefere agrave caeligremonialia Refere-se tambeacutem agrave essentialia fidei que antes de tudo plenamente se expressam na Tradiccedilatildeo Tambeacutem aqui como se vecirc o interesse dominante natildeo estaacute na apresentaccedilatildeo historicista do assunto a partir do iniacutecio da Igreja mas na ideacuteia de que a influecircncia da Tradiccedilatildeo sobretudo atraveacutes da praxe conciliar eacute de fundamental importacircncia para a feacute para a doutrina crida e natildeo apenas para a piedade viva ou a caeligremonialia

4 O sentido do Decreto tridentino

Se recapitularmos o que ateacute agora dissemos veremos que no conjunto facilmente se podem reconhecer trecircs diferentes concepccedilotildees teoloacutegicas unidas entre si no texto definitivo do Decreto sobre a Tradiccedilatildeo Unidas mas natildeo equiparadas umas agraves outras Pelo contraacuterio apesar de sua grande diferenccedila foram elas apenas [55] mais ou menos justapostas e de novo por forccedila de uma tendecircncia comum relacionadas entre si

1 A concepccedilatildeo de Cervini que designamos como pneumatoloacutegica Com sua doutrina sobre os trecircs principia fidei insiste ele no caraacuteter dinacircmico do Cristo-evento

43 CT XII 523 LEJAY baseia-se evidentemente em listas de tradiccedilotildees confeccionadas naquele tempo (Cf ECK DRIEDO CANO BOTO NOGAROLA) Cf a este respeito Y CONGAR ldquoTraditions apostoliques non eacutecrites et suffisance de lEscrituresrdquo in Istina 6 (1959) p219-306 e principalmente a paacutegina 289 44 CT V 14 45 CT X 373

presente na Igreja Entende assim a Tradiccedilatildeo primariamente como a realidade espiritual da institutio vitaelig christianaelig

2 A concepccedilatildeo que podemos chamar de cerimonial Esta entende a Tradiccedilatildeo essencialmente como a seacuterie de consuetudines existentes ao lado da feacute como os usus ecclesiaelig que os Reformadores falsamente pretendem abolir como abusus Esta concepccedilatildeo chega a condenar a dignidade e Antiguumlidade apostoacutelica das tradiccedilotildees Sua ideacuteia eacute limitada pelo ad nos usque pervenerunt que inclui possibilidade de variar da parte das tradiccedilotildees donde a necessidade de reduccedilotildees Com os termos pervenire e conservare a recepccedilatildeo por parte da Igreja eacute considerada criteacuterio adicional ao lado da Antiguumlidade

3 A concepccedilatildeo que talvez possamos denominar dogmaacutetica Em oposiccedilatildeo agrave fixidez da ideacuteia de Tradiccedilatildeo reduzida agrave consuetudo salienta esta terceira hipoacutetese a extensatildeo do fenocircmeno Tradiccedilatildeo tambeacutem ao acircmbito da fides

Estas trecircs concepccedilotildees deram forma ao texto do Decreto de tal modo que as suas

linhas mestras derivam de Cervini e todo o texto deve ser entendido agrave luz de suas ideacuteias Contudo em duas passagens isto eacute no pervenerunt e no conservatas haacute influecircncia da segunda concepccedilatildeo enquanto no tum ad fidem tum ad mores haacute influecircncia da terceira

Em face destas trecircs concepccedilotildees das quais na realidade existem diversas variantes que tomadas em conjunto satildeo a expressatildeo das ideacuteias dominantes adotadas aparecem as teses de Bonuccio e de Nacchianti tatildeo postas em evidecircncia por Geiselmann como sentenccedilas contraacuterias De fato o parecer de Bonuccio claramente [56] se opotildee agrave segunda concepccedilatildeo (contra a supervalorizaccedilatildeo das consuetudines natildeo per pietatis affectus) ao passo que Nacchianti se levanta antes contra a terceira posiccedilatildeo e salienta a suficiecircncia da feacute recebida por meio da Escritura46

Seria de notar-se ainda que as concepccedilotildees segunda e terceira tecircm algo em comum Ambas opotildeem agrave visatildeo pneumatoloacutegica de Cervini da salvaccedilatildeo sempre presente uma visatildeo mais historicista relacionada com o prolongamento da salvaccedilatildeo operada uma soacute vez ou seja o ἑφάπαξ Na realidade deve-se dizer que embora de um lado tanto a visatildeo presencial de Cervini como tambeacutem a visatildeo historicista do outro grupo se consideradas isoladamente cada qual de per si sejam perigosas se natildeo insustentaacuteveis 46 Aliaacutes de acordo com uma informaccedilatildeo de Cervini parece que o Bispo de Chioggia finalmente renunciou agrave sua tese da suficiecircncia da Escritura na qual se inclinava a recusar as tradiccedilotildees Na carta de Cervini ao Cardeal Farnese de 27 de fevereiro de 1546 lemos hellip Chioggia che (quasi quasi) voleva dire queste traditioni essere superflue perorando che tutto quello che era necessario alla salute era scritto et allegando etiam S Agostino sopra lultimo capitulo di S Giovanni a questo proposito Pure per non poter negare che molte cose appartenenti almeno alli sacramenti non ci fussero venute ex tra ditione et per consequente che non tutte le cose necessarie alia nostra salute erano scritte poiche ebbe fatte molte distintioni concluse che ancor lui accettava queste ldquoche in la chiesa fusse qualque traditione apostolica non scrittardquo (et con queste parole diceva che se ne facesse il decreto) credo che molti sono restati scandalizati di lui (CT X Nr 315 paacutegs 399 411) Cf tambeacutem CT I 494 nota 9 e 495 nota 2 CT V 18 nota 5 e 19 e nota 1 O mesmo protesto que aparece contra Nacchianti manifesta-se tambeacutem na observaccedilatildeo de Massarelli Este chega a chamar aquele de novarum rerum cupidus (1 494 18) e esclarece que reprehensus est a multis (1 494 22) Diante disto eacute de todo destituiacuteda de creacutedito a importacircncia que Geiselmann lhe atribui mesmo se abstrairmos de outras razotildees jaacute conhecidas sobre as quais natildeo precisamos insistir

de outro lado pelo menos tornam possiacutevel uma exata visatildeo do conjunto devido agrave sua muacutetua confluecircncia e limitaccedilatildeo No texto atual estatildeo presentes embora pouco nitidamente ambos os pontos de vista o elemento presencial e o ἑφάπαξ Conveacutem que entendamos assim o texto de modo a considerarmos [57] ambos estes aspectos como essenciais Consequumlentemente reconheceremos que ambos pertencem constitutivamente agrave realidade da vida cristatilde e portanto tambeacutem agravequela parcela do Cristianismo a que damos o nome de Tradiccedilatildeo Estes dois elementos satildeo a presenccedila do Espiacuterito Santo e o seu nexo com o fato singular da salvaccedilatildeo ocorrido uma soacute vez por todas na histoacuteria dos homens

Assim se acharaacute finalmente a resposta agrave pergunta de corno noacutes devemos entender o parecer do Conciacutelio de Trento A primeira e mais importante conclusatildeo parece-me ser o fato de o Conciacutelio ter visto muito claramente o nexo entre Tradiccedilatildeo e Revelaccedilatildeo A seguir elaborou sempre em consonacircncia com a tradiccedilatildeo patriacutestica e medieval um conceito de Revelaccedilatildeo muito menos material do que o que seraacute adotado mais tarde pela teologia dos tempos modernos Somente assim se deve conceber a ideacuteia da Revelaccedilatildeo do Espiacuterito Santo na Igreja Partindo do ramo nitidamente patriacutestico da teologia medieval tatildeo francamente acolhido no discurso de Cervini deveria ser muito menos categoacuterica a opiniatildeo que coloca o teacutermino da Revelaccedilatildeo na morte do uacuteltimo Apoacutestolo Naturalmente esta questatildeo natildeo pode ser aqui estudada com maiores detalhes A sua soluccedilatildeo como entatildeo se apresentava aos teoacutelogos poderia ser hoje impostada apelando-se para as categorias da teologia atual Segundo esta podemos dizer que a Revelaccedilatildeo estaacute encerrada do ponto de vista de seu princiacutepio material Todavia estaacute e continua presente em sua realidade eficaz Noutros termos a Revelaccedilatildeo tem eacute verdade o seu ἑφάπαξ enquanto ela se realizou num determinado dia na Histoacuteria Entretanto ela tem tambeacutem o seu ldquohojerdquo permanente isto eacute o que foi uma vez por todas realizado na feacute da Igreja permanece sempre vivo e operante Assim a feacute cristatilde natildeo se volta apenas para o passado Abrange tambeacutem o presente e o futuro Eacute verdade que a posterior materializaccedilatildeo historicista da ideacuteia de Revelaccedilatildeo aparece jaacute claramente insinuada nos debates tridentinos corno um fato previsto mas ainda [58] natildeo consumado embora talvez se possa dizer que nos textos conciliares ficou definitivamente consagrada a sua aceitaccedilatildeo

Finalmente acrescentemos ainda que com base nos debates do Conciacutelio podemos estabelecer quatro elementos da ideacuteia de Tradiccedilatildeo 1 O aspecto natildeo-escrito da Revelaccedilatildeo ou do Evangelho contido na Biacuteblia e no coraccedilatildeo dos fieacuteis 2 A palavra do Espiacuterito Santo no decorrer de todo o tempo da Igreja

3 A atividade da Igreja nos Conciacutelios 4 A Tradiccedilatildeo lituacutergica e a da vida da Igreja em geral Nestes quatro elementos

que se deve ter sob os olhos pois formam o fundo ideoloacutegico do Decreto expressa-se a realidade uacutenica do tempo presente da Igreja cristatilde Nele estaacute presente todo o passado poacutes-apostoacutelico da Igreja (inclusive o proacuteprio tempo dos apoacutestolos) de modo que toda a sua vida eacute na Sagrada Escritura um elemento central embora natildeo o uacutenico Em suma deve ter ficado claro que o Conciacutelio de Trento a despeito do caraacuteter contrastante e fixo de sua ideacuteia de Revelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeo oferece uma visatildeo muito mais rica destes conceitos do que a que impregnou a mentalidade dos seacuteculos seguintes Justamente por

isso a teologia de hoje pode retirar daiacute novos subsiacutedios novo apoio para suas pesquisas e novas indicaccedilotildees sobre o verdadeiro caminho a seguir

Quadro sinoacutetico do Decreto tridentino sobre a Tradiccedilatildeo

Primeiro princiacutepio conforme Cervini (AT = Escritura)

Sacrosancta œcumenica et generalis Tridentina Synodus in Spiritu Sancto legitime congregata [] hoc sibi perpetuo ante oculos proponens ut sublatis erroribus puritas ipsa EVANGELII in Ecclesia conservetur quod PROMISSUM ANTE PER PROPHETAS IN SCRIPTURIS SANCTIS

Segundo princiacutepio conforme Cervini o Evangelho em parte escrito em parte insculpido nos coraccedilotildees

[59] DOMINUS NOSTER IESUS CHRISTUS DEI FILIUS PROPRIO ORE PRIMUM PROMULGAVIT DEINDE PER SUOS APOSTOLOS TAMQUAM FONTEM OMNIS ET SALUTARIS VERITATIS ET MORUM DISCIPLINAE OMNI CREATURAE PRAEDICARI IUSSIT PERSPICIENSQUE HANC VERITATEM ET DISCIPLINAM CONTINERI IN LIBRIS SCRIPTIS ET SINE SCRIPTO TRADITIONIBUS QUAE AB IPSIUS CHRISTI ORE AB APOSTOLIS ACCEPTAE AUT AB IPSIS APOSTOLIS SPIRITU SANCTO DICTANTE

Seripando Cervini e outros soacute consideram as tradiccedilotildees recebidas pela Igrej (ldquoad nos usquerdquo)

quasi per manus traditae ad nos usque pervenerunt

orthodoxorum Patrum exempla secuta omnes libros tam Veteris quam Novi Testamenti cum utriusque unus Deus sit auctor nec non TRADITIONES IPSAS

Lejay Tradiccedilatildeo contendo natildeo soacute a ldquoconsuetudordquo mas relacionada tambeacutem com a ldquofidesrdquo (foacutermula conciliar)

tum ad fidem tum ad mores pertinentes

Terceiro princiacutepio de Cernini Depois da Ascenccedilatildeo de Cristo o Espiacuterito Santo ensina tambeacutem os misteacuterios de Deus

TAMQUAM VEL ORETENUS A CHRISTO VEL A SPIRITU SANCTO DICTATAS

Seripando Cervini etc soacute satildeo consideradas as coisas recebidas pela Igreja (como acima)

et continua successione in Ecclesia catholica conservatas

Cervini Escritura e Tradiccedilatildeo procedem ambas do mesmo Espiacuterito Santo

pari pietatis affectu ac reverentia suscipit ac veneratur

  • Prefaacutecio
  • SEGUNDA PARTE
  • Explicaccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo
  • segundo o Decreto do Conciacutelio de Trento
Page 23: Revelacao e Tradicao-Joseph Ratzinger (Bom Ler)

Este fato que baseia o estabelecimento definitivo da Igreja sobre uma decisatildeo tomada ldquono Espiacuterito Santordquo eacute o fundamento para se afirmar que existe uma interpretaccedilatildeo eclesial do Novo Testamento do mesmo modo que existe uma exegese cristoloacutegica do Antigo Daiacute podermos estabelecer as seguintes teses ou proposiccedilotildees agrave luz da analogia fidei

a) Existe uma teologia veterotestamentaacuteria do Antigo Testamento que o exegeta

deduz de seu conteuacutedo interno e que se desenvolve em uma seacuterie de camadas superpostas Segundo ela os textos antigos devem ser relidos e de novo expostos agrave luz dos novos acontecimentos O fenocircmeno da aplicaccedilatildeo dos textos agraves situaccedilotildees novas do desdobramento da Revelaccedilatildeo mediante nova [33] apresentaccedilatildeo do Antigo Testamento estrutura jaacute de modo essencial o conteuacutedo interno veterotestamentaacuterio20

b) Existe uma teologia neotestamentaacuteria do Antigo Testamento que natildeo coincide com

a referida teologia veterotestamentaacuteria Estaacute contudo estreitamente ligada com ela na unidade da analogia fidei21 Talvez partindo daqui se possa esclarecer o que significa a analogia fidei entre Os dois Testamentos A teologia neotestamentaacuteria do Antigo Testamento natildeo eacute como ficou dito idecircntica agrave teologia histoacuterica veterotestamentaacuteria Ao contraacuterio Re-exposiccedilatildeo feita agrave luz do Cristo-evento ela natildeo procede soacute da mera consideraccedilatildeo histoacuterica do Antigo Testamento Sendo embora em seu pleno conceito uma interpretaccedilatildeo relacionada com o Antigo Testamento contudo nada faz com que ela seja internamente estranha agrave sua essecircncia ainda que soacute de fora o atinja Ela amplia a forma estrutural do Antigo Testamento que assim interpretado revive e cresce

c) Existe uma teologia neotestamentaacuteria do Novo Testamento paralela agrave teologia veterotestamentaacuteria do Antigo Ou seja a teologia que o exegeta como tal pode deduzir do conteuacutedo interno do Novo Testamento eacute tambeacutem esta conhecida e estruturada mediante a aplicaccedilatildeo do Antigo Testamento agraves novas situaccedilotildees

d) Existe uma teologia eclesial do Novo Testamento que noacutes [34] chamamos Dogmaacutetica Ela se relaciona com a teologia neotestamentaacuteria do Novo Testamento do mesmo modo que a teologia neotestamentaacuteria do Antigo se relaciona com a respectiva teologia veterotestamentaacuteria Aquele ldquomaisrdquo (das Mehr) que distingue propriamente a Dogmaacutetica da teologia biacuteblica eacute o que designamos com a palavra Tradiccedilatildeo Aliaacutes tambeacutem aqui devemos salientar que a teologia eclesiaacutestica neotestamentaacuteria pela mesma razatildeo natildeo eacute simplesmente idecircntica agrave teologia neotestamentaacuteria interna e

20 Cf H GROSS Motivtransposition als Form- und Traditionsprinzip im Alten Testament in H VORGRIMLER Exegese und Dogmatik Moguacutencia 1962 p134-152 e a bibliografia aiacute fornecida G v RAD Theologie des Alten Testaments II Munique 1960 p332-339 396-401 21 A diferenccedila entre as duas teologias do Antigo Testamento foi vivamente exposta por R BULTMANN ldquoWeissagung und Erfuumlllungrdquo in Glauben und Verstehen II Tubinga 1952 p162-186 - Sobre as necessaacuterias correccedilotildees a se fazerem para que se torne visiacutevel a base histoacuterica do que a teologia sistemaacutetica denomina ldquoanalogia fideirdquo cf G v RAD op cit p329-424 (entre outras) e principalmente a p 420 nota 25 e a p422 nota 29 Sobre o tema ldquoanalogia fideirdquo em ambos os Testamentos cf tambeacutem E PRZYWARA Alter und Neuer Bund Viena-Munique 1956

histoacuterica do Novo Testamento Ultrapassa-a sem contudo ser-lhe puramente externa Com efeito no Novo Testamento comeccedila jaacute o processo da exposiccedilatildeo pela Igreja das verdades reveladas A teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento processa-se dentro dele proacuteprio como de modo clariacutessimo se percebe na histoacuteria da Revelaccedilatildeo sinoacutetica22

Eacute oportuno fazermos ainda uma pequena observaccedilatildeo se cotejarmos atentamente a teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento com a Dogmaacutetica reconheceremos que se impotildee uma outra distinccedilatildeo A Dogmaacutetica como ciecircncia aleacutem da exposiccedilatildeo eclesiaacutestica do Novo Testamento abrange tambeacutem a teologia particular de cada teoacutelogo Neste caso para se falar com precisatildeo dever-se-ia apresentar somente o proacuteprio dogma como teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento

O que acabamos de referir natildeo passa naturalmente de um esboccedilo que necessitaria em seus pormenores de natildeo poucos esclarecimentos e distinccedilotildees a fim de ser completo No caso presente entretanto damos por suficiente este esboccedilo Resumindo o que ateacute aqui expusemos podemos agora destacar vaacuterias ldquoraiacutezesrdquo da Tradiccedilatildeo e apontar vaacuterias camadas em seu seio [35] lordf raiz a maior amplidatildeo da ldquoTradiccedilatildeordquo em referecircncia agrave ldquoEscriturardquo

2ordf raiz o caraacuteter especiacutefico da Revelaccedilatildeo neotestamentaacuteria como Pneuma em contraste com o Gramma Eacute o que na linguagem de Bultmann se poderia chamar de sua condiccedilatildeo de ldquonatildeo-objetordquo (Nichtobjektiviertbarkeit) A praxe eclesiaacutestica e a teologia medieval expressaram este aspecto ao sobreporem a fides agrave Scriptura isto eacute o dogma como regra de feacute agraves minuacutecias da lei escrita23 O dogma eacute como a chave hermenecircutica da Escritura que em uacuteltima anaacutelise sem o auxiacutelio da hermenecircutica ficaria sendo algo fechado

3ordf raiz o caraacuteter presencial do Cristo-evento e a presenccedila dinacircmica do Espiacuterito de Cristo em seu Corpo a Igreja E consequumlentemente o poder que tem a Igreja de fazer a pregaccedilatildeo do Cristo ontem e hoje pregaccedilatildeo esta cuja fonte se encontra na interpretaccedilatildeo eclesiaacutestica da mensagem do reino transmitida pelos Apoacutestolos

Em conexatildeo com estas trecircs raiacutezes da ideacuteia (ou melhor da realidade) da Tradiccedilatildeo podem distinguir-se na mesma as seguintes camadas

a) Na origem de toda Tradiccedilatildeo estaacute o fato de que o Pai enviou o Seu Filho ao mundo e que o Filho por sua vez se [36] entregou ndash como sinal ndash aos ldquopovosrdquo (παραδίδοται) Esta paraacutedosis original em sua forccedila direta e salvadora

22 Cf por exemplo a rica exposiccedilatildeo de G BORNKMANN Jesus von Nazareth Estutegarte 1956 Sobre a questatildeo aqui estudada cf H SCHLIER Uumlber Sinn und Aufgabe einer Theologie des Neuen Testaments in H VORGRIMLER Exegese und Dogmatik Mainz 1962 p6990 23 O que haacute de melhor sobre este assunto no tocante agrave Patriacutestica seraacute encontrado em HARNACK DG II (1931) p84-116 HARNACK diz na p 87 nota 3 o seguinte ldquoO Cacircnon era de iniacutecio a regra da feacute A Escritura estaacute centrada na verdade Sem duacutevida nenhuma sua autoridade funda-se solidamente no Antigo Testamento e nas palavras do Senhorrdquo ndash Que assim tenha pensado tambeacutem a Idade Meacutedia e que aqui aleacutem da revelatio (da qual falaremos na 2ordf parte deste livro) a fides sobrepondo-se agrave Scriptura estabelece a forma essencial do conceito de Tradiccedilatildeo foi o que tentei demonstrar em meu artigo Wesen und Weisen der auctoritas im Werk des heiligen Bonaventura in Die Kirche und ihre Aumlmter und Staumlnde (Festgabe Kardinals Frings publicado por CORSTEN-FROTZ-LINDEN Colocircnia 1960 p 58-72

prolonga-se na permanente presenccedila de Cristo no σῶμα Χριστοῦ ndash no Seu Corpo a Igreja Assim o misteacuterio integral da presenccedila de Cristo eacute antes de tudo a realidade total transmitida pela Tradiccedilatildeo (fato fundamental e decisivo sempre anterior a todas as explicaccedilotildees particulares mesmo as da Escritura) e reguladora do que deve propriamente ser transmitido

b) A Tradiccedilatildeo existe concretamente como presenccedila na feacute Esta por seu turno como ldquoin-habitaccedilatildeordquo de Cristo precede todas as explicaccedilotildees particulares e frutuosa e viva ldquoexplicita-serdquo (explizierend) atraveacutes dos tempos

c) A Tradiccedilatildeo tem seu oacutergatildeo na plenitude dos poderes da Igreja e portanto naqueles que satildeo os legiacutetimos depositaacuterios destes poderes24

d) A Tradiccedilatildeo exprime-se tambeacutem naquilo que emanado da autoridade da Igreja se tornou regra de feacute (Symbolum fides quaelig) Portanto a questatildeo de se saber se certas proposiccedilotildees foram transmitidas desde o

comeccedilo pela Tradiccedilatildeo ao lado da Escritura ou em outros termos se existe desde o comeccedilo um segundo princiacutepio material e autocircnomo ao lado da Escritura torna-se afinal um problema inteiramente secundaacuterio Talvez lhe devamos responder negativamente

5 A funccedilatildeo da exegese [37] Pelo que ateacute aqui dissemos ficaram esclarecidas quase que exclusivamente

trecircs pontos os limites da letra da Escritura a liberdade do Espiacuterito Santo e a autoridade da Igreja Acontece poreacutem que a exposiccedilatildeo que fizemos abriga ainda um sentido diverso relacionado com a justa preocupaccedilatildeo de Lutero da qual partimos

Se ficou estabelecido que a Revelaccedilatildeo se faz presente atraveacutes da pregaccedilatildeo e se pregaccedilatildeo eacute exposiccedilatildeo da palavra revelada entatildeo pode e deve agora ao que precede acrescentar-se o seguinte a Tradiccedilatildeo eacute essencialmente e sempre uma exposiccedilatildeo Natildeo existe de maneira autocircnoma e sim como explicaccedilatildeo como exposiccedilatildeo ldquorelacionada com a Escriturardquo

Isto vale para a pregaccedilatildeo do proacuteprio Jesus Cristo realizaccedilatildeo plena da Revelaccedilatildeo e sua exposiccedilatildeo feita com autoridade A pregaccedilatildeo de Jesus Cristo natildeo aparece como algo absolutamente novo na Escritura Isto eacute como algo ainda natildeo atestado no Antigo Testamento Ela ensina isto sim a essecircncia do que jaacute estava escrito e lhe confere uma vida nova que o simples exegeta natildeo pode comunicar-lhe

O que vale para a mensagem de Cristo que permanece a mesma sob diferentes modalidades de exposiccedilatildeo vale tambeacutem para a pregaccedilatildeo apostoacutelica e a eclesiaacutestica Como ldquoTradiccedilatildeordquo ela deve em uacuteltima anaacutelise ser uma exposiccedilatildeo ldquosegundo a Escriturardquo a ela sujeita e com ela relacionada Sem duacutevida natildeo eacute ela uma exposiccedilatildeo no 24 Estas ideacuteias natildeo podem ser desenvolvidas mais detalhadamente aqui como seria de desejar uma vez que em rigor estamos procurando apenas fundamentar o conceito de Tradiccedilatildeo Em razatildeo da brevidade que me impus contentei-me apenas nas teses precedentes com explanar o assunto ateacute ao ponto em que ficasse patente a relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a ldquoIgrejardquo (cf as teses 4 e 5) Para se descer a maiores detalhes dever-se-ia analisar tambeacutem o conceito de Igreja que supomos conhecido do leitor Para isto cf a nota 6 onde citamos nosso livro sobre o Ofiacutecio e a unidade da Igreja Encontram-se aiacute algumas observaccedilotildees sobre o assunto de que ora tratamos

sentido de mera interpretaccedilatildeo exegeacutetica Mas sim na autoridade espiritual recebida do Senhor a qual se consuma na existecircncia plena da Igreja em sua feacute em sua vida e em seu culto Contudo ela permanece sendo (mais ainda do que o Cristo-evento em que se funda a Igreja) uma ldquoex-posiccedilatildeordquo (Aus-Legung) comprometida com a Histoacuteria e com a Palavra [38] Exprime-se deste modo a sua ligaccedilatildeo com a accedilatildeo concreta de Deus nesta mesma Histoacuteria e em seu caraacuteter de fato histoacuterico uacutenico (o ἑφάπαξ ldquoo ocorrido uma soacute vezrdquo) A realidade cristatilde da Revelaccedilatildeo eacute tatildeo essencial quanto ldquoeternardquo e definitiva Resulta daiacute a unidade entre o Cristo da Feacute e o Jesus da Histoacuteria o Jesus histoacuterico natildeo eacute senatildeo o Cristo da Feacute ainda que a feacute seja sempre algo mais do que a histoacuteria

Segue-se que do mesmo modo que existe um ofiacutecio de custoacutedia da Revelaccedilatildeo por parte da Igreja ofiacutecio por ela mesma atestado existe tambeacutem um ofiacutecio de custoacutedia da mesma Revelaccedilatildeo por parte da exegese que penetra o sentido literal da Escritura e defende a uniatildeo do Logos com a carne contra qualquer perigo de gnose Existe portanto por assim dizer algo como uma autonomia especiacutefica da Escritura como regra objetiva e sob muitos pontos de vista esclarecedora do Magisteacuterio eclesiaacutestico Esta era sem duacutevida uma exigecircncia legiacutetima de Lutero que ainda natildeo foi devidamente acolhida na Igreja catoacutelica por parte do Magisteacuterio cujos limites internos nem sempre foram claramente entendidos

Dever-se-ia partindo daqui salientar uma dupla criteriologia em se tratando da feacute De um lado haacute o que a Igreja antiga chamou de ldquoregra da feacuterdquo norma reguladora da palavra revelada contida na Escritura e sua exposiccedilatildeo Esta praeligscriptio da posse da Escritura como proacutepria segundo Tertuliano exclui a possibilidade de qualquer uso legiacutetimo da mesma Escritura contra a Igreja Por outro lado haacute tambeacutem o limite da littera Scripturaelig ou do sentido literal historicamente fixaacutevel que de acordo com o que ficou dito natildeo constitui nenhum criteacuterio absoluto ou autocircnomo mas sim somente um criteacuterio relativo no confronto da feacute com a ciecircncia O que na Escritura se pode descobrir quer mediante estudo cientiacutefico quer por simples leitura tem a funccedilatildeo de um criteacuterio real a que deve estar atento inclusive o Magisteacuterio em suas explicaccedilotildees Certamente [39] trata-se entatildeo de elementos sub-componentes da ciecircncia que natildeo podem servir para se julgar a feacute mas nela encontram uma instacircncia criacutetica e tecircm tambeacutem um importante papel a exercer o de zelar pela pureza do ἑφάπαξ de tutelar o conteuacutedo da Revelaccedilatildeo e de defender o dualismo histoacuterico carneespiacuterito (ldquodie Sarx der Geschichterdquo) contra os arbiacutetrios da gnose que tende sempre a impor-se

A reformatio na qual estaacute empenhada a Igreja nesta hora histoacuterica tem um papel relevante a desempenhar Eacute a missatildeo de abrir novas perspectivas para o diaacutelogo tentando assim chegar a uma ldquoreformardquo diferente da do passado que culminou com a divisatildeo no seio da Cristandade ocidental Tal missatildeo se exerceraacute em harmonia com o pleno ofiacutecio de testemunho da Igreja que tira seu direito e sua forccedila da presenccedila do Espiacuterito e de Cristo presente em todos os tempos Pois ele eacute sempre o Cristo de agora com a plenitude de seus direitos e de seus poderes Ele eacute quem daacute legitimidade e vigor ao testemunho singular e definitivo da Escritura que por sua vez encontra seu pleno sentido na singularidade da accedilatildeo histoacuterico-salviacutefica de Jesus Cristo Ele deu ao Pai seu Corpo crucificado e dando-se a si mesmo santificou para sempre os que o receberam (cf Hb 1014 727) Ele eacute o Cristo ontem hoje e sempre (Hb 138)

SEGUNDA PARTE

Explicaccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo segundo o Decreto do Conciacutelio de Trento

Parece que a completa elucidaccedilatildeo das razotildees que levaram agrave substituiccedilatildeo do

partim-partim pelo et e consequumlentemente agrave pesquisa dos dados do debate tridentino e de sua preacute-histoacuteria aparentemente favoraacutevel agrave suficiecircncia material da Escritura [40] simplifica indevidamente este problema fazendo-nos perder de vista os proacuteprios antecedentes do Decreto do Conciacutelio de Trento

1 A concepccedilatildeo pneumatoloacutegica da Tradiccedilatildeo no esquema fundamental do Cardeal Cervini

a) O conteuacutedo Um balanccedilo histoacuterico e detalhado do problema em seu conjunto exigiria uma

pesquisa exaustiva que natildeo reduzisse o seu acircmbito como o fez Geiselmann em seu livro25 Natildeo eacute nossa intenccedilatildeo proceder a um exame minucioso do assunto no presente trabalho Aqui soacute seratildeo tratados alguns pontos do debate tridentino com o fim de ampliarmos mais o horizonte de nossas reflexotildees

Fundamental para a compreensatildeo dos debates em pauta bem como do Decreto definitivo do Conciacutelio parece-me ser o Discurso do Cardeal Legado Cervini datado de 18 de fevereiro de 1546 [41] cujas linhas gerais se patenteiam tanto no Decreto como em outras decisotildees conciliares26

Tem o discurso de Cervini o meacuterito de mostrar as linhas diretrizes do Decreto de maneira mais clara do que aparecem estas na uacuteltima redaccedilatildeo do mesmo onde elas se diluem muito devido a uma seacuterie de variadas implicaccedilotildees Eacute ainda de grande auxiacutelio para o entendimento do referido discurso uma carta dos Cardeais Legados ao Cardeal Alexandre Farnese de 28 de fevereiro de 1546 Esta carta revela conteuacutedo idecircntico ndash eacute certamente inspirada pelo mesmo Cervini ndash e oferece ainda alguns outros

25 Eacute lamentaacutevel que Geiselmann em sua anaacutelise da contribuiccedilatildeo medieval sobre este assunto se tenha apoiado apenas em argumentos de segunda matildeo portanto de valor histoacuterico discutiacutevel Queira o leitor ver minhas observaccedilotildees a este respeito in Theol-prakt Quartalschrift 1963 p224-227 As novas (e temperamentais) invectivas de Geiselmann in TThQu 144 (1964) p 31-69 em nada modificaram a minha posiccedilatildeo de vez que natildeo trazem nenhuma contribuiccedilatildeo vaacutelida ao assunto Precioso ao contraacuterio eacute o trabalho de Y CONGAR La Tradition et les traditionshellip Essai historique Paris 1960 Importante eacute tambeacutem a obra de J BEUMER Die muumlndliche uumlberlieferung als Glaubensquelle Friburgo 1962 A respeito do Conciacutelio de Trento cf sobretudo aleacutem do estudo fundamental de JEDIN o artigo de E ORTIGUES Escriture et Traditions apostoliques au Concilie de Trente in RSR 36 (1949) p 271-299 K D SCHMIDT Studien zur Geschichate des Konzilis von Trient Tubinga 1925 p 152-209 26 O discurso nos foi transmitido em duas redaccedilotildees A primeira mais curta encontra-se nas Atas do Conciacutelio in CT V 11 A segunda faz parte do diaacuterio de Massarelli (Diarium III) in CT I p484 Quanto ao conteuacutedo os dois textos se completam Na anaacutelise que aqui ensaiamos as duas versotildees satildeo comparadas entre si de modo a fazerem um todo Sobre a posiccedilatildeo de Cervini no Conciacutelio cf H JEDIN Geschichte des Konzils von Trient II Friburgo 1957 p38-40 A descriccedilatildeo do desenrolar histoacuterico dos debates acha-se em JEDIN op cit p42-82 e supomo-la conhecida do leitor de vez que serve de base para a anaacutelise teoloacutegica do Decreto tridentino

esclarecimentos Cervini sustenta no citado discurso que existem trecircs princiacutepios e fundamentos de nossa feacute

1) Os livros sagrados escritos sob a inspiraccedilatildeo do Espiacuterito Santo 2) O Evangelho que Nosso Senhor natildeo escreveu mas ensinou oralmente e

implantou nos coraccedilotildees Parte do Evangelho foi escrita mais tarde pelos Evangelistas enquanto muita coisa foi simplesmente confiada aos coraccedilotildees dos fieacuteis

3) Porque o Filho de Deus natildeo ia permanecer sempre entre noacutes enviou ele o Espiacuterito Santo que haveria de revelar os misteacuterios no iacutentimo dos fieacuteis e de ensinar agrave Igreja toda a verdade ateacute ao fim dos tempos27

[43] Numa segunda redaccedilatildeo mais detalhada do discurso estas mesmas ideacuteias satildeo

desenvolvidas mais amplamente Aiacute lemos que a Revelaccedilatildeo se apresentou de modo diferente em diversos tempos

1) Nos Patriarcas cuja feacute eacute atestada na Escritura a que chamamos de Antigo Testamento

2) Em Jesus Cristo que implantou o seu Evangelho natildeo por escrito mas oralmente natildeo in charta mas in corde Das coisas que emanaram de Cristo (quaelig a Cristo emanarunt) algumas foram escritas outras permaneceram nos coraccedilotildees dos homens (quaeligdam in cordibus hominum relicta fuerunt) Todo o Evangelho de Cristo que consta desta dupla modalidade forma (tendo como primeiro princiacutepio o Antigo Testamento) o secundum prindipium fidei nostraelig

3) Daiacute surge o terceiro princiacutepio (tertium autem) porque o Filho de Deus natildeo iria permanecer sempre entre noacutes enviou ele ao mundo o Espiacuterito Santo que haveria de explicar os misteacuterios de Deus e tudo o que fosse ainda obscuro para os homens28 De modo semelhante a citada carta ao Cardeal Farnese fala de dois passos (due

passi) Um eacute que a Revelaccedilatildeo de Nosso Senhor natildeo foi totalmente escrita mas permaneceu em parte contida nos coraccedilotildees dos homens e na Tradiccedilatildeo da Igreja O outro [43] passo consiste em confirmar ldquoquello che egrave suggerito lo Spirito Santo in la Chiesa maxime medianti i concilij doppo lAscensione in cielo del Signorerdquo29

Notamos logo que contrariamente ao que esperaacutevamos natildeo dois mas trecircs satildeo os princiacutepios apontados a Escritura o Evangelho e a Revelaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

27 CT V 11 helliptria esse principia et fundamenta nostrae fidei primum libros sacros secundum esse evangelium quod Christus Dominus Noster non scripsit sed ore docuit et in cordibus illud plantavit cujus evangelii nonnulla evangelistaelig scripto mandarunt multa quoque relicta sunt in cordibus hominum Tertium quia non semper filius Dei corporaliter nobiscum mansurus erat misit Spiritum Sanctum qui in cordibus fidelium secreta Dei revelaret et ecclesiam quotidie et usque consummationem saeligculi doceret omnem veritatem et si quid in mentibus hominum dubii occurrisset declararet 28 CT I 484 Digna de nota eacute ainda a foacutermula contida na paacutegina 48514-16 nihil tamen inter scripturas sacras et apostolicas traditianes differt illaelig enim scriptaelig hae per insinuationem habentur utraeque tamen a Spiritu Sancto eodem modo emanataelig Confira-se com CT V 11 19 ab eodem Spiritu et illos (scilicet libros) et istas (scilicet traditiones) descendisse 29 CT X 373

Eacute portanto necessaacuterio observar que sob o termo ldquoEscriturardquo se entende o Antigo Testamento e que aleacutem deste (que eacute Escritura em sentido proacuteprio) aparece como segundo princiacutepio o Evangelho apresentaccedilatildeo do Cristo-evento O Evangelho por sua vez abrange o que estaacute escrito e o que natildeo estaacute escrito mas sim apenas insculpido no coraccedilatildeo dos crentes Deste modo o segundo princiacutepio representa uma vantagem pneumaacutetica sobre o que estaacute escrito o Evangelho eacute nesta concepccedilatildeo algo diferente da letra (Escritura) e soacute em parte vem escrito (Isto natildeo deve ser entendido no sentido de divisatildeo das verdades da feacute fenocircmeno denunciado ldquocom horrorrdquo por Geiselmann Ao contraacuterio Entenda-se apenas no sentido de diferente grau de dignidade no modo de exprimir-se) Em rigor o Evangelho como tal soacute pode ser escrito em parte se considerarmos a sua essecircncia

Finalmente ndash o que eacute muito de se admirar ndash segue-se como terceiro princiacutepio a accedilatildeo visiacutevel do Espiacuterito Santo em todo o tempo da Igreja

Admitimos portanto que o que noacutes geralmente chamamos de Tradiccedilatildeo natildeo aparece aqui como um soacute princiacutepio Biparte-se antes em dois princiacutepios intimamente ligados o ldquoEvangelhordquo princiacutepio apenas em parte identificaacutevel com a Escritura e a accedilatildeo do Espiacuterito Santo no tempo da Igreja Ademais podemos observar que a Escritura do Novo Testamento natildeo aparece como um princiacutepio ao lado da Revelaccedilatildeo apostoacutelica Muito menos como [44] eacute o nosso caso se apresenta a Escritura neotestamentaacuteria juntamente com a veterotestamentaacuteria como uma grandeza uacutenica uma ldquoEscriturardquo soacute agrave qual se poderia contrapor a ldquoTradiccedilatildeordquo como uma segunda grandeza O Novo Testamento em seu conjunto aparece como um segundo e mais amplo princiacutepio ou seja o Evangelho que como tal se opotildee de um lado ao Antigo Testamento e de outro agrave projeccedilatildeo histoacuterica do tempo da Igreja Sua unidade interna eacute evidentemente mais forte e importante do que a sua divisatildeo em escrito e natildeo-escrito Assim o Evangelho como um soacute princiacutepio pode ser contraposto ao Antigo Testamento a despeito desta dupla formalidade A impossibilidade de se representar o Novo Testamento como Escritura impossibilidade esta demonstrada por Satildeo Paulo e pelos primeiros seacuteculos cristatildeos eacute aqui claramente revelada

Ainda uma observaccedilatildeo relativa ao texto a que vimos nos referindo Em nenhum dos dois pontos por noacutes citados no estudo da Tradiccedilatildeo isto eacute nem no elemento contido no primeiro nem no apresentado no terceiro princiacutepio figura a Tradiccedilatildeo como verbal Em ambos os casos ao contraacuterio trata-se mais da Tradiccedilatildeo real com prevalecircncia da realidade sobre as palavras que a atestam Este fato que estaacute claro no terceiro princiacutepio o pneumatoloacutegico vale tambeacutem em relaccedilatildeo agrave implantaccedilatildeo do Evangelho nos coraccedilotildees contida no segundo princiacutepio Tal implantaccedilatildeo vai muito aleacutem do que se encontra expresso na letra da Escritura

Que papel tenham estas ideacuteias exercido nas discussotildees do Conciacutelio pode-se concluir tambeacutem das auctoritates citadas por Cervini entre as quais figuram Jo 16 12 (hellipSpiritus Sanctus suggerethellip) e Fl 3 15 (Quicumque perfecti sumus haeligc sentiamus et si quid aliter sentitis haeligc quoque Deus vobis revelabit) Ambos estes textos satildeo de teor acentuadamente [45] pneumatoloacutegico-presencial30 Que tais ideacuteias natildeo eram

30 CT V 14 e 15 Um exame profundo das auctoritates quer da Escritura quer entre os Santos Padres que neste particular satildeo favoraacuteveis agrave Tradiccedilatildeo seria em si conclusivo para a elaboraccedilatildeo do conceito

estranhas aos Padres conciliares deduz-se ainda de uma seacuterie de outras referecircncias Assim ouvimos o Bispo de Aqui dizer que aleacutem da Sagrada Escritura existe muita coisa na Igreja de Deus que vindo dos Apoacutestolos e passando de geraccedilatildeo a geraccedilatildeo chegou ateacute noacutes assim como muitas outras quaelig etsi scripta Apostoli nobis non reliquerunt per Spiritus Sancti revelationem nobis (tradita) sunt (Tradita estaacute aqui por revelata) 31 Partindo daiacute se poderia descrever a Tradiccedilatildeo justamente como o componente pneumatoloacutegico do Cristo-evento b) A influecircncia do esquema de Cervini em diversas decisotildees conciliares

Eacute verdade que esta concepccedilatildeo tripartida aparece muito atenuada no Decreto

oficial sobre a Tradiccedilatildeo Que poreacutem em suas linhas fundamentais natildeo tenha ela sido de modo nenhum [46] abandonada mostram-no duas outras passagens nas quais o Conciacutelio faz uso por assim dizer in actu das ideacuteias aqui expressas32 Assim na Introduccedilatildeo ao Decreto sobre a Eucaristia (Denz 873) se lecirc Sacrosancta Synodus sanamhellipdoctrinam tradens quam semper catholica Ecclesia ab ipso Jesu Christo Domino Nostro et eius apostolis erudita atque a Spiritu Sancto illi omnem veritatem in dies suggerente (Jo 1416) edocta retinuithellip

Aqui a accedilatildeo proacutepria do Conciacutelio eacute descrita como tradere e a este tradere eacute atribuiacutedo um duplo fundamento De um lado o ensino de Jesus e dos Apoacutestolos (Note-se que este ponto corresponde ao Evangelho segundo a concepccedilatildeo de Cervini E de certo modo tambeacutem pela citaccedilatildeo de Jesus e dos Apoacutestolos se reconhece a dupla modalidade do Evangelho como escrito e como inserido nos coraccedilotildees) De outro lado o ensino dado pelo Espiacuterito Santo que conduz agrave verdade in dies isto eacute no de correr do tempo futuro

O outro texto que pode ser aduzido aqui como prova do que afirmamos encontra-se no Preacircmbulo do Decreto sobre o Purgatoacuterio (Denz 983) Aiacute se lecirc hellipCatholica Ecclesia Spiritu Sancto edocta ex Sacris Litteris et antiqua Patrum traditione in sacris Conciliis et novissime in hac Synodo docuerit A descriccedilatildeo da accedilatildeo proacutepria do

aqui exposto H HOLSTEIN procurou fazer o cotejo destas auctoritates e fecirc-lo de modo admiraacutevel em seu artigo La Tradition dapregraves le Concile de Trente (RSR 47 1959 p367-390 e em particular para o caso em questatildeo a p375) Ele encontra nos textos estudados duas linhas de tendecircncias A linha de Santo Irineu para a qual o testemunho dos Apoacutestolos eacute o de sua personalidade de sua vida e de seu ofiacutecio Aleacutem desta o grupo composto de Tertuliano Cipriano Basiacutelio e Agostinho forma uma corrente que se poderia denominar ldquocerimonialrdquo Oriacutegenes se enquadra em ambos os grupos Existe entre os autores estudados uma seacuterie de textos que se referem agraves observationes consuetudines institutiones e que levam a entender-se a Tradiccedilatildeo neste mesmo sentido Aiacute se vecircem tambeacutem textos que sublinham o aspecto natildeo-escrito do Evangelho enquanto insculpido no coraccedilatildeo dos fieacuteis e aleacutem disso textos que apontam a Igreja como o ldquolugarrdquo da verdade cristatilde 31 CT I 483 (18 de fevereiro de 1546) Em 26 de fevereiro (CT V 18) encontramos Cervini a tratar de novo deste assunto Cf tambeacutem um pronunciamento do Bispo de Fano (CT V 10) nestes termos Cum jam receperimus Scripturas Sacras necessario recipiendaelig sunt traditiones quaelig ab eodem Spiritu Sancto quo scripturaelig dictataelig sunthellip 32 Disto me adverti pela primeira vez atraveacutes de um estudo realizado sob a minha orientaccedilatildeo por CHR LIMBACR a quem sou devedor de muitas informaccedilotildees bibliograacuteficas

Conciacutelio como tradere encontra-se ainda nas declaraccedilotildees sobre o Sacramento da Extrema-Unccedilatildeo (Denz 910)

Finalmente a triacuteplice divisatildeo deixa-se insinuar nas entrelinhas do Decreto sobre a Tradiccedilatildeo embora obscurecida e diluiacuteda por uma seacuterie de acreacutescimos e citaccedilotildees a ele adicionados por outros motivos O Decreto da Tradiccedilatildeo com efeito [47]

1) Fala do Evangelho prometido pelos Profetas na Escritura e refere-se a esta em sentido estrito quer antes quer depois do Antigo Testamento

2) Fala da promulgaccedilatildeo por Cristo do Evangelho que foi transmitido pelos Apoacutestolos sob dupla forma oral e escrita Desta maneira o que natildeo ocorre no exemplo de Cervini aparece aqui antes de tudo o componente pneumatoloacutegico unido com o componente apostoacutelico a ponto de se distinguirem duas modalidades de Tradiccedilatildeo apostoacutelica a que remonta a Cristo e a que remonta ao envio do Espiacuterito Santo Pode-se assim estabelecer que em oposiccedilatildeo ao esquema de Cervini haacute um certo processo de historicizaccedilatildeo que salienta a relaccedilatildeo com o comeccedilo histoacuterico e igualmente parece deslocar o acento da tradiccedilatildeo real para a verbal

3) No epiacutelogo desta parte do Decreto da Tradiccedilatildeo que vimos analisando de novo eacute considerada a ideacuteia da Sagrada Escritura O conceito de Tradiccedilatildeo eacute entatildeo formulado em definitivo e descrito como vel oretenus a Christo vel a Spiritu Sancto dictatas et continua successione in Ecclesia catholica conservatas A referecircncia aos Apoacutestolos eacute omitida Pode-se na verdade considerar tudo isto como uma volta ao que foi dito antes Evidentemente a tradiccedilatildeo ditada pelos Apoacutestolos eacute citada de novo (A expressatildeo continua successione insinua-o) Contudo permanece sempre ainda certa indeterminaccedilatildeo ficando aberta a possibilidade de se encontrar aqui o vestiacutegio do terceiro componente de Cervini o princiacutepio pneumaacutetico propriamente dito Eacute tambeacutem claro que esta ideacuteia eacute discreta sendo adotada uma posiccedilatildeo mais acentuadamente histoacuterica Se agora lanccedilarmos os olhos sobre o que vimos considerando ateacute aqui surgiratildeo

inevitavelmente perguntas qual eacute realmente o sentido proacuteprio da concepccedilatildeo pneumatoloacutegica Como poderia ser perfeitamente entendida a ideacuteia a noacutes estranha de uma revelatio prolongada no tempo em face da unicidade e do caraacuteter [48] histoacuterico da Revelaccedilatildeo que evidentemente era conhecido tanto de Cervini quanto dos Santos Padres e teoacutelogos medievais33

Antes de examinarmos isto devemos esclarecer rapidamente os principais motivos que inspiraram o Decreto tridentino sobre a Escritura e a Tradiccedilatildeo deixando nele um tanto encoberta a concepccedilatildeo pessoal de Cervini Que opiniotildees de teoacutelogos teratildeo intervindo aqui chegando a ser em parte impressas no texto definitivo que resultou do cotejo de muitos pronunciamentos diversos Uma exposiccedilatildeo detalhada deste ponto exorbitaria do acircmbito de nossa anaacutelise Contentemo-nos com umas poucas observaccedilotildees sumaacuterias 33 Sobre este assunto tentei fazer um breve comentaacuterio no meu trabalho ldquoOffenbarung-Schrift-Uberlieferungrdquo in TThZ 67 (1958) p13-27 Cf J BEUMER ldquoDer theoretische Beitrag der Frnhscholastik zum Problem des Dogmenfortschrittsrdquo in ZkTh 72 (1952) p205-226 J de CHELLINCK Pour lrsquohistoire du mot ldquorevelarerdquo in RSR 6 (1916) p149-157

2 Relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a vida da Igreja

em diversas passagens do debate tridentino

Uma primeira seacuterie de motivos entre os quais se compreendem diversos pronunciamentos agraves vezes muito contrastantes em seu aparato exterior patenteia-se na ideacuteia de tradiccedilotildees expressa no Decreto de duas maneiras a) - per manus traditaelig ad nos usque pervenerunt b) - continua successione in Ecclesia catholico conservatas

O que se ocultaraacute sob estas duas foacutermulas que o historiador de hoje tem dificuldades em aceitar justamente por causa do historicismo nelas impliacutecito Podemos dizer que um decisivo papel exerceu aqui o pensamento que sempre aparecia nos debates a saber que as tradiccedilotildees satildeo variaacuteveis que muitas delas foram abolidas pelos Apoacutestolos e que por outro lado se [49] introduziram tradiccedilotildees eclesiaacutesticas que natildeo mais seriam abolidas34 Esta ideacuteia de Tradiccedilatildeo de certo modo se torna clara no tratado escrito sobre o mesmo assunto por Seripando para uso dos Padres Conciliares Seripando fala das Tradiccedilotildees escritas inseridas na Escritura como as claacuteusulas de Tiago o costume de as mulheres se cobrirem com um veacuteu a legislaccedilatildeo sobre o matrimocircnio contida em 1Cor 7 etc E o autor adverte que estas praacuteticas foram abolidas Isto porque embora associadas agrave palavra de Deus na Escritura dela ldquomuito diferemrdquo pois a palavra divina [50] de modo nenhum poderia ser abolida A estas tradiccedilotildees

34 Cabe aqui aduzir uma nova intervenccedilatildeo de Cervini datada de 26 de fevereiro de 1546 (CT I 33 e V 18) onde ele diz que nem todas as tradiccedilotildees procedentes dos Apoacutestolos devem ser conservadas mas somente as que ab Ecclesia receptaelig ad nos usque pervenerunt (V 18) Esta afirmaccedilatildeo anterior agrave formulaccedilatildeo dogmaacutetica feita pelo Concilio deve igualmente ser tida na conta de um autecircntico comentaacuterio do Decreto Aiacute se acentua como condiccedilatildeo essencial das tradiccedilotildees a receptio ecclesiaelig Vem ainda referida uma intervenccedilatildeo do Bispo de Bertinoro em data de 23 de marccedilo (I p 523) na qual ele sublinha que as tradiccedilotildees escritas por vezes foram mudadas Jaacute entre as natildeo-escritas umas foram mudadas e outras natildeo como por exemplo o rito de adicionar aacutegua ao vinho a Crisma a confissatildeo auricular O Bispo de Bertinoro acrescenta que por outro lado alguns pontos existem que permaneceram inteiramente inalterados tais como a crenccedila no descensus ad inferos na virgindade perpeacutetua de Maria a substituiccedilatildeo da observacircncia do saacutebado pela do domingo Temos depois um pronunciamento do Bispo de Bitonto datado de 27 de marccedilo (I 39) Este bispo era de parecer que algumas coisas foram transmitidas pelos Apoacutestolos com a finalidade de serem perpetuamente conservadas (como pertencentes ao depoacutesito da feacute) outras caiacuteram em desuso (como as claacuteusulas de Tiago) e outras enfim foram apenas aconselhadas Assim mesmo na Escritura algumas coisas haacute que foram escritas mas natildeo recebidas em uso por serem mateacuteria de mero conselho Por exemplo ldquose algueacutem te pedir a tuacutenica daacute-lhe tambeacutem o paacutelio se algueacutem te esbofetear numa face oferece-lhe tambeacutem a outrardquo Sem duacutevida excelente ilustraccedilatildeo do sermatildeo da montanha Finalmente consideraccedilotildees idecircnticas podemos encontrar na obra citada de LEJAY Eis outra amostra tirada do discurso de 23 de fevereiro (CT V 13) Nam illaelig (scil traditiones) quaelig ad fidem pertinent eadem sunt recipiendaelig auctoritate qua recipitur evangelium alia autem non ita eum earum plurimaelig immutataelig fuerint ut de bigamis de esu sanguinis et similia De modo semelhante aliaacutes fala tambeacutem Bonuccio (I 525 a 23 de marccedilo de 1546 ecclesia traditiones apostolorum quandoque mutavit verbum autem Dei nunquam mutavit neque mutare potest

Seripando opotildee as natildeo referidas na Biacuteblia e que ora satildeo apostoacutelicas ou oriundas de Conciacutelios universais e aceitas por toda a Igreja ora satildeo particulares e muito variaacuteveis35

Este texto nos leva a uma surpreendente conclusatildeo para Seripando e muitos outros Padres tridentinos36existem tradiccedilotildees na Escritura ldquoTradiccedilatildeordquo natildeo significa o natildeo-escrito Existe quer dentro da Escritura quer fora dela Isto nos conduz a outra pergunta em que consiste para os referidos Padres a essecircncia da tradiccedilatildeo se o que a constitui natildeo eacute o fato de natildeo ser escrita37 Em outros termos como pode a tradiccedilatildeo ser definida positivamente se ela natildeo pode ser suficientemente determinada pela ideacuteia negativa de algo natildeo-escrito

Haacute uma seacuterie de respostas para esta pergunta O proacuteprio Seripando daacute a seguinte definiccedilatildeo Traditiones hoc est Apostolorum seu sanctorum Patrum sanctae et salutares constitutiones38 Mais clara ainda eacute a afirmaccedilatildeo de Cervini citada por Massarelli A objeccedilatildeo do Bispo de Chioggia que aduzia a opiniatildeo de Agostinho de que tudo o que eacute necessaacuterio para a salvaccedilatildeo estava escrito na Biacuteblia respondia Cervini da seguinte maneira Verba illa (isto eacute de Santo Agostinho) formaliter intelligi debent scilicet ad fidem accipiendam ut salvi fiamus Quo vero ad mores et christianam vitam instituendam certo non omnia scripta sunt

[51] E de novo recorre agraves provas tiradas de Jo 1526 e 1426 E indica o princiacutepio pneumatoloacutegico39 O que eacute mais importante eacute que a Tradiccedilatildeo se refere agrave institutio vitaelig agrave presenccedila atuante da Palavra revelada na existecircncia cristatilde Tradiccedilatildeo eacute noutros termos a eficaacutecia da palavra de Deus Sem ela a palavra ficaria esteacuteril 35 Seripando De traditionibus (fevereiro ou marccedilo de 1546) CT XII p517-521 e principalmente a p 521 As expressotildees desta uacuteltima paacutegina chocam-se com a ideacuteia de Cervini sobre a receptio ecclesiaelig 36 Cf o texto citado na nota 11 37 No texto definitivo do Decreto esta ideacuteia natildeo aparece mais Aqui poreacutem com esta primeira designaccedilatildeo expliacutecita da Tradiccedilatildeo vem expressamente acentuado o contraste entre in libris scriptis et sine scripto traditionibus Na segunda redaccedilatildeo o sentido expliacutecito da palavra Tradiccedilatildeo natildeo eacute tatildeo exclusivo Contudo apresenta igual matiz ao se confrontarem as expressotildees omnes libroshellipnec non traditiones ipsas Portanto a ideacuteia positiva da Tradiccedilatildeo que serve de base a esta anaacutelise natildeo deixou de influenciar na redaccedilatildeo do Decreto 38 CT XII 517 39 CT I 494 (26 de fevereiro de 1546) A citada palavra de Santo Agostinho teve o seu papel a desempenhar na discussatildeo em curso Seripando por exemplo a ela se referiu (De traditionibus CT XII 521 47-53) Pensandum denique ne in traditionibus externis vera religio et salutis spes statuatur de quibus Augustinus Omnia quaelig pertinent ad veram religionem quaeligrendam et tenendam divina Scriptura non acuit Conceda-se que nem tudo foi escrito (veja-se Jo 2125) Todavia electa sunt autem quaelig scriberentur quaelig saluti credentium sufficere videbantur Mais do que nos debates do tridentino encontramos aqui um verdadeiro postulado dos Reformadores ldquonatildeo adotar costumes exteriores mas buscar os meios definitivos de salvaccedilatildeo na palavra da Escriturardquo A ldquosuficiecircnciardquo da Escritura de que aqui se fala eacute na verdade algo diverso da suficiecircncia material da mesma Escritura defendida por Geiselmann em sentido muito mais radical Infelizmente ainda natildeo se quis levar na devida consideraccedilatildeo o texto de Santo Agostinho (CT I 494 sugere De doctrina christiana II 9 e De pecc mero et rem II 59) Muito apropriadas nesta ordem de ideacuteias satildeo as observaccedilotildees de H SCHAUF ldquoSchrift und Traditionrdquo in Antonianum 39 (1964) p200-209 feitas no chamado Encontro de Duumlsseldorf Nos textos citados por Schauf com base em Agostinho eacute afirmada a suficiecircncia da Escritura para a salvaccedilatildeo Eacute contudo contestada a sua suficiecircncia para a Igreja em geral De fato esta alternativa parece muito mais vaacutelida e fundamental agrave luz dos postulados dos Reformadores do que a alternativa entre a suficiecircncia ou insuficiecircncia material da Escritura

Na mesma linha de ideacuteias seguem-se duas outras seacuteries de pronunciamentos Vimos na introduccedilatildeo agrave parte anterior que a discussatildeo dogmaacutetica da ideacuteia de

Tradiccedilatildeo foi em parte prejudicada pela questatildeo do meacutetodo a seguir no Conciacutelio dever-se-ia abordar primeiro a reformatio a reforma praacutetica da Igreja como queria o ldquoKaiserrdquo Ou primeiro discutir a questatildeo dogmaacutetica como preferia o Papa40

[52] Este problema do meacutetodo embora resolvido no debate que entatildeo surgiu natildeo afetou diretamente a questatildeo da Tradiccedilatildeo como tal Mas como de fato estas duas questotildees ficaram ligadas entre si daiacute resultou que muitos oradores transformaram a questatildeo do meacutetodo (se se deveria falar dos abusos ou da Tradiccedilatildeo) em parte de sua argumentaccedilatildeo em torno do assunto em pauta41 O problema abusus e o problema Traditio ficaram de tal maneira associados na ocasiatildeo que pareciam formar no fundo um soacute assunto Por isso os oradores ora falavam em sentido positivo ora se pronunciavam em sentido negativo Isto correspondia tambeacutem ao propoacutesito reformista do Conciacutelio as traditiones representavam os abusus aos quais a Igreja se opunha Os Padres estavam cocircnscios de que condenar as traditiones era condenar Os usus ecclesiaelig o modo como a Igreja vivia a sua vida naquela eacutepoca

A outra seacuterie de pronunciamentos que se inclinavam ao mesmo sentido encontramo-la nas proposiccedilotildees que a auctoritas da Igreja apresenta como definitivas indicando uma iacutentima relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a institutio christiana 42

[53] Podemos agora retomar ao nosso ponto de partida e dar resposta agrave pergunta que propriamente significa a foacutermula ad nos usque pervenerunt Objetivamente natildeo se trata aqui de um historicismo que a foacutermula parece expressar Ao contraacuterio Trata-se da fidelidade perseverante da Igreja agrave institutio vitaelig christianaelig da legiacutetima forma de vida cristatilde em concreto no tempo presente da Igreja da institutio christiana que coloca a Escritura em primeiro lugar e que como tal isto eacute como vida decorrente da Escritura eacute fundamentalmente apostoacutelica embora tambeacutem sujeita a mudanccedilas como tudo o que eacute vivo

3 A Tradiccedilatildeo e o dogma eclesiaacutestico

40 Sobre o debate em torno da questatildeo do meacutetodo cf mais uma vez JEDIN op cit p9-82 e outras 41 Assim jaacute no discurso de Cervini antes analisado (CT I 484) no qual ele recorda o dilema do Conciacutelio se nos voltarmos contra as tradiccedilotildees ficaratildeo admirados os Padres Conciliares quasi reformationem fugiamus si ipsam reformationem sumimus iterum objicient traditiones relinquendas non esse Idecircntica era a situaccedilatildeo em que se encontrava o Bispo de Astorga nas duas intervenccedilotildees que fez no dia 23 de fevereiro de 1546 (CT V 13 e 19) segundo Seripando (I 484) helliptraditiones prius pertractandas consulit tantam enim conformitatem abusus qui ex sacris libris descendunt cum iis qui a traditionibus orti sunt habent ut sacris libris et traditionibus absolutis duo illa abusuum genera simul pertractari valeant Segundo Bonuccio (I 484) antes de tudo dever-se-ia tratar das Sagradas Escrituras dos cacircnones apostoacutelicos dos Conciacutelios gerais e das decretais pontifiacutecias Hisque ilusceptis ad abusus ex eisdem dependentes devenire 42 Assim principalmente de acordo com Afonso de Castro (CT I 484) Quoniam ultra traditiones apostolicas ecclesiae auctoritatem habemus quaelig ecclesiaelig auctoritas tonta apud nos est ut aliqui eam maioris roboris quam sacros libros esse sentiant Cf igualmente CT I 491 45 Na mesma linha pode-se ver uma seacuterie de pronunciamentos na citada obra de LEJAY Cf CT XII 524 (Tratado De traditionibus ecclesiaelig fevereiro ou marccedilo de 1546)

Uma segunda seacuterie de motivos eacute expressa no Decreto pela foacutermula traditiones tum ad fidem tum ad mores pertinentes Se como vimos a ideacuteia de Tradiccedilatildeo aparece muito limitada naquilo que os Padres conciliares chamam consuetudines observationes institutiones por outro lado o Procurador do Cardeal de Augsburgo Claudio Lejay SJ se fez o porta-voz de uma expressatildeo que em oposiccedilatildeo agraves traditiones caeligremoniales estabeleceu justamente o sentido da tradiccedilatildeo contida na feacute Seu tratado sobre a Tradiccedilatildeo composto para uso dos Padres conciliares inclui tambeacutem a foacutermula que foi adotada pelo Conciacutelio Aiacute se diz Denique multas veritates tum ad fidem tum ad mores pertinentes Ecclesia novit quas Scriptura aperte et expresse non continet Ele cita como exemplos as palavras persona essentia trinitas no Tratado da Santiacutessima Trindade consubstantialitas na Cristologia do Logos duas naturezas uma soacute Pessoa referentes ao dogma definido pelo Conciacutelio de Calcedocircnia E ainda Cristo Filho uacutenico de Maria duas vontades na uacutenica Pessoa de Cristo uma alma racional aleacutem do espiacuterito divino em Cristo Ana matildee de Maria o costume de fazer sinais da cruz a santificaccedilatildeo do domingo a maneira de rezar com face voltada [54] para o Oriente tudo isto ideacuteias e fatos da tradiccedilatildeo conciliar e da piedade cristatilde43

Cervini que aprovou o discurso de Lejay de 23 de fevereiro de 154644 pocircde dificilmente conciliar esta posiccedilatildeo com a sua expressa na jaacute citada carta ao Cardeal Farnese onde como vimos ele diz que o Espiacuterito Santo falou na Igreja e depois da Ascensatildeo do Senhor fala ainda maxime medianti i concilii45 Ele aiacute viu publicamente sublinhado o fato de que aquele ldquomaisrdquo que a Igreja viva representa em relaccedilatildeo agrave palavra meramente escrita natildeo se referia e natildeo se refere apenas agrave vita instituenda ou como ele prefere agrave caeligremonialia Refere-se tambeacutem agrave essentialia fidei que antes de tudo plenamente se expressam na Tradiccedilatildeo Tambeacutem aqui como se vecirc o interesse dominante natildeo estaacute na apresentaccedilatildeo historicista do assunto a partir do iniacutecio da Igreja mas na ideacuteia de que a influecircncia da Tradiccedilatildeo sobretudo atraveacutes da praxe conciliar eacute de fundamental importacircncia para a feacute para a doutrina crida e natildeo apenas para a piedade viva ou a caeligremonialia

4 O sentido do Decreto tridentino

Se recapitularmos o que ateacute agora dissemos veremos que no conjunto facilmente se podem reconhecer trecircs diferentes concepccedilotildees teoloacutegicas unidas entre si no texto definitivo do Decreto sobre a Tradiccedilatildeo Unidas mas natildeo equiparadas umas agraves outras Pelo contraacuterio apesar de sua grande diferenccedila foram elas apenas [55] mais ou menos justapostas e de novo por forccedila de uma tendecircncia comum relacionadas entre si

1 A concepccedilatildeo de Cervini que designamos como pneumatoloacutegica Com sua doutrina sobre os trecircs principia fidei insiste ele no caraacuteter dinacircmico do Cristo-evento

43 CT XII 523 LEJAY baseia-se evidentemente em listas de tradiccedilotildees confeccionadas naquele tempo (Cf ECK DRIEDO CANO BOTO NOGAROLA) Cf a este respeito Y CONGAR ldquoTraditions apostoliques non eacutecrites et suffisance de lEscrituresrdquo in Istina 6 (1959) p219-306 e principalmente a paacutegina 289 44 CT V 14 45 CT X 373

presente na Igreja Entende assim a Tradiccedilatildeo primariamente como a realidade espiritual da institutio vitaelig christianaelig

2 A concepccedilatildeo que podemos chamar de cerimonial Esta entende a Tradiccedilatildeo essencialmente como a seacuterie de consuetudines existentes ao lado da feacute como os usus ecclesiaelig que os Reformadores falsamente pretendem abolir como abusus Esta concepccedilatildeo chega a condenar a dignidade e Antiguumlidade apostoacutelica das tradiccedilotildees Sua ideacuteia eacute limitada pelo ad nos usque pervenerunt que inclui possibilidade de variar da parte das tradiccedilotildees donde a necessidade de reduccedilotildees Com os termos pervenire e conservare a recepccedilatildeo por parte da Igreja eacute considerada criteacuterio adicional ao lado da Antiguumlidade

3 A concepccedilatildeo que talvez possamos denominar dogmaacutetica Em oposiccedilatildeo agrave fixidez da ideacuteia de Tradiccedilatildeo reduzida agrave consuetudo salienta esta terceira hipoacutetese a extensatildeo do fenocircmeno Tradiccedilatildeo tambeacutem ao acircmbito da fides

Estas trecircs concepccedilotildees deram forma ao texto do Decreto de tal modo que as suas

linhas mestras derivam de Cervini e todo o texto deve ser entendido agrave luz de suas ideacuteias Contudo em duas passagens isto eacute no pervenerunt e no conservatas haacute influecircncia da segunda concepccedilatildeo enquanto no tum ad fidem tum ad mores haacute influecircncia da terceira

Em face destas trecircs concepccedilotildees das quais na realidade existem diversas variantes que tomadas em conjunto satildeo a expressatildeo das ideacuteias dominantes adotadas aparecem as teses de Bonuccio e de Nacchianti tatildeo postas em evidecircncia por Geiselmann como sentenccedilas contraacuterias De fato o parecer de Bonuccio claramente [56] se opotildee agrave segunda concepccedilatildeo (contra a supervalorizaccedilatildeo das consuetudines natildeo per pietatis affectus) ao passo que Nacchianti se levanta antes contra a terceira posiccedilatildeo e salienta a suficiecircncia da feacute recebida por meio da Escritura46

Seria de notar-se ainda que as concepccedilotildees segunda e terceira tecircm algo em comum Ambas opotildeem agrave visatildeo pneumatoloacutegica de Cervini da salvaccedilatildeo sempre presente uma visatildeo mais historicista relacionada com o prolongamento da salvaccedilatildeo operada uma soacute vez ou seja o ἑφάπαξ Na realidade deve-se dizer que embora de um lado tanto a visatildeo presencial de Cervini como tambeacutem a visatildeo historicista do outro grupo se consideradas isoladamente cada qual de per si sejam perigosas se natildeo insustentaacuteveis 46 Aliaacutes de acordo com uma informaccedilatildeo de Cervini parece que o Bispo de Chioggia finalmente renunciou agrave sua tese da suficiecircncia da Escritura na qual se inclinava a recusar as tradiccedilotildees Na carta de Cervini ao Cardeal Farnese de 27 de fevereiro de 1546 lemos hellip Chioggia che (quasi quasi) voleva dire queste traditioni essere superflue perorando che tutto quello che era necessario alla salute era scritto et allegando etiam S Agostino sopra lultimo capitulo di S Giovanni a questo proposito Pure per non poter negare che molte cose appartenenti almeno alli sacramenti non ci fussero venute ex tra ditione et per consequente che non tutte le cose necessarie alia nostra salute erano scritte poiche ebbe fatte molte distintioni concluse che ancor lui accettava queste ldquoche in la chiesa fusse qualque traditione apostolica non scrittardquo (et con queste parole diceva che se ne facesse il decreto) credo che molti sono restati scandalizati di lui (CT X Nr 315 paacutegs 399 411) Cf tambeacutem CT I 494 nota 9 e 495 nota 2 CT V 18 nota 5 e 19 e nota 1 O mesmo protesto que aparece contra Nacchianti manifesta-se tambeacutem na observaccedilatildeo de Massarelli Este chega a chamar aquele de novarum rerum cupidus (1 494 18) e esclarece que reprehensus est a multis (1 494 22) Diante disto eacute de todo destituiacuteda de creacutedito a importacircncia que Geiselmann lhe atribui mesmo se abstrairmos de outras razotildees jaacute conhecidas sobre as quais natildeo precisamos insistir

de outro lado pelo menos tornam possiacutevel uma exata visatildeo do conjunto devido agrave sua muacutetua confluecircncia e limitaccedilatildeo No texto atual estatildeo presentes embora pouco nitidamente ambos os pontos de vista o elemento presencial e o ἑφάπαξ Conveacutem que entendamos assim o texto de modo a considerarmos [57] ambos estes aspectos como essenciais Consequumlentemente reconheceremos que ambos pertencem constitutivamente agrave realidade da vida cristatilde e portanto tambeacutem agravequela parcela do Cristianismo a que damos o nome de Tradiccedilatildeo Estes dois elementos satildeo a presenccedila do Espiacuterito Santo e o seu nexo com o fato singular da salvaccedilatildeo ocorrido uma soacute vez por todas na histoacuteria dos homens

Assim se acharaacute finalmente a resposta agrave pergunta de corno noacutes devemos entender o parecer do Conciacutelio de Trento A primeira e mais importante conclusatildeo parece-me ser o fato de o Conciacutelio ter visto muito claramente o nexo entre Tradiccedilatildeo e Revelaccedilatildeo A seguir elaborou sempre em consonacircncia com a tradiccedilatildeo patriacutestica e medieval um conceito de Revelaccedilatildeo muito menos material do que o que seraacute adotado mais tarde pela teologia dos tempos modernos Somente assim se deve conceber a ideacuteia da Revelaccedilatildeo do Espiacuterito Santo na Igreja Partindo do ramo nitidamente patriacutestico da teologia medieval tatildeo francamente acolhido no discurso de Cervini deveria ser muito menos categoacuterica a opiniatildeo que coloca o teacutermino da Revelaccedilatildeo na morte do uacuteltimo Apoacutestolo Naturalmente esta questatildeo natildeo pode ser aqui estudada com maiores detalhes A sua soluccedilatildeo como entatildeo se apresentava aos teoacutelogos poderia ser hoje impostada apelando-se para as categorias da teologia atual Segundo esta podemos dizer que a Revelaccedilatildeo estaacute encerrada do ponto de vista de seu princiacutepio material Todavia estaacute e continua presente em sua realidade eficaz Noutros termos a Revelaccedilatildeo tem eacute verdade o seu ἑφάπαξ enquanto ela se realizou num determinado dia na Histoacuteria Entretanto ela tem tambeacutem o seu ldquohojerdquo permanente isto eacute o que foi uma vez por todas realizado na feacute da Igreja permanece sempre vivo e operante Assim a feacute cristatilde natildeo se volta apenas para o passado Abrange tambeacutem o presente e o futuro Eacute verdade que a posterior materializaccedilatildeo historicista da ideacuteia de Revelaccedilatildeo aparece jaacute claramente insinuada nos debates tridentinos corno um fato previsto mas ainda [58] natildeo consumado embora talvez se possa dizer que nos textos conciliares ficou definitivamente consagrada a sua aceitaccedilatildeo

Finalmente acrescentemos ainda que com base nos debates do Conciacutelio podemos estabelecer quatro elementos da ideacuteia de Tradiccedilatildeo 1 O aspecto natildeo-escrito da Revelaccedilatildeo ou do Evangelho contido na Biacuteblia e no coraccedilatildeo dos fieacuteis 2 A palavra do Espiacuterito Santo no decorrer de todo o tempo da Igreja

3 A atividade da Igreja nos Conciacutelios 4 A Tradiccedilatildeo lituacutergica e a da vida da Igreja em geral Nestes quatro elementos

que se deve ter sob os olhos pois formam o fundo ideoloacutegico do Decreto expressa-se a realidade uacutenica do tempo presente da Igreja cristatilde Nele estaacute presente todo o passado poacutes-apostoacutelico da Igreja (inclusive o proacuteprio tempo dos apoacutestolos) de modo que toda a sua vida eacute na Sagrada Escritura um elemento central embora natildeo o uacutenico Em suma deve ter ficado claro que o Conciacutelio de Trento a despeito do caraacuteter contrastante e fixo de sua ideacuteia de Revelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeo oferece uma visatildeo muito mais rica destes conceitos do que a que impregnou a mentalidade dos seacuteculos seguintes Justamente por

isso a teologia de hoje pode retirar daiacute novos subsiacutedios novo apoio para suas pesquisas e novas indicaccedilotildees sobre o verdadeiro caminho a seguir

Quadro sinoacutetico do Decreto tridentino sobre a Tradiccedilatildeo

Primeiro princiacutepio conforme Cervini (AT = Escritura)

Sacrosancta œcumenica et generalis Tridentina Synodus in Spiritu Sancto legitime congregata [] hoc sibi perpetuo ante oculos proponens ut sublatis erroribus puritas ipsa EVANGELII in Ecclesia conservetur quod PROMISSUM ANTE PER PROPHETAS IN SCRIPTURIS SANCTIS

Segundo princiacutepio conforme Cervini o Evangelho em parte escrito em parte insculpido nos coraccedilotildees

[59] DOMINUS NOSTER IESUS CHRISTUS DEI FILIUS PROPRIO ORE PRIMUM PROMULGAVIT DEINDE PER SUOS APOSTOLOS TAMQUAM FONTEM OMNIS ET SALUTARIS VERITATIS ET MORUM DISCIPLINAE OMNI CREATURAE PRAEDICARI IUSSIT PERSPICIENSQUE HANC VERITATEM ET DISCIPLINAM CONTINERI IN LIBRIS SCRIPTIS ET SINE SCRIPTO TRADITIONIBUS QUAE AB IPSIUS CHRISTI ORE AB APOSTOLIS ACCEPTAE AUT AB IPSIS APOSTOLIS SPIRITU SANCTO DICTANTE

Seripando Cervini e outros soacute consideram as tradiccedilotildees recebidas pela Igrej (ldquoad nos usquerdquo)

quasi per manus traditae ad nos usque pervenerunt

orthodoxorum Patrum exempla secuta omnes libros tam Veteris quam Novi Testamenti cum utriusque unus Deus sit auctor nec non TRADITIONES IPSAS

Lejay Tradiccedilatildeo contendo natildeo soacute a ldquoconsuetudordquo mas relacionada tambeacutem com a ldquofidesrdquo (foacutermula conciliar)

tum ad fidem tum ad mores pertinentes

Terceiro princiacutepio de Cernini Depois da Ascenccedilatildeo de Cristo o Espiacuterito Santo ensina tambeacutem os misteacuterios de Deus

TAMQUAM VEL ORETENUS A CHRISTO VEL A SPIRITU SANCTO DICTATAS

Seripando Cervini etc soacute satildeo consideradas as coisas recebidas pela Igreja (como acima)

et continua successione in Ecclesia catholica conservatas

Cervini Escritura e Tradiccedilatildeo procedem ambas do mesmo Espiacuterito Santo

pari pietatis affectu ac reverentia suscipit ac veneratur

  • Prefaacutecio
  • SEGUNDA PARTE
  • Explicaccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo
  • segundo o Decreto do Conciacutelio de Trento
Page 24: Revelacao e Tradicao-Joseph Ratzinger (Bom Ler)

histoacuterica do Novo Testamento Ultrapassa-a sem contudo ser-lhe puramente externa Com efeito no Novo Testamento comeccedila jaacute o processo da exposiccedilatildeo pela Igreja das verdades reveladas A teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento processa-se dentro dele proacuteprio como de modo clariacutessimo se percebe na histoacuteria da Revelaccedilatildeo sinoacutetica22

Eacute oportuno fazermos ainda uma pequena observaccedilatildeo se cotejarmos atentamente a teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento com a Dogmaacutetica reconheceremos que se impotildee uma outra distinccedilatildeo A Dogmaacutetica como ciecircncia aleacutem da exposiccedilatildeo eclesiaacutestica do Novo Testamento abrange tambeacutem a teologia particular de cada teoacutelogo Neste caso para se falar com precisatildeo dever-se-ia apresentar somente o proacuteprio dogma como teologia eclesiaacutestica do Novo Testamento

O que acabamos de referir natildeo passa naturalmente de um esboccedilo que necessitaria em seus pormenores de natildeo poucos esclarecimentos e distinccedilotildees a fim de ser completo No caso presente entretanto damos por suficiente este esboccedilo Resumindo o que ateacute aqui expusemos podemos agora destacar vaacuterias ldquoraiacutezesrdquo da Tradiccedilatildeo e apontar vaacuterias camadas em seu seio [35] lordf raiz a maior amplidatildeo da ldquoTradiccedilatildeordquo em referecircncia agrave ldquoEscriturardquo

2ordf raiz o caraacuteter especiacutefico da Revelaccedilatildeo neotestamentaacuteria como Pneuma em contraste com o Gramma Eacute o que na linguagem de Bultmann se poderia chamar de sua condiccedilatildeo de ldquonatildeo-objetordquo (Nichtobjektiviertbarkeit) A praxe eclesiaacutestica e a teologia medieval expressaram este aspecto ao sobreporem a fides agrave Scriptura isto eacute o dogma como regra de feacute agraves minuacutecias da lei escrita23 O dogma eacute como a chave hermenecircutica da Escritura que em uacuteltima anaacutelise sem o auxiacutelio da hermenecircutica ficaria sendo algo fechado

3ordf raiz o caraacuteter presencial do Cristo-evento e a presenccedila dinacircmica do Espiacuterito de Cristo em seu Corpo a Igreja E consequumlentemente o poder que tem a Igreja de fazer a pregaccedilatildeo do Cristo ontem e hoje pregaccedilatildeo esta cuja fonte se encontra na interpretaccedilatildeo eclesiaacutestica da mensagem do reino transmitida pelos Apoacutestolos

Em conexatildeo com estas trecircs raiacutezes da ideacuteia (ou melhor da realidade) da Tradiccedilatildeo podem distinguir-se na mesma as seguintes camadas

a) Na origem de toda Tradiccedilatildeo estaacute o fato de que o Pai enviou o Seu Filho ao mundo e que o Filho por sua vez se [36] entregou ndash como sinal ndash aos ldquopovosrdquo (παραδίδοται) Esta paraacutedosis original em sua forccedila direta e salvadora

22 Cf por exemplo a rica exposiccedilatildeo de G BORNKMANN Jesus von Nazareth Estutegarte 1956 Sobre a questatildeo aqui estudada cf H SCHLIER Uumlber Sinn und Aufgabe einer Theologie des Neuen Testaments in H VORGRIMLER Exegese und Dogmatik Mainz 1962 p6990 23 O que haacute de melhor sobre este assunto no tocante agrave Patriacutestica seraacute encontrado em HARNACK DG II (1931) p84-116 HARNACK diz na p 87 nota 3 o seguinte ldquoO Cacircnon era de iniacutecio a regra da feacute A Escritura estaacute centrada na verdade Sem duacutevida nenhuma sua autoridade funda-se solidamente no Antigo Testamento e nas palavras do Senhorrdquo ndash Que assim tenha pensado tambeacutem a Idade Meacutedia e que aqui aleacutem da revelatio (da qual falaremos na 2ordf parte deste livro) a fides sobrepondo-se agrave Scriptura estabelece a forma essencial do conceito de Tradiccedilatildeo foi o que tentei demonstrar em meu artigo Wesen und Weisen der auctoritas im Werk des heiligen Bonaventura in Die Kirche und ihre Aumlmter und Staumlnde (Festgabe Kardinals Frings publicado por CORSTEN-FROTZ-LINDEN Colocircnia 1960 p 58-72

prolonga-se na permanente presenccedila de Cristo no σῶμα Χριστοῦ ndash no Seu Corpo a Igreja Assim o misteacuterio integral da presenccedila de Cristo eacute antes de tudo a realidade total transmitida pela Tradiccedilatildeo (fato fundamental e decisivo sempre anterior a todas as explicaccedilotildees particulares mesmo as da Escritura) e reguladora do que deve propriamente ser transmitido

b) A Tradiccedilatildeo existe concretamente como presenccedila na feacute Esta por seu turno como ldquoin-habitaccedilatildeordquo de Cristo precede todas as explicaccedilotildees particulares e frutuosa e viva ldquoexplicita-serdquo (explizierend) atraveacutes dos tempos

c) A Tradiccedilatildeo tem seu oacutergatildeo na plenitude dos poderes da Igreja e portanto naqueles que satildeo os legiacutetimos depositaacuterios destes poderes24

d) A Tradiccedilatildeo exprime-se tambeacutem naquilo que emanado da autoridade da Igreja se tornou regra de feacute (Symbolum fides quaelig) Portanto a questatildeo de se saber se certas proposiccedilotildees foram transmitidas desde o

comeccedilo pela Tradiccedilatildeo ao lado da Escritura ou em outros termos se existe desde o comeccedilo um segundo princiacutepio material e autocircnomo ao lado da Escritura torna-se afinal um problema inteiramente secundaacuterio Talvez lhe devamos responder negativamente

5 A funccedilatildeo da exegese [37] Pelo que ateacute aqui dissemos ficaram esclarecidas quase que exclusivamente

trecircs pontos os limites da letra da Escritura a liberdade do Espiacuterito Santo e a autoridade da Igreja Acontece poreacutem que a exposiccedilatildeo que fizemos abriga ainda um sentido diverso relacionado com a justa preocupaccedilatildeo de Lutero da qual partimos

Se ficou estabelecido que a Revelaccedilatildeo se faz presente atraveacutes da pregaccedilatildeo e se pregaccedilatildeo eacute exposiccedilatildeo da palavra revelada entatildeo pode e deve agora ao que precede acrescentar-se o seguinte a Tradiccedilatildeo eacute essencialmente e sempre uma exposiccedilatildeo Natildeo existe de maneira autocircnoma e sim como explicaccedilatildeo como exposiccedilatildeo ldquorelacionada com a Escriturardquo

Isto vale para a pregaccedilatildeo do proacuteprio Jesus Cristo realizaccedilatildeo plena da Revelaccedilatildeo e sua exposiccedilatildeo feita com autoridade A pregaccedilatildeo de Jesus Cristo natildeo aparece como algo absolutamente novo na Escritura Isto eacute como algo ainda natildeo atestado no Antigo Testamento Ela ensina isto sim a essecircncia do que jaacute estava escrito e lhe confere uma vida nova que o simples exegeta natildeo pode comunicar-lhe

O que vale para a mensagem de Cristo que permanece a mesma sob diferentes modalidades de exposiccedilatildeo vale tambeacutem para a pregaccedilatildeo apostoacutelica e a eclesiaacutestica Como ldquoTradiccedilatildeordquo ela deve em uacuteltima anaacutelise ser uma exposiccedilatildeo ldquosegundo a Escriturardquo a ela sujeita e com ela relacionada Sem duacutevida natildeo eacute ela uma exposiccedilatildeo no 24 Estas ideacuteias natildeo podem ser desenvolvidas mais detalhadamente aqui como seria de desejar uma vez que em rigor estamos procurando apenas fundamentar o conceito de Tradiccedilatildeo Em razatildeo da brevidade que me impus contentei-me apenas nas teses precedentes com explanar o assunto ateacute ao ponto em que ficasse patente a relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a ldquoIgrejardquo (cf as teses 4 e 5) Para se descer a maiores detalhes dever-se-ia analisar tambeacutem o conceito de Igreja que supomos conhecido do leitor Para isto cf a nota 6 onde citamos nosso livro sobre o Ofiacutecio e a unidade da Igreja Encontram-se aiacute algumas observaccedilotildees sobre o assunto de que ora tratamos

sentido de mera interpretaccedilatildeo exegeacutetica Mas sim na autoridade espiritual recebida do Senhor a qual se consuma na existecircncia plena da Igreja em sua feacute em sua vida e em seu culto Contudo ela permanece sendo (mais ainda do que o Cristo-evento em que se funda a Igreja) uma ldquoex-posiccedilatildeordquo (Aus-Legung) comprometida com a Histoacuteria e com a Palavra [38] Exprime-se deste modo a sua ligaccedilatildeo com a accedilatildeo concreta de Deus nesta mesma Histoacuteria e em seu caraacuteter de fato histoacuterico uacutenico (o ἑφάπαξ ldquoo ocorrido uma soacute vezrdquo) A realidade cristatilde da Revelaccedilatildeo eacute tatildeo essencial quanto ldquoeternardquo e definitiva Resulta daiacute a unidade entre o Cristo da Feacute e o Jesus da Histoacuteria o Jesus histoacuterico natildeo eacute senatildeo o Cristo da Feacute ainda que a feacute seja sempre algo mais do que a histoacuteria

Segue-se que do mesmo modo que existe um ofiacutecio de custoacutedia da Revelaccedilatildeo por parte da Igreja ofiacutecio por ela mesma atestado existe tambeacutem um ofiacutecio de custoacutedia da mesma Revelaccedilatildeo por parte da exegese que penetra o sentido literal da Escritura e defende a uniatildeo do Logos com a carne contra qualquer perigo de gnose Existe portanto por assim dizer algo como uma autonomia especiacutefica da Escritura como regra objetiva e sob muitos pontos de vista esclarecedora do Magisteacuterio eclesiaacutestico Esta era sem duacutevida uma exigecircncia legiacutetima de Lutero que ainda natildeo foi devidamente acolhida na Igreja catoacutelica por parte do Magisteacuterio cujos limites internos nem sempre foram claramente entendidos

Dever-se-ia partindo daqui salientar uma dupla criteriologia em se tratando da feacute De um lado haacute o que a Igreja antiga chamou de ldquoregra da feacuterdquo norma reguladora da palavra revelada contida na Escritura e sua exposiccedilatildeo Esta praeligscriptio da posse da Escritura como proacutepria segundo Tertuliano exclui a possibilidade de qualquer uso legiacutetimo da mesma Escritura contra a Igreja Por outro lado haacute tambeacutem o limite da littera Scripturaelig ou do sentido literal historicamente fixaacutevel que de acordo com o que ficou dito natildeo constitui nenhum criteacuterio absoluto ou autocircnomo mas sim somente um criteacuterio relativo no confronto da feacute com a ciecircncia O que na Escritura se pode descobrir quer mediante estudo cientiacutefico quer por simples leitura tem a funccedilatildeo de um criteacuterio real a que deve estar atento inclusive o Magisteacuterio em suas explicaccedilotildees Certamente [39] trata-se entatildeo de elementos sub-componentes da ciecircncia que natildeo podem servir para se julgar a feacute mas nela encontram uma instacircncia criacutetica e tecircm tambeacutem um importante papel a exercer o de zelar pela pureza do ἑφάπαξ de tutelar o conteuacutedo da Revelaccedilatildeo e de defender o dualismo histoacuterico carneespiacuterito (ldquodie Sarx der Geschichterdquo) contra os arbiacutetrios da gnose que tende sempre a impor-se

A reformatio na qual estaacute empenhada a Igreja nesta hora histoacuterica tem um papel relevante a desempenhar Eacute a missatildeo de abrir novas perspectivas para o diaacutelogo tentando assim chegar a uma ldquoreformardquo diferente da do passado que culminou com a divisatildeo no seio da Cristandade ocidental Tal missatildeo se exerceraacute em harmonia com o pleno ofiacutecio de testemunho da Igreja que tira seu direito e sua forccedila da presenccedila do Espiacuterito e de Cristo presente em todos os tempos Pois ele eacute sempre o Cristo de agora com a plenitude de seus direitos e de seus poderes Ele eacute quem daacute legitimidade e vigor ao testemunho singular e definitivo da Escritura que por sua vez encontra seu pleno sentido na singularidade da accedilatildeo histoacuterico-salviacutefica de Jesus Cristo Ele deu ao Pai seu Corpo crucificado e dando-se a si mesmo santificou para sempre os que o receberam (cf Hb 1014 727) Ele eacute o Cristo ontem hoje e sempre (Hb 138)

SEGUNDA PARTE

Explicaccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo segundo o Decreto do Conciacutelio de Trento

Parece que a completa elucidaccedilatildeo das razotildees que levaram agrave substituiccedilatildeo do

partim-partim pelo et e consequumlentemente agrave pesquisa dos dados do debate tridentino e de sua preacute-histoacuteria aparentemente favoraacutevel agrave suficiecircncia material da Escritura [40] simplifica indevidamente este problema fazendo-nos perder de vista os proacuteprios antecedentes do Decreto do Conciacutelio de Trento

1 A concepccedilatildeo pneumatoloacutegica da Tradiccedilatildeo no esquema fundamental do Cardeal Cervini

a) O conteuacutedo Um balanccedilo histoacuterico e detalhado do problema em seu conjunto exigiria uma

pesquisa exaustiva que natildeo reduzisse o seu acircmbito como o fez Geiselmann em seu livro25 Natildeo eacute nossa intenccedilatildeo proceder a um exame minucioso do assunto no presente trabalho Aqui soacute seratildeo tratados alguns pontos do debate tridentino com o fim de ampliarmos mais o horizonte de nossas reflexotildees

Fundamental para a compreensatildeo dos debates em pauta bem como do Decreto definitivo do Conciacutelio parece-me ser o Discurso do Cardeal Legado Cervini datado de 18 de fevereiro de 1546 [41] cujas linhas gerais se patenteiam tanto no Decreto como em outras decisotildees conciliares26

Tem o discurso de Cervini o meacuterito de mostrar as linhas diretrizes do Decreto de maneira mais clara do que aparecem estas na uacuteltima redaccedilatildeo do mesmo onde elas se diluem muito devido a uma seacuterie de variadas implicaccedilotildees Eacute ainda de grande auxiacutelio para o entendimento do referido discurso uma carta dos Cardeais Legados ao Cardeal Alexandre Farnese de 28 de fevereiro de 1546 Esta carta revela conteuacutedo idecircntico ndash eacute certamente inspirada pelo mesmo Cervini ndash e oferece ainda alguns outros

25 Eacute lamentaacutevel que Geiselmann em sua anaacutelise da contribuiccedilatildeo medieval sobre este assunto se tenha apoiado apenas em argumentos de segunda matildeo portanto de valor histoacuterico discutiacutevel Queira o leitor ver minhas observaccedilotildees a este respeito in Theol-prakt Quartalschrift 1963 p224-227 As novas (e temperamentais) invectivas de Geiselmann in TThQu 144 (1964) p 31-69 em nada modificaram a minha posiccedilatildeo de vez que natildeo trazem nenhuma contribuiccedilatildeo vaacutelida ao assunto Precioso ao contraacuterio eacute o trabalho de Y CONGAR La Tradition et les traditionshellip Essai historique Paris 1960 Importante eacute tambeacutem a obra de J BEUMER Die muumlndliche uumlberlieferung als Glaubensquelle Friburgo 1962 A respeito do Conciacutelio de Trento cf sobretudo aleacutem do estudo fundamental de JEDIN o artigo de E ORTIGUES Escriture et Traditions apostoliques au Concilie de Trente in RSR 36 (1949) p 271-299 K D SCHMIDT Studien zur Geschichate des Konzilis von Trient Tubinga 1925 p 152-209 26 O discurso nos foi transmitido em duas redaccedilotildees A primeira mais curta encontra-se nas Atas do Conciacutelio in CT V 11 A segunda faz parte do diaacuterio de Massarelli (Diarium III) in CT I p484 Quanto ao conteuacutedo os dois textos se completam Na anaacutelise que aqui ensaiamos as duas versotildees satildeo comparadas entre si de modo a fazerem um todo Sobre a posiccedilatildeo de Cervini no Conciacutelio cf H JEDIN Geschichte des Konzils von Trient II Friburgo 1957 p38-40 A descriccedilatildeo do desenrolar histoacuterico dos debates acha-se em JEDIN op cit p42-82 e supomo-la conhecida do leitor de vez que serve de base para a anaacutelise teoloacutegica do Decreto tridentino

esclarecimentos Cervini sustenta no citado discurso que existem trecircs princiacutepios e fundamentos de nossa feacute

1) Os livros sagrados escritos sob a inspiraccedilatildeo do Espiacuterito Santo 2) O Evangelho que Nosso Senhor natildeo escreveu mas ensinou oralmente e

implantou nos coraccedilotildees Parte do Evangelho foi escrita mais tarde pelos Evangelistas enquanto muita coisa foi simplesmente confiada aos coraccedilotildees dos fieacuteis

3) Porque o Filho de Deus natildeo ia permanecer sempre entre noacutes enviou ele o Espiacuterito Santo que haveria de revelar os misteacuterios no iacutentimo dos fieacuteis e de ensinar agrave Igreja toda a verdade ateacute ao fim dos tempos27

[43] Numa segunda redaccedilatildeo mais detalhada do discurso estas mesmas ideacuteias satildeo

desenvolvidas mais amplamente Aiacute lemos que a Revelaccedilatildeo se apresentou de modo diferente em diversos tempos

1) Nos Patriarcas cuja feacute eacute atestada na Escritura a que chamamos de Antigo Testamento

2) Em Jesus Cristo que implantou o seu Evangelho natildeo por escrito mas oralmente natildeo in charta mas in corde Das coisas que emanaram de Cristo (quaelig a Cristo emanarunt) algumas foram escritas outras permaneceram nos coraccedilotildees dos homens (quaeligdam in cordibus hominum relicta fuerunt) Todo o Evangelho de Cristo que consta desta dupla modalidade forma (tendo como primeiro princiacutepio o Antigo Testamento) o secundum prindipium fidei nostraelig

3) Daiacute surge o terceiro princiacutepio (tertium autem) porque o Filho de Deus natildeo iria permanecer sempre entre noacutes enviou ele ao mundo o Espiacuterito Santo que haveria de explicar os misteacuterios de Deus e tudo o que fosse ainda obscuro para os homens28 De modo semelhante a citada carta ao Cardeal Farnese fala de dois passos (due

passi) Um eacute que a Revelaccedilatildeo de Nosso Senhor natildeo foi totalmente escrita mas permaneceu em parte contida nos coraccedilotildees dos homens e na Tradiccedilatildeo da Igreja O outro [43] passo consiste em confirmar ldquoquello che egrave suggerito lo Spirito Santo in la Chiesa maxime medianti i concilij doppo lAscensione in cielo del Signorerdquo29

Notamos logo que contrariamente ao que esperaacutevamos natildeo dois mas trecircs satildeo os princiacutepios apontados a Escritura o Evangelho e a Revelaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

27 CT V 11 helliptria esse principia et fundamenta nostrae fidei primum libros sacros secundum esse evangelium quod Christus Dominus Noster non scripsit sed ore docuit et in cordibus illud plantavit cujus evangelii nonnulla evangelistaelig scripto mandarunt multa quoque relicta sunt in cordibus hominum Tertium quia non semper filius Dei corporaliter nobiscum mansurus erat misit Spiritum Sanctum qui in cordibus fidelium secreta Dei revelaret et ecclesiam quotidie et usque consummationem saeligculi doceret omnem veritatem et si quid in mentibus hominum dubii occurrisset declararet 28 CT I 484 Digna de nota eacute ainda a foacutermula contida na paacutegina 48514-16 nihil tamen inter scripturas sacras et apostolicas traditianes differt illaelig enim scriptaelig hae per insinuationem habentur utraeque tamen a Spiritu Sancto eodem modo emanataelig Confira-se com CT V 11 19 ab eodem Spiritu et illos (scilicet libros) et istas (scilicet traditiones) descendisse 29 CT X 373

Eacute portanto necessaacuterio observar que sob o termo ldquoEscriturardquo se entende o Antigo Testamento e que aleacutem deste (que eacute Escritura em sentido proacuteprio) aparece como segundo princiacutepio o Evangelho apresentaccedilatildeo do Cristo-evento O Evangelho por sua vez abrange o que estaacute escrito e o que natildeo estaacute escrito mas sim apenas insculpido no coraccedilatildeo dos crentes Deste modo o segundo princiacutepio representa uma vantagem pneumaacutetica sobre o que estaacute escrito o Evangelho eacute nesta concepccedilatildeo algo diferente da letra (Escritura) e soacute em parte vem escrito (Isto natildeo deve ser entendido no sentido de divisatildeo das verdades da feacute fenocircmeno denunciado ldquocom horrorrdquo por Geiselmann Ao contraacuterio Entenda-se apenas no sentido de diferente grau de dignidade no modo de exprimir-se) Em rigor o Evangelho como tal soacute pode ser escrito em parte se considerarmos a sua essecircncia

Finalmente ndash o que eacute muito de se admirar ndash segue-se como terceiro princiacutepio a accedilatildeo visiacutevel do Espiacuterito Santo em todo o tempo da Igreja

Admitimos portanto que o que noacutes geralmente chamamos de Tradiccedilatildeo natildeo aparece aqui como um soacute princiacutepio Biparte-se antes em dois princiacutepios intimamente ligados o ldquoEvangelhordquo princiacutepio apenas em parte identificaacutevel com a Escritura e a accedilatildeo do Espiacuterito Santo no tempo da Igreja Ademais podemos observar que a Escritura do Novo Testamento natildeo aparece como um princiacutepio ao lado da Revelaccedilatildeo apostoacutelica Muito menos como [44] eacute o nosso caso se apresenta a Escritura neotestamentaacuteria juntamente com a veterotestamentaacuteria como uma grandeza uacutenica uma ldquoEscriturardquo soacute agrave qual se poderia contrapor a ldquoTradiccedilatildeordquo como uma segunda grandeza O Novo Testamento em seu conjunto aparece como um segundo e mais amplo princiacutepio ou seja o Evangelho que como tal se opotildee de um lado ao Antigo Testamento e de outro agrave projeccedilatildeo histoacuterica do tempo da Igreja Sua unidade interna eacute evidentemente mais forte e importante do que a sua divisatildeo em escrito e natildeo-escrito Assim o Evangelho como um soacute princiacutepio pode ser contraposto ao Antigo Testamento a despeito desta dupla formalidade A impossibilidade de se representar o Novo Testamento como Escritura impossibilidade esta demonstrada por Satildeo Paulo e pelos primeiros seacuteculos cristatildeos eacute aqui claramente revelada

Ainda uma observaccedilatildeo relativa ao texto a que vimos nos referindo Em nenhum dos dois pontos por noacutes citados no estudo da Tradiccedilatildeo isto eacute nem no elemento contido no primeiro nem no apresentado no terceiro princiacutepio figura a Tradiccedilatildeo como verbal Em ambos os casos ao contraacuterio trata-se mais da Tradiccedilatildeo real com prevalecircncia da realidade sobre as palavras que a atestam Este fato que estaacute claro no terceiro princiacutepio o pneumatoloacutegico vale tambeacutem em relaccedilatildeo agrave implantaccedilatildeo do Evangelho nos coraccedilotildees contida no segundo princiacutepio Tal implantaccedilatildeo vai muito aleacutem do que se encontra expresso na letra da Escritura

Que papel tenham estas ideacuteias exercido nas discussotildees do Conciacutelio pode-se concluir tambeacutem das auctoritates citadas por Cervini entre as quais figuram Jo 16 12 (hellipSpiritus Sanctus suggerethellip) e Fl 3 15 (Quicumque perfecti sumus haeligc sentiamus et si quid aliter sentitis haeligc quoque Deus vobis revelabit) Ambos estes textos satildeo de teor acentuadamente [45] pneumatoloacutegico-presencial30 Que tais ideacuteias natildeo eram

30 CT V 14 e 15 Um exame profundo das auctoritates quer da Escritura quer entre os Santos Padres que neste particular satildeo favoraacuteveis agrave Tradiccedilatildeo seria em si conclusivo para a elaboraccedilatildeo do conceito

estranhas aos Padres conciliares deduz-se ainda de uma seacuterie de outras referecircncias Assim ouvimos o Bispo de Aqui dizer que aleacutem da Sagrada Escritura existe muita coisa na Igreja de Deus que vindo dos Apoacutestolos e passando de geraccedilatildeo a geraccedilatildeo chegou ateacute noacutes assim como muitas outras quaelig etsi scripta Apostoli nobis non reliquerunt per Spiritus Sancti revelationem nobis (tradita) sunt (Tradita estaacute aqui por revelata) 31 Partindo daiacute se poderia descrever a Tradiccedilatildeo justamente como o componente pneumatoloacutegico do Cristo-evento b) A influecircncia do esquema de Cervini em diversas decisotildees conciliares

Eacute verdade que esta concepccedilatildeo tripartida aparece muito atenuada no Decreto

oficial sobre a Tradiccedilatildeo Que poreacutem em suas linhas fundamentais natildeo tenha ela sido de modo nenhum [46] abandonada mostram-no duas outras passagens nas quais o Conciacutelio faz uso por assim dizer in actu das ideacuteias aqui expressas32 Assim na Introduccedilatildeo ao Decreto sobre a Eucaristia (Denz 873) se lecirc Sacrosancta Synodus sanamhellipdoctrinam tradens quam semper catholica Ecclesia ab ipso Jesu Christo Domino Nostro et eius apostolis erudita atque a Spiritu Sancto illi omnem veritatem in dies suggerente (Jo 1416) edocta retinuithellip

Aqui a accedilatildeo proacutepria do Conciacutelio eacute descrita como tradere e a este tradere eacute atribuiacutedo um duplo fundamento De um lado o ensino de Jesus e dos Apoacutestolos (Note-se que este ponto corresponde ao Evangelho segundo a concepccedilatildeo de Cervini E de certo modo tambeacutem pela citaccedilatildeo de Jesus e dos Apoacutestolos se reconhece a dupla modalidade do Evangelho como escrito e como inserido nos coraccedilotildees) De outro lado o ensino dado pelo Espiacuterito Santo que conduz agrave verdade in dies isto eacute no de correr do tempo futuro

O outro texto que pode ser aduzido aqui como prova do que afirmamos encontra-se no Preacircmbulo do Decreto sobre o Purgatoacuterio (Denz 983) Aiacute se lecirc hellipCatholica Ecclesia Spiritu Sancto edocta ex Sacris Litteris et antiqua Patrum traditione in sacris Conciliis et novissime in hac Synodo docuerit A descriccedilatildeo da accedilatildeo proacutepria do

aqui exposto H HOLSTEIN procurou fazer o cotejo destas auctoritates e fecirc-lo de modo admiraacutevel em seu artigo La Tradition dapregraves le Concile de Trente (RSR 47 1959 p367-390 e em particular para o caso em questatildeo a p375) Ele encontra nos textos estudados duas linhas de tendecircncias A linha de Santo Irineu para a qual o testemunho dos Apoacutestolos eacute o de sua personalidade de sua vida e de seu ofiacutecio Aleacutem desta o grupo composto de Tertuliano Cipriano Basiacutelio e Agostinho forma uma corrente que se poderia denominar ldquocerimonialrdquo Oriacutegenes se enquadra em ambos os grupos Existe entre os autores estudados uma seacuterie de textos que se referem agraves observationes consuetudines institutiones e que levam a entender-se a Tradiccedilatildeo neste mesmo sentido Aiacute se vecircem tambeacutem textos que sublinham o aspecto natildeo-escrito do Evangelho enquanto insculpido no coraccedilatildeo dos fieacuteis e aleacutem disso textos que apontam a Igreja como o ldquolugarrdquo da verdade cristatilde 31 CT I 483 (18 de fevereiro de 1546) Em 26 de fevereiro (CT V 18) encontramos Cervini a tratar de novo deste assunto Cf tambeacutem um pronunciamento do Bispo de Fano (CT V 10) nestes termos Cum jam receperimus Scripturas Sacras necessario recipiendaelig sunt traditiones quaelig ab eodem Spiritu Sancto quo scripturaelig dictataelig sunthellip 32 Disto me adverti pela primeira vez atraveacutes de um estudo realizado sob a minha orientaccedilatildeo por CHR LIMBACR a quem sou devedor de muitas informaccedilotildees bibliograacuteficas

Conciacutelio como tradere encontra-se ainda nas declaraccedilotildees sobre o Sacramento da Extrema-Unccedilatildeo (Denz 910)

Finalmente a triacuteplice divisatildeo deixa-se insinuar nas entrelinhas do Decreto sobre a Tradiccedilatildeo embora obscurecida e diluiacuteda por uma seacuterie de acreacutescimos e citaccedilotildees a ele adicionados por outros motivos O Decreto da Tradiccedilatildeo com efeito [47]

1) Fala do Evangelho prometido pelos Profetas na Escritura e refere-se a esta em sentido estrito quer antes quer depois do Antigo Testamento

2) Fala da promulgaccedilatildeo por Cristo do Evangelho que foi transmitido pelos Apoacutestolos sob dupla forma oral e escrita Desta maneira o que natildeo ocorre no exemplo de Cervini aparece aqui antes de tudo o componente pneumatoloacutegico unido com o componente apostoacutelico a ponto de se distinguirem duas modalidades de Tradiccedilatildeo apostoacutelica a que remonta a Cristo e a que remonta ao envio do Espiacuterito Santo Pode-se assim estabelecer que em oposiccedilatildeo ao esquema de Cervini haacute um certo processo de historicizaccedilatildeo que salienta a relaccedilatildeo com o comeccedilo histoacuterico e igualmente parece deslocar o acento da tradiccedilatildeo real para a verbal

3) No epiacutelogo desta parte do Decreto da Tradiccedilatildeo que vimos analisando de novo eacute considerada a ideacuteia da Sagrada Escritura O conceito de Tradiccedilatildeo eacute entatildeo formulado em definitivo e descrito como vel oretenus a Christo vel a Spiritu Sancto dictatas et continua successione in Ecclesia catholica conservatas A referecircncia aos Apoacutestolos eacute omitida Pode-se na verdade considerar tudo isto como uma volta ao que foi dito antes Evidentemente a tradiccedilatildeo ditada pelos Apoacutestolos eacute citada de novo (A expressatildeo continua successione insinua-o) Contudo permanece sempre ainda certa indeterminaccedilatildeo ficando aberta a possibilidade de se encontrar aqui o vestiacutegio do terceiro componente de Cervini o princiacutepio pneumaacutetico propriamente dito Eacute tambeacutem claro que esta ideacuteia eacute discreta sendo adotada uma posiccedilatildeo mais acentuadamente histoacuterica Se agora lanccedilarmos os olhos sobre o que vimos considerando ateacute aqui surgiratildeo

inevitavelmente perguntas qual eacute realmente o sentido proacuteprio da concepccedilatildeo pneumatoloacutegica Como poderia ser perfeitamente entendida a ideacuteia a noacutes estranha de uma revelatio prolongada no tempo em face da unicidade e do caraacuteter [48] histoacuterico da Revelaccedilatildeo que evidentemente era conhecido tanto de Cervini quanto dos Santos Padres e teoacutelogos medievais33

Antes de examinarmos isto devemos esclarecer rapidamente os principais motivos que inspiraram o Decreto tridentino sobre a Escritura e a Tradiccedilatildeo deixando nele um tanto encoberta a concepccedilatildeo pessoal de Cervini Que opiniotildees de teoacutelogos teratildeo intervindo aqui chegando a ser em parte impressas no texto definitivo que resultou do cotejo de muitos pronunciamentos diversos Uma exposiccedilatildeo detalhada deste ponto exorbitaria do acircmbito de nossa anaacutelise Contentemo-nos com umas poucas observaccedilotildees sumaacuterias 33 Sobre este assunto tentei fazer um breve comentaacuterio no meu trabalho ldquoOffenbarung-Schrift-Uberlieferungrdquo in TThZ 67 (1958) p13-27 Cf J BEUMER ldquoDer theoretische Beitrag der Frnhscholastik zum Problem des Dogmenfortschrittsrdquo in ZkTh 72 (1952) p205-226 J de CHELLINCK Pour lrsquohistoire du mot ldquorevelarerdquo in RSR 6 (1916) p149-157

2 Relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a vida da Igreja

em diversas passagens do debate tridentino

Uma primeira seacuterie de motivos entre os quais se compreendem diversos pronunciamentos agraves vezes muito contrastantes em seu aparato exterior patenteia-se na ideacuteia de tradiccedilotildees expressa no Decreto de duas maneiras a) - per manus traditaelig ad nos usque pervenerunt b) - continua successione in Ecclesia catholico conservatas

O que se ocultaraacute sob estas duas foacutermulas que o historiador de hoje tem dificuldades em aceitar justamente por causa do historicismo nelas impliacutecito Podemos dizer que um decisivo papel exerceu aqui o pensamento que sempre aparecia nos debates a saber que as tradiccedilotildees satildeo variaacuteveis que muitas delas foram abolidas pelos Apoacutestolos e que por outro lado se [49] introduziram tradiccedilotildees eclesiaacutesticas que natildeo mais seriam abolidas34 Esta ideacuteia de Tradiccedilatildeo de certo modo se torna clara no tratado escrito sobre o mesmo assunto por Seripando para uso dos Padres Conciliares Seripando fala das Tradiccedilotildees escritas inseridas na Escritura como as claacuteusulas de Tiago o costume de as mulheres se cobrirem com um veacuteu a legislaccedilatildeo sobre o matrimocircnio contida em 1Cor 7 etc E o autor adverte que estas praacuteticas foram abolidas Isto porque embora associadas agrave palavra de Deus na Escritura dela ldquomuito diferemrdquo pois a palavra divina [50] de modo nenhum poderia ser abolida A estas tradiccedilotildees

34 Cabe aqui aduzir uma nova intervenccedilatildeo de Cervini datada de 26 de fevereiro de 1546 (CT I 33 e V 18) onde ele diz que nem todas as tradiccedilotildees procedentes dos Apoacutestolos devem ser conservadas mas somente as que ab Ecclesia receptaelig ad nos usque pervenerunt (V 18) Esta afirmaccedilatildeo anterior agrave formulaccedilatildeo dogmaacutetica feita pelo Concilio deve igualmente ser tida na conta de um autecircntico comentaacuterio do Decreto Aiacute se acentua como condiccedilatildeo essencial das tradiccedilotildees a receptio ecclesiaelig Vem ainda referida uma intervenccedilatildeo do Bispo de Bertinoro em data de 23 de marccedilo (I p 523) na qual ele sublinha que as tradiccedilotildees escritas por vezes foram mudadas Jaacute entre as natildeo-escritas umas foram mudadas e outras natildeo como por exemplo o rito de adicionar aacutegua ao vinho a Crisma a confissatildeo auricular O Bispo de Bertinoro acrescenta que por outro lado alguns pontos existem que permaneceram inteiramente inalterados tais como a crenccedila no descensus ad inferos na virgindade perpeacutetua de Maria a substituiccedilatildeo da observacircncia do saacutebado pela do domingo Temos depois um pronunciamento do Bispo de Bitonto datado de 27 de marccedilo (I 39) Este bispo era de parecer que algumas coisas foram transmitidas pelos Apoacutestolos com a finalidade de serem perpetuamente conservadas (como pertencentes ao depoacutesito da feacute) outras caiacuteram em desuso (como as claacuteusulas de Tiago) e outras enfim foram apenas aconselhadas Assim mesmo na Escritura algumas coisas haacute que foram escritas mas natildeo recebidas em uso por serem mateacuteria de mero conselho Por exemplo ldquose algueacutem te pedir a tuacutenica daacute-lhe tambeacutem o paacutelio se algueacutem te esbofetear numa face oferece-lhe tambeacutem a outrardquo Sem duacutevida excelente ilustraccedilatildeo do sermatildeo da montanha Finalmente consideraccedilotildees idecircnticas podemos encontrar na obra citada de LEJAY Eis outra amostra tirada do discurso de 23 de fevereiro (CT V 13) Nam illaelig (scil traditiones) quaelig ad fidem pertinent eadem sunt recipiendaelig auctoritate qua recipitur evangelium alia autem non ita eum earum plurimaelig immutataelig fuerint ut de bigamis de esu sanguinis et similia De modo semelhante aliaacutes fala tambeacutem Bonuccio (I 525 a 23 de marccedilo de 1546 ecclesia traditiones apostolorum quandoque mutavit verbum autem Dei nunquam mutavit neque mutare potest

Seripando opotildee as natildeo referidas na Biacuteblia e que ora satildeo apostoacutelicas ou oriundas de Conciacutelios universais e aceitas por toda a Igreja ora satildeo particulares e muito variaacuteveis35

Este texto nos leva a uma surpreendente conclusatildeo para Seripando e muitos outros Padres tridentinos36existem tradiccedilotildees na Escritura ldquoTradiccedilatildeordquo natildeo significa o natildeo-escrito Existe quer dentro da Escritura quer fora dela Isto nos conduz a outra pergunta em que consiste para os referidos Padres a essecircncia da tradiccedilatildeo se o que a constitui natildeo eacute o fato de natildeo ser escrita37 Em outros termos como pode a tradiccedilatildeo ser definida positivamente se ela natildeo pode ser suficientemente determinada pela ideacuteia negativa de algo natildeo-escrito

Haacute uma seacuterie de respostas para esta pergunta O proacuteprio Seripando daacute a seguinte definiccedilatildeo Traditiones hoc est Apostolorum seu sanctorum Patrum sanctae et salutares constitutiones38 Mais clara ainda eacute a afirmaccedilatildeo de Cervini citada por Massarelli A objeccedilatildeo do Bispo de Chioggia que aduzia a opiniatildeo de Agostinho de que tudo o que eacute necessaacuterio para a salvaccedilatildeo estava escrito na Biacuteblia respondia Cervini da seguinte maneira Verba illa (isto eacute de Santo Agostinho) formaliter intelligi debent scilicet ad fidem accipiendam ut salvi fiamus Quo vero ad mores et christianam vitam instituendam certo non omnia scripta sunt

[51] E de novo recorre agraves provas tiradas de Jo 1526 e 1426 E indica o princiacutepio pneumatoloacutegico39 O que eacute mais importante eacute que a Tradiccedilatildeo se refere agrave institutio vitaelig agrave presenccedila atuante da Palavra revelada na existecircncia cristatilde Tradiccedilatildeo eacute noutros termos a eficaacutecia da palavra de Deus Sem ela a palavra ficaria esteacuteril 35 Seripando De traditionibus (fevereiro ou marccedilo de 1546) CT XII p517-521 e principalmente a p 521 As expressotildees desta uacuteltima paacutegina chocam-se com a ideacuteia de Cervini sobre a receptio ecclesiaelig 36 Cf o texto citado na nota 11 37 No texto definitivo do Decreto esta ideacuteia natildeo aparece mais Aqui poreacutem com esta primeira designaccedilatildeo expliacutecita da Tradiccedilatildeo vem expressamente acentuado o contraste entre in libris scriptis et sine scripto traditionibus Na segunda redaccedilatildeo o sentido expliacutecito da palavra Tradiccedilatildeo natildeo eacute tatildeo exclusivo Contudo apresenta igual matiz ao se confrontarem as expressotildees omnes libroshellipnec non traditiones ipsas Portanto a ideacuteia positiva da Tradiccedilatildeo que serve de base a esta anaacutelise natildeo deixou de influenciar na redaccedilatildeo do Decreto 38 CT XII 517 39 CT I 494 (26 de fevereiro de 1546) A citada palavra de Santo Agostinho teve o seu papel a desempenhar na discussatildeo em curso Seripando por exemplo a ela se referiu (De traditionibus CT XII 521 47-53) Pensandum denique ne in traditionibus externis vera religio et salutis spes statuatur de quibus Augustinus Omnia quaelig pertinent ad veram religionem quaeligrendam et tenendam divina Scriptura non acuit Conceda-se que nem tudo foi escrito (veja-se Jo 2125) Todavia electa sunt autem quaelig scriberentur quaelig saluti credentium sufficere videbantur Mais do que nos debates do tridentino encontramos aqui um verdadeiro postulado dos Reformadores ldquonatildeo adotar costumes exteriores mas buscar os meios definitivos de salvaccedilatildeo na palavra da Escriturardquo A ldquosuficiecircnciardquo da Escritura de que aqui se fala eacute na verdade algo diverso da suficiecircncia material da mesma Escritura defendida por Geiselmann em sentido muito mais radical Infelizmente ainda natildeo se quis levar na devida consideraccedilatildeo o texto de Santo Agostinho (CT I 494 sugere De doctrina christiana II 9 e De pecc mero et rem II 59) Muito apropriadas nesta ordem de ideacuteias satildeo as observaccedilotildees de H SCHAUF ldquoSchrift und Traditionrdquo in Antonianum 39 (1964) p200-209 feitas no chamado Encontro de Duumlsseldorf Nos textos citados por Schauf com base em Agostinho eacute afirmada a suficiecircncia da Escritura para a salvaccedilatildeo Eacute contudo contestada a sua suficiecircncia para a Igreja em geral De fato esta alternativa parece muito mais vaacutelida e fundamental agrave luz dos postulados dos Reformadores do que a alternativa entre a suficiecircncia ou insuficiecircncia material da Escritura

Na mesma linha de ideacuteias seguem-se duas outras seacuteries de pronunciamentos Vimos na introduccedilatildeo agrave parte anterior que a discussatildeo dogmaacutetica da ideacuteia de

Tradiccedilatildeo foi em parte prejudicada pela questatildeo do meacutetodo a seguir no Conciacutelio dever-se-ia abordar primeiro a reformatio a reforma praacutetica da Igreja como queria o ldquoKaiserrdquo Ou primeiro discutir a questatildeo dogmaacutetica como preferia o Papa40

[52] Este problema do meacutetodo embora resolvido no debate que entatildeo surgiu natildeo afetou diretamente a questatildeo da Tradiccedilatildeo como tal Mas como de fato estas duas questotildees ficaram ligadas entre si daiacute resultou que muitos oradores transformaram a questatildeo do meacutetodo (se se deveria falar dos abusos ou da Tradiccedilatildeo) em parte de sua argumentaccedilatildeo em torno do assunto em pauta41 O problema abusus e o problema Traditio ficaram de tal maneira associados na ocasiatildeo que pareciam formar no fundo um soacute assunto Por isso os oradores ora falavam em sentido positivo ora se pronunciavam em sentido negativo Isto correspondia tambeacutem ao propoacutesito reformista do Conciacutelio as traditiones representavam os abusus aos quais a Igreja se opunha Os Padres estavam cocircnscios de que condenar as traditiones era condenar Os usus ecclesiaelig o modo como a Igreja vivia a sua vida naquela eacutepoca

A outra seacuterie de pronunciamentos que se inclinavam ao mesmo sentido encontramo-la nas proposiccedilotildees que a auctoritas da Igreja apresenta como definitivas indicando uma iacutentima relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a institutio christiana 42

[53] Podemos agora retomar ao nosso ponto de partida e dar resposta agrave pergunta que propriamente significa a foacutermula ad nos usque pervenerunt Objetivamente natildeo se trata aqui de um historicismo que a foacutermula parece expressar Ao contraacuterio Trata-se da fidelidade perseverante da Igreja agrave institutio vitaelig christianaelig da legiacutetima forma de vida cristatilde em concreto no tempo presente da Igreja da institutio christiana que coloca a Escritura em primeiro lugar e que como tal isto eacute como vida decorrente da Escritura eacute fundamentalmente apostoacutelica embora tambeacutem sujeita a mudanccedilas como tudo o que eacute vivo

3 A Tradiccedilatildeo e o dogma eclesiaacutestico

40 Sobre o debate em torno da questatildeo do meacutetodo cf mais uma vez JEDIN op cit p9-82 e outras 41 Assim jaacute no discurso de Cervini antes analisado (CT I 484) no qual ele recorda o dilema do Conciacutelio se nos voltarmos contra as tradiccedilotildees ficaratildeo admirados os Padres Conciliares quasi reformationem fugiamus si ipsam reformationem sumimus iterum objicient traditiones relinquendas non esse Idecircntica era a situaccedilatildeo em que se encontrava o Bispo de Astorga nas duas intervenccedilotildees que fez no dia 23 de fevereiro de 1546 (CT V 13 e 19) segundo Seripando (I 484) helliptraditiones prius pertractandas consulit tantam enim conformitatem abusus qui ex sacris libris descendunt cum iis qui a traditionibus orti sunt habent ut sacris libris et traditionibus absolutis duo illa abusuum genera simul pertractari valeant Segundo Bonuccio (I 484) antes de tudo dever-se-ia tratar das Sagradas Escrituras dos cacircnones apostoacutelicos dos Conciacutelios gerais e das decretais pontifiacutecias Hisque ilusceptis ad abusus ex eisdem dependentes devenire 42 Assim principalmente de acordo com Afonso de Castro (CT I 484) Quoniam ultra traditiones apostolicas ecclesiae auctoritatem habemus quaelig ecclesiaelig auctoritas tonta apud nos est ut aliqui eam maioris roboris quam sacros libros esse sentiant Cf igualmente CT I 491 45 Na mesma linha pode-se ver uma seacuterie de pronunciamentos na citada obra de LEJAY Cf CT XII 524 (Tratado De traditionibus ecclesiaelig fevereiro ou marccedilo de 1546)

Uma segunda seacuterie de motivos eacute expressa no Decreto pela foacutermula traditiones tum ad fidem tum ad mores pertinentes Se como vimos a ideacuteia de Tradiccedilatildeo aparece muito limitada naquilo que os Padres conciliares chamam consuetudines observationes institutiones por outro lado o Procurador do Cardeal de Augsburgo Claudio Lejay SJ se fez o porta-voz de uma expressatildeo que em oposiccedilatildeo agraves traditiones caeligremoniales estabeleceu justamente o sentido da tradiccedilatildeo contida na feacute Seu tratado sobre a Tradiccedilatildeo composto para uso dos Padres conciliares inclui tambeacutem a foacutermula que foi adotada pelo Conciacutelio Aiacute se diz Denique multas veritates tum ad fidem tum ad mores pertinentes Ecclesia novit quas Scriptura aperte et expresse non continet Ele cita como exemplos as palavras persona essentia trinitas no Tratado da Santiacutessima Trindade consubstantialitas na Cristologia do Logos duas naturezas uma soacute Pessoa referentes ao dogma definido pelo Conciacutelio de Calcedocircnia E ainda Cristo Filho uacutenico de Maria duas vontades na uacutenica Pessoa de Cristo uma alma racional aleacutem do espiacuterito divino em Cristo Ana matildee de Maria o costume de fazer sinais da cruz a santificaccedilatildeo do domingo a maneira de rezar com face voltada [54] para o Oriente tudo isto ideacuteias e fatos da tradiccedilatildeo conciliar e da piedade cristatilde43

Cervini que aprovou o discurso de Lejay de 23 de fevereiro de 154644 pocircde dificilmente conciliar esta posiccedilatildeo com a sua expressa na jaacute citada carta ao Cardeal Farnese onde como vimos ele diz que o Espiacuterito Santo falou na Igreja e depois da Ascensatildeo do Senhor fala ainda maxime medianti i concilii45 Ele aiacute viu publicamente sublinhado o fato de que aquele ldquomaisrdquo que a Igreja viva representa em relaccedilatildeo agrave palavra meramente escrita natildeo se referia e natildeo se refere apenas agrave vita instituenda ou como ele prefere agrave caeligremonialia Refere-se tambeacutem agrave essentialia fidei que antes de tudo plenamente se expressam na Tradiccedilatildeo Tambeacutem aqui como se vecirc o interesse dominante natildeo estaacute na apresentaccedilatildeo historicista do assunto a partir do iniacutecio da Igreja mas na ideacuteia de que a influecircncia da Tradiccedilatildeo sobretudo atraveacutes da praxe conciliar eacute de fundamental importacircncia para a feacute para a doutrina crida e natildeo apenas para a piedade viva ou a caeligremonialia

4 O sentido do Decreto tridentino

Se recapitularmos o que ateacute agora dissemos veremos que no conjunto facilmente se podem reconhecer trecircs diferentes concepccedilotildees teoloacutegicas unidas entre si no texto definitivo do Decreto sobre a Tradiccedilatildeo Unidas mas natildeo equiparadas umas agraves outras Pelo contraacuterio apesar de sua grande diferenccedila foram elas apenas [55] mais ou menos justapostas e de novo por forccedila de uma tendecircncia comum relacionadas entre si

1 A concepccedilatildeo de Cervini que designamos como pneumatoloacutegica Com sua doutrina sobre os trecircs principia fidei insiste ele no caraacuteter dinacircmico do Cristo-evento

43 CT XII 523 LEJAY baseia-se evidentemente em listas de tradiccedilotildees confeccionadas naquele tempo (Cf ECK DRIEDO CANO BOTO NOGAROLA) Cf a este respeito Y CONGAR ldquoTraditions apostoliques non eacutecrites et suffisance de lEscrituresrdquo in Istina 6 (1959) p219-306 e principalmente a paacutegina 289 44 CT V 14 45 CT X 373

presente na Igreja Entende assim a Tradiccedilatildeo primariamente como a realidade espiritual da institutio vitaelig christianaelig

2 A concepccedilatildeo que podemos chamar de cerimonial Esta entende a Tradiccedilatildeo essencialmente como a seacuterie de consuetudines existentes ao lado da feacute como os usus ecclesiaelig que os Reformadores falsamente pretendem abolir como abusus Esta concepccedilatildeo chega a condenar a dignidade e Antiguumlidade apostoacutelica das tradiccedilotildees Sua ideacuteia eacute limitada pelo ad nos usque pervenerunt que inclui possibilidade de variar da parte das tradiccedilotildees donde a necessidade de reduccedilotildees Com os termos pervenire e conservare a recepccedilatildeo por parte da Igreja eacute considerada criteacuterio adicional ao lado da Antiguumlidade

3 A concepccedilatildeo que talvez possamos denominar dogmaacutetica Em oposiccedilatildeo agrave fixidez da ideacuteia de Tradiccedilatildeo reduzida agrave consuetudo salienta esta terceira hipoacutetese a extensatildeo do fenocircmeno Tradiccedilatildeo tambeacutem ao acircmbito da fides

Estas trecircs concepccedilotildees deram forma ao texto do Decreto de tal modo que as suas

linhas mestras derivam de Cervini e todo o texto deve ser entendido agrave luz de suas ideacuteias Contudo em duas passagens isto eacute no pervenerunt e no conservatas haacute influecircncia da segunda concepccedilatildeo enquanto no tum ad fidem tum ad mores haacute influecircncia da terceira

Em face destas trecircs concepccedilotildees das quais na realidade existem diversas variantes que tomadas em conjunto satildeo a expressatildeo das ideacuteias dominantes adotadas aparecem as teses de Bonuccio e de Nacchianti tatildeo postas em evidecircncia por Geiselmann como sentenccedilas contraacuterias De fato o parecer de Bonuccio claramente [56] se opotildee agrave segunda concepccedilatildeo (contra a supervalorizaccedilatildeo das consuetudines natildeo per pietatis affectus) ao passo que Nacchianti se levanta antes contra a terceira posiccedilatildeo e salienta a suficiecircncia da feacute recebida por meio da Escritura46

Seria de notar-se ainda que as concepccedilotildees segunda e terceira tecircm algo em comum Ambas opotildeem agrave visatildeo pneumatoloacutegica de Cervini da salvaccedilatildeo sempre presente uma visatildeo mais historicista relacionada com o prolongamento da salvaccedilatildeo operada uma soacute vez ou seja o ἑφάπαξ Na realidade deve-se dizer que embora de um lado tanto a visatildeo presencial de Cervini como tambeacutem a visatildeo historicista do outro grupo se consideradas isoladamente cada qual de per si sejam perigosas se natildeo insustentaacuteveis 46 Aliaacutes de acordo com uma informaccedilatildeo de Cervini parece que o Bispo de Chioggia finalmente renunciou agrave sua tese da suficiecircncia da Escritura na qual se inclinava a recusar as tradiccedilotildees Na carta de Cervini ao Cardeal Farnese de 27 de fevereiro de 1546 lemos hellip Chioggia che (quasi quasi) voleva dire queste traditioni essere superflue perorando che tutto quello che era necessario alla salute era scritto et allegando etiam S Agostino sopra lultimo capitulo di S Giovanni a questo proposito Pure per non poter negare che molte cose appartenenti almeno alli sacramenti non ci fussero venute ex tra ditione et per consequente che non tutte le cose necessarie alia nostra salute erano scritte poiche ebbe fatte molte distintioni concluse che ancor lui accettava queste ldquoche in la chiesa fusse qualque traditione apostolica non scrittardquo (et con queste parole diceva che se ne facesse il decreto) credo che molti sono restati scandalizati di lui (CT X Nr 315 paacutegs 399 411) Cf tambeacutem CT I 494 nota 9 e 495 nota 2 CT V 18 nota 5 e 19 e nota 1 O mesmo protesto que aparece contra Nacchianti manifesta-se tambeacutem na observaccedilatildeo de Massarelli Este chega a chamar aquele de novarum rerum cupidus (1 494 18) e esclarece que reprehensus est a multis (1 494 22) Diante disto eacute de todo destituiacuteda de creacutedito a importacircncia que Geiselmann lhe atribui mesmo se abstrairmos de outras razotildees jaacute conhecidas sobre as quais natildeo precisamos insistir

de outro lado pelo menos tornam possiacutevel uma exata visatildeo do conjunto devido agrave sua muacutetua confluecircncia e limitaccedilatildeo No texto atual estatildeo presentes embora pouco nitidamente ambos os pontos de vista o elemento presencial e o ἑφάπαξ Conveacutem que entendamos assim o texto de modo a considerarmos [57] ambos estes aspectos como essenciais Consequumlentemente reconheceremos que ambos pertencem constitutivamente agrave realidade da vida cristatilde e portanto tambeacutem agravequela parcela do Cristianismo a que damos o nome de Tradiccedilatildeo Estes dois elementos satildeo a presenccedila do Espiacuterito Santo e o seu nexo com o fato singular da salvaccedilatildeo ocorrido uma soacute vez por todas na histoacuteria dos homens

Assim se acharaacute finalmente a resposta agrave pergunta de corno noacutes devemos entender o parecer do Conciacutelio de Trento A primeira e mais importante conclusatildeo parece-me ser o fato de o Conciacutelio ter visto muito claramente o nexo entre Tradiccedilatildeo e Revelaccedilatildeo A seguir elaborou sempre em consonacircncia com a tradiccedilatildeo patriacutestica e medieval um conceito de Revelaccedilatildeo muito menos material do que o que seraacute adotado mais tarde pela teologia dos tempos modernos Somente assim se deve conceber a ideacuteia da Revelaccedilatildeo do Espiacuterito Santo na Igreja Partindo do ramo nitidamente patriacutestico da teologia medieval tatildeo francamente acolhido no discurso de Cervini deveria ser muito menos categoacuterica a opiniatildeo que coloca o teacutermino da Revelaccedilatildeo na morte do uacuteltimo Apoacutestolo Naturalmente esta questatildeo natildeo pode ser aqui estudada com maiores detalhes A sua soluccedilatildeo como entatildeo se apresentava aos teoacutelogos poderia ser hoje impostada apelando-se para as categorias da teologia atual Segundo esta podemos dizer que a Revelaccedilatildeo estaacute encerrada do ponto de vista de seu princiacutepio material Todavia estaacute e continua presente em sua realidade eficaz Noutros termos a Revelaccedilatildeo tem eacute verdade o seu ἑφάπαξ enquanto ela se realizou num determinado dia na Histoacuteria Entretanto ela tem tambeacutem o seu ldquohojerdquo permanente isto eacute o que foi uma vez por todas realizado na feacute da Igreja permanece sempre vivo e operante Assim a feacute cristatilde natildeo se volta apenas para o passado Abrange tambeacutem o presente e o futuro Eacute verdade que a posterior materializaccedilatildeo historicista da ideacuteia de Revelaccedilatildeo aparece jaacute claramente insinuada nos debates tridentinos corno um fato previsto mas ainda [58] natildeo consumado embora talvez se possa dizer que nos textos conciliares ficou definitivamente consagrada a sua aceitaccedilatildeo

Finalmente acrescentemos ainda que com base nos debates do Conciacutelio podemos estabelecer quatro elementos da ideacuteia de Tradiccedilatildeo 1 O aspecto natildeo-escrito da Revelaccedilatildeo ou do Evangelho contido na Biacuteblia e no coraccedilatildeo dos fieacuteis 2 A palavra do Espiacuterito Santo no decorrer de todo o tempo da Igreja

3 A atividade da Igreja nos Conciacutelios 4 A Tradiccedilatildeo lituacutergica e a da vida da Igreja em geral Nestes quatro elementos

que se deve ter sob os olhos pois formam o fundo ideoloacutegico do Decreto expressa-se a realidade uacutenica do tempo presente da Igreja cristatilde Nele estaacute presente todo o passado poacutes-apostoacutelico da Igreja (inclusive o proacuteprio tempo dos apoacutestolos) de modo que toda a sua vida eacute na Sagrada Escritura um elemento central embora natildeo o uacutenico Em suma deve ter ficado claro que o Conciacutelio de Trento a despeito do caraacuteter contrastante e fixo de sua ideacuteia de Revelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeo oferece uma visatildeo muito mais rica destes conceitos do que a que impregnou a mentalidade dos seacuteculos seguintes Justamente por

isso a teologia de hoje pode retirar daiacute novos subsiacutedios novo apoio para suas pesquisas e novas indicaccedilotildees sobre o verdadeiro caminho a seguir

Quadro sinoacutetico do Decreto tridentino sobre a Tradiccedilatildeo

Primeiro princiacutepio conforme Cervini (AT = Escritura)

Sacrosancta œcumenica et generalis Tridentina Synodus in Spiritu Sancto legitime congregata [] hoc sibi perpetuo ante oculos proponens ut sublatis erroribus puritas ipsa EVANGELII in Ecclesia conservetur quod PROMISSUM ANTE PER PROPHETAS IN SCRIPTURIS SANCTIS

Segundo princiacutepio conforme Cervini o Evangelho em parte escrito em parte insculpido nos coraccedilotildees

[59] DOMINUS NOSTER IESUS CHRISTUS DEI FILIUS PROPRIO ORE PRIMUM PROMULGAVIT DEINDE PER SUOS APOSTOLOS TAMQUAM FONTEM OMNIS ET SALUTARIS VERITATIS ET MORUM DISCIPLINAE OMNI CREATURAE PRAEDICARI IUSSIT PERSPICIENSQUE HANC VERITATEM ET DISCIPLINAM CONTINERI IN LIBRIS SCRIPTIS ET SINE SCRIPTO TRADITIONIBUS QUAE AB IPSIUS CHRISTI ORE AB APOSTOLIS ACCEPTAE AUT AB IPSIS APOSTOLIS SPIRITU SANCTO DICTANTE

Seripando Cervini e outros soacute consideram as tradiccedilotildees recebidas pela Igrej (ldquoad nos usquerdquo)

quasi per manus traditae ad nos usque pervenerunt

orthodoxorum Patrum exempla secuta omnes libros tam Veteris quam Novi Testamenti cum utriusque unus Deus sit auctor nec non TRADITIONES IPSAS

Lejay Tradiccedilatildeo contendo natildeo soacute a ldquoconsuetudordquo mas relacionada tambeacutem com a ldquofidesrdquo (foacutermula conciliar)

tum ad fidem tum ad mores pertinentes

Terceiro princiacutepio de Cernini Depois da Ascenccedilatildeo de Cristo o Espiacuterito Santo ensina tambeacutem os misteacuterios de Deus

TAMQUAM VEL ORETENUS A CHRISTO VEL A SPIRITU SANCTO DICTATAS

Seripando Cervini etc soacute satildeo consideradas as coisas recebidas pela Igreja (como acima)

et continua successione in Ecclesia catholica conservatas

Cervini Escritura e Tradiccedilatildeo procedem ambas do mesmo Espiacuterito Santo

pari pietatis affectu ac reverentia suscipit ac veneratur

  • Prefaacutecio
  • SEGUNDA PARTE
  • Explicaccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo
  • segundo o Decreto do Conciacutelio de Trento
Page 25: Revelacao e Tradicao-Joseph Ratzinger (Bom Ler)

prolonga-se na permanente presenccedila de Cristo no σῶμα Χριστοῦ ndash no Seu Corpo a Igreja Assim o misteacuterio integral da presenccedila de Cristo eacute antes de tudo a realidade total transmitida pela Tradiccedilatildeo (fato fundamental e decisivo sempre anterior a todas as explicaccedilotildees particulares mesmo as da Escritura) e reguladora do que deve propriamente ser transmitido

b) A Tradiccedilatildeo existe concretamente como presenccedila na feacute Esta por seu turno como ldquoin-habitaccedilatildeordquo de Cristo precede todas as explicaccedilotildees particulares e frutuosa e viva ldquoexplicita-serdquo (explizierend) atraveacutes dos tempos

c) A Tradiccedilatildeo tem seu oacutergatildeo na plenitude dos poderes da Igreja e portanto naqueles que satildeo os legiacutetimos depositaacuterios destes poderes24

d) A Tradiccedilatildeo exprime-se tambeacutem naquilo que emanado da autoridade da Igreja se tornou regra de feacute (Symbolum fides quaelig) Portanto a questatildeo de se saber se certas proposiccedilotildees foram transmitidas desde o

comeccedilo pela Tradiccedilatildeo ao lado da Escritura ou em outros termos se existe desde o comeccedilo um segundo princiacutepio material e autocircnomo ao lado da Escritura torna-se afinal um problema inteiramente secundaacuterio Talvez lhe devamos responder negativamente

5 A funccedilatildeo da exegese [37] Pelo que ateacute aqui dissemos ficaram esclarecidas quase que exclusivamente

trecircs pontos os limites da letra da Escritura a liberdade do Espiacuterito Santo e a autoridade da Igreja Acontece poreacutem que a exposiccedilatildeo que fizemos abriga ainda um sentido diverso relacionado com a justa preocupaccedilatildeo de Lutero da qual partimos

Se ficou estabelecido que a Revelaccedilatildeo se faz presente atraveacutes da pregaccedilatildeo e se pregaccedilatildeo eacute exposiccedilatildeo da palavra revelada entatildeo pode e deve agora ao que precede acrescentar-se o seguinte a Tradiccedilatildeo eacute essencialmente e sempre uma exposiccedilatildeo Natildeo existe de maneira autocircnoma e sim como explicaccedilatildeo como exposiccedilatildeo ldquorelacionada com a Escriturardquo

Isto vale para a pregaccedilatildeo do proacuteprio Jesus Cristo realizaccedilatildeo plena da Revelaccedilatildeo e sua exposiccedilatildeo feita com autoridade A pregaccedilatildeo de Jesus Cristo natildeo aparece como algo absolutamente novo na Escritura Isto eacute como algo ainda natildeo atestado no Antigo Testamento Ela ensina isto sim a essecircncia do que jaacute estava escrito e lhe confere uma vida nova que o simples exegeta natildeo pode comunicar-lhe

O que vale para a mensagem de Cristo que permanece a mesma sob diferentes modalidades de exposiccedilatildeo vale tambeacutem para a pregaccedilatildeo apostoacutelica e a eclesiaacutestica Como ldquoTradiccedilatildeordquo ela deve em uacuteltima anaacutelise ser uma exposiccedilatildeo ldquosegundo a Escriturardquo a ela sujeita e com ela relacionada Sem duacutevida natildeo eacute ela uma exposiccedilatildeo no 24 Estas ideacuteias natildeo podem ser desenvolvidas mais detalhadamente aqui como seria de desejar uma vez que em rigor estamos procurando apenas fundamentar o conceito de Tradiccedilatildeo Em razatildeo da brevidade que me impus contentei-me apenas nas teses precedentes com explanar o assunto ateacute ao ponto em que ficasse patente a relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a ldquoIgrejardquo (cf as teses 4 e 5) Para se descer a maiores detalhes dever-se-ia analisar tambeacutem o conceito de Igreja que supomos conhecido do leitor Para isto cf a nota 6 onde citamos nosso livro sobre o Ofiacutecio e a unidade da Igreja Encontram-se aiacute algumas observaccedilotildees sobre o assunto de que ora tratamos

sentido de mera interpretaccedilatildeo exegeacutetica Mas sim na autoridade espiritual recebida do Senhor a qual se consuma na existecircncia plena da Igreja em sua feacute em sua vida e em seu culto Contudo ela permanece sendo (mais ainda do que o Cristo-evento em que se funda a Igreja) uma ldquoex-posiccedilatildeordquo (Aus-Legung) comprometida com a Histoacuteria e com a Palavra [38] Exprime-se deste modo a sua ligaccedilatildeo com a accedilatildeo concreta de Deus nesta mesma Histoacuteria e em seu caraacuteter de fato histoacuterico uacutenico (o ἑφάπαξ ldquoo ocorrido uma soacute vezrdquo) A realidade cristatilde da Revelaccedilatildeo eacute tatildeo essencial quanto ldquoeternardquo e definitiva Resulta daiacute a unidade entre o Cristo da Feacute e o Jesus da Histoacuteria o Jesus histoacuterico natildeo eacute senatildeo o Cristo da Feacute ainda que a feacute seja sempre algo mais do que a histoacuteria

Segue-se que do mesmo modo que existe um ofiacutecio de custoacutedia da Revelaccedilatildeo por parte da Igreja ofiacutecio por ela mesma atestado existe tambeacutem um ofiacutecio de custoacutedia da mesma Revelaccedilatildeo por parte da exegese que penetra o sentido literal da Escritura e defende a uniatildeo do Logos com a carne contra qualquer perigo de gnose Existe portanto por assim dizer algo como uma autonomia especiacutefica da Escritura como regra objetiva e sob muitos pontos de vista esclarecedora do Magisteacuterio eclesiaacutestico Esta era sem duacutevida uma exigecircncia legiacutetima de Lutero que ainda natildeo foi devidamente acolhida na Igreja catoacutelica por parte do Magisteacuterio cujos limites internos nem sempre foram claramente entendidos

Dever-se-ia partindo daqui salientar uma dupla criteriologia em se tratando da feacute De um lado haacute o que a Igreja antiga chamou de ldquoregra da feacuterdquo norma reguladora da palavra revelada contida na Escritura e sua exposiccedilatildeo Esta praeligscriptio da posse da Escritura como proacutepria segundo Tertuliano exclui a possibilidade de qualquer uso legiacutetimo da mesma Escritura contra a Igreja Por outro lado haacute tambeacutem o limite da littera Scripturaelig ou do sentido literal historicamente fixaacutevel que de acordo com o que ficou dito natildeo constitui nenhum criteacuterio absoluto ou autocircnomo mas sim somente um criteacuterio relativo no confronto da feacute com a ciecircncia O que na Escritura se pode descobrir quer mediante estudo cientiacutefico quer por simples leitura tem a funccedilatildeo de um criteacuterio real a que deve estar atento inclusive o Magisteacuterio em suas explicaccedilotildees Certamente [39] trata-se entatildeo de elementos sub-componentes da ciecircncia que natildeo podem servir para se julgar a feacute mas nela encontram uma instacircncia criacutetica e tecircm tambeacutem um importante papel a exercer o de zelar pela pureza do ἑφάπαξ de tutelar o conteuacutedo da Revelaccedilatildeo e de defender o dualismo histoacuterico carneespiacuterito (ldquodie Sarx der Geschichterdquo) contra os arbiacutetrios da gnose que tende sempre a impor-se

A reformatio na qual estaacute empenhada a Igreja nesta hora histoacuterica tem um papel relevante a desempenhar Eacute a missatildeo de abrir novas perspectivas para o diaacutelogo tentando assim chegar a uma ldquoreformardquo diferente da do passado que culminou com a divisatildeo no seio da Cristandade ocidental Tal missatildeo se exerceraacute em harmonia com o pleno ofiacutecio de testemunho da Igreja que tira seu direito e sua forccedila da presenccedila do Espiacuterito e de Cristo presente em todos os tempos Pois ele eacute sempre o Cristo de agora com a plenitude de seus direitos e de seus poderes Ele eacute quem daacute legitimidade e vigor ao testemunho singular e definitivo da Escritura que por sua vez encontra seu pleno sentido na singularidade da accedilatildeo histoacuterico-salviacutefica de Jesus Cristo Ele deu ao Pai seu Corpo crucificado e dando-se a si mesmo santificou para sempre os que o receberam (cf Hb 1014 727) Ele eacute o Cristo ontem hoje e sempre (Hb 138)

SEGUNDA PARTE

Explicaccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo segundo o Decreto do Conciacutelio de Trento

Parece que a completa elucidaccedilatildeo das razotildees que levaram agrave substituiccedilatildeo do

partim-partim pelo et e consequumlentemente agrave pesquisa dos dados do debate tridentino e de sua preacute-histoacuteria aparentemente favoraacutevel agrave suficiecircncia material da Escritura [40] simplifica indevidamente este problema fazendo-nos perder de vista os proacuteprios antecedentes do Decreto do Conciacutelio de Trento

1 A concepccedilatildeo pneumatoloacutegica da Tradiccedilatildeo no esquema fundamental do Cardeal Cervini

a) O conteuacutedo Um balanccedilo histoacuterico e detalhado do problema em seu conjunto exigiria uma

pesquisa exaustiva que natildeo reduzisse o seu acircmbito como o fez Geiselmann em seu livro25 Natildeo eacute nossa intenccedilatildeo proceder a um exame minucioso do assunto no presente trabalho Aqui soacute seratildeo tratados alguns pontos do debate tridentino com o fim de ampliarmos mais o horizonte de nossas reflexotildees

Fundamental para a compreensatildeo dos debates em pauta bem como do Decreto definitivo do Conciacutelio parece-me ser o Discurso do Cardeal Legado Cervini datado de 18 de fevereiro de 1546 [41] cujas linhas gerais se patenteiam tanto no Decreto como em outras decisotildees conciliares26

Tem o discurso de Cervini o meacuterito de mostrar as linhas diretrizes do Decreto de maneira mais clara do que aparecem estas na uacuteltima redaccedilatildeo do mesmo onde elas se diluem muito devido a uma seacuterie de variadas implicaccedilotildees Eacute ainda de grande auxiacutelio para o entendimento do referido discurso uma carta dos Cardeais Legados ao Cardeal Alexandre Farnese de 28 de fevereiro de 1546 Esta carta revela conteuacutedo idecircntico ndash eacute certamente inspirada pelo mesmo Cervini ndash e oferece ainda alguns outros

25 Eacute lamentaacutevel que Geiselmann em sua anaacutelise da contribuiccedilatildeo medieval sobre este assunto se tenha apoiado apenas em argumentos de segunda matildeo portanto de valor histoacuterico discutiacutevel Queira o leitor ver minhas observaccedilotildees a este respeito in Theol-prakt Quartalschrift 1963 p224-227 As novas (e temperamentais) invectivas de Geiselmann in TThQu 144 (1964) p 31-69 em nada modificaram a minha posiccedilatildeo de vez que natildeo trazem nenhuma contribuiccedilatildeo vaacutelida ao assunto Precioso ao contraacuterio eacute o trabalho de Y CONGAR La Tradition et les traditionshellip Essai historique Paris 1960 Importante eacute tambeacutem a obra de J BEUMER Die muumlndliche uumlberlieferung als Glaubensquelle Friburgo 1962 A respeito do Conciacutelio de Trento cf sobretudo aleacutem do estudo fundamental de JEDIN o artigo de E ORTIGUES Escriture et Traditions apostoliques au Concilie de Trente in RSR 36 (1949) p 271-299 K D SCHMIDT Studien zur Geschichate des Konzilis von Trient Tubinga 1925 p 152-209 26 O discurso nos foi transmitido em duas redaccedilotildees A primeira mais curta encontra-se nas Atas do Conciacutelio in CT V 11 A segunda faz parte do diaacuterio de Massarelli (Diarium III) in CT I p484 Quanto ao conteuacutedo os dois textos se completam Na anaacutelise que aqui ensaiamos as duas versotildees satildeo comparadas entre si de modo a fazerem um todo Sobre a posiccedilatildeo de Cervini no Conciacutelio cf H JEDIN Geschichte des Konzils von Trient II Friburgo 1957 p38-40 A descriccedilatildeo do desenrolar histoacuterico dos debates acha-se em JEDIN op cit p42-82 e supomo-la conhecida do leitor de vez que serve de base para a anaacutelise teoloacutegica do Decreto tridentino

esclarecimentos Cervini sustenta no citado discurso que existem trecircs princiacutepios e fundamentos de nossa feacute

1) Os livros sagrados escritos sob a inspiraccedilatildeo do Espiacuterito Santo 2) O Evangelho que Nosso Senhor natildeo escreveu mas ensinou oralmente e

implantou nos coraccedilotildees Parte do Evangelho foi escrita mais tarde pelos Evangelistas enquanto muita coisa foi simplesmente confiada aos coraccedilotildees dos fieacuteis

3) Porque o Filho de Deus natildeo ia permanecer sempre entre noacutes enviou ele o Espiacuterito Santo que haveria de revelar os misteacuterios no iacutentimo dos fieacuteis e de ensinar agrave Igreja toda a verdade ateacute ao fim dos tempos27

[43] Numa segunda redaccedilatildeo mais detalhada do discurso estas mesmas ideacuteias satildeo

desenvolvidas mais amplamente Aiacute lemos que a Revelaccedilatildeo se apresentou de modo diferente em diversos tempos

1) Nos Patriarcas cuja feacute eacute atestada na Escritura a que chamamos de Antigo Testamento

2) Em Jesus Cristo que implantou o seu Evangelho natildeo por escrito mas oralmente natildeo in charta mas in corde Das coisas que emanaram de Cristo (quaelig a Cristo emanarunt) algumas foram escritas outras permaneceram nos coraccedilotildees dos homens (quaeligdam in cordibus hominum relicta fuerunt) Todo o Evangelho de Cristo que consta desta dupla modalidade forma (tendo como primeiro princiacutepio o Antigo Testamento) o secundum prindipium fidei nostraelig

3) Daiacute surge o terceiro princiacutepio (tertium autem) porque o Filho de Deus natildeo iria permanecer sempre entre noacutes enviou ele ao mundo o Espiacuterito Santo que haveria de explicar os misteacuterios de Deus e tudo o que fosse ainda obscuro para os homens28 De modo semelhante a citada carta ao Cardeal Farnese fala de dois passos (due

passi) Um eacute que a Revelaccedilatildeo de Nosso Senhor natildeo foi totalmente escrita mas permaneceu em parte contida nos coraccedilotildees dos homens e na Tradiccedilatildeo da Igreja O outro [43] passo consiste em confirmar ldquoquello che egrave suggerito lo Spirito Santo in la Chiesa maxime medianti i concilij doppo lAscensione in cielo del Signorerdquo29

Notamos logo que contrariamente ao que esperaacutevamos natildeo dois mas trecircs satildeo os princiacutepios apontados a Escritura o Evangelho e a Revelaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

27 CT V 11 helliptria esse principia et fundamenta nostrae fidei primum libros sacros secundum esse evangelium quod Christus Dominus Noster non scripsit sed ore docuit et in cordibus illud plantavit cujus evangelii nonnulla evangelistaelig scripto mandarunt multa quoque relicta sunt in cordibus hominum Tertium quia non semper filius Dei corporaliter nobiscum mansurus erat misit Spiritum Sanctum qui in cordibus fidelium secreta Dei revelaret et ecclesiam quotidie et usque consummationem saeligculi doceret omnem veritatem et si quid in mentibus hominum dubii occurrisset declararet 28 CT I 484 Digna de nota eacute ainda a foacutermula contida na paacutegina 48514-16 nihil tamen inter scripturas sacras et apostolicas traditianes differt illaelig enim scriptaelig hae per insinuationem habentur utraeque tamen a Spiritu Sancto eodem modo emanataelig Confira-se com CT V 11 19 ab eodem Spiritu et illos (scilicet libros) et istas (scilicet traditiones) descendisse 29 CT X 373

Eacute portanto necessaacuterio observar que sob o termo ldquoEscriturardquo se entende o Antigo Testamento e que aleacutem deste (que eacute Escritura em sentido proacuteprio) aparece como segundo princiacutepio o Evangelho apresentaccedilatildeo do Cristo-evento O Evangelho por sua vez abrange o que estaacute escrito e o que natildeo estaacute escrito mas sim apenas insculpido no coraccedilatildeo dos crentes Deste modo o segundo princiacutepio representa uma vantagem pneumaacutetica sobre o que estaacute escrito o Evangelho eacute nesta concepccedilatildeo algo diferente da letra (Escritura) e soacute em parte vem escrito (Isto natildeo deve ser entendido no sentido de divisatildeo das verdades da feacute fenocircmeno denunciado ldquocom horrorrdquo por Geiselmann Ao contraacuterio Entenda-se apenas no sentido de diferente grau de dignidade no modo de exprimir-se) Em rigor o Evangelho como tal soacute pode ser escrito em parte se considerarmos a sua essecircncia

Finalmente ndash o que eacute muito de se admirar ndash segue-se como terceiro princiacutepio a accedilatildeo visiacutevel do Espiacuterito Santo em todo o tempo da Igreja

Admitimos portanto que o que noacutes geralmente chamamos de Tradiccedilatildeo natildeo aparece aqui como um soacute princiacutepio Biparte-se antes em dois princiacutepios intimamente ligados o ldquoEvangelhordquo princiacutepio apenas em parte identificaacutevel com a Escritura e a accedilatildeo do Espiacuterito Santo no tempo da Igreja Ademais podemos observar que a Escritura do Novo Testamento natildeo aparece como um princiacutepio ao lado da Revelaccedilatildeo apostoacutelica Muito menos como [44] eacute o nosso caso se apresenta a Escritura neotestamentaacuteria juntamente com a veterotestamentaacuteria como uma grandeza uacutenica uma ldquoEscriturardquo soacute agrave qual se poderia contrapor a ldquoTradiccedilatildeordquo como uma segunda grandeza O Novo Testamento em seu conjunto aparece como um segundo e mais amplo princiacutepio ou seja o Evangelho que como tal se opotildee de um lado ao Antigo Testamento e de outro agrave projeccedilatildeo histoacuterica do tempo da Igreja Sua unidade interna eacute evidentemente mais forte e importante do que a sua divisatildeo em escrito e natildeo-escrito Assim o Evangelho como um soacute princiacutepio pode ser contraposto ao Antigo Testamento a despeito desta dupla formalidade A impossibilidade de se representar o Novo Testamento como Escritura impossibilidade esta demonstrada por Satildeo Paulo e pelos primeiros seacuteculos cristatildeos eacute aqui claramente revelada

Ainda uma observaccedilatildeo relativa ao texto a que vimos nos referindo Em nenhum dos dois pontos por noacutes citados no estudo da Tradiccedilatildeo isto eacute nem no elemento contido no primeiro nem no apresentado no terceiro princiacutepio figura a Tradiccedilatildeo como verbal Em ambos os casos ao contraacuterio trata-se mais da Tradiccedilatildeo real com prevalecircncia da realidade sobre as palavras que a atestam Este fato que estaacute claro no terceiro princiacutepio o pneumatoloacutegico vale tambeacutem em relaccedilatildeo agrave implantaccedilatildeo do Evangelho nos coraccedilotildees contida no segundo princiacutepio Tal implantaccedilatildeo vai muito aleacutem do que se encontra expresso na letra da Escritura

Que papel tenham estas ideacuteias exercido nas discussotildees do Conciacutelio pode-se concluir tambeacutem das auctoritates citadas por Cervini entre as quais figuram Jo 16 12 (hellipSpiritus Sanctus suggerethellip) e Fl 3 15 (Quicumque perfecti sumus haeligc sentiamus et si quid aliter sentitis haeligc quoque Deus vobis revelabit) Ambos estes textos satildeo de teor acentuadamente [45] pneumatoloacutegico-presencial30 Que tais ideacuteias natildeo eram

30 CT V 14 e 15 Um exame profundo das auctoritates quer da Escritura quer entre os Santos Padres que neste particular satildeo favoraacuteveis agrave Tradiccedilatildeo seria em si conclusivo para a elaboraccedilatildeo do conceito

estranhas aos Padres conciliares deduz-se ainda de uma seacuterie de outras referecircncias Assim ouvimos o Bispo de Aqui dizer que aleacutem da Sagrada Escritura existe muita coisa na Igreja de Deus que vindo dos Apoacutestolos e passando de geraccedilatildeo a geraccedilatildeo chegou ateacute noacutes assim como muitas outras quaelig etsi scripta Apostoli nobis non reliquerunt per Spiritus Sancti revelationem nobis (tradita) sunt (Tradita estaacute aqui por revelata) 31 Partindo daiacute se poderia descrever a Tradiccedilatildeo justamente como o componente pneumatoloacutegico do Cristo-evento b) A influecircncia do esquema de Cervini em diversas decisotildees conciliares

Eacute verdade que esta concepccedilatildeo tripartida aparece muito atenuada no Decreto

oficial sobre a Tradiccedilatildeo Que poreacutem em suas linhas fundamentais natildeo tenha ela sido de modo nenhum [46] abandonada mostram-no duas outras passagens nas quais o Conciacutelio faz uso por assim dizer in actu das ideacuteias aqui expressas32 Assim na Introduccedilatildeo ao Decreto sobre a Eucaristia (Denz 873) se lecirc Sacrosancta Synodus sanamhellipdoctrinam tradens quam semper catholica Ecclesia ab ipso Jesu Christo Domino Nostro et eius apostolis erudita atque a Spiritu Sancto illi omnem veritatem in dies suggerente (Jo 1416) edocta retinuithellip

Aqui a accedilatildeo proacutepria do Conciacutelio eacute descrita como tradere e a este tradere eacute atribuiacutedo um duplo fundamento De um lado o ensino de Jesus e dos Apoacutestolos (Note-se que este ponto corresponde ao Evangelho segundo a concepccedilatildeo de Cervini E de certo modo tambeacutem pela citaccedilatildeo de Jesus e dos Apoacutestolos se reconhece a dupla modalidade do Evangelho como escrito e como inserido nos coraccedilotildees) De outro lado o ensino dado pelo Espiacuterito Santo que conduz agrave verdade in dies isto eacute no de correr do tempo futuro

O outro texto que pode ser aduzido aqui como prova do que afirmamos encontra-se no Preacircmbulo do Decreto sobre o Purgatoacuterio (Denz 983) Aiacute se lecirc hellipCatholica Ecclesia Spiritu Sancto edocta ex Sacris Litteris et antiqua Patrum traditione in sacris Conciliis et novissime in hac Synodo docuerit A descriccedilatildeo da accedilatildeo proacutepria do

aqui exposto H HOLSTEIN procurou fazer o cotejo destas auctoritates e fecirc-lo de modo admiraacutevel em seu artigo La Tradition dapregraves le Concile de Trente (RSR 47 1959 p367-390 e em particular para o caso em questatildeo a p375) Ele encontra nos textos estudados duas linhas de tendecircncias A linha de Santo Irineu para a qual o testemunho dos Apoacutestolos eacute o de sua personalidade de sua vida e de seu ofiacutecio Aleacutem desta o grupo composto de Tertuliano Cipriano Basiacutelio e Agostinho forma uma corrente que se poderia denominar ldquocerimonialrdquo Oriacutegenes se enquadra em ambos os grupos Existe entre os autores estudados uma seacuterie de textos que se referem agraves observationes consuetudines institutiones e que levam a entender-se a Tradiccedilatildeo neste mesmo sentido Aiacute se vecircem tambeacutem textos que sublinham o aspecto natildeo-escrito do Evangelho enquanto insculpido no coraccedilatildeo dos fieacuteis e aleacutem disso textos que apontam a Igreja como o ldquolugarrdquo da verdade cristatilde 31 CT I 483 (18 de fevereiro de 1546) Em 26 de fevereiro (CT V 18) encontramos Cervini a tratar de novo deste assunto Cf tambeacutem um pronunciamento do Bispo de Fano (CT V 10) nestes termos Cum jam receperimus Scripturas Sacras necessario recipiendaelig sunt traditiones quaelig ab eodem Spiritu Sancto quo scripturaelig dictataelig sunthellip 32 Disto me adverti pela primeira vez atraveacutes de um estudo realizado sob a minha orientaccedilatildeo por CHR LIMBACR a quem sou devedor de muitas informaccedilotildees bibliograacuteficas

Conciacutelio como tradere encontra-se ainda nas declaraccedilotildees sobre o Sacramento da Extrema-Unccedilatildeo (Denz 910)

Finalmente a triacuteplice divisatildeo deixa-se insinuar nas entrelinhas do Decreto sobre a Tradiccedilatildeo embora obscurecida e diluiacuteda por uma seacuterie de acreacutescimos e citaccedilotildees a ele adicionados por outros motivos O Decreto da Tradiccedilatildeo com efeito [47]

1) Fala do Evangelho prometido pelos Profetas na Escritura e refere-se a esta em sentido estrito quer antes quer depois do Antigo Testamento

2) Fala da promulgaccedilatildeo por Cristo do Evangelho que foi transmitido pelos Apoacutestolos sob dupla forma oral e escrita Desta maneira o que natildeo ocorre no exemplo de Cervini aparece aqui antes de tudo o componente pneumatoloacutegico unido com o componente apostoacutelico a ponto de se distinguirem duas modalidades de Tradiccedilatildeo apostoacutelica a que remonta a Cristo e a que remonta ao envio do Espiacuterito Santo Pode-se assim estabelecer que em oposiccedilatildeo ao esquema de Cervini haacute um certo processo de historicizaccedilatildeo que salienta a relaccedilatildeo com o comeccedilo histoacuterico e igualmente parece deslocar o acento da tradiccedilatildeo real para a verbal

3) No epiacutelogo desta parte do Decreto da Tradiccedilatildeo que vimos analisando de novo eacute considerada a ideacuteia da Sagrada Escritura O conceito de Tradiccedilatildeo eacute entatildeo formulado em definitivo e descrito como vel oretenus a Christo vel a Spiritu Sancto dictatas et continua successione in Ecclesia catholica conservatas A referecircncia aos Apoacutestolos eacute omitida Pode-se na verdade considerar tudo isto como uma volta ao que foi dito antes Evidentemente a tradiccedilatildeo ditada pelos Apoacutestolos eacute citada de novo (A expressatildeo continua successione insinua-o) Contudo permanece sempre ainda certa indeterminaccedilatildeo ficando aberta a possibilidade de se encontrar aqui o vestiacutegio do terceiro componente de Cervini o princiacutepio pneumaacutetico propriamente dito Eacute tambeacutem claro que esta ideacuteia eacute discreta sendo adotada uma posiccedilatildeo mais acentuadamente histoacuterica Se agora lanccedilarmos os olhos sobre o que vimos considerando ateacute aqui surgiratildeo

inevitavelmente perguntas qual eacute realmente o sentido proacuteprio da concepccedilatildeo pneumatoloacutegica Como poderia ser perfeitamente entendida a ideacuteia a noacutes estranha de uma revelatio prolongada no tempo em face da unicidade e do caraacuteter [48] histoacuterico da Revelaccedilatildeo que evidentemente era conhecido tanto de Cervini quanto dos Santos Padres e teoacutelogos medievais33

Antes de examinarmos isto devemos esclarecer rapidamente os principais motivos que inspiraram o Decreto tridentino sobre a Escritura e a Tradiccedilatildeo deixando nele um tanto encoberta a concepccedilatildeo pessoal de Cervini Que opiniotildees de teoacutelogos teratildeo intervindo aqui chegando a ser em parte impressas no texto definitivo que resultou do cotejo de muitos pronunciamentos diversos Uma exposiccedilatildeo detalhada deste ponto exorbitaria do acircmbito de nossa anaacutelise Contentemo-nos com umas poucas observaccedilotildees sumaacuterias 33 Sobre este assunto tentei fazer um breve comentaacuterio no meu trabalho ldquoOffenbarung-Schrift-Uberlieferungrdquo in TThZ 67 (1958) p13-27 Cf J BEUMER ldquoDer theoretische Beitrag der Frnhscholastik zum Problem des Dogmenfortschrittsrdquo in ZkTh 72 (1952) p205-226 J de CHELLINCK Pour lrsquohistoire du mot ldquorevelarerdquo in RSR 6 (1916) p149-157

2 Relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a vida da Igreja

em diversas passagens do debate tridentino

Uma primeira seacuterie de motivos entre os quais se compreendem diversos pronunciamentos agraves vezes muito contrastantes em seu aparato exterior patenteia-se na ideacuteia de tradiccedilotildees expressa no Decreto de duas maneiras a) - per manus traditaelig ad nos usque pervenerunt b) - continua successione in Ecclesia catholico conservatas

O que se ocultaraacute sob estas duas foacutermulas que o historiador de hoje tem dificuldades em aceitar justamente por causa do historicismo nelas impliacutecito Podemos dizer que um decisivo papel exerceu aqui o pensamento que sempre aparecia nos debates a saber que as tradiccedilotildees satildeo variaacuteveis que muitas delas foram abolidas pelos Apoacutestolos e que por outro lado se [49] introduziram tradiccedilotildees eclesiaacutesticas que natildeo mais seriam abolidas34 Esta ideacuteia de Tradiccedilatildeo de certo modo se torna clara no tratado escrito sobre o mesmo assunto por Seripando para uso dos Padres Conciliares Seripando fala das Tradiccedilotildees escritas inseridas na Escritura como as claacuteusulas de Tiago o costume de as mulheres se cobrirem com um veacuteu a legislaccedilatildeo sobre o matrimocircnio contida em 1Cor 7 etc E o autor adverte que estas praacuteticas foram abolidas Isto porque embora associadas agrave palavra de Deus na Escritura dela ldquomuito diferemrdquo pois a palavra divina [50] de modo nenhum poderia ser abolida A estas tradiccedilotildees

34 Cabe aqui aduzir uma nova intervenccedilatildeo de Cervini datada de 26 de fevereiro de 1546 (CT I 33 e V 18) onde ele diz que nem todas as tradiccedilotildees procedentes dos Apoacutestolos devem ser conservadas mas somente as que ab Ecclesia receptaelig ad nos usque pervenerunt (V 18) Esta afirmaccedilatildeo anterior agrave formulaccedilatildeo dogmaacutetica feita pelo Concilio deve igualmente ser tida na conta de um autecircntico comentaacuterio do Decreto Aiacute se acentua como condiccedilatildeo essencial das tradiccedilotildees a receptio ecclesiaelig Vem ainda referida uma intervenccedilatildeo do Bispo de Bertinoro em data de 23 de marccedilo (I p 523) na qual ele sublinha que as tradiccedilotildees escritas por vezes foram mudadas Jaacute entre as natildeo-escritas umas foram mudadas e outras natildeo como por exemplo o rito de adicionar aacutegua ao vinho a Crisma a confissatildeo auricular O Bispo de Bertinoro acrescenta que por outro lado alguns pontos existem que permaneceram inteiramente inalterados tais como a crenccedila no descensus ad inferos na virgindade perpeacutetua de Maria a substituiccedilatildeo da observacircncia do saacutebado pela do domingo Temos depois um pronunciamento do Bispo de Bitonto datado de 27 de marccedilo (I 39) Este bispo era de parecer que algumas coisas foram transmitidas pelos Apoacutestolos com a finalidade de serem perpetuamente conservadas (como pertencentes ao depoacutesito da feacute) outras caiacuteram em desuso (como as claacuteusulas de Tiago) e outras enfim foram apenas aconselhadas Assim mesmo na Escritura algumas coisas haacute que foram escritas mas natildeo recebidas em uso por serem mateacuteria de mero conselho Por exemplo ldquose algueacutem te pedir a tuacutenica daacute-lhe tambeacutem o paacutelio se algueacutem te esbofetear numa face oferece-lhe tambeacutem a outrardquo Sem duacutevida excelente ilustraccedilatildeo do sermatildeo da montanha Finalmente consideraccedilotildees idecircnticas podemos encontrar na obra citada de LEJAY Eis outra amostra tirada do discurso de 23 de fevereiro (CT V 13) Nam illaelig (scil traditiones) quaelig ad fidem pertinent eadem sunt recipiendaelig auctoritate qua recipitur evangelium alia autem non ita eum earum plurimaelig immutataelig fuerint ut de bigamis de esu sanguinis et similia De modo semelhante aliaacutes fala tambeacutem Bonuccio (I 525 a 23 de marccedilo de 1546 ecclesia traditiones apostolorum quandoque mutavit verbum autem Dei nunquam mutavit neque mutare potest

Seripando opotildee as natildeo referidas na Biacuteblia e que ora satildeo apostoacutelicas ou oriundas de Conciacutelios universais e aceitas por toda a Igreja ora satildeo particulares e muito variaacuteveis35

Este texto nos leva a uma surpreendente conclusatildeo para Seripando e muitos outros Padres tridentinos36existem tradiccedilotildees na Escritura ldquoTradiccedilatildeordquo natildeo significa o natildeo-escrito Existe quer dentro da Escritura quer fora dela Isto nos conduz a outra pergunta em que consiste para os referidos Padres a essecircncia da tradiccedilatildeo se o que a constitui natildeo eacute o fato de natildeo ser escrita37 Em outros termos como pode a tradiccedilatildeo ser definida positivamente se ela natildeo pode ser suficientemente determinada pela ideacuteia negativa de algo natildeo-escrito

Haacute uma seacuterie de respostas para esta pergunta O proacuteprio Seripando daacute a seguinte definiccedilatildeo Traditiones hoc est Apostolorum seu sanctorum Patrum sanctae et salutares constitutiones38 Mais clara ainda eacute a afirmaccedilatildeo de Cervini citada por Massarelli A objeccedilatildeo do Bispo de Chioggia que aduzia a opiniatildeo de Agostinho de que tudo o que eacute necessaacuterio para a salvaccedilatildeo estava escrito na Biacuteblia respondia Cervini da seguinte maneira Verba illa (isto eacute de Santo Agostinho) formaliter intelligi debent scilicet ad fidem accipiendam ut salvi fiamus Quo vero ad mores et christianam vitam instituendam certo non omnia scripta sunt

[51] E de novo recorre agraves provas tiradas de Jo 1526 e 1426 E indica o princiacutepio pneumatoloacutegico39 O que eacute mais importante eacute que a Tradiccedilatildeo se refere agrave institutio vitaelig agrave presenccedila atuante da Palavra revelada na existecircncia cristatilde Tradiccedilatildeo eacute noutros termos a eficaacutecia da palavra de Deus Sem ela a palavra ficaria esteacuteril 35 Seripando De traditionibus (fevereiro ou marccedilo de 1546) CT XII p517-521 e principalmente a p 521 As expressotildees desta uacuteltima paacutegina chocam-se com a ideacuteia de Cervini sobre a receptio ecclesiaelig 36 Cf o texto citado na nota 11 37 No texto definitivo do Decreto esta ideacuteia natildeo aparece mais Aqui poreacutem com esta primeira designaccedilatildeo expliacutecita da Tradiccedilatildeo vem expressamente acentuado o contraste entre in libris scriptis et sine scripto traditionibus Na segunda redaccedilatildeo o sentido expliacutecito da palavra Tradiccedilatildeo natildeo eacute tatildeo exclusivo Contudo apresenta igual matiz ao se confrontarem as expressotildees omnes libroshellipnec non traditiones ipsas Portanto a ideacuteia positiva da Tradiccedilatildeo que serve de base a esta anaacutelise natildeo deixou de influenciar na redaccedilatildeo do Decreto 38 CT XII 517 39 CT I 494 (26 de fevereiro de 1546) A citada palavra de Santo Agostinho teve o seu papel a desempenhar na discussatildeo em curso Seripando por exemplo a ela se referiu (De traditionibus CT XII 521 47-53) Pensandum denique ne in traditionibus externis vera religio et salutis spes statuatur de quibus Augustinus Omnia quaelig pertinent ad veram religionem quaeligrendam et tenendam divina Scriptura non acuit Conceda-se que nem tudo foi escrito (veja-se Jo 2125) Todavia electa sunt autem quaelig scriberentur quaelig saluti credentium sufficere videbantur Mais do que nos debates do tridentino encontramos aqui um verdadeiro postulado dos Reformadores ldquonatildeo adotar costumes exteriores mas buscar os meios definitivos de salvaccedilatildeo na palavra da Escriturardquo A ldquosuficiecircnciardquo da Escritura de que aqui se fala eacute na verdade algo diverso da suficiecircncia material da mesma Escritura defendida por Geiselmann em sentido muito mais radical Infelizmente ainda natildeo se quis levar na devida consideraccedilatildeo o texto de Santo Agostinho (CT I 494 sugere De doctrina christiana II 9 e De pecc mero et rem II 59) Muito apropriadas nesta ordem de ideacuteias satildeo as observaccedilotildees de H SCHAUF ldquoSchrift und Traditionrdquo in Antonianum 39 (1964) p200-209 feitas no chamado Encontro de Duumlsseldorf Nos textos citados por Schauf com base em Agostinho eacute afirmada a suficiecircncia da Escritura para a salvaccedilatildeo Eacute contudo contestada a sua suficiecircncia para a Igreja em geral De fato esta alternativa parece muito mais vaacutelida e fundamental agrave luz dos postulados dos Reformadores do que a alternativa entre a suficiecircncia ou insuficiecircncia material da Escritura

Na mesma linha de ideacuteias seguem-se duas outras seacuteries de pronunciamentos Vimos na introduccedilatildeo agrave parte anterior que a discussatildeo dogmaacutetica da ideacuteia de

Tradiccedilatildeo foi em parte prejudicada pela questatildeo do meacutetodo a seguir no Conciacutelio dever-se-ia abordar primeiro a reformatio a reforma praacutetica da Igreja como queria o ldquoKaiserrdquo Ou primeiro discutir a questatildeo dogmaacutetica como preferia o Papa40

[52] Este problema do meacutetodo embora resolvido no debate que entatildeo surgiu natildeo afetou diretamente a questatildeo da Tradiccedilatildeo como tal Mas como de fato estas duas questotildees ficaram ligadas entre si daiacute resultou que muitos oradores transformaram a questatildeo do meacutetodo (se se deveria falar dos abusos ou da Tradiccedilatildeo) em parte de sua argumentaccedilatildeo em torno do assunto em pauta41 O problema abusus e o problema Traditio ficaram de tal maneira associados na ocasiatildeo que pareciam formar no fundo um soacute assunto Por isso os oradores ora falavam em sentido positivo ora se pronunciavam em sentido negativo Isto correspondia tambeacutem ao propoacutesito reformista do Conciacutelio as traditiones representavam os abusus aos quais a Igreja se opunha Os Padres estavam cocircnscios de que condenar as traditiones era condenar Os usus ecclesiaelig o modo como a Igreja vivia a sua vida naquela eacutepoca

A outra seacuterie de pronunciamentos que se inclinavam ao mesmo sentido encontramo-la nas proposiccedilotildees que a auctoritas da Igreja apresenta como definitivas indicando uma iacutentima relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a institutio christiana 42

[53] Podemos agora retomar ao nosso ponto de partida e dar resposta agrave pergunta que propriamente significa a foacutermula ad nos usque pervenerunt Objetivamente natildeo se trata aqui de um historicismo que a foacutermula parece expressar Ao contraacuterio Trata-se da fidelidade perseverante da Igreja agrave institutio vitaelig christianaelig da legiacutetima forma de vida cristatilde em concreto no tempo presente da Igreja da institutio christiana que coloca a Escritura em primeiro lugar e que como tal isto eacute como vida decorrente da Escritura eacute fundamentalmente apostoacutelica embora tambeacutem sujeita a mudanccedilas como tudo o que eacute vivo

3 A Tradiccedilatildeo e o dogma eclesiaacutestico

40 Sobre o debate em torno da questatildeo do meacutetodo cf mais uma vez JEDIN op cit p9-82 e outras 41 Assim jaacute no discurso de Cervini antes analisado (CT I 484) no qual ele recorda o dilema do Conciacutelio se nos voltarmos contra as tradiccedilotildees ficaratildeo admirados os Padres Conciliares quasi reformationem fugiamus si ipsam reformationem sumimus iterum objicient traditiones relinquendas non esse Idecircntica era a situaccedilatildeo em que se encontrava o Bispo de Astorga nas duas intervenccedilotildees que fez no dia 23 de fevereiro de 1546 (CT V 13 e 19) segundo Seripando (I 484) helliptraditiones prius pertractandas consulit tantam enim conformitatem abusus qui ex sacris libris descendunt cum iis qui a traditionibus orti sunt habent ut sacris libris et traditionibus absolutis duo illa abusuum genera simul pertractari valeant Segundo Bonuccio (I 484) antes de tudo dever-se-ia tratar das Sagradas Escrituras dos cacircnones apostoacutelicos dos Conciacutelios gerais e das decretais pontifiacutecias Hisque ilusceptis ad abusus ex eisdem dependentes devenire 42 Assim principalmente de acordo com Afonso de Castro (CT I 484) Quoniam ultra traditiones apostolicas ecclesiae auctoritatem habemus quaelig ecclesiaelig auctoritas tonta apud nos est ut aliqui eam maioris roboris quam sacros libros esse sentiant Cf igualmente CT I 491 45 Na mesma linha pode-se ver uma seacuterie de pronunciamentos na citada obra de LEJAY Cf CT XII 524 (Tratado De traditionibus ecclesiaelig fevereiro ou marccedilo de 1546)

Uma segunda seacuterie de motivos eacute expressa no Decreto pela foacutermula traditiones tum ad fidem tum ad mores pertinentes Se como vimos a ideacuteia de Tradiccedilatildeo aparece muito limitada naquilo que os Padres conciliares chamam consuetudines observationes institutiones por outro lado o Procurador do Cardeal de Augsburgo Claudio Lejay SJ se fez o porta-voz de uma expressatildeo que em oposiccedilatildeo agraves traditiones caeligremoniales estabeleceu justamente o sentido da tradiccedilatildeo contida na feacute Seu tratado sobre a Tradiccedilatildeo composto para uso dos Padres conciliares inclui tambeacutem a foacutermula que foi adotada pelo Conciacutelio Aiacute se diz Denique multas veritates tum ad fidem tum ad mores pertinentes Ecclesia novit quas Scriptura aperte et expresse non continet Ele cita como exemplos as palavras persona essentia trinitas no Tratado da Santiacutessima Trindade consubstantialitas na Cristologia do Logos duas naturezas uma soacute Pessoa referentes ao dogma definido pelo Conciacutelio de Calcedocircnia E ainda Cristo Filho uacutenico de Maria duas vontades na uacutenica Pessoa de Cristo uma alma racional aleacutem do espiacuterito divino em Cristo Ana matildee de Maria o costume de fazer sinais da cruz a santificaccedilatildeo do domingo a maneira de rezar com face voltada [54] para o Oriente tudo isto ideacuteias e fatos da tradiccedilatildeo conciliar e da piedade cristatilde43

Cervini que aprovou o discurso de Lejay de 23 de fevereiro de 154644 pocircde dificilmente conciliar esta posiccedilatildeo com a sua expressa na jaacute citada carta ao Cardeal Farnese onde como vimos ele diz que o Espiacuterito Santo falou na Igreja e depois da Ascensatildeo do Senhor fala ainda maxime medianti i concilii45 Ele aiacute viu publicamente sublinhado o fato de que aquele ldquomaisrdquo que a Igreja viva representa em relaccedilatildeo agrave palavra meramente escrita natildeo se referia e natildeo se refere apenas agrave vita instituenda ou como ele prefere agrave caeligremonialia Refere-se tambeacutem agrave essentialia fidei que antes de tudo plenamente se expressam na Tradiccedilatildeo Tambeacutem aqui como se vecirc o interesse dominante natildeo estaacute na apresentaccedilatildeo historicista do assunto a partir do iniacutecio da Igreja mas na ideacuteia de que a influecircncia da Tradiccedilatildeo sobretudo atraveacutes da praxe conciliar eacute de fundamental importacircncia para a feacute para a doutrina crida e natildeo apenas para a piedade viva ou a caeligremonialia

4 O sentido do Decreto tridentino

Se recapitularmos o que ateacute agora dissemos veremos que no conjunto facilmente se podem reconhecer trecircs diferentes concepccedilotildees teoloacutegicas unidas entre si no texto definitivo do Decreto sobre a Tradiccedilatildeo Unidas mas natildeo equiparadas umas agraves outras Pelo contraacuterio apesar de sua grande diferenccedila foram elas apenas [55] mais ou menos justapostas e de novo por forccedila de uma tendecircncia comum relacionadas entre si

1 A concepccedilatildeo de Cervini que designamos como pneumatoloacutegica Com sua doutrina sobre os trecircs principia fidei insiste ele no caraacuteter dinacircmico do Cristo-evento

43 CT XII 523 LEJAY baseia-se evidentemente em listas de tradiccedilotildees confeccionadas naquele tempo (Cf ECK DRIEDO CANO BOTO NOGAROLA) Cf a este respeito Y CONGAR ldquoTraditions apostoliques non eacutecrites et suffisance de lEscrituresrdquo in Istina 6 (1959) p219-306 e principalmente a paacutegina 289 44 CT V 14 45 CT X 373

presente na Igreja Entende assim a Tradiccedilatildeo primariamente como a realidade espiritual da institutio vitaelig christianaelig

2 A concepccedilatildeo que podemos chamar de cerimonial Esta entende a Tradiccedilatildeo essencialmente como a seacuterie de consuetudines existentes ao lado da feacute como os usus ecclesiaelig que os Reformadores falsamente pretendem abolir como abusus Esta concepccedilatildeo chega a condenar a dignidade e Antiguumlidade apostoacutelica das tradiccedilotildees Sua ideacuteia eacute limitada pelo ad nos usque pervenerunt que inclui possibilidade de variar da parte das tradiccedilotildees donde a necessidade de reduccedilotildees Com os termos pervenire e conservare a recepccedilatildeo por parte da Igreja eacute considerada criteacuterio adicional ao lado da Antiguumlidade

3 A concepccedilatildeo que talvez possamos denominar dogmaacutetica Em oposiccedilatildeo agrave fixidez da ideacuteia de Tradiccedilatildeo reduzida agrave consuetudo salienta esta terceira hipoacutetese a extensatildeo do fenocircmeno Tradiccedilatildeo tambeacutem ao acircmbito da fides

Estas trecircs concepccedilotildees deram forma ao texto do Decreto de tal modo que as suas

linhas mestras derivam de Cervini e todo o texto deve ser entendido agrave luz de suas ideacuteias Contudo em duas passagens isto eacute no pervenerunt e no conservatas haacute influecircncia da segunda concepccedilatildeo enquanto no tum ad fidem tum ad mores haacute influecircncia da terceira

Em face destas trecircs concepccedilotildees das quais na realidade existem diversas variantes que tomadas em conjunto satildeo a expressatildeo das ideacuteias dominantes adotadas aparecem as teses de Bonuccio e de Nacchianti tatildeo postas em evidecircncia por Geiselmann como sentenccedilas contraacuterias De fato o parecer de Bonuccio claramente [56] se opotildee agrave segunda concepccedilatildeo (contra a supervalorizaccedilatildeo das consuetudines natildeo per pietatis affectus) ao passo que Nacchianti se levanta antes contra a terceira posiccedilatildeo e salienta a suficiecircncia da feacute recebida por meio da Escritura46

Seria de notar-se ainda que as concepccedilotildees segunda e terceira tecircm algo em comum Ambas opotildeem agrave visatildeo pneumatoloacutegica de Cervini da salvaccedilatildeo sempre presente uma visatildeo mais historicista relacionada com o prolongamento da salvaccedilatildeo operada uma soacute vez ou seja o ἑφάπαξ Na realidade deve-se dizer que embora de um lado tanto a visatildeo presencial de Cervini como tambeacutem a visatildeo historicista do outro grupo se consideradas isoladamente cada qual de per si sejam perigosas se natildeo insustentaacuteveis 46 Aliaacutes de acordo com uma informaccedilatildeo de Cervini parece que o Bispo de Chioggia finalmente renunciou agrave sua tese da suficiecircncia da Escritura na qual se inclinava a recusar as tradiccedilotildees Na carta de Cervini ao Cardeal Farnese de 27 de fevereiro de 1546 lemos hellip Chioggia che (quasi quasi) voleva dire queste traditioni essere superflue perorando che tutto quello che era necessario alla salute era scritto et allegando etiam S Agostino sopra lultimo capitulo di S Giovanni a questo proposito Pure per non poter negare che molte cose appartenenti almeno alli sacramenti non ci fussero venute ex tra ditione et per consequente che non tutte le cose necessarie alia nostra salute erano scritte poiche ebbe fatte molte distintioni concluse che ancor lui accettava queste ldquoche in la chiesa fusse qualque traditione apostolica non scrittardquo (et con queste parole diceva che se ne facesse il decreto) credo che molti sono restati scandalizati di lui (CT X Nr 315 paacutegs 399 411) Cf tambeacutem CT I 494 nota 9 e 495 nota 2 CT V 18 nota 5 e 19 e nota 1 O mesmo protesto que aparece contra Nacchianti manifesta-se tambeacutem na observaccedilatildeo de Massarelli Este chega a chamar aquele de novarum rerum cupidus (1 494 18) e esclarece que reprehensus est a multis (1 494 22) Diante disto eacute de todo destituiacuteda de creacutedito a importacircncia que Geiselmann lhe atribui mesmo se abstrairmos de outras razotildees jaacute conhecidas sobre as quais natildeo precisamos insistir

de outro lado pelo menos tornam possiacutevel uma exata visatildeo do conjunto devido agrave sua muacutetua confluecircncia e limitaccedilatildeo No texto atual estatildeo presentes embora pouco nitidamente ambos os pontos de vista o elemento presencial e o ἑφάπαξ Conveacutem que entendamos assim o texto de modo a considerarmos [57] ambos estes aspectos como essenciais Consequumlentemente reconheceremos que ambos pertencem constitutivamente agrave realidade da vida cristatilde e portanto tambeacutem agravequela parcela do Cristianismo a que damos o nome de Tradiccedilatildeo Estes dois elementos satildeo a presenccedila do Espiacuterito Santo e o seu nexo com o fato singular da salvaccedilatildeo ocorrido uma soacute vez por todas na histoacuteria dos homens

Assim se acharaacute finalmente a resposta agrave pergunta de corno noacutes devemos entender o parecer do Conciacutelio de Trento A primeira e mais importante conclusatildeo parece-me ser o fato de o Conciacutelio ter visto muito claramente o nexo entre Tradiccedilatildeo e Revelaccedilatildeo A seguir elaborou sempre em consonacircncia com a tradiccedilatildeo patriacutestica e medieval um conceito de Revelaccedilatildeo muito menos material do que o que seraacute adotado mais tarde pela teologia dos tempos modernos Somente assim se deve conceber a ideacuteia da Revelaccedilatildeo do Espiacuterito Santo na Igreja Partindo do ramo nitidamente patriacutestico da teologia medieval tatildeo francamente acolhido no discurso de Cervini deveria ser muito menos categoacuterica a opiniatildeo que coloca o teacutermino da Revelaccedilatildeo na morte do uacuteltimo Apoacutestolo Naturalmente esta questatildeo natildeo pode ser aqui estudada com maiores detalhes A sua soluccedilatildeo como entatildeo se apresentava aos teoacutelogos poderia ser hoje impostada apelando-se para as categorias da teologia atual Segundo esta podemos dizer que a Revelaccedilatildeo estaacute encerrada do ponto de vista de seu princiacutepio material Todavia estaacute e continua presente em sua realidade eficaz Noutros termos a Revelaccedilatildeo tem eacute verdade o seu ἑφάπαξ enquanto ela se realizou num determinado dia na Histoacuteria Entretanto ela tem tambeacutem o seu ldquohojerdquo permanente isto eacute o que foi uma vez por todas realizado na feacute da Igreja permanece sempre vivo e operante Assim a feacute cristatilde natildeo se volta apenas para o passado Abrange tambeacutem o presente e o futuro Eacute verdade que a posterior materializaccedilatildeo historicista da ideacuteia de Revelaccedilatildeo aparece jaacute claramente insinuada nos debates tridentinos corno um fato previsto mas ainda [58] natildeo consumado embora talvez se possa dizer que nos textos conciliares ficou definitivamente consagrada a sua aceitaccedilatildeo

Finalmente acrescentemos ainda que com base nos debates do Conciacutelio podemos estabelecer quatro elementos da ideacuteia de Tradiccedilatildeo 1 O aspecto natildeo-escrito da Revelaccedilatildeo ou do Evangelho contido na Biacuteblia e no coraccedilatildeo dos fieacuteis 2 A palavra do Espiacuterito Santo no decorrer de todo o tempo da Igreja

3 A atividade da Igreja nos Conciacutelios 4 A Tradiccedilatildeo lituacutergica e a da vida da Igreja em geral Nestes quatro elementos

que se deve ter sob os olhos pois formam o fundo ideoloacutegico do Decreto expressa-se a realidade uacutenica do tempo presente da Igreja cristatilde Nele estaacute presente todo o passado poacutes-apostoacutelico da Igreja (inclusive o proacuteprio tempo dos apoacutestolos) de modo que toda a sua vida eacute na Sagrada Escritura um elemento central embora natildeo o uacutenico Em suma deve ter ficado claro que o Conciacutelio de Trento a despeito do caraacuteter contrastante e fixo de sua ideacuteia de Revelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeo oferece uma visatildeo muito mais rica destes conceitos do que a que impregnou a mentalidade dos seacuteculos seguintes Justamente por

isso a teologia de hoje pode retirar daiacute novos subsiacutedios novo apoio para suas pesquisas e novas indicaccedilotildees sobre o verdadeiro caminho a seguir

Quadro sinoacutetico do Decreto tridentino sobre a Tradiccedilatildeo

Primeiro princiacutepio conforme Cervini (AT = Escritura)

Sacrosancta œcumenica et generalis Tridentina Synodus in Spiritu Sancto legitime congregata [] hoc sibi perpetuo ante oculos proponens ut sublatis erroribus puritas ipsa EVANGELII in Ecclesia conservetur quod PROMISSUM ANTE PER PROPHETAS IN SCRIPTURIS SANCTIS

Segundo princiacutepio conforme Cervini o Evangelho em parte escrito em parte insculpido nos coraccedilotildees

[59] DOMINUS NOSTER IESUS CHRISTUS DEI FILIUS PROPRIO ORE PRIMUM PROMULGAVIT DEINDE PER SUOS APOSTOLOS TAMQUAM FONTEM OMNIS ET SALUTARIS VERITATIS ET MORUM DISCIPLINAE OMNI CREATURAE PRAEDICARI IUSSIT PERSPICIENSQUE HANC VERITATEM ET DISCIPLINAM CONTINERI IN LIBRIS SCRIPTIS ET SINE SCRIPTO TRADITIONIBUS QUAE AB IPSIUS CHRISTI ORE AB APOSTOLIS ACCEPTAE AUT AB IPSIS APOSTOLIS SPIRITU SANCTO DICTANTE

Seripando Cervini e outros soacute consideram as tradiccedilotildees recebidas pela Igrej (ldquoad nos usquerdquo)

quasi per manus traditae ad nos usque pervenerunt

orthodoxorum Patrum exempla secuta omnes libros tam Veteris quam Novi Testamenti cum utriusque unus Deus sit auctor nec non TRADITIONES IPSAS

Lejay Tradiccedilatildeo contendo natildeo soacute a ldquoconsuetudordquo mas relacionada tambeacutem com a ldquofidesrdquo (foacutermula conciliar)

tum ad fidem tum ad mores pertinentes

Terceiro princiacutepio de Cernini Depois da Ascenccedilatildeo de Cristo o Espiacuterito Santo ensina tambeacutem os misteacuterios de Deus

TAMQUAM VEL ORETENUS A CHRISTO VEL A SPIRITU SANCTO DICTATAS

Seripando Cervini etc soacute satildeo consideradas as coisas recebidas pela Igreja (como acima)

et continua successione in Ecclesia catholica conservatas

Cervini Escritura e Tradiccedilatildeo procedem ambas do mesmo Espiacuterito Santo

pari pietatis affectu ac reverentia suscipit ac veneratur

  • Prefaacutecio
  • SEGUNDA PARTE
  • Explicaccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo
  • segundo o Decreto do Conciacutelio de Trento
Page 26: Revelacao e Tradicao-Joseph Ratzinger (Bom Ler)

sentido de mera interpretaccedilatildeo exegeacutetica Mas sim na autoridade espiritual recebida do Senhor a qual se consuma na existecircncia plena da Igreja em sua feacute em sua vida e em seu culto Contudo ela permanece sendo (mais ainda do que o Cristo-evento em que se funda a Igreja) uma ldquoex-posiccedilatildeordquo (Aus-Legung) comprometida com a Histoacuteria e com a Palavra [38] Exprime-se deste modo a sua ligaccedilatildeo com a accedilatildeo concreta de Deus nesta mesma Histoacuteria e em seu caraacuteter de fato histoacuterico uacutenico (o ἑφάπαξ ldquoo ocorrido uma soacute vezrdquo) A realidade cristatilde da Revelaccedilatildeo eacute tatildeo essencial quanto ldquoeternardquo e definitiva Resulta daiacute a unidade entre o Cristo da Feacute e o Jesus da Histoacuteria o Jesus histoacuterico natildeo eacute senatildeo o Cristo da Feacute ainda que a feacute seja sempre algo mais do que a histoacuteria

Segue-se que do mesmo modo que existe um ofiacutecio de custoacutedia da Revelaccedilatildeo por parte da Igreja ofiacutecio por ela mesma atestado existe tambeacutem um ofiacutecio de custoacutedia da mesma Revelaccedilatildeo por parte da exegese que penetra o sentido literal da Escritura e defende a uniatildeo do Logos com a carne contra qualquer perigo de gnose Existe portanto por assim dizer algo como uma autonomia especiacutefica da Escritura como regra objetiva e sob muitos pontos de vista esclarecedora do Magisteacuterio eclesiaacutestico Esta era sem duacutevida uma exigecircncia legiacutetima de Lutero que ainda natildeo foi devidamente acolhida na Igreja catoacutelica por parte do Magisteacuterio cujos limites internos nem sempre foram claramente entendidos

Dever-se-ia partindo daqui salientar uma dupla criteriologia em se tratando da feacute De um lado haacute o que a Igreja antiga chamou de ldquoregra da feacuterdquo norma reguladora da palavra revelada contida na Escritura e sua exposiccedilatildeo Esta praeligscriptio da posse da Escritura como proacutepria segundo Tertuliano exclui a possibilidade de qualquer uso legiacutetimo da mesma Escritura contra a Igreja Por outro lado haacute tambeacutem o limite da littera Scripturaelig ou do sentido literal historicamente fixaacutevel que de acordo com o que ficou dito natildeo constitui nenhum criteacuterio absoluto ou autocircnomo mas sim somente um criteacuterio relativo no confronto da feacute com a ciecircncia O que na Escritura se pode descobrir quer mediante estudo cientiacutefico quer por simples leitura tem a funccedilatildeo de um criteacuterio real a que deve estar atento inclusive o Magisteacuterio em suas explicaccedilotildees Certamente [39] trata-se entatildeo de elementos sub-componentes da ciecircncia que natildeo podem servir para se julgar a feacute mas nela encontram uma instacircncia criacutetica e tecircm tambeacutem um importante papel a exercer o de zelar pela pureza do ἑφάπαξ de tutelar o conteuacutedo da Revelaccedilatildeo e de defender o dualismo histoacuterico carneespiacuterito (ldquodie Sarx der Geschichterdquo) contra os arbiacutetrios da gnose que tende sempre a impor-se

A reformatio na qual estaacute empenhada a Igreja nesta hora histoacuterica tem um papel relevante a desempenhar Eacute a missatildeo de abrir novas perspectivas para o diaacutelogo tentando assim chegar a uma ldquoreformardquo diferente da do passado que culminou com a divisatildeo no seio da Cristandade ocidental Tal missatildeo se exerceraacute em harmonia com o pleno ofiacutecio de testemunho da Igreja que tira seu direito e sua forccedila da presenccedila do Espiacuterito e de Cristo presente em todos os tempos Pois ele eacute sempre o Cristo de agora com a plenitude de seus direitos e de seus poderes Ele eacute quem daacute legitimidade e vigor ao testemunho singular e definitivo da Escritura que por sua vez encontra seu pleno sentido na singularidade da accedilatildeo histoacuterico-salviacutefica de Jesus Cristo Ele deu ao Pai seu Corpo crucificado e dando-se a si mesmo santificou para sempre os que o receberam (cf Hb 1014 727) Ele eacute o Cristo ontem hoje e sempre (Hb 138)

SEGUNDA PARTE

Explicaccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo segundo o Decreto do Conciacutelio de Trento

Parece que a completa elucidaccedilatildeo das razotildees que levaram agrave substituiccedilatildeo do

partim-partim pelo et e consequumlentemente agrave pesquisa dos dados do debate tridentino e de sua preacute-histoacuteria aparentemente favoraacutevel agrave suficiecircncia material da Escritura [40] simplifica indevidamente este problema fazendo-nos perder de vista os proacuteprios antecedentes do Decreto do Conciacutelio de Trento

1 A concepccedilatildeo pneumatoloacutegica da Tradiccedilatildeo no esquema fundamental do Cardeal Cervini

a) O conteuacutedo Um balanccedilo histoacuterico e detalhado do problema em seu conjunto exigiria uma

pesquisa exaustiva que natildeo reduzisse o seu acircmbito como o fez Geiselmann em seu livro25 Natildeo eacute nossa intenccedilatildeo proceder a um exame minucioso do assunto no presente trabalho Aqui soacute seratildeo tratados alguns pontos do debate tridentino com o fim de ampliarmos mais o horizonte de nossas reflexotildees

Fundamental para a compreensatildeo dos debates em pauta bem como do Decreto definitivo do Conciacutelio parece-me ser o Discurso do Cardeal Legado Cervini datado de 18 de fevereiro de 1546 [41] cujas linhas gerais se patenteiam tanto no Decreto como em outras decisotildees conciliares26

Tem o discurso de Cervini o meacuterito de mostrar as linhas diretrizes do Decreto de maneira mais clara do que aparecem estas na uacuteltima redaccedilatildeo do mesmo onde elas se diluem muito devido a uma seacuterie de variadas implicaccedilotildees Eacute ainda de grande auxiacutelio para o entendimento do referido discurso uma carta dos Cardeais Legados ao Cardeal Alexandre Farnese de 28 de fevereiro de 1546 Esta carta revela conteuacutedo idecircntico ndash eacute certamente inspirada pelo mesmo Cervini ndash e oferece ainda alguns outros

25 Eacute lamentaacutevel que Geiselmann em sua anaacutelise da contribuiccedilatildeo medieval sobre este assunto se tenha apoiado apenas em argumentos de segunda matildeo portanto de valor histoacuterico discutiacutevel Queira o leitor ver minhas observaccedilotildees a este respeito in Theol-prakt Quartalschrift 1963 p224-227 As novas (e temperamentais) invectivas de Geiselmann in TThQu 144 (1964) p 31-69 em nada modificaram a minha posiccedilatildeo de vez que natildeo trazem nenhuma contribuiccedilatildeo vaacutelida ao assunto Precioso ao contraacuterio eacute o trabalho de Y CONGAR La Tradition et les traditionshellip Essai historique Paris 1960 Importante eacute tambeacutem a obra de J BEUMER Die muumlndliche uumlberlieferung als Glaubensquelle Friburgo 1962 A respeito do Conciacutelio de Trento cf sobretudo aleacutem do estudo fundamental de JEDIN o artigo de E ORTIGUES Escriture et Traditions apostoliques au Concilie de Trente in RSR 36 (1949) p 271-299 K D SCHMIDT Studien zur Geschichate des Konzilis von Trient Tubinga 1925 p 152-209 26 O discurso nos foi transmitido em duas redaccedilotildees A primeira mais curta encontra-se nas Atas do Conciacutelio in CT V 11 A segunda faz parte do diaacuterio de Massarelli (Diarium III) in CT I p484 Quanto ao conteuacutedo os dois textos se completam Na anaacutelise que aqui ensaiamos as duas versotildees satildeo comparadas entre si de modo a fazerem um todo Sobre a posiccedilatildeo de Cervini no Conciacutelio cf H JEDIN Geschichte des Konzils von Trient II Friburgo 1957 p38-40 A descriccedilatildeo do desenrolar histoacuterico dos debates acha-se em JEDIN op cit p42-82 e supomo-la conhecida do leitor de vez que serve de base para a anaacutelise teoloacutegica do Decreto tridentino

esclarecimentos Cervini sustenta no citado discurso que existem trecircs princiacutepios e fundamentos de nossa feacute

1) Os livros sagrados escritos sob a inspiraccedilatildeo do Espiacuterito Santo 2) O Evangelho que Nosso Senhor natildeo escreveu mas ensinou oralmente e

implantou nos coraccedilotildees Parte do Evangelho foi escrita mais tarde pelos Evangelistas enquanto muita coisa foi simplesmente confiada aos coraccedilotildees dos fieacuteis

3) Porque o Filho de Deus natildeo ia permanecer sempre entre noacutes enviou ele o Espiacuterito Santo que haveria de revelar os misteacuterios no iacutentimo dos fieacuteis e de ensinar agrave Igreja toda a verdade ateacute ao fim dos tempos27

[43] Numa segunda redaccedilatildeo mais detalhada do discurso estas mesmas ideacuteias satildeo

desenvolvidas mais amplamente Aiacute lemos que a Revelaccedilatildeo se apresentou de modo diferente em diversos tempos

1) Nos Patriarcas cuja feacute eacute atestada na Escritura a que chamamos de Antigo Testamento

2) Em Jesus Cristo que implantou o seu Evangelho natildeo por escrito mas oralmente natildeo in charta mas in corde Das coisas que emanaram de Cristo (quaelig a Cristo emanarunt) algumas foram escritas outras permaneceram nos coraccedilotildees dos homens (quaeligdam in cordibus hominum relicta fuerunt) Todo o Evangelho de Cristo que consta desta dupla modalidade forma (tendo como primeiro princiacutepio o Antigo Testamento) o secundum prindipium fidei nostraelig

3) Daiacute surge o terceiro princiacutepio (tertium autem) porque o Filho de Deus natildeo iria permanecer sempre entre noacutes enviou ele ao mundo o Espiacuterito Santo que haveria de explicar os misteacuterios de Deus e tudo o que fosse ainda obscuro para os homens28 De modo semelhante a citada carta ao Cardeal Farnese fala de dois passos (due

passi) Um eacute que a Revelaccedilatildeo de Nosso Senhor natildeo foi totalmente escrita mas permaneceu em parte contida nos coraccedilotildees dos homens e na Tradiccedilatildeo da Igreja O outro [43] passo consiste em confirmar ldquoquello che egrave suggerito lo Spirito Santo in la Chiesa maxime medianti i concilij doppo lAscensione in cielo del Signorerdquo29

Notamos logo que contrariamente ao que esperaacutevamos natildeo dois mas trecircs satildeo os princiacutepios apontados a Escritura o Evangelho e a Revelaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

27 CT V 11 helliptria esse principia et fundamenta nostrae fidei primum libros sacros secundum esse evangelium quod Christus Dominus Noster non scripsit sed ore docuit et in cordibus illud plantavit cujus evangelii nonnulla evangelistaelig scripto mandarunt multa quoque relicta sunt in cordibus hominum Tertium quia non semper filius Dei corporaliter nobiscum mansurus erat misit Spiritum Sanctum qui in cordibus fidelium secreta Dei revelaret et ecclesiam quotidie et usque consummationem saeligculi doceret omnem veritatem et si quid in mentibus hominum dubii occurrisset declararet 28 CT I 484 Digna de nota eacute ainda a foacutermula contida na paacutegina 48514-16 nihil tamen inter scripturas sacras et apostolicas traditianes differt illaelig enim scriptaelig hae per insinuationem habentur utraeque tamen a Spiritu Sancto eodem modo emanataelig Confira-se com CT V 11 19 ab eodem Spiritu et illos (scilicet libros) et istas (scilicet traditiones) descendisse 29 CT X 373

Eacute portanto necessaacuterio observar que sob o termo ldquoEscriturardquo se entende o Antigo Testamento e que aleacutem deste (que eacute Escritura em sentido proacuteprio) aparece como segundo princiacutepio o Evangelho apresentaccedilatildeo do Cristo-evento O Evangelho por sua vez abrange o que estaacute escrito e o que natildeo estaacute escrito mas sim apenas insculpido no coraccedilatildeo dos crentes Deste modo o segundo princiacutepio representa uma vantagem pneumaacutetica sobre o que estaacute escrito o Evangelho eacute nesta concepccedilatildeo algo diferente da letra (Escritura) e soacute em parte vem escrito (Isto natildeo deve ser entendido no sentido de divisatildeo das verdades da feacute fenocircmeno denunciado ldquocom horrorrdquo por Geiselmann Ao contraacuterio Entenda-se apenas no sentido de diferente grau de dignidade no modo de exprimir-se) Em rigor o Evangelho como tal soacute pode ser escrito em parte se considerarmos a sua essecircncia

Finalmente ndash o que eacute muito de se admirar ndash segue-se como terceiro princiacutepio a accedilatildeo visiacutevel do Espiacuterito Santo em todo o tempo da Igreja

Admitimos portanto que o que noacutes geralmente chamamos de Tradiccedilatildeo natildeo aparece aqui como um soacute princiacutepio Biparte-se antes em dois princiacutepios intimamente ligados o ldquoEvangelhordquo princiacutepio apenas em parte identificaacutevel com a Escritura e a accedilatildeo do Espiacuterito Santo no tempo da Igreja Ademais podemos observar que a Escritura do Novo Testamento natildeo aparece como um princiacutepio ao lado da Revelaccedilatildeo apostoacutelica Muito menos como [44] eacute o nosso caso se apresenta a Escritura neotestamentaacuteria juntamente com a veterotestamentaacuteria como uma grandeza uacutenica uma ldquoEscriturardquo soacute agrave qual se poderia contrapor a ldquoTradiccedilatildeordquo como uma segunda grandeza O Novo Testamento em seu conjunto aparece como um segundo e mais amplo princiacutepio ou seja o Evangelho que como tal se opotildee de um lado ao Antigo Testamento e de outro agrave projeccedilatildeo histoacuterica do tempo da Igreja Sua unidade interna eacute evidentemente mais forte e importante do que a sua divisatildeo em escrito e natildeo-escrito Assim o Evangelho como um soacute princiacutepio pode ser contraposto ao Antigo Testamento a despeito desta dupla formalidade A impossibilidade de se representar o Novo Testamento como Escritura impossibilidade esta demonstrada por Satildeo Paulo e pelos primeiros seacuteculos cristatildeos eacute aqui claramente revelada

Ainda uma observaccedilatildeo relativa ao texto a que vimos nos referindo Em nenhum dos dois pontos por noacutes citados no estudo da Tradiccedilatildeo isto eacute nem no elemento contido no primeiro nem no apresentado no terceiro princiacutepio figura a Tradiccedilatildeo como verbal Em ambos os casos ao contraacuterio trata-se mais da Tradiccedilatildeo real com prevalecircncia da realidade sobre as palavras que a atestam Este fato que estaacute claro no terceiro princiacutepio o pneumatoloacutegico vale tambeacutem em relaccedilatildeo agrave implantaccedilatildeo do Evangelho nos coraccedilotildees contida no segundo princiacutepio Tal implantaccedilatildeo vai muito aleacutem do que se encontra expresso na letra da Escritura

Que papel tenham estas ideacuteias exercido nas discussotildees do Conciacutelio pode-se concluir tambeacutem das auctoritates citadas por Cervini entre as quais figuram Jo 16 12 (hellipSpiritus Sanctus suggerethellip) e Fl 3 15 (Quicumque perfecti sumus haeligc sentiamus et si quid aliter sentitis haeligc quoque Deus vobis revelabit) Ambos estes textos satildeo de teor acentuadamente [45] pneumatoloacutegico-presencial30 Que tais ideacuteias natildeo eram

30 CT V 14 e 15 Um exame profundo das auctoritates quer da Escritura quer entre os Santos Padres que neste particular satildeo favoraacuteveis agrave Tradiccedilatildeo seria em si conclusivo para a elaboraccedilatildeo do conceito

estranhas aos Padres conciliares deduz-se ainda de uma seacuterie de outras referecircncias Assim ouvimos o Bispo de Aqui dizer que aleacutem da Sagrada Escritura existe muita coisa na Igreja de Deus que vindo dos Apoacutestolos e passando de geraccedilatildeo a geraccedilatildeo chegou ateacute noacutes assim como muitas outras quaelig etsi scripta Apostoli nobis non reliquerunt per Spiritus Sancti revelationem nobis (tradita) sunt (Tradita estaacute aqui por revelata) 31 Partindo daiacute se poderia descrever a Tradiccedilatildeo justamente como o componente pneumatoloacutegico do Cristo-evento b) A influecircncia do esquema de Cervini em diversas decisotildees conciliares

Eacute verdade que esta concepccedilatildeo tripartida aparece muito atenuada no Decreto

oficial sobre a Tradiccedilatildeo Que poreacutem em suas linhas fundamentais natildeo tenha ela sido de modo nenhum [46] abandonada mostram-no duas outras passagens nas quais o Conciacutelio faz uso por assim dizer in actu das ideacuteias aqui expressas32 Assim na Introduccedilatildeo ao Decreto sobre a Eucaristia (Denz 873) se lecirc Sacrosancta Synodus sanamhellipdoctrinam tradens quam semper catholica Ecclesia ab ipso Jesu Christo Domino Nostro et eius apostolis erudita atque a Spiritu Sancto illi omnem veritatem in dies suggerente (Jo 1416) edocta retinuithellip

Aqui a accedilatildeo proacutepria do Conciacutelio eacute descrita como tradere e a este tradere eacute atribuiacutedo um duplo fundamento De um lado o ensino de Jesus e dos Apoacutestolos (Note-se que este ponto corresponde ao Evangelho segundo a concepccedilatildeo de Cervini E de certo modo tambeacutem pela citaccedilatildeo de Jesus e dos Apoacutestolos se reconhece a dupla modalidade do Evangelho como escrito e como inserido nos coraccedilotildees) De outro lado o ensino dado pelo Espiacuterito Santo que conduz agrave verdade in dies isto eacute no de correr do tempo futuro

O outro texto que pode ser aduzido aqui como prova do que afirmamos encontra-se no Preacircmbulo do Decreto sobre o Purgatoacuterio (Denz 983) Aiacute se lecirc hellipCatholica Ecclesia Spiritu Sancto edocta ex Sacris Litteris et antiqua Patrum traditione in sacris Conciliis et novissime in hac Synodo docuerit A descriccedilatildeo da accedilatildeo proacutepria do

aqui exposto H HOLSTEIN procurou fazer o cotejo destas auctoritates e fecirc-lo de modo admiraacutevel em seu artigo La Tradition dapregraves le Concile de Trente (RSR 47 1959 p367-390 e em particular para o caso em questatildeo a p375) Ele encontra nos textos estudados duas linhas de tendecircncias A linha de Santo Irineu para a qual o testemunho dos Apoacutestolos eacute o de sua personalidade de sua vida e de seu ofiacutecio Aleacutem desta o grupo composto de Tertuliano Cipriano Basiacutelio e Agostinho forma uma corrente que se poderia denominar ldquocerimonialrdquo Oriacutegenes se enquadra em ambos os grupos Existe entre os autores estudados uma seacuterie de textos que se referem agraves observationes consuetudines institutiones e que levam a entender-se a Tradiccedilatildeo neste mesmo sentido Aiacute se vecircem tambeacutem textos que sublinham o aspecto natildeo-escrito do Evangelho enquanto insculpido no coraccedilatildeo dos fieacuteis e aleacutem disso textos que apontam a Igreja como o ldquolugarrdquo da verdade cristatilde 31 CT I 483 (18 de fevereiro de 1546) Em 26 de fevereiro (CT V 18) encontramos Cervini a tratar de novo deste assunto Cf tambeacutem um pronunciamento do Bispo de Fano (CT V 10) nestes termos Cum jam receperimus Scripturas Sacras necessario recipiendaelig sunt traditiones quaelig ab eodem Spiritu Sancto quo scripturaelig dictataelig sunthellip 32 Disto me adverti pela primeira vez atraveacutes de um estudo realizado sob a minha orientaccedilatildeo por CHR LIMBACR a quem sou devedor de muitas informaccedilotildees bibliograacuteficas

Conciacutelio como tradere encontra-se ainda nas declaraccedilotildees sobre o Sacramento da Extrema-Unccedilatildeo (Denz 910)

Finalmente a triacuteplice divisatildeo deixa-se insinuar nas entrelinhas do Decreto sobre a Tradiccedilatildeo embora obscurecida e diluiacuteda por uma seacuterie de acreacutescimos e citaccedilotildees a ele adicionados por outros motivos O Decreto da Tradiccedilatildeo com efeito [47]

1) Fala do Evangelho prometido pelos Profetas na Escritura e refere-se a esta em sentido estrito quer antes quer depois do Antigo Testamento

2) Fala da promulgaccedilatildeo por Cristo do Evangelho que foi transmitido pelos Apoacutestolos sob dupla forma oral e escrita Desta maneira o que natildeo ocorre no exemplo de Cervini aparece aqui antes de tudo o componente pneumatoloacutegico unido com o componente apostoacutelico a ponto de se distinguirem duas modalidades de Tradiccedilatildeo apostoacutelica a que remonta a Cristo e a que remonta ao envio do Espiacuterito Santo Pode-se assim estabelecer que em oposiccedilatildeo ao esquema de Cervini haacute um certo processo de historicizaccedilatildeo que salienta a relaccedilatildeo com o comeccedilo histoacuterico e igualmente parece deslocar o acento da tradiccedilatildeo real para a verbal

3) No epiacutelogo desta parte do Decreto da Tradiccedilatildeo que vimos analisando de novo eacute considerada a ideacuteia da Sagrada Escritura O conceito de Tradiccedilatildeo eacute entatildeo formulado em definitivo e descrito como vel oretenus a Christo vel a Spiritu Sancto dictatas et continua successione in Ecclesia catholica conservatas A referecircncia aos Apoacutestolos eacute omitida Pode-se na verdade considerar tudo isto como uma volta ao que foi dito antes Evidentemente a tradiccedilatildeo ditada pelos Apoacutestolos eacute citada de novo (A expressatildeo continua successione insinua-o) Contudo permanece sempre ainda certa indeterminaccedilatildeo ficando aberta a possibilidade de se encontrar aqui o vestiacutegio do terceiro componente de Cervini o princiacutepio pneumaacutetico propriamente dito Eacute tambeacutem claro que esta ideacuteia eacute discreta sendo adotada uma posiccedilatildeo mais acentuadamente histoacuterica Se agora lanccedilarmos os olhos sobre o que vimos considerando ateacute aqui surgiratildeo

inevitavelmente perguntas qual eacute realmente o sentido proacuteprio da concepccedilatildeo pneumatoloacutegica Como poderia ser perfeitamente entendida a ideacuteia a noacutes estranha de uma revelatio prolongada no tempo em face da unicidade e do caraacuteter [48] histoacuterico da Revelaccedilatildeo que evidentemente era conhecido tanto de Cervini quanto dos Santos Padres e teoacutelogos medievais33

Antes de examinarmos isto devemos esclarecer rapidamente os principais motivos que inspiraram o Decreto tridentino sobre a Escritura e a Tradiccedilatildeo deixando nele um tanto encoberta a concepccedilatildeo pessoal de Cervini Que opiniotildees de teoacutelogos teratildeo intervindo aqui chegando a ser em parte impressas no texto definitivo que resultou do cotejo de muitos pronunciamentos diversos Uma exposiccedilatildeo detalhada deste ponto exorbitaria do acircmbito de nossa anaacutelise Contentemo-nos com umas poucas observaccedilotildees sumaacuterias 33 Sobre este assunto tentei fazer um breve comentaacuterio no meu trabalho ldquoOffenbarung-Schrift-Uberlieferungrdquo in TThZ 67 (1958) p13-27 Cf J BEUMER ldquoDer theoretische Beitrag der Frnhscholastik zum Problem des Dogmenfortschrittsrdquo in ZkTh 72 (1952) p205-226 J de CHELLINCK Pour lrsquohistoire du mot ldquorevelarerdquo in RSR 6 (1916) p149-157

2 Relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a vida da Igreja

em diversas passagens do debate tridentino

Uma primeira seacuterie de motivos entre os quais se compreendem diversos pronunciamentos agraves vezes muito contrastantes em seu aparato exterior patenteia-se na ideacuteia de tradiccedilotildees expressa no Decreto de duas maneiras a) - per manus traditaelig ad nos usque pervenerunt b) - continua successione in Ecclesia catholico conservatas

O que se ocultaraacute sob estas duas foacutermulas que o historiador de hoje tem dificuldades em aceitar justamente por causa do historicismo nelas impliacutecito Podemos dizer que um decisivo papel exerceu aqui o pensamento que sempre aparecia nos debates a saber que as tradiccedilotildees satildeo variaacuteveis que muitas delas foram abolidas pelos Apoacutestolos e que por outro lado se [49] introduziram tradiccedilotildees eclesiaacutesticas que natildeo mais seriam abolidas34 Esta ideacuteia de Tradiccedilatildeo de certo modo se torna clara no tratado escrito sobre o mesmo assunto por Seripando para uso dos Padres Conciliares Seripando fala das Tradiccedilotildees escritas inseridas na Escritura como as claacuteusulas de Tiago o costume de as mulheres se cobrirem com um veacuteu a legislaccedilatildeo sobre o matrimocircnio contida em 1Cor 7 etc E o autor adverte que estas praacuteticas foram abolidas Isto porque embora associadas agrave palavra de Deus na Escritura dela ldquomuito diferemrdquo pois a palavra divina [50] de modo nenhum poderia ser abolida A estas tradiccedilotildees

34 Cabe aqui aduzir uma nova intervenccedilatildeo de Cervini datada de 26 de fevereiro de 1546 (CT I 33 e V 18) onde ele diz que nem todas as tradiccedilotildees procedentes dos Apoacutestolos devem ser conservadas mas somente as que ab Ecclesia receptaelig ad nos usque pervenerunt (V 18) Esta afirmaccedilatildeo anterior agrave formulaccedilatildeo dogmaacutetica feita pelo Concilio deve igualmente ser tida na conta de um autecircntico comentaacuterio do Decreto Aiacute se acentua como condiccedilatildeo essencial das tradiccedilotildees a receptio ecclesiaelig Vem ainda referida uma intervenccedilatildeo do Bispo de Bertinoro em data de 23 de marccedilo (I p 523) na qual ele sublinha que as tradiccedilotildees escritas por vezes foram mudadas Jaacute entre as natildeo-escritas umas foram mudadas e outras natildeo como por exemplo o rito de adicionar aacutegua ao vinho a Crisma a confissatildeo auricular O Bispo de Bertinoro acrescenta que por outro lado alguns pontos existem que permaneceram inteiramente inalterados tais como a crenccedila no descensus ad inferos na virgindade perpeacutetua de Maria a substituiccedilatildeo da observacircncia do saacutebado pela do domingo Temos depois um pronunciamento do Bispo de Bitonto datado de 27 de marccedilo (I 39) Este bispo era de parecer que algumas coisas foram transmitidas pelos Apoacutestolos com a finalidade de serem perpetuamente conservadas (como pertencentes ao depoacutesito da feacute) outras caiacuteram em desuso (como as claacuteusulas de Tiago) e outras enfim foram apenas aconselhadas Assim mesmo na Escritura algumas coisas haacute que foram escritas mas natildeo recebidas em uso por serem mateacuteria de mero conselho Por exemplo ldquose algueacutem te pedir a tuacutenica daacute-lhe tambeacutem o paacutelio se algueacutem te esbofetear numa face oferece-lhe tambeacutem a outrardquo Sem duacutevida excelente ilustraccedilatildeo do sermatildeo da montanha Finalmente consideraccedilotildees idecircnticas podemos encontrar na obra citada de LEJAY Eis outra amostra tirada do discurso de 23 de fevereiro (CT V 13) Nam illaelig (scil traditiones) quaelig ad fidem pertinent eadem sunt recipiendaelig auctoritate qua recipitur evangelium alia autem non ita eum earum plurimaelig immutataelig fuerint ut de bigamis de esu sanguinis et similia De modo semelhante aliaacutes fala tambeacutem Bonuccio (I 525 a 23 de marccedilo de 1546 ecclesia traditiones apostolorum quandoque mutavit verbum autem Dei nunquam mutavit neque mutare potest

Seripando opotildee as natildeo referidas na Biacuteblia e que ora satildeo apostoacutelicas ou oriundas de Conciacutelios universais e aceitas por toda a Igreja ora satildeo particulares e muito variaacuteveis35

Este texto nos leva a uma surpreendente conclusatildeo para Seripando e muitos outros Padres tridentinos36existem tradiccedilotildees na Escritura ldquoTradiccedilatildeordquo natildeo significa o natildeo-escrito Existe quer dentro da Escritura quer fora dela Isto nos conduz a outra pergunta em que consiste para os referidos Padres a essecircncia da tradiccedilatildeo se o que a constitui natildeo eacute o fato de natildeo ser escrita37 Em outros termos como pode a tradiccedilatildeo ser definida positivamente se ela natildeo pode ser suficientemente determinada pela ideacuteia negativa de algo natildeo-escrito

Haacute uma seacuterie de respostas para esta pergunta O proacuteprio Seripando daacute a seguinte definiccedilatildeo Traditiones hoc est Apostolorum seu sanctorum Patrum sanctae et salutares constitutiones38 Mais clara ainda eacute a afirmaccedilatildeo de Cervini citada por Massarelli A objeccedilatildeo do Bispo de Chioggia que aduzia a opiniatildeo de Agostinho de que tudo o que eacute necessaacuterio para a salvaccedilatildeo estava escrito na Biacuteblia respondia Cervini da seguinte maneira Verba illa (isto eacute de Santo Agostinho) formaliter intelligi debent scilicet ad fidem accipiendam ut salvi fiamus Quo vero ad mores et christianam vitam instituendam certo non omnia scripta sunt

[51] E de novo recorre agraves provas tiradas de Jo 1526 e 1426 E indica o princiacutepio pneumatoloacutegico39 O que eacute mais importante eacute que a Tradiccedilatildeo se refere agrave institutio vitaelig agrave presenccedila atuante da Palavra revelada na existecircncia cristatilde Tradiccedilatildeo eacute noutros termos a eficaacutecia da palavra de Deus Sem ela a palavra ficaria esteacuteril 35 Seripando De traditionibus (fevereiro ou marccedilo de 1546) CT XII p517-521 e principalmente a p 521 As expressotildees desta uacuteltima paacutegina chocam-se com a ideacuteia de Cervini sobre a receptio ecclesiaelig 36 Cf o texto citado na nota 11 37 No texto definitivo do Decreto esta ideacuteia natildeo aparece mais Aqui poreacutem com esta primeira designaccedilatildeo expliacutecita da Tradiccedilatildeo vem expressamente acentuado o contraste entre in libris scriptis et sine scripto traditionibus Na segunda redaccedilatildeo o sentido expliacutecito da palavra Tradiccedilatildeo natildeo eacute tatildeo exclusivo Contudo apresenta igual matiz ao se confrontarem as expressotildees omnes libroshellipnec non traditiones ipsas Portanto a ideacuteia positiva da Tradiccedilatildeo que serve de base a esta anaacutelise natildeo deixou de influenciar na redaccedilatildeo do Decreto 38 CT XII 517 39 CT I 494 (26 de fevereiro de 1546) A citada palavra de Santo Agostinho teve o seu papel a desempenhar na discussatildeo em curso Seripando por exemplo a ela se referiu (De traditionibus CT XII 521 47-53) Pensandum denique ne in traditionibus externis vera religio et salutis spes statuatur de quibus Augustinus Omnia quaelig pertinent ad veram religionem quaeligrendam et tenendam divina Scriptura non acuit Conceda-se que nem tudo foi escrito (veja-se Jo 2125) Todavia electa sunt autem quaelig scriberentur quaelig saluti credentium sufficere videbantur Mais do que nos debates do tridentino encontramos aqui um verdadeiro postulado dos Reformadores ldquonatildeo adotar costumes exteriores mas buscar os meios definitivos de salvaccedilatildeo na palavra da Escriturardquo A ldquosuficiecircnciardquo da Escritura de que aqui se fala eacute na verdade algo diverso da suficiecircncia material da mesma Escritura defendida por Geiselmann em sentido muito mais radical Infelizmente ainda natildeo se quis levar na devida consideraccedilatildeo o texto de Santo Agostinho (CT I 494 sugere De doctrina christiana II 9 e De pecc mero et rem II 59) Muito apropriadas nesta ordem de ideacuteias satildeo as observaccedilotildees de H SCHAUF ldquoSchrift und Traditionrdquo in Antonianum 39 (1964) p200-209 feitas no chamado Encontro de Duumlsseldorf Nos textos citados por Schauf com base em Agostinho eacute afirmada a suficiecircncia da Escritura para a salvaccedilatildeo Eacute contudo contestada a sua suficiecircncia para a Igreja em geral De fato esta alternativa parece muito mais vaacutelida e fundamental agrave luz dos postulados dos Reformadores do que a alternativa entre a suficiecircncia ou insuficiecircncia material da Escritura

Na mesma linha de ideacuteias seguem-se duas outras seacuteries de pronunciamentos Vimos na introduccedilatildeo agrave parte anterior que a discussatildeo dogmaacutetica da ideacuteia de

Tradiccedilatildeo foi em parte prejudicada pela questatildeo do meacutetodo a seguir no Conciacutelio dever-se-ia abordar primeiro a reformatio a reforma praacutetica da Igreja como queria o ldquoKaiserrdquo Ou primeiro discutir a questatildeo dogmaacutetica como preferia o Papa40

[52] Este problema do meacutetodo embora resolvido no debate que entatildeo surgiu natildeo afetou diretamente a questatildeo da Tradiccedilatildeo como tal Mas como de fato estas duas questotildees ficaram ligadas entre si daiacute resultou que muitos oradores transformaram a questatildeo do meacutetodo (se se deveria falar dos abusos ou da Tradiccedilatildeo) em parte de sua argumentaccedilatildeo em torno do assunto em pauta41 O problema abusus e o problema Traditio ficaram de tal maneira associados na ocasiatildeo que pareciam formar no fundo um soacute assunto Por isso os oradores ora falavam em sentido positivo ora se pronunciavam em sentido negativo Isto correspondia tambeacutem ao propoacutesito reformista do Conciacutelio as traditiones representavam os abusus aos quais a Igreja se opunha Os Padres estavam cocircnscios de que condenar as traditiones era condenar Os usus ecclesiaelig o modo como a Igreja vivia a sua vida naquela eacutepoca

A outra seacuterie de pronunciamentos que se inclinavam ao mesmo sentido encontramo-la nas proposiccedilotildees que a auctoritas da Igreja apresenta como definitivas indicando uma iacutentima relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a institutio christiana 42

[53] Podemos agora retomar ao nosso ponto de partida e dar resposta agrave pergunta que propriamente significa a foacutermula ad nos usque pervenerunt Objetivamente natildeo se trata aqui de um historicismo que a foacutermula parece expressar Ao contraacuterio Trata-se da fidelidade perseverante da Igreja agrave institutio vitaelig christianaelig da legiacutetima forma de vida cristatilde em concreto no tempo presente da Igreja da institutio christiana que coloca a Escritura em primeiro lugar e que como tal isto eacute como vida decorrente da Escritura eacute fundamentalmente apostoacutelica embora tambeacutem sujeita a mudanccedilas como tudo o que eacute vivo

3 A Tradiccedilatildeo e o dogma eclesiaacutestico

40 Sobre o debate em torno da questatildeo do meacutetodo cf mais uma vez JEDIN op cit p9-82 e outras 41 Assim jaacute no discurso de Cervini antes analisado (CT I 484) no qual ele recorda o dilema do Conciacutelio se nos voltarmos contra as tradiccedilotildees ficaratildeo admirados os Padres Conciliares quasi reformationem fugiamus si ipsam reformationem sumimus iterum objicient traditiones relinquendas non esse Idecircntica era a situaccedilatildeo em que se encontrava o Bispo de Astorga nas duas intervenccedilotildees que fez no dia 23 de fevereiro de 1546 (CT V 13 e 19) segundo Seripando (I 484) helliptraditiones prius pertractandas consulit tantam enim conformitatem abusus qui ex sacris libris descendunt cum iis qui a traditionibus orti sunt habent ut sacris libris et traditionibus absolutis duo illa abusuum genera simul pertractari valeant Segundo Bonuccio (I 484) antes de tudo dever-se-ia tratar das Sagradas Escrituras dos cacircnones apostoacutelicos dos Conciacutelios gerais e das decretais pontifiacutecias Hisque ilusceptis ad abusus ex eisdem dependentes devenire 42 Assim principalmente de acordo com Afonso de Castro (CT I 484) Quoniam ultra traditiones apostolicas ecclesiae auctoritatem habemus quaelig ecclesiaelig auctoritas tonta apud nos est ut aliqui eam maioris roboris quam sacros libros esse sentiant Cf igualmente CT I 491 45 Na mesma linha pode-se ver uma seacuterie de pronunciamentos na citada obra de LEJAY Cf CT XII 524 (Tratado De traditionibus ecclesiaelig fevereiro ou marccedilo de 1546)

Uma segunda seacuterie de motivos eacute expressa no Decreto pela foacutermula traditiones tum ad fidem tum ad mores pertinentes Se como vimos a ideacuteia de Tradiccedilatildeo aparece muito limitada naquilo que os Padres conciliares chamam consuetudines observationes institutiones por outro lado o Procurador do Cardeal de Augsburgo Claudio Lejay SJ se fez o porta-voz de uma expressatildeo que em oposiccedilatildeo agraves traditiones caeligremoniales estabeleceu justamente o sentido da tradiccedilatildeo contida na feacute Seu tratado sobre a Tradiccedilatildeo composto para uso dos Padres conciliares inclui tambeacutem a foacutermula que foi adotada pelo Conciacutelio Aiacute se diz Denique multas veritates tum ad fidem tum ad mores pertinentes Ecclesia novit quas Scriptura aperte et expresse non continet Ele cita como exemplos as palavras persona essentia trinitas no Tratado da Santiacutessima Trindade consubstantialitas na Cristologia do Logos duas naturezas uma soacute Pessoa referentes ao dogma definido pelo Conciacutelio de Calcedocircnia E ainda Cristo Filho uacutenico de Maria duas vontades na uacutenica Pessoa de Cristo uma alma racional aleacutem do espiacuterito divino em Cristo Ana matildee de Maria o costume de fazer sinais da cruz a santificaccedilatildeo do domingo a maneira de rezar com face voltada [54] para o Oriente tudo isto ideacuteias e fatos da tradiccedilatildeo conciliar e da piedade cristatilde43

Cervini que aprovou o discurso de Lejay de 23 de fevereiro de 154644 pocircde dificilmente conciliar esta posiccedilatildeo com a sua expressa na jaacute citada carta ao Cardeal Farnese onde como vimos ele diz que o Espiacuterito Santo falou na Igreja e depois da Ascensatildeo do Senhor fala ainda maxime medianti i concilii45 Ele aiacute viu publicamente sublinhado o fato de que aquele ldquomaisrdquo que a Igreja viva representa em relaccedilatildeo agrave palavra meramente escrita natildeo se referia e natildeo se refere apenas agrave vita instituenda ou como ele prefere agrave caeligremonialia Refere-se tambeacutem agrave essentialia fidei que antes de tudo plenamente se expressam na Tradiccedilatildeo Tambeacutem aqui como se vecirc o interesse dominante natildeo estaacute na apresentaccedilatildeo historicista do assunto a partir do iniacutecio da Igreja mas na ideacuteia de que a influecircncia da Tradiccedilatildeo sobretudo atraveacutes da praxe conciliar eacute de fundamental importacircncia para a feacute para a doutrina crida e natildeo apenas para a piedade viva ou a caeligremonialia

4 O sentido do Decreto tridentino

Se recapitularmos o que ateacute agora dissemos veremos que no conjunto facilmente se podem reconhecer trecircs diferentes concepccedilotildees teoloacutegicas unidas entre si no texto definitivo do Decreto sobre a Tradiccedilatildeo Unidas mas natildeo equiparadas umas agraves outras Pelo contraacuterio apesar de sua grande diferenccedila foram elas apenas [55] mais ou menos justapostas e de novo por forccedila de uma tendecircncia comum relacionadas entre si

1 A concepccedilatildeo de Cervini que designamos como pneumatoloacutegica Com sua doutrina sobre os trecircs principia fidei insiste ele no caraacuteter dinacircmico do Cristo-evento

43 CT XII 523 LEJAY baseia-se evidentemente em listas de tradiccedilotildees confeccionadas naquele tempo (Cf ECK DRIEDO CANO BOTO NOGAROLA) Cf a este respeito Y CONGAR ldquoTraditions apostoliques non eacutecrites et suffisance de lEscrituresrdquo in Istina 6 (1959) p219-306 e principalmente a paacutegina 289 44 CT V 14 45 CT X 373

presente na Igreja Entende assim a Tradiccedilatildeo primariamente como a realidade espiritual da institutio vitaelig christianaelig

2 A concepccedilatildeo que podemos chamar de cerimonial Esta entende a Tradiccedilatildeo essencialmente como a seacuterie de consuetudines existentes ao lado da feacute como os usus ecclesiaelig que os Reformadores falsamente pretendem abolir como abusus Esta concepccedilatildeo chega a condenar a dignidade e Antiguumlidade apostoacutelica das tradiccedilotildees Sua ideacuteia eacute limitada pelo ad nos usque pervenerunt que inclui possibilidade de variar da parte das tradiccedilotildees donde a necessidade de reduccedilotildees Com os termos pervenire e conservare a recepccedilatildeo por parte da Igreja eacute considerada criteacuterio adicional ao lado da Antiguumlidade

3 A concepccedilatildeo que talvez possamos denominar dogmaacutetica Em oposiccedilatildeo agrave fixidez da ideacuteia de Tradiccedilatildeo reduzida agrave consuetudo salienta esta terceira hipoacutetese a extensatildeo do fenocircmeno Tradiccedilatildeo tambeacutem ao acircmbito da fides

Estas trecircs concepccedilotildees deram forma ao texto do Decreto de tal modo que as suas

linhas mestras derivam de Cervini e todo o texto deve ser entendido agrave luz de suas ideacuteias Contudo em duas passagens isto eacute no pervenerunt e no conservatas haacute influecircncia da segunda concepccedilatildeo enquanto no tum ad fidem tum ad mores haacute influecircncia da terceira

Em face destas trecircs concepccedilotildees das quais na realidade existem diversas variantes que tomadas em conjunto satildeo a expressatildeo das ideacuteias dominantes adotadas aparecem as teses de Bonuccio e de Nacchianti tatildeo postas em evidecircncia por Geiselmann como sentenccedilas contraacuterias De fato o parecer de Bonuccio claramente [56] se opotildee agrave segunda concepccedilatildeo (contra a supervalorizaccedilatildeo das consuetudines natildeo per pietatis affectus) ao passo que Nacchianti se levanta antes contra a terceira posiccedilatildeo e salienta a suficiecircncia da feacute recebida por meio da Escritura46

Seria de notar-se ainda que as concepccedilotildees segunda e terceira tecircm algo em comum Ambas opotildeem agrave visatildeo pneumatoloacutegica de Cervini da salvaccedilatildeo sempre presente uma visatildeo mais historicista relacionada com o prolongamento da salvaccedilatildeo operada uma soacute vez ou seja o ἑφάπαξ Na realidade deve-se dizer que embora de um lado tanto a visatildeo presencial de Cervini como tambeacutem a visatildeo historicista do outro grupo se consideradas isoladamente cada qual de per si sejam perigosas se natildeo insustentaacuteveis 46 Aliaacutes de acordo com uma informaccedilatildeo de Cervini parece que o Bispo de Chioggia finalmente renunciou agrave sua tese da suficiecircncia da Escritura na qual se inclinava a recusar as tradiccedilotildees Na carta de Cervini ao Cardeal Farnese de 27 de fevereiro de 1546 lemos hellip Chioggia che (quasi quasi) voleva dire queste traditioni essere superflue perorando che tutto quello che era necessario alla salute era scritto et allegando etiam S Agostino sopra lultimo capitulo di S Giovanni a questo proposito Pure per non poter negare che molte cose appartenenti almeno alli sacramenti non ci fussero venute ex tra ditione et per consequente che non tutte le cose necessarie alia nostra salute erano scritte poiche ebbe fatte molte distintioni concluse che ancor lui accettava queste ldquoche in la chiesa fusse qualque traditione apostolica non scrittardquo (et con queste parole diceva che se ne facesse il decreto) credo che molti sono restati scandalizati di lui (CT X Nr 315 paacutegs 399 411) Cf tambeacutem CT I 494 nota 9 e 495 nota 2 CT V 18 nota 5 e 19 e nota 1 O mesmo protesto que aparece contra Nacchianti manifesta-se tambeacutem na observaccedilatildeo de Massarelli Este chega a chamar aquele de novarum rerum cupidus (1 494 18) e esclarece que reprehensus est a multis (1 494 22) Diante disto eacute de todo destituiacuteda de creacutedito a importacircncia que Geiselmann lhe atribui mesmo se abstrairmos de outras razotildees jaacute conhecidas sobre as quais natildeo precisamos insistir

de outro lado pelo menos tornam possiacutevel uma exata visatildeo do conjunto devido agrave sua muacutetua confluecircncia e limitaccedilatildeo No texto atual estatildeo presentes embora pouco nitidamente ambos os pontos de vista o elemento presencial e o ἑφάπαξ Conveacutem que entendamos assim o texto de modo a considerarmos [57] ambos estes aspectos como essenciais Consequumlentemente reconheceremos que ambos pertencem constitutivamente agrave realidade da vida cristatilde e portanto tambeacutem agravequela parcela do Cristianismo a que damos o nome de Tradiccedilatildeo Estes dois elementos satildeo a presenccedila do Espiacuterito Santo e o seu nexo com o fato singular da salvaccedilatildeo ocorrido uma soacute vez por todas na histoacuteria dos homens

Assim se acharaacute finalmente a resposta agrave pergunta de corno noacutes devemos entender o parecer do Conciacutelio de Trento A primeira e mais importante conclusatildeo parece-me ser o fato de o Conciacutelio ter visto muito claramente o nexo entre Tradiccedilatildeo e Revelaccedilatildeo A seguir elaborou sempre em consonacircncia com a tradiccedilatildeo patriacutestica e medieval um conceito de Revelaccedilatildeo muito menos material do que o que seraacute adotado mais tarde pela teologia dos tempos modernos Somente assim se deve conceber a ideacuteia da Revelaccedilatildeo do Espiacuterito Santo na Igreja Partindo do ramo nitidamente patriacutestico da teologia medieval tatildeo francamente acolhido no discurso de Cervini deveria ser muito menos categoacuterica a opiniatildeo que coloca o teacutermino da Revelaccedilatildeo na morte do uacuteltimo Apoacutestolo Naturalmente esta questatildeo natildeo pode ser aqui estudada com maiores detalhes A sua soluccedilatildeo como entatildeo se apresentava aos teoacutelogos poderia ser hoje impostada apelando-se para as categorias da teologia atual Segundo esta podemos dizer que a Revelaccedilatildeo estaacute encerrada do ponto de vista de seu princiacutepio material Todavia estaacute e continua presente em sua realidade eficaz Noutros termos a Revelaccedilatildeo tem eacute verdade o seu ἑφάπαξ enquanto ela se realizou num determinado dia na Histoacuteria Entretanto ela tem tambeacutem o seu ldquohojerdquo permanente isto eacute o que foi uma vez por todas realizado na feacute da Igreja permanece sempre vivo e operante Assim a feacute cristatilde natildeo se volta apenas para o passado Abrange tambeacutem o presente e o futuro Eacute verdade que a posterior materializaccedilatildeo historicista da ideacuteia de Revelaccedilatildeo aparece jaacute claramente insinuada nos debates tridentinos corno um fato previsto mas ainda [58] natildeo consumado embora talvez se possa dizer que nos textos conciliares ficou definitivamente consagrada a sua aceitaccedilatildeo

Finalmente acrescentemos ainda que com base nos debates do Conciacutelio podemos estabelecer quatro elementos da ideacuteia de Tradiccedilatildeo 1 O aspecto natildeo-escrito da Revelaccedilatildeo ou do Evangelho contido na Biacuteblia e no coraccedilatildeo dos fieacuteis 2 A palavra do Espiacuterito Santo no decorrer de todo o tempo da Igreja

3 A atividade da Igreja nos Conciacutelios 4 A Tradiccedilatildeo lituacutergica e a da vida da Igreja em geral Nestes quatro elementos

que se deve ter sob os olhos pois formam o fundo ideoloacutegico do Decreto expressa-se a realidade uacutenica do tempo presente da Igreja cristatilde Nele estaacute presente todo o passado poacutes-apostoacutelico da Igreja (inclusive o proacuteprio tempo dos apoacutestolos) de modo que toda a sua vida eacute na Sagrada Escritura um elemento central embora natildeo o uacutenico Em suma deve ter ficado claro que o Conciacutelio de Trento a despeito do caraacuteter contrastante e fixo de sua ideacuteia de Revelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeo oferece uma visatildeo muito mais rica destes conceitos do que a que impregnou a mentalidade dos seacuteculos seguintes Justamente por

isso a teologia de hoje pode retirar daiacute novos subsiacutedios novo apoio para suas pesquisas e novas indicaccedilotildees sobre o verdadeiro caminho a seguir

Quadro sinoacutetico do Decreto tridentino sobre a Tradiccedilatildeo

Primeiro princiacutepio conforme Cervini (AT = Escritura)

Sacrosancta œcumenica et generalis Tridentina Synodus in Spiritu Sancto legitime congregata [] hoc sibi perpetuo ante oculos proponens ut sublatis erroribus puritas ipsa EVANGELII in Ecclesia conservetur quod PROMISSUM ANTE PER PROPHETAS IN SCRIPTURIS SANCTIS

Segundo princiacutepio conforme Cervini o Evangelho em parte escrito em parte insculpido nos coraccedilotildees

[59] DOMINUS NOSTER IESUS CHRISTUS DEI FILIUS PROPRIO ORE PRIMUM PROMULGAVIT DEINDE PER SUOS APOSTOLOS TAMQUAM FONTEM OMNIS ET SALUTARIS VERITATIS ET MORUM DISCIPLINAE OMNI CREATURAE PRAEDICARI IUSSIT PERSPICIENSQUE HANC VERITATEM ET DISCIPLINAM CONTINERI IN LIBRIS SCRIPTIS ET SINE SCRIPTO TRADITIONIBUS QUAE AB IPSIUS CHRISTI ORE AB APOSTOLIS ACCEPTAE AUT AB IPSIS APOSTOLIS SPIRITU SANCTO DICTANTE

Seripando Cervini e outros soacute consideram as tradiccedilotildees recebidas pela Igrej (ldquoad nos usquerdquo)

quasi per manus traditae ad nos usque pervenerunt

orthodoxorum Patrum exempla secuta omnes libros tam Veteris quam Novi Testamenti cum utriusque unus Deus sit auctor nec non TRADITIONES IPSAS

Lejay Tradiccedilatildeo contendo natildeo soacute a ldquoconsuetudordquo mas relacionada tambeacutem com a ldquofidesrdquo (foacutermula conciliar)

tum ad fidem tum ad mores pertinentes

Terceiro princiacutepio de Cernini Depois da Ascenccedilatildeo de Cristo o Espiacuterito Santo ensina tambeacutem os misteacuterios de Deus

TAMQUAM VEL ORETENUS A CHRISTO VEL A SPIRITU SANCTO DICTATAS

Seripando Cervini etc soacute satildeo consideradas as coisas recebidas pela Igreja (como acima)

et continua successione in Ecclesia catholica conservatas

Cervini Escritura e Tradiccedilatildeo procedem ambas do mesmo Espiacuterito Santo

pari pietatis affectu ac reverentia suscipit ac veneratur

  • Prefaacutecio
  • SEGUNDA PARTE
  • Explicaccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo
  • segundo o Decreto do Conciacutelio de Trento
Page 27: Revelacao e Tradicao-Joseph Ratzinger (Bom Ler)

SEGUNDA PARTE

Explicaccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo segundo o Decreto do Conciacutelio de Trento

Parece que a completa elucidaccedilatildeo das razotildees que levaram agrave substituiccedilatildeo do

partim-partim pelo et e consequumlentemente agrave pesquisa dos dados do debate tridentino e de sua preacute-histoacuteria aparentemente favoraacutevel agrave suficiecircncia material da Escritura [40] simplifica indevidamente este problema fazendo-nos perder de vista os proacuteprios antecedentes do Decreto do Conciacutelio de Trento

1 A concepccedilatildeo pneumatoloacutegica da Tradiccedilatildeo no esquema fundamental do Cardeal Cervini

a) O conteuacutedo Um balanccedilo histoacuterico e detalhado do problema em seu conjunto exigiria uma

pesquisa exaustiva que natildeo reduzisse o seu acircmbito como o fez Geiselmann em seu livro25 Natildeo eacute nossa intenccedilatildeo proceder a um exame minucioso do assunto no presente trabalho Aqui soacute seratildeo tratados alguns pontos do debate tridentino com o fim de ampliarmos mais o horizonte de nossas reflexotildees

Fundamental para a compreensatildeo dos debates em pauta bem como do Decreto definitivo do Conciacutelio parece-me ser o Discurso do Cardeal Legado Cervini datado de 18 de fevereiro de 1546 [41] cujas linhas gerais se patenteiam tanto no Decreto como em outras decisotildees conciliares26

Tem o discurso de Cervini o meacuterito de mostrar as linhas diretrizes do Decreto de maneira mais clara do que aparecem estas na uacuteltima redaccedilatildeo do mesmo onde elas se diluem muito devido a uma seacuterie de variadas implicaccedilotildees Eacute ainda de grande auxiacutelio para o entendimento do referido discurso uma carta dos Cardeais Legados ao Cardeal Alexandre Farnese de 28 de fevereiro de 1546 Esta carta revela conteuacutedo idecircntico ndash eacute certamente inspirada pelo mesmo Cervini ndash e oferece ainda alguns outros

25 Eacute lamentaacutevel que Geiselmann em sua anaacutelise da contribuiccedilatildeo medieval sobre este assunto se tenha apoiado apenas em argumentos de segunda matildeo portanto de valor histoacuterico discutiacutevel Queira o leitor ver minhas observaccedilotildees a este respeito in Theol-prakt Quartalschrift 1963 p224-227 As novas (e temperamentais) invectivas de Geiselmann in TThQu 144 (1964) p 31-69 em nada modificaram a minha posiccedilatildeo de vez que natildeo trazem nenhuma contribuiccedilatildeo vaacutelida ao assunto Precioso ao contraacuterio eacute o trabalho de Y CONGAR La Tradition et les traditionshellip Essai historique Paris 1960 Importante eacute tambeacutem a obra de J BEUMER Die muumlndliche uumlberlieferung als Glaubensquelle Friburgo 1962 A respeito do Conciacutelio de Trento cf sobretudo aleacutem do estudo fundamental de JEDIN o artigo de E ORTIGUES Escriture et Traditions apostoliques au Concilie de Trente in RSR 36 (1949) p 271-299 K D SCHMIDT Studien zur Geschichate des Konzilis von Trient Tubinga 1925 p 152-209 26 O discurso nos foi transmitido em duas redaccedilotildees A primeira mais curta encontra-se nas Atas do Conciacutelio in CT V 11 A segunda faz parte do diaacuterio de Massarelli (Diarium III) in CT I p484 Quanto ao conteuacutedo os dois textos se completam Na anaacutelise que aqui ensaiamos as duas versotildees satildeo comparadas entre si de modo a fazerem um todo Sobre a posiccedilatildeo de Cervini no Conciacutelio cf H JEDIN Geschichte des Konzils von Trient II Friburgo 1957 p38-40 A descriccedilatildeo do desenrolar histoacuterico dos debates acha-se em JEDIN op cit p42-82 e supomo-la conhecida do leitor de vez que serve de base para a anaacutelise teoloacutegica do Decreto tridentino

esclarecimentos Cervini sustenta no citado discurso que existem trecircs princiacutepios e fundamentos de nossa feacute

1) Os livros sagrados escritos sob a inspiraccedilatildeo do Espiacuterito Santo 2) O Evangelho que Nosso Senhor natildeo escreveu mas ensinou oralmente e

implantou nos coraccedilotildees Parte do Evangelho foi escrita mais tarde pelos Evangelistas enquanto muita coisa foi simplesmente confiada aos coraccedilotildees dos fieacuteis

3) Porque o Filho de Deus natildeo ia permanecer sempre entre noacutes enviou ele o Espiacuterito Santo que haveria de revelar os misteacuterios no iacutentimo dos fieacuteis e de ensinar agrave Igreja toda a verdade ateacute ao fim dos tempos27

[43] Numa segunda redaccedilatildeo mais detalhada do discurso estas mesmas ideacuteias satildeo

desenvolvidas mais amplamente Aiacute lemos que a Revelaccedilatildeo se apresentou de modo diferente em diversos tempos

1) Nos Patriarcas cuja feacute eacute atestada na Escritura a que chamamos de Antigo Testamento

2) Em Jesus Cristo que implantou o seu Evangelho natildeo por escrito mas oralmente natildeo in charta mas in corde Das coisas que emanaram de Cristo (quaelig a Cristo emanarunt) algumas foram escritas outras permaneceram nos coraccedilotildees dos homens (quaeligdam in cordibus hominum relicta fuerunt) Todo o Evangelho de Cristo que consta desta dupla modalidade forma (tendo como primeiro princiacutepio o Antigo Testamento) o secundum prindipium fidei nostraelig

3) Daiacute surge o terceiro princiacutepio (tertium autem) porque o Filho de Deus natildeo iria permanecer sempre entre noacutes enviou ele ao mundo o Espiacuterito Santo que haveria de explicar os misteacuterios de Deus e tudo o que fosse ainda obscuro para os homens28 De modo semelhante a citada carta ao Cardeal Farnese fala de dois passos (due

passi) Um eacute que a Revelaccedilatildeo de Nosso Senhor natildeo foi totalmente escrita mas permaneceu em parte contida nos coraccedilotildees dos homens e na Tradiccedilatildeo da Igreja O outro [43] passo consiste em confirmar ldquoquello che egrave suggerito lo Spirito Santo in la Chiesa maxime medianti i concilij doppo lAscensione in cielo del Signorerdquo29

Notamos logo que contrariamente ao que esperaacutevamos natildeo dois mas trecircs satildeo os princiacutepios apontados a Escritura o Evangelho e a Revelaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

27 CT V 11 helliptria esse principia et fundamenta nostrae fidei primum libros sacros secundum esse evangelium quod Christus Dominus Noster non scripsit sed ore docuit et in cordibus illud plantavit cujus evangelii nonnulla evangelistaelig scripto mandarunt multa quoque relicta sunt in cordibus hominum Tertium quia non semper filius Dei corporaliter nobiscum mansurus erat misit Spiritum Sanctum qui in cordibus fidelium secreta Dei revelaret et ecclesiam quotidie et usque consummationem saeligculi doceret omnem veritatem et si quid in mentibus hominum dubii occurrisset declararet 28 CT I 484 Digna de nota eacute ainda a foacutermula contida na paacutegina 48514-16 nihil tamen inter scripturas sacras et apostolicas traditianes differt illaelig enim scriptaelig hae per insinuationem habentur utraeque tamen a Spiritu Sancto eodem modo emanataelig Confira-se com CT V 11 19 ab eodem Spiritu et illos (scilicet libros) et istas (scilicet traditiones) descendisse 29 CT X 373

Eacute portanto necessaacuterio observar que sob o termo ldquoEscriturardquo se entende o Antigo Testamento e que aleacutem deste (que eacute Escritura em sentido proacuteprio) aparece como segundo princiacutepio o Evangelho apresentaccedilatildeo do Cristo-evento O Evangelho por sua vez abrange o que estaacute escrito e o que natildeo estaacute escrito mas sim apenas insculpido no coraccedilatildeo dos crentes Deste modo o segundo princiacutepio representa uma vantagem pneumaacutetica sobre o que estaacute escrito o Evangelho eacute nesta concepccedilatildeo algo diferente da letra (Escritura) e soacute em parte vem escrito (Isto natildeo deve ser entendido no sentido de divisatildeo das verdades da feacute fenocircmeno denunciado ldquocom horrorrdquo por Geiselmann Ao contraacuterio Entenda-se apenas no sentido de diferente grau de dignidade no modo de exprimir-se) Em rigor o Evangelho como tal soacute pode ser escrito em parte se considerarmos a sua essecircncia

Finalmente ndash o que eacute muito de se admirar ndash segue-se como terceiro princiacutepio a accedilatildeo visiacutevel do Espiacuterito Santo em todo o tempo da Igreja

Admitimos portanto que o que noacutes geralmente chamamos de Tradiccedilatildeo natildeo aparece aqui como um soacute princiacutepio Biparte-se antes em dois princiacutepios intimamente ligados o ldquoEvangelhordquo princiacutepio apenas em parte identificaacutevel com a Escritura e a accedilatildeo do Espiacuterito Santo no tempo da Igreja Ademais podemos observar que a Escritura do Novo Testamento natildeo aparece como um princiacutepio ao lado da Revelaccedilatildeo apostoacutelica Muito menos como [44] eacute o nosso caso se apresenta a Escritura neotestamentaacuteria juntamente com a veterotestamentaacuteria como uma grandeza uacutenica uma ldquoEscriturardquo soacute agrave qual se poderia contrapor a ldquoTradiccedilatildeordquo como uma segunda grandeza O Novo Testamento em seu conjunto aparece como um segundo e mais amplo princiacutepio ou seja o Evangelho que como tal se opotildee de um lado ao Antigo Testamento e de outro agrave projeccedilatildeo histoacuterica do tempo da Igreja Sua unidade interna eacute evidentemente mais forte e importante do que a sua divisatildeo em escrito e natildeo-escrito Assim o Evangelho como um soacute princiacutepio pode ser contraposto ao Antigo Testamento a despeito desta dupla formalidade A impossibilidade de se representar o Novo Testamento como Escritura impossibilidade esta demonstrada por Satildeo Paulo e pelos primeiros seacuteculos cristatildeos eacute aqui claramente revelada

Ainda uma observaccedilatildeo relativa ao texto a que vimos nos referindo Em nenhum dos dois pontos por noacutes citados no estudo da Tradiccedilatildeo isto eacute nem no elemento contido no primeiro nem no apresentado no terceiro princiacutepio figura a Tradiccedilatildeo como verbal Em ambos os casos ao contraacuterio trata-se mais da Tradiccedilatildeo real com prevalecircncia da realidade sobre as palavras que a atestam Este fato que estaacute claro no terceiro princiacutepio o pneumatoloacutegico vale tambeacutem em relaccedilatildeo agrave implantaccedilatildeo do Evangelho nos coraccedilotildees contida no segundo princiacutepio Tal implantaccedilatildeo vai muito aleacutem do que se encontra expresso na letra da Escritura

Que papel tenham estas ideacuteias exercido nas discussotildees do Conciacutelio pode-se concluir tambeacutem das auctoritates citadas por Cervini entre as quais figuram Jo 16 12 (hellipSpiritus Sanctus suggerethellip) e Fl 3 15 (Quicumque perfecti sumus haeligc sentiamus et si quid aliter sentitis haeligc quoque Deus vobis revelabit) Ambos estes textos satildeo de teor acentuadamente [45] pneumatoloacutegico-presencial30 Que tais ideacuteias natildeo eram

30 CT V 14 e 15 Um exame profundo das auctoritates quer da Escritura quer entre os Santos Padres que neste particular satildeo favoraacuteveis agrave Tradiccedilatildeo seria em si conclusivo para a elaboraccedilatildeo do conceito

estranhas aos Padres conciliares deduz-se ainda de uma seacuterie de outras referecircncias Assim ouvimos o Bispo de Aqui dizer que aleacutem da Sagrada Escritura existe muita coisa na Igreja de Deus que vindo dos Apoacutestolos e passando de geraccedilatildeo a geraccedilatildeo chegou ateacute noacutes assim como muitas outras quaelig etsi scripta Apostoli nobis non reliquerunt per Spiritus Sancti revelationem nobis (tradita) sunt (Tradita estaacute aqui por revelata) 31 Partindo daiacute se poderia descrever a Tradiccedilatildeo justamente como o componente pneumatoloacutegico do Cristo-evento b) A influecircncia do esquema de Cervini em diversas decisotildees conciliares

Eacute verdade que esta concepccedilatildeo tripartida aparece muito atenuada no Decreto

oficial sobre a Tradiccedilatildeo Que poreacutem em suas linhas fundamentais natildeo tenha ela sido de modo nenhum [46] abandonada mostram-no duas outras passagens nas quais o Conciacutelio faz uso por assim dizer in actu das ideacuteias aqui expressas32 Assim na Introduccedilatildeo ao Decreto sobre a Eucaristia (Denz 873) se lecirc Sacrosancta Synodus sanamhellipdoctrinam tradens quam semper catholica Ecclesia ab ipso Jesu Christo Domino Nostro et eius apostolis erudita atque a Spiritu Sancto illi omnem veritatem in dies suggerente (Jo 1416) edocta retinuithellip

Aqui a accedilatildeo proacutepria do Conciacutelio eacute descrita como tradere e a este tradere eacute atribuiacutedo um duplo fundamento De um lado o ensino de Jesus e dos Apoacutestolos (Note-se que este ponto corresponde ao Evangelho segundo a concepccedilatildeo de Cervini E de certo modo tambeacutem pela citaccedilatildeo de Jesus e dos Apoacutestolos se reconhece a dupla modalidade do Evangelho como escrito e como inserido nos coraccedilotildees) De outro lado o ensino dado pelo Espiacuterito Santo que conduz agrave verdade in dies isto eacute no de correr do tempo futuro

O outro texto que pode ser aduzido aqui como prova do que afirmamos encontra-se no Preacircmbulo do Decreto sobre o Purgatoacuterio (Denz 983) Aiacute se lecirc hellipCatholica Ecclesia Spiritu Sancto edocta ex Sacris Litteris et antiqua Patrum traditione in sacris Conciliis et novissime in hac Synodo docuerit A descriccedilatildeo da accedilatildeo proacutepria do

aqui exposto H HOLSTEIN procurou fazer o cotejo destas auctoritates e fecirc-lo de modo admiraacutevel em seu artigo La Tradition dapregraves le Concile de Trente (RSR 47 1959 p367-390 e em particular para o caso em questatildeo a p375) Ele encontra nos textos estudados duas linhas de tendecircncias A linha de Santo Irineu para a qual o testemunho dos Apoacutestolos eacute o de sua personalidade de sua vida e de seu ofiacutecio Aleacutem desta o grupo composto de Tertuliano Cipriano Basiacutelio e Agostinho forma uma corrente que se poderia denominar ldquocerimonialrdquo Oriacutegenes se enquadra em ambos os grupos Existe entre os autores estudados uma seacuterie de textos que se referem agraves observationes consuetudines institutiones e que levam a entender-se a Tradiccedilatildeo neste mesmo sentido Aiacute se vecircem tambeacutem textos que sublinham o aspecto natildeo-escrito do Evangelho enquanto insculpido no coraccedilatildeo dos fieacuteis e aleacutem disso textos que apontam a Igreja como o ldquolugarrdquo da verdade cristatilde 31 CT I 483 (18 de fevereiro de 1546) Em 26 de fevereiro (CT V 18) encontramos Cervini a tratar de novo deste assunto Cf tambeacutem um pronunciamento do Bispo de Fano (CT V 10) nestes termos Cum jam receperimus Scripturas Sacras necessario recipiendaelig sunt traditiones quaelig ab eodem Spiritu Sancto quo scripturaelig dictataelig sunthellip 32 Disto me adverti pela primeira vez atraveacutes de um estudo realizado sob a minha orientaccedilatildeo por CHR LIMBACR a quem sou devedor de muitas informaccedilotildees bibliograacuteficas

Conciacutelio como tradere encontra-se ainda nas declaraccedilotildees sobre o Sacramento da Extrema-Unccedilatildeo (Denz 910)

Finalmente a triacuteplice divisatildeo deixa-se insinuar nas entrelinhas do Decreto sobre a Tradiccedilatildeo embora obscurecida e diluiacuteda por uma seacuterie de acreacutescimos e citaccedilotildees a ele adicionados por outros motivos O Decreto da Tradiccedilatildeo com efeito [47]

1) Fala do Evangelho prometido pelos Profetas na Escritura e refere-se a esta em sentido estrito quer antes quer depois do Antigo Testamento

2) Fala da promulgaccedilatildeo por Cristo do Evangelho que foi transmitido pelos Apoacutestolos sob dupla forma oral e escrita Desta maneira o que natildeo ocorre no exemplo de Cervini aparece aqui antes de tudo o componente pneumatoloacutegico unido com o componente apostoacutelico a ponto de se distinguirem duas modalidades de Tradiccedilatildeo apostoacutelica a que remonta a Cristo e a que remonta ao envio do Espiacuterito Santo Pode-se assim estabelecer que em oposiccedilatildeo ao esquema de Cervini haacute um certo processo de historicizaccedilatildeo que salienta a relaccedilatildeo com o comeccedilo histoacuterico e igualmente parece deslocar o acento da tradiccedilatildeo real para a verbal

3) No epiacutelogo desta parte do Decreto da Tradiccedilatildeo que vimos analisando de novo eacute considerada a ideacuteia da Sagrada Escritura O conceito de Tradiccedilatildeo eacute entatildeo formulado em definitivo e descrito como vel oretenus a Christo vel a Spiritu Sancto dictatas et continua successione in Ecclesia catholica conservatas A referecircncia aos Apoacutestolos eacute omitida Pode-se na verdade considerar tudo isto como uma volta ao que foi dito antes Evidentemente a tradiccedilatildeo ditada pelos Apoacutestolos eacute citada de novo (A expressatildeo continua successione insinua-o) Contudo permanece sempre ainda certa indeterminaccedilatildeo ficando aberta a possibilidade de se encontrar aqui o vestiacutegio do terceiro componente de Cervini o princiacutepio pneumaacutetico propriamente dito Eacute tambeacutem claro que esta ideacuteia eacute discreta sendo adotada uma posiccedilatildeo mais acentuadamente histoacuterica Se agora lanccedilarmos os olhos sobre o que vimos considerando ateacute aqui surgiratildeo

inevitavelmente perguntas qual eacute realmente o sentido proacuteprio da concepccedilatildeo pneumatoloacutegica Como poderia ser perfeitamente entendida a ideacuteia a noacutes estranha de uma revelatio prolongada no tempo em face da unicidade e do caraacuteter [48] histoacuterico da Revelaccedilatildeo que evidentemente era conhecido tanto de Cervini quanto dos Santos Padres e teoacutelogos medievais33

Antes de examinarmos isto devemos esclarecer rapidamente os principais motivos que inspiraram o Decreto tridentino sobre a Escritura e a Tradiccedilatildeo deixando nele um tanto encoberta a concepccedilatildeo pessoal de Cervini Que opiniotildees de teoacutelogos teratildeo intervindo aqui chegando a ser em parte impressas no texto definitivo que resultou do cotejo de muitos pronunciamentos diversos Uma exposiccedilatildeo detalhada deste ponto exorbitaria do acircmbito de nossa anaacutelise Contentemo-nos com umas poucas observaccedilotildees sumaacuterias 33 Sobre este assunto tentei fazer um breve comentaacuterio no meu trabalho ldquoOffenbarung-Schrift-Uberlieferungrdquo in TThZ 67 (1958) p13-27 Cf J BEUMER ldquoDer theoretische Beitrag der Frnhscholastik zum Problem des Dogmenfortschrittsrdquo in ZkTh 72 (1952) p205-226 J de CHELLINCK Pour lrsquohistoire du mot ldquorevelarerdquo in RSR 6 (1916) p149-157

2 Relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a vida da Igreja

em diversas passagens do debate tridentino

Uma primeira seacuterie de motivos entre os quais se compreendem diversos pronunciamentos agraves vezes muito contrastantes em seu aparato exterior patenteia-se na ideacuteia de tradiccedilotildees expressa no Decreto de duas maneiras a) - per manus traditaelig ad nos usque pervenerunt b) - continua successione in Ecclesia catholico conservatas

O que se ocultaraacute sob estas duas foacutermulas que o historiador de hoje tem dificuldades em aceitar justamente por causa do historicismo nelas impliacutecito Podemos dizer que um decisivo papel exerceu aqui o pensamento que sempre aparecia nos debates a saber que as tradiccedilotildees satildeo variaacuteveis que muitas delas foram abolidas pelos Apoacutestolos e que por outro lado se [49] introduziram tradiccedilotildees eclesiaacutesticas que natildeo mais seriam abolidas34 Esta ideacuteia de Tradiccedilatildeo de certo modo se torna clara no tratado escrito sobre o mesmo assunto por Seripando para uso dos Padres Conciliares Seripando fala das Tradiccedilotildees escritas inseridas na Escritura como as claacuteusulas de Tiago o costume de as mulheres se cobrirem com um veacuteu a legislaccedilatildeo sobre o matrimocircnio contida em 1Cor 7 etc E o autor adverte que estas praacuteticas foram abolidas Isto porque embora associadas agrave palavra de Deus na Escritura dela ldquomuito diferemrdquo pois a palavra divina [50] de modo nenhum poderia ser abolida A estas tradiccedilotildees

34 Cabe aqui aduzir uma nova intervenccedilatildeo de Cervini datada de 26 de fevereiro de 1546 (CT I 33 e V 18) onde ele diz que nem todas as tradiccedilotildees procedentes dos Apoacutestolos devem ser conservadas mas somente as que ab Ecclesia receptaelig ad nos usque pervenerunt (V 18) Esta afirmaccedilatildeo anterior agrave formulaccedilatildeo dogmaacutetica feita pelo Concilio deve igualmente ser tida na conta de um autecircntico comentaacuterio do Decreto Aiacute se acentua como condiccedilatildeo essencial das tradiccedilotildees a receptio ecclesiaelig Vem ainda referida uma intervenccedilatildeo do Bispo de Bertinoro em data de 23 de marccedilo (I p 523) na qual ele sublinha que as tradiccedilotildees escritas por vezes foram mudadas Jaacute entre as natildeo-escritas umas foram mudadas e outras natildeo como por exemplo o rito de adicionar aacutegua ao vinho a Crisma a confissatildeo auricular O Bispo de Bertinoro acrescenta que por outro lado alguns pontos existem que permaneceram inteiramente inalterados tais como a crenccedila no descensus ad inferos na virgindade perpeacutetua de Maria a substituiccedilatildeo da observacircncia do saacutebado pela do domingo Temos depois um pronunciamento do Bispo de Bitonto datado de 27 de marccedilo (I 39) Este bispo era de parecer que algumas coisas foram transmitidas pelos Apoacutestolos com a finalidade de serem perpetuamente conservadas (como pertencentes ao depoacutesito da feacute) outras caiacuteram em desuso (como as claacuteusulas de Tiago) e outras enfim foram apenas aconselhadas Assim mesmo na Escritura algumas coisas haacute que foram escritas mas natildeo recebidas em uso por serem mateacuteria de mero conselho Por exemplo ldquose algueacutem te pedir a tuacutenica daacute-lhe tambeacutem o paacutelio se algueacutem te esbofetear numa face oferece-lhe tambeacutem a outrardquo Sem duacutevida excelente ilustraccedilatildeo do sermatildeo da montanha Finalmente consideraccedilotildees idecircnticas podemos encontrar na obra citada de LEJAY Eis outra amostra tirada do discurso de 23 de fevereiro (CT V 13) Nam illaelig (scil traditiones) quaelig ad fidem pertinent eadem sunt recipiendaelig auctoritate qua recipitur evangelium alia autem non ita eum earum plurimaelig immutataelig fuerint ut de bigamis de esu sanguinis et similia De modo semelhante aliaacutes fala tambeacutem Bonuccio (I 525 a 23 de marccedilo de 1546 ecclesia traditiones apostolorum quandoque mutavit verbum autem Dei nunquam mutavit neque mutare potest

Seripando opotildee as natildeo referidas na Biacuteblia e que ora satildeo apostoacutelicas ou oriundas de Conciacutelios universais e aceitas por toda a Igreja ora satildeo particulares e muito variaacuteveis35

Este texto nos leva a uma surpreendente conclusatildeo para Seripando e muitos outros Padres tridentinos36existem tradiccedilotildees na Escritura ldquoTradiccedilatildeordquo natildeo significa o natildeo-escrito Existe quer dentro da Escritura quer fora dela Isto nos conduz a outra pergunta em que consiste para os referidos Padres a essecircncia da tradiccedilatildeo se o que a constitui natildeo eacute o fato de natildeo ser escrita37 Em outros termos como pode a tradiccedilatildeo ser definida positivamente se ela natildeo pode ser suficientemente determinada pela ideacuteia negativa de algo natildeo-escrito

Haacute uma seacuterie de respostas para esta pergunta O proacuteprio Seripando daacute a seguinte definiccedilatildeo Traditiones hoc est Apostolorum seu sanctorum Patrum sanctae et salutares constitutiones38 Mais clara ainda eacute a afirmaccedilatildeo de Cervini citada por Massarelli A objeccedilatildeo do Bispo de Chioggia que aduzia a opiniatildeo de Agostinho de que tudo o que eacute necessaacuterio para a salvaccedilatildeo estava escrito na Biacuteblia respondia Cervini da seguinte maneira Verba illa (isto eacute de Santo Agostinho) formaliter intelligi debent scilicet ad fidem accipiendam ut salvi fiamus Quo vero ad mores et christianam vitam instituendam certo non omnia scripta sunt

[51] E de novo recorre agraves provas tiradas de Jo 1526 e 1426 E indica o princiacutepio pneumatoloacutegico39 O que eacute mais importante eacute que a Tradiccedilatildeo se refere agrave institutio vitaelig agrave presenccedila atuante da Palavra revelada na existecircncia cristatilde Tradiccedilatildeo eacute noutros termos a eficaacutecia da palavra de Deus Sem ela a palavra ficaria esteacuteril 35 Seripando De traditionibus (fevereiro ou marccedilo de 1546) CT XII p517-521 e principalmente a p 521 As expressotildees desta uacuteltima paacutegina chocam-se com a ideacuteia de Cervini sobre a receptio ecclesiaelig 36 Cf o texto citado na nota 11 37 No texto definitivo do Decreto esta ideacuteia natildeo aparece mais Aqui poreacutem com esta primeira designaccedilatildeo expliacutecita da Tradiccedilatildeo vem expressamente acentuado o contraste entre in libris scriptis et sine scripto traditionibus Na segunda redaccedilatildeo o sentido expliacutecito da palavra Tradiccedilatildeo natildeo eacute tatildeo exclusivo Contudo apresenta igual matiz ao se confrontarem as expressotildees omnes libroshellipnec non traditiones ipsas Portanto a ideacuteia positiva da Tradiccedilatildeo que serve de base a esta anaacutelise natildeo deixou de influenciar na redaccedilatildeo do Decreto 38 CT XII 517 39 CT I 494 (26 de fevereiro de 1546) A citada palavra de Santo Agostinho teve o seu papel a desempenhar na discussatildeo em curso Seripando por exemplo a ela se referiu (De traditionibus CT XII 521 47-53) Pensandum denique ne in traditionibus externis vera religio et salutis spes statuatur de quibus Augustinus Omnia quaelig pertinent ad veram religionem quaeligrendam et tenendam divina Scriptura non acuit Conceda-se que nem tudo foi escrito (veja-se Jo 2125) Todavia electa sunt autem quaelig scriberentur quaelig saluti credentium sufficere videbantur Mais do que nos debates do tridentino encontramos aqui um verdadeiro postulado dos Reformadores ldquonatildeo adotar costumes exteriores mas buscar os meios definitivos de salvaccedilatildeo na palavra da Escriturardquo A ldquosuficiecircnciardquo da Escritura de que aqui se fala eacute na verdade algo diverso da suficiecircncia material da mesma Escritura defendida por Geiselmann em sentido muito mais radical Infelizmente ainda natildeo se quis levar na devida consideraccedilatildeo o texto de Santo Agostinho (CT I 494 sugere De doctrina christiana II 9 e De pecc mero et rem II 59) Muito apropriadas nesta ordem de ideacuteias satildeo as observaccedilotildees de H SCHAUF ldquoSchrift und Traditionrdquo in Antonianum 39 (1964) p200-209 feitas no chamado Encontro de Duumlsseldorf Nos textos citados por Schauf com base em Agostinho eacute afirmada a suficiecircncia da Escritura para a salvaccedilatildeo Eacute contudo contestada a sua suficiecircncia para a Igreja em geral De fato esta alternativa parece muito mais vaacutelida e fundamental agrave luz dos postulados dos Reformadores do que a alternativa entre a suficiecircncia ou insuficiecircncia material da Escritura

Na mesma linha de ideacuteias seguem-se duas outras seacuteries de pronunciamentos Vimos na introduccedilatildeo agrave parte anterior que a discussatildeo dogmaacutetica da ideacuteia de

Tradiccedilatildeo foi em parte prejudicada pela questatildeo do meacutetodo a seguir no Conciacutelio dever-se-ia abordar primeiro a reformatio a reforma praacutetica da Igreja como queria o ldquoKaiserrdquo Ou primeiro discutir a questatildeo dogmaacutetica como preferia o Papa40

[52] Este problema do meacutetodo embora resolvido no debate que entatildeo surgiu natildeo afetou diretamente a questatildeo da Tradiccedilatildeo como tal Mas como de fato estas duas questotildees ficaram ligadas entre si daiacute resultou que muitos oradores transformaram a questatildeo do meacutetodo (se se deveria falar dos abusos ou da Tradiccedilatildeo) em parte de sua argumentaccedilatildeo em torno do assunto em pauta41 O problema abusus e o problema Traditio ficaram de tal maneira associados na ocasiatildeo que pareciam formar no fundo um soacute assunto Por isso os oradores ora falavam em sentido positivo ora se pronunciavam em sentido negativo Isto correspondia tambeacutem ao propoacutesito reformista do Conciacutelio as traditiones representavam os abusus aos quais a Igreja se opunha Os Padres estavam cocircnscios de que condenar as traditiones era condenar Os usus ecclesiaelig o modo como a Igreja vivia a sua vida naquela eacutepoca

A outra seacuterie de pronunciamentos que se inclinavam ao mesmo sentido encontramo-la nas proposiccedilotildees que a auctoritas da Igreja apresenta como definitivas indicando uma iacutentima relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a institutio christiana 42

[53] Podemos agora retomar ao nosso ponto de partida e dar resposta agrave pergunta que propriamente significa a foacutermula ad nos usque pervenerunt Objetivamente natildeo se trata aqui de um historicismo que a foacutermula parece expressar Ao contraacuterio Trata-se da fidelidade perseverante da Igreja agrave institutio vitaelig christianaelig da legiacutetima forma de vida cristatilde em concreto no tempo presente da Igreja da institutio christiana que coloca a Escritura em primeiro lugar e que como tal isto eacute como vida decorrente da Escritura eacute fundamentalmente apostoacutelica embora tambeacutem sujeita a mudanccedilas como tudo o que eacute vivo

3 A Tradiccedilatildeo e o dogma eclesiaacutestico

40 Sobre o debate em torno da questatildeo do meacutetodo cf mais uma vez JEDIN op cit p9-82 e outras 41 Assim jaacute no discurso de Cervini antes analisado (CT I 484) no qual ele recorda o dilema do Conciacutelio se nos voltarmos contra as tradiccedilotildees ficaratildeo admirados os Padres Conciliares quasi reformationem fugiamus si ipsam reformationem sumimus iterum objicient traditiones relinquendas non esse Idecircntica era a situaccedilatildeo em que se encontrava o Bispo de Astorga nas duas intervenccedilotildees que fez no dia 23 de fevereiro de 1546 (CT V 13 e 19) segundo Seripando (I 484) helliptraditiones prius pertractandas consulit tantam enim conformitatem abusus qui ex sacris libris descendunt cum iis qui a traditionibus orti sunt habent ut sacris libris et traditionibus absolutis duo illa abusuum genera simul pertractari valeant Segundo Bonuccio (I 484) antes de tudo dever-se-ia tratar das Sagradas Escrituras dos cacircnones apostoacutelicos dos Conciacutelios gerais e das decretais pontifiacutecias Hisque ilusceptis ad abusus ex eisdem dependentes devenire 42 Assim principalmente de acordo com Afonso de Castro (CT I 484) Quoniam ultra traditiones apostolicas ecclesiae auctoritatem habemus quaelig ecclesiaelig auctoritas tonta apud nos est ut aliqui eam maioris roboris quam sacros libros esse sentiant Cf igualmente CT I 491 45 Na mesma linha pode-se ver uma seacuterie de pronunciamentos na citada obra de LEJAY Cf CT XII 524 (Tratado De traditionibus ecclesiaelig fevereiro ou marccedilo de 1546)

Uma segunda seacuterie de motivos eacute expressa no Decreto pela foacutermula traditiones tum ad fidem tum ad mores pertinentes Se como vimos a ideacuteia de Tradiccedilatildeo aparece muito limitada naquilo que os Padres conciliares chamam consuetudines observationes institutiones por outro lado o Procurador do Cardeal de Augsburgo Claudio Lejay SJ se fez o porta-voz de uma expressatildeo que em oposiccedilatildeo agraves traditiones caeligremoniales estabeleceu justamente o sentido da tradiccedilatildeo contida na feacute Seu tratado sobre a Tradiccedilatildeo composto para uso dos Padres conciliares inclui tambeacutem a foacutermula que foi adotada pelo Conciacutelio Aiacute se diz Denique multas veritates tum ad fidem tum ad mores pertinentes Ecclesia novit quas Scriptura aperte et expresse non continet Ele cita como exemplos as palavras persona essentia trinitas no Tratado da Santiacutessima Trindade consubstantialitas na Cristologia do Logos duas naturezas uma soacute Pessoa referentes ao dogma definido pelo Conciacutelio de Calcedocircnia E ainda Cristo Filho uacutenico de Maria duas vontades na uacutenica Pessoa de Cristo uma alma racional aleacutem do espiacuterito divino em Cristo Ana matildee de Maria o costume de fazer sinais da cruz a santificaccedilatildeo do domingo a maneira de rezar com face voltada [54] para o Oriente tudo isto ideacuteias e fatos da tradiccedilatildeo conciliar e da piedade cristatilde43

Cervini que aprovou o discurso de Lejay de 23 de fevereiro de 154644 pocircde dificilmente conciliar esta posiccedilatildeo com a sua expressa na jaacute citada carta ao Cardeal Farnese onde como vimos ele diz que o Espiacuterito Santo falou na Igreja e depois da Ascensatildeo do Senhor fala ainda maxime medianti i concilii45 Ele aiacute viu publicamente sublinhado o fato de que aquele ldquomaisrdquo que a Igreja viva representa em relaccedilatildeo agrave palavra meramente escrita natildeo se referia e natildeo se refere apenas agrave vita instituenda ou como ele prefere agrave caeligremonialia Refere-se tambeacutem agrave essentialia fidei que antes de tudo plenamente se expressam na Tradiccedilatildeo Tambeacutem aqui como se vecirc o interesse dominante natildeo estaacute na apresentaccedilatildeo historicista do assunto a partir do iniacutecio da Igreja mas na ideacuteia de que a influecircncia da Tradiccedilatildeo sobretudo atraveacutes da praxe conciliar eacute de fundamental importacircncia para a feacute para a doutrina crida e natildeo apenas para a piedade viva ou a caeligremonialia

4 O sentido do Decreto tridentino

Se recapitularmos o que ateacute agora dissemos veremos que no conjunto facilmente se podem reconhecer trecircs diferentes concepccedilotildees teoloacutegicas unidas entre si no texto definitivo do Decreto sobre a Tradiccedilatildeo Unidas mas natildeo equiparadas umas agraves outras Pelo contraacuterio apesar de sua grande diferenccedila foram elas apenas [55] mais ou menos justapostas e de novo por forccedila de uma tendecircncia comum relacionadas entre si

1 A concepccedilatildeo de Cervini que designamos como pneumatoloacutegica Com sua doutrina sobre os trecircs principia fidei insiste ele no caraacuteter dinacircmico do Cristo-evento

43 CT XII 523 LEJAY baseia-se evidentemente em listas de tradiccedilotildees confeccionadas naquele tempo (Cf ECK DRIEDO CANO BOTO NOGAROLA) Cf a este respeito Y CONGAR ldquoTraditions apostoliques non eacutecrites et suffisance de lEscrituresrdquo in Istina 6 (1959) p219-306 e principalmente a paacutegina 289 44 CT V 14 45 CT X 373

presente na Igreja Entende assim a Tradiccedilatildeo primariamente como a realidade espiritual da institutio vitaelig christianaelig

2 A concepccedilatildeo que podemos chamar de cerimonial Esta entende a Tradiccedilatildeo essencialmente como a seacuterie de consuetudines existentes ao lado da feacute como os usus ecclesiaelig que os Reformadores falsamente pretendem abolir como abusus Esta concepccedilatildeo chega a condenar a dignidade e Antiguumlidade apostoacutelica das tradiccedilotildees Sua ideacuteia eacute limitada pelo ad nos usque pervenerunt que inclui possibilidade de variar da parte das tradiccedilotildees donde a necessidade de reduccedilotildees Com os termos pervenire e conservare a recepccedilatildeo por parte da Igreja eacute considerada criteacuterio adicional ao lado da Antiguumlidade

3 A concepccedilatildeo que talvez possamos denominar dogmaacutetica Em oposiccedilatildeo agrave fixidez da ideacuteia de Tradiccedilatildeo reduzida agrave consuetudo salienta esta terceira hipoacutetese a extensatildeo do fenocircmeno Tradiccedilatildeo tambeacutem ao acircmbito da fides

Estas trecircs concepccedilotildees deram forma ao texto do Decreto de tal modo que as suas

linhas mestras derivam de Cervini e todo o texto deve ser entendido agrave luz de suas ideacuteias Contudo em duas passagens isto eacute no pervenerunt e no conservatas haacute influecircncia da segunda concepccedilatildeo enquanto no tum ad fidem tum ad mores haacute influecircncia da terceira

Em face destas trecircs concepccedilotildees das quais na realidade existem diversas variantes que tomadas em conjunto satildeo a expressatildeo das ideacuteias dominantes adotadas aparecem as teses de Bonuccio e de Nacchianti tatildeo postas em evidecircncia por Geiselmann como sentenccedilas contraacuterias De fato o parecer de Bonuccio claramente [56] se opotildee agrave segunda concepccedilatildeo (contra a supervalorizaccedilatildeo das consuetudines natildeo per pietatis affectus) ao passo que Nacchianti se levanta antes contra a terceira posiccedilatildeo e salienta a suficiecircncia da feacute recebida por meio da Escritura46

Seria de notar-se ainda que as concepccedilotildees segunda e terceira tecircm algo em comum Ambas opotildeem agrave visatildeo pneumatoloacutegica de Cervini da salvaccedilatildeo sempre presente uma visatildeo mais historicista relacionada com o prolongamento da salvaccedilatildeo operada uma soacute vez ou seja o ἑφάπαξ Na realidade deve-se dizer que embora de um lado tanto a visatildeo presencial de Cervini como tambeacutem a visatildeo historicista do outro grupo se consideradas isoladamente cada qual de per si sejam perigosas se natildeo insustentaacuteveis 46 Aliaacutes de acordo com uma informaccedilatildeo de Cervini parece que o Bispo de Chioggia finalmente renunciou agrave sua tese da suficiecircncia da Escritura na qual se inclinava a recusar as tradiccedilotildees Na carta de Cervini ao Cardeal Farnese de 27 de fevereiro de 1546 lemos hellip Chioggia che (quasi quasi) voleva dire queste traditioni essere superflue perorando che tutto quello che era necessario alla salute era scritto et allegando etiam S Agostino sopra lultimo capitulo di S Giovanni a questo proposito Pure per non poter negare che molte cose appartenenti almeno alli sacramenti non ci fussero venute ex tra ditione et per consequente che non tutte le cose necessarie alia nostra salute erano scritte poiche ebbe fatte molte distintioni concluse che ancor lui accettava queste ldquoche in la chiesa fusse qualque traditione apostolica non scrittardquo (et con queste parole diceva che se ne facesse il decreto) credo che molti sono restati scandalizati di lui (CT X Nr 315 paacutegs 399 411) Cf tambeacutem CT I 494 nota 9 e 495 nota 2 CT V 18 nota 5 e 19 e nota 1 O mesmo protesto que aparece contra Nacchianti manifesta-se tambeacutem na observaccedilatildeo de Massarelli Este chega a chamar aquele de novarum rerum cupidus (1 494 18) e esclarece que reprehensus est a multis (1 494 22) Diante disto eacute de todo destituiacuteda de creacutedito a importacircncia que Geiselmann lhe atribui mesmo se abstrairmos de outras razotildees jaacute conhecidas sobre as quais natildeo precisamos insistir

de outro lado pelo menos tornam possiacutevel uma exata visatildeo do conjunto devido agrave sua muacutetua confluecircncia e limitaccedilatildeo No texto atual estatildeo presentes embora pouco nitidamente ambos os pontos de vista o elemento presencial e o ἑφάπαξ Conveacutem que entendamos assim o texto de modo a considerarmos [57] ambos estes aspectos como essenciais Consequumlentemente reconheceremos que ambos pertencem constitutivamente agrave realidade da vida cristatilde e portanto tambeacutem agravequela parcela do Cristianismo a que damos o nome de Tradiccedilatildeo Estes dois elementos satildeo a presenccedila do Espiacuterito Santo e o seu nexo com o fato singular da salvaccedilatildeo ocorrido uma soacute vez por todas na histoacuteria dos homens

Assim se acharaacute finalmente a resposta agrave pergunta de corno noacutes devemos entender o parecer do Conciacutelio de Trento A primeira e mais importante conclusatildeo parece-me ser o fato de o Conciacutelio ter visto muito claramente o nexo entre Tradiccedilatildeo e Revelaccedilatildeo A seguir elaborou sempre em consonacircncia com a tradiccedilatildeo patriacutestica e medieval um conceito de Revelaccedilatildeo muito menos material do que o que seraacute adotado mais tarde pela teologia dos tempos modernos Somente assim se deve conceber a ideacuteia da Revelaccedilatildeo do Espiacuterito Santo na Igreja Partindo do ramo nitidamente patriacutestico da teologia medieval tatildeo francamente acolhido no discurso de Cervini deveria ser muito menos categoacuterica a opiniatildeo que coloca o teacutermino da Revelaccedilatildeo na morte do uacuteltimo Apoacutestolo Naturalmente esta questatildeo natildeo pode ser aqui estudada com maiores detalhes A sua soluccedilatildeo como entatildeo se apresentava aos teoacutelogos poderia ser hoje impostada apelando-se para as categorias da teologia atual Segundo esta podemos dizer que a Revelaccedilatildeo estaacute encerrada do ponto de vista de seu princiacutepio material Todavia estaacute e continua presente em sua realidade eficaz Noutros termos a Revelaccedilatildeo tem eacute verdade o seu ἑφάπαξ enquanto ela se realizou num determinado dia na Histoacuteria Entretanto ela tem tambeacutem o seu ldquohojerdquo permanente isto eacute o que foi uma vez por todas realizado na feacute da Igreja permanece sempre vivo e operante Assim a feacute cristatilde natildeo se volta apenas para o passado Abrange tambeacutem o presente e o futuro Eacute verdade que a posterior materializaccedilatildeo historicista da ideacuteia de Revelaccedilatildeo aparece jaacute claramente insinuada nos debates tridentinos corno um fato previsto mas ainda [58] natildeo consumado embora talvez se possa dizer que nos textos conciliares ficou definitivamente consagrada a sua aceitaccedilatildeo

Finalmente acrescentemos ainda que com base nos debates do Conciacutelio podemos estabelecer quatro elementos da ideacuteia de Tradiccedilatildeo 1 O aspecto natildeo-escrito da Revelaccedilatildeo ou do Evangelho contido na Biacuteblia e no coraccedilatildeo dos fieacuteis 2 A palavra do Espiacuterito Santo no decorrer de todo o tempo da Igreja

3 A atividade da Igreja nos Conciacutelios 4 A Tradiccedilatildeo lituacutergica e a da vida da Igreja em geral Nestes quatro elementos

que se deve ter sob os olhos pois formam o fundo ideoloacutegico do Decreto expressa-se a realidade uacutenica do tempo presente da Igreja cristatilde Nele estaacute presente todo o passado poacutes-apostoacutelico da Igreja (inclusive o proacuteprio tempo dos apoacutestolos) de modo que toda a sua vida eacute na Sagrada Escritura um elemento central embora natildeo o uacutenico Em suma deve ter ficado claro que o Conciacutelio de Trento a despeito do caraacuteter contrastante e fixo de sua ideacuteia de Revelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeo oferece uma visatildeo muito mais rica destes conceitos do que a que impregnou a mentalidade dos seacuteculos seguintes Justamente por

isso a teologia de hoje pode retirar daiacute novos subsiacutedios novo apoio para suas pesquisas e novas indicaccedilotildees sobre o verdadeiro caminho a seguir

Quadro sinoacutetico do Decreto tridentino sobre a Tradiccedilatildeo

Primeiro princiacutepio conforme Cervini (AT = Escritura)

Sacrosancta œcumenica et generalis Tridentina Synodus in Spiritu Sancto legitime congregata [] hoc sibi perpetuo ante oculos proponens ut sublatis erroribus puritas ipsa EVANGELII in Ecclesia conservetur quod PROMISSUM ANTE PER PROPHETAS IN SCRIPTURIS SANCTIS

Segundo princiacutepio conforme Cervini o Evangelho em parte escrito em parte insculpido nos coraccedilotildees

[59] DOMINUS NOSTER IESUS CHRISTUS DEI FILIUS PROPRIO ORE PRIMUM PROMULGAVIT DEINDE PER SUOS APOSTOLOS TAMQUAM FONTEM OMNIS ET SALUTARIS VERITATIS ET MORUM DISCIPLINAE OMNI CREATURAE PRAEDICARI IUSSIT PERSPICIENSQUE HANC VERITATEM ET DISCIPLINAM CONTINERI IN LIBRIS SCRIPTIS ET SINE SCRIPTO TRADITIONIBUS QUAE AB IPSIUS CHRISTI ORE AB APOSTOLIS ACCEPTAE AUT AB IPSIS APOSTOLIS SPIRITU SANCTO DICTANTE

Seripando Cervini e outros soacute consideram as tradiccedilotildees recebidas pela Igrej (ldquoad nos usquerdquo)

quasi per manus traditae ad nos usque pervenerunt

orthodoxorum Patrum exempla secuta omnes libros tam Veteris quam Novi Testamenti cum utriusque unus Deus sit auctor nec non TRADITIONES IPSAS

Lejay Tradiccedilatildeo contendo natildeo soacute a ldquoconsuetudordquo mas relacionada tambeacutem com a ldquofidesrdquo (foacutermula conciliar)

tum ad fidem tum ad mores pertinentes

Terceiro princiacutepio de Cernini Depois da Ascenccedilatildeo de Cristo o Espiacuterito Santo ensina tambeacutem os misteacuterios de Deus

TAMQUAM VEL ORETENUS A CHRISTO VEL A SPIRITU SANCTO DICTATAS

Seripando Cervini etc soacute satildeo consideradas as coisas recebidas pela Igreja (como acima)

et continua successione in Ecclesia catholica conservatas

Cervini Escritura e Tradiccedilatildeo procedem ambas do mesmo Espiacuterito Santo

pari pietatis affectu ac reverentia suscipit ac veneratur

  • Prefaacutecio
  • SEGUNDA PARTE
  • Explicaccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo
  • segundo o Decreto do Conciacutelio de Trento
Page 28: Revelacao e Tradicao-Joseph Ratzinger (Bom Ler)

esclarecimentos Cervini sustenta no citado discurso que existem trecircs princiacutepios e fundamentos de nossa feacute

1) Os livros sagrados escritos sob a inspiraccedilatildeo do Espiacuterito Santo 2) O Evangelho que Nosso Senhor natildeo escreveu mas ensinou oralmente e

implantou nos coraccedilotildees Parte do Evangelho foi escrita mais tarde pelos Evangelistas enquanto muita coisa foi simplesmente confiada aos coraccedilotildees dos fieacuteis

3) Porque o Filho de Deus natildeo ia permanecer sempre entre noacutes enviou ele o Espiacuterito Santo que haveria de revelar os misteacuterios no iacutentimo dos fieacuteis e de ensinar agrave Igreja toda a verdade ateacute ao fim dos tempos27

[43] Numa segunda redaccedilatildeo mais detalhada do discurso estas mesmas ideacuteias satildeo

desenvolvidas mais amplamente Aiacute lemos que a Revelaccedilatildeo se apresentou de modo diferente em diversos tempos

1) Nos Patriarcas cuja feacute eacute atestada na Escritura a que chamamos de Antigo Testamento

2) Em Jesus Cristo que implantou o seu Evangelho natildeo por escrito mas oralmente natildeo in charta mas in corde Das coisas que emanaram de Cristo (quaelig a Cristo emanarunt) algumas foram escritas outras permaneceram nos coraccedilotildees dos homens (quaeligdam in cordibus hominum relicta fuerunt) Todo o Evangelho de Cristo que consta desta dupla modalidade forma (tendo como primeiro princiacutepio o Antigo Testamento) o secundum prindipium fidei nostraelig

3) Daiacute surge o terceiro princiacutepio (tertium autem) porque o Filho de Deus natildeo iria permanecer sempre entre noacutes enviou ele ao mundo o Espiacuterito Santo que haveria de explicar os misteacuterios de Deus e tudo o que fosse ainda obscuro para os homens28 De modo semelhante a citada carta ao Cardeal Farnese fala de dois passos (due

passi) Um eacute que a Revelaccedilatildeo de Nosso Senhor natildeo foi totalmente escrita mas permaneceu em parte contida nos coraccedilotildees dos homens e na Tradiccedilatildeo da Igreja O outro [43] passo consiste em confirmar ldquoquello che egrave suggerito lo Spirito Santo in la Chiesa maxime medianti i concilij doppo lAscensione in cielo del Signorerdquo29

Notamos logo que contrariamente ao que esperaacutevamos natildeo dois mas trecircs satildeo os princiacutepios apontados a Escritura o Evangelho e a Revelaccedilatildeo do Espiacuterito Santo

27 CT V 11 helliptria esse principia et fundamenta nostrae fidei primum libros sacros secundum esse evangelium quod Christus Dominus Noster non scripsit sed ore docuit et in cordibus illud plantavit cujus evangelii nonnulla evangelistaelig scripto mandarunt multa quoque relicta sunt in cordibus hominum Tertium quia non semper filius Dei corporaliter nobiscum mansurus erat misit Spiritum Sanctum qui in cordibus fidelium secreta Dei revelaret et ecclesiam quotidie et usque consummationem saeligculi doceret omnem veritatem et si quid in mentibus hominum dubii occurrisset declararet 28 CT I 484 Digna de nota eacute ainda a foacutermula contida na paacutegina 48514-16 nihil tamen inter scripturas sacras et apostolicas traditianes differt illaelig enim scriptaelig hae per insinuationem habentur utraeque tamen a Spiritu Sancto eodem modo emanataelig Confira-se com CT V 11 19 ab eodem Spiritu et illos (scilicet libros) et istas (scilicet traditiones) descendisse 29 CT X 373

Eacute portanto necessaacuterio observar que sob o termo ldquoEscriturardquo se entende o Antigo Testamento e que aleacutem deste (que eacute Escritura em sentido proacuteprio) aparece como segundo princiacutepio o Evangelho apresentaccedilatildeo do Cristo-evento O Evangelho por sua vez abrange o que estaacute escrito e o que natildeo estaacute escrito mas sim apenas insculpido no coraccedilatildeo dos crentes Deste modo o segundo princiacutepio representa uma vantagem pneumaacutetica sobre o que estaacute escrito o Evangelho eacute nesta concepccedilatildeo algo diferente da letra (Escritura) e soacute em parte vem escrito (Isto natildeo deve ser entendido no sentido de divisatildeo das verdades da feacute fenocircmeno denunciado ldquocom horrorrdquo por Geiselmann Ao contraacuterio Entenda-se apenas no sentido de diferente grau de dignidade no modo de exprimir-se) Em rigor o Evangelho como tal soacute pode ser escrito em parte se considerarmos a sua essecircncia

Finalmente ndash o que eacute muito de se admirar ndash segue-se como terceiro princiacutepio a accedilatildeo visiacutevel do Espiacuterito Santo em todo o tempo da Igreja

Admitimos portanto que o que noacutes geralmente chamamos de Tradiccedilatildeo natildeo aparece aqui como um soacute princiacutepio Biparte-se antes em dois princiacutepios intimamente ligados o ldquoEvangelhordquo princiacutepio apenas em parte identificaacutevel com a Escritura e a accedilatildeo do Espiacuterito Santo no tempo da Igreja Ademais podemos observar que a Escritura do Novo Testamento natildeo aparece como um princiacutepio ao lado da Revelaccedilatildeo apostoacutelica Muito menos como [44] eacute o nosso caso se apresenta a Escritura neotestamentaacuteria juntamente com a veterotestamentaacuteria como uma grandeza uacutenica uma ldquoEscriturardquo soacute agrave qual se poderia contrapor a ldquoTradiccedilatildeordquo como uma segunda grandeza O Novo Testamento em seu conjunto aparece como um segundo e mais amplo princiacutepio ou seja o Evangelho que como tal se opotildee de um lado ao Antigo Testamento e de outro agrave projeccedilatildeo histoacuterica do tempo da Igreja Sua unidade interna eacute evidentemente mais forte e importante do que a sua divisatildeo em escrito e natildeo-escrito Assim o Evangelho como um soacute princiacutepio pode ser contraposto ao Antigo Testamento a despeito desta dupla formalidade A impossibilidade de se representar o Novo Testamento como Escritura impossibilidade esta demonstrada por Satildeo Paulo e pelos primeiros seacuteculos cristatildeos eacute aqui claramente revelada

Ainda uma observaccedilatildeo relativa ao texto a que vimos nos referindo Em nenhum dos dois pontos por noacutes citados no estudo da Tradiccedilatildeo isto eacute nem no elemento contido no primeiro nem no apresentado no terceiro princiacutepio figura a Tradiccedilatildeo como verbal Em ambos os casos ao contraacuterio trata-se mais da Tradiccedilatildeo real com prevalecircncia da realidade sobre as palavras que a atestam Este fato que estaacute claro no terceiro princiacutepio o pneumatoloacutegico vale tambeacutem em relaccedilatildeo agrave implantaccedilatildeo do Evangelho nos coraccedilotildees contida no segundo princiacutepio Tal implantaccedilatildeo vai muito aleacutem do que se encontra expresso na letra da Escritura

Que papel tenham estas ideacuteias exercido nas discussotildees do Conciacutelio pode-se concluir tambeacutem das auctoritates citadas por Cervini entre as quais figuram Jo 16 12 (hellipSpiritus Sanctus suggerethellip) e Fl 3 15 (Quicumque perfecti sumus haeligc sentiamus et si quid aliter sentitis haeligc quoque Deus vobis revelabit) Ambos estes textos satildeo de teor acentuadamente [45] pneumatoloacutegico-presencial30 Que tais ideacuteias natildeo eram

30 CT V 14 e 15 Um exame profundo das auctoritates quer da Escritura quer entre os Santos Padres que neste particular satildeo favoraacuteveis agrave Tradiccedilatildeo seria em si conclusivo para a elaboraccedilatildeo do conceito

estranhas aos Padres conciliares deduz-se ainda de uma seacuterie de outras referecircncias Assim ouvimos o Bispo de Aqui dizer que aleacutem da Sagrada Escritura existe muita coisa na Igreja de Deus que vindo dos Apoacutestolos e passando de geraccedilatildeo a geraccedilatildeo chegou ateacute noacutes assim como muitas outras quaelig etsi scripta Apostoli nobis non reliquerunt per Spiritus Sancti revelationem nobis (tradita) sunt (Tradita estaacute aqui por revelata) 31 Partindo daiacute se poderia descrever a Tradiccedilatildeo justamente como o componente pneumatoloacutegico do Cristo-evento b) A influecircncia do esquema de Cervini em diversas decisotildees conciliares

Eacute verdade que esta concepccedilatildeo tripartida aparece muito atenuada no Decreto

oficial sobre a Tradiccedilatildeo Que poreacutem em suas linhas fundamentais natildeo tenha ela sido de modo nenhum [46] abandonada mostram-no duas outras passagens nas quais o Conciacutelio faz uso por assim dizer in actu das ideacuteias aqui expressas32 Assim na Introduccedilatildeo ao Decreto sobre a Eucaristia (Denz 873) se lecirc Sacrosancta Synodus sanamhellipdoctrinam tradens quam semper catholica Ecclesia ab ipso Jesu Christo Domino Nostro et eius apostolis erudita atque a Spiritu Sancto illi omnem veritatem in dies suggerente (Jo 1416) edocta retinuithellip

Aqui a accedilatildeo proacutepria do Conciacutelio eacute descrita como tradere e a este tradere eacute atribuiacutedo um duplo fundamento De um lado o ensino de Jesus e dos Apoacutestolos (Note-se que este ponto corresponde ao Evangelho segundo a concepccedilatildeo de Cervini E de certo modo tambeacutem pela citaccedilatildeo de Jesus e dos Apoacutestolos se reconhece a dupla modalidade do Evangelho como escrito e como inserido nos coraccedilotildees) De outro lado o ensino dado pelo Espiacuterito Santo que conduz agrave verdade in dies isto eacute no de correr do tempo futuro

O outro texto que pode ser aduzido aqui como prova do que afirmamos encontra-se no Preacircmbulo do Decreto sobre o Purgatoacuterio (Denz 983) Aiacute se lecirc hellipCatholica Ecclesia Spiritu Sancto edocta ex Sacris Litteris et antiqua Patrum traditione in sacris Conciliis et novissime in hac Synodo docuerit A descriccedilatildeo da accedilatildeo proacutepria do

aqui exposto H HOLSTEIN procurou fazer o cotejo destas auctoritates e fecirc-lo de modo admiraacutevel em seu artigo La Tradition dapregraves le Concile de Trente (RSR 47 1959 p367-390 e em particular para o caso em questatildeo a p375) Ele encontra nos textos estudados duas linhas de tendecircncias A linha de Santo Irineu para a qual o testemunho dos Apoacutestolos eacute o de sua personalidade de sua vida e de seu ofiacutecio Aleacutem desta o grupo composto de Tertuliano Cipriano Basiacutelio e Agostinho forma uma corrente que se poderia denominar ldquocerimonialrdquo Oriacutegenes se enquadra em ambos os grupos Existe entre os autores estudados uma seacuterie de textos que se referem agraves observationes consuetudines institutiones e que levam a entender-se a Tradiccedilatildeo neste mesmo sentido Aiacute se vecircem tambeacutem textos que sublinham o aspecto natildeo-escrito do Evangelho enquanto insculpido no coraccedilatildeo dos fieacuteis e aleacutem disso textos que apontam a Igreja como o ldquolugarrdquo da verdade cristatilde 31 CT I 483 (18 de fevereiro de 1546) Em 26 de fevereiro (CT V 18) encontramos Cervini a tratar de novo deste assunto Cf tambeacutem um pronunciamento do Bispo de Fano (CT V 10) nestes termos Cum jam receperimus Scripturas Sacras necessario recipiendaelig sunt traditiones quaelig ab eodem Spiritu Sancto quo scripturaelig dictataelig sunthellip 32 Disto me adverti pela primeira vez atraveacutes de um estudo realizado sob a minha orientaccedilatildeo por CHR LIMBACR a quem sou devedor de muitas informaccedilotildees bibliograacuteficas

Conciacutelio como tradere encontra-se ainda nas declaraccedilotildees sobre o Sacramento da Extrema-Unccedilatildeo (Denz 910)

Finalmente a triacuteplice divisatildeo deixa-se insinuar nas entrelinhas do Decreto sobre a Tradiccedilatildeo embora obscurecida e diluiacuteda por uma seacuterie de acreacutescimos e citaccedilotildees a ele adicionados por outros motivos O Decreto da Tradiccedilatildeo com efeito [47]

1) Fala do Evangelho prometido pelos Profetas na Escritura e refere-se a esta em sentido estrito quer antes quer depois do Antigo Testamento

2) Fala da promulgaccedilatildeo por Cristo do Evangelho que foi transmitido pelos Apoacutestolos sob dupla forma oral e escrita Desta maneira o que natildeo ocorre no exemplo de Cervini aparece aqui antes de tudo o componente pneumatoloacutegico unido com o componente apostoacutelico a ponto de se distinguirem duas modalidades de Tradiccedilatildeo apostoacutelica a que remonta a Cristo e a que remonta ao envio do Espiacuterito Santo Pode-se assim estabelecer que em oposiccedilatildeo ao esquema de Cervini haacute um certo processo de historicizaccedilatildeo que salienta a relaccedilatildeo com o comeccedilo histoacuterico e igualmente parece deslocar o acento da tradiccedilatildeo real para a verbal

3) No epiacutelogo desta parte do Decreto da Tradiccedilatildeo que vimos analisando de novo eacute considerada a ideacuteia da Sagrada Escritura O conceito de Tradiccedilatildeo eacute entatildeo formulado em definitivo e descrito como vel oretenus a Christo vel a Spiritu Sancto dictatas et continua successione in Ecclesia catholica conservatas A referecircncia aos Apoacutestolos eacute omitida Pode-se na verdade considerar tudo isto como uma volta ao que foi dito antes Evidentemente a tradiccedilatildeo ditada pelos Apoacutestolos eacute citada de novo (A expressatildeo continua successione insinua-o) Contudo permanece sempre ainda certa indeterminaccedilatildeo ficando aberta a possibilidade de se encontrar aqui o vestiacutegio do terceiro componente de Cervini o princiacutepio pneumaacutetico propriamente dito Eacute tambeacutem claro que esta ideacuteia eacute discreta sendo adotada uma posiccedilatildeo mais acentuadamente histoacuterica Se agora lanccedilarmos os olhos sobre o que vimos considerando ateacute aqui surgiratildeo

inevitavelmente perguntas qual eacute realmente o sentido proacuteprio da concepccedilatildeo pneumatoloacutegica Como poderia ser perfeitamente entendida a ideacuteia a noacutes estranha de uma revelatio prolongada no tempo em face da unicidade e do caraacuteter [48] histoacuterico da Revelaccedilatildeo que evidentemente era conhecido tanto de Cervini quanto dos Santos Padres e teoacutelogos medievais33

Antes de examinarmos isto devemos esclarecer rapidamente os principais motivos que inspiraram o Decreto tridentino sobre a Escritura e a Tradiccedilatildeo deixando nele um tanto encoberta a concepccedilatildeo pessoal de Cervini Que opiniotildees de teoacutelogos teratildeo intervindo aqui chegando a ser em parte impressas no texto definitivo que resultou do cotejo de muitos pronunciamentos diversos Uma exposiccedilatildeo detalhada deste ponto exorbitaria do acircmbito de nossa anaacutelise Contentemo-nos com umas poucas observaccedilotildees sumaacuterias 33 Sobre este assunto tentei fazer um breve comentaacuterio no meu trabalho ldquoOffenbarung-Schrift-Uberlieferungrdquo in TThZ 67 (1958) p13-27 Cf J BEUMER ldquoDer theoretische Beitrag der Frnhscholastik zum Problem des Dogmenfortschrittsrdquo in ZkTh 72 (1952) p205-226 J de CHELLINCK Pour lrsquohistoire du mot ldquorevelarerdquo in RSR 6 (1916) p149-157

2 Relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a vida da Igreja

em diversas passagens do debate tridentino

Uma primeira seacuterie de motivos entre os quais se compreendem diversos pronunciamentos agraves vezes muito contrastantes em seu aparato exterior patenteia-se na ideacuteia de tradiccedilotildees expressa no Decreto de duas maneiras a) - per manus traditaelig ad nos usque pervenerunt b) - continua successione in Ecclesia catholico conservatas

O que se ocultaraacute sob estas duas foacutermulas que o historiador de hoje tem dificuldades em aceitar justamente por causa do historicismo nelas impliacutecito Podemos dizer que um decisivo papel exerceu aqui o pensamento que sempre aparecia nos debates a saber que as tradiccedilotildees satildeo variaacuteveis que muitas delas foram abolidas pelos Apoacutestolos e que por outro lado se [49] introduziram tradiccedilotildees eclesiaacutesticas que natildeo mais seriam abolidas34 Esta ideacuteia de Tradiccedilatildeo de certo modo se torna clara no tratado escrito sobre o mesmo assunto por Seripando para uso dos Padres Conciliares Seripando fala das Tradiccedilotildees escritas inseridas na Escritura como as claacuteusulas de Tiago o costume de as mulheres se cobrirem com um veacuteu a legislaccedilatildeo sobre o matrimocircnio contida em 1Cor 7 etc E o autor adverte que estas praacuteticas foram abolidas Isto porque embora associadas agrave palavra de Deus na Escritura dela ldquomuito diferemrdquo pois a palavra divina [50] de modo nenhum poderia ser abolida A estas tradiccedilotildees

34 Cabe aqui aduzir uma nova intervenccedilatildeo de Cervini datada de 26 de fevereiro de 1546 (CT I 33 e V 18) onde ele diz que nem todas as tradiccedilotildees procedentes dos Apoacutestolos devem ser conservadas mas somente as que ab Ecclesia receptaelig ad nos usque pervenerunt (V 18) Esta afirmaccedilatildeo anterior agrave formulaccedilatildeo dogmaacutetica feita pelo Concilio deve igualmente ser tida na conta de um autecircntico comentaacuterio do Decreto Aiacute se acentua como condiccedilatildeo essencial das tradiccedilotildees a receptio ecclesiaelig Vem ainda referida uma intervenccedilatildeo do Bispo de Bertinoro em data de 23 de marccedilo (I p 523) na qual ele sublinha que as tradiccedilotildees escritas por vezes foram mudadas Jaacute entre as natildeo-escritas umas foram mudadas e outras natildeo como por exemplo o rito de adicionar aacutegua ao vinho a Crisma a confissatildeo auricular O Bispo de Bertinoro acrescenta que por outro lado alguns pontos existem que permaneceram inteiramente inalterados tais como a crenccedila no descensus ad inferos na virgindade perpeacutetua de Maria a substituiccedilatildeo da observacircncia do saacutebado pela do domingo Temos depois um pronunciamento do Bispo de Bitonto datado de 27 de marccedilo (I 39) Este bispo era de parecer que algumas coisas foram transmitidas pelos Apoacutestolos com a finalidade de serem perpetuamente conservadas (como pertencentes ao depoacutesito da feacute) outras caiacuteram em desuso (como as claacuteusulas de Tiago) e outras enfim foram apenas aconselhadas Assim mesmo na Escritura algumas coisas haacute que foram escritas mas natildeo recebidas em uso por serem mateacuteria de mero conselho Por exemplo ldquose algueacutem te pedir a tuacutenica daacute-lhe tambeacutem o paacutelio se algueacutem te esbofetear numa face oferece-lhe tambeacutem a outrardquo Sem duacutevida excelente ilustraccedilatildeo do sermatildeo da montanha Finalmente consideraccedilotildees idecircnticas podemos encontrar na obra citada de LEJAY Eis outra amostra tirada do discurso de 23 de fevereiro (CT V 13) Nam illaelig (scil traditiones) quaelig ad fidem pertinent eadem sunt recipiendaelig auctoritate qua recipitur evangelium alia autem non ita eum earum plurimaelig immutataelig fuerint ut de bigamis de esu sanguinis et similia De modo semelhante aliaacutes fala tambeacutem Bonuccio (I 525 a 23 de marccedilo de 1546 ecclesia traditiones apostolorum quandoque mutavit verbum autem Dei nunquam mutavit neque mutare potest

Seripando opotildee as natildeo referidas na Biacuteblia e que ora satildeo apostoacutelicas ou oriundas de Conciacutelios universais e aceitas por toda a Igreja ora satildeo particulares e muito variaacuteveis35

Este texto nos leva a uma surpreendente conclusatildeo para Seripando e muitos outros Padres tridentinos36existem tradiccedilotildees na Escritura ldquoTradiccedilatildeordquo natildeo significa o natildeo-escrito Existe quer dentro da Escritura quer fora dela Isto nos conduz a outra pergunta em que consiste para os referidos Padres a essecircncia da tradiccedilatildeo se o que a constitui natildeo eacute o fato de natildeo ser escrita37 Em outros termos como pode a tradiccedilatildeo ser definida positivamente se ela natildeo pode ser suficientemente determinada pela ideacuteia negativa de algo natildeo-escrito

Haacute uma seacuterie de respostas para esta pergunta O proacuteprio Seripando daacute a seguinte definiccedilatildeo Traditiones hoc est Apostolorum seu sanctorum Patrum sanctae et salutares constitutiones38 Mais clara ainda eacute a afirmaccedilatildeo de Cervini citada por Massarelli A objeccedilatildeo do Bispo de Chioggia que aduzia a opiniatildeo de Agostinho de que tudo o que eacute necessaacuterio para a salvaccedilatildeo estava escrito na Biacuteblia respondia Cervini da seguinte maneira Verba illa (isto eacute de Santo Agostinho) formaliter intelligi debent scilicet ad fidem accipiendam ut salvi fiamus Quo vero ad mores et christianam vitam instituendam certo non omnia scripta sunt

[51] E de novo recorre agraves provas tiradas de Jo 1526 e 1426 E indica o princiacutepio pneumatoloacutegico39 O que eacute mais importante eacute que a Tradiccedilatildeo se refere agrave institutio vitaelig agrave presenccedila atuante da Palavra revelada na existecircncia cristatilde Tradiccedilatildeo eacute noutros termos a eficaacutecia da palavra de Deus Sem ela a palavra ficaria esteacuteril 35 Seripando De traditionibus (fevereiro ou marccedilo de 1546) CT XII p517-521 e principalmente a p 521 As expressotildees desta uacuteltima paacutegina chocam-se com a ideacuteia de Cervini sobre a receptio ecclesiaelig 36 Cf o texto citado na nota 11 37 No texto definitivo do Decreto esta ideacuteia natildeo aparece mais Aqui poreacutem com esta primeira designaccedilatildeo expliacutecita da Tradiccedilatildeo vem expressamente acentuado o contraste entre in libris scriptis et sine scripto traditionibus Na segunda redaccedilatildeo o sentido expliacutecito da palavra Tradiccedilatildeo natildeo eacute tatildeo exclusivo Contudo apresenta igual matiz ao se confrontarem as expressotildees omnes libroshellipnec non traditiones ipsas Portanto a ideacuteia positiva da Tradiccedilatildeo que serve de base a esta anaacutelise natildeo deixou de influenciar na redaccedilatildeo do Decreto 38 CT XII 517 39 CT I 494 (26 de fevereiro de 1546) A citada palavra de Santo Agostinho teve o seu papel a desempenhar na discussatildeo em curso Seripando por exemplo a ela se referiu (De traditionibus CT XII 521 47-53) Pensandum denique ne in traditionibus externis vera religio et salutis spes statuatur de quibus Augustinus Omnia quaelig pertinent ad veram religionem quaeligrendam et tenendam divina Scriptura non acuit Conceda-se que nem tudo foi escrito (veja-se Jo 2125) Todavia electa sunt autem quaelig scriberentur quaelig saluti credentium sufficere videbantur Mais do que nos debates do tridentino encontramos aqui um verdadeiro postulado dos Reformadores ldquonatildeo adotar costumes exteriores mas buscar os meios definitivos de salvaccedilatildeo na palavra da Escriturardquo A ldquosuficiecircnciardquo da Escritura de que aqui se fala eacute na verdade algo diverso da suficiecircncia material da mesma Escritura defendida por Geiselmann em sentido muito mais radical Infelizmente ainda natildeo se quis levar na devida consideraccedilatildeo o texto de Santo Agostinho (CT I 494 sugere De doctrina christiana II 9 e De pecc mero et rem II 59) Muito apropriadas nesta ordem de ideacuteias satildeo as observaccedilotildees de H SCHAUF ldquoSchrift und Traditionrdquo in Antonianum 39 (1964) p200-209 feitas no chamado Encontro de Duumlsseldorf Nos textos citados por Schauf com base em Agostinho eacute afirmada a suficiecircncia da Escritura para a salvaccedilatildeo Eacute contudo contestada a sua suficiecircncia para a Igreja em geral De fato esta alternativa parece muito mais vaacutelida e fundamental agrave luz dos postulados dos Reformadores do que a alternativa entre a suficiecircncia ou insuficiecircncia material da Escritura

Na mesma linha de ideacuteias seguem-se duas outras seacuteries de pronunciamentos Vimos na introduccedilatildeo agrave parte anterior que a discussatildeo dogmaacutetica da ideacuteia de

Tradiccedilatildeo foi em parte prejudicada pela questatildeo do meacutetodo a seguir no Conciacutelio dever-se-ia abordar primeiro a reformatio a reforma praacutetica da Igreja como queria o ldquoKaiserrdquo Ou primeiro discutir a questatildeo dogmaacutetica como preferia o Papa40

[52] Este problema do meacutetodo embora resolvido no debate que entatildeo surgiu natildeo afetou diretamente a questatildeo da Tradiccedilatildeo como tal Mas como de fato estas duas questotildees ficaram ligadas entre si daiacute resultou que muitos oradores transformaram a questatildeo do meacutetodo (se se deveria falar dos abusos ou da Tradiccedilatildeo) em parte de sua argumentaccedilatildeo em torno do assunto em pauta41 O problema abusus e o problema Traditio ficaram de tal maneira associados na ocasiatildeo que pareciam formar no fundo um soacute assunto Por isso os oradores ora falavam em sentido positivo ora se pronunciavam em sentido negativo Isto correspondia tambeacutem ao propoacutesito reformista do Conciacutelio as traditiones representavam os abusus aos quais a Igreja se opunha Os Padres estavam cocircnscios de que condenar as traditiones era condenar Os usus ecclesiaelig o modo como a Igreja vivia a sua vida naquela eacutepoca

A outra seacuterie de pronunciamentos que se inclinavam ao mesmo sentido encontramo-la nas proposiccedilotildees que a auctoritas da Igreja apresenta como definitivas indicando uma iacutentima relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a institutio christiana 42

[53] Podemos agora retomar ao nosso ponto de partida e dar resposta agrave pergunta que propriamente significa a foacutermula ad nos usque pervenerunt Objetivamente natildeo se trata aqui de um historicismo que a foacutermula parece expressar Ao contraacuterio Trata-se da fidelidade perseverante da Igreja agrave institutio vitaelig christianaelig da legiacutetima forma de vida cristatilde em concreto no tempo presente da Igreja da institutio christiana que coloca a Escritura em primeiro lugar e que como tal isto eacute como vida decorrente da Escritura eacute fundamentalmente apostoacutelica embora tambeacutem sujeita a mudanccedilas como tudo o que eacute vivo

3 A Tradiccedilatildeo e o dogma eclesiaacutestico

40 Sobre o debate em torno da questatildeo do meacutetodo cf mais uma vez JEDIN op cit p9-82 e outras 41 Assim jaacute no discurso de Cervini antes analisado (CT I 484) no qual ele recorda o dilema do Conciacutelio se nos voltarmos contra as tradiccedilotildees ficaratildeo admirados os Padres Conciliares quasi reformationem fugiamus si ipsam reformationem sumimus iterum objicient traditiones relinquendas non esse Idecircntica era a situaccedilatildeo em que se encontrava o Bispo de Astorga nas duas intervenccedilotildees que fez no dia 23 de fevereiro de 1546 (CT V 13 e 19) segundo Seripando (I 484) helliptraditiones prius pertractandas consulit tantam enim conformitatem abusus qui ex sacris libris descendunt cum iis qui a traditionibus orti sunt habent ut sacris libris et traditionibus absolutis duo illa abusuum genera simul pertractari valeant Segundo Bonuccio (I 484) antes de tudo dever-se-ia tratar das Sagradas Escrituras dos cacircnones apostoacutelicos dos Conciacutelios gerais e das decretais pontifiacutecias Hisque ilusceptis ad abusus ex eisdem dependentes devenire 42 Assim principalmente de acordo com Afonso de Castro (CT I 484) Quoniam ultra traditiones apostolicas ecclesiae auctoritatem habemus quaelig ecclesiaelig auctoritas tonta apud nos est ut aliqui eam maioris roboris quam sacros libros esse sentiant Cf igualmente CT I 491 45 Na mesma linha pode-se ver uma seacuterie de pronunciamentos na citada obra de LEJAY Cf CT XII 524 (Tratado De traditionibus ecclesiaelig fevereiro ou marccedilo de 1546)

Uma segunda seacuterie de motivos eacute expressa no Decreto pela foacutermula traditiones tum ad fidem tum ad mores pertinentes Se como vimos a ideacuteia de Tradiccedilatildeo aparece muito limitada naquilo que os Padres conciliares chamam consuetudines observationes institutiones por outro lado o Procurador do Cardeal de Augsburgo Claudio Lejay SJ se fez o porta-voz de uma expressatildeo que em oposiccedilatildeo agraves traditiones caeligremoniales estabeleceu justamente o sentido da tradiccedilatildeo contida na feacute Seu tratado sobre a Tradiccedilatildeo composto para uso dos Padres conciliares inclui tambeacutem a foacutermula que foi adotada pelo Conciacutelio Aiacute se diz Denique multas veritates tum ad fidem tum ad mores pertinentes Ecclesia novit quas Scriptura aperte et expresse non continet Ele cita como exemplos as palavras persona essentia trinitas no Tratado da Santiacutessima Trindade consubstantialitas na Cristologia do Logos duas naturezas uma soacute Pessoa referentes ao dogma definido pelo Conciacutelio de Calcedocircnia E ainda Cristo Filho uacutenico de Maria duas vontades na uacutenica Pessoa de Cristo uma alma racional aleacutem do espiacuterito divino em Cristo Ana matildee de Maria o costume de fazer sinais da cruz a santificaccedilatildeo do domingo a maneira de rezar com face voltada [54] para o Oriente tudo isto ideacuteias e fatos da tradiccedilatildeo conciliar e da piedade cristatilde43

Cervini que aprovou o discurso de Lejay de 23 de fevereiro de 154644 pocircde dificilmente conciliar esta posiccedilatildeo com a sua expressa na jaacute citada carta ao Cardeal Farnese onde como vimos ele diz que o Espiacuterito Santo falou na Igreja e depois da Ascensatildeo do Senhor fala ainda maxime medianti i concilii45 Ele aiacute viu publicamente sublinhado o fato de que aquele ldquomaisrdquo que a Igreja viva representa em relaccedilatildeo agrave palavra meramente escrita natildeo se referia e natildeo se refere apenas agrave vita instituenda ou como ele prefere agrave caeligremonialia Refere-se tambeacutem agrave essentialia fidei que antes de tudo plenamente se expressam na Tradiccedilatildeo Tambeacutem aqui como se vecirc o interesse dominante natildeo estaacute na apresentaccedilatildeo historicista do assunto a partir do iniacutecio da Igreja mas na ideacuteia de que a influecircncia da Tradiccedilatildeo sobretudo atraveacutes da praxe conciliar eacute de fundamental importacircncia para a feacute para a doutrina crida e natildeo apenas para a piedade viva ou a caeligremonialia

4 O sentido do Decreto tridentino

Se recapitularmos o que ateacute agora dissemos veremos que no conjunto facilmente se podem reconhecer trecircs diferentes concepccedilotildees teoloacutegicas unidas entre si no texto definitivo do Decreto sobre a Tradiccedilatildeo Unidas mas natildeo equiparadas umas agraves outras Pelo contraacuterio apesar de sua grande diferenccedila foram elas apenas [55] mais ou menos justapostas e de novo por forccedila de uma tendecircncia comum relacionadas entre si

1 A concepccedilatildeo de Cervini que designamos como pneumatoloacutegica Com sua doutrina sobre os trecircs principia fidei insiste ele no caraacuteter dinacircmico do Cristo-evento

43 CT XII 523 LEJAY baseia-se evidentemente em listas de tradiccedilotildees confeccionadas naquele tempo (Cf ECK DRIEDO CANO BOTO NOGAROLA) Cf a este respeito Y CONGAR ldquoTraditions apostoliques non eacutecrites et suffisance de lEscrituresrdquo in Istina 6 (1959) p219-306 e principalmente a paacutegina 289 44 CT V 14 45 CT X 373

presente na Igreja Entende assim a Tradiccedilatildeo primariamente como a realidade espiritual da institutio vitaelig christianaelig

2 A concepccedilatildeo que podemos chamar de cerimonial Esta entende a Tradiccedilatildeo essencialmente como a seacuterie de consuetudines existentes ao lado da feacute como os usus ecclesiaelig que os Reformadores falsamente pretendem abolir como abusus Esta concepccedilatildeo chega a condenar a dignidade e Antiguumlidade apostoacutelica das tradiccedilotildees Sua ideacuteia eacute limitada pelo ad nos usque pervenerunt que inclui possibilidade de variar da parte das tradiccedilotildees donde a necessidade de reduccedilotildees Com os termos pervenire e conservare a recepccedilatildeo por parte da Igreja eacute considerada criteacuterio adicional ao lado da Antiguumlidade

3 A concepccedilatildeo que talvez possamos denominar dogmaacutetica Em oposiccedilatildeo agrave fixidez da ideacuteia de Tradiccedilatildeo reduzida agrave consuetudo salienta esta terceira hipoacutetese a extensatildeo do fenocircmeno Tradiccedilatildeo tambeacutem ao acircmbito da fides

Estas trecircs concepccedilotildees deram forma ao texto do Decreto de tal modo que as suas

linhas mestras derivam de Cervini e todo o texto deve ser entendido agrave luz de suas ideacuteias Contudo em duas passagens isto eacute no pervenerunt e no conservatas haacute influecircncia da segunda concepccedilatildeo enquanto no tum ad fidem tum ad mores haacute influecircncia da terceira

Em face destas trecircs concepccedilotildees das quais na realidade existem diversas variantes que tomadas em conjunto satildeo a expressatildeo das ideacuteias dominantes adotadas aparecem as teses de Bonuccio e de Nacchianti tatildeo postas em evidecircncia por Geiselmann como sentenccedilas contraacuterias De fato o parecer de Bonuccio claramente [56] se opotildee agrave segunda concepccedilatildeo (contra a supervalorizaccedilatildeo das consuetudines natildeo per pietatis affectus) ao passo que Nacchianti se levanta antes contra a terceira posiccedilatildeo e salienta a suficiecircncia da feacute recebida por meio da Escritura46

Seria de notar-se ainda que as concepccedilotildees segunda e terceira tecircm algo em comum Ambas opotildeem agrave visatildeo pneumatoloacutegica de Cervini da salvaccedilatildeo sempre presente uma visatildeo mais historicista relacionada com o prolongamento da salvaccedilatildeo operada uma soacute vez ou seja o ἑφάπαξ Na realidade deve-se dizer que embora de um lado tanto a visatildeo presencial de Cervini como tambeacutem a visatildeo historicista do outro grupo se consideradas isoladamente cada qual de per si sejam perigosas se natildeo insustentaacuteveis 46 Aliaacutes de acordo com uma informaccedilatildeo de Cervini parece que o Bispo de Chioggia finalmente renunciou agrave sua tese da suficiecircncia da Escritura na qual se inclinava a recusar as tradiccedilotildees Na carta de Cervini ao Cardeal Farnese de 27 de fevereiro de 1546 lemos hellip Chioggia che (quasi quasi) voleva dire queste traditioni essere superflue perorando che tutto quello che era necessario alla salute era scritto et allegando etiam S Agostino sopra lultimo capitulo di S Giovanni a questo proposito Pure per non poter negare che molte cose appartenenti almeno alli sacramenti non ci fussero venute ex tra ditione et per consequente che non tutte le cose necessarie alia nostra salute erano scritte poiche ebbe fatte molte distintioni concluse che ancor lui accettava queste ldquoche in la chiesa fusse qualque traditione apostolica non scrittardquo (et con queste parole diceva che se ne facesse il decreto) credo che molti sono restati scandalizati di lui (CT X Nr 315 paacutegs 399 411) Cf tambeacutem CT I 494 nota 9 e 495 nota 2 CT V 18 nota 5 e 19 e nota 1 O mesmo protesto que aparece contra Nacchianti manifesta-se tambeacutem na observaccedilatildeo de Massarelli Este chega a chamar aquele de novarum rerum cupidus (1 494 18) e esclarece que reprehensus est a multis (1 494 22) Diante disto eacute de todo destituiacuteda de creacutedito a importacircncia que Geiselmann lhe atribui mesmo se abstrairmos de outras razotildees jaacute conhecidas sobre as quais natildeo precisamos insistir

de outro lado pelo menos tornam possiacutevel uma exata visatildeo do conjunto devido agrave sua muacutetua confluecircncia e limitaccedilatildeo No texto atual estatildeo presentes embora pouco nitidamente ambos os pontos de vista o elemento presencial e o ἑφάπαξ Conveacutem que entendamos assim o texto de modo a considerarmos [57] ambos estes aspectos como essenciais Consequumlentemente reconheceremos que ambos pertencem constitutivamente agrave realidade da vida cristatilde e portanto tambeacutem agravequela parcela do Cristianismo a que damos o nome de Tradiccedilatildeo Estes dois elementos satildeo a presenccedila do Espiacuterito Santo e o seu nexo com o fato singular da salvaccedilatildeo ocorrido uma soacute vez por todas na histoacuteria dos homens

Assim se acharaacute finalmente a resposta agrave pergunta de corno noacutes devemos entender o parecer do Conciacutelio de Trento A primeira e mais importante conclusatildeo parece-me ser o fato de o Conciacutelio ter visto muito claramente o nexo entre Tradiccedilatildeo e Revelaccedilatildeo A seguir elaborou sempre em consonacircncia com a tradiccedilatildeo patriacutestica e medieval um conceito de Revelaccedilatildeo muito menos material do que o que seraacute adotado mais tarde pela teologia dos tempos modernos Somente assim se deve conceber a ideacuteia da Revelaccedilatildeo do Espiacuterito Santo na Igreja Partindo do ramo nitidamente patriacutestico da teologia medieval tatildeo francamente acolhido no discurso de Cervini deveria ser muito menos categoacuterica a opiniatildeo que coloca o teacutermino da Revelaccedilatildeo na morte do uacuteltimo Apoacutestolo Naturalmente esta questatildeo natildeo pode ser aqui estudada com maiores detalhes A sua soluccedilatildeo como entatildeo se apresentava aos teoacutelogos poderia ser hoje impostada apelando-se para as categorias da teologia atual Segundo esta podemos dizer que a Revelaccedilatildeo estaacute encerrada do ponto de vista de seu princiacutepio material Todavia estaacute e continua presente em sua realidade eficaz Noutros termos a Revelaccedilatildeo tem eacute verdade o seu ἑφάπαξ enquanto ela se realizou num determinado dia na Histoacuteria Entretanto ela tem tambeacutem o seu ldquohojerdquo permanente isto eacute o que foi uma vez por todas realizado na feacute da Igreja permanece sempre vivo e operante Assim a feacute cristatilde natildeo se volta apenas para o passado Abrange tambeacutem o presente e o futuro Eacute verdade que a posterior materializaccedilatildeo historicista da ideacuteia de Revelaccedilatildeo aparece jaacute claramente insinuada nos debates tridentinos corno um fato previsto mas ainda [58] natildeo consumado embora talvez se possa dizer que nos textos conciliares ficou definitivamente consagrada a sua aceitaccedilatildeo

Finalmente acrescentemos ainda que com base nos debates do Conciacutelio podemos estabelecer quatro elementos da ideacuteia de Tradiccedilatildeo 1 O aspecto natildeo-escrito da Revelaccedilatildeo ou do Evangelho contido na Biacuteblia e no coraccedilatildeo dos fieacuteis 2 A palavra do Espiacuterito Santo no decorrer de todo o tempo da Igreja

3 A atividade da Igreja nos Conciacutelios 4 A Tradiccedilatildeo lituacutergica e a da vida da Igreja em geral Nestes quatro elementos

que se deve ter sob os olhos pois formam o fundo ideoloacutegico do Decreto expressa-se a realidade uacutenica do tempo presente da Igreja cristatilde Nele estaacute presente todo o passado poacutes-apostoacutelico da Igreja (inclusive o proacuteprio tempo dos apoacutestolos) de modo que toda a sua vida eacute na Sagrada Escritura um elemento central embora natildeo o uacutenico Em suma deve ter ficado claro que o Conciacutelio de Trento a despeito do caraacuteter contrastante e fixo de sua ideacuteia de Revelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeo oferece uma visatildeo muito mais rica destes conceitos do que a que impregnou a mentalidade dos seacuteculos seguintes Justamente por

isso a teologia de hoje pode retirar daiacute novos subsiacutedios novo apoio para suas pesquisas e novas indicaccedilotildees sobre o verdadeiro caminho a seguir

Quadro sinoacutetico do Decreto tridentino sobre a Tradiccedilatildeo

Primeiro princiacutepio conforme Cervini (AT = Escritura)

Sacrosancta œcumenica et generalis Tridentina Synodus in Spiritu Sancto legitime congregata [] hoc sibi perpetuo ante oculos proponens ut sublatis erroribus puritas ipsa EVANGELII in Ecclesia conservetur quod PROMISSUM ANTE PER PROPHETAS IN SCRIPTURIS SANCTIS

Segundo princiacutepio conforme Cervini o Evangelho em parte escrito em parte insculpido nos coraccedilotildees

[59] DOMINUS NOSTER IESUS CHRISTUS DEI FILIUS PROPRIO ORE PRIMUM PROMULGAVIT DEINDE PER SUOS APOSTOLOS TAMQUAM FONTEM OMNIS ET SALUTARIS VERITATIS ET MORUM DISCIPLINAE OMNI CREATURAE PRAEDICARI IUSSIT PERSPICIENSQUE HANC VERITATEM ET DISCIPLINAM CONTINERI IN LIBRIS SCRIPTIS ET SINE SCRIPTO TRADITIONIBUS QUAE AB IPSIUS CHRISTI ORE AB APOSTOLIS ACCEPTAE AUT AB IPSIS APOSTOLIS SPIRITU SANCTO DICTANTE

Seripando Cervini e outros soacute consideram as tradiccedilotildees recebidas pela Igrej (ldquoad nos usquerdquo)

quasi per manus traditae ad nos usque pervenerunt

orthodoxorum Patrum exempla secuta omnes libros tam Veteris quam Novi Testamenti cum utriusque unus Deus sit auctor nec non TRADITIONES IPSAS

Lejay Tradiccedilatildeo contendo natildeo soacute a ldquoconsuetudordquo mas relacionada tambeacutem com a ldquofidesrdquo (foacutermula conciliar)

tum ad fidem tum ad mores pertinentes

Terceiro princiacutepio de Cernini Depois da Ascenccedilatildeo de Cristo o Espiacuterito Santo ensina tambeacutem os misteacuterios de Deus

TAMQUAM VEL ORETENUS A CHRISTO VEL A SPIRITU SANCTO DICTATAS

Seripando Cervini etc soacute satildeo consideradas as coisas recebidas pela Igreja (como acima)

et continua successione in Ecclesia catholica conservatas

Cervini Escritura e Tradiccedilatildeo procedem ambas do mesmo Espiacuterito Santo

pari pietatis affectu ac reverentia suscipit ac veneratur

  • Prefaacutecio
  • SEGUNDA PARTE
  • Explicaccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo
  • segundo o Decreto do Conciacutelio de Trento
Page 29: Revelacao e Tradicao-Joseph Ratzinger (Bom Ler)

Eacute portanto necessaacuterio observar que sob o termo ldquoEscriturardquo se entende o Antigo Testamento e que aleacutem deste (que eacute Escritura em sentido proacuteprio) aparece como segundo princiacutepio o Evangelho apresentaccedilatildeo do Cristo-evento O Evangelho por sua vez abrange o que estaacute escrito e o que natildeo estaacute escrito mas sim apenas insculpido no coraccedilatildeo dos crentes Deste modo o segundo princiacutepio representa uma vantagem pneumaacutetica sobre o que estaacute escrito o Evangelho eacute nesta concepccedilatildeo algo diferente da letra (Escritura) e soacute em parte vem escrito (Isto natildeo deve ser entendido no sentido de divisatildeo das verdades da feacute fenocircmeno denunciado ldquocom horrorrdquo por Geiselmann Ao contraacuterio Entenda-se apenas no sentido de diferente grau de dignidade no modo de exprimir-se) Em rigor o Evangelho como tal soacute pode ser escrito em parte se considerarmos a sua essecircncia

Finalmente ndash o que eacute muito de se admirar ndash segue-se como terceiro princiacutepio a accedilatildeo visiacutevel do Espiacuterito Santo em todo o tempo da Igreja

Admitimos portanto que o que noacutes geralmente chamamos de Tradiccedilatildeo natildeo aparece aqui como um soacute princiacutepio Biparte-se antes em dois princiacutepios intimamente ligados o ldquoEvangelhordquo princiacutepio apenas em parte identificaacutevel com a Escritura e a accedilatildeo do Espiacuterito Santo no tempo da Igreja Ademais podemos observar que a Escritura do Novo Testamento natildeo aparece como um princiacutepio ao lado da Revelaccedilatildeo apostoacutelica Muito menos como [44] eacute o nosso caso se apresenta a Escritura neotestamentaacuteria juntamente com a veterotestamentaacuteria como uma grandeza uacutenica uma ldquoEscriturardquo soacute agrave qual se poderia contrapor a ldquoTradiccedilatildeordquo como uma segunda grandeza O Novo Testamento em seu conjunto aparece como um segundo e mais amplo princiacutepio ou seja o Evangelho que como tal se opotildee de um lado ao Antigo Testamento e de outro agrave projeccedilatildeo histoacuterica do tempo da Igreja Sua unidade interna eacute evidentemente mais forte e importante do que a sua divisatildeo em escrito e natildeo-escrito Assim o Evangelho como um soacute princiacutepio pode ser contraposto ao Antigo Testamento a despeito desta dupla formalidade A impossibilidade de se representar o Novo Testamento como Escritura impossibilidade esta demonstrada por Satildeo Paulo e pelos primeiros seacuteculos cristatildeos eacute aqui claramente revelada

Ainda uma observaccedilatildeo relativa ao texto a que vimos nos referindo Em nenhum dos dois pontos por noacutes citados no estudo da Tradiccedilatildeo isto eacute nem no elemento contido no primeiro nem no apresentado no terceiro princiacutepio figura a Tradiccedilatildeo como verbal Em ambos os casos ao contraacuterio trata-se mais da Tradiccedilatildeo real com prevalecircncia da realidade sobre as palavras que a atestam Este fato que estaacute claro no terceiro princiacutepio o pneumatoloacutegico vale tambeacutem em relaccedilatildeo agrave implantaccedilatildeo do Evangelho nos coraccedilotildees contida no segundo princiacutepio Tal implantaccedilatildeo vai muito aleacutem do que se encontra expresso na letra da Escritura

Que papel tenham estas ideacuteias exercido nas discussotildees do Conciacutelio pode-se concluir tambeacutem das auctoritates citadas por Cervini entre as quais figuram Jo 16 12 (hellipSpiritus Sanctus suggerethellip) e Fl 3 15 (Quicumque perfecti sumus haeligc sentiamus et si quid aliter sentitis haeligc quoque Deus vobis revelabit) Ambos estes textos satildeo de teor acentuadamente [45] pneumatoloacutegico-presencial30 Que tais ideacuteias natildeo eram

30 CT V 14 e 15 Um exame profundo das auctoritates quer da Escritura quer entre os Santos Padres que neste particular satildeo favoraacuteveis agrave Tradiccedilatildeo seria em si conclusivo para a elaboraccedilatildeo do conceito

estranhas aos Padres conciliares deduz-se ainda de uma seacuterie de outras referecircncias Assim ouvimos o Bispo de Aqui dizer que aleacutem da Sagrada Escritura existe muita coisa na Igreja de Deus que vindo dos Apoacutestolos e passando de geraccedilatildeo a geraccedilatildeo chegou ateacute noacutes assim como muitas outras quaelig etsi scripta Apostoli nobis non reliquerunt per Spiritus Sancti revelationem nobis (tradita) sunt (Tradita estaacute aqui por revelata) 31 Partindo daiacute se poderia descrever a Tradiccedilatildeo justamente como o componente pneumatoloacutegico do Cristo-evento b) A influecircncia do esquema de Cervini em diversas decisotildees conciliares

Eacute verdade que esta concepccedilatildeo tripartida aparece muito atenuada no Decreto

oficial sobre a Tradiccedilatildeo Que poreacutem em suas linhas fundamentais natildeo tenha ela sido de modo nenhum [46] abandonada mostram-no duas outras passagens nas quais o Conciacutelio faz uso por assim dizer in actu das ideacuteias aqui expressas32 Assim na Introduccedilatildeo ao Decreto sobre a Eucaristia (Denz 873) se lecirc Sacrosancta Synodus sanamhellipdoctrinam tradens quam semper catholica Ecclesia ab ipso Jesu Christo Domino Nostro et eius apostolis erudita atque a Spiritu Sancto illi omnem veritatem in dies suggerente (Jo 1416) edocta retinuithellip

Aqui a accedilatildeo proacutepria do Conciacutelio eacute descrita como tradere e a este tradere eacute atribuiacutedo um duplo fundamento De um lado o ensino de Jesus e dos Apoacutestolos (Note-se que este ponto corresponde ao Evangelho segundo a concepccedilatildeo de Cervini E de certo modo tambeacutem pela citaccedilatildeo de Jesus e dos Apoacutestolos se reconhece a dupla modalidade do Evangelho como escrito e como inserido nos coraccedilotildees) De outro lado o ensino dado pelo Espiacuterito Santo que conduz agrave verdade in dies isto eacute no de correr do tempo futuro

O outro texto que pode ser aduzido aqui como prova do que afirmamos encontra-se no Preacircmbulo do Decreto sobre o Purgatoacuterio (Denz 983) Aiacute se lecirc hellipCatholica Ecclesia Spiritu Sancto edocta ex Sacris Litteris et antiqua Patrum traditione in sacris Conciliis et novissime in hac Synodo docuerit A descriccedilatildeo da accedilatildeo proacutepria do

aqui exposto H HOLSTEIN procurou fazer o cotejo destas auctoritates e fecirc-lo de modo admiraacutevel em seu artigo La Tradition dapregraves le Concile de Trente (RSR 47 1959 p367-390 e em particular para o caso em questatildeo a p375) Ele encontra nos textos estudados duas linhas de tendecircncias A linha de Santo Irineu para a qual o testemunho dos Apoacutestolos eacute o de sua personalidade de sua vida e de seu ofiacutecio Aleacutem desta o grupo composto de Tertuliano Cipriano Basiacutelio e Agostinho forma uma corrente que se poderia denominar ldquocerimonialrdquo Oriacutegenes se enquadra em ambos os grupos Existe entre os autores estudados uma seacuterie de textos que se referem agraves observationes consuetudines institutiones e que levam a entender-se a Tradiccedilatildeo neste mesmo sentido Aiacute se vecircem tambeacutem textos que sublinham o aspecto natildeo-escrito do Evangelho enquanto insculpido no coraccedilatildeo dos fieacuteis e aleacutem disso textos que apontam a Igreja como o ldquolugarrdquo da verdade cristatilde 31 CT I 483 (18 de fevereiro de 1546) Em 26 de fevereiro (CT V 18) encontramos Cervini a tratar de novo deste assunto Cf tambeacutem um pronunciamento do Bispo de Fano (CT V 10) nestes termos Cum jam receperimus Scripturas Sacras necessario recipiendaelig sunt traditiones quaelig ab eodem Spiritu Sancto quo scripturaelig dictataelig sunthellip 32 Disto me adverti pela primeira vez atraveacutes de um estudo realizado sob a minha orientaccedilatildeo por CHR LIMBACR a quem sou devedor de muitas informaccedilotildees bibliograacuteficas

Conciacutelio como tradere encontra-se ainda nas declaraccedilotildees sobre o Sacramento da Extrema-Unccedilatildeo (Denz 910)

Finalmente a triacuteplice divisatildeo deixa-se insinuar nas entrelinhas do Decreto sobre a Tradiccedilatildeo embora obscurecida e diluiacuteda por uma seacuterie de acreacutescimos e citaccedilotildees a ele adicionados por outros motivos O Decreto da Tradiccedilatildeo com efeito [47]

1) Fala do Evangelho prometido pelos Profetas na Escritura e refere-se a esta em sentido estrito quer antes quer depois do Antigo Testamento

2) Fala da promulgaccedilatildeo por Cristo do Evangelho que foi transmitido pelos Apoacutestolos sob dupla forma oral e escrita Desta maneira o que natildeo ocorre no exemplo de Cervini aparece aqui antes de tudo o componente pneumatoloacutegico unido com o componente apostoacutelico a ponto de se distinguirem duas modalidades de Tradiccedilatildeo apostoacutelica a que remonta a Cristo e a que remonta ao envio do Espiacuterito Santo Pode-se assim estabelecer que em oposiccedilatildeo ao esquema de Cervini haacute um certo processo de historicizaccedilatildeo que salienta a relaccedilatildeo com o comeccedilo histoacuterico e igualmente parece deslocar o acento da tradiccedilatildeo real para a verbal

3) No epiacutelogo desta parte do Decreto da Tradiccedilatildeo que vimos analisando de novo eacute considerada a ideacuteia da Sagrada Escritura O conceito de Tradiccedilatildeo eacute entatildeo formulado em definitivo e descrito como vel oretenus a Christo vel a Spiritu Sancto dictatas et continua successione in Ecclesia catholica conservatas A referecircncia aos Apoacutestolos eacute omitida Pode-se na verdade considerar tudo isto como uma volta ao que foi dito antes Evidentemente a tradiccedilatildeo ditada pelos Apoacutestolos eacute citada de novo (A expressatildeo continua successione insinua-o) Contudo permanece sempre ainda certa indeterminaccedilatildeo ficando aberta a possibilidade de se encontrar aqui o vestiacutegio do terceiro componente de Cervini o princiacutepio pneumaacutetico propriamente dito Eacute tambeacutem claro que esta ideacuteia eacute discreta sendo adotada uma posiccedilatildeo mais acentuadamente histoacuterica Se agora lanccedilarmos os olhos sobre o que vimos considerando ateacute aqui surgiratildeo

inevitavelmente perguntas qual eacute realmente o sentido proacuteprio da concepccedilatildeo pneumatoloacutegica Como poderia ser perfeitamente entendida a ideacuteia a noacutes estranha de uma revelatio prolongada no tempo em face da unicidade e do caraacuteter [48] histoacuterico da Revelaccedilatildeo que evidentemente era conhecido tanto de Cervini quanto dos Santos Padres e teoacutelogos medievais33

Antes de examinarmos isto devemos esclarecer rapidamente os principais motivos que inspiraram o Decreto tridentino sobre a Escritura e a Tradiccedilatildeo deixando nele um tanto encoberta a concepccedilatildeo pessoal de Cervini Que opiniotildees de teoacutelogos teratildeo intervindo aqui chegando a ser em parte impressas no texto definitivo que resultou do cotejo de muitos pronunciamentos diversos Uma exposiccedilatildeo detalhada deste ponto exorbitaria do acircmbito de nossa anaacutelise Contentemo-nos com umas poucas observaccedilotildees sumaacuterias 33 Sobre este assunto tentei fazer um breve comentaacuterio no meu trabalho ldquoOffenbarung-Schrift-Uberlieferungrdquo in TThZ 67 (1958) p13-27 Cf J BEUMER ldquoDer theoretische Beitrag der Frnhscholastik zum Problem des Dogmenfortschrittsrdquo in ZkTh 72 (1952) p205-226 J de CHELLINCK Pour lrsquohistoire du mot ldquorevelarerdquo in RSR 6 (1916) p149-157

2 Relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a vida da Igreja

em diversas passagens do debate tridentino

Uma primeira seacuterie de motivos entre os quais se compreendem diversos pronunciamentos agraves vezes muito contrastantes em seu aparato exterior patenteia-se na ideacuteia de tradiccedilotildees expressa no Decreto de duas maneiras a) - per manus traditaelig ad nos usque pervenerunt b) - continua successione in Ecclesia catholico conservatas

O que se ocultaraacute sob estas duas foacutermulas que o historiador de hoje tem dificuldades em aceitar justamente por causa do historicismo nelas impliacutecito Podemos dizer que um decisivo papel exerceu aqui o pensamento que sempre aparecia nos debates a saber que as tradiccedilotildees satildeo variaacuteveis que muitas delas foram abolidas pelos Apoacutestolos e que por outro lado se [49] introduziram tradiccedilotildees eclesiaacutesticas que natildeo mais seriam abolidas34 Esta ideacuteia de Tradiccedilatildeo de certo modo se torna clara no tratado escrito sobre o mesmo assunto por Seripando para uso dos Padres Conciliares Seripando fala das Tradiccedilotildees escritas inseridas na Escritura como as claacuteusulas de Tiago o costume de as mulheres se cobrirem com um veacuteu a legislaccedilatildeo sobre o matrimocircnio contida em 1Cor 7 etc E o autor adverte que estas praacuteticas foram abolidas Isto porque embora associadas agrave palavra de Deus na Escritura dela ldquomuito diferemrdquo pois a palavra divina [50] de modo nenhum poderia ser abolida A estas tradiccedilotildees

34 Cabe aqui aduzir uma nova intervenccedilatildeo de Cervini datada de 26 de fevereiro de 1546 (CT I 33 e V 18) onde ele diz que nem todas as tradiccedilotildees procedentes dos Apoacutestolos devem ser conservadas mas somente as que ab Ecclesia receptaelig ad nos usque pervenerunt (V 18) Esta afirmaccedilatildeo anterior agrave formulaccedilatildeo dogmaacutetica feita pelo Concilio deve igualmente ser tida na conta de um autecircntico comentaacuterio do Decreto Aiacute se acentua como condiccedilatildeo essencial das tradiccedilotildees a receptio ecclesiaelig Vem ainda referida uma intervenccedilatildeo do Bispo de Bertinoro em data de 23 de marccedilo (I p 523) na qual ele sublinha que as tradiccedilotildees escritas por vezes foram mudadas Jaacute entre as natildeo-escritas umas foram mudadas e outras natildeo como por exemplo o rito de adicionar aacutegua ao vinho a Crisma a confissatildeo auricular O Bispo de Bertinoro acrescenta que por outro lado alguns pontos existem que permaneceram inteiramente inalterados tais como a crenccedila no descensus ad inferos na virgindade perpeacutetua de Maria a substituiccedilatildeo da observacircncia do saacutebado pela do domingo Temos depois um pronunciamento do Bispo de Bitonto datado de 27 de marccedilo (I 39) Este bispo era de parecer que algumas coisas foram transmitidas pelos Apoacutestolos com a finalidade de serem perpetuamente conservadas (como pertencentes ao depoacutesito da feacute) outras caiacuteram em desuso (como as claacuteusulas de Tiago) e outras enfim foram apenas aconselhadas Assim mesmo na Escritura algumas coisas haacute que foram escritas mas natildeo recebidas em uso por serem mateacuteria de mero conselho Por exemplo ldquose algueacutem te pedir a tuacutenica daacute-lhe tambeacutem o paacutelio se algueacutem te esbofetear numa face oferece-lhe tambeacutem a outrardquo Sem duacutevida excelente ilustraccedilatildeo do sermatildeo da montanha Finalmente consideraccedilotildees idecircnticas podemos encontrar na obra citada de LEJAY Eis outra amostra tirada do discurso de 23 de fevereiro (CT V 13) Nam illaelig (scil traditiones) quaelig ad fidem pertinent eadem sunt recipiendaelig auctoritate qua recipitur evangelium alia autem non ita eum earum plurimaelig immutataelig fuerint ut de bigamis de esu sanguinis et similia De modo semelhante aliaacutes fala tambeacutem Bonuccio (I 525 a 23 de marccedilo de 1546 ecclesia traditiones apostolorum quandoque mutavit verbum autem Dei nunquam mutavit neque mutare potest

Seripando opotildee as natildeo referidas na Biacuteblia e que ora satildeo apostoacutelicas ou oriundas de Conciacutelios universais e aceitas por toda a Igreja ora satildeo particulares e muito variaacuteveis35

Este texto nos leva a uma surpreendente conclusatildeo para Seripando e muitos outros Padres tridentinos36existem tradiccedilotildees na Escritura ldquoTradiccedilatildeordquo natildeo significa o natildeo-escrito Existe quer dentro da Escritura quer fora dela Isto nos conduz a outra pergunta em que consiste para os referidos Padres a essecircncia da tradiccedilatildeo se o que a constitui natildeo eacute o fato de natildeo ser escrita37 Em outros termos como pode a tradiccedilatildeo ser definida positivamente se ela natildeo pode ser suficientemente determinada pela ideacuteia negativa de algo natildeo-escrito

Haacute uma seacuterie de respostas para esta pergunta O proacuteprio Seripando daacute a seguinte definiccedilatildeo Traditiones hoc est Apostolorum seu sanctorum Patrum sanctae et salutares constitutiones38 Mais clara ainda eacute a afirmaccedilatildeo de Cervini citada por Massarelli A objeccedilatildeo do Bispo de Chioggia que aduzia a opiniatildeo de Agostinho de que tudo o que eacute necessaacuterio para a salvaccedilatildeo estava escrito na Biacuteblia respondia Cervini da seguinte maneira Verba illa (isto eacute de Santo Agostinho) formaliter intelligi debent scilicet ad fidem accipiendam ut salvi fiamus Quo vero ad mores et christianam vitam instituendam certo non omnia scripta sunt

[51] E de novo recorre agraves provas tiradas de Jo 1526 e 1426 E indica o princiacutepio pneumatoloacutegico39 O que eacute mais importante eacute que a Tradiccedilatildeo se refere agrave institutio vitaelig agrave presenccedila atuante da Palavra revelada na existecircncia cristatilde Tradiccedilatildeo eacute noutros termos a eficaacutecia da palavra de Deus Sem ela a palavra ficaria esteacuteril 35 Seripando De traditionibus (fevereiro ou marccedilo de 1546) CT XII p517-521 e principalmente a p 521 As expressotildees desta uacuteltima paacutegina chocam-se com a ideacuteia de Cervini sobre a receptio ecclesiaelig 36 Cf o texto citado na nota 11 37 No texto definitivo do Decreto esta ideacuteia natildeo aparece mais Aqui poreacutem com esta primeira designaccedilatildeo expliacutecita da Tradiccedilatildeo vem expressamente acentuado o contraste entre in libris scriptis et sine scripto traditionibus Na segunda redaccedilatildeo o sentido expliacutecito da palavra Tradiccedilatildeo natildeo eacute tatildeo exclusivo Contudo apresenta igual matiz ao se confrontarem as expressotildees omnes libroshellipnec non traditiones ipsas Portanto a ideacuteia positiva da Tradiccedilatildeo que serve de base a esta anaacutelise natildeo deixou de influenciar na redaccedilatildeo do Decreto 38 CT XII 517 39 CT I 494 (26 de fevereiro de 1546) A citada palavra de Santo Agostinho teve o seu papel a desempenhar na discussatildeo em curso Seripando por exemplo a ela se referiu (De traditionibus CT XII 521 47-53) Pensandum denique ne in traditionibus externis vera religio et salutis spes statuatur de quibus Augustinus Omnia quaelig pertinent ad veram religionem quaeligrendam et tenendam divina Scriptura non acuit Conceda-se que nem tudo foi escrito (veja-se Jo 2125) Todavia electa sunt autem quaelig scriberentur quaelig saluti credentium sufficere videbantur Mais do que nos debates do tridentino encontramos aqui um verdadeiro postulado dos Reformadores ldquonatildeo adotar costumes exteriores mas buscar os meios definitivos de salvaccedilatildeo na palavra da Escriturardquo A ldquosuficiecircnciardquo da Escritura de que aqui se fala eacute na verdade algo diverso da suficiecircncia material da mesma Escritura defendida por Geiselmann em sentido muito mais radical Infelizmente ainda natildeo se quis levar na devida consideraccedilatildeo o texto de Santo Agostinho (CT I 494 sugere De doctrina christiana II 9 e De pecc mero et rem II 59) Muito apropriadas nesta ordem de ideacuteias satildeo as observaccedilotildees de H SCHAUF ldquoSchrift und Traditionrdquo in Antonianum 39 (1964) p200-209 feitas no chamado Encontro de Duumlsseldorf Nos textos citados por Schauf com base em Agostinho eacute afirmada a suficiecircncia da Escritura para a salvaccedilatildeo Eacute contudo contestada a sua suficiecircncia para a Igreja em geral De fato esta alternativa parece muito mais vaacutelida e fundamental agrave luz dos postulados dos Reformadores do que a alternativa entre a suficiecircncia ou insuficiecircncia material da Escritura

Na mesma linha de ideacuteias seguem-se duas outras seacuteries de pronunciamentos Vimos na introduccedilatildeo agrave parte anterior que a discussatildeo dogmaacutetica da ideacuteia de

Tradiccedilatildeo foi em parte prejudicada pela questatildeo do meacutetodo a seguir no Conciacutelio dever-se-ia abordar primeiro a reformatio a reforma praacutetica da Igreja como queria o ldquoKaiserrdquo Ou primeiro discutir a questatildeo dogmaacutetica como preferia o Papa40

[52] Este problema do meacutetodo embora resolvido no debate que entatildeo surgiu natildeo afetou diretamente a questatildeo da Tradiccedilatildeo como tal Mas como de fato estas duas questotildees ficaram ligadas entre si daiacute resultou que muitos oradores transformaram a questatildeo do meacutetodo (se se deveria falar dos abusos ou da Tradiccedilatildeo) em parte de sua argumentaccedilatildeo em torno do assunto em pauta41 O problema abusus e o problema Traditio ficaram de tal maneira associados na ocasiatildeo que pareciam formar no fundo um soacute assunto Por isso os oradores ora falavam em sentido positivo ora se pronunciavam em sentido negativo Isto correspondia tambeacutem ao propoacutesito reformista do Conciacutelio as traditiones representavam os abusus aos quais a Igreja se opunha Os Padres estavam cocircnscios de que condenar as traditiones era condenar Os usus ecclesiaelig o modo como a Igreja vivia a sua vida naquela eacutepoca

A outra seacuterie de pronunciamentos que se inclinavam ao mesmo sentido encontramo-la nas proposiccedilotildees que a auctoritas da Igreja apresenta como definitivas indicando uma iacutentima relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a institutio christiana 42

[53] Podemos agora retomar ao nosso ponto de partida e dar resposta agrave pergunta que propriamente significa a foacutermula ad nos usque pervenerunt Objetivamente natildeo se trata aqui de um historicismo que a foacutermula parece expressar Ao contraacuterio Trata-se da fidelidade perseverante da Igreja agrave institutio vitaelig christianaelig da legiacutetima forma de vida cristatilde em concreto no tempo presente da Igreja da institutio christiana que coloca a Escritura em primeiro lugar e que como tal isto eacute como vida decorrente da Escritura eacute fundamentalmente apostoacutelica embora tambeacutem sujeita a mudanccedilas como tudo o que eacute vivo

3 A Tradiccedilatildeo e o dogma eclesiaacutestico

40 Sobre o debate em torno da questatildeo do meacutetodo cf mais uma vez JEDIN op cit p9-82 e outras 41 Assim jaacute no discurso de Cervini antes analisado (CT I 484) no qual ele recorda o dilema do Conciacutelio se nos voltarmos contra as tradiccedilotildees ficaratildeo admirados os Padres Conciliares quasi reformationem fugiamus si ipsam reformationem sumimus iterum objicient traditiones relinquendas non esse Idecircntica era a situaccedilatildeo em que se encontrava o Bispo de Astorga nas duas intervenccedilotildees que fez no dia 23 de fevereiro de 1546 (CT V 13 e 19) segundo Seripando (I 484) helliptraditiones prius pertractandas consulit tantam enim conformitatem abusus qui ex sacris libris descendunt cum iis qui a traditionibus orti sunt habent ut sacris libris et traditionibus absolutis duo illa abusuum genera simul pertractari valeant Segundo Bonuccio (I 484) antes de tudo dever-se-ia tratar das Sagradas Escrituras dos cacircnones apostoacutelicos dos Conciacutelios gerais e das decretais pontifiacutecias Hisque ilusceptis ad abusus ex eisdem dependentes devenire 42 Assim principalmente de acordo com Afonso de Castro (CT I 484) Quoniam ultra traditiones apostolicas ecclesiae auctoritatem habemus quaelig ecclesiaelig auctoritas tonta apud nos est ut aliqui eam maioris roboris quam sacros libros esse sentiant Cf igualmente CT I 491 45 Na mesma linha pode-se ver uma seacuterie de pronunciamentos na citada obra de LEJAY Cf CT XII 524 (Tratado De traditionibus ecclesiaelig fevereiro ou marccedilo de 1546)

Uma segunda seacuterie de motivos eacute expressa no Decreto pela foacutermula traditiones tum ad fidem tum ad mores pertinentes Se como vimos a ideacuteia de Tradiccedilatildeo aparece muito limitada naquilo que os Padres conciliares chamam consuetudines observationes institutiones por outro lado o Procurador do Cardeal de Augsburgo Claudio Lejay SJ se fez o porta-voz de uma expressatildeo que em oposiccedilatildeo agraves traditiones caeligremoniales estabeleceu justamente o sentido da tradiccedilatildeo contida na feacute Seu tratado sobre a Tradiccedilatildeo composto para uso dos Padres conciliares inclui tambeacutem a foacutermula que foi adotada pelo Conciacutelio Aiacute se diz Denique multas veritates tum ad fidem tum ad mores pertinentes Ecclesia novit quas Scriptura aperte et expresse non continet Ele cita como exemplos as palavras persona essentia trinitas no Tratado da Santiacutessima Trindade consubstantialitas na Cristologia do Logos duas naturezas uma soacute Pessoa referentes ao dogma definido pelo Conciacutelio de Calcedocircnia E ainda Cristo Filho uacutenico de Maria duas vontades na uacutenica Pessoa de Cristo uma alma racional aleacutem do espiacuterito divino em Cristo Ana matildee de Maria o costume de fazer sinais da cruz a santificaccedilatildeo do domingo a maneira de rezar com face voltada [54] para o Oriente tudo isto ideacuteias e fatos da tradiccedilatildeo conciliar e da piedade cristatilde43

Cervini que aprovou o discurso de Lejay de 23 de fevereiro de 154644 pocircde dificilmente conciliar esta posiccedilatildeo com a sua expressa na jaacute citada carta ao Cardeal Farnese onde como vimos ele diz que o Espiacuterito Santo falou na Igreja e depois da Ascensatildeo do Senhor fala ainda maxime medianti i concilii45 Ele aiacute viu publicamente sublinhado o fato de que aquele ldquomaisrdquo que a Igreja viva representa em relaccedilatildeo agrave palavra meramente escrita natildeo se referia e natildeo se refere apenas agrave vita instituenda ou como ele prefere agrave caeligremonialia Refere-se tambeacutem agrave essentialia fidei que antes de tudo plenamente se expressam na Tradiccedilatildeo Tambeacutem aqui como se vecirc o interesse dominante natildeo estaacute na apresentaccedilatildeo historicista do assunto a partir do iniacutecio da Igreja mas na ideacuteia de que a influecircncia da Tradiccedilatildeo sobretudo atraveacutes da praxe conciliar eacute de fundamental importacircncia para a feacute para a doutrina crida e natildeo apenas para a piedade viva ou a caeligremonialia

4 O sentido do Decreto tridentino

Se recapitularmos o que ateacute agora dissemos veremos que no conjunto facilmente se podem reconhecer trecircs diferentes concepccedilotildees teoloacutegicas unidas entre si no texto definitivo do Decreto sobre a Tradiccedilatildeo Unidas mas natildeo equiparadas umas agraves outras Pelo contraacuterio apesar de sua grande diferenccedila foram elas apenas [55] mais ou menos justapostas e de novo por forccedila de uma tendecircncia comum relacionadas entre si

1 A concepccedilatildeo de Cervini que designamos como pneumatoloacutegica Com sua doutrina sobre os trecircs principia fidei insiste ele no caraacuteter dinacircmico do Cristo-evento

43 CT XII 523 LEJAY baseia-se evidentemente em listas de tradiccedilotildees confeccionadas naquele tempo (Cf ECK DRIEDO CANO BOTO NOGAROLA) Cf a este respeito Y CONGAR ldquoTraditions apostoliques non eacutecrites et suffisance de lEscrituresrdquo in Istina 6 (1959) p219-306 e principalmente a paacutegina 289 44 CT V 14 45 CT X 373

presente na Igreja Entende assim a Tradiccedilatildeo primariamente como a realidade espiritual da institutio vitaelig christianaelig

2 A concepccedilatildeo que podemos chamar de cerimonial Esta entende a Tradiccedilatildeo essencialmente como a seacuterie de consuetudines existentes ao lado da feacute como os usus ecclesiaelig que os Reformadores falsamente pretendem abolir como abusus Esta concepccedilatildeo chega a condenar a dignidade e Antiguumlidade apostoacutelica das tradiccedilotildees Sua ideacuteia eacute limitada pelo ad nos usque pervenerunt que inclui possibilidade de variar da parte das tradiccedilotildees donde a necessidade de reduccedilotildees Com os termos pervenire e conservare a recepccedilatildeo por parte da Igreja eacute considerada criteacuterio adicional ao lado da Antiguumlidade

3 A concepccedilatildeo que talvez possamos denominar dogmaacutetica Em oposiccedilatildeo agrave fixidez da ideacuteia de Tradiccedilatildeo reduzida agrave consuetudo salienta esta terceira hipoacutetese a extensatildeo do fenocircmeno Tradiccedilatildeo tambeacutem ao acircmbito da fides

Estas trecircs concepccedilotildees deram forma ao texto do Decreto de tal modo que as suas

linhas mestras derivam de Cervini e todo o texto deve ser entendido agrave luz de suas ideacuteias Contudo em duas passagens isto eacute no pervenerunt e no conservatas haacute influecircncia da segunda concepccedilatildeo enquanto no tum ad fidem tum ad mores haacute influecircncia da terceira

Em face destas trecircs concepccedilotildees das quais na realidade existem diversas variantes que tomadas em conjunto satildeo a expressatildeo das ideacuteias dominantes adotadas aparecem as teses de Bonuccio e de Nacchianti tatildeo postas em evidecircncia por Geiselmann como sentenccedilas contraacuterias De fato o parecer de Bonuccio claramente [56] se opotildee agrave segunda concepccedilatildeo (contra a supervalorizaccedilatildeo das consuetudines natildeo per pietatis affectus) ao passo que Nacchianti se levanta antes contra a terceira posiccedilatildeo e salienta a suficiecircncia da feacute recebida por meio da Escritura46

Seria de notar-se ainda que as concepccedilotildees segunda e terceira tecircm algo em comum Ambas opotildeem agrave visatildeo pneumatoloacutegica de Cervini da salvaccedilatildeo sempre presente uma visatildeo mais historicista relacionada com o prolongamento da salvaccedilatildeo operada uma soacute vez ou seja o ἑφάπαξ Na realidade deve-se dizer que embora de um lado tanto a visatildeo presencial de Cervini como tambeacutem a visatildeo historicista do outro grupo se consideradas isoladamente cada qual de per si sejam perigosas se natildeo insustentaacuteveis 46 Aliaacutes de acordo com uma informaccedilatildeo de Cervini parece que o Bispo de Chioggia finalmente renunciou agrave sua tese da suficiecircncia da Escritura na qual se inclinava a recusar as tradiccedilotildees Na carta de Cervini ao Cardeal Farnese de 27 de fevereiro de 1546 lemos hellip Chioggia che (quasi quasi) voleva dire queste traditioni essere superflue perorando che tutto quello che era necessario alla salute era scritto et allegando etiam S Agostino sopra lultimo capitulo di S Giovanni a questo proposito Pure per non poter negare che molte cose appartenenti almeno alli sacramenti non ci fussero venute ex tra ditione et per consequente che non tutte le cose necessarie alia nostra salute erano scritte poiche ebbe fatte molte distintioni concluse che ancor lui accettava queste ldquoche in la chiesa fusse qualque traditione apostolica non scrittardquo (et con queste parole diceva che se ne facesse il decreto) credo che molti sono restati scandalizati di lui (CT X Nr 315 paacutegs 399 411) Cf tambeacutem CT I 494 nota 9 e 495 nota 2 CT V 18 nota 5 e 19 e nota 1 O mesmo protesto que aparece contra Nacchianti manifesta-se tambeacutem na observaccedilatildeo de Massarelli Este chega a chamar aquele de novarum rerum cupidus (1 494 18) e esclarece que reprehensus est a multis (1 494 22) Diante disto eacute de todo destituiacuteda de creacutedito a importacircncia que Geiselmann lhe atribui mesmo se abstrairmos de outras razotildees jaacute conhecidas sobre as quais natildeo precisamos insistir

de outro lado pelo menos tornam possiacutevel uma exata visatildeo do conjunto devido agrave sua muacutetua confluecircncia e limitaccedilatildeo No texto atual estatildeo presentes embora pouco nitidamente ambos os pontos de vista o elemento presencial e o ἑφάπαξ Conveacutem que entendamos assim o texto de modo a considerarmos [57] ambos estes aspectos como essenciais Consequumlentemente reconheceremos que ambos pertencem constitutivamente agrave realidade da vida cristatilde e portanto tambeacutem agravequela parcela do Cristianismo a que damos o nome de Tradiccedilatildeo Estes dois elementos satildeo a presenccedila do Espiacuterito Santo e o seu nexo com o fato singular da salvaccedilatildeo ocorrido uma soacute vez por todas na histoacuteria dos homens

Assim se acharaacute finalmente a resposta agrave pergunta de corno noacutes devemos entender o parecer do Conciacutelio de Trento A primeira e mais importante conclusatildeo parece-me ser o fato de o Conciacutelio ter visto muito claramente o nexo entre Tradiccedilatildeo e Revelaccedilatildeo A seguir elaborou sempre em consonacircncia com a tradiccedilatildeo patriacutestica e medieval um conceito de Revelaccedilatildeo muito menos material do que o que seraacute adotado mais tarde pela teologia dos tempos modernos Somente assim se deve conceber a ideacuteia da Revelaccedilatildeo do Espiacuterito Santo na Igreja Partindo do ramo nitidamente patriacutestico da teologia medieval tatildeo francamente acolhido no discurso de Cervini deveria ser muito menos categoacuterica a opiniatildeo que coloca o teacutermino da Revelaccedilatildeo na morte do uacuteltimo Apoacutestolo Naturalmente esta questatildeo natildeo pode ser aqui estudada com maiores detalhes A sua soluccedilatildeo como entatildeo se apresentava aos teoacutelogos poderia ser hoje impostada apelando-se para as categorias da teologia atual Segundo esta podemos dizer que a Revelaccedilatildeo estaacute encerrada do ponto de vista de seu princiacutepio material Todavia estaacute e continua presente em sua realidade eficaz Noutros termos a Revelaccedilatildeo tem eacute verdade o seu ἑφάπαξ enquanto ela se realizou num determinado dia na Histoacuteria Entretanto ela tem tambeacutem o seu ldquohojerdquo permanente isto eacute o que foi uma vez por todas realizado na feacute da Igreja permanece sempre vivo e operante Assim a feacute cristatilde natildeo se volta apenas para o passado Abrange tambeacutem o presente e o futuro Eacute verdade que a posterior materializaccedilatildeo historicista da ideacuteia de Revelaccedilatildeo aparece jaacute claramente insinuada nos debates tridentinos corno um fato previsto mas ainda [58] natildeo consumado embora talvez se possa dizer que nos textos conciliares ficou definitivamente consagrada a sua aceitaccedilatildeo

Finalmente acrescentemos ainda que com base nos debates do Conciacutelio podemos estabelecer quatro elementos da ideacuteia de Tradiccedilatildeo 1 O aspecto natildeo-escrito da Revelaccedilatildeo ou do Evangelho contido na Biacuteblia e no coraccedilatildeo dos fieacuteis 2 A palavra do Espiacuterito Santo no decorrer de todo o tempo da Igreja

3 A atividade da Igreja nos Conciacutelios 4 A Tradiccedilatildeo lituacutergica e a da vida da Igreja em geral Nestes quatro elementos

que se deve ter sob os olhos pois formam o fundo ideoloacutegico do Decreto expressa-se a realidade uacutenica do tempo presente da Igreja cristatilde Nele estaacute presente todo o passado poacutes-apostoacutelico da Igreja (inclusive o proacuteprio tempo dos apoacutestolos) de modo que toda a sua vida eacute na Sagrada Escritura um elemento central embora natildeo o uacutenico Em suma deve ter ficado claro que o Conciacutelio de Trento a despeito do caraacuteter contrastante e fixo de sua ideacuteia de Revelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeo oferece uma visatildeo muito mais rica destes conceitos do que a que impregnou a mentalidade dos seacuteculos seguintes Justamente por

isso a teologia de hoje pode retirar daiacute novos subsiacutedios novo apoio para suas pesquisas e novas indicaccedilotildees sobre o verdadeiro caminho a seguir

Quadro sinoacutetico do Decreto tridentino sobre a Tradiccedilatildeo

Primeiro princiacutepio conforme Cervini (AT = Escritura)

Sacrosancta œcumenica et generalis Tridentina Synodus in Spiritu Sancto legitime congregata [] hoc sibi perpetuo ante oculos proponens ut sublatis erroribus puritas ipsa EVANGELII in Ecclesia conservetur quod PROMISSUM ANTE PER PROPHETAS IN SCRIPTURIS SANCTIS

Segundo princiacutepio conforme Cervini o Evangelho em parte escrito em parte insculpido nos coraccedilotildees

[59] DOMINUS NOSTER IESUS CHRISTUS DEI FILIUS PROPRIO ORE PRIMUM PROMULGAVIT DEINDE PER SUOS APOSTOLOS TAMQUAM FONTEM OMNIS ET SALUTARIS VERITATIS ET MORUM DISCIPLINAE OMNI CREATURAE PRAEDICARI IUSSIT PERSPICIENSQUE HANC VERITATEM ET DISCIPLINAM CONTINERI IN LIBRIS SCRIPTIS ET SINE SCRIPTO TRADITIONIBUS QUAE AB IPSIUS CHRISTI ORE AB APOSTOLIS ACCEPTAE AUT AB IPSIS APOSTOLIS SPIRITU SANCTO DICTANTE

Seripando Cervini e outros soacute consideram as tradiccedilotildees recebidas pela Igrej (ldquoad nos usquerdquo)

quasi per manus traditae ad nos usque pervenerunt

orthodoxorum Patrum exempla secuta omnes libros tam Veteris quam Novi Testamenti cum utriusque unus Deus sit auctor nec non TRADITIONES IPSAS

Lejay Tradiccedilatildeo contendo natildeo soacute a ldquoconsuetudordquo mas relacionada tambeacutem com a ldquofidesrdquo (foacutermula conciliar)

tum ad fidem tum ad mores pertinentes

Terceiro princiacutepio de Cernini Depois da Ascenccedilatildeo de Cristo o Espiacuterito Santo ensina tambeacutem os misteacuterios de Deus

TAMQUAM VEL ORETENUS A CHRISTO VEL A SPIRITU SANCTO DICTATAS

Seripando Cervini etc soacute satildeo consideradas as coisas recebidas pela Igreja (como acima)

et continua successione in Ecclesia catholica conservatas

Cervini Escritura e Tradiccedilatildeo procedem ambas do mesmo Espiacuterito Santo

pari pietatis affectu ac reverentia suscipit ac veneratur

  • Prefaacutecio
  • SEGUNDA PARTE
  • Explicaccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo
  • segundo o Decreto do Conciacutelio de Trento
Page 30: Revelacao e Tradicao-Joseph Ratzinger (Bom Ler)

estranhas aos Padres conciliares deduz-se ainda de uma seacuterie de outras referecircncias Assim ouvimos o Bispo de Aqui dizer que aleacutem da Sagrada Escritura existe muita coisa na Igreja de Deus que vindo dos Apoacutestolos e passando de geraccedilatildeo a geraccedilatildeo chegou ateacute noacutes assim como muitas outras quaelig etsi scripta Apostoli nobis non reliquerunt per Spiritus Sancti revelationem nobis (tradita) sunt (Tradita estaacute aqui por revelata) 31 Partindo daiacute se poderia descrever a Tradiccedilatildeo justamente como o componente pneumatoloacutegico do Cristo-evento b) A influecircncia do esquema de Cervini em diversas decisotildees conciliares

Eacute verdade que esta concepccedilatildeo tripartida aparece muito atenuada no Decreto

oficial sobre a Tradiccedilatildeo Que poreacutem em suas linhas fundamentais natildeo tenha ela sido de modo nenhum [46] abandonada mostram-no duas outras passagens nas quais o Conciacutelio faz uso por assim dizer in actu das ideacuteias aqui expressas32 Assim na Introduccedilatildeo ao Decreto sobre a Eucaristia (Denz 873) se lecirc Sacrosancta Synodus sanamhellipdoctrinam tradens quam semper catholica Ecclesia ab ipso Jesu Christo Domino Nostro et eius apostolis erudita atque a Spiritu Sancto illi omnem veritatem in dies suggerente (Jo 1416) edocta retinuithellip

Aqui a accedilatildeo proacutepria do Conciacutelio eacute descrita como tradere e a este tradere eacute atribuiacutedo um duplo fundamento De um lado o ensino de Jesus e dos Apoacutestolos (Note-se que este ponto corresponde ao Evangelho segundo a concepccedilatildeo de Cervini E de certo modo tambeacutem pela citaccedilatildeo de Jesus e dos Apoacutestolos se reconhece a dupla modalidade do Evangelho como escrito e como inserido nos coraccedilotildees) De outro lado o ensino dado pelo Espiacuterito Santo que conduz agrave verdade in dies isto eacute no de correr do tempo futuro

O outro texto que pode ser aduzido aqui como prova do que afirmamos encontra-se no Preacircmbulo do Decreto sobre o Purgatoacuterio (Denz 983) Aiacute se lecirc hellipCatholica Ecclesia Spiritu Sancto edocta ex Sacris Litteris et antiqua Patrum traditione in sacris Conciliis et novissime in hac Synodo docuerit A descriccedilatildeo da accedilatildeo proacutepria do

aqui exposto H HOLSTEIN procurou fazer o cotejo destas auctoritates e fecirc-lo de modo admiraacutevel em seu artigo La Tradition dapregraves le Concile de Trente (RSR 47 1959 p367-390 e em particular para o caso em questatildeo a p375) Ele encontra nos textos estudados duas linhas de tendecircncias A linha de Santo Irineu para a qual o testemunho dos Apoacutestolos eacute o de sua personalidade de sua vida e de seu ofiacutecio Aleacutem desta o grupo composto de Tertuliano Cipriano Basiacutelio e Agostinho forma uma corrente que se poderia denominar ldquocerimonialrdquo Oriacutegenes se enquadra em ambos os grupos Existe entre os autores estudados uma seacuterie de textos que se referem agraves observationes consuetudines institutiones e que levam a entender-se a Tradiccedilatildeo neste mesmo sentido Aiacute se vecircem tambeacutem textos que sublinham o aspecto natildeo-escrito do Evangelho enquanto insculpido no coraccedilatildeo dos fieacuteis e aleacutem disso textos que apontam a Igreja como o ldquolugarrdquo da verdade cristatilde 31 CT I 483 (18 de fevereiro de 1546) Em 26 de fevereiro (CT V 18) encontramos Cervini a tratar de novo deste assunto Cf tambeacutem um pronunciamento do Bispo de Fano (CT V 10) nestes termos Cum jam receperimus Scripturas Sacras necessario recipiendaelig sunt traditiones quaelig ab eodem Spiritu Sancto quo scripturaelig dictataelig sunthellip 32 Disto me adverti pela primeira vez atraveacutes de um estudo realizado sob a minha orientaccedilatildeo por CHR LIMBACR a quem sou devedor de muitas informaccedilotildees bibliograacuteficas

Conciacutelio como tradere encontra-se ainda nas declaraccedilotildees sobre o Sacramento da Extrema-Unccedilatildeo (Denz 910)

Finalmente a triacuteplice divisatildeo deixa-se insinuar nas entrelinhas do Decreto sobre a Tradiccedilatildeo embora obscurecida e diluiacuteda por uma seacuterie de acreacutescimos e citaccedilotildees a ele adicionados por outros motivos O Decreto da Tradiccedilatildeo com efeito [47]

1) Fala do Evangelho prometido pelos Profetas na Escritura e refere-se a esta em sentido estrito quer antes quer depois do Antigo Testamento

2) Fala da promulgaccedilatildeo por Cristo do Evangelho que foi transmitido pelos Apoacutestolos sob dupla forma oral e escrita Desta maneira o que natildeo ocorre no exemplo de Cervini aparece aqui antes de tudo o componente pneumatoloacutegico unido com o componente apostoacutelico a ponto de se distinguirem duas modalidades de Tradiccedilatildeo apostoacutelica a que remonta a Cristo e a que remonta ao envio do Espiacuterito Santo Pode-se assim estabelecer que em oposiccedilatildeo ao esquema de Cervini haacute um certo processo de historicizaccedilatildeo que salienta a relaccedilatildeo com o comeccedilo histoacuterico e igualmente parece deslocar o acento da tradiccedilatildeo real para a verbal

3) No epiacutelogo desta parte do Decreto da Tradiccedilatildeo que vimos analisando de novo eacute considerada a ideacuteia da Sagrada Escritura O conceito de Tradiccedilatildeo eacute entatildeo formulado em definitivo e descrito como vel oretenus a Christo vel a Spiritu Sancto dictatas et continua successione in Ecclesia catholica conservatas A referecircncia aos Apoacutestolos eacute omitida Pode-se na verdade considerar tudo isto como uma volta ao que foi dito antes Evidentemente a tradiccedilatildeo ditada pelos Apoacutestolos eacute citada de novo (A expressatildeo continua successione insinua-o) Contudo permanece sempre ainda certa indeterminaccedilatildeo ficando aberta a possibilidade de se encontrar aqui o vestiacutegio do terceiro componente de Cervini o princiacutepio pneumaacutetico propriamente dito Eacute tambeacutem claro que esta ideacuteia eacute discreta sendo adotada uma posiccedilatildeo mais acentuadamente histoacuterica Se agora lanccedilarmos os olhos sobre o que vimos considerando ateacute aqui surgiratildeo

inevitavelmente perguntas qual eacute realmente o sentido proacuteprio da concepccedilatildeo pneumatoloacutegica Como poderia ser perfeitamente entendida a ideacuteia a noacutes estranha de uma revelatio prolongada no tempo em face da unicidade e do caraacuteter [48] histoacuterico da Revelaccedilatildeo que evidentemente era conhecido tanto de Cervini quanto dos Santos Padres e teoacutelogos medievais33

Antes de examinarmos isto devemos esclarecer rapidamente os principais motivos que inspiraram o Decreto tridentino sobre a Escritura e a Tradiccedilatildeo deixando nele um tanto encoberta a concepccedilatildeo pessoal de Cervini Que opiniotildees de teoacutelogos teratildeo intervindo aqui chegando a ser em parte impressas no texto definitivo que resultou do cotejo de muitos pronunciamentos diversos Uma exposiccedilatildeo detalhada deste ponto exorbitaria do acircmbito de nossa anaacutelise Contentemo-nos com umas poucas observaccedilotildees sumaacuterias 33 Sobre este assunto tentei fazer um breve comentaacuterio no meu trabalho ldquoOffenbarung-Schrift-Uberlieferungrdquo in TThZ 67 (1958) p13-27 Cf J BEUMER ldquoDer theoretische Beitrag der Frnhscholastik zum Problem des Dogmenfortschrittsrdquo in ZkTh 72 (1952) p205-226 J de CHELLINCK Pour lrsquohistoire du mot ldquorevelarerdquo in RSR 6 (1916) p149-157

2 Relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a vida da Igreja

em diversas passagens do debate tridentino

Uma primeira seacuterie de motivos entre os quais se compreendem diversos pronunciamentos agraves vezes muito contrastantes em seu aparato exterior patenteia-se na ideacuteia de tradiccedilotildees expressa no Decreto de duas maneiras a) - per manus traditaelig ad nos usque pervenerunt b) - continua successione in Ecclesia catholico conservatas

O que se ocultaraacute sob estas duas foacutermulas que o historiador de hoje tem dificuldades em aceitar justamente por causa do historicismo nelas impliacutecito Podemos dizer que um decisivo papel exerceu aqui o pensamento que sempre aparecia nos debates a saber que as tradiccedilotildees satildeo variaacuteveis que muitas delas foram abolidas pelos Apoacutestolos e que por outro lado se [49] introduziram tradiccedilotildees eclesiaacutesticas que natildeo mais seriam abolidas34 Esta ideacuteia de Tradiccedilatildeo de certo modo se torna clara no tratado escrito sobre o mesmo assunto por Seripando para uso dos Padres Conciliares Seripando fala das Tradiccedilotildees escritas inseridas na Escritura como as claacuteusulas de Tiago o costume de as mulheres se cobrirem com um veacuteu a legislaccedilatildeo sobre o matrimocircnio contida em 1Cor 7 etc E o autor adverte que estas praacuteticas foram abolidas Isto porque embora associadas agrave palavra de Deus na Escritura dela ldquomuito diferemrdquo pois a palavra divina [50] de modo nenhum poderia ser abolida A estas tradiccedilotildees

34 Cabe aqui aduzir uma nova intervenccedilatildeo de Cervini datada de 26 de fevereiro de 1546 (CT I 33 e V 18) onde ele diz que nem todas as tradiccedilotildees procedentes dos Apoacutestolos devem ser conservadas mas somente as que ab Ecclesia receptaelig ad nos usque pervenerunt (V 18) Esta afirmaccedilatildeo anterior agrave formulaccedilatildeo dogmaacutetica feita pelo Concilio deve igualmente ser tida na conta de um autecircntico comentaacuterio do Decreto Aiacute se acentua como condiccedilatildeo essencial das tradiccedilotildees a receptio ecclesiaelig Vem ainda referida uma intervenccedilatildeo do Bispo de Bertinoro em data de 23 de marccedilo (I p 523) na qual ele sublinha que as tradiccedilotildees escritas por vezes foram mudadas Jaacute entre as natildeo-escritas umas foram mudadas e outras natildeo como por exemplo o rito de adicionar aacutegua ao vinho a Crisma a confissatildeo auricular O Bispo de Bertinoro acrescenta que por outro lado alguns pontos existem que permaneceram inteiramente inalterados tais como a crenccedila no descensus ad inferos na virgindade perpeacutetua de Maria a substituiccedilatildeo da observacircncia do saacutebado pela do domingo Temos depois um pronunciamento do Bispo de Bitonto datado de 27 de marccedilo (I 39) Este bispo era de parecer que algumas coisas foram transmitidas pelos Apoacutestolos com a finalidade de serem perpetuamente conservadas (como pertencentes ao depoacutesito da feacute) outras caiacuteram em desuso (como as claacuteusulas de Tiago) e outras enfim foram apenas aconselhadas Assim mesmo na Escritura algumas coisas haacute que foram escritas mas natildeo recebidas em uso por serem mateacuteria de mero conselho Por exemplo ldquose algueacutem te pedir a tuacutenica daacute-lhe tambeacutem o paacutelio se algueacutem te esbofetear numa face oferece-lhe tambeacutem a outrardquo Sem duacutevida excelente ilustraccedilatildeo do sermatildeo da montanha Finalmente consideraccedilotildees idecircnticas podemos encontrar na obra citada de LEJAY Eis outra amostra tirada do discurso de 23 de fevereiro (CT V 13) Nam illaelig (scil traditiones) quaelig ad fidem pertinent eadem sunt recipiendaelig auctoritate qua recipitur evangelium alia autem non ita eum earum plurimaelig immutataelig fuerint ut de bigamis de esu sanguinis et similia De modo semelhante aliaacutes fala tambeacutem Bonuccio (I 525 a 23 de marccedilo de 1546 ecclesia traditiones apostolorum quandoque mutavit verbum autem Dei nunquam mutavit neque mutare potest

Seripando opotildee as natildeo referidas na Biacuteblia e que ora satildeo apostoacutelicas ou oriundas de Conciacutelios universais e aceitas por toda a Igreja ora satildeo particulares e muito variaacuteveis35

Este texto nos leva a uma surpreendente conclusatildeo para Seripando e muitos outros Padres tridentinos36existem tradiccedilotildees na Escritura ldquoTradiccedilatildeordquo natildeo significa o natildeo-escrito Existe quer dentro da Escritura quer fora dela Isto nos conduz a outra pergunta em que consiste para os referidos Padres a essecircncia da tradiccedilatildeo se o que a constitui natildeo eacute o fato de natildeo ser escrita37 Em outros termos como pode a tradiccedilatildeo ser definida positivamente se ela natildeo pode ser suficientemente determinada pela ideacuteia negativa de algo natildeo-escrito

Haacute uma seacuterie de respostas para esta pergunta O proacuteprio Seripando daacute a seguinte definiccedilatildeo Traditiones hoc est Apostolorum seu sanctorum Patrum sanctae et salutares constitutiones38 Mais clara ainda eacute a afirmaccedilatildeo de Cervini citada por Massarelli A objeccedilatildeo do Bispo de Chioggia que aduzia a opiniatildeo de Agostinho de que tudo o que eacute necessaacuterio para a salvaccedilatildeo estava escrito na Biacuteblia respondia Cervini da seguinte maneira Verba illa (isto eacute de Santo Agostinho) formaliter intelligi debent scilicet ad fidem accipiendam ut salvi fiamus Quo vero ad mores et christianam vitam instituendam certo non omnia scripta sunt

[51] E de novo recorre agraves provas tiradas de Jo 1526 e 1426 E indica o princiacutepio pneumatoloacutegico39 O que eacute mais importante eacute que a Tradiccedilatildeo se refere agrave institutio vitaelig agrave presenccedila atuante da Palavra revelada na existecircncia cristatilde Tradiccedilatildeo eacute noutros termos a eficaacutecia da palavra de Deus Sem ela a palavra ficaria esteacuteril 35 Seripando De traditionibus (fevereiro ou marccedilo de 1546) CT XII p517-521 e principalmente a p 521 As expressotildees desta uacuteltima paacutegina chocam-se com a ideacuteia de Cervini sobre a receptio ecclesiaelig 36 Cf o texto citado na nota 11 37 No texto definitivo do Decreto esta ideacuteia natildeo aparece mais Aqui poreacutem com esta primeira designaccedilatildeo expliacutecita da Tradiccedilatildeo vem expressamente acentuado o contraste entre in libris scriptis et sine scripto traditionibus Na segunda redaccedilatildeo o sentido expliacutecito da palavra Tradiccedilatildeo natildeo eacute tatildeo exclusivo Contudo apresenta igual matiz ao se confrontarem as expressotildees omnes libroshellipnec non traditiones ipsas Portanto a ideacuteia positiva da Tradiccedilatildeo que serve de base a esta anaacutelise natildeo deixou de influenciar na redaccedilatildeo do Decreto 38 CT XII 517 39 CT I 494 (26 de fevereiro de 1546) A citada palavra de Santo Agostinho teve o seu papel a desempenhar na discussatildeo em curso Seripando por exemplo a ela se referiu (De traditionibus CT XII 521 47-53) Pensandum denique ne in traditionibus externis vera religio et salutis spes statuatur de quibus Augustinus Omnia quaelig pertinent ad veram religionem quaeligrendam et tenendam divina Scriptura non acuit Conceda-se que nem tudo foi escrito (veja-se Jo 2125) Todavia electa sunt autem quaelig scriberentur quaelig saluti credentium sufficere videbantur Mais do que nos debates do tridentino encontramos aqui um verdadeiro postulado dos Reformadores ldquonatildeo adotar costumes exteriores mas buscar os meios definitivos de salvaccedilatildeo na palavra da Escriturardquo A ldquosuficiecircnciardquo da Escritura de que aqui se fala eacute na verdade algo diverso da suficiecircncia material da mesma Escritura defendida por Geiselmann em sentido muito mais radical Infelizmente ainda natildeo se quis levar na devida consideraccedilatildeo o texto de Santo Agostinho (CT I 494 sugere De doctrina christiana II 9 e De pecc mero et rem II 59) Muito apropriadas nesta ordem de ideacuteias satildeo as observaccedilotildees de H SCHAUF ldquoSchrift und Traditionrdquo in Antonianum 39 (1964) p200-209 feitas no chamado Encontro de Duumlsseldorf Nos textos citados por Schauf com base em Agostinho eacute afirmada a suficiecircncia da Escritura para a salvaccedilatildeo Eacute contudo contestada a sua suficiecircncia para a Igreja em geral De fato esta alternativa parece muito mais vaacutelida e fundamental agrave luz dos postulados dos Reformadores do que a alternativa entre a suficiecircncia ou insuficiecircncia material da Escritura

Na mesma linha de ideacuteias seguem-se duas outras seacuteries de pronunciamentos Vimos na introduccedilatildeo agrave parte anterior que a discussatildeo dogmaacutetica da ideacuteia de

Tradiccedilatildeo foi em parte prejudicada pela questatildeo do meacutetodo a seguir no Conciacutelio dever-se-ia abordar primeiro a reformatio a reforma praacutetica da Igreja como queria o ldquoKaiserrdquo Ou primeiro discutir a questatildeo dogmaacutetica como preferia o Papa40

[52] Este problema do meacutetodo embora resolvido no debate que entatildeo surgiu natildeo afetou diretamente a questatildeo da Tradiccedilatildeo como tal Mas como de fato estas duas questotildees ficaram ligadas entre si daiacute resultou que muitos oradores transformaram a questatildeo do meacutetodo (se se deveria falar dos abusos ou da Tradiccedilatildeo) em parte de sua argumentaccedilatildeo em torno do assunto em pauta41 O problema abusus e o problema Traditio ficaram de tal maneira associados na ocasiatildeo que pareciam formar no fundo um soacute assunto Por isso os oradores ora falavam em sentido positivo ora se pronunciavam em sentido negativo Isto correspondia tambeacutem ao propoacutesito reformista do Conciacutelio as traditiones representavam os abusus aos quais a Igreja se opunha Os Padres estavam cocircnscios de que condenar as traditiones era condenar Os usus ecclesiaelig o modo como a Igreja vivia a sua vida naquela eacutepoca

A outra seacuterie de pronunciamentos que se inclinavam ao mesmo sentido encontramo-la nas proposiccedilotildees que a auctoritas da Igreja apresenta como definitivas indicando uma iacutentima relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a institutio christiana 42

[53] Podemos agora retomar ao nosso ponto de partida e dar resposta agrave pergunta que propriamente significa a foacutermula ad nos usque pervenerunt Objetivamente natildeo se trata aqui de um historicismo que a foacutermula parece expressar Ao contraacuterio Trata-se da fidelidade perseverante da Igreja agrave institutio vitaelig christianaelig da legiacutetima forma de vida cristatilde em concreto no tempo presente da Igreja da institutio christiana que coloca a Escritura em primeiro lugar e que como tal isto eacute como vida decorrente da Escritura eacute fundamentalmente apostoacutelica embora tambeacutem sujeita a mudanccedilas como tudo o que eacute vivo

3 A Tradiccedilatildeo e o dogma eclesiaacutestico

40 Sobre o debate em torno da questatildeo do meacutetodo cf mais uma vez JEDIN op cit p9-82 e outras 41 Assim jaacute no discurso de Cervini antes analisado (CT I 484) no qual ele recorda o dilema do Conciacutelio se nos voltarmos contra as tradiccedilotildees ficaratildeo admirados os Padres Conciliares quasi reformationem fugiamus si ipsam reformationem sumimus iterum objicient traditiones relinquendas non esse Idecircntica era a situaccedilatildeo em que se encontrava o Bispo de Astorga nas duas intervenccedilotildees que fez no dia 23 de fevereiro de 1546 (CT V 13 e 19) segundo Seripando (I 484) helliptraditiones prius pertractandas consulit tantam enim conformitatem abusus qui ex sacris libris descendunt cum iis qui a traditionibus orti sunt habent ut sacris libris et traditionibus absolutis duo illa abusuum genera simul pertractari valeant Segundo Bonuccio (I 484) antes de tudo dever-se-ia tratar das Sagradas Escrituras dos cacircnones apostoacutelicos dos Conciacutelios gerais e das decretais pontifiacutecias Hisque ilusceptis ad abusus ex eisdem dependentes devenire 42 Assim principalmente de acordo com Afonso de Castro (CT I 484) Quoniam ultra traditiones apostolicas ecclesiae auctoritatem habemus quaelig ecclesiaelig auctoritas tonta apud nos est ut aliqui eam maioris roboris quam sacros libros esse sentiant Cf igualmente CT I 491 45 Na mesma linha pode-se ver uma seacuterie de pronunciamentos na citada obra de LEJAY Cf CT XII 524 (Tratado De traditionibus ecclesiaelig fevereiro ou marccedilo de 1546)

Uma segunda seacuterie de motivos eacute expressa no Decreto pela foacutermula traditiones tum ad fidem tum ad mores pertinentes Se como vimos a ideacuteia de Tradiccedilatildeo aparece muito limitada naquilo que os Padres conciliares chamam consuetudines observationes institutiones por outro lado o Procurador do Cardeal de Augsburgo Claudio Lejay SJ se fez o porta-voz de uma expressatildeo que em oposiccedilatildeo agraves traditiones caeligremoniales estabeleceu justamente o sentido da tradiccedilatildeo contida na feacute Seu tratado sobre a Tradiccedilatildeo composto para uso dos Padres conciliares inclui tambeacutem a foacutermula que foi adotada pelo Conciacutelio Aiacute se diz Denique multas veritates tum ad fidem tum ad mores pertinentes Ecclesia novit quas Scriptura aperte et expresse non continet Ele cita como exemplos as palavras persona essentia trinitas no Tratado da Santiacutessima Trindade consubstantialitas na Cristologia do Logos duas naturezas uma soacute Pessoa referentes ao dogma definido pelo Conciacutelio de Calcedocircnia E ainda Cristo Filho uacutenico de Maria duas vontades na uacutenica Pessoa de Cristo uma alma racional aleacutem do espiacuterito divino em Cristo Ana matildee de Maria o costume de fazer sinais da cruz a santificaccedilatildeo do domingo a maneira de rezar com face voltada [54] para o Oriente tudo isto ideacuteias e fatos da tradiccedilatildeo conciliar e da piedade cristatilde43

Cervini que aprovou o discurso de Lejay de 23 de fevereiro de 154644 pocircde dificilmente conciliar esta posiccedilatildeo com a sua expressa na jaacute citada carta ao Cardeal Farnese onde como vimos ele diz que o Espiacuterito Santo falou na Igreja e depois da Ascensatildeo do Senhor fala ainda maxime medianti i concilii45 Ele aiacute viu publicamente sublinhado o fato de que aquele ldquomaisrdquo que a Igreja viva representa em relaccedilatildeo agrave palavra meramente escrita natildeo se referia e natildeo se refere apenas agrave vita instituenda ou como ele prefere agrave caeligremonialia Refere-se tambeacutem agrave essentialia fidei que antes de tudo plenamente se expressam na Tradiccedilatildeo Tambeacutem aqui como se vecirc o interesse dominante natildeo estaacute na apresentaccedilatildeo historicista do assunto a partir do iniacutecio da Igreja mas na ideacuteia de que a influecircncia da Tradiccedilatildeo sobretudo atraveacutes da praxe conciliar eacute de fundamental importacircncia para a feacute para a doutrina crida e natildeo apenas para a piedade viva ou a caeligremonialia

4 O sentido do Decreto tridentino

Se recapitularmos o que ateacute agora dissemos veremos que no conjunto facilmente se podem reconhecer trecircs diferentes concepccedilotildees teoloacutegicas unidas entre si no texto definitivo do Decreto sobre a Tradiccedilatildeo Unidas mas natildeo equiparadas umas agraves outras Pelo contraacuterio apesar de sua grande diferenccedila foram elas apenas [55] mais ou menos justapostas e de novo por forccedila de uma tendecircncia comum relacionadas entre si

1 A concepccedilatildeo de Cervini que designamos como pneumatoloacutegica Com sua doutrina sobre os trecircs principia fidei insiste ele no caraacuteter dinacircmico do Cristo-evento

43 CT XII 523 LEJAY baseia-se evidentemente em listas de tradiccedilotildees confeccionadas naquele tempo (Cf ECK DRIEDO CANO BOTO NOGAROLA) Cf a este respeito Y CONGAR ldquoTraditions apostoliques non eacutecrites et suffisance de lEscrituresrdquo in Istina 6 (1959) p219-306 e principalmente a paacutegina 289 44 CT V 14 45 CT X 373

presente na Igreja Entende assim a Tradiccedilatildeo primariamente como a realidade espiritual da institutio vitaelig christianaelig

2 A concepccedilatildeo que podemos chamar de cerimonial Esta entende a Tradiccedilatildeo essencialmente como a seacuterie de consuetudines existentes ao lado da feacute como os usus ecclesiaelig que os Reformadores falsamente pretendem abolir como abusus Esta concepccedilatildeo chega a condenar a dignidade e Antiguumlidade apostoacutelica das tradiccedilotildees Sua ideacuteia eacute limitada pelo ad nos usque pervenerunt que inclui possibilidade de variar da parte das tradiccedilotildees donde a necessidade de reduccedilotildees Com os termos pervenire e conservare a recepccedilatildeo por parte da Igreja eacute considerada criteacuterio adicional ao lado da Antiguumlidade

3 A concepccedilatildeo que talvez possamos denominar dogmaacutetica Em oposiccedilatildeo agrave fixidez da ideacuteia de Tradiccedilatildeo reduzida agrave consuetudo salienta esta terceira hipoacutetese a extensatildeo do fenocircmeno Tradiccedilatildeo tambeacutem ao acircmbito da fides

Estas trecircs concepccedilotildees deram forma ao texto do Decreto de tal modo que as suas

linhas mestras derivam de Cervini e todo o texto deve ser entendido agrave luz de suas ideacuteias Contudo em duas passagens isto eacute no pervenerunt e no conservatas haacute influecircncia da segunda concepccedilatildeo enquanto no tum ad fidem tum ad mores haacute influecircncia da terceira

Em face destas trecircs concepccedilotildees das quais na realidade existem diversas variantes que tomadas em conjunto satildeo a expressatildeo das ideacuteias dominantes adotadas aparecem as teses de Bonuccio e de Nacchianti tatildeo postas em evidecircncia por Geiselmann como sentenccedilas contraacuterias De fato o parecer de Bonuccio claramente [56] se opotildee agrave segunda concepccedilatildeo (contra a supervalorizaccedilatildeo das consuetudines natildeo per pietatis affectus) ao passo que Nacchianti se levanta antes contra a terceira posiccedilatildeo e salienta a suficiecircncia da feacute recebida por meio da Escritura46

Seria de notar-se ainda que as concepccedilotildees segunda e terceira tecircm algo em comum Ambas opotildeem agrave visatildeo pneumatoloacutegica de Cervini da salvaccedilatildeo sempre presente uma visatildeo mais historicista relacionada com o prolongamento da salvaccedilatildeo operada uma soacute vez ou seja o ἑφάπαξ Na realidade deve-se dizer que embora de um lado tanto a visatildeo presencial de Cervini como tambeacutem a visatildeo historicista do outro grupo se consideradas isoladamente cada qual de per si sejam perigosas se natildeo insustentaacuteveis 46 Aliaacutes de acordo com uma informaccedilatildeo de Cervini parece que o Bispo de Chioggia finalmente renunciou agrave sua tese da suficiecircncia da Escritura na qual se inclinava a recusar as tradiccedilotildees Na carta de Cervini ao Cardeal Farnese de 27 de fevereiro de 1546 lemos hellip Chioggia che (quasi quasi) voleva dire queste traditioni essere superflue perorando che tutto quello che era necessario alla salute era scritto et allegando etiam S Agostino sopra lultimo capitulo di S Giovanni a questo proposito Pure per non poter negare che molte cose appartenenti almeno alli sacramenti non ci fussero venute ex tra ditione et per consequente che non tutte le cose necessarie alia nostra salute erano scritte poiche ebbe fatte molte distintioni concluse che ancor lui accettava queste ldquoche in la chiesa fusse qualque traditione apostolica non scrittardquo (et con queste parole diceva che se ne facesse il decreto) credo che molti sono restati scandalizati di lui (CT X Nr 315 paacutegs 399 411) Cf tambeacutem CT I 494 nota 9 e 495 nota 2 CT V 18 nota 5 e 19 e nota 1 O mesmo protesto que aparece contra Nacchianti manifesta-se tambeacutem na observaccedilatildeo de Massarelli Este chega a chamar aquele de novarum rerum cupidus (1 494 18) e esclarece que reprehensus est a multis (1 494 22) Diante disto eacute de todo destituiacuteda de creacutedito a importacircncia que Geiselmann lhe atribui mesmo se abstrairmos de outras razotildees jaacute conhecidas sobre as quais natildeo precisamos insistir

de outro lado pelo menos tornam possiacutevel uma exata visatildeo do conjunto devido agrave sua muacutetua confluecircncia e limitaccedilatildeo No texto atual estatildeo presentes embora pouco nitidamente ambos os pontos de vista o elemento presencial e o ἑφάπαξ Conveacutem que entendamos assim o texto de modo a considerarmos [57] ambos estes aspectos como essenciais Consequumlentemente reconheceremos que ambos pertencem constitutivamente agrave realidade da vida cristatilde e portanto tambeacutem agravequela parcela do Cristianismo a que damos o nome de Tradiccedilatildeo Estes dois elementos satildeo a presenccedila do Espiacuterito Santo e o seu nexo com o fato singular da salvaccedilatildeo ocorrido uma soacute vez por todas na histoacuteria dos homens

Assim se acharaacute finalmente a resposta agrave pergunta de corno noacutes devemos entender o parecer do Conciacutelio de Trento A primeira e mais importante conclusatildeo parece-me ser o fato de o Conciacutelio ter visto muito claramente o nexo entre Tradiccedilatildeo e Revelaccedilatildeo A seguir elaborou sempre em consonacircncia com a tradiccedilatildeo patriacutestica e medieval um conceito de Revelaccedilatildeo muito menos material do que o que seraacute adotado mais tarde pela teologia dos tempos modernos Somente assim se deve conceber a ideacuteia da Revelaccedilatildeo do Espiacuterito Santo na Igreja Partindo do ramo nitidamente patriacutestico da teologia medieval tatildeo francamente acolhido no discurso de Cervini deveria ser muito menos categoacuterica a opiniatildeo que coloca o teacutermino da Revelaccedilatildeo na morte do uacuteltimo Apoacutestolo Naturalmente esta questatildeo natildeo pode ser aqui estudada com maiores detalhes A sua soluccedilatildeo como entatildeo se apresentava aos teoacutelogos poderia ser hoje impostada apelando-se para as categorias da teologia atual Segundo esta podemos dizer que a Revelaccedilatildeo estaacute encerrada do ponto de vista de seu princiacutepio material Todavia estaacute e continua presente em sua realidade eficaz Noutros termos a Revelaccedilatildeo tem eacute verdade o seu ἑφάπαξ enquanto ela se realizou num determinado dia na Histoacuteria Entretanto ela tem tambeacutem o seu ldquohojerdquo permanente isto eacute o que foi uma vez por todas realizado na feacute da Igreja permanece sempre vivo e operante Assim a feacute cristatilde natildeo se volta apenas para o passado Abrange tambeacutem o presente e o futuro Eacute verdade que a posterior materializaccedilatildeo historicista da ideacuteia de Revelaccedilatildeo aparece jaacute claramente insinuada nos debates tridentinos corno um fato previsto mas ainda [58] natildeo consumado embora talvez se possa dizer que nos textos conciliares ficou definitivamente consagrada a sua aceitaccedilatildeo

Finalmente acrescentemos ainda que com base nos debates do Conciacutelio podemos estabelecer quatro elementos da ideacuteia de Tradiccedilatildeo 1 O aspecto natildeo-escrito da Revelaccedilatildeo ou do Evangelho contido na Biacuteblia e no coraccedilatildeo dos fieacuteis 2 A palavra do Espiacuterito Santo no decorrer de todo o tempo da Igreja

3 A atividade da Igreja nos Conciacutelios 4 A Tradiccedilatildeo lituacutergica e a da vida da Igreja em geral Nestes quatro elementos

que se deve ter sob os olhos pois formam o fundo ideoloacutegico do Decreto expressa-se a realidade uacutenica do tempo presente da Igreja cristatilde Nele estaacute presente todo o passado poacutes-apostoacutelico da Igreja (inclusive o proacuteprio tempo dos apoacutestolos) de modo que toda a sua vida eacute na Sagrada Escritura um elemento central embora natildeo o uacutenico Em suma deve ter ficado claro que o Conciacutelio de Trento a despeito do caraacuteter contrastante e fixo de sua ideacuteia de Revelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeo oferece uma visatildeo muito mais rica destes conceitos do que a que impregnou a mentalidade dos seacuteculos seguintes Justamente por

isso a teologia de hoje pode retirar daiacute novos subsiacutedios novo apoio para suas pesquisas e novas indicaccedilotildees sobre o verdadeiro caminho a seguir

Quadro sinoacutetico do Decreto tridentino sobre a Tradiccedilatildeo

Primeiro princiacutepio conforme Cervini (AT = Escritura)

Sacrosancta œcumenica et generalis Tridentina Synodus in Spiritu Sancto legitime congregata [] hoc sibi perpetuo ante oculos proponens ut sublatis erroribus puritas ipsa EVANGELII in Ecclesia conservetur quod PROMISSUM ANTE PER PROPHETAS IN SCRIPTURIS SANCTIS

Segundo princiacutepio conforme Cervini o Evangelho em parte escrito em parte insculpido nos coraccedilotildees

[59] DOMINUS NOSTER IESUS CHRISTUS DEI FILIUS PROPRIO ORE PRIMUM PROMULGAVIT DEINDE PER SUOS APOSTOLOS TAMQUAM FONTEM OMNIS ET SALUTARIS VERITATIS ET MORUM DISCIPLINAE OMNI CREATURAE PRAEDICARI IUSSIT PERSPICIENSQUE HANC VERITATEM ET DISCIPLINAM CONTINERI IN LIBRIS SCRIPTIS ET SINE SCRIPTO TRADITIONIBUS QUAE AB IPSIUS CHRISTI ORE AB APOSTOLIS ACCEPTAE AUT AB IPSIS APOSTOLIS SPIRITU SANCTO DICTANTE

Seripando Cervini e outros soacute consideram as tradiccedilotildees recebidas pela Igrej (ldquoad nos usquerdquo)

quasi per manus traditae ad nos usque pervenerunt

orthodoxorum Patrum exempla secuta omnes libros tam Veteris quam Novi Testamenti cum utriusque unus Deus sit auctor nec non TRADITIONES IPSAS

Lejay Tradiccedilatildeo contendo natildeo soacute a ldquoconsuetudordquo mas relacionada tambeacutem com a ldquofidesrdquo (foacutermula conciliar)

tum ad fidem tum ad mores pertinentes

Terceiro princiacutepio de Cernini Depois da Ascenccedilatildeo de Cristo o Espiacuterito Santo ensina tambeacutem os misteacuterios de Deus

TAMQUAM VEL ORETENUS A CHRISTO VEL A SPIRITU SANCTO DICTATAS

Seripando Cervini etc soacute satildeo consideradas as coisas recebidas pela Igreja (como acima)

et continua successione in Ecclesia catholica conservatas

Cervini Escritura e Tradiccedilatildeo procedem ambas do mesmo Espiacuterito Santo

pari pietatis affectu ac reverentia suscipit ac veneratur

  • Prefaacutecio
  • SEGUNDA PARTE
  • Explicaccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo
  • segundo o Decreto do Conciacutelio de Trento
Page 31: Revelacao e Tradicao-Joseph Ratzinger (Bom Ler)

Conciacutelio como tradere encontra-se ainda nas declaraccedilotildees sobre o Sacramento da Extrema-Unccedilatildeo (Denz 910)

Finalmente a triacuteplice divisatildeo deixa-se insinuar nas entrelinhas do Decreto sobre a Tradiccedilatildeo embora obscurecida e diluiacuteda por uma seacuterie de acreacutescimos e citaccedilotildees a ele adicionados por outros motivos O Decreto da Tradiccedilatildeo com efeito [47]

1) Fala do Evangelho prometido pelos Profetas na Escritura e refere-se a esta em sentido estrito quer antes quer depois do Antigo Testamento

2) Fala da promulgaccedilatildeo por Cristo do Evangelho que foi transmitido pelos Apoacutestolos sob dupla forma oral e escrita Desta maneira o que natildeo ocorre no exemplo de Cervini aparece aqui antes de tudo o componente pneumatoloacutegico unido com o componente apostoacutelico a ponto de se distinguirem duas modalidades de Tradiccedilatildeo apostoacutelica a que remonta a Cristo e a que remonta ao envio do Espiacuterito Santo Pode-se assim estabelecer que em oposiccedilatildeo ao esquema de Cervini haacute um certo processo de historicizaccedilatildeo que salienta a relaccedilatildeo com o comeccedilo histoacuterico e igualmente parece deslocar o acento da tradiccedilatildeo real para a verbal

3) No epiacutelogo desta parte do Decreto da Tradiccedilatildeo que vimos analisando de novo eacute considerada a ideacuteia da Sagrada Escritura O conceito de Tradiccedilatildeo eacute entatildeo formulado em definitivo e descrito como vel oretenus a Christo vel a Spiritu Sancto dictatas et continua successione in Ecclesia catholica conservatas A referecircncia aos Apoacutestolos eacute omitida Pode-se na verdade considerar tudo isto como uma volta ao que foi dito antes Evidentemente a tradiccedilatildeo ditada pelos Apoacutestolos eacute citada de novo (A expressatildeo continua successione insinua-o) Contudo permanece sempre ainda certa indeterminaccedilatildeo ficando aberta a possibilidade de se encontrar aqui o vestiacutegio do terceiro componente de Cervini o princiacutepio pneumaacutetico propriamente dito Eacute tambeacutem claro que esta ideacuteia eacute discreta sendo adotada uma posiccedilatildeo mais acentuadamente histoacuterica Se agora lanccedilarmos os olhos sobre o que vimos considerando ateacute aqui surgiratildeo

inevitavelmente perguntas qual eacute realmente o sentido proacuteprio da concepccedilatildeo pneumatoloacutegica Como poderia ser perfeitamente entendida a ideacuteia a noacutes estranha de uma revelatio prolongada no tempo em face da unicidade e do caraacuteter [48] histoacuterico da Revelaccedilatildeo que evidentemente era conhecido tanto de Cervini quanto dos Santos Padres e teoacutelogos medievais33

Antes de examinarmos isto devemos esclarecer rapidamente os principais motivos que inspiraram o Decreto tridentino sobre a Escritura e a Tradiccedilatildeo deixando nele um tanto encoberta a concepccedilatildeo pessoal de Cervini Que opiniotildees de teoacutelogos teratildeo intervindo aqui chegando a ser em parte impressas no texto definitivo que resultou do cotejo de muitos pronunciamentos diversos Uma exposiccedilatildeo detalhada deste ponto exorbitaria do acircmbito de nossa anaacutelise Contentemo-nos com umas poucas observaccedilotildees sumaacuterias 33 Sobre este assunto tentei fazer um breve comentaacuterio no meu trabalho ldquoOffenbarung-Schrift-Uberlieferungrdquo in TThZ 67 (1958) p13-27 Cf J BEUMER ldquoDer theoretische Beitrag der Frnhscholastik zum Problem des Dogmenfortschrittsrdquo in ZkTh 72 (1952) p205-226 J de CHELLINCK Pour lrsquohistoire du mot ldquorevelarerdquo in RSR 6 (1916) p149-157

2 Relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a vida da Igreja

em diversas passagens do debate tridentino

Uma primeira seacuterie de motivos entre os quais se compreendem diversos pronunciamentos agraves vezes muito contrastantes em seu aparato exterior patenteia-se na ideacuteia de tradiccedilotildees expressa no Decreto de duas maneiras a) - per manus traditaelig ad nos usque pervenerunt b) - continua successione in Ecclesia catholico conservatas

O que se ocultaraacute sob estas duas foacutermulas que o historiador de hoje tem dificuldades em aceitar justamente por causa do historicismo nelas impliacutecito Podemos dizer que um decisivo papel exerceu aqui o pensamento que sempre aparecia nos debates a saber que as tradiccedilotildees satildeo variaacuteveis que muitas delas foram abolidas pelos Apoacutestolos e que por outro lado se [49] introduziram tradiccedilotildees eclesiaacutesticas que natildeo mais seriam abolidas34 Esta ideacuteia de Tradiccedilatildeo de certo modo se torna clara no tratado escrito sobre o mesmo assunto por Seripando para uso dos Padres Conciliares Seripando fala das Tradiccedilotildees escritas inseridas na Escritura como as claacuteusulas de Tiago o costume de as mulheres se cobrirem com um veacuteu a legislaccedilatildeo sobre o matrimocircnio contida em 1Cor 7 etc E o autor adverte que estas praacuteticas foram abolidas Isto porque embora associadas agrave palavra de Deus na Escritura dela ldquomuito diferemrdquo pois a palavra divina [50] de modo nenhum poderia ser abolida A estas tradiccedilotildees

34 Cabe aqui aduzir uma nova intervenccedilatildeo de Cervini datada de 26 de fevereiro de 1546 (CT I 33 e V 18) onde ele diz que nem todas as tradiccedilotildees procedentes dos Apoacutestolos devem ser conservadas mas somente as que ab Ecclesia receptaelig ad nos usque pervenerunt (V 18) Esta afirmaccedilatildeo anterior agrave formulaccedilatildeo dogmaacutetica feita pelo Concilio deve igualmente ser tida na conta de um autecircntico comentaacuterio do Decreto Aiacute se acentua como condiccedilatildeo essencial das tradiccedilotildees a receptio ecclesiaelig Vem ainda referida uma intervenccedilatildeo do Bispo de Bertinoro em data de 23 de marccedilo (I p 523) na qual ele sublinha que as tradiccedilotildees escritas por vezes foram mudadas Jaacute entre as natildeo-escritas umas foram mudadas e outras natildeo como por exemplo o rito de adicionar aacutegua ao vinho a Crisma a confissatildeo auricular O Bispo de Bertinoro acrescenta que por outro lado alguns pontos existem que permaneceram inteiramente inalterados tais como a crenccedila no descensus ad inferos na virgindade perpeacutetua de Maria a substituiccedilatildeo da observacircncia do saacutebado pela do domingo Temos depois um pronunciamento do Bispo de Bitonto datado de 27 de marccedilo (I 39) Este bispo era de parecer que algumas coisas foram transmitidas pelos Apoacutestolos com a finalidade de serem perpetuamente conservadas (como pertencentes ao depoacutesito da feacute) outras caiacuteram em desuso (como as claacuteusulas de Tiago) e outras enfim foram apenas aconselhadas Assim mesmo na Escritura algumas coisas haacute que foram escritas mas natildeo recebidas em uso por serem mateacuteria de mero conselho Por exemplo ldquose algueacutem te pedir a tuacutenica daacute-lhe tambeacutem o paacutelio se algueacutem te esbofetear numa face oferece-lhe tambeacutem a outrardquo Sem duacutevida excelente ilustraccedilatildeo do sermatildeo da montanha Finalmente consideraccedilotildees idecircnticas podemos encontrar na obra citada de LEJAY Eis outra amostra tirada do discurso de 23 de fevereiro (CT V 13) Nam illaelig (scil traditiones) quaelig ad fidem pertinent eadem sunt recipiendaelig auctoritate qua recipitur evangelium alia autem non ita eum earum plurimaelig immutataelig fuerint ut de bigamis de esu sanguinis et similia De modo semelhante aliaacutes fala tambeacutem Bonuccio (I 525 a 23 de marccedilo de 1546 ecclesia traditiones apostolorum quandoque mutavit verbum autem Dei nunquam mutavit neque mutare potest

Seripando opotildee as natildeo referidas na Biacuteblia e que ora satildeo apostoacutelicas ou oriundas de Conciacutelios universais e aceitas por toda a Igreja ora satildeo particulares e muito variaacuteveis35

Este texto nos leva a uma surpreendente conclusatildeo para Seripando e muitos outros Padres tridentinos36existem tradiccedilotildees na Escritura ldquoTradiccedilatildeordquo natildeo significa o natildeo-escrito Existe quer dentro da Escritura quer fora dela Isto nos conduz a outra pergunta em que consiste para os referidos Padres a essecircncia da tradiccedilatildeo se o que a constitui natildeo eacute o fato de natildeo ser escrita37 Em outros termos como pode a tradiccedilatildeo ser definida positivamente se ela natildeo pode ser suficientemente determinada pela ideacuteia negativa de algo natildeo-escrito

Haacute uma seacuterie de respostas para esta pergunta O proacuteprio Seripando daacute a seguinte definiccedilatildeo Traditiones hoc est Apostolorum seu sanctorum Patrum sanctae et salutares constitutiones38 Mais clara ainda eacute a afirmaccedilatildeo de Cervini citada por Massarelli A objeccedilatildeo do Bispo de Chioggia que aduzia a opiniatildeo de Agostinho de que tudo o que eacute necessaacuterio para a salvaccedilatildeo estava escrito na Biacuteblia respondia Cervini da seguinte maneira Verba illa (isto eacute de Santo Agostinho) formaliter intelligi debent scilicet ad fidem accipiendam ut salvi fiamus Quo vero ad mores et christianam vitam instituendam certo non omnia scripta sunt

[51] E de novo recorre agraves provas tiradas de Jo 1526 e 1426 E indica o princiacutepio pneumatoloacutegico39 O que eacute mais importante eacute que a Tradiccedilatildeo se refere agrave institutio vitaelig agrave presenccedila atuante da Palavra revelada na existecircncia cristatilde Tradiccedilatildeo eacute noutros termos a eficaacutecia da palavra de Deus Sem ela a palavra ficaria esteacuteril 35 Seripando De traditionibus (fevereiro ou marccedilo de 1546) CT XII p517-521 e principalmente a p 521 As expressotildees desta uacuteltima paacutegina chocam-se com a ideacuteia de Cervini sobre a receptio ecclesiaelig 36 Cf o texto citado na nota 11 37 No texto definitivo do Decreto esta ideacuteia natildeo aparece mais Aqui poreacutem com esta primeira designaccedilatildeo expliacutecita da Tradiccedilatildeo vem expressamente acentuado o contraste entre in libris scriptis et sine scripto traditionibus Na segunda redaccedilatildeo o sentido expliacutecito da palavra Tradiccedilatildeo natildeo eacute tatildeo exclusivo Contudo apresenta igual matiz ao se confrontarem as expressotildees omnes libroshellipnec non traditiones ipsas Portanto a ideacuteia positiva da Tradiccedilatildeo que serve de base a esta anaacutelise natildeo deixou de influenciar na redaccedilatildeo do Decreto 38 CT XII 517 39 CT I 494 (26 de fevereiro de 1546) A citada palavra de Santo Agostinho teve o seu papel a desempenhar na discussatildeo em curso Seripando por exemplo a ela se referiu (De traditionibus CT XII 521 47-53) Pensandum denique ne in traditionibus externis vera religio et salutis spes statuatur de quibus Augustinus Omnia quaelig pertinent ad veram religionem quaeligrendam et tenendam divina Scriptura non acuit Conceda-se que nem tudo foi escrito (veja-se Jo 2125) Todavia electa sunt autem quaelig scriberentur quaelig saluti credentium sufficere videbantur Mais do que nos debates do tridentino encontramos aqui um verdadeiro postulado dos Reformadores ldquonatildeo adotar costumes exteriores mas buscar os meios definitivos de salvaccedilatildeo na palavra da Escriturardquo A ldquosuficiecircnciardquo da Escritura de que aqui se fala eacute na verdade algo diverso da suficiecircncia material da mesma Escritura defendida por Geiselmann em sentido muito mais radical Infelizmente ainda natildeo se quis levar na devida consideraccedilatildeo o texto de Santo Agostinho (CT I 494 sugere De doctrina christiana II 9 e De pecc mero et rem II 59) Muito apropriadas nesta ordem de ideacuteias satildeo as observaccedilotildees de H SCHAUF ldquoSchrift und Traditionrdquo in Antonianum 39 (1964) p200-209 feitas no chamado Encontro de Duumlsseldorf Nos textos citados por Schauf com base em Agostinho eacute afirmada a suficiecircncia da Escritura para a salvaccedilatildeo Eacute contudo contestada a sua suficiecircncia para a Igreja em geral De fato esta alternativa parece muito mais vaacutelida e fundamental agrave luz dos postulados dos Reformadores do que a alternativa entre a suficiecircncia ou insuficiecircncia material da Escritura

Na mesma linha de ideacuteias seguem-se duas outras seacuteries de pronunciamentos Vimos na introduccedilatildeo agrave parte anterior que a discussatildeo dogmaacutetica da ideacuteia de

Tradiccedilatildeo foi em parte prejudicada pela questatildeo do meacutetodo a seguir no Conciacutelio dever-se-ia abordar primeiro a reformatio a reforma praacutetica da Igreja como queria o ldquoKaiserrdquo Ou primeiro discutir a questatildeo dogmaacutetica como preferia o Papa40

[52] Este problema do meacutetodo embora resolvido no debate que entatildeo surgiu natildeo afetou diretamente a questatildeo da Tradiccedilatildeo como tal Mas como de fato estas duas questotildees ficaram ligadas entre si daiacute resultou que muitos oradores transformaram a questatildeo do meacutetodo (se se deveria falar dos abusos ou da Tradiccedilatildeo) em parte de sua argumentaccedilatildeo em torno do assunto em pauta41 O problema abusus e o problema Traditio ficaram de tal maneira associados na ocasiatildeo que pareciam formar no fundo um soacute assunto Por isso os oradores ora falavam em sentido positivo ora se pronunciavam em sentido negativo Isto correspondia tambeacutem ao propoacutesito reformista do Conciacutelio as traditiones representavam os abusus aos quais a Igreja se opunha Os Padres estavam cocircnscios de que condenar as traditiones era condenar Os usus ecclesiaelig o modo como a Igreja vivia a sua vida naquela eacutepoca

A outra seacuterie de pronunciamentos que se inclinavam ao mesmo sentido encontramo-la nas proposiccedilotildees que a auctoritas da Igreja apresenta como definitivas indicando uma iacutentima relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a institutio christiana 42

[53] Podemos agora retomar ao nosso ponto de partida e dar resposta agrave pergunta que propriamente significa a foacutermula ad nos usque pervenerunt Objetivamente natildeo se trata aqui de um historicismo que a foacutermula parece expressar Ao contraacuterio Trata-se da fidelidade perseverante da Igreja agrave institutio vitaelig christianaelig da legiacutetima forma de vida cristatilde em concreto no tempo presente da Igreja da institutio christiana que coloca a Escritura em primeiro lugar e que como tal isto eacute como vida decorrente da Escritura eacute fundamentalmente apostoacutelica embora tambeacutem sujeita a mudanccedilas como tudo o que eacute vivo

3 A Tradiccedilatildeo e o dogma eclesiaacutestico

40 Sobre o debate em torno da questatildeo do meacutetodo cf mais uma vez JEDIN op cit p9-82 e outras 41 Assim jaacute no discurso de Cervini antes analisado (CT I 484) no qual ele recorda o dilema do Conciacutelio se nos voltarmos contra as tradiccedilotildees ficaratildeo admirados os Padres Conciliares quasi reformationem fugiamus si ipsam reformationem sumimus iterum objicient traditiones relinquendas non esse Idecircntica era a situaccedilatildeo em que se encontrava o Bispo de Astorga nas duas intervenccedilotildees que fez no dia 23 de fevereiro de 1546 (CT V 13 e 19) segundo Seripando (I 484) helliptraditiones prius pertractandas consulit tantam enim conformitatem abusus qui ex sacris libris descendunt cum iis qui a traditionibus orti sunt habent ut sacris libris et traditionibus absolutis duo illa abusuum genera simul pertractari valeant Segundo Bonuccio (I 484) antes de tudo dever-se-ia tratar das Sagradas Escrituras dos cacircnones apostoacutelicos dos Conciacutelios gerais e das decretais pontifiacutecias Hisque ilusceptis ad abusus ex eisdem dependentes devenire 42 Assim principalmente de acordo com Afonso de Castro (CT I 484) Quoniam ultra traditiones apostolicas ecclesiae auctoritatem habemus quaelig ecclesiaelig auctoritas tonta apud nos est ut aliqui eam maioris roboris quam sacros libros esse sentiant Cf igualmente CT I 491 45 Na mesma linha pode-se ver uma seacuterie de pronunciamentos na citada obra de LEJAY Cf CT XII 524 (Tratado De traditionibus ecclesiaelig fevereiro ou marccedilo de 1546)

Uma segunda seacuterie de motivos eacute expressa no Decreto pela foacutermula traditiones tum ad fidem tum ad mores pertinentes Se como vimos a ideacuteia de Tradiccedilatildeo aparece muito limitada naquilo que os Padres conciliares chamam consuetudines observationes institutiones por outro lado o Procurador do Cardeal de Augsburgo Claudio Lejay SJ se fez o porta-voz de uma expressatildeo que em oposiccedilatildeo agraves traditiones caeligremoniales estabeleceu justamente o sentido da tradiccedilatildeo contida na feacute Seu tratado sobre a Tradiccedilatildeo composto para uso dos Padres conciliares inclui tambeacutem a foacutermula que foi adotada pelo Conciacutelio Aiacute se diz Denique multas veritates tum ad fidem tum ad mores pertinentes Ecclesia novit quas Scriptura aperte et expresse non continet Ele cita como exemplos as palavras persona essentia trinitas no Tratado da Santiacutessima Trindade consubstantialitas na Cristologia do Logos duas naturezas uma soacute Pessoa referentes ao dogma definido pelo Conciacutelio de Calcedocircnia E ainda Cristo Filho uacutenico de Maria duas vontades na uacutenica Pessoa de Cristo uma alma racional aleacutem do espiacuterito divino em Cristo Ana matildee de Maria o costume de fazer sinais da cruz a santificaccedilatildeo do domingo a maneira de rezar com face voltada [54] para o Oriente tudo isto ideacuteias e fatos da tradiccedilatildeo conciliar e da piedade cristatilde43

Cervini que aprovou o discurso de Lejay de 23 de fevereiro de 154644 pocircde dificilmente conciliar esta posiccedilatildeo com a sua expressa na jaacute citada carta ao Cardeal Farnese onde como vimos ele diz que o Espiacuterito Santo falou na Igreja e depois da Ascensatildeo do Senhor fala ainda maxime medianti i concilii45 Ele aiacute viu publicamente sublinhado o fato de que aquele ldquomaisrdquo que a Igreja viva representa em relaccedilatildeo agrave palavra meramente escrita natildeo se referia e natildeo se refere apenas agrave vita instituenda ou como ele prefere agrave caeligremonialia Refere-se tambeacutem agrave essentialia fidei que antes de tudo plenamente se expressam na Tradiccedilatildeo Tambeacutem aqui como se vecirc o interesse dominante natildeo estaacute na apresentaccedilatildeo historicista do assunto a partir do iniacutecio da Igreja mas na ideacuteia de que a influecircncia da Tradiccedilatildeo sobretudo atraveacutes da praxe conciliar eacute de fundamental importacircncia para a feacute para a doutrina crida e natildeo apenas para a piedade viva ou a caeligremonialia

4 O sentido do Decreto tridentino

Se recapitularmos o que ateacute agora dissemos veremos que no conjunto facilmente se podem reconhecer trecircs diferentes concepccedilotildees teoloacutegicas unidas entre si no texto definitivo do Decreto sobre a Tradiccedilatildeo Unidas mas natildeo equiparadas umas agraves outras Pelo contraacuterio apesar de sua grande diferenccedila foram elas apenas [55] mais ou menos justapostas e de novo por forccedila de uma tendecircncia comum relacionadas entre si

1 A concepccedilatildeo de Cervini que designamos como pneumatoloacutegica Com sua doutrina sobre os trecircs principia fidei insiste ele no caraacuteter dinacircmico do Cristo-evento

43 CT XII 523 LEJAY baseia-se evidentemente em listas de tradiccedilotildees confeccionadas naquele tempo (Cf ECK DRIEDO CANO BOTO NOGAROLA) Cf a este respeito Y CONGAR ldquoTraditions apostoliques non eacutecrites et suffisance de lEscrituresrdquo in Istina 6 (1959) p219-306 e principalmente a paacutegina 289 44 CT V 14 45 CT X 373

presente na Igreja Entende assim a Tradiccedilatildeo primariamente como a realidade espiritual da institutio vitaelig christianaelig

2 A concepccedilatildeo que podemos chamar de cerimonial Esta entende a Tradiccedilatildeo essencialmente como a seacuterie de consuetudines existentes ao lado da feacute como os usus ecclesiaelig que os Reformadores falsamente pretendem abolir como abusus Esta concepccedilatildeo chega a condenar a dignidade e Antiguumlidade apostoacutelica das tradiccedilotildees Sua ideacuteia eacute limitada pelo ad nos usque pervenerunt que inclui possibilidade de variar da parte das tradiccedilotildees donde a necessidade de reduccedilotildees Com os termos pervenire e conservare a recepccedilatildeo por parte da Igreja eacute considerada criteacuterio adicional ao lado da Antiguumlidade

3 A concepccedilatildeo que talvez possamos denominar dogmaacutetica Em oposiccedilatildeo agrave fixidez da ideacuteia de Tradiccedilatildeo reduzida agrave consuetudo salienta esta terceira hipoacutetese a extensatildeo do fenocircmeno Tradiccedilatildeo tambeacutem ao acircmbito da fides

Estas trecircs concepccedilotildees deram forma ao texto do Decreto de tal modo que as suas

linhas mestras derivam de Cervini e todo o texto deve ser entendido agrave luz de suas ideacuteias Contudo em duas passagens isto eacute no pervenerunt e no conservatas haacute influecircncia da segunda concepccedilatildeo enquanto no tum ad fidem tum ad mores haacute influecircncia da terceira

Em face destas trecircs concepccedilotildees das quais na realidade existem diversas variantes que tomadas em conjunto satildeo a expressatildeo das ideacuteias dominantes adotadas aparecem as teses de Bonuccio e de Nacchianti tatildeo postas em evidecircncia por Geiselmann como sentenccedilas contraacuterias De fato o parecer de Bonuccio claramente [56] se opotildee agrave segunda concepccedilatildeo (contra a supervalorizaccedilatildeo das consuetudines natildeo per pietatis affectus) ao passo que Nacchianti se levanta antes contra a terceira posiccedilatildeo e salienta a suficiecircncia da feacute recebida por meio da Escritura46

Seria de notar-se ainda que as concepccedilotildees segunda e terceira tecircm algo em comum Ambas opotildeem agrave visatildeo pneumatoloacutegica de Cervini da salvaccedilatildeo sempre presente uma visatildeo mais historicista relacionada com o prolongamento da salvaccedilatildeo operada uma soacute vez ou seja o ἑφάπαξ Na realidade deve-se dizer que embora de um lado tanto a visatildeo presencial de Cervini como tambeacutem a visatildeo historicista do outro grupo se consideradas isoladamente cada qual de per si sejam perigosas se natildeo insustentaacuteveis 46 Aliaacutes de acordo com uma informaccedilatildeo de Cervini parece que o Bispo de Chioggia finalmente renunciou agrave sua tese da suficiecircncia da Escritura na qual se inclinava a recusar as tradiccedilotildees Na carta de Cervini ao Cardeal Farnese de 27 de fevereiro de 1546 lemos hellip Chioggia che (quasi quasi) voleva dire queste traditioni essere superflue perorando che tutto quello che era necessario alla salute era scritto et allegando etiam S Agostino sopra lultimo capitulo di S Giovanni a questo proposito Pure per non poter negare che molte cose appartenenti almeno alli sacramenti non ci fussero venute ex tra ditione et per consequente che non tutte le cose necessarie alia nostra salute erano scritte poiche ebbe fatte molte distintioni concluse che ancor lui accettava queste ldquoche in la chiesa fusse qualque traditione apostolica non scrittardquo (et con queste parole diceva che se ne facesse il decreto) credo che molti sono restati scandalizati di lui (CT X Nr 315 paacutegs 399 411) Cf tambeacutem CT I 494 nota 9 e 495 nota 2 CT V 18 nota 5 e 19 e nota 1 O mesmo protesto que aparece contra Nacchianti manifesta-se tambeacutem na observaccedilatildeo de Massarelli Este chega a chamar aquele de novarum rerum cupidus (1 494 18) e esclarece que reprehensus est a multis (1 494 22) Diante disto eacute de todo destituiacuteda de creacutedito a importacircncia que Geiselmann lhe atribui mesmo se abstrairmos de outras razotildees jaacute conhecidas sobre as quais natildeo precisamos insistir

de outro lado pelo menos tornam possiacutevel uma exata visatildeo do conjunto devido agrave sua muacutetua confluecircncia e limitaccedilatildeo No texto atual estatildeo presentes embora pouco nitidamente ambos os pontos de vista o elemento presencial e o ἑφάπαξ Conveacutem que entendamos assim o texto de modo a considerarmos [57] ambos estes aspectos como essenciais Consequumlentemente reconheceremos que ambos pertencem constitutivamente agrave realidade da vida cristatilde e portanto tambeacutem agravequela parcela do Cristianismo a que damos o nome de Tradiccedilatildeo Estes dois elementos satildeo a presenccedila do Espiacuterito Santo e o seu nexo com o fato singular da salvaccedilatildeo ocorrido uma soacute vez por todas na histoacuteria dos homens

Assim se acharaacute finalmente a resposta agrave pergunta de corno noacutes devemos entender o parecer do Conciacutelio de Trento A primeira e mais importante conclusatildeo parece-me ser o fato de o Conciacutelio ter visto muito claramente o nexo entre Tradiccedilatildeo e Revelaccedilatildeo A seguir elaborou sempre em consonacircncia com a tradiccedilatildeo patriacutestica e medieval um conceito de Revelaccedilatildeo muito menos material do que o que seraacute adotado mais tarde pela teologia dos tempos modernos Somente assim se deve conceber a ideacuteia da Revelaccedilatildeo do Espiacuterito Santo na Igreja Partindo do ramo nitidamente patriacutestico da teologia medieval tatildeo francamente acolhido no discurso de Cervini deveria ser muito menos categoacuterica a opiniatildeo que coloca o teacutermino da Revelaccedilatildeo na morte do uacuteltimo Apoacutestolo Naturalmente esta questatildeo natildeo pode ser aqui estudada com maiores detalhes A sua soluccedilatildeo como entatildeo se apresentava aos teoacutelogos poderia ser hoje impostada apelando-se para as categorias da teologia atual Segundo esta podemos dizer que a Revelaccedilatildeo estaacute encerrada do ponto de vista de seu princiacutepio material Todavia estaacute e continua presente em sua realidade eficaz Noutros termos a Revelaccedilatildeo tem eacute verdade o seu ἑφάπαξ enquanto ela se realizou num determinado dia na Histoacuteria Entretanto ela tem tambeacutem o seu ldquohojerdquo permanente isto eacute o que foi uma vez por todas realizado na feacute da Igreja permanece sempre vivo e operante Assim a feacute cristatilde natildeo se volta apenas para o passado Abrange tambeacutem o presente e o futuro Eacute verdade que a posterior materializaccedilatildeo historicista da ideacuteia de Revelaccedilatildeo aparece jaacute claramente insinuada nos debates tridentinos corno um fato previsto mas ainda [58] natildeo consumado embora talvez se possa dizer que nos textos conciliares ficou definitivamente consagrada a sua aceitaccedilatildeo

Finalmente acrescentemos ainda que com base nos debates do Conciacutelio podemos estabelecer quatro elementos da ideacuteia de Tradiccedilatildeo 1 O aspecto natildeo-escrito da Revelaccedilatildeo ou do Evangelho contido na Biacuteblia e no coraccedilatildeo dos fieacuteis 2 A palavra do Espiacuterito Santo no decorrer de todo o tempo da Igreja

3 A atividade da Igreja nos Conciacutelios 4 A Tradiccedilatildeo lituacutergica e a da vida da Igreja em geral Nestes quatro elementos

que se deve ter sob os olhos pois formam o fundo ideoloacutegico do Decreto expressa-se a realidade uacutenica do tempo presente da Igreja cristatilde Nele estaacute presente todo o passado poacutes-apostoacutelico da Igreja (inclusive o proacuteprio tempo dos apoacutestolos) de modo que toda a sua vida eacute na Sagrada Escritura um elemento central embora natildeo o uacutenico Em suma deve ter ficado claro que o Conciacutelio de Trento a despeito do caraacuteter contrastante e fixo de sua ideacuteia de Revelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeo oferece uma visatildeo muito mais rica destes conceitos do que a que impregnou a mentalidade dos seacuteculos seguintes Justamente por

isso a teologia de hoje pode retirar daiacute novos subsiacutedios novo apoio para suas pesquisas e novas indicaccedilotildees sobre o verdadeiro caminho a seguir

Quadro sinoacutetico do Decreto tridentino sobre a Tradiccedilatildeo

Primeiro princiacutepio conforme Cervini (AT = Escritura)

Sacrosancta œcumenica et generalis Tridentina Synodus in Spiritu Sancto legitime congregata [] hoc sibi perpetuo ante oculos proponens ut sublatis erroribus puritas ipsa EVANGELII in Ecclesia conservetur quod PROMISSUM ANTE PER PROPHETAS IN SCRIPTURIS SANCTIS

Segundo princiacutepio conforme Cervini o Evangelho em parte escrito em parte insculpido nos coraccedilotildees

[59] DOMINUS NOSTER IESUS CHRISTUS DEI FILIUS PROPRIO ORE PRIMUM PROMULGAVIT DEINDE PER SUOS APOSTOLOS TAMQUAM FONTEM OMNIS ET SALUTARIS VERITATIS ET MORUM DISCIPLINAE OMNI CREATURAE PRAEDICARI IUSSIT PERSPICIENSQUE HANC VERITATEM ET DISCIPLINAM CONTINERI IN LIBRIS SCRIPTIS ET SINE SCRIPTO TRADITIONIBUS QUAE AB IPSIUS CHRISTI ORE AB APOSTOLIS ACCEPTAE AUT AB IPSIS APOSTOLIS SPIRITU SANCTO DICTANTE

Seripando Cervini e outros soacute consideram as tradiccedilotildees recebidas pela Igrej (ldquoad nos usquerdquo)

quasi per manus traditae ad nos usque pervenerunt

orthodoxorum Patrum exempla secuta omnes libros tam Veteris quam Novi Testamenti cum utriusque unus Deus sit auctor nec non TRADITIONES IPSAS

Lejay Tradiccedilatildeo contendo natildeo soacute a ldquoconsuetudordquo mas relacionada tambeacutem com a ldquofidesrdquo (foacutermula conciliar)

tum ad fidem tum ad mores pertinentes

Terceiro princiacutepio de Cernini Depois da Ascenccedilatildeo de Cristo o Espiacuterito Santo ensina tambeacutem os misteacuterios de Deus

TAMQUAM VEL ORETENUS A CHRISTO VEL A SPIRITU SANCTO DICTATAS

Seripando Cervini etc soacute satildeo consideradas as coisas recebidas pela Igreja (como acima)

et continua successione in Ecclesia catholica conservatas

Cervini Escritura e Tradiccedilatildeo procedem ambas do mesmo Espiacuterito Santo

pari pietatis affectu ac reverentia suscipit ac veneratur

  • Prefaacutecio
  • SEGUNDA PARTE
  • Explicaccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo
  • segundo o Decreto do Conciacutelio de Trento
Page 32: Revelacao e Tradicao-Joseph Ratzinger (Bom Ler)

2 Relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a vida da Igreja

em diversas passagens do debate tridentino

Uma primeira seacuterie de motivos entre os quais se compreendem diversos pronunciamentos agraves vezes muito contrastantes em seu aparato exterior patenteia-se na ideacuteia de tradiccedilotildees expressa no Decreto de duas maneiras a) - per manus traditaelig ad nos usque pervenerunt b) - continua successione in Ecclesia catholico conservatas

O que se ocultaraacute sob estas duas foacutermulas que o historiador de hoje tem dificuldades em aceitar justamente por causa do historicismo nelas impliacutecito Podemos dizer que um decisivo papel exerceu aqui o pensamento que sempre aparecia nos debates a saber que as tradiccedilotildees satildeo variaacuteveis que muitas delas foram abolidas pelos Apoacutestolos e que por outro lado se [49] introduziram tradiccedilotildees eclesiaacutesticas que natildeo mais seriam abolidas34 Esta ideacuteia de Tradiccedilatildeo de certo modo se torna clara no tratado escrito sobre o mesmo assunto por Seripando para uso dos Padres Conciliares Seripando fala das Tradiccedilotildees escritas inseridas na Escritura como as claacuteusulas de Tiago o costume de as mulheres se cobrirem com um veacuteu a legislaccedilatildeo sobre o matrimocircnio contida em 1Cor 7 etc E o autor adverte que estas praacuteticas foram abolidas Isto porque embora associadas agrave palavra de Deus na Escritura dela ldquomuito diferemrdquo pois a palavra divina [50] de modo nenhum poderia ser abolida A estas tradiccedilotildees

34 Cabe aqui aduzir uma nova intervenccedilatildeo de Cervini datada de 26 de fevereiro de 1546 (CT I 33 e V 18) onde ele diz que nem todas as tradiccedilotildees procedentes dos Apoacutestolos devem ser conservadas mas somente as que ab Ecclesia receptaelig ad nos usque pervenerunt (V 18) Esta afirmaccedilatildeo anterior agrave formulaccedilatildeo dogmaacutetica feita pelo Concilio deve igualmente ser tida na conta de um autecircntico comentaacuterio do Decreto Aiacute se acentua como condiccedilatildeo essencial das tradiccedilotildees a receptio ecclesiaelig Vem ainda referida uma intervenccedilatildeo do Bispo de Bertinoro em data de 23 de marccedilo (I p 523) na qual ele sublinha que as tradiccedilotildees escritas por vezes foram mudadas Jaacute entre as natildeo-escritas umas foram mudadas e outras natildeo como por exemplo o rito de adicionar aacutegua ao vinho a Crisma a confissatildeo auricular O Bispo de Bertinoro acrescenta que por outro lado alguns pontos existem que permaneceram inteiramente inalterados tais como a crenccedila no descensus ad inferos na virgindade perpeacutetua de Maria a substituiccedilatildeo da observacircncia do saacutebado pela do domingo Temos depois um pronunciamento do Bispo de Bitonto datado de 27 de marccedilo (I 39) Este bispo era de parecer que algumas coisas foram transmitidas pelos Apoacutestolos com a finalidade de serem perpetuamente conservadas (como pertencentes ao depoacutesito da feacute) outras caiacuteram em desuso (como as claacuteusulas de Tiago) e outras enfim foram apenas aconselhadas Assim mesmo na Escritura algumas coisas haacute que foram escritas mas natildeo recebidas em uso por serem mateacuteria de mero conselho Por exemplo ldquose algueacutem te pedir a tuacutenica daacute-lhe tambeacutem o paacutelio se algueacutem te esbofetear numa face oferece-lhe tambeacutem a outrardquo Sem duacutevida excelente ilustraccedilatildeo do sermatildeo da montanha Finalmente consideraccedilotildees idecircnticas podemos encontrar na obra citada de LEJAY Eis outra amostra tirada do discurso de 23 de fevereiro (CT V 13) Nam illaelig (scil traditiones) quaelig ad fidem pertinent eadem sunt recipiendaelig auctoritate qua recipitur evangelium alia autem non ita eum earum plurimaelig immutataelig fuerint ut de bigamis de esu sanguinis et similia De modo semelhante aliaacutes fala tambeacutem Bonuccio (I 525 a 23 de marccedilo de 1546 ecclesia traditiones apostolorum quandoque mutavit verbum autem Dei nunquam mutavit neque mutare potest

Seripando opotildee as natildeo referidas na Biacuteblia e que ora satildeo apostoacutelicas ou oriundas de Conciacutelios universais e aceitas por toda a Igreja ora satildeo particulares e muito variaacuteveis35

Este texto nos leva a uma surpreendente conclusatildeo para Seripando e muitos outros Padres tridentinos36existem tradiccedilotildees na Escritura ldquoTradiccedilatildeordquo natildeo significa o natildeo-escrito Existe quer dentro da Escritura quer fora dela Isto nos conduz a outra pergunta em que consiste para os referidos Padres a essecircncia da tradiccedilatildeo se o que a constitui natildeo eacute o fato de natildeo ser escrita37 Em outros termos como pode a tradiccedilatildeo ser definida positivamente se ela natildeo pode ser suficientemente determinada pela ideacuteia negativa de algo natildeo-escrito

Haacute uma seacuterie de respostas para esta pergunta O proacuteprio Seripando daacute a seguinte definiccedilatildeo Traditiones hoc est Apostolorum seu sanctorum Patrum sanctae et salutares constitutiones38 Mais clara ainda eacute a afirmaccedilatildeo de Cervini citada por Massarelli A objeccedilatildeo do Bispo de Chioggia que aduzia a opiniatildeo de Agostinho de que tudo o que eacute necessaacuterio para a salvaccedilatildeo estava escrito na Biacuteblia respondia Cervini da seguinte maneira Verba illa (isto eacute de Santo Agostinho) formaliter intelligi debent scilicet ad fidem accipiendam ut salvi fiamus Quo vero ad mores et christianam vitam instituendam certo non omnia scripta sunt

[51] E de novo recorre agraves provas tiradas de Jo 1526 e 1426 E indica o princiacutepio pneumatoloacutegico39 O que eacute mais importante eacute que a Tradiccedilatildeo se refere agrave institutio vitaelig agrave presenccedila atuante da Palavra revelada na existecircncia cristatilde Tradiccedilatildeo eacute noutros termos a eficaacutecia da palavra de Deus Sem ela a palavra ficaria esteacuteril 35 Seripando De traditionibus (fevereiro ou marccedilo de 1546) CT XII p517-521 e principalmente a p 521 As expressotildees desta uacuteltima paacutegina chocam-se com a ideacuteia de Cervini sobre a receptio ecclesiaelig 36 Cf o texto citado na nota 11 37 No texto definitivo do Decreto esta ideacuteia natildeo aparece mais Aqui poreacutem com esta primeira designaccedilatildeo expliacutecita da Tradiccedilatildeo vem expressamente acentuado o contraste entre in libris scriptis et sine scripto traditionibus Na segunda redaccedilatildeo o sentido expliacutecito da palavra Tradiccedilatildeo natildeo eacute tatildeo exclusivo Contudo apresenta igual matiz ao se confrontarem as expressotildees omnes libroshellipnec non traditiones ipsas Portanto a ideacuteia positiva da Tradiccedilatildeo que serve de base a esta anaacutelise natildeo deixou de influenciar na redaccedilatildeo do Decreto 38 CT XII 517 39 CT I 494 (26 de fevereiro de 1546) A citada palavra de Santo Agostinho teve o seu papel a desempenhar na discussatildeo em curso Seripando por exemplo a ela se referiu (De traditionibus CT XII 521 47-53) Pensandum denique ne in traditionibus externis vera religio et salutis spes statuatur de quibus Augustinus Omnia quaelig pertinent ad veram religionem quaeligrendam et tenendam divina Scriptura non acuit Conceda-se que nem tudo foi escrito (veja-se Jo 2125) Todavia electa sunt autem quaelig scriberentur quaelig saluti credentium sufficere videbantur Mais do que nos debates do tridentino encontramos aqui um verdadeiro postulado dos Reformadores ldquonatildeo adotar costumes exteriores mas buscar os meios definitivos de salvaccedilatildeo na palavra da Escriturardquo A ldquosuficiecircnciardquo da Escritura de que aqui se fala eacute na verdade algo diverso da suficiecircncia material da mesma Escritura defendida por Geiselmann em sentido muito mais radical Infelizmente ainda natildeo se quis levar na devida consideraccedilatildeo o texto de Santo Agostinho (CT I 494 sugere De doctrina christiana II 9 e De pecc mero et rem II 59) Muito apropriadas nesta ordem de ideacuteias satildeo as observaccedilotildees de H SCHAUF ldquoSchrift und Traditionrdquo in Antonianum 39 (1964) p200-209 feitas no chamado Encontro de Duumlsseldorf Nos textos citados por Schauf com base em Agostinho eacute afirmada a suficiecircncia da Escritura para a salvaccedilatildeo Eacute contudo contestada a sua suficiecircncia para a Igreja em geral De fato esta alternativa parece muito mais vaacutelida e fundamental agrave luz dos postulados dos Reformadores do que a alternativa entre a suficiecircncia ou insuficiecircncia material da Escritura

Na mesma linha de ideacuteias seguem-se duas outras seacuteries de pronunciamentos Vimos na introduccedilatildeo agrave parte anterior que a discussatildeo dogmaacutetica da ideacuteia de

Tradiccedilatildeo foi em parte prejudicada pela questatildeo do meacutetodo a seguir no Conciacutelio dever-se-ia abordar primeiro a reformatio a reforma praacutetica da Igreja como queria o ldquoKaiserrdquo Ou primeiro discutir a questatildeo dogmaacutetica como preferia o Papa40

[52] Este problema do meacutetodo embora resolvido no debate que entatildeo surgiu natildeo afetou diretamente a questatildeo da Tradiccedilatildeo como tal Mas como de fato estas duas questotildees ficaram ligadas entre si daiacute resultou que muitos oradores transformaram a questatildeo do meacutetodo (se se deveria falar dos abusos ou da Tradiccedilatildeo) em parte de sua argumentaccedilatildeo em torno do assunto em pauta41 O problema abusus e o problema Traditio ficaram de tal maneira associados na ocasiatildeo que pareciam formar no fundo um soacute assunto Por isso os oradores ora falavam em sentido positivo ora se pronunciavam em sentido negativo Isto correspondia tambeacutem ao propoacutesito reformista do Conciacutelio as traditiones representavam os abusus aos quais a Igreja se opunha Os Padres estavam cocircnscios de que condenar as traditiones era condenar Os usus ecclesiaelig o modo como a Igreja vivia a sua vida naquela eacutepoca

A outra seacuterie de pronunciamentos que se inclinavam ao mesmo sentido encontramo-la nas proposiccedilotildees que a auctoritas da Igreja apresenta como definitivas indicando uma iacutentima relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a institutio christiana 42

[53] Podemos agora retomar ao nosso ponto de partida e dar resposta agrave pergunta que propriamente significa a foacutermula ad nos usque pervenerunt Objetivamente natildeo se trata aqui de um historicismo que a foacutermula parece expressar Ao contraacuterio Trata-se da fidelidade perseverante da Igreja agrave institutio vitaelig christianaelig da legiacutetima forma de vida cristatilde em concreto no tempo presente da Igreja da institutio christiana que coloca a Escritura em primeiro lugar e que como tal isto eacute como vida decorrente da Escritura eacute fundamentalmente apostoacutelica embora tambeacutem sujeita a mudanccedilas como tudo o que eacute vivo

3 A Tradiccedilatildeo e o dogma eclesiaacutestico

40 Sobre o debate em torno da questatildeo do meacutetodo cf mais uma vez JEDIN op cit p9-82 e outras 41 Assim jaacute no discurso de Cervini antes analisado (CT I 484) no qual ele recorda o dilema do Conciacutelio se nos voltarmos contra as tradiccedilotildees ficaratildeo admirados os Padres Conciliares quasi reformationem fugiamus si ipsam reformationem sumimus iterum objicient traditiones relinquendas non esse Idecircntica era a situaccedilatildeo em que se encontrava o Bispo de Astorga nas duas intervenccedilotildees que fez no dia 23 de fevereiro de 1546 (CT V 13 e 19) segundo Seripando (I 484) helliptraditiones prius pertractandas consulit tantam enim conformitatem abusus qui ex sacris libris descendunt cum iis qui a traditionibus orti sunt habent ut sacris libris et traditionibus absolutis duo illa abusuum genera simul pertractari valeant Segundo Bonuccio (I 484) antes de tudo dever-se-ia tratar das Sagradas Escrituras dos cacircnones apostoacutelicos dos Conciacutelios gerais e das decretais pontifiacutecias Hisque ilusceptis ad abusus ex eisdem dependentes devenire 42 Assim principalmente de acordo com Afonso de Castro (CT I 484) Quoniam ultra traditiones apostolicas ecclesiae auctoritatem habemus quaelig ecclesiaelig auctoritas tonta apud nos est ut aliqui eam maioris roboris quam sacros libros esse sentiant Cf igualmente CT I 491 45 Na mesma linha pode-se ver uma seacuterie de pronunciamentos na citada obra de LEJAY Cf CT XII 524 (Tratado De traditionibus ecclesiaelig fevereiro ou marccedilo de 1546)

Uma segunda seacuterie de motivos eacute expressa no Decreto pela foacutermula traditiones tum ad fidem tum ad mores pertinentes Se como vimos a ideacuteia de Tradiccedilatildeo aparece muito limitada naquilo que os Padres conciliares chamam consuetudines observationes institutiones por outro lado o Procurador do Cardeal de Augsburgo Claudio Lejay SJ se fez o porta-voz de uma expressatildeo que em oposiccedilatildeo agraves traditiones caeligremoniales estabeleceu justamente o sentido da tradiccedilatildeo contida na feacute Seu tratado sobre a Tradiccedilatildeo composto para uso dos Padres conciliares inclui tambeacutem a foacutermula que foi adotada pelo Conciacutelio Aiacute se diz Denique multas veritates tum ad fidem tum ad mores pertinentes Ecclesia novit quas Scriptura aperte et expresse non continet Ele cita como exemplos as palavras persona essentia trinitas no Tratado da Santiacutessima Trindade consubstantialitas na Cristologia do Logos duas naturezas uma soacute Pessoa referentes ao dogma definido pelo Conciacutelio de Calcedocircnia E ainda Cristo Filho uacutenico de Maria duas vontades na uacutenica Pessoa de Cristo uma alma racional aleacutem do espiacuterito divino em Cristo Ana matildee de Maria o costume de fazer sinais da cruz a santificaccedilatildeo do domingo a maneira de rezar com face voltada [54] para o Oriente tudo isto ideacuteias e fatos da tradiccedilatildeo conciliar e da piedade cristatilde43

Cervini que aprovou o discurso de Lejay de 23 de fevereiro de 154644 pocircde dificilmente conciliar esta posiccedilatildeo com a sua expressa na jaacute citada carta ao Cardeal Farnese onde como vimos ele diz que o Espiacuterito Santo falou na Igreja e depois da Ascensatildeo do Senhor fala ainda maxime medianti i concilii45 Ele aiacute viu publicamente sublinhado o fato de que aquele ldquomaisrdquo que a Igreja viva representa em relaccedilatildeo agrave palavra meramente escrita natildeo se referia e natildeo se refere apenas agrave vita instituenda ou como ele prefere agrave caeligremonialia Refere-se tambeacutem agrave essentialia fidei que antes de tudo plenamente se expressam na Tradiccedilatildeo Tambeacutem aqui como se vecirc o interesse dominante natildeo estaacute na apresentaccedilatildeo historicista do assunto a partir do iniacutecio da Igreja mas na ideacuteia de que a influecircncia da Tradiccedilatildeo sobretudo atraveacutes da praxe conciliar eacute de fundamental importacircncia para a feacute para a doutrina crida e natildeo apenas para a piedade viva ou a caeligremonialia

4 O sentido do Decreto tridentino

Se recapitularmos o que ateacute agora dissemos veremos que no conjunto facilmente se podem reconhecer trecircs diferentes concepccedilotildees teoloacutegicas unidas entre si no texto definitivo do Decreto sobre a Tradiccedilatildeo Unidas mas natildeo equiparadas umas agraves outras Pelo contraacuterio apesar de sua grande diferenccedila foram elas apenas [55] mais ou menos justapostas e de novo por forccedila de uma tendecircncia comum relacionadas entre si

1 A concepccedilatildeo de Cervini que designamos como pneumatoloacutegica Com sua doutrina sobre os trecircs principia fidei insiste ele no caraacuteter dinacircmico do Cristo-evento

43 CT XII 523 LEJAY baseia-se evidentemente em listas de tradiccedilotildees confeccionadas naquele tempo (Cf ECK DRIEDO CANO BOTO NOGAROLA) Cf a este respeito Y CONGAR ldquoTraditions apostoliques non eacutecrites et suffisance de lEscrituresrdquo in Istina 6 (1959) p219-306 e principalmente a paacutegina 289 44 CT V 14 45 CT X 373

presente na Igreja Entende assim a Tradiccedilatildeo primariamente como a realidade espiritual da institutio vitaelig christianaelig

2 A concepccedilatildeo que podemos chamar de cerimonial Esta entende a Tradiccedilatildeo essencialmente como a seacuterie de consuetudines existentes ao lado da feacute como os usus ecclesiaelig que os Reformadores falsamente pretendem abolir como abusus Esta concepccedilatildeo chega a condenar a dignidade e Antiguumlidade apostoacutelica das tradiccedilotildees Sua ideacuteia eacute limitada pelo ad nos usque pervenerunt que inclui possibilidade de variar da parte das tradiccedilotildees donde a necessidade de reduccedilotildees Com os termos pervenire e conservare a recepccedilatildeo por parte da Igreja eacute considerada criteacuterio adicional ao lado da Antiguumlidade

3 A concepccedilatildeo que talvez possamos denominar dogmaacutetica Em oposiccedilatildeo agrave fixidez da ideacuteia de Tradiccedilatildeo reduzida agrave consuetudo salienta esta terceira hipoacutetese a extensatildeo do fenocircmeno Tradiccedilatildeo tambeacutem ao acircmbito da fides

Estas trecircs concepccedilotildees deram forma ao texto do Decreto de tal modo que as suas

linhas mestras derivam de Cervini e todo o texto deve ser entendido agrave luz de suas ideacuteias Contudo em duas passagens isto eacute no pervenerunt e no conservatas haacute influecircncia da segunda concepccedilatildeo enquanto no tum ad fidem tum ad mores haacute influecircncia da terceira

Em face destas trecircs concepccedilotildees das quais na realidade existem diversas variantes que tomadas em conjunto satildeo a expressatildeo das ideacuteias dominantes adotadas aparecem as teses de Bonuccio e de Nacchianti tatildeo postas em evidecircncia por Geiselmann como sentenccedilas contraacuterias De fato o parecer de Bonuccio claramente [56] se opotildee agrave segunda concepccedilatildeo (contra a supervalorizaccedilatildeo das consuetudines natildeo per pietatis affectus) ao passo que Nacchianti se levanta antes contra a terceira posiccedilatildeo e salienta a suficiecircncia da feacute recebida por meio da Escritura46

Seria de notar-se ainda que as concepccedilotildees segunda e terceira tecircm algo em comum Ambas opotildeem agrave visatildeo pneumatoloacutegica de Cervini da salvaccedilatildeo sempre presente uma visatildeo mais historicista relacionada com o prolongamento da salvaccedilatildeo operada uma soacute vez ou seja o ἑφάπαξ Na realidade deve-se dizer que embora de um lado tanto a visatildeo presencial de Cervini como tambeacutem a visatildeo historicista do outro grupo se consideradas isoladamente cada qual de per si sejam perigosas se natildeo insustentaacuteveis 46 Aliaacutes de acordo com uma informaccedilatildeo de Cervini parece que o Bispo de Chioggia finalmente renunciou agrave sua tese da suficiecircncia da Escritura na qual se inclinava a recusar as tradiccedilotildees Na carta de Cervini ao Cardeal Farnese de 27 de fevereiro de 1546 lemos hellip Chioggia che (quasi quasi) voleva dire queste traditioni essere superflue perorando che tutto quello che era necessario alla salute era scritto et allegando etiam S Agostino sopra lultimo capitulo di S Giovanni a questo proposito Pure per non poter negare che molte cose appartenenti almeno alli sacramenti non ci fussero venute ex tra ditione et per consequente che non tutte le cose necessarie alia nostra salute erano scritte poiche ebbe fatte molte distintioni concluse che ancor lui accettava queste ldquoche in la chiesa fusse qualque traditione apostolica non scrittardquo (et con queste parole diceva che se ne facesse il decreto) credo che molti sono restati scandalizati di lui (CT X Nr 315 paacutegs 399 411) Cf tambeacutem CT I 494 nota 9 e 495 nota 2 CT V 18 nota 5 e 19 e nota 1 O mesmo protesto que aparece contra Nacchianti manifesta-se tambeacutem na observaccedilatildeo de Massarelli Este chega a chamar aquele de novarum rerum cupidus (1 494 18) e esclarece que reprehensus est a multis (1 494 22) Diante disto eacute de todo destituiacuteda de creacutedito a importacircncia que Geiselmann lhe atribui mesmo se abstrairmos de outras razotildees jaacute conhecidas sobre as quais natildeo precisamos insistir

de outro lado pelo menos tornam possiacutevel uma exata visatildeo do conjunto devido agrave sua muacutetua confluecircncia e limitaccedilatildeo No texto atual estatildeo presentes embora pouco nitidamente ambos os pontos de vista o elemento presencial e o ἑφάπαξ Conveacutem que entendamos assim o texto de modo a considerarmos [57] ambos estes aspectos como essenciais Consequumlentemente reconheceremos que ambos pertencem constitutivamente agrave realidade da vida cristatilde e portanto tambeacutem agravequela parcela do Cristianismo a que damos o nome de Tradiccedilatildeo Estes dois elementos satildeo a presenccedila do Espiacuterito Santo e o seu nexo com o fato singular da salvaccedilatildeo ocorrido uma soacute vez por todas na histoacuteria dos homens

Assim se acharaacute finalmente a resposta agrave pergunta de corno noacutes devemos entender o parecer do Conciacutelio de Trento A primeira e mais importante conclusatildeo parece-me ser o fato de o Conciacutelio ter visto muito claramente o nexo entre Tradiccedilatildeo e Revelaccedilatildeo A seguir elaborou sempre em consonacircncia com a tradiccedilatildeo patriacutestica e medieval um conceito de Revelaccedilatildeo muito menos material do que o que seraacute adotado mais tarde pela teologia dos tempos modernos Somente assim se deve conceber a ideacuteia da Revelaccedilatildeo do Espiacuterito Santo na Igreja Partindo do ramo nitidamente patriacutestico da teologia medieval tatildeo francamente acolhido no discurso de Cervini deveria ser muito menos categoacuterica a opiniatildeo que coloca o teacutermino da Revelaccedilatildeo na morte do uacuteltimo Apoacutestolo Naturalmente esta questatildeo natildeo pode ser aqui estudada com maiores detalhes A sua soluccedilatildeo como entatildeo se apresentava aos teoacutelogos poderia ser hoje impostada apelando-se para as categorias da teologia atual Segundo esta podemos dizer que a Revelaccedilatildeo estaacute encerrada do ponto de vista de seu princiacutepio material Todavia estaacute e continua presente em sua realidade eficaz Noutros termos a Revelaccedilatildeo tem eacute verdade o seu ἑφάπαξ enquanto ela se realizou num determinado dia na Histoacuteria Entretanto ela tem tambeacutem o seu ldquohojerdquo permanente isto eacute o que foi uma vez por todas realizado na feacute da Igreja permanece sempre vivo e operante Assim a feacute cristatilde natildeo se volta apenas para o passado Abrange tambeacutem o presente e o futuro Eacute verdade que a posterior materializaccedilatildeo historicista da ideacuteia de Revelaccedilatildeo aparece jaacute claramente insinuada nos debates tridentinos corno um fato previsto mas ainda [58] natildeo consumado embora talvez se possa dizer que nos textos conciliares ficou definitivamente consagrada a sua aceitaccedilatildeo

Finalmente acrescentemos ainda que com base nos debates do Conciacutelio podemos estabelecer quatro elementos da ideacuteia de Tradiccedilatildeo 1 O aspecto natildeo-escrito da Revelaccedilatildeo ou do Evangelho contido na Biacuteblia e no coraccedilatildeo dos fieacuteis 2 A palavra do Espiacuterito Santo no decorrer de todo o tempo da Igreja

3 A atividade da Igreja nos Conciacutelios 4 A Tradiccedilatildeo lituacutergica e a da vida da Igreja em geral Nestes quatro elementos

que se deve ter sob os olhos pois formam o fundo ideoloacutegico do Decreto expressa-se a realidade uacutenica do tempo presente da Igreja cristatilde Nele estaacute presente todo o passado poacutes-apostoacutelico da Igreja (inclusive o proacuteprio tempo dos apoacutestolos) de modo que toda a sua vida eacute na Sagrada Escritura um elemento central embora natildeo o uacutenico Em suma deve ter ficado claro que o Conciacutelio de Trento a despeito do caraacuteter contrastante e fixo de sua ideacuteia de Revelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeo oferece uma visatildeo muito mais rica destes conceitos do que a que impregnou a mentalidade dos seacuteculos seguintes Justamente por

isso a teologia de hoje pode retirar daiacute novos subsiacutedios novo apoio para suas pesquisas e novas indicaccedilotildees sobre o verdadeiro caminho a seguir

Quadro sinoacutetico do Decreto tridentino sobre a Tradiccedilatildeo

Primeiro princiacutepio conforme Cervini (AT = Escritura)

Sacrosancta œcumenica et generalis Tridentina Synodus in Spiritu Sancto legitime congregata [] hoc sibi perpetuo ante oculos proponens ut sublatis erroribus puritas ipsa EVANGELII in Ecclesia conservetur quod PROMISSUM ANTE PER PROPHETAS IN SCRIPTURIS SANCTIS

Segundo princiacutepio conforme Cervini o Evangelho em parte escrito em parte insculpido nos coraccedilotildees

[59] DOMINUS NOSTER IESUS CHRISTUS DEI FILIUS PROPRIO ORE PRIMUM PROMULGAVIT DEINDE PER SUOS APOSTOLOS TAMQUAM FONTEM OMNIS ET SALUTARIS VERITATIS ET MORUM DISCIPLINAE OMNI CREATURAE PRAEDICARI IUSSIT PERSPICIENSQUE HANC VERITATEM ET DISCIPLINAM CONTINERI IN LIBRIS SCRIPTIS ET SINE SCRIPTO TRADITIONIBUS QUAE AB IPSIUS CHRISTI ORE AB APOSTOLIS ACCEPTAE AUT AB IPSIS APOSTOLIS SPIRITU SANCTO DICTANTE

Seripando Cervini e outros soacute consideram as tradiccedilotildees recebidas pela Igrej (ldquoad nos usquerdquo)

quasi per manus traditae ad nos usque pervenerunt

orthodoxorum Patrum exempla secuta omnes libros tam Veteris quam Novi Testamenti cum utriusque unus Deus sit auctor nec non TRADITIONES IPSAS

Lejay Tradiccedilatildeo contendo natildeo soacute a ldquoconsuetudordquo mas relacionada tambeacutem com a ldquofidesrdquo (foacutermula conciliar)

tum ad fidem tum ad mores pertinentes

Terceiro princiacutepio de Cernini Depois da Ascenccedilatildeo de Cristo o Espiacuterito Santo ensina tambeacutem os misteacuterios de Deus

TAMQUAM VEL ORETENUS A CHRISTO VEL A SPIRITU SANCTO DICTATAS

Seripando Cervini etc soacute satildeo consideradas as coisas recebidas pela Igreja (como acima)

et continua successione in Ecclesia catholica conservatas

Cervini Escritura e Tradiccedilatildeo procedem ambas do mesmo Espiacuterito Santo

pari pietatis affectu ac reverentia suscipit ac veneratur

  • Prefaacutecio
  • SEGUNDA PARTE
  • Explicaccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo
  • segundo o Decreto do Conciacutelio de Trento
Page 33: Revelacao e Tradicao-Joseph Ratzinger (Bom Ler)

Seripando opotildee as natildeo referidas na Biacuteblia e que ora satildeo apostoacutelicas ou oriundas de Conciacutelios universais e aceitas por toda a Igreja ora satildeo particulares e muito variaacuteveis35

Este texto nos leva a uma surpreendente conclusatildeo para Seripando e muitos outros Padres tridentinos36existem tradiccedilotildees na Escritura ldquoTradiccedilatildeordquo natildeo significa o natildeo-escrito Existe quer dentro da Escritura quer fora dela Isto nos conduz a outra pergunta em que consiste para os referidos Padres a essecircncia da tradiccedilatildeo se o que a constitui natildeo eacute o fato de natildeo ser escrita37 Em outros termos como pode a tradiccedilatildeo ser definida positivamente se ela natildeo pode ser suficientemente determinada pela ideacuteia negativa de algo natildeo-escrito

Haacute uma seacuterie de respostas para esta pergunta O proacuteprio Seripando daacute a seguinte definiccedilatildeo Traditiones hoc est Apostolorum seu sanctorum Patrum sanctae et salutares constitutiones38 Mais clara ainda eacute a afirmaccedilatildeo de Cervini citada por Massarelli A objeccedilatildeo do Bispo de Chioggia que aduzia a opiniatildeo de Agostinho de que tudo o que eacute necessaacuterio para a salvaccedilatildeo estava escrito na Biacuteblia respondia Cervini da seguinte maneira Verba illa (isto eacute de Santo Agostinho) formaliter intelligi debent scilicet ad fidem accipiendam ut salvi fiamus Quo vero ad mores et christianam vitam instituendam certo non omnia scripta sunt

[51] E de novo recorre agraves provas tiradas de Jo 1526 e 1426 E indica o princiacutepio pneumatoloacutegico39 O que eacute mais importante eacute que a Tradiccedilatildeo se refere agrave institutio vitaelig agrave presenccedila atuante da Palavra revelada na existecircncia cristatilde Tradiccedilatildeo eacute noutros termos a eficaacutecia da palavra de Deus Sem ela a palavra ficaria esteacuteril 35 Seripando De traditionibus (fevereiro ou marccedilo de 1546) CT XII p517-521 e principalmente a p 521 As expressotildees desta uacuteltima paacutegina chocam-se com a ideacuteia de Cervini sobre a receptio ecclesiaelig 36 Cf o texto citado na nota 11 37 No texto definitivo do Decreto esta ideacuteia natildeo aparece mais Aqui poreacutem com esta primeira designaccedilatildeo expliacutecita da Tradiccedilatildeo vem expressamente acentuado o contraste entre in libris scriptis et sine scripto traditionibus Na segunda redaccedilatildeo o sentido expliacutecito da palavra Tradiccedilatildeo natildeo eacute tatildeo exclusivo Contudo apresenta igual matiz ao se confrontarem as expressotildees omnes libroshellipnec non traditiones ipsas Portanto a ideacuteia positiva da Tradiccedilatildeo que serve de base a esta anaacutelise natildeo deixou de influenciar na redaccedilatildeo do Decreto 38 CT XII 517 39 CT I 494 (26 de fevereiro de 1546) A citada palavra de Santo Agostinho teve o seu papel a desempenhar na discussatildeo em curso Seripando por exemplo a ela se referiu (De traditionibus CT XII 521 47-53) Pensandum denique ne in traditionibus externis vera religio et salutis spes statuatur de quibus Augustinus Omnia quaelig pertinent ad veram religionem quaeligrendam et tenendam divina Scriptura non acuit Conceda-se que nem tudo foi escrito (veja-se Jo 2125) Todavia electa sunt autem quaelig scriberentur quaelig saluti credentium sufficere videbantur Mais do que nos debates do tridentino encontramos aqui um verdadeiro postulado dos Reformadores ldquonatildeo adotar costumes exteriores mas buscar os meios definitivos de salvaccedilatildeo na palavra da Escriturardquo A ldquosuficiecircnciardquo da Escritura de que aqui se fala eacute na verdade algo diverso da suficiecircncia material da mesma Escritura defendida por Geiselmann em sentido muito mais radical Infelizmente ainda natildeo se quis levar na devida consideraccedilatildeo o texto de Santo Agostinho (CT I 494 sugere De doctrina christiana II 9 e De pecc mero et rem II 59) Muito apropriadas nesta ordem de ideacuteias satildeo as observaccedilotildees de H SCHAUF ldquoSchrift und Traditionrdquo in Antonianum 39 (1964) p200-209 feitas no chamado Encontro de Duumlsseldorf Nos textos citados por Schauf com base em Agostinho eacute afirmada a suficiecircncia da Escritura para a salvaccedilatildeo Eacute contudo contestada a sua suficiecircncia para a Igreja em geral De fato esta alternativa parece muito mais vaacutelida e fundamental agrave luz dos postulados dos Reformadores do que a alternativa entre a suficiecircncia ou insuficiecircncia material da Escritura

Na mesma linha de ideacuteias seguem-se duas outras seacuteries de pronunciamentos Vimos na introduccedilatildeo agrave parte anterior que a discussatildeo dogmaacutetica da ideacuteia de

Tradiccedilatildeo foi em parte prejudicada pela questatildeo do meacutetodo a seguir no Conciacutelio dever-se-ia abordar primeiro a reformatio a reforma praacutetica da Igreja como queria o ldquoKaiserrdquo Ou primeiro discutir a questatildeo dogmaacutetica como preferia o Papa40

[52] Este problema do meacutetodo embora resolvido no debate que entatildeo surgiu natildeo afetou diretamente a questatildeo da Tradiccedilatildeo como tal Mas como de fato estas duas questotildees ficaram ligadas entre si daiacute resultou que muitos oradores transformaram a questatildeo do meacutetodo (se se deveria falar dos abusos ou da Tradiccedilatildeo) em parte de sua argumentaccedilatildeo em torno do assunto em pauta41 O problema abusus e o problema Traditio ficaram de tal maneira associados na ocasiatildeo que pareciam formar no fundo um soacute assunto Por isso os oradores ora falavam em sentido positivo ora se pronunciavam em sentido negativo Isto correspondia tambeacutem ao propoacutesito reformista do Conciacutelio as traditiones representavam os abusus aos quais a Igreja se opunha Os Padres estavam cocircnscios de que condenar as traditiones era condenar Os usus ecclesiaelig o modo como a Igreja vivia a sua vida naquela eacutepoca

A outra seacuterie de pronunciamentos que se inclinavam ao mesmo sentido encontramo-la nas proposiccedilotildees que a auctoritas da Igreja apresenta como definitivas indicando uma iacutentima relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a institutio christiana 42

[53] Podemos agora retomar ao nosso ponto de partida e dar resposta agrave pergunta que propriamente significa a foacutermula ad nos usque pervenerunt Objetivamente natildeo se trata aqui de um historicismo que a foacutermula parece expressar Ao contraacuterio Trata-se da fidelidade perseverante da Igreja agrave institutio vitaelig christianaelig da legiacutetima forma de vida cristatilde em concreto no tempo presente da Igreja da institutio christiana que coloca a Escritura em primeiro lugar e que como tal isto eacute como vida decorrente da Escritura eacute fundamentalmente apostoacutelica embora tambeacutem sujeita a mudanccedilas como tudo o que eacute vivo

3 A Tradiccedilatildeo e o dogma eclesiaacutestico

40 Sobre o debate em torno da questatildeo do meacutetodo cf mais uma vez JEDIN op cit p9-82 e outras 41 Assim jaacute no discurso de Cervini antes analisado (CT I 484) no qual ele recorda o dilema do Conciacutelio se nos voltarmos contra as tradiccedilotildees ficaratildeo admirados os Padres Conciliares quasi reformationem fugiamus si ipsam reformationem sumimus iterum objicient traditiones relinquendas non esse Idecircntica era a situaccedilatildeo em que se encontrava o Bispo de Astorga nas duas intervenccedilotildees que fez no dia 23 de fevereiro de 1546 (CT V 13 e 19) segundo Seripando (I 484) helliptraditiones prius pertractandas consulit tantam enim conformitatem abusus qui ex sacris libris descendunt cum iis qui a traditionibus orti sunt habent ut sacris libris et traditionibus absolutis duo illa abusuum genera simul pertractari valeant Segundo Bonuccio (I 484) antes de tudo dever-se-ia tratar das Sagradas Escrituras dos cacircnones apostoacutelicos dos Conciacutelios gerais e das decretais pontifiacutecias Hisque ilusceptis ad abusus ex eisdem dependentes devenire 42 Assim principalmente de acordo com Afonso de Castro (CT I 484) Quoniam ultra traditiones apostolicas ecclesiae auctoritatem habemus quaelig ecclesiaelig auctoritas tonta apud nos est ut aliqui eam maioris roboris quam sacros libros esse sentiant Cf igualmente CT I 491 45 Na mesma linha pode-se ver uma seacuterie de pronunciamentos na citada obra de LEJAY Cf CT XII 524 (Tratado De traditionibus ecclesiaelig fevereiro ou marccedilo de 1546)

Uma segunda seacuterie de motivos eacute expressa no Decreto pela foacutermula traditiones tum ad fidem tum ad mores pertinentes Se como vimos a ideacuteia de Tradiccedilatildeo aparece muito limitada naquilo que os Padres conciliares chamam consuetudines observationes institutiones por outro lado o Procurador do Cardeal de Augsburgo Claudio Lejay SJ se fez o porta-voz de uma expressatildeo que em oposiccedilatildeo agraves traditiones caeligremoniales estabeleceu justamente o sentido da tradiccedilatildeo contida na feacute Seu tratado sobre a Tradiccedilatildeo composto para uso dos Padres conciliares inclui tambeacutem a foacutermula que foi adotada pelo Conciacutelio Aiacute se diz Denique multas veritates tum ad fidem tum ad mores pertinentes Ecclesia novit quas Scriptura aperte et expresse non continet Ele cita como exemplos as palavras persona essentia trinitas no Tratado da Santiacutessima Trindade consubstantialitas na Cristologia do Logos duas naturezas uma soacute Pessoa referentes ao dogma definido pelo Conciacutelio de Calcedocircnia E ainda Cristo Filho uacutenico de Maria duas vontades na uacutenica Pessoa de Cristo uma alma racional aleacutem do espiacuterito divino em Cristo Ana matildee de Maria o costume de fazer sinais da cruz a santificaccedilatildeo do domingo a maneira de rezar com face voltada [54] para o Oriente tudo isto ideacuteias e fatos da tradiccedilatildeo conciliar e da piedade cristatilde43

Cervini que aprovou o discurso de Lejay de 23 de fevereiro de 154644 pocircde dificilmente conciliar esta posiccedilatildeo com a sua expressa na jaacute citada carta ao Cardeal Farnese onde como vimos ele diz que o Espiacuterito Santo falou na Igreja e depois da Ascensatildeo do Senhor fala ainda maxime medianti i concilii45 Ele aiacute viu publicamente sublinhado o fato de que aquele ldquomaisrdquo que a Igreja viva representa em relaccedilatildeo agrave palavra meramente escrita natildeo se referia e natildeo se refere apenas agrave vita instituenda ou como ele prefere agrave caeligremonialia Refere-se tambeacutem agrave essentialia fidei que antes de tudo plenamente se expressam na Tradiccedilatildeo Tambeacutem aqui como se vecirc o interesse dominante natildeo estaacute na apresentaccedilatildeo historicista do assunto a partir do iniacutecio da Igreja mas na ideacuteia de que a influecircncia da Tradiccedilatildeo sobretudo atraveacutes da praxe conciliar eacute de fundamental importacircncia para a feacute para a doutrina crida e natildeo apenas para a piedade viva ou a caeligremonialia

4 O sentido do Decreto tridentino

Se recapitularmos o que ateacute agora dissemos veremos que no conjunto facilmente se podem reconhecer trecircs diferentes concepccedilotildees teoloacutegicas unidas entre si no texto definitivo do Decreto sobre a Tradiccedilatildeo Unidas mas natildeo equiparadas umas agraves outras Pelo contraacuterio apesar de sua grande diferenccedila foram elas apenas [55] mais ou menos justapostas e de novo por forccedila de uma tendecircncia comum relacionadas entre si

1 A concepccedilatildeo de Cervini que designamos como pneumatoloacutegica Com sua doutrina sobre os trecircs principia fidei insiste ele no caraacuteter dinacircmico do Cristo-evento

43 CT XII 523 LEJAY baseia-se evidentemente em listas de tradiccedilotildees confeccionadas naquele tempo (Cf ECK DRIEDO CANO BOTO NOGAROLA) Cf a este respeito Y CONGAR ldquoTraditions apostoliques non eacutecrites et suffisance de lEscrituresrdquo in Istina 6 (1959) p219-306 e principalmente a paacutegina 289 44 CT V 14 45 CT X 373

presente na Igreja Entende assim a Tradiccedilatildeo primariamente como a realidade espiritual da institutio vitaelig christianaelig

2 A concepccedilatildeo que podemos chamar de cerimonial Esta entende a Tradiccedilatildeo essencialmente como a seacuterie de consuetudines existentes ao lado da feacute como os usus ecclesiaelig que os Reformadores falsamente pretendem abolir como abusus Esta concepccedilatildeo chega a condenar a dignidade e Antiguumlidade apostoacutelica das tradiccedilotildees Sua ideacuteia eacute limitada pelo ad nos usque pervenerunt que inclui possibilidade de variar da parte das tradiccedilotildees donde a necessidade de reduccedilotildees Com os termos pervenire e conservare a recepccedilatildeo por parte da Igreja eacute considerada criteacuterio adicional ao lado da Antiguumlidade

3 A concepccedilatildeo que talvez possamos denominar dogmaacutetica Em oposiccedilatildeo agrave fixidez da ideacuteia de Tradiccedilatildeo reduzida agrave consuetudo salienta esta terceira hipoacutetese a extensatildeo do fenocircmeno Tradiccedilatildeo tambeacutem ao acircmbito da fides

Estas trecircs concepccedilotildees deram forma ao texto do Decreto de tal modo que as suas

linhas mestras derivam de Cervini e todo o texto deve ser entendido agrave luz de suas ideacuteias Contudo em duas passagens isto eacute no pervenerunt e no conservatas haacute influecircncia da segunda concepccedilatildeo enquanto no tum ad fidem tum ad mores haacute influecircncia da terceira

Em face destas trecircs concepccedilotildees das quais na realidade existem diversas variantes que tomadas em conjunto satildeo a expressatildeo das ideacuteias dominantes adotadas aparecem as teses de Bonuccio e de Nacchianti tatildeo postas em evidecircncia por Geiselmann como sentenccedilas contraacuterias De fato o parecer de Bonuccio claramente [56] se opotildee agrave segunda concepccedilatildeo (contra a supervalorizaccedilatildeo das consuetudines natildeo per pietatis affectus) ao passo que Nacchianti se levanta antes contra a terceira posiccedilatildeo e salienta a suficiecircncia da feacute recebida por meio da Escritura46

Seria de notar-se ainda que as concepccedilotildees segunda e terceira tecircm algo em comum Ambas opotildeem agrave visatildeo pneumatoloacutegica de Cervini da salvaccedilatildeo sempre presente uma visatildeo mais historicista relacionada com o prolongamento da salvaccedilatildeo operada uma soacute vez ou seja o ἑφάπαξ Na realidade deve-se dizer que embora de um lado tanto a visatildeo presencial de Cervini como tambeacutem a visatildeo historicista do outro grupo se consideradas isoladamente cada qual de per si sejam perigosas se natildeo insustentaacuteveis 46 Aliaacutes de acordo com uma informaccedilatildeo de Cervini parece que o Bispo de Chioggia finalmente renunciou agrave sua tese da suficiecircncia da Escritura na qual se inclinava a recusar as tradiccedilotildees Na carta de Cervini ao Cardeal Farnese de 27 de fevereiro de 1546 lemos hellip Chioggia che (quasi quasi) voleva dire queste traditioni essere superflue perorando che tutto quello che era necessario alla salute era scritto et allegando etiam S Agostino sopra lultimo capitulo di S Giovanni a questo proposito Pure per non poter negare che molte cose appartenenti almeno alli sacramenti non ci fussero venute ex tra ditione et per consequente che non tutte le cose necessarie alia nostra salute erano scritte poiche ebbe fatte molte distintioni concluse che ancor lui accettava queste ldquoche in la chiesa fusse qualque traditione apostolica non scrittardquo (et con queste parole diceva che se ne facesse il decreto) credo che molti sono restati scandalizati di lui (CT X Nr 315 paacutegs 399 411) Cf tambeacutem CT I 494 nota 9 e 495 nota 2 CT V 18 nota 5 e 19 e nota 1 O mesmo protesto que aparece contra Nacchianti manifesta-se tambeacutem na observaccedilatildeo de Massarelli Este chega a chamar aquele de novarum rerum cupidus (1 494 18) e esclarece que reprehensus est a multis (1 494 22) Diante disto eacute de todo destituiacuteda de creacutedito a importacircncia que Geiselmann lhe atribui mesmo se abstrairmos de outras razotildees jaacute conhecidas sobre as quais natildeo precisamos insistir

de outro lado pelo menos tornam possiacutevel uma exata visatildeo do conjunto devido agrave sua muacutetua confluecircncia e limitaccedilatildeo No texto atual estatildeo presentes embora pouco nitidamente ambos os pontos de vista o elemento presencial e o ἑφάπαξ Conveacutem que entendamos assim o texto de modo a considerarmos [57] ambos estes aspectos como essenciais Consequumlentemente reconheceremos que ambos pertencem constitutivamente agrave realidade da vida cristatilde e portanto tambeacutem agravequela parcela do Cristianismo a que damos o nome de Tradiccedilatildeo Estes dois elementos satildeo a presenccedila do Espiacuterito Santo e o seu nexo com o fato singular da salvaccedilatildeo ocorrido uma soacute vez por todas na histoacuteria dos homens

Assim se acharaacute finalmente a resposta agrave pergunta de corno noacutes devemos entender o parecer do Conciacutelio de Trento A primeira e mais importante conclusatildeo parece-me ser o fato de o Conciacutelio ter visto muito claramente o nexo entre Tradiccedilatildeo e Revelaccedilatildeo A seguir elaborou sempre em consonacircncia com a tradiccedilatildeo patriacutestica e medieval um conceito de Revelaccedilatildeo muito menos material do que o que seraacute adotado mais tarde pela teologia dos tempos modernos Somente assim se deve conceber a ideacuteia da Revelaccedilatildeo do Espiacuterito Santo na Igreja Partindo do ramo nitidamente patriacutestico da teologia medieval tatildeo francamente acolhido no discurso de Cervini deveria ser muito menos categoacuterica a opiniatildeo que coloca o teacutermino da Revelaccedilatildeo na morte do uacuteltimo Apoacutestolo Naturalmente esta questatildeo natildeo pode ser aqui estudada com maiores detalhes A sua soluccedilatildeo como entatildeo se apresentava aos teoacutelogos poderia ser hoje impostada apelando-se para as categorias da teologia atual Segundo esta podemos dizer que a Revelaccedilatildeo estaacute encerrada do ponto de vista de seu princiacutepio material Todavia estaacute e continua presente em sua realidade eficaz Noutros termos a Revelaccedilatildeo tem eacute verdade o seu ἑφάπαξ enquanto ela se realizou num determinado dia na Histoacuteria Entretanto ela tem tambeacutem o seu ldquohojerdquo permanente isto eacute o que foi uma vez por todas realizado na feacute da Igreja permanece sempre vivo e operante Assim a feacute cristatilde natildeo se volta apenas para o passado Abrange tambeacutem o presente e o futuro Eacute verdade que a posterior materializaccedilatildeo historicista da ideacuteia de Revelaccedilatildeo aparece jaacute claramente insinuada nos debates tridentinos corno um fato previsto mas ainda [58] natildeo consumado embora talvez se possa dizer que nos textos conciliares ficou definitivamente consagrada a sua aceitaccedilatildeo

Finalmente acrescentemos ainda que com base nos debates do Conciacutelio podemos estabelecer quatro elementos da ideacuteia de Tradiccedilatildeo 1 O aspecto natildeo-escrito da Revelaccedilatildeo ou do Evangelho contido na Biacuteblia e no coraccedilatildeo dos fieacuteis 2 A palavra do Espiacuterito Santo no decorrer de todo o tempo da Igreja

3 A atividade da Igreja nos Conciacutelios 4 A Tradiccedilatildeo lituacutergica e a da vida da Igreja em geral Nestes quatro elementos

que se deve ter sob os olhos pois formam o fundo ideoloacutegico do Decreto expressa-se a realidade uacutenica do tempo presente da Igreja cristatilde Nele estaacute presente todo o passado poacutes-apostoacutelico da Igreja (inclusive o proacuteprio tempo dos apoacutestolos) de modo que toda a sua vida eacute na Sagrada Escritura um elemento central embora natildeo o uacutenico Em suma deve ter ficado claro que o Conciacutelio de Trento a despeito do caraacuteter contrastante e fixo de sua ideacuteia de Revelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeo oferece uma visatildeo muito mais rica destes conceitos do que a que impregnou a mentalidade dos seacuteculos seguintes Justamente por

isso a teologia de hoje pode retirar daiacute novos subsiacutedios novo apoio para suas pesquisas e novas indicaccedilotildees sobre o verdadeiro caminho a seguir

Quadro sinoacutetico do Decreto tridentino sobre a Tradiccedilatildeo

Primeiro princiacutepio conforme Cervini (AT = Escritura)

Sacrosancta œcumenica et generalis Tridentina Synodus in Spiritu Sancto legitime congregata [] hoc sibi perpetuo ante oculos proponens ut sublatis erroribus puritas ipsa EVANGELII in Ecclesia conservetur quod PROMISSUM ANTE PER PROPHETAS IN SCRIPTURIS SANCTIS

Segundo princiacutepio conforme Cervini o Evangelho em parte escrito em parte insculpido nos coraccedilotildees

[59] DOMINUS NOSTER IESUS CHRISTUS DEI FILIUS PROPRIO ORE PRIMUM PROMULGAVIT DEINDE PER SUOS APOSTOLOS TAMQUAM FONTEM OMNIS ET SALUTARIS VERITATIS ET MORUM DISCIPLINAE OMNI CREATURAE PRAEDICARI IUSSIT PERSPICIENSQUE HANC VERITATEM ET DISCIPLINAM CONTINERI IN LIBRIS SCRIPTIS ET SINE SCRIPTO TRADITIONIBUS QUAE AB IPSIUS CHRISTI ORE AB APOSTOLIS ACCEPTAE AUT AB IPSIS APOSTOLIS SPIRITU SANCTO DICTANTE

Seripando Cervini e outros soacute consideram as tradiccedilotildees recebidas pela Igrej (ldquoad nos usquerdquo)

quasi per manus traditae ad nos usque pervenerunt

orthodoxorum Patrum exempla secuta omnes libros tam Veteris quam Novi Testamenti cum utriusque unus Deus sit auctor nec non TRADITIONES IPSAS

Lejay Tradiccedilatildeo contendo natildeo soacute a ldquoconsuetudordquo mas relacionada tambeacutem com a ldquofidesrdquo (foacutermula conciliar)

tum ad fidem tum ad mores pertinentes

Terceiro princiacutepio de Cernini Depois da Ascenccedilatildeo de Cristo o Espiacuterito Santo ensina tambeacutem os misteacuterios de Deus

TAMQUAM VEL ORETENUS A CHRISTO VEL A SPIRITU SANCTO DICTATAS

Seripando Cervini etc soacute satildeo consideradas as coisas recebidas pela Igreja (como acima)

et continua successione in Ecclesia catholica conservatas

Cervini Escritura e Tradiccedilatildeo procedem ambas do mesmo Espiacuterito Santo

pari pietatis affectu ac reverentia suscipit ac veneratur

  • Prefaacutecio
  • SEGUNDA PARTE
  • Explicaccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo
  • segundo o Decreto do Conciacutelio de Trento
Page 34: Revelacao e Tradicao-Joseph Ratzinger (Bom Ler)

Na mesma linha de ideacuteias seguem-se duas outras seacuteries de pronunciamentos Vimos na introduccedilatildeo agrave parte anterior que a discussatildeo dogmaacutetica da ideacuteia de

Tradiccedilatildeo foi em parte prejudicada pela questatildeo do meacutetodo a seguir no Conciacutelio dever-se-ia abordar primeiro a reformatio a reforma praacutetica da Igreja como queria o ldquoKaiserrdquo Ou primeiro discutir a questatildeo dogmaacutetica como preferia o Papa40

[52] Este problema do meacutetodo embora resolvido no debate que entatildeo surgiu natildeo afetou diretamente a questatildeo da Tradiccedilatildeo como tal Mas como de fato estas duas questotildees ficaram ligadas entre si daiacute resultou que muitos oradores transformaram a questatildeo do meacutetodo (se se deveria falar dos abusos ou da Tradiccedilatildeo) em parte de sua argumentaccedilatildeo em torno do assunto em pauta41 O problema abusus e o problema Traditio ficaram de tal maneira associados na ocasiatildeo que pareciam formar no fundo um soacute assunto Por isso os oradores ora falavam em sentido positivo ora se pronunciavam em sentido negativo Isto correspondia tambeacutem ao propoacutesito reformista do Conciacutelio as traditiones representavam os abusus aos quais a Igreja se opunha Os Padres estavam cocircnscios de que condenar as traditiones era condenar Os usus ecclesiaelig o modo como a Igreja vivia a sua vida naquela eacutepoca

A outra seacuterie de pronunciamentos que se inclinavam ao mesmo sentido encontramo-la nas proposiccedilotildees que a auctoritas da Igreja apresenta como definitivas indicando uma iacutentima relaccedilatildeo entre a Tradiccedilatildeo e a institutio christiana 42

[53] Podemos agora retomar ao nosso ponto de partida e dar resposta agrave pergunta que propriamente significa a foacutermula ad nos usque pervenerunt Objetivamente natildeo se trata aqui de um historicismo que a foacutermula parece expressar Ao contraacuterio Trata-se da fidelidade perseverante da Igreja agrave institutio vitaelig christianaelig da legiacutetima forma de vida cristatilde em concreto no tempo presente da Igreja da institutio christiana que coloca a Escritura em primeiro lugar e que como tal isto eacute como vida decorrente da Escritura eacute fundamentalmente apostoacutelica embora tambeacutem sujeita a mudanccedilas como tudo o que eacute vivo

3 A Tradiccedilatildeo e o dogma eclesiaacutestico

40 Sobre o debate em torno da questatildeo do meacutetodo cf mais uma vez JEDIN op cit p9-82 e outras 41 Assim jaacute no discurso de Cervini antes analisado (CT I 484) no qual ele recorda o dilema do Conciacutelio se nos voltarmos contra as tradiccedilotildees ficaratildeo admirados os Padres Conciliares quasi reformationem fugiamus si ipsam reformationem sumimus iterum objicient traditiones relinquendas non esse Idecircntica era a situaccedilatildeo em que se encontrava o Bispo de Astorga nas duas intervenccedilotildees que fez no dia 23 de fevereiro de 1546 (CT V 13 e 19) segundo Seripando (I 484) helliptraditiones prius pertractandas consulit tantam enim conformitatem abusus qui ex sacris libris descendunt cum iis qui a traditionibus orti sunt habent ut sacris libris et traditionibus absolutis duo illa abusuum genera simul pertractari valeant Segundo Bonuccio (I 484) antes de tudo dever-se-ia tratar das Sagradas Escrituras dos cacircnones apostoacutelicos dos Conciacutelios gerais e das decretais pontifiacutecias Hisque ilusceptis ad abusus ex eisdem dependentes devenire 42 Assim principalmente de acordo com Afonso de Castro (CT I 484) Quoniam ultra traditiones apostolicas ecclesiae auctoritatem habemus quaelig ecclesiaelig auctoritas tonta apud nos est ut aliqui eam maioris roboris quam sacros libros esse sentiant Cf igualmente CT I 491 45 Na mesma linha pode-se ver uma seacuterie de pronunciamentos na citada obra de LEJAY Cf CT XII 524 (Tratado De traditionibus ecclesiaelig fevereiro ou marccedilo de 1546)

Uma segunda seacuterie de motivos eacute expressa no Decreto pela foacutermula traditiones tum ad fidem tum ad mores pertinentes Se como vimos a ideacuteia de Tradiccedilatildeo aparece muito limitada naquilo que os Padres conciliares chamam consuetudines observationes institutiones por outro lado o Procurador do Cardeal de Augsburgo Claudio Lejay SJ se fez o porta-voz de uma expressatildeo que em oposiccedilatildeo agraves traditiones caeligremoniales estabeleceu justamente o sentido da tradiccedilatildeo contida na feacute Seu tratado sobre a Tradiccedilatildeo composto para uso dos Padres conciliares inclui tambeacutem a foacutermula que foi adotada pelo Conciacutelio Aiacute se diz Denique multas veritates tum ad fidem tum ad mores pertinentes Ecclesia novit quas Scriptura aperte et expresse non continet Ele cita como exemplos as palavras persona essentia trinitas no Tratado da Santiacutessima Trindade consubstantialitas na Cristologia do Logos duas naturezas uma soacute Pessoa referentes ao dogma definido pelo Conciacutelio de Calcedocircnia E ainda Cristo Filho uacutenico de Maria duas vontades na uacutenica Pessoa de Cristo uma alma racional aleacutem do espiacuterito divino em Cristo Ana matildee de Maria o costume de fazer sinais da cruz a santificaccedilatildeo do domingo a maneira de rezar com face voltada [54] para o Oriente tudo isto ideacuteias e fatos da tradiccedilatildeo conciliar e da piedade cristatilde43

Cervini que aprovou o discurso de Lejay de 23 de fevereiro de 154644 pocircde dificilmente conciliar esta posiccedilatildeo com a sua expressa na jaacute citada carta ao Cardeal Farnese onde como vimos ele diz que o Espiacuterito Santo falou na Igreja e depois da Ascensatildeo do Senhor fala ainda maxime medianti i concilii45 Ele aiacute viu publicamente sublinhado o fato de que aquele ldquomaisrdquo que a Igreja viva representa em relaccedilatildeo agrave palavra meramente escrita natildeo se referia e natildeo se refere apenas agrave vita instituenda ou como ele prefere agrave caeligremonialia Refere-se tambeacutem agrave essentialia fidei que antes de tudo plenamente se expressam na Tradiccedilatildeo Tambeacutem aqui como se vecirc o interesse dominante natildeo estaacute na apresentaccedilatildeo historicista do assunto a partir do iniacutecio da Igreja mas na ideacuteia de que a influecircncia da Tradiccedilatildeo sobretudo atraveacutes da praxe conciliar eacute de fundamental importacircncia para a feacute para a doutrina crida e natildeo apenas para a piedade viva ou a caeligremonialia

4 O sentido do Decreto tridentino

Se recapitularmos o que ateacute agora dissemos veremos que no conjunto facilmente se podem reconhecer trecircs diferentes concepccedilotildees teoloacutegicas unidas entre si no texto definitivo do Decreto sobre a Tradiccedilatildeo Unidas mas natildeo equiparadas umas agraves outras Pelo contraacuterio apesar de sua grande diferenccedila foram elas apenas [55] mais ou menos justapostas e de novo por forccedila de uma tendecircncia comum relacionadas entre si

1 A concepccedilatildeo de Cervini que designamos como pneumatoloacutegica Com sua doutrina sobre os trecircs principia fidei insiste ele no caraacuteter dinacircmico do Cristo-evento

43 CT XII 523 LEJAY baseia-se evidentemente em listas de tradiccedilotildees confeccionadas naquele tempo (Cf ECK DRIEDO CANO BOTO NOGAROLA) Cf a este respeito Y CONGAR ldquoTraditions apostoliques non eacutecrites et suffisance de lEscrituresrdquo in Istina 6 (1959) p219-306 e principalmente a paacutegina 289 44 CT V 14 45 CT X 373

presente na Igreja Entende assim a Tradiccedilatildeo primariamente como a realidade espiritual da institutio vitaelig christianaelig

2 A concepccedilatildeo que podemos chamar de cerimonial Esta entende a Tradiccedilatildeo essencialmente como a seacuterie de consuetudines existentes ao lado da feacute como os usus ecclesiaelig que os Reformadores falsamente pretendem abolir como abusus Esta concepccedilatildeo chega a condenar a dignidade e Antiguumlidade apostoacutelica das tradiccedilotildees Sua ideacuteia eacute limitada pelo ad nos usque pervenerunt que inclui possibilidade de variar da parte das tradiccedilotildees donde a necessidade de reduccedilotildees Com os termos pervenire e conservare a recepccedilatildeo por parte da Igreja eacute considerada criteacuterio adicional ao lado da Antiguumlidade

3 A concepccedilatildeo que talvez possamos denominar dogmaacutetica Em oposiccedilatildeo agrave fixidez da ideacuteia de Tradiccedilatildeo reduzida agrave consuetudo salienta esta terceira hipoacutetese a extensatildeo do fenocircmeno Tradiccedilatildeo tambeacutem ao acircmbito da fides

Estas trecircs concepccedilotildees deram forma ao texto do Decreto de tal modo que as suas

linhas mestras derivam de Cervini e todo o texto deve ser entendido agrave luz de suas ideacuteias Contudo em duas passagens isto eacute no pervenerunt e no conservatas haacute influecircncia da segunda concepccedilatildeo enquanto no tum ad fidem tum ad mores haacute influecircncia da terceira

Em face destas trecircs concepccedilotildees das quais na realidade existem diversas variantes que tomadas em conjunto satildeo a expressatildeo das ideacuteias dominantes adotadas aparecem as teses de Bonuccio e de Nacchianti tatildeo postas em evidecircncia por Geiselmann como sentenccedilas contraacuterias De fato o parecer de Bonuccio claramente [56] se opotildee agrave segunda concepccedilatildeo (contra a supervalorizaccedilatildeo das consuetudines natildeo per pietatis affectus) ao passo que Nacchianti se levanta antes contra a terceira posiccedilatildeo e salienta a suficiecircncia da feacute recebida por meio da Escritura46

Seria de notar-se ainda que as concepccedilotildees segunda e terceira tecircm algo em comum Ambas opotildeem agrave visatildeo pneumatoloacutegica de Cervini da salvaccedilatildeo sempre presente uma visatildeo mais historicista relacionada com o prolongamento da salvaccedilatildeo operada uma soacute vez ou seja o ἑφάπαξ Na realidade deve-se dizer que embora de um lado tanto a visatildeo presencial de Cervini como tambeacutem a visatildeo historicista do outro grupo se consideradas isoladamente cada qual de per si sejam perigosas se natildeo insustentaacuteveis 46 Aliaacutes de acordo com uma informaccedilatildeo de Cervini parece que o Bispo de Chioggia finalmente renunciou agrave sua tese da suficiecircncia da Escritura na qual se inclinava a recusar as tradiccedilotildees Na carta de Cervini ao Cardeal Farnese de 27 de fevereiro de 1546 lemos hellip Chioggia che (quasi quasi) voleva dire queste traditioni essere superflue perorando che tutto quello che era necessario alla salute era scritto et allegando etiam S Agostino sopra lultimo capitulo di S Giovanni a questo proposito Pure per non poter negare che molte cose appartenenti almeno alli sacramenti non ci fussero venute ex tra ditione et per consequente che non tutte le cose necessarie alia nostra salute erano scritte poiche ebbe fatte molte distintioni concluse che ancor lui accettava queste ldquoche in la chiesa fusse qualque traditione apostolica non scrittardquo (et con queste parole diceva che se ne facesse il decreto) credo che molti sono restati scandalizati di lui (CT X Nr 315 paacutegs 399 411) Cf tambeacutem CT I 494 nota 9 e 495 nota 2 CT V 18 nota 5 e 19 e nota 1 O mesmo protesto que aparece contra Nacchianti manifesta-se tambeacutem na observaccedilatildeo de Massarelli Este chega a chamar aquele de novarum rerum cupidus (1 494 18) e esclarece que reprehensus est a multis (1 494 22) Diante disto eacute de todo destituiacuteda de creacutedito a importacircncia que Geiselmann lhe atribui mesmo se abstrairmos de outras razotildees jaacute conhecidas sobre as quais natildeo precisamos insistir

de outro lado pelo menos tornam possiacutevel uma exata visatildeo do conjunto devido agrave sua muacutetua confluecircncia e limitaccedilatildeo No texto atual estatildeo presentes embora pouco nitidamente ambos os pontos de vista o elemento presencial e o ἑφάπαξ Conveacutem que entendamos assim o texto de modo a considerarmos [57] ambos estes aspectos como essenciais Consequumlentemente reconheceremos que ambos pertencem constitutivamente agrave realidade da vida cristatilde e portanto tambeacutem agravequela parcela do Cristianismo a que damos o nome de Tradiccedilatildeo Estes dois elementos satildeo a presenccedila do Espiacuterito Santo e o seu nexo com o fato singular da salvaccedilatildeo ocorrido uma soacute vez por todas na histoacuteria dos homens

Assim se acharaacute finalmente a resposta agrave pergunta de corno noacutes devemos entender o parecer do Conciacutelio de Trento A primeira e mais importante conclusatildeo parece-me ser o fato de o Conciacutelio ter visto muito claramente o nexo entre Tradiccedilatildeo e Revelaccedilatildeo A seguir elaborou sempre em consonacircncia com a tradiccedilatildeo patriacutestica e medieval um conceito de Revelaccedilatildeo muito menos material do que o que seraacute adotado mais tarde pela teologia dos tempos modernos Somente assim se deve conceber a ideacuteia da Revelaccedilatildeo do Espiacuterito Santo na Igreja Partindo do ramo nitidamente patriacutestico da teologia medieval tatildeo francamente acolhido no discurso de Cervini deveria ser muito menos categoacuterica a opiniatildeo que coloca o teacutermino da Revelaccedilatildeo na morte do uacuteltimo Apoacutestolo Naturalmente esta questatildeo natildeo pode ser aqui estudada com maiores detalhes A sua soluccedilatildeo como entatildeo se apresentava aos teoacutelogos poderia ser hoje impostada apelando-se para as categorias da teologia atual Segundo esta podemos dizer que a Revelaccedilatildeo estaacute encerrada do ponto de vista de seu princiacutepio material Todavia estaacute e continua presente em sua realidade eficaz Noutros termos a Revelaccedilatildeo tem eacute verdade o seu ἑφάπαξ enquanto ela se realizou num determinado dia na Histoacuteria Entretanto ela tem tambeacutem o seu ldquohojerdquo permanente isto eacute o que foi uma vez por todas realizado na feacute da Igreja permanece sempre vivo e operante Assim a feacute cristatilde natildeo se volta apenas para o passado Abrange tambeacutem o presente e o futuro Eacute verdade que a posterior materializaccedilatildeo historicista da ideacuteia de Revelaccedilatildeo aparece jaacute claramente insinuada nos debates tridentinos corno um fato previsto mas ainda [58] natildeo consumado embora talvez se possa dizer que nos textos conciliares ficou definitivamente consagrada a sua aceitaccedilatildeo

Finalmente acrescentemos ainda que com base nos debates do Conciacutelio podemos estabelecer quatro elementos da ideacuteia de Tradiccedilatildeo 1 O aspecto natildeo-escrito da Revelaccedilatildeo ou do Evangelho contido na Biacuteblia e no coraccedilatildeo dos fieacuteis 2 A palavra do Espiacuterito Santo no decorrer de todo o tempo da Igreja

3 A atividade da Igreja nos Conciacutelios 4 A Tradiccedilatildeo lituacutergica e a da vida da Igreja em geral Nestes quatro elementos

que se deve ter sob os olhos pois formam o fundo ideoloacutegico do Decreto expressa-se a realidade uacutenica do tempo presente da Igreja cristatilde Nele estaacute presente todo o passado poacutes-apostoacutelico da Igreja (inclusive o proacuteprio tempo dos apoacutestolos) de modo que toda a sua vida eacute na Sagrada Escritura um elemento central embora natildeo o uacutenico Em suma deve ter ficado claro que o Conciacutelio de Trento a despeito do caraacuteter contrastante e fixo de sua ideacuteia de Revelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeo oferece uma visatildeo muito mais rica destes conceitos do que a que impregnou a mentalidade dos seacuteculos seguintes Justamente por

isso a teologia de hoje pode retirar daiacute novos subsiacutedios novo apoio para suas pesquisas e novas indicaccedilotildees sobre o verdadeiro caminho a seguir

Quadro sinoacutetico do Decreto tridentino sobre a Tradiccedilatildeo

Primeiro princiacutepio conforme Cervini (AT = Escritura)

Sacrosancta œcumenica et generalis Tridentina Synodus in Spiritu Sancto legitime congregata [] hoc sibi perpetuo ante oculos proponens ut sublatis erroribus puritas ipsa EVANGELII in Ecclesia conservetur quod PROMISSUM ANTE PER PROPHETAS IN SCRIPTURIS SANCTIS

Segundo princiacutepio conforme Cervini o Evangelho em parte escrito em parte insculpido nos coraccedilotildees

[59] DOMINUS NOSTER IESUS CHRISTUS DEI FILIUS PROPRIO ORE PRIMUM PROMULGAVIT DEINDE PER SUOS APOSTOLOS TAMQUAM FONTEM OMNIS ET SALUTARIS VERITATIS ET MORUM DISCIPLINAE OMNI CREATURAE PRAEDICARI IUSSIT PERSPICIENSQUE HANC VERITATEM ET DISCIPLINAM CONTINERI IN LIBRIS SCRIPTIS ET SINE SCRIPTO TRADITIONIBUS QUAE AB IPSIUS CHRISTI ORE AB APOSTOLIS ACCEPTAE AUT AB IPSIS APOSTOLIS SPIRITU SANCTO DICTANTE

Seripando Cervini e outros soacute consideram as tradiccedilotildees recebidas pela Igrej (ldquoad nos usquerdquo)

quasi per manus traditae ad nos usque pervenerunt

orthodoxorum Patrum exempla secuta omnes libros tam Veteris quam Novi Testamenti cum utriusque unus Deus sit auctor nec non TRADITIONES IPSAS

Lejay Tradiccedilatildeo contendo natildeo soacute a ldquoconsuetudordquo mas relacionada tambeacutem com a ldquofidesrdquo (foacutermula conciliar)

tum ad fidem tum ad mores pertinentes

Terceiro princiacutepio de Cernini Depois da Ascenccedilatildeo de Cristo o Espiacuterito Santo ensina tambeacutem os misteacuterios de Deus

TAMQUAM VEL ORETENUS A CHRISTO VEL A SPIRITU SANCTO DICTATAS

Seripando Cervini etc soacute satildeo consideradas as coisas recebidas pela Igreja (como acima)

et continua successione in Ecclesia catholica conservatas

Cervini Escritura e Tradiccedilatildeo procedem ambas do mesmo Espiacuterito Santo

pari pietatis affectu ac reverentia suscipit ac veneratur

  • Prefaacutecio
  • SEGUNDA PARTE
  • Explicaccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo
  • segundo o Decreto do Conciacutelio de Trento
Page 35: Revelacao e Tradicao-Joseph Ratzinger (Bom Ler)

Uma segunda seacuterie de motivos eacute expressa no Decreto pela foacutermula traditiones tum ad fidem tum ad mores pertinentes Se como vimos a ideacuteia de Tradiccedilatildeo aparece muito limitada naquilo que os Padres conciliares chamam consuetudines observationes institutiones por outro lado o Procurador do Cardeal de Augsburgo Claudio Lejay SJ se fez o porta-voz de uma expressatildeo que em oposiccedilatildeo agraves traditiones caeligremoniales estabeleceu justamente o sentido da tradiccedilatildeo contida na feacute Seu tratado sobre a Tradiccedilatildeo composto para uso dos Padres conciliares inclui tambeacutem a foacutermula que foi adotada pelo Conciacutelio Aiacute se diz Denique multas veritates tum ad fidem tum ad mores pertinentes Ecclesia novit quas Scriptura aperte et expresse non continet Ele cita como exemplos as palavras persona essentia trinitas no Tratado da Santiacutessima Trindade consubstantialitas na Cristologia do Logos duas naturezas uma soacute Pessoa referentes ao dogma definido pelo Conciacutelio de Calcedocircnia E ainda Cristo Filho uacutenico de Maria duas vontades na uacutenica Pessoa de Cristo uma alma racional aleacutem do espiacuterito divino em Cristo Ana matildee de Maria o costume de fazer sinais da cruz a santificaccedilatildeo do domingo a maneira de rezar com face voltada [54] para o Oriente tudo isto ideacuteias e fatos da tradiccedilatildeo conciliar e da piedade cristatilde43

Cervini que aprovou o discurso de Lejay de 23 de fevereiro de 154644 pocircde dificilmente conciliar esta posiccedilatildeo com a sua expressa na jaacute citada carta ao Cardeal Farnese onde como vimos ele diz que o Espiacuterito Santo falou na Igreja e depois da Ascensatildeo do Senhor fala ainda maxime medianti i concilii45 Ele aiacute viu publicamente sublinhado o fato de que aquele ldquomaisrdquo que a Igreja viva representa em relaccedilatildeo agrave palavra meramente escrita natildeo se referia e natildeo se refere apenas agrave vita instituenda ou como ele prefere agrave caeligremonialia Refere-se tambeacutem agrave essentialia fidei que antes de tudo plenamente se expressam na Tradiccedilatildeo Tambeacutem aqui como se vecirc o interesse dominante natildeo estaacute na apresentaccedilatildeo historicista do assunto a partir do iniacutecio da Igreja mas na ideacuteia de que a influecircncia da Tradiccedilatildeo sobretudo atraveacutes da praxe conciliar eacute de fundamental importacircncia para a feacute para a doutrina crida e natildeo apenas para a piedade viva ou a caeligremonialia

4 O sentido do Decreto tridentino

Se recapitularmos o que ateacute agora dissemos veremos que no conjunto facilmente se podem reconhecer trecircs diferentes concepccedilotildees teoloacutegicas unidas entre si no texto definitivo do Decreto sobre a Tradiccedilatildeo Unidas mas natildeo equiparadas umas agraves outras Pelo contraacuterio apesar de sua grande diferenccedila foram elas apenas [55] mais ou menos justapostas e de novo por forccedila de uma tendecircncia comum relacionadas entre si

1 A concepccedilatildeo de Cervini que designamos como pneumatoloacutegica Com sua doutrina sobre os trecircs principia fidei insiste ele no caraacuteter dinacircmico do Cristo-evento

43 CT XII 523 LEJAY baseia-se evidentemente em listas de tradiccedilotildees confeccionadas naquele tempo (Cf ECK DRIEDO CANO BOTO NOGAROLA) Cf a este respeito Y CONGAR ldquoTraditions apostoliques non eacutecrites et suffisance de lEscrituresrdquo in Istina 6 (1959) p219-306 e principalmente a paacutegina 289 44 CT V 14 45 CT X 373

presente na Igreja Entende assim a Tradiccedilatildeo primariamente como a realidade espiritual da institutio vitaelig christianaelig

2 A concepccedilatildeo que podemos chamar de cerimonial Esta entende a Tradiccedilatildeo essencialmente como a seacuterie de consuetudines existentes ao lado da feacute como os usus ecclesiaelig que os Reformadores falsamente pretendem abolir como abusus Esta concepccedilatildeo chega a condenar a dignidade e Antiguumlidade apostoacutelica das tradiccedilotildees Sua ideacuteia eacute limitada pelo ad nos usque pervenerunt que inclui possibilidade de variar da parte das tradiccedilotildees donde a necessidade de reduccedilotildees Com os termos pervenire e conservare a recepccedilatildeo por parte da Igreja eacute considerada criteacuterio adicional ao lado da Antiguumlidade

3 A concepccedilatildeo que talvez possamos denominar dogmaacutetica Em oposiccedilatildeo agrave fixidez da ideacuteia de Tradiccedilatildeo reduzida agrave consuetudo salienta esta terceira hipoacutetese a extensatildeo do fenocircmeno Tradiccedilatildeo tambeacutem ao acircmbito da fides

Estas trecircs concepccedilotildees deram forma ao texto do Decreto de tal modo que as suas

linhas mestras derivam de Cervini e todo o texto deve ser entendido agrave luz de suas ideacuteias Contudo em duas passagens isto eacute no pervenerunt e no conservatas haacute influecircncia da segunda concepccedilatildeo enquanto no tum ad fidem tum ad mores haacute influecircncia da terceira

Em face destas trecircs concepccedilotildees das quais na realidade existem diversas variantes que tomadas em conjunto satildeo a expressatildeo das ideacuteias dominantes adotadas aparecem as teses de Bonuccio e de Nacchianti tatildeo postas em evidecircncia por Geiselmann como sentenccedilas contraacuterias De fato o parecer de Bonuccio claramente [56] se opotildee agrave segunda concepccedilatildeo (contra a supervalorizaccedilatildeo das consuetudines natildeo per pietatis affectus) ao passo que Nacchianti se levanta antes contra a terceira posiccedilatildeo e salienta a suficiecircncia da feacute recebida por meio da Escritura46

Seria de notar-se ainda que as concepccedilotildees segunda e terceira tecircm algo em comum Ambas opotildeem agrave visatildeo pneumatoloacutegica de Cervini da salvaccedilatildeo sempre presente uma visatildeo mais historicista relacionada com o prolongamento da salvaccedilatildeo operada uma soacute vez ou seja o ἑφάπαξ Na realidade deve-se dizer que embora de um lado tanto a visatildeo presencial de Cervini como tambeacutem a visatildeo historicista do outro grupo se consideradas isoladamente cada qual de per si sejam perigosas se natildeo insustentaacuteveis 46 Aliaacutes de acordo com uma informaccedilatildeo de Cervini parece que o Bispo de Chioggia finalmente renunciou agrave sua tese da suficiecircncia da Escritura na qual se inclinava a recusar as tradiccedilotildees Na carta de Cervini ao Cardeal Farnese de 27 de fevereiro de 1546 lemos hellip Chioggia che (quasi quasi) voleva dire queste traditioni essere superflue perorando che tutto quello che era necessario alla salute era scritto et allegando etiam S Agostino sopra lultimo capitulo di S Giovanni a questo proposito Pure per non poter negare che molte cose appartenenti almeno alli sacramenti non ci fussero venute ex tra ditione et per consequente che non tutte le cose necessarie alia nostra salute erano scritte poiche ebbe fatte molte distintioni concluse che ancor lui accettava queste ldquoche in la chiesa fusse qualque traditione apostolica non scrittardquo (et con queste parole diceva che se ne facesse il decreto) credo che molti sono restati scandalizati di lui (CT X Nr 315 paacutegs 399 411) Cf tambeacutem CT I 494 nota 9 e 495 nota 2 CT V 18 nota 5 e 19 e nota 1 O mesmo protesto que aparece contra Nacchianti manifesta-se tambeacutem na observaccedilatildeo de Massarelli Este chega a chamar aquele de novarum rerum cupidus (1 494 18) e esclarece que reprehensus est a multis (1 494 22) Diante disto eacute de todo destituiacuteda de creacutedito a importacircncia que Geiselmann lhe atribui mesmo se abstrairmos de outras razotildees jaacute conhecidas sobre as quais natildeo precisamos insistir

de outro lado pelo menos tornam possiacutevel uma exata visatildeo do conjunto devido agrave sua muacutetua confluecircncia e limitaccedilatildeo No texto atual estatildeo presentes embora pouco nitidamente ambos os pontos de vista o elemento presencial e o ἑφάπαξ Conveacutem que entendamos assim o texto de modo a considerarmos [57] ambos estes aspectos como essenciais Consequumlentemente reconheceremos que ambos pertencem constitutivamente agrave realidade da vida cristatilde e portanto tambeacutem agravequela parcela do Cristianismo a que damos o nome de Tradiccedilatildeo Estes dois elementos satildeo a presenccedila do Espiacuterito Santo e o seu nexo com o fato singular da salvaccedilatildeo ocorrido uma soacute vez por todas na histoacuteria dos homens

Assim se acharaacute finalmente a resposta agrave pergunta de corno noacutes devemos entender o parecer do Conciacutelio de Trento A primeira e mais importante conclusatildeo parece-me ser o fato de o Conciacutelio ter visto muito claramente o nexo entre Tradiccedilatildeo e Revelaccedilatildeo A seguir elaborou sempre em consonacircncia com a tradiccedilatildeo patriacutestica e medieval um conceito de Revelaccedilatildeo muito menos material do que o que seraacute adotado mais tarde pela teologia dos tempos modernos Somente assim se deve conceber a ideacuteia da Revelaccedilatildeo do Espiacuterito Santo na Igreja Partindo do ramo nitidamente patriacutestico da teologia medieval tatildeo francamente acolhido no discurso de Cervini deveria ser muito menos categoacuterica a opiniatildeo que coloca o teacutermino da Revelaccedilatildeo na morte do uacuteltimo Apoacutestolo Naturalmente esta questatildeo natildeo pode ser aqui estudada com maiores detalhes A sua soluccedilatildeo como entatildeo se apresentava aos teoacutelogos poderia ser hoje impostada apelando-se para as categorias da teologia atual Segundo esta podemos dizer que a Revelaccedilatildeo estaacute encerrada do ponto de vista de seu princiacutepio material Todavia estaacute e continua presente em sua realidade eficaz Noutros termos a Revelaccedilatildeo tem eacute verdade o seu ἑφάπαξ enquanto ela se realizou num determinado dia na Histoacuteria Entretanto ela tem tambeacutem o seu ldquohojerdquo permanente isto eacute o que foi uma vez por todas realizado na feacute da Igreja permanece sempre vivo e operante Assim a feacute cristatilde natildeo se volta apenas para o passado Abrange tambeacutem o presente e o futuro Eacute verdade que a posterior materializaccedilatildeo historicista da ideacuteia de Revelaccedilatildeo aparece jaacute claramente insinuada nos debates tridentinos corno um fato previsto mas ainda [58] natildeo consumado embora talvez se possa dizer que nos textos conciliares ficou definitivamente consagrada a sua aceitaccedilatildeo

Finalmente acrescentemos ainda que com base nos debates do Conciacutelio podemos estabelecer quatro elementos da ideacuteia de Tradiccedilatildeo 1 O aspecto natildeo-escrito da Revelaccedilatildeo ou do Evangelho contido na Biacuteblia e no coraccedilatildeo dos fieacuteis 2 A palavra do Espiacuterito Santo no decorrer de todo o tempo da Igreja

3 A atividade da Igreja nos Conciacutelios 4 A Tradiccedilatildeo lituacutergica e a da vida da Igreja em geral Nestes quatro elementos

que se deve ter sob os olhos pois formam o fundo ideoloacutegico do Decreto expressa-se a realidade uacutenica do tempo presente da Igreja cristatilde Nele estaacute presente todo o passado poacutes-apostoacutelico da Igreja (inclusive o proacuteprio tempo dos apoacutestolos) de modo que toda a sua vida eacute na Sagrada Escritura um elemento central embora natildeo o uacutenico Em suma deve ter ficado claro que o Conciacutelio de Trento a despeito do caraacuteter contrastante e fixo de sua ideacuteia de Revelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeo oferece uma visatildeo muito mais rica destes conceitos do que a que impregnou a mentalidade dos seacuteculos seguintes Justamente por

isso a teologia de hoje pode retirar daiacute novos subsiacutedios novo apoio para suas pesquisas e novas indicaccedilotildees sobre o verdadeiro caminho a seguir

Quadro sinoacutetico do Decreto tridentino sobre a Tradiccedilatildeo

Primeiro princiacutepio conforme Cervini (AT = Escritura)

Sacrosancta œcumenica et generalis Tridentina Synodus in Spiritu Sancto legitime congregata [] hoc sibi perpetuo ante oculos proponens ut sublatis erroribus puritas ipsa EVANGELII in Ecclesia conservetur quod PROMISSUM ANTE PER PROPHETAS IN SCRIPTURIS SANCTIS

Segundo princiacutepio conforme Cervini o Evangelho em parte escrito em parte insculpido nos coraccedilotildees

[59] DOMINUS NOSTER IESUS CHRISTUS DEI FILIUS PROPRIO ORE PRIMUM PROMULGAVIT DEINDE PER SUOS APOSTOLOS TAMQUAM FONTEM OMNIS ET SALUTARIS VERITATIS ET MORUM DISCIPLINAE OMNI CREATURAE PRAEDICARI IUSSIT PERSPICIENSQUE HANC VERITATEM ET DISCIPLINAM CONTINERI IN LIBRIS SCRIPTIS ET SINE SCRIPTO TRADITIONIBUS QUAE AB IPSIUS CHRISTI ORE AB APOSTOLIS ACCEPTAE AUT AB IPSIS APOSTOLIS SPIRITU SANCTO DICTANTE

Seripando Cervini e outros soacute consideram as tradiccedilotildees recebidas pela Igrej (ldquoad nos usquerdquo)

quasi per manus traditae ad nos usque pervenerunt

orthodoxorum Patrum exempla secuta omnes libros tam Veteris quam Novi Testamenti cum utriusque unus Deus sit auctor nec non TRADITIONES IPSAS

Lejay Tradiccedilatildeo contendo natildeo soacute a ldquoconsuetudordquo mas relacionada tambeacutem com a ldquofidesrdquo (foacutermula conciliar)

tum ad fidem tum ad mores pertinentes

Terceiro princiacutepio de Cernini Depois da Ascenccedilatildeo de Cristo o Espiacuterito Santo ensina tambeacutem os misteacuterios de Deus

TAMQUAM VEL ORETENUS A CHRISTO VEL A SPIRITU SANCTO DICTATAS

Seripando Cervini etc soacute satildeo consideradas as coisas recebidas pela Igreja (como acima)

et continua successione in Ecclesia catholica conservatas

Cervini Escritura e Tradiccedilatildeo procedem ambas do mesmo Espiacuterito Santo

pari pietatis affectu ac reverentia suscipit ac veneratur

  • Prefaacutecio
  • SEGUNDA PARTE
  • Explicaccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo
  • segundo o Decreto do Conciacutelio de Trento
Page 36: Revelacao e Tradicao-Joseph Ratzinger (Bom Ler)

presente na Igreja Entende assim a Tradiccedilatildeo primariamente como a realidade espiritual da institutio vitaelig christianaelig

2 A concepccedilatildeo que podemos chamar de cerimonial Esta entende a Tradiccedilatildeo essencialmente como a seacuterie de consuetudines existentes ao lado da feacute como os usus ecclesiaelig que os Reformadores falsamente pretendem abolir como abusus Esta concepccedilatildeo chega a condenar a dignidade e Antiguumlidade apostoacutelica das tradiccedilotildees Sua ideacuteia eacute limitada pelo ad nos usque pervenerunt que inclui possibilidade de variar da parte das tradiccedilotildees donde a necessidade de reduccedilotildees Com os termos pervenire e conservare a recepccedilatildeo por parte da Igreja eacute considerada criteacuterio adicional ao lado da Antiguumlidade

3 A concepccedilatildeo que talvez possamos denominar dogmaacutetica Em oposiccedilatildeo agrave fixidez da ideacuteia de Tradiccedilatildeo reduzida agrave consuetudo salienta esta terceira hipoacutetese a extensatildeo do fenocircmeno Tradiccedilatildeo tambeacutem ao acircmbito da fides

Estas trecircs concepccedilotildees deram forma ao texto do Decreto de tal modo que as suas

linhas mestras derivam de Cervini e todo o texto deve ser entendido agrave luz de suas ideacuteias Contudo em duas passagens isto eacute no pervenerunt e no conservatas haacute influecircncia da segunda concepccedilatildeo enquanto no tum ad fidem tum ad mores haacute influecircncia da terceira

Em face destas trecircs concepccedilotildees das quais na realidade existem diversas variantes que tomadas em conjunto satildeo a expressatildeo das ideacuteias dominantes adotadas aparecem as teses de Bonuccio e de Nacchianti tatildeo postas em evidecircncia por Geiselmann como sentenccedilas contraacuterias De fato o parecer de Bonuccio claramente [56] se opotildee agrave segunda concepccedilatildeo (contra a supervalorizaccedilatildeo das consuetudines natildeo per pietatis affectus) ao passo que Nacchianti se levanta antes contra a terceira posiccedilatildeo e salienta a suficiecircncia da feacute recebida por meio da Escritura46

Seria de notar-se ainda que as concepccedilotildees segunda e terceira tecircm algo em comum Ambas opotildeem agrave visatildeo pneumatoloacutegica de Cervini da salvaccedilatildeo sempre presente uma visatildeo mais historicista relacionada com o prolongamento da salvaccedilatildeo operada uma soacute vez ou seja o ἑφάπαξ Na realidade deve-se dizer que embora de um lado tanto a visatildeo presencial de Cervini como tambeacutem a visatildeo historicista do outro grupo se consideradas isoladamente cada qual de per si sejam perigosas se natildeo insustentaacuteveis 46 Aliaacutes de acordo com uma informaccedilatildeo de Cervini parece que o Bispo de Chioggia finalmente renunciou agrave sua tese da suficiecircncia da Escritura na qual se inclinava a recusar as tradiccedilotildees Na carta de Cervini ao Cardeal Farnese de 27 de fevereiro de 1546 lemos hellip Chioggia che (quasi quasi) voleva dire queste traditioni essere superflue perorando che tutto quello che era necessario alla salute era scritto et allegando etiam S Agostino sopra lultimo capitulo di S Giovanni a questo proposito Pure per non poter negare che molte cose appartenenti almeno alli sacramenti non ci fussero venute ex tra ditione et per consequente che non tutte le cose necessarie alia nostra salute erano scritte poiche ebbe fatte molte distintioni concluse che ancor lui accettava queste ldquoche in la chiesa fusse qualque traditione apostolica non scrittardquo (et con queste parole diceva che se ne facesse il decreto) credo che molti sono restati scandalizati di lui (CT X Nr 315 paacutegs 399 411) Cf tambeacutem CT I 494 nota 9 e 495 nota 2 CT V 18 nota 5 e 19 e nota 1 O mesmo protesto que aparece contra Nacchianti manifesta-se tambeacutem na observaccedilatildeo de Massarelli Este chega a chamar aquele de novarum rerum cupidus (1 494 18) e esclarece que reprehensus est a multis (1 494 22) Diante disto eacute de todo destituiacuteda de creacutedito a importacircncia que Geiselmann lhe atribui mesmo se abstrairmos de outras razotildees jaacute conhecidas sobre as quais natildeo precisamos insistir

de outro lado pelo menos tornam possiacutevel uma exata visatildeo do conjunto devido agrave sua muacutetua confluecircncia e limitaccedilatildeo No texto atual estatildeo presentes embora pouco nitidamente ambos os pontos de vista o elemento presencial e o ἑφάπαξ Conveacutem que entendamos assim o texto de modo a considerarmos [57] ambos estes aspectos como essenciais Consequumlentemente reconheceremos que ambos pertencem constitutivamente agrave realidade da vida cristatilde e portanto tambeacutem agravequela parcela do Cristianismo a que damos o nome de Tradiccedilatildeo Estes dois elementos satildeo a presenccedila do Espiacuterito Santo e o seu nexo com o fato singular da salvaccedilatildeo ocorrido uma soacute vez por todas na histoacuteria dos homens

Assim se acharaacute finalmente a resposta agrave pergunta de corno noacutes devemos entender o parecer do Conciacutelio de Trento A primeira e mais importante conclusatildeo parece-me ser o fato de o Conciacutelio ter visto muito claramente o nexo entre Tradiccedilatildeo e Revelaccedilatildeo A seguir elaborou sempre em consonacircncia com a tradiccedilatildeo patriacutestica e medieval um conceito de Revelaccedilatildeo muito menos material do que o que seraacute adotado mais tarde pela teologia dos tempos modernos Somente assim se deve conceber a ideacuteia da Revelaccedilatildeo do Espiacuterito Santo na Igreja Partindo do ramo nitidamente patriacutestico da teologia medieval tatildeo francamente acolhido no discurso de Cervini deveria ser muito menos categoacuterica a opiniatildeo que coloca o teacutermino da Revelaccedilatildeo na morte do uacuteltimo Apoacutestolo Naturalmente esta questatildeo natildeo pode ser aqui estudada com maiores detalhes A sua soluccedilatildeo como entatildeo se apresentava aos teoacutelogos poderia ser hoje impostada apelando-se para as categorias da teologia atual Segundo esta podemos dizer que a Revelaccedilatildeo estaacute encerrada do ponto de vista de seu princiacutepio material Todavia estaacute e continua presente em sua realidade eficaz Noutros termos a Revelaccedilatildeo tem eacute verdade o seu ἑφάπαξ enquanto ela se realizou num determinado dia na Histoacuteria Entretanto ela tem tambeacutem o seu ldquohojerdquo permanente isto eacute o que foi uma vez por todas realizado na feacute da Igreja permanece sempre vivo e operante Assim a feacute cristatilde natildeo se volta apenas para o passado Abrange tambeacutem o presente e o futuro Eacute verdade que a posterior materializaccedilatildeo historicista da ideacuteia de Revelaccedilatildeo aparece jaacute claramente insinuada nos debates tridentinos corno um fato previsto mas ainda [58] natildeo consumado embora talvez se possa dizer que nos textos conciliares ficou definitivamente consagrada a sua aceitaccedilatildeo

Finalmente acrescentemos ainda que com base nos debates do Conciacutelio podemos estabelecer quatro elementos da ideacuteia de Tradiccedilatildeo 1 O aspecto natildeo-escrito da Revelaccedilatildeo ou do Evangelho contido na Biacuteblia e no coraccedilatildeo dos fieacuteis 2 A palavra do Espiacuterito Santo no decorrer de todo o tempo da Igreja

3 A atividade da Igreja nos Conciacutelios 4 A Tradiccedilatildeo lituacutergica e a da vida da Igreja em geral Nestes quatro elementos

que se deve ter sob os olhos pois formam o fundo ideoloacutegico do Decreto expressa-se a realidade uacutenica do tempo presente da Igreja cristatilde Nele estaacute presente todo o passado poacutes-apostoacutelico da Igreja (inclusive o proacuteprio tempo dos apoacutestolos) de modo que toda a sua vida eacute na Sagrada Escritura um elemento central embora natildeo o uacutenico Em suma deve ter ficado claro que o Conciacutelio de Trento a despeito do caraacuteter contrastante e fixo de sua ideacuteia de Revelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeo oferece uma visatildeo muito mais rica destes conceitos do que a que impregnou a mentalidade dos seacuteculos seguintes Justamente por

isso a teologia de hoje pode retirar daiacute novos subsiacutedios novo apoio para suas pesquisas e novas indicaccedilotildees sobre o verdadeiro caminho a seguir

Quadro sinoacutetico do Decreto tridentino sobre a Tradiccedilatildeo

Primeiro princiacutepio conforme Cervini (AT = Escritura)

Sacrosancta œcumenica et generalis Tridentina Synodus in Spiritu Sancto legitime congregata [] hoc sibi perpetuo ante oculos proponens ut sublatis erroribus puritas ipsa EVANGELII in Ecclesia conservetur quod PROMISSUM ANTE PER PROPHETAS IN SCRIPTURIS SANCTIS

Segundo princiacutepio conforme Cervini o Evangelho em parte escrito em parte insculpido nos coraccedilotildees

[59] DOMINUS NOSTER IESUS CHRISTUS DEI FILIUS PROPRIO ORE PRIMUM PROMULGAVIT DEINDE PER SUOS APOSTOLOS TAMQUAM FONTEM OMNIS ET SALUTARIS VERITATIS ET MORUM DISCIPLINAE OMNI CREATURAE PRAEDICARI IUSSIT PERSPICIENSQUE HANC VERITATEM ET DISCIPLINAM CONTINERI IN LIBRIS SCRIPTIS ET SINE SCRIPTO TRADITIONIBUS QUAE AB IPSIUS CHRISTI ORE AB APOSTOLIS ACCEPTAE AUT AB IPSIS APOSTOLIS SPIRITU SANCTO DICTANTE

Seripando Cervini e outros soacute consideram as tradiccedilotildees recebidas pela Igrej (ldquoad nos usquerdquo)

quasi per manus traditae ad nos usque pervenerunt

orthodoxorum Patrum exempla secuta omnes libros tam Veteris quam Novi Testamenti cum utriusque unus Deus sit auctor nec non TRADITIONES IPSAS

Lejay Tradiccedilatildeo contendo natildeo soacute a ldquoconsuetudordquo mas relacionada tambeacutem com a ldquofidesrdquo (foacutermula conciliar)

tum ad fidem tum ad mores pertinentes

Terceiro princiacutepio de Cernini Depois da Ascenccedilatildeo de Cristo o Espiacuterito Santo ensina tambeacutem os misteacuterios de Deus

TAMQUAM VEL ORETENUS A CHRISTO VEL A SPIRITU SANCTO DICTATAS

Seripando Cervini etc soacute satildeo consideradas as coisas recebidas pela Igreja (como acima)

et continua successione in Ecclesia catholica conservatas

Cervini Escritura e Tradiccedilatildeo procedem ambas do mesmo Espiacuterito Santo

pari pietatis affectu ac reverentia suscipit ac veneratur

  • Prefaacutecio
  • SEGUNDA PARTE
  • Explicaccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo
  • segundo o Decreto do Conciacutelio de Trento
Page 37: Revelacao e Tradicao-Joseph Ratzinger (Bom Ler)

de outro lado pelo menos tornam possiacutevel uma exata visatildeo do conjunto devido agrave sua muacutetua confluecircncia e limitaccedilatildeo No texto atual estatildeo presentes embora pouco nitidamente ambos os pontos de vista o elemento presencial e o ἑφάπαξ Conveacutem que entendamos assim o texto de modo a considerarmos [57] ambos estes aspectos como essenciais Consequumlentemente reconheceremos que ambos pertencem constitutivamente agrave realidade da vida cristatilde e portanto tambeacutem agravequela parcela do Cristianismo a que damos o nome de Tradiccedilatildeo Estes dois elementos satildeo a presenccedila do Espiacuterito Santo e o seu nexo com o fato singular da salvaccedilatildeo ocorrido uma soacute vez por todas na histoacuteria dos homens

Assim se acharaacute finalmente a resposta agrave pergunta de corno noacutes devemos entender o parecer do Conciacutelio de Trento A primeira e mais importante conclusatildeo parece-me ser o fato de o Conciacutelio ter visto muito claramente o nexo entre Tradiccedilatildeo e Revelaccedilatildeo A seguir elaborou sempre em consonacircncia com a tradiccedilatildeo patriacutestica e medieval um conceito de Revelaccedilatildeo muito menos material do que o que seraacute adotado mais tarde pela teologia dos tempos modernos Somente assim se deve conceber a ideacuteia da Revelaccedilatildeo do Espiacuterito Santo na Igreja Partindo do ramo nitidamente patriacutestico da teologia medieval tatildeo francamente acolhido no discurso de Cervini deveria ser muito menos categoacuterica a opiniatildeo que coloca o teacutermino da Revelaccedilatildeo na morte do uacuteltimo Apoacutestolo Naturalmente esta questatildeo natildeo pode ser aqui estudada com maiores detalhes A sua soluccedilatildeo como entatildeo se apresentava aos teoacutelogos poderia ser hoje impostada apelando-se para as categorias da teologia atual Segundo esta podemos dizer que a Revelaccedilatildeo estaacute encerrada do ponto de vista de seu princiacutepio material Todavia estaacute e continua presente em sua realidade eficaz Noutros termos a Revelaccedilatildeo tem eacute verdade o seu ἑφάπαξ enquanto ela se realizou num determinado dia na Histoacuteria Entretanto ela tem tambeacutem o seu ldquohojerdquo permanente isto eacute o que foi uma vez por todas realizado na feacute da Igreja permanece sempre vivo e operante Assim a feacute cristatilde natildeo se volta apenas para o passado Abrange tambeacutem o presente e o futuro Eacute verdade que a posterior materializaccedilatildeo historicista da ideacuteia de Revelaccedilatildeo aparece jaacute claramente insinuada nos debates tridentinos corno um fato previsto mas ainda [58] natildeo consumado embora talvez se possa dizer que nos textos conciliares ficou definitivamente consagrada a sua aceitaccedilatildeo

Finalmente acrescentemos ainda que com base nos debates do Conciacutelio podemos estabelecer quatro elementos da ideacuteia de Tradiccedilatildeo 1 O aspecto natildeo-escrito da Revelaccedilatildeo ou do Evangelho contido na Biacuteblia e no coraccedilatildeo dos fieacuteis 2 A palavra do Espiacuterito Santo no decorrer de todo o tempo da Igreja

3 A atividade da Igreja nos Conciacutelios 4 A Tradiccedilatildeo lituacutergica e a da vida da Igreja em geral Nestes quatro elementos

que se deve ter sob os olhos pois formam o fundo ideoloacutegico do Decreto expressa-se a realidade uacutenica do tempo presente da Igreja cristatilde Nele estaacute presente todo o passado poacutes-apostoacutelico da Igreja (inclusive o proacuteprio tempo dos apoacutestolos) de modo que toda a sua vida eacute na Sagrada Escritura um elemento central embora natildeo o uacutenico Em suma deve ter ficado claro que o Conciacutelio de Trento a despeito do caraacuteter contrastante e fixo de sua ideacuteia de Revelaccedilatildeo e Tradiccedilatildeo oferece uma visatildeo muito mais rica destes conceitos do que a que impregnou a mentalidade dos seacuteculos seguintes Justamente por

isso a teologia de hoje pode retirar daiacute novos subsiacutedios novo apoio para suas pesquisas e novas indicaccedilotildees sobre o verdadeiro caminho a seguir

Quadro sinoacutetico do Decreto tridentino sobre a Tradiccedilatildeo

Primeiro princiacutepio conforme Cervini (AT = Escritura)

Sacrosancta œcumenica et generalis Tridentina Synodus in Spiritu Sancto legitime congregata [] hoc sibi perpetuo ante oculos proponens ut sublatis erroribus puritas ipsa EVANGELII in Ecclesia conservetur quod PROMISSUM ANTE PER PROPHETAS IN SCRIPTURIS SANCTIS

Segundo princiacutepio conforme Cervini o Evangelho em parte escrito em parte insculpido nos coraccedilotildees

[59] DOMINUS NOSTER IESUS CHRISTUS DEI FILIUS PROPRIO ORE PRIMUM PROMULGAVIT DEINDE PER SUOS APOSTOLOS TAMQUAM FONTEM OMNIS ET SALUTARIS VERITATIS ET MORUM DISCIPLINAE OMNI CREATURAE PRAEDICARI IUSSIT PERSPICIENSQUE HANC VERITATEM ET DISCIPLINAM CONTINERI IN LIBRIS SCRIPTIS ET SINE SCRIPTO TRADITIONIBUS QUAE AB IPSIUS CHRISTI ORE AB APOSTOLIS ACCEPTAE AUT AB IPSIS APOSTOLIS SPIRITU SANCTO DICTANTE

Seripando Cervini e outros soacute consideram as tradiccedilotildees recebidas pela Igrej (ldquoad nos usquerdquo)

quasi per manus traditae ad nos usque pervenerunt

orthodoxorum Patrum exempla secuta omnes libros tam Veteris quam Novi Testamenti cum utriusque unus Deus sit auctor nec non TRADITIONES IPSAS

Lejay Tradiccedilatildeo contendo natildeo soacute a ldquoconsuetudordquo mas relacionada tambeacutem com a ldquofidesrdquo (foacutermula conciliar)

tum ad fidem tum ad mores pertinentes

Terceiro princiacutepio de Cernini Depois da Ascenccedilatildeo de Cristo o Espiacuterito Santo ensina tambeacutem os misteacuterios de Deus

TAMQUAM VEL ORETENUS A CHRISTO VEL A SPIRITU SANCTO DICTATAS

Seripando Cervini etc soacute satildeo consideradas as coisas recebidas pela Igreja (como acima)

et continua successione in Ecclesia catholica conservatas

Cervini Escritura e Tradiccedilatildeo procedem ambas do mesmo Espiacuterito Santo

pari pietatis affectu ac reverentia suscipit ac veneratur

  • Prefaacutecio
  • SEGUNDA PARTE
  • Explicaccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo
  • segundo o Decreto do Conciacutelio de Trento
Page 38: Revelacao e Tradicao-Joseph Ratzinger (Bom Ler)

isso a teologia de hoje pode retirar daiacute novos subsiacutedios novo apoio para suas pesquisas e novas indicaccedilotildees sobre o verdadeiro caminho a seguir

Quadro sinoacutetico do Decreto tridentino sobre a Tradiccedilatildeo

Primeiro princiacutepio conforme Cervini (AT = Escritura)

Sacrosancta œcumenica et generalis Tridentina Synodus in Spiritu Sancto legitime congregata [] hoc sibi perpetuo ante oculos proponens ut sublatis erroribus puritas ipsa EVANGELII in Ecclesia conservetur quod PROMISSUM ANTE PER PROPHETAS IN SCRIPTURIS SANCTIS

Segundo princiacutepio conforme Cervini o Evangelho em parte escrito em parte insculpido nos coraccedilotildees

[59] DOMINUS NOSTER IESUS CHRISTUS DEI FILIUS PROPRIO ORE PRIMUM PROMULGAVIT DEINDE PER SUOS APOSTOLOS TAMQUAM FONTEM OMNIS ET SALUTARIS VERITATIS ET MORUM DISCIPLINAE OMNI CREATURAE PRAEDICARI IUSSIT PERSPICIENSQUE HANC VERITATEM ET DISCIPLINAM CONTINERI IN LIBRIS SCRIPTIS ET SINE SCRIPTO TRADITIONIBUS QUAE AB IPSIUS CHRISTI ORE AB APOSTOLIS ACCEPTAE AUT AB IPSIS APOSTOLIS SPIRITU SANCTO DICTANTE

Seripando Cervini e outros soacute consideram as tradiccedilotildees recebidas pela Igrej (ldquoad nos usquerdquo)

quasi per manus traditae ad nos usque pervenerunt

orthodoxorum Patrum exempla secuta omnes libros tam Veteris quam Novi Testamenti cum utriusque unus Deus sit auctor nec non TRADITIONES IPSAS

Lejay Tradiccedilatildeo contendo natildeo soacute a ldquoconsuetudordquo mas relacionada tambeacutem com a ldquofidesrdquo (foacutermula conciliar)

tum ad fidem tum ad mores pertinentes

Terceiro princiacutepio de Cernini Depois da Ascenccedilatildeo de Cristo o Espiacuterito Santo ensina tambeacutem os misteacuterios de Deus

TAMQUAM VEL ORETENUS A CHRISTO VEL A SPIRITU SANCTO DICTATAS

Seripando Cervini etc soacute satildeo consideradas as coisas recebidas pela Igreja (como acima)

et continua successione in Ecclesia catholica conservatas

Cervini Escritura e Tradiccedilatildeo procedem ambas do mesmo Espiacuterito Santo

pari pietatis affectu ac reverentia suscipit ac veneratur

  • Prefaacutecio
  • SEGUNDA PARTE
  • Explicaccedilatildeo do conceito de Tradiccedilatildeo
  • segundo o Decreto do Conciacutelio de Trento