Revisit an Do a Comunidade Cafuza

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

REVISITANDO A COMUNIDADE CAFUZA a partir da problemtica de gnero

Tnia WelterOrientadora: Dra. Snia Weidner Maluf

Dissertao apresentada ao Programa de PsGraduao em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina, como requisito parcial obteno do grau de Mestre em Antropologia Social.

Florianpolis, abril de 1999.

A OCUPAO DA TERRA1(Rosana da Penha)

Sem uma terra vivia um povo. Sem um povo, a terra no conseguia produzir.

Foi lutando e batalhando que o povo Cafuzo conseguiu ganhar sua terra prometida.

Foi unida na f com Deus, Nosso pai, E arriscando suas vidas que a Comunidade Cafuza ganhou sua terra e venceu.

Poesia escrita pela Cafuza Rosana da Penha e declamada por ocasio da comemorao do sexto aniversrio de ocupao da terra pela Comunidade Cafuza em 26 de novembro de 1998.

1

Ao meu pai, Vulmar (In memoriam) e minha me, Maria, pela grandeza com que enfrentaram a luta cotidiana. Ao Pedro pela pacincia, estmulo e cumplicidade. Ao Tiago e Lenina, fonte de inspirao e de orgulho.

Agradecimentos

CAPES, pela concesso de uma bolsa de estudos durante o perodo do curso. Aos funcionrios do Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social pelo apoio nos servios burocrticos, especialmente Luiz e Ftima. Aos professores deste programa, em especial Ester Jean Langdon e Oscar Calvia Sez pelas contribuies na defesa do projeto. s professoras Ellen Woortamnn, Cludia Fonseca, Maria Ignez Silveira Paulilo e Neusa Maria Bloemer, com quem tive o prazer de dialogar e receber sugestes durante o processo da dissertao. s professoras Maria Ignez da Silveira Paulilo, Miriam Pillar Grossi e Neusa Maria Bloemer pelas valiosas sugestes na defesa da dissertao. Snia Weidner Maluf, minha orientadora, pelo estmulo e inmeras contribuies. Aos colegas de curso, amigos e companheiros, especialmente Rita, Adiles, ngela, Jandira, Luciana, Ari e Karin, pelo carinho e apoio nos momentos difceis. Maria Isabel Deretti, Alessandra Schmitt e Ana Maria Vendrami pelas diversas partilhas durante o processo da pesquisa de campo. Luiz Fernando Guedes pela elaborao da genealogia e do croqui da Comunidade. todas as pessoas da Comunidade Cafuza que possibilitaram a realizao desse trabalho e permitiram-me invadir e compartilhar um pouco de sua caminhada e sonhos.

Resumo

O presente trabalho trata de analisar as relaes entre os gneros na trajetria e na configurao atual da Comunidade Cafuza de Jos Boiteux/SC, tomando como referncia para anlise a noo de famlia, aspecto em torno do qual se estruturam outras dimenses da vida social, tais como o parentesco, a conjugalidade, a diviso do trabalho e a organizao poltica. A luta constante pela sobrevivncia e o contato muitas vezes conflitivo com outros grupos e segmentos populacionais inseridos na histria catarinense permeiam a trajetria desta comunidade. Durante toda sua trajetria alguns elementos tornaram-se decisivos na sobrevivncia do grupo, que se manteve unido e congregando mesmo aqueles que residem em diferentes locais. Trata-se especialmente de uma rede de solidariedade e reciprocidade entre as famlias e de uma religiosidade popular, recorrente desde os tempos mais remotos. A organizao familiar, pautada em torno de valores hierrquicos, refora a importncia do velho e da criana, como portador e receptor da memria, respectivamente. Alm destes aspectos, a trajetria do grupo e a configurao atual apontam para uma relao assimtrica entre homens e mulheres e pelo reconhecimento apenas da autoridade masculina em detrimento de um poder e de uma atuao feminina. Uma anlise mais criteriosa das relaes de gnero apontam, no entanto, para uma atuao efetiva das mulheres na luta pela sobrevivncia, na organizao familiar e poltica, nas atividades religiosas e nas relaes internas e externas Comunidade.

Abstract

The present work analysis the relationships between the genders on the way and the current configuration of the Cafuza (offspring of Indian and Negro) Community of Jos Boiteux/SC, taking as a reference for analyzing the family notion, the aspect in which it structures other social life dimensions, such as kinship, conjugality, work division and political organization. The constant fight for survival and contact, many times conflictive with other population groups and segments, inserted in Catarinense history permeates the way of this community. The ethnic conditions had a decisive weigh in its discrimination in a society idealized by whites. During all its way some elements became decisive on the group survival, that kept itself together and congregating, even those that live in different places. It is specially about a solidarity and reciprocity net between the families and the popular religiosity, since the far-off times. The family organization, based on hierarchic values, reinforce the importance of the elder and child, as the bearer and receptor memory, respectively. Besides, these aspects, the way of the group and the current configuration point out an asymmetric relation between men and women and the recognition only by the male authority in detriment of a power and a female action. An analysis with more criterion of the gender relations points out, however, an effective action of the women in the fight for survival, in the family and political organization, in the religious activity and in its internal and external relations with the Community.

SUMRIO

INTRODUO.................................................................................................... CAPTULO I COMUNIDADE CAFUZA 1) Antecedentes histricos e contexto regional da Comunidade Cafuza.... Aspectos da colonizao de Santa Catarina..................................................... A populao cabocla protagonista da histria.............................................

2) Trajetria da Comunidade Cafuza............................................................... O grupo obrigado a mudar-se novamente................................................... A luta pela sobrevivncia fica mais difcil....................................................... Perspectivas para uma terra prpria................................................................ A atuao efetiva das Cafuzas na luta pela terra............................................ Com a terra garantida, hora de reunir a famlia........................................... "Aqui este povo vai ser santo"...........................................................................

CAPTULO II SOCIABILIDADE CAFUZA 1 Aspectos de uma hospitalidade marcante................................................. 2 - "Os Cafuzos so muito amorosos" redes de solidariedade e reciprocidade........................................................................................................ 3 Relaes internas e externas da Comunidade Cafuza.............................. 4 - "Somos crentes a Deus" aspectos da religiosidade Cafuza.................... 5 Interlocuo entre religiosidade e festividade...........................................

CAPTULO III ORGANIZAO FAMILIAR E GNERO 1 - A grande famlia Cafuza .............................................................................. 2 - A criana Cafuza dentro de um contexto familiar extenso ..................... 3 Educao familiar repressiva e hierrquica...............................................

4 Prticas matrimoniais.................................................................................... 5 Relaes de gnero assimtricas..................................................................

CAPTULO IV COTIDIANO FAMILIAR E SEGMENTAO DO TRABALHO 1 A luta em "casa" produo familiar......................................................... 2 A luta fora da Comunidade......................................................................... 3 A luta coletiva na produo de erva-mate................................................. 4 A luta para garantir os direitos....................................................................

CAPTULO V PODER E ATUAO FEMININA 1 - Poder e violncia na famlia.......................................................................... 2 - Poder feminino na organizao comunitria Poder formal................................................................................................... Poder informal............................................................................................... Esfera pblica................................................................................................. 3 - Poder feminino nas atividades religiosas................................................... 4 Poder sexual...................................................................................................

CONSIDERAES FINAIS...............................................................................

BIBLIOGRAFIA CITADA..................................................................................

INTRODUOSempre intrigou-me a assimetria entre os sexos e o reconhecimento apenas da autoridade masculina em detrimento de um poder feminino. Com uma leitura crtica inspirada no movimento feminista2 ou no ps-feminismo3, questionava-me sobre as diversas formas de relacionamento entre homens e mulheres. Esta uma discusso que tem sensibilizado intelectuais de diversas reas do conhecimento como antropologia, histria, educao, psicanlise, literatura, lingustica, entre outras, onde diversos aspectos sobre a diversidade de comportamento entre homens e mulheres so abordados. Durante dcadas a naturalidade dos padres estabelecidos, tais como poder e domnio para o homem e submisso para a mulher, foi sendo desvendada e desnaturalizada. A existncia de apenas uma forma de comportamento masculino e feminino foi descartada e a hiptese de uma imutabilidade de papis sexuais e de uma subordinao feminina ao homem perdeu o sentido4. A partir do novo feminismo, recoberto por um "vis poltico", a diferena entre homens e mulheres no mais discutida em termos de desigualdade, ou seja, como opresso e subordinao das mulheres pelos homens. As diferenas passam a ser discutidas a partir influncia cultural intensa que homens e mulheres recebem desde seu nascimento, transformando-os em masculino e feminino5. Esta inovao no pensamento vem aliada definio de que o relacionamento entre os sexos no pode ser abordado como algo dado ou fixo, na medida em que os humanos esto inseridos numa dinmica cultural como sujeitos que interagem. Desta maneira, no possvel pensar em homem e mulher, mas em homens e mulheres inseridos em contextos, tambm dinmicos e mutveis.

Movimento surgido nos EUA e Europa e que no Brasil ganhou fora a partir do incio da abertura poltica, no fim da dcada de 1970. Caracterizou-se pela luta contra o machismo e o autoritarismo (Fry, 1982). 3 O feminismo clssico propunha a igualdade entre os sexo, como um valor universal, denunciando a desigualdade e a discriminao. O ps-feminismo ou novo feminismo questiona as diferenas culturais, ou seja, critica a existncia de apenas um modelo universal. Questiona no s a diferena nas relaes das mulheres com os homens, mas entre as prprias mulheres (Machado, 1992). 4 Dentre os autores que questionam a subordinao feminina como universal podem ser citados Rosaldo & Lamphere (1979), Ortner (1981) e Rubin (1975). 5 Grossi (1998) apresenta um resumo precioso da trajetria dos estudos de gnero.2

Discutindo a utilidade da categoria gnero para a anlise histrica, Scott (1995) faz uma reflexo que se tornou referncia no campo dos estudos de gnero. A autora define gnero como um elemento constitutivo das relaes sociais baseadas nas diferenas percebidas entre os sexos e como uma forma primria de dar significado s relaes de poder. Ela d uma srie de exemplos das relaes implcitas entre gnero, classe e poder. Um exemplo refere-se luta entre trabalhadores e burgueses na Frana do sculo XIX. Os reformadores burgueses descreviam nos seus discursos os trabalhadores com valores considerados femininos: subordinados, fracos, sexualmente explorados, como as prostitutas. Por sua vez, os lderes trabalhadores e socialistas procuravam reforar a posio masculina da classe trabalhadora: produtores, fortes e protetores das mulheres e crianas. A questo central da luta entre trabalhadores e burgueses no se referia explicitamente ao gnero, mas era reforada por referncia a ele. Esta codificao dos termos estabelecia e naturalizava seus significados, que eram assim incorporados cultura da classe trabalhadora francesa. A produo no Brasil vai, de alguma maneira, manter o emprego da categoria gnero como construo cultural6. Apesar de no existir uma uniformidade entre as diversas teorias sobre gnero, o conceito inovador quando rejeita uma determinao apenas biolgica para o homem e a mulher, apontando para uma construo cultural do masculino e feminino. A idia de imutabilidade dos padres culturais, desenvolvida por Mead na dcada de 30 (1988), passa a ser questionada tambm por autores brasileiros. Gregori (1993), por exemplo, ressalta que os papis de gnero devem ser abordados relativizando a existncia de uma dicotomia fixa entre eles. Essas construes distintas de comportamento para os homens e mulheres so atualizadas sempre que ocorrem relaes interpessoais, evidenciando assim o carter dinmico da cultura. Para ela, preciso entender a relao entre planos mais gerais que orientam a conduta e o comportamento propriamente dito como um movimento, como uma passagem que implica combinaes, ambigidades e, portanto, diversidades (1993:130).

Exemplos da produo brasileira mais recente, guardando as diferenas entre cada abordagem, so Heilborn (1992), Gregori (1992), Grossi (1994 e1991), Costa (1994), Machado (1992), Saffioti (1992), Castro (1992), Machado (1995), entre outros.6

Saffioti (1992) aborda as relaes de gnero como sendo permeadas pelo poder. Segundo ela, nos dois plos da relao entre homens e mulheres existe poder, porm em doses desiguais. Alm disso, ela afirma que os indivduos so transformados, atravs das relaes de gnero, em homens e mulheres. Na mesma perspectiva, Machado (1992) amplia essa discusso afirmando que as relaes de gnero podem ser de poder, mas no exclusivamente de poder. So relaes assimtricas. Podem ser relaes de prestgio, relaes complementares e recprocas ao mesmo tempo, configurando ou no relaes de poder. As relaes de gnero so, pois, dialticas e contraditrias e, assim como a histria dos povos, se interrelacionam. Apontando para uma simbologia das atividades masculinas e femininas est o trabalho de Lobo (1992). Para ela, o lugar que a mulher ocupa na sociedade no produto direto do que ela faz, mas do significado que suas atividades adquirem atravs da interao social concreta. Os diferentes estudos apontam a necessidades de ir alm das descries e representaes que as pessoas fazem sobre sua relao com o mundo. Essas vises podem ser construes parciais, descrever apenas um dos lados das relaes de poder entre os sexos. Nem sempre o ideal explcito est vinculado de forma coerente vivncia e aos sentidos que lhe so dados. preciso, portanto, estar atento e desconfiar dos modelos de gnero acabados e fortemente coerentes que se apresentam7. Com esta perspectiva terica e para responder a um intrigante questionamento sobre a assimetria entre os gneros, procurei desenvolver um estudo etnogrfico de uma populao catarinense a partir da tica das relaes de gnero. Nesta comunidade existiam elementos similares aos apontados por outros estudos de gnero e que poderiam servir como eixo em torno do qual seria possvel construir um discurso, uma descrio densa (conforme sugere Geertz, 1978) do que configuraria o grupo. Este eixo diz respeito maneira como os indivduos se vem, histria que eles contam sobre a trajetria do grupo, descrio sobre seu passado mtico e de luta e sobre a configurao atual das relaes sociais e polticas do grupo.Entre os autores que questionam a descrio esttica das estruturas sociais e das relaes de gnero, podem ser citados Fonseca (1992b e 1995 b), Gregori (1992), Maluf (1993), Xavier (1997 e 1998), entre outros.7

A observao deste grupo a partir da problemtica de gnero, tornava-se fundamental uma vez que a bibliografia existente8 sobre ele no havia priorizado este enfoque9. O presente texto, portanto, refletir as configuraes das relaes entre os gneros na Comunidade Cafuza a partir de conhecimentos empricos e bibliogrficos, explicitando a diversidade de comportamento entre homens e mulheres na trajetria do grupo, na organizao familiar, no cotidiano familiar, na diviso do trabalho, na organizao comunitria e religiosa e nos relacionamentos internos e externos. A comunidade apresenta caractersticas que permitiram uma pesquisa relevante sobre a perspectiva de gnero, uma vez que em sua trajetria h um cruzamento desta varivel com outras, tais como sua condio tnica (cafuzos)10 e de classe (pequenos produtores rurais)11. A Comunidade Cafuza12

um grupo que tem sua origem em dois segmentos

marginalizados da populao camponesa (o negro e o ndio) e composta por

A produo acadmica centrada na Comunidade Cafuza inicia-se com a dissertao de Martins (1991) e conta com variedade de trabalhos: monografias de concluso de curso (Martins, 1994) e Schmitt (1996); relatrio de pesquisa (Bernardo, 1997a); artigos (Martins & Bernardo, 1996), Martins (1996), Bernardo (1997b), Welter (1997b), Schmitt (1998b) e dissertao de mestrado (Schmitt, 1998a). 9 Neste momento importante fazer duas ressalvas. A primeira diz respeito existncia de crticas s diversas etnografias dentro da Antropologia e Histria que no levaram em considerao a problemtica de gnero. A segunda, ressaltar que a nica bibliografia sobre a Comunidade Cafuza que priorizou a problemtica de gnero foi realizada por mim. Quando aluna da Especializao em Educao Sexual da UDESC, desenvolvi uma monografia de concluso de curso sobre a Comunidade Cafuza com enfoque na questo de gnero (Welter, 1997a). A pesquisa foi desenvolvida no ano de 1996, onde tive oportunidade de observar diversos elementos e prticas cotidianas da Comunidade em questo e que apontou muitas questes desenvolvidas nesta dissertao. 10 Como grupo etnicamente diferenciado, enfrentam situaes de constante confronto com diversos grupos regionais. Os meandros destes confrontos foram exaustivamente analisados por autores enquadrados na tradio antropolgica de relaes intertnicas (por exemplo, Leite, 1996a). No me parece redundante afirmar, no entanto, que, neste confronto, as populaes etnicamente diferenciadas, entre elas negros, ndios e Cafuzos, enfrentam constantemente comportamentos preconceituosos e assimtricos por parte de outras populaes locais e regionais. 11 Poucos estudos fazem um cruzamento entre estas variveis. Cito os estudos de Carneiro (1994) e Lechat (1996) como exemplo de anlise sobre as relaes de gnero no campesinato, e Gomes (1995), como exemplo de estudo de gnero e grupo tnico. 12 Estou utilizando o conceito de comunidade com o mesmo sentido que usado pelo grupo. Ou seja, comunidade entendida por eles como uma unidade grupal, independente do local de residncia. O conceito de comunidade tem sido frequentemente usado nos estudos como sinnimo de uma sociedade igualitria fundamentada por princpios como solidariedade e reciprocidade. Alguns autores tm criticado este uso do conceito, considerado como romntico por eles. A crtica refere-se principalmente ao fato de que no levado em conta os conflitos internos. Estou me referindo especialmente Vogt e Fry (1996) e Miriam Hartung (em comunicao oral na II Reunio de Antropologia do Mercosul em novembro/1997).8

aproximadamente 300 pessoas ou mais de 50 famlias13. A sede atual da Comunidade14 encontra-se na localidade de Alto Rio Laeiscz, a uma distncia de aproximadamente quinze quilmetros do centro administrativo de Jos Boiteux, municpio do Alto Vale do Itaja, a 250 quilmetros de Florianpolis. Os Cafuzos constituem um nico grupo de parentesco, na medida em que todos se reconhecem como descendentes do casal Jesuno Dias de Oliveira (negro) e Antnia Lotria Fagundes (ndia de nao desconhecida), cuja unio ocorreu entre 1870 e 1880, no Planalto Catarinense. A trajetria deste grupo, marcada por muitas dificuldades, especialmente pela sua condio tnica e de classe, recuperada pela etnografia Anjos de Cara Suja de Pedro Martins, defendida originalmente como dissertao de Mestrado no PPGAS da UFSC em 1991 e publicada em 1995. Fao a seguir um resumo sucinto da trajetria da Comunidade Cafuza. Os antepassados dos Cafuzos saram do Planalto Catarinense e desceram a Serra Geral em busca de refgio aps o trmino da Guerra do Contestado15, onde haviam sido derrotados na condio de rebeldes. Durante anos viveram em terras devolutas e, em 1947, foram removidos para a rea Indgena Ibirama, pelo SPI16. Viveram em condio de subordinao aos ndios daquela reserva (Xokleng e Kaingang) e s chefias do Posto Indgena durante 45 anos, perodo no qual parte do grupo dispersou-se pela regio. Em 1985, a Comunidade iniciou formalmente um processo de luta por uma terra prpria. Em 1992, o INCRA17 deu o aceno favorvel para o assentamento da Comunidade e, aps oito anos, os Cafuzos ocuparam uma propriedade na localidade de Alto Rio Laeiscz - mais tarde adquirida pelo INCRA e transformada em propriedade coletiva. Atualmente, apenas 140 pessoas, ou 23 famlias, vivem nesta propriedade.Aqui estou considerando todos os Cafuzos: tanto aqueles que moram no territrio da comunidade quanto os que residem em outros lugares. 14 Estou utilizando o termo Comunidade, Comunidade Cafuza e Cafuzos com a letra maiscula para diferenciar este grupo de outros grupos ou indivduos que representam apenas a miscigenao gentica entre ndios e negros. 15 Importante movimento campons ocorrido no Planalto Catarinense entre 1912 e 1916. O termo Guerra do Contestado refere-se uma disputa por terras entre os estados de Santa Catarina e Paran. 16 Servio de Proteo aos ndios e Localizao de Trabalhadores Nacionais. Inspirado em Marechal Cndido Rondon, este rgo foi criado em 1910 a fim de atrair os ndios arredios ao convvio pacfico. Em 1968 o SPI foi extinto e criada outra instituio em seu lugar, a Fundao Nacional do ndio FUNAI (Martins, 1995). 17 Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria.13

A identidade Cafuza foi relacionada por Martins (1995) e por Schmitt (1996) como uma construo estratgica visando sobrevivncia do grupo18. As bases histricas do grupo, sobre as quais a identidade Cafuza se assenta, esto depositadas em sua ancestralidade/genealogia e em sua participao na Guerra do Contestado. Alm disso, para Schmitt h outros elementos que tm sido compartilhados e que concorrem para que o grupo mantenha sua identidade e os diferencie de outros grupos populacionais com os quais convivem: relaes de parentesco e compadrio bastante imbricadas, prticas religiosas tpicas do catolicismo caboclo (rstico) e um dialeto prprio19 (1996:14). Contudo, para os dois autores, a identidade tnica circunstancial, pois neste grupo ela se concretiza apenas aps a entrada dos caboclos remanescentes da Guerra do Contestado na rea Indgena Ibirama, como forma de diferenciao em relao aos outros grupos com caractersticas culturais semelhantes. Ou seja, apenas em 1969 os caboclos foram batizados de cafuzos pelo ento chefe do SPI, Tenente Izidoro de Oliveira, a partir de uma consulta a um livro onde se mostrava que a miscigenao entre negros e ndios resultava na condio de cafuzo. A partir da, o termo Cafuzo passou a ser incorporado pelo grupo. Mas o que significa ser ou pertencer Comunidade Cafuza? Quem so os componentes deste grupo? Para os prprios Cafuzos, o entendimento de pertencimento no se restringe base geogrfica comum, mas sim ao universo das pessoas consideradas como tal. Pertencer ao grupo significa ser descendente de Jesuno Dias de Oliveira ou casar com algum dos seus descendentes e participar da vida do grupo. As especificidades das relaes de gnero na Comunidade Cafuza de Jos Boiteux/SC apontam, como referncia central para anlise, a noo de famlia,

Vogt & Fry, importantes pesquisadores da cultura negra brasileira, chamam a ateno para atalhos usados em estudos sobre a construo de uma identidade tnica com objetivos polticos. Essa abordagem tem surgido geralmente num contexto de luta pelo reconhecimento do direito terra pelos grupos. Neste momento essa identidade tnica confunde-se, para os autores, com uma espcie de palavra de ordem da militncia poltica, constituindo-se ao mesmo tempo um princpio de explicao e a expresso de uma vontade ideolgica (1996:267). 19 Durante sua trajetria, a Comunidade Cafuza elaborou um dialeto de ocultao, de origem desconhecida e que sempre lembrado por eles como a lngua dos antigos. Este dialeto foi utilizado com mais freqncia quando viviam em contato mais direto com outras populaes e necessitavam de uma forma de comunicao secreta, especialmente durante o perodo em que moraram na rea Indgena (Martins, 1995).18

aspecto em torno do qual se estruturam outras dimenses da vida social. Alm disso, tornou-se importante analisar de que maneira a cultura de gnero permeia o cotidiano familiar, a diviso do trabalho e a organizao poltica da Comunidade Cafuza; observar as relaes entre a famlia e outros aspectos relevantes como o parentesco e a conjugalidade; analisar como os discursos sociais que buscam definir a identidade da Comunidade Cafuza (histria/memria/ancestralidade) so marcados por uma cultura de gnero e, finalmente, observar de que maneira as relaes de gnero estruturam e/ou so estruturadas pelas relaes da Comunidade Cafuza com o mundo exterior, representado mais diretamente pelos agentes externos presentes no local e, de forma mais imediata, pela sede do municpio e de outras comunidades. Durante toda sua trajetria, e especialmente nesta nova propriedade do Alto Rio Laeiscz, reside em local parcialmente isolado20. importante ressaltar que a Comunidade Cafuza nunca esteve isolada ou vivendo de forma independente da sociedade externa. A vida dos Cafuzos est em constante movimento e em contato freqente com outras populaes e estabelecimentos locais e regionais. Este movimento no diminui seu vnculo com o universo do campesinato21 e pode estar garantindo sua sobrevivncia diante de uma frequente proletarizao e excluso, sofrida por inmeras populaes brasileiras. O meu envolvimento com a Comunidade Cafuza iniciou-se em 1989 quando a omunidade ainda vivia dentro da rea Indgena Ibirama em condies de totalEsta uma das caractersticas das comunidades negras do Sul do Brasil como demonstrou o mapeamento realizado pelo Ncleo de Estudos sobre Identidade e Relaes Intertnicas (NUER) da Universidade Federal de Santa Catarina em 1988, sobre comunidades, grupos e ncleos de descendentes de africanos. Este mapeamento, coordenado por Ilka Boaventura Leite (1996b), identificou 100 territrios negros no sul do Brasil. Destes, foram visitados 56 localidades: 5 no Paran, 34 em Santa Catarina e 17 no Rio Grande do Sul. Segundo Leite (1990), a literatura sobre negros no Brasil, aponta para territrios negros, espacialmente demarcados, desde o incio do sculo. Esta segregao pode ser visualizada na residncia, no trabalho, no lazer, na prtica da religio ou outros. So territrios demarcados especialmente como forma de resistncia na tenso tnica e social. Objetivando dar visibilidade a alguns destes grupos, conforme sugere Leite (1990 e 1996a), trs etnografias foram realizadas em Santa Catarina. So elas: Teixeira (1990), Martins (1991) e Hartung (1992). 21 A perspectiva do campesinato sempre esteve presente na Comunidade Cafuza como forma primordial de sobrevivncia, tanto na produo familiar quanto na atividade assalariada. Para Moura (1988), campons o indivduo que vive e produz na terra. Existem diversas categorias dentro desta perspectiva de cultivo da terra, tais como posseiro, bia-fria, lavrador, arrendatrio e campons. Para Woortmann (1990), trs categorias culturais (nucleares e relacionais) caracterizam as populaes camponesas brasileiras: terra, trabalho e famlia. Estas categorias esto permeadas de forma singular por outras categorias fundamentais, como a reciprocidade, a honra e a hierarquia familiar.20

precariedade. Em 1996 realizei pela primeira vez um trabalho de pesquisa com o grupo - para fundamentar minha monografia de concluso de curso, que acabou desdobrando-se em um projeto de dissertao em 1997. Para apreenso do universo simblico da Comunidade Cafuza de Jos Boiteux/SC, do ponto de vista das relaes de gnero, desenvolvi esta pesquisa em etapas distintas e complementares. Objetivando observar prticas, discursos, representaes e seus significados, privilegiei uma pesquisa qualitativa que desvendasse as regras, as normas, os procedimentos, os valores da cultura Cafuza e de seus indivduos. Durante o perodo de campo, residiam na Comunidade Cafuza cerca de 25 famlias ou 150 pessoas. Este foi o alvo maior da pesquisa. Alm destas, visitei algumas famlias que residiam dentro do municpio de Jos Boiteux e em Blumenau. Para aprofundar a pesquisa de campo, fixei residncia na Comunidade entre os meses de janeiro e maro de 1998, onde tive oportunidade de participar da vida cotidiana dos seus membros: em reunies, festas, atividades religiosas, cotidiano familiar, trabalho domstico ou agrcola, atividades polticas, comunitrias e escolares, entre outros elementos j observados na minha pesquisa anterior com o grupo. Alm deste contato mais contnuo, possibilitado pela residncia na Comunidade, realizei diversas visitas mais rpidas ao grupo em junho/98, novembro/98 e janeiro/99, para participar de atividades mais pontuais, tais como festividades, reunies, comemorao do sexto ano de assentamento (26 de novembro), casamentos e batizados. Em todos os momentos da pesquisa, utilizei mtodos qualitativos de coleta de dados, tais como observao das cenas pblicas da vida cotidiana, narrativas de vida, conversas informais e entrevistas semi-dirigidas. O registro das conversas informais e observaes foi feito no dirio de campo e outros livros mais pontuais. Estes registros constaram de informaes e de outros elementos, como o contexto da conversa, o interesse do entrevistado, os risos e silncios e os textos implcitos. Alm disso observei as posies assumidas por homens e mulheres no cotidiano familiar; a participao das pessoas em atividades comunitrias e a linguagem utilizada pelos membros do grupo - internamente e entre eles e a entrevistadora. Ou seja, neste

ltimo caso, incorporei como significativo a experincia da etnografia, os caminhos da pesquisa de campo22. Em momentos anteriores a esta pesquisa fiquei alojada na casa dos Cafuzos. Porm, isto provocava conflitos dentro do grupo. Estes eram expressos atravs de uma constante pergunta: por que no fica em minha casa? Como no era possvel ficar em todas as casas, isto causava ao grupo e a mim certo constrangimento. Considerando estes aspectos, optei por um alojamento que considerava mais democrtico: a escola da Comunidade. Neste espao tinha maior liberdade de movimento e certa tranqilidade para realizar visitas23 s casas das famlias, receber pessoas, participar de atividades coletivas e realizar atividades que exigiam concentrao. Durante o dia visitava as famlias, recebia pessoas em meu alojamento e participava do cotidiano familiar e comunitrio. noite, fazia registros no dirio de campo e organizava o material coletado. importante ressaltar que as minhas visitas s casas Cafuzas geralmente ocorriam no perodo diurno. Durante o dia, a maioria dos homens, com exceo de alguns velhos, estavam desenvolvendo atividades externas casa, como trabalho na roa, trabalho assalariado fora da Comunidade ou resolvendo problemas na cidade. Nestas ocasies, apenas mulheres e crianas ficavam em casa. Meu contato, por esta razo, era mais constante com as mulheres e as crianas do que com os homens. Outra ressalva torna-se necessria. A exemplo do casal Michelle e Renato Rosaldo e de outros casais de antroplogos que desenvolveram estudos sobre um mesmo grupo, minha pesquisa foi desenvolvida em conjunto com meu companheiro Pedro Martins, que atua na Comunidade Cafuza h doze anos, numa relao intensa entre pesquisa e assessoria poltica. Durante todas as etapas da pesquisa de campo, pude contar com suas valiosas informaes, especialmente nas situaes em que minha presena no era adequada. Somente para exemplificar, descrevo uma situao. Chegamos na Comunidade em janeiro de 1998 no dia em que iria ocorrer uma reunio com a liderana. Fomos para a reunio com o objetivo de participar.22

A opo metodolgica foi fundamentada por elementos levantados por Thiollent (1980) a respeito do processo da entrevista, por Zaluar (1986) na preocupao com as armadilhas da pesquisa, por Geertz (1978) nos meandros da pesquisa etnogrfica e seu esforo por descrever a cultura densamente, por Cicourel (1980) no alerta para os cuidados da funo de observador e sobre o dirio de campo e, tambm, por Malinowski (1984), quando insiste na importncia da pesquisa de campo.

Mesmo com o grupo todo presente no recinto, a reunio no se iniciava. Percebi que minha presena, nica mulher no recinto, tinha a ver com esse retardamento. Resolvi sair e a reunio foi iniciada imediatamente. Este relato aponta para uma noo de que a mulher estaria excluda da participao na organizao comunitria. Numa anlise mais aprofundada e criteriosa sobre a Comunidade, no entanto, este mesmo aspecto pode apresentar-se de maneira diversa. o que se observa nos momentos distintos da constituio da Comunidade Cafuza. A luta pelo direito terra um momento de marginalidade do grupo pela condio de sem-terra e de liminaridade. Nesse momento, a diviso de papis sexuais torna-se tnue e a atuao, tanto de homens quanto de mulheres, passa a ser pblica e necessria para a luta. Com o momento de reconhecimento deste direito por rgos pblicos e pela sociedade, se garante a posse da terra em 1992 e, com ela, certa estabilidade do grupo. Esse o momento do rearranjo das relaes de gnero e da volta dos indivduos aos seus lugares, ou seja, a volta a uma normalidade dos padres da Comunidade. E, nesta dinmica, homens e mulheres atuam de maneira diversa, contextual e relacional.

Este texto, dividido em cinco captulo, aponta para aspectos desta dinmica da Comunidade Cafuza, a partir da perspectiva das relaes de gnero. O primeiro captulo centra-se na trajetria da Comunidade, dentro de uma lgica no linear, e na transformao deste segmento da populao cabocla24 do Planalto Catarinense em um grupo etnicamente diferenciado. Este processo decorre de uma luta constante pela sobrevivncia em contato com outros grupos e segmentos populacionais inseridos na histria catarinense tais como colonos de origem25, ndios, madeireiros, coronis, fazendeiros, empresas colonizadoras e autoridades. Alm disso,

importantes fatores atuaram de forma decisiva na histria catarinense e na trajetriaO termo visita designa, nesse momento, incurses s casas Cafuzas objetivando coletar dados para a presente pesquisa. 24 Os trabalhos de Bloemer (1996), Renk (1997) e Locks (1998) analisam outras populaes caboclas catarinenses. Nestes estudos, a identidade cabocla estabelecida especialmente pelo contraste com os descendentes de europeus. A este segmento so atribudos esteretipos depreciativos, tais como preguia, indolncia e passividade e at termos como violento, desordeiro, bandido. Renk, Bloemer e Locks optam, em seus estudos, pela utilizao do termo nativo, brasileiro, para denominar estas populaes. 25 Parafraseando Renk (1997), colono uma designao para populao rural. J a qualidade de origem, identifica os colonizadores descendentes de europeus.23

da Comunidade Cafuza, como a colonizao europia, os empreendimentos comerciais e industriais, a Guerra do Contestado, a urbanizao, a criao do SPI e, posteriormente da FUNAI, entre outros. importante ressaltar que, em toda esta trajetria, as mulheres atuaram de forma decisiva na sobrevivncia familiar e na organizao poltica do grupo. O segundo captulo trata das formas subjetivas da sociabilidade Cafuza. Ressalta aspectos de uma hospitalidade marcante, comum entre grupos de baixa renda brasileiros, tanto urbanos quanto rurais e para as redes de solidariedade e reciprocidade entre as famlias, importantes estratgias utilizadas na sobrevivncia do grupo e nas relaes intra-familiares. Por outro lado, aponta para as relaes internas divididas numa conflitante oposio entre duas sub-parentelas mas que, de maneira anloga s redes de reciprocidade, possibilitam uma mobilidade e integrao do grupo em oposio aos grupos externos. A religiosidade popular, recorrente desde os tempos mais remotos, soma-se aos elementos anteriores numa interessante interlocuo entre religiosidade e redes de sociabilidade internas. A organizao familiar da Comunidade Cafuza, objeto do terceiro captulo, est pautada sobre uma perspectiva singular de resistncia dos laos de parentesco do grupo diante de inmeras dificuldades vivenciadas. Alm disso, alguns elementos desta organizao familiar sobressaem, tais como a importncia do velho e da criana na memria e na sobrevivncia do grupo. A educao familiar, repressiva e hierrquica, garante certos elementos tornados fundamentais para o grupo, como a obedincia, o respeito e a submisso dos filhos aos pais e mais velhos. No quarto captulo, o cotidiano familiar e a segmentao do trabalho so analisados como elementos centrais. A produo agrcola e familiar ressaltada como forma de sobrevivncia primordial, complementada pelo trabalho assalariado fora da comunidade e pela produo de erva-mate na forma de cooperativa. O trabalho na produo familiar, apontado como complementar, homens fazem isto e mulheres aquilo, ressalta uma invaso feminina no espao, considerado masculino, e na luta pela sobrevivncia. No entanto, a participao das mulheres na produo percebida por elas e pelo grupo apenas como ajuda, dificultando o reconhecimento de seus direitos trabalhistas diante, por exemplo, das instituies de previdncia social.

O quinto e ltimo captulo trata especialmente do poder feminino em oposio uma autoridade masculina legitimada pelo grupo. As relaes assimtricas na famlia, no trabalho, na organizao comunitria e religiosa, analisadas nos captulos anteriores, so, neste momento, repensadas pela atuao efetiva das mulheres diante dos pais, do marido, dos filhos e de outras mulheres, na liderana da comunidade e nas atividades religiosas.

CAPTULO I COMUNIDADE CAFUZA 1) Antecedentes histricos e contexto regional da Comunidade CafuzaH plancies que se somem Desde o horizonte ao rio E a vida morre de fome Com tanto campo vazio. (A vitria do trigo, Vaine Darde e Dante Ramon Ledesma).

A histria da ocupao e da colonizao de Santa Catarina traz elementos significativos para uma reflexo sobre a Comunidade Cafuza. A ocupao de Santa Catarina ocorre de modo diferenciado, contando cada regio com especificidades prprias26. A ocupao do litoral, por exemplo, data do sculo XVII, poca em que os vicentistas a fundaram as primeiras povoaes, seguidos, no sculo seguinte, pelos aorianos e madeirenses. No sculo XVIII, ocorre a ocupao do Planalto por contingentes paulistas ligados ao comrcio de gado. Desde a metade do sculo XVI a regio do Planalto Catarinense era percorrida por viajantes europeus, por bandeirantes paulistas e por jesutas. J o ciclo do ouro, desenvolvido no incio do sculo XVIII em Minas Gerais, provocou a abertura de novos caminhos e a ocupao dos sertes catarinenses. Segundo Locks (1998:22), a atividade de minerao demandava transporte, alimentos para os trabalhadores e novas mercadorias circulariam intensamente no eixo Rio de Janeiro, Minas Gerais e So Paulo. O caminho das tropas foi outro componente importante da ocupao de Santa Catarina. As tropas de gado eram levadas do seu local de origem, o Rio Grande do Sul, para ser comercializadas na Feira de Sorocaba em So Paulo. Inicialmente esta ligao terrestre entre Rio Grande do Sul e So Paulo serviu apenas para a explorao26

Para descrever o processo de ocupao e colonizao de Santa Catarina utilizei especialmente os seguintes autores: Martins (1995), Locks (1998), Queiroz (1977) e Renk (1997).

do primeiro Estado, onde o gado era aprisionado e criado em fazendas. Mas, ao longo do trecho, logo foram se formando fazendas e vilas, surgidas a princpio nos locais de pouso das tropas e, mais tarde, ao longo de toda a estrada. Foi assim que surgiram cidades importantes de Santa Catarina como Lages, Curitibanos e Campos Novos. At o final do sculo XIX a rota do caminho das tropas era a nica ligao do extremo sul com o centro do pas. Ela s perdeu sua importncia com o surgimento do trem de ferro (Martins, 1995:21). Antes da chegada dos colonizadores, os campos do Planalto eram ocupados pelas populaes indgenas Kaingang, Xokleng27 e Guarani. Essas populaes foram sendo dizimadas aos poucos para dar lugar s ocupaes, restando hoje poucos remanescentes, aldeados em reas demarcadas pelo estado. Esses ndios ou bugres28 eram temidos pelos colonizadores pois, segundo o relato dos viajantes, eles incomodavam e ofereciam perigo. Neste perodo, a terra era abundante e o gado era criado solto29. Bastava tocar fogo no mato para se apossar de uma gleba e virar proprietrio. Porm, se no tivesse recursos para garantir sua posse corria o risco de perd-la. Alm da expanso das fazendas de gado, neste perodo teve incio a coleta da erva-mate, que, inicialmente, objetivava o consumo local mas que acabou se tornando um negcio lucrativo e responsvel pela sobrevivncia de inmeras famlias de caboclos30. Com o aumento do consumo interno, a coleta de erva-mate tornou-se uma atividade definitiva para muita gente que se embrenhava nas matas com o objetivo de coletar e vender o produto. Muita gente lucrou com a erva-mate. Segundo Martins (1995), no entanto, os caboclos que se dedicavam diretamente sua coleta jamais deixaram de ser uma massa de gente descala e maltrapilha, que foi se tornar, no incio do sculo XX, a mo de obra necessria indstria da madeira.

Queiroz (1977) utilizava o termo Xcren quando referia-se aos Xokleng. Segundo Locks (1998) a populao serrana refere-se aos ndios (de qualquer nao) como bugres um termo carregado de conotao pejorativa e sinnimo de indivduo rude, grosseiro, inculto e inimigo. 29 Esse sistema exige apenas um pequeno nmero de pessoas para o cuidado com o gado. 30 Nesse caso, caboclos so os pees e agregados que extraam a erva-mate nas fazendas de gado com a permisso de seus patres.27 28

Aspectos da colonizao de Santa CatarinaA colonizao foi um dos componentes do processo de ocupao de Santa Catarina e configura-se de forma diferenciada dependendo do local, perodo e caractersticas culturais da populao envolvida. O Planalto Catarinense recebeu diversos contingentes de colonizadores europeus a partir do sculo XVI. Porm, somente no sculo XIX que a colonizao europia se intensifica. Anterior colonizao europia, a terra era abundante e no possua valor de mercadoria. Os habitantes da regio, os posseiros, utilizavam-na com culturas diversas e alternadas e tinham autonomia na produo. Em 1850, a Lei de Terras (601/1850) fez cessar o regime de sesmarias, instaurando o processo de legalizao das terras. A partir desta data, a documentao da terra passa a ser uma exigncia da propriedade e aqueles que no a possussem poderiam ser expulsos. Segundo Martins (1995) e Queiroz (1977), a Lei de Terras imps profundas modificaes no regime de propriedade de terra no Brasil. Alm da Lei de Terras, afirma Martins (1995:24), outro fator ir ter importante influncia na definio da propriedade da terra em Santa Catarina. Com a Proclamao da Repblica, as terras de propriedade do governo central passam a ser controladas pelos governos dos estados. Estes eram comandados pelos coronis (grandes fazendeiros) que passam a distribuir as terras pblicas para amigos polticos. Aqueles que estivessem ocupando tais reas e no possuam tais vnculos, eram expulsos sumariamente. Aqueles que no tinham recursos e eram iletrados acabavam estabelecendo-se em terras "desocupadas", na condio de posseiros, e eram frequentemente expulsos por no possuir documentos comprobatrios de sua propriedade. Esse fato ocorreu mesmo com agregados e latifundirios decadentes. Sem ter para onde ir, embrenhavam-se serto adentro com suas famlias em busca de terras sem dono ou do Estado (Queiroz, 1977:63/65). Em 1897, foi criada na Alemanha a Sociedade Colonizadora Hansetica. Esta empresa objetivava, entre outras coisas, introduzir em terras catarinenses os colonos alemes. A empresa comprava grande quantidade de terra e vendia aos colonos em forma de lotes. O governo brasileiro, por sua vez, estava interessado em vender

terras para sanear os cofres pblicos que, j naquela poca, estavam em dificuldades. A venda das terras, portanto, era realizada com certa tranqilidade. Desta maneira, a empresa demarcou e vendeu terras, inclusive terras j ocupadas por ndios e sertanejos (Martins, 1995:52). Segundo Queiroz (1977:69/71), em 1908, a empresa norte americana Brazil Railway Company se estabeleceu numa rea que estava sendo disputada entre Santa Catarina e Paran, para construir uma estrada de ferro entre So Paulo e Rio Grande do Sul. Para essa construo, a empresa obteve do governo federal uma concesso de terras ao longo da estrada de ferro de nove quilmetros para cada lado. Essa rea foi demarcada sem considerar as populaes que ali habitavam. Um grande contingente de trabalhadores veio de diversas regies do pas para trabalhar neste empreendimento. A Brazil Railway Company criou uma nova companhia (a Southem Brazil Lumber and Colonization Company) que passou a dispor das terras, adquiridas ao longo da estrada de ferro, com o objetivo de lotear e vender tambm para colonos estrangeiros ou remanescentes destes. Tambm neste caso, os antigos proprietrios, os posseiros, e mesmo antigos fazendeiros, foram considerados desconsiderados ou considerados intrusos e expulsos das terras. Esses intrusos, agora desalojados, passam a compor uma grande massa de despossudos que vai procurar abrigo nas matas ou atuar como mo-de-obra barata em grandes empreendimentos. Para utilizar um exemplo desta proletarizao, podemos citar a trajetria da populao cabocla no Oeste Catarinense descrita por Renk (1997:9/10) e denominada por ela com o termo nativo brasileiro. Para a autora, o processo de colonizao em Santa Catarina ignorou a posse dessa populao, expropriando-a, dispersando e desestruturando seu modo de vida. Com o desenvolvimento da industrializao da erva-mate, os brasileiros passam a ser empregados das empresas de propriedade dos colonos de origem europia e a desempenhar a parte mais penosa do trabalho de extrao. O trabalho extrativo passa a ser coisa de caboclo. Assim, este trabalho de extrao da erva-mate relacionado pelos descendentes de europeus a uma denominao desta populao com noes pejorativas, como sujos, promscuos, nmades e preguiosos.

O processo de extrao da erva-mate na regio estabelece um ritmo diferenciado de vida a esta populao. Durante o perodo da safra, o grupo familiar do ervateiro (aquele que extrai a erva no mato, o brasileiro) desloca-se para o local da poda, onde vive sob condies precrias durante todo o perodo. No perodo da entressafra, moram nas piores casas da firma31 ou em locais de acampamento. J Seyferth (1986) preocupa-se especialmente com os colonizadores e analisa a identidade tnica de trs diferentes grupos que se estabeleceram no sul do Brasil a partir do sculo XIX: italianos, alemes e poloneses. Segundo ela, a imigrao da regio sul visava o povoamento e o desenvolvimento da agricultura. A colonizao alem localizou-se em reas despovoadas32 entre o litoral e o Planalto Catarinense, onde os imigrantes adquiriram lotes de terra com a finalidade de trabalhar, em regime familiar, na policultura. A colonizao italiana, apesar de ter ocorrido mais tarde, processou-se da mesma maneira. Tanto os alemes quanto os italianos e tambm os poloneses foram instalados em colnias homogneas, onde o elemento brasileiro era minoria ou no existia (p.57/58). As colnias alems, italianas e polonesas ficaram isoladas por um perodo longo. Construram suas escolas, hospitais, igrejas, contrataram professores, mdicos, padres da mesma origem dos colonos. Essa situao de isolamento perdurou at final do sculo XIX, segundo Seyferth (Ibidem). Com o desenvolvimento e a urbanizao destas colnias estrangeiras, a oferta de trabalho comea a atrair a ateno de outros camponeses de origem europia e tambm dos posseiros. neste contexto que ocorre a quebra do isolamento das colnias e tm lugar as relaes intertnicas e os confrontos. Desse confronto emerge o esforo dos colonizadores em assumir posio de liderana e preservao da cultura. O governo assume uma poltica assimilacionista e a elite brasileira discute o branqueamento da populao. Dessa maneira constituiu-se um ideal de nao ocidental e branca (Seyferth,1986:60).

Assim eram chamadas as empresas ervateiras da regio. Em Vargeo, municpio do oeste catarinense, existem dois tipos de casas de firma: as da frente, que so pintadas e tm energia eltrica ocupadas pelos funcionrios da empresa - e as de trs, que no tm pintura e nem energia eltrica ocupadas pelos ervateiros (Renk, 1997:21). 32 Seyferth ignora a existncia de populao indgena e cabocla na regio localizada entre o litoral e o planalto no perodo anterior colonizao. Para ela, esta regio era despovoada.31

A igreja e a escola passam a ser o suporte nas colnias estrangeiras. O desempenho das escolas, da imprensa, da igreja e das associaes diversas esto ligadas preservao dos grupos tnicos europeus. A identidade formalizada a partir de elementos positivos de pertencimento ao grupo. A lngua, a cultura de origem, a nacionalidade, a religiosidade, entre outros, so smbolos de identificao para assinalar as diferenas entre os imigrantes e a populao brasileira. Neste momento, as diferenas internas entre as populaes de imigrantes desaparecem para dar lugar homogeneidade: os alemes, os italianos, os poloneses. Alm disso, apesar do "ethos italiano, alemo e polons marcar as identidades, todos se assumem tambm como brasileiros. Isto , assumem uma dupla identificao como cidados brasileiros de pleno direito e ao mesmo tempo diferentes dos outros brasileiros por terem um ethos especfico (Idem:65). A representao da etnicidade com base no elemento trabalho permite entender um pouco a questo da cidadania. Os imigrantes consideravam-se pioneiros e civilizadores e acreditavam que iriam construir aqui uma nova ptria. Alm disso, entendiam que sua capacidade de trabalho e de disciplina era prpria de sua etnia e superior dos brasileiros. Neste caso, o colono trabalhador33 se ope ao brasileiro preguioso. Por trs destas afirmaes estereotipadas est a idealizao dos colonos, que teriam trazido progresso e civilizao ao territrio brasileiro e, por consequncia catarinense, progresso esse que vai ser compartilhado com os brasileiros. Ou seja, apesar de sua condio de minoria, as identidades tnicas alem, polonesa e italiana foram elaboradas, segundo Seyferth (1986:69), dentro de uma perspectiva de superioridade tnica diante da populao brasileira.

At o sculo XIX o trabalho possua um valor pejorativo e era tarefa apenas da classe mais desfavorecida. A nobreza no desejava e no se submetia ao trabalho (Buarque de Holanda, 1995). Ele passa a ser ressignificado com a vinda dos colonos de origem ao Brasil no processo de colonizao e da passagem do trabalho escravo para o trabalho livre a partir da metade do sculo XIX. O trabalho passa a fazer parte do cotidiano da populao que deseja o progresso. O trabalho, que antes era coisa de caboclo, muda o carter e passa a ser atividade enobrecedora. Nesse novo conceito, era somente atravs do trabalho e do esforo pessoal que os homens podiam ter acesso aos bens e fortuna (Salles, 1986:136).33

A populao cabocla protagonista da histriaA chegada de colonizadores e de novas e poderosas foras econmicas representadas pelas empresas norte-americanas do grupo Farquhar (Brazil Railway e Brazil Lumber ou Colonization) contribuem para que ocorra uma desestruturao da ordem econmica, poltica e social da regio do Planalto Catarinense. Para Auras (1995), estas empresas produziram a marginalizao de milhares de camponeses e provocavam a falncia de diversas empresas locais. Dessa maneira, estavam criadas as condies para uma insurreio da populao marginalizada, de caboclos e de despossudos. Eles eram maioria e estavam na base da hierarquia, mas no tinham perspectivas de mobilidade social e, muito menos, acesso escolaridade e aos bens materiais. Os poderosos da regio possuam o poder ideolgico e as condies materiais para definir a situao34. Alm dos componentes econmicos, a religiosidade popular, amplamente praticada pelas populaes caboclas, possibilitou a ecloso de um movimento contestatrio na regio. A populao descontente se insurgiu contra a ordem estabelecida pelos poderosos e fez eclodir uma guerra a Guerra Santa ou Guerra do Contestado (1912 1916) 35, desencadeada no Planalto Catarinense durante o perodo da Primeira Repblica. Esta guerra envolveu milhares de caboclos e o exrcito. A Guerra do Contestado, apesar de envolver questes polticas mais abrangentes, originou-se especialmente da reivindicao por terra, bem estar e segurana por parte dos sertanejos que assistiram entrega de suas terras aos estrangeiros. Essa expectativa chocava-se com a falta de ateno da organizao poltica local, representada pelos coronis, que no satisfaziam aos anseios desse povo. A esse conflito bsico se somavam sentimentos nativistas e um sentimento religioso popular que perpassava toda a ideologia da regio na poca. Por esse

Para Queiroz (1977:117) a populao de despossudos foi denominada de pelados, em oposio aos peludos que representavam os poderosos da regio, os coronis. 35 Um dos estudos mais importantes sobre a Guerra do Contestado foi realizado por Queiroz na dcada de sessenta (1977). Posteriormente outros autores analisam este importante movimento. Tratase especialmente de Monteiro (1974) e Auras (1995). J Martins (1995) e Locks (1998), analisam populaes que vivenciaram este movimento na condio de rebeldes.34

motivo, essa revolta camponesa foi revestida de um aspecto fortemente religioso e atualizado como movimento messinico36. A religiosidade do Contestado estava ligada s peripcias reais e s lendas sobre monges, beatos, rezadores, profetas e curadores itinerantes que surgiram durante todo o sculo XIX e incio do XX. O povo legitimava e reconhecia o poder milagroso do monge porque era considerado algum do povo e a servio dele. Dessa forma os monges contriburam para impedir a prevalncia da ortodoxia catlica37. J o padre, representante do catolicismo oficial, era ausente e estava distante da realidade vivenciada por essa populao. Segundo Queiroz (1977:49) a partir do sculo XIX, surgiram nesta regio diversos monges, inclusive utilizando o mesmo nome. O primeiro monge conhecido por Joo Maria era italiano e viveu entre 1801 e 1870. Esse monge preenchia as funes de curandeiro, mgico, sacerdote e profeta. A devoo a este monge e aos posteriores era muito grande entre diversas populaes sertanejas. Esta devoo continua viva em diversas populaes de Santa Catarina. Tratase, por exemplo, dos caboclos de So Jos do Cerrito, analisados por Locks (1998). O perodo do Contestado rejeitado por eles porque refora os esteretipos que eram associados aos caboclos de uma maneira geral e a eles, em especial. No entanto, o monge Joo Maria no foi relacionado por eles com a Guerra do Contestado, porque era considerado um santo que fazia profecias, promovia curas e milagres. Tambm entre os Cafuzos existe uma referncia constante ao monge Joo Maria como milagreiro. bastante comum encontrar o retrato do monge nas paredes das casas, a afirmao de que conhecem algum que conversou com ele ou encontrar

Para Queiroz (1977), messianismo compreende o conjunto de crenas religiosas expressas por uma coletividade que recusa as condies de existncia e espera um heri sobrenatural para garantir justia. Movimento messinico a cultuao deste indivduo com poderes sobrenaturais. Acredita-se que ele salvar e conduzir o crente terra sem mal, o reino dos cus, a cidade ideal. No movimento do Contestado esse processo de cultuao ao profeta foi verificado. A esperana messinica surge geralmente do desespero (250). Tambm Brando afirma, baseado na idia de Bourdieu de que a crise encontra seu profeta, que em movimentos messinicos como o Contestado, a expropriao "produz a necessidade da organizao popular da resistncia, a qual produz o embrio do grupo popular de resistncia, que constitui de uma s vez a sua gente e o seu profeta" (1987:134).. 37 Brando (1987:128) analisa dois agentes da religio estudados por Monteiro (1977) - o profeta do Contestado e os missionrios urbanos da cura divina. Afirma que estes sujeitos religiosos eram homens comuns e assim seriam se no fosse a derivao da Santa Religio e do estabelecimento de uma religio prpria.36

uma cruz de cedro na frente da casa, prtica comum entre os sertanejos visitados pelo monge.

No ano de 1893, surgiu no Planalto Catarinense o segundo Joo Maria. Era srio e se chamava, na verdade, Atans Marcaf. Era um profeta e anunciava que o fim do mundo estava prximo e viria precedido por castigos de Deus, como pragas, escurido, guerra, pestes, discrdia, entre outros (Queiroz, 1977:51). Entre os Cafuzos comum ouvir referncia proximidade do fim do mundo precedido pelos castigos de Deus. Os sinais de Deus, profetizados pelo monge, so atualizados por eles e relacionados s dificuldades enfrentadas no cotidiano do grupo, tais como brigas, desunio, falta de alimentos, carestia dos produtos, praga nos produtos agrcolas, doenas, etc38.

Este Joo Maria trazia consigo a Bandeira do Divino, que usava para curar. Segundo Queiroz (1977:62) este monge profetizou que passaria mil (ano 1000), mas no outro mil. Ou seja, o profeta afirmou que o ano 2000 no chegaria. Tambm foi este monge que declarou que a Repblica era ordem do demnio e a Monarquia, ordem de Deus. preciso especificar seu entendimento sobre estes regimes. Para ele, a Repblica, apoiada pelos coronis, era um sistema injusto, o sistema dos coronis. J a Monarquia representava o contrrio disto. Este monge desapareceu em 1908. Seus devotos no acreditavam que havia morrido, mas que ele havia se passado e voltaria logo. Desde sua morte o povo esperava um novo messias que viria ajud-los. Em 1910 apareceu outro curandeiro, conhecido por Jos Maria de Santo Agostinho. Assim como os monges anteriores, sua fama cresceu e, em sua volta, uma multido de doentes e desesperados se aglomerou. Era identificado como irmo de Joo Maria. Falava com cautela, utilizando-se de metforas e smbolos ambguos. Com medo desse ajuntamento de pessoas em volta do monge, o exrcito foi mobilizado e atacou os "fanticos", matando o monge e diversos sertanejos (Queiroz, 1977:77/100).

38

Esta prtica tambm recorrente entre outros grupos catarinenses. Entre eles esto os caboclos da regio oeste analisados por Renk (1997).

Outros monges surgiram ostentando o mesmo nome e caractersticas do primeiro monge Joo Maria. Tambm era grande o nmero de pessoas tocadas pela graa divina, tais como curandeiros, benzedores, entendidos e adivinhos. A crena na volta do monge Jos Maria, morto em combate, logo difundiu-se e os sertanejos passaram a organizar redutos em volta de lderes que recebiam supostas mensagens e ordens de Jos Maria. Conforme os avanos e recuos do movimento, os redutos organizavam-se e desfaziam-se. Estes configuravam-se como vilas santas, local onde diversos rituais, rezas e festas ocorriam. Atravs dos rituais a ordem era afirmada e reafirmada, assim como os critrios de hierarquia, igualdade e fraternidade entre os membros (Idem:116) importante ressaltar questes proeminentes no movimento do Contestado, relativos aos costumes sexuais. A virgindade feminina era evidenciada e foi transformada de uma preocupao privada e familiar em um valor da comunidade religiosa. Crianas e virgens podiam assumir posio de destaque no movimento. Um exemplo disto foi Maria Rosa, uma virgem de 15 anos que assumiu um papel muito destacado durante o movimento. Era considerada santa pelos devotos do monge Jos Maria. Estes afirmavam que ela fazia contato com o monge, j morto, e transmitia aos lderes suas ordens. Neste papel, ela destitua comandantes e decidia pela entrada ou no de novos componentes no reduto. Tambm foi ela que comandou cem cavaleiros numa mudana de local do reduto (Idem:153)39. A autoridade dos homens, especialmente dos velhos, durante o movimento religioso do Contestado, era destacada. No entanto, vrias foram as situaes em que essas lideranas recebiam orientaes e conselhos de Jos Maria atravs das mulheres. Tambm era para as divindades femininas, por exemplo a Virgem Maria, que constantemente os fiis se dirigiam pedindo proteo e beno. A especificidade pedaggica da Guerra do Contestado est, para Auras (1995:17), no momento de aglutinao, de consenso dos caboclos contra a ordem vigente. Mesmo diante de uma recorrente instabilidade, organizaram-se e investem na destruio desta ordem. No entanto, para a autora, este desejo foi incapaz de fazer39

Locks (1998) constatou a influncia desta liderana feminina em organizaes polticas atuais, tais como o movimento de agricultoras de So Jos do Cerrito/SC. Em diversas reunies a virgem Maria Rosa era reverenciada como uma liderana feminina importante. Ao destacar esta mulher como

frente s poderosas foras econmicas do capitalismo e suas organizaes foram destrudas pelo exrcito republicano. Foi a nica vez em que caboclos/sertanejos se insurgiram contra a ordem vigente e foram protagonistas da histria catarinense, segundo Locks (1998:74/75). Mesmo assim, esta perspectiva do movimento foi ocultada ou distorcida. A memria que ficou da Guerra do Contestado foi uma leitura dos vencedores. Para estes, a Guerra do Contestado foi uma luta de jagunos (termo associado aos esteretipos de violento, baderneiro, invasor, desordeiro, bandido). As fontes sobre a participao da Comunidade Cafuza na Guerra do Contestado so restritas, mas servem para provar que o grupo participou deste movimento na condio de rebelde. O depoimento de Vitalina Souza Prestes (19081994) relata com clareza passagens dessa participao, apesar de sua pouca idade na poca. Ela lembrava do cotidiano da guerra, onde inmeras fugas faziam-se necessrias para evitar ataques. Nas fugas, os adultos carregavam tudo o que possuam, alm das crianas menores. Sua lembrana remete a um tempo difcil onde faltava segurana e abundava a violncia (Martins, 1995).

2) Trajetria da Comunidade Cafuza40Trabalhando, esperando Enfrentando chuva e sol. Enxada na terra alheia Nunca traz dia melhor. (Homem Rural, Cenair Maic)

A memria dos Cafuzos remete s muitas dificuldades enfrentadas na luta pela sobrevivncia. Segundo Martins (1995), aps a Guerra do Contestado, a Comunidade Cafuza dispersou-se pela regio do Planalto Catarinense em busca de novas terras para viver. Alguns saram procurando terras desocupadas nos sertes

referncia, esse movimento de mulheres ressalta um aspecto positivo da Guerra do Contestado. Maria Rosa era tambm o nome de uma importante liderana Cafuza no perodo de luta pela terra. 40 A trajetria deste grupo est referenciada em Martins (1995), em Welter (1997a) e em dados desta pesquisa.

da Serra do Mirador, que fica entre o Planalto e o Vale do Itaja. Ao enfrentar novas dificuldades, resolveram migrar em 1920 para o serto do Faxinal atual municpio de Vitor Meireles/SC. L era serto, serto de azul, afirmam eles. Relatam que a vida no serto era muito difcil pois faltava alimentos, recursos, moradia, alm dos perigos da selva e do medo de novas expulses. Era preciso improvisar tudo. As casas eram construdas com pau lascado e cobertas com folha de palmeira (papu). Essa maneira de construir as casas deve-se especialmente falta de recursos e instabilidade que o grupo vivenciava. curioso observar que em 1987, quando conheci a Comunidade Cafuza dentro da rea Indgena Ibirama, diversas casas ainda eram construdas desta maneira. Com a construo de uma estrada, ligando o Faxinal sede do municpio de Ibirama, o isolamento do grupo foi aos poucos sendo quebrado. Passaram a manter contato com os regionais e com os ndios aldeados na Foz do Plat (atual Posto Indgena Duque de Caxias). Conheceram tambm o chefe do Posto, Eduardo de Lima e Silva Hoerhan, que exerceu enorme fascnio sobre os Cafuzos. Mesmo vivendo no Faxinal por mais de vinte anos, os Cafuzos passaram a ser intimados a abandonar as terras na dcada de quarenta pela Sociedade Colonizadora Hansetica que, segundo informaes da prpria, eram de sua propriedade. O grupo havia investido muito naquela rea e no tinha para onde ir. Mesmo assim, a empresa fez todo o tipo de ameaas e presses para que o grupo sasse da rea. Apesar de pressionados, os Cafuzos conseguiram resistir por algum tempo. O chefe do Posto Indgena, Eduardo de Lima e Silva Hoerhan, sabedor das presses que os Cafuzos estavam sofrendo41 fez uma proposta ao grupo de sair do serto e passar a viver dentro da rea Indgena Ibirama42. Nesse perodo a poltica do SPI era de autosustentao dos ndios e do prprio posto. Eduardo era responsvel por viabilizar essa poltica naquela rea indgena. No entanto, os Xokleng, ao serem pacificados, abandonaram a caa e a coleta e passaram a tarefa de sua subsistncia ao posto do SPI. Dessa maneira, a proposta de levar os Cafuzos para a rea Indgena objetivava

Para Martins (1995) nunca ficou claro o envolvimento ou no do governo e, por sua vez, do SPI, nessa presso para a retirada dos Cafuzos do Faxinal. 42 Segundo Martins (1995) a rea Indgena Ibirama foi legalizada em 1926 como propriedade condominial dos ndios Xokleng. A partir daqui, utilizarei rea Indgena ou apenas rea, quando desejar referir-me a esta propriedade.41

antes viabilizar a poltica do SPI do que ajudar os Cafuzos contra as presses de expulso da rea em que viviam.

O grupo obrigado a mudar novamentePressionados por todos os lados, alguns Cafuzos aceitaram a proposta de Eduardo Hoerhan e mudaram para a rea Indgena. Outros resistiram mais algum tempo, mas, sob ameaas, acabaram cedendo. Em 1947, todos os Cafuzos haviam mudado para l e a estruturao do grupo precisava ser novamente reiniciada. Porm, a falta de alimentos obrigou diversos homens a sair para procurar trabalho assalariado. Como em toda a trajetria do grupo, as mulheres ficaram no "cafuzeiro"43 com os filhos, para cuidar das roas e animais domsticos, improvisando, desta maneira, a subsistncia com os recursos disponveis. Tambm neste perodo, muita fome e diversas epidemias foram enfrentadas. Aos poucos o grupo conseguiu se organizar e a vida retomou certa normalidade. neste momento que Seu Eduardo exigiu dos Cafuzos retorno pela ajuda que prestou a eles. Passaram ento a realizar tarefas para o Posto Indgena submetidos s ordens de seu chefe: fazer roas, abrir estradas, construir, conservar equipamentos, etc. Esse trabalho era obrigatrio e gratuito. Em virtude deste envolvimento dos homens no trabalho ao Posto Indgena, as famlias ficaram novamente expostas fome. Novamente foram as mulheres que garantiram a sobrevivncia mais direta da famlia com a produo agrcola familiar e os animais domsticos. O trabalho forado e sem pagamento realizado pelos Cafuzos ao Posto Indgena foi mantido mesmo aps o afastamento de Eduardo em 1954. Os Cafuzos viveram dentro da rea Indgena e sob condies de submisso e humilhao por 45 anos.

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Local de moradia da Comunidade Cafuza.

A luta pela sobrevivncia fica mais difcilPara a maioria dos Cafuzos, no agradava esta forma de vida e alguns tentaram sair da rea Indgena em busca de novas alternativas de sobrevivncia em outros lugares. Alguns saram e no voltaram mais. Mas a maioria voltava porque no conseguia se estabelecer em outros lugares. Aos poucos, os Cafuzos perceberam que no havia perspectivas de vida fora do Posto sem a garantia de terra prpria para trabalhar. Aps o afastamento de Eduardo Hoerhan da direo do Posto, novos chefes assumiram e continuaram exigindo o trabalho compulsrio dos Cafuzos. No final da dcada de sessenta o SPI extinto, sendo substitudo pela FUNAI. A presena dos Cafuzos, porm, nunca causou interesse por parte de qualquer uma das instituies. Em 1968 assumiu o primeiro chefe de Posto a servio da FUNAI, tenente Isidoro de Oliveira. Com o objetivo de arrumar a casa, ele procurou justificar a presena dos Cafuzos dentro da rea Indgena. Utilizando-se de um livro didtico, Isidoro explicou que o indivduo surgido da miscigenao entre ndio e negro denominavase cafuzo. Ele foi o primeiro a utilizar o termo cafuzo para designar o grupo. Com o resgate da origem do grupo, ele definiu que existia uma relao de parentesco entre eles, convencendo-os de que no eram morenos ou caboclos, mas cafuzos. Para o grupo isso representou uma mudana de status, j que os termos utilizados anteriormente para caracteriz-los tinham carter pejorativo. Somente a partir da, que o grupo passou a identificar-se e a ser identificado com o termo Cafuzo. Na rea Indgena Ibirama, alm dos Xokleng, viviam os Kaingang e os Guarani. Os Kaingang foram introduzidos na rea em 1910 para auxiliar o SPI no processo de pacificao dos Xokleng, uma vez que compartilhavam lnguas do grupo J. J os Guarani passaram a fazer parte da rea apenas em 1953, mas viveram sempre em espaos separados dos demais grupos. Esses grupos indgenas, os Cafuzos e alguns brancos incorporados ao grupo por casamento, formavam a populao da rea Indgena Ibirama44, com a qual os Cafuzos interagiram durante sua estada.44

Alm destes grupos existiam diversos indivduos identificados como mestios: branco/Kaingang, branco/Xokleng, Kaingang/Xokleng.

Durante os quarenta anos em que Eduardo Hoerhan esteve frente do Posto, manteve os indgenas em relativo isolamento da sociedade regional. Assim que foi afastado, os interesses madeireiros falaram mais alto. Por serem proprietrios das terras, apenas os ndios Xokleng possuam o direito de vender madeira e assim o fizeram. Foi a chamada corrida da madeira. Em pouco tempo os recursos naturais da rea estavam devastados. Isto trouxe consequncias drsticas para o meio ambiente e para as populaes locais, apesar de uma efmera prosperidade dos indgenas. Outro fato traria consequncias graves populao da rea Indgena e aos demais: a construo da Barragem Norte. Para esta construo, parte das terras foi desapropriada e os ndios removidos para rea utilizadas antes pelos Cafuzos. Dessa maneira, a parte das terras destinada aos Cafuzos foi drasticamente reduzida. A proximidade territorial entre Xokleng e Cafuzos fez aflorar, segundo Martins (1995) uma indisposio latente entre os grupos. Os Xokleng eram os proprietrios das terras e no possuam roas ou criao de animais. J os Cafuzos possuam roas, animais e uma capacidade de trabalho. Assim, o trabalho compulsrio dos Cafuzos, exigido antes apenas pela chefia do Posto, passou a ser cobrado tambm pelas lideranas indgenas.

Perspectivas para uma terra prpriaAt o incio da construo da Barragem Norte, os Cafuzos viviam relativamente isolados no interior da rea Indgena. Mesmo com todas as mudanas ocorridas com esta construo e tambm aquelas relacionadas com a corrida da madeira, o grupo manteve-se unido. At esse momento, as tentativas de evaso da rea eram individualizadas e redundaram em fracasso. Em 1985 iniciou-se um processo de luta por uma terra para o grupo. Neste perodo, existia o Plano Nacional da Reforma Agrria estabelecido pelo governo da Nova Repblica. A liderana escreveu uma carta em nome do grupo, expressando o desejo de incluir o grupo neste plano. Lideranas indgenas e autoridades locais endossaram este pedido. O retorno desta carta veio em seguida e o processo de assentamento foi iniciado. Uma

assessora do Ministrio da Reforma Agrria e Desenvolvimento (MIRAD), Lgia Simonian, foi encaminhada para elaborar uma informao tcnica sobre o grupo. Esta informao tcnica garantiu ao grupo ser includo no plano nacional de reforma agrria. Logo aps, um local para o assentamento do grupo foi escolhido, mas no efetivado e, com a extino do MIRAD, o processo foi arquivado O sonho da terra prpria, no entanto, no abandonou o grupo. Em 1987, Pedro Martins, estudante de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina, conheceu o grupo e a precariedade de sua situao. Martins desenvolveu uma etnografia do grupo. Aos poucos, o processo de assentamento foi desengavetado e os trmites burocrticos para um novo assentamento reencaminhados pela nova liderana do grupo, que havia sido eleita em 1989. Esse processo recebeu o apoio de entidades da sociedade civil, especialmente do Programa de Ps Graduao em Antropologia e do Museu de Antropologia da UFSC, do Conselho Indigenista Missionrio, da Igreja Luterana e da Comisso Pastoral da Terra. Em novembro de 1992, o local do assentamento estava definido e aprovado, porm o mesmo no se efetivava porque faltava um parecer favorvel do IBAMA45. Com o objetivo de agilizar este parecer, os Cafuzos ocuparam a propriedade com 871 hectares localizada em Alto Rio Laeiscz. Seis meses aps esta data, o INCRA, rgo responsvel pelo assentamento, assinou a escritura de compra do imvel em regime condominial.

A atuao efetiva das Cafuzas na luta pela terra preciso ressaltar a atuao das mulheres Cafuzas em todo o processo de luta e conquista da terra. Apesar da liderana ser composta basicamente por homens, as mulheres tiveram uma participao pblica decisiva neste processo. Foram inmeras as idas e vindas da liderana Cafuza s instituies envolvidas no processo de assentamento tais como INCRA, Assemblia Legislativa, IBAMA, Universidades, todas localizadas na capital do Estado, Florianpolis. Em alguns momentos, essa liderana era acompanhada por mulheres ou composta

apenas por mulheres que vinham para defender a causa do grupo. Numa destas situaes, somente Maria Rosa Machado veio para Florianpolis. Era uma senhora de setenta anos que nunca havia sado fora dos limites do municpio de Ibirama. Em Florianpolis, participou com desenvoltura de diversas reunies com estudantes e com representantes de entidades. No entanto, o sonho da terra prpria no chegou a ser concretizado por ela, que faleceu antes da mudana para o Laeiscz.

Outra atuao feminina foi a de Vitalina Souza Prestes, ltima Cafuza sobrevivente da Guerra do Contestado. Ela era uma espcie de inspirao para todo o grupo. Com mais de oitenta anos e uma sade abalada, estava sempre encorajando o grupo para a luta. Diante de qualquer desnimo falava de seu sonho de ter uma terrinha onde seus filhos e netos pudessem trabalhar e retirar da seu sustento. Dizia que s assim morreria sossegada. Vitalina festejou junto com o grupo a vitria, porm aproveitou pouco deste sonho pois faleceu logo em seguida. Ao avaliar os riscos que o grupo podia sofrer ao fazer a ocupao, a liderana, composta por homens, colocou em dvida a possibilidade da efetivao da posse desta terra. Vrias mulheres organizaram-se e colocaram sua disposio em correr os riscos necessrios, morrer, se fosse preciso, mas no iriam desistir do sonho. Isso animou o grupo e a ocupao aconteceu.

Com a terra garantida, hora de reunir a famliaQuando os Cafuzos ocuparam sua propriedade no Alto Rio Laeiscz, procuraram reunir todas as famlias que dispersaram-se pela regio durante a trajetria do grupo. Muitos acorreram a este chamado e juntaram-se ao grupo.

Algumas famlias participaram apenas do primeiro momento do assentamento. Este era o momento mais difcil pela instabilidade e possibilidade do pedido de reintegrao de posse pelo proprietrio. Logo que o risco do confronto passou, estas famlias voltaram para suas casas fora da Comunidade. Muitas dificuldades foram enfrentadas pelas famlias Cafuzas nos primeiros tempos de assentamento. No princpio, todas as famlias foram abrigadas em45

Instituto Brasileiro de Amparo ao Meio Ambiente e aos Recursos Renovveis.

barracos de lona enquanto o processo de construo de casas era encaminhado e a plantao de roas iniciada. Algumas famlias ficaram morando em barracos de lona durante mais de um ano. A falta de alimentos s foi superada pela ajuda de pessoas e de entidades da sociedade civil. Muitas outras dificuldades foram enfrentadas. A estrada de acesso Comunidade era precria e ngreme, faltava escola e posto mdico, faltava transporte entre a Comunidade e a cidade de Jos Boiteux e faltavam agasalhos para enfrentar o frio, que constante na rea pela altitude acentuada. Alm disso, as terras da Comunidade possuem um declive acentuado que, aliado ao frio, dificulta o desenvolvimento da produo agrcola. Das famlias que estavam dispersas antes do assentamento, poucas permaneceram junto com o grupo. Martins sugere que, para estas famlias, era mais difcil adaptar-se cultura daqueles que permaneceram dentro da rea Indgena. Fora de l, estas famlias tiveram acesso aos confortos da vida urbana, luz eltrica, por exemplo, e ficava difcil conviver sem estes confortos. Durante anos esses Cafuzos dispersos trabalharam em empresas, fazendas ou como domsticos, eram assalariados com carteira assinada, compravam utenslios domsticos no credirio e viviam em casas cedidas ou alugadas com mais conforto do que a sua expectativa no cafuzeiro. Aprenderam a conviver com estranhos e sem parentes por perto (1995: 293). Alm disso, estas pessoas perderam a perspectiva de uma organizao mais coletivizada, proposta que sustentou o pedido da terra para o grupo. Com uma perspectiva mais individualizada de produo, estas famlias conseguiam mais adaptar a certas regras que foram sendo estabelecidas pelo grupo para esta convivncia.

"Aqui este povo vai ser santo" 46A distncia entre a cidade e a propriedade da Comunidade Cafuza no Alto Rio Laeiscz de aproximadamente 14 quilmetros. A estrada estreita, no pavimentada, cheia de curvas e, na maior parte do trecho, extremamente ngreme. Esta descrio torna-se importante para visualizar as dificuldades enfrentadas pelos

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Joaquim Machado em depoimento a Alessandra Schmitt.

Cafuzos quando necessitam deslocar-se para a cidade para estudar, em busca de mdico, alimentos, remdios, trabalho ou qualquer outra eventualidade. Essa estrada conduz a uma nica entrada oficial da Comunidade Cafuza, identificada por um porto e uma placa do INCRA. Logo que se cruza esse porto, encontramos a casa da professora esquerda e a casa do cacique direita. Logo em frente observa-se um pontilho que atravessa o rio Laeiscz. Ao longo das margens desse rio esto as casas dos Cafuzos. Alm das casas, h apenas mais duas construes comunitrias no local e servem para utilizao exclusiva do grupo. Trata-se da escola (Escola Isolada Municipal Jesuno Dias de Oliveira) e do salo comunitrio. Durante o dia, a escola utilizada pelas crianas e adolescentes Cafuzos de primeira quarta sries. noite, a escola passa a ser utilizada por freqentadores do curso de alfabetizao para jovens e adultos. Alm das atividades escolares, o espao da escola utilizado para a realizao de outras atividades comunitrias e religiosas. So reunies, palestras, cursos e atividades ligados Igreja Catlica tais como missa, culto e catequese. O salo comunitrio mais utilizado para festividades.

As estratgias econmicas presentes na cultura Cafuza apontavam, antes da ocupao da propriedade em Rio Laeiscz, para uma produo de subsistncia familiar. Com a necessidade de terra, os Cafuzos se organizaram e definiram um projeto coletivo de produo e propriedade da terra. Quando assentados investiram, alm da agricultura familiar, numa produo cooperativa de erva-mate, planta comum na regio. O projeto, ainda em andamento, prev a plantao, secagem, moagem e venda da erva-mate no mercado. Segundo Schmitt, esse processo coletivizador diz respeito prpria necessidade de justificar seu merecimento terra. "Durante todo o processo de luta pela terra foi muito importante para a Comunidade a elaborao de um projeto de vida comunitrio para justificar seu merecimento terra, alm do argumento principal, que se baseia em sua ancestralidade" (apud Martins, 1995:290). Por outro lado, essa ideologia do coletivo recebe a influncia de agentes externos Comunidade, pessoas ligadas a instituies, especialmente igreja e universidade,

que influenciam a organizao interna e a prpria idia da identidade Cafuza como coletiva47. Para Schmitt (1996), essa organizao coletiva foi uma imposio da prpria organizao da luta pelo direito terra, no fazendo parte da cultura Cafuza anterior a este perodo, onde a subsistncia era familiar. Alm da produo coletiva de erva-mate a Comunidade optou por uma definio coletiva das atividades e dos espaos: construo das casas, escola, salo comunitrio, minhocrio, aude, definio das roas individuais e comunitrias, definio das regras de convivncia, entre outros. Os bens foram adquiridos em nome da Comunidade e ningum poderia retir-los de l se decidisse sair. Ou seja, a propriedade coletiva e, em nome desta coletividade, responde a liderana, que oficialmente conhecida como a diretoria da Associao Comunitria Cafuza. A liderana composta por Cacique48, Vice-Cacique, entre outros. A Comunidade est assentada neste local desde 1992 e a construo da infraestrutura adequada ainda est em andamento. A grande maioria j possui casa, mas as condies das mesmas ainda so tpicas do modo de vida sertanejo: sem saneamento bsico, instalao de caixas dgua, banheiro, chuveiro, energia eltrica49, eletrodomsticos, mveis, entre outros.

A influncia de pessoas ligadas a instituies externas ao grupo, em direo coletivizao, foi alvo de diversas crticas em outros trabalhos desenvolvidos com o grupo (Schmitt, 1998) e em outros assentamentos. O assentamento Sumar no estado de So Paulo um deles. Rapchan (1993) faz referncia influncia da ideologia do coletivo do Movimento Sem Terra sobre o assentamento. A proposta inicial da organizao do trabalho na terra era de coletivizao total. Essa coletivizao significava definir horrio de trabalho e distribuir igualitariamente a produo. Essa proposta apresentou problemas e foi dissolvida. No entanto, o discurso da identidade coletiva, nesse assentamento, capaz de mobilizar o grupo diante de algum interesse ou ameaa. Isso ocorreu tambm no assentamento denominado Putinga, no estado de Santa Catarina, analisado por Paulilo (1996). Scherer-Warren observa, ao prefaciar esta obra, que a proposta de coletivizao dada pelos mediadores e lideranas politizadas do movimento uma proposta hbrida. Ela comporta regras de funcionamento para a produo, tais como horrios e diviso do trabalho. Essas regras so adversas aos hbitos dos camponeses, segundo ela. O trabalho livre, a liberdade de horrios, a autonomia de tarefas e as relaes familiares fazem parte da cultura camponesa e no podem ser negligenciados. 48 O termo cacique para denominar o lder do grupo um dos muitos elementos da cultura indgena que foram incorporados cultura Cafuza. 49 A energia eltrica foi instalada na comunidade em 1997, porm a maioria das famlias ainda no desfruta da mesma pela falta absoluta de condies financeiras para a sua instalao nas casas. Sem energia eltrica, os aparelhos eletrnicos funcionam pilha e a iluminao das casas feita com vela, lamparina ou lampio.47

CAPTULO II SOCIABILIDADE CAFUZA 1 Aspectos de uma hospitalidade marcantePara qualquer forasteiro que chega na Comunidade Cafuza, a hospitalidade o primeiro elemento que chama a ateno50. A visita recebida e tratada com ateno especial, com prioridade. Quando ela chega, as pessoas deixam seus afazeres e acolhem com alegria. A ela oferecido o que tem de melhor na casa. Dependendo da disponibilidade do visitante, os Cafuzos oferecem chimarro, caf e, posteriormente, uma refeio. Ao receber em suas casas um forasteiro, dois aspectos so verificados. O primeiro diz respeito ritualizao dessa visita. Todas as atenes esto voltadas a ela. A visita recebida na sala ou na cozinha e a ela so oferecidos alimentos preparados com maior dedicao e variedade, o banco mais confortvel, a primeira cuia de chimarro ou caf e, se ficar hospedado, a melhor cama e os melhores utenslios domsticos. O segundo aspecto, refere-se ao rompimento do cotidiano e inaugurao de novo tempo, que o tempo da visita. Estes aspectos no so verificados quando a visita faz parte da famlia ou fica por mais tempo em contato com o grupo. Um contato mais continuado com o grupo modifica o ritual da hospitalidade. A partir da, o cotidiano e as atividades em desenvolvimento no so mais interrompidos para receber a visita e nem se sofistica o acolhimento. No entanto, a hospitalidade est sempre presente em cada casa Cafuza. O caf e o chimarro so elementos indispensveis da hospitalidade Cafuza em qualquer dia ou horrio. O chimarro uma bebida tradicional entre algumas populaes brasileiras e objetiva a hospitalidade e a integrao entre as pessoas. Para o preparo desta bebida so necessrios uma cuia, uma bomba de metal prpria para este uso, erva-mate e gua quente. A Comunidade Cafuza utiliza uma maneira especfica de preparo da cuia e tm preferncia pela erva-mate de marca Tupan. A50

A hospitalidade como um aspecto marcante foi registrado em diversos trabalhos escritos sobre o grupo. Ver por exemplo, Martins (1991 e 1995), Martins (1994), Schmitt (1996) e Welter (1997a).

erva-mate colocado dentro da cuia cobrindo apenas metade dela. De vez em quando um pouco mais de erva-mate colocada na cuia para que no se perca o sabor. O sabor desta erva-mate pouco difere daquela produzida pelos Cafuzos. A produo ainda artesanal e compreende vrias etapas: corta-se os galhos da ervamate, depois seca no calor do fogo lenha e, por fim, soca a mesma no pilo, onde so separados os galhos mais grossos. Dessa maneira, a erva est pronta para o consumo. No incio estranhei o gosto amargo do chimarro preparado pelos Cafuzos, mas em pouco tempo estava habituada e acompanhava a roda at o fim51. A roda de chimarro possibilita uma integrao da famlia com a visita e um dos momentos mais ricos da hospitalidade em que os adultos contam histrias, cantam e trocam idias. O chimarro geralmente preparado e servido pela mulher. J o marido senta com a visita para fazer sala52. Enquanto o chimarro circula entre os adultos, as crianas ficam em volta, em silncio, acompanhando todo o desenrolar da conversa. Esse era um momento rico para minha pesquisa. Nessas ocasies eu ouvia histrias, opinies, observava talentos e aspectos da convivncia entre eles. Essas situaes eram utilizadas tambm como forma de questionar sobre minha vida pessoal e sondar minha opinio sobre os problemas da Comunidade. Era tambm um momento delicado, porque ao formular minha opinio poderia comprometer-me e tornar o instante seguinte um desastre. Como sada para esse impasse, procurava devolver a pergunta a eles e reforar a importncia do prprio grupo resolver seus problemas. Aps a roda de chimarro, os Cafuzos geralmente oferecem uma xcara de caf visita, mesmo que a refeio mais prxima esteja sendo preparada. O caf preparado pela mulher e entregue, primeiro para a visita e para os homens Cafuzos, depois para os demais. Na maioria dos casos, o caf preparado conforme os costumes do grupo: com uma quantidade grande de acar, mesmo que no seja doTanto homens, quanto mulheres, demonstravam admirao a meu respeito e faziam comentrios do tipo: a Tnia uma das nossas, pode bem viver entre ns. Ao comentar isto estavam referindo-se especialmente minha disposio em deixar minha famlia para realizar uma pesquisa com o grupo, alm de minha adaptao aos costumes da Comunidade. 52 Esta uma expresso popular. Refere-se ao acompanhamento especial e contnuo dado visita por alguma pessoa da casa.51

agrado da visita, para usar um termo Cafuzo. Muitas vezes o caf no coado, sendo o p colocado diretamente na xcara com acar e gua fervente. Na maioria dos casos, quem desenvolve todo o processo da hospitalidade Cafuza a mulher, mesmo quando o homem est presente. Ela prepara e serve o chimarro, o caf e toda a alimentao. Em alguns casos a mulher s inicia o preparo destas atividades se o homem solicita. O aspecto de uma hospitalidade marcante comum entre grupos de baixa renda no Brasil53, tanto urbanos quanto rurais. Entre os grupos camponeses, cito a hospitalidade dos agricultores brasileiros de So Jos do Cerrito e dos sem terra de Sumar, assentamento rural no estado de So Paulo, estudados respectivamente por Locks (1998) e por Rapchan (1993). No primeiro grupo, a hospitalidade marcada pelo oferecimento do cigarro, do chimarro, do caf e pela abdicao de todos os compromissos domsticos ou externos do anfitrio para dedicar-se exclusivamente visita. J entre os sem terra de Sumar, Rapchan descreve assim este processo. A hospitalidade com que fui recebida e tratada por todos os assentados foi constante, o que se evidenciou, muitas vezes, na cesso da melhor cama, no capricho para a confeco da comida, etc (1993:10). Esta hospitalidade ficou tambm evidenciada na competio pela presena da pesquisadora para fazer uma refeio, tomar um caf ou pousar uma noite. Fonseca (1992a) apresenta a hospitalidade das camadas populares urbanas. Ela traa um paralelo entre a pesquisa com grupos de camadas populares de Porto Alegre (Brasil) e a pesquisa em grupos similares na Frana, constatando que um pesquisador melhor acolhido no Brasil. Alm da hospitalidade, Fonseca verificou outra capacidade entre os moradores da periferia no Brasil. Quando algum estranho entra numa vila logo identifica