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AFROMUNDO Divino do Guaporé Parque do Xingu Zeladores de Voduns O Povo de São Benedito Sustentabilidade • Cultura Popular • Povos Tradicionais • Natureza • Turismo Maio/Jul 2012 Nº 03 R$10,00

Revista Afromundo - Nº 3

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Revista brasileira dedicada a Cultura Popular, Povos Tradicionais, Sustentabilidade, Natureza e Turismo do Brasil e da Bolívia apresentando belíssimas fotos. Brazilian magazine dedicated to Popular culture, traditional people, sustainability, nature and tourism from Brazil and Bolivia featuring a lot of awesome photographies.

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AFROMUNDO

Divino do Guaporé

Parque do Xingu

Zeladores de Voduns

O Povo de São Benedito

Sustentabilidade • Cultura Popular • Povos Tradicionais • Natureza • Turismo

Maio/Jul 2012 Nº 03 R$10,00

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Pousada no Distrito Bom Jardim, NobresMato Grosso

Reservas e informações: 65 9237-4471 / 9287-5676

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Maio/Jul - 2012

Editor Chefe & Editor de Arte:Mario [email protected]

Jornalista Responsável:Marcia Raquel de OliveiraDRT-MT [email protected]

Textos:Bené [email protected]

Luca [email protected]

Marcia Raquel

Margi Moss

Mario Friedlander

Sergio F. [email protected]

Márcio Vasconceloswww.marciovasconcelos.com.br

Designer Gráfico:Luiz [email protected]

Revisão: Alda M. Q. do [email protected]

Colaboradora Especial:Jackeline [email protected]

Fotografias:Mario Friedlander

Margi [email protected]

Gérard Moss

Thiago Iatesta

Delfim Martins/Pulsar [email protected]

Márcio [email protected]

Edição de textos:Alda M. Q. Do Couto

Marcia Raquel

Mario Friedlander

Impressão:Gráfica Print

Tiragem:3.000 exemplares

José Medeiros Imagem & Publicações(Medeiros & Borges LtdaCNPJ 08.708.717/0001-02)Av. Fernando Corrêa da Costa, 1610Galeria Xavier - Sala 11178065-000 Cuiabá - MT(65) 3054-1080 / [email protected]

O Batelão do Divino Espírito Santo, chamado de “Carité” pelos romeiros, representa uma Igrejinha flutuante que percorre o rio Guaporé e suas comunidades durante mais de 45 dias, levando os símbolos do Divino e os romeiros, que são seus devotos e guardiões.A romaria fluvial, das mais longas do mundo, tem regras muito rígidas para quem participa e não tolera a desobediência e falta de fé entre seus membros.

Foto: Mario Friedlander

Pag. 06 Parque Indígena do Xingu

Pag. 18 Visões sobre o universo gonzaguiano

Pag. 24 Rios Voadores

Pag. 33 Zeladores de Voduns

Pag. 50 Em busca do Divino de Guaporé

Pag. 70 Potosí, o manancial prateado do Cerro Rico

Pag. 86 O Povo de São Benedito em Livramento

www.afromundo.com.br - [email protected]

www.issuu.com/afromundowww.issuu.com/afromundoRevista Afromundo online:

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imagem é tudoFotos da Terra é um banco de imagens que vem facilitar

com criatividade e agilidade o mercado com conteúdo

atual para uso publicitário e editorial.

Av. Fernando Correa da Costa, 1.610 - Galeria Xavier, sala 111Jd. Kennedy - CEP 78070-000 -

Fones: (65) 3054-1080 / 3054-3080 - Cuiabá - Mato [email protected]

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ParqueIndígena do

XinguRespeito é a palavra chaveTexto: Marcia RaquelEnsaio Fotográfico: Delfim Martins / Pulsar Imagens

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Índio da etnia Kalapalo pintado para o Jawari. Parque Indígena do Xingu, Querência-MT

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Índios da etnia Kalapalo preparados para o Jawari na aldeia Aiha.

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Vista aérea da estrada de terra no meio da floresta preservada na área do Parque Indígena do Xingu em Querência, Mato Grosso.

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Certa feita, no ano de 1999, Frei Betto deu a se-guinte resposta ao ser questionado sobre o que têm os povos indígenas que nós não temos: “Veremos que aqueles que permanecem tribalizados são portado-res de uma inestimável riqueza antropológica. Entre eles não há crianças abandonadas, idosos marginali-zados, propriedade privada, desigualdade social, etc. São exemplares quanto a valores como solidariedade, partilha, companheirismo, respeito ao meio ambiente. Plenos de humanização, eles são os verdadeiros civili-zados e nós, citadinos, os bárbaros”.

Conhecer um pouquinho da história de uma das maiores e mais antigas áreas protegidas criadas no Brasil, o Parque Indígena do Xingu, é entender que esse “permanecer tribalizado” é que faz a diferença. Embora o termo “tribo” não seja mais usado para fa-zer referência aos índios, no contexto utilizado por Frei Betto significa viver respeitando seus valores, suas crenças, seu ambiente, sua cultura.

Quem sobrevoa a região nordeste do Estado de Mato Grosso se depara com uma das mais contras-tantes paisagens: uma mancha verde de floresta bem conservada, cortada por grandes rios sinuosos, como

se fosse uma ilha em meio a pastagens e áreas de plan-tios e de exploração de madeira.

Do alto é possível avistar algumas clareiras, em sua maioria circulares, em meio à mata fechada. São as al-deias com suas ocas gigantescas, fruto de um incrível trabalho arquitetônico desenvolvido pelos xinguanos.

Entrar no Parque Indígena do Xingu, também cha-mado de PIX, é uma experiência única e transforma-dora. É conhecer um Brasil que poucos conhecem, e por isso talvez, poucos valorizem. É ter a certeza que a sintonia perfeita entre o homem e natureza é possível, cada qual respeitando seus limites.

O fotógrafo Delfim Martins, que desde 2009 desen-volve um trabalho no PIX, a partir da sua experiência pessoal, resumiu o que significa esse “mundo”chamado Xingu. “Acho que o Xingu existe graças ao trabalho dos irmãos Villas-Bôas e de bons sertanistas que pas-saram pela FUNAI (Fundação Nacional do Índio). O Brasil cometeu alguns erros na segunda metade do século passado, mas em relação ao Xingu, felizmente, acertou. Eu digo que, quem quer descobrir, conhecer e entender o Brasil tem que passar por uma aldeia do Xingu”.

Os guerreiros xinguanos com as mulheres e crianças da aldeia Kalapalo Aiha, iniciando o Jawari.

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Maloca em construção na aldeia Kalapalo.

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E ele tem razão. Hoje, o que se chama de Parque Indígena do Xingu é um território de 28.254,7 qui-lômetros quadrados, formado pelas áreas contíguas das terras indígenas Parque Indígena do Xingu (com 26.420,03 Km²), Batovi (51,59 Km²), Wawi (1.503.28 Km²) e Pequizal do Naruvôtu (279.80 km²), que com-partilham a mesma gestão político-administrativa. Di-vididos em 77 aldeias, aproximadamente 5.500 índios, de 16 etnias, vivem na região.

Criado em 1961, através do Decreto 50.455 do pre-sidente Jânio Quadros, o Parque ficou sob a respon-sabilidade da Fundação Brasil Central, coordenada pelos irmãos Villas-Bôas. Com todas as dificuldades de uma época em que o fundamental era “ocupar para não entregar”, o PIX conseguiu se manter como uma espécie de refúgio seguro para suas populações origi-nárias e para muitas que foram levadas para lá.

Conforme dados disponíveis no Almanaque Socio-ambiental Parque Indígena do Xingu 50 Anos (2011), a maioria dos 16 povos que nele habitam já conseguiu recuperar o patamar populacional de antes do contato com os brancos, superando as sequelas das epidemias e o fantasma da extinção.

Delfim Martins conta que conhecer uma aldeia do Xingu não foi uma tarefa fácil, pois sempre esbarrava em dois obstáculos: a desconfiança dos índios e o con-trole da FUNAI. “Por isso sempre me pareceu uma realidade distante”, afirma. Porém, no início de 2000 o também fotógrafo Renato Soares que já vinha tra-balhando no Xingu desde o período dos Villas-Bôas levou um grupo de Ywalapiti na Agência Pulsar e esta-beleceu o primeiro contato. Entre os Ywalapiti estava o Cacique Kotok. “Conversamos sobre disponibilizar as fotos que o Renato havia feito deles no site da Pul-sar repassando para a Aldeia 1/3 do valor da venda. Como houve concordância entre as partes, abriu-se uma possibilidade”, explicou.

Nove anos depois, Martins realizou a sua primeira visita ao Xingu. Em 2011 repetiu a experiência e já se programa para a terceira visita, em 2013. Das experi-ências adquiridas desde o primeiro contato com os xin-guanos, o fotógrafo destaca que a regra fundamental para estabelecer uma relação harmoniosa é respeitar a cultura. “No primeiro dia da minha chegada a câme-ra não saiu da bolsa. Só no final da tarde, depois da reunião na casa dos homens com todas as lideranças,

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onde explicamos nossos objetivos, forma de trabalho e percentual das vendas para a aldeia é que nós fomos autorizados a fotografar. Só é possível havendo respei-to, e esse povo já foi explorado visualmente com pouca contrapartida”.

Com essa postura, foi possível estabelecer com os índios uma relação de respeito pelo direito da imagem. Algo totalmente novo para eles, uma vez que não são poucas as histórias de fotógrafos, cinegrafistas, docu-mentaristas e artistas que passam em alguma aldeia, gravam muitas imagens e nunca mais dão satisfação. “Alguns até pagam alguma grana ali na hora, outros nem isso. Com o nosso trabalho, eles recebem men-salmente via conta da Associação”, explicou ao revelar que a forma de trabalho já vem despertando o interes-se em outras etnias.

Cultura XinguanaConhecer o Xingu é mergulhar num emaranhado

de emoções. Para além de toda a natureza exuberante, os rituais indígenas despertam as mais variadas sensa-ções. “É maravilhoso, o toque das flautas dando a vol-

ta na aldeia e entrando em cada oca para espantar os espíritos, e a dança dos homens e mulheres em home-nagem aos mortos. O Jawari me causou arrepios. São três dias de cantos tribais marcados pela batida dos pés com guizos no chão, que seguem noite adentro. É ines-quecível, a aldeia iluminada pela luz do luar e pelo céu estrelado e aquele canto atravessando a madrugada. No último dia a disputa entre outras etnias é um jogo marcado pela destreza no arremesso da lança que de-verá acertar na perna do adversário. É mágico!”, des-creveu Delfim Martins.

O Jawari e o Kuarup são os rituais mais conheci-dos do Alto Xingu, porém, não os únicos. Diferente do Kuarup, que é a festa dos mortos, a celebração do Jawari é uma competição que sempre envolve duas al-deias e se desenrola num clima tenso, de muita expec-tativa. É como um ritual de guerra.

Conforme retratado no Almanaque Socioambien-tal, o Jawari é celebrado para comemorar a morte de um velho campeão da competição, que consiste no ar-remesso de dardo de ponta rombuda (não afiada), a curta distância, contra um opositor. A decoração do

Índios Kalapalo com a flauta uruá durante o Kuarup.

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Malocas na aldeia Kalapalo durante o Jawari.

Mulheres Kalapalo retornando à aldeia com o resultado da colheita de mandioca na roça tradicional.

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15Ornamentação corporal para o Jawari.

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corpo no Jawari é, para os padrões xinguanos, “de-sordenada” e carnavalesca. A pintura preta nos olhos, feita com carvão, representa aves de rapina e a pintu-ra estilizada no peito e nos braços representa cobras, peixes e insetos.

Mais conhecido que o Jawari e muitas vezes retrata-do em imagens e filmes, o Kuarup reúne a maior parte das aldeias. Sempre realizado na estação seca, o ritual é uma homenagem aos mortos recentes de cada aldeia. Mas é também durante este ritual que os jovens em reclusão são apresentados à comunidade e casamentos são realizados, o que faz com que o Kuarup seja, além de um rito funerário, uma celebração à vida.

Outros rituais comuns no Alto Xingu são o Tawa-rawanã, uma festa simples e alegre que, assim como o Jawari, foi introduzida pelos Trumai; o Mapulawá, re-alizado em comemoração à safra do pequi; o Yamuri-cumã, que é a festa das “mulheres monstro”, e o Jakuí, o ritual das flautas sagradas.

Resistência O Parque Indígena do Xingu é hoje um símbolo

de resistência à degradação ambiental e à dominação

cultural. Uma ilha verde cercada por fazendas de soja e de gado. Infelizmente as nascentes dos rios que for-mam o Rio Xingu estão do lado de fora do Parque, o que potencializa o impacto do desmatamento do seu entorno.

Apesar de a degradação ambiental causada pela pecuária e pela agricultura estar cada vez mais próxi-ma do Parque, o isolamento e a dificuldade de acesso ainda favorecem os xinguanos. Além disso, algumas decisões favoráveis aos índios tomadas pela Justiça, a exemplo do caso da Raposa Serra do Sol, colaboram para a preservação dessa riqueza chamada Xingu.

Ao mesmo tempo, depois de 30 anos do início dos estudos de viabilidade técnica e econômica do chama-do Complexo Hidrelétrico de Altamira (PA), a cons-trução da usina de Belo Monte já muda a característica da região e tira o sono de ambientalistas, organizações sociais e dos povos do Xingu. Como era de se esperar, tendo em vista o tamanho da obra, as opiniões sobre os impactos ambientais e sociais são conflitantes.

Porém, a principal preocupação dos xinguanos é com o que pode vir depois de Belo Monte. Para os povos indígenas da região, a Belo Monte é apenas a

Guerreiros Kalapalo competindo durante o Jawari.

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primeira de muitas barragens que causarão destruição ao Rio Xingu. Além dos impactos diretos causados no Rio, existe uma preocupação com os impactos sociais e ambientais causados pelo aumento da população sem o planejamento devido.

Mas a ameaça de degradação ambiental não é a única que preocupa os povos do Xingu. A dominação cultural e o consequente abandono de suas tradições também paira como uma sombra, sempre presente mas nem sempre visível.

Os relatos indígenas, em sua maioria, demonstram a mudança de alguns costumes e o abandono de cer-tos hábitos praticados pelos mais velhos, principal-mente quando se fala das reservas mais próximas às cidades. A introdução de produtos industrializados na dieta alimentar e o consumo de álcool estão entre as grandes preocupações, pois além de colaborar para o surgimento de doenças como alcoolismo, diabetes e hipertensão, ameaçam a continuidade da prática de produção de alimentos tradicionais dos índios.

Os índios que deixam a aldeia para viver na cidade

A exibição cerimonial dos guerreiros competidores e suas armas.

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encontram ainda mais dificuldades, pois, embora pos-sam receber benefícios financeiros do Governo, como aposentadoria, ou mesmo arrumar algum trabalho na cidade, não conseguem manter a mesma qualidade de vida que tinham na aldeia, uma vez que os custos com aluguel e alimentação são altos. Outra consequência dessa migração é o abandono do trabalho coletivo ou de mutirão, que sempre foi a base da organização dos indígenas.

No caso dos xinguanos, a maioria ainda permane-ce fiel à sua cultura. Muitos, mesmo vivendo parte do tempo na cidade, matriculando seus filhos em escolas tradicionais, ainda resistem e procuram manter as tra-dições e o convívio com seu povo.

Mas a interação cultural, ainda que leve tempo, é um processo sem volta e não necessariamente prejudi-cial. A curiosidade e o interesse pelo diferente são na-turais do ser humano. O perigo está na exploração dis-so tudo de forma nociva. Índios e brancos têm muito a ensinar e muito a aprender, cada qual ao seu modo, sempre respeitando o limite alheio.

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“Eu agora sou um cangaceiro musical” Luiz Gonzaga, O Pasquim/1972.

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Luiz Gonzaga, o cantor do exílio e dos migrantes nordestinos que se espalharam além do Nordeste, fu-gindo da fome, da seca e da exploração no trabalho, não é só um dos maiores intérpretes e compositores da música popular brasileira. O Rei do Baião reinou também com o xote, o xaxado e todos os ritmos que ele ajudou a criar, uma rica poética traduzida junto aos seus muitos parceiros. Gonzaga é também um he-rói popular, um ícone de seu povo nordestino que ele como ninguém retratou com verdade, rara originalida-de e muita beleza.

Por isso, se faz sempre necessário manter viva a sua vasta obra na fraca memória do país, principalmente entre os que pouco conhecem de sua real importância histórica.

Oriundo do Vale do Cariri, entre o Ceará e Per-nambuco, nasceu Gonzaga na pequena cidade de Exu. Nasce mulato e pobre para ser um gênio musical do sertão nordestino, assim como Dorival Caymmi, seu avesso, nasce em Salvador, também mulato, mas re-mediado, para ser um gênio musical do mar da Bahia.

Sua marcante presença musical é seminal para a formação da obra compositiva de Sivuca, Jackson do Pandeiro, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Tom Zé, Edu Lobo, Sergio Ricardo, Geraldo Vandré, Hermeto Pas-coal e até João Gilberto, que compôs raras canções como essa: É só isso o meu baião / e não tem mais nada não / o meu coração pediu assim.

Os mais jovens pouco sabem dos desdobramentos comportamentais e musicais provocados por Gonzaga

“O sertão é Ele”- Câmara CascudoTexto: Bené Fonteles

Visões sobre o

universo gonzaguiano

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Gonzaga, para se comunicar melhor com esse seu povo sertanejo, criou o segundo ícone pop da cultura brasileira, depois de Carmen Miranda, ao fundir a roupa de couro do vaqueiro nordestino, dura e resistente, como uma segunda e segura pele usada contra as intempéries e agruras do Juremal da Caatinga, com a roupa lendária do cangaceiro Virgulino Lampião, a quem tanto admirava. E apesar das críticas sofridas por Gonzaga, pois as pessoas enxergavam aí um tributo ao controverso cangaceiro, ele persistiu bravamente na imagem escolhida de cangaceiro, para afirmar a luta por uma identidade cultural. E deu certo, porque à frente da iconografia vigorosamente assumida, estava uma força musical potente e desconhecida. Mais tarde, Gonzaga acrescentou ao seu chapéu a coroa de rei que o transformou, em definitivo, no soberano não só de um ritmo, mas da representação simbólica da cultura de uma vasta região.

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quando assume o mix da roupa de vaqueiro e cangacei-ro e cria um tipo nordestino emblemático, ou, quando junto com o primeiro parceiro, Humberto Teixeira, lança, no final dos anos de 1940, a música “Baião” como manifesto de um movimento cultural que re-cria os ritmos e a poética do Nordeste, traduzindo-os para a cena cultural urbana do Rio de Janeiro e de São Paulo, onde se concentravam as grandes levas de mi-grantes nordestinos. São esses migrantes, que vão dis-seminar os inúmeros sucessos lançados principalmente nos anos de 1950, que fazem Gonzaga um fenômeno fonográfico e um dos maiores vendedores de discos da década.

Os jovens sabem pouco também de outra leva de compositores visivelmente inspirados por Gonzaga, vindos do Nordeste a partir dos anos de 1970, que vão ser fundamentais para a sedimentação e a construção da contemporaneidade na MPB, como Alceu Valença, Raul Seixas, Fagner, Belchior, Ednardo, Domingui-nhos e Zé Ramalho, que abriram portas para Lenine,

Chico César, Zeca Baleiro, Carlinhos Brow, Chico Science & Nação Zumbi, Mestre Ambrósio, Cordel do Fogo Encantado, Siba e Lirinha, que jamais poderão negar a presença fundamental de Mestre Lua nas suas atitudes musicais e comportamentais.

Luiz Gonzaga auxiliou a instalar um reino encan-tado sertanejo no país reinventando o Nordeste, colo-cando-o como protagonista cultural e fazendo isso de forma ímpar e para sempre firmado no imaginário dos brasileiros.

Por sua obra, o Brasil sabe muito mais sobre o ser-tão agreste e misterioso que está sempre dentro de nós como queria Guimarães Rosa. Um sertão que é, de todo, Gonzaguiano. Aprendemos, assim, com o Rei, a amar um outro Nordeste que ele recriou com dignida-de na denúncia, renovação na linguagem, generosida-de na festa, compassivo na dor e farto na alegria.

Um sertão que era Ele e dele, a fonte e a foz de um riacho sem fim...

“Eu já toquei em assustado. Fui sanfoneiro, rei do baião, quase sumi na poeira: agora sou lúdico, autêntico, virei um tal de folclore” Luiz Gonzaga.

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Rio Curuçá, Amazonas. As curvas traçadas pelos rios dentro da bacia amazônica se desdobram centenas de vezes, a água escoando de forma vagarosa pela planície. Tabatinga, no extremo oeste de Amazonas, está a apenas 60 metros acima do nível do mar.

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O balão do Projeto Rios Voadores desce entre as árvores da floresta para pegar o vapor de água "na fonte".

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Texto: Margi MossFotos: Margi Moss, Gérard Moss e Thiago Iatesta

O Projeto Rios Voadores (www.riosvoadores.com.br) , que conta com o patrocínio da Petrobras através do Programa Petrobras Ambiental, trabalha desde 2007 com uma equipe de cientistas brasileiros avaliando a contribuição da floresta tropical para a precipitação

pluviométrica fora da bacia Amazônica. Há dois anos, se empenha na educação, acreditando que, ao entender melhor os serviços ambientais da floresta, a população fará sua parte para a

preservação, mantendo as árvores em pé.

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cai do céu todo ano. Isso representa quase o dobro do segundo colocado no ranking, a Rússia. Essa chuva, tão pouco valorizada por nós, é essencial não somen-te para nossa sobrevivência cotidiana, mas para nossa qualidade de vida, visto que a água enche os rios re-presados que abastecem nosso consumo doméstico e nossa energia.

Mesmo ocupando uma posição de destaque em recursos hídricos, o Brasil não pode se dar o luxo de ser complacente. É uma potência mundial agrícola – a única com safras tão generosas que não dependem da irrigação mecanizada. Astronômicos 95% das cultu-ras brasileiras são irrigados gratuitamente pela chuva, uma significante economia nos custos de produção, seja qual for o produto.

A maior parte da renda gerada no país vem das ex-portações e todos os processos produtivos dependem da água. São necessários, por exemplo, 3.000 litros de água para produzir 1 kg de arroz e uns 15.000 litros

O Brasil é uma nação privilegiada em vários senti-dos, mas um é bem especial: dependendo de quem faz o cálculo e como o faz, o país possui entre 12 e 18% de toda a água doce superficial do planeta. Em um mun-do onde a escassez dessa água doce se torna cada vez mais crítica, o Brasil deita e rola.

Na maioria das regiões do Brasil, há abundância de água, o que torna difícil abandonar a visão de que ela é um recurso inesgotável, o qual podemos usar sem limites. Até recentemente, os rios eram considerados canais convenientes para jogar desde lixo até esgoto doméstico e efluentes industriais, contaminantes de todos os tipos. Hoje em dia, nota-se uma mudança de atitude e avançamos com ações voltadas para a preser-vação dos cursos d’água e o controle da poluição.

No entanto, existe um detalhe importantíssimo que a grande maioria dos brasileiros ignora. O fato que o Brasil é disparadamente campeão mundial em volume de chuva, registrando mais de 15.000 km³ de água que

Na Amazônia, um mundo de águas, a relação entre nuvens, neblina, vapor de água e água líquida é bem tenue. A água está em todas as partes - no ar, nos rios, nas folhas e raízes das árvores.

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Ao longo de toda a costa brasileira, o oceano Atlântico fornece umidade para o continente através do processo de evaporação do sol e do vento batendo na superfície do mar. Na faixa equatorial, a evaporação é ainda mais intensa.

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para produzir 1 kg de carne, se levarmos em conta to-das as etapas de produção. Produtos industrializados também usam água em seus processos de fabricação, além de depender indiretamente da água que fornece nossa energia elétrica.

Então, está na hora de entender melhor de onde vem nossa chuva. Claro, dependendo da região onde você mora no Brasil, a resposta pode ser diferente. Te-mos três importantes fontes de umidade: a evaporação que provém do oceano Atlântico, da Floresta Ama-zônica e do Pantanal. Sem falar da contribuição, em escala menor, da evaporação dos rios e reservatórios.

Das três fontes maiores, a mais ameaçada atual-mente é a Floresta Amazônica. Ainda não sabemos quais serão os impactos do desmatamento contínuo e das mudanças climáticas no regime de chuvas, ao lon-go prazo. A verdade é que muitos que moram longe do bioma amazônico tendem a pensar que o problema do desflorestamento não tem nada a ver com suas vidas. Nisso, estão enganados!

Por exemplo, poucas pessoas sabem que uma árvore amazônica, com uma copa de 10 metros de diâmetro,

coloca na atmosfera mais de 300 litros de vapor d’água por dia. Uma única árvore de grande porte, com uma copa de 20 metros de diâmetro, pode evapotranspirar mais de mil litros por dia. Se multiplicarmos esses va-lores pelo número estimado de árvores na Amazônia, sobre uma área de 5.5 milhões de quilômetros qua-drados, chegamos à deslumbrante quantidade de va-por d’água que a floresta nos fornece gratuitamente: 20 bilhões de toneladas por dia. Isso é comparável ao volume de água líquida que o Amazonas, maior rio do mundo, despeja no Atlântico diariamente. A vazão desse rio majestoso é acima de 200.000 m³ por segun-do – ou 17 bilhões de toneladas/dia.

A floresta funciona como uma bomba biótica, su-gando massas de ar úmido do oceano continente--adentro, e que avançam nos ventos alísios rumo ao oeste em um processo contínuo de chuva-evapotrans-piração-chuva que acontece 2,8 vezes, por exemplo, entre Belém e Tabatinga, no extremo oeste do estado de Amazonas.

O que faz toda a diferença no regime de chuvas no Brasil é um “acidente geográfico” além das nossas

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A barreira natural formada pela Cordilheira dos Andes tem um impacto positivo e fortuito no regime de chuvas do Brasil, ao barrar o avanço para o oeste das massas de ar carregadas de vapor de água e desviá-las rumo às regiões centro-oeste, sudeste e sul.

Toras extraídas de dentro da floresta ironicamente formam o desenho de uma árvore enquanto aguardam o transporte para serem transformadas em madeira. Rio Purus, perto de Lábrea, AM.

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fronteiras: a Cordilheira dos Andes. Ao en-contrar essa barreira de mais de 5.000 me-tros de altura, as massas de ar úmido – 80% da umidade fica abaixo de 3.000 metros de altitude a que chamamos poeticamente de rios voadores – são desviadas ao sul. Ao en-contrar com as condições meteorológicas ideais (uma mudança de temperatura como uma frente fria, por exemplo) o vapor d’água pode se transformar em chuva e vai colorin-do de verde o Centro-Oeste e o Sudeste do Brasil no verão.

Munidos dessas informações, começa-mos a enxergar a floresta com outros olhos. Deixa de ser uma selva inóspita, infestada de mosquitos e cobras - um local conve-nientemente afastado de nosso confortável ambiente urbano. Ela se torna uma amiga que faz muita diferença em nossas vidas,

A capacidade das árvores de "reciclar" a água, através do processo de evaportranspiração, é uma maravilha da Natureza. Um metro quadrado de superfície da terra, coberto de floresta, pode liberar para a atmosfera quase o dobro que um metro quadrado de água, como o mar ou uma represa, porque uma árvore tem múltiplas camadas de folhas.

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dando-nos o que é mais essencial para nossa sobrevivência: umidade = chuva = água na torneira.

Certo, como já vimos, a Amazônia não é a única fonte de vapor d’água que paira no ar do Brasil. E se a floresta continua sendo derrubada para dar lugar a pastos e plan-tações de soja? Estamos dispostos a pagar para ver o que vai acontecer se o poderoso ciclo hidrológico gerado pela floresta paras-se de fornecer “água precipitável”?

Sabendo o que sabemos hoje, não seria mais prudente concentrarmos melhor os esforços para preservar a floresta em pé e aproveitarmos das riquezas que ela gera, an-tes que seja tarde demais?

Como diria Hamlet, “eis a questão”.

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A equipe do Projeto Rios Voadores decola para sobrevoar um trecho da floresta para captar amostras de vapor de água emitido pelas árvores.

Ao longo do Arco de Desmatamento, as tristes cenas da destruição da floresta pelas queimadas, após a derrubada das árvores, significam mais CO2 liberado para a atmosfera e a perda da evapotranspiração dessas árvores.

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Poucas pessoas olham para uma nuvem de chuva e perguntam, "de onde será que vem essa água?" Muito menos pensam no conceito de que essa água pode ter sido processada pelas árvores da floresta amazônica!

O desmatamento penetra cada vez mais dentro do coração da floresta. Essa foto foi tirada perto de Manaus. O solo úmido protegido e nutrido pela floresta logo perde seus nutrientes. Resseca e, ao perder a sombra das árvores, deixa o ambiente mais quente.

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Gestão territorial indígena: agora é lei

No dia 5 de junho de 2012, a presidente Dilma Rousseff sancionou a Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental em Terras Indígenas (PNGATI). A medida pretende garantir a proteção e o uso sustentável dos recursos naturais dentro de terras indígenas e dá suporte legal aos esforços de elaboração aos planos de gestão territorial na bacia do rio Juruena (MT), apoiados pelo Projeto Berço das Águas e em fase de finalização.

Esses planos contêm os desejos, a história e as propostas dos povos indígenas na administração de seus territórios, definindo também como querem se relacionar com o entorno. São documentos fundamentais para sua sustentação socioeconômica e a m b i e n t a l .

O Projeto Berço das Águas trabalha em parceria com povos indígenas da bacia do rio Juruena na estruturação de cadeias produtivas, no fortalecimento cultural e na conservação ambiental. É executado pela Operação Amazônia Nativa (OPAN) e patrocinado pela Petrobras através do Programa Petrobras Ambiental.

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ZeladoresVoduns

deEnsaio Fotográfico de Márcio VasconcelosTextos: Sergio F. Ferretti e Márcio Vasconcelos

Daah Sônô dèhwendo adidekõ Lantenfã - Allada – Benin, África

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Nelson de Ogun, Cururupu, Maranhão

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Henxami Kpego, Ouidah – Benin, África

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Até a década de 1930 a religião e o nome vodum eram pouco conhecidos no Brasil. A partir daí, co-meçaram a ser realizadas, no Maranhão e no Pará, visitas de interessados, que iniciaram a pesquisa e documentação sobre o culto dos voduns no Brasil. A Missão de Pesquisas Folclóricas, coordenada por Má-rio de Andrade, esteve rapidamente no Maranhão e no Pará em junho de 1938 e documentou cânticos do culto do Tambor de Mina que incluem a palavra vo-dum. Na década de 1940 e daí em diante, começaram a ser realizadas pesquisas, como as de Octávio da Cos-ta Eduardo e de Nunes Pereira, que documentaram a presença desta religião no Maranhão, fazendo refe-rência a sua ocorrência em Belém e Manaus, levada por negros procedentes do Maranhão. Foi publicado também material da Missão de Pesquisas Folclóricas no Maranhão e Pará. Em meados dos anos de 1950, estudos de Roger Bastide e Pierre Verger ampliaram o conhecimento desta realidade. Depois disso só a partir das décadas de 1970 e 1980 é que o Tambor de Mina voltou a ser novamente estudado.

O culto dos voduns foi trazido para o Brasil e para as Américas por escravos procedentes do antigo Reino do Daomé. Por essa razão, além do Daomé, o Haiti e o Maranhão tornaram-se “terras” dos voduns de onde a religião se expandiu para outras regiões. O antigo

Reino do Daomé, na África Ocidental, ocorrido de aproximadamente 1600 a 1900, sediado na região hoje pertencente à República do Benin, falante da língua Ewe-Fon, conhecida no Brasil como jeje, foi o berço desta religião. Segundo Arthur Ramos, a vida econô-mica, social e religiosa do Daomé girava em torno da monarquia absoluta. A família patrilinear e poligâmica era a unidade fundamental da vida social, habitando em grupos de casas (compound) onde o chefe vivia com suas esposas, cada uma morando na sua própria casa junto com os filhos casados e os irmãos mais jo-vens com suas esposas e filhos. Os membros mortos da família se tornam espíritos deificados.

O povo Fon é vizinho dos Yorubás, que os domi-naram por certo tempo e exerceram muita influência sobre ele. A grande multiplicidade de deuses, de cultos e de mitos é uma das características da religião dao-meana. A introdução de novos deuses e novas ideias relaciona-se com as conquistas. O reino aceitava cultos das sociedades dominadas e os casamentos de reis com mulheres de outras tribos, que traziam seus cultos, fez com que a religião englobasse inúmeras divindades de povos vizinhos, como ocorre até hoje.

A região da Costa da África Ocidental, onde se lo-calizava o antigo Reino do Daomé, era chamada de Costa dos Escravos e também de Costa da Mina. Na-

Dona Elzita Vieira Martins Coelho, São Luís, Maranhão

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quela região foi estabelecido pelos portugueses, no séc. 17, o Forte de São Jorge da Mina, localizado na atual República do Gana. Existe também na região uma et-nia denominada Mina. Os negros procedentes da re-gião foram conhecidos no Brasil como negros mina e a religião dos voduns por eles praticada é conhecida até hoje, sobretudo no Maranhão e na Amazônia, como Tambor de Mina. Existe uma música gravada pela can-tora maranhense Alcione em que aparece a afirmação de que “terra de mina é o Maranhão”. Na primeira metade do século 18 foi redigido em Ouro Preto, Mi-nas Gerais, um dicionário da língua Mina destinado a facilitar contatos dos senhores com os escravos pro-cedentes da Costa da Mina, que na época eram abun-dantes em Minas Gerais e no Rio de Janeiro, como mostram estudos de Yeda Castro e Mariza Soares.

A religião dos voduns se expandiu pelas Américas, especialmente no Caribe, no Haiti, em Cuba, em Trin-dade, nos Estados Unidos e em outros locais. Assim o culto dos voduns se espalhou pelos dois lados do Atlântico. Alladá ou Ouidah, no baixo Daomé, foi um dos centros de expansão do culto dos voduns e do trá-fico de escravos. De Alladá derivam os nomes Radá e Arará, pelos quais esta religião é também conhecido

no Haiti e em Cuba. Os africanos que os cultuavam, desde os tempos coloniais, receberam no Brasil a de-nominação de jejes. Em Cuba, a casa de culto Arará apresenta muitas semelhanças com a Casa das Minas Jeje no Brasil, sobretudo na discrição em relação aos segredos e mistérios da religião dos voduns.

No Haiti, em função da independência conseguida mediante revolta de escravos negros e mestiços, desde inícios do séc.19 o país ficou muito isolado do resto do mundo. Segundo Alfred Metraux, o nome vodum ou vodu, palavra da língua fon que significa espírito ou deus, foi dado ao conjunto de crenças e ritos de origem africana, estreitamente associadas a práticas católicas e constitui a religião das massas camponesas da repú-blica negra do Haiti. Uma lenda sinistra se desenvol-veu em torno desta religião e seus seguidores foram acusados de práticas de canibalismo e de orgias. Jor-nalistas, cineastas e autores, sobretudo norte-america-nos, em busca de exotismos, proclamaram a barbárie inata desta religião e dos povos negros que a praticam.

Atualmente existe no Brasil uma rede de loja de presentes que vende e divulga o “Voodoo do Amor”, um boneco de pano que deve ser espetado com alfine-tes com o objetivo de alcançar sonhos e fantasias. Texto

Daá Dagbo Avimadjenon, Ouidah – Benin, África

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explicativo que acompanha o boneco diz que Voodoo ou Vodum é uma religião de origem africana que che-gou às Américas através de escravos levados do Haiti, sendo similar ao nosso Candomblé. A divulgação deste boneco é uma das provas de que ainda hoje a religião dos voduns é pouco conhecida no Brasil.

Ao longo dos séculos 19 e 20, em diferentes regiões, a religião dos voduns sofreu inúmeras perseguições da Igreja Católica, dos diversos Estados, da polícia, e hoje das religiões pentecostais. Em 1992/93 foi organizado no Benin o Festival Ouidah 92 sobre a presença africa-na da religião dos voduns em diferentes países, come-morando os quinhentos anos de contatos entre euro-peus e africanos. O Festival foi uma forma do governo do Benin reconhecer a importância desta religião, que no próprio país de origem foi perseguida pelo regime socialista vigente nas décadas de 1970 e 1980.

Durante o Festival Ouidah 92, além de exposições e conferências, houve desfiles e apresentações de grupos de culto aos voduns em diversas ruas e praças públicas das principais cidades do país, que atraíram multidões de apreciadores estrangeiros e nacionais e grande nú-mero de grupos de culto que se apresentaram livre-mente. Alguns líderes religiosos de outros países com-

pareceram ao festival, e dona Maria Celeste, vodunsi, da Casa das Minas Jeje do Maranhão, entoou cânticos africanos da Casa que foram reconhecidos e acompa-nhados pelos mais velhos.

No Brasil a religião dos voduns se difundiu em di-versas áreas, no passado na Bahia e Rio de Janeiro e no Maranhão onde o Tambor de Mina se desenvolveu a partir de duas casas principais fundadas em meados do século 19, que continuam atuantes até hoje, a Casa das Minas Jeje e a Casa de Nagô e de outros terreiros direta ou indiretamente relacionados com estas casas, como os antigos Terreiros do Egito, o Terreiro da Tur-quia e o ainda atuante Terreiro do Justino, fundados igualmente no século 19. Algumas regiões do interior do Maranhão, como principalmente Codó, no Vale do Itapecuru e Cururupu, no litoral Norte, foram locais de concentração de grande número de escravos e até hoje são focos importantes de difusão das religiões por eles trazidas da África e aqui mescladas com crenças em entidades de outras procedências.

A Casa das Minas Jeje exerceu e exerce grande in-fluência até hoje, pelo prestígio de suas vodunsis ou filhas-de-santo e pela contribuição no modelo de orga-nização da religião dos voduns. Mas a Casa das Minas

Nan Xwèdehum Agaja, Abomei – Benin, África

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não tem outros terreiros filiados ou que sigam dire-tamente suas tradições, tendo sido sempre uma Casa única, onde os cânticos são em língua jeje e os cabo-clos não são cultuados. Da Casa de Nagô e de outros terreiros antigos é que derivam os demais terreiros de culto do Tambor de Mina no Maranhão, que seguem seu modelo de organização religiosa e ritual acompa-nhada por dois tambores horizontais, denominados de abatas. A maioria dos cânticos são em língua nagô e em português e numerosos caboclos são invocados e cultuados, junto com voduns e orixás, ou divindades dos nagôs. Nas casas de culto mais antigas do Mara-nhão existe o costume de só dançarem mulheres que recebem as divindades em transe. Os homens exercem outras funções relacionadas com a música e o sacrifício de animais. Nos terreiros mais modernos, fundados em meados dos anos de 1950 é que os homens passaram a dançar, mas em geral são em menor número do que as mulheres, embora haja notícias da presença homens nos terreiros desde os primeiros tempos.

Na Casa das Minas Jeje, os voduns, em número de cerca de sessenta, se organizam em famílias de divin-dades, a saber: família de Davice, da qual são conhe-cidos um total de 27 voduns e tobossis, ou entidades femininas infantis. Estes voduns pertencem à Família real do Daomé até o rei Agongonu que reinou entre

1789 e 1797. Segundo pesquisas de Pierre Verger, este culto teria sido trazido ao Maranhão pela rainha Nã Agontimé, viúva do rei Agongonu que foi vendida como escrava em virtude de conflitos na família real. Os voduns da Casa se agrupam ainda em outras famí-lias como a de Savaluno, a de Aladanu, a de Dambirá ou de Acossi, que cura doenças, e a família de Quevio-çô, dos voduns nagôs, que são mudos, e se relacionam com os astros, os ventos, as tempestades, o trovão e o sol, alguns conhecidos como orixás do candomblé.

Na religião dos voduns do Maranhão não se dá ên-fase ao culto Legba ou Exu, que é considerado como demônio, responsável pela diáspora e escravização dos negros, e um tabu no Tambor de Mina. Suas funções são assumidas por outras entidades como Surrupira, Légua Boji, os Turcos e outras. Santa Bárbara é con-siderada a chefe dos terreiros de Mina e Averequete é o seu delegado ou guia. Toi Averequete, sincretizado com São Benedito, é considerado, na Casa de Nagô e nos terreiros de Mina Nagô, como o vodum que abre para a mata e chama as entidades caboclas. Na Mina do Pará e no Terecô de Codó, Averequete é também a entidade que traz os caboclos. No Tambor de Mina o culto aos caboclos está associado com os voduns e ori-xás, o que parece concordar com a tradição daomeana de assimilação da religião de outros povos.

Bimbé, Arari, Maranhão

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O catolicismo está muito presente nesta religião uma vez que os escravos eram obrigados a serem ca-tólicos e que o catolicismo era a religião oficial do país até fins do século 19 e oficiosa em grande parte do sé-culo 20. A festa do Divino Espírito Santo é um ritual do catolicismo popular que, no Maranhão e em parte da Amazônia, foi incluído nos terreiros de culto afro, sendo oferecido em homenagem a entidades diversas. A maioria dos terreiros de Mina de São Luís realiza uma vez ao ano a festa do Divino, em data variável conforme o calendário da casa. A festa do Divino, que em toda parte é um ritual do catolicismo popular, no Maranhão e na Amazônia é um ritual que foi incluí-do e é realizado em terreiros de culto afro. Também é comum a participação dos devotos dos terreiros em missas de santos, procissões e ladainhas que costumam ser cantadas em latim e rezadas antes dos principais ritos e festas nos terreiros. Outro aspecto do sincretis-mo nas religiões afro é a presença de diversos rituais da cultura popular incluídos no calendário das casas. Festas como Tambor de Crioula, como o Boi ou Boi-zinho de Encantado, rituais do Bumba-meu-boi, como o batismo e a morte do Boi, são realizadas e ofereci-das a entidades importantes. No Tambor de Mina não estão presentes só práticas africanas, pois sendo uma

religião afro-brasileira, inclui elementos de várias pro-cedências.

Crenças sebastianistas estão também presentes em certos aspectos da Pajelança e do Tambor de Mina. Existe a crença que el rey Dom Sebastião teria se en-cantado e vive com sua corte na Praia dos Lençóis, pró-ximo à Cururupu, no Maranhão, ou em outros locais e que no mês de janeiro ou em junho aparece num touro encantado que se incorpora nos médiuns durante ri-tuais de Cura ou de Tambor de Mina, havendo uma linhagem atuante da família de Dom Sebastião, com diversos nobres e caboclos auxiliares.

No Maranhão o termo vodum é mais conhecido e utilizado do que orixá, seu equivalente em nagô. Na Casa de Nagô e em outros terreiros, são conhecidos e cultuados, principalmente os voduns: Sobô, Avereque-te, Badé, Boça, Eowa, Navezuarina, Obaíla, Vondereji, Xadatã; os orixás: Iansã, Iemanjá, Nanã Burucú ou Vó Missã, Obaluaiê, Ogum, Oxossi, Xangô, Xapanã; os gentis ou nobres: Rainha Bárbara Soeiro, Dom João Soeiro, Dom João da Cruz, Dom José Floriano, Dom Luís Rei de França, Dom Miguel, Dom Pedro Angaço, Rei de Junko, Rei de Nagô, Rei do Kotelo, Rei Sebas-tião (associado a Xapanã), Rainha Rosa, Rainha Dina. São também conhecidas e cultuadas muitas entidades

Demide Dovono, Ouidah – Benin, África

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Mundica Estrela de Averequete, São Luís, Maranhão

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Edmilson, São Luís, Maranhão

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Mãe Severina, Quilombo de Santa Rosa, Itapecuru-Mirim, Maranhão

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Mestre Bita do Barão, Codó, Maranhão

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caboclas entre as quais: Légua Bojí Buá, Baiano, Boto Velho, Caboclo da Bandeira, Caboclo Velho, Chica Baiana, Corre Beirada, Guerreiro, João de Una, João do Leme, Mariana, Jarina, Pombo do Ar, Preto Ve-lho, Sebastiãozinho, Surrupira, Tabajara, Tapindaré, Tupinambá Tombassé, Zezinho. No Tambor de Mina e há uma infinidade de caboclos e seu culto está muito presente e assim houve grande facilidade de aproxi-mação com a Umbanda. Como os voduns mina jeje, a maioria das entidades cultuadas nos terreiros de Mina se agrupam em algumas famílias como a da Turquia, a do Rei Sebastião, a de Légua Boji, do Rei da Ban-deira e outras. Mundicarmo Ferretti, no livro “Desceu na Guma”, apresenta quadros de entidades espirituais recebidas em terreiros de São Luís, de Codó e famílias de Caboclos do Tambor de Mina do Maranhão.

A partir de fins do século 19, no período áureo da borracha na Amazônia, a religião dos voduns se di-fundiu por diversos Estados, destacando-se o Pará, o Amazonas e Rondônia onde há maiores notícias de sua presença. Caboclos e voduns estão presentes em Belém e Manaus, levados por devotos provenientes destas regiões. Nas últimas décadas do século 20, a re-ligião dos voduns se difundiu por São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Paraná e outros Estados, levada por imigrantes procedentes da Amazônia. Há também um

Agboce Su Hun Nexo, Ouidah – Benin, África

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ramo da religião dos voduns, especialmente de tradi-ção jeje Mahi, que se desenvolveu no Bahia, sobretudo em Salvador e Cachoeira, desde muito cedo e de lá se difundiu ao Rio de Janeiro e outros Estados.

No Maranhão e em outras regiões, a religião dos voduns se aproximou de práticas religiosas de outras procedências como a Pajelança e o Terecô. A Pajelan-ça ou Cura se difundiu no Maranhão principalmente no Litoral Norte e se caracteriza pela presença de um pajé ou pajoa que utiliza objetos rituais, como pena-cho, maracá e, amarrado com diversas faixas coloridas, recebe, ao longo de uma noite, entidades que perten-cem a diversas linhas de encantados como peixes, pás-saros, princesas, caboclos, etc. e permanecem pouco tempo, enquanto o pajé canta e dança toadas em sua homenagem. Os cânticos são repetido em coro pelos presentes, acompanhados por pandeiros e palmas. A Pajelança é considerada linha das águas doces, incluin-do entidades brasileiras, enquanto o tambor de mina faz parte da linha da água salgada, com predomínio de entidades de origem africana. A Pajelança inclui práti-cas terapêuticas e foi perseguida como curandeirismo.

Terecô é um dos nomes pelos quais a religião afro--brasileira é mais conhecida na região de Codó, no vale do Rio Itapecuru no Maranhão, de onde se difundiu por outros locais. O ritual assemelha-se ao Tambor de

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Mina, com diferenças nos instrumentos, nas vestimen-tas, no conjunto de divindades e nos cânticos entoados. Destaca-se no Terecô a presença da família de Légua Bojí Buá com seus diversos filhos, entre os quais An-tônio de Légua, Coli Maneiro, Dora de Légua, Folha Seca, Joaquinzinho, Manoelzinho, Maria de Légua, Mearim, Tereza de Légua e muitos outros. Entre ou-tras entidades cultuadas em Codó, destacam-se Barão de Guaré, João de Una, Leontino, Preto Velho de An-gola e Rainha Rosa.

A religião dos voduns, ou Tambor de Mina, se aproxima da Umbanda e também do Candomblé, re-ligiões afro-brasileiras que se expandiram no país ao longo do século 20. No Maranhão, em decorrência de contatos com o Centro Sul, muitos terreiros se dizem de Umbanda, porém se diferenciam pouco do Tambor de Mina, exceto pelo predomínio de cânticos em por-tuguês. Na segunda metade do século 20, especialmen-te a partir dos anos de 1970, o Candomblé se difundiu no Maranhão, no Pará e na Amazônia, pela presen-ça de contatos com a Bahia e com outras regiões do país. O Candomblé passou a gozar de grande prestígio cultural sendo considerada como religião mais bem estruturada do que o Tambor de Mina, destacando--se a presença de vestimentas rituais específicas como paramento dos orixás, de cânticos em língua nagô, tra-

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Zé Ambrósio, Penalva, Maranhão

dução de mitos africanos dos nagôs. Com a difusão do Candomblé nota-se a valorização de uma ideologia de dessincretização e de africanização, destacando-se a presença de mitos, cânticos, rituais, divindades e ves-timentas de inspiração consideradas africana, que são vistas como mais puros do que os rituais com entidades caboclas, comuns no Tambor de Mina. Esta valoriza-ção tem ocorrido, sobretudo, em grupos de culto que contam com a presença de pessoas mais jovens.

Alguns encantados da Mina são mais conhecidos e cultuados no Pará, como ocorre com as princesas turcas Jarina e Erundina, que parecem ter vindo de lá para o Maranhão, como registra a letra de uma doutri-na cantada em São Luís que diz: “Aê, e á, Jarina che-gou do Pará.” Como no Daomé e no Haiti, a religião dos voduns, no Maranhão e na Amazônia, assume ca-racterísticas próprias e às vezes nomes específicos em cada região e muitas entidades são mais conhecidas e cultuadas em determinadas localidades. Assim, no Maranhão e na Amazônia são cultuados muitos cabo-clos e voduns que são indistintamente denominados de encantados.

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A saga de Nã Agotimé é pura magia. Representa a força dos elementos naturais transformando a vida que se transforma em culto.

Desde tempos imemoriais se cultuava os voduns da família real do Daomé, hoje Benim. Um Clã mágico e místico iluminava o continente negro, numa época de uma África conturbada por guerras tribais em busca do poder. Muitos reis passaram e o Daomé, que era apenas uma cidade, tornou-se um país.

No palácio Dãxome, reinava Agongolo. O rei tinha como segunda esposa a rainha Agotimé e dois filhos (Adandozan, do primeiro casamento, e Gezo, nascido de Agotimé). No momento de sua morte, o rei elegeu seu segundo filho para sucedê-lo no trono, mas a sua ordem foi desconsiderada e Adandozan assumiu o tro-no como tutor de Gezo. Abomey tornou-se vítima de um governo tirânico e cruel.

Mágica e Magia. A rainha era conhecida em seu

reino pelas histórias que contava sobre seus ancestrais e sobre o culto aos reis mortos. Guardava os segredos do culto a Xelegbatá, a peste. Detentora de tais co-nhecimentos, o novo rei tratou de mantê-la isolada, acusando-a de feitiçaria, e não hesitou em vendê-la como escrava.

Em Uidá, grande porto de venda de escravos, Ago-timé foi jogada nos porões imundos de um navio e tra-zida para o Brasil. O sofrimento físico da rainha, traí-da e humilhada, era uma realidade menor, pois o seu espírito continuava liberto e sobre as ondas a rainha liderou um grande cortejo, atravessando o mar.

Desse episódio se forjou um dos elos que une a África ao Brasil. Chegou ao novo continente um corpo escravo, mas um espírito livre, pronto para cumprir a sua saga e fazer ouvir daqui o som dos tambores Jejes.

Seu primeiro destino foi Itaparica, na Bahia, porto do seu destino e terra santa do conhecimento. Vinda

A Saga de umaRainha Negra

Pai Euclides, São Luís, Maranhão

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Texto: Márcio Vasconcelos

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Dona Maria, São Luís, Maranhão

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de uma região onde poucos escravos se destinavam ao Brasil, Agotimé se deparou com muitos irmãos de cor, mas não de credo.

No seu encontro com os Nagôs teve o seu primeiro contato com os Orixás, e através deles a Rainha es-crava teve notícias de seu povo. Por eles soube que sua gente era chamada Negros-Minas e foram levados para São Luís do Maranhão. Contaram que não ti-nham local para celebrar o seu culto, pois esperavam um sinal de seus ancestrais. Agotimé logo entendeu por quem esperavam.

Dessa forma a rainha chegou ao Maranhão. Ter-ra da encantaria e de forte representação popular. Os tambores afinados a fogo e tocados com alma por ogãs, inspirados por velhos espíritos africanos, ecoam por ocasião das festa e pela religião. Foi no Maranhão que Agotimé, trazida para o Brasil como escrava, vol-tou a ser Rainha. Sob orientação de seu vodum, fun-dou a “Casa das Minas”, de São Luís do Maranhão, em meados do século XIX.

Para contar essa história, trilhando caminho inver-so ao de Nã Agotimé, e com uma exposição fotográfi-ca sob a forma de portraits, o fotógrafo maranhense Márcio Vasconcelos viajou ao Benin acompanhado do antropólogo africano Hippolyte Brice Sogbossi.

A proposta do Projeto é realizar uma pesquisa e do-cumentação fotográfica da atual situação de terreiros e seus respectivos chefes no Benim e no Maranhão. Para tanto, foram entrevistados e fotografados personagens de reconhecida importância no cenário do culto aos voduns, com a finalidade de traçar um paralelo entre os Sacerdotes africanos e os Chefes de Terreiros do Tambor de Mina do Maranhão.

No Benin, num período de 25 dias, foram visitadas as cidades de Cotonou, Abomey, Allada, Ouidah, Ca-lavi e Porto Novo.

Márcio Vasconcelos é fotógrafo profissional inde-pendente e há mais de uma década vem se dedicando a registrar as manifestações da Cultura Popular e Reli-giosa dos afro-descendentes no Estado do Maranhão. Hippolyte Brice Sogbossi é beninense e radicado no Brasil há mais de 10 anos. Doutor em Antropologia Social e professor da Universidade Federal de Sergipe.

O Projeto “Zeladores de Voduns e outras Entida-des do Benin ao Maranhão” foi premiado no Edital de Apoio à Produção Cultural/2008 da Secretaria de Estado da Cultura do Maranhão e vencedor do 1º Prê-mio Nacional de Expressões Culturais Afro-brasileiras promovido pela Fundação Cultural Palmares - MINC.www.marciovasconcelos.com.br

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Povo Myky tem apoio para voltar a extrair seringa

Projeto Berço das Águas estimula parcerias e dá assistência para que indígenas possam manejar seringueira em seu território.

A extração de látex de seringueira voltou a ser uma atividade potencialmente rentável ao povo Myky. A prática estava interrompida há cerca de 30 anos, quando os preços da borracha caíram. Mas agora, este é um momento favorável ao retorno mais intensivo da extração para que o aproveitamento da seringa possa ser também um importante aliado na luta pelo acesso ao território tradicional Myky.

“Sabemos que toda cabeceira de rio tem muita seringa não explorada. Por isso nós lutamos pelo nosso território, e para que os fazendeiros não desmatem tudo. Meu filho pequeno já está riscando, brincando, eles riscam baixinho”, explica o indígena Jamanxi Myky, um dos cinco seringueiros da aldeia.

Os Myky se reaproximaram da Empaer, recebendo kits de seringa e cadastramento. O órgão passará a auxiliar com equipamentos para abertura de estradas, extração e venda de CVP (cernambi virgem prensado).

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Além disso, plantaram mais de 600 mudas de seringa perto de sua aldeia e hoje 5 indígenas manejam cerca de 200 árvores.

“Tiramos seringa há mais de 30 anos. Cada seringueiro maneja 40 árvores, sempre esperando três dias para retornar ao mesmo local. Já tiramos 60 quilos”, diz Jamanxi.

O Projeto Berço das Águas trabalha em parceria com povos indígenas da bacia do rio Juruena (MT) na estruturação de cadeias produtivas, no fortalecimento cultural e na conservação ambiental. É executado pela Operação Amazônia Nativa (OPAN) e patrocinado pela Petrobras através do Programa Petrobras Ambiental.

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DivinoEm Busca

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no Guaporé

Ronei Santos dos Reis, da Irmandade do Divino de Porto Murtinho em Rondônia,sobe o Guaporé em busca de trazer a Festa para sua comunidade, onde ela nunca foisediada. Apesar de jovem, ele, seus parentes e companheiros de viagem estão muitofocados nesse objetivo e defenderão suas posições nas acaloradas assembleias dasIrmandades do Divino que são realizadas durante a festa.

Texto e Fotos: Mario Friedlander

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Dionísio Faustino, 78 anos, toda uma vida dedicada ao Divino Espírito Santo.Entregou o cargo de Presidente do Conselho Geral das Irmandades do Divinodo Vale do Guaporé. Agora assume o novo cargo de Zelador das Irmandades

e Imperador de 2013.

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Depois de quinze anos de tentativas malogradas de vivenciar a Festa do Divino do Guaporé, finalmente estou no arruinado porto de Costa Marques em Ron-dônia, esperando o Comandante da pequena chata de madeira, “Bom Pastor”, nos chamar para iniciarmos a subida do rio Guaporé até a vila de Piso Firme na Bolívia, onde será o grandioso final da festa de 2012.

Almoço rapidamente um “pf” de peixe num dos poucos bares do porto e logo embarcamos apressados e zarpamos rio acima.

O senhor Dionísio Faustino, 78 anos, além de Co-mandante e proprietário da chata Bom Pastor, é tam-bém o Presidente do Conselho Geral das Irmandades do Divino Espirito Santo do Vale do Guaporé. Nessa viagem ele vai entregar seu cargo no Conselho da Ir-mandade, isso depois de dois mandatos de três anos cada e um enfarte que quase o matou ano passado. Ele vai acompanhado de sua esposa, Ana Deolinda, ou Anita, como ela faz questão de ser chamada. Aos 72 anos, cheia de carisma e autoridade, ela comanda a cozinha do barco com muito capricho e generosidade, tornando a viagem mais familiar e tranquila.

Estamos em 19 pessoas a bordo, todas envolvidas com algumas das 13 Irmandades do Divino que exis-

Ana Deolinda Braga Vieira Faustino, 72 anos de batalha. Dona Anita tem autoridade naturalmente e, além de esposa do Imperador, foi sorteada como a Imperatriz do Divino em 2013.

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tem ao longo do Guaporé, somente eu sou o estrangei-ro. Apesar disso, muito bem tratado, logo vou ficando a par do assunto principal de nossa viagem, o Divino Espírito Santo em seus aspectos religiosos e políticos. Ao contrário das outras embarcações que subirão o Guaporé para participar da festa, nesta não temos som, nem alto, nem baixo, nem bebidas alcoólicas, nem confusão, gritaria e xingamentos, todos debatem sobre a Festa e as Irmandades e apreciam a natureza bruta e bela que envolve o rio Guaporé que nos con-duz tranquilamente até nosso destino.

Passamos por algumas Comunidades Quilombolas e paramos de madrugada em uma delas, Pedras Ne-gras, onde um dos passageiros desembarca e outros embarcam para ir à Festa. Ano que vem a Festa será aqui e chego a pensar se participarei ou não, afinal, chegar até aqui é complicado, tudo muito isolado, sem comunicação, sem transporte, a não ser de barco pelo Guaporé.

Estamos uma semana adiantados em relação aos outros barcos que subirão o Guaporé para participar da Festa, eles virão de Guajará-mirim, Costa Marques e Pimenteiras. Nossa chata apresenta alguns peque-nos problemas, mas tudo sempre é resolvido rapida-

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mente, nosso antigo motor trabalha incansavelmente e após quatro dias chegamos à pequena e distante Piso Firme, uma comunidade com cerca de 150 famílias, considerada Indígena pelo governo da Bolívia, que re-centemente criou uma grande reserva ao redor dela, que por sua vez se encontra ao lado do gigante Parque Nacional Noel Kempf Mercado, um dos maiores par-ques da Bolívia, com cerca de 1,6 milhão de hectares de uma natureza espetacular e muito bem preservada.

Estamos bem isolados aqui, Piso Firme fica a cerca de mil quilômetros de Santa Cruz de La Sierra e 450 quilômetros de San Ignácio de Velasco. As estradas são muito ruins e atravessam pura Floresta Amazônica com muita lama e buracos.

As casa de tábuas, e muitas de barrote e adobe, se espalham organizadas em ruas largas, gramadas e en-voltas pela floresta densa, cheia de Seringueiras, cuja exploração originou a vila a partir do ano de 1940.

Vestígios arqueológicos estão por toda parte, mi-lhares de fragmentos cerâmicos e grandes potes enter-rados afloram nos quintais. No largo, em frente à igre-ja, ainda restam diversas pedras com lindas gravuras milenares , segundo os moradores, as mais belas foram

roubadas, ou simplesmente levadas embora. A exce-lente localização da vila, na margem esquerda do Rio Paragua, que por sua vez é um afluente do Guaporé, assim como a bela paisagem, a ótima qualidade da ter-ra e abundância de recursos naturais demonstram que essa região foi ocupada milhares de anos atrás.

Apesar de pequena e isolada, Piso Firme tem uma Irmandade do Divino que se mostra muito atuante e organizada. Toda a comunidade se empenha na lim-peza e nos preparativos da festa. Fico admirando a simplicidade no estilo de vida das famílias e a liber-dade e alegria das crianças, que estão sempre entre a beira do rio e nos largos gramados, que por sua vez se mantêm bem limpos e aparados graças aos muitos por-cos, galinhas, cavalos e vacas que pastam livremente.

Quando finalmente o dia da grande Festa amanhe-ce, observo o movimento aumentar no rio, canoas de madeira e voadeiras de alumínio começam a chegar das comunidades mais próximas, logo aportam gran-des barcos e chatas apinhados de brasileiros, prove-nientes principalmente de Pimenteiras do Oeste, cida-de localizada na margem direita do Guaporé, a menos

O Presidente da Irmandade do Divino de São Miguel do Guaporé, Marivaldo Acacio Lobato, 54 anos, testa sua filmadora antes de chegar a Piso Firme. Todos os anos ele busca participar e registrar as celebrações do Divino.

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Comunidade de Piso Firme na margem esquerda do rio Paragua na Bolívia

Casa tradicional em Piso Firme na Bolívia.

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Amanhecer no rio Guaporé que une Brasil e Bolívia ao longo de mais de mil quilômetros de muita natureza.

Fragmentos de utensílios cerâmicos arqueológicos encontrados em grande quantidade nos quintais e ruas de Piso Firme.

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de um dia de viagem. Outras vêm de muito longe, mas todos são devotos do Divino e buscam participar da Festa todos os anos, seja ela onde for.

Quando o espocar de muitos foguetes indica a che-gada da “Carité”, o batelão do Divino, centenas de pessoas se esparramam pela margem do rio. Os pro-messeiros estão imersos até o peito na água e segu-ram velas acesas. Todo o clima alterado e os devotos, emocionados, prontos a vivenciarem o ato máximo da festa. Aos poucos avisto a embarcação de madeira chegando, pintada em vermelho e azul, as cores do Di-vino, movida pelas braçadas vigorosas e sincronizadas dos romeiros. No bico da proa explosões muito fortes da “ronqueira” enchem de fumaça o ar, fazendo com que o batelão fique oculto e depois saia triunfante da nuvem de fumaça. Na Carité, várias bandeiras tremu-lam conforme o vigor das remadas e toda essa aparição se desenvolve ao som das antigas cantigas, entoadas pelos meninos e músicos da Folia do Divino.

Atrás da Carité vem o barco de apoio da Romaria do Divino. Eles estão há mais de 45 dias subindo e des-cendo o Rio Guaporé, visitando todas as comunidades das margens, sejam elas na Bolívia ou no Brasil. Agora vão aportar pela última vez e finalizar o longo e meti-culoso ritual da Romaria, que oficialmente vem sendo

cumprido há 119 anos no Vale do Guaporé.Todas as atenções se voltam à Carité, que faz três

voltas completas em frente ao porto antes de atracar, tudo muito solene e emocionante. Percebo porque sempre quis testemunhar esse ato ao longo dos últimos 15 anos, ele corresponde ao que imaginei, mas a rea-lidade sempre é a melhor companhia e procuro docu-mentar em fotos o ritual antigo que ainda se mantém nestes rincões do Guaporé.

A Festa do Divino Espírito Santo do Vale do Gua-poré tem origem em Vila Bela da Santíssima Trindade, no oeste de Mato Grosso, para onde, por sua vez, ela foi trazida de Portugal. Era a principal festa dos Portu-gueses na região e acabou ficando na memória e na re-ligiosidade dos negros trazidos à força como escravos para minerar o ouro puro que existia em abundância nas proximidades da Vila Bela.

Quando o ouro escasseou, tudo mudou e aos pou-cos Vila Bela foi entregue à própria sorte, habitada por uns poucos negros velhos e outros fugidos dos peque-nos quilombos nos sertões do Guaporé.

Apesar do abandono, ou por causa dele, a comuni-dade negra se organizou em Vila Bela como numa pe-quena África, isolada, autônoma e livre, e foi a célula mater de todas as ocupações e cidades ao longo do rio

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Chata proveniente de Costa Marques-RO, trazendo devotos da Irmandade do Divino para a festa em Piso Firme.

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Lucas Rodrigues do Nascimento, 12 anos, natural da Comunidade Quilombola Forte Príncipe da Beira, participava do grupo de meninos da Folia do Divino que fazem a peregrinação pelo Guaporé quando adoeceu e teve que ser levado de volta a sua

casa. Depois de recuperado, subiu o Rio Guaporé com o pai, buscando completar sua obrigação na peregrinação do Divino.

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Astrogilda Braga Vieira, 68 anos, irmã de Dona Anita, larga tudo para participar todos os anos da Festa do Divino do Guaporé. Ela diz que vem “cozinhar, dançar e meter bronca...”

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Guaporé, desde o Rio Barbado até a boca do Mamo-ré e até mais embaixo, na região de Guajará-mirim. Ou seja, ao longo de mais de 2 mil quilômetros de rio, os Vilabelenses ocuparam a região e levaram consigo, entre outras coisas, a religiosidade antiga dos Portu-gueses. Daí provem a raiz da Festa do Divino, que ao longo de tanto tempo sofreu diversas alterações, inclu-sive algumas que a tornaram ainda mais original que a mesma celebração que se faz atualmente em Vila Bela, resultados dos mistérios da cultura e da religiosidade popular.

Após a chegada da Carité, os símbolos do Divino, como a Coroa do Imperador, o Cetro da Imperatriz e a Bandeira, são entregues aos festeiros locais, escolhi-dos no ano anterior através de sorteio organizado pela Irmandade, e tem início a peregrinação do Divino por toda Piso Firme. Esses rituais irão se repetir pelos pró-ximos dias e toda a comunidade terá a oportunidade de compartilhar muitas demonstrações de fé. Também posso escolher onde almoçar ou jantar, pois as simples e deliciosas refeições são oferecidas pelos festeiros a toda a comunidade. Apesar de viverem com humilda-de, os moradores de Piso Firme conseguem alimentar

centenas de devotos da própria Bolívia e principal-mente do Brasil. Ao final da festa vou observar que a maior parte das galinhas e boa parte dos porcos já não circulam mais pelas ruas largas e gramadas.

Além dos rituais da peregrinação do Divino, às noi-tes ocorrem celebrações muito singelas e de grande impacto na comunidade. São rezas, preces, testemu-nhos e principalmente cantos entoados pelos Romei-ros do Divino e pela própria comunidade. A pequena igreja ficava lotada com pessoas cantando e ouvindo cantar, tudo iluminado por centenas de velas que são continuamente acesas pelos devotos. Nas proximida-des do rio, alguns salões ofereciam bebidas e músicas, brasileiras e bolivianas. O Forro acabava predominan-do, para a alegria dos brasileiros, mas, com o avançar da noite e da bebedeira, a Cumbia dominava a festa, para a alegria dos bolivianos.

Na penúltima noite da festa fomos todos em procis-são buscar o mastro do Divino. Percorremos boa parte da comunidade e um longo trecho da pequena estrada em meio à Floresta, iluminados pelas velas dos devotos até encontrarmos o mastro, cuidadosamente escolhi-do, cortado e pintado pelo Capitão-do-mastro que é o

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Os romeiros da Carité e festeiros do Divino em procissão pela comunidade de Piso Firme-BO.

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A coroa do Imperador e o cetro da Imperatriz do Divino Espírito Santo sendo adorados na casa de morador de Piso Firme.

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Uma das pedras cobertas com gravuras arqueológicas ao lado da igreja de Piso Firme, denominada "La piedra con cara".

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Margarita Choca, 83 anos vividos na região de Piso Firme na Bolívia. Testemunha de um tempo de muita luta pela sobrevivência em meio as grandes florestas do Vale do Guaporé.

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festeiro responsável, um tronco totalmente retilíneo da Palmeira Açaí com mais de 16 metros de comprimen-to. A partir daí, os homens se agarraram ao mastro e o carregavam correndo no escuro, de volta em direção à vila, um espetáculo de fé. Dezenas de devotos disputa-vam qualquer espaço para ajudar a carregar o pesado mastro. Por fim, a procissão com os festeiros, centenas de devotos e o mastro chegam ao grande pátio gra-mado da igreja e em poucos minutos o mastro, já com a Bandeira do Divino, é levantado sob uma intensa chuva de fogos de artifício e muita aclamação popular. Realmente uma beleza de manifestação. Mais tarde houve o baile onde todos se esbaldaram aproveitando os momentos finais da grande festa.

Finalmente, estamos no domingo de Pentecostes, último dia oficial da festa, logo cedo, antes da missa celebrada pelo padre de San Ignácio de Velasco, os Romeiros e Devotos saem em procissão buscando os festeiros. Tudo muito formal e solene, todos estão com as melhores roupas e o sentimento geral é de júbilo e uma certa tristeza pelo final da festa.

Logo após a Missa oficial, muitas homenagens e disputas pelas fitas que enfeitam a Coroa e o Cetro

do Imperador e Imperatriz. Houve também a entrega oficial do cargo de Presidente do Conselho Geral das Irmandades do Divino do Vale do Guaporé, realizada pelo senhor Dionísio Faustino. A entrega do cargo foi tensa, pois representa o final de quatro dias de reu-niões entre os membros das Irmandades, que dispu-tam novos cargos e fazem alianças em prol e contra determinados candidatos. Além disso tudo, é feita a prestação geral de contas das Irmandades, e a apre-sentação à comunidade da nova direção do Conselho eleita durante a festa.

Ao final, muita emoção, planos para a próxima festa e muitas despedidas são realizadas durante o al-moço, normalmente oferecido nas casas dos festeiros principais.

No período da tarde, observo o intenso movimen-to de arrumação dos barcos que zarpam de volta para seus destinos, levando quase todos os devotos e muitos festeiros. Fico em nossa velha chata, organizando mi-nha bagagem e me despedindo dos novos amigos que ganhei. O Bom Pastor vai partir em breve de volta a Costa Marques e fico em Piso Firme, de onde volto a Mato Grosso por um caminho tortuoso que levará dois

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Soldados da Armada Boliviana montam guarda na entrada da igreja de Piso Firme durante a missa do Divino.Apesar da participação de milhares de devotos e visitantes brasileiros e bolivianos, o efetivo de 25 soldados não registrou

nenhuma ocorrência.

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dias inteiros de viagemEnquanto permanecemos no barco, organizando

tudo, fazendo despedidas e observando os outros bar-cos descerem o Rio Paragua em direção ao Guaporé, o último ato da festa se desenrola na Igreja, o sorteio dos festeiros para o ano que vem.

Logo percebemos um movimento anormal em tor-no de nosso barco e muitos devotos começam a chegar procurando dona Anita que estava conosco preparan-do o barco. A notícia que chega é surpreendente. O sorteio do Divino apontou dois nomes entre vinte e quatro, e mais surpreendente ainda foi que o casal, meus anfitriões de viagem, Dionísio e Anita foram es-colhidos como o do Imperador e da Imperatriz para a próxima Festa do Divino que será em Pedras Negras.

Depois de seis anos de muito esforço e dedicação na organização do Conselho das Irmandades e depois

A chata "Bom Pastor" de propriedade do senhor Dionísio Faustino que nos conduziu desde Costa Marques-RO a Piso Firme-BO.

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da entrega do cargo, veio o reconhecimento do próprio Divino Espirito Santo que os escolheu como Festeiros. A partida do barco é adiada por muitas horas para que se façam novas articulações. Desembarco com minha mochila e equipamento e vou para o Acampamento dos Guarda-parques onde ficarei esperando uma ca-rona de barco que me levará a Pimenteiras do Oeste.

Agora sei que farei de tudo para participar da pró-xima festa do Divino do Vale do Guaporé e dessa vez como convidado oficial do Imperador e Imperatriz.

Meu retorno a Mato Grosso se faz imerso em pen-samentos sobre tudo que vivenciei e ainda sem saber como será possível compartilhar essa experiência mar-cante. Vou deixar a cargo do Divino, sei que ele vai me ajudar.

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Joao Leite Mendes, romeiro do Divino, responsável pela "ronqueira", artefato que é disparado na proa da Carité para anunciar, com grande estrondo, a chegada da romaria fluvial às comunidades ribeirinhas. Ela também é utilizada em terra firme durante

as rezas. A origem da ronqueira vem das pequenas peças de artilharia adaptadas pelos portugueses, durante o século 18, nas canoas das tropas que realizaram a conquista do Guaporé.

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A adoração aos símbolos do Divino Espírito Santo provoca grande emoção na população e nos romeiros e festeiros que participam da festa.

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Av. Couto Magalhães, 755Centro - CEP 78110-400

Várzea Grande - Mato Grosso(65) 3682-5050

[email protected]

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A imponente presença do Cerro Rico é perceptível de qualquer lugar da cidade, como através deste arco que emoldura a indígena e nos lembra do genocídio da sua raça na história da extração da prata.

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Chegando à antiga vilaEnquanto o veículo rodava pelas curvas da estrada

que liga a cidadezinha de Uyuni à lendária Potosí, o frio procurava penetrar a proteção das minhas roupas com uma audácia metódica e enregelante. A descon-fortável sensação térmica se espalhava pelo interior do carro, enquanto um agudo assobio me revelava que lá fora, detrás da fronteira embaçada do cristal, o vento era o monarca absoluto do monótono planalto gelado.

As suas ocasionais e ferozes rajadas produziam re-demoinhos de um pó avermelhado e impalpável que, rodopiando veloz e imprevisível na estepe interminá-vel, criava desbocados e irreverentes tornados em mi-niatura.

Ansioso por chegar ao meu destino, localizado em algum ponto perdido dessas melancólicas solidões, acelerei o jipe e refleti na tristeza infinita dessas mis-teriosas alturas em que, ao mesmo tempo, a alma se apaixona pela beleza estonteante das paisagens e sente uma estranha inquietude, ao intuir o eco das vozes dos antepassados pairando no ar.

Uma hora depois de trafegar pela sinuosa pista e contemplar o fantasmagórico brilho metálico das mon-tanhas, admirando os heroicos e esparsos arbustos da pampa, assim como os rebanhos de lhamas que pas-tavam à beira da estrada, apareceram finalmente as primeiras construções da lendária cidade que inspirou as mais febris e fantásticas fábulas argentíferas univer-sais.

Sabendo que chegava a um cenário histórico, que pela sua surpreendente trajetória ainda transmite fas-cinação ao longo do planeta, detive o veículo no acos-tamento e por alguns momentos me deixei levar pelos meus desvarios, mergulhando em alucinadas visões de conquistadores cobertos de armaduras, índios andinos de olhos puxados e rios de prata escapando das pro-fundezas da terra.

Prezado leitor, não se surpreenda por este último parágrafo , que pode fazer-lhe suspeitar que fui vítima de um delírio induzido pelo “sorojche”, aquele mal das alturas provocado pela escassez de oxigênio no sangue.

Saiba que quem se encarapinha na glacial imensidão

Das entranhas minerais do esburacado e generoso morro que vigia a melancólica e centenária Vila Imperial de Potosí se alimentou o antigo poderio de Espanha e também da Europa pós-medieval, numa fantástica e delirante história que teve um amargo preço de dor, tragédia e sangue, para os povos indígenas locais e alguns dos milhões de africanos

sequestrados e trazidos como escravos a terras americanas.

O manancial prateadodo Cerro Rico

PotosíTexto: Luca SpinozaFotos: Mario Friedlander

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do altiplano sul da Bolívia, para arribar por primeira vez à sofrida e nostálgica cidade de Potosí, localizada a gelados e enrarecidos 3900 metros de altitude sobre o nível do mar, não consegue ficar indiferente ao seu poderoso influxo. É que ali se debruça um dos maio-res mitos da História: a lendária cidade que alimentou a alegoria de uma América transbordante de maravi-lhas, mistérios e tesouros superlativos.

Em meio dela e parceira essencial da sua biogra-fia centenária, ergue-se uma esburacada montanha chamada de Sumaj Orcko em língua quéchua e Cer-ro Rico em espanhol. Numa hemorragia de prata sem precedentes, esse colosso de pedra alimentou a rique-za de Espanha e dos banqueiros europeus, transfor-mando Potosí, no ano de 1630, na urbe mais habitada do Mundo, com uma população de 160.000 habitantes, maior que a de Paris e Londres na época.

Nos meandros do tempoLogo que achei um hotel onde ficar no centro his-

tórico da cidade, deixei a minha bagagem no quarto,

o carro no lava-jato, deambulei pelas estreitas ruelas que ainda conservam o sabor colonial e, depois de des-frutar a contemplação da sua velha arquitetura barro-ca, me sentei em um banco da acolhedora e pitoresca Praça 10 de Novembro. Ali me senti em um verdadeiro museu ao ar livre, pois ao meu redor levantavam-se impressionantes construções de vários séculos de an-tiguidade, que me fizeram lembrar que em 1987, pela sua impressionante riqueza de edificações coloniais, Potosí foi declarada Patrimônio da Humanidade pela UNESCO.

Rodeado de pombos que se deliciavam com o mi-lho jogado pelos transeuntes, me dediquei a ler alguns parágrafos de livros e artigos que falavam sobre o tra-jeto da cidade ao longo do tempo.

Como sempre acontece quando mergulhamos nos corredores enevoados do passado, tive acesso a versões diversas e conflitantes. Bem antes que as caravelas de Cristóvão Colombo arribassem ao litoral de América, nessa região moravam os indígenas charcas, chullpas e comunidades menores de quéchuas e aimarás. Pací-

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Feitas com a argila da inóspita região, as telhas de grande parte dos tetos têm a mesma cor da terra carregada de partículas minerais.

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Diminuídas pela altura do impressionante muro de pedra com séculos de antiguidade, mulheres caminham carregadas de compras nas primeiras horas da manhã.

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ficos e habilidosos artesões, esses povos faziam belos trabalhos em cerâmica e prata, que os arqueólogos de-senterram até hoje em suas pesquisas de campo. Como aconteceu com todas as etnias ocidentais da Bolívia, eles sofreram a organizada invasão e colonização do império inca, que os submeteu com mão férrea ao lon-go de ferozes expedições de conquista.

Conscientes de que os morros da comarca oculta-vam valiosos minerais, os invasores iniciaram a explo-ração das jazidas de prata da mina de Porco, introdu-zindo um escravizador sistema de trabalho conhecido como “mita”. Essa era uma tarefa obrigatória para os povos avassalados e os obrigava a um trabalho exausti-vo e permanente.

Através dessa utilitária estratégia de dominação, os incas se apossaram daquele e de outros metais e en-riqueceram cada vez mais. Graças a boa parte desses tesouros acumulados é que puderam pagar o resgate de Atahualpa (último monarca do império), quando foi aprisionado pelos soldados de Francisco Pizarro.

A riqueza destas minas já era célebre quando os espanhóis chegaram ao Peru, por isso, logo após des-montar a resistência inca, não demoraram em chegar a Potosí atrás da sedução do ouro e da prata. Como naquele tempo as profundezas minerais do lendário “Cerro Rico” ainda não tinham sido defloradas, eles se dedicaram a explorar as lavras já existentes e garimpar as imensidões do planalto.

Uma antiga lenda da região conta que quando o so-berano inca Huayna Kapac destinou um destacamento para explorar a prata do morro, os homens enviados ou-viram uma voz sobrenatural surgindo da terra, que lhes ordenava que não o tocassem e transmitissem o recado aos barbudos e belicosos invasores de além mar.

Descobrimento acidentalVinculada visceralmente com a montanha Sumaj

Orcko, a prodigiosa história da antiga Vila Imperial começa a se traçar no ano de 1545, quando um índio chamado Diego Huallpa procurava umas lhamas ex-

Mapa da Vila Imperial de Potosi e seu famoso Cerro Rico, datado de 17 de abril de 1758, acervo da Casa de La Moneda.

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Ao deambular pelas ruas da cidade e ver seculares paredes e calçamentos, assim como ao onipresente morro das lendas auríferas acompanhando nossos passos, temos a impressão de ter voltado à época colonial.

traviadas e ao acender um fogo para fugir do intenso frio, acabou derretendo parte de um veio puro de pra-ta que aflorava do chão.

Depois desse involuntário e transcendental desco-brimento, o indígena comentou o achado com o capi-tão espanhol Juan de Villarroel, que acompanhado de outros conquistadores destinados à região, fundou nas proximidades da jazida o vilarejo que mais adiante se transformaria em Potosí.

Não demorou muito tempo e deu-se início à explo-ração da quase inesgotável riqueza que a montanha guardava em suas generosas entranhas.

Dois anos depois da descoberta já haviam sido construídas 2.500 casas, a movimentação no morro era permanente e os reis de Espanha enviaram cronistas e tabeliões, para registrar por meio de poesia e números a miraculosa enxurrada de prata arrancada aos Andes, pelo exército de indígenas arrebanhados a sangue e fogo para esse fim.

As inapeláveis exigências dos conquistadores eram

tão rigorosas, insensíveis e cruéis, que os índios mor-riam diariamente por quedas nos abismos, esmagados pelas rochas que se desprendiam das paredes da mina, ou vítimas da letal poeira química que se levantava pelo processo de arrancar e triturar o metal.

Os tesouros do morro pareciam infindáveis e apor-tavam tanto à coroa espanhola, que em 1547, motiva-do por uma empolgação sem limites, o rei Carlos V outorgou à próspera cidade o pomposo título de Vila Imperial, assim como um escudo de armas com uma epígrafe que elogiava a sua prosp eridade.

A inspirada pena do célebre escritor espanhol Miguel de Cervantes contribuiu para que a florescente urbe in-gressasse à imortalidade, a través de uma exclamação de Dom Quixote da Mancha, pronunciada para se referir a alguma coisa muito custosa: “Vale um Potosí!”.

Crescimento meteóricoSe através de um documento oficial e seguindo um

cuidadoso traçado regular, a maioria das cidades da

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vasta e acidentada região do Alto Peru (como era cha-mada na época a Bolívia atual) foram fundadas de for-ma organizada pelos espanhóis, o nascimento de Po-tosí foi muito diferente, pois surgiu pela desordenada aglomeração das precárias moradias que levantavam os mineiros atraídos pelo fulgor irresistível da prata.

A importância da urbe na época colonial foi muito relevante, pois era considerada como a mais importan-te e estratégica para a economia da Espanha.

Se ao início foi erigida de forma improvisada e precária, motivada tão só pela febre ocasionada pelo descobrimento do branco metal, a sua verdadeira fun-dação e planejamento começaram no ano de 1572, quando o polêmico vice-rei Francisco de Toledo a divi-diu em áreas diferenciadas para espanhóis e indígenas.

Como produto direto dessa providencial e oportu-na intervenção, hoje em dia podemos desfrutar de seus edifícios barrocos, seus imponentes palácios, seus casa-rões com brasões heráldicos, suas românticas sacadas

coloniais e muitas outras construções e detalhes, que conformam um legado arquitetônico que evidencia o luxo e a prosperidade da classe dominante na época.

As detalhadas descrições deixadas pelos meticulo-sos cronistas espanhóis relatam que, ao início do sé-culo 17, Potosí dispunha de 36 igrejas decoradas com incrível luxo, uma quantidade semelhante de casas de jogo, diversas escolas de dança e numerosos salões para organizar as festas que os prósperos donos das minas efetuavam com surpreendente frequência e en-tusiasmo, para celebrar o sucesso dos seus empreendi-mentos.

A cidade também contava com teatros onde se apresentavam trupes de artistas internacionais, atraí-dos pelos altos cachês que se pagavam pelas suas apre-sentações. As damas assistiam vestidas com fastuosas e elegantes roupas importadas das principais capitais europeias, ostentando esplêndidas joias de ouro e pra-ta que deixavam perplexos os visitantes estrangeiros.

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Pelo seu majestoso conjunto e caprichados detalhes ornamentais, o pórtico barroco-mestiço do templo de San Lorenzo de Carangas é, sem dúvida, um dos maiores atrativos arquitetônicos de Potosí.

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Riqueza surpreendenteNo entanto, o século 16 foi a etapa em que Potosí

atingiu o seu maior apogeu e crescimento, até ultra-passar em população a diversas metrópoles do Velho Mundo. Era tanta a riqueza e opulência que se espa-lhava pela cidade (irradiando as suas benesses a toda a região andina e à Europa), que os seus moradores tinham uma popularizada fama de extravagantes e perdulários. Para lembrar algumas das suas maiores excentricidades, podemos citar a inesquecível substi-tuição dos paralelepípedos das ruas do centro (1658), por fúlgidas barras de prata para comemorar a pro-cissão de Corpus Christi. Esse tresloucado aconteci-mento foi um dos responsáveis pela irrupção do mito universal da cidade capaz de fornecer metal suficiente para construir uma ponte de prata que ligasse Potosí a Madri, cruzando a quilométrica e turbulenta imensi-dão do Atlântico.

Naqueles anos de bonança, luxo e desperdiço sem freio, as festividades populares eram tão intensas e concorridas, que as festas do Santíssimo Sacramento se celebravam com seis dias de comédias, seis noites de máscaras, três de saraus, dois de torneios e uma alegria contagiante e generalizada que atraia gente de outras

regiões da Bolívia. Os historiadores comentam que os altares das igrejas eram de prata pura, assim como as asas dos querubins carregados com piedosa alegria, nas procissões que percorriam as movimentadas ruas de paralelepípedos de pedra.

Alguns mineiros mais abençoados pela fortuna co-locavam ferraduras de prata em seus cavalos, assim como selas andaluzas com fivelas de ouro feitas por ourives locais. Naqueles dourados anos em que as ga-lerias subterrâneas do morro que parecia inexaurível, não cessavam de abastecer aos galões espanhóis que partiam carregados de barras de prata e moedas des-tinados aos portos do Mediterrâneo, circulavam pela cidade os mais requintados perfumes, as mais custosas joias, as mais finas porcelanas e diversos objetos sun-tuosos trazidos da Europa e da Ásia, para abastecer as insaciáveis e esbanjadoras necessidades dos magnatas de Potosí.

As Casas de MoedaQuase cem anos antes do ápice dessa riqueza de fá-

bula, devido ao incremento da população, à expansão do comércio e ao inesperado auge que vivia a cidade, surgiu a necessidade de criar um espaço para cunhar

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As máquinas de laminação da Casa da Moeda, com suas velhas rodas e engrenagens, nos lembram dos incontáveis escravos africanos que oferendaram suas vidas para alimentar a riqueza da Espanha.

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O importante museu da Casa da Moeda conserva obras de antigos e célebres artistas plásticos, como Berrio y Cruz, Pérez de Holguín, Gamarra e diversos outros.

Contrato de venda de escravo datado de 4 de abril de 1578, acervo da Casa de La Moneda.

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Inserido em harmoniosa estrutura com candeeiro incluído, esta representação de Cristo é um dos tantos objetos que evidenciam a inspirada arte dos ourives locais.

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moedas, que também pudesse facilitar as transações ad-ministrativas, laborais e econômicas da região, com ou-tras latitudes da extensa geografia do Novo Continente.

Com essa finalidade o Vice-Rei Toledo iniciou em 1572 a construção da primeira Casa de Moeda da cida-de. Consolidados os alicerces nos arredores da praça central, a obra foi concluída três anos depois.

Como o fluxo de metal não cessava e as necessida-des da coroa espanhola eram imperiosas, a amoedação se iniciou de imediato, utilizando a rudimentar tecno-logia da época.

Passaram-se duzentos anos de intensa produção de moedas e barras de prata e, de pronto, o Cerro Rico começou atravessar um período crítico, devido ao es-gotamento das camadas minerais superficiais, pelo que as autoridades reais conceberam um projeto para es-timular o crescimento dos volumes extraídos. Na ver-dade, isso era um esforço desesperado para enfrentar a crise econômica e social da Espanha, cobrir as des-pesas de inumeráveis guerras e os gigantescos gastos decorrentes de uma nobreza ociosa e improdutiva.

Uma das principais iniciativas para concretizar essa proposta foi a de construir uma nova e moderna Casa de Moeda, cuja edificação se iniciou em 1759 e fina-

lizou em 1773. A organização e administração dela foram muito rigorosas e se sujeitavam a regulamenta-ções elaboradas com zelo pelos conselheiros do Rei. O tesoureiro era a máxima autoridade, logo vinha o “ensaiador”, que tinha a missão de avaliar as barras de prata, verificar detalhes e colocar as iniciais do seu nome nas moedas. A seguir vinha o homem encarrega-do da fundição, depois os que entalhavam os moldes e controlavam o peso das moedas, assim como os aju-dantes e outros colaboradores.

Esse trabalho exigia que cada centro de amoeda-ção dispusesse de locais para bater os discos de prata e convertê-los em moedas. Nesses setores especializados onde se localizavam as fornalhas em que se fundia o metal, para depois laminá-lo, recortá-lo, carimbá-lo e branqueá-lo, se movimentavam os trabalhadores for-çados que faziam os serviços mais pesados: escravos africanos levados como mercadorias humanas àquelas inóspitas alturas, cujo suor e sangue pavimentaram o fulgurante sucesso de Potosí.

Arte, máscaras e escravos Conforme a opinião especializada de muitos histo-

riadores, a segunda Casa de Moeda de Potosí, cons-

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Detalhe do quadro "La Virgen del Cerro", acervo da casa de La Moneda.

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truída pelo prestigioso arquiteto Salvador de Vila (que também projetou as antigas casas de moeda do México e Peru), é o edifício mais importante da arquitetura colonial sul-americana. Esse imponente casarão, de-clarado Monumento Nacional, se estende através de um quarteirão e preserva valiosas obras de arte: pin-turas, esculturas, moedas, móveis e outros objetos de valor histórico como roupagens coloniais e raras peças antropológicas.

Entre muitos outros chamativos detalhes dessa im-ponente edificação, sobressai o enigmático, grotesco e policromo sorriso de uma grande máscara instalada ali ao início da Guerra da Independência, para ocultar o escudo da coroa espanhola e assim protegê-la da ira dos soldados inimigos.

Convertida hoje em dia em um importante museu do país, a Casa de Moeda também guarda um formi-dável arquivo que preserva mais de 80.000 inéditos do-cumentos da história local, assim como uma coleção de cunhos e troqueis, maquinarias de laminação para moedas e o forno principal de fundição de prata.

No entanto, esse fabuloso símbolo do poder políti-co e econômico do império espanhol também escon-

de uma hedionda história de terror, sangue e espanto. Essa vetusta construção encravada em pleno centro de Potosí, visitada por milhares de turistas todo ano, submeteu a uma impiedosa escravidão, durante dois séculos e meio, seres humanos procedentes de Congo, Serra Leoa, Moçambique, Angola e outras regiões de África.

Ali, entre as venenosas emanações que surgiam da fumaça do fogo e do processo de amalgamação da prata, do chumbo e do mercúrio, os escravos cortavam o metal com tesouras, o batiam com martelos de fer-ro, o moldavam e o selavam em um enorme esforço físico que, unido a uma alimentação deficiente e um precário e nocivo ambiente de trabalho, iam minando as suas vidas até definhar e morrer em poucos anos. Carregando na memória e nos genes a remota tradição metalúrgica de alguns povos africanos, eles, junto aos indígenas locais (dizimados ao longo dos séculos pelos maus tratos), foram os artífices da riqueza de Potosí, da Espanha e da Europa, em um sacrifício obrigado e impiedoso que, apesar de estarmos no início da segun-da década do século 21, ainda não é reconhecido em sua justa dimensão.

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Com mais de uma versão para explicar a sua origem, a estranha máscara pendurada há séculos em um dos arcos da esplanada interior da Casa da Moeda continua intrigando com seu satírico e enigmático sorriso.

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Do alto do lendário morro que durante séculos atraiu legiões de aventureiros europeus, Potosí ainda conserva um rústico aspecto de acampamento mineiro.

Entre os detalhes interiores do templo de San Lorenzo se destacam as “indiátides”, figuras femininas nascidas do sincretismo indígena-europeu, que nos surpreendem com a audácia dos seus torsos desnudos, pois na época da sua elaboração existiam rígidos códigos morais.

Alguns dos cenários recorrentes nas estreitas e empedradas ruas são os muros tingidos de tempo e melancolia, coexistindo com portas de madeira que

são verdadeiras peças de antiquário.

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Em Potosí há que estar sempre preparados, pois em qualquer momento podemos nos encontrar com surpresas da arquitetura colonial, como este detalhe de átrio falso adossado a um muro centenário.

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em Livramento

O PovoSão Benedito

Texto: Marcia RaquelFotos: Mario Friedlander

“Viemos de Luanda, Aqui nesta terra, Chama filho aieia, Para nirrê na guerra...”. Tal qual o Quilombo de Mata Cavalo que o originou, o Congo de Livramento sobrevive. A batida forte da baqueta, o passo marcado, as letras com resquícios do iorubá e a devoção a São Benedito fazem da Dança do Congo uma mistura de religiões com crítica social. É impossível aos olhares e ouvidos mais atentos não sentir a força do povo negro ao presenciar uma apresentação.

O Complexo Quilombola Sesmaria Boa Vida – Mata Cavalo, mais conhecido na região como Quilom-bo Mata Cavalo ou Sesmaria Boa Vida, pertence ao município de Nossa Senhora do Livramento, distante 40 km de Cuiabá, capital de Mato Grosso. Embora es-teja localizado na zona do pantanal mato-grossense, a vegetação da região é típica do cerrado, com terreno plano, árvores retorcidas e solo coberto por gramíneas.

Nessa região de quilombo, lá pelos idos de 1800, segundo alguns depoimentos, surgiu uma das mais fortes expressões culturais da comunidade afrodescen-dente de Mato Grosso. Fruto do sincretismo entre o catolicismo e as religiões de matrizes africanas, como a Umbanda, a Dança do Congo é realizada em home-

nagem a São Benedito, o santo negro, considerado na Umbanda o rei dos pretos-velhos.

Publicações recentes* apontam que o sincretismo presente no Congo também tem relação com a fusão de nações africanas jeje, nagô, muçulmana, banta, que se transformam e se fundem com manifestações espi-rituais contemporâneas, como o espiritismo e o cato-licismo.

Alguns estudiosos defendem que o Congo de Livra-mento é fruto de uma dicotomia cultural incentivada pelos jesuítas, mestres em amalgamar culturas. Num tempo de correntes e chibatas, a permissão para que os negros realizassem suas festas funcionava como uma válvula de escape. Ao mesmo tempo em que os negros atribuíam seus significados ao ritual, protegidos pelo Iorubá, os brancos interpretavam da forma que me-lhor lhes conviesse.

E assim é até hoje. Prova disso são as diferentes representações dadas aos dois reinos interpretados durante o Congo que travam uma verdadeira batalha para, finalmente, selar a paz.

Para o especialista em música brasileira, professor Pio Sabino de Toledo, livramentense de nascimento e

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Eduardo Costa de Arruda, Rei Monarca do Congo de Nossa Senhora de Livramento em Mato Grosso.

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grande expectador da dança, o Congo é a represen-tação da batalha de origem europeia entre Mouros e Cristãos. “Ele (o Congo) nasceu nos quilombos in-serido pela Igreja Católica”, afirma. Dessa forma o catolicismo incorpora, por exemplo, as festas pagãs, atribuindo dias específicos aos santos de maneira sin-crética aos deuses europeus.

Para os integrantes do Congo, a luta se dá entre os senhores de engenhos, representados pelos dançari-nos de vestes azuis, e os escravos, representados pelas vestes vermelhas. Os senhores de engenho sempre são vencedores. “Tinha alguns senhores de engenho que eram bons”, argumentam. E sempre foi assim, desde o surgimento do Congo. Prova de que mais do que a liberdade, os negros escravos buscavam a paz.

Assim é a Dança do Congo. Cheia de encantos, mis-térios, força, fé e devoção. “Tem que pegar o Congo e carregar com vontade”, diz Antonio João Batista, co-nhecido como Tóti, o atual Rei do Congo, que dançou na Festa de São Benedito de 2012 por mais de duas horas com o joelho enfaixado. “Se um dia eu tiver de cadeira de rodas eu continuo dançando”, assegurou. E foi assim que Tóti aprendeu, lendo a cartilha do Congo para o pai analfabeto que dançava de cadeira de rodas.

Com uma expressividade que salta aos olhos, Tóti é o grande líder atual do Congo.

Antes dele, seo Cesário Sarat era o expoente máxi-mo não só do Congo, mas da Festa de São Benedito. E esse destaque não é por acaso. Conforme consta-ta Herman Hudson de Oliveira, Cesário Sarat pode ser considerado um dos mais expressivos pai de santo de Mato Grosso. Foi Rei Perpétuo durante quarenta anos, aproximadamente, e responsável pelo retorno de dezenas de famílias de quilombolas expulsos desde a década de 1940. Tóti, chefe de terreiro da linha da Umbanda, atualmente é o responsável pela continui-dade do Congo, juntamente com Francisco Nilo de Ar-ruda, o seo Chico, que se orgulha de ter confeccionado a coroa utilizada pelo falecido rei Cezário Sarat.

Devoção ao Santo Negro“(...) Que Santo é esse que vem lá de fora? É São

Benedito com Nossa Senhora. Meu São Benedito vos-sa casa cheira, cheira a cravo e rosa, cheira flor de la-ranjeira (...)”.

Que santo é esse que desperta tamanha devoção? É São Benedito, santo negro, filho de escravos, cozi-nheiro e que tem o poder de arrebatar milhares de fieis

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Antônio João Batista, Rei do Congo, lidera os músicos tocando a baqueta e cantando as músicas antigas da Congada de São Benedito.

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em sua reverência. Por essas terras de Rondon, mais popular que São Benedito, somente Jesus Cristo.

As festas de santos ainda são muito populares em Mato Grosso, principalmente na região pantaneira. Em terra de quilombos, a devoção ao santo preto en-contra terreno fértil. No município de Nossa Senhora do Livramento, a Festa de São Benedito é um verda-deiro acontecimento.

Organizada pela Irmandade de São Benedito a festa é a mais popular da cidade. A devoção ao Santo é tamanha que lá existe a Casa de São Benedito, um imóvel doado ao Santo, que não tem dono. Ou melhor, tem, mas não neste plano material.

A Casa de São Benedito é simples como o santo. Um oratório para reverências com as imagens de São Benedito e Nossa Senhora em primeiro plano; a foto do eterno rei perpétuo da festa, seo Cesário Sarat, que morreu em 2004 e deixou aos filhos a incumbência de prosseguir com a realização dos festejos ao glorioso; algumas flores e uma velha marimba, instrumento mu-sical africano utilizado na Dança do Congo.

Mais ao fundo existem um refeitório e uma cozinha

‘caipira’. Lá são preparadas e servidas todas as comi-das da festa. Contam os antigos que outrora o local era ponto de descanso para os escravos que viviam por aquelas bandas. Portanto, um lugar cheio de força e história.

A festa propriamente dita tem início sempre na sexta-feira à noite. Ao som do Cururu, ocorre o levan-tamento do mastro de São Benedito, um dos pontos altos da festança. Lá, em frente à Casa do Santo, ele permanece até o domingo, anunciando que é tempo de agradecer as graças alcançadas.

Após o levantamento do mastro são realizadas as rezas cantadas. Em seguida o Siriri. Depois é servido o jantar e os festejos prosseguem noite à dentro ao som do Cururu e Siriri. “São Benedito é um santo muito milagroso. O que você pedir para ele você alcança”, assegura dona Maria Germana, que coordena a reza de São Benedito na Comunidade de Jacaré de Cima, também no município de Livramento.

No sábado os preparativos para o almoço come-çam cedo. Seis horas da manhã as cozinheiras já estão a postos. Com comidas tipicamente mato-grossenses,

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As devotas da Cozinha de São Benedito são mulheres incansáveis, sempre dedicadas e prontas a distrubuir as comidas tradicionais para a comunidade e visitantes.

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a confraternização reúne centenas de pessoas. Tão logo acaba a comilança, as cozinheiras já iniciam os preparativos para o jantar, que será seguido pelo gran-de baile da festa. “Pode faltar de tudo, mas não pode faltar comida para o povo”, observa o Rei da Festa de 2012, Cássio Manoel de Assunção. Essa distribuição de comida é mais uma mostra de devoção ao Santo cozinheiro.

Para quem quer conhecer a verdadeira comida mato-grossense a melhor sugestão é uma boa festa de Santo. Cozinha caipira, fogões rústicos alimentados com lenha, e panelas imensas que servem para prepa-rar a famosa carne com banana e a farofa de banana, receitas típicas. O arroz branco também não pode fal-tar. O feijão bem temperado, com alho e cheiro verde, é um convite a descobrir o que escondem as demais panelas.

O domingo, assim como a sexta-feira, é outro ponto forte da festa. O dia começa com a alvorada dançan-te. Ao som das baquetas e do ganzá os dançarinos do Congo, em procissão, seguem em busca do rei e da rai-nha da festa. “(...) Rei e Rainha eu vim te buscar que o padre vigário já está no altar (...)”.

Depois de uma romaria por algumas ruas da cida-de, retornam à Casa do Santo acompanhados da rea-

leza de São Benedito para repor as energias com um reforçado quebra-torto. “(...) Bateu senhor no céu que encerrou sua ladainha para a virgem do rosário vim buscar nossa rainha (...)”.

O próximo passo é a procissão até a Igreja Matriz, onde o “padre vigário” e os devotos aguardam a chega-da do Santo acompanhado de Nossa Senhora. A cada quarteirão, o número de fiéis que segue a romaria aumenta. Em frente à Igreja, um novo ritual anuncia mais uma etapa da Dança do Congo, a católica. A par-tir daí, o padre conduz à missa em homenagem a São Benedito, que adentra à Igreja com honras e glórias ao lado de Nossa Senhora.

Terminada a missa, a romaria retorna à casa do Santo. E é nessa hora, em frente ao mastro de São Be-nedito que começa a encenação do Congo, que dura mais de duas horas. A guerra é o enredo principal, o que explica a ausência de mulheres na dança.

A encenação, que tem como protagonistas o Rei do Congo (vermelho) e o Rei Monarca (azul), é compos-ta de diálogos, danças e a guerra propriamente dita, a qual termina quando os dois reinos, vermelho e azul, selam a paz.

Uma cartilha da Divisão de Cultura de Cuiabá, da-tada de 05 de junho de 1981, guarda a transcrição das

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Jocelia Ferreira da Silva, 22 anos, mostra a rede tadicional de algodão, tecida pelas mulheres quilombolas da região do Mata Cavalo.

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O Mucuaxe toca o pandeiro com animação durante as longas cantorias e representações do Congo de Livramento.

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Seo Renato Diogo de Campos, 75 anos, Cururueiro de Mato Grosso que faz questão absoluta de seguir as tradições dos antigos. "Moda não é Cururu, Cururu é toada", afirma.

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músicas do Congo e também dos diálogos produzidos durante a apresentação. Os personagens mais impor-tantes, como o Rei do Congo, o Rei Monarca, Gene-ral, Príncipe, Duque e Mucuaxe são caracterizados por adornos diferentes que permitem identificá-los.

Antigamente havia uma pessoa responsável pela farda de todos os integrantes, hoje, infelizmente, a fal-ta de apoio faz com que cada dançarino seja responsá-vel pela sua própria vestimenta.

A importância do Congo como manifestação da cultura negra mato-grossense é imensurável. Além de Nossa Senhora do Livramento, só existe o Congo em Vila Bela da Santíssima Trindade, primeira capital do Estado. No intuito de preservar e incentivar a propa-gação da dança, já tramita na Assembleia Legislativa projeto de lei que declara a Dança do Congo como in-tegrante do Patrimônio Cultural do Estado. Caso vire lei, pode favorecer a busca por incentivos culturais.

De acordo com os festeiros, os custos para a rea-lização da Festa de São Benedito, que não tem fins lucrativos, ficam em torno de 35 mil reais, recurso ob-tido através de doações da própria comunidade. “Pen-so que temos que tratar bem o povo e rejuvenescer a festa. Tudo é para agradecer São Benedito, porque a

gente recebe graça”, afirma Cássio de Assunção. “Essa festa tem mais de cem anos, desde que me

entendo por gente eu participo. Ela foi passando de pai para filho. No passado era em Mata Cavalo, de lá foi pra Livramento, depois para o Cristo Rei (Bairro do município de Várzea Grande) e retornou para Li-vramento”, afirmou o rei perpétuo Quirino Sarat, 49 anos, quilombola, dono de bolicho e filho do seo Ce-sário Sarat.

Seo Quirino conta que seu pai realizava três festas: São Benedito, São Sebastião e Jesus, Maria e José (Sa-grada Família). “Se você vai fazer um negócio tem que ter fé”, observa ao contar que assumiu a responsabi-lidade pela Festa de São Benedito, junto com a irmã, Odália Domingas Sarat da Silva, rainha perpétua. Já as festas de São Sebastião e São José são realizadas pela outra irmã, Estevina Clementina da Cruz, em Mata Cavalo.

*Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso como requisito para a obtenção do título de Mestre em Educação na Área de Con-centração Educação, Cultura e Sociedade, Linha de Pesquisa Movi-mentos Sociais, Política e Educação Popular. Orientadora: Michèle Sato – Cuiabá - 2011

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Grupo de Dança Afro da Comunidade Quilombola do Mutuca - ACORQUIRIM.

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Festa da banana quilombolaA comunidade negra rural Quilombo Ribeirão da Mutuca foi o foco

principal da Festa de São Benedito em toda a região durante longos anos. Hoje, o principal atrativo da terra do seo Antonio de Mulato, é a banana. Banana que faz o doce, banana que faz o licor, banana que faz a farinha, banana que faz a bala, banana que faz a farofa e tantos pro-dutos mais.

Para viabilizar economicamente a região, a Associação da Comuni-dade (Arcoquirim) realiza há mais de 10 anos uma feira com produtos

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Barracão comunitário onde se celebra todo tipo de confraternização e acontecimento.Comunidade Negra Rural Quilombo Ribeirão da Mutuca-Livramento.

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típicos dos “papa-bananas”, como carinhosamente são chamados os livramentenses. Mais recentemente, há quatro anos, o dia de feira foi transformado em dia da Festa da Banana Quilombola, que atrai centenas de visitantes de vários municípios das redondezas.

Ao mesmo tempo em que a feira tem o objetivo de oportunizar uma fonte de renda às famílias quilom-bolas e dessa forma evitar o êxodo rural, ela traz em seu bojo a necessidade de afirmação da comunidade de forma positiva. “Quando se fala em quilombolas, só falam de conflitos, de luta pela terra. Por isso a gente faz essa festa, para contrapor essa informação e mos-trar que a gente trabalha, que a gente luta pela perma-nência na terra”, ressaltou a presidente da Associação, Laura Ferreira da Silva.

Os feirantes são todos quilombolas. Cada participan-te expõe seu produto feito, salvo raras exceções, com matéria prima da região. Isso explica a variedade imen-sa de produtos à base de banana e de babaçu. Além disso é possível encontrar redes artesanais, castanha de cumbaru torrada, biscoitos, geleias e licores variados.

A procura pela banana in natura também é grande. O produtor Bartulino Matinho dos Santos, que possui 5,6 mil pés de banana na região, conta que esse ano o prolongamento do período das chuvas ajudou a pro-dução. Entre as variedades produzidas, as que mais se destacam são a “salta velhaco” e a “da terra”. A banana nanica é produzida também, porém, em menor escala.

A produção é orgânica, ou seja, sem produtos quí-

micos. “A química é a água que Deus manda pra nós e a lua que regula bastante”, garante seo Bartulino que contabiliza um lucro mais ou menos de R$ 7 mil ao ano com a venda das bananas.

Mas na terra da banana também se planta mandio-ca, batata, mamão, cará, batata doce, tomate, quiabo, pepino, jiló e mais uma variedade de folhas e legumes. Com todas essas opções, é impossível sair da feira com as mãos vazias.

A festa acontece paralelamente à feira e oferece atrações culturais que buscam valorizar a tradição do povo nativo. Nesse contexto são realizadas várias apre-sentações como dança afro, cururu, siriri e samba de roda, entre outras.

“Comecei dançar cururu com 14 anos e só vou pa-rar quando eu morrer”, assegurou seo Renato Diogo de Campos, que aos 75 anos, além de dançar, fabri-ca viola de cocho e ganzá, principais instrumentos do cururu. Porém, com uma nostalgia que salta aos olhos, o cururueiro manifesta a preocupação com o abando-no da cultura tradicional. “A cultura tá morrendo por-que ninguém quer cuidar. Não dá oportunidade a nós e dá oportunidade a quem vem de fora”, lamenta.

A queixa do cururueiro é válida. No entanto, o sur-gimento de novos hábitos e preferências dentro da co-munidade é um processo natural, faz parte da integra-ção de culturas e abre horizontes e oportunidades. O importante é garantir espaço para que o tradicional e o novo possam se expressar de forma harmoniosa.

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Antonio Benedito da Conceição, conhecido por Antonio de Mulato, completou 107 anos no último dia 12 de junho. Pai de 18 filhos, o quilombola teve quatro esposas.

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Laura Ferreira da Silva, 35 anos, presidente da Associação da Comunidade Negra Rural Quilombo Ribeirão da Mutuca-Livramento

Bala de banana embrulhada na palha de banana, produto artesanal da comunidade Quilombola

Soldado do Congo de Livramento

Personagem da Festa de São Benedito em Livramento

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