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Revista Aproximação · da análise de um reputado discurso de Lísias, notório orador de então ± o que, no entanto, não compromete o cunho filosófico de sua empreitada, como

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Revista Aproximação – 2º semestre de 2013 – Nº 6

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Revista Aproximação (Revista eletrônica dos estudantes de graduação em Filosofia da UFRJ)

Volume 6 – Edição 2013/02

http://www.ifcs.ufrj.br/~aproximacao

A Revista Aproximação é uma publicação acadêmica eletrônica especializada em

Filosofia. Seu objetivo principal é veicular o trabalho de pesquisa dos graduandos da

UFRJ. Estamos abertos, entretanto, a qualquer proposta cujo principal interesse seja o

da pesquisa filosófica.

© Instituto de Filosofia e Ciências Sociais / Universidade Federal do Rio de Janeiro

Expediente – Comissão Editorial

Anna Figueiredo, Carmel Ramos, Edson Bezerra, Eduardo Lopes, Felipe Ayres de

Andrade, Guilherme Santos, Jean Ilg, Pedro Rhavel N. Teixeira.

Conselho Editorial

Carolina de Melo Bomfim Araújo, Celso Martins Azar Filho, Ethel Menezes Rocha,

Fernando José de Santoro Moreira, Franklin Trein, Guilherme Castelo Branco, Marco

Antonio Caron Ruffino, Marcus Reis Pinheiro, Maria Clara Dias, Mário Antônio de

Lacerda Guerreiro, Patrick Estellita Cavalcanti Pessoa, Pedro Costa Rego, Pedro Duarte

de Andrade, Rafael Haddock Lobo, Rafael Mello Barbosa, Ricardo Jardim Andrade,

Ulysses Pinheiro, Wilson John Pessoa Mendonça.

Contato: [email protected]

Índice

Editorial......................................................................................................................................... 3

Dissecando “Contra Eratóstenes” de Lísias à luz do modelo de Córax e do Livro I da República

de Platão......................................................................................................................................... 5

As sensações segundo a teoria das ideias nas Meditações Metafísicas de Descartes................... 17

Foucault: do poder centralizado ao poder microfísico.................................................................. 34

A relação entre a tipologia do forte e a moralidade do costume em Nietzsche............................ 48

A verdade enquanto alétheia e sua dinâmica entre Heidegger e Lacan........................................ 56

Foucault: das práticas do suplício ao surgimento da prisão...........................................................62

Sobre a obra de arte: algumas considerações a partir de Hannah Arendt.......................................76

Nietzsche e a retomada do projeto crítico kantiano: uma leitura deleuzeana.................................88

O problema dos qualia na filosofia da mente..............................................................................103

Indiscernibilidade quântica - um problema para o nominalismo.................................................122

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EDITORIAL

Graduandos de filosofia também comemoram o final do ano. É aquele período

mágico no qual nos permitimos esquecer os prazos, os trabalhos, as leituras – tudo aquilo

que amamos justamente por nos ser infindável e inescapável – e nos permitimos

congregar com os demais, na vã esperança de que, por alguma razão, é lícito aproveitar a

vida sem muitos problemas na cabeça.

Mas, contra esses diletantes de ocasião, nós da Aproximação apresentamos nossa

edição 2013.2! E agora com mais artigos! Tomando carona nos bons ventos que guiaram

nossas empreitadas esse ano, na qual, não só reerguemos a revista, como também

contemplamos o IX Seminário de Graduação em Filosofia da UFRJ com uma edição

extraordinária própria, queremos encerrar esse semestre num bom tom. Que essa edição

– a sexta enfim - nos permita comemorar as pequenas vitórias do cotidiano, mas sem

muito alarde – o que sempre fere a circunspecção que nos é devida.

Longe de nós tentar prever o futuro e atentar contra o bom Aristóteles, mas o

espírito do fim de ano nos contagia e nos impele a fazer alguns planos para 2014 que nos

assoma logo em frente. Não só abriremos uma nova chamada para trabalhos em meados

do próximo semestre – a fim de manter nosso caráter de bi-anualidade – como também já

ensaiamos os primeiros movimentos do próximo evento de graduação da UFRJ – o qual,

ao que tudo indica, também terá o seu exemplar próprio – a tempo de abrir o período

letivo numa nota vitoriosa.

Por fim, algumas rápidas palavras sobre os trabalhos que compõem esta edição.

Gustavo Luntz recria o contexto das disputas jurídicas e literárias da Antiguidade a partir

da análise de um reputado discurso de Lísias, notório orador de então – o que, no entanto,

não compromete o cunho filosófico de sua empreitada, como bem garante o seu

embasamento em nomes como o de Platão e Aristóteles. Já na Modernidade, contamos

com Juliana Martins, que toma para si o difícil tema das ideias materialmente falsas nas

Meditações de Descartes, mas não sem propriamente contextualizá-lo a contento para o

leitor incauto. Em seguida, Evandro da Mata e Edimar Brigido, num cotejo arrojado,

disporão de dois autores insuspeitos: Hobbes e Foucault, a fim de analisar o conceito de

poder deste último com maior minúcia. Roberta Saavedra, por outro lado, se foca apenas

em um pensador, Nietzsche, atentando para as dificuldades internas de sua obra, por via

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do exame comparado de dois sistemas morais que o próprio Nietzsche não parece

tematizar explicitamente, a saber, a relação entre a moralidade dos costumes, em Aurora,

e a moralidade forte na Genealogia da Moral. Agora inseridos no panorama da

contemporaneidade, Bruno Abilio e Eliene Gomes explorarão os diálogos profícuos que

a filosofia entreteu com a psicanálise no século XX, se demorando em Heidegger e Lacan

para tanto. Kairon Araujo agracia mais uma vez nossas páginas, mas se detem, por ora,

na filosofia de Foucault – que dá as caras mais uma vez nessa edição –, a fim de entender

a sua posição sutil sobre os mecanismos de punição e as instituições hodiernas. Rhavel

Teixeira argumenta por uma apreciação relevante da arte na filosofia de Hannah Arendt,

na contracorrente de interpretações mais imediatas sobre o estatuto da estética em sua

obra. Nietzsche retorna com Leornardo Oliveira, que se mune dos elegantes comentários

de Deleuze para fazer um Nietzsche "crítico" no sentido kantiano da palavra – mas que

só com Nietzsche ganharia sua dimensão plena. André Sant'anna, outro articulista

recorrente, situa-nos nas veredas atuais das discussões entabuladas pela filosofia da

mente, tomando, para tanto, o já clássico problema dos qualia. Por fim, Pedro Junqueira

se voltará para física quântica com pretensões filosóficas. A empreitada ambiciosa

consiste numa refutação qualificada de uma forma de nominalismo, num dos movimentos

mais autorais que nossa publicação, por enquanto, comporta. Boa leitura

Comissão Editorial – Revista Aproximação

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DISSECANDO “CONTRA ERATÓSTENES” DE LÍSIAS À LUZ DO

MODELO DE CÓRAX E DO LIVRO I DA REPÚBLICA DE

PLATÃO

Gustavo Adolfo Machado Cunha Lunz

Graduando em Filosofia da UFRJ

Resumo: O presente artigo trata de identificar as partes do discurso judiciário “Contra

Eratóstenes” proferido por Lísias, à luz do modelo retórico estabelecido por Córax.

Localizada temporalmente a ocasião em que foi proferido e articulado com outros fatos

da história de Atenas, algumas conexões entre o texto e os Livros I e II da República de

Platão são traçadas, servindo-se de hipótese levantada por Jacob Howland.

Palavras chave: Lísias. Córax. República. Platão. Jacob Howland.

Abstract: This paper search to identify the parts of the judiciary speech “Against

Eratosthenes” uttered by Lysias, observing the rhetorical model established by Corax.

After pointing the moment of the utterance, some connections between the text and Books

I and II of the Plato’s Republic are traced, making use of the hypothesis raised by Jacob

Howland in another work.

Keywords: Lysias. Corax. Republic. Plato. Jacob Howland.

1- Objetivos

O objetivo do presente trabalho é a análise do texto retórico referido no título, do

ponto de vista de sua estrutura, inserido que está em modelo mais primitivo dos discursos

judiciais, com referências pontuais e inevitáveis ao Livro I da “República” de Platão. Para

tanto, lança-se mão de alguns textos clássicos imprescindíveis (a própria “República” e

algo da “Retórica” de Aristóteles, ainda que como velada referência) além da valiosa

bibliografia secundária sugerida: artigo de Jacob Howland e capítulo escrito por López

Eire na “Historia de la Literatura Griega”.

Em nome de desejável síntese, deixar-se-á de tratar com extremada profundidade

cada uma das múltiplas passagens em que os textos da Antiguidade estão em interlocução.

Cuidar em demasia de detalhes dos textos acabaria por comprometer uma correta

delimitação da estrutura do discurso “Contra Eratóstenes”, de acordo com o que seriam

os preceitos de Córax, parecendo este um norte mais interessante e adequado.

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2- Localização Temporal do Discurso “Contra Eratóstenes” e umas poucas notas

biográficas acerca de seu autor, Lísias

“Contra Eratóstenes” é um discurso de acusação e, portanto, uma categoría,

proferido por ocasião da restauração democrática ateniense após a Tirania dos 30, período

particularmente traumático1. Acredita-se assim que tenha sido proferido por volta dos

anos 404/403 a.C. Eratóstenes inscrevia-se no número dos trinta déspotas derrubados pela

renovada democracia, e dentre os diversos crimes que Lísias lhe atribui, tem-se como

principal o assassínio de Polemarco, seu irmão, interlocutor de Sócrates no Livro I da

“República”.

Lísias2, por sua vez, é considerado o maior dos logógrafos3. Meteco siracusano

em Atenas, teria estudado Retórica em Turi com Tísias, discípulo de Córax (a quem

tradicionalmente atribui-se a invenção da técnica). Embora tenha obtido a devolução de

boa parte da fortuna familiar arrebatada pelos tiranos e pelo próprio estado ateniense, teve

na logografia valiosa fonte de renda.

“Contra Eratóstenes” foi o único discurso proferido pelo próprio Lísias no breve

período após a restauração democrática em que decreto de Trasíbulo conferiu-lhe a

cidadania. Ao que se sabe, teria sido esse o único discurso proferido por ele mesmo diante

dos atenienses. Com a invalidação do decreto, ele volta à condição de estrangeiro e tem

na escrita dos discursos sua atividade política possível, indireta e, lembremos, rentável.

Essa busca de ganho é retratada e bastante explorada por Platão quando se refere a Lísias.

Assim é que, em “Fedro”, Lísias só se expressará através de uma carta de amor

(em verdade, um discurso anti-erótico). Ele não fala propriamente, expressa-se por

escrito. Na “República”, como veremos, seu silêncio é eloquente diante da descrição

1 A Tirania dos Trinta foi um governo oligárquico de Atenas composto por trinta magistrados chamados

tiranos, que sucedeu a democracia ateniense ao final da Guerra do Peloponeso, conflito armado entre Atenas

e Esparta vencido por esta última e que se travou entre 431 e 404 a.C.. O regime durou menos de um ano, em 404 a.C.. Mais do que as vidas perdidas na guerra, Atenas viu centenas de seus cidadãos condenados à

morte pelo novo regime. Milhares exilaram-se à época, esvaziando a outrora pujante cidade grega. 2 De acordo com Dionisio de Halicarnassos e biografia atribuída a Plutarco, Lísias nasceu em 459 AC de

acordo com a tradição de que teria alcançado e até ultrapassado a idade de 80 anos. A data é obtida

flagrantemente pela contagem decrescente da fundação de Turi (444 AC), ante a tradição de que Lísias teria

lá chegado com a idade de 15 anos. Críticos modernos geralmente fixam tal data em 445 AC e determinam

a ida a Turi por volta de 430 AC. Sua obra é bastante extensa e diversos discursos nos foram deixados.

Debra Nails, The People of Plato (Hackett, 2002), p. 190, e S.C. Todd, "Lysias," in Oxford Classical

Dictionary 3rd ed. (1996). 3 Logógrafos eram pessoas que escreviam os discursos a serem lidos perante a assembleia pelos clientes.

As acusações e defesas não podiam ser empreendidas por terceiros, mas pela própria parte em litigio.

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negativa de justiça (mais do que indicar o que é a justiça, ficamos diante de várias coisas

que ela não pode ser). Como bem destaca Howland4, é interessante que na obra platônica

a voz de Lísias só assim se possa ouvir. Foi mesmo indiretamente que ele se fez ouvir

durante sua vida.

Esses são os dados biográficos de Lísias. Outros aspectos de sua personalidade,

crenças e intenções que merecem destaque estão imbricados nas conexões do discurso e

da obra platônica. Interessantes que são, devem ser abordados no momento próprio. Mais

importante que datas propriamente, é perceber a sucessão dos eventos em jogo na relação

entre os fatos históricos, o discurso proferido, a composição da “República” e data

dramática escolhida por Platão para seu desenrolar. O diagrama abaixo é importante para

a percepção das implicações dos textos.

3- Algumas notas acerca das origens da Retórica

Localizado temporalmente o discurso, naturalmente deveria passar a tratar de suas

partes componentes e articulação do conteúdo. No entanto, parece imprescindível que

sejam lançadas algumas notas sobre as origens da retórica e como ele se insere no seu

desenvolvimento.

Sem fazer grandes digressões, López Eire5 assinala que a oratória parece a

evolução natural daquilo que liga ao pensamento mágico, a uma mântica da palavra que

seria capaz de atingir diretamente o alvo da referência e modificar a realidade em

obediência aos desígnios do operador.

Na Antiguidade, palavras são presságios, agouros e também instrumentos da

realização da vontade daquele que as profere. Se ruins, precisam ser esconjuradas,

4 “Plato’s Reply do Lysias: Republic I and II and Against Eratosthenes”, Jacob Howland, in The American

Journal of Philology, Vol. 125, No. 2 (Summer, 2004), pp. 179-208, Published by: The Johns Hopkins

University Press. Stable URL: ttp://www.jstor.org/stable/1562196. 5 “La oratória”, López Eire; Capítulo XVII em Historia de la Literatura Griega”, coordenado por Juan

Antonio López Férez – Madrid, Ediciones Catedra, 1988.

Retórica de Córax

Data dramática da

República

Tirania dos 30

Derrota de Atenas

Restauração democrática Lísias

profere"Contra Eratóstenes"

Platão escreve a República

Retórica de Aristóteles

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“levadas pelo vento”, para que sejam impedidas de impressionar as referências reais. No

pensamento primitivo, não são etiquetas, mas as própria coisas referidas que estão em

jogo no discurso.

Palavras embelezadas poderiam impressionar a vontade dos deuses (era esse, entre

outros, o poder/função dos poetas), mas logo percebeu-se, eram capazes também de

produzir “pathos” na assistência e de algo mais: o convencimento dos ouvintes.

Interessante perceber como a boa condução do discurso é apreciada e necessária até

mesmo em regimes tirânicos, disso sendo exemplo diversas passagens da “Ilíada”. Longe

de se fechar em copas, o rei tem o costume de ouvir seus nobres conselheiros, guerreiros

tão tenazes e belicosos como igualmente eloquentes.

As referências que sustentam essa linha evolutiva são conhecidas nossas:

Empédocles, exaltando o papel dos poetas; Homero, referindo os conselhos dos reis; e

Górgias, com seu “Elogio de Helena”, num mais recente exemplo de como já era

apreciada a habilidade de construir discursos despidos da forma de poemas.

Ao siracusano Córax é atribuída a invenção da oratória. A verossimilhança é tida

como elemento imprescindível de um discurso destinado a convencer, ao contrário do

singelamente verdadeiro. Importa mais ser crível que real6.

Segundo seu modelo, um discurso deveria ser formado de quatro partes (proêmio,

narração, testemunhas, epílogo) e, como dito, ser capaz de convencer. Manuais e volumes

de discursos hipotéticos surgidos após (provavelmente os paradigmas de Lísias)

certamente seguiram esse modelo. A propósito, o ensino de retórica dava-se também por

manuais que estabeleciam as regras a serem seguidas e por coleções de exemplos, alguns

baseados em casos reais e outros aparentemente em meras hipóteses.

4- Qual o modelo seguir, o de Córax ou o de Aristóteles?

6 López Eire refere anedota atribuída a Córax segundo teria ele perguntado seus alunos como deveriam agir

dois homens em litígio, quem deveria ser verdadeiro perante o tribunal, sendo a vítima homem forte e

covarde e o agressor homem franzino e destemido. Após ouvir as respostas, teria advertido que nenhum

dos dois deveria ser fiel aos fatos. Para convencer os juízes, o homem forte deveria narrar que o agressor

estava acompanhado de outras pessoas que lhe aplicaram uma surra, enquanto o homem franzino mas

agressivo deveria sustentar sua fragilidade e incapacidade de bater em oponente mais forte. Importante seria

convencer… López Eire, op. cit., pg. 744.

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Constata-se facilmente que o modelo estabelecido por Córax é bastante

simplificado em relação àquele de Aristóteles em sua “Retórica”7. Certamente Aristóteles

estabeleceu seu perfil de discurso judicial a partir da observação de discursos havidos

mais recentemente, já distantes daquilo primitivamente preconizado por Córax e

observado numa Atenas que se abria às inovações literárias da Jônia após sair-se vitoriosa

nas guerras médicas.

O modelo do Livro III da “Retórica” dividindo o epílogo em quatro partes serviria

mal para o exemplo tão longínquo. Toma-se assim uma organização simples contendo

proêmio, narrativa, testemunhas, epílogo, o que permitirá ágil e eficiente visão do texto.

5- Anatomia do discurso objeto de análise. Proêmio, Narrativa, Testemunhos e

Epílogo

“Contra Eratóstenes” é um discurso acusatório contra um tirano que prendeu,

roubou e finalmente determinou a morte de Polemarco por cicuta. Considerada a

gravidade da conduta, a pena que lhe é prevista, sabemos que se trata de uma “graphé”,

acusação escrita (categoría, por oposição às analogias, discursos defensivos).

Trata-se de um discurso de vingança – pura e retributiva – aliada à expressa

ameaça de que o acusado poderia voltar a tripudiar sobre a polis caso se ficasse livre da

pena capital. Magnificamente composto e proferido, teria levado às alturas a fama de

Lísias, apesar do insucesso da empreitada de punição do réu. As boas relações do acusado

com o partido democrata garantiram-lhe a benevolência dos cidadãos reunidos em

assembleia.

É forçoso lembrar do processo contra Sócrates, como podem ter pesado para sua

condenação suas relações pessoais e conhecida influência sobre os mais destacados dos

tiranos (Crítias e Alcebíades). Naquela democracia restaurada, havia espécie de anistia

negociada. Esses processos se valiam de pequenas brechas na cláusula de perdão

7 “O epílogo compõem-se de quatro partes. A primeira consiste em predispor o auditório a nosso favor e

contra nosso opositor; a segunda parte cumpre a função de amplificar ou atenuar o que foi dito; à terceira

cabe a função de estimular as paixões do auditório; finalmente, a quarta consiste em fazer uma

recapitulação.” Aristóteles, “Retórica”, 1419b, tradução de Edson Bini – São Paulo, EDIPRO, 2011, pg.

288.

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estabelecida quando do armistício que sucedeu a vitória dos democráticos sobre o Regime

dos 30.

É curto o proêmio do discurso e impressiona o paralelismo que se pode encontrar

com a “Apologia”8. Ambos os oradores fazem referência à sua pouca prática na defesa de

causas perante o tribunal, brandem com a verdade, fidedignidade aos fatos desde seu

início. Seguindo aquilo que indicou Córax, o proêmio, assim como todo o resto do

discurso, pretende apelar à emoção de uma cidade recentemente dilacerada por uma

custosa derrota militar e por um sanguinário período de perseguições internas. É

pertinente a reprodução9:

Difícil não me parece, senhores juízes começar este libelo; sim, terminá-lo.

São em tão grande número e de tamanho vulto os crimes dos Trinta, que nem

mentido se poderiam assacar mais terríveis que os reais, nem, querendo dizer

a verdade, referir todos; por força, ou havia de se cansar o acusador, ou de se

esgotar o tempo. Vai-nos acontecer o contrário do que ocorria até hoje. Antes,

cumpria aos acusadores demonstrar a razão do ódio votado aos réus; hoje, é

mister indagar dos réus a razão do ódio à pátria, que os acoroçoa a cometer tais

crimes contra ela. Não digo isso por me faltarem pessoalmente razões de ódio

e desgraças; todos nós temos de sobra motivos de ordem particular e de ordem pública para exacerbação. Quanto a mim, senhores juízes, jamais advoguei

uma causa, própria ou alheia; se estou acusando esse indivíduo, fui

constrangido a isso pelas circunstâncias; por isso, muitas vezes me vejo

assaltado de profundo desalento, temeroso de, por inexperiência, apresentar,

em meu nome e no de meu irmão, uma acusação não proporcionada ao crime

e ineficiente. Tentarei, não obstante, pôr-vos ao corrente de tudo desde o início,

com a possível concisão.

A partir daí, Lísias inicia a narrativa de como sua família veio a se mudar para

Atenas e como foi vítima da perseguição dos Trinta (passos 4 e seguintes).

Como apontado por Howland10, Lísias trata de caracterizar Eratóstenes e os

demais integrantes do grupo dos trinta com os seguintes traços próprios do tirano:

8 “Mas uma coisa vos peço Atenienses, e insisto neste ponto: se me ouvirdes defender-me com as mesmas

palavras que costumo usar, quer na praça pública, junto aos balcões dos mercadores, onde muitos de vós

me tendes escutado, quer noutros lugares, não vos admireis nem protesteis por causa disto. É que minha situação é a seguinte: pela primeira vez compareço perante um tribunal, depois de setenta anos de idade.

Encontro-me, por isso, alheio de todo o gênero de linguagem aqui empregado...” “Apologia”, Platão, 17c,

17d. “Apologia de Sócrates. Críton.”, tradução de Manuel de Oliveira Pulquério, Lisboa, Edições 70, 2007. 9 “Contra Eratóstenes” em “Eloquência Grega e Latina”; tradução, introdução e notas liminares de Jaime

Bruna – São Paulo, Editora Cultrix, 1968, pg. 23. A edição compulsada para a elaboração do trabalho se

ressente da falta de referencias aos passos, orações do grego original. Para não tornar cansativa a leitura,

deixar-se-á de copia-lo quando for necessário referir outras partes relevantes do discurso, inserindo

remissões às marcações encontradas na cópia em espanhol encontrada em

http://pt.scribd.com/doc/89096162/Lisias-Contra-Eratostenes-Alma-Mater. O proêmio corresponde aos

passos 1 a 3. 10 Howland, op. cit..

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- moviam-se sob a máscara da justiça, como se a cidade livrassem de grande

ameaça;

- serviam-se da autoridade pública para benefício privado, pessoal;

- querendo enriquecer a qualquer custo, para isso cometiam todos crimes pelos

quais ficaram conhecidos, despojando preferencialmente metecos ricos de seus

bens, sem expediente para defesa, sem qualquer “due process of law”, formal e

muito menos material;

- não temiam aos deuses (outra referência comum ao julgamento de Sócrates);

- não respeitavam os serviços fúnebres nem mesmo os limites da vida privada

(querela de Antígona...);

É ali que Lísias, sempre incluindo Eratóstenes no conjunto dos Trinta, relata a

prisão de certo número de metecos ricos juntamente com dois pobres, apenas no interesse

de travestir sua injustiça e cobiça sobre seus bens. A justificar seus atos, a suposta ameaça

que representariam para Atenas. O martírio de Polemarco é retratado com detalhes: como

foi preso por Eratóstenes pessoalmente na rua e levado para casa onde foi despojado de

seus bens, inclusive joias pessoais da esposa; como os bens que lhes eram tirados para

reforço do erário, resultaram no enriquecimento pessoal dos tiranos; como foi-lhe

ordenado tomar cicuta sem prévio julgamento nem mesmo um lençol e travesseiro

mortuário para o enterro.

Mais que isso, o orador relata que casamentos foram impedidos por ordem dos

tiranos; que, fingindo acreditar, juravam pelos deuses garantir liberdade a quem os

subornassem e ainda assim descumpriam sua palavra (é apenas com sua habilidade e sorte

que Lísias escapa da morte certa, apesar de haver pago mais do que o combinado para

livrar-se da execução). Tais fatos rapidamente disparados constituem a narrativa.

De interesse que Lísias interrogue o réu, que, em sua defesa, afirma que cometeu

esses atos por temor de morte nas mãos dos demais tiranos. Após desmascarar o acusado

e afirmar que os mortos, que o morto Polemarco clama por vingança, o acusador diz que

não precisaria prosseguir por já haver demonstrado a necessidade da condenação de

Eratóstenes à morte, aí encerrando-se a narrativa (passos 37/42).

A parte seguinte é concernente à oitiva de testemunhos. O texto que chegou à

contemporaneidade não dispõe de nada acerca do conteúdo dos depoimentos. A cada

testemunha ouvida, seguem-se comentários do próprio Lísias a secundar ou contrastar as

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versões e circunstâncias que surgiam acerca da conduta do acusado. É o terceiro e extenso

momento do discurso judiciário, que vai do passo 43 ao passo 89.

O discurso é mesmo judiciário, pouco jurídico, por se amoldar mais à uma práxis

judicial, com a formalidade da administração da justiça, pouco ou nada se preocupando

com a indicação das leis violadas. Ressoa óbvio que o julgamento é político. Não há aqui

uma causa cível onde se discute entrega de mercadorias, termos concretos de um contrato

entre partes, mas a violação indistinta de uma série de regras, costumes que não precisam

ser escritos para impor-se como cogentes.

Voltando ao discurso propriamente dito, percebe-se a transição dos comentários

aos últimos dos depoimentos para a introdução do epílogo no momento em que se

conclama os juízes a manifestarem sua visão dos fatos tomando o partido das vítimas e

da cidade pela condenação à morte do réu ou a se alinharem aos tiranos no caso de sua

absolvição (passos 90/91).

Longo também se mostra o epílogo quando comparado ao proêmio. Seguindo o

que orienta Córax11, novamente o tom emotivo é realçado para crescente reclame de

condenação e vingança das vítimas injustamente ceifadas pelos tiranos. A multidão dos

delitos é novamente apontada, assim como no início do discurso, numa retomada de sua

ideia geral. Assim como ali se fez, é válida a transcrição dos últimos passos do texto, que

falam por si só e demonstram tais assertivas:

Não quero, porém falar do que aconteceria, se nem posso referir quanto

fizeram os Trinta; não bastaria para isso um ou dois acusadores; é tarefa para

muitos. Contudo, ponto todo meu ardor em lastimar os templos e objetos de

culto, por eles vendidos ou maculados por sua presença; a cidade, por eles

apequenada; os arsenais, por eles destruídos, e os mortos; como a estes não

pudestes amparar em vida, defendei a sua causa na morte. Eles, imagino, estão

ouvindo a nossa voz e vos conhecerão pelo voto que derdes; por quantos de

vós absolverdes os Trinta, eles considerarão condenados à morte e, por quantos

punirdes esses indivíduos, eles se considerarão vingados.

Concluo aqui meu libelo. Vós ouvistes, vistes, sofrestes; ele está em vossas

mãos; julgai-o.12

11 Os detalhes da arte do discurso e sua divisão em quatro partes teriam sido reunidas em uma obra por seu

discípulo Tísias. O proemio é destinada a conseguir a atenção dos membros do júri e captar sua

benevolência. A narração o momento adequado a expor fatos com claridade e concisão. A demonstração o

momento de trazer as provas e fazer considerações sobre os fatos expostos no momento precedente. E

finalmente o epílogo o momento em que se faria uma síntese da demanda, das provas produzidas e quando

se procura provocar a emoção dos julgadores. López Eire, op. cit., pg. 744. 12 “Contra Eratóstenes” em “Eloquência Grega e Latina”; tradução, introdução e notas liminares de Jaime

Bruna – São Paulo, Editora Cultrix, 1968, pg. 37. O trecho corresponde aos passos 99 e 100.

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7- Interlocução com a “República”

Na seção precedente, foram identificadas as partes componentes do libelo de

Lísias. Em instigante artigo, Jacob Howland trata de contrapor o conteúdo do discurso

com numerosas passagens dos Livros I e II da “República” que parecem trazer evidentes

considerações de Platão acerca de Lísias e da arte que manejava com maestria, além da

conhecida desconstrução do discurso anti-erótico em “Fedro”.

Tudo está a indicar que Platão carregou mesmo nas tintas, a ponto de ser desleal

com a tragédia que se abateu sobre a família dos ricos estrangeiros que se radicaram em

Atenas. Talvez tenha passado ao largo da singeleza de uma “não-carta de amor”, vã

tentativa de ocultar o indisfarçável. Inveja da arte? Ciúmes do sucesso obtido pelos

retóricos? Em certa medida, parece que sim.

Rememorando Polemarco na “República”, temos que todo o esforço do Sócrates

é o da desconstrução da sentença de Simônides papagaiada pelo rapaz que se quedará

vítima dos trinta tiranos13. Antes disso tem-se Céfalo afirmando que sua riqueza

auxiliava-o com a Justiça. O terrível destino de Polemarco (“herdeiro do discurso

paterno”14), de todos conhecido por ocasião da escrita da “República” desmente o velho,

numa ironia do destino que beira o mau gosto, caso inteiramente inventada.

Há ainda uma passagem em que ele se levanta levando um travesseiro, cioso de

seus deveres e orgulhoso de sua riqueza. É essa riqueza que atrairá a desgraça sobre seu

filho Polemarco, a quem nem mesmo um travesseiro mortuário será permitido. Há muitas

outras passagens significativas no texto de Howland, a quem se remete a leitura.

No entanto, considerando a busca incessante da justiça que atravessa a

“República” de Platão, não é esse o aspecto fundamental de aproximação de seu texto

com a categoría15 de Lísias. Há um contraste maior e mais fundamental, atinente à visão

da vítima e do querelante acerca de tal valor fundamental. Assim como Lísias coloca na

13 “Fala então, disse eu, já que és quem vai herdar nossa discussão... Quanto ao que disse Simonides sobre

a justiça, em que achas que ele está certo? – Em dizer que é justo devolver a cada um o que lhe é devido,

disse ele. Quando diz isso, parece-me, ele tem razão”. “República”, Platão, 331e. “A República”, tradução

de Anna Lia Amaral de Almeida Prado – São Paulo, Martins Fontes, 2006, pg. 9. 14 “República”, Platão, 331d. “A República”, tradução de Anna Lia Amaral de Almeida Prado – São Paulo,

Martins Fontes, 2006, pg. 8. 15 Diz-se categoría do discurso judiciário de acusação. Apologia o discurso de defesa, como o proferido

por Sócrates por ocasião de seu julgamento em Atenas.

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boca do morto Polemarco o clamor da vingança, Platão faz dele o interlocutor harmonioso

com Sócrates (após certa discussão, é claro), no sentido de que a justiça não se compraz

com essa mesma vingança.

Lembremos que, no Livro I, Polemarco afinal concorda com Sócrates que o

homem justo não faz o mal sequer aos inimigos16. A justiça é a virtude humana e não tem

o condão de piorar os homens, mas de melhorá-los. O mal proporcionado ao inimigo teria

o efeito de piorá-lo e não poderia ser assim dela oriundo.

Ora, Platão faz isso manipulando habilmente a data dramática para antes da

perseguição a Polemarco e assim parece desmontar a verossimilhança da acusação, ao

passo que também coloca Lísias silente na mesma cena. O Livro I da “República” parece

dizer: Polemarco jamais clamaria por vingança, Lísias sabe disso, esteve lá e mente ou

muito pior: não compreendeu que a justiça não se faz com o retribuir mal com mais mal.

Por que não entendeu nada? Por força de sua equivocada trajetória em contraste

com o caminho filosófico tomado por Polemarco. Tornando-se logógrafo/retórico parece

ter desprezado a efetiva busca verdade para privilegiar a lucratividade de sua atividade.

Há mais e, aqui, voltamos a referir o diálogo “Fedro”. Lísias é aquele que não ama

(ou que diz que não ama; é aquele que se envergonha de amar) e por isso seria incapaz de

voltar-se para o mais alto17. Se não ama é incapaz de alcançar o conhecimento, diria

Platão. Mais que isso, estabelece seu foco na vantagem que possa tirar de tudo o que faz,

inclusive nas relações amorosas. Platão parece querer retratá-lo no “Fedro” como um

prostituidor/prostituído que não merece crédito.

É forte a assertiva, mas se voltarmos à “República” tendo tudo isso em mente,

percebemos como as indiretas (nem tanto) referências a Lísias têm como alvo primário o

papel da retórica e sua incapacidade de proporcionar ao homem um efetivo bem. A

16 “Mas, com a justiça, os homens justos são capazes de tornar os outros injustos? Ou, falado de maneira

mais geral, com a virtude os bons são capazes de tornar maus os outros? – Mas é impossível! – Não é, creio, tarefa do calor o tornar frio, mas o seu contrário. (...) – Ah! Não é tarefa do homem justo, Polemarco,

prejudicar nem o amigo nem a nenhum outro, mas o do seu contrário, o homem injusto. – Parece-me

Sócrates verdade o que dizes. – Ah, Se alguém afirma que é justo devolver a cada um o que lhe é devido, e

se para ele isso significa que aos inimigos, da parte do homem justo, o devido é causar-lhes prejuízo, mas

aos amigos prestar ajuda, não seria sábio quem o diz, pois sua afirmação não é verdadeira”. “República”,

Platão, 335d/335e. “A República”, tradução de Anna Lia Amaral de Almeida Prado – São Paulo, Martins

Fontes, 2006, pg. 16. 17 “Sabes em que situação me encontro, como penso que já te falei nas vantagens para ambos de realizarmos

isso. Tenho que minhas pretensões não poderão frustrar-se , justamente por eu não pertencer ao número de

teus apaixonados...”. “Fedro”, Platão, 231A. “Fedro” tradução de Carlos Alberto Nunes. Belém, Ed. UFPA,

2011.

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comparação do papel e efeito da culinária com o objetivo e efeitos da Medicina para

enaltecer a última e relegar à primeira o papel de apenas seduzir os sentidos, possui óbvio

correlato entre a retórica e a Filosofia18.

A retórica operada por Lísias teria o mesmo papel da culinária, só que dirigida à

alma. Seduz mas não beneficia. Lísias é alguém incapaz de proporcionar benefício à alma

dos ouvintes com sua arte. Apenas seduz, sem propiciar conhecimento, ao contrário do

filósofo.

8- Conclusões

Diante das considerações acima estabelecidas, pode-se concluir que:

1. a categoría de Lísias insere-se na tradição retórica da Antiguidade Clássica

seguindo uma conformação mais arcaica ditada por Córax, sendo facilmente

identificáveis suas quatro partes (proêmio – 1/3; narrativa 4/42; testemunhos –

43/89; epílogo 90/100);

2. seguindo essa tradição que tem origens no pensamento mágico e no poder que se

atribuía (e ainda se atribui) ao simples proferir de palavras, Lísias buscou construir

seu discurso explorando a carga emotiva dos fatos tratados e a verossimilhança de

seus argumentos com o fim de produzir “pathos” na assembleia e obter seu

convencimento.

3. numerosas são as referências ao discurso de Lísias nos Livros I e II da “República”

e no “Fedro” de Platão, que nunca lhe disponibiliza o uso da palavra por voz

própria em sua obra.

4. a manipulação da data dramática da “República” foi conscientemente operada por

Platão para desconstituir toda a verossimilhança do argumento emocional inserto

na categoría de Lísias.

5. o esforço de Platão, mais do que se dirigir a desmistificar a fama do logógrafo

irmão de Polemarco, está centrado na disputa entre a Filosofia e a Retórica pelo

papel de arte capaz de alcançar efetivo conhecimento e acessar a Verdade.

“18 “República”, Platão, 332c. “A República”, tradução de Anna Lia Amaral de Almeida Prado – São Paulo,

Martins Fontes, 2006, pg. 10.

Revista Aproximação – 2º semestre de 2013 – Nº 6

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Bibliografia

“Retórica”, Aristóteles; tradução, textos adicionais e notas de Edson Bini – São Paulo,

EDIPRO, 2011.

“Contra Eratóstenes” em “Eloquência Grega e Latina”; tradução, introdução e notas

liminares de Jaime Bruna – São Paulo, Editora Cultrix, 1968.

“La oratória”, López Eire; Capítulo XVII em Historia de la Literatura Griega”,

coordenado por Juan Antonio López Férez – Madrid, Ediciones Catedra, 1988.

“Plato’s Reply do Lysias: Republic I and II and Against Eratosthenes”, Jacob Howland,

in The American Journal of Philology, Vol. 125, No. 2 (Summer, 2004), pp. 179-208,

Published by: The Johns Hopkins University Press. Stable URL:

ttp://www.jstor.org/stable/1562196.

“Contra Eratóstenes, El que fué de los Treinta, que pronunció el propio Lisias”, tradução

espanhola de autoria desconhecida, encontrada em

http://pt.scribd.com/doc/89096162/Lisias-Contra-Eratostenes-Alma-Mater, acesso em 25

de novembro de 2012.

“A República”, tradução de Anna Lia Amaral de Almeida Prado – São Paulo, Martins

Fontes, 2006.

“Apologia de Sócrates. Críton”, tradução de Manuel de Oliveira Pulquério, Lisboa,

Edições 70, 2007.

“Fedro”, Platão, tradução de Carlos Alberto Nunes. Belém, Ed. UFPA, 2011.

Recebido: 02/2013

Aprovado: 06/2013

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AS SENSAÇÕES SEGUNDO A TEORIA DAS IDEIAS NAS

MEDITAÇÕES METAFÍSICAS DE DESCARTES

Juliana Abuzaglo Elias Martins

Mestranda em Filosofia do PPGLM/UFRJ

Resumo O presente texto tem como tema as sensações, ou as ideias dos sentidos.

Procuraremos tratar aqui da maneira como o filósofo René Descartes problematiza e/ ou

se utiliza deste assunto nas Meditações Metafísicas, no sentido de esclarecer seus

diferentes aspectos e modos de tratamento ao longo dessa obra. Assim, analisaremos

algumas passagens das Meditações nas quais o filósofo trata dos sentidos. A ênfase será

sobre as Meditações Terceira e Sexta, onde ocorre respectivamente, a introdução do

conceito de ideia materialmente falsa e o tratamento das ideias dos sentidos como fonte

de certos tipos de conhecimentos.

Palavras-chave: Descartes. Ideias. Sentidos.

Abstract: The present paper has as its theme, sensations or ideas of sense. We work here

in the way the philosopher René Descartes discusses and / or uses this theme in his

Metaphysical Meditations, in order to clarify its different aspects and modes of treatment

throughout this book. Therefore, we will analyze some passages of the Meditations in

which the philosopher investigates the senses. Our emphasis will be on the Third and

Sixth Meditations, in which occurs respectively, the introducing of the concept of material

false ideas and the treatment of sense ideas as being a source of certain types of

knowledge.

Keyword: Descartes. Ideas. Senses.

1 - A questão dos sentidos nas Meditações

Não seria de todo correto afirmar que a obra Meditações Metafísicas1 possui como

tema principal ou mesmo como objetivo principal, a problematização dos sentidos, ou, da

percepção sensorial. Contudo, é inegável que ao ler a obra, percebe-se que tal ponto se

faz presente em momentos importantes do texto. A Meditação Primeira, Segunda,

Terceira e Sexta são momentos nos quais podemos perceber o filósofo tratando do tema

dos sentidos. Neles, em diversas passagens é possível afirmar que nossas percepções

sensoriais estão sendo discutidas ou estão sendo utilizadas em argumentos para a

refutação ou para a ratificação de alguma tese.

1 DESCARTES, R. Meditações Metafísicas. São Paulo: Abril Cultural, 3ª ed., 1983. (Col. Os Pensadores).

Adotamos no texto a divisão por parágrafos e a consequente numeração dos mesmos estabelecida por Bento

Prado Junior nesta tradução para o português do texto cartesiano.

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A princípio poderia soar estranho se, levando em consideração o título da obra,

Meditações Metafísicas, constatássemos que os sentidos2 bem como a experiência

sensorial de um modo geral, constituem parte relevante da obra; a palavra metafísica pode

facilmente denotar aqui um sentido referente à produção teórica e especulativa de

conhecimento, diminuindo consequentemente, um possível valor ou um possível papel

da experiência sensorial. De fato, Descartes e mais especificamente esta obra,

freqüentemente têm sido lidos e interpretados como referentes a tudo que diz respeito

majoritariamente a possibilidade e afirmação de produção de conhecimento teórico que

privilegia a razão em detrimento dos sentidos.

É possível interpretar a obra de Descartes como estabelecendo conexões e

diálogos diretos entre ele e os filósofos tomistas medievais, que por sua vez, em última

instância adotam e se baseiam no modelo aristotélico de produção do conhecimento,

segundo o qual todo conhecimento tem origem na percepção sensível. Levando em

consideração que tal modelo, reconhecidamente, valoriza a experiência sensível,

podemos então afirmar que a menção ou a referência em vários momentos da obra

cartesiana aos sentidos, não é de modo algum estranha ou inapropriada. É com esta

tradição, que de algum modo privilegia os sentidos, que Descartes dialoga. Sendo assim,

ainda que em sua obra Descartes responda aos céticos, os quais duvidam e questionam a

possibilidade do conhecimento, sua resposta tem como fio condutor a oposição a filósofos

de tradição aristotélica segundo a qual todo conhecimento começa com dados ou imagens

sensíveis. Um exemplo que ilustra bem a preocupação de Descartes com a tese de que o

conhecimento tem origem nos sentidos, é o fato de logo no início das Meditações, no

início da Primeira Meditação, Descartes afirmar:

Tudo o que recebi, até presentemente, como o mais verdadeiro e seguro,

aprendi-o dos sentidos ou pelos sentidos: ora, experimentei algumas vezes que

esses sentidos eram enganosos, e é de prudência nunca se fiar em quem já nos enganou uma vez3.

Trata-se da abertura da obra, de seu começo, e a primeira referência que o autor

faz neste importante ponto é justamente à questão dos sentidos. Em seguida será

desenvolvido o argumento da dúvida dos sentidos, onde Descartes vai constatar que não

se deve fiar nos sentidos, isto é, nas opiniões provindas deles. Esse primeiro tratamento

das ideias dos sentidos é, portanto, referente ao conteúdo dessas ideias; mais precisamente

trata-se de problematizar a veracidade dos diferentes conteúdos das ideias dos sentidos.

2 Adotamos no texto os termos “sentido”, “sensações” e “ideias dos sentidos” como sinônimos. 3 Ibidem, pp. 85-86.

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Neste argumento, o pensador expõe os motivos segundo os quais devemos crer

que os sentidos não são fonte confiável de produção de conhecimento científico. Este

questionamento se dá em dois momentos, ou, em dois níveis. O primeiro defende que há

uma inconsistência nos enunciados baseados nas percepções dos sentidos em relação às

propriedades ou qualidades das coisas particulares. Como exemplo, podemos citar que se

de longe percebo um carro como sendo de tamanho pequeno e da cor preta, pode ocorrer

que ao me aproximar deste mesmo carro, eu perceba nele o tamanho grande e a cor azul.

Isto é, pode ocorrer (e frequentemente ocorre) que em diferentes circunstâncias e/ou

diferentes momentos meus sentidos me forneçam informações discrepantes acerca das

qualidades de uma mesma coisa e, por essa razão, não posso afirmar que as coisas têm as

qualidades que percebo pelos sentidos. No caso do exemplo acima, não posso afirmar que

o carro é pequeno e preto, ou grande e azul, se apelo apenas para os sentidos. Ora me

aparece como tendo umas qualidades, ora como tendo outras.

Porém, ainda que eu possa pelo motivo exposto acima duvidar do meu

conhecimento das qualidades sensíveis de coisas particulares, eu não posso por esse

mesmo motivo duvidar do conhecimento fornecido pelos sentidos acerca da existência

destas. Embora eu possa ter percepções discrepantes acerca das qualidades dessas

qualidades, a percepção que tenho da existência da coisa que tem qualidades não varia.

Nesse sentido, ainda que minhas percepções das qualidades sensíveis sejam

inconsistentes e por isso, dubitáveis, minha percepção da existência das coisas

particulares é certa.

Descartes então lança mão de um segundo argumento que questionará os

enunciados vindos dos sentidos sobre o meu conhecimento da existência destas coisas

particulares, o chamado argumento do sonho. Segundo esse argumento, não há marcas

suficientemente fortes que permitam distinguir as percepções que tenho na vigília das

percepções que tenho no sonho. Sei, entretanto que das percepções que tenho durante o

sonho não posso inferir a existência das coisas percebidas. Mas se é assim, e se as

percepções do sonho e da vigília não se distinguem, não há razão para crer que das

percepções na vigília posso concluir pela existência das coisas percebidas. Em outras

palavras, o que eu sinto durante um sonho parece tão real quanto aquilo que sinto quando

estou acordado. Posto isto, Descartes então chama atenção para o fato de que se não

possuímos com exatidão critérios para diferenciar as percepções sensíveis que temos

nestes dois estados, isto é, o que eu sinto durante a vigília é semelhante ao que sinto

quando sonho, e se quando sonho estou tendo na realidade percepções de coisas que não

existem- visto que se trata de um sonho-, então tudo aquilo que sinto durante a vigília

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pode não existir de fato, e assim como no sonho, posso ter simplesmente percepções de

coisas que não existem.

Deste modo, Descartes oferece razões que nos permitem questionar e duvidar dos

sentidos como fonte de conhecimento. Cabe enfatizar aqui que não se trata de uma dúvida

aleatória onde o pensador nega a existência da experiência empírica. Mas antes de uma

refutação relativa à legitimidade dos sentidos enquanto fonte de conhecimento. Trata-se

somente de negar uma função destes dentro de uma perspectiva cognitiva.

2 - As ideias de sentido na Terceira Meditação

Tendo concluído a Segunda Meditação, aonde chegou à certeza da existência do

eu enquanto pensamento, na Terceira, Descartes partirá de uma análise interna deste

mesmo pensamento, para problematizar a questão da representação, isto é, da ideia em

sentido estrito. Note-se que no início do texto, Descartes retoma a conclusão da Segunda

Meditação reafirmando a certeza que possui da existência do pensamento, bem como dos

atos de pensamento, incluindo nesses os atos de sentir e de imaginar. Diz ele: “Sou uma

coisa que pensa, isto é, que duvida que afirma, que nega, que conhece poucas coisas, que

ignora muitas, que ama, que odeia, que quer e não quer, que também imagina e que

sente”4.

Percebemos aqui que ao enumerar diversos modos de pensamento, Descartes

introduz os atos de sentir e de imaginar que conforme o mesmo elucida na Primeira

Meditação, são considerados pela tradição como ligados à experiência empírica e

sensorial do mundo físico. Contudo, como na Primeira Meditação Descartes pôs em

questão o conhecimento que temos do mundo físico (não só através da dúvida relativa ao

conhecimento sensível das coisas singulares, como mostramos acima, mas também

através de uma dúvida mais geral – a do Gênio Maligno – que põe em questão a

objetividade de qualquer representação, isto é, a correspondência de qualquer

representação com coisas de um mundo independente do pensamento), e como mostrou

na Segunda que o único conhecimento de existência que escapa às razões de duvidar é o

conhecimento da existência do eu enquanto pensamento, então, ao introduzir os atos de

sentir e de imaginar considerando-os como modos dessa coisa que sei que existe,

Descartes parece igualar todos estes modos de pensamento. Todos esses atos de

pensamento independem da existência ou não do mundo externo. Nesse sentido, o que

escapa à dúvida no que diz respeito a sentir e imaginar, assim como a todos os atos de

4 Ibidem, p. 99.

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pensamento, é o fato de que penso que sinto, penso que imagino, isto é, a consciência que

tenho de que sinto, que imagino, que amo, que quero, etc. Nas palavras de Descartes:

...conquanto as coisas que sinto e imagino não sejam talvez absolutamente

nada foram de mim e nelas mesmas, estou, entretanto, certo de que essas

maneiras de pensar, que chamo sentimentos e imaginações, somente na medida

em que são maneiras de pensar residem e se encontram certamente em mim.5

Desta forma, ainda que me ocorra sentir alguma coisa que possa não ter existência

empírica, não é possível duvidar deste ato de sentir, pois em última instância se trata tão

somente de “pensar que sinto” e isto se revela algo de cuja certeza não possuo, nem posso

possuir, a menor dúvida. Até aqui portanto, sentir, imaginar, querer, amar, pensar, etc., é

o mesmo que pensar que sente, pensar que imagina, pensar que quer, etc. Os sentidos aqui

são considerados enquanto modos de pensar e não em seu conteúdo, e por isso são

equivalentes a todos os outros. “Sentir”, “negar”, “querer”, “imaginar” são uma mesma

coisa na medida em que “penso que sinto”, “penso que nego”, “penso que quero” ou

“penso que imagino” referem-se e evidenciam uma mesma coisa: o meu pensamento

(cogito).

Prosseguindo, nessa mesma Meditação, após introduzir o que segundo ele seria o

sentido estrito do termo “ideia”, Descartes passa a outra problematização das ideias

relacionadas aos sentidos ao retomar algumas teses da tradição a respeito das ideias. Os

tipos de ideia por ele mencionados são: as que nascem comigo (inatas), as que vêm de

fora (adventícias), e as produzidas por mim mesmo (fictícias). Em suas palavras:

...que eu tenha a faculdade de conceber o que é aquilo que geralmente se chama

uma coisa ou uma verdade, ou um pensamento, parece-me que não obtenho

em outra parte senão em minha própria natureza; mas se ouço agora algum

ruído, se vejo o sol, se sinto calor, até o presente momento julguei que estes

sentimentos procediam de algumas coisa que existiam fora de mim.6

É sobre este último tipo mencionado, as “adventícias”, que as ideias de sentido

estão associadas e que o senso comum tradicional parece atribuir veracidade, na medida

em que se acredita que elas (as ideias) são produzidas exatamente a semelhança e

conforme as respectivas coisas empíricas que as causam. Como veremos a seguir, nessa

passagem Descartes problematiza as ideias dos sentidos não como mero ato do

pensamento, mas sim a possibilidade de correspondência de seu conteúdo com coisas

independentes da mente.

O problema de Descartes nesses parágrafos é questionar a tese de que a

semelhança das ideias com as coisas pode ser explicada por elas terem origem nas coisas.

5 Idem. 6 Ibidem, p102.

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Os argumentos apresentados por ele são de dois tipos: primeiro problematiza a tese de

que as ideias têm origem nas coisas e segundo problematiza se origem garante

semelhança. Duas serão as explicações fornecidas por ele para verificar o porquê de se

acreditar que tais ideias têm origem nos objetos fora da mente (nas coisas): o simples

hábito, ou inclinação natural, que tenho de pensar deste modo e o fato dessas ideias

parecerem ser involuntárias, ou seja, parecerem não depender de mim.

A primeira dessas razões é que me parece que isso me é ensinado pela natureza;

e a segunda, que experimento em mim próprio que essas ideias não dependem,

de modo algum, de minha vontade; pois amiúde se apresentam a mim mau

grado meu.7

Descartes questiona então ambas as explicações acima lançando mão de dois

argumentos: a diferença entre inclinação natural e luz natural e a possibilidade de uma

faculdade oculta. Primeiro ele diz que crer em algo em virtude de um hábito natural não

garante a verdade dessa crença. Logo, se é por uma inclinação natural ou hábito que creio

que a origem das ideias são as coisas das quais elas são ideias, não tenho ainda nenhuma

garantia de que é assim. Descartes ressalta que a inclinação natural difere da luz natural,

que é fonte da verdade, na medida em que poso colocar em dúvida o que me é ensinado

pela natureza mas não o que advém da luz natural. Diz ele:

(...) essas duas coisas diferem muito entre si; pois eu nada poderia colocar

em dúvida daquilo que a luz natural me revela ser verdadeiro (...) Mas no

que se refere a inclinações que também me parecem ser para mim naturais,

(...) notei que frequentemente (...) que elas não me levaram menos ao mal

do que ao bem.8

A seguir Descartes questiona a tese de que é legítimo crer que as ideias têm origem

nas próprias coisas pelo fato de parecerem ser produzidas independente de minha vontade.

Segundo ele, ainda que estas ideias pareçam não advir da minha vontade, isto não garante

que assim ocorra, pois é possível que eu tenha uma certa “faculdade oculta” que

produziria tais ideias sem que eu soubesse. Desta forma, embora eu pense que elas não

dependem de mim, elas de fato dependeriam de mim. Em suas palavras: “(...) talvez haja

em mim alguma faculdade ou poder próprio para produzir essas ideias sem auxílio de

quaisquer coisas exteriores, embora ela não me seja ainda conhecida (...)” 9.

Com esses dois argumentos o filósofo visa enfraquecer a tese de que as ideias

tenham origem nas coisas materiais. Para completar sua argumentação Descartes introduz

a hipótese de que mesmo se a origem dessas ideias for às coisas, os objetos empíricos,

isso não garantiria que elas lhe sejam necessariamente semelhantes. Para ilustrar esse

7 Ibidem, p.100. 8 Ibidem, p.102. 9 Idem.

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último argumento ele considera um exemplo: a ideia que possuímos de sol. Segundo ele,

possuímos em nós duas ideias diversas de sol, uma que teria origem nas coisas percebidas

pelos sentidos (que seria do tipo adventícia), que nos representa o sol como extremamente

pequeno e uma outra ideia que teria origem apenas nas razões da Astronomia, segundo a

qual o sol é grande, isto é, “maior do que a terra inteira”. Ora, argumenta Descartes, essas

duas ideias diversas não podem ser ambas semelhantes ao mesmo sol. Com essa

afirmação Descartes parece querer dizer que para que se possa defender a tese de que uma

dessas origens (as coisas ou a razão da Astronomia) é a verdadeira, é necessário um outro

argumento. Isto é, se posso ter duas ideias distintas de uma mesma coisa e se essas ideias

têm origens distintas, é necessário um novo argumento que garante que uma origem é a

que me fornece a ideia adequada e a outra não.

Assim, após negar as explicações da tradição, concluindo ser possível que as

ideias não tenham origem em coisas fora da mente e que a origem das ideias não explica

a semelhança entre estas e as coisas, Descartes passa a introduzir o que seria a sua via

explicativa acerca das ideias, ou seja, o que seria sua teoria da representação. Nela,

novamente, as ideias dos sentidos estarão presentes. Agora porém, sob a noção de

falsidade material que envolve também um exame do conteúdo dessas ideias. Inicia deste

modo Descartes sua posição sobre as ideias de modo geral: “Entre meus pensamentos,

alguns são como as imagens das coisas, e só àqueles convém propriamente o nome de

ideia...”10.

Mais adiante, Descartes afirma que as ideias, de maneira geral, são um tipo de ato

mental que pode ser considerado segundo dois aspectos: a realidade formal e a realidade

objetiva. O primeiro aspecto diz respeito ao ato que caracteriza qualquer ideia: o ato de

representar algo ao espírito. Por isso, segundo esse mesmo aspecto que é a realidade

formal das ideias, todas elas são iguais e verdadeiras, ou seja, todas representam algo. Já

o segundo aspecto, a realidade objetiva, equivale ao conteúdo da ideia, isto é, àquilo que

é apresentado ao espírito, à mente, por este ato mental. Desta maneira, de acordo com a

realidade objetiva, as ideias são diferentes umas das outras na medida em que exibem

conteúdos distintos.

É durante justamente a elucidação deste conceito de realidade objetiva que

aparece a noção de falsidade material. Apesar de anteriormente na definição de realidade

formal, ter dito que “propriamente falando” as ideias não podiam ser falsas (e que dentre

os gêneros de pensamento, somente nos juízos podia ser encontrada alguma falsidade),

10 Ibidem, p.101.

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Descartes admite agora - no parágrafo 19 11 - que as ideias em um certo sentido, podem

ser consideradas falsas: “(...) pode, no entanto ocorrer que se encontre nas ideias uma

certa falsidade material, a saber, quando elas representam o que nada é como se fosse

alguma coisa”. 12

Nas Meditações Metafísicas, quando inicialmente Descartes descreve o que são

ideias materialmente falsas, é o aspecto representativo da ideia que parece desempenhar

uma função determinante na sua condição de falsa. É porque ela representa como sendo

algo que não é, ou seja, representa como positivo algo negativo, que ocorre sua falsidade.

Os exemplos que o filósofo utiliza para ilustrar este tipo de ideia são ideias

provenientes dos sentidos, a saber, as ideias de frio e de calor. : “(...) se é certo dizer que

o frio nada é senão privação do calor, a ideia que mo representa como algo de real e

positivo será sem despropósito chamada falsa” 13. Se o frio é uma privação ou falta de

calor, ou se o calor é uma privação ou falta do frio, ou bem a ideia de calor, ou bem a

ideia de frio que, os representem na mente como sendo algo positivo ou real será chamada

de ideia materialmente falsa, pois estaria desta maneira representando o que nada é, como

sendo alguma coisa. Fornecendo material falso para a formulação de juízos a respeito

dessas ideias. A ideia falsa será deste modo aquela que representa coisas que

necessariamente não existem, isto é, que não podem existir.

Depois de introduzir assim o conceito de “materialmente falsa”, Descartes passa

a questionar a causa dessas ideias, e pergunta se ele próprio (enquanto pensamento finito

e participante do nada, não-ser, portanto), poderia causar tais ideias. “se elas (as ideias)

são falsas, isto é, se representam coisas que não existem, a luz natural me faz conhecer

que procedem do nada, ou seja, que estão em mim apenas porque falta algo à minha

natureza porque ela não é inteiramente perfeita.” 14 Ele prossegue:“(...) se são verdadeiras,

todavia, já que me revelam tão pouca realidade, que não posso discernir nitidamente a

coisa representada do não-ser, não vejo razão pela qual ela não possa ser produzida por

mim mesmo e eu não posso ser seu ator.” 15

Gostaríamos de frisar neste ponto o aspecto hipotético que estes pensamentos,

bem como questionamentos da falsidade material possuem. Isto pode ser constatado nas

citações acima mencionadas onde o filósofo diz “Se são falsas” para logo depois dizer

11Conforme esclarecemos na nota, na tradução brasileira as Meditações Metafísicas, cada Meditação tem

seus parágrafos numerados. 12 Ibidem, p.106. 13 Idem. 14 Idem. 15 Idem.

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também “Se são verdadeiras”. Ou mesmo quando ele exemplifica o problema da

falsidade material, com as ideias de frio e calor, ele diz “(...) se é certo dizer que o frio

nada é senão privação do calor(...)”16. Seria apenas coincidência esta repetição da

conjunção condicional “se”? O que poderia significar esta recorrência? E mais, será que

este fato tem alguma relevância pra o nosso tema, a saber, a compreensão do que são as

ideias dos sentidos na teoria cartesiana das ideias?

Se acreditarmos que o uso recorrente da conjunção “se” não é um mero acaso e

que o filósofo possui razões para tal, podemos inferir que o mesmo não devia estar

totalmente seguro para realizar afirmações absolutas em relação a estas ideias que são

relacionadas aos sentidos e denominadas de materialmente falsas. Isto é, o fato de

Descartes introduzir e inicialmente explicar o conceito de falsidade material com

condicionais sugere que, ao menos inicialmente, Descartes está hesitante. Por isso

mesmo, o caráter hipotético de suas afirmações nos parágrafos 19 e 20. Mas por que

Descartes não pôde realizar afirmações categóricas sobre tal tema? Não estaria ele

totalmente seguro para desenvolver este tema?

3 - A Ordem das Razões

Tais questões se tornam mais claras se nos lembrarmos do método utilizado pelo

filósofo para compor e escrever a obra aqui tratada: a ordem das razões. Este método se

diferencia da “ordem das matérias” ou “ordem dos tópicos” utilizada pelos medievais 17.

Estes quando escrevem suas obras tratam dos assuntos separadamente, esgotando-os em

si, sem necessariamente estarem ligados com os outros que se seguem ou antecedem.

Descartes rompe com esta tradição na medida em que nas Meditações Metafísicas

ao lançar mão da ordem das razões e, mais ainda, da ordem analítica das razões, opta pela

ordem da justificativa relativa tanto à introdução de questões quanto à tentativa de

explicações. Qualquer nova questão ou tese defendida surge por uma exigência racional

do próprio sistema apresentado. Isto significa, na prática, que não encontramos na

referida obra um tema isolado ou tratado separadamente de outros. Pelo contrário, o

surgimento dos assuntos (bem como das teses defendidas) é logicamente bem encadeado.

Cada tese afirmada e cada assunto tratado são sustentados ou resultam de conclusões

anteriormente inferidas. Mais ainda, na medida em que certas teses são necessárias para

a defesa de outras teses, a argumentação cartesiana nem sempre é linear. Um mesmo tema

16 Idem. 17 GUEROULT, M. Descartes Selon l'ordre des Raisons, Paris: Aubier-Montaigne, 1992.

Revista Aproximação – 2º semestre de 2013 – Nº 6

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pode ser tratado várias vezes ao longo da obra, mas com argumentos diferentes. Como

ele explica a ordem por ele adotada:

A ordem consiste apenas em que as coisas propostas primeiro devem ser

conhecidas sem a ajuda das seguintes, e que as seguintes devem ser dispostas

de tal forma que sejam demonstradas só pelas coisas que as precedem. ...E foi

o que me levou a não tratar na segunda [meditação] da distinção entre o espírito

e o corpo, mas apenas na sexta, e a omitir muitas coisas em todo esse tratado,

porque pressupunham a explicação de muitas outras.18

Este parece ser o que acontece no caso que estamos aqui examinando. Se

analisarmos os argumentos relacionados à falsidade material neste ponto da obra, e

constatamos que a maioria deles é hipotética, isto pode estar diretamente ligado aos

argumentos e a exposição que antecede a terceira meditação.

O que temos então até a terceira meditação?

Se entendermos as Meditações a partir da ordem das razões, verificaremos que no

momento em que Descartes introduz conceito de falsidade material, só o que escapou da

dúvida exposta na primeira meditação é a existência do eu enquanto coisa que pensa. Na

primeira meditação, o filósofo introduz a questão da dúvida e com isso os juízos relativos

a certos conhecimentos, a saber, da qualidade das coisas particulares, da existência das

coisas particulares, da natureza dos corpos, são suspensos e postos de lado. Na segunda

meditação, Descartes, apesar da dúvida e da conseqüente suspensão de juízos, alcança

uma primeira certeza: a certeza da existência e da natureza do eu: a existência da

substância pensante. Só mais tarde, depois de já introduzida sua teoria das ideias e seu

conceito de falsidade material é que Descartes provará a existência de Deus e a veracidade

de Deus, o que permitira ainda adiante provar que a essência do mundo físico é pura

extensão. Isto é, de acordo com a ordem das razões, no momento da introdução do

conceito de falsidade material das idéias, Descartes não pode se pronunciar a cerca da

essência do mundo externo de tal forma que deve hesitar acerca da natureza do calor, do

frio e de tudo que os sentidos nos dão como mundo externo.

Desta maneira, na terceira meditação, no momento em que surgem as passagens

acima citadas e examinadas, as únicas verdades de que Descartes dispõe são as de que ele

é uma coisa pensante e que tal coisa pensante, entre outros atos, representa o mundo

externo de uma certa maneira, permanecendo a dúvida em relação ao conhecimento

relativo à existência e à natureza do mundo sensível, do mundo físico. Logo, concluímos

que ali Descartes não podia mesmo tecer afirmações categóricas sobre o correspondente

de qualquer conteúdo das ideias sensíveis, uma vez que ainda não conhecia se o mundo

18 DESCARTES, R. Objeções e respostas. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Col. Os Pensadores).

Revista Aproximação – 2º semestre de 2013 – Nº 6

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físico sensível de fato existia e nem se conhecia sua essência, conhecimentos que, entre

outras teses, dependem da prova da existência de um Deus veraz só alcançada nas terceira

e quarta meditações. Por essa razão Descartes ali na terceira meditação tem que afirmar

que toda e qualquer afirmação e ideia relacionada aos sentidos é falsa, porque envolve

ideias ao menos até então consideradas obscuras e confusas com relação àquilo a que elas

correspondem, a saber, o mundo físico19. Nesse sentido, as afirmações da terceira

meditação que expomos e julgamos ser de cunho hipotético caracterizadas pelo uso

constante da conjunção “se” tornam-se mais naturais.

Mas quando é que elas deixam de ser hipotéticas para serem categóricas? Quando

o filósofo poderá realizar uma exposição sobre o tema de modo não hipotético?

A resposta para tais questões nos parece ser a seguinte: somente quando o mundo

sensível tiver sua essência e existência conhecidas, as ideias relacionadas aos sentidos –

dentre elas as materialmente falsas – vão poder ser compreendidas. Seguindo a ordem das

razões a essência e existência do mundo externo, são demonstradas respectivamente na

Quinta e na Sexta Meditação. Exporemos a seguir esta última, dado que é onde as

sensações são problematizadas tratadas diretamente.

4- As ideias dos sentidos na Sexta Meditação

Na Sexta Meditação, assim como na terceira, os sentidos ocupam papel

importante. Entretanto, aqui – e é isso que gostaríamos de enfatizar neste trabalho - sua

relevância talvez seja mais fundamental e se dê até de modo mais “evidente”, pois eles

são frequentemente mencionados, e diretamente utilizados na explicação e conclusão de

três argumentos: o conhecimento da existência das coisas corpóreas materiais, o

conhecimento de que corpo e alma encontram-se substancialmente unidos, e também o

conhecimento de como o EU, entendido agora como a união de corpo e pensamento,

alma, é afetado por outros corpos no mundo.

No início dessa Meditação, Descartes reintroduz a noção reconhecida pela

tradição das ideias dos sentidos como sendo do tipo adventícia. Podemos ler:

(...) dado que as ideias que recebia pelos sentidos eram muito mais vivas, mais

expressas e mesmo, à sua maneira, mais distintas do que qualquer uma

daquelas que eu mesmo podia simular, ou do que as que encontrava impressas

em minha memória (...) parecia que não podiam proceder de meu espírito; de

19 Inferimos tal explicação do texto do intérprete Richard Field. Ver, FIELD, Richard. Descartes on the

Material Falsity of Ideas. The Philosophical Review, v. 102, n.3 julho de 1993, pp 309-333. Neste texto, o

intérprete defende que por conta da ordem das razões a noção cartesiana de matéria (substancia extensa)

acaba mudando da Segunda para a Sexta Meditação.

Revista Aproximação – 2º semestre de 2013 – Nº 6

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sorte que era necessário que fossem causadas em mim por quaisquer outras

coisas. Coisas das quais não tendo eu nenhum conhecimento senão o que me

forneciam estas mesmas ideias, nada poderia considerar exceto crer que tais

coisas eram semelhantes às ideias que elas causavam.20

Assim, Descartes apresenta novas razões que segundo a tradição justificariam a

crença de que tais ideias eram de fato ideias de corpos, a saber, sua vivacidade,

expressividade, o que por sua vez, justificava a crença na semelhança dessas ideias com

as coisas. Deste fato de que as ideias dos sentidos eram tidas como as mais expressivas e

vivas que outras, Descartes chega a uma importante conclusão: “eu me persuadia

facilmente de que não havia nenhuma ideia em meu espírito que não tivesse antes passado

pelos meus sentidos”.21

Esta nos parece ser a tese da tradição tomista escolástica visada aqui por

Descartes. Como expomos no início do texto, é com esta tradição mais do que com a dos

filósofos ditos céticos que Descartes dialoga, e uma vez que tal tradição leva em

consideração os sentidos na produção de ideias é compreensível a menção e citação acima

de Descartes a este ponto. O objetivo do pensador moderno nas Meditações é rejeitar esta

tese de que toda ideia tem que necessariamente ter passado pelos sentidos. No decorrer

das Meditações, Descartes mostra justamente que pelo menos as ideias de da natureza e

da existência do pensamento, da natureza e existência de Deus existente e da essência do

mundo externo expressam conhecimentos que não passaram pelos sentidos.

Contudo, aqui na sexta meditação, os sentidos, através das ideias de sensação são

resgatados, desempenhando papel chave para dois tipos de conhecimento. Primeiramente,

as ideias dos sentidos aparecem como elemento fundamental no contexto da prova da

existência das coisas materiais. É somente a partir da constatação de que tenho sensações,

ou seja, de que possuo uma faculdade passiva que recebe ideias das coisas particulares

físicas, que se desencadeia o argumento da prova: “(...) Demais encontra-se em mim certa

faculdade passiva de sentir, isto é, de receber e conhecer tais ideias das coisas sensíveis”.22

Partindo desta constatação, o argumento seguirá do seguinte modo: Ao reconhecer

uma faculdade passiva que recebe tais ideias, tais sensações, o filósofo admite também

por consequência a existência de uma faculdade ativa, que seria responsável pela

produção de tais ideias. Lançando mão do princípio de causalidade, Descartes se

pergunta, então, o que teria esse poder de causar estas sensações em mim. Três

alternativas são as alternativas elencadas: ou eu, ou Deus, ou as próprias coisas sensíveis.

20 DESCARTES, R. Op. Cit. p.132. 21 Idem. 22 Ibidem pp.134-135.

Revista Aproximação – 2º semestre de 2013 – Nº 6

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Conclui primeiro que não pode ser o próprio eu pensante, pois na medida em que se

entende como sujeito de consciência, se o fosse, naturalmente poderia saber.

Aqui Descartes, portanto, refuta o argumento anteriormente admitido de que ele

poderia ter uma faculdade oculta que produziria suas ideias sem que ele soubesse. A

seguir, verifica possuir uma forte inclinação a crer que são as próprias coisas e que não

há meios de corrigir tal inclinação. Verificando também a bondade divina Descartes

afirma então que se Deus não me dá meios para corrigir essa inclinação, então não há

motivos para não fiar-se nela e crer que as próprias coisas físicas são a causa das

sensações.

As ideias de sentidos são desta maneira obliquamente legitimadas como fonte do

conhecimento que possuo de que os corpos materiais existem no mundo. Embora a prova

da existência do mundo externo não se baseie no conteúdo dessas ideias, elas têm um

papel fundamental na medida em que atestam uma passividade da mente que resulta em

meu conhecimento da existência das coisas. Trata-se, portanto, de uma legitimação

restrita dos sentidos.

Contudo, imediatamente após tal prova Descartes reitera que o conteúdo das ideias

dos sentidos, na medida em que pretendem corresponder às coisas materiais tais como

elas são, não é confiável. Diz o filósofo: “talvez elas (as coisas corpóreas) não sejam,

todavia, inteiramente como nós as percebemos pelos sentidos, pois esta percepção dos

sentidos é muito obscura e confusa em muitas coisas”. 23

O que podemos concluir disto? Alguma contradição na exposição do filósofo?

O que nos parece haver aqui é uma garantia de que as sensações fornecem o

conhecimento da existência de corpos no mundo físico. Corpos estes com propriedades.

Entretanto, tais propriedades eu não sou capaz, com estas minhas mesmas ideias, de

conhecer clara e distintamente.

Prosseguindo em sua análise acerca das ideias dos sentidos, Descartes introduz

uma nova prova baseada também nas ideias dos sentidos: que sua alma é substancialmente

unida a um corpo. Tendo já demonstrado a distinção real entre corpo e alma, visto que

cada uma delas é um substância completa e que possuem cada uma, um único atributo

essencial e distinto, agora, novamente pelas sensações, ele pode concluir que apesar de

distintos, são substancialmente unidos. É porque tenho sensações, é porque sinto coisas,

que sou obrigado a concluir que a alma não está no corpo como se fosse “um piloto em

23 Ibidem, p.135.

Revista Aproximação – 2º semestre de 2013 – Nº 6

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seu navio”: se assim fosse, como o piloto, ela observaria e compreenderia o que ocorre

no corpo, mas não sentiria:

(...) a natureza me ensina também por esses sentimentos de dor, fome e sede

etc., que não estou meramente alojado em meu corpo, como um piloto em seu

navio, mas que, lhe estou conjugado muito estreitamente de tal modo

confundido e misturado que componho com ele um único todo. Pois se assim

não fosse, quando meu corpo é ferido não sentiria por isso dor alguma, eu que

não sou senão uma coisa pensante, e apenas perceberia este ferimento pelo

entendimento.24

Note-se que, mais uma vez, apesar das ideias dos sentidos terem um papel

importante na prova da união substancial, não é o conteúdo representativo dessas ideias,

mas antes o simples e objetivo fato de eu ter estas ideias - que são sensações - que é o

elemento central do argumento.

O que temos então até aqui?

Dois argumentos centrais. Duas provas. A primeira relacionada à existência do

mundo externo e a segunda à da união corpo\alma como sendo do tipo substancial.

Verificamos em ambos os argumentos que as sensações são utilizadas e tratadas a partir

de uma perspectiva mais “formal”, ou seja, enquanto ato. Mas o conteúdo de tais ideias

não nos parece ser ter sido reconhecido ou legitimado enquanto sendo alguma base ou

fonte para algum conhecimento.

Tal situação parece mudar agora. Com a prova da união substancial, o “Eu”, é

entendido agora não como apenas pensamento, ou alma, mas como um composto formado

de “pensamento/ corpo”, Descartes sustenta a legitimidade dos sentidos como fonte de

um certo tipo de conhecimento: o conhecimento do que é prejudicial e do que é benéfico

para o composto pensamento/corpo, ou o homem.

Entre essas diversas percepções dos sentidos, umas me são agradáveis e

outras desagradáveis, posso tirar uma conseqüência completamente certa, isto

é, que meu corpo [composto de corpo e alma] pode receber diversas

comodidades ou incomodidades dos outros corpos que o circundam.25

...essa natureza [de ser uma união substancial] me ensina realmente a fugir

das coisas que causam em mim o sentimento da dor e a dirigir-me para

aquelas que me comunicam algum sentimento de prazer.26

Nas passagens supracitadas, constatamos que além de reconhecer a existência de

que possui percepções ou sensações, Descartes dá um passo além em relação às

argumentações anteriores. Aqui vemos o filósofo reconhecendo e explicitando que tais

24 Ibidem, p.136. 25 Idem. Grifo nosso. 26 Ibidem, p.137. Grifo nosso.

Revista Aproximação – 2º semestre de 2013 – Nº 6

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percepções lhe transmitem algo, ainda que ele não defina isto muito bem. Em suas

palavras: “comodidades”, “incomodidades”. Entretanto, as expressões “causam em mim

o sentimento da dor”, bem como, “me comunicam algum sentimento de prazer” parece

nos evidenciar que o pensador reconhece aquilo que tais ideias lhe transmitem, ou causam

nele. O composto corpo\alma reconhece, pelas sensações, o que lhe é bom, ou ruim, o

que lhe dá prazer ou dor. E deste modo pode se situar no mundo, entre os outros corpos:

afastando-lhe daquilo que lhe causa dor, e aproximando-se do que lhe fornece prazer.

Poderíamos dizer assim que trata-se de um conhecimento de sobrevivência, de como o

homem, entendido como composto de corpo e alma, deve sobreviver e se manter no

mundo físico.

5- Conclusão

Nosso trabalho teve como objetivo mostrar como o tema das sensações foi tratado

por Descartes na sua obra Meditações Metafísicas. A tese que procuramos defender aqui

foi a de que ao longo desta obra ocorreu uma mudança de tratamento pelo filósofo em

relação a este assunto. Para elucidar tal posição, expusemos algumas passagens da obra

em questão, a saber, a Terceira e Sexta Meditação. Escolhemos estes dois momentos da

obra por entendermos que ambos são bem ilustrativos de que ocorre uma transformação

em relação a este tema.

Vimos que os sentidos são tratados na obra em questão sempre dentro de uma

perspectiva representacional, ou seja, própria das ideias que lhes correspondem. Por isso

mesmo, no início do texto esclarecemos que os termos “sensações” e “ideias de sentidos”

seriam por nós entendidos como sinônimos. A partir disto podemos afirmar que tais ideias

são, nas Meditações, tratadas ora do ponto de vista do ato representativo, ora do ponto de

vista de seu conteúdo.

Na Terceira Meditação, embora as ideias dos sentidos não sejam o tema principal,

ainda assim são problematizadas em momentos importantes da mesma e sob o ponto de

vista de seu conteúdo: seja quando o filósofo menciona as ideias adventícias, seja quando

introduz o problema da falsidade material. Em ambos os casos, nos parece natural

concluir que, por neste momento da obra ainda existir a dúvida em relação à existência

dos corpos materiais ou extensos, uma afirmação categórica sobre o quê ideias

relacionados a objetos físicos representam – no caso das ideias materialmente falsas -,

bem como uma garantia de que eles possam lhe ser causa e semelhantes - no casa das

ideias adventícias - não pode ocorrer agora.

Revista Aproximação – 2º semestre de 2013 – Nº 6

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Concluímos assim que é em virtude de seu método - a ordem das razões - que

nesta meditação Descartes é hesitante quanto à explicação da falsidade material, bem

como da validade das ideias adventícias. Uma vez que não conhece ainda que as coisas

do mundo material existem e nem sua essência, e uma vez que as ideias dos sentidos

pretendem representar que elas existem como elas são, Descartes não pôde na terceira

meditação dar uma descrição categórica do conteúdo das ideias materialmente falsas, nem

garantir que objetos físicos causem tais ideias.

É também por causa da ordem das razões que constatamos que na Sexta Meditação

ocorre uma transformação, uma mudança de tratamento em relação aos sentidos: as ideias

dos sentidos são tratadas do ponto de vista de sua realidade formal, isto é, são

consideradas como um verdadeiro ato de pensamento, e ocupam papel importante e

central, pois são usadas como base epistêmica para fundamentar a existência do mundo

externo, de uma união substancial entre corpo e pensamento, bem como de um

conhecimento de como deve sobreviver no mundo físico, estando rodeado de outros

corpos. Agora o pensador não está mais hesitante em relação a sua validade cognitiva,

pois elas produzem conhecimento.

É justo, desta maneira, afirmar que inegavelmente ocorre uma transformação na

concepção das ideias dos sentidos ao longo das Meditações. Tendo sido questionados

num momento inicial, como na primeira e terceira meditação, ao longo da obra seguindo

a ordem das razões, Descartes pôde ao seu final, na sexta meditação, resgatar os sentidos,

atribuindo-lhe um papel cognitivo; seja para lhe evidenciar que os corpos físicos e

extensos existem, seja para levar a conclusão de que corpo e pensamento formam uma

união substancial, seja para lhe demonstrar como existe diante dos outros corpos e o que

lhe causa prazer ou dor.

Bibliografia

DESCARTES, R. Discurso do método, Meditações, Objeções e respostas, As

Paixões da Alma, Cartas. São Paulo: Abril Cultural, 3ª ed., 1983. (Os Pensadores).

FIELD, R. Descartes on the Material Falsity of Ideas. The Philosophical Review, v.

102, n.3 julho de 1993, pp 309-333.

GUEROULT, M. Descartes selon l'ordre des raisons. Paris: Aubier-Montaigne, 1992.

Revista Aproximação – 2º semestre de 2013 – Nº 6

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Recebido: 08/2013

Aprovado: 12/2013

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FOUCAULT: DO PODER CENTRALIZADO AO PODER

MICROFÍSICO

Evandro Sousa da Mata

Graduando em Filosofia da FAVI Edimar Brígido1

Doutorando em Filosofia da PUC-PR

Resumo: Partindo da análise do poder na modernidade, este trabalho pretende tratar do

deslocamento que a temática sofreu em seu percurso histórico. De acordo com Hobbes, o

poder se encontra centralizado na figura do Leviatã – o Estado soberano –, expressão

máxima desse poder. Foucault, por sua vez, rompe com essa concepção e trata do poder

microfísico – o poder diluído em formas moleculares – que se dá através de relações.

Após esse deslocamento, o poder não será mais tratado somente em suas formas

negativas, mas torna-se força positiva produzindo saber, disciplina, individualidade e

normatizando a vida dos indivíduos. O que Michel Foucault pretende em sua genealogia

não é conceituar o poder, mas analisar os seus dispositivos, suas relações e efeitos que

são intensificados nas instituições.

Palavras-chave: Dispositivos. Poder. Saber. Relações.

Abstract: Based on the analysis of power in modernity, this work aims to address the

issue of the displacement that power suffered through history. According to the

Hobbesian theory, power is centralized, set, and can be easily identified in the figure of

Leviathan, which is the ultimate expression of power. Foucault in turn, breaks with this

pattern when believes that power exists in a microphysic way. That is: occurs as molecular

forms in the relationship between people. From that point on, power isn’t treated only as

negative but also as a positive and constructive force that produces and regulates

knowledge, discipline, as well as individual’s lives. Michel Foucault in his genealogy

aims to analyse its devices, relationships and effects. Institutions are places where power

is intensified.

Keywords: Devices. Knowledge. Power. Relationships.

1- Introdução

Para melhor trabalharmos o deslocamento que o poder sofreu no percurso

histórico, dividiremos a nossa pesquisa em três momentos. No primeiro, faremos uma

breve análise do pensamento de Thomas Hobbes, um dos mais expressivos expoentes da

teoria política clássica. Para o filósofo inglês, o poder é a qualidade que permite alguém

1 Doutorando e Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Professor de Filosofia

no Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA).

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ser amado ou temido. Esse poder está centralizado no Estado soberano – o Leviatã,

detentor máximo do poder –, que se utiliza de todos os mecanismos que justifiquem a

manutenção de seu domínio. É o Estado forte que surge na sociedade para garantir a vida

aos indivíduos que lhe conferiram toda a força e poder por meio de um contrato.

Num segundo momento, após analisar o poder em Hobbes, acentuaremos as

descontinuidades do poder em Michel Foucault que o compreende como microfísico. O

poder não está localizado no aparelho do Estado – ele está diluído de formas moleculares

nas diversas extremidades da sociedade, permanecendo como uma rede de relações onde

existem pessoas. O poder microfísico é aquele que passa pelos corpos dos indivíduos –

em oposição ao que se aplica – com um caráter produtor.

As instituições, as arquiteturas do poder, permitem uma melhor aplicação dos seus

dispositivos, que são mecanismos para garantir a manutenção de uma “ordem”. No

terceiro momento de nosso trabalho, destacaremos esses dispositivos que são utilizados e

intensificados pelas (e nas) instituições. O dispositivo é um conjunto heterogêneo do

discursivo e do não discursivo que possibilita uma interação entre seus diversos

elementos. Enquanto mecanismo de aplicação do poder, o dispositivo é essencial para a

organização e administração da sociedade.

Partindo do poder hobbesiano, este estudo pretende possibilitar uma maior

contribuição ao termo que ocupa uma importante posição nos escritos genealógicos de

Foucault. O filósofo francês vê a necessidade de não tomar o poder apenas como uma

instância negativa, mas como positiva – produtora de saber, de discurso, de

individualidade. Pretende-se enfatizar neste ensaio a contribuição foucaultiana de poder,

não o tomando como uma teoria geral. Preocuparemo-nos, assim como faz nosso filósofo,

em acentuar as suas diversas práticas, seus dispositivos e mecanismos com que permite

uma constante produção.

2- Thomas Hobbes e o poder centralizado

A filosofia moderna, com sua contribuição para o pensamento político, é uma

constante “[...] busca do fundamento último do poder, que [...] consiste na solução do

problema da justificação do poder último [...]” (BOBBIO, 2000, p. 68), ou seja, na

legitimidade do poder. Os filósofos modernos, com suas teorias sobre a natureza humana,

a natureza da sociedade e a natureza da história, criaram uma concepção de poder do

Revista Aproximação – 2º semestre de 2013 – Nº 6

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Estado. Desse modo, o poder estaria concentrado nas mãos do Estado que possui a razão

e a força para justificar seu poder.

Nesse período é de grande importância o contratualismo que concebe o

fundamento e a possibilidade da sociedade humana enquanto tal, a partir da elaboração

de um contrato social. O contratualismo pretende investigar a função lógica do Estado

que surge na sociedade para garantir a vida aos indivíduos. O pensamento de Thomas

Hobbes – o qual teve grande expressão nesta corrente, justamente pelo desenvolvimento

do modelo contratual – é o que será contemplado neste momento.

As principais contribuições do pensador inglês ao pensamento filosófico estão nas

suas reflexões sobre a sociedade, sobretudo no De Civie (1642) e no Leviatã (1651). Para

Thomas Hobbes (2012, p. 75), o poder é “[...] qualquer qualidade que faz um homem ser

amado ou temido por seus semelhantes, ou a reputação de tal qualidade [...]”. O poder é

um meio para se alcançar algum bem, podendo ser tanto natural, como instrumental:

Poder natural é a eminência das faculdades do corpo ou da mente, tais como: força, aparência, prudência, habilidade, eloquência, liberalidade e nobreza

extraordinárias. Instrumentais são os poderes adquiridos por meio dessas

faculdades ou pela sorte, e servem como meios ou instrumentos para alcançar

reputação, riquezas, amigos e os secretos desígnios de Deus, a que os homens

chamam boa sorte. Por sua natureza, esse poder cresce à medida que avança

[...]. (HOBBES, 2012, p. 75)

O maior de todos os poderes é o do Estado, ele surge da integração de vários

homens que, juntos, constituem um contrato a fim de garantir o maior de todos os seus

bens: “sua própria conservação e a garantia de uma vida mais feliz” (HOBBES, 2012, p.

136). O homem por natureza é mau e sempre está competindo – visto que se julga mais

sábio e importante que os outros – sendo levado por paixões e honrarias a um estado de

guerra. Para organizar a sociedade faz-se necessária a instituição de um poder visível, este

está centralizado nas mãos de uma pessoa (ou de um grupo de pessoas) – o Estado, o

grande Leviatã.

1.1- O Leviatã: O Estado soberano

O Estado, como vimos, surge de um contrato para garantir a vida dos indivíduos.

A passagem do estado natural para o civil se dá por meio de um contrato que confere “[...]

toda a força e o poder a um homem, ou a uma assembleia de homens, que possa reduzir

as diversas vontades, por pluralidade de votos, a uma só vontade [...]” (HOBBES, 2012,

Revista Aproximação – 2º semestre de 2013 – Nº 6

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p. 139). Este poder instituído é altamente necessário para cessar o constante estado de

guerra. Ribeiro (2003, p. 57) assinala:

O contrato reconhece a igualdade inicial dos homens. A função e finalidade do

Estado são apenas o bem do cidadão; [...] como o poder deriva do consenso,

nada a não ser o comum acordo poderia delegá-lo ao seu titular; o Estado é

instituído só para preservar a paz e, portanto, todas as primeiras decisões só

podem tratar de garanti-la, e para isso a condição é a indivisibilidade do poder; e essa é indiferente à forma do regime.

Esse pacto é de grande importância e não pode ser rompido pelos seus súditos,

caso contrário, acarretaria uma injustiça. O soberano – o único que possui a liberdade

natural, diferentemente dos súditos – não está obrigado a obedecer ao pacto que foi

elaborado pelos mesmos (os súditos). Se tivesse que subordinar seus atos ao contrato teria

um poder limitado, e por isso não seria soberano.

Conforme diz Hobbes (apud Ribeiro 2003, p. 29), “o estado de igualdade [o estado

natural] é o estado de guerra”. Essa igualdade dá ao homem a plena liberdade de agir que,

guiado por seus impulsos, acaba por criar um estado de guerra de todos contra todos –

pois não existe uma instância reguladora que crie e aplique as leis. Assim sendo, “o juiz

no estado de natureza é o próprio indivíduo” (BERNARDES, 2002, p. 35) que faz aquilo

que melhor julga ser apropriado, pois é livre e autônomo. As leis que produzem efeitos

no comportamento desse indivíduo natural são as leis de honra que fazem com que a

crueldade seja evitada.

Ainda que existam essas leis naturais – que não obrigam os indivíduos a obedecê-

las – é necessário um poder que estabeleça uma ordem e segurança na sociedade. Esse

poder regulamentador, capaz de organizar a sociedade, é o Estado:

[...] a multidão assim unida numa só pessoa [...]. Essa é a geração do grande

Leviatã, ou, antes (para usarmos termos mais reverentes), daquele deus mortal

a quem devemos, abaixo do Deus imortal, nossa paz e defesa. Em virtude da

autorização que cada indivíduo dá ao Estado a usar todo o poder e a força, esse

Estado, pelo temor que inspira, é capaz de conformar todas as vontades, a fim

de garantir a paz em seu país, e promover ajuda mútua contra os inimigos

estrangeiros. (HOBBES, 2012, p. 140)

A essência do Estado é essa pessoa instituída de plenos poderes através de um

pacto firmado entre os indivíduos. O soberano é o detentor desse corpo artificial e deve

usar de todos os meios para estabelecer a ordem na sociedade – inclusive meios negativos,

objetivando fins positivos, que é o bem dos indivíduos. O Estado hobbesiano é o Estado

forte que, dotado da espada, faz reconhecer seus atos como legítimos pelos seus súditos.

Revista Aproximação – 2º semestre de 2013 – Nº 6

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O Estado é instituído para agir na sociedade por um período ilimitado – pois surge

para garantir a vida e a paz dos indivíduos – e se faz necessária a criação do direito de

sucessão. O soberano é juiz e legislador, seus atos são legítimos e visam o bem comum.

Todos os súditos devem considerar os atos de seu soberano como seus atos. Ele é capaz

de promover a paz ou a guerra na sociedade e sua honra e poder devem ser maiores do

que de todos os demais indivíduos.

Esses direitos, acima explicitados, são a essência da soberania que, para se manter,

deve ser unida, indivisível e representada pelo soberano (cf. HOBBES, 2012, p. 148). Os

homens possuem as paixões que provocam todos os malefícios na sociedade, como a

guerra. Já que os homens não possuem a “ciência civil”, a moral, que faz com que seja

assegurado na sociedade o bem comum, tal poder deve ser criado.

Embora muitas vezes pareça que esse poder artificial é prejudicial, seria muito

pior se ele não existisse. O mal maior é a ausência de governo, que faz com que haja no

estado a guerra de todos contra todos e a violência, pois o homem é o lobo do homem e,

não havendo uma instância que regule seu comportamento, ele traz a crueldade para a

sociedade.

Depois de apresentar em linhas gerais o poder na modernidade a partir do Leviatã,

de Thomas Hobbes, demonstraremos o modo com que Michel Foucault rompe com a

perspectiva clássica. Criticando a noção moderna de poder que o via centralizado no

soberano, Foucault vai produzir sua filosofia: o poder não pode ser localizado,

apreendido. Ele não existe por si mesmo, o que existem são relações de poder. O poder

não deve mais ser tratado somente em seus aspectos negativos, como força repressiva, ele

também é positivo: normatiza a sociedade, produz individualidade, saber.

2- O poder microfísico em Michel Foucault

Michel Foucault é um dos mais célebres pensadores da contemporaneidade, seus

escritos são relevantes objetos de investigações. As questões por ele colocadas foram de

extrema importância para a compreensão de seu período como, também, para a de outras

épocas. Neste segundo momento de nossa pesquisa, analisaremos o tratamento

foucaultiano dado ao poder.

Se considerarmos o termo poder em linhas gerais, podemos concebê-lo como:

uma força ativa; uma autoridade, geralmente ligada ao Estado; uma força que delibera,

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age e manda ou; uma força dominante (FERREIRA, 2008, p. 637). Michel Foucault

rejeita o tratamento negativo geralmente dado ao poder, sempre concebido numa estreita

relação com o aparelho de Estado que se utiliza de todos os meios para manter-se na

sociedade, que é a disciplinar. Contudo, “quando ele identificou a sociedade moderna

como uma sociedade disciplinar, ele não afirmou o desaparecimento do modus operandi

da soberania; igualmente, uma sociedade governamentalizada não vem substituir a

sociedade disciplinar” (CANDIOTTO, 2010, p. 39).

O poder foi o termo que ocupou uma posição fundamental em suas pesquisas

genealógicas. Como o filósofo francês afirma ser provisória toda teoria, ele não faz uma

teoria do poder, antes, analisa as formas microfísicas do poder: a sua especificidade, suas

relações, práticas e o seu funcionamento que estão em constante transformação, fazendo

uma analítica do poder. De acordo com Branco (2001, p. 240):

A razão pela qual Foucault desconsidera as teorias do poder tradicionalmente

admitidas é que elas acabam por constituir uma visão do que seria um poder

legítimo, quais seus limites e qual sua origem. A analítica do poder, com o

conjunto de deslocamentos proposto por Foucault, tem por objetivo um outro

tipo de visada do poder. [...] A fase da analítica do poder (1970-1977),

entretanto, é farta de relatos quanto às práticas divisórias, quanto aos

procedimentos estratégicos postos em jogo pelos poderes hegemônicos, e

evidencia uma predileção de Foucault pela descrição das grandes estruturas de

dominação ou das instituições a elas agenciadas.

O poder será analisado por Foucault a partir das suas formas moleculares, nas suas

extremidades, sendo percebido como positivo. “O poder consiste, em termos gerais, em

conduzir condutas e dispor de sua probabilidade, induzindo-as, afastando-as, facilitando-

as, dificultando-as, limitando-as, impedindo-as” (CASTRO, 2009, p. 326). O poder não

existe, o que existe são relações de poder, relações de forças; ele não está localizado em

pontos determinados da sociedade, está em todos os lugares onde existem pessoas

(FOUCAULT, 2012a, p.369). Diz Judith Revel (2005, p. 67):

Foucault nunca trata do poder como uma entidade coerente, unitária e estável,

mas de ‘relações de poder’ que supõem condições históricas de emergência

complexas e que indicam efeitos múltiplos, compreendidos fora do que a

análise filosófica identifica tradicionalmente como campo do poder.

O poder é uma situação estratégica, “[...] é dificilmente localizável ou apropriado

por alguém” (CANDIOTTO, 2010, P. 34), mas atinge todo o corpo social. Roberto

Machado (2006, p.168 apud BRÍGIDO 2012, p. 26) diz que essa mecânica do poder

[...] se expande por toda a sociedade, assumindo as formas mais regionais e

concretas, investindo em instituições, tomando corpo em técnicas de dominação. Poder esse que intervém materialmente, atingindo a realidade mais

concreta dos indivíduos – o seu corpo –, e se situa no nível do próprio corpo

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social, e não acima dele, penetrando a vida cotidiana, e por isso pode ser

caracterizado como micropoder ou subpoder.

Foucault quando pontua que as contribuições dadas ao termo são insuficientes

para descrevê-lo, coloca duas questões: quem exerce o poder? Onde o exerce? O filósofo

ratifica que tal poder não pode ser apropriado por alguém ou por uma instituição, e

acrescenta:

Sabe-se muito bem que não são os governantes que o detém [...]. Além disso,

seria necessário saber até onde se exerce o poder, através de revezamentos e

até que instâncias, frequentemente ínfimas, de controle, de vigilância, de

proibições, de coerções. Onde há poder, ele se exerce. Ninguém é,

propriamente falando, seu titular; e, no entanto, ele sempre se exerce em

determinada direção, com uns de um lado e outros do outro; não se sabe ao

certo quem o detém; mas se sabe quem não o possui (FOUCAULT, 2012a, p.

138).

Assim é descrito o poder microfísico: uma relação de forças que se exerce sobre

os indivíduos que o mantém e o perpetuam; é o poder que circula, que só pode ser

percebido numa cadeia; é uma rede que passa pelos indivíduos, em oposição a outras

concepções, que o viam sempre em uma aplicação, mesmo que despercebido, pois os

indivíduos são os seus efeitos.

Esse micropoder se manifesta quando as diversas práticas, os saberes e as

instituições em uma sociedade se cruzam. As lutas desenvolvidas na sociedade ocorrem

sempre em torno de um específico ponto do poder. O problema dessas lutas é que elas

ignoram o que é o poder. Somente a partir da abertura política e dessas lutas cotidianas

que ocorreram na Europa do século XX é que o poder passa a ser analisado na sua

concretude, nas suas redes moleculares, permitindo com que Foucault desse

prosseguimento ao seu estudo das instituições carcerárias.

O poder não passa pelos indivíduos somente reprimindo-os, disciplinando-os sem

nada produzir. Michel Foucault exprime em Microfísica do poder (p.45): “de fato ele

permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso”. O poder é, desse

modo, muito mais produtivo do que improdutivo, pois gera saber, individualidade, etc. E

é partindo desse caráter produtivo que explicitaremos as contribuições do filósofo francês

ao perceber essa relação poder-saber.

2.1- O poder e o saber

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Na análise foucaultiana o poder aparece sempre numa estreita relação ao saber2,

onde a percebe nos seus estudos sobre as instituições psiquiátricas, hospitalares,

carcerárias. Porém, quando Michel Foucault colocou a questão de que as instituições –

como o hospital e a clínica psiquiátrica – estavam profundamente enraizadas nas

estruturas sociais, os interessados nesta perspectiva – no caso, os médicos e os psiquiatras

– as consideraram problemas sem importância política (cf. FOUCAULT, 2012a, p. 36).

Os motivos para tais recusas foram o marxismo, o stalinismo pós-stalinista e os

intelectuais do Partido Comunista Francês, que não permitiam a “abordagem de caminhos

ainda não percorridos” (FOUCAULT, 2012a, p. 37), fazendo com que questões como o

saber e as instituições enraizadas no poder nunca fossem colocadas. Devido a esses

bloqueios, diz Foucault (2012a, p. 42):

Ninguém se preocupava com a forma como ele [o poder] se exercia

concretamente e em detalhe, com sua especificidade, suas técnicas e suas

táticas. Contentava-se em denunciá-lo no ‘outro’, no adversário de uma

maneira ao mesmo tempo polêmica e global [...]; mas a mecânica do poder

nunca era analisada.

Não obstante, o poder aparece em todas as épocas sempre nesta íntima relação

com o saber. Mesmo que nunca admitida essa relação, e sempre havendo obstáculos e

recusas em afirmá-la, “[...] o poder político [sempre] tramou com o saber: a maneira pela

qual ele faz nascerem efeitos de verdade3 e, inversamente, a maneira pela qual os jogos

de verdade fazem de uma prática ou de um discurso um lugar de poder” (REVEL, 2005,

p. 69).

O poder, como vimos, terá um outro tipo de visada. Ele não está, como em

Hobbes, localizado no soberano que se serve de todos os mecanismos para manter-se. A

partir de Foucault, o poder é uma rede produtiva que gera saber e discurso, não atuando

somente de forma negativa. Foucault (2012a, p.54) também constata que “a ‘verdade’

está circularmente ligada a sistemas de poder que a produzem e apoiam, e a efeitos de

poder que ela induz e que a reproduzem. ‘Regime’ de verdade”. Tratando do saber, ele

apresenta a figura do intelectual, que durante muito tempo fora o detentor do saber.

2 “O saber não é uma soma de conhecimentos, porque desses se deve poder dizer sempre se são verdadeiros

ou falsos, exatos ou não, aproximados ou definidos, contraditórios ou coerentes. [...] [O saber] é o conjunto

dos elementos (objetos, tipos de formulação, conceitos e escolhas teóricas) formado a partir de uma única

e mesma positividade, no campo de uma formação discursiva unitária” (FOUCAULT, 1968, p. 723 apud

CASTRO, 2009, p. 394). 3 A verdade é o “[...] conjunto das regras segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e se atribui ao

verdadeiro efeitos específico de poder” (FOUCAULT, 2012a, p. 53).

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O intelectual era como que uma consciência de todos4, porém, com o passar do

tempo, ele perde o seu papel sendo situado em pontos precisos da sociedade, fazendo com

que surja o intelectual específico, em oposição ao intelectual universal. Segundo Foucault

(2012a, p. 48), “o intelectual foi perseguido pelo poder político, não mais em função do

seu discurso geral, mas por causa do saber que detinha: é nesse nível que se constituía

como um perigo político”. O intelectual específico, na figura do cientista, enquanto

dominante de determinado ponto do saber, representa um perigo para o poder político, e

tende a tornar-se “cada vez mais importante, à medida que, quer queira, quer não, ele é

obrigado a assumir responsabilidades políticas” (FOUCAULT, 2012a, p. 51).

O saber é, assim, algo indissociável do poder que é seu produtor. As instituições,

detentoras do saber e do poder, produzem e transmitem saber na forma de discurso

científico. Essas arquiteturas do poder, as instituições, utilizam-se de dispositivos, que

são meios para fazer reconhecer o poder que possuem e os saberes que produzem.

3- Os dispositivos do poder

O dispositivo surge ocupando um importante espaço nas investigações

genealógicas de Foucault a partir dos anos 1970. Neste período, o filósofo se preocupa

em ponderar os diversos dispositivos do poder utilizados nas práticas institucionais. O

dispositivo é uma estrutura investida pelas instituições que toma os corpos dos indivíduos;

ele é

[...] um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos,

instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis,

medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas,

morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do

dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre esses

elementos (FOUCAULT, 2012a, p. 364). [...] O dispositivo, portanto, está

sempre inscrito em um jogo de poder, estando sempre, no entanto, ligado a

uma ou a configurações de saber que dele nascem mas que igualmente o

condicionam. É isto o dispositivo: estratégias de relações de força sustentando tipos de saber e sendo sustentadas por eles” (FOUCAULT, 2012a, p. 367).

O dispositivo é sempre aplicado ao indivíduo, o qual se torna sujeito de

dominação, tendo seu corpo investido como “objeto e alvo de poder” (FOUCAULT,

2012b, p.132). Ele é fundamental para a organização e administração da sociedade, pois

4 O intelectual era a consciência de todos por ser o detentor do saber; ele fazia reconhecer seu poder no

âmbito das palavras, tomando a atenção das pessoas que paravam para escutá-lo. Para melhor compreensão

das contribuições dadas ao termo, ler Le philosophe masqué (1980), La fonction politique de l’intellectuel

(1976), assim como Quaderni del cárcere (1975) de Gramsci que também contribui na análise do papel

desempenhado pelo intelectual.

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é arquitetado para justificar sua atuação. Estes dispositivos “[...] são inseridos na

sociedade de forma discreta. Chega certo ponto da construção da sociedade, que a

existência desses dispositivos é vista como necessária, indispensável e legítima pelos

próprios cidadãos” (BRÍGIDO, 2012, p. 30). Os que produzem efeitos sobre os corpos

dos indivíduos são os de vigilância e punição, que aparecem de forma explícita em Vigiar

e punir, o estudo das prisões, as arquiteturas do poder.

3.1- A arquitetura do poder

A arquitetura aparece desde longa data ligada ao poder – “essa relação entre

arquitetura e poder passa pelo modo como a organização do espaço distribui o movimento

do olhar, determina a visibilidade” (CASTRO, 2009, p. 42). A arquitetura das instituições

tem por objetivo a docilidade dos corpos, domesticando-os para a manutenção de seu

poder. “Geralmente se chama instituição todo comportamento mais ou menos coercitivo,

aprendido. Tudo que em uma sociedade funciona como sistema de coerção, sem ser um

enunciado, ou seja, todo o social não discursivo é uma instituição” (FOUCAULT, 2012a,

p.368).

A instituição, pela sua arquitetura, possibilita uma melhor organização do espaço

que tem a vigilância como método para que a “ordem” seja mantida. Foucault percebe a

instituição como um sistema coercitivo a partir dos seus estudos sobre a psiquiatria, onde

vê que o saber psiquiátrico não tinha por objetivo a “cura” do louco, mas a domesticação

de seu corpo. As instituições tornam o poder visível mantendo os seus dispositivos,

enquanto intensificação do poder, invisíveis. Elas permitem a melhor distribuição e a

aplicação dos mecanismos do poder, principalmente pela vigilância e punição.

A vigilância consiste num processo de ininterrupto monitoramento dos

indivíduos, descrevendo-os de modo a produzir um saber. Ela é um método que permite

uma melhor organização política e administrativa, porque além de exigir pouca despesa,

faz com que o indivíduo seja seu próprio vigia, pois teme a punição. A vigilância é melhor

aplicada quando a arquitetura permite uma visão panóptica dos indivíduos que lhe são

submetidos. “No panopticon5, cada um, de acordo com seu lugar, é vigiado por todos ou

5 Panopticon é um modelo que, aplicado numa estrutura institucional, pretende manter a relação disciplinar,

pois possibilita uma visão geral em um determinado espaço. Em Vigiar e punir é abordado de modo mais

específico a maneira com que a disciplina se exerce sobre os corpos dos encarcerados, através do

panoptismo. Jeremy Bentham foi quem “[...] programou, definiu e descreveu, da maneira mais precisa, as

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por alguns outros; trata-se de um aparelho de desconfiança total e circulante, pois não

existe ponto absoluto. A perfeição da vigilância é uma soma das malevolências”

(FOUCAULT, 2012a, p. 334).

“Desde a época clássica, o corpo foi descoberto como objeto de poder, que pode

ser manipulado, modelado, treinado, que responde e obedece, tornando-se dócil e hábil à

medida que suas forças se multiplicam” (WELLAUSEN, 2007, p. 5). É justamente esse

corpo domesticado que Michel Foucault abordará em Vigiar e punir, analisando desde os

suplícios até as modernas técnicas disciplinares aplicadas nas (e pelas) prisões.

Foucault, no estudo do nascimento da prisão percebe que embora o funcionamento

da prisão seja assegurado por normas e regulamentos, na sua forma de exercício ocorrem

inúmeras outras práticas – não prescritas pelos regulamentos – que possibilitam a sua

permanência. O trabalho foucaultiano consiste em ir além do nível discursivo

relacionando-o às maneiras com as quais as práticas se exercem.

3.1.1- A prisão

O objetivo de Vigiar e punir: o nascimento da prisão não é somente fazer uma

análise histórica da legislação penal e os seus métodos de aplicação de poder. Contudo, é

fazer uma genealogia da sociedade disciplinar que se serve de todos os dispositivos para

manter uma “ordem”, um poder. Esses dispositivos pretendem atingir os corpos dos

indivíduos, seus objetos. Michel Foucault (2012b, p. 133) diz:

O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o

desarticula e o recompõe. Uma “anatomia política”, que é também igualmente

uma “mecânica do poder”, está nascendo; ela define como se pode ter domínio

sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façam o que se quer, mas

para que se operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a

eficácia que se determina.

A disciplina, aplicada aos corpos por meio de dispositivos, tem por objetivo a

docilidade dos corpos para aumentar a sua força produtiva, diminuindo, ao mesmo tempo,

a sua força política. Foucault (2009b, p. 214) propõe algumas provocações:

Acaso devemos nos admirar que a prisão celular, com suas cronologias

marcadas, seu trabalho obrigatório, suas instâncias de vigilância e de notação,

com seus mestres de normalidade, que retomam e multiplicam as funções do

juiz, tenha-se tornado o instrumento moderno da penalidade? Devemos ainda

formas de poder em que vivemos, e quem apresentou um maravilhoso e célebre pequeno modelo desta

sociedade da ortopedia generalizada: o famoso Panóptico” (FOUCAULT, 1994, p. 594 apud CASTRO,

2009, p. 53-54).

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nos admirar que a prisão se pareça com as fábricas, com as escolas, com os

quartéis, com os hospitais, e todos se pareçam com as prisões?

De fato, a prisão surge como um instrumento que deve agir sobre os corpos dos

indivíduos, assim como outras instituições. Porém, ela fracassa no seu papel de

transformar o indivíduo em um “bom sujeito”, fabricando-o como delinquente, fazendo

com que esse saia pior do que entrou (FOUCAULT, 2012a, p. 217). O sistema penal foi

arquitetado de tal maneira que permitiu um desentendimento entre os delinquentes para

permitir o funcionamento geral do sistema.

A prisão é para Michel Foucault um ponto específico do aparelho disciplinar, que

utiliza-se do olhar panóptico para produzir efeitos sobre os corpos dos indivíduos,

tornando-os dóceis. Esse panoptismo permite um sistema de vigilância perpétuo através

de uma torre central que vigia e dispõe cada um dos indivíduos, aplicando sobre eles a

punição como método coercitivo. O interesse de Foucault na prisão se centra na relação

poder-saber, que permite um funcionamento disciplinar da sociedade.

4- Considerações finais

Foucault pretende insurgir contra a ótica político-jurídica que sempre concebeu o

poder como uma força inseparável do Estado. A partir dos seus estudos sobre a loucura,

a medicina, a prisão, etc. ele percebe que o poder está em todos os lugares, sempre numa

relação com o saber. Michel Foucault procurou não se limitar ao nível discursivo

percorrendo na sua análise o modo em que o poder se dá nas diversas práticas

institucionais, onde percebe uma íntima interação.

As instituições, portadoras de poder e de saber, possuem um controle total do

corpo do indivíduo, fazendo com que esse seja sujeitado através de seus dispositivos. A

psiquiatria tem por objetivo a dominação do louco, e não a sua “cura”. A medicina social

não pretende “curar o doente”, mas tomar o seu corpo, o tornando dócil para não ser mais

um perigo político (e sanitário). A prisão não pretende a “transformação” do delinquente,

ela é um sistema que o torna pior do que entrou, é um local de formação do criminoso.

Todas essas instituições tomam os corpos dos indivíduos para estabelecer na sociedade

alguma ordem, assegurando, assim, o seu funcionamento.

A disciplina é aplicada aos corpos nas instituições através dos dispositivos

disciplinares; esses dispositivos, em especial os de vigilância e punição, garantem todo o

funcionamento do sistema. A vigilância se torna um dispositivo economicamente

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vantajoso, pois o indivíduo que teme ser punido se torna seu próprio vigia. Assim, não

será todo um sistema punitivo que garantirá a segurança social, mas o esquadrinhamento

das pessoas, possibilitando uma vigilância perpétua na sociedade.

O poder está, portanto, localizado em todos os lugares onde existem pessoas – e

não mais no Estado soberano. O poder aparece como uma rede de relações, que são

microfísicas; ele só existe em circulação, é algo que se dá numa cadeia. Aparece sempre

associado a um jogo de verdade, que o produz e é produzido por ele. O poder produz

saber, discurso, normatiza a vida dos indivíduos, assim como produz individualidade.

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Créditos da tradução do resumo: Solange Maria Luz Braga.

Recebido: 08/2013

Aprovado: 12/2013

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A RELAÇÃO ENTRE A TIPOLOGIA DO FORTE E A

MORALIDADE DO COSTUME EM NIETZSCHE

Roberta Franco Saavedra

Graduanda em Filosofia da UFRJ

Resumo: O objetivo desse artigo é investigar as possíveis relações entre a criação da

moralidade dos costumes, tal como tratada em Aurora (1881), e as características da

tipologia do forte descritas por Nietzsche em sua Genealogia da Moral (1887). Assim, o

presente estudo compromete-se a abordar a dupla origem da moral – e, por conseguinte,

apontar para a distinção entre forte e fraco – para, em seguida, caracterizar o tipo forte

descrito por Nietzsche e associá-lo com a moralidade dos costumes.

Palavras-chave: Moralidade do costume. Nietzsche.

Abstract: The goal of this article is to investigate possible relations between the creation

of the morality of customs, as it is described in Daybreak (1881), and the characteristics

of the typology of the strong described by Nietzsche in his Genealogy of Morals

(1887). Thus, this article commits to approaching the double origin of morals – and,

therefore, to point to the distinction between strong and weak – so as to, after that, proceed

to characterize the strong type described by Nietzsche and to associate it with the morality

of customs.

Keywords: Morality of customs. Nietzsche.

Nietzsche, no Prólogo da sua Genealogia da Moral, ao se questionar acerca da

origem do bem e do mal, direciona sua análise para uma questão específica: o valor dos

valores morais:

Sob que condições o homem inventou para si os juízos de valor “bom” e

“mau”? e que valor têm eles? Obstruíram ou promoveram até agora o

crescimento do homem? São indício de miséria, empobrecimento, degeneração

da vida? Ou, ao contrário, revela-se neles a plenitude, a força, a vontade da

vida, sua coragem, sua certeza, seu futuro? (NIETZSCHE, 1998, p. 9)

Ao investigar a origem da significação de termos como “bem” e “mal”, Nietzsche

depara-se com a constatação de uma dupla origem da moral: a nobre e a escrava. A partir

dessa investigação, ressalta o caráter genealógico de seu diagnóstico, tratando de

conceitos como “forte”, “fraco”, “bom”, “ruim”, etc.

Na Primeira Dissertação da Genealogia da Moral, o filósofo empenha-se em

demonstrar essa dupla origem da moral, caracterizando as tipologias do forte e do fraco

para, a partir disso, enunciar o modo como cada tipologia cria valores. O primeiro modo

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– e mais potente – de criar valores advém dos nobres e nasce de um Sim a si mesmo, de

uma força autoafirmativa, plástica, de um transbordamento da vontade de potência. O

estabelecimento desses valores afirmativos eclodiu num primeiro momento,

contrapondo-se, em conseqüência, a tudo aquilo que era o seu oposto, i.e., à fraqueza,

ausência de força. A aristocracia associava o termo “bom” a “nobre”, “poderoso”, “belo”,

“feliz”, “caro aos deuses”, “espiritualmente bem-nascido”, “espiritualmente

privilegiado”. Assim, num ato criador, o nobre definiu a si mesmo como “bom” e, num

segundo momento, tudo o que era baixo como “ruim” – no sentido de fraco, inferior.

Portanto, entende-se esse pathos da distância como pré-requisito da criação de valores

proveniente dos fortes:

Foram os “bons” mesmos, isto é, os nobres, poderosos, superiores em posição

e pensamento, que sentiram e estabeleceram a si e a seus atos como bons, ou

seja, de primeira ordem, em oposição a tudo que era baixo, de pensamento

baixo, e vulgar e plebeu. Desse pathos da distância é que eles tomaram para si o direito de criar valores, cunhar nomes para os valores. (NIETZSCHE, 1998,

p. 16 - 17)

O pathos da nobreza e da distância [...] - eis a origem da oposição “bom” e

“ruim”. (NIETZSCHE, 1998, p. 17)

É preciso compreender plenamente o sentido da denominação “forte” em

Nietzsche. O filósofo enfatiza que o nobre é considerado forte devido à sua tipologia: é

importante frisar que as palavras “nobre” e “escrava” são aqui entendidas estritamente

como traço típico de caráter e não carregadas de alguma significação social. Além disso,

força e fraqueza estão relacionadas à fisiologia: o forte digere as vivências (com o auxílio

do esquecimento, que será abordado posteriormente), enquanto o fraco ressente e se deixa

envenenar por esse ressentimento. Devido a isso, os nobres são fisiologicamente fortes,

i.e., sua constituição física é ativa, saudável, vigorosa - o que lhe garante a conservação

da vida:

Os juízos de valor cavalheiresco-aristocráticos têm como pressuposto uma

constituição física poderosa, uma saúde florescente, rica, até mesmo

transbordante, juntamente com aquilo que serve à sua conservação: guerra,

aventura, caça, dança, torneios e tudo o que envolve uma atividade robusta,

livre, contente. (NIETZSCHE, 1998, p. 22)

Em contrapartida, a moral escrava se origina por meio de uma dupla inversão dos

valores: os fracos, por possuírem uma natureza débil, ressentida, incapaz de digerir as

vivências e por isso impotente e vingativa, utilizam o ressentimento para reagir ao modo

de valoração nobre, i.e., seu ato criador consiste numa negação dos valores aristocráticos.

Essa moral ressentida surge, num primeiro momento, de um Não ao outro (no caso, o

nobre) para, posteriormente, num segundo momento, dizer um impotente Sim a si – por

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meio de deduções lógicas. Tudo se passa como se o fraco elaborasse o seguinte raciocínio:

você, forte, a quem invejo, é mau; eu sou o seu oposto; logo, sou bom. Sob essa

perspectiva, o forte é representado como o “mau”, enquanto o fraco se considera o “bom”.

Assim, devido à ausência de força no fraco, a sua criação de valores é dependente da

valoração que é rejeitada por ele1: por isso, pode-se afirmar que sua ação é de cunho

fundamentalmente reativo.

A rebelião escrava na moral começa quando o próprio ressentimento se torna

criador e gera valores: o ressentimento dos seres aos quais é negada a

verdadeira reação, a dos atos, e que apenas por uma vingança imaginária obtêm

reparação. Enquanto toda moral nobre nasce de um triunfante Sim a si mesma,

já de início a moral escrava diz Não a um “fora”, um “outro”, um “não-eu” – e este Não é seu ato criador. (NIETZSCHE, 1998, p. 26)

Como dito anteriormente, a moral escrava advém de indivíduos nos quais o

ressentimento é o motor da criação de valores. Esse ressentimento se desenvolve em

organismos que são incapazes de um esquecimento ativo e, como conseqüência, se

permitem envenenar por esse fluxo e refluxo constante do ato de ressentir. Assim, devido

à sua incapacidade de esquecer e, por conseguinte, superar as vivências, o fraco vive uma

vida degenerada, enfraquecida, enferma – isso representa a negação da vida. Em

contraposição, o forte é aquele que possui o esquecimento ativo e vigoroso, i.e., sua força

é afirmadora da vida, pois não se encontra aprisionada em ressentimentos indigestos.2 O

esquecimento se dá através de um excesso de força plástica e é requisito básico para uma

vida afirmativa, potente, saudável: o forte promove, exalta, fomenta a vida.3

Dado o exposto, é possível compreender a força como pertencente à tipologia do

forte – tipologia essa dotada de vontade de potência, capacidade criadora, força plástica,

etc., ou seja, elementos que propiciam a criação, a inventividade, a ação artística. Essa

1 Enquanto a moral nobre é independente por surgir de uma afirmação própria, a moral escrava é

completamente dependente do seu oposto, pois nasce justamente em função da existência da moral que lhe

é antagônica. Aí a fraqueza típica do fraco e a força do forte tornam-se visíveis: aquele carente de força é

incapaz de agir sem precedentes, sem ressentimento: é o ressentimento – reativo - que move a criação da

moral escrava, enquanto a ação potente move o modo de valoração nobre: “Esta inversão do olhar que

estabelece valores – este necessário dirigir-se para fora, em vez de voltar-se para si – é algo próprio do ressentimento: a moral escrava sempre requer, para nascer, um mundo oposto e exterior, para poder agir

em absoluto – sua ação é no fundo reação. O contrário sucede no modo de valoração nobre: ele age e cresce

espontaneamente, busca seu oposto apenas para dizer Sim a si mesmo com ainda mais júbilo e gratidão.”

(NIETZSCHE, F. Genealogia da Moral, I, § 10) 2 O forte não está eximido do ressentimento, porém, quando ressente, não se permite envenenar por esse

ressentimento, não se torna vítima e presa dele: “Mesmo o ressentimento no homem nobre, quando nele

aparece, se consome e se exaure numa reação imediata, por isso não envenena.” (NIETZSCHE, F.

Genealogia da Moral, I, § 10) 3 Cabe ressaltar que os estados de força e de fraqueza não são permanentes: são provisórios, pois não há

indivíduo essencialmente forte ou essencialmente fraco; isso é construído por diversos fatores e cada

indivíduo administra em si determinados níveis de força e de fraqueza.

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força afirmativa, ao representar “um querer-dominar, um querer-vencer, um querer-

subjugar”4, não pode ser expressa de modo distinto daquilo que a impulsiona: força e ação

são indissociáveis - são uma só e mesma coisa. Por isso, a força remete necessariamente

à ação e negar isso, i.e., esperar da força que não se exprima como força, é algo tão

equivocado quanto desejar que a fraqueza se expresse como força:

Exigir da força que não se expresse como força, que não seja um querer-

dominar, um querer-vencer, um querer-subjugar, uma sede de inimigos, resistências e triunfos, é tão absurdo quanto exigir da fraqueza que se expresse

como força. Um quantum de força equivale a um mesmo quantum de impulso.

(NIETZSCHE, 1998, p. 32 – 33)

Ao analisar as relações estabelecidas entre as tipologias forte e fraca, Nietzsche

lamenta que, historicamente, os fortes tenham sido derrotados pelo ressentimento dos

fracos, e que a “rebelião escrava na moral” tenha sido vitoriosa e tenha se concretizado e

se enraizado na cultura ocidental com o cristianismo. Nesse sentido, a cultura ocidental

de origem socrático-cristã traria consigo a marca de uma moralidade fraca. Contudo,

embora tome este dado como marcante de nossa cultura, Nietzsche não deixa de apontar

para a possibilidade de superação desse modo ressentido de estabelecer valores. E, ao

fazê-lo, refere-se a um tipo de moralidade que teria emergido num momento histórico

anterior à moralidade com a qual conviveríamos atualmente, e que, como pretendo

analisar, manteria uma íntima relação com a tipologia do forte trabalhada na Genealogia

da Moral. Trata-se da moralidade dos costumes, à qual Nietzsche se dedica mais

detidamente em Aurora, e que não por acaso volta a ser referida por ele no Prefácio da

Genealogia da Moral.

A moralidade dos costumes é baseada na idéia do todo, da comunidade, do

coletivo em detrimento do individual. Essa mentalidade é fundamental para a manutenção

da ordem e dos costumes vigentes numa sociedade que é pautada na obediência à

autoridade, que ocorre com o auxílio da coerção social. Assim, a moralidade dos costumes

é uma camisa de força social que incita o indivíduo a honrar a autoridade não em função

de concordar com o conteúdo do que é mandado, mas sim porque algo é mandado, pois

“qualquer costume é melhor do que nenhum costume”5. A obediência concernente a esse

tipo de moralidade é relacionada à tradição – é a voz da tradição que está revestida de

autoridade. Por isso, há um “medo supersticioso” no sentimento ante a tradição, pois ela

possui origens desconhecidas, poderes supremos: ela representa o incompreensível, o

4 NIETZSCHE, 1998, p. 32 5 NIETZSCHE, 2004, p. 23

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incerto, o imprevisível e esse é um dos mecanismos que garante a manutenção da

obediência aos costumes: aquele que ousa desobedecer aos hábitos e às leis referentes à

tradição sofre todo tipo de sacrifício e martírio – impostos pelos membros da comunidade,

os quais sentem-se ameaçados com a postura do indivíduo “imoral”. Portanto, a

moralidade dos costumes tem como base imprescindível a obediência à autoridade e o

sentimento – receoso - perante a tradição para garantir a submissão diante dos costumes,

o que é comprovado no aforismo que segue:

Assim, por exemplo, este axioma: a moralidade não é outra coisa (e, portanto,

não mais!) do que obediência a costumes, não importa quais sejam; mas

costumes são a maneira tradicional de agir e avaliar. [...] O que é a tradição?

Uma autoridade superior, a que se obedece não porque ordena o que nos é útil,

mas porque ordena. – O que distingue esse sentimento ante a tradição do

sentimento do medo? Ele é o medo ante um intelecto superior que manda, ante

um incompreensível poder indeterminado, ante algo mais do que pessoal – há

superstição nesse medo. (NIETZSCHE, 2004, p. 17 -18)

O sentimento de medo ante a indeterminação inerente à tradição é causa da

punição do indivíduo que desonra os costumes vigentes: a comunidade, após identificar

a desobediência à ordem estabelecida, cuida para que a ação (que destoa da obediência

aos costumes) seja revertida, de modo que o coletivo não sofra o castigo consequente do

ato “imoral” do indivíduo. Segundo Nietzsche, quando uma ação é julgada pelas lentes

da moral, todo impulso é acompanhado de uma boa ou má consciência, i.e., determinado

impulso está vulnerável a ser reprovado e julgado ou aprovado e exaltado. Os impulsos

reprováveis são aqueles que ameaçam a estabilidade da ordem na comunidade. Assim,

são carregados de má consciência e culpa: é um modo de impor um castigo ao indivíduo

que ousa desmistificar os limites da moralidade vigente. Todo e qualquer ato considerado

“imoral” assume esse papel por representar uma intimidação para os demais membros da

comunidade. Portanto, esse “ato imoral” é acompanhado de uma má consciência, o que é

elucidado no seguinte trecho de Aurora:

O mesmo instinto torna-se o penoso sentimento da covardia, sob efeito da recriminação que os costumes lançaram sobre tal instinto; ou o agradável

sentimento da humildade, caso uma moral como a cristã o tenha encarecido e

achado bom. Ou seja: ele é acompanhado de uma boa ou de uma má

consciência! Em si, como todo instinto, ele não possui isto nem um caráter e

denominação moral, nem mesmo uma determinada sensação concomitante de

prazer e desprazer: adquire tudo isso, como sua segunda natureza, apenas

quando entra em relação com instintos já batizados de bons e maus, ou é notado

como atributo de seres que já foram moralmente avaliados e estabelecidos pelo

povo. (NIETZSCHE, 2004, p. 36 - 37)

Dessa forma, aquele que rompe os preceitos da moralidade dos costumes está

vulnerável a sofrer todo castigo e toda punição que a sociedade julgar necessários para

manter o bem-estar do todo. Porém, há um caráter ambíguo nesse indivíduo que rompe o

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jugo da moralidade dos costumes: em um primeiro momento, de imediato, é acusado de

imoral e criminoso; e, num segundo momento, há a possibilidade desse mesmo indivíduo

assumir o papel de mártir, herói. Isso ocorre pelo fato de o forte ser aquele que cria e ao

mesmo tempo destrói essa moralidade: essa destruição se dá como efeito do excesso de

força plástica e criadora - que emana do forte - e engendra uma nova moralidade, um

outro querer-dominar6. Então, o papel do forte na moralidade dos costumes assume uma

função ambígua: essa moralidade é proveniente dos fortes – aqueles que, como já visto

anteriormente, são os que ordenam, os que fazem obedecer - e concomitantemente é

também questionada e contestada por esses mesmos indivíduos que nela se desenvolvem.

A tarefa da moralidade dos costumes é a de criar a camisa de força social e impor a

obediência aos costumes por meio da utilização de mecanismos tais como o medo ante a

tradição. Porém, dessa pressão por obediência (causada pela autoridade), eclode também

o forte que, enquanto se revolta contra essa moralidade – por ser de sua natureza o querer

mandar, o querer dominar, o fazer obedecer e não apenas o obedecer – torna-se imoral,

mas posteriormente também cria valores e faz obedecer: cria uma nova moralidade dos

costumes.

Há que retirar boa parte da calúnia lançada sobre os homens que romperam

através de uma ação a autoridade de um costume – geralmente são chamados

de criminosos. Todo aquele que subverteu a lei de costume existente foi tido

inicialmente como homem mau: mas se, como sucedeu, depois não se

conseguia restabelecê-la e as pessoas acomodavam-se a isso, o predicado

mudava gradualmente; - a história trata quase exclusivamente desses homens

maus, que depois foram abonados, considerados bons! (NIETZSCHE, 2004,

p. 26 – 27)

Há uma contínua transformação e elaboração da moral – ocasionada pelos

crimes com desfecho feliz (entre os quais estão, por exemplo, todas as inovações do pensamento moral). (NIETZSCHE, 2004, p. 73)

Cabe ressaltar a importância que Nietzsche proporciona ao papel da loucura na

irrupção de uma moralidade divergente da moralidade vigente: de acordo com o filósofo,

toda instauração de uma moralidade só é possível quando há o “tempero da loucura”. Esse

ingrediente imprescindível na implantação de uma moralidade inédita tem de ser a

loucura porque ela carrega consigo imprevisibilidade, desconfiança, involuntariedade,

etc. No aforismo que segue, Nietzsche justifica a importância da loucura:

Compreendem por que tinha de ser a loucura? Algo que fosse, em voz e gestos,

assustador e imprevisível como os demoníacos humores do tempo e do mar e,

6 Devido a essa capacidade dos fortes de cunhar valores utilizando como motor sua vontade de potência e

sua força afirmativa, essa tipologia pode ser considerada como detentora de uma certa independência, no

sentido em que não se submete à obediência aos costumes e cria sua própria moralidade: “O ser

independente é pecúlio dos raros; é privilégio dos fortes.” (NIETZSCHE, F. Além do bem e do mal, §29)

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portanto, digno de semelhante temor e observação? Algo que ostentasse tão

visivelmente o signo da completa involuntariedade como os tremores e a baba

de um epiléptico, que parecesse distinguir o louco como máscara e porta-voz

de uma divindade? (NIETZSCHE, 2004, p. 21)

Além disso, Nietzsche acrescenta a necessidade da presença da loucura quando

um indivíduo pretende negar os costumes vigentes alegando que, caso este não seja louco,

terá que assumir o papel de louco justamente para viabilizar a validação da implantação

de outros costumes. Para ir além das leis tão enfaticamente enraizadas na comunidade,

era necessário ser portador de uma loucura divina, grandiosa e empreendedora a ponto de

romper a força da tradição e estabelecer outra moralidade. Enquanto o indivíduo que é

detentor da sanidade é complacente com as leis, o detentor da loucura viveria uma vida

que destoa das convenções com as quais teve que lidar durante tempo considerável.

Porém, segundo a história, para assumir o papel desse indivíduo que não pertence ao meio

no qual está “inserido” e romper com essas regras inaugurando outras regras, é preciso

um quantum de sacrifício, dor, martírio, confusão mental, isolamento – se elevar para

acima da lei requer doação de força e abnegação de determinados instintos que

prejudiquem essa capacidade de se revoltar contra a moralidade presente:

As receitas para tornar-se um curandeiro entre os índios, um angekok entre os

nativos da Groelândia, um pajé entre os brasileiros, são essencialmente as

mesmas: jejum absoluto, prolongada abstenção sexual, ir para o deserto ou

subir uma montanha ou um pilar, ou “pôr-se num velho salgueiro com vista

para um lago” e não pensar em nada que não produza arrebatamento e confusão

espiritual. (NIETZSCHE, 2004, p. 22)

Por fim, dado o exposto, é possível compreender o que Nietzsche entende por

forte (indivíduo que emana um excesso de força plástica, vontade de potência e, por

conseguinte, capacidade criadora), fraco (indivíduo ressentido, vingativo, incapaz de

digerir as vivências por possuir um esquecimento deficiente) e a relação estabelecida

entre a moralidade dos costumes e a tipologia do forte, considerando todos os aspectos

inerentes a essa moralidade: obediência aos costumes, coerção social, sentimento de

medo ante o incompreensível, etc. Além disso, é possível também conceber o papel

fundamental da loucura na irrupção de um modo de valorar que diverge da moralidade

vigorante.

Bibliografia

NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo,

Companhia das Letras, 1998.

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___________________. Aurora: reflexões sobre os preconceitos morais. Trad. Paulo

César de Souza. São Paulo, Companhia das Letras, 2004.

___________________. Além do Bem e do Mal. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo,

Companhia das Letras, 1992.

Recebido: 02/2013

Aprovado: 08/2013

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A VERDADE ENQUANTO ALÉTHEIA E SUA DINÂMICA

ENTRE HEIDEGGER E LACAN

Bruno Abilio Galvão

Graduado em Filosofia pela UFES

Eliene Rocha Gomes

Graduada em Psicologia pela UFES

Resumo: A verdade enquanto alétheia, resgatada dos gregos por Heidegger, diz respeito

à dinâmica de encobrimento e desencobrimento da relação entre ser e ente. Os entes,

componentes da physis, têm por essência o ser e correspondem ao aparente, enquanto o

ser ocupa uma posição inaparente. Assim, na physis, que abrange todas as coisas

existentes, o ser se oculta em cada ente que aparece. Portanto, a verdade enquanto alétheia

corresponde a essa dinâmica em que apenas é possível delimitar e dizer a parte desta que

aparece. Lacan, dialogando com Heidegger, tem por objetivo mostrar como o pequeno a,

objeto perdido e causa de desejo, aparece somente enquanto objeto provisório e parcial

para tamponar a falta estrutural. Uma vez que essa falta é fundante do sujeito e indizível,

os objetos tomados pelo analisando como semblantes dessa falta só aparecem em análise.

Palavras-chave: Alétheia. Ente. Pequeno a. Ser.

Abstract: The truth as alétheia rescued from the Greeks by Heidegger regards the

dynamic of concealment and uncovering the relationship between be and being. The

beings, components of physis, have in essence the be and correspond to apparent while

be occupies a unapparent position. Thus, the physis, which covers all existing things, be

is hidden in each entity that appears. So the truth as alétheia matches this dynamic in that

it is only possible to delimit and say that this part appears. Lacan dialogue with Heidegger,

aims to show how the little a, and lost object cause of desire, appears only as provisional

and partial object to buffer the structural fault. Once, this lack is the foundational subject

and unspeakable, the objects taken by analyzing as countenances this lack only appear in

treatment.

Keywords: Alétheia. Being. Little a. Be.

1- Introdução

O objetivo deste trabalho é compreender a relação entre saber e verdade de acordo

com a prática analítica da Psicanálise proposta por Jacques Lacan. Tomamos como ponto

de partida a afirmativa de Lacan, presente no capítulo VIII do Seminário 20, intitulado

Mais, Ainda, que correlaciona a verdade ao termo grego alétheia: “A verdade, digamos,

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para irmos direto ao assunto, é de origem, άλήθεια, termo sobre o qual tanto especulou

Heidegger.” (LACAN, 1985, p. 123). Portanto, para compreendermos o sentido que

Lacan atribui à verdade, é necessário mostrar como Heidegger compreende a verdade

enquanto alétheia e como ela é utilizada por Lacan.

2- Alétheia enquanto dinâmica de desencobrimento e encobrimento

A palavra alétheia, para os gregos antigos, significava o aparecimento ou o

desencobrimento do que compreendiam como physis e logos, e “sentido” ou “verdade do

ser” para Heidegger é o surgimento dos entes que compõem a physis (PESSOA, 2003).

Portanto, a verdade ou o sentido do ser é configurada no desencobrimento ou surgimento

da physis e do logos enquanto unidade originária, o desencobrimento se dá pela

diferenciação do mesmo que a constitui, ou seja, daquilo que é manifesto ou existente.

Trata-se de desencobrir-se a partir do ser do que já está desencoberto. Portanto, o

desvelamento de um ente se dá a partir da própria physis, que é composta destes.

Sobre a alétheia, Heidegger, no fragmento 112 de Heráclito, traduz como:

O pensamento do sentido (phroneîn) é a coragem mais nobre (aretè) e isso

porque (kai) saber (sophie) é: recolher (légein) (do encobrimento para o

desencobrimento) o desencoberto (alétheia) na sua pro-dução (poieîen)

realizada na medida do surgimento (kata phýsin) (PESSOA, 2003, p. 78).

A partir desse fragmento de Heráclito, podemos afirmar que alétheia é

compreendida por esse pensador como a passagem do coberto para o desencoberto. Uma

vez que “no pensamento de Heráclito tudo – e não apenas deuses e homens, livres e

escravos -, mas tudo, sem qualquer exceção, é compreendido no movimento ordenador

da inversão: dia e noite, saúde e doença, justiça e injustiça, inverno e verão, etc” (BRITO

JR., s. d., pág. 83) Assim, a questão da verdade se dá nesse jogo ou movimento de inversão

dos opostos e a verdade apontada por Heidegger como desencobrimento evoca a relação

da passagem de um estado ao seu contrário, assim o desencobrimento só pode ocorrer

mediante a negação do encobrimento. Há a primazia do encobrimento em relação ao

desencobrimento, pois para aparecer é necessário antes estar oculto e o sentido e a verdade

do ser está no aparecimento (PESSOA, 2003).

Então, a partir dessa relação de contrários pautada na alternância entre

ocultamento e aparecimento, como pensar essa relação, se para Heidegger a physis, tudo

que existe, é composta por entes e o desencobrimento é a diferenciação do que aparece?

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Desta maneira, pensar somente o aparente é pensar que tudo o que surge decorre do que

já é enquanto ente. Quando o ente aparece algo está oculto, pois a alternância exige troca.

Disso que se oculta, é possível apenas fazer apontamentos já que se trata do que nossos

olhos não alcançam. Considerando tudo o que surge como ente e a physis constituída de

entes, tudo o que existe, então o que permanece oculto se oculta no próprio ente. Segundo

Pessoa (2003), o surgimento dos entes é o sentido e a verdade do ser, tudo o que aparece

é ente, já o que se distingue dos entes é o dessemelhante enquanto sentido e verdade,

portanto, o que se distingue dos entes é o ser. Então o ser, enquanto distinto dos entes,

mantém-se oculto neles. Se a verdade do ser é o ente e este se oculta, podemos

compreender sua verdade como aparente enquanto desencobrimento, o que corresponde

a apenas uma parte da verdade.

Compreender o significado da verdade enquanto alétheia implica em considerar

aquilo que possui primazia no acontecimento. Nesse sentido, Pessoa (2003) propõe o

sentido de “encobrimento” (léthe), que na palavra alétheia se apresenta negado pelo

prefixo “a”, como fenômeno que se dá em três momentos complementares: a própria

diferença, o ocultamento e o esquecimento.

O primeiro momento, a própria diferença ontológica entre ser e ente é

caracterizada como a participação do ser naquilo que aparece. Se tudo o que aparece é

ente, então o ser que participa do aparecimento do ente permanece inaparente neste. Dessa

forma, o primeiro aspecto do encobrimento mostra que o ser se encobre no aparecimento

dos entes.

O segundo momento, o ocultamento do ser no ente constitui a essência dos entes,

o ente enquanto aquilo que surge é o que aparece do verdadeiro. Este, ao mostrar-se,

torna-se “publicamente” conhecido, possibilitando a enumeração de várias

características, porém essas são tomadas como a verdade em sua completude e não como

parte da verdade, o que encobre a possibilidade de apreender o sentido do ser que se dá

no ente, “a aparência, doxa, não é uma coisa ao lado do ser e da revelação (unverborgen),

mas pertence sempre a essa” (HEIDEGGER apud PESSOA, 2003, p. 81).

O terceiro momento é o que Heidegger chama de “esquecimento”, fenômeno que

mantém íntima ligação com a compreensão dos aspectos do ente, como a verdade em sua

totalidade, contribuindo para que o sentido do ser permaneça oculto. Então, o

esquecimento consiste em tomarmos as aparências como a verdade em sua completude e

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“se funda no fato de não sabermos que estamos esquecidos, pois, se assim não fosse,

lembraríamos” (PESSOA, 2003, p. 81).

Esses três momentos do encobrimento constituem o fenômeno da léthe em que o

ente é mostrado como ele não é, de forma parcial. Ao mostrar o ente como ele não é, não

o desvincula da verdade originária (alétheia), pois é parte desta, o que Heidegger

compreende como “errância”. “A errância é a antiessência fundamental da essência

originária da verdade” (PESSOA, 2003, p.82). Assim, errância consiste no discurso e nas

atitudes daqueles que se voltam, por falta de compreensão dessa conjuntura, para as

determinações públicas que os entes são vinculados. Uma vez que a “não verdade”, como

se compreende o ente, é uma parte da verdade que oculta a compreensão total do ser, esta

não precisa ser excluída, pois é fundamental para a dinâmica dos contrários, mantendo o

movimento e o jogo entre ser e ente, verdade e aparência.

3- O objeto perdido e sua aparência

A verdade enquanto alétheia, proposta por Heidegger e sua aproximação ao

processo de análise psicanalítica em Lacan é possível à medida que em Lacan há um

ponto de partida comum e não tomado ao acaso. Lacan afirma acerca da verdade: “[...]

toda a verdade, é o que não se pode dizer. É o que só se pode dizer com a condição de

não levá-la até o fim, de só se fazer semi-dizê-la”. (LACAN, 1985, p.124)

A verdade em sua totalidade não pode ser dita, ela é apenas “semi-dita”, o dizer

mostra apenas uma parte e a outra permanece indizível. A verdade enquanto

desencobrimento é composta pelo ente, parte aparente, e pelo ser, que permanece oculto,

podemos considerar o processo analítico como uma relação entre entes, na dinâmica do

discurso do sujeito. O analisando por meio da linguagem se coloca enquanto discurso na

análise, ao se colocar, toda a verdade não é possível ser dita, pois o ser do ente permanecer

oculto, assim é possível apenas produzir um saber acerca do aparente em relação à

verdade, ou seja, aos aspectos e características do ente que aparecem no discurso.

Para Lacan (1985), entre o dito e o indizível há um limite, o “gozo”, que só

pode ser apreendido por meio de uma aparência, de um objeto parcial, o pequeno a, pois

“este, por estar no bom caminho, ele nos fará tomá-lo por um ser em nome de ser

aparentemente alguma coisa” (LACAN, 1985, pág 128). Definido como “algo que não

pode ser representado, um resto, que se constitui como um ponto de furo no psiquismo,

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que causa no sujeito a busca de um reencontro, a busca do objeto perdido” (GUEDES,

2010, pág. 162).

O pequeno a, objeto causa de desejo, consiste em objetos substitutivos que o

sujeito busca para tamponar a falta fundante do início de sua vida, sabe ter perdido algo,

mas o que perdeu permanece inaparente. O sujeito lacaniano, ao se deparar com

semblantes desse objeto, tende a mover-se sempre em direção a eles motivado pelo

desejo.

O pequeno a possui duas instâncias, a primeira que é perdida e indizível e a

segunda que é semblante ou aparente. Considerando que a verdade apontada aqui como

desejo é a instância aparente que se dá repetidamente, pois é impossível dizer toda a

verdade, o outro, o analista, é tido como um lugar do saber e para o analisando, é como

se analista conhecesse toda a verdade, essa suposição que parte do analisando não

corresponde à realidade. O outro, o lugar do saber, trata-se apenas de uma suposição de

quem se coloca em análise, o analista detém somente o aparato teórico funcional para se

estruturar o discurso que escuta e, a partir do que é aparente, do que se mostra, produzir

um saber.

Portanto, podemos dizer que a relação entre verdade e saber, compreendida sob a

dinâmica da alétheia, se dá em relação ao desejo e a sua causa, o pequeno a, que, por se

tratar de algo perdido, mantém fora do alcance do analisando a possibilidade de saber o

que ele é. O sujeito em processo de análise, em constante devir, se deparará com outros

objetos que possuam o semblante daquilo que foi perdido e, ao ser motivado pelo desejo

de encontro, se moverá em busca do que é aparente tomando-o como o que completa a

falta real. Nessa dinâmica entre ser e ente, há algo que permanece oculto e, ao permanecer

oculto, permite que outros objetos apareçam enquanto semblante para o sujeito fazendo

com que este se mova em direção a esse objeto.

4- Conclusão

Podemos concluir que Lacan, ao falar do objeto perdido causa de desejo, fundante

da falta estrutural e da busca por esse objeto que possam suprir tal falta, faz com que o

indivíduo se mova em direção a outros objetos que possam suprir tal falta. Uma vez que

ele desconhece o que de fato lhe falta e tomando o objeto como substituto, este objeto

adotado, possível de ser dito em processo de análise, proporcionará o saber somente de

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uma parte da verdade, pois a falta estrutural do sujeito é indizível. Assim, a verdade para

Lacan é compreendida e utilizada no sentido pensado por Heidegger como alétheia, em

que o ser, enquanto essência do ente, se oculta nele na medida em que o ente surge,

constituindo dessa forma a verdade sobre o ser, em que uma parte da verdade pode ser

dita, a aparente e a outra permanece inefável. Assim, como nos disse Lacan, “[...] toda a

verdade, é o que não se pode dizer” (LACAN, 1985, p.124), pois esta só pode ser “semi-

dita”.

Bibliografia:

BRITO JR. Bajonas Teixeira. Os primeiros pensadores gregos (Introdução ao

pensamento da filosofia). [s. l.]. [s. n.]. [s. d.].

GUEDES, Denise de Fátima Pinto. Uma introdução ao conceito de objeto a. Psicanálise

& Barroco em revista, Rio de Janeiro, v.8, n.1: 159-174, jul.2010.

LACAN, Jacques. Mais, ainda – Cap. VIII – O saber e a verdade. Rio de Janeiro. Jorge

Zahar Editor. 1985.

PESSOA, Fernando Mendes. O assunto e o caminho do pensamento de Heidegger.

Espírito Santo. Edufes. 2003.

Recebido: 08/2013

Aprovado: 12/2013

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FOUCAULT: DAS PRÁTICAS DO SUPLÍCIO AO SURGIMENTO

DA PRISÃO

Kairon Pereira de Araujo Sousa

Graduando em Psicologia da UESPI

Resumo: Em sua genealogia do ato de punir, Foucault nos apresenta dois modelos

distintos de aplicação da pena: o suplício (antiguidade) e a prisão (modernidade). O

objetivo deste artigo é analisar como se deu essa evolução de uma sociedade do

espetáculo à prisional, isto é, discutiremos esses diferentes estilos de punição,

característicos de um dado momento histórico, tomando como questionamento a seguinte

pergunta: essa modificação da forma de punir representou ou não um progresso para a

sociedade?

Palavras-chave: Prisão. Punição. Suplício.

Abstract: In his genealogy on the act to punish, Foucault presents us two different models

of applying penalty: the suplicio (antiquity) and imprisonment (modernity). The purpose

of this article is to analyze how this evolution occurred from a society of the spectacle to

prison system, that is, we will discuss those different styles of punishment, which are

characteristic of a particular historical moment, taking as questioning the following

question: Did this modification in the form of punish represent or not an progress to

society?

Keywords: Prison. Punishment. Suplicio.

1- Considerações iniciais

Em Vigiar e Punir, Foucault tece uma reflexão concernente aos recursos sociais

utilizados para castigar ou punir os indivíduos desordeiros do meio comunitário. Para

tanto, o filósofo inicialmente descreve as formas impactantes de punição do corpo através

da encenação da dor (suplício), cuja finalidade consistia em imprimir no corpo do

condenado todo o sofrimento desencadeado por ele à sociedade. Trata-se, portanto, de

um ritual que “visa marcar o corpo da vítima, tornar infame o criminoso, ao mesmo tempo

em que esta violência que marca é ostensiva, caracterizada pela demonstração excessiva

do poder daquele que pune” 1.

Por conseguinte, no início do século XIX com o surgimento da prisão,

estabelecida a partir de uma nova legislação sob o ato e direito de punir, desaparece a

1 Alvarez. Controle social: notas em torno de uma noção polêmica, p. 171

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tortura física, despontando a concepção do sujeito de direito, que dentre outros detém o

direito sublime de existir, ou seja, direito à vida. Neste trabalho verificaremos como se

deu essa evolução de uma sociedade do espetáculo à prisional, isto é, discutiremos esses

diferentes estilos de punição, característicos de um dado momento histórico.

2- O espetáculo punitivo: o corpo supliciado

Foucault analisa as práticas de punições decorrentes do processo punitivo do

corpo, enquanto o lócus da expiação do sofrimento. O corpo supliciado é o corpo

torturado, violentado, humilhado, esquartejado, exposto ao público em um cerimonial

teatral, onde o criminoso totalmente sob domínio tem sua sentença cumprida através de

um ritual de crueldade. Nesse cenário atroz, conforme Foucault, “o condenado era

arrastado sobre uma grade [...], seu ventre aberto, as entranhas arrancadas às pressas, para

que ele tivesse tempo de vê-las com seus próprios olhos ser lançadas ao fogo; em que era

decapitado enfim e seu corpo dividido em postas” 2.

Dessa forma, o castigo ocorria através da utilização de variados métodos de

condenação. Não bastava somente o encarceramento do criminoso, isolando-o do corpo-

social. Nesse contexto condenatório, fazia parte do espetáculo a exposição do sentenciado

à comunidade, através de percursos pelas vias públicas, anúncios fixados nas partes do

corpo de modo a trazer à tona a sentença, paradas em determinados pontos ou

cruzamentos, além do pronunciamento do texto de condenação e declaração aberta a

entrada do templo, no qual o condenado afirmava solenemente seu delito.

De acordo com Foucault, “as penas físicas tinham, portanto, uma parte

considerável. Os costumes, a natureza dos crimes, o status dos condenados as faziam

variar ainda mais” 3. Desse modo, segundo Silveira: “dentre os suplícios Foucault [...]

elencou uma série deles, destacando em especial os que configuravam penas de morte,

abrangendo todos os tipos de morte” 4.

forca, mão ou a língua cortada ou furada, arrebentados vivos, expirar na roda,

membros arrebentados, arrebentados até a morte natural, queimados vivos, queimados depois de estrangulados; puxados por quatro cavalos. E [...]

2 Foucault. Vigiar e Punir, p. 17 3 Ibid., p.33 4 Silveira. Michel Foucault e a constituição do corpo e da alma do sujeito moderno, p.50.

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também havia: a exposição do supliciado, a roda, a coleira de ferro, ao açoite,

e a marcação com ferrete5.

Foucault, entretanto, destaca que o suplício, enquanto uma técnica punitiva não

pode ser “equiparado aos extremos de uma raiva sem lei.” 6 Em outras palavras, a pena

para ser considerada um suplício deveria obedecer a alguns princípios dentre eles:

em primeiro lugar, produzir uma certa quantidade de sofrimento que se possa,

se não medir exatamente, ao menos apreciar, comparar e hierarquizar; a morte

é um suplício na medida em que ela não é simplesmente privação do direito de

viver, mas a ocasião e o termo final de uma graduação calculada de

sofrimentos: desde a decapitação — que reduz todos os sofrimentos a um só

gesto e num só instante: o grau zero do suplício — até o esquartejamento que os leva quase ao infinito, através do enforcamento, da fogueira e da roda, na

qual se agoniza muito tempo; a morte suplício é a arte de reter a vida no

sofrimento, subdividindo-a em “mil mortes” e obtendo, antes de cessar a

existência, the most exquisite agonies7.

Sendo assim, “o suplício penal não corresponde a qualquer punição corporal: é

uma produção diferenciada de sofrimentos, um ritual organizado para a marcação das

vítimas”, bem como “a manifestação do poder que pune: não é absolutamente a

exasperação de uma justiça que, esquecendo seus princípios, perdesse todo o controle”.

Desse modo “nos “excessos” dos suplícios, se investe toda a economia do poder “8.

Nota-se, portanto, que tal processo criminatório acontecia de modo secreto, com

a ocultação dos fatos tanto a sociedade quanto ao indivíduo acusado. “O processo se

desenrolava sem ele ou pelo menos sem que ele pudesse conhecer a acusação, as

imputações, os depoimentos, as provas. Na ordem da justiça criminal, o saber era

privilégio absoluto da acusação” 9. Deste modo, ao suposto criminoso, era vedado o

direito de defesa, o conhecimento dos seus denunciadores, o acesso as peças do processo,

o sentido da acusação, a disposição de um advogado para defendê-lo do incriminatório.

De outro lado, todavia, o magistrado detinha o poder em suas mãos para acatar todos os

tipos de acusações, mesmo as anônimas, interrogá-lo de forma meticulosa e insinuosa.

Ele constituía sozinho e com pleno poder, uma verdade com a qual investia o

acusado; e essa verdade, os juízes a recebiam pronta, sob a forma de peças e

de relatórios escritos; para eles, esses documentos sozinhos comprovavam; só

encontravam o acusado uma vez para interrogá-lo antes de dar a sentença. A

forma secreta e escrita do processo confere com o princípio de que em matéria

criminal o estabelecimento da verdade era para o soberano e seus juízes um

direito absoluto e um poder exclusivo10.

5 Ibid., p.50 6 Foucault. Vigiar e Punir, p. 34 7 Ibid., p.34 8 Ibid., p.35 9 Ibid., p.35 10 Ibid., p.36

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Observa-se que com tais práticas judiciárias, o monarca pretendia sinalizar que o

poder soberano de onde provém a prerrogativa de punir, de forma alguma poderia está ao

cargo da multidão. Nesse contexto, é interessante as palavras de Silveira, quando afirma

que “tal instituição vem deslocar o condenado de uma situação de súdito comum, que

pode viver sua vida sem limitações ou maiores sofrimentos, para uma situação de possuir

a marca do “menos poder”11 que, segundo ele,“em função do exercício da potência divina

do rei , projeta o condenado a um estado de impotência, retira seu arbítrio e exaure suas

forças no sentido de impedir paulatinamente a manutenção de sua própria vida”,

submetendo-o “a um processo de mortificação, gradativo e calculado, de acordo com os

interesses políticos e de poder articulados pelos que estrategicamente o detém, em

determinado momento histórico”12.

Nesse cerimonial punitivo, onde o condenado é submetido a etapas sucessivas de

torturas físicas e psicológicas, de acordo com Foucault,

O ciclo está fechado: da tortura à execução, o corpo produziu e reproduziu a verdade do crime. Ou melhor, ele constitui o elemento que, através de todo um

jogo de rituais e de provas, confessa que o crime aconteceu, que ele mesmo o

cometeu, mostra que o leva inscrito em si e sobre si, suporta a operação do

castigo e manifesta seus efeitos da maneira mais ostensiva. O corpo várias

vezes supliciado sintetiza a realidade dos fatos e a verdade da informação, dos

atos de processo e do discurso do criminoso, do crime e da punição. Peça

essencial, consequentemente, numa liturgia penal em que deve constituir o

parceiro de um processo organizado em torno dos direitos formidáveis do

soberano, do inquérito e do segredo13.

Entretanto, como verifica o filósofo, “o suplício judiciário deve ser compreendido

também como um ritual político”, porque “faz parte, mesmo num modo menor, das

cerimônias pelas quais se manifesta o poder”14. Nesse aspecto, “o suplício tem então uma

função jurídico-política. É um cerimonial para reconstituir a soberania lesada por um

instante”. Desse modo, “o que até então sustentara essa prática dos suplícios não era a

economia do exemplo, mas a política do medo: tornar sensível a todos, sobre o corpo do

criminoso, a presença encolerizada do soberano.” Nesse ponto “o suplício não

restabelecia a justiça; reativava o poder”15.

Essas práticas causadoras de dor e sofrimento ao corpo do supliciado foram sendo,

segundo Foucault, substituídas por penas menos cruéis e dolorosas. Conforme Silveira

11 Silveira. Michel Foucault e a constituição do corpo e da alma do sujeito moderno, p.46 12 Ibid., p. 47 13 Foucault. Vigiar e Punir, p.44 14 Ibid., p.45 15 Ibid., p.46

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(2001), um dos fatores que contribuiu para esse deslocamento das penas severas do

suplício às punições não ligadas diretamente ao físico, foi o aspecto de ambivalência

presente nessas ações dos suplícios, ou seja, sendo o suplício uma técnica que

potencializava o poder do soberano, nem todas as penas aplicadas continham um caráter

de justiça. Nesse sentido, se por um lado aumentava a autoridade do rei, do outro, todavia,

contribuía para fomentar na comunidade a piedade e compaixão em relação ao

condenado. Tais sentimentos desencadeavam com frequência o descontrole da população

durante a aplicação da sentença, causando certo tumulto, principalmente, quando se

duvidava da culpa do acusado. Essas revoltas impediam, em certos casos, a conclusão da

pena, ocorrendo um levante do povo em prol da libertação e eliminação da pena do

condenado. Deste modo, a população insatisfeita com as práticas do suplício, recusava-

se a se subordinar ao rei.

3- Novas formas punitivas: o nascimento da prisão

As inquietudes decorrentes dessas formas atrozes de castigo do corpo através do

ato do suplício fazem emergir diversos movimentos que reivindicam o resgate dos

aspectos humanitários do indivíduo sentenciado.

Tais protestos, em prol da suavização do modo punitivo, ganham força

sobremaneira com a figura de grandes articuladores intelectuais, para os quais era

inconcebível, em uma sociedade em desenvolvimento, a manutenção de projetos tão

arcaicos de aplicação da pena. Sendo assim, as ásperas críticas dos reformadores ao

modelo condenatório vigente, reforçados pela massa, foram enfraquecendo e provocando

o deslocamento da imposição da pena do suplício por formas de punições menos severas,

que assegurassem ao acusado seus direitos humanos, antes usurpados pela maneira

bárbara de condenação, desenvolvida sob a forma do suplício, que vergonhosamente

expunha o condenado as mais duras formas de violência, num espetáculo no qual o

público assistia atentamente o desespero do criminoso, levado ao cadafalso pelo crime

que lhe foi prescrito pela acusação.

Nesse ponto, segundo Foucault, era “preciso punir de outro modo: eliminar essa

confrontação física entre soberano e condenado”, além desse “conflito frontal entre a

vingança do príncipe e a cólera contida do povo, por intermédio do supliciado e do

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carrasco” 16. Em outras palavras, para os defensores humanistas era “preciso que a justiça

criminal” punisse “em vez de se vingar.” 17 Desse modo, argumentavam que “no pior dos

assassinos, uma coisa pelo menos deve ser respeitada quando punimos: sua

“humanidade” 18.

Essas críticas às formas dos suplícios, de acordo com Foucault, “não são tanto, ou

não são só os privilégios da justiça, sua arbitrariedade, sua arrogância arcaica, seus

direitos sem controle que são criticados”, mas, acrescenta ele, “antes a mistura entre suas

fraquezas e seus excessos, entre seus exageros e suas lacunas, e, sobretudo o próprio

princípio dessa mistura, o superpoder monárquico” 19.

Contudo, cabe notar que essa modificação do modo de aplicação e execução da

pena, tomando como parâmetro a humanização do sujeito, na realidade constitui apenas

um deslocamento do poder20, isto é, novas formas de relações do poder de punir. “No

abandono da liturgia dos suplícios, que papel tiveram os sentimentos de humanidade para

com os condenados?”21 Conforme Silveira:

...o princípio da humanidade do condenado representa uma mera superfície

aparente que esconde, na sua profundidade, uma radical transformação das

forças de saber e de poder, no sentido de limitar a tirania do soberano e a

rebeldia das massas, em contrapartida, gera um deslocamento de parcela

significativa do exercício do poder do rei para as mãos dos magistrados e dos

pensadores defensores desse novo preceito (politicamente conveniente) de

“humanidade”22.

Em tal cenário de abrandamento do modo punitivo, “o castigo passou de uma arte

das sensações insuportáveis a uma economia dos direitos suspensos”23, desaparecendo,

16 Foucault. Vigiar e Punir, p.69 17 Ibid., p.69 18 Ibid., p.69 19 Ibid., p.75 20 De acordo com Wellausen (2006-2007), Foucault se propõe a pensar o poder não como algo centralizador

ou totalitário, pertencente a uma determinada classe social (visão antimarxista), “mas como

transversalidade, isto é, como dispersão, constelação, multiplicidade, como microfísica, uma vez que o

poder está em todo lugar e em todas as coisas.” (Wellausen; 2006-2007, p.1) Senso assim, argumenta ela,

“contra a centralização do poder na forma de Estado, é apresentada uma nova rematerialização - seu lugar,

sua particularidade tem um caráter secundário e subalterno, e pode ser visto no asilo, na clínica, na prisão.”

(Wellausen; 2006-2007, p.4) Dessa forma conclui que “do suplício à prisão modelo, o itinerário descrito

não recupera a reconciliação com a humanidade, ao contrário, permanecem as espoliações,” (Wellausen;

2006-2007, p.15) porque, “ainda estamos no espaço da violência, do jogo de forças, das estratégias, no

qual o poder, disseminado nas múltiplas formas institucionais, afirma-se” por meio “de dispositivos disciplinares, produzindo sujeitos “sujeitados” na história da modernidade.” (Wellausen; 2006-2007, p.20)

Discorrendo sobre o assunto Danner (2010, p.144) destaca que em Foucault “não existe ‘o Poder’; o que

existe são relações de poder, isto é, formas díspares, heterogêneas, em constante transformação.” 21 Foucault. Vigiar e Punir, p.58 22 Silveira. Michel Foucault e a constituição do corpo e da alma do sujeito moderno, p.55 23 Foucault. Vigiar e Punir, p.16

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portanto, “o grande espetáculo da punição física, ou seja, exclui-se do castigo a encenação

da dor”. Sendo assim, “penetramos na época da sobriedade punitiva”24.

Nesse novo momento do ato de punir, a sentença imposta ao suposto criminoso,

não é mais exclusividade do monarca, ou seja, ao suspeito é garantido o direito de se

defender da acusação, de negar a culpa que lhe foi prescrita e assim “como uma verdade

matemática, a verdade do crime só poderá ser admitida uma vez inteiramente

comprovada.” Desse modo “até a demonstração final de seu crime, o acusado deve ser

reputado inocente” 25. A pena deixa de ser decidida a portas fechadas, para se tornar algo

público. Ademais, a própria motivação ou natureza do crime passa a ser objeto de

investigação e discussão, isto é, não basta dizer que o fato foi comprovado, que se trata

de um delito, é necessário explicá-lo, especificando em que nível da realidade penal ele

poderia ser enquadrado: “fantasma, reação psicótica, episódio de delírio, perversidade?”

Deve-se assim, procurar elucidar as causas do crime, ou seja, o que o produziu, sua

origem: “instinto, inconsciente, meio ambiente, hereditariedade?” A respeito do modo de

punição: “não mais simplesmente: “Que lei sanciona esta infração?” Mas: “Que medida

tomar que seja apropriada? Como prever a evolução do sujeito?” E “de que modo será ele

mais seguramente corrigido?”26

Tem-se assim uma transformação de uma sociedade do espetáculo, com práticas

punitivas estigmatizantes, que privilegiavam o castigo do corpo, através da violação e

exposição pública, num vão cerimonial teatral, a uma sociedade disciplinar27, e onde

“antes, enxergava-se o crime como uma afronta ao Monarca e o castigo como uma

manifestação inconteste e concreta do poder absolutista. Agora,” ele “passava a

caracterizar um rompimento e desrespeito ao corpo social e sua punição deveria reparar,

portanto, “a perturbação causada à sociedade” 28.

Essa nova sociedade, cunhada por Foucault como sociedade disciplinar29,

caracteriza-se por utilizar novos modelos punitivos, ou melhor, dizendo, de correção. O

24 Ibid., p.18 25 Ibid., p.88 26 Ibid., p.23 27 Conforme Neto (2006-2007, p.2) “disciplina e espetáculo são apreensões conceituais distintas de [...]

complexas sociedades.” Especificando a diferença entre os dois paradigmas aponta que “a sociedade do espetáculo, baseada na soberania, se ordena juridicamente. Na sociedade disciplinar, no entanto, a lei e o

contrato são substituídos pela norma e pelo regulamento.” (Neto; 2006-2007, p.6) 28 Silva. O cotidiano da sociedade disciplinar tomado como uma categoria histórica, p.8 29 Nesse modelo social segundo Danner (2010, p.150) “as disciplinas trabalham diretamente o corpo dos

indivíduos, manipulam seus gestos e comportamentos, formam-no, adestram-no. Desse modo, ela “capta o

corpo humano numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe.”

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castigo agora tem como finalidade além da defesa da sociedade, recuperar o infrator,

devolvendo-o novamente ao convívio social. Nessa direção, as medidas punitivas devem

ter como parâmetro a consequência de cada crime cometido, ajustando ao mesmo seus

efeitos e a pena. Entretanto, nesse paradigma social vigente, o ato de punir precisa estar

associado à vigilância, de modo a punir os infratores como também prevenir possíveis

desvios sociais.

Qual o instrumento mais apropriado ao controle coercitivo dos comportamentos

delituosos? A prisão surge30 como forma de reparar os danos causados pelo condenado à

comunidade. Separando-o do corpo social, através do encarceramento, exerceria o

controle do prisioneiro, atuando também como meio disciplinador, modelando seu

comportamento através de intervenções disciplinares e acompanhamento diário. O

encarceramento cumpriria a missão de adestramento do indivíduo violador. Mas de que

forma a prisão poderia disciplinar o criminoso, evitando a reincidência criminal?

Para cumprir essa tarefa árdua, o presídio31 se transformaria numa espécie de

fábrica penal, disciplinando o comportamento dos criminosos. Conforme Foucault, “no

antigo sistema, o corpo dos condenados se tornava coisa do rei, sobre a qual o soberano

imprimia sua marca e deixava cair os efeitos de seu poder.” Agora, porém, “ele será antes

um bem social, objeto de uma apropriação coletiva e útil” 32. Dessa forma, argumenta o

filósofo que:

O ideal seria que o condenado fosse considerado como uma espécie de

propriedade rentável: um escravo posto a serviço de todos. Por que haveria a

sociedade de suprimir uma vida e um corpo de que ela poderia se apropriar?

Seria mais útil fazer “servir ao Estado numa escravidão mais ou menos longa

de acordo com a natureza de seu crime”33

Nesse contexto, o trabalho prisional representaria um dos meios utilizados para

disciplinar o encarcerado, ao passo que ele poderia através do ofício na prisão, aprender

regras básicas e fundamentais de convivência, pagar sua dívida com a sociedade

contribuindo com seu labor, além de obter um ofício para desempenhar ao adquirir a

liberdade. O trabalho “se tornará então tanto um exercício de conversão quanto de

30 É importante destacar, que a prisão, enquanto um modelo substitutivo aos projetos de penalidades

anteriores (séculos XVII e XVIII), não foi algo previamente planejado, dessa forma, ela “surge no início

do século XIX, como uma instituição de fato, quase sem justificação teórica” (Foucault, 2002, p.84), já que não estava prevista no projeto de reformulação da penalidade do século XVIII. 31 Foucault utiliza como modelo para refletir sobre essas questões, Mettray. E o próprio filósofo explica o

porquê: Por que Mettray? Porque é a forma disciplinar no estado mais intenso, o modelo em que concentram

todas as tecnologias coercitivas do comportamento. 32 Foucault. Vigiar e Punir, p.98 33 Ibid., p.129

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aprendizado; não reformará simplesmente o jogo de interesses próprios ao homo

economicus, mas também os imperativos do indivíduo moral” 34. Desta maneira,

conforme Alvarez, “as práticas disciplinares próprias da prisão têm um alcance que irá

muito além dos muros da instituição, ao constituírem tecnologias de poder que, partindo

das práticas prisionais, espalham-se por toda a sociedade” 35.

O trabalho eliminaria a ociosidade, ocupando os detentos em obrigações sociais,

custeando suas despesas na prisão, além de lhes garantir uma renda financeira de maneira

assegurar sua “reinserção moral e material no mundo estrito da economia”36. Nesse

sentido, para Foucault, a punição moderna possuiria um significado diferente do antigo

regime: “não se pune, portanto para apagar um crime, mas para transformar um culpado

(atual ou virtual); o castigo deve levar em si uma certa técnica corretiva”37.

De acordo ainda com Foucault, a finalidade da técnica de correção prisional é

reconstruir “não tanto o sujeito de direito, que se encontra preso nos interesses

fundamentais do pacto social”, mas “o sujeito obediente, o indivíduo sujeito a hábitos,

regras, ordens, uma autoridade que se exerce continuamente sobre ele e em torno dele, e

que ele deve deixar funcionar automaticamente nele” 38. Sendo assim, cumpriria a prisão

“reeducar o criminoso e encontrar o seu fim na socialização do delinquente”39.

Por conseguinte, a figura do carrasco (na prática do suplício) foi substituída por

outros profissionais como médicos, psicólogos, psiquiatras, educadores, de modo a tornar

a prisão um ambiente mais humanístico e recuperador. Nesse contexto, “a prisão

transformava o processo punitivo em técnica penitenciária; quanto ao arquipélago

carcerário, ele transporta essa técnica da instituição penal para o corpo social inteiro” 40.

4- A prisão enquanto fábrica da delinquência

Apesar de a arquitetura carcerária desempenhar um papel de correção

intermediado por práticas educativas, que visam modelar o comportamento do criminoso,

tornando-o mais dócil e sutil, consoante com as regras sociais, por outro lado, a prisão

34 Foucault. Vigiar e Punir, p.109 35 Alvarez. Controle social: notas em torno de uma noção polêmica, p. 171 36 Foucault. Vigiar e Punir, p.110 37 Ibid., p.112 38 Ibid., p.114 39 Wellausen. Os dispositivos de poder e o corpo em “Vigiar e Punir”,p.17 40 Foucault. Vigiar e Punir, p.261

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também funcionaria como um reduto de formação e aperfeiçoamento da criminalidade.

Desse modo, algumas questões que ainda hoje emergem com frequência são: A prisão

educa ou corrompe ainda mais o criminoso? A prisão é corretiva? Quais as técnicas

corretivas utilizadas por ela? Essas técnicas são eficientes? A prisão recupera o detento

ou o torna ainda mais delinquente? Para discutirmos algumas dessas questões tomando

como base os pressupostos foucaultiano, vejamos a seguinte reflexão presente na letra da

música Heróis da favela de Mc Daleste:

Essa é a revolta dos heróis da favela,

Ferida do sistema,

Corpo aprisionado,

Formado e graduado,

Esse é o poder dos corações de aço.

Tranquilidade, sensação de maldade

União entre todos os irmãos.

Me expressei tranquilo na vibe do som,

Porque a pressa é inimiga da perfeição,

Mesmo assim

Nós leva a vida com o sorriso na cara.

Sonhando acordado e sair do raio,

E voltar pra casa,

Passatempo ta tirando,

O tempo é que não passa.

Mó tempo que eu to trancado aqui dentro

E o tempo para,

Reabilitação não é essa a verdade,

O homem que inventou as grades

Não sabe o que é saudade.

A pena é longa e cansativa,

No fechado o semi-aberto,

Hell primário essa é a visão,

Seja bem vindo ao inferno.

Por onde passei derrubei varias lagrimas,

Descontrole essa saudade ta virando

trauma,41

Fala menos ouve mais,

Pra tu sobreviver, Belém um e dois,

Onze sua marrei,

Onde o filho chora e a mãe não vê.

Fala menos ouve mais,

Pra tu sobreviver,

Todas cadeias o mesmo sofrimento,

Onde o filho chora e a mãe não vê.

41 Todas as partes destacadas na letra da música são grifos nossos.

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Foucault analisa esse fracasso42 prisional, ao observar que “do mesmo modo que

o projeto de uma técnica corretiva acompanhou o princípio de uma detenção punitiva, a

crítica da prisão e de seus métodos aparece muito cedo, [...].” Ademais “ela, aliás, se fixa

num certo número de formulações que — a não ser pelos números — se repetem hoje

sem quase mudança nenhuma”43.

Nessa verificação, o filósofo nota que ao invés de corrigir o criminoso, diminuído

as incidências da marginalidade, o sistema prisional aumentaria a criminalidade, já que

ao passar pelo encarceramento, o condenado permaneceria estável ou em muitos casos

pior do que quando entrou. Para confirmar isso, Foucault recorre à estatística, percebendo

a discrepância entre o aumento e diminuição da reincidência criminal (esta aumentando

significativamente). Vejamos o que diz o pensador:

A detenção provoca a reincidência; depois de sair da prisão, se têm mais

chance que antes de voltar para ela, os condenados são, em proporção

considerável, antigos detentos [...]. A prisão, consequentemente, em vez de

devolver à liberdade indivíduos corrigidos, espalha na população delinquentes

perigosos44.

Mas de que modo a prisão fabricaria a delinquência? Segundo Foucault, o modus

vivendi, imposto ao criminoso na prisão, caracterizado pelo isolamento e trabalhos

inúteis45 forçados, os quais o presidiário não visualiza utilidade, corroboraria para

reforçar a criminalidade, ao desencadear sentimentos de revolta e humilhação ao preso.

Tais práticas, todavia, não levariam em consideração as necessidades de reinserção social

do sujeito. Destarte, “a prisão fabrica também delinquentes impondo aos detentos

limitações violentas; ela se destina a aplicar as leis, e a ensinar o respeito por elas; ora,

todo o seu funcionamento se desenrola no sentido do abuso de poder.” 46 A punição ou

os castigos na prisão podem estar associados à reincidência criminal? Ou seja, os detentos

podem reproduzir no contexto social todo sofrimento sofrido no encarceramento?

Para Foucault:

O sentimento de injustiça que um prisioneiro experimenta é uma das causas

que mais podem tornar indomável seu caráter. Quando se vê assim exposto a

sofrimentos que a lei não ordenou nem mesmo previu, ele entra num estado

42 Representa o deslocamento de uma prisão corretiva e/ou restauradora, a um ambiente de especialização

da criminalidade. Hoje, por exemplo, algumas pessoas costumam afirmar (criticando essa instituição) tal

criminoso entrou formado e saiu mestre ou doutor em criminalidade. 43 Foucault. Vigiar e Punir, p.234 44 Ibid., p.235 45 Ao assumir um caráter de imposição a força, o trabalho, deixa de funcionar como um mecanismo

educativo e restaurador do caráter moral do prisioneiro, contribuindo para revolta e hostilidade do mesmo,

perdendo assim seu aspecto educativo e integrador ao contexto comunitário. 46 Foucault. Vigiar e Punir, p.235

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habitual de cólera contra tudo o que o cerca; só vê carrascos em todos os

agentes da autoridade: não pensa mais ter sido culpado; acusa a própria

justiça47.

Levando-se em consideração as observações anteriores, a prisão ao invés de

funcionar como espaço social desenvolvido para recuperação dos indivíduos com algum

comportamento conturbador ou violador da ordem comunitária, funcionaria como um

local de “organização de um meio de delinquentes, solidários entre si, hierarquizados,

prontos para todas as cumplicidades futuras”48.

Nessa atmosfera criminal, os mais hábeis na marginalidade exerceriam a função

educativa dos incipientes, incitando o ódio contra a sociedade, a lei e as autoridades. Um

curso sobre criminalidade sendo ministrado por mestres na arte do crime, dentro do

sistema prisional, habilitando os mais jovens com informações e ferramentas para prática

delituosa. Se a sociedade criou um espaço social, chamado universidade, para qualificar

seus agentes para lhe servir melhor, dando aos mesmos um período de tempo para se

qualificarem; em termos de marginalidade, a prisão funcionaria como esse espaço, ao

qual o novo aprendiz do crime, passando pelo sistema, entraria em contato com os mais

famosos professores em criminalidade, estando ao término do curso qualificado para

desempenhar seu ofício. Como afirma o senso comum, a prisão seria uma espécie de

universidade para o crime.

No tocante à reincidência criminal, alguns fatores são elencados por Foucault para

explicar seus elevados índices. De acordo com o filósofo, as condições impostas ao

criminoso, ao passar pelo sistema prisional, acabam induzindo-o a novas práticas

delituosas. Ao sair da prisão, o sujeito carrega consigo a fama de ex-detento. Os

estereótipos e preconceitos sociais em relação a ele dificultariam sua reinserção social,

que se dá sobremaneira através do trabalho49. Esse seria um dos primeiros obstáculos

enfrentados pelo libertado, ao deixar as celas. A falta de oportunidade no âmbito social

(educação, emprego, moradia, etc.), e as dificuldades em se manter, colocá-lo-iam em

situação de vulnerabilidade de reincidência.

47 Ibid., p.235 48 Ibid., p.235 49 Por que através do trabalho? Em nossa sociedade capitalista, o trabalho (uma atividade social) representa

o elo de conjunção do homem com o seu meio, isso significa que é através do labor que ele se integra como

sujeito produtivo a sociedade, uma vez que o trabalho é a ferramenta que lhe garante obter sustento e/ou

mesmo status na comunidade.

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5- Considerações finais

Foucault discute as transformações das formas punitivas ao logo dos séculos.

Percorrendo os relatos históricos do ato de punir, desde os períodos de violação do corpo

do condenado através dos atos do suplício até a transformação desse modo punitivo e

consequente surgimento do sistema prisional. No primeiro momento, a pena se articulava

através de um cerimonial de soberania, imprimindo as marcas da vingança sobre o corpo

do sentenciado, de modo a expor o horror e temor aos espectadores. No segundo, a pena

se torna um meio de requalificação do sujeito violador, com a substituição das marcas do

suplício pelos sinais e códigos de representações. Sendo assim, no sistema carcerário a

punição passa ser utilizada como uma técnica de coerção, treinamento e manipulação do

comportamento, visando adestrar o indivíduo, preparando-o para integração a sociedade.

Apesar dessas mudanças decorrentes das reformas de aplicação da pena e defesa

do sujeito de direito, bem como do surgimento da prisão como mecanismo de restauração

do infrator (o que representa um avanço no âmbito social), Foucault elencou algumas

falhas desse sistema conforme o exposto no capítulo anterior. Desta maneira, mesmo

diante das críticas tão veementes, a prisão ainda é o mecanismo que nossa sociedade

dispõe e utiliza para o cumprimento das sentenças da lei ou punição aos comportamentos

antissociais. Nesse contexto, algumas questões importantes a serem observadas são:

como tornar o sistema prisional requalificador? Existe outro instrumento capaz de

substituir o modelo prisional? É possível reabilitar o sujeito apenas aprisionando o corpo?

A punição por si só representaria o meio mais eficiente de correção?

Bibliografia

ALVAREZ, M. C. Controle social: notas em torno de uma noção polêmica. São Paulo

em Perspectiva, São Paulo, v.18, n.1, p. 168-176, 2004.

DANNER, F. O Sentido da Biopolítica em Michel Foucault. Revista Estudos

Filosóficos, São João del-Rei, n. 4, p. 143-157, 2010.

FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurídicas. trad. Roberto Cabral de Melo

Machado e Eduardo Jardim Morais. Rio de Janeiro: NAU editora, 2002.

______. Vigiar e punir: nascimento da prisão. trad. Lígia M. Pondé Vassallo.

Petrópolis, Vozes, 1987.

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NETO, L. F. Disciplina ou espetáculo? Uma resposta pela biopolítica. Revista Aulas,

Campinas, n. 3, p.1-23, dezembro 2006/março 2007.

SILVEIRA, F. A. Michel Foucault e a constituição do corpo e da alma do sujeito

moderno. Ribeirão Preto, 2001. Dissertação (Mestrado em Ciências – Área psicologia)-

Faculdade de filosofia, ciências e Letras, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto,

2001.

WELLAUSEN, S. S. Os dispositivos de poder e o corpo em Vigiar e Punir. Revista

Aulas, Campinas, n. 3, p.1-23, dezembro 2006/março 2007.

Recebido: 08/2013

Aprovado: 10/2013

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SOBRE A OBRA DE ARTE: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES A

PARTIR DE HANNAH ARENDT

Pedro Rhavel Nascimento Teixeira

Graduando em Filosofia da UFRJ

“I think my poems immediately come out of the sensuous and emotional experiences I have, but I

must say I cannot sympathise with these cries from the heart that are informed by nothing except

a needle or a knife, or whatever it is. I believe that one should be able to control and manipulate

experiences, even the most terrific, like madness, being tortured, this sort of experience, and one

should be able to manipulate these experiences with an informed and an intelligent mini I think

that personal experience is very important, but certainly it shouldn't be a kind of shut-box and

mirror looking, narcissistic experience. I believe it should be relevant, and relevant to the larger

things, the bigger things such as Hiroshima and Dachau and so on.”

Sylvia Plath em entrevista a Petter Orr em 1962

Resumo: Este artigo tem como proposta apresentar as considerações de Hannah Arendt acerca

da obra de arte. Para isto, é necessário articular o conceito de Obra presente no capítulo homônimo

de A Condição Humana e apontar a relação entre arte e a atividade do pensamento esboçada em

A Vida do Espírito.

Palavras-Chave: Arte; Hannah Arendt; Pensamento

Abstract: This article proposes to present the Hannah Arendt’s considerations about work of art.

For that, is necessary articulate the concept of Work in the chapter namesake of The Human

Condition and point to the relationship between art and thought’s activity outlined in The life of

the Mind.

Keywords: Art; Hannah Arendt; Thought

1- Introdução

A obra de arte é o pensamento reificado e materializado no mundo (ARENDT, 1989, p.

182). Não me parece haver em Hannah Arendt uma filosofia da arte, mas sim um comentário

sobre a obra de arte já aceita na instância ou categoria de Arte.

A obra de arte precisa ser retirada de todo e qualquer contexto de uso e finalidade. Esta

proposição pode parecer uma tentativa de conceituação da arte, mas uma leitura mais atenta da

obra de Arendt descarta tal hipótese. Este pensamento parece se aproximar da ideia do

desinteresse de Kant (SUASSUNA, 2008, p. 73), embora este também não tenha fundamentado

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uma filosofia de arte, mas sim um estudo minucioso sobre as categorias subjetivas para um juízo

estético e do gosto.

Arendt irá usar o caráter universal de julgamento estético de Kant para fundamentar o que

ela considera a parte a ser estudada para entender uma filosofia política kantiana (ARENDT,

1993, p. 16). Descartou os textos redigidos sobre o tema no final da vida de Kant, baseada na

premissa de que suas faculdades cognitivas já não funcionavam da melhor forma possível ou da

forma esperada, ou mesmo, da forma que funcionavam quando escreveu suas críticas ao longo de

sua vida.

Limitemo-nos a este comentário (ARENDT, 1993, p. 15), pois o propósito deste breve

ensaio não é falar sobre a extensa e magnífica teoria política concebida por Hannah Arendt e nem

de seu lastro kantiano. Havemos de pensar a obra de arte a começar pelo seu caráter de obra antes

mesmo do caráter artístico, pois parece que esta categoria antecede a da arte.

Há em A Condição Humana um capítulo dedicado à atividade denominada Work que

cumpre a finalidade de abordar com extensão e propriedade os referidos assuntos. Existe uma

evidente confusão entre as traduções1 que por si só já é suficiente para sucintamente ilustrar esta

questão. A falta de consenso sobre a tradução do termo Work nos remete às próprias ideias da

autora, uma vez que o termo Trabalho não parece ser suficiente para designar a complexidade

deste conceito de atividade. Trata-se também, mas não somente, de um processo de criação que

envolve a cognição e por isso se difere do animal laborans que é apresentado como animal, ente

cuja cognição é irrelevante para realização de sua atividade e está preso, fatigado às penas da

necessidade biológica. A atividade do homo faber requer cognição, portanto, não se trata somente

de obras ou de coisas, mas sim, também, de um processo. O termo Fabricação2 parece o mais

pertinente dentre os utilizados, embora pareça excluir a ideia de coisas ou objetos como coisas

que perduram e dão estabilidade ao mundo conforme o termo Obra imbrica.

Adriano Correia elabora na 11ª edição de A Condição Humana uma sofisticada revisão

técnica acerca da tradução dos termos Labor e Work. A discussão sobre a tradução de Labor não

será realizada, uma vez que não tratamos deste tema em específico. Correia insiste na tradução de

Work por Obra se valendo das demais traduções de A Condição Humana para o francês e espanhol

e argumenta que o termo Fabricação exclui a ideia de um objeto final3. Correia ainda admite que

a própria autora traduziu para o alemão Work por Das Herstellen (o fabricar), embora utilizasse

1 O termo é traduzido por Trabalho, Obra e Fabricação. 2 André Duarte é o primeiro por optar pela tradução de Work por Fabricação. DUARTE, André. O

Pensamento à sombra da Ruptura: Política e Filosofia na Reflexão de Hannah Arendt. São Paulo,

Tese de Doutorado/USP, 1997. 3 CORREIA, Adriano. Nota. In: ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 11º Edição. Rio de Janeiro:

Forense Universitária, 2011. p.VI.

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na seção 11 do capítulo 4 Werk para designar o produto final desta atividade e Herstellen como a

atividade da Obra4.

O que se pode perceber é que o conceito e a atividade gozam de uma complexidade que

o título por si só não é capaz de sintetizar em conteúdo, o que acaba tornando a experiência da

leitura instigante.

A atividade da Fabricação não exclui o pensamento, ao menos o pensamento utilitarista,

uma vez que este pensamento se dá através da capacidade humana de projetar e objetificar uma

ideia. Vilém Flusser, filósofo tcheco radicado no Brasil, falará em um homo faber que busca um

ideal de objeto. Há a ideia da existência de uma mesa ideal, por exemplo, e esta é o tempo todo

projetada e reprojetada (FLUSSER, 2007, p. 26). Este tipo de idealismo parece apenas enfatizar

os meios e fins instaurados na dinâmica de produção do homo faber. O seu pensamento utilitarista

no qual as ferramentas têm como única função produzir outras ferramentas (ARENDT, 1989, p.

167). Parece coerente apresentar essa ideia de ideal como uma forma de explicação para este

fenômeno.

Neste ponto da jornada se faz necessário uma distinção entre cognição e pensamento.

Hannah Arendt irá dizer que:

O pensamento difere da cognição. Fonte das obras de arte, o pensamento se

manifesta, sem transformação ou transfiguração, em todas as grandes filosofias,

ao passo que a principal manifestação dos processos cognitivos se dá através

dos quais adquirimos e armazenamos conhecimento, são as ciências. A cognição

sempre tem um fim definido, que pode resultar de considerações práticas ou de

<<mera curiosidade>>; mas, uma vez atingido esse fim, o processo cognitivo

termina, o pensamento, ao contrário, não tem outro fim ou propósito além de si

mesmo, e não chega sequer a produzir resultados; não só a filosofia utilitária do

homo faber, mas os homens de ação e os cientistas que procuram resultados,

jamais se cansaram de dizer quão <<inútil>> é o pensamento — realmente, tão

inútil quanto as obras de arte que inspira. (ARENDT, 1989, p. 184)

Há ainda uma distinção importante entre cognição, pensamento e a capacidade humana

de raciocínio lógico, este último se dispõe a formular “enunciados axiomáticos” e obter “cadeias

sistemáticas de conclusões”. Estamos diante de uma “força intelectual” que muitas vezes, segundo

Arendt, é chamada de inteligência (ARENDT, 1989, p. 185). Arendt afirma ainda na mesma

página que “é próprio da estrutura do cérebro humano deduzir que dois mais dois são quatro. Esta

verdadeira força intelectual está sempre atrelada à capacidade humana de produzir, é vista como

força de trabalho segundo a quem ela se refere como filósofos da vida e do trabalho: Marx,

Bergson e Nietzsche que “viam neste tipo de inteligência, que se confunde com a razão, mera

4 Ibidem, p.VIII.

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função do processo vital” (ARENDT, 1989, p. 186). Ainda assim, diferente das obras, esta força

intelectual é tão alheia ao mundo quanto o labor e o consumo.

O que nos interessa é afirmar que a obra de arte, apesar de não perder o seu caráter de

obra, não é fabricada através dos processos mentais da cognição e do raciocínio lógico. Esta por

sua vez não está subordinada a tais atividades mentais, mas sim possui uma intrínseca relação

com a capacidade e a atividade que é o pensamento de modo a ser totalmente inútil e de certa

forma também alheia ao mundo e à filosofia utilitarista do homo faber. No entanto, a obra de arte

não deixa de ter uma espécie de utilidade, a qual representa melhor dentre todos os outros objetos

fabricados: a permanência do mundo.

Há uma questão intrigante, para a qual não parece haver resposta evidente. Essa questão

se impõe desde que este trabalho estava ainda sendo delineado e ainda não fora edificado como

obra: Há arte sem obras?

2- A obra de arte na permanência do mundo

Magia

por Rainer Maria Rilke

De uma metamorfose indescritível surgem

tais figuras: sinta! e acredite!

Sofremos muito disso: tornam-se cinzas as chamas,

mas na arte: torna-se chama a poeira.

Aqui é Magia. No terreno da magia,

a palavra de maldade parece ultrapassada...

mas é na verdade como o chamado do pombo,

que chama por pombas invisíveis.5

5 Tradução livre do poema Magie citado em uma nota de rodapé por H. Arendt do original: Aus

unbeschreiblicher Verwandlung stamen/ solche Gebilde - Fühl! und glaub!/ Wir leidens oft: zu Asche

werden Flammen;/ doch, in der Kunst: zur Flamme wird der Staub./ Hier ist Magie. In das Bereich des

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Falemos um pouco sobre a relação entre a obra de arte e a permanência no mundo. De

que mundo é este que estamos falando e de que serve esta permanência?

Se há um conceito de mundo na obra de Arendt, este significa algo artificial no sentido

de que não é do mundo natural ou planeta que estamos falando, mas sim do mundo de coisas

edificadas pelo homo faber (ARENDT, 1989, p. 149). Este mundo artificial que serve de morada

para os seres humanos nos empresta estabilidade e durabilidade aos nossos artifícios, sem os quais

não seria possível haver uma vida imutável. Os homens podem reaver sua identidade no contato

com os objetos artificiais do mundo. O conceito de mundo em questão nos garante objetividade e

não pode ser consumido (ARENDT, 1989, p. 150).

A fonte material deste mundo não deixa de ser a natureza, é dela que com violência se

retira a matéria-prima para toda e qualquer fabricação. Entretanto, as coisas destinadas ao uso são

destruídas com o passar do tempo conforme são utilizadas. Arendt irá dizer que isto pode ser

entendido como um processo de “consumo lento”, o que ocorre na verdade é que tais coisas

deixam detritos e são descartadas assim que perdem a sua utilidade. Sempre haverá um resto de

algo mesmo que este tenha passado por um processo de destruição lenta que possa ser chamado

ou evocado como consumo.

A obra de arte por não estar destinada a nenhum fim não passa por esse processo de

desgaste, sendo dentro das coisas produzidas pelo homo faber a que mais perdura através do

tempo. É “algo imortal feito por mãos mortais” (ARENDT, 1989, p. 181).

Ainda de acordo com Arendt, elas não são julgadas em termos de “para quê”. Mesmo se

considerarmos que a fonte histórica da obra de arte tenha cunho religioso, ela “sobreviveu

magnificamente à separação da religião, da magia e do mito.” A obra de arte chega a atingir o

patamar de permanência que espelha a estabilidade humana. Não há nada como a obra de arte

para demonstrar a estabilidade deste mundo artificial edificado.

É pertinente a questão: Se a obra de arte de nada serve, qual a fonte imediata de sua

inspiração? A resposta já dada é que o pensamento inspira a obra de arte. Nos resta explicar como,

mas antes vamos a uma definição de pensamento que seja capaz de, minimamente, dar conta de

nossa proposição. Aqui me parece pertinente transcrever a epígrafe do capítulo sobre a atividade

de pensar de A Vida do Espírito atribuído à Heidegger.

Zaubers/ scheint das gemeine Wort hinaufgestuft .../ und ist doch wirklich wie der Ruf des Taubers,/ der

nach der unsichtbaren Taube ruft.

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O pensamento não traz conhecimento como as ciências

O pensamento não produz sabedoria prática utilizável

O pensamento não resolve os enigmas do Universo

O pensamento não nos dota diretamente com o poder de agir

O pensamento, de imediato, não nos traz nada. Ele é como o próprio nada, cheio de

possibilidades, possibilidades infinitas tanto quanto a nossa capacidade de imaginar. O

pensamento é uma atividade, como a fabricação do homo faber, apesar de nada tangível produzir.

Não há lugar no mundo para o pensamento, pois para pensar é preciso se retirar do mundo, mesmo

que por um curto ou mínimo espaço de tempo. Pensar é voltar-se para si e prestar satisfações a si

mesmo. O pensamento não é sensível a nenhum sentido, só é possível pensar sobre o próprio

pensamento através da imaginação. O pensar por si só não leva a nada e nada traz. Sendo a obra

de arte fruto de tal atividade ela deve servir a esse caráter inútil e alheio ao mundo, pois não tem

finalidade aparente.

O pensamento aliado ao “trabalho de nossas mãos” produz uma obra inútil. Esta dualidade

de atividades é capaz de produzir uma obra de arte. Segue uma citação de Hannah Arendt de A

Condição Humana que explica melhor que pretendo apresentar:

A fonte imediata da obra de arte é a capacidade humana de pensar, da mesma

forma como a <<propensão para a troca e o comércio>> é a fonte dos objetos

de uso. Trata-se de capacidades do homem, e não de meros atributos do animal

humano, como sentimentos, desejos e necessidades, aos quais estão ligados e

que muitas vezes constituem um só conteúdo. Esses atributos humanos são tão

alheios ao mundo que o homem cria como seu lugar na terra quanto os atributos

correspondentes de outras espécies animais; se tivessem que constituir um

ambiente fabricado pelo homem para o animal humano, esse ambiente seria

um não-mundo, resultado de uma emanação e não de uma criação. A

capacidade de pensar relaciona-se com o sentimento, transformado a sua dor

muda e inarticulada, do mesmo modo como a troca transforma ganância nua e

crua do desejo e o uso transforma o anseio desesperado da necessidades — até

que todos se tornem dignos de adentrar o mundo transformados em coisas,

reificados. Em cada caso, uma capacidade humana, que por sua própria

natureza, é comunicativa e voltada para o mundo, transcende e transfere para

o mundo algo muito intenso e veemente que estava aprisionado no ser.

(ARENDT. 1989, p181-182)

Ao que se refere tal objetificação? Arendt irá dizer que não é mera transformação, mas

sim transfiguração: metamorfose (ARENDT, 1989, p. 182). É como no poema de Rilke, aonde

cinzas se tornam chamas contrariando o curso natural ao longo do qual o fogo transforma tudo

em cinzas. A obra de arte é fruto de sentimentos reificados pelo pensamento, aprisionados no

âmago do ser e pensados repetidamente.

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De todas as obras de arte, a menos imaterial e mais parecida com o pensamento é a poesia.

Ela permanece na memória através do ritmo do som dos versos cunhados. A trama composta

apesar de imaterial, em algum momento, precisará ser registrada de alguma maneira a fim de que

não se perca na perecível memória humana. É através do artifício humano, e servindo a ele, que

toda poesia ou prosa literária pôde permanecer através do tempo ganhando imortalidade.

Apesar de ser um tipo de arte cujo suporte se dá inteiramente através da linguagem, seja

falada ou grafada, a poesia é na verdade uma obra de imagens.

A poesia, portanto, mesmo quando lida em voz alta afetará o ouvinte

opticamente; ele não se aterá à palavra que ouve, mas ao signo de que se

lembra, e com ele, às visões que o signo claramente aponta (ARENDT, 2010,

p. 121).

A poesia, por possuir uma íntima relação com a atividade do pensamento, possui uma

ligação com a capacidade humana de imaginar, que por sua vez, está diretamente conectada à

memória. Não é à toa que Homero em seu primeiro verso da Ilíada (Canta-te, ó musa, do Peleio

Aquiles), assim como os Aedos recorrem à Mnemosyne, a mãe de todas as musas, a musa da

memória, antes de recitar seus poemas. É claro que nesta época remota, o registro na memória era

fundamental uma vez que a relação da poesia se dava através da língua falada e não escrita.

É através da formulação de metáforas, de figuras impossíveis ou associações entre as

imagens conhecidas guardadas na memória que ocorre o processo criativo da poesia e de outras

obras de arte. A exceção é a música que não se configura como arte imagética, embora uma

determinada combinação de sons e ritmos também possa fazer luz à memória e a capacidade de

imaginar provocando reações inimagináveis em seu ouvinte.

Sendo a linguagem a forma como o pensamento se manifesta no mundo, e sendo através

dela possível conhecer ou saber da existência de tal atividade é composta, primordialmente, por

imagens e associações. Como já foi dito, a atividade de pensar sobre as próprias emoções irá

libertar conteúdos intrínsecos aprisionados no âmago do ser. Tais emoções desde que

“manipuladas” através do pensamento podem servir ao artifício humano como obras e obras de

arte.

Sylvia Plath, a poeta norte-americana, em uma entrevista à respeito de seu processo

criativo afirmou que o escritor deve manipular todas as suas dores para então escrever6, mesmo a

loucura, a qual ela considera como a maior dor humana, deve passar por esse processo. Esta ideia

muito se assemelha à reificação pelo pensamento que Arendt nos traz em A Condição Humana.

6 Ouvir a entrevista concedida ao repórter Peter Orr, ou CARVALHO, Ana Cecília. A Poética do Suicídio

em Sylvia Plath. Em Tese, Belo Horizonte v.3, n. 1, p. 21-29, dez, 1999.

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É curioso como Arendt através do poema de Rilke apresenta uma metáfora de cinzas que

se tornam chamas como exemplo. Plath utiliza uma metáfora parecida em seu famoso poema

Lady Lazarus que fala sobre uma força, que como no mito de fênix, renascerá das cinzas e irá

devorar homens como o ar. Mesmo se tratando de símbolos destrutivos e meramente caóticos, a

relação entre as cinzas, as sobras ou mesmo o nada termina por configurar uma obra.

O artista, em especial o literato, a todo instante tenta fugir de algo e se imortalizar

através de sua obra. Uma figura que exemplifica tal hipótese é a de Xerazade, que em As Mil e

uma Noites cria e conta estórias para não morrer. Xerazade tentava escapar da eminência da morte,

tinha medo de deixar de existir. Curiosamente foi exatamente esta angustia que a impulsionou a

perpetuar sua própria existência, materializando-se na forma das estórias que contava.

Bibliografia

ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989.

______, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011.

______. A Vida do Espírito. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

______. Lições sobre a Filosofia Política de Kant. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1993.

FLUSSER, Vilém. O Mundo Codificado. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

PLATH, Sylvia. Ariel – Edição bilingue. Campinas: Versus Editora, 2004.

SUASSUNA, Ariano. Iniciação à Estética. Rio de Janeiro: José Olympo, 2008.

WAGNER, Eugênia Sales. Hannah Arendt & Karl Marx: O Mundo do Trabalho. São

Paulo: Ateliê Editorial: 2002.

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Anexos:

Lady Lazarus

Tentei outra vez.

Um ano em cada dez

Eu dou um jeito —

Um tipo de milagre ambulante, minha pele

Brilha feito abajur nazista,

Meu pé direito

Peso de papel,

Meu rosto inexpressivo,

fino Linho judeu.

Dispa o pano

Oh, meu inimigo.

Eu te aterrorizo? —

O nariz, as covas dos olhos, a dentadura toda?

O hálito amargo

Desaparece num dia.

Em muito breve a carne

Que a caverna carcomeu vai estar

Em casa, em mim.

E eu uma mulher sempre sorrindo.

Tenho apenas trinta anos.

E como o gato, nove vidas para morrer.

Esta é a Número Três.

Que besteira

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Aniquilar-se a cada década.

Um milhão de filamentos.

A multidão, comendo amendoim,

Se aglomera para ver

Desenfaixarem minhas mãos e pés —

O grande striptease.

Senhoras e senhores,

Eis minhas mãos

Meus joelhos.

Posso ser só pele e osso,

No entanto sou a mesma, idêntica mulher.

Tinha dez anos na primeira vez.

Foi acidente.

Na segunda quis

Ir até o fim e nunca mais voltar.

Oscilei, fechada

Como uma concha do mar.

Tiveram que chamar e chamar

E tirar os vermes de mim como pérolas grudentas.

Morrer

É uma arte, como tudo o mais.

Nisso sou excepcional.

Desse jeito faço parecer infernal.

Desse jeito faço parecer real.

Vão dizer que tenho vocação.

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E muito fácil fazer isso numa cela.

É muito fácil fazer isso e ficar nela.

É o teatral

Regresso em plena luz do sol

Ao mesmo local, ao mesmo rosto, ao mesmo grito

Aflito e brutal:

"Milagre!"

Que me deixa mal.

Há um preço

Para olhar minhas cicatrizes, há um preço

Para ouvir meu coração —

Ele bate, afinal.

E há um preço, um preço muito alto

Para cada palavra ou cada toque

Ou mancha de sangue

Ou um pedaço de meu cabelo ou de minhas roupas.

E aí, Herr Doktor.

E aí, Herr Inimigo.

Sou sua obra-prima,

Sou seu tesouro,

O bebê de ouro puro

Que se funde num grito.

Me viro e carbonizo.

Não pense que subestimo sua grande preocupação.

Cinza, cinza —

Você fuça e atiça.

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Carne, osso, não há mais nada ali —

Barra de sabão,

Anel de casamento,

Obturação de ouro.

Herr Deus, Herr Lúcifer

Cuidado.

Cuidado.

Saída das cinzas

Me levanto com meu cabelo ruivo

E devoro homens como ar.

Recebido: 08/2013

Aprovado: 10/2013

NIETZSCHE E A RETOMADA DO PROJETO CRÍTICO

KANTIANO: UMA LEITURA DELEUZEANA

Leonardo Araújo Oliveira

Graduando em Filosofia pela UESB

Resumo: O presente artigo analisa a interpretação de Gilles Deleuze acerca da relação

entre as filosofias de Immanuel Kant e Friedrich Nietzsche, comparando os textos dos

filósofos comentados com os textos do comentador, mormente a obra Nietzsche e a

filosofia, especialmente o capítulo intitulado A crítica, onde Deleuze defende a tese de

que Nietzsche retomou o projeto crítico kantiano para superá-lo.

Palavras-chave: Crítica. Interpretação deleuzeana. Nietzsche. Kant.

Résumé: Cet article analyse l’interprétation de Gilles Deleuze sur la relation entre les

philosophies de Immanuel Kant et Friedrich Nietzsche, comparant les écrits des

philosophes commenté avec les écrits do commentateur, en particulier le travaux

Nietzsche et la philosophie, spécialement le chapitre intitulé La critique, où Deleuze

défend la thèse que Nietzsche a repris le projet critique kantien pour le surmonter.

Mots-clés: Critique. Interprétation deleuzienne. Nietzsche. Kant.

1- Introdução

É bem conhecida a negação de um estatuto filosófico atribuído à obra de Friedrich

Nietzsche, autor correntemente considerado um literato. Nesse sentido, no campo do

comentário à obra do pensador alemão, surgiram leituras sistemáticas que, dentre outras

potências liberadas, serviram como resposta a essa perspectiva negativa, fundando os

textos de Nietzsche como componentes de uma obra filosófica em constante diálogo e

crítica com a tradição e que oferece respostas aos problemas clássicos, bem como se

insere nas grandes temáticas e subáreas presentes na história da filosofia desde Platão.

Em favor de leituras sistemáticas, criticam-se os comentários realizados por Gilles

Deleuze acerca da filosofia de Nietzsche, que dentre outros julgamentos, foi acusado de

negligenciar aspectos fundamentais concernentes à interpretação da filosofia de

Nietzsche. Por exemplo, tem-se a advertência da professora Scarlett Marton, para quem

Deleuze centrou um peso excessivo nas noções de “força ativa” e “força reativa”,

desconsiderando que Nietzsche menciona os termos “ativo” e “reativo” muito raramente,

e que a própria noção de força foi só encontrada em Nietzsche a partir da redação da Gaia

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Ciência, sendo que Deleuze faria uso dessa noção para refletir sobre o conjunto da obra

do filósofo alemão (Cf. MARTON, 2010, p.44).

Embora não tomemos tais críticas à interpretação deleuzeana como dadas, sem o

devido questionamento e contextualização, não cabe ao propósito desde texto debater tais

questões. O que nos interessa é reconstruir a argumentação de Deleuze na obra Nietzsche

e a filosofia, mais notadamente o terceiro capítulo, intitulado A Crítica, em que o filósofo

francês parte da ideia de que Nietzsche retoma o projeto crítico kantiano para superá-lo.

Para tanto, iniciaremos investigando o problema da valoração, essencial na leitura de

Deleuze, que não aguarda o terceiro capítulo para abordá-la, iniciando o livro com essa

questão e configurando-a, junto à ideia de “sentido”, como uma noção crítica por

excelência. O problema da valoração despertará, no segundo momento de nossa

investigação, o levantamento, realizado por Deleuze, das diferenças essenciais entre os

projetos críticos de Kant e Nietzsche; o que culmina em uma problemática – constituinte

da terceira parte da presente investigação – que envolve uma idéia-chave para a

interpretação deleuzeana das ideias de Nietzsche e principalmente para a obra filosófica

do próprio Deleuze, a saber, a ideia de imagem do pensamento1.

Destarte, nosso trabalho se faz por uma via positiva, onde procuramos constatar a

coerência interna da interpretação deleuzeana, remetendo-a aos textos dos próprios

filósofos em questão: Kant e Nietzsche.

2- Valoração e genealogia

A importância da temática da filosofia crítica e da relação entre as ideias de Kant

e de Nietzsche torna-se visível logo nas primeiras palavras de Deleuze em sua obra

Nietzsche e a filosofia:

O projeto mais geral de Nietzsche consiste no seguinte: introduzir na filosofia

os conceitos de sentido e de valor. [...] Nietzsche nunca escondeu que a

filosofia do sentido e dos valores deveria ser uma crítica. Kant não conduziu a

verdadeira crítica porque não soube colocar seu problema em termos de valores

[...], quando se trata de Nietzsche, devemos, ao contrário, partir do seguinte

fato: a filosofia dos valores, tal como ele a instaura e a concebe, é a verdadeira

realização da crítica, a única maneira de realizar a crítica total, isto é, de fazer filosofia a “golpes de martelo”. Com efeito, a noção de valor implica uma

noção crítica (DELEUZE, 2010, p.1, grifos do autor).

1 A problemática da imagem do pensamento envolve toda a filosofia de Deleuze, mas aparece com maior

ênfase, além da obra aqui abordada, nos livros Proust e os signos e Diferença e Repetição.

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Em um primeiro momento, a avaliação aprecia os fenômenos a partir dos valores,

que atuam, nesse contexto, como princípios. Porém, mais profundamente, são os valores

que derivam das avaliações. Para Deleuze, o problema crítico gira em torno da avaliação

dos valores, isto é, da valoração de onde provêm os valores, e que por isso, se define

como crítica e criadora. A crítica feita a marteladas se configura como um processo

agressivo e criminoso, e por corolário, como uma prática criativa – nas palavras de

Zaratustra: “Vede os bons e os justos! A quem odeiam mais? Àquele que quebra suas

tábuas de valores, ao quebrador, infrator: – mas esse é o que cria” (NIETZSCHE, 2011,

p.23).

As avaliações acompanham os estilos de vida daqueles que avaliam – essa é a

razão pela qual os sentimentos e pensamentos nos atingem em função de nossos modos

de existência. A avaliação dos valores depende das categorias do alto e do baixo, do nobre

e do vil, que procedem, a cada avaliação, como os elementos diferenciais aos quais e dos

quais o valor dos valores é referido e derivado. Aqui, nota-se uma tipologia. A paridade

alto-nobre designa o caráter ativo, afirmativo e leve das forças que perpassam um tipo,

enquanto o tipo baixo-vil é anunciado segundo o caráter reativo, negativo e pesado das

forças que se apoderam dele. Os fenômenos precisam ser interpretados com referência a

tais categorias, isto é, um acontecimento deve ser avaliado segundo sua relação com o

triunfo das forças ativas e altas ou com a elevação das forças reativas e baixas.

Para Deleuze, a dupla tarefa da filosofia crítica consiste em dois seguimentos

intrínsecos: o valor como referência de origem para todas as coisas; o valor referido à

outra instância avaliadora, que decida acerca de sua origem e de seu próprio valor. Nesse

sentido, a filosofia propriamente crítica se opõe a duas figuras: aqueles que afirmam os

valores estabelecidos a partir da pretensão científica da descoberta de fatos; e aqueles,

como Kant e Hegel, que se limitam a julgar valores existentes ou se prendem à realização

de críticas em função de valores dados. Como sustenta Nietzsche no aforismo 209 de

Além do bem e do mal: “Insisto em que finalmente se deixe de confundir com filósofos

os trabalhadores filosóficos e, sobretudo, os homens de ciência”, uma vez que a tarefa do

filósofo “exige que ele crie valores”, e que

os trabalhadores filosóficos formados segundo o nobre modelo de Kant e Hegel

têm de estabelecer e colocar fórmulas, [...], algum vasto corpo de valorações –

isto é, anteriores determinações, criações de valores, [...] os autênticos

filósofos são comandantes e legisladores (NIETZSCHE, 1999, p.118, grifos

do autor).

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Contra o tipo dos trabalhadores filosóficos – que formam uma espécie de operários

da filosofia – e contra os homens de ciência – atuantes no círculo dos eruditos –, o duplo

desvio de Nietzsche visa escapar e se opor a uma filosofia que trate tanto daquilo que vale

para todos como com daquilo que vale em si. Daí se deduz o conceito de genealogia tal

como Deleuze o interpreta, como origem dos valores e valor da origem.

Deleuze estabelece uma diferença entre a ligação de Nietzsche e a de

Schopenhauer com a filosofia de Kant. É certo que há, em Nietzsche, um composto de

descendência e rivalidade em relação a Kant, mas ao contrário de Shopenhauer, que busca

retirar o kantismo do domínio da dialética, Nietzsche alcança um ponto mais profundo,

ao notar que os avatares dialéticos são derivados e internos à insuficiência da crítica

kantiana:

Uma transformação radical do kantismo, uma reinvenção da crítica que Kant

traíra ao mesmo tempo em que concebera, uma retomada do projeto crítico em

novas bases e com novos conceitos, é o que Nietzsche parece ter procurado

(DELEUZE, 2010, p.59).

É no interior da Genealogia da moral que o filósofo francês crê encontrar a

referência maior a Kant, do ponto de vista do projeto crítico e da superação de tal projeto

como o concebia o filósofo de Königsberg: “Se renunciamos a crer que a organização das

três dissertações é fortuita, precisamos concluir: Nietzsche, em A genealogia da moral,

buscou refazer a Crítica da razão pura” (DELEUZE, 2010, p.100). Ao que tudo indica,

com essa afirmação inusitada, Deleuze faz referência ao livro segundo da Crítica, acerca

dos raciocínios dialéticos da razão pura. Nesse livro, Kant trabalha com três capítulos,

intitulados “dos paralogismos da razão pura”, “a antinomia da razão pura”, e “o ideal da

razão pura”, aos quais Nietzsche estaria se opondo, com suas três dissertações: sobre “a

origem dos termos bom e mau, bom e ruim”; acerca de “culpa e má consciência”; e por

fim, sobre os ideais ascéticos.

Na primeira dissertação, Nietzsche põe em evidência o paralogismo da força,

quando separada de sua potência pelo ressentimento: “Exigir da força que não se expresse

como força [...] é tão absurdo quanto exigir da fraqueza que se expresse como força”

(NIETZSCHE, 2009, p.p.32-33.) Na segunda dissertação, se tem a inseparabilidade entre

má consciência e antinomia, na medida em que a má consciência manifesta a força

voltando-se contra si mesma, nas palavras de Nietzsche, uma “oculta violentação de si

mesmo”, que, “como ventre de acontecimentos ideais e imaginosos”, fez vir à luz “noções

contraditórias como ausência de si, abnegação, sacrifício” (NIETZSCHE, 2009, p.p.70-

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71, grifos do autor). Assim, a fonte da antinomia é a má consciência, e segundo Deleuze

“Nietzsche se apraz em sublinhar a insuficiência da concepção kantiana das antinomias”

(DELEUZE, 2010, p.100). A terceira dissertação trata da mistificação do ideal, que

comporta todas as mistificações, tanto da moral quanto do conhecimento.

Nietzsche acredita que Kant não criou e nem realizou a verdadeira crítica,

comprometendo-a, tanto em seus princípios como em sua aplicação, e acredita somente

em si próprio, como pensador capaz de efetivá-la. Isso faz com que Deleuze busque

estabelecer um paralelo entre Nietzsche e Kant, do ponto de vista dos princípios e das

conseqüências de ambos os projetos críticos.

3- Diferenças entre Kant e Nietzsche

Do ponto de vista dos princípios, Deleuze ressalta o caráter abrangente do projeto

crítico kantiano – uma crítica que liberasse forças até o momento negligenciadas, que

abarcasse todas as categorias do pensamento e o fundasse no seio da seriedade de um

sistema filosófico. Kant expõe a tríade questionadora que rege o seu projeto nos seguintes

termos: “[...] todo interesse de minha razão (tanto o especulativo quanto o prático)

concentra-se nas três seguintes perguntas: 1. Que posso saber? 2. Que devo fazer? 3. Que

me é dado esperar?” (KANT, 1988, p. 833, grifos do autor). Os três ideais destacados são

interpretados por Deleuze como política de compromisso, repartição das esferas de

influência, estabelecimentos dos limites de cada um, bem como denúncia dos maus usos

e das interferências de um domínio no campo de competência do outro. Deleuze então

pergunta: “[...] quais são os resultados de um projeto tão grande? O leitor acredita

seriamente que, na Crítica da razão pura, [...] Kant tenha atacado o ideal correspondente

[à dogmática dos teólogos] e que tenha tido a intenção de atacá-lo?” (DELEUZE, 2010,

102). O Ideal permanece incriticável, critica-se o conhecimento, a moral e a religião,

porém, expondo somente os seus limites, a um só tempo em que se assegura o que seriam

o verdadeiro conhecimento, a verdadeira moral, a verdadeira religião. Kant não teria sido

capaz de levar a crítica até o fim de sua potência, levando adiante, somente, a tradicional

concepção de crítica, ainda que de maneira mais rigorosa do que a tradição filosófica que

lhe era anterior.

O filósofo de Königsberg nos explicita o lugar da verdade em seu projeto: “Que é

a verdade? A definição nominal do que seja a verdade, [...], admiti-la e pressupomo-la

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aqui; pretende-se, porém, saber qual seja o critério geral e seguro da verdade de todo o

conhecimento” (KANT, 2001, p.93, grifos do autor). Nesse contexto problemático

destaca-se um ponto fundamental de diferença entre Kant e Nietzsche. Kant põe em

questão as pretensões à verdade e ao verdadeiro conhecimento, mas não a própria verdade

e o próprio conhecimento. Para Nietzsche, a crítica não consiste em atacar verdades mal

formuladas, mas sim em questionar a própria verdade. Vários aforismos de Além do bem

e do mal confirmam essa hipótese, a começar pelo primeiro:

A vontade de verdade, que ainda nos fará correr não poucos riscos, [...] Se,

com essa esfinge, também nós aprendemos a questionar? Quem, realmente,

nos coloca questões? O que, em nós, aspira realmente “à verdade”? [...] O

problema do valor da verdade apresentou-se à nossa frente – ou fomos nós a

nos apresentar diante dele? Quem é Édipo, no caso? Quem é a Esfinge? (NIETZSCHE, 1999, p.9)

Nietzsche, colocando-se para além de Kant, concebe-se corajoso o bastante para

realizar a crítica, propondo que a verdade esteja também sob a forma de um valor; em

substituição ao pretenso atrelamento da verdade à universalidade e à abstração total: a

verdade como pressuposto inabalável. Pensa-se não mais em pura verdade, mas antes em

valor de verdade; o que nos remete à pergunta sobre uma vontade de verdade. Sob a forma

do valor, não cabe à verdade um caráter universal e inato. Transfere-se a questão do centro

do problema do conhecimento para o problema da valoração; não mais ‘o que é a

verdade?’, mas sim ‘para quê a verdade?’, ‘o que quer quem a deseja?’. O caráter

valorativo torna-se evidente se considerarmos a tragédia de Sófocles invocada por

Nietzsche. Lembremos que Édipo buscou mais do que ninguém a verdade. Sua procura

desenfreada por conhecimento desembocou na perda de sua honra, de seu reino e de sua

visão. Mas a cegueira de Édipo não estaria colocada em sua própria busca? Nietzsche

argumenta em favor de demonstrar os perigos que a pretensão ao conhecimento puro

comporta, pois tal busca esconde seus reais impulsos e conseqüências: “’o conhecimento

pelo conhecimento’ – eis a última armadilha colocada pela moral: é assim que mais uma

vez nos enredamos inteiramente nela” (NIETZSCHE, 1999, p.67).

O questionamento da verdade e do conhecimento, contrastando diretamente com

Kant, aparece também no aforismo de número onze, onde, junto à célebre passagem em

que Nietzsche compara a fundamentação kantiana dos juízos sintéticos a priori com uma

falácia de petição de princípio presente em uma comédia de Molière2, se encontra a

2 Sobre a referência à Molière na crítica à Kant, Nietzsche trabalha com a ideia de que o argumento kantiano

para justificar a possibilidade dos juízos sintéticos a priori se assemelha ao argumento de um personagem

de Molière em sua comédia O doente imaginário: “’Em virtude de uma faculdade’, havia ele dito, ou ao

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experimentação nietzschiana concernente à substituição da pergunta pela possibilidade

dos juízos sintético a priori pela questão da crença em tais juízos:

e é tempo, finalmente, de substituir a pergunta kantiana “como são possíveis

juízos sintéticos a priori?”, por uma outra pergunta: “porque é necessária a

crença em tais juízos?” – isto é, de compreender que, para fim da conservação de seres como nós, é preciso acreditar que tais juízos são verdadeiros; com o

que, naturalmente, poderiam ser falsos! (NIETZSCHE, 1999, p.13, grifos do

autor).

Um trecho do aforismo 34 também questiona o estatuto de pureza e de

universalidade da verdade, relacionado à questão da valoração, quando Nietzsche propõe

outro experimento teórico, que substitua a oposição entre verdadeiro e falso pela tese dos

graus de aparência: “Sim, pois o que nos obriga a supor que há uma oposição essencial

entre ‘verdadeiro’ e ‘falso’? Não basta a suposição de graus de aparência, e como que

sombras e tonalidades do aparente, [...] diferentes valeurs [valores][...]?” (NIETZSCHE,

1999, p.41).

Se buscarmos encarar a pergunta nietzschiana, tenderemos a afirmar que o que

nos obriga a manter uma oposição entre verdade e falsidade é a força moral, e podemos

direcionar tal questão para a problemática em torno da crítica do filósofo de Königsberg.

A filosofia de Kant exclui do conhecimento humano a possibilidade de uma verdade

absoluta, mas a mantém como uma realidade, ainda que não atingida pela via cognitiva,

mas buscada pela via prática, através da moral.

O texto intitulado Sobre um suposto direito de mentir por amor à humanidade nos

evidencia os pressupostos morais implicados na defesa kantiana da verdade a todo custo:

A veracidade das declarações que não se pode evitar é um dever formal do

homem com relação a qualquer outro, por maior que seja o prejuízo decorrente

disso para ele ou para outra pessoa; e se não cometo uma injustiça contra aquele

que me obriga a uma declaração de maneira injusta, se as falsifico, cometo, por essa falsificação, que também pode ser chamada mentira [...] uma injustiça na

parte mais essencial do dever: isto é, faço, naquilo que a mim se refere, com

que as declarações em geral não encontrem mais crédito, e portanto também

todos os direitos fundados em contratos sejam abolidos e percam a força; isto

é uma injustiça causada à humanidade em geral (KANT, 2012, p.73).

Para Kant, mesmo em casos que a verdade traga prejuízos, preservá-la é um dever

moral, e a agressão à verdade implica necessariamente um prejuízo para a humanidade;

faltar com a verdade é sempre prejudicar alguém, ainda que não um homem determinado.

menos dado a entender. Mas então isto é – uma resposta? Uma explicação? Não seria apenas uma repetição

da pergunta? Como faz dormir o ópio? ‘Em virtude de uma faculdade’, isto é, da virtus dormitiva – responde

aquele médico de Molière [...]. Mas respostas assim se acham em comédias” (NIETZSCHE, 1999, p.13).

Nietzsche também fala de uma “tartufice do velho Kant” (NIETZSCHE, 1999, p.12), termo derivado de

“Tartufo”, personagem de peça homônima de Molière.

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A defesa da verdade, deslocada de seu interesse epistemológico, pode ser pensada como

detentora de princípios essenciais para a manutenção do sistema kantiano, assegurando

sua teoria moral, baseada na universalidade formal do imperativo categórico. Ainda em

Além do bem e do mal, no quinto aforismo, presenciamos a acusação de Nietzsche, de

que o pretenso desenvolvimento autônomo de uma dialética pura esconde preconceitos

morais, adotados de antemão, e cita Kant como exemplo:

A rígida e virtuosa tartufice do velho Kant, com a qual ele nos atrai às trilhas

ocultas da dialética, que encaminham, ou melhor, desencaminham, a seu ‘imperativo categórico’ – esse espetáculo nos faz sorrir, a nós [...] que achamos

não pouca graça em observar os truques sutis dos moralistas e pregadores da

moral ( NIETZSCHE, 1999, p.p. 12-13).

Percebe-se que Nietzsche tenciona, genealogicamente, marcar os pontos

indiscerníveis entre conhecimento e moral. Talvez possamos compreender melhor a

intenção de Deleuze ao afirmar que a Genealogia da moral foi concebida como uma

reformulação da Crítica da razão pura, isto é, onde Kant trabalha com paralogismos,

antinomias e ideais, no contexto de questões de caráter gnosiológico, Nietzsche trata-os

em um campo moral, uma vez que “as intenções morais (ou imorais) de toda filosofia

constituíram sempre o germe a partir do qual cresceu a planta inteira.” (NIETZSCHE,

1999, p.13).

É nesse sentido que Deleuze, em Diferença e Repetição, se refere ao conceito

kantiano de boa vontade como um dos elementos morais que alicerçam a pretensa ligação

que liga pensamento e verdade; ligação essa que, como veremos, é um pressuposto

essencial da imagem dogmática do pensamento: “Quando Nietzsche se interroga sobre os

pressupostos mais gerais da Filosofia, diz serem eles essencialmente morais, pois só a

Moral é capaz de nos persuadir de que o pensamento tem uma boa natureza, o pensador,

uma boa vontade” (DELEUZE, 2006, p.136).

Deleuze denomina “genialidade de Kant” o fato de que seu projeto crítico tenha

sido concebido sob um viés imanente, na medida em que a crítica não fazia referência aos

domínios exteriores ao pensamento, mas sim à própria razão e seus limites, instalando um

tribunal próprio da razão no domínio do pensamento, não delimitando o negativo do

pensamento sob a forma do erro, mas ampliando-o para a noção de ilusão.

Para Kant, os desvios da razão não são obra do acaso e não devem ser registrados

segundo o encontro com forças exteriores contingentes, como as paixões do corpo. O

dogmatismo é o efeito de uma disposição natural de nossa razão. O atrelamento inevitável

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entre a razão pura e a metafísica não pode ser explicado somente como uma aparência

extirpável, mas também como um movimento natural em direção ao fim da razão. Trata-

se menos de uma tentativa de extirpação da aparência do que de um diagnóstico dela.

Como expõe Kant:

A dialética transcendental deverá pois contentar-se em descobrir a aparência

de juízos transcendentes, evitando ao mesmo tempo que essa aparência nos

engane; mas nunca alcançará que essa aparência desapareça (como a aparência

lógica) e deixe de ser aparência. Pois trata-se de uma ilusão natural e inevitável

(KANT, 2001, p.297).

Não basta se libertar dos pré-juízos. Se o movimento crítico não remonta até as

raízes das ilusões, como assegurar que a libertação dos pré-juízos não é ela própria uma

ilusão?

Para que a Crítica se efetive como uma ruptura na história das ideias, é necessário

reconhecê-la como um rompimento com a tradicional concepção do que seria o negativo

do pensamento, isto é, o erro. Como argumenta Lebrun, ao comentar a filosofia de Kant:

“[...] é preciso parar de considerar o erro como um brusco acesso de loucura ou como a

irrupção, no encadeamento das verdades, de uma causalidade fisiológica contingente, e

desenterrar o seu germe na junção tenebrosa da natureza e da ilusão” (LEBRUN, 1993,

p.60). Não basta denunciar os erros, enquanto derivados do corpo e de suas paixões, é

preciso ir até a morada da ilusão, da qual os erros são somente os sintomas e o que os

torna possíveis; embora o erro seja produto de uma ignorância, a própria ignorância se

inscreve em uma confiança de poder sobrevoar a objetividade, de uma inclinação, de uma

razão positiva de julgar, de uma pretensão à verdade.

O problema não é mais da ordem das paixões exteriores como obstáculo para o

pensamento, mas sim das ilusões provenientes da própria razão. A Crítica da razão pura

significa, assim, uma crítica interna, a crítica da razão pela própria razão. Nietzsche não

parece se conformar com a possibilidade da razão criticar a si própria:

O intelecto não pode, ele mesmo, criticar-se, justamente porque não pode ser

comparado com intelectos diferentemente constituídos e porque sua

capacidade de conhecer viria à luz somente em face da “verdadeira realidade”

[wahren Wirklichkeit], isto é, porque, para criticar o intelecto, precisaríamos

ser um ser mais elevado, com “conhecimento absoluto”. Isso já pressupõe que

haveria algo, um “em si”, para além de todas as espécies de perspectivas de

consideração e de apropriação sensível-espiritual (NIETZSCHE, 2008, p.256).

Fazendo coro a Nietzsche, Deleuze questiona se a crítica da razão pela razão, se a

constituição do tribunal onde juiz e acusado são os mesmos, não seria propriamente a

contradição kantiana. A resposta deve indicar um “fracasso” do projeto kantiano, na

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medida em que existe uma grande distância entre o projeto inicial e seus resultados.

Diferente de operar em favor de uma gênese interna, os princípios transcendentais atuam

como princípios de condicionamento; e segundo Deleuze, houve condições e instâncias

que permaneceram exteriores ao condicionado. Para que a crítica de Kant obtivesse êxito

seria necessário utilizar um método capaz de julgar a razão a partir de dentro, sem que a

própria razão fosse autorizada a tal. Somente o conceito de vontade de potência permite

que se dê conta de uma crítica interna, para que se ponham em evidência as forças ou a

vontade que orientam e se manifestam na razão. Desse modo, a razão seria avaliada a

partir de uma referência à tipologia das forças, que têm seu complemento qualitativo na

vontade de potência. Segundo Deleuze, a vontade de potência é o princípio genealógico

legislador, que opera a verdadeira crítica e abre o terreno para a transvaloração. Nietzsche

define o filósofo do futuro: “Seu ‘conhecer’ é criar, seu criar é legislar, sua vontade de

verdade é – vontade de poder” (NIETZSCHE, 1999, p.118).

Mas não seria o caráter legislador e ativo do conhecimento um dos grandes pontos

de semelhança entre as filosofias de Nietzsche e Kant? De fato, a filosofia legisladora é

o complemento ao projeto da crítica interna, tal como concebera Kant. O filósofo de

Königsberg põe em relevo o caráter constitutivo do conhecimento, destacando que a

produção de conceitos através do entendimento, embora necessite da recepção do objeto,

se realiza apenas segundo a atividade do sujeito do conhecimento. O intelecto humano

molda o caos da experiência sensível, dando-lhe ordem e unidade. Mas por que Nietzsche,

ao tratar do filósofo-legislador, identifica Kant ao quadro do que ele denomina de

operários da filosofia? A questão é que, pela filosofia de Kant, é sempre alguma faculdade

que legisla em um domínio específico. Se é legislador somente na condição de se permitir

ser moldado segundo o bom uso das faculdades, essa passividade, para o autor de

Diferença e repetição, não é própria de um legislador-criador, ao contrário, se confunde

com o lugar de um cidadão obediente, respeitoso dos valores estabelecidos.

Do ponto de vista das conseqüências, Deleuze resume as concepções nietzschiana

e kantiana através de cinco pontos: 1. Em contrapartida ao postulado de princípios

transcendentais, que se impõem como simples condições para pretensos fatos, se erguem

princípios genéticos que estão relacionados ao sentido e ao valor das crenças,

interpretações e avaliações; 2. O pensamento não é legislador por obedecer à razão, mas

sim, até mesmo, por ir contra a razão; 3. A verdadeira crítica não deve ser realizada pelo

legislador kantiano – um juiz que anuncia uma crítica respeitosa, que supervisiona seus

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domínios, ao mesmo tempo em que reparte valores estabelecidos –, mas sim por um

genealogista, o filósofo do futuro, aquele que avalia e interpreta, que cria novos valores,

que faz filosofia a “marteladas”; 4. Não é o operário de valores em curso – ao mesmo

tempo sacerdote e fiel, legislador e súdito, escravo vencedor e escravo vencido –, o

homem bem realizado, que deve criar novos valores, mas sim o tipo crítico, homem que

quer ser ultrapassado, superado, um tipo relativamente sobre-humano; 5. O objeto da

crítica não são os fins do homem ou da razão e sim, finalmente, o super-homem, o homem

superado, ultrapassado. A crítica em filosofia não se justifica por uma tentativa de

evolução do pensamento, mas por um deslocamento, em que se possa sentir de outras

maneiras, alcançar uma outra sensibilidade (Cf. DELEUZE, 2010, p.108).

Kant é considerado por Deleuze o ultimo dos filósofos clássicos, na medida em

que não põe a verdade em termos de valor, isto é, não questiona o valor da verdade. Isso

faz com que Kant leve a frente ainda uma velha imagem do pensamento, o que Deleuze

nomeia de imagem dogmática do pensamento.

4- O problema da imagem dogmática do pensamento

A imagem dogmática do pensamento pode ser condensada em três teses: a

primeira afirma que o pensador, enquanto pensador, aspira e tem amor pelo verdadeiro –

que o pensamento possui formalmente o verdadeiro (inatismo da idéia ou apriorismo do

conceito); ratificando, que pensar é o exercício natural de uma faculdade. A segunda tese

apresenta o problema da exterioridade dos obstáculos ao pensamento, que seria tirado de

sua reta direção sempre por forças consideradas exteriores a ele (corpo, paixões,

interesses sensíveis), nos induzindo a tomar o falso pelo verdadeiro. Assim, a terceira tese

afirma que, para se pensar, é necessário um método, com o fito de encontrar a natureza

do pensamento e pensar verdadeiramente. O método seria o artifício pelo qual se pode

proteger-se das forças exteriores que fazem com que se tome o falso pelo verdadeiro.

A crítica de Kant não poderia ocupar o lugar onde Nietzsche a colocou, uma vez

que não atacara os pressupostos da imagem dogmática do pensamento. Tal imagem

pressupõe uma afinidade natural entre pensamento e verdade. Relação essa colocada em

cheque pela crítica nietzschiana, ao deslocar a verdade para o campo valorativo: “o

problema do valor da verdade. – A vontade de verdade requer uma crítica – com isso

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determinamos nossa tarefa -, o valor da verdade será experimentalmente posto em

questão” (NIETZSCHE, 2009, p.131, grifos do autor).

A imagem dogmática do pensamento pressupõe uma concepção universal abstrata

do verdadeiro. Não se relaciona a verdade com as forças que lhe dão sentido e que lhe

atribuem um valor. A verdade de um pensamento deve ser avaliada e interpretada segundo

as forças que se apoderam dele, que o determinam a pensar algo singular, isto é, “a pensar

isso em preferência daquilo” (DELEUZE, 2010, p.118). É nesse contexto que o conceito

de vontade de potência se insere como o elemento seminal para o projeto crítico kantiano,

segundo Deleuze:

Querer é a instância ao mesmo tempo genética e crítica de todas as nossas

ações, sentimentos e pensamentos. O método consiste no seguinte: reportar um

conceito à vontade de potência para dele fazer o sintoma de uma vontade sem

a qual ele não poderia nem mesmo ser pensado (DELEUZE, 2010, p. 89).

A crítica kantiana manteve obliterado o papel decisivo das forças que determinam

o pensamento. As verdades enunciadas em sua pretensa pureza, as verdades da ciência,

se conciliam facilmente com os valores em curso e a ordem estabelecida, encobrindo as

relações de força que o saber supõe:

a “verdade”, da qual nossos professores tanto falam, [...] ela é uma criatura de

humor fácil e benevolente, que não se cansa de assegurar a todos os poderes

estabelecidos que ela não quer criar aborrecimentos a ninguém; pois, afinal de

contas, não se trata aqui apenas de “ciência pura”? (NIETZSCHE, 2009,

p.177).

Kant não realizou a crítica completa, pois sua filosofia não entra inteiramente em

combate com a imagem dogmática do pensamento. Lembremos que a segunda tese da

imagem clássica do pensamento nos diz que o negativo do pensamento, aquilo que o

pensador deve ao máximo evitar, é o erro, proveniente da sensibilidade. Lembremos

também que Kant esboçou um movimento de mudança nessa imagem, ao não se limitar

ao problema do erro, deslocando o negativo do pensamento para a noção de ilusão. Ainda

assim, seja com o erro ou com a ilusão, a figura oposta é a mesma, isto é, a verdade. Foge-

se do erro e da ilusão para se alcançar a verdade. O problema é que existem verdades

estúpidas e baixas. O que a filosofia deve impedir não é o desvio do caminho da verdade,

mas o crescimento da estupidez3 e da baixeza do pensamento.

3 O termo utilizado por Deleuze no original é “bêtise”, e trata-se de um conceito retomado por Deleuze em

Diferença e repetição, configurando-se como uma questão de maior peso no pensamento do filósofo francês

do quê do próprio Nietzsche. Pode ser traduzido por “tolice”, como fazem Ruth J. Dias Edmundo F. Dias

na tradução de Nietzsche et la philosophie, “besteira”, como optam Luiz Orlandi e Roberto Machado na

versão brasileira de Différence et répétition, “estupidez”, nossa opção. Privilegiamos esse último,

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Segundo Nietzsche, “não decidiremos aqui se esta pregação contra a estupidez

tinha razões melhores do que a pregação contra o egoísmo; mas é certo que ela tirou à

estupidez a boa consciência: – aqueles filósofos prejudicaram a estupidez”

(NIETZSCHE, 2001, p.218, grifos do autor).

Segundo Deleuze:

A estupidez não é um erro nem um tecido de erros. Conhecem-se pensamentos

imbecis, discursos imbecis que são feitos totalmente de verdades; mas essas verdades são baixas, são as de uma alma baixa, pesada e de chumbo. A

estupidez e, mais profundamente, aquilo de que ela é um sintoma: uma maneira

baixa de pensar (DELEUZE, 2010, p.120).

A tolice, a estupidez, a imbecilidade, a besteira, a baixeza expressam o triunfo das

forças reativas no pensamento e atuam em função da separação entre pensamento e vida.

A filosofia, precisamente por garantir seu caráter afirmador e vital, precisa se contrapor

à tolice. A atividade filosófica fundamental, aquilo que define a filosofia, para Deleuze,

é a criação de conceitos. Ainda que não realizada em função da luta contra a tolice, a

criação de conceitos empreende, como consequência de sua atuação criativa e de sua

expansão, sua posição contraposta, uma vez que a tolice se encontra prejudicada por tal

criação.

5- Conclusão

Em nossa introdução, indicamos a importância explicativa das leituras

sistemáticas do texto nietzschiano, e como algumas delas – trazendo como exemplo os

indicativos de Scarlett Marton – podem servir de crítica à interpretação de Deleuze. No

entanto, a própria Marton alerta para os perigos das leituras sistemáticas do texto de

Nietzsche, que podem tornar estanque um pensamento dinâmico e que se apresenta por

vezes como fragmentário. Sabe-se que o próprio Nietzsche, enquanto intérprete da

história da filosofia, não foi um leitor sistemático, tanto no que se refere às leituras

propriamente ditas quanto no que concerne às interpretações retiradas dessa leitura4.

Deleuze define a investigação filosófica de Nietzsche como uma sintomatologia.

Trata-se de verificar quais os tipos de forças que se apoderam do pensamento. Nesse

sobretudo, por se homogeneizar com a tradução que Paulo César de Souza realiza do texto de Nietzsche

em alemão.

4 Mesmo suas leituras de Kant se devem em boa parte aos comentários de história da filosofia de Kuno

Fischer (Cf. MARTON, 2010, p.25).

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sentido, Nietzsche se direciona para a história da filosofia com um olhar desconfiado,

carregado de suspeita, buscando captar as motivações que residem além da argumentação

lógica, mas que sustentam essa argumentação. Identificamos esse mesmo procedimento

em Deleuze, o que torna o seu comentário das ideias de Nietzsche não somente um

comentário, mas um comentário propriamente nietzschiano, que faz com que filosofia e

história da filosofia convirjam e se misturem. Isso torna ambígua a relação de Deleuze

com a filosofia, na medida em que se configura como uma pensador que, se por um lado

escreveu vários trabalhos monográficos, por outro, considerou a história da filosofia

como um agente repressor do pensamento, um processo de fabricação de especialistas do

pensamento, uma imagem do pensamento que impossibilita as pessoas de pensarem (Cf.

DELEUZE; PARNET, 1998, p.21). Mas isso serve como motivação ao método de

interpretação deleuzeano/nietzschiano. Seria preciso retomar as ideias do filósofo sem

cair na repetição do mesmo, extraindo o novo, que não está explicitamente apresentado:

o não-dito do dito.

No presente texto, discutimos a interpretação deleuzeana da relação entre o

pensamento de Nietzsche e o de Kant no que diz respeito à crítica em filosofia. Destarte,

levamos em conta, principalmente, alguns elementos da filosofia de Nietzsche, como a

noção de valor e o conceito de vontade de potência, bem como noções que Deleuze

formula a partir do pensamento do criador de Zaratustra, como o problema da imagem

do pensamento – ponto de suma importância dentro da reflexão sobre o aspecto crítico

das filosofias de Kant e Nietzsche; pois é nesse âmbito que Deleuze pensa uma imagem

dogmática do pensamento, que, não atacada inteiramente pelo filósofo de Königsberg,

teria sido demolida apenas pelo “filósofo do martelo”, pois soube criar uma relação

diferencial com a questão da verdade.

A verdade não seria mais o que o pensamento possui de mais positivo. Assim, o

negativo do pensamento não reside mais em noções como “erro” e “ilusão”, e sim na ideia

de “estupidez”. A estupidez não é uma categoria social ou psicológica, mas uma estrutura

do pensamento enquanto tal, e que permanecerá atuando como força inerte em relação ao

pensamento, desde que uma força ativa não se ocupe a forçá-lo a pensar; nesse sentido,

ao contrário do conceito intemporal de erro, ela é sempre atual (Cf. DELEUZE, 2010, p.

122) e leva Deleuze a afirmar que a filosofia está, constantemente, em posição contrária

ao seu tempo. “Posição contrária ao seu tempo” é o mesmo que dizer, em linguagem

nietzschiana: a favor de um tempo por vir.

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Bibliografia

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LEBRUN, Gérard. Kant e o fim da metafísica. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

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______. Crítica da razão pura. 5ª edição. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2001.

______. Sobre um suposto direito de mentir por amor à humanidade. In: ______. Textos

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MARTON, Scarlett. Nietzsche, seus leitores e suas leituras. São Paulo: Editora

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______. III Consideração intempestiva: Schopenhauer educador. In: ______. Escritos

sobre educação. 4ª edição. Rio de Janeiro: PUC-Rio; São Paulo: Ed. Loyola, 2009,

p.161-259.

Recebido: 02/2013

Aprovado: 03/2013

O PROBLEMA DOS QUALIA NA FILOSOFIA DA MENTE

André Rosolem Sant’Anna

Graduando em Filosofia da UEM

Resumo: Neste artigo pretendo apresentar, de um modo geral, os problemas gerados

pelos qualia dentro da filosofia da mente. Inicialmente, ofereço uma caracterização do

que são os qualia, prezando por uma definição filosófica deste termo. Em um segundo

momento, faço uma distinção entre o problema ontológico e o problema epistemológico

dos qualia, apresentando experiências de pensamento que explicitam estes problemas. Na

terceira seção, tento aproximar a definição de qualia da primeira seção com as

experiências de pensamento da segunda seção. Em seguida, ainda nesta última seção,

apresento um desenvolvimento recente na filosofia da percepção que pode lançar luz

sobre algum dos problemas que aqui discutimos.

Palavras-chave: Qualia. Naturalismo. Disjuntivismo.

Abstract: In this paper, I shall try to explore some problems generated by qualia in

philosophy of mind. First, I shall try to define qualia in philosophical terms. Second, I

make a distinction between the ontological problem of qualia and the epistemological

problem of qualia, pointing out to some thought experiments that motivate these

problems. In the third section, I shall try to relate the discussion outlined in both section

one and section two by showing how the definition of qualia given in the first section

relates to the thought experiments presented in the second section. After that, I shall

present recent development in philosophical theories of perception, hoping that it might

shed some lights on our discussion.

Keywords: Qualia. Naturalism. Disjunctivism.

1- Introdução

Um os grandes desafios da filosofia da mente é o de encontrar uma explicação dos

aspectos qualitativos (qualia) de nossos estados mentais que seja compatível com as

nossas intuições científicas mais básicas. Neste artigo, pretendo explorar de um modo um

pouco mais detalhado estas dificuldades. Com o intuito de delimitar minha discussão,

estarei concernido aqui primariamente com os obstáculos filosóficos que os qualia

impõem a uma visão naturalista do mundo. Por esse motivo, dividirei esta discussão em

dois momentos distintos: primeiro, apresentarei os problemas ontológicos gerados pelos

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qualia, e, por fim, apresentarei os problemas epistemológicos gerados por estes aspectos

de nossos estados mentais.

Para motivar a compreensão dos pontos centrais da minha discussão, irei

apresentar as experiências de pensamento mais discutidas nas últimas décadas na

literatura em filosofia da mente. Concluo, por fim, apresentando um desenvolvimento

recente na filosofia da percepção que pode nos ajudar a entender de modo mais detalhado

os problemas que discutimos aqui.

2- O que são os qualia?

Definir os aspectos qualitativos de nossos estados mentais, ou, como muitos

preferem, definir os qualia (singular quale) é uma tarefa que não pode ser empreendida

sem adentrarmos em alguns problemas que certamente exigiriam um tratamento mais

cuidadoso do que aquele que posso lhes dar aqui. Para os meus propósitos neste texto, no

entanto, vou me restringir a uma definição filosófica dos qualia que acredito estar

associada ao trabalho de Daniel Dennett (1988). De acordo com esta definição, os qualia

podem ser caracterizados como aspectos subjetivos, intrínsecos e básicos de nossos

estados mentais.

Precisamos, certamente, explicar o que estes termos querem dizer. Antes de fazer

isso, eu gostaria, entretanto, de esclarecer um ponto em relação a esta definição. Em seu

trabalho de 1988 e posteriormente de 1991, Dennett assume claramente uma postura

eliminativista em relação aos qualia. Para ele, os qualia não possuem uma realidade

metafísica própria. O ponto que quero deixar claro aqui é o seguinte: ao assumir a

definição de qualia de Dennett, não estou assumindo também seu eliminativismo. Esta

definição está dissociada do eliminativismo de Dennett, já que, na verdade, é contra esta

definição de qualia que Dennett situa sua postura eliminativista.

Tendo esclarecido este ponto, passemos às três noções acima que tomamos como

definidoras da noção de qualia. Para tornar nossa análise mais simples, vamos considerar

aqui o caso singular de um quale visual associado à experiência visual que temos quando

olhamos para uma rosa vermelha.

Comecemos, portanto, vendo como a definição de qualia enquanto aspectos

subjetivos se aplica a este caso. Quando olhamos para uma rosa vermelha em condições

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normais, temos uma experiência visual com variados aspectos qualitativos, sendo um

deles a vermelhidão. Esta vermelhidão de nossa experiência visual é subjetiva, tal como

prescreve a definição de qualia dada acima, porque só nós podemos ter acesso a ela

enquanto aspecto qualitativo de nossa experiência visual. Em outras palavras, este

aspecto vermelho de nossa experiência visual só é acessível a um único sujeito, a saber,

o sujeito do qual este aspecto compõe a experiência. É importante notar também que

quando dizemos que “é somente acessível a um único sujeito”, esta sentença não se refere

a uma limitação local ou atual do mundo, mas sim a uma limitação em princípio: quando

dizemos que o quale de uma pessoa é subjetivo, dizemos que não podemos, em princípio,

ter acesso a este quale. Isso é o que podemos entender por qualia enquanto aspectos

subjetivos.

Consideremos, agora, o segundo aspecto, isto é, os qualia enquanto propriedades

intrínsecas. Podemos destacar, logo de início, que este aspecto está intimamente

associado ao aspecto básico dos qualia, sendo a diferença entre eles uma questão de

preocupações distintamente epistemológicas e ontológicas. Veremos isso mais adiante.

Em relação à noção de instrinsicidade, porém, os qualia são ditos intrínsecos porque não

é preciso que haja nenhuma mediação entre a nossa percepção e os qualia: estes últimos

são intrínsecos à nossa percepção, isto é, eles são imediatamente conhecidos quando

temos uma percepção, seja ela visual, auditiva, ou de qualquer outra modalidade. Note

que há aqui uma preocupação epistemológica, isto é, uma preocupação em relação ao

modo em que conhecemos os qualia. Em outros termos, para conhecermos um quale não

é preciso conhecer nada mais básico do que o próprio quale presente em nossas

percepções. Essa é a noção de intrinsecidade que associarei à noção de qualia neste artigo.

Resta-nos, por fim, entender a noção de qualia enquanto propriedades básicas. É

comum dizer, também em referência ao aspecto básico dos qualia, que eles são

propriedades monádicas. Mas o que isso exatamente quer dizer? Como eu disse

anteriormente, este aspecto está intimamente ligado ao segundo aspecto. Vimos que, no

caso deste último, havia uma preocupação epistemológica em relação aos qualia. No caso

do terceiro aspecto, todavia, há uma preocupação distintamente ontológica. Isso quer

dizer que os qualia são considerados propriedades mais básicas ou propriedades

monádicas porque não são compostos por nenhuma outra propriedade mais básica. Os

qualia são, em outras palavras, a unidade mais básica dos aspectos qualitativos de nossos

estados mentais.

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Essa caracterização dos qualia estabelece o background filosófico em que nossa

discussão estará inserida na próxima seção. Tentarei explicitar, através de argumentos

conhecidos dentro da filosofia da mente, como os qualia, definidos a partir dos três

aspectos aqui mencionados, apresentam dificuldades a uma visão naturalista do mundo.

Passemos, portanto, a esta discussão.

3- Naturalismo e qualia

Esta seção está destinada a apresentar algumas experiências de pensamento que

foram formuladas com o intuito de chamar nossa atenção para algumas intuições

conflitantes entre a nossa concepção de qualia e a visão naturalista que temos do mundo.

Para que possamos entender isso de um modo mais claro, apresento primeiro uma

definição geral do que entenderei por naturalismo. Tendo feito isso, apresento, em um

segundo momento, as experiências de pensamento que exploram estas intuições

conflitantes.

3.1- O que é naturalismo?

Definir o termo naturalismo seria, certamente, uma tarefa que poderia ser

empreendida à parte. Para os nossos propósitos aqui, no entanto, podemos nos restringir

a duas ideias centrais: (i) a ideia segundo a qual hipóteses filosóficas devem ser

consideradas em continuidade com hipóteses científicas; e (ii) a ideia segundo a qual o

universo físico é causalmente fechado. Tentarei explicar estas noções com mais detalhes

no que se segue.

Primeiramente, o que significa dizer que hipóteses filosóficas devem ser

consideradas em continuidade com hipóteses científicas? A ideia de continuidade entre

filosofia e ciência é uma ideia que vem recebendo muita atenção nas últimas décadas

dentro da dita tradição analítica da filosofia. De um modo mais específico, podemos

remontar este debate a um artigo de W. V. O. Quine intitulado Epistemology Naturalized

(1969). Neste trabalho, Quine argumenta em favor de um empreendimento

epistemológico que seja contínuo com as ciências empíricas, de tal modo que não mais

existiriam questões filosóficas “próprias”. Os problemas da epistemologia, acreditava

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Quine, poderiam ser resolvidos pela investigação empírica dos processos psicológicos da

mente humana.

Não entraremos aqui nos méritos da proposta de Quine, mas é importante

notarmos que a sua ideia geral de empreender a investigação filosófica em conjunto com

as ciências empíricas teve uma ampla influência na literatura subsequente. Isso fica

evidente, por exemplo, no trabalho recente de Ladyman, Ross e seus colaboradores

(2007). A proposta destes autores é a de instituir dentro da metafísica uma versão

naturalizada desta. Mais especificamente, para Ladyman e seus colaboradores, quando

assumimos uma postura naturalista dentro da metafísica, “uma importante fonte de

justificação para uma hipótese é como ela se situa em uma relação explanatória recíproca

– uma rede de relações de acordo comum [networked consilience relationships] – com

outras hipóteses científicas” (2007, p. 27, itálico adicionado).

É evidente que, quando colocamos a concordância de uma hipótese com outras

hipóteses mais bem estabelecidas da ciência como critério de justificação, estamos

assumindo uma ligação estreita entre filosofia (neste caso, a metafísica) com as ciências

naturais. É neste sentido, portanto, que entenderei o aspecto (i) mencionado acima. Em

outras palavras, quando dizermos que a filosofia é contínua com as ciências naturais,

estaremos aqui assumindo que hipóteses filosóficas serão consideradas de acordo com

sua relação de coerência com outras teorias científicas.

Tendo especificado (i), passemos agora à análise de (ii). A questão que temos em

nossa frente é a seguinte: o que significa dizer que o universo físico é causalmente

fechado? A noção de fechamento causal do universo está associada a uma noção de

completude das ciências naturais, mais especificamente da física. Em outros termos,

quando dizemos que o universo físico é causalmente fechado, estamos nos

comprometendo com a visão segundo a qual a explicação causal de um evento E pode ser

dada exaustivamente por uma causa física F ou um conjunto de causas física F1, F2, ...,

Fn.

Note que dizer que o universo físico é causalmente fechado não é uma afirmação

trivial para o naturalismo dentro da filosofia da mente. Nas discussões acerca da natureza

do mental, ainda não temos claro se a mente é uma substância independente da matéria

(como no caso do dualismo de substâncias) ou se a mente é somente matéria. Neste

sentido, quando assumimos o naturalismo (e, portanto, (ii)), eliminamos, por definição, a

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possibilidade da existência de entidades não-materiais, como uma substância pensante,

que interajam com o corpo, uma entidade material. Esta é, portanto, a noção de

fechamento causal que terei em mente quando mencionar o naturalismo.

Veremos nos próximos tópicos desta seção que as experiências de pensamento

discutidas na filosofia da mente questionam algumas das consequências que resultam da

assunção de um naturalismo baseado em (i) e (ii). Mais especificamente, veremos que a

nossas intuições acerca da mente parecem conflitar com a definição de naturalismo que

estipulamos aqui.

3.2- Zumbis e espectros invertidos: problemas ontológicos

Na introdução deste artigo, mencionei que estaria preocupado com as dificuldades

filosóficas que os qualia impunham ao naturalismo. Para iniciar esta discussão, vamos

primeiro considerar os problemas ontológicos que a existência dos qualia levanta. Para

motivar esta discussão, apresentarei duas experiências de pensamento muito discutidas

na filosofia da mente: o caso dos zumbis filosóficos e o caso do espectro invertido1.

Comecemos pelo caso dos zumbis filosóficos. A formulação desta experiência de

pensamento é atribuída a David Chalmers (1996). Com a formulação deste cenário,

Chalmers pretende nos mostrar que uma certa posição metafísica na filosofia da mente, o

funcionalismo, não consegue capturar todos os aspectos de nossa vida mental. Embora

não estejamos preocupados aqui com qual posição metafísica acerca da natureza da mente

esteja correta, podemos considerar que a experiência de pensamento de Chalmers se

aplica, de um modo mais amplo, a todas as concepções naturalistas acerca da mente2.

A experiência de pensamento de Chalmers se desenvolve da seguinte maneira:

imagine um mundo, talvez bem distante do nosso, que seja uma cópia física idêntica do

nosso mundo atual. Neste mundo, a cópia física de Barack Obama seria o presidente dos

1 Gostaria de enfatizar que não pretendo, de nenhum modo, apresentar estas experiências de um modo exaustivo. O meu objetivo é simplesmente apresentar uma versão simplificada destas experiências de

pensamento que possa, no entanto, capturar os conflitos entre nossas intuições acerca da mente e dos qualia

com uma visão naturalista do mundo. 2 Esta afirmação, com toda a certeza, poderia ser disputada. O próprio Chalmers (1996), após negar a

possibilidade de uma abordagem em termos puramente físicos da mente, elabora sua proposta acerca da

natureza do mental, proposta a qual ele denomina de dualismo naturalista. A proposta de Chalmers não se

enquadra, em um primeiro momento, na definição de naturalismo que demos neste artigo. Poderíamos,

entretanto, revisar alguns de nossos comprometimentos de tal modo que a proposta de Chalmers pudesse

ser chamada, em um sentido estrito, de naturalista. Isso, no entanto, extrapolaria os propósitos deste artigo.

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Estados Unidos e a cópia física de Lionel Messi seria o melhor jogador de futebol do

mundo, de tal modo que eles se comportem da mesma maneira como se comportam os

indivíduos dos quais são cópias no mundo atual. Embora fisicamente e

comportamentalmente indistinguíveis do Barack Obama e do Lionel Messi de nosso

mundo, as cópias físicas (doppelgängers) não teriam uma vida mental: a vida interior

destes doppelgängers seria, ao contrário dos indivíduos de nosso mundo, uma completa

escuridão!

Aqui nós podemos nos perguntar: e o que isso quer dizer? Para Chalmers, isso nos

permite perceber que existe pelo menos um cenário logicamente possível no qual seres

inteligentes (como os doppelgängers de Obama e Messi) ajam exatamente como os

indivíduos do qual são cópia no mundo atual, mas que não tenham nenhuma experiência

consciente. Isso nos levaria a considerar a hipótese segundo a qual é preciso que haja algo

a mais do que meras condições físicas para que exista mente ou consciência, visto que é

possível concebermos um mundo que seja uma cópia física idêntica do mundo atual, mas

no qual não exista nenhuma mente.

Note que aqui há um conflito entre as nossas intuições e o modo em que uma

postura naturalista conceberia a natureza da mente. O fato de poder haver um mundo

físico idêntico ao nosso no qual não existam mentes viola (i) e (ii), visto que estas mentes

estariam fora do universo causal da física (violando (i)), o que é uma tese que afronta

diretamente outras teorias mais bem estabelecidas da ciência (o que implica a violação de

(ii)). Neste sentido, teríamos que assumir que mentes são algo mais do que meramente

um composto de entidades materiais, uma postura que não é compatível com a versão do

naturalismo que descrevemos aqui.

Tendo visto as dificuldades associadas com a experiência de pensamento

formulada por Chalmers (1996), consideremos agora o caso famoso do espectro invertido.

Embora Locke já tenha discutido variações deste cenário em seus escritos, vamos nos

restringir aqui às versões mais contemporâneas desta experiência de pensamento3.

O cenário do espectro invertido é caracterizado da seguinte maneira: imagine que

metade da população do nosso mundo atual tenha nascido com o seu espectro de cores

invertido. Assim, quando Pedro olha para uma rosa vermelha, ele tem uma experiência

da qual o quale vermelho faz parte. Se perguntado sobre a cor que vê quando olha para a

3 Para uma discussão relacionada, ver Shoemaker (1982).

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rosa, Pedro responderia algo semelhante a: “Eu vejo uma rosa que é vermelha”. Agora

imagine o caso de Marcos, que, ao olhar para uma rosa vermelha, tem uma experiência

da qual o quale da cor verde é constituinte. Se perguntássemos a Marcos qual a cor que

ele vê ao olhar para a rosa, ele diria algo do tipo: “Eu vejo uma rosa que é vermelha”.

Essa história pode parecer uma ficção exagerada, mas, ao contrário do caso dos

zumbis, parece ser possível pensarmos que tal seja o caso no nosso mundo. Para entender

isso, considere o fato de que ensinamos as noções de cores às crianças por ostensão, isto

é, apontando para um objeto no mundo e dizendo “Aquilo é vermelho!”. O que não

sabemos, entretanto, é se a criança tem de fato a mesma experiência que nós temos ao

olhar para aquele objeto. E, pelo menos ao que indica nossas intuições acerca do assunto,

não parece ser possível, em princípio, descobrirmos qual o quale associado à experiência

da criança. É justamente este o ponto do argumento do espectro invertido: parece não

haver nenhum modo de sabermos, a partir de considerações físicas, se a experiência de

um outro indivíduo é a mesma que temos quando olhamos para um objeto vermelho. É

perfeitamente possível que estas experiências sejam distintas, mas que ainda assim nos

referimos a elas pelo mesmo termo (por exemplo, pelo termo “vermelho”).

Temos aqui um problema ontológico em relação à natureza da mente: se a mente

possui propriedades que não podem ser explicadas exaustivamente por termos físicos,

como parece ser o caso dos qualia, então daí se seguiria que há algo de não-físico com os

nossos estados mentais. Isso é evidente, por exemplo, no caso das neurociências: um

naturalista que assume ser a mente igual ao cérebro teria que nos explicar como é possível

distinguir os qualia de Pedro de Marcos a partir da análise de suas atividades cerebrais.

Tal explicação, no entanto, parece ser bem improvável, ou, pelo menos, parece estar

muito longe de nossa perspectiva teórica atual. Novamente, temos aqui um caso no qual

(i) e (ii) são violados: ao assumirmos que a mente possui um componente não-material,

estamos indo contra as assunções mais básicas da ciência em relação àquilo que existe,

assim como colocando em risco qualquer poder causal que queiramos atribuir aos estados

mentais.

Essa exposição nos permite ter uma perspectiva do que seria o problema

ontológico dos qualia. Antes de analisarmos o problema epistemológico no próximo

tópico, um esclarecimento precisa ser feito. Este esclarecimento está relacionado à

divisão que faço entre problemas ontológicos e problemas epistemológicos. Certamente

esta divisão não é tão clara como alguns poderiam desejar. Um olhar mais atento aos

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casos dos zumbis e do espectro invertido nos mostra que também podemos extrair destes

cenários problemas epistemológicos, como é o caso, por exemplo, do problema acerca da

justificação da nossa crença segundo a qual outros seres humanos possuem mente. Em

outros termos, se não podemos saber se o quale de Marcos é o mesmo do que o de Pedro,

como sabemos que Marcos ao menos tem um quale? Mais radicalmente, como sabemos

que Marcos tem uma mente? Não poderia ser ele um zumbi?

Claramente, estas são questões que nos remeteriam a discussões epistemológicas

mais profundas. O ponto da distinção que proponho, no entanto, é diferenciar os

argumentos deste tópico com os argumentos do tópico relativo aos problemas

epistemológicos. No caso deste último, veremos que os argumentos ali apresentados tem

uma preocupação epistemológica muito mais explícita. Em outras palavras, as

experiências de pensamento que serão apresentadas a seguir não se comprometem

necessariamente com uma conclusão relativa à ontologia dos qualia. Para que tal

conclusão seja possível, é preciso um passo argumentativo extra. Esse ponto deve ficar

mais claro no próximo tópico de nossa discussão.

3.3- Mary e o morcego: problemas epistemológicos

Como no caso dos problemas ontológicos, aqui também me restringirei a duas

experiências de pensamento que acredito apontarem para problemáticas epistemológicas

que um naturalista deve resolver. Estas duas experiência de pensamento são: o caso de

Mary, a supercientista, (Jackson, 1982 e 1986) e o caso de como é ser um morcego

(Nagel, 1974).

Iniciemos com o caso de Mary, a supercientista. Este argumento foi desenvolvido

inicialmente por Frank Jackson em 1982 e posteriormente discutido em um texto de 1986,

sendo formulado da seguinte maneira: imagine o caso de Mary, uma cientista que sabe

todos os fatos físicos sobre a experiência que uma pessoa tem ao olhar para um objeto

vermelho. Ela sabe, por exemplo, todos os detalhes relativos ao estímulo dos cones e dos

bastonetes na retina até o processamento das informações geradas por estes estímulos no

córtex visual. Mary, no entanto, encontra-se em uma situação muito singular: ela nasceu

e vive desde então em um quarto no qual os objetos estão organizados de tal maneira que

ela só conhece as cores preto e branco. Colocados frente a esse caso imaginário, a

pergunta que Jackson nos faz é a seguinte: se deixássemos Mary sair de seu quarto

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especial e apresentássemos a ela um objeto vermelho, teria Mary uma nova experiência

ou ela já saberia como é ter uma experiência de vermelho, já que ela é uma expert na

ciência das cores?

A intuição comum que temos neste caso é que Mary adquiriu, de alguma forma,

um novo conhecimento, isto é, o conhecimento de como é ver a cor vermelha. O problema

que um naturalista teria neste ponto é o seguinte: se Mary conhecia todos os fatos físicos

sobre a experiência de uma cor vermelha, e se a mente pode ser explicada pela física,

como é possível que Mary tenha adquirido um novo conhecimento? Se concedermos à

nossa intuição inicial, parece haver aqui um problema em relação ao modo em que

conhecemos o mundo físico e o modo em que conhecemos nossas mentes.

Note que poderíamos avançar um pouco mais e dizer que o que explica o fato de

Mary não saber como é ter a experiência da cor vermelha é o fato de que o quale do

vermelho não é uma propriedade física. Esta é, de fato, a conclusão de Jackson (1982).

Esta conclusão, no entanto, não se segue necessariamente do cenário que desenhamos. O

mero fato de não podermos saber como é ter a experiência do vermelho apenas pelo

estudo dos fatos físicos relativos à experiência não significa que esta experiência seja não-

física. Pode ser que, por exemplo, exista uma discrepância entre o modo em que

conhecemos os fatos físicos e nossas experiências conscientes4. Em outras palavras, tudo

o que o argumento parece indicar é que há um problema epistemológico a ser resolvido.

O argumento de Jackson encontra um forte aliado na experiência de pensamento

proposta por Thomas Nagel (1974), o que nos remete ao segundo caso que trataremos

aqui. Em seu aclamado artigo intitulado What is it like to be a bat?, de 1974, Nagel propõe

que pensemos na seguinte situação: imagine, novamente, um cenário no qual estejamos

em um estágio desenvolvido da ciência. Neste caso, entretanto, temos um conhecimento

aprofundado da neurofisiologia dos morcegos. Tendo em vista este cenário, Nagel nos

faz o seguinte questionamento: poderíamos saber como é ser um morcego (what it is like

to be a bat)? Em outros termos, seria o conhecimento da neurofisiologia dos morcegos

suficiente para nos dar o conhecimento das experiências dos morcegos a partir do ponto

de vista (point of view) dos morcegos?

É importante observarmos que o exemplo do morcego escolhido por Nagel não é

um mero acaso. Morcegos são conhecidos por sua capacidade de se localizar

4 Este é o caminho segui por teóricos como P. M. Churchland (1989), Lewis (1988) e Nemirow (1988).

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espacialmente através do som que eles próprios emitem. Dado que esta é uma experiência

totalmente alheia ao homem, uma vez que este se localiza espacialmente pela visão, o

exemplo de Nagel nos coloca frente a uma importante questão: seria possível reproduzir

ou conhecer fenômenos subjetivos a partir de uma perspectiva objetiva? Se as nossas

intuições acerca da experiência de pensamento de Nagel estiverem corretas, então parece

que uma resposta negativa seja a mais provável.

Aqui também temos um caso em que um teórico dualista poderia reforçar seus

argumentos apelando para esta experiência de pensamento. A grande dificuldade, no

entanto, parece estar associada à ligação entre fenômenos subjetivos e fenômenos não-

físicos. É possível concebermos, pelo menos em princípio, fenômenos que possam ser

subjetivos sem ser, necessariamente, não-físicos. Autores como John Searle (1992), por

exemplo, acreditam que uma explicação da mente pode ser dada em termos puramente

biológicos, sem, no entanto, abrirmos mão da associação entre mente e subjetividade.

Michael Tye (1995) também parece sustentar que a existência do fenômenos subjetivos

não implica necessariamente em um problema ontológico para o que ele chama de

fisicalismo5. Para ele, no entanto, um fisicalista deve de fato explicar como tal coisa como

estados mentais subjetivos são possíveis, problema que o próprio Tye denominará de

problema da propriedade (problem of ownership).

Terei algo mais a dizer sobre o problema epistemológico na próxima seção, mas,

para o presente momento, basta entendermos que estes problemas, apesar de poderem

sustentar conclusões ontológicas acerca da natureza dos qualia, não situam uma

problemática ontológica de modo independente. Tendo isso em mente, podemos passar

agora às considerações relativas à noção de qualia da primeira seção e às experiências de

pensamento aqui apresentadas. Esta é a discussão que terá lugar na próxima seção.

4- Disjuntivismo e o problema dos qualia

Nas duas últimas seções, estivemos envolvidos em uma discussão de caráter mais

expositivo. Nesta seção, pretendo estabelecer uma relação entre as duas seções

apresentadas até aqui. Em outras palavras, tentarei demonstrar por que aquela definição

5 Podemos entender fisicalismo aqui como a concepção de mundo segundo a qual os entes físicos são os

entes mais básicos da nossa ontologia. Em um cenário ideal, poderíamos explicar todos os fenômenos da

natureza baseando-nos nesses entes.

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é problemática no contexto destas experiências de pensamento. Por fim, discuto, já

concluindo o texto, um desenvolvimento recente nas teorias filosóficas da percepção que

pode lançar alguma luz sobre o problema dos qualia.

4.1- Uma revisão no conceito de qualia?

Na primeira seção, vimos que uma definição filosófica dos qualia pode ser

caracterizada a partir de três noções principais: a noção de qualia enquanto aspectos

subjetivos de nossos estados mentais, a noção de qualia enquanto aspectos intrínsecos

destes estados mentais e a noção de qualia enquanto aspectos mais básicos ou monádicos

dos estados mentais. Uma questão que ainda está em aberto é a seguinte: como esta

definição se relaciona com os argumentos discutidos na segunda seção? Esta será a nossa

discussão neste tópico.

Comecemos pelo problema ontológico. No caso do argumento do zumbi

filosófico, a conceptibilidade da existência de zumbis filosóficos está associada

diretamente à noção de qualia enquanto aspectos mais básicos ou monádicos de nossos

estados mentais. Isso fica evidente na medida em que assumimos que é possível ou

concebível pensar em um mundo que seja uma cópia idêntica ao nosso sem que haja

mentes ou qualia. Neste caso, assumimos que os qualia são propriedades básicas que não

dependem de nenhuma outra propriedade para existirem. Em outras palavras, supondo

que houvesse um criador do mundo atual, este criador, após ter criado o mundo físico tal

como conhecemos hoje, teria que ter adicionado um elemento extra neste mundo, a saber,

os qualia.

Similarmente, quando assumimos, tanto no caso dos zumbis quanto no caso do

espectro invertido, que não é possível identificarmos uma inversão de espectro ou até

mesmo se um de nossos amigos seja um zumbi filosófico, estamos nos comprometendo

explicitamente com a concepção de qualia enquanto estados subjetivos, intrínsecos e

básicos. Eles são subjetivos porque somente o sujeito do qual estes qualia compõem a

experiência pode ter acesso a eles (daí a impossibilidade de identificarmos um zumbi ou

uma inversão de espectro). Eles são intrínsecos porque somente através da experiência

dos qualia é que podemos conhecer sua natureza (daí a impossibilidade, por exemplo, de

identificar um zumbi ou uma inversão sem termos acesso à experiência do sujeito). Por

fim, eles são básicos ou monádicos porque nenhuma análise em termos de entidades

Revista Aproximação – 2º semestre de 2013 – Nº 6

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físicas mais elementares poderá revelar a verdadeira natureza dos qualia, tal como vimos

no parágrafo acima.

Tendo relacionado a noção de qualia que aqui definimos ao problema ontológico,

resta-nos fazer o mesmo para o caso do problema epistemológico. Considere,

inicialmente, o fato de Mary não saber o que é ter a sensação do vermelho quando olha

para um objeto vermelho ainda que conheça todos os fatos físicos relativos a esta

experiência. Poderíamos explicar este fato dizendo que a sensação de vermelho é: (a)

intrínseca, já que não pode ser conhecida por algo mais básico a não ser pela própria

sensação, (b) subjetiva, já que nenhuma descrição do ponto de vista objetivo pode exaurir

a natureza do fenômeno, e (c) básica ou monádica, já que, como em (a), os qualia não

podem ser caracterizados em termos mais básicos do que eles próprios. Essa descrição

nos permite ver que a noção de qualia enquanto aspectos subjetivos, intrínsecos e básicos

reforça o argumento apresentado por Jackson (1982).

Consideremos, por fim, a experiência de pensamento de Nagel (1974). A

concepção metafísica acerca da natureza dos qualia que aqui discutimos fica evidente na

medida em que: (a) qualquer descrição objetiva do sistema nervoso em termos mais

básicos do que os qualia de um morcego não nos permite conhecer a sensação subjetiva

de como é ser um morcego, o que torna esta sensação básica ou monádica; e (b) esta

sensação só pode ser conhecida a partir de um ponto de vista, isto é, o ponto de vista do

morcego, o que torna esta sensação intrínseca à experiência dos morcegos.

Parece ser claro que se considerarmos estas objeções associadas à caracterização

metafísica de qualia que apresentei até aqui, certamente os qualia apresentariam sérios

problemas para uma abordagem naturalista da mente. Uma sugestão poderia ser, assim

como pretendem os eliminativistas6, negar a existência dos qualia. A questão que

podemos nos colocar é a seguinte: seria preciso negar a existência dos qualia para termos

uma explicação científica completa da mente? A resposta para esta pergunta ainda é

incerta, mas a sugestão que quero fazer no tópico final este artigo é a de que os

desenvolvimentos recentes em filosofia da mente e filosofia da percepção nos fornecem

subsídios para pensar novos caminhos de investigação acerca do nosso problema sem

precisarmos nos comprometer, de modo necessário, com o eliminativismo.

6 Dennett (1988 e 1991), P.M. Churchland (1985 e 1996), P.S. Churchland (1989) são os defensores mais

expressivos desta ideia.

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4.2- Um possível caminho de investigação

Nesta última parte do artigo, pretendo tratar de uma teoria que tem se

desenvolvido recentemente na filosofia da percepção. Esta é a teoria disjuntivista da

percepção. Não pretendo argumentar em favor desta teoria neste momento, mas somente

apresentar suas principais asserções e apontar para a relação entre estas asserções e o

problema dos qualia.

Para iniciarmos nossa discussão, podemos colocar a seguinte questão: o que

significa ser um disjuntivista em relação à percepção? O disjuntivismo, assim como o

termo sugere, é uma teoria baseada em uma disjunção. Esta disjunção surge na medida

em que o teórico disjuntivista procura definir a natureza das nossas percepções verídicas,

das nossas alucinações, e das nossas ilusões. Ao contrário das teorias sense-datum e dos

representacionalistas, o disjuntivista nega que percepções verídicas e percepções não-

verídicas (alucinações e ilusões) compartilhem de algum aspecto metafísico em comum7.

Ao considerar o caso de uma alucinação, como quando Macbeth pensa ver uma adaga, o

disjuntivista traz à tona uma nova maneira de descrever este fenômeno. Para o

disjuntivista, ou Macbeth realmente vê uma adaga ou Macbeth está tendo uma alucinação

de uma adaga8. O uso do conectivo “ou” indica que a primeira parte da disjunção não faz

parte da segunda parte, e o mesmo se aplica na situação inversa. É neste contexto,

portanto, que o disjuntivista nega haver qualquer semelhança metafísica entre percepções

verídicas e percepções não-verídicas. Para o disjuntivista, a única semelhança entre uma

percepção verídica e uma percepção não-verídica é que ambas podem ser indistinguíveis

do ponto de vista do sujeito. Isso significa que o máximo que podemos dizer nestes casos

é que há uma semelhança epistemológica (e não ontológica).

É importante ressaltar que esta é uma caracterização muito geral do disjuntivismo.

Cada um dos teóricos disjuntivistas assume diferentes níveis de comprometimento com

esta tese (tese que eles chamam de “tese do fator comum” entre percepções verídicas e

percepções não-verídicas), variando de acordo com suas preocupações filosóficas9. Um

7 Ver Fish (2010 e online) para uma discussão introdutória acerca destas teorias. 8 Ver Hinton (1967a e 1967b) para as discussões iniciais sobre o disjuntivismo e Snowdon (2008) para uma

análise mais detalhada do assunto. 9 Byrne e Logue (2008) exploram alguns dos diferentes comprometimentos das variadas teorias

disjuntivistas. Ver também Haddock e Macpherson (2008), volume no qual se insere o artigo de Byrne e

Logue, para textos que exploram as teorias disjuntivistas em diferentes contextos filosóficos, como é o caso

Revista Aproximação – 2º semestre de 2013 – Nº 6

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recente desenvolvimento do disjuntivismo está associado a autores como Michael Martin

e William Fish10. Estes autores, embora difiram em seus comprometimentos metafísicos,

assumem o disjuntivismo como caminho para adotarmos uma concepção realista ingênua

das percepções verídicas. De acordo com estes autores, o caráter fenomenal de nossas

experiências conscientes dependeria intimamente da presença de objetos do mundo

exterior. Em outras palavras, para que possamos ter uma experiência visual com um

determinado quale, é preciso que haja um objeto que instancie este quale. A propriedade

de ser vermelho não seria, neste caso, uma propriedade de nossas experiências

conscientes, mas sim dos objetos do mundo exterior.

Note que o disjuntivismo se torna essencial para a tese do realismo ingênuo

justamente na medida em que consideramos a objeção mais intuitiva que poderíamos

fazer a esta proposta, isto é, poderíamos dizer que é possível termos experiências

conscientes com qualia sem que haja um objeto que instancie estes qualia no mundo11.

Este seria o caso, por exemplo, de uma alucinação. Aqui, no entanto, o realista ingênuo

pode assumir o disjuntivismo e argumentar que a única coisa que percepções verídicas e

alucinações compartilham é o fato de serem indistinguíveis. Essa semelhança

epistemológica, no entanto, não implica uma semelhança ontológica. Na tentativa de

fornecer uma definição positiva das percepções não-verídicas, Fish (2008 e 2009) vai

mais além e argumenta que percepções não-verídicas não possuem nenhum tipo de

aspecto fenomenal. Neste caso, somente percepções verídicas teriam qualia.

O disjuntivismo é uma teoria recente em relação à percepção humana, embora

esteja vinculada aos trabalhos de Michael Hinton na década de 60. Há, de fato, muito

trabalho a ser feito, principalmente no que diz respeito às outras modalidades da

percepção humana. Seria possível, por exemplo, assumir uma teoria disjuntivista no caso

daqueles relativos à percepção (seção I), aqueles relativos às teorias da ação (seção II) e aqueles relativos

ao conhecimento perceptual (seção III). 10 Ver Fish (2008 e 2009) e Martin (2000, 2002a, 2002b, 2004 e 2006) 11 Isso fica explícito, por exemplo, na crítica que Revonsuo (2010) faz às teorias externalistas dos qualia

(teorias nas quais o realismo ingênuo se enquadra): “Durante o sonho, experienciamos sensações e objetos de percepção (percepts) que podem ser radicalmente distintos daqueles que experienciamos em nosso

estado de vigília. E ainda que eles fossem similares às nossas experiências em vigília, onde é que estão os

conteúdos desta experiência?” (REVONSUO, 2010, p. 191). Note que a preocupação aqui é com estados

mentais que aparentemente possuem qualia, mas que não estão em nenhuma relação direta com objetos

externos, como é o caso dos sonhos. Sytsma (2010), ao contrário de grande parte dos disjuntivistas, oferece-

nos motivos baseados em considerações empíricas para questionar a afirmação de Revonsuo segundo a qual

experiências como sonhos possuem qualia. Para Sytsma, o problema dos qualia ou o problema difícil da

consciência não é um problema genuíno da ciência, visto que ele está fundamentado não em assunções

científicas bem fundamentadas, mas sim em pressuposições filosóficas controversas.

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das dores? Ou, ainda, como seria uma explicação realista ingênua da dor? Estas são

questões em aberto. Outro ponto importante da discussão acerca do disjuntivismo seria a

de explicar por que o cérebro parece ser tão importante para o estudo da mente. Em outras

palavras, como conceber os estudos empíricos acerca da percepção humana a partir de

uma teoria disjuntivista?

Dificuldades à parte, o grande objetivo desta breve discussão sobre o

disjuntivismo foi apenas o de apresentar um desenvolvimento recente na filosofia da

percepção que pode servir de caminho de investigação acerca do problema dos qualia.

Note que, caso assumamos uma teoria realista ingênua (mais o disjuntivismo) sobre a

percepção, novos horizontes se abrem para pensarmos o problema dos qualia. No caso

do problema ontológico, os qualia não seriam mais propriedades do cérebro12, mas sim

dos objetos externos13. Já no caso do problema epistemológico, se assumirmos que os

qualia são propriedades externas, então as dificuldades associadas às noções de

subjetividade e intrinsecidade poderiam ser vistas a partir de outra perspectiva. É claro

que aqui estaríamos sob o risco de termos que revisar a noção de qualia que apresentamos

aqui, mas tal revisão seria menos radical do que aquela prevista pelos eliminativistas que

negam a existência de aspectos fenomenais. Poderíamos, como o próprio Paul

Churchland (1984) admite, ser materialistas revisionários14.

Tais considerações são apenas especulações que merecem um trabalho mais

cuidadoso para sabermos se de fato podemos prosseguir nesta linha de investigação para

responder ao problema dos qualia. Independentemente de assumirmos o disjuntivismo e

o realismo ingênuo ou não, a excessiva atenção dada aos problemas aqui apresentados

nos apresentam indícios de que uma teoria da mente naturalista tem que lidar com elas de

modo sério. O aparente esgotamento das propostas eliminativistas e materialistas nas

últimas décadas na filosofia da mente parece abrir espaço para novas perspectivas de

estudo acerca do problema dos qualia, o que pode nos dar, senão uma solução, pelo menos

novos questionamentos acerca do estudo da mente.

12 Esta postura vem sendo defendida há alguns anos por teóricos externalistas, como é o caso de Dretske

(1995) e Tye (1995, 2000). 13 Isso, é claro, não resolveria o problema acerca da relação entre propriedades físicas e aspectos qualitativos

ou fenomenais. Byrne (2006) argumenta, por exemplo, que não existe o problema difícil da consciência

(Chalmers, 1996), mas sim um problema difícil da cor. Para ele, o difícil seria explicar não como a mente

ou a consciência surgem da matéria, mas sim como as cores podem ser propriedades de objetos compostos

pelas partículas elementares da física. Este é um problema que deve ser resolvido por um realista ingênuo

caso este deseje sustentar uma concepção naturalista do mundo. 14 Em oposição a materialistas eliminativistas.

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Recebido: 08/2013

Aprovado: 10/2013

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INDISCERNIBILIDADE QUÂNTICA - UM PROBLEMA PARA O

NOMINALISMO

Pedro Vasconcelos Junqueira Gomlevsky

Graduando em Filosofia da UFRJ

[email protected]

Resumo: O presente trabalho tem por objetivo a defesa de uma tese condicional. Se

aceitarmos um realismo com relação à mecânica quântica não-relativista, então o

nominalismo é falso. Dessa forma, caracterizamos o nominalismo, defendemos um

determinado tipo de realismo e explicitamos uma incompatibilidade entre a mecânica

quântica não-relativista e o nominalismo.

Palavras chave: Nominalismo, Mecânica Quântica, Indiscernibilidade

Abstract: The goal of this work is to defend the following conditional thesis: that if we

accept a realism towards non-relativistic quantum mechanics, then nominalism is false.

Thereby, we shall describe what it is nominalism, defend a certain kind of realism, and

expose the incompatibility between non-relativistic mechanics and nominalism.

Keywords: Nominalism, Quantum Mechanics, Indiscernibility

1- Introdução

O objetivo de nosso trabalho, como o próprio título diz, será levantar um problema

para o nominalismo. Este problema tem origem em um campo curioso, descoberto

recentemente, se levarmos em conta a história humana ou mesmo a história da filosofia.

Faço referência aqui ao mundo quântico. Esse tópico, estudado pela física, busca

compreender os componentes dos átomos e tem trazido à luz muitos fenômenos que, para

dizer o mínimo, contradizem nossas intuições habituais sobre como o mundo é. Dessa

forma, tomaremos um destes fenômenos e mostraremos como ele é incompatível com o

nominalismo. Assim, nosso argumento assumirá uma forma condicional. Se aceitarmos

as teorias da mecânica quântica não-relativista15, então o nominalismo é falso.

Na filosofia brasileira, o principal pesquisador a respeito das implicações

metafísicas da física quântica é Krause. Observando seus trabalhos, somos capazes de

encontrar a busca por um novo formalismo que seja adequado à física quântica, além de

15 Referimos-nos a mecânica quântica não relativista ou ortodoxa seguindo as argumentações em Krause,

2008.

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uma busca por compreender o aspecto peculiar que o problema da individuação produz

nesse campo. Entretanto, até o presente momento, não encontramos nenhum trabalho que

explore a relação do mundo quântico com o problema dos universais. Dessa forma,

propomos este trabalho como uma forma de iniciar esta discussão, apontando que a bem

da física quântica, o nominalismo parece sair perdendo.

A partir de nossa tese condicional, já é possível estabelecer quais questões

deveremos abordar aqui. Primeiramente, precisamos compreender melhor o que é

nominalismo. Além disso, devemos mostrar em que ponto a mecânica quântica não-

relativista o invalidaria. Entretanto, quando fazemos filosofia, não estamos fazendo

ciência e não é de imediato que devemos concordar com o que dizem as teorias científicas.

Assim, também nos dedicaremos a mostrar que compromisso assumiremos com esta

ciência e argumentaremos a favor dele. Partamos então à definição de Nominalismo.

2- Nominalismo

O Nominalismo é comumente caracterizado de forma negativa16. Dessa forma, se

diz de uma teoria que ela é nominalista se ela rejeita e existência de universais ou de

entidades abstratas. Entretanto, essa descrição meramente negativa é insuficiente. Afinal,

se não fosse, poderíamos considerar que um niilista absoluto, ou seja, aquele que rejeita

a existência de todo e qualquer ente, seria um defensor do nominalismo. Não é o caso.

Assim, busquemos a contraparte positiva da posição nominalista. Por oposição a

universais temos particulares e por oposição a entidades abstratas temos entes concretos.

Nesse sentido, a posição do nominalista é considerar que existem apenas indivíduos

particulares ou apenas entes concretos. Vale ressaltar que essas duas vertentes de

nominalismo não significam o mesmo e há na história da filosofia quem defenda a

segunda, mas não a primeira, como David Armstrong17, por exemplo. De fato, este

pensador admite a existência de universais, entretanto, nega a existência de entidades

abstratas. De todo modo, para que possamos nos ater à nossa questão, convém explorar

qual das duas vertentes de nominalismo merecem nossa atenção aqui. Digo que nossa

questão se refere ao nominalismo com relação aos universais e particulares, e não à outra

visão. A escolha desse ponto ficará clara com o decorrer do texto.

16 Nossa exposição do nominalismo segue o verbete “Nominalism” da Stanford Encyclopedia of

Philosophy. 17 David Armstrong (1978; 1997)

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Nesse sentido, entenderemos o Nominalismo como uma das respostas possíveis,

ou melhor, família de respostas, à famosa questão dos universais. Tal questão parece

remontar pelo menos até Platão. Nosso interesse, porém, não é histórico. Para que

possamos nos inserir no debate contemporâneo, precisamos compreender o que é ser um

universal, bem como o que é ser um particular. Normalmente se diz que algo é um

universal se é capaz de ser exemplificado em mais de uma entidade. Já um particular é

algo que não pode ser exemplificado em mais de uma entidade. Por exemplo, enquanto a

propriedade de ser humano pode ser exemplificada tanto em Platão quanto Aristóteles,

ser o particular Aristóteles não pode ocorrer a mais de uma entidade. A partir dessa

caracterização, fica mais clara a posição dos nominalistas. Segundo estes tudo o que existe

são particulares, portanto, cada entidade é singular e não pode “ocorrer” a mais nenhuma

outra que seja esta, sendo cada uma individual e assim distinta das demais. O que garante

que não haverá múltiplas exemplificações de particulares é o fato de que eles são distintos

uns dos outros, tendo apenas ocorrências singulares, como Aristóteles e Platão. Já aos

universais ocorre o contrário, pois em uma tese realista quanto aos universais, se supõe

que a humanidade que há em Platão seja idêntica àquela que há em Aristóteles, permitindo

assim a exemplificação. Assim parece que para objetarmos o nominalismo devemos ser

capazes de encontrar ao menos uma entidade que seja identicamente exemplificada, ou

seja, um universal.

3- Realismo Científico

Segundo aponta nossa introdução, o lugar no qual devemos procurar tal entidade

é a mecânica quântica não-relativista. Dessa forma, antes de encontrarmos o que nos

interessa nessa teoria, convém que argumentemos em favor de aceitá-la como uma fonte

fiável para o pensamento metafísico. Nesse sentido, buscaremos defender aqui certo tipo

de realismo científico. Mas o que é realismo científico? É o que veremos a seguir18.

Há alguns tipos diferentes de realismo científico. Sendo assim, definiremos aqui

apenas aqueles que corroboram com nossos interesses e permitem nossa argumentação.

De modo mais geral, se pode dizer que o realismo científico pretende defender que termos

teóricos das ciências se referem a objetos no mundo. Como trataremos aqui apenas de

realismo científico, por uma questão de simplificação usaremos apenas o termo

18 Seguimos aqui as distinções do verbete “Scientific Realism” da supracitada enciclopédia virtual.

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“realismo”. De acordo com o tipo de objetos ou referência que julgamos que eles tenham

no mundo encontraremos tipos diferentes de realismo. Nosso interesse aqui é defender

um realismo metafísico. Neste caso, queremos dizer que os objetos teóricos designados

pelas ciências se referem a objetos existentes no mundo independentemente das mentes

humanas. De outra forma, podemos dizer que o realismo metafísico sustenta que os

objetos que conhecemos por meio da ciência são descobertos pelos homens e já estavam

presentes na natureza. Isso pode ser pensado por oposição a um antirrealismo que poderia

supor que os objetos estudados pela ciência não passam de construtos teóricos, criados

pela própria ciência. Entretanto, um realista não precisa aceitar indiscriminadamente

quaisquer termos teóricos como objetos existentes. A atitude realista que nos interessará

aqui é aquela que se direciona as entidades postuladas pela mecânica quântica não-

relativista. Defenderemos assim um realismo metafísico de entidades. Podemos

compreender essa posição a partir de exemplos. Pretendemos aqui que as partículas

elementares descritas pela mecânica quântica como elétrons, fótons e quarks de fato

existam. Entretanto, isso não quer dizer que supomos que as leis físicas que governariam

seus comportamentos também existam. É possível pensar as leis como aparatos teóricos

que descrevem o comportamento de entidades realmente existentes. O compromisso com

um realismo de entidades não implica um compromisso com um realismo com relação às

explicações científicas. Agora que fomos capazes de tornar clara nossa posição, cabe a

nós fornecer argumentos robustos capazes de fortalecê-la e torná-la aceita.

4- Em defesa do realismo metafísico com relação às partículas elementares19

Existem dois tipos de argumentos que são mais utilizados na defesa do realismo.

Entretanto, para que sejam utilizados especificamente com as entidades que nos

interessam, devemos preenchê-los com os dados empíricos correspondentes. Antes de nos

atermos ao que diz respeito especificamente a essas questões empíricas, exporemos a

estrutura básica dos dois argumentos.

O primeiro argumento chama-se Argumento do Milagre. Peço aos leitores que não

se preocupem, já que não há querelas teológicas envolvidas. Este argumento nos diz

apenas que seria milagroso que uma determinada teoria não fosse capaz de se referir a

objetos existentes no mundo e ainda assim fosse capaz de funcionar perfeitamente. Tal

19 Nossa fonte para tais informações é o Wikipedia, cada artigo utilizado poderá ser conferido nas

referências bibliográficas ao fim do texto.

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funcionamento a que nos referimos diz respeito à confirmação de predições com base na

teoria, construção de aparatos tecnológicos que pressupõe suas entidades, em suma,

qualquer evento prático observável que diga respeito ao conhecimento ou manipulação

das entidades supostas pela teoria e que tenha sucesso.

O segundo chama-se Argumento da Corroboração. Este diz respeito à capacidade

da detecção de entidades a partir de meios diversos e independentes. Ou seja, se somos

capazes de perceber a existência de tais entidades por algum experimento, ou, mais que

isso, por experimentos que não supõe uns aos outros, então tais entidades devem de fato

estar no mundo, o que explicaria como diferentes instrumentos podem detectá-las de

diferentes formas. Afinal, elas estavam lá mesmo, o que permitiu a detecção.

Assim, convém, com relação ao primeiro argumento, que apresentemos exemplos

de máquinas que só puderam ser construídas graças ao desenvolvimento teórico da

mecânica quântica não-relativista. Entre essas, citarei dois exemplos. Os aparelhos de

ressonância magnética, tão utilizados em diagnósticos médicos atualmente, foram

desenvolvidos a partir de estudos em mecânica quântica. O mesmo ocorre aos

microscópios eletrônicos, que tem na base de seu projeto o conhecimento acerca dos

elétrons e suas propriedades. Há diversos tipos de microscópio eletrônico, sendo o de

tunelamento responsável pela observação de átomos. Ainda é possível citar os materiais

semicondutores. Embora não sejam máquinas criadas pelo homem, os semicondutores

contribuem para nossa argumentação. Tais materiais foram descobertos antes do

conhecimento do campo quântico. Entretanto, só puderam ser mais bem compreendidos

após a aquisição desse conhecimento.

Com respeito à corroboração, somos capazes de relatar diversas maneiras

diferentes de detectar partículas elementares. Entretanto, selecionamos três exemplos que

já são eloquentes o suficiente para demonstrar que de fato somos capazes de detectar tais

partículas. Entre eles podemos citar os colisores de partículas, dentre os quais o LHC20.

Este se tornou famoso ultimamente devido à busca pelo Bóson de Higgs. Também há

uma técnica de detecção chamada câmara de bolhas, que procede detectando partículas

se movendo no interior de uma câmara que contém algum líquido transparente

superaquecido, mais comumente hidrogênio líquido. Assim funcionando de modo diverso

do sistema anterior prescindindo da colisão de partículas. Além desses, e também distinto

20 Sigla em inglês para grande colisor de hádrons (large hadron collider).

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de ambos, há as câmaras de ionização que utilizam ainda um terceiro método para detectar

partículas.

5- Indistinguibilidade, um estranhamento quântico

Após todas essas seções, já temos conhecimento do que seja o nominalismo, em

que consiste o realismo e por que devemos concedê-lo às partículas elementares. Resta

agora saber qual propriedade estas tem de tão interessante que pode objetar o

nominalismo. As partículas elementares são aquelas que, segundo o modelo padrão atual,

não podem mais ser divididas em partículas menores. Entretanto, o que de fato nos

interessa é uma propriedade que desafia nosso senso comum, a indiscernibilidade. Mas o

que esta propriedade significa? De forma sucinta, queremos dizer que as partículas

elementares violam o princípio de identidade dos indiscerníveis proposto por Leibniz21.

Para que fique claro o que ocorre, devemos inicialmente compreender em que

consiste tal princípio. O princípio como formulado por Leibniz não aparece de modo tão

rigoroso, sendo assim, daremos uma definição mais minuciosa22. Ele pode ser formulado

da seguinte forma: para todo x e para todo y, se x tem todas as propriedades em comum

com y, então x e y são o mesmo indivíduo e assim reciprocamente. Analisando esta

formulação, podemos ver que o que é assumido no princípio é um colapso extensional

entre dois conceitos de identidade. São assimilados aí os conceitos que quero chamar de

identidade qualitativa e identidade numérica. Para o nosso fim, podemos definir

identidade qualitativa como se referindo às propriedades de um objeto. Nesse sentido,

dois objetos (ou mais) seriam qualitativamente idênticos na medida em que tivessem

todas as qualidades (propriedades) em comum. Já o conceito de identidade numérica é

aquele que diz respeito a uma relação que um objeto pode ter apenas consigo mesmo e

nenhum outro, ou seja, uma relação autorreferencial. Não há dois objetos que sejam

numericamente idênticos. Afinal, se houvesse seriam dois, e exatamente por isso, não

seriam apenas um objeto, deixando assim de ser numericamente idênticos.

De fato, assimilar essas duas noções de identidade realmente parece extremamente

intuitivo. Mesmo se pensarmos em duas canetas da mesma cor e da mesma marca,

supomos que devem ter alguma característica peculiar que distinga uma da outra. De fato,

21 Discourse on Metaphysics, Section 9 (Loemker 1969: 308) 22 Nossa fonte sobre a identidade dos Indiscerníveis foi o artigo sobre o tema encontrado na Stanford

Encyclopedia of Philosophy.

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esse princípio parece se aplicar muito bem a todos os objetos que experimentamos

cotidianamente por meio de nossos próprios sentidos sem a ajuda de instrumentos mais

refinados. Entretanto, não é por isso que devemos aceitá-los no mundo quântico. De

acordo com suas conclusões, podemos perceber que naquela escala há objetos que são

qualitativamente idênticos, ou seja, tem todas as propriedades em comum, embora não

sejam numericamente idênticos, ou seja, ainda são mais de um. Dois elétrons, por

exemplo, não são distinguíveis entre si, tendo todas as propriedades em comum23. O

mesmo ocorre para fótons, pósitrons ou quaisquer partículas elementares em seu tipo.

A partir dessas considerações, creio que já é possível perceber qual a objeção que

se levanta ao nominalismo. De todo modo, vamos apresentá-la com mais clareza.

6- O que as partículas elementares tem a objetar ao Nominalismo?

Convém, antes de tudo, relembrarmos de modo breve a definição que demos de

Nominalismo. É nesse ponto também que fica clara nossa opção em detrimento do

nominalismo com relação às entidades abstratas. Definimos nominalismo na seção 1

como sendo uma posição que rejeita a existência de universais, assumindo a tese positiva

de que há apenas particulares. Definimos então os universais como aquilo que pode ser

multiplamente exemplificado, enquanto os particulares são individuais e não podem ser

exemplificados. Vimos também que é necessário aos particulares que contenham ao

menos algum elemento em si que seja distinguível de todos os outros, afinal, só assim

garantiríamos que este não é exemplificado por nenhum outro indivíduo.

Tendo terminada nossa definição, percebemos que uma forma de objetar ao

nominalismo seria encontrar uma entidade que fosse idêntica à outra, portanto,

exemplificada, ou seja, um universal.

Como observamos na seção anterior a esta, não há apenas uma entidade, de fato

diversos dos mínimos constituintes da matéria são exemplificados mais de uma vez.

Dessa forma, elétrons não são particulares, mas sim universais. Poderiam objetar-nos

dizendo que elétrons são tipos naturais e não propriedades como convêm a um universal,

no corrente sentido. Mesmo concedendo a esta objeção, nosso argumento funciona. Os

elétrons tem diversas propriedades e são indistinguíveis entre si. Isto significa que se

23 Como exposto por Krause, a partir da segunda seção de seu supracitado artigo (Krause 2008).

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realizarmos uma permutação entre um número qualquer de elétrons maior que um,

obteremos sempre o mesmo resultado. Dessa forma, podemos perceber que suas

propriedades não são extremamente semelhantes como a humanidade de Platão e a

humanidade de Aristóteles, como supõe o nominalista. Nesse caso, as propriedades são

indistinguíveis, e não semelhantes. De outro modo, a permutação de elétrons apresentaria

resultados diversos, o que, de fato não ocorre. Como atestam Krause e Arenhart na

passagem a seguir:

Segundo esse postulado, grosso modo, ao permutarmos os rótulos das

partículas, não há como distinguir entre os estados iniciais, não permutados,

dos estados finais, após a permutação, através de uma observação.24

Assim, os elétrons têm propriedades indistinguíveis. Logo se há entidades

indistinguíveis, e se particulares são distinguíveis, a tese nominalista de que só há

particulares é notoriamente falsa. Assim, podemos dizer de maneira mais simples: se há

elétrons, então o nominalismo é falso. Vale ressaltar que o argumento da permutação

citado acima nos mostra que não é apenas o caso de que algumas partículas elementares

seriam indiscerníveis apenas por sua forma lógica. De fato, empiricamente, não há

diferença qualitativa entre elas.

7- Possíveis objeções

O nominalista poderia objetar-nos que nosso argumento não tem força suficiente

para considerar o nominalismo como terminantemente falso. Afinal de contas, nosso

argumento se baseia em dados científicos, o que, a considerar a história da ciência, não

são um solo estável. Tal objeção poderia então se desdobrar de duas formas.

Primeiramente, é possível alegar que os dados empíricos necessários para nossa

conclusão foram mal coletados, e que, em observações posteriores, estes deixarão de

servir a nosso propósito. Sobre isso, basta dizer que, enquanto não tivermos novos dados,

a questão nos favorece, e que se tivermos novos dados, poderíamos lançar novamente o

mesmo argumento contra os nominalistas. Não parece uma boa estratégia.

Em segundo lugar, os nominalistas poderiam argumentar que mesmo nossos

dados estando precisos e de acordo com a realidade, eles correspondem tão só à realidade

de um mundo possível. Assim, diriam eles, não fornecemos uma refutação conceitual e

24 Trecho retirado de (Krause e Arenhart, 2013).

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necessária sobre a falsidade do nominalismo. Ele seria defensável, ainda que apenas por

princípio, e, ademais, dadas as pretensões absolutas da metafísica, nosso argumento não

teria peso. Entretanto, tal objeção não traria bons resultados ao nominalista. Afinal, se

considera que nosso argumento é válido neste mundo e não em outro, acaba de se

comprometer com a tese de que, igualmente, sua posição não tem caráter de necessidade

metafísica.

Além do mais, no que tange a proposições metafísicas, todos pressupõe um caráter

absoluto. Aliás, teria sido essa a motivação inicial do nominalista em desqualificar nossa

tese, restringindo-a apenas ao mundo atual. Entretanto, se considerarmos com o

nominalista que a metafísica deve ter esse caráter absoluto, então diremos que as verdades

metafísicas no mundo atual sejam igualmente verdade em outros mundos possíveis. Ora,

se é assim, isso acaba nos dando um argumento a mais. Se as questões metafísicas têm

respostas necessárias, e se descobrimos por dados empíricos, como pretendemos aqui,

uma resposta a uma questão metafísica, mesmo que não tenhamos uma demonstração a

priori da existência de universais, podemos inferir que descobrimos algo acerca da

realidade em seu sentido mais amplo.

Dessa forma, o feitiço volta-se contra o feiticeiro. Ora, se o nominalista assume

que as verdades metafísicas são necessárias então deve conceder, que se nosso argumento

estiver correto, então o nominalismo será falso em todos os mundos possíveis. Se não

conceder isso, devemos supor que tem pretensões fracas em metafísica. Além de que, só

lhe resta nos desqualificar a partir de nossa fonte empírica. O que, como já mostramos,

não é uma boa ideia. Se para nós tal solo é movediço, para ele também é.

8- Conclusão

Retomando nosso caminho, podemos perceber que operamos com uma definição

neutra e abrangente de nominalismo. Além disso, explicamos em que consiste um

realismo metafísico de entidades, fornecendo argumentos decisivos para aceitá-lo com

relação às partículas elementares. Notamos, por fim, que, segundo a mecânica quântica

não-relativista, há entidades indistinguíveis. Mostramos, ainda, como esta realidade é

incompatível com a tese nominalista. Por fim, apresentamos possíveis objeções do

nominalista, mostrando como não lhe rendiam bons frutos. Dessa forma, se tivermos

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sucesso em demonstrar a existência das partículas elementares, então o nominalismo é

falso. Como queríamos demonstrar.

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Recebido: 02/2013

Aprovado: 05/2013