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Revista Brasileira de Direito Civil ISSN 2358-6974 VOLUME 6 OUT/DEZ 2015 Doutrina Nacional / Aline de Miranda Valverde Terra / Daniela de Carvalho Mucilo / Daniel Bucar/ Luciano L. Figueiredo/ Paula Greco Bandeira / Rafael Ferreira Bizelli Doutrina Estrangeira / Lorenzo Mezzasoma Pareceres / Gustavo Tepedino Vídeos e Áudios / Heloisa Helena Barboza

Revista Brasileira de Direito ISSN 2358-6974 - ibdcivil.org.br · Contratos existenciais: contextualização, conceito e interesses extrapatrimoniais – Rafael Ferreira Bizelli 9

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  • Revista Brasileira de Direito Civil

    ISSN 2358-6974

    VOLUME 6

    OUT/DEZ 2015

    Doutrina Nacional / Aline de Miranda Valverde Terra / Daniela de

    Carvalho Mucilo / Daniel Bucar/ Luciano L. Figueiredo/ Paula Greco

    Bandeira / Rafael Ferreira Bizelli

    Doutrina Estrangeira / Lorenzo Mezzasoma

    Pareceres / Gustavo Tepedino

    Vdeos e udios / Heloisa Helena Barboza

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    APRESENTAO

    A Revista Brasileira de Direito Civil RBDCivil tem por objetivo fomentar o

    dilogo e promover o debate, a partir de perspectiva interdisciplinar, das novidades

    doutrinarias, jurisprudenciais e legislativas no ambito do direito civil e de areas

    afins, relativamente ao ordenamento brasileiro e a experincia comparada, que

    valorize a abordagem histrica, social e cultural dos institutos jurdicos.

    A RBDCivil composta das seguintes sees:

    Editorial;

    Doutrina:

    (i) doutrina nacional;

    (ii) doutrina estrangeira;

    (iii) jurisprudncia comentada;

    (iv) pareceres;

    Atualidades;

    Vdeos e udios.

    Endereo para contato:

    Rua Primeiro de Maro, 23 10 andar

    20010-000 Rio de Janeiro, RJ, Brasil

    Tel.: (55) (21) 2505 3650

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    E-mail: [email protected]

    mailto:[email protected]

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    Diretor

    Gustavo Tepedino - Doutor em Direito Civil pela Universit degli Studi di Camerino,

    Professor Titular de Direito Civil da Universidade do Estado do Rio de Janeiro,

    Brasil

    Conselho Editorial

    Francisco Infante Ruiz - Doutor em Direito Civil e Internacional Privado pela

    Universidad de Sevilla, Professor Titular de Direito Civil (Direito Privado

    Comparado) na Universidad Pablo de Olavide (Sevilla), Espanha.

    Gustavo Tepedino - Doutor em Direito Civil pela Universit degli Studi di

    Camerino, Professor Titular de Direito Civil da Universidade do Estado do Rio de

    Janeiro, Brasil.

    Luiz Edson Fachin Doutor em Direito pela Pontifcia Universidade Catlica de So

    Paulo, Professor Titular de Direito Civil da Universidade Federal do Paran, Brasil.

    Paulo Lbo - Doutor em Direito Civil pela Universidade de So Paulo, Professor

    Titular da Universidade Federal de Pernambuco, Brasil.

    Pietro Perlingieri Professor Emrito da Universit del Sannio. Presidente da Societ

    Italiana Degli Studiosi del Diritto Civile - SISDiC. Doutor honoris causa da

    Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

    Coordenador Editorial

    Aline de Miranda Valverde Terra

    Carlos Nelson de Paula Konder

    Conselho Assessor

    Eduardo Nunes de Souza

    Fabiano Pinto de Magalhes

    Louise Vago Matieli

    Paula Greco Bandeira

    Tatiana Quintela Bastos

    EXPEDIENTE

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    Editorial

    Novas famlias entre autonomia existencial e tutela de vulnerabilidades

    Gustavo Tepedino

    6

    Doutrina nacional

    A clusula resolutiva expressa e o contrato incompleto como

    instrumentos de gesto de risco nos contratos Aline de Miranda

    Valverde Terra e Paula Greco Bandeira

    Situaes jurdicas patrimoniais: funcionalizao ou comunitarismo?

    Daniel Bucar e Daniela de Carvalho Mucilo

    Alimentos compensatrios: compensao econmica e equilbrio

    patrimonial Luciano L. Figueiredo

    Contratos existenciais: contextualizao, conceito e interesses

    extrapatrimoniais Rafael Ferreira Bizelli

    9

    26

    42

    69

    Doutrina estrangeira

    Disciplina del contratto, tutela del contraente debole e valori

    costituzionali Lorenzo Mezzasoma

    95

    Pareceres

    A cobrana de direitos autorais sobre as obras musicais e fonogramas

    transmitidos via Internet Gustavo Tepedino

    128

    SUMRIO

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    Vdeos e udios

    Dez anos do Cdigo Civil: como tratar os efeitos jurdicos da

    biotecnologia? Palestra proferida pela Professora Heloisa Helena

    Barboza

    --

    Submisso de artigos

    Saiba como fazer a submisso do seu artigo para a Revista Brasileira de

    Direito Civil RBDCivil

    151

  • Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCivil | ISSN 2358-6974 | Volume 6 Out / Dez 2015 6

    NOVAS FAMLIAS ENTRE AUTONOMIA EXISTENCIAL E TUTELA DE

    VULNERABILIDADES

    Gustavo Tepedino

    A evoluo do tratamento jurdico das famlias revela movimento pendular

    entre dois valores caros ao atual sistema jurdico. Em primeiro lugar, a necessidade de se

    assegurar a liberdade nas escolhas existenciais que, na intimidade do recesso familiar, possa

    propiciar o desenvolvimento pleno da personalidade de seus integrantes. Esse o propsito do

    art. 1.513 do Cdigo Civil: defeso a qualquer pessoa, de direito pblico ou privado,

    interferir na comunho de vida instituda pela famlia. Por outro lado, a tutela das

    vulnerabilidades e das assimetrias econmicas e informativas, para que a comunho plena

    de vida se estabelea em ambiente de igualdade de direitos e deveres (art. 1.511, Cdigo

    Civil, ex vi do art. 226, 5, C.R.), com o efetivo respeito da liberdade individual. Tendo-se

    presentes esses dois vetores, e diante das intensas modificaes ocorridas nas ltimas

    dcadas na estrutura das entidades familiares, torna-se indispensvel a reformulao dos

    critrios interpretativos, a despeito da resilincia, de alguns setores da doutrina e da

    magistratura, de admitir a incompatibilidade entre antigos dogmas de cunho religioso e

    poltico com to radicais transformaes fenomenolgica, percebida na sociedade

    ocidental, e axiolgica, promovida pela legalidade constitucional.

    A Constituio da Repblica consagrou nova tbua de valores, da qual se

    pode extrair a transformao do conceito de unidade familiar que sempre esteve na base do

    sistema. Verifica-se, do exame dos arts. 226 a 230, C.R., que o centro da tutela constitucional

    se desloca do casamento para as relaes familiares dele (mas no unicamente dele)

    decorrentes; e que a milenar proteo da famlia como instituio, unidade de produo e

    reproduo dos valores culturais, ticos, religiosos e econmicos, d lugar tutela

    essencialmente funcionalizada dignidade de seus integrantes e ao desenvolvimento da

    personalidade dos filhos. De outra forma no se consegue explicar a proteo constitucional

    s entidades familiares no fundadas no casamento (art. 226, 3) e s famlias

    monoparentais (art. 226, 4); a igualdade de direitos entre homem e mulher

    EDITORIAL

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    na sociedade conjugal (art. 226, 5); a garantia da possibilidade de dissoluo da sociedade

    conjugal independentemente de culpa (art. 226, 6); o planejamento familiar voltado para

    os princpios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsvel (art. 226, 7) e

    a previso de ostensiva interveno estatal no ncleo familiar no sentido de proteger seus

    integrantes e coibir a violncia domstica (art. 226, 8).

    A hostilidade do legislador pr-constitucional s interferncias exgenas

    na estrutura familiar e a escancarada proteo do vnculo conjugal e da coeso formal da

    famlia, ainda que em detrimento da realizao pessoal de seus integrantes

    particularmente no que se refere mulher e aos filhos, inteiramente subjugados figura do

    marido justificava-se em benefcio da paz domstica. Por maioria de razo, a proteo

    dos filhos extraconjugais nunca poderia afetar a estrutura familiar, sendo compreensvel, em

    tal perspectiva, a averso do Cdigo Civil de 1916 aos relacionamentos extraconjugais,

    simbolizados pelo estigma da concubina. O sacrifcio individual, em todas as hipteses de

    fracasso no relacionamento conjugal, era largamente compensado, na tica do sistema, pela

    preservao da clula mater da sociedade, instituio essencial ordem pblica e modelada

    sob o paradigma patriarcal.

    O constituinte de 1988, todavia, alm dos dispositivos acima enunciados,

    consagrou, no art. 1, III, entre os princpios fundamentais da Repblica, que antecedem todo

    o texto maior, a dignidade da pessoa humana, impedindo assim que se pudesse admitir a

    superposio de qualquer estrutura institucional tutela de seus integrantes, mesmo em se

    tratando de instituies com status constitucional, como o caso da empresa, da propriedade

    e da famlia. Assim sendo, a famlia deixa de ter valor intrnseco, como instituio capaz de

    merecer tutela jurdica pelo simples fato de existir, passando a ser valorada de maneira

    instrumental, tutelada na medida em que e somente na exata medida em que se

    constitua em um ncleo intermedirio de autonomia existencial e de desenvolvimento da

    personalidade dos filhos, com a promoo isonmica e democrtica da dignidade de seus

    integrantes.

    O afeto torna-se, nessa medida, elemento definidor de situaes jurdicas,

    ampliando-se a relao de filiao pela posse de estado de filho e flexibilizando-se, com

    benfazeja elasticidade, os requisitos para a constituio da famlia. O direito de famlia passa

    a atribuir particular importncia (no afetividade como declarao subjetiva ou obscura

    reserva mental de sentimentos no demonstrados, mas) percepo do sentimento do afeto

    na vida familiar e na alteridade estabelecida no seio da vida comunitria. Nessa esteira, situa-

    se a ampla admissibilidade, pela jurisprudncia atual, de entidades familiares

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    extraconjugais, incluindo-se a unio de pessoas do mesmo sexo, as famlias simultneas,

    cuja repercusso geral foi reconhecida (STF, RG no ARE 656.298/SE), alm das unies

    poliafetivas, reguladas pelo tabelionato (escritura pblica foi lavrada pelo 15 Ofcio de

    Notas/RJ para contratualizar unio entre 3 mulheres), e cuja eficcia, no mbito do direito

    de famlia, ainda objeto de controvrsia, justamente porque o conceito de famlia h de ser

    necessariamente elstico, em contnua evoluo (cfr. )

    Entretanto, h de se cuidar para que no se banalizem os sentimentos e o

    afeto, submetidos percepo valorativa de cada magistrado ou, pior, s pretenses egostas

    e patrimonialistas de protagonistas de conflitos de interesses. E o melhor antdoto para tais

    riscos mostra-se o balizamento do merecimento de tutela das relaes afetivas pelos valores

    normativos constitucionais (democracia, igualdade, solidariedade, dignidade) que permeiam

    a legislao infraconstitucional.

    No cenrio da vida como ela , o amor por vezes falta, o egosmo aflora e

    os deveres estabelecidos nas relaes afetivas devem ser integralmente preservados. A

    alteridade tem consequncias para o constituinte. como se a legalidade constitucional se

    valesse da percepo do afeto para imediatamente impregn-la e plasm-la com os valores

    constitucionais, vinculando as relaes jurdicas a deveres de solidariedade e igualdade.

    Torna-se indispensvel, portanto, uma vez introduzida a realidade da vida, do amor e do

    afeto na experincia normativa, que no se releguem as relaes de famlia pura

    espontaneidade, desprovida de valores jurdicos, deixando-se em segundo plano os deveres

    constitucionais a que corresponde o amor responsvel. Autonomia total para os arranjos

    familiares, sendo a responsabilidade pelo outro e por tudo aquilo que se cativa

    imprescindveis na legalidade constitucional.

    G.T.

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    A CLUSULA RESOLUTIVA EXPRESSA E O CONTRATO INCOMPLETO

    COMO INSTRUMENTOS DE GESTO DE RISCO NOS CONTRATOS

    The express resolutive clause and the incomplete contract as mechanisms of

    management of risks

    Aline de Miranda Valverde Terra Doutora e Mestre em Direito Civil pela Universidade do

    Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professora agregada do Departamento de Direito Civil e da ps-graduao

    lato sensu da Pontifcia Universidade Catlica do

    Rio de Janeiro (PUC-RJ). Professora do Centro de Estudos e

    Pesquisas no Ensino de Direito (CEPED/UERJ).

    Paula Greco Bandeira Doutora e Mestre em Direito Civil pela Universidade do

    Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professora do Centro de Estudos e

    Pesquisas no Ensino de Direito (CEPED/UERJ). Advogada

    Resumo: O artigo destaca a importncia do contrato como instrumento de gesto dos riscos

    negociais, precisamente os riscos econmicos supervenientes, que atingem sua execuo.

    Tal alocao de riscos permitir a atribuio de responsabilidades entre os contratantes.

    Nesta direo, as partes podero proceder gesto positiva ou negativa desses riscos. No

    mbito da gesto positiva de riscos, a clusula resolutiva expressa assume particular

    relevncia, permitindo s partes definir os eventos que, uma vez verificados, deflagraro a

    extino do contrato independentemente de recurso ao Poder Judicirio. De outra parte, a

    gesto negativa de riscos se expressa por meio do contrato incompleto, mediante o qual os

    contratantes deliberadamente deixam em branco determinados elementos que sero

    definidos em momento futuro, pela atuao de uma ou ambas as partes, de terceiro ou

    mediante fatores externos, segundo o procedimento contratualmente previsto para a

    integrao da lacuna, como forma de pleno atendimento aos interesses das partes in concreto.

    Palavras-chave: Clusula resolutiva expressa; Contrato incompleto; Gesto de riscos

    contratuais.

    Abstract: This article emphasizes the importance of the contract as a mechanism of

    allocation of risks, especially the economic risks which affect its performance. This

    SEO DE DOUTRINA: Doutrina Nacional

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    allocation of risks allows the definition of parties responsibility. In this sense, the parties

    may allocate the risks in a positive or negative manner. Within the positive allocation of risks

    the express resolutive clause may assume an important role, consenting the parties to define

    the events which, once verified, extinguish the contract independently of the judicial dispute

    resolution. On the other hand, the incomplete contract determines a negative allocation of

    risks, by which the parties deliberately left in blank some elements which will be defined in

    the future, as the execution by one or both parties, a third person or the application of external

    factors, in accordance to the contractual proceeding, in order to attend the concrete interests

    of the parties.

    Keywords: Express resolutive clauses; Incomplete contract; Allocation of contractual risks.

    Sumrio: Introduo: o contrato como mecanismo de gesto de riscos 1. Os modos de

    alocao de riscos nos contratos: gesto positiva e negativa 2. A clusula resolutiva

    expressa como instrumento de gesto positiva dos riscos 3. O contrato incompleto como

    instrumento de gesto negativa dos riscos 4. Consideraes Finais

    Introduo: o contrato como mecanismo de gesto de riscos

    Em tempo em que se assiste quilo que o Prof. Stefano Rodot denominou

    de financializao do mundo,1 com a economia desempenhando papel de protagonista do

    cenrio global, a propriedade se insere novamente no centro das preocupaes atuais, a

    demandar reviso crtica do paradigma proprietrio. Neste contexto, embora o contrato possa

    ser reduzido a mero fmulo da propriedade, descurando de outros valores fundamentais, se

    bem empregado, pode servir de instrumento legtimo para a promoo das atividades

    econmicas privadas, consagrando o valor constitucional da livre iniciativa (arts. 1, IV; 170,

    caput, C.R.).

    Nessa esteira, os contratos traduzem instrumento de gesto dos riscos

    econmicos merecedor de tutela, apto a estimular negcios que concretizem, para alm dos

    interesses dos contratantes, outros interesses extracontratuais dignos de proteo. Com vistas

    consecuo de todas as suas potencialidades funcionais, os contratos ho de ser

    compreendidos como mecanismo de gesto de riscos econmicos que atingem sua execuo.

    De fato, os negcios jurdicos levados a cabo pelos particulares tm por

    1 A expresso foi adotada em conferncia intitulada Conversas com Stefano Rodot, proferida pelo Prof.

    Stefano Rodot na Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro PUC-Rio, no dia 6 de novembro de

    2015.

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    finalidade repartir os riscos de determinada atividade econmica entre os contratantes, de

    modo a fixar as respectivas responsabilidades e, assim, efetivar os interesses das partes in

    concreto.

    Nesta direo, atribui-se ao contratante a responsabilidade pelas

    consequncias deflagradas pelo implemento de determinado fato superveniente previsvel,

    cuja ocorrncia, no momento da contratao, era incerta (rectius, risco). A verificao do

    risco repercutir, assim, na esfera jurdica dos contratantes, desencadeando as

    responsabilidades definidas no contrato, com impacto na relao contratual e na economia

    das partes. guisa de exemplo, em contrato de empreitada, pode-se atribuir ao empreiteiro

    a responsabilidade por determinados riscos geolgicos que, uma vez verificados, podero

    atrasar a concluso da obra. Neste caso, os prejuzos econmicos da decorrentes ho de ser

    suportados pelo empreiteiro, que se responsabiliza notadamente pelos danos sofridos pelo

    dono da obra. Ou, ainda, em contratos de compra e venda de energia, a comercializadora,

    que se compromete a entregar determinada quantidade de energia aos compradores,

    responde pela sua escassez, devendo comprar a energia no mercado para atender aos

    compromissos assumidos.

    A alocao dos riscos econmicos deve ser identificada no caso concreto,

    de acordo com o especfico regulamento de interesses. Deste modo, mostra-se possvel

    alargar a responsabilidade dos contratantes, imputando-lhes risco maior do que aquele

    comumente assumido em determinado tipo contratual. No mencionado exemplo do contrato

    de empreitada, as partes podem atribuir ao empreiteiro a responsabilidade pelas chuvas

    abundantes que atrasem o cronograma da obra, ainda, que, normalmente, as chuvas

    configurem fortuito ou fora maior, que afastaria a responsabilizao do contratante.

    A partir da alocao de riscos estabelecida pelas partes, define-se o

    sinalagma contratual, isto , a comutatividade ou correspectividade entre as prestaes, a

    qual revela a equao econmica desejada pelos contratantes. Tal equao traduz o equilbrio

    intrnseco do concreto negcio e, por isso mesmo, h de ser perseguida pelas partes.2

    2 A ideia de equilbrio contratual se aproxima da noo de sinalagma funcional a que a doutrina faz,

    didaticamente, referncia. Como explica Massimo Bianca a respeito do conceito de sinalagma funcional: A

    correspectividade entre as prestaes significa que a prestao de uma parte encontra remunerao na prestao

    da outra. (...) A correspectividade comporta normalmente a interdependncia entre as prestaes. A

    interdependncia exprime, em geral, o condicionamento de uma prestao a outra. Ao propsito, feita uma

    distino entre sinalagma gentico e sinalagma funcional. (...) O sinalagma funcional indica a interdependncia

    entre as prestaes na execuo do contrato, no sentido de que uma parte pode se recusar a cumprir a prestao

    se a outra parte no cumpre a sua prpria (exceo de contrato no cumprido: art. 1460

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    Da afirmar-se que o conceito de risco contratual se relaciona diretamente

    com o de equilbrio, tendo em conta que as partes estabelecem negocialmente a repartio

    dos riscos como forma de definir o equilbrio do ajuste.3 Ao se perquirir a alocao de riscos

    estabelecida pelos contratantes, segundo a vontade declarada, o intrprete dever atentar para

    o tipo contratual escolhido e para a causa concreta do negcio. Cada tipo contratual possui

    critrios de repartio do risco previamente estabelecidos em lei. Entretanto, as partes

    podero modelar a alocao de riscos do negcio, inserindo na sua causa repartio de riscos

    especfica e incomum a certa espcie negocial.

    Ao lado do tipo contratual, o intrprete, para fins de identificao da

    alocao de riscos e das respectivas responsabilidades, h de considerar a qualidade das

    partes, investigando-se a atividade normalmente praticada pelos contratantes. A ttulo de

    ilustrao, considera-se justo imputar maior risco ao empresrio do que a indivduo que no

    seja expert em determinado setor.4 Ou, ainda, imputar a responsabilidade ao contratante pelo

    risco inerente atividade econmica por ele regularmente desenvolvida. Deve-se, tambm,

    observar se h clusula limitativa ou de excluso de responsabilidade, bem como o sistema

    de responsabilidades que decorrem da interpretao sistemtica e teleolgica das clusulas

    contratuais.5

    Em relaes paritrias, em que no h assimetria de informaes, a

    equao econmica estabelecida pelos contratantes por meio da alocao de riscos h de ser

    observada em toda a vida contratual. Afinal, a repartio dos riscos traduzir a finalidade

    almejada pelos contratantes com o concreto negcio, os quais buscam satisfazer os seus

    interesses por meio daquela especfica alocao de riscos.

    A alocao de riscos no contrato revela, portanto, o equilbrio econmico

    do negcio perseguido pelas partes e mediante o qual os contratantes visam a concretizar

    seus objetivos econmicos. Tal repartio de riscos insere-se, assim, na causa concreta do

    contrato, isto , nos efeitos essenciais que o negcio pretende realizar, ou, em outras palavras,

    na sua funo econmico-individual ou funo prtico-social, que exprime a racionalidade

    desejada pelos contratantes, seus interesses perseguidos in concreto, com

    cc) e pode ser liberada se a contraprestao se torna impossvel por causa no imputvel s partes (1453 s

    cc) (BIANCA, Massimo. Diritto civile: il contratto. Milano: Giuffr, 1987. v. 3, p. 488; traduo livre). 3 BESSONE, Mario. Adempimento e rischio contrattuale. Milano: Giuffr, 1969, p. 2 e ss. 4 BESSONE, Mario. Adempimento e rischio contrattuale. cit., p. 39. 5 Sobre o tema, v. ALPA, Guido. Rischio. In: CALASSO, Francesco (org). Enciclopedia del diritto. Milano:

    Giuffr, 1989. v. 40. p. 1158, em que o autor passa em revista critrios que devem orientar o juiz na repartio

    dos riscos, dentre os quais o exame da qualidade das partes; da prestao (fungvel, infungvel etc.); e da funo econmica do negcio.

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    base na qual se interpreta e se qualifica o negcio, em procedimento nico e incindvel.

    Como observou Francesco Camilletti, o equilbrio contratual se expressa no em termos

    objetivos de valores, mas corresponde finalidade almejada pelos contratantes ou ao

    interesse que pretendem realizar com o sinalagma ou correspectividade entre as

    prestaes.6

    Deve-se, portanto, averiguar a finalidade do sinalagma ou da

    correspectividade in concreto, que tem por escopo satisfazer aos interesses dos contratantes.

    A alocao de riscos insista-se insere-se na causa do negcio, isto , nos efeitos essenciais

    perseguidos pelos contratantes com vistas ao atendimento de suas pretenses. Em definitivo,

    h de se prestigiar a repartio dos riscos estabelecida pela vontade negocial, que traduz o

    equilbrio do negcio, impedindo-se que o intrprete refaa a valorao do risco j efetuada

    pela autonomia privada.

    1. Os modos de alocao de riscos nos contratos: gesto positiva e negativa

    No ordenamento jurdico brasileiro, existem duas formas de gesto de

    riscos nos contratos: a gesto positiva e a gesto negativa. Evidentemente, os riscos que

    constituiro objeto de gesto pelos particulares ho de ser previsveis, de modo a que se

    possa atribuir a um ou outro contratante os efeitos de sua verificao. Ao ser repartido entre

    os contratantes, o risco previsvel passa a integrar a lea normal do contrato, compreendida

    como o risco externo ao contrato, o qual, embora no integre a sua causa, mantm com ela

    relao de pertinncia, por representar o risco econmico previsvel assumido pelos

    contratantes ao escolher determinado tipo ou arranjo contratual. A definio da lea normal

    ir se operar no concreto regulamento de interesses, mostrando-se possvel que determinado

    evento previsvel no se insira na lea normal e, portanto, no figure como fato previsto,

    objeto de gesto pelas partes. Por outro lado, as partes podero

    6 Como elucida o autor: em linha terica e geral, pode-se continuar a sustentar a subsistncia, em nosso

    ordenamento, de um princpio que tende a se desinteressar pelo equilbrio contratual compreendido como

    correspondncia de valores (objetivos) entre as prestaes trocadas, tal sendo a consequncia lgica do

    reconhecimento da autonomia privada como instrumento para a atuao da liberdade de iniciativa econmica.

    (...) o legislador, portanto, se absteve de considerar a validade do contrato com base em valoraes quantitativas

    do sinalagma, tendo, ao revs, deslocado a prpria valorao sobre a funo teleolgica da correspectividade,

    que aquela destinada a satisfazer os interesses de ambas as partes, s quais apenas compete estabelecer quais valores econmicos atribuir s prestaes que satisfazem aos seus interesses (CAMILLETTI, Francesco.

    Profili del problema dellequilibrio contrattuale. In: Collana diritto privato. Milano: Giuffr, 2004. v. 1. p. 44;

    traduo livre).

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    alargar a lea normal, incluindo na gesto do risco eventos previsveis que ordinariamente

    no sejam associados a determinada espcie negocial (e que, portanto, no comum dos casos,

    seriam considerados fatos extraordinrios).

    Deste modo, as partes, ao distriburem os riscos econmicos previsveis a

    partir das clusulas contratuais, procedem gesto positiva da lea normal. Aludida

    alocao de riscos, que ser identificada com base na vontade declarada7 pelos contratantes,

    estabelece o equilbrio econmico do negcio. Tal equao econmica, que fundamenta o

    sinalagma ou a correspectividade entre as prestaes, deve ser observada no curso da relao

    contratual, em ateno aos princpios da obrigatoriedade dos pactos e do equilbrio dos

    contratos. Dentre os diversos instrumentos disposio dos contratantes voltados gesto

    positiva dos riscos, a clusula resolutiva expressa assume destacada relevncia, como se ver

    a seguir.

    Ao lado da gesto positiva da lea normal, os contratantes podero optar

    por gerir negativamente os riscos econmicos previsveis supervenientes, deixando,

    deliberadamente, em branco certos elementos da relao contratual, a serem determinados,

    em momento futuro, pela atuao de uma ou ambas as partes, de terceiro ou mediante fatores

    externos, segundo o procedimento contratualmente previsto para a integrao da lacuna.

    Trata-se do contrato incompleto.

    2. A clusula resolutiva expressa como instrumento de gesto positiva dos riscos

    Dentre as diversas formas de gesto positiva dos riscos econmicos, situa-

    se a clusula resolutiva expressa. Fruto da autonomia privada dos contratantes, que ajustam,

    livre e conscientemente, sua incluso no contrato, a clusula resolutiva expressa permite ao

    credor, uma vez verificado o evento nela previsto, desvincular-se de relao jurdica estril,

    incapaz de cumprir o programa negocial traado pelas partes, de forma clere, mediante

    simples declarao receptcia de vontade. Revela-se, assim, aquela que , sem sobra de

    dvidas, uma das extraordinrias vantagens da clusula em comparao com

    7 Sobre a teoria da declarao, originada no Sc. XX e em pleno vigor na teoria contratual contempornea,

    assinala Vincenzo Roppo: no contrato, importante no apenas a efetiva vontade individual, em como esta se

    forma na esfera psquica do sujeito, mas tambm a sua projeo social externa, e, em particular, o modo pelo qual a vontade das partes percebida pela contraparte. Esta percepo determinada essencialmente pelo modo

    como a vontade, objetivamente, vem manifestada externamente; por isso o teor objetivo da declarao de

    vontade (ROPPO, Vincenzo. Il contrato. In: IUDICA, Giovanni; ZATTI, Paolo (Org.). Trattato di diritto

    privato. Milano: Giuffr, 2001. pp. 38-39; traduo livre).

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    sua congnere a clusula resolutiva tcita: a possibilidade de resolver a relao

    obrigacional extrajudicialmente, sem que tenha, o credor, que se socorrer do Poder

    Judicirio.8

    Mas no tudo. A clusula resolutiva expressa consente ao contratante no

    inadimplente, ainda, transferir ao devedor o risco de sua insatisfao.9 No obstante se

    afirme, usualmente, que a clusula se destina a regular to s o inadimplemento absoluto,10

    no h bice incluso, em seu suporte ftico, de riscos diversos, desde que sua verificao11

    conduza disfuncionalizao da relao obrigacional. Embora, em sua origem, o instituto

    estivesse ligado, de fato, ao inadimplemento absoluto, sua percepo histrico-relativa

    impe a ampliao de seus confins, a permitir a gesto de outros riscos que, uma vez

    implementados, impeam a promoo da funo econmico-individual do negcio.

    Tome-se como exemplo a impossibilidade da prestao superveniente e

    inimputvel ao devedor, que acarreta a resoluo ipso iure da obrigao, independentemente

    de sentena constitutiva, liberando o devedor da prestao.12 Trata-se, aqui, de

    impossibilidade provocada por caso fortuito ou fora maior,13 caracterizada,

    8 Para o desenvolvimento do tema, confira-se TERRA, Aline de Miranda Valverde. Clusula resolutiva

    expressa e resoluo extrajudicial. Civilistica.com. Rio de Janeiro. v.2. n.3. jul./set. 2013. Disponvel em:

    . Acesso em: 30

    nov. 2015. 9 GARRIDO, Mara Luisa Palazn. El remedio resolutorio en la propuesta de modernizacin del derecho de

    obligaciones en Espaa: un estudio desde el derecho privado europeo. In: DOHRMANN, Klaus Jochen Albiez

    (Dir.); GARRIGO, Mara Luisa Palazn; SERRANO, Maria Del Mar Mndez (Coord.). Derecho privado

    europeo y modernizacin del derecho contractual en Espaa. Barcelona: Atelier Libros Jurdicos, 2011. p.425. 10 Veja-se, por todos: PROENA, Jos Carlos Brando. A resoluo do contrato no direito civil: do enquadramento e do regime. Coimbra: Coimbra Editora, 2006. p.76. A rigor, como aponta Guido Alpa,

    mesmo nessa hiptese, o problema a resolver um problema de distribuio dos riscos (ALPA, Guido.

    Manuale di diritto privato. 8 ed. Padova: CEDAM, 2013. p.540, traduo livre). 11 Sobre a contempornea conformao do inadimplemento absoluto, confira-se: TERRA, Aline de Miranda

    Valverde. A contempornea teoria do inadimplemento: reflexes sobre a violao positiva do contrato, o

    inadimplemento antecipado e o adimplemento substancial. In: MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rgo;

    GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz; MEIRELES, Rose Melo Vencelau (Org.). Direito Civil. 1. ed. Rio de

    Janeiro: Freitas Bastos, 2015. v. 2. p. 183-200. 12 A supervenincia de caso fortuito no faz surgir para o credor o direito potestativo de resolver a relao

    obrigacional: a lei incide diretamente sobre o fato, resolvendo o contrato automaticamente, conforme esclarece

    Judith Martins-Costa: Nos casos em que a impossibilidade informada por culpa e o devedor no infringe dever de diligncia mas a prestao, ainda assim, se torna impossvel teremos, ento, a impossibilidade

    no-imputvel, que libera o devedor e o desonera do pagamento de perdas e danos, afastando a possibilidade

    de o credor invocar o direito resoluo, pois h extino ipso iure (MARTINS-COSTA, Judith. Comentrios

    ao novo Cdigo Civil: do inadimplemento das obrigaes. Rio de Janeiro: Forense, 2004. v.5. t. 2. p.271). 13 Utilizam-se as expresses como sinnimas, na esteira do entendimento predominante na doutrina nacional.

    Sobre a identidade dos conceitos, confira-se FONSECA, Arnoldo Medeiros da. Caso fortuito e teoria da

    impreviso. 3.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1958. p.129 et seq.

    http://civilistica.com/wp-content/uploads/2015/02/Terra-civilistica.com-a.2.n.3.2013.pdf

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    fundamentalmente, como se depreende do pargrafo nico do artigo 393 do Cdigo Civil,

    pela inevitabilidade e necessariedade do acontecimento.14

    A classificao da supervenincia como caso fortuito feita em concreto,

    e requer anlise dos elementos exteriores ao obrigado e das peculiaridades de sua atividade

    econmica, tomando como parmetro a possvel conduta de outros indivduos, em condies

    objetivas anlogas.15 Tudo depende, ento, das especficas condies de fato em que se

    verifica o evento.16

    Para a resoluo do contrato e liberao do devedor requer-se, ainda, que

    o evento inevitvel e necessrio conduza impossibilidade objetiva da prestao.17 A

    exigncia deve, contudo, ser entendida nos seus devidos termos, no se demandando do

    devedor esforos maiores do que os razoveis para o adimplemento da obrigao. Insere- se,

    assim, no conceito tcnico-jurdico de impossibilidade, a necessidade de o devedor

    despender esforo extraordinrio para o adimplemento da prestao.18

    A despeito das regras oferecidas pela teoria legal do risco, podem as partes

    gerir os acontecimentos inevitveis e necessrios, predeterminando, por exemplo, quais

    eventos consideram caso fortuito capaz de impossibilitar a execuo da prestao. Admite-

    se, outrossim, que uma das partes assuma o risco da impossibilidade causada por caso

    fortuito. O prprio Cdigo Civil permite, no caput do artigo 393, que os contratantes

    convencionem o deslocamento do risco do fortuito em favor do credor, fazendo com que

    persista a responsabilidade do devedor mesmo se a inexecuo decorrer de evento

    14 Adota-se a teoria objetiva, que se contrape subjetiva, a qual equipara o caso fortuito e a fora maior

    ausncia de culpa, pelo que se daria o fortuito sempre que a inexecuo no se pudesse imputar ao devedor.

    Para exposio detalhada de ambas as teorias, consulte-se SERPA LOPES, Miguel Maria. Curso de direito

    civil. 2.ed. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1957. v.2. p.459 et seq. 15 A esse respeito, Agostinho Alvim destaca que "a necessariedade do fato h de ser estudada em funo da

    impossibilidade de cumprimento da obrigao, e no abstratamente" (ALVIM, Agostinho. Da inexecuo das

    obrigaes e suas conseqncias. So Paulo: Saraiva, 1965. p.312). 16 FONSECA, Arnoldo Medeiros da. Caso fortuito e teoria da impreviso. op. cit. p.151. 17 Como destaca Arnoldo Medeiros da Fonseca, o caso fortuito ou fora maior podem ter como consequncia

    a impossibilidade objetiva de executar, permanente ou temporria, total ou parcial, como tambm uma

    dificuldade maior, ou onerosidade imprevista, o que normalmente sucede quando acarreta a perda ou

    deteriorao de produtos que iam ser destinados satisfao de prestaes genricas. Como porm, nesse

    terreno, a liberao do devedor est tambm subordinada impossibilidade absoluta de executar, segundo os

    princpios tradicionais, no aludem geralmente os autores eventualidade de ter o caso fortuito como

    consequncia apenas uma onerosidade maior da prestao, e elevam aquela impossibilidade de execuo a

    condio elementar do prprio fortuito. De nossa parte, preferimos evitar tal confuso, embora reconheamos

    que, nesse campo, surja tambm, como requisito essencial liberao do obrigado, esse novo elemento: a

    impossibilidade de prestar (FONSECA, Arnoldo Medeiros da. Caso fortuito e teoria da impreviso. op. cit.

    p.152-153, grifos no original). 18 A impossibilidade definitiva a que inviabiliza para sempre a prestao ou que somente pode ser prestada

    mediante esforo extraordinrio. [...] A simples dificuldade no exonera, mas a desproporcionalidade do custo

    para o cumprimento da prestao equiparvel impossibilidade (AGUIAR JNIOR, Ruy Rosado. Extino

    dos contratos por incumprimento do devedor (resoluo). Rio de Janeiro: Aide, 1991. p.99-100).

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    inevitvel, para o qual este no tenha concorrido. Homenageia-se a autonomia privada,

    reconhecendo-se que a soluo adotada como regra pela lei pode no se coadunar com os

    interesses concretos envolvidos no negcio.19

    Por se tratar de exceo, a assuno do risco deve ser expressa.20

    Imprescindvel, ainda, a indicao, um por um, de todos os fatos inevitveis pelos quais o

    contratante assume a responsabilidade.21

    Comprometendo-se o devedor a prestar mesmo que sobrevenha o risco

    assumido, a impossibilidade decorrente do caso fortuito indicado na clusula no o exonera

    da obrigao, mas configura, em vez disso, inadimplemento absoluto. A gesto da

    supervenincia do evento inevitvel e necessrio transforma um risco econmico

    extraordinrio (embora previsvel) em um risco de inadimplemento no mbito do concreto

    regulamento de interesses (fato previsto). O inadimplemento, nesse caso, no decorre de

    inexecuo culposa, mas da assuno contratual do risco: embora o caso fortuito exclua o

    nexo de causalidade entre a conduta do devedor e a inexecuo da prestao, a assuno

    expressa do risco estabelece um nexo de imputao entre o evento inevitvel e o devedor, a

    atribuir-lhe a responsabilidade pela inexecuo.

    De todo modo, o que releva para esta exposio so os efeitos do

    deslocamento convencional dos riscos: enquanto, pela teoria legal do risco, a

    impossibilidade da prestao causada por caso fortuito resolve automaticamente o contrato

    e afasta qualquer responsabilidade do devedor pelos prejuzos sofridos pelo credor, havendo

    assuno expressa do risco, sua concretizao conduz ao inadimplemento absoluto, e abre

    para o credor a possibilidade de optar entre resolver a relao obrigacional,

    19 TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloisa Helena; BODIN DE MORAES, Maria Celina. Cdigo Civil

    interpretado conforme a Constituio da Repblica. 2.ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. v.1.

    p.712. 20 No se admite a assuno tcita do risco relativo supervenincia de caso fortuito e fora maior, conforme

    destaca FONSECA, Arnoldo Medeiros da. Caso fortuito e teoria da impreviso. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense,

    1958. p.180, nota de rodap n. 8. Da a ressalva de Agostinho Alvim, para quem, na dvida se houve ou no

    a assuno do risco, resolve-se em sentido negativo; se se questiona acerca da sua extenso, corta-se a dvida

    a favor do devedor (ALVIM, Agostinho. Da inexecuo das obrigaes e suas conseqncias. op. cit. p.320). 21 Agostinho Alvim observa que para que se entenda assumido o risco do caso fortuito extraordinrio,

    necessrio referncia expressa" (ALVIM, Agostinho. Da inexecuo das obrigaes e suas consequncias. op.

    cit. p. 320). Em sentido contrrio, Arnoldo Medeiros da Fonseca no exige a indicao de cada um dos riscos assumidos pelo contratante: "S os riscos decorrentes de casos fortuitos que foram ou podiam ser previstos na

    data da obrigao consideram-se assumidos pelo devedor, no caso de dvida, pois as excees devem ser

    interpretadas restritivamente (FONSECA, Arnoldo Medeiros da. Caso fortuito e teoria da impreviso. op.

    cit., p.181, grifos no original).

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    ou manter o contrato e exigir o equivalente pecunirio, sem prejuzo, em ambos os casos,

    das perdas e danos.

    Nesse cenrio, a clusula resolutiva expressa participa decisivamente da

    gesto do risco da supervenincia do caso fortuito, disciplinando os efeitos dele decorrentes:

    apenas mediante sua aposio no contrato, a relao obrigacional poder ser resolvida

    extrajudicialmente, no de forma automtica, mas mediante declarao do credor.22

    Indispensvel, para tanto, a concomitncia da assuno do risco e da atribuio, ao credor,

    do direito potestativo de proceder resoluo extrajudicial da relao obrigacional. Essas

    duas declaraes podem mesmo constar da clusula resolutiva; impretervel, contudo, que

    constem, de fato, expressas do contrato.

    Por outro lado, de acordo com a disciplina legal do risco, quando a

    impossibilidade parcial ou temporria, a tornar intil para o credor a prestao por

    circunstncias inimputveis ao devedor em decorrncia de caso fortuito, ato de terceiro, ou

    at ato do devedor sem culpa , no se processa a resoluo automtica do vnculo

    obrigacional, nascendo para o lesado o direito formativo de resolver a relao.

    Isso porque, quando a impossibilidade temporria, a configurao do

    inadimplemento absoluto depender da demonstrao de que o cumprimento posterior

    conduz perda de utilidade da prestao para o credor. O mesmo se passa em relao

    impossibilidade parcial, em que s parte da obrigao afetada pela supervenincia,

    aplicando-se o artigo 235 do Cdigo Civil. Em ambos os casos, portanto, ao credor caber

    pleitear a resoluo em face da inutilidade da prestao, que se processar judicialmente,

    caso no conste do contrato clusula resolutiva expressa, tendo em vista a necessidade de o

    juiz aferir se a prestao j no atende, efetivamente, ao interesse do credor.

    A gesto legal do risco de impossibilidade temporria ou parcial

    inimputvel permite, ento, que o credor pleiteie a resoluo judicial da relao obrigacional,

    se a prestao se tornou intil, ou a receba no estado em que se encontra na impossibilidade

    parcial , se lhe conservar alguma utilidade. No entanto, aqui tambm podem as partes,

    regulando seus interesses de acordo com o programa contratual, determinar, ex ante e de

    comum acordo, que eventos passveis de conduzir

    22 Aurora Martnez Flrez admite a possibilidade no mbito do ordenamento jurdico espanhol: Desde nuestro

    punto de vista, sin embargo, y sin perjuicio de que las consecuencias sean distintas en una y otra hiptesis, no

    existe obstculo en nuestro ordenamiento para que por la va de la clusula resolutoria las partes estn

    distribuyendo o transmitiendo el riesgo a la medida de sus intereses (FLREZ, Aurora Martnez. Las

    clusulas resolutorias por incumplimiento y la quiebra. Madrid: Civitas, 1999. p.23, nota de rodap n. 9).

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    impossibilidade temporria ou parcial e, consequentemente, inutilidade da prestao,

    autorizam a resoluo de pleno direito, em alterao, assim, aos efeitos legais da

    supervenincia.

    Para tanto, basta a previso do referido evento necessrio e irresistvel no

    suporte ftico da clusula resolutiva expressa, no se exigindo, ao contrrio do que se passa

    quando a impossibilidade decorrente do fortuito total, a assuno do risco pelo devedor.

    Isso porque as partes no alteram a partilha legal dos riscos, limitando-se a modificar os

    efeitos de sua verificao. Por outro lado, se o devedor assumir o risco de forma expressa,

    h alterao da alocao legal, e a ocorrncia do evento configurar inadimplemento

    absoluto, a permitir ao credor pleitear, tambm, indenizao por perdas e danos.

    Imprescindvel resoluo, ademais, que a impossibilidade parcial ou

    temporria decorrente do evento fortuito conduza, inequivocamente, inutilidade da

    prestao para o credor. A clusula resolutiva expressa no se presta promoo de

    caprichos, de modo que apenas os atrasos ou as imperfeies que ofendam substancialmente

    a obrigao, e comprometam a consecuo do programa negocial, podem integrar seu

    suporte ftico. No suficiente que a prestao se torne menos valiosa, sem repercusses na

    sua utilidade; indispensvel que se torne incapaz de promover o interesse perseguido pelas

    partes.

    Ao lado do caso fortuito, outro risco cuja gesto positiva pode ser realizada

    por meio da clusula resolutiva expressa aquele relativo ao vcio redibitrio, entendido

    como o defeito oculto que torna a coisa imprpria ao uso a que se destina ou que lhe diminui

    o valor de tal modo que, se o credor soubesse da sua existncia, no realizaria o negcio pelo

    mesmo preo (art. 441, CC).

    Tais defeitos so designados redibitrios justamente porque, quando

    descobertos, conferem ao credor a possibilidade de redibir a coisa, resolvendo a relao

    obrigacional, a tornar ineficaz o negcio com a restituio da coisa defeituosa ao antigo

    dono.23 Para tanto, dever o adquirente recorrer ao Judicirio, ajuizando a ao redibitria,

    cujo efeito exatamente aquele da ao de resoluo: a extino do vnculo obrigacional.24

    23 o que tambm observa Arnoldo Wald: A prpria etimologia do adjetivo redibitrio explica a finalidade

    do instituto, que assegura a devoluo do objeto ao seu titular anterior (WALD, Arnoldo. Direito civil: direito

    das obrigaes e teoria geral dos contratos. 18.ed. ref. So Paulo: Saraiva, 2009. v.2. p.321). 24 Os vcios redibitrios so inerentes coisa vendida; so chamados redibitrios porque podem dar lugar

    resoluo do contrato (CARVALHO SANTOS, Joo Manoel de. Cdigo Civil brasileiro interpretado. 6.ed.

    Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1958. v.15. p.335).

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    A disciplina dos vcios redibitrios se fundamenta, conforme destaca Caio

    Mrio da Silva Pereira, no princpio da garantia sem a intromisso de fatores exgenos, de

    ordem psicolgica ou moral,25 e se insere no mbito da teoria legal do risco.26 Tal garantia

    visa assegurar a posse til da coisa ao credor e, por ser consequncia da prpria natureza

    jurdica do contrato comutativo,27 que pressupe relativa equivalncia entre as prestaes,

    independe da culpa ou m-f do alienante28 a relevncia do conhecimento, ou no, do vcio

    oculto pelo alienante se restringe imposio, ou no, do dever de indenizar.

    Para Jorge Cesa Ferreira da Silva, os vcios redibitrios se reconduzem

    categoria dicotmica do inadimplemento, qualificando-se os casos de redibio como

    inadimplemento absoluto. De acordo com o autor, as regras sobre vcios comungam do

    mesmo fundamento de proteo das regras relativas ao inadimplemento absoluto e mora.

    Por essa razo, em vez de incluir os vcios redibitrios em uma terceira categoria de

    inadimplemento, mais correto seria reagrupar as regras sobre vcios na classificao

    dicotmica: mora e inadimplemento absoluto. Os casos de redibio seriam regulados como

    inadimplemento absoluto, os de reduo proporcional do valor (quanti minoris), como

    impossibilidade parcial [...].29

    De toda sorte, qualquer que seja o entendimento adotado acerca da

    natureza jurdica do vcio redibitrio, no se pode deixar de reconhecer que, tanto no

    inadimplemento absoluto quanto no vcio redibitrio que retira a utilidade do bem para o

    adquirente, h um incumprimento da prestao; e, em ambos os casos, a consequncia para

    o credor a mesma: frustrao do escopo econmico perseguido. No por outra razo

    25 PEREIRA, Caio Mrio da Silva. Instituies de direito civil. 19. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2015. v.3. p.107. 26 Para Orlando Gomes, trata-se de garantia de natureza especial, pelo que no se aplicam as regras da teoria

    geral dos riscos (GOMES, Orlando. Contratos. 23 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 95). 27 Embora tradicionalmente associada aos contratos comutativos, a garantia por vcios redibitrios h de incidir

    tambm nos contratos aleatrios, ainda que de forma diferenciada, reconhecendo-se aos negcios aleatrios o

    equilbrio entre as prestaes. V., sobre o tema, BANDEIRA, Paula Greco. Contratos aleatrios no direito

    brasileiro. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 190-193. 28 BEVILAQUA, Clovis. Cdigo Civil dos Estados Unidos do Brasil comentado. 11. ed. So Paulo: Livraria

    Francisco Alves, 1958. v.4. p. 215. 29 SILVA, Jorge Cesa Ferreira da. A boa-f e a violao positiva do contrato. Rio de Janeiro: Renovar, 2007.

    p.199-201, grifos no original. Na mesma direo, Raquel Salles, partindo da compreenso do inadimplemento

    como o no cumprimento imputvel, subjetiva ou objetivamente, da prestao devida, entende plenamente

    possvel a configurao dos vcios redibitrios como inadimplemento por imputao objetiva. Por essa razo,

    a autora admite a incluso de defeitos ocultos no suporte ftico da clusula resolutiva expressa, a autorizar a

    resoluo extrajudicial da relao obrigacional, dispensando o ajuizamento da ao redibitria (SALLES,

    Raquel Bellini de Oliveira. Autotutela pelo inadimplemento nas relaes contratuais. Tese (Doutorado em

    Direito Civil) Faculdade de Direito, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011. p.198-199).

  • Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCivil | ISSN 2358-6974 | Volume 6 Out / Dez 2015 21

    que, nas duas situaes, o ordenamento jurdico oferece ao credor instrumentos de tutela

    que, embora diversos, produzem igual resultado: a extino da relao obrigacional.

    Posto isso, afigura-se lcito e legtimo aos contratantes, valendo-se da

    alocao de riscos previamente determinada pelo legislador, pactuar, de antemo, na clusula

    resolutiva expressa, quais vcios ocultos comprometem irremediavelmente a utilidade da

    prestao para o credor, a dispensar o ajuizamento da ao redibitria para a resoluo do

    negcio.

    A exigncia de que a redibio se processe judicialmente decorre da

    necessidade de o juiz verificar se a alegao de perda de utilidade da prestao pelo credor

    , de fato, procedente. Dessa forma, imprescindvel que os contratantes indiquem, de

    antemo e de comum acordo, em que circunstncias a prestao no ter mais a utilidade

    necessria promoo da funo econmico-individual do contrato,30 no bastando a

    simples referncia a vcios redibitrios na clusula resolutiva. Do contrrio, considerar-se-

    a previso contratual mera clusula de estilo, remetendo o credor via judicial.

    3. O contrato incompleto como instrumento de gesto negativa dos riscos

    De outra parte, ao lado da gesto positiva de riscos, desponta o contrato

    incompleto, assim compreendido como o negcio jurdico que emprega tcnica de gesto

    negativa da lea normal do contrato.31 Dito diversamente, em algumas hipteses, a

    autonomia privada preferir no alocar positivamente o risco econmico previsvel no

    momento da assinatura do contrato, deixando essa deciso para momento futuro, quando e

    se o risco se verificar. Trata-se da denominada gesto negativa. Nessa hiptese, os

    particulares deixam lacunas no negcio, que significam a ausncia de determinado elemento

    da relao contratual que, no entender das partes, ser afetado pela oscilao da lea normal.

    A lacuna representa precisamente essa no tomada de deciso pelos contratantes, que

    remetem a distribuio dos efeitos do risco para momento futuro, por ocasio de sua

    verificao.

    30 No necessrio, portanto, que a prestao j no tenha qualquer utilidade em abstrato, mas apenas que o

    defeito lhe retire a idoneidade de promover o concreto escopo econmico do contrato. Nesse sentido, confira-

    se GAROFALO, Luigi. Garanzia per vizi e azione redibitria nell'ordinamento italiano. Rivista di Diritto

    Civille, Padova. v.47. p.249, jan./fev. 2001. 31 Sobre o tema, seja consentido remeter a BANDEIRA, Paula Greco. Contrato incompleto. Rio de Janeiro:

    Atlas, 2015, passim.

  • Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCivil | ISSN 2358-6974 | Volume 6 Out / Dez 2015 22

    Em determinados casos, os particulares no conseguem chegar a um

    acordo quanto a determinada alocao de riscos; as partes desconhecem certos aspectos

    mercadolgicos ou fatores econmicos que podero afetar o negcio; ou, ainda,

    simplesmente, no querem decidir sobre a alocao de certo risco de antemo. A despeito

    disso, desejam concluir o contrato e se vincular em carter definitivo. Por isso, optam por

    firmar contrato incompleto, que permite, a um s tempo, instaurar o vnculo jurdico

    definitivo e postergar a deciso quanto alocao de determinado risco para momento

    futuro. Trata-se, em uma palavra, da no alocao voluntria do risco econmico (lea

    normal), isto , do decidir no decidir.

    Em outros termos, sobretudo em operaes econmicas complexas,

    marcadas pela durao no tempo e pela incerteza dos resultados, os particulares podero

    concluir contrato em carter definitivo, mas, concomitantemente, optar por no alocar ex

    ante certos riscos econmicos previsveis, por entenderem que essa soluo melhor atende

    aos seus interesses in concreto. Nesses casos, a autonomia privada celebrar contrato

    incompleto, o qual representa soluo obrigatria, porm flexvel, pois permite a abertura do

    regulamento contratual diante do implemento do risco, postergando, para momento futuro,

    a deciso quanto alocao de riscos, segundo critrios j contratualmente definidos.

    Diz-se que o regulamento contratual incompleto fornece soluo

    obrigatria, pois estabelece o procedimento que as partes devero seguir diante da ocorrncia

    do risco para distribuir os ganhos e as perdas econmicas dele resultantes; e, ao mesmo

    tempo, traduz resposta flexvel, vez que as partes iro amoldar o contrato ao novo contexto

    instaurado com a verificao do risco. O contrato incompleto se adapta, desse modo, nova

    realidade contratual.

    No contrato incompleto, portanto, as partes, deliberadamente, optam por

    deixar em branco determinados elementos da relao contratual, como forma de gesto

    negativa do risco econmico superveniente (rectius, lea normal), os quais sero

    determinados, em momento futuro, pela atuao de uma ou ambas as partes, de terceiro ou

    mediante fatores externos, segundo o procedimento contratualmente previsto para a

    integrao da lacuna.

    Quando e se o risco se concretizar, as partes distribuiro os ganhos e as

    perdas econmicas dele decorrentes, por meio da integrao das lacunas, segundo o

    procedimento definido originariamente no contrato. O preenchimento da lacuna ocorrer

  • Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCivil | ISSN 2358-6974 | Volume 6 Out / Dez 2015 23

    pela atuao de uma ou ambas as partes, de terceiro ou mediante fatores externos,

    consoante os critrios pactuados.

    Eis a funo do regulamento contratual incompleto: consentir s partes no

    alocar ex ante os efeitos decorrentes da variao da lea normal do contrato, remetendo essa

    deciso para momento futuro, como soluo que melhor atende aos interesses dos

    particulares no caso concreto.

    A no alocao dos riscos econmicos supervenientes, mediante lacunas,

    a serem integradas em momento futuro, de acordo com critrios predefinidos, por uma ou

    ambas as partes, por terceiro ou mediante fatores externos, quando (e se) houver a verificao

    do risco, traduz os efeitos essenciais que integram a causa do contrato incompleto. O trao

    distintivo da causa do contrato incompleto corresponde, portanto, gesto negativa da lea

    normal do contrato.

    Assim sendo, com vistas a se qualificar determinado contrato como

    incompleto, h de se verificar se o negcio tem por funo gerir negativamente a lea normal

    do contrato. Identificado esse trao distintivo da causa do regulamento contratual

    incompleto, qualifica-se o concreto negcio como contrato incompleto.

    Nesse procedimento unitrio de interpretao e qualificao, deve-se

    investigar, portanto, a causa in concreto, ou seja, a funo econmico-individual ou funo

    prtico-social do contrato, considerada objetivamente, e identificada no caso concreto, que

    exprime a racionalidade desejada pelos contratantes. A funo econmico-individual do

    regulamento contratual incompleto h de abranger, em definitivo, o escopo dos contratantes

    em gerir negativamente a lea normal do contrato.

    A perspectiva funcional do contrato incompleto permite, assim, o

    estabelecimento de critrios para a caracterizao dos negcios incompletos e de novos

    parmetros interpretativos que guiaro sua execuo, figurando o regulamento contratual

    incompleto como negcio jurdico que atende efetivamente aos interesses concretos dos

    particulares na gesto de riscos atinentes a complexas operaes econmicas, no raro

    desprotegidos pela insuficiente tcnica legislativa regulamentar.

    De fato, os tipos contratuais tradicionais disponibilizados pelo

    ordenamento jurdico se mostram, no mais das vezes, insatisfatrios proteo dos interesses

    da autonomia privada no exerccio de suas atividades. Mxime em complexas operaes

    econmicas que se protraem no tempo e se revestem de forte incerteza, com possibilidade

    de supervenincia de diversos riscos econmicos.

  • Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCivil | ISSN 2358-6974 | Volume 6 Out / Dez 2015 24

    A autonomia privada eleger, por conseguinte, nessas hipteses, o contrato

    incompleto, com o escopo de gerir negativamente a lea normal do contrato, protegendo os

    seus interesses contra a oscilao da lea normal, a qual, uma vez verificada, acarretar o

    desequilbrio entre as prestaes, com ganhos econmicos para um dos contratantes e

    respectivas perdas para o outro, distribudos ex post mediante os critrios indicados ex ante

    pelas partes. Por outro lado, o contrato incompleto, justamente por no conter disciplina

    exaustiva dos elementos da relao contratual, exige dos contratantes padres de cooperao

    mais elevados relativamente aos contratos dotados de gesto positiva dos riscos, a sofrer

    incidncia diferenciada dos princpios da boa-f objetiva, da funo social, da solidariedade

    social e do equilbrio econmico dos pactos.

    4. Consideraes Finais

    H, no ordenamento jurdico brasileiro, duas formas voluntrias de gerir a

    lea normal dos contratos: a gesto positiva e a gesto negativa.

    Pela gesto positiva, as partes alocam os riscos econmicos previsveis

    segundo seus interesses, por vezes de forma diversa daquela prevista em lei. Dentre os vrios

    instrumentos postos disposio das partes, a clusula resolutiva expressa se destaca pela

    diversidade de opes que oferece aos contratantes.

    A clusula resolutiva expressa concede ao credor transferir ao devedor o

    risco de sua insatisfao, ou apenas disciplinar os efeitos decorrentes da concretizao de

    riscos j imputados, pela lei, contraparte. De regra, utiliza-se o instituto como mecanismo

    de gesto de especfico risco contratual: o inadimplemento absoluto. No entanto, a

    autonomia privada faculta s partes valer-se da clusula tambm para (a) redistribuir as

    perdas da supervenincia de caso fortuito e fora maior, bem como (b) para alterar os efeitos

    de alocao anteriormente feita pelo legislador.

    No primeiro caso, os riscos passveis de figurar na clusula so aqueles

    que, uma vez concretizados, conduzem disfuncionalizao da relao obrigacional, ou, dito

    de outro modo, incapacidade de o vnculo jurdico promover a funo econmico-

    individual para o qual foi concebido. Podem os contratantes gerir acontecimentos inevitveis

    e necessrios, atribuindo a um deles, expressa e especificamente, as consequncias de sua

    concretizao. Assumindo o devedor a obrigao de prestar, a despeito da verificao do

    evento pr-determinado, a impossibilidade da prestao que dele resulte configura

    inadimplemento absoluto, e autoriza o credor a executar o contrato pelo

  • Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCivil | ISSN 2358-6974 | Volume 6 Out / Dez 2015 25

    equivalente ou a resolver a relao extrajudicialmente, sem prejuzo, em ambos os casos,

    da indenizao por perdas e danos.

    No segundo caso, incluem-se no suporte ftico da clusula os vcios

    redibitrios. Os contratantes, valendo-se da alocao de riscos previamente determinada pelo

    legislador, pactuam, de antemo, que tipos de vcios ocultos comprometem

    irremediavelmente a utilidade da prestao para o credor, a dispensar o ajuizamento da ao

    redibitria para a resoluo do negcio.

    A gesto negativa, por sua vez, implementa-se por meio do contrato

    incompleto, no qual as partes, de forma deliberada, no alocam ex ante o risco econmico

    previsvel superveniente; as perdas e ganhos econmicos decorrentes do evento futuro so

    distribudos posteriormente, quando de sua efetiva verificao, mediante o preenchimento

    da lacuna contratual, de acordo com os critrios j definidos no contrato. O contrato

    incompleto consiste assim, em uma palavra, em negcio jurdico que emprega tcnica de

    gesto negativa da lea normal do contrato e que, por se revelar como soluo flexvel, se

    apresenta, no mais das vezes, como medida que atende de modo mais efetivo aos interesses

    das partes in concreto.

    Assim sendo, h de se identificar no caso concreto o modo de alocao de

    riscos positivo ou negativo empregado pelos contratantes, a partir da interpretao da

    vontade declarada das partes, que poder ser expressa ou implcita, extrada da interpretao

    sistemtica e finalstica das clusulas contratuais.

    Por outro lado, os riscos que fujam esfera de previsibilidade dos

    contratantes no caso concreto consistiro em riscos econmicos imprevisveis, razo pela

    qual no podero constituir objeto de gesto pelas partes (no alocao involuntria do

    risco). Nessa hiptese, presentes os demais pressupostos, aplicar-se- a teoria da excessiva

    onerosidade prevista nos arts. 478 e ss. do Cdigo Civil.

    Trata-se, portanto, a clusula resolutiva expressa e o contrato incompleto,

    de institutos alicerados sobre a autonomia privada, e que conferem s partes a possibilidade

    de gerir os riscos a que seu negcio est exposto de forma mais eficaz e consentnea com as

    peculiaridades do negcio concreto, a fim de melhor promover a consecuo dos interesses

    perseguidos.

    Recebido em 03/01/2016

    1 parecer em 20/01/2016

    2 parecer em 14/02/2016

  • Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCivil | ISSN 2358-6974 | Volume 6 Out / Dez 2015 26

    SITUAES JURDICAS PATRIMONIAIS: FUNCIONALIZAO OU

    COMUNITARISMO?

    Patrimonials Rights: Functionalitazion or Comunitarianism?

    Daniel Bucar Doutorando em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro

    Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro

    Especialista em Direito Civil pela Universit degli Studi di Camerino

    Professor de Direito Civil do IBMEC/RJ

    Procurador do Municpio do Rio de Janeiro. Advogado.

    Daniela de Carvalho Mucilo Mestre em Direito das Relaes Sociais pela PUC/SP

    Especialista em Direito Civil pela Universit degli Studi di Camerino

    Professora de Direito Civil na Faculdade de Direito do Sul de Minas

    Advogada.

    Resumo: O artigo busca apresentar reflexos do debate entre pensadores liberais e

    comunitrios no Direito. A controvrsia tambm afeta o conceito que em doutrina brasileira

    se confere funo social e o ensaio apontar as divergncias, seguidas de uma proposta

    conclusiva do debate.

    Palavras-chave: Liberalismo. Comunitarismo. Funo Social.

    Abstract: The article aims to present reflections of the debate between liberals and

    communitarians in Law. The controversy also affects the concept that the brazilian doctrine

    gives to the social function and the essay will indicate the differences, followed by a

    conclusive proposal of the debate.

    Keywords: Liberalism. Communitarianism. Social function.

    Sumrio: Introduo 1. Liberalismo x Comunitarismo: A Dicotomia Histrica 2. Leitura

    Liberal da Funo Social das Situaes Patrimoniais 2.1. Uma Nota sobre a Doutrina

    Administrativista: O Interesse Pblico 3. Concepes No Liberais da Funo Social das

    Situaes Patrimoniais 4. A Funo Social Expresso do Comunitarismo

    Contemporneo? 5. Concluso

    Introduo

    A previso da funo social da propriedade na Constituio da Repblica

    (artigos 5, XXIII, 170, III) e, posteriormente, a mesma funo como limite da liberdade de

  • Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCivil | ISSN 2358-6974 | Volume 6 Out / Dez 2015 27

    contratar no Cdigo Civil (artigo 421) suscita, em doutrina, o debate acerca da extenso

    interpretativa que deve ser conferida ao termo, cujo prprio conceito ainda atrai alguma

    incerteza.1

    Como medida de superao da tica jurdica individualista,2 a discusso

    encerra, em verdade, confronto que se confunde com a origem da prpria ideia de

    ordenamento jurdico e traz ao ambiente de discusses duas antigas vertentes de pensamento

    moderno: de um lado, os liberais e, de outro, os chamados comunitaristas. Ao passo que

    liberais defendem o distanciamento estatal frente liberdade dos indivduos, os

    comunitaristas adotam posio de uma pretensa interveno na esfera pessoal em prol da

    coletividade.

    No , portanto, de outra forma que se desenvolve o litgio ideolgico em

    torno da funo social das situaes jurdicas patrimoniais,3 acerca de cujo debate o presente

    estudo pretende adentrar, mediante a anlise, inclusive, da acepo que liberais e

    comunitaristas imprimem ao tema.

    1. Liberalismo x Comunitarismo: A Dicotomia Histrica

    Embora os escritos acerca dos ideais comunitaristas, em contraposio aos

    liberais, tenham sido largamente divulgados a partir da segunda metade do sculo XX, a

    discusso encontra-se h muito enraizada no tempo, sendo possvel confundir o incio do

    debate com a prpria idade moderna. Enquanto os liberais se sentem herdeiros de Locke,

    Hobbes, Stuart Mill e, sobretudo, Kant, os comunitaristas encontram seus pilares no

    pensamento de Hegel e Marx.

    As premissas do pensamento liberal remontam era renascentista

    europeia, quando se inicia o processo de secularizao do Estado, em contraposio ao

    governo excessivo da nobiliarquia dinstica. A burguesia ascendente, que j gozava de

    prestgio por conta do acmulo de riquezas, mas permanecia afastada do centro do poder,

    inicia um processo de contestao da legitimidade do poder concentrado na mo da

    1 SCHREIBER, Anderson. Funo Social da Propriedade na Prtica Jurisprudencial Brasileira. In: Direito Civil

    e Constituio. So Paulo: Atlas, 2013. p. 245. 2 TEPEDINO, Gustavo. Contornos Constitucionais da Propriedade Privada. In: Temas de Direito Civil, 4. ed.

    Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 341. 3 Unificam-se propriedade e contrato, em que incidir a funo social, no termo situaes jurdicas

    patrimoniais. Compreende-se que tal funo, como instrumento de qualificao da tutela a ser emprestada,

    no diferenciada em razo do lcus de aplicao, seja na propriedade ou no contrato.

  • Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCivil | ISSN 2358-6974 | Volume 6 Out / Dez 2015 28

    nobreza e do clero, o que resulta na doutrina do liberalismo-individulalista. A liberdade passa

    a ser o valor mximo ser perseguido e o movimento se espraia em vrios aspectos da

    realidade, desde o filosfico at o social, passando pelo econmico, o religioso4 e refletido,

    finalmente, na ordem jurdica oitocentista.

    Em linhas gerais, os liberais clssicos defendiam a ideia de liberdade

    racional a partir da conscincia do indivduo e a total desconfiana do Estado, o qual no

    teria outra funo seno difundir e impor uma concepo de vida alheia, o que significaria

    um paternalismo supressor da individualidade. Para esta corrente, o Estado deve ser neutro

    em relao concepo individual sobre o bem5 e o pluralismo de interesses deve ser

    apenas um dado a ser constatado - derivado das somas de viso de mundo - e no imposto

    ao indivduo.6 De tais premissas, percebe-se que sobressai a relevncia, para os liberais, das

    regras de mercado como fruto da liberdade (negativa), cujo valor, precedente ao prprio

    Estado, assegurado por direitos fundamentais previstos no ordenamento jurdico.7 A

    teoria liberal, portanto, valoriza o indivduo em relao ao grupo

    social, o qual, autnomo, no se define por suas interdependncias econmicas, sociais,

    religiosas, ticas, sexuais e culturais, visto que a ele dada a liberdade de rejeitar qualquer

    proposio externa, por conta da sua racionalidade.

    Renovado aps a crise do Estado do Bem Estar social e do socialismo

    sovitico, o liberalismo ganha novos contornos no fim do Sculo XX com a globalizao do

    mercado. Hayek8 e, com tendncia mais moderada, Rawls e Dworkin, despontam como

    pensadores liberais que voltam a marcar a dicotomia histrica. Ao afirmar que os indivduos

    so pessoas livres e iguais9 e que o Estado deve ser neutro e respeitar a

    4 WOLKMER, Antonio Carlos. Cultura jurdica moderna, humanismo renascentista e reforma protestante.

    Revista Sequncia, n 50, jul. 2005, p. 12. Disponvel em

    https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/15182/13808. Acesso em 10.09.2013. 5 CITTADINO, Gisele. Pluralismo, Direito e Justia. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 3. ed., 2004, p. 129 6 CITTADINO, Gisele. Pluralismo, Direito e Justia. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 3. ed., 2004. p. 81 7 A reflexo liberal no parte da existncia do Estado, encontrando no governo um meio de atingir essa

    finalidade que ele seria para si mesmo, mas da sociedade que vem estar numa relaco complexa de

    exterioridade e interioridade em relao ao Estado. FOUCAULT, Michel. Resumo dos Cursos do Collge de

    France. Trad. Andra Daher. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. p. 90. 8 HAYEK, F. A. A arrogncia fatal. Os erros do socialismo. Verso digital disponvel em http://www.libertarianismo.org/livros/fahaarroganciafatal.pdf. Acesso em 20.05.2013. 9 Em virtude do que podemos chamar suas capacidades morais e as capacidades da razo (de raciocnio, de

    pensamento e capacidae de inferncia relacionada com estas capacidades, dizemos que as pessoas so livres.

    E em virtude de possurem essas capacidades em grau necessrio a que sejam plenamente cooperativos da

    sociedades, dizemos que as pessoas so iguais RAWLS, John. Justia como equidade: uma concepo poltica,

    no metafsica. Trad.: Regis Castro Andrade. Revista de Cultura Poltica n 25, 1992. p. 37.

    https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/15182/13808http://www.libertarianismo.org/livros/fahaarroganciafatal.pdfhttp://www.libertarianismo.org/livros/fahaarroganciafatal.pdf

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    liberdade,10 Rawls e Dowrkin, respectivamente, relem as premissas liberais e imprimem

    novos contornos ao liberalismo clssico, sem, contudo, afastar de suas premissas bsicas: a

    garantia da liberdade e da autonomia pessoal frente a um Estado que deve apenas tutelar o

    exerccio livre deste primado.

    Em contraposio s ideias liberais, o comunitarismo surge como

    movimento ideolgico pouco aps o liberalismo, sendo, por muitos, datado no ps-

    revolues francesas e industrial.11 Na realidade, a forma primitiva do comunitarismo

    identificada na crtica marxista Declarao de Direitos do Homem e do Cidado, para quem

    a carta, sob o pretexto de difundir a liberdade, tinha como verdadeiro objetivo proteger a

    propriedade burguesa. O sarcasmo marxista contra a Declarao reside na clebre

    constatao de que, no obstante o texto tratar de direitos dos homens, no se via na

    sociedade esta categoria de forma homognea; porm, burgueses e proletrios.12

    Assim, contra a atomizao generalizada do indivduo liberal, Marx

    prope uma reorganizao radical da sociedade, fundada na abolio da propriedade privada

    com sua substituio para aquela coletiva dos meios de produo, de forma a eliminar os

    confrontos ticos, polticos e econmicos entre classes. , portanto, nesta maximizao do

    interesse da coletividade em detrimento de interesses individuais que repousa o trao de

    identificao do comunismo marxista com a ideologia comunitria.13

    O incio do Sculo XX, no entanto, apresentou dificultosas e opostas

    experincias comunitrias, baseadas no interesse da coletividade, que imps a este iderio

    um certo asilo. Seja o totalitarismo experimentado nos pases da extinta Cortina de Ferro,

    seja aquele imprimido pelos regimes nazi-fascistas, cuja semelhana reside no

    desconhecimento do valor da pessoa, a defesa de uma ideologia comunitria se tornou um

    tabu.14 No obstante a presena da comunidade no Estado do Bem Estar Social, foi

    necessrio que pensadores norte americanos reavivassem com novos argumentos tericos

    10 DWORKIN, Ronald. tica privada e igualistarismo poltico. Trad.: Antoni Domench. Barcelona, Ed.

    Paids, 1993, p. 59. 11 Embora possa se identificar as razes do comunitarismo na concepo organicista, prpria da Idade Mdia,

    apenas se concebe como movimento ideolgico estruturado no Sculo XIX. PAZ, Valentina. Comunitarismo.

    Enciclpedia delle Scienze Sociali. Treccani. Disponvel em: http://www.treccani.it/enciclopedia/comunitarismo_(Enciclopedia-Scienze-Sociali)/ . Acesso em 12/05/2015. 12 PAZ, Valentina. Comunitarismo. Enciclpedia delle Scienze Sociali. Treccani. Disponvel em:

    http://www.treccani.it/enciclopedia/comunitarismo_(Enciclopedia-Scienze-Sociali)/. Acesso em 12/05/2015. 13 PAZ, Valentina. Comunitarismo. Enciclpedia delle Scienze Sociali. Treccani. Disponvel em:

    http://www.treccani.it/enciclopedia/comunitarismo_(Enciclopedia-Scienze-Sociali)/. Acesso em 12/05/2015. 14 BRUGGER, WINFRIED. O comunitarimo como teoria social e jurdica por trs da Constituio Alem.

    Revista de Direito do Estado, Rio de Janeiro, Ano 3, n. 11. p. 55.

    http://www.treccani.it/enciclopedia/comunitarismo_(Enciclopedia-Scienze-Sociali)/http://www.treccani.it/enciclopedia/comunitarismo_(Enciclopedia-Scienze-Sociali)/http://www.treccani.it/enciclopedia/comunitarismo_(Enciclopedia-Scienze-Sociali)/

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    para uma contraposio ao iderio liberal, conhecido com o comunitarismo

    contemporneo.

    Identifica-se em autores como Alasdair Macintyre, Michael Sandel,

    Michael Walzer, Charles Taylor, entre outros, uma teoria comunitria, com algumas

    variantes, em que se identifica, como elementos comum, a noo em torno de uma

    prioridade comunidade em relao ao indivduo, na medida em que ele essencialmente

    um ser produzido culturalmente.15 No se trata suprimir a expresso individual,16

    diversamente procura-se lev-la em considerao a partir dos olhos da comunidade.

    Para um cotejo sinttico de ambos paradigmas, vlida a citao de

    Maia:

    De modo simplificado, o principal trao caracterizador da grande diviso

    em torno da qual o debate sobre modelos de democracia vem se

    desenrolando na cultura anglo-saxnica o seguinte: as vertentes liberais

    sublinham a importncia dos direitos individuais como prioritrios em relao autonomia coletiva; j as correntes comunitarianas e republicanas

    asseveram inspirados em Rousseau a primazia da vontade coletiva em

    face dos direitos individuais.17

    Dentre as variantes do comunitarismo, trs despontam com primazia: o

    conservador, o universalista-igualitrio e o liberal. Em resumo, enquanto o conservador

    prega o respeito individualidade quando diante de uma sociedade homognea,18 o

    universalista-igualitrio busca o sentido da comunidade global, nos direitos humanos,

    desconhecendo, inclusive, as fronteiras territoriais. Por fim, o comunitarismo liberal, que

    evita os exageros das duas correntes citadas, legitima os interesses da pessoa considerados a

    partir de um ncleo menor (famlia), que confere legitimidade sociedade e, por fim,

    humanidade. Pretende-se, desta forma, compreender a validade das obrigaes morais a

    partir dos menores ncleos at alcanar toda a comunidade.19

    15 CITTADINO, Gisele. Pluralismo, Direito e Justia. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 3. ed., 2004. p. 86 16 Muito embora a crtica no sentido de conduzir, de forma paternalista, a autonomia. FANRSWORTH, Alan.

    Contracts. 4. ed. New York: Aspen, 2004. p. 29. 17 MAIA, Antnio C. Revista Jurdica da PUC-RJ. Disponvel em: Acesso em 10.09.2013. 18 O que seria utpico, pois na atualidade a maioria dos Estados so marcados pelo multiculturalismo.

    BRUGGER, WINFRIED. O comunitarimo como teoria social e jurdica por trs da Constituio Alem.

    Revista de Direito do Estado, Rio de Janeiro, Ano 3, n. 11. p. 63. 19 BRUGGER, WINFRIED. O comunitarimo como teoria social e jurdica por trs da Constituio Alem.

    Revista de Direito do Estado, Rio de Janeiro, Ano 3, n. 11. p. 65.

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  • Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCivil | ISSN 2358-6974 | Volume 6 Out / Dez 2015 31

    Verifica-se que o fio condutor de ambas variantes sempre perpassa,

    diversamente do liberalismo, pelos interesses da comunidade, de forma que a autonomia

    individual somente se justifica com a validao conferida pelo grupo maior.

    Para o Direito, ambas correntes imprimiram - e ainda imprimem -

    consequncias metodolgicas e interpretativas. Na realidade, possvel identificar,

    inclusive, ser no debate da amplitude da autonomia privada que ambas escolas surgiram e se

    desenvolveram:20 para liberais, que concebem a liberdade como um dado pr-jurdico, a

    autonomia privada, protegida pelo Estado e por ele tambm incentivada, dever ser imune a

    influncias externas; j para a concepo comunitria, o exerccio da auto- regulamentao

    apenas se legitima, se atendidos os interesses da coletividade.

    Neste confronto bilateral, entretanto, vlido tratar de uma terceira via

    proposta por Habermas. Para o filsofo alemo, interesses individuais e coletivos, embora

    tidos como fenmenos contrapostos, so, em verdade, situaes complementares. Mais que

    complementares, duas faces de uma mesma moeda, pois, alm de ambas no subsistirem de

    per si, moldam-se e tm origem mtua e conjuntamente.

    Na medida em que ser humano apenas se reconhece como tal quando

    inserido em sociedade e esta, da mesma forma, somente reconhecida a partir da

    coexistncia prprio ser humano, o poder de auto e heteroregulamentao, da mesma forma,

    surge da simbiose sociedade/homem que, mediante dilogo e concesses mtuas, partilha as

    competncia e atribuies de regulamentao.21

    Trata-se, em verdade, da noo de cooriginariedade dos interesses,

    notadamente refletidos em autonomia pblica e da autonomia privada, que, defendida por

    Habermas,22 prope no ser possvel verificar a precedncia ou sobreposio de um

    fenmeno em relao a outro. Em uma sociedade democrtica, onde a autonomia privada

    20 O conceito de liberdade acima exposto carrega de forma nsita uma relao de oposio entre o exerccio

    da autonomia privada e os ento chamados limites externos ao exerccio da autonomia, provenientes de leis de

    carter geral com origem no poder poltico estabelecido. Esta relao de oposio acaba por gerar uma tenso

    que, de forma simplificada, pode ser identificada como a causa originria do debate entre liberais e

    comunitaristas, tendo-se que aqueles evocam uma viso kantiana acerca da interpretao recproca dos

    conceitos de direitos do homem e soberania popular, ao passo que estes partem de uma concepo

    rousseauniana. SILVA, Denis Franco. O princpio da Autonomia: da Inveno `Reconstruo. In: MORAES,

    Maria Celina Bodin de (coord.). Princpios de Direito Civil Contemporneo. Rio de Janeiro, Renovar, 2006. p.

    140. 21 Neste sentido, as identidades individuais e sociais se constituem a partir da sua insero em uma forma de vida compartilhada, na medida em que aprendemos a nos relacionar com os outros e com ns mesmos atravs

    de uma rede de conhecimento recproco, que se estrutura atravs da linguagem CITTADINO, Gisele.

    Pluralismo, Direito e Justia. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 3. ed., 2004. p. 91. 22 HABERMAS, Jurgen. Facticidad y validez. sobre el derecho y el estado democratico de derecho en trminos

    de teora del discurso. 4. ed. Madrid: Trotta, 2005. p. 165.

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    constitui a legitimao para o exerccio da autonomia pblica - e vice-versa,23 ambas formas

    de regulamentao so delimitadas simultaneamente e, atravs de um processo dinmico,

    dialogam de modo perene.

    Postas as divergncias entre as escolas liberal e comunitria, bem como da

    terceira via habermasiana, no indene de reflexos a interpretao que se d funo social

    das situaes patrimoniais no ordenamento brasileiro. Os prismas interpretativos a partir de

    cada viso, a propsito, so to dspares quanto as prprias escolas.

    2. A Leitura Liberal da Funo Social das Situaes Patrimoniais

    Na medida em que condiciona o exerccio das situaes patrimoniais no

    ordenamento brasileiro, a funo social ganha contornos interpretativos prprios em

    doutrina, a partir das lentes tingidas pela ideologia a que se filia o observador. Embora se

    apresente, de certa maneira, paradoxal uma leitura liberal da funo social, j que, em tese e

    a prima facie, ambos os conceitos parecem configurar uma contradio terminolgica,

    possvel encontrar textos que promovem a conjugao lgica e racional dos termos.

    Ao assimilar a funo social supresso do exerccio da autonomia

    privada do indivduo, visto que prpria de regimes totalitrios, Sztajn incisiva ao limitar

    seu significado a um compromisso moral com a responsabilidade social, reafirmando, de

    toda sorte, que o termo no pode ser enfrentado como limitador da liberdade contratual:

    Ser que um cdigo de direito privado - mesmo que seja visto como a

    constituio do homem comum, na dico de Miguel Reale - deve conter dispositivos que induzam as pessoas a agirem tendo em vista interesses de

    terceiros, a distribuir benesses ou agir de conformidade com interesses do

    Poder Pblico? Esse sentido que se daca expresso funo socialno

    ordenamento italiano poca do fascismo. Prever funo social para a empresa, assim como para a propriedade, nada mais era que meio para

    facilitar a interveno ou controle do Estado sobre a atividade econmica

    ou a propriedade fundiria, de vez que a titularidade sobre esses bens era reconhecida na medida em que satisfizessem o interesse nacional. Contudo,

    os italianos, assim como os alemes, no se atreveram a ipor funo social

    aos contratos! Foram contidos por algum sentido de prudncia.

    23 Nesse sentido: Trata-se da codependncia desses dois tipos de autonomia, vez que uma condio para o

    exerccio da outra. TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Sade, Corpo e autonomia privada. Rio de Janeiro: Renovar, 2010. p. 151.

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    Retrospecto histrico permite constatar que recorre funo social

    caracterstica de regimes no democrticos (...).24

    Quanto ao exerccio da empresa, que no se faz sem contratos, a funo social que se pretende venha ela a exercer implica liberdade de contratar com responsabilidade social. Mas no se supe sirva para comprometer a continuao e estabilidade que a atividade requer e que devem dominar a

    sua preservao.25

    Parece seguir a mesma trilha Salomo Filho. Com efeito, ao alargar o

    conceito analisado e entender que a funo social a prpria funo de toda e qualquer

    relao da vida civi,26 constata-se um esvaziamento do prprio termo para permitir a

    manuteno do status quo. Tambm perfilha o mesmo entendimento Theodoro de Mello,

    que, embora reconhea um interesse externo na funo social, entende, no entanto, que no

    se lhe pode permitir uma virtude solidria:

    O princpio dirige-se, portanto, a inspirar a interpretao de todo o

    microssistema do direito dos contratos e integrar suas normas, bem como para limitar a liberdade privada, impedindo que se ajustem obrigaes

    atentatrias aos demais princpios, valores e garantias sociais. Dever

    inspirar, ainda, a interpretao do prprio ajuste, porquanto no se admitir sua execuo de modo a contrariar os interesses e fins que a sociedade

    vislumbrou em determinado tipo contratual.

    Mas no poder o aplicador do direito arvorar-se de realizador de polticas

    tendentes a realizar a redistribuio de riquezas e a poltica social que

    entender mais justa. A autonomia da vontade garantia que s cede em

    face do interesse pblico e nos termos da lei. S a deformidade, o absurdo e o teratolgico exerccio do direito de contratar, que atente contra a

    regularidade das relaes privadas e leve a aviltar os prprios fundamentos,

    as garantias e os valores sociais que sustentam e protegem a liberdade

    que ser passvel de invalidao por interveno do juiz.27

    Ainda sob ares liberais, mas com a internalizao do discurso da anlise

    econmica do direito, Timm segue o mesmo modelo do livre exerccio da autonomia

    privada, defendendo, inclusive, uma reverso de paradigma contratual brasileiro, que a

    proteo da parte mais fraca. Neste sentido, afirma que:

    24 SZTAJN, Rachel. A funo social do contrato e o direito dc empresa. Revista de Direito Mercantil,

    Industrial Econmico e Financeiro. n. 139. So Paulo: Malhciros. p. 31. 25 SZTAJN, Rachel. A funo social do contrato e o direito dc empresa. Revista de Direito Mercantil,

    Industrial Econmico e Financeiro. n. 139. So Paulo: Malhciros. p. 48. 26 SALOMO FILHO, Calixto. Funo social do contrato: primeiras anotaes. Revista de Direito

    Mercantil, Industrial, Econmico e Financeiro. n. 132. So Paulo: Malheiros Editores. p. 13. 27 MELLO, Adriana Mandim Theodoro de. A funo social do contrato e o princpio da boa