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1 02 Revista do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco CBHSF | Nº 02| AGO 2013 ISSN 2316-7661 Agricultura O triste fim da cultura do feijão que tanto orgulhou a cidade baiana de Irecê. Ensaio A natureza que brota nas serras e chapadões do Alto São Francisco O DILEMA ENTRE AS VANTAGENS ECONÔMICAS DA ENERGIA EÓLICA E A PRESERVAÇÃO AMBIENTAL. Entrevista Ministro Aroldo Cedraz defende fortalecimento dos comitês de bacia

Revista Chico- Revista do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco CBHSF | Nº 02 | AGO 2013

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02Revista do Comitê da Bacia Hidrográfica do

Rio São FranciscoCBHSF | Nº 02| AGO 2013

ISSN 2316-7661

AgriculturaO triste fim da cultura do feijão que

tanto orgulhou a cidade baiana de Irecê.

EnsaioA natureza que brota nas serras e chapadões do Alto São Francisco

O DILEMA ENTRE AS VANTAGENS ECONÔMICAS DA ENERGIA EÓLICA E A PRESERVAÇÃO AMBIENTAL.

EntrevistaMinistro Aroldo Cedraz defende

fortalecimento dos comitês de bacia

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Porto de Piaçabuçu, na foz do São Francisco, sob o olhar do fotógrafo Lula Castelo Branco

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Revista ChicoPublicação do

Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco

Nº 02 | AGO 2013ISSN 2316-7661

Comitê da Bacia Hidrográfica do

Rio São FranciscoPresidente

Anivaldo de Miranda Pinto

SecretárioJosé Maciel de Oliveira

Coordenador da CCR do AltoMarcio Tadeu Pedrosa

Coordenador da CCR do MédioClaudio Pereira da silva

Coordenador da CCR do SubmédioAntônio Valadares (Totonho)

Coordenador da CCR do BaixoCarlos Eduardo Ribeiro Junior

Produzido pela CDLJ Publicidade

Coordenação geralMalu Follador

Coordenação editorial e edição de texto

José Antônio Moreno

RedaçãoFred Burgos

Ricardo CoelhoDelane Barros

Nilma GonçalvesAntônio Moreno

Wilton Santos

ArtigoAnivaldo Miranda

IlustraçãoCau Gomez

FotografiaTiago Lima

Hugo CordeiroIvan Cruz

Bruno FigueiredoLula Castelo Branco

Revisão Ana Lúcia Pereira

Projeto gráfico e editoração

Jorge Martins

Foto da capaTiago Lima

ImpressãoGráfica Santa Bárbara

Maturação editorial vem com o tempo. Vem com o fortalecimento da marca, o aperfeiçoa-mento gráfico, a confirmação do estilo jorna-lístico. A revista CHICO chega ao seu segundo número sem a pretensão de estar madura, mas traduzindo a certeza de que o caminho foi tomado. Lançada em novembro de 2012, em meio às atividades da XXII Plenária Ordinária do CBHSF, realizada em Penedo (AL), a revista buscou um modelo que se adequasse ao amplo espectro que é marca do próprio comitê. Múl-tipla em suas abordagens, antenada com os acontecimentos, transparente em suas propos-tas conceituais.Neste segundo número, a linha editorial incur-siona por um dilema quase que natural aos dias de hoje: a necessidade de conciliar o desenvol-vimento econômico com a preservação ambien-tal. O caso vem particularmente à tona diante

das questões vividas atualmente pelo município baiano de Morro do Chapéu, um dos campos mais propícios à expansão da energia eólica no país. No que pese a importância econômica e o caráter até certo ponto “limpo” dessa alterna-tiva energética, há que se pensar no patrimônio natural da região.A revista destaca ainda uma entrevista exclusi-va com o vice-presidente do Tribunal de Contas da União, o ministro Aroldo Cedraz, em que se evidencia, entre outros temas abordados, a im-portância dos organismos de bacia na defesa e gestão dos grandes rios brasileiros. Em outro aspecto, a Chico debruça-se sobre o triste fim da safra agrícola do feijão em Irecê, na Bahia. E, fi-nalmente, envereda pelo processo de fabricação da carranca à beira do São Francisco, reforçando a sua importância como uma das peças mais ri-cas e genuínas da arte popular brasileira.

Dilema e atualidade

Agencia de Bacia AGB PEIXE VIVO

Diretora-geral Célia Fróes

Diretora de Integração Ana Cristina da Silveira

Diretor Técnico Alberto Simon

Diretora de Administração e Finanças

Berenice Coutinho

Esta revista é um produto do Programa de Comunicação do CBHSF Contrato nº 07/2012 - Contrato de Gestão nº

014/ANA/2010 - Ato Convocatório nº 043/2011.Direitos reservados. Permitido o uso das informações

desde que citando a fonte.

CÂMARA CONSULTIVA REGIONALBAIXO SÃO FRANCISCO

CÂMARA CONSULTIVA REGIONALALTO SÃO FRANCISCO

CÂMARA CONSULTIVA REGIONALMÉDIO SÃO FRANCISCO

CÂMARA CONSULTIVA REGIONALSUBMÉDIO SÃO FRANCISCO

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Sumário0606

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PARQUE ESTADUAL MORRO DO CHAPÉU

ARTIGO: DEMOCRACIA E COMITÊS DE BACIA

ENERGIA NUCLEAR: MAIS UM DILEMA PARA O “VELHO CHICO

RIOS DO MUNDO: DANÚBIO

ADEUS AO FEIJÃO

CARRANCAS: A EXÓTICA BELEZA DA ARTE POPULAR BRASILEIRA

NA ROTA

SERES DO SÃO FRANCISCO: BURITI

UMA VIAGEM PELA REALIDADE DO BAIXO SÃO FRANCISCO

DO ALTO: ENSAIO SOBRE O ALTO SÃO FRANCISCO

ENTREVISTA: AROLDO CEDRAZ

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TEXTO: FRED BURGOS | FOTOS: TIAGO LIMA

O impasse entre o desenvolvimento e a preservação ambiental no sertão baiano

PARQUE ESTADUAL

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O desenvolvimento de regiões remotas tem imposto o desafio contínuo de co-existência de crescimento econômico sem prejuízo substantivo à ecologia dos

lugares. Em Morro do Chapéu, município baiano localizado a 388 quilômetros de Salvador, no lado norte da Chapada Diamantina, região identificada como uma das principais produtoras de ventos do país, o dilema está posto pelo projeto de instalação de torres de geração de energia eólica e a preser-vação de um parque estadual de inegável valor ecológico e arqueológico. Ambientalistas locais apontam para a instala-ção de torres de mediação de ventos – ação pre-paratória para a definição dos pontos das torres geradoras –, em áreas internas ao Parque Esta-dual de Morro do Chapéu, considerado tanto pelo governo federal como estadual como unidade de conservação ambiental de proteção integral.A Agência Nacional de Energia Elétrica - Aneel prevê a instalação de mais de três mil torres de geração de energia eólica na região de Morro do Chapéu. Três empresas já estão atuando na ci-dade. A Enel Green Power, de origem europeia, começa a instalar, a partir de setembro, 65 tor-res, sendo nominado de Parque Eólico Cristal. De origem cearense, a Casa dos Ventos tem sua expertise na elaboração de mapeamentos como diferencial para identificação de sítios eólicos. Sua atuação inicial está focada nos parques eó-licos da região: Santa Dulce, Santa Esperança e São Damião. Há ainda a pernambucana Mil-lennium Energy Brasil, que deverá instalar 165 torres geradoras ao norte do Parque Estadual de Morro do Chapéu. Segundo o secretário da Associação de Condu-tores de Visitantes de Morro do Chapéu - ACV/MC e membro do Comitê da Bacia do Rio São Francisco, Luiz Dourado, na parte sul do parque são encontradas torres de medição de ventos instaladas ilegalmente, à altura da Serra da Bolacha. As torres estariam dentro da atual po-ligonal da unidade de conservação ambiental. “Em estudo apresentado pelo Instituto de Meio Ambiente e Recursos Hídricos - Inema-BA, em

audiência pública de 17 de dezembro de 2011, e remetido para o Ministério Público Estadual de Morro do Chapéu, consta um mapa do Parque Estadual no qual se observa a previsão de ins-talação de torres dentro do seu próprio polígono de proteção ambiental, identificando inclusive o nome dos futuros parques eólicos: Parque Eólico Santa Dulce, Parque Eólico São Damião e Parque Eólico Santa Esperança”, informa Dourado.Diretora de Unidades de Conservação do Inema--Bahia, Jeanne Sofia Tavares Florence observa que os estudos, assim como o mapa, tinham o objetivo de trazer a público os diversos aspectos relativos à questão ambiental, inclusive o que es-tava então previsto na área de geração de energia eólica. Por isso, foram levados a uma audiência pública para debate, análise e crítica. “Uma coisa é o que existe de dado ou projeção. Outra é o que pode ou não ser contemplado”, afirma. No entender do presidente da Associação dos Criadores e Produtores da Região, Odilésio Go-mes, ex-prefeito de Morro do Chapéu de 1972 a 1976, período em que o parque foi criado, a energia eólica é uma das mais limpas que exis-tem e os seus impactos são os menores. “É evidente que se devem respeitar as regras am-bientais. Mas penso que, ao invés de combater a instalação de usinas na região, deveríamos reivindicar que parte dos recursos gerados pela energia eólica fosse destinada ao financiamento do manejo do parque”, salienta. Para Gomes, existem aspectos relevantes a serem considerados nos novos ventos de de-senvolvimento econômico para o município trazidos pelos futuros parques eólicos, como a receita dos royalties da produção de ener-gia, o aporte tecnológico que exigiria mão de obra local especializada e a receita produzida pelo arrendamento de terras para instalação das torres. “O município de Morro do Chapéu, como quase todos os instalados no sertão, vive o êxodo rural pela falta de alternativas econômicas. Precisamos encontrar formas de conciliação entre o desenvolvimento e a preservação de biomas”, avalia.

CONSIDERADO ÁREA

PRIVILEGIADA NA

PRODUÇÃO DE VENTOS,

O MUNICÍPIO BAIANO DE

MORRO DO CHAPÉU, NA

CHAPADA DIAMANTINA,

VIVE O CONFLITO ENTRE OS

AVANÇOS PROPORCIONADOS

PELO “BOOM” DA ENERGIA

EÓLICA NO PAÍS E A

NECESSIDADE DE SE

PRESERVAR O SEU PRECIOSO

PATRIMÔNIO AMBIENTAL.

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CONFLITOS FUNDIÁRIOS Pela legislação estadual, o Instituto de Meio Ambiente e Recursos Hídri-cos do Estado da Bahia detém a tutela legal da área, e a ele cabe efetivar as devidas salvaguardas e garantias de proteção do parque. A Associação observa a existência de uma estrada ilegal dentro do parque, construída pela Prefeitura Municipal, que teria sido alvo de dois processos de em-bargos do Inema (502/2006 e 005748/2007) e de uma série de denúncias formalizadas, sem qualquer indício de conclusão do processo adminis-trativo por parte do órgão do meio ambiente do Estado. Além dos im-pactos ambientais, a estrada estaria provocando conflitos sociofundiários para além da ampliação da matriz energética e a franca entrada de caça-dores na área do parque. A diretora do Inema Jeanne Sofia Florence,informa que não há conhe-cimento oficial do órgão sobre a instalação de unidades de medição dos ventos dentro do perímetro do parque. Assim, como conflitos fundiários envolvendo terras do Estado que integram a área. “Não nos foi solicitada a instalação de nenhuma torre na poligonal. Assim como não tem chega-do até o Inema tais informações”, observa.O gestor do Parque Estadual de Morro do Chapéu, Tadeu Valverde, infor-

ma que a denúncia das irregularidades foi feita junto ao Ministério Pú-blico e ao Inema, em 2011. Na época, existiam oito torres de medição instaladas sem licenciamento em área do parque. O licenciamento te-ria sido solicitado um ano depois, e concedido pelo governo do Estado. A anuência do Estado era determinante para que a empresa responsável pela instalação das torres pudesse participar de licitação da Aneel. “Não somos contra a energia eólica. Muito pelo contrário. As empresas que estão cumprindo a legislação vieram para ficar. O município tem seis mil quilômetros quadrados, quases todos bons para a geração de energia eó-lica. Por que então se utilizar de área do parque?”, questiona Valverde. De acordo com o coordenador da brigada de combate a incêndios flores-tais do município, Jaime Matos, muitas fazendas no entorno do parque possuem fundos de pasto que penetram as áreas delimitadas pela poli-gonal. Algumas dessas fazendas teriam sido compradas e os fundos de pastos cercados, fatiados e vendidos. Fundo de pasto é um modo tradicio-nal de criar animais, em que a gestão da terra e de outros recursos na-turais articula terrenos familiares e áreas de uso comum para pastagem nativa. Os lotes fatiados teriam sido vendidos para pequenos produtores que estariam instalados dentro da área do parque.

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PARQUE FOI CRIADO EM 1973O Parque Estadual de Morro do Chapéu conta com 46 mil hectares. Foi criado simbolicamente em 1973, na gestão do então governador Antonio Carlos Magalhães, com a consultoria do arquiteto-paisagista Burle Max, dentre outros especialistas. Em 1998, após estudo realizado pela Ecoplam – Empresa de Consultoria e Planejamento Ambiental, responsável por ba-lizar a definição estrutural do parque, o governador baiano Paulo Souto instituiu na região três unidades de conservação ambiental: o Parque de Morro do Chapéu, com característica de proteção ambiental integral; a Área de Proteção Ambiental (APA) Gruta dos Brejões, identificada como área de desenvolvimento ambiental, portanto compatível com outras ativi-dades socioeconômicas; e o Monumento Natural Cachoeira do Ferro Doi-do, também de preservação integral. O decreto que oficializou a existência do parque é o de n º 7.413, de 17 de agosto de 1998, com a definição de sua poligonal, que continua vigente até novo ordenamento.No ano de 2005, a antiga Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Hídricos do Estado – Semarh contratou estudo detalhado à Universidade Estadual de Feira de Santana, com o mapeamento não só dos recursos ambientais e hídricos, como também de sítios arqueológicos. Porém, nenhuma das três áreas ainda hoje possui plano de manejo, regularização fundiária nem o zoneamento ecológico/econômico. Sendo categorizada como unidade de conservação de proteção integral, ou seja, com restrição de uso, o Minis-tério Público e os ambientalistas entendem o Parque Estadual Morro do Chapéu como uma Zona Livre de Parques Eólicos (Zolpe).

A reivindicação de um plano de manejo é antiga. O plano é o que efetiva-mente tira o parque do “papel”. Segundo o secretário da Associação de Condutores de Visitantes de Morro do Chapéu, Luiz Dourado, um dia após a solicitação ao secretário estadual do Meio Ambiente, Eugênio Spengler, da regulamentação das UCs e, em especial, a proteção do parque contra queimadas e a instalação de torres irregulares de medição de ventos, o vice--governador Otto Alencar, no exercício interino como governador, publicou o decreto nº 12.744, em 12 de abril de 2011, tornando nula a criação do parque. A Associação entrou com uma ação civil pública junto ao Ministério Público, solicitando a revogação do decreto, alegando a não realização de procedimen-tos normativos, como audiências públicas prévias, estudos e a análise do as-sunto pela Assembleia Legislativa do Estado da Bahia. No dia 2 de maio do mesmo ano, o governador Jaques Wagner extinguiu o decreto de 12 de abril, tornando sem efeito a extinção do parque. A expectativa está hoje na rede-finição da nova poligonal por parte do governo do Estado, o que não poderá resultar, de acordo com a Lei 9.985/2000 e o seu decreto regulamentador nº 4.340/2002, numa área menor do que atual.“Há a expectativa de que no segundo semestre deste ano a proposta de nova poligonal do parque seja analisada e votada pela Assembleia Legislativa Esta-dual. Uma vez aprovada, logo em seguida será definido o plano de manejo do parque, o que levará à eliminação dos aspectos que têm levado à fragilização do trabalho de proteção ambiental dentro da poligonal ao longo de todo esse tempo, desde sua criação em 1998”, informa a diretora do Inema-Bahia, Je-anne Sofia Florence.

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DEVASTAÇÃO DA FAUNA E FLORANa visão de Jaime Matos, a preocupação da po-pulação local é, principalmente, com a devasta-ção, grilagem e incêndios que têm surgido por conta do desmatamento para a instalação de torres de medição e que certamente se intensi-ficarão com a instalação das torres de geração. Ele conta que a brigada de incêndio foi mobi-lizada para apagar um fogo dentro do parque. No dia seguinte, alguns dos seus componentes voltaram ao lugar para verificar se havia algum foco residual. No local, tinha sido deixada uma estrutura completa de uma torre de medição de ventos, instalada logo em seguida. “Ou seja, trata-se de terras do Estado dentro de um par-que. Aí vem uma empresa, instala uma torre e finca uma placa afirmando sua propriedade”, informa Luiz Dourado. A preocupação com os danos à fauna e à flora do parque é grande por parte dos ambienta-listas. A fauna da região é variada em razão da diversidade de vegetação: arara canaans, pa-pagaio baiano (é encontrado na Serra das Ara-ras, do Badeco e Salgado), periquitos, cardeal, capivara, coelho, lagarto, gavião, aracuã, jacu, pato, veado, onça, colibri dourado, etc. O colibri dourado foi alvo, inclusive, de pesquisa do fale-cido ambientalista e estudioso Alfredo Ruschi, que tinha identificado, em 1963, sua presença apenas no município. Hoje, sabe-se que é pos-sível encontrar exemplares deste beija-flor em outros lugares, como em Vitória da Conquista, também município baiano. Em ofício encaminhado à Associação dos Con-dutores de Visitantes de Morro do Chapéu, em

2001, por Rolando Morato, coordenador do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Carnívoros, órgão do Ministério do Meio Ambiente, o Parque Estadual de Morro do Chapéu é peça-chave no trabalho de preserva-ção de felinos de grande porte, em especial da onça pintada, nativa dessa região. O parque está no enclave de um conjunto de corredores para circulação de felinos. Para especialistas, Morro do Chapéu possui a maior concentração e diversidade de cactos da Bahia, uma planta que armazena água, sendo de grande utilidade para a vida animal. So-mente lá é possível encontrar a espécie me-locactus albicephalus, cujo cefálio (cabeça) branco puro contrasta com as flores cor fúc-sia. A região abriga ainda umas das maiores concentrações de orquídeas da Bahia. A Cat-tleya Tenuis, com suas flores verde-amarron-zadas e labelo rosa, é encontrada apenas nas localidades de Angico e Cristal, no município, sendo motivo de peregrinação de orquidófilos japoneses, alemães e franceses.

PRINCIPAIS SUB-BACIASDA BAHIAMas a preocupação dos ambientalistas locais não recai somente sobre a fauna e a flora exis-tentes no perímetro do parque. A atenção está também nos possíveis impactos de tais projetos nos recursos hídricos. A região de Morro do Cha-péu é considerada “caixa d’água” das principais bacias hidrográficas da Bahia. Estudos desen-volvidos pela Universidade Estadual de Feira de Santana – Uefs, em 2005, apontam a existência de 546 nascentes e áreas de recargas hídricas na área, pertencentes a quatro sub-bacias: dos rios Jacaré e Salitre, que deságuam no rio São Fran-cisco; e Utinga e Jacuípe, que aportam águas no rio Paraguaçu. “Quem guarda as águas são as montanhas. Se houver decapeamento da serra e seu seio for fu-rado, será afetada a área de recarga das sub-ba-cias. E aí nos questionamos: por que a instalação de tais torres dentro do parque? Para aproveitar as serras. Mas, como me disse o grande geó-grafo e ecólogo Aziz Ab’Sáber, precisamos evitar

Jaime Matos: fundo de pasto de

pequenos produtores penetra na área

delimitada na poligonal.

O parque possui a maior concentração e

diversidade de cactus da Bahia

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que espaços como um parque ambiental desta magnitude sejam transfor-mados em ‘mercadorias’ para favorecer grupos minoritários ilegais, em detrimento dos lídimos direitos da maioria, com alcance nas gerações fu-turas”, afirma Luiz Dourado. A preocupação da sua entidade ambientalista se sustenta no fato de que uma torre de geração de energia eólica, com 140 metros de altura, por exemplo, pesa 10 toneladas de ferro, exigindo grande movimentação de veículos, 300 caçambas de concreto e um hec-

tare no seu entorno limpo, o que representa uma considerável supressão de vegetação. Segundo Márcio Brito, um dos fundadores da ACV-MC, da Associação Ami-gos da Natureza de Morro do Chapéu e funcionário da Biblioteca Municipal, o movimento de abertura de estradas para a colocação de uma única torre de medição já destruiu uma das nascentes do rio Salitre. “As estradas são muito largas. Por elas precisam passar carretas com mais de 43 metros

de comprimento, exigindo uma grande supres-são vegetal. O solo compactado cria uma cama-da impermeável. A vegetação local é de serrado (tabuleiro), de difícil reposição. Isso sem falar que as estradas tornaram o acesso ao parque mais fácil, o que tem representado o aumento considerável da caça”, observa. Já de acordo com o gestor do parque, Tadeu Valverde, várias nascentes foram aterradas, além das mais visí-veis a olho nu. Para os ambientalistas locais, o fato de existir a previsão de instalação de cerca de três mil torres de geração de energia eólica na região de Morro do Chapéu e adjacências não torna aceitável que sejam colocadas algumas dessas torres dentro da área dominial do Estado, no polígono do par-que, considerado uma unidade de conservação de proteção integral. No entender da Associação de Condutores de Visitantes de Morro do Cha-péu, não há fundamentação técnica, científica e o necessário amparo jurídico para ocupação de área pertencente ao parque.

REGIÃO É RICA EM SÍTIOS ARQUEOLÓGICOSEstima-se que na região de Morro do Chapéu exis-tam mais de 200 sítios arqueológicos com pinturas rupestres. Para o professor de Antropologia da Uni-versidade Federal da Bahia, Carlos Etchevarne, tais sítios representam um imenso valor histórico do-cumental sobre os grupos humanos pré-coloniais. “São bens patrimoniais coletivos não renováveis, protegidos por legislação federal. É nosso parecer que nos procedimentos relativos ao traçado dos no-vos limites do Parque Estadual de Morro do Chapéu seja incluído, impreterivelmente, o levantamento de sítios dessa natureza e que seja prevista a confecção de um corpus de diretrizes técnico-científicas especí-ficas para a preservação desses locais, como legado para as futuras gerações de brasileiros”, informa.A análise do professor Etchevarne foi solicitada pela Associação dos Condutores de Visitantes de Mor-ro do Chapéu, preocupada com o destino dos sítios arqueológicos com pinturas rupestres da região, não considerados até então pelos estudos realiza-dos para a nova delimitação do Parque Estadual, a ser implementada pelo governo do Estado da Bahia, de acordo com o decreto nº 12.810, de 2 de maio de 2011. Conforme a lei federal nº 3.924, que rege mo-numentos arqueológicos, o patrimônio arqueológico pré-histórico é considerado bem material perten-cente à União.

A ideia do governo estadual é que seja definida uma nova poligonal do parque. Além da incorpo-ração dos sítios arqueológicos, a Associação dos Condutores de Visitantes de Morro do Chapéu propõe a inclusão na área delimitadora do parque das nascentes importantes do rio Salitre: Boca da Madeira, Carro Quebrado, Covão, Covãozinho, Ja-carezinho. Essa proposta foi entregue oficialmente pela Associação ao Inema, em dezembro de 2011, por ocasião de consulta pública realizada em Mor-ro do Chapéu.

Estimativa de pesquisadores é

de que existam cerca de 200

sítios arqueológicos na região

Marcio Brito: abertura de estrada

destruiu uma das nascentes do

rio Salitre

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“O que desejamos não é defesa parcializada do meio ambiente, de forma radical e desarrazoa-da. Mas, sim, uma proposição em sintonia com a sustentabilidade socioambiental, a partir da inclusão de arranjos produtivos relacionados à própria gestão do parque, com repartição múl-tipla de benefícios permanentes, num ciclo vir-tuoso e de grande alcance socioambiental. O de-senvolvimento econômico não pode se contrapor aos valores de vida existentes nos ecossistemas de relevância incalculável que a natureza nos oferece em toda a sua biodiversidade, garantido ao homem a qualidade do ar, da água, da terra e dos recursos naturais”, afirma Luiz Dourado.

RIO SALITRE RECEBE INVESTIMENTOS PARA SUA RECUPERAÇÃOÚnico afluente perene no submédio do rio São Francisco, que corta a chamada Região dos Lagos, o rio Salitre tem seu fluxo de água hoje intermiten-te, por conta da devastação das áreas próximas às suas margens. Segundo o presidente do Comitê do Rio Salitre, Almacks Luiz Silva, o aterramento de algumas de suas nascentes só faz agravar um qua-dro que vem despertando preocupação dentro do

próprio Comitê da Bacia do São Francisco. De 2012 a julho de 2013, o rio recebeu investimen-tos da ordem de R$ 838 mil do CBHSF, para a re-alização de uma primeira etapa de recuperação e cercamento de suas nascentes e construção de bar-raginhas de contenção para que não haja carreamen-to das margens, contendo a erosão e o assoreamento do rio. Os recursos são oriundos da cobrança pelo uso das águas do rio São Francisco. Em setembro deste ano, deve ser iniciada a segunda etapa do projeto, que prevê um aporte de R$ 1.260 milhão. Será realizado o trabalho de cercamento e

recomposição da Área de Preservação Permanente (APP), que contempla 30 metros de cada margem do rio, estendendo-se de Morro do Chapéu, onde nasce o Salitre, até o município de Várzea Grande. Espécies nati-vas serão plantadas nas áreas degradadas, juntamente com árvores frutíferas, para garantir renda para as po-pulações locais. A região do submédio do rio São Francisco se estende de Remanso até Paulo Afonso. No dia 19 de julho, a Câ-mara Consultiva da Região do Submédio se reuniu na cidade de Paulo Afonso para decidir sobre os investi-mentos a serem realizados no próximo ano.

AMBIENTALISTAS TÊM PROPOSTA PARA MANEJO DO PARQUEA alternativa apresentada pela Associação de Condutores de Visitantes para por fim aos conflitos de interesses entre a preservação do Parque Estadual Morro do Chapéu e a instalação de usinas de energia eólica está baseada, segundo o seu secretário, Luiz Dourado, na compatibilização de fatores vocacionais e prioritá-rios da região, a partir de um planejamento estratégico a ser elaborado, englo-bando três vetores:1) A definição do plano de manejo tirando do “papel” as três unidades de conser-vação, incluindo o monumento natural Cachoeira do Ferro Doido, a partir de um modelo de inserção social que preveja o processo de participação e cogerência das três unidades;2) A formatação e consolidação do polo turístico de Morro do Chapéu, a partir dos atrativos naturais do parque, em associação ao polo de Lençóis e adjacên-cias, formando um cluster turístico na Chapada Diamantina. A ideia é aproveitar o potencial turístico do lugar na linha do ecoturismo de baixo impacto e alta res-ponsabilidade socioambiental, em segmentos como turismo cênico, paisagístico, bird watching, aventura, cultural e científico;3) Atendimento dos empreendimentos eólicos dentro da estrita legalidade;No entender da Associação, a monumentalização (definição do modelo de mane-jo) do parque servirá para congregar vários setores em torno da ideia do aprovei-tamento turístico da Chapada, tido como um dos mais promissores e relevantes da Bahia, ainda insuficientemente explorado, com amplo espectro de possibilida-des em razão dos atrativos turísticos singulares. “A ideia é que seja traçado um planejamento estratégico para a região que garan-ta a este arranjo um amplo espectro de repartição de benefícios, com o resgate socioambiental (injustiça socioambiental), a promoção e a inserção da popula-ção mais necessitada, de forma criteriosa, eliminando a intromissão nefasta de atravessadores e especuladores oportunistas, de expropriadores mesmos, como sempre tem ocorrido”, sugere Dourado.

Para os ambientalistas locais, falta

amparo jurídico para ocupação do

parque com projetos eólicos

Luiz Dourado: ideal é que seja

traçado um planejamento

estratégico para a região.

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Mais energia para garantir o crescimento sustentado do Brasil. Essa máxima em torno do modelo de desenvolvimento adotado no país está por trás da decisão governamental de instalar quatro novas usinas nucleares no território brasileiro, definida no Plano de Ex-

pansão da Oferta de Energia Elétrica até 2030. Segundo a Eletronuclear, em-presa estatal vinculada ao governo federal, as duas próximas usinas nucleares brasileiras serão construídas no Nordeste, às margens do rio São Francisco. A decisão vem carregada de controvérsias em torno da adoção de uma tecnologia de produção de energia em crescente desuso nos países centrais, em razão dos seus conhecidos riscos, de sua possível instalação na região sem o esclareci-mento e a consulta prévia das populações, passando pela preocupação com a saúde dos ecossistemas do “Velho Chico”. Para os especialistas, o temor em torno da iminência de “apagões” tem ga-rantido a pouca transparência na abordagem governamental do tema, sob a promessa de se trazer o progresso e a criação de empregos para o semiárido brasileiro. Mas, na forma e no conteúdo, as polêmicas são tão amplas quanto intensas. A reativação do Programa Nuclear Brasileiro foi decidida pelo Con-selho Nacional de Política Energética – CNPE, em reunião no mês de junho de 2007, que contou com a presença de dez integrantes, a maioria ministros de Estado. A principal ausência foi a da então ministra do Meio Ambiente, Mari-na Silva. A reclamação mais frequente remete à falta de uma discussão mais abrangente sobre o tema com setores da academia, cientistas e organizações da sociedade civil. O programa nuclear brasileiro foi adotado inicialmente du-rante o regime militar e se mantém ligado a setores que apoiam o uso militar da tecnologia atômica. Para o presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, Ani-valdo de Miranda Pinto, todo processo que envolve o cotidiano de milhares de pessoas e a possibilidade ainda que remota de grandes impactos ambientais requer um amplo debate esclarecedor, antes que medidas efetivas sejam to-madas. “Um pressuposto básico da democracia é a participação dos cidadãos, que deve se dar associada ao direito à informação. É essa relação que sustenta a confiança, fator indispensável a todo projeto desta natureza”, diz. Segundo ele, a expectativa é que amplos debates e processos de consulta popular ocorram em torno do polêmico projeto de instalação de usinas nucleares na bacia do São Francisco. “Além do mais –complementa- independente da questão primor-dial que é saber se as populações interessadas aceitam ou não a implantação dessas usinas, ainda restarão muitas questões bastante complexas a resolver, como, por exemplo, a escolha do tipo de tecnologia a ser utilizada e que impli-cam em enorme potencial de discussão, haja vista a importância que têm na maior ou menor sustentabilidade econômica e ambiental do projeto.” O assessor da presidência da Eletronuclear, Dráusio Atalla, confirma que estu-dos vêm sendo realizados, mas ainda não há uma definição final. Apesar de não existir decisão sobre a localização exata das duas usinas no Nordeste, sabe-se que os estados da Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe fazem parte dos es-tudos preliminares. No entender do professor associado do Departamento de Engenharia Elétrica da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE, o enge-nheiro nuclear Heitor Scalambrini Costa, a decisão de retomada do Programa Nuclear Brasileiro foi uma medida, no mínimo, equivocada, “já que o país dis-põe de recursos renováveis abundantes e diversos que podem atender a uma demanda eficientizada, sem desperdícios e com geração descentralizada, além da complementariedade entre as diversas fontes energéticas renováveis. Não há, portanto, razões para investir em energia nuclear no Brasil”.

ENERGIA NUCLEARTEXTO: FRED BURGOS | ILUSTRAÇÃO: JORGE MARTINS

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ENERGIA NUCLEARCUSTOS SOCIOAMBIENTAISSegundo o dirigente do Grupo Ambientalista da Bahia – Gambá, Renato Cunha, o Brasil possui um amplo território e um rico potencial de fontes renováveis de ener-gia que podem, associadas, contribuir para resolver o problema da oferta energéti-ca. “É fundamental que sejam incluídos em projetos dessa natureza os custos socio-ambientais. O São Francisco tem uma vocação histórica para a agricultura e a pesca sustentável. É importante que sejam pensadas alternativas que não colidam com as histórias dos lugares e, para isso, é fundamental que haja transparência na gestão dos recursos naturais”, afirma. Cunha avalia que uma das questões negligenciadas na matriz energética nacional é a eficiência atual do sistema. “Se potencializarmos as hidroelétricas existentes no seu total, teremos algo equivalente a uma nova Itaipu. Estudos mostram que é pos-sível trocar turbinas antigas por mais modernas e eficientes ou mesmo adicionar uma nova turbina, além de se investir na minimização de altas perdas registradas no processo de transmissão de energia”, sugere. Pesquisador titular da Fundação Joaquim Nabuco e membro do Fórum Interinstitu-cional de Defesa do Rio São Francisco, João Suassuna observa que há aqueles que defendem o uso de tecnologia nuclear como segura e produtora de energia limpa, mas os acidentes ocorridos nas usinas de Three Miles Islands, nos Estados Unidos; Chernobyl, na extinta União Soviética; e Fukushima, no Japão, sinalizam um grave risco que não se pode deixar de levar em conta. Centro do pior acidente nuclear já ocorrido, Chernobyl, hoje uma cidade-fantasma localizada no norte da Ucrânia, foi o ponto de origem da tragédia que resultou na morte de mais de quatro mil pessoas, em razão de um erro humano que liberou, em 26 de abril de 1986, uma imensa nuvem radioativa, contaminando seres humanos, animais e o meio ambiente de um grande área da Europa. Suassuna avalia que o risco de acidente é um temor permanente para as comunidades mais próximas às centrais nucleares. Dráusio Atalla, da Eletronuclear, afirma que, em razão de uma “inflação dos da-dos” sobre tais acidentes e do impacto no imaginário coletivo das bombas atômicas jogadas nas cidades japonesas Hiroshima e Nagasaki, o temor nuclear virou um “dogma”. Ele informa que relatórios da Organização das Nações Unidas – ONU dão conta de que menos de 60 pessoas morreram em razão do acidente em Chernobyl, contra as 4.000 mortes de “fontes não confiáveis”. “Em Three Miles Island houve apenas uma morte, por acidente de carro. E em Fukushima, onde ocorreu a entrada em fusão de três reatores, nenhuma pessoa morreu”, diz, completando que a ge-ração de energia nuclear “é cercada por um aparato tecnológico de segurança não encontrado em nenhum outro setor”. Mas as controvérsias em torno da decisão de instalação de usinas nucleares no Nordeste não se atêm apenas aos riscos de acidentes. A geração do chamado “lixo atômico”, resíduo produzido no processo de geração de energia nuclear, é outro as-pecto. Heitor Scalambrini Costa observa que, toda vez que se gera energia, produz--se impactos. Mas a questão nuclear é, acima de tudo, ética. “O desenvolvimento sustentável, na sua definição clássica, sugere que preservemos hoje para o desfrute de gerações futuras. Porém, a energia nuclear cria o problema hoje para o amanhã”. Segundo ele, não existe tecnologia no mundo capaz de lidar com o chamado lixo atômico. Esses dois aspectos associados têm feito com que países como a Alema-nha, Itália, Áustria, Bélgica e Japão venham abolindo ou estudando a eliminação da tecnologia de suas matrizes energéticas. Atalla, por sua vez, aponta os investimentos que estão sendo feitos continuamente em tecnologias para a segurança no acondicionamento seguro dos resíduos e no seu reaproveitamento ou mesmo na sua conversão em elementos químicos com baixo ou nenhum efeito radioativo. “O que falta na discussão do rejeito é a percepção do tempo, em um cenário de grandes avanços tecnológicos contínuos”, avalia. Mas, enquanto as tecnologias atuais não garantem uma solução efetiva, a preocupação das pessoas se mantém em alta.

Mais um dilema para o “Velho Chico”

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Suassuna conta que membros do Fórum Interinstitucional de Defesa do Rio São Francisco em Pernambuco realizaram, recentemente, reuniões com a po-pulação de Itacuruba, município pernambucano com cerca de 4.500 habitantes, um dos possíveis candidatos a abrigar uma das duas usinas nucleares. A cida-de margeia o rio São Francisco, está a cerca de 50 km do complexo hidroelé-trico de Paulo Afonso e a aproximadamente 110 km do Raso da Catarina, que abriga uma reserva ecológica do Ibama, onde se especula que possa vir a ser o depósito do lixo gerado na futura usina. “Esclarecemos à população quais os impactos possíveis com a instalação da central nuclear no município. Houve uma revolta geral e, atualmente, ninguém quer mais que o projeto seja instala-do lá. A população tem que ser ouvida e dar a sua posição, já que é ela quem vai sentir primeiro os eventuais benefícios e malefícios”, afirma. Mas além de aspectos gerais, que podem afetar qualquer lugar, há questões específicas que impactam diretamente o rio São Francisco. Como outras usi-nas termoelétricas, as centrais nucleares necessitam de grandes volumes de água para refrigeração e geração de vapor. Do ponto de vista de vazão do rio, não há grande impacto, já que a água é devolvida ao seu curso. Po-rém, ao ser devolvida, a água aquecida pode destruir o delicado equilíbrio biológico das águas do “Velho Chico”. Isso porque ela volta ao rio com uma temperatura até cinco graus acima da água do meio ambiente, o que pode matar plânctons e outros organismos, causando um efeito em cadeia devi-do à interdependência dos ecossistemas.

FALSA RETÓRICAAs promessas de emprego e renda não passam incólumes por críticas. As es-timativas atuais dão conta de que para a construção de cada uma das duas usinas serão necessários cerca de R$ 10 bilhões, para a geração de 1350 MW após seis anos, tempo necessário ao início de operação. Dados do Greenpeace, organização internacional de defesa do meio ambiente, avaliam que os recur-sos gastos para a produção de energia nuclear podem gerar o dobro da quanti-dade de energia se forem investidos em energia eólica, e quatro vezes mais se investidos em eficiência energética. “Com o mesmo volume de recursos, seria

possível garantir a instalação de energia solar fotovoltaica em um milhão de residências”, estima Heitor Scalambrini Costa.Em uma região com poucas alternativas de geração de emprego e renda, a promessa de investimentos dessa ordem pode gerar expectativas elevadas. Mas um investimento de R$ 10 bilhões em uma usina nuclear tende a gerar poucos em-pregos, em razão do uso intensivo de tecnologia, concordam Scalambrini e Cunha. “Do ponto de vista da empregabilidade e dos ganhos financeiros para o mu-nicípio e estado que abrigarem a usina nuclear, há uma falsa retórica de que os investimentos automaticamente favoreceriam os moradores do entorno de tais instalações”, afirma Scalambrini. No site do Greenpeace, há informações de que, na Alemanha, para cada emprego direto gerado pela indústria nuclear, a geração de energia eólica produzia, até recentemente, 32 empregos e a solar, 1.426. No entender de Dráusio Atalla, um empreendimento como o de uma usina nu-clear não pode se resumir apenas à geração de energia. “É preciso que seja construída uma governança com a participação de todas as esferas envolvidas direta e indiretamente com o projeto, para que aconteça uma ocupação do solo voltada à criação de oportunidades, que passem pelo eixo de controle e preser-vação ambiental, mas também pela geração de renda e emprego”, diz. No seu entender, são poucas as possibilidades para que as regiões que estão sendo avaliadas recebam um volume de investimentos dessa ordem e grandeza.Com frequência, a defesa da energia nuclear adota o argumento de que se tra-ta de uma energia renovável, com baixo impacto no efeito estufa, responsável pelo aquecimento da atmosfera. Dados da Agência Internacional de Energia Atômica – AIEA, ao considerarem todo o ciclo produtivo – desde a mineração do urânio, o transporte, o enriquecimento, a posterior desmontagem do reator (descomissionamento) e o processamento e confinamento dos rejeitos radioa-tivos – apontam que a alternativa nuclear produz entre 30 e 60 gramas de CO2 por kWh gerado. Já de acordo com a metodologia de Storm e Smith, adotada mundialmente para o cálculo de emissões de carbono pela produção de ener-gia nuclear, o ciclo de geração por fontes nucleares emite de 150 g a 400 g CO2/kWh, enquanto o ciclo para geradores eólicos emite de 10 a 50 g CO2/kWh. A expectativa do Comitê do São Francisco, afirma o presidente Anivaldo Miran-

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da, é que um amplo debate aconteça, municiando as populações ribeirinhas com informações que lhes garantam o direito a uma decisão consciente sobre a questão.

OS RISCOS VÃO ALÉM DA VIDA ÚTIL DA USINAOs riscos de acidentes em uma usina nuclear e o armazenamento do lixo produzido e dos resíduos que sobram após a sua desativação estão entre as principais preocupações em torno da tecnologia atômica. A liberação de material radioativo é o que de pior pode acontecer em uma usina nuclear. Um dos elementos gerados no processo de produção de energia nuclear, o plutônio 239, precisa de 24 mil anos para que a sua massa – e consequentemente seus efeitos – seja reduzida à metade. O material radioativo liberado no meio ambiente pode conta-minar pessoas, animais, água, solo e ar. “Esta é a grande e maior preocupação: a vidas das pessoas e dos seres vivos, de uma maneira geral, que podem ser atingidos até onde os elementos químicos que foram liberados para o meio ambien-te puderem chegar”, afirma o engenheiro nuclear Heitor Scalambrini Costa. A amplitude dos efeitos é relativa a um conjunto de aspectos que dizem respeito às condições atmosfé-ricas. No caso do acidente de Chernobyl, em 1986, a sede da usina ficava na Geórgia, mas os efeitos da nuvem radioativa foram sentidos em Portugal, a uma distância de mais de 5.700 quilômetros. “Muitos desses elementos químicos acabam se instalando

nos ossos, afetando a medula óssea, na tireoide, entre outras partes do organismo humano. Daí por que, geralmente, o número de mortes ime-diatas após o acidente é relativamente pe-queno em relação a outros tipos de acidentes. Todavia, as mortes ocorrerão ao longo de dé-cadas”, afirma Scalambrini.O ciclo do combustível nuclear começa com a mi-neração e se estende até o final da vida produtiva da usina. As insuficiências tecnológicas no arma-zenamento dos resíduos gerados na produção nuclear têm mobilizado a atenção de comunida-des em todo o mundo. A ausência de tecnologia apropriada tem feito com que os resíduos sejam armazenados em locais em que o seu vazamento pode, no futuro, ameaçar o meio ambiente. Alguns países têm despejado seu lixo atômico no fundo do mar, em contêineres. Outros têm armazenado em minas abandonadas de sal, que também são alta-mente corrosivas. Assessor da presidência da Eletronuclear, estatal responsável por construir e operar usinas termo-nucleares no Brasil, Dráusio Atalla avalia que a pre-ocupação com os resíduos produtivos é superesti-mada. “Angra II, uma das maiores usinas nucleares do mundo, gera de rejeitos por ano de 5 m3 a 6 m3, algo do tamanho de uma Kombi. Toda a usina é planejada e construída para abrigar com a máxima segurança esses resíduos”, afirma. Por outro lado, a palavra “descomissionamento” tem preocupado populações nos lugares onde se planeja armazenar o resíduo final após uma usina nuclear ser desativada. A vida útil média de uma central nuclear é de 25 anos, podendo chegar a 40 anos. Ao final de sua vida, não se trata só de desligar a tomada, como advertem os especialistas. O des-mantelamento de uma usina pode gerar milhões de quilos de rejeitos, altamente contaminados. Atalla informa que o “descomissionamento” de uma usina contempla as etapas de desmantela-mento, descontaminação e guarda. “O que sobra pode ser armazenado ou servir para construção de outra usina. O que não pode ser descontaminado é guardado em um ambiente seguro e controlável”, diz. Ele observa que uma usina demora cerca de dez anos para ser construída e entrar em ope-ração. Sua vida útil é de, em média, 40 anos, mas pode chegar a 60 anos. “Fala-se já em vida útil de 80 anos. Investimentos intensos têm sido feitos em torno das melhores tecnologias de segurança e mesmo de transmutação de resíduos em elemen-tos não radioativos. Cada usina em operação reser-va parte de sua receita para lidar com seus rejeitos e mesmo de ‘descomissionamento’”, informa. Em 2006, portanto um ano antes da decisão de re-tomada do Programa Nuclear Brasileiro, relatório da Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimen-to Sustentável da Câmara dos Deputados afirmava que o Estado brasileiro está longe de ter a estrutura necessária para garantir a segurança das ativida-

des e instalações nucleares. João Suassuna lembra o acidente ocorrido em 1987 – contaminação com o Césio 137, em Goiânia (GO). “Milhares de pesso-as foram contaminadas neste que ficou conhecido com o maior acidente radiológico do mundo”, afir-ma. O acidente se deu não em uma usina nuclear, mas a partir de um aparelho utilizado em radiote-rapias. O seu mau acondicionamento, que permitiu que catadores de ferro velho tivessem acesso ao instrumento, tornou-se um exemplo da ausência de políticas de segurança na área.

O IMPACTO NAS ÁGUAS DO SÃO FRANCISCOUma das preocupações recorrentes trazidas pela possibilidade de instalação de usinas nucleares é a de contaminação das águas do rio São Francisco, já afetadas ao longo de séculos pelo descuido com o seu manejo. Segundo Heitor Scalambrini, do pon-to de vista da radioatividade, o risco é pequeno, já que nos reatores existem circuitos independentes por onde circula a água. “O chamado circuito pri-mário com água radioativa é altamente perigoso e fica restrito ao interior dos reatores. Há ainda os circuitos secundários, onde a água que circula não oferece perigo de radiação e é devolvida à sua origem”, informa.O problema levantado pelos estudiosos é que essa água, cuja função é circular nos equipamentos para refrigerá-los, é devolvida para o meio ambiente mais quente entre 30 e 50 graus, podendo chegar a gradientes maiores em relação à temperatura ambiente. Apesar de não existirem estudos con-clusivos sobre os malefícios que podem causar ao rio, à sua fauna e flora, pesquisas apontam que na região de retorno da água mais quente há o desa-parecimento de várias espécies vegetais e animais. Por outro lado, aponta Scalambrini, há a indicação de que em Angra dos Reis (onde estão situadas as usinas Angra I e Angra II) houve o surgimento de tartarugas que até então tinham desaparecido do local. Mas tartarugas possuem um espaço territo-rial muito amplo, não se resumindo à área próxima onde são despejadas as águas das usinas. Nas tecnologias convencionais, as usinas nucleares precisam de 40 m3 a 100 m3 por segundo de água para o processo de resfriamento dos reatores, o que representa uma vazão considerável para as condi-ções do rio São Francisco e coloca a escolha da tec-nologia como um dos elementos centrais de qual-quer debate sobre o assunto. Os plânctons, base da cadeia alimentícia de rios e mares, não suportam grandes variações de energia. Estima-se que a vida num raio de 500 metros em torno do local onde são despejadas as águas que saem dos reatores sofre impactos relevantes com o choque térmico contí-nuo. “Creio que, numa relação de custo e benefí-cio, podemos afirmar que esta água devolvida ao rio trará mais problemas do que solução”, conclui Heitor Scalambrini.

Usina japonesa de Fukushima: desastre

serviu como alerta mundial para os peri-

gos da geração de energia nuclear.

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Adeus ao

feijãoA CIDADE DE IRECÊ,

NA BAHIA, LUTA

PARA PRESERVAR O

QUE LHE RESTA EM

RECURSOS HÍDRICOS,

MAS NÃO SABE SE

AINDA É POSSÍVEL

RECUPERAR O

TÍTULO DE “CAPITAL

DO FEIJÃO”

TEXTO: DELANE BARROS.

FOTOS: TIAGO LIMA.

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Irecê, na Bahia, foi criado em 1926 e consi-derado município sete anos depois, por de-creto governamental. O nome da cidade tem origem indígena e significa “pela água, à tona

d’água, à mercê da corrente” e foi escolhido por sua localização, na região do rio São Francisco, con-forme o livro Irecê – Um Pedaço Histórico da Bahia, do escritor Jackson Rubem. Os primeiros habitantes da antiga Lagoa Grande, atual microrregião de Irecê, sobreviviam graças a fontes de água, como cacimbas, aguados, lagoas e tanques.Os migrantes, de acordo com informação corrente junto à população local, viam a região com muito in-teresse, devido à quantidade de água que brotava nas cacimbas. A água, indiretamente, deu o título à cida-de de “capital do feijão”, em virtude de plantações que se espalharam na área rural – cerca de 450 mil hectares de lavouras do produto, especialmente entre os anos de 1980 e 1990. Atualmente, a semente é lembrada na cidade apenas pelo nome da rodovia estadual que corta toda a região, a BA-052, conhecida como Estra-da do Feijão. O feijão, mesmo, desapareceu! Vamos aos fatos: os dois principais afluentes do São Francisco, os rios Verde e Jacaré, so-freram enormemente com a exploração desor-denada, o que afetou de forma bastante grave o lençol freático. Faltou a visão sustentável para o cultivo na região. Não houve a preocu-pação com a sustentabilidade, essencial para a convivência harmônica do ser humano com os recursos naturais. O resultado foi uma grande interferência na agricultura local e a trans-formação do cultivo. De acordo com dados da Secretaria de Agricultura do município, a eco-

nomia da região gira agora em torno das plan-tações de beterraba, cenoura, cebola e tomate. Mesmo assim, numa quantidade bem distante daquela vivenciada nos tempos áureos da “capi-tal do feijão”.Representante da comunidade quilombola dos pe-quenos produtores do Vale Canabrava, Eudisson Barbosa dos Santos, recorda bem a força dos re-cursos naturais da região em época longínqua. “Até a década de 1970, o rio Jacaré era forte, mas, devido às várias barragens clandestinas construídas ao longo do seu leito, a partir de 1985 a água só che-gava para a população com as enchentes e desde essa época vem diminuindo”, relata com o conhe-cimento de quem nasceu na região há mais de 50

anos e de lá nunca saiu. Ele lembra que há cerca de dois séculos sua família tem ligações com a região, desde seus avós e bisavós. “Para quem conheceu a pujança daqui, é muito triste ver esse quadro atu-al”, resume Barbosa.De acordo com seu relato, a força dos dois rios era tanta que não apenas alimentava a popula-ção local, como também atraía as pessoas inte-ressadas em pescar. Segundo o líder quilombo-la, até 1975 ainda se permitia pescar peixes como traíra, farrapes e o iá, entre outros de pequeno e médio porte.

COMEÇO DO FIMO engenheiro agrônomo Joiran Souza Mendes, da Agência Estadual de Defesa Agropecuária da Bahia – Adab, enumera três fatores que levaram ao enfra-quecimento da cultura do feijão no local. “Primeiro, o desestímulo do governo federal que, em meados dos anos 1990 tirou o zoneamento agrícola para a região ou seja, o incentivo oficial; segundo, a proliferação da mosca branca, uma praga altamente devastadora para o feijão e, por fim, a morte dos rios que banham o município”, aponta. De acordo com números oficiais do município, du-rante o auge da “capital do feijão” havia pelo menos 70 mil hectares de área plantada e uma colheita de aproximadamente 800 quilos da leguminosa por hec-tare. Atualmente, não se cultiva nenhuma semente do produto na região.Para reverter a situação, Joiran Mendes considera que o mais viável é a realização do projeto Baixio de

Diante do fim da lavoura do feijão, os

agricultores passaram a investir no

cultivo de beterraba, cenoura, cebola e

tomate.

Rio Jacaré: água só chega à

população quando ocorrem

enchentes.

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Irecê, que consiste numa grande obra hídrica para beneficiamento de toda a re-gião, mas ainda sem os estudos iniciais. “É uma grande luta de toda a região, que ainda está longe de se concretizar”, considera ele, mesmo mantendo as espe-ranças. Segundo o agrônomo, o barramento feito no rio Verde, conhecido como Barragem de Mirorós, que tem gerado conflitos pelo uso das águas, deve ser o caminho para o início do Baixio de Irecê, pois consistiria na construção de um ca-nal estimado em aproximadamente 32 quilômetros de extensão.Dos dois rios em questão, que, juntos, muito contribuíram para dar o título de “capital do feijão” a Irecê, somente um apresenta condições de aprovei-tamento. Quem garante é outro engenheiro agrônomo, Joelson Matos, que inclusive elaborou a proposta de projeto para revitalizar o rio Verde. “Com 340 quilômetros de extensão, o Jacaré está praticamente morto, tornando impos-sível a sua revitalização. O seu leito está rachado e o que corre de água nele representa aproximadamente 30% de toda a sua capacidade”, afirma ele, com a segurança de quem já visitou toda a extensão e as nascentes dos cursos d’águas locais. A exploração comercial sem o devido acompanhamento téc-nico causou interferência no lençol freático dos rios, levando à morte do Rio Jacaré. A “capital do feijão” é coisa do passado. Ninguém mais cultiva a legu-minosa em toda a região.Para Matos, o rio Verde, com seus 270 quilômetros, apresenta condições de revitalização, mesmo dispondo de 60% da água que teria em sua plenitude. O projeto de revitalização elaborado por ele está orçado em cerca de R$ 1,5 milhão e prevê a manutenção, preservação e recuperação das 28 nascentes do rio; ações de educação ambiental, através de palestras e oficinas; constru-ção de viveiros de mudas e recuperação de matas ciliares. Ele destaca que a maioria das nascentes do rio Verde está pisoteada pelo gado, motivo pelo qual há necessidade de recuperação.Atualmente, o Verde abastece a população de Irecê, com uma vazão estimada em 520 litros por segundo. Das suas 28 nascentes, apenas seis ou oito es-tão vivas, conforme informações constantes no documento apresentado pelo

agrônomo. Representante da sociedade civil junto ao Fórum Baiano dos Co-mitês, José Fernandes afirma que o ideal para atender à demanda atual seria uma vazão de aproximadamente 1.300 litros por segundo no rio Verde.Diante de todas as dificuldades, a população de Irecê e região passou a rece-ber água a partir do rio São Francisco, mas a realidade atual do Velho Chico impõe, hoje, um quadro de racionamento. É o que afirma o presidente do Co-mitê da Bacia dos Rios Verde e Jacaré, Ednaldo de Castro Campos. “Isso se deve à baixa da vazão do São Francisco, conforme decisão da Agência Na-cional de Águas – ANA que, em maio último estabeleceu a vazão em 1.100 m³ por segundo e, com isso, provocou o desabastecimento local”, afirma.O engenheiro Pedro Nunes, que em junho último fez uma apresentação refe-rente à atuação da empresa Gama no trabalho de recuperação de rios, expli-ca que a preservação de nascentes é a medida mais importante a ser tomada. Como ações paralelas, ele prevê adequações de estradas rurais, recuperação e conservação de áreas degradadas e a mobilização social como receitas para ten-tar trazer o rio à vida. Membro do CBHSF, o coordenador da Câmara Consultiva Regional (CCR) do Médio São Francisco, Cláudio Pereira da Silva, apela para a sensibilidade, tanto da população quanto dos governantes e daqueles que exploram comercialmente os recursos naturais. “O momento é de grande reflexão para todos nós. Defender a oferta de água é defender a vida, é de-fender gente. Há pessoas que acham que somente com a retirada de água é que acontece a degradação dos rios, mas não é. As pessoas perfuram poços artesianos de forma desordenada e isso é crucial para a manutenção e preservação de rios e todos os seus mananciais”, diz.

Joelson Matos: proposta para

revitalização do rio Verde.

Ednaldo Campos: quadro de

racionamento por causa da

vazão reduzida.

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Uma viagem pela realidade do Baixo São FranciscoFormada por pesquisadores, primeira expedição realizada no Baixo São Francisco analisa problemas enfrentados pela população ribeirinha com a redução da vazão do rio.

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“Estamos no paraíso”, garantiu um guia turístico, ao microfone. “Esqueçam seus problemas”, conclamou o outro, de dentro de seu barco, sob um céu azul-anil e sobre as águas esverdea-das do rio São Francisco. Para o olhar do turista, o que chama atenção, de fato, é a beleza exuberante do Velho Chico. Já para a equipe de pesquisadores que visitou o Baixo para avaliar os impactos provocados pela redução da última vazão na região, mesmo com tantos encantos naturais saltando aos olhos, não há como ficar indiferente às adversidades.A incursão, uma realização conjunta do Comitê da Bacia Hi-

drográfica do São Francisco, por intermédio da Câmara Consul-tiva Regional do Baixo, faz parte da Primeira Campanha de Avaliação do Quadro Socioambiental do Baixo São Francisco, e reuniu oito estudiosos das principais universidades da bacia – Universidade Federal da Bahia – Ufba, Universidade Federal Rural de Pernambuco – UFRPE, Universi-dade Federal de Alagoas – Ufal e Universidade Federal de Sergipe – UFS. Entre 10 e 13 de julho, eles percorreram cerca de 250 quilômetros pelas águas, em dois barcos de alumínio (com seis metros de comprimento e capacidade para cinco pessoas cada um), o Nêgo D’Água e o Água Nova, em viagens que começavam pela manhã e só acabavam ao entardecer. Numa típica peleja nordestina, foram visitadas 25 localidades em Sergi-pe e Alagoas, o que proporcionou um rico levantamento de informações junto aos moradores ribeirinhos. O resultado ganhou formato de docu-mento e será apresentado durante a XXIII Plenária Ordinária do Comitê do São Francisco, que acontece em Salvador, nos dias 19 e 20 de agosto. Doutor em Recursos Hídricos, o professor Antenor Aguiar, da UFS, ob-serva que, com a atual diminuição da vazão para 1.100m3/s, a popula-ção está sendo afetada de diversos modos: “Dificuldades na travessia de balsas, problemas na captação de água para inúmeros fins (huma-no, irrigação), redução maior na atividade pesqueira, entre outros”. Vale destacar que o nível da vazão atual autorizada pelo Ibama – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis e pela ANA – Agência Nacional de Águas está abaixo do mínimo estabelecido no Plano de Recursos Hídricos da Bacia, que é de 1.300 m3/s. Ainda se-gundo o engenheiro agrônomo, “é necessário enfatizar também que os prejuízos poderão ser observados a médio e longo prazos, na dinâmica fluvial e biótica do rio”. O geólogo Luiz Carlos da Silveira Fontes, também da UFS, ressalta que essas mudanças afetam desde a área marginal ao canal, “com a morte das lagoas marginais e suas funções no ciclo de reprodução dos peixes, a proliferação da erosão marginal, com destruição de mata ciliar e terras cultiváveis, até as mudanças no canal fluvial”. Representante da Ufba, a engenheira ambiental Cássia Fernandes Torres chama atenção para o lixo e os dejetos descartados no rio, e sua inevitável poluição. “Com a baixa vazão, a capacidade de autodepuração do rio é agravada com a falta do tratamento dos efluentes, os esgotos que chegam até o rio”, explana. A preocupação veio a partir da observação do lixo acumulado,

Equipe se preparando

em Brejo Grande para

dar início à jornada

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além das algas e da vegetação atípica, como a baronesa, cada vez mais comum nessa parte do Baixo São Francisco. Outro problema grave, o assoreamento, era evidente em todo o percurso. Pre-sidente da ONG Canoa de Tolda, em Brejo Grande, e coordenador da expedição, além de coordenador da CCR do Baixo, Carlos Eduardo Ribeiro Junior afirma que “há cerca de 15 anos, o processo de erosão vem se acelerando”. “Isso acontece muito por conta das plantações de cana-de-açúcar e das fazendas com pasto para criação de gado, além, claro, da redução da vazão”, avisa. A gravidade é tanta que, para conter o assoreamento, os próprios moradores e donos de terras têm colocado pedras nos imensos paredões que se formam nas margens do rio.A equipe foi vítima dessa degradação. Para evitar que a embarcação batesse em um enorme banco de areia, Carlos Eduardo, que guiava o Nêgo D’Água, rebocou o barco por alguns metros. Para a manobra, ele ficou em pé, em pleno São Fran-cisco, com água batendo na altura dos joelhos. No último dia de viagem, mesmo com todo o cuidado, a colisão foi inevitável, e a lancha teve sua hélice danificada. O incidente ocorreu perto do riacho Pau Ferro. O local costumava ser um dos mais fundos da bacia e, desde 2008, vem tendo seu volume de água reduzido.

MORADORES SOFREM COM ADVERSIDADESPara quem vive da navegação na região, a situação tem sido cada vez mais pre-ocupante. Em Neópolis (SE), Jaílson Vieira Feitosa, comandante da balsa San-tana do São Francisco, alerta que o risco de encalhe tem crescido em proporção geométrica, desde a década de 1970. “Eu navegava em barco à vela. Não tinha areia em canto nenhum desse rio, por onde eu andei. O nível de água era alto e a gente conduzia o barco em linha reta. Não pre-cisava ficar fazendo curva, desviando de banco de areia, não”, desabafou ele, que é operador de balsa há 32 anos. “A gente fazia a travessia para Penedo em 10 minutos. Hoje, gastamos 15, 18 minutos”. Em Gararu (SE), Genelita Medeiros é enfática: “O rio está morrendo”. Proprietária de uma pensão no pequeno município, a senhora de 66 anos garante que viu o Velho Chico subir até a pracinha que fica em frente à sua casa. “Já to-mei banho de rio aqui na praça, onde também passava uma lancha. Eu tinha uns 15 anos”, lembra. “Hoje, com a água presa, não acon-tece mais cheia, não. E isso comprometeu a renda das pessoas daqui, que viviam da pes-ca, da plantação de arroz e agora vivem de bolsa”, critica. Ao longo dos anos, o número de hóspedes em sua pensão também dimi-nuiu. Para complementar o rendimento, Ge-nelita vende marmita e quentinha. Após dois dias de pesca no povoado de Boca do Saco, João Batista conseguiu capturar poucos peixes. Para o senhor de 68 anos, morador do município de Pão de Açúcar (AL), a contenção da vazão é fatal. “Tem pei-xe, mas na vazante eles se entocam dentro do

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lodo ou nas pedras. A gente sobrevive disso (da pesca). Eu não tenho ne-nhuma outra fun-

ção pra ganhar dinhei-ro”, diz ele, que é pai de oito filhos. Também ao ver de

João, pescador desde 1979, o trabalho ficou mais difícil após a instalação das barragens. “Depois de Xingó, acabou tudo. Não temos mais cheia. Se não tem cheia, não tem parição, né?”. No povoado de Potengy, Antônio Batista dos Santos reclamava da água capta-da por meio de uma bomba operada pela prefeitura de Piaçabuçu (AL), e que se encontrava imprópria para o consumo. “A água daqui é mesmo que ser a água do mar. De dois anos pra cá foi que piorou. Antes, a água não salgava tan-to, só quando tinha maré grande. Agora, está salgando direto, até na maré bai-xa. Às vezes a água fica tão salobra que não dá nem pra tomar banho”, relata.Na beira do rio, próximo à foz, Maria de Fátima enchia baldes e panelas com a ajuda de dois primos. Eles andaram cerca de dois quilômetros para conseguir a água que serviria para beber e cozinhar. “A gente mora ali no Potengy e tem de vir para cá, pois a água de lá está salgada. A única água boa aqui é essa dessas cacimbas que o povo cava”, explicou, mostrando a contradição que é morar às margens de um rio e ainda assim enfrentar dificuldades para obter água em seu estado ideal para consumo. Já longe da foz, no município de Niterói (SE), Cláudio Torres da Mota abastecia o carro-pipa para levar água à população de Esperança, distante 20 quilôme-tros. No povoado, essa ainda é a única fonte de abastecimento. “Trabalho para o Exército, que comanda a distribuição. Essa água é para o povo beber. A gen-

te coloca em cisternas”, disse o motorista. Ele segurava um pote de cloro, que seria usado para tratar a água. “A grande ironia é que a população ribeirinha não tem água boa para be-ber, ao contrário da ideia que se divulga Brasil afora”, destaca o professor Luiz Carlos Fontes. De acordo com Marcus Vinicius Polignano, professor do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), essa deficiência, aliada à falta de saneamento básico, reflete diretamente na saúde dos moradores locais. “Vamos levantar informações para saber quais são as doenças de maior inci-dência nessa região. Mas, de antemão, é provável que a população desenvolva doenças crônicas (hipertensão, diabetes, cardiopatias), além de diarreia, di-senteria e cólera”. A condição surpreendeu até mesmo os estudiosos, acostumados a lidar com situações-limite. “Estamos na segunda década do século XXI. Não podemos mais aceitar esse modo de vida”, criticou Antenor Aguiar. Já Polignano foi cer-teiro: “A deterioração do rio se reflete na deterioração de seu povo”. Para eles, a experiência foi transformadora. “Esse povo sofrido sabe fazer o melhor com os recursos escassos que lhe são permitidos. Digo permitido porque, quem mais tem causado os impactos socioambientais são as grandes corporações, isto não é novidade, mas constata-se na pele dos ribeirinhos, pescadores, plantadores de arroz, catadores de coco”, resumiu o sociólogo Sérgio Silva Araújo. A economista Avani Torres, vice-presidente do CBHSF, que também participou da expedição, concorda: “O que a gente percebe é que esse modelo energético, cada vez mais, imprime a depredação da natureza e das popula-ções locais. Por conta disso, muitas famílias são obrigadas a sair daqui. As que ficam são resistentes”. A professora da UFRPE complementou, ainda: “A responsabilidade do Comitê é de colocar o pé no rio e ouvir a fala desse povo”. O geógrafo Melchior Nascimento aponta soluções para os problemas obser-vados durante o estudo exploratório. “Considero como iniciativa fundamental que a política ambiental e de recursos hídricos implemente, através das agên-cias signatárias, a vazão ecológica e ambiental”, pondera o professor. “Ainda nesse sentido, as áreas de preservação permanente devem ser recuperadas, a fim de minimizar o processo de assoreamento, especialmente naquelas si-tuadas às margens do rio São Francisco e seus afluentes. Concomitantemen-te a essas ações, algumas medidas compensatórias devem ser já encaminha-das para minimizar a situação de abandono e o sentimento de desilusão da população”.

Há cerca de 15 anos, a água do

rio chegava até a pracinha, na

cidade sergipana de Gararu.

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O FOTÓGRAFO MINEIRO BRUNO FIGUEIREDO DEIXA-SE SEDUZIR PELO IMPACTO DA

NATUREZA NOS CAMINHOS QUE LEVAM AO ALTO SÃO FRANCISCO. O VERMELHO

DA TERRA, AS FLORES TÍPICAS DOS CHAPADÕES, AS ÁGUAS QUE BROTAM DAS

SERRAS FAZEM DA VIAGEM UMA INSTIGANTE INCURSÃO CINEMATOGRÁFICA.

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E CHAPADÕESENTRE SERRAS

POR BRUNO FIGUEIREDO

Já fazia quase dois anos que estava vivendo um cotidiano totalmente urbano. Trabalho, festas, trânsito, computa-dor, barulho, correria... ritmo sempre acelerado! E o pior é que o tempo passa e nem nos damos conta de como a

#vidaloka das grandes cidades nos engole. Não tem escapatória, o DJ chega e bota todo mundo pra dançar...Mas a vida insiste em nos abrir janelinhas para lembrar de que tudo é sempre muito mais. Foi assim que segui para a Serra da Canastra naquela manhã de setembro. Só de pegar a estrada a sensação já foi outra. O vento na cara, as paisagens mais vivas, tudo fazia crer que dias incríveis estavam por vir. E vieram.As flores do serrado me saltavam aos olhos, mais vivas e co-loridas; a cachoeira de Casca D’anta, a primeira queda do São Francisco após a nascente, parecia mais cheia e estrondosa; a natureza invadindo os espaços, desviando e atraindo olhares, transformando imagens em fontes de prazer e encantamento, entre as serras e chapadões da região.Mas parecia que a câmera convencional, assim como a vida na cidade grande, tendia a limitar o meu olhar e senti falta de algo que conseguisse traduzir melhor tudo o que via e sentia...e os aplicativos do iPhone se encaixaram como uma luva. Enfim con-segui aproveitar as águas do São Francisco!!!

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A questão dos usos múltiplos precisa ser

equacionadaTEXTO: ANTÔNIO MORENO | FOTOS: IMPRENSA/TCU

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Chico - Na condição de autor do parecer sobre o Programa de Revitaliza-ção da Bacia do Rio São Francisco, como analisa a situação atual do rio diante das medidas governamentais já tomadas até aqui?Aroldo Cedraz - É importante destacar, inicialmente, que a auditoria foi re-alizada pelo Tribunal de Contas da União – TCU em 2011 e, portanto, reflete uma realidade daquele momento. O Programa de Revitalização do Rio São Francisco é bastante amplo, englobando uma série de ações, e a auditoria tratou de forma mais específica das ações relativas à recuperação e ao controle de processos erosivos. As constatações do trabalho ensejam preocupação. Ao longo do tempo, tem-se observado uma diminuição do trecho navegável no rio, que hoje é de pouco mais de um terço do que já foi no passado, em função da inten-sificação do processo erosivo. Essa é uma das principais causas, também, da perda de vazão do rio, em cerca de 35% entre 1948 e 2004, de acordo com o Centro Nacional de Pesquisa Atmosférica (NCAR – Colorado/EUA). Hoje já se observam conflitos pelo uso das águas em determinadas regi-ões, como na bacia do rio Salitre, dada a escassez desse bem. Tal rio, por sinal, era perene e já se tornou intermitente, assim como ocorreu com di-versos outros. Preocupa a constatação feita na auditoria a respeito da bai-xa execução financeira das ações ligadas à recuperação e ao controle dos processos erosivos. Do total do orçamento autorizado para o programa, à época da realização da auditoria, somente cerca de 2% do total tinha sido utilizado nesse tipo de ação.

Chico - Por que o senhor defendeu a integração do CBHSF ao Conselho Gestor do Programa de Revitalização da Bacia do Rio São Francisco? AC - A Lei 9.433/97, da qual fui relator, que instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos, tem como fundamentos, entre outros, que a bacia hidro-gráfica é a unidade territorial para implementação dessa política e que a ges-tão desses recursos deve ser descentralizada e contar com a participação do Poder Público, dos usuários e das comunidades. Essa foi uma das inovações da lei, fazendo com que a gestão dos recursos hídricos deixasse de ser centra-lizada, com o Estado abrindo mão de parte de seu poder para compartilhá-lo com a sociedade. O Comitê de Bacia é um dos mecanismos previstos na lei para que essa gestão se faça de forma compartilhada. No caso da bacia do rio São Francisco, a auditoria detectou que o respecti-vo comitê tinha baixa participação no processo decisório, pela falta de ali-nhamento entre o comitê e o governo federal no momento de lançamento do Projeto de Integração da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco. Esse tipo de situação vai de encontro à concepção da lei. Por isso, vi com bons olhos a ideia, manifestada pelos próprios gestores do Ministério do Meio Ambiente – MMA, de alterar a composição do Comitê Gestor do Programa de Revitalização, incluindo a participação de um membro do Comitê da Ba-cia. No Acórdão do TCU que apreciou o processo, foi recomendado ao MMA que adotasse tal providência.

Chico - Como analisa o papel do Comitê de Bacia no cenário da política nacional de recursos hídricos? AC - Complementando a resposta da pergunta anterior, a ampliação do processo de integração dos atores sociais e governamentais, com o for-talecimento dos Comitês de Bacias, é de fundamental importância para aumentar a eficácia das ações planejadas. O Comitê de Bacia, por reunir todos os segmentos de usuários das águas, conhece os problemas em ní-vel local e deve ter seu potencial efetivamente utilizado como articulador e integrador dos vários órgãos de governo atuantes na bacia, e também como mediador dos conflitos e interesses locais.

Chico - Por que os comitês enfrentam tantas dificuldades para se impor como colegiados de interesse público?AC - Ressalte-se, em primeiro lugar, que a realidade dos diferentes comi-tês é bastante diversificada, não sendo fácil fazer um diagnóstico geral, vá-lido para todo o Brasil. Faço algumas reflexões que julgo serem aplicáveis à maior parte deles. Há uma heterogeneidade muito grande na composição dos comitês, em termos de capacitação técnica. Muitas organizações sociais ainda não es-tão qualificadas para participação nas discussões no comitê, até porque muitas vezes têm dificuldades de acesso a informações técnicas a respeito da bacia. Com isso, há um grande risco de as decisões refletirem mais as visões dos órgãos de governo e dos grandes usuários, que normalmente têm maior conhecimento técnico acerca das questões ligadas à gestão de recursos hídricos. Esse desequilíbrio potencial observado na composição dificulta a atuação dos comitês nos moldes idealizados para ser um verda-deiro parlamento das águas da bacia.Um dos desafios que se impõem é de dotar os comitês de uma sistemática de distribuição de informações, de forma que todos os seus membros dis-ponham de uma ferramenta de suporte para a tomada de decisão.

Chico - O relatório de auditoria operacional que precedeu o parecer emi-tido pelo senhor deixa claro que as iniciativas de recuperação e controle de processos erosivos do São Francisco encontram-se “dispersas e são insuficientes para reverter o quadro de degradação”. Como as medidas de recuperação podem ser mais efetivas?AC - É uma questão que tem a ver com a anterior, relativa ao uso múl-tiplo das águas e conflitos em razão desse uso, evidentemente devido à escassez, situação que pode ser equacionada caso os atores atuem como verdadeira instância deliberativa, com equilíbrio de participação e repre-sentatividade de todos os usuários.A auditoria realizada pelo TCU aponta diversas fragilidades nas ações re-lativas à recuperação e ao controle de processos erosivos no âmbito do Programa de Revitalização do Rio São Francisco e sugere caminhos no sentido de corrigir essas fragilidades, fazendo com que essas ações de recuperação sejam mais efetivas. Uma delas foi objeto de uma das per-guntas anteriores, em que o Tribunal recomendou que um representante do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco participe do Comitê Gestor do Programa de Revitalização, de forma a aumentar a participação social nas ações, seguindo o espírito da Lei das Águas. Posso citar alguns

A AUDITORIA REALIZADA PELO TCU APONTA DIVERSAS FRAGILIDADES NAS AÇÕES RELATIVAS À RECUPERAÇÃO E AO CONTROLE DE PROCESSOS EROSIVOS NO ÂMBITO DOPROGRAMA DE REVITALIZAÇÃO DO RIO SÃO FRANCISCO E SUGERE CAMINHOS NOSENTIDO DE CORRIGIR ESSAS FRAGILIDADES.

VICE-PRESIDENTE DO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO, 62 ANOS, AROLDO CEDRAZ TEM SUA VIDA PROFISSIONAL

MARCADA POR INÚMERAS REFERÊNCIAS NOS CAMPOS ACADÊMICO, POLÍTICO E ADMINISTRATIVO. SUA RELAÇÃO COM A ÁREA DE RECURSOS HÍDRICOS O TORNA UMA DAS

MAIORES AUTORIDADES BRASILEIRAS NESTE CAMPO. É DE SUA AUTORIA O PROJETO QUE INSTITUI A POLÍTICA

BRASILEIRA DE GERENCIAMENTO DE RECURSOS HÍDRICOS, TRANSFORMADO NA LEI 9443, EM 2007. NESTA ENTREVISTA,

CEDRAZ FALA DO SEU PARECER SOBRE O PROGRAMA DE REVITALIZAÇÃO DA BACIA DO RIO SÃO FRANCISCO, DESTACA

O PAPEL DO CBHSF NA DEFESA DO VELHO CHICO E ATESTA AS DIVERSAS FRAGILIDADES NAS AÇÕES RELATIVAS À

RECUPERAÇÃO E AO CONTROLE DE PROCESSOS EROSIVOS NA BACIA DETECTADAS EM AUDITORIA PELO TCU.

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outros exemplos:– diante da constatação de que um dos aspectos que agravam o problema de erosão é a falta de alternativas econômicas para os pequenos agricul-tores, o Tribunal recomendou ao Ministério do Meio Ambiente que inclua, nos projetos de revitalização, mecanismos capazes de prover esse tipo de alternativa econômica, que proporcionem a sobrevivência desses peque-nos agricultores que, por lei, estão obrigados a recuperar e preservar mar-gens, nascentes e encostas.– frente à constatação de que um dos problemas que agravam a degrada-ção do solo é a falta da cultura da preservação, o Tribunal recomendou à Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba – Codevasf que inclua, nas ações de recuperação e controle de processos erosivos, iniciativas concomitantes de sensibilização ambiental, tanto nas escolas quanto nas propriedades rurais.

Chico - A ausência de uma fiscalização rigorosa pode também justificar a falta de controle ambiental que paira sobre o São Francisco?AC - A atividade de fiscalização é muito importante, por seus efeitos dis-suasivos e punitivos, tanto que foi tratada com grande destaque desde a concepção do Plano Decenal de Recursos Hídricos da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco. A auditoria constatou a insuficiência dessa atividade, e raras são as opor-tunidades em que se verificou a integração de ações com vistas à fiscali-zação, tal como preconizado no referido Plano Decenal. Isso certamente contribui para a crescente degradação do solo, pois favorece a ocupação imobiliária desordenada e estimula mineradoras, marmorarias, carvoa-rias, grandes agricultores e pecuaristas a operarem em desacordo com a legislação ambiental. O uso inadequado dos solos provoca enormes preju-ízos econômicos, ambientais e o assoreamento de córregos, rios e lagos, além do soterramento de nascentes. É importante ressaltar que, apesar da importância da fiscalização, ela pre-cisa estar conjugada com outras ações, como, por exemplo, de educação ambiental e de busca do fornecimento de alternativas econômicas para os pequenos agricultores.

Chico - O que acha de iniciativas como a Fiscalização Preventiva Integra-da – FPI, idealizada pelo Ministério Público da Bahia, para ajudar a conter essas agressões?AC - Entendo que a Fiscalização Preventiva Integrada, atividade desenvol-vida desde 2002, contando com a participação de diversos órgãos federais e estaduais, é muito positiva. Para tratar de problemas complexos, em que há muitos atores envolvidos, a integração e a coordenação são atributos indispensáveis para o sucesso das ações. A FPI é um exemplo de iniciativa com essas características, e que também é feita em caráter preventivo, buscando, em primeiro lugar, evitar a ocorrência do dano, sem abdicar da atividade fiscalizatória típica.

Chico - Como o senhor vê a questão dos usos múltiplos das águas do rio São Francisco? Qual o melhor caminho para compatibilizar os diversos interesses e necessidades em jogo?AC - A água é um bem fundamental para muitas atividades humanas (abastecimento humano e animal, geração de hidroeletricidade, navega-ção, abastecimento industrial, irrigação, recreação e turismo, pesca, aqui-cultura, etc.). A questão dos seus usos múltiplos é uma das principais a

serem equacionadas quando se fala de gestão de recursos hídricos, em qualquer bacia. É um problema que tende a se acentuar, considerando o aumento na demanda por água e a limitação da oferta desse bem. A Política Nacional de Recursos Hídricos tem, entre seus fundamentos, que a gestão de recursos hídricos deve proporcionar o uso múltiplo das águas e que, em situações de escassez, o uso prioritário é o consumo hu-mano e a dessedentação de animais. Cabe à Agência Nacional de Águas definir e fiscalizar as condições de operação de reservatórios por agentes públicos e privados, visando garantir o uso múltiplo de recursos hídricos, conforme estabelecido nos planos de recursos hídricos das respectivas bacias hidrográficas. Um dos instrumentos fundamentais dentro da Política são os Planos de Recursos Hídricos. São planos de longo prazo, elaborados por bacia, por estado e para o país, segundo o que prevê a Lei 9.443/97, e que devem fazer o balanço entre disponibilidades e demandas futuras de recursos hídricos, inclusive com a identificação de conflitos potenciais. O desafio é fazer com esses planos sejam elaborados de forma consistente, que constituam um mecanismo de articulação com as políticas setoriais, buscando uma com-patibilização entre elas, no que se refere ao uso da água.

Chico - Há pouco tempo, a Agência Nacional de Águas – ANA, atendendo à solicitação do setor elétrico, autorizou a redução de vazões nos reser-vatórios de Sobradinho, na Bahia, e Xingó, em Sergipe. Qual a sua visão sobre a adoção de medidas como essa, considerando o quadro atual do São Francisco?AC -Trata-se, conforme já abordado, do mencionado conflito que decorre da múltipla utilização das águas em contexto de escassez, e que deve ser amenizado com maior fortalecimento, equilíbrio e representatividade dos Comitês de Bacia.

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A QUESTÃO DOS USOS MÚLTIPLOS É UMA DAS PRINCIPAIS A SEREM

EQUACIONADAS QUANDO SE FALA DE GESTÃO DE RECURSOS HÍDRICOS.

É UM PROBLEMA QUE TENDE A SE ACENTUAR, CONSIDERANDO O

AUMENTO NA DEMANDA POR ÁGUA E A LIMITAÇÃO DA OFERTA DESSE BEM

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“Os Comitês de Bacia Hidrográfica talvez representemhoje uma das respostas mais promissoras para a busca frenética das novas formas e práticas que a democracia precisa urgentemente incorporar”

A s manifestações juvenis e populares que sacudiram o Brasil ainda estão muito recentes, mas delas já se pode extrair muitas reflexões, análises e

até mesmo lições. Elas configuram um novo momento para o país, mais consentâneo com o século que se inicia e com seus muitos desafios. As interpretações sobre as causas e consequ-ências dessas manifestações são muitas e re-ferem-se a inúmeros fatores de ordem social, econômica, política, cultural e institucional. Um desses fatores, porém, decorre da atual incapa-cidade da democracia representativa tradicional em dar atendimento efetivo aos anseios da cida-dania ávida por aumentar o seu grau de partici-pação nas decisões e ações públicas que dizem respeito diretamente ao cotidiano das pessoas.Esse rebrotar da consciência cidadã não surgiu de repente. Já a partir do processo de elabora-ção e aprovação da atual Constituição Brasileira, que Ulisses Guimarães em boa hora batizou de “Constituição Cidadã,” a sociedade, através dos seus segmentos mais organizados, já incorpora-va à nossa democracia representativa as semen-tes de uma dimensão participativa que hoje se afirma crescentemente num mundo globalizado, mais e mais interconectado e exigente em ter-mos de gestão dos negócios da cidadania.Os Comitês de Bacia Hidrográfica talvez repre-sentem hoje uma das respostas mais promisso-ras para a busca frenética das novas formas e práticas que a democracia precisa urgentemen-

te incorporar, para absorver não somente a já re-ferida vontade de maior participação institucio-nal direta dos cidadãos e cidadãs, como também para absorver as novas linguagens da cidadania, a demanda ascendente por maior transparência pública, o pluralismo da complexa convivência institucional entre sociedade civil, iniciativa pri-vada e burocracia estatal e, sobretudo, formas de gestão do espaço e dos recursos naturais à altura da sustentabilidade ambiental que o mun-do está a exigir.Pouco a pouco os Comitês de Bacia Hidrográfica estão deixando de ser simples promessas de mo-delos teóricos de gestão participativa e sustentável dos recursos hídricos, para se converterem verda-deiramente em espaços reconhecidos e colegiados de solução de conflitos de uso das águas, de indu-ção para o emprego racional de investimentos pú-blicos e privados, de construção da “visão de bacia” no processo de uso e ocupação dos territórios, de construção de uma cultura de diálogo e tolerância entre diferentes para a busca de soluções, nego-ciadas ou mesmo convergentes, para os desafios do desenvolvimento sustentável.É fato que nem todos os atores do universo da gestão dos recursos hídricos entenderam o espí-rito da nova legislação que rege o uso das águas e, por extensão, não entenderam também o al-cance dos Comitês de Bacia como a base des-sa gestão. E menos ainda entenderam que tudo isso tem relação com o formato da democracia cidadã e participativa que a complexidade do país

e da época começa a reclamar.Todavia, como tudo na sociedade se faz como processo, a consolidação dos Comitês está em andamento. É ainda planta tenra que precisa de muita água, mas é exatamente de água que estamos tratando. Sobretudo quando o assunto é o emblemático Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, que tem enorme respon-sabilidade na afirmação da política nacional de recursos hídricos em termos compatíveis com a democracia, a justiça, a sustentabilidade e a efi-ciência que o homem e a mulher comuns estão a exigir nas ruas.Essa responsabilidade vai recair brevemente nos ombros do novo colegiado e da nova diretoria do Comitê, que vão atuar em cenário mais favorá-vel do que aquele enfrentado por seus anteces-sores. De fato, uma vez que foram resolvidas as grandes pendências internas e operacionais do CBHSF, agora chegou a hora de revisar o Plano Decenal de Recursos Hídricos da Bacia do São Francisco, aplicar da forma mais criativa possí-vel os recursos oriundos da cobrança pelo uso da água bruta, garantir efetivamente o princípio dos usos múltiplos das águas sanfranciscanas, dar ao Programa de Revitalização o caráter par-ticipativo que se impõe, e construir de fato, com todos os parceiros, o Pacto das Águas.

(*) Anivaldo Miranda é jornalista, mestre em Meio Am-biente e Desenvolvimento Sustentável pela Universi-dade Federal de Alagoas e presidente do CBHSF.

Democracia e Comitês de bacias

POR ANIVALDO MIRANDA*

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Segundo maior rio da Europa, banhando países do Oeste e Leste do conti-nente, o Danúbio já foi um grande problema internacional. Tempos atrás, o uso de suas águas motivou intensos conflitos de interesses governa-mentais, provocando todo tipo de desavença em vista da desarmônica

combinação de atividades econômicas, inclusive dentro de um mesmo país. A par-tir de 1990, no entanto, após a derrocada do sistema comunista no lado oriental da Europa, o rio passou a ser alvo de ações voltadas para a preservação ambiental. Um arranjo internacional fez progredir medidas severas de controle dos usos da água e de gerenciamento operacional dos recursos disponíveis. O Danúbio tem uma bacia de 800 quilômetros quadrados, onde vive uma po-pulação de cerca de 81 milhões de pessoas. O rio nasce na Floresta Negra, na Alemanha, e desemboca no Mar Negro, no Leste europeu, com uma saída mui-to pequena para o Mediterrâneo. No mundo, é a bacia hidrográfica contida no maior número de países: 19. Entre eles, tanto se encontram nações desenvol-vidas como a Alemanha e a Áustria, como mais pobres, a exemplo da Moldávia. No total, o rio tem 2.850 quilômetros de comprimento.

As primeiras iniciativas voltadas para o cuidado com o rio Danúbio datam de 1850, mas não tiveram grandes resultados. Por muito tempo, a chamada Cor-tina de Ferro que dividiu a Europa, impossibilitou o avanço da cooperação in-ternacional, dificultada também pelo fato de serem muitas as línguas faladas na extensão do Danúbio, com destaque para o inglês, o alemão, o francês e o russo. Ainda assim, a Declaração de Bucareste sobre gerenciamento das águas, em 1984/1985, foi considerada um marco no enfrentamento das muitas questões ambientais existentes.O Danúbio engloba uma série de atividades econômicas, nem sempre harmô-nicas entre si. Na região do alto, está a concentração industrial, de responsa-bilidade dos países mais desenvolvidos, com empreendimentos focados na mineração, celulose e química, bem como na produção da energia hidrelétrica. No terço médio e baixo da bacia predominam o abastecimento de água potável, a agricultura, a criação de animais e a pesca.Os rumos do Danúbio começaram efetivamente a mudar com a realização de uma conferência internacional na Bulgária, em 1991. O resultado foi o lança-

TEXTO: ANTÔNIO MORENO *

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mento de um programa sustentável de preservação ambiental calcado em dois pilares: um administra-tivo e de liderança; outro voltado para o meio am-biente. A elaboração dos projetos, que custaram cerca de 55 milhões de dólares, durou cerca de nove anos. Grupos de especialistas se debruçaram para encontrar as melhores soluções para as prin-cipais problemáticas, envolvendo todos os países da bacia do Danúbio.O primeiro passo deu-se com a implantação de um modelo de qualidade de água para toda a extensão do rio, com a implementação de um programa de redução da poluição. Em seguida, foram realiza-dos 29 projetos de restaurações e revitalizações de afluentes, coincidindo com a Convenção de Proteção do Rio Danúbio, assinada em Sofia em 1998, com a criação de um secretariado para gestão das águas.Nessa convenção, propôs-se o uso racional das águas de superfície, a conservação das águas pro-fundas em toda a bacia, a redução de nutrientes e outras substâncias nocivas à vida humana e animal, o controle das enchentes e o fim das poluições da-nosas, da nascente à foz. O documento contou com 14 signatários, incluindo a União Europeia, que deu total autonomia para a comissão gestora decidir os destinos do rio. Naturalmente, a consciência ambiental não é uma constante em toda a bacia do Danúbio: nos países localizados no terço médio e inferior os interesses

continuam sendo conflitantes, sobretudo entre os tomadores de decisões e os políticos. Mas os re-sultados obtidos até agora apontam para o sucesso da iniciativa: controle sistemático da poluição, solu-ção de conflitos e boa convivência entre os diversos usos nas diferentes regiões.Um dos pontos de destaque do projeto implan-tado é o sistema de monitoramento transnacio-nal. Consiste na produção de pesquisas labo-ratoriais, acompanhadas de relatórios, sobre a qualidade da água desde a nascente, na Floresta Negra, na Alemanha, até a foz no Mar Negro, na Romênia. Isso possibilitou a comparação dos re-sultados dos diversos países e a construção de uma metodologia comum. Outro ponto positivo nesse compartilhamento gerencial do Danúbio foi o diagnóstico realizado em toda a bacia, iden-tificando desde restaurações hidromorfológicas até os diferentes tipos de poluição (nutrientes e orgânicas).Até 2015, alguns importantes resultados serão alcançados pela comissão gestora do rio no que diz respeito ao gerenciamento das águas, mas não será possível livrar totalmente o Danúbio da

poluição dentro desse prazo. Em cenários futu-ros, espera-se que haja uma redução considerá-vel da poluição quando for implementado o trata-mento de água da bacia urbana, regulamentado pela União Europeia. Só até o ano de 2027 é que haverá resultados mais consistentes quanto ao uso de fertilizantes danosos, pois aguarda-se a formação de consensos entre os países sobre a necessidade de redução de nutrientes.Outro programa prioritário diz respeito ao pro-jeto ecológico visando à reprodução de peixes. O grande entrave é a existência de duas grandes usinas hidrelétricas, com uma diferença de mais de 30 metros no nível das águas, o que impossibi-lita que determinadas espécies de peixes entrem nos locais de procriação.Como base de todo o projeto sustentável do Da-núbio está o processo educativo. O engajamento da população jovem é vista como prioridade. Foram desenvolvidos manuais para estudantes dos diver-sos países, gratuitos e devidamente traduzidos nas diferentes línguas. O Danúbio precisa da força e com-prometimento das novas gerações para seguir o seu curso de maneira saudável e plena.

* Conforme consta registrado no livro “Revitalização de rios no mundo: América, Europa e Ásia”, editado pelo Instituto

Guaicuy em 2010, para registro dos anais do I e II Seminário Internacional de Revitalização de Rios, realizados em Belo

Horizonte em 2008 e 2010 pelo Projeto Manuelzão da Universidade Federal de Minas Gerais, em parceria com o Governo de

Minas Gerais, por meio da Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável.

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TEXTO: RICARDO COELHO

FOTOS: HUGO CORDEIRO E IVAN CRUZ

SAÍDAS DO IMAGINÁRIO FRANCISCANO, AS

CARRANCAS REVELAM A BELEZA DO ARTESANATO POPULAR ASSOCIADA AO

PRÓPRIO HISTÓRICO DA NAVEGAÇÃO COMERCIAL NAS ÁGUAS DO RIO SÃO

FRANCISCO. FEIAS OU BONITAS? MESCLANDO ELEMENTOS HUMANOS

COM CARACTERÍSTICAS ANIMAIS, AS CARRANCAS SERVIAM PARA AFASTAR

OS MAUS ESPÍRITOS E LIVRAR OS NAVEGADORES

DOS PERIGOS. HOJE, SOBRESSAEM COMO

AUTÊNTICOS EXEMPLARES DA CRIATIVA ARTE POPULAR

BRASILEIRA.

No tempo em que a navegação era um meio de transporte altamente difun-dido e prática constante nos princi-pais rios do país, um elemento es-

tético e extremamente criativo destacou-se em meio às águas do São Francisco: a carranca. Exposta nas proas das grandes embarcações, chamando enorme atenção, ela ganhou fama e representatividade na cultura dos municípios ri-beirinhos do Velho Chico. Um verdadeiro símbolo de tradição, beleza e ludicidade. Na virada do século XVIII, quando o cenário do São Francisco, na sua parte navegável – entre as cidades de Juazeiro, na Bahia, e Pirapora, em Minas Gerais – ainda era marcado pelo intenso movimento de barcas carregadas de mercadorias, as primeiras “figuras” ou “leões de barca”, como também eram conhecidas as carrancas pela população, transformaram-se em ícones das cidades franciscanas. Mesclando aspecto humano e animal, essas criaturas esculpidas em madeira, com apa-rência mal humorada, sobrancelhas curvadas, olhos esbugalhados e dentes afiados, ficaram conhecidas como a protetora dos viajantes do São Francisco. Segundo as lendas ribeirinhas da época, as carrancas protegiam os navegan-tes contra os maus espíritos, perigos e maus presságios, evitando qualquer ameaça que pu-desse surgir em suas jornadas rio a dentro. Dizem que as carrancas serviam também para espantar os animais e os duendes que habita-vam as águas do São Francisco e que de lá saiam à noite para assombrar barqueiros, tentar mu-lheres e roubar crianças. Tais seres eram espan-tados pelas figuras das carrancas nas proas.Com o fim da navegação entre as cidades, em meados dos anos 1980, as carrancas, eviden-

temente, não puderam mais ser vistas nas em-barcações, mas sua força no imaginário do São Francisco permaneceu inalterada. Tanto que ainda hoje são tidas como um dos mais expres-sivos elementos de arte popular brasileira e um dos souvernirs mais procurados pelos visitantes em diversas regiões franciscanas, especialmen-te nas cidades ribeirinhas mais turísticas.

POLOS DE PRODUÇÃOE VENDAApesar de situadas em áreas distintas da bacia do rio São Francisco – Pirapora fica no norte de Minas Gerais, e Petrolina no semiárido de Per-nambuco, fazendo divisa com o município baiano de Juazeiro – essas duas cidades têm uma pe-culiaridade em comum: são os principais polos de produção e comercialização de carrancas do país. Não é difícil constatar rapidamente essa realidade. As lendárias peças carrancudas são exibidas por todos os cantos, especialmente nos pontos comer-ciais das duas cidades. As carrancas são elemen-tos de atração para os visitantes, com o poder de encantar também os moradores locais. “Aqui as carrancas vendem fácil”, atesta Roberta Cunha dos Santos, balconista que trabalha no posto de gasoli-na localizado logo à entrada de Pirapora, estrategi-camente denominado de... Carranca. Dois locais em particular ganham destaque quando o assunto envolve a produção de peças desse verdadeiro patrimônio popular francisca-no. A Oficina Mestre Quincas de Petrolina e a Associação de Artesãos de Pirapora são luga-res simples, sem muito rebuscamento. Ambos os espaços foram cedidos pelas prefeituras de cada município como forma de estimular a pro-dução e a comercialização das carrancas, cola-borando para manter viva a tradição.

A exótica beleza da arte popular brasileira

Gelson Xavier dos Santos, Adão Xavier

dos Santos e Luzia Carneiro Soares: a

arte cultivada em família.

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Nesses locais, onde trabalham em média dez artesãos (ou carranquei-ros, como são chamados) é possível comprar as peças já prontas que es-tão em exposição, ou solicitá-las por encomenda. “Geralmente produzi-mos de seis a oito carrancas pequenas (até 15 centímetros de altura) por semana. Já as de tamanho mediano (30 cm até 2 metros), são fabricadas a cada três dias”, diz Vanilson Soares dos Santos, um dos artesãos mais conhecidos de Petrolina. Os preços são os mais variados possíveis, dependem do tamanho esco-lhido pelo comprador. “As carrancas menores, em formatos de chaveiros, brincos e pequenos souvenirs variam entre R$ 5 e R$ 15. Já as grandes, podem custar até R$ 1.500”, segundo informa Vanilson Santos, cuja pro-dução atual é mais voltada para as miniaturas. A triste realidade é que, apesar de populares e culturalmente valoriza-das, as carrancas não são muito lucrativas para os seus fabricantes. Em média, cada artesão, seja de Pirapora ou Petrolina, fatura entre R$ 800 e R$ 1.500 por mês. “O que compensa é o prazer de fazer carranca. Ou de saber que existe um reconhecimento da nossa arte. Os clientes gostam. Já veio gente aqui até do Japão”, conta orgulhoso Gelson Xavier dos San-tos, carranqueiro da associação de Pirapora. Segundo ele, o imaginário em torno das carrancas é o seu principal atra-tivo. Correm histórias de que, na época das navegações, elas alertavam, soltando três gemidos, quando as embarcações estavam em perigo. “Há quem diga também que, por seu aspecto assustador, as carrancas tor-naram-se grandes protetoras dos navegantes contra os maus espíritos e outras forças malignas”, observa o artesão. Independentemente dessas e outras crenças populares, as carrancas des-pertam a curiosidade de muita gente, seja como elemento decorativo, seja como souvenir. A mineira de Uberlândia Tânia Mara Correia de Melo foi apre-sentada à carranca por seu pai, quando era ainda menina. Em Pirapora a passeio, fez questão de passar na associação dos carranqueiros para levar algumas peças como lembranças para a família. “Para mim, as carrancas são bonitas e têm um significado especial”, justifica.

A ARTE, O TRABALHO, O RESULTADOÉ necessário tempo, prática e, sobretudo, instrumentos específicos para a criação de uma carranca. Para a maioria dos carranqueiros, o grande segredo está na escolha da madeira, que precisa ser “de qualidade”. Além disso, conta muito no ofício a habilidade com a arte do entalhe. Cinco tipos de madeira são utilizados no trabalho: sucupira, vinhático, pe-qui e tamboril, originárias do cerrado, e imburana de cambão, extraída na caatinga. “A escolha da madeira depende do tipo de carranca que queremos produzir”, comenta o artista plástico Roque Gomes da Rocha, também conhecido como Roque Santeiro, que trabalho no centro de ar-tesanato de Petrolina. Madeira na mão, o artesão utiliza equipamentos como machado, facão, enxó (usado para retirar os excessos da madeira) e formão. O crivo, em formato de V, é responsável pelo desenho e o “bordado” da carranca; e o goivo, em sua forma redonda, é utilizado para a moldagem do nariz, boca e olhos. A pintura da peça, em cores normalmente berrantes, é a última etapa do pro-cesso, que pode durar de duas horas a um dia de trabalho.

ESTILOS GUARANY E VAMPIRODois tipos de carrancas são produzidas pelos artesãos de Pirapora e Petrolina. Há os que seguem o gênero criado pelo escultor, já falecido, Francisco Biquiba Dy Lafuente Guarany – verdadeira referência na fabri-cação de carrancas do São Francisco – e os mais tradicionais, que optam por desenvolver o estilo conhecido como “vampiresco”, que faz mais su-cesso no mercado turístico. Os seguidores de Guarany conservam mais o estilo presente nas antigas embarcações que atracavam nos portos do Velho Chico, relacionando sempre a figura do homem com o animal. O leão, o dragão, o cavalo e o macaco são referências constantes até hoje na produção de carrancas desse gênero. Outro aspecto que “patenteava” a obra de Guarany são as vastas cabeleiras das esculturas. “Guarany valorizava os longos cabe-los no sentido longitudinal do pescoço, na altura da orelha, agregando a cara de animais”, explica Roque Santeiro, observando que as carrancas desse tipo são mais artísticas.Por ser confeccionada mais rapidamente, a carranca vampiro é feita em maior quantidade e, consequentemente, destaca-se nas vendas. “O gênero vampiresco faz sucesso talvez por sua expressão mais aterrorizante, com seus dentes pontudos e afiados, nariz com ventas bem abertas e orelhas longas”, justifica o carranqueiro Adão Xavier, que integra a Associação de Pirapora. As cores predominantes nas carrancas tipo vampiro são preto (corpo) e vermelho (língua).

TRADIÇÃO EM FAMÍLIAMuita embora o retorno financeiro seja duvidoso, uma coisa o carranqueiro aprendeu e leva fielmente vida afora: a arte das carrancas jamais pode ser abandonada ou esquecida. Por isso mesmo, na Associação de Artesãos de Pirapora é muito comum encontrar gerações de famílias trabalhando con-juntamente na produção de carrancas. Uma dessas famílias é a da artesã Luzia Carneira Soares, que tem irmãos, tios e filhos exercendo a profissão. O pioneiro na família foi Sabino Carneiro Soares, irmão de Luzia, que antes de falecer passou os ensinamentos para os familiares. Gelson Xavier dos Santos e Adão Xavier, filhos do finado Sabino e sobrinhos de Luzia, são exemplos dessa tradição. Trabalham como carranqueiros des-de crianças e têm orgulho do que fazem. “Quando criança eu ia para beira do rio olhar os barcos que chegavam com suas imensas carrancas. Era im-pressionante”, relata Adão. O seu sobrinho, Uanderson Pereira Nunes, é atualmente o carranqueiro mais novo da associação, com 26 anos. Começou aos 13 e não se arrepende de ter escolhido essa atividade para viver. “Meu pai me mostrou como se faz e pretendo passar esse ensinamento para os meus filhos. Não podemos deixar esse símbolo cultural acabar. A carranca faz parte da história do rio São Francisco e da nossa querida Pirapora”, orgulha-se.

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Trabalho árduo, que exige uma dedicação quase

exclusiva, a arte do entalhe é admirada pelos visi-

tantes das cidades ribeirinhas do Velho Chico

DESVALORIZAÇÃO DO OFÍCIOComo muitos carranqueiros, Dona Luzia queixa-se da ausência de compradores para o seu trabalho. “Faltam turistas”, diz ela, lembrando o tempo em que Pirapora tinha cerca de 50 artesãos em ativi-dade e recebia muitos visitantes. Nessa época, ela chegou a pagar a faculdade do seu filho no Rio de Janeiro somente do seu trabalho como artesã. “An-tes vivíamos somente da nossa arte. Hoje isso é impossível. O artesão que não tiver outro emprego morre de fome”, queixa-se, confessando já ter pen-sado em largar a profissão.Na cidade de Petrolina, essa realidade não é muito di-ferente. Se antes eram 15 artesãos, hoje em dia ape-nas três executam a tarefa com assiduidade. Alguns optaram em trabalhar com arte sacra, por exemplo. “Eu mesmo não faço só carranca, faço também anjos e santos. É onde consigo minha principal renda”, diz Roque Santeiro. Seu irmão, Paulo Gomes da Rocha, largou definitivamente a profissão. “Vivi por mais de 30 anos fazendo carranca e isso nunca me deu dinhei-ro. Artesão só tem valor quando morre”, queixa-se.

ANA DAS CARRANCAS, UMA REFERÊNCIA.Verdadeiro patrimônio da cultura pernambuca-na, Ana Leopoldina Santos, a Ana das Carran-cas, é um símbolo da arte das carrancas. Seu grande diferencial: carrancas feitas em barro, com estilo próprio e requinte de obra de arte. Um detalhe interessante é que todas as suas peças apresentavam os olhos vazados. Na re-alidade, uma singela homenagem feita por ela ao marido e grande amor de sua vida, José Vi-cente de Barros, cego de nascença. Após a sua morte, em 2008, Ana Leopoldina foi homenageada com a criação do Centro Cultural Ana das Carrancas, em Petrolina. Um espaço administrado por suas duas filhas e que serve para introduzir os turistas e outros interessa-dos na sua arte singular. O ambiente é repleto de peças produzidas pela artista e de prêmios a ela concedidos ao longo da vida. “Queremos que a futura geração conheça quem foi essa mulher”, afirma Maria da Cruz Santos, a Pepê, uma das filhas da artesã.

ONDE ENCONTRAR • Associação de Artesãos de Pirapora/MG –

Rua A. Santa Terezinha, nº 120, Pirapora, Minas Gerais.

• Oficina do Artesão Mestre Quincas – Av. Cardoso de Sá, s/n, Vila Eduardo, Petrolina, Pernambuco.

• Centro Cultural Ana das Carrancas – BR 407, 500 - Cohab Massangano, Petrolina, Pernambuco

DICA DE LEITURA Carrancas do São FranciscoAutor: Paulo PardalEditora: Martins FontesEdição: 3ºNº de Páginas: 274Data de Lançamento: 2006

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VELOCIDADE E VINHO ÀS MARGENS DO VELHO CHICOPara quem gosta de um bom vinho, o Vale do São Francisco é uma excelente parada. Mo-tivo óbvio: a região é uma referência nacional no quesito produção de bebida. Mas quem preferir conhecer um pouco mais das belezas do Velho Chico vale a pena continuar a corrida em suas margens. Para os atletas de plantão, entre os dias 15 e 16 de novembro acontecerá a Wine Run Brasil 2013, um evento que reúne corredo-res de diversas faixas etárias que, além de par-ticiparem da meia maratona de até 21 km, no município de Casa Nova, na Bahia, desfrutarão de momentos de degustação e palestras sobre vinhos e sucos de uva, e de passeios na bacia hi-drográfica do rio São Francisco. O conceito da competição é divulgar as princi-pais regiões vinícolas do Brasil, sendo que esta edição ocorrerá às margens do São Francisco, que tem papel fundamental na irrigação da se-gunda maior região produtora de vinho do país. A maratona, organizada pela Zenith Sports e a revista Adega, terá sua largada no lago de So-bradinho. O primeiro trecho é de cerca de 9,6 quilômetros e acontecerá nos limites da Fazen-da Fortaleza, onde fica a empresa produtora de uva de mesa e sucos. O segundo percurso, de 5,2km, será na ligação entre as Fazendas Forta-leza e Ouro Verde, esta última sede da vinicultu-ra Miolo. O último trecho terá 6,2km e ocorrerá todo dentro da fazenda Ouro Verde.Além do cenário de beleza das vinícolas, as águas do Velho Chico têm muito a ver com a produção de vinho e a ideia de fazer a Wine Run na região. Vale lembrar que o São Francisco faz da região o único local do mundo com duas sa-fras e meia por ano. Essa é a primeira edição do evento que acontece no Nordeste. Outras duas edições ocorreram no Vale dos Vinhedos, na Serra Gaúcha (RS), reunindo, cada uma, um público médio de 1.200 atletas.

A INVENÇÃO DO POVO BRASILEIROEntre as preciosidades que é possível aces-sar democraticamente na Internet, a partir do Youtube, está a série de vídeos inspira-da no livro O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil, considerado a obra central do antropólogo Darcy Ribeiro (1913-1997). A série é toda comentada por Darcy, em de-poimentos concedidos na cidade de Maricá (RJ) em junho de 1995, e narrada por Chico Buarque e Mateus Natchergale. A produção foi uma realização conjunta da Fundação Darcy Ribeiro, TV Cultura e GNT, sob dire-ção de Isa Grinspum Ferraz. Cada vídeo dura cerca de 30 minutos O destaque são os três documentários que apresentam as matrizes da sociedade brasi-leira, Matriz Tupi, Matriz Lusa e Matriz Afro, indicados para quem busca conhecer me-lhor o processo de povoamento da bacia do Rio São Francisco, especialmente a origem de duas das comunidades tradicionais da re-gião, os indígenas e os quilombolas. Matriz Tupi, que inaugura a série, é dedicado aos povos indígenas que habitavam o Brasil antes da chegada dos navegadores euro-peus. Além de registros da estadia de Darcy entre os Urubu-kaapor, em 1950, o vídeo traz depoimentos de Azis Ab’Saber e Washington Novaes. Matriz Lusa descreve as rotas das caravelas como marco da globalização planetária, e apresenta a realidade de Portugal à época, reportando-se às influências árabe e israe-lita sobre a península ibérica. Com imagens de Portugal, Açores e Maranhão, apresenta depoimentos do pensador português Agosti-nho da Silva e poemas de Fernando Pessoa na interpretação de Tom Zé. Matriz Tupi conta a migração dos povos yo-rubás, bantos, haussás e jejes e o rico legado cultural de origem africana que dissemina-ram em terras brasileiras. O documentário tem imagens de Pierre Verger, depoimentos da ialorixá Estela de Oxóssi e do etnólogo François Neyt, além de poemas africanos re-criados por Antonio Risério e interpretados por Gilberto Gil.

CONVIVENDO COM OS PEIXESPara quem se interessa pelas belezas do nosso Velho Chico, um cativante registro está no livro História Natural de Peixes de Água Doce: Teoria e Prática nas Escolas: Bacia do Rio São Francisco. Um passeio atraente que retrata um universo repleto de imagens suba-quáticas e informações sobre os mais variados peixes do rio São Francisco. A obra traz uma reflexão sobre a importância da preservação das principais espécies em ex-tinção no nosso rio da integração nacional, a exemplo do piau, surubim, pacamã e dourado. Desenvolvido a partir de estudos realizados em localidades da nascente e cabeceira do Rio São Francisco, a represa de Três Marias e os rios Cipó e Pandeiros, a publicação tem um lado educativo: objetiva promover, através de oficinas socioedu-cativas, uma melhor conscientização acerca da necessidade de preservação ambiental do São Francisco entre jovens de escolas públicas e pri-vadas do estado de Minas Gerais.De iniciativa do Instituto de Estudos Pró-Cida-dania, em parceria com a Petrobras, através do Programa Petrobras Ambiental, o livro foi elaborado por uma equipe multidisciplinar de profissionais, a exemplos de biólogos, geógra-fos, educadores ambientais, comunicadores sociais, que também produziram e executa-ram as oficinas em dez municípios na região do Alto São Francisco. Acompanha o livro, um encarte em DVD, que traz diversas imagens subaquáticas dos peixes do São Francisco. Ao todo, dez municípios do Alto São Francisco foram visitados para a realização deste trabalho. Maiores informações a respeito do livro e projeto poderão ser obtidas no site da instituição: www.peixesdeaguadoce.com.br

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CANGAÇO VIRA PARQUEO Cangaço Eco Parque é o novo atrativo turís-tico sergipano. O empreendimento, localizado no município de Poço Redondo, às margens do rio São Francisco, oferece aos visitantes atividades como ecoturismo, arvorismo, pas-seio de catamarã, além da trilha ecológica percorrendo o caminho até a ‘Grota do Angi-co’, última parada de Lampião (e seu bando), antes de o cangaceiro ser capturado e morto pelas “volantes”. Durante a trilha até a grota o visitante tem a oportunidade de curtir o visual das formações rochosas, as lindas ilhas e praias fluviais que existem nesse trecho especial do São Fran-cisco. Além disso, poderá conhecer mais um pouco sobre o bioma caatinga e absorver toda uma cultura tipicamente nordestina. O eco-parque vem complementar todos os investimentos que o estado de Sergipe vem fazendo na construção da nova orla do Cânion de Xingó, bem como na divulgação do desti-no Sergipe, em especial, o Cânion do Rio São Francisco, um dos principais atrativos turísti-cos do estado.

O SERTANEJO EM CARTAZUm sertanejo atravessa a área entre Petroli-na e Juazeiro, adaptando-se ao que a nature-za lhe oferece. O cenário é o da caatinga, úni-co bioma exclusivamente brasileiro. É neste clima que se desenvolve o roteiro do filme Na Quadrada das Águas Perdidas, dos dire-tores Wagner Miranda e Marcos Carvalho e que traz como protagonista o ator Matheus Nachtergaele, intérprete de Olegário, um ser absolutamente solitário, que contracena, praticamente, com animais como carcará e calango – há ainda um cachorro, evocando o clássico Vidas secas (1963), que o cineasta Nelson Pereira dos Santos adaptou do livro homônimo de Graciliano Ramos.O grupo musical Matingueiros, que repre-senta o folclore do Vale do Rio São Francisco, cuidou da trilha sonora, junto com o violinista pernambucano Geraldo Azevedo e o compo-sitor baiano Elomar Figueira Mello. É desse último, aliás, a canção que dá título ao filme, sobre o cotidiano dos moradores da região nos anos 1940.

CINEMA

TURISMO

PESQUISAAS VÁRIAS FACES DA CAATINGAAs clássicas imagens da Caatinga com terra rachada, paisagem marrom e caveiras de gado espalhadas são, definitivamente, um clichê. Apesar de verdadeiras, não revelam a diver-sidade desse bioma exclusivamente brasileiro que é a caatinga. Na verdade, há muito mais cores, texturas e composições naturais do que se possa imaginar. Isso fica claro com o livro Flora das Caatingas do Rio São Francisco – História natural e conservação.Realizado durante quatro anos pelo professor José Alves de Siqueira, titular do Centro de Referência em Recuperação de Áreas Degra-dadas da Universidade Federal do Vale do São Francisco – Univasf, a publicação apresenta 1.031 registros de espécies de plantas e com-prova, com rigor científico, a riqueza da flora da Caatinga. Além do conteúdo científico, o livro impressiona pela plasticidade das fotografias produzidas pelo próprio Siqueira.O trabalho foi executado com mais 99 pesqui-sadores e 39 instituições, além da Univasf. O pre-fácio é do professor Marcelo Tabarelli, coordena-dor da área de biodiversidade da Capes, além de autor de Ecologia e conservação da Caatinga. O capítulo sobre cactos tem a participação de Nigel Paul Taylor, estudioso do Royal Botanic Gardens, com trabalhos em ecossistemas áridos em dife-rentes recantos das Américas.Para concretizar a pesquisa, os autores pega-ram literalmente a estrada: rodaram 340 mil quilômetros em 212 expedições para escrever as suas 515 páginas. O resultado transcende o que se esperava ser de um profundo trabalho sobre a flora da Caatinga: propõe estratégias para conservação do bioma, faz um estudo detalhado das plantas aquáticas do semiárido mais populoso do mundo e produz um modelo analítico sobre a distribuição de árvores nativas. No capítulo dedicado aos cactos (dos quais 90% estão ameaçados), revisa o que já foi escrito sobre as sementes da biota e alerta sobre a ameaça de invasão biológica que a região enfrenta.O capítulo Flora das Caatingas do Rio São Fran-cisco desmente afirmações que o bioma abri-ga poucas espécies exclusivas (endemismos). Além disso, revela espécies raras, sensíveis às mudanças climáticas e já trata do desafio que está posto para a conservação. Entre aspectos que surpreendem está o capítulo dedicado às plantas aquáticas. Os autores identificaram 191 espécies de aquáticas em região semiá-rida, além de 108 espécies de cactáceas, boa parte exclusiva do bioma.

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O buriti (Mauritia flexuosa), a mais alta das palmeiras brasi-leiras, é símbolo do cerrado e do Brasil central, dos sertões e veredas do Velho Chico. Imortalizado na obra literária de Guima-rães Rosa, aparece no modo de vida, nas expressões artísticas e no artesa-nato das populações tradicionais da bacia do São Francisco. Palmeira elegante e de estipe ereto, alça até 35 metros, exibe topo de copa arredondada e uniforme e folhas grandes que se abrem em leque. Floresce entre dezembro e abril, em longos cachos amarelados de até três metros de comprimento.

Frutifica até junho, coquinhos castanho-avermelhados revestidos por escamas brilhantes, em cachos generosos. A polpa é amarela, tem semente dura e amêndoa comestível, para deleite de ara-

ras, jandaias e periquitos que se aninham no alto dos buritis, e também servem de alimento para mamíferos, como cotias, capivaras e antas. Os buritizais formam bosques e oferecem importante refúgio para a fauna. Funcionam como corredores de dispersão, conectando áreas já fragmentadas do nosso cerrado original, favorecendo a conservação e recuperação de sua biodiversidade.Um buritizal é oásis na sequidão dos gerais, “abre veredas no ermo da paisagem”, água

certa e muita sombra. Beleza talvez incompreensível para quem nunca viu um buritizal “lequelequeando” ao vivo. O buriti é espécie indicativa da existência de água nos sertões,

sinalizando brejos e nascentes, emoldurando veredas e cachoeiras. Sempre com o pé na água, os frutos dessa palmeira-do-brejo, ao caírem, são transportados pelos

riachos, disseminando a espécie por toda a região. Assim como os buritis, os homens põem morada onde tem água. Os moradores das veredas plantam roça de sustento e criam o gado à solta, nas beiras dos riachos e ribeirões, nos brejos e olhos d’água. Os povos tradicionais do cerrado aproveitam praticamente tudo da planta do buriti. Além da beleza, da sombra e água fresca, do caule do buriti é extraído palmito de qualidade, sendo também usado na construção de casas tradicionais, cobertas pela palha de suas folhas. Das fibras das folhas são também produzidos utensílios para o dia a dia e peças típicas do artesanato regional: redes, tapetes, esteiras, chapéus, cestos, brinquedos, mobílias

leves e muito mais. O fruto é fonte de alimento com alto potencial nutritivo para o consumo humano, rico em vitaminas, cálcio, ferro e proteínas. É consumido ao natural ou transformado em doces, sucos e licores. O óleo extraído do coco do buriti tem valor medicinal, é utilizado como ver-mífugo e cicatrizante. Também contém corantes e aromatizantes, hoje aproveitados pela indústria de cosméticos no fabrico de sabonetes, xampus, cremes e filtro solar.

O buriti é de grande importância na manutenção das nascentes, conservam locais alagadiços, de água pura e permanente. “Árvore que emite líquidos”, “árvore das águas”, “árvore da vida”, sagrada para os povos indígenas. Recomenda-se preservar a palmeira mbyryti:

BuritiSE

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TEXTO: GEORGE OLAVO.

ILUSTRAÇÃO: CAU GOMES

“O senhor estude: o buriti é das margens, dele caem os cocos na vereda – as águas levam – em beiras, o coquinho as águas mesmo replantam; dá o buritizal, de um lado e do outro se alinhando, acompanhando que nem um cálculo”.

(Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa).

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