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Revista Ciência Dinâmica - 4ª Edição

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Revista Científica Eletrônica da Faculdade Dinâmica

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Apresentação

A Faculdade Dinâmica do Vale do Piranga, em Ponte Nova/MG tem a grata

satisfação de trazer à comunidade acadêmica e a toda a sociedade mais uma edição da Revista

Ciência Dinâmica.

A Revista Ciência Dinâmica é um periódico semestral editado pela Faculdade

Dinâmica que chega ao seu quarto número e, com ela, são oferecidas aos leitores importantes

contribuições, que demonstram a consolidação do trabalho intelectual, nesta edição, dedicado

exclusivamente ao corpo docente da Faculdade.

O objetivo da Revista Ciência Dinâmica é dar a mais ampla possibilidade de

divulgação e acesso à produção científico-acadêmica e, com isso, promover a socialização do

saber e a ampliação das possibilidades de reflexão, debates e trocas instigadoras de novos

conhecimentos nas áreas das Ciências Jurídicas e Sociais.

São apresentados nessa edição 7 artigos que procuram trazer contribuições

pontuais para o entendimento da realidade jurídica que nos cerca.

A revista está disponível no endereço eletrônico www.faculdadedinamica.com.br

e, em breve, também em meio impresso.

A Revista Ciência Dinâmica tem a missão de constituir-se em um periódico

qualificado, fomentado preferencialmente por artigos elaborados pelos acadêmicos do Curso

de Direito da Faculdade Dinâmica, propiciando, através do estímulo à reflexão científica, o

amadurecimento, a ampliação do conhecimento e a consolidação dos ensinamentos teóricos

absorvidos na Faculdade, contando, ainda, com a valorosa contribuição de professores da

Instituição e de professores convidados que só vem enriquecer o conteúdo da publicação.

LEILSON SOARES VIANA

Coordenador-Adjunto do Curso de Direito da Faculdade Dinâmica

Representante do Conselho Editorial

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Revista Ciência Dinâmica®

Editora: Faculdade Dinâmica

Ano II, n° 4, 2° Semestre 2010

ISSN – 2176-6509

_________________________

Conselho Editorial: Prof. Dr. José

Luiz Quadros de Magalhães, Prof.

Leilson Soares Viana, Prof. Mestre

Bernardo Gomes Barbosa

Nogueira, Prof. Mestre José

Carlos Henriques, Prof. Ms.

Ramon Mapa da Silva, Prof.

Ernane Salles.

________________________

Revista Ciência Dinâmica.

Faculdade Dinâmica do Vale do

Piranga. Rua G, n° 205, Bairro

Paraíso. Ponte Nova-MG.

Contato: (31) 3817-2010

[email protected]

www.faculdadedinâmica.com.br

________________________

É proibida e reprodução, no todo

ou em parte, dos artigos

publicados nessa Revista sem

prévia autorização dos seus

autores, resguardado o direito de

citações com expressa referência à

sua fonte.

Copyright©

Todos os Direitos Reservados

Ponte Nova – 2010/2

________________________

Formando Pessoas!

Editorial

A presente edição da Revista Ciência Dinâmica é especial por uma série

de motivos. O mais evidente deles é a presença somente de docentes da

Faculdade Dinâmica na posição de autores, algo planejado e desejado desde a

primeira edição e que agora se torna uma feliz realidade. A destacada

qualidade dos temas e artigos desenvolvidos também contribui para que essa

edição seja considerada de forma diferenciada. Mas outro motivo a ser

marcado é que a próxima edição da Revista Ciência Dinâmica seguirá o

mesmo modelo, somente com artigos de professores da casa. Esse intervalo

nos permite mais do que visitar a produção científica dos nossos profissionais,

age também como um poderoso incentivo ao trabalho acadêmico de nossos

estudantes e colaboradores externos, além de trazer um fôlego renovado para

um retorno à nossa linha editorial regular com a participação de cientistas do

direito de todo o Brasil que, muito atenciosamente, atendem nossas chamadas

de artigo, provando sempre a qualidade da pesquisa jurídica nos últimos anos

em nosso país.

A ciência é o espaço do provável, e nada mais distante do espírito

científico do que a certeza. E como espaço do provável é impossível impedir

o flerte da ciência com o falso, com o erro. Mas é exatamente esse flerte que a

motiva, que a insere nessa tentativa de substituir o menos provável pelo mais

provável. Ainda que em um universo tão vasto quanto o da investigação

científica, em que milhares de publicações como a nossa orbitam a incerteza e

a probabilidade, a contribuição que temos a dar soe com ínfima, é na missão

de incutir esse espírito científico em nossos alunos e na comunidade em que

estamos inseridos que nosso valor se mostra relevante e nosso trabalho

importante e necessário. Horizontes se ampliam aqui, ainda que através do

caminho tortuoso que a ciência sempre trilhou ao desfazer preconceitos e

falsas compreensões. E é na discussão acadêmica responsável e constante que

reside a força para minar de vez muitos desses muros.

O convite que sempre fizemos para que, de uma forma ou de outra, todos

os interessados participem dessa discussão e da consequente construção de

conhecimento acadêmico é reiterado por essa edição especial. Nosso

agradecimento sincero a todos os autores. A demonstração de conhecimento

que deram nas próximas páginas rivaliza com as constantes demonstrações de

valor e sabedoria em sala de aula. Aos nossos alunos, mais uma vez obrigado

pelo apoio inconteste e curiosidade científica, sem dúvida, maior motivação

para nosso trabalho. Aos nossos leitores, uma boa leitura e uma viagem

instrutiva pelas veredas da ciência jurídica.

PROF. MS. RAMON MAPA DA SILVA Coordenador do NAP – Núcleo Acadêmico de Pesquisa

Faculdade Dinâmica

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SUMÁRIO

O PRINCÍPIO DA IGUALDADE E A AFIRMAÇÃO DE CONSTITUCIONALIDADE DA

LEI 11.340/2006 – Marina Oliveira Guimarães e Bruno Franco Alves.............................5

GESTÃO SOCIAL, PARTICIPAÇÃO POLÍTICA, CONSELHOS E DESENVOLVIMENTO

DELIBERATIVO – Douglas Luis de Oliveira......................................................................... 14

INTERROGATÓRIO POR VÍDEOCONFERÊNCIA: tecnologia a serviço da justiça ou

violação dos direitos do acusado!? – Thiago Grazziane Gandra............................................. 25

A PRISÃO COMO INSTRUMENTO DE CONTROLE SOCIAL NA ÓTICA DE MICHEL

FOUCAULT: uma análise de “Vigiar e Punir” – Maria Antonieta Rigueira Leal

Gurgel....................................................................................................................................... 32

A RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANO CAUSADO AO PATRIMÔNIO

HISTÓRICO E CULTURAL – Arimaire Alvernáz.................................................................. 43

OS AVANÇOS DA POLÍTICA NACIONAL DE RESÍDUOS SÓLIDOS NA

PRESERVAÇÃO DO MEIO AMBIENTE E A RESPONSABILIDADE

COMPARTILHADA – Raíssa de Oliveira Murta, Filipe Rodrigues Garcia, Iglesias

Fernanda de Azevedo Rabelo................................................................................................... 81

O DIREITO CONSTITUCIONAL SOB A PERSPECTIVA DO NEOCONSTITUCIONALISMO –

Leilson Soares Viana................................................................................................................ 91

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O PRINCÍPIO DA IGUALDADE E A AFIRMAÇÃO DE CONSTITUCIONALIDADE

DA LEI 11.340/2006

THE PRINCIPLE OF EQUALITY AND ASSERTION OF CONSTITUTIONAL LAW

11.340/2006

Marina Oliveira Guimarães1

Bruno Franco Alves2

RESUMO

A história das mulheres é marcada pela luta por igualdade, tendo em vista a construção da

sociedade delineada por um padrão masculinizado. Durante a história, muitos direitos foram

conquistados formalmente pelas mulheres, porém, a efetividade desses ainda é uma batalha,

bem assim a conquista de outros. Desta maneira, a Lei 11.340/2006, conhecida como Lei

Maria da Penha, é um marco dessa conquista por igualdade, já que é a mulher ainda a grande

vítima da violência doméstica e familiar que se prolifera silenciosamente nos lares brasileiros,

em decorrência de uma história marcada pela submissão e obediência perante o homem. Por

uma visão ainda distorcida acerca do princípio da igualdade, essa lei é objeto da crítica de

muitos, chegando a ser considerada como inconstitucional por alguns juristas pelo tratamento

diferenciado conferido a homens e mulheres. Porém, uma análise da própria Constituição da

República permite percebê-la como constitucional e cumpridora da justiça social. O presente

trabalho apresenta uma revisão bibliográfica sobre a conquista histórica dos direitos da

mulher até a Lei Maria da Penha e busca realizar reflexões jurídicas capazes de fundamentar a

constitucionalidade desta norma.

Palavras-chave: direito das mulheres, constitucionalidade, Lei Maria da Penha.

ABSTRACT

Women's history is marked by the struggle for equality, with a view to building society

delineated by a masculine pattern. Throughout history, many rights were won by women

formally, however, the effectiveness of these is still a battle, as well as the conquest of others.

Thus, Law 11340/2006, known as Maria da Penha Law, this achievement is a milestone for

equality, since the woman is still the main victim of domestic violence that proliferates

silently in Brazilian households, due to a history marked by submission and obedience to

man. For an even distorted on the principle of equality, this law is the object of criticism from

many, coming to be regarded as unconstitutional by some lawyers for the different treatment

given to men and women. However, an analysis of the Constitution itself allows to perceive it

as constitutional and respectful of social justice. This paper presents a review on the historic

achievement of women's rights to Maria da Penha Law and tries to make legal considerations

that can justify the constitutionality of this standard.

Keywords: women's rights, constitutionality, Maria da Penha Law.

1 Mestranda em Economia Doméstica pela Universidade Federal de Viçosa/MG. Bacharel em Direito pela

Universidade Federal de Ouro Preto/MG. 2 Mestrando em Teoria do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Professor da

Faculdade Dinâmica do Vale do Piranga.

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1. INTRODUÇÃO

As relações sociais, tomando o modelo masculino como paradigma, alimentam a

subserviência e submissão das mulheres face aos homens ao se pautar em uma práxis social

machista, excludente e opressora. Desta forma, a luta pela emancipação da mulher elegeu

como tarefa fundamental a construção da igualdade nas relações de gênero como meio de

transformar a cultura que serve de esteio às práticas discriminatórias.

A violência contra a mulher é uma das formas pelas quais se evidencia a assimetria

nas relações de gênero. Pesquisas revelam que um número considerável de mulheres ainda é

vítima da violência doméstica e familiar que silenciosamente assola e destrói a vida das

mulheres agredidas e de suas famílias.

Dentre os instrumentos normativos criados com o fito de promover a igualdade está a

Lei n° 11.340, em vigor desde o dia 22 de Setembro de 2006, popularmente conhecida como

“Lei Maria da Penha”. Esta norma constitui uma resposta jurídica ao problema da violência

doméstica contra mulheres, constituindo um marco na luta feminista por direitos.

Cumpre esclarecer que o nome dado à lei é uma homenagem a Maria da Penha Maia

Fernandes, farmacêutica que sofreu constantes agressões e ameaças por parte de seu marido,

professor universitário e economista, que a deixaram paraplégica em 1983. Em decorrência da

morosidade na justiça, quinze anos passaram-se sem que fosse proferida sentença terminativa

no processo de responsabilização do agressor. Maria da Penha formalizou denúncia contra o

Estado Brasileiro na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos

Estados Americanos (OEA) como forma de tornar públicas a complacência e impunidade da

violência doméstica contra as mulheres no Brasil.

Em decisão histórica, a Comissão Interamericana responsabilizou o Estado brasileiro

por negligência, omissão e tolerância em relação à violência doméstica contra as mulheres,

recomendando diversas medidas a serem tomadas (DIAS, 2010).

Este artigo apresenta uma revisão bibliográfica sobre a conquista histórica dos

direitos da mulher até a Lei Maria da Penha. Em um segundo momento, propõe-se reflexões

jurídicas sobre a constitucionalidade da referida norma, baseando-se especialmente no

princípio constitucional da igualdade.

O estudo buscou demonstrar que a conquista de direitos pelas mulheres ainda está

sendo construída no decorrer da história e que a própria Constituição deve ser interpretada a

partir de uma perspectiva atenta às relações de gênero, marcadas pelo padrão masculinizado,

para que se possa obter decisões judiciais aptas a conferir sentido ao princípio da igualdade.

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2. A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DE DIREITOS DA MULHER

A luta por igualdade se diversifica pelas mais variadas razões, sejam essas de raça,

classe social, sexo, gênero e etc. A história das mulheres é marcada por essa luta.

Ainda no século XVIII, a Revolução Francesa fez nascer uma esperança de igualdade

pelos anúncios e promessas de que todos os indivíduos seriam “considerados os mesmos para

os propósitos de participação política e representação legal” (SCOTT, 2005, p.15).

Entretanto, a realidade mostrou-se contrária ao discurso oficial.

Espíritos utilitários, os Constituintes construíram, sobre uma formulação de alcance

universal, uma obra de circunstância; legitimando as revoltas passadas contra a

autoridade real, tencionavam premunir-se contra qualquer tentativa popular visando

à ordem que eles instauraram. Daí, numerosas contradições da Declaração. O artigo

1° proclama todos os homens iguais, mas subordina a igualdade à utilidade social; o

artigo 6° só reconhece formalmente a igualdade diante do imposto e da lei; a

desigualdade decorrente da riqueza permanece intangível. A propriedade é

proclamada, no artigo 2°, um direito natural e imprescritível do homem - mas a

Assembléia não se preocupa com a imensa massa dos que nada possuem. A

liberdade religiosa recebe singulares restrições no artigo 10 [...] Todo cidadão pode

falar e escrever, imprimir livremente, afirma o artigo 11 – mas há casos

determinados em que a lei poderá reprimir „os abusos dessa liberdade‟. (SABOUL,

1981, p. 154).

A cidadania, como demonstra o texto, não foi conferida a todas as pessoas, vez que

submetida ao conceito de utilidade social. Às mulheres, o argumento era o de que seus

deveres domésticos lhes impediam de participar da vida política. Em síntese a cidadania era

negada a todos aqueles que por diferença de classe social, raça e gênero não se identificassem

com o homem branco de determinada classe social (SCOTT, 2005).

A mulher, assim, não era vista como indivíduo por não possuir semelhanças com os

homens. Scott afirma que a igualdade “pertence a indivíduos e a exclusão a grupos; era pelo

fato de pertencer a uma categoria de pessoas com características específicas que as mulheres

não eram consideradas iguais aos homens” (SCOTT, 2005, p. 17).

Essa diferenciação ultrapassou os anos, de modo que a luta por igualdade de direitos

das mulheres é pautada até os dias de hoje e a conquista de direitos femininos percorre um

longo tortuoso na história.

No Brasil, a mulher obteve autorização do governo para estudar em instituições de

ensino superior em 1879. Na Nova Zelândia, em 1893, a mulher obteve, pela primeira vez,

direito ao voto. (D‟ALKMIN et al, 2006).

A luta por direitos políticos era constante. Em 1927, o Governador do Rio Grande do

Norte alterou a lei eleitoral de modo a permitir o direito de voto às mulheres, porém elas

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tiveram os votos anulados. Quatro anos depois, Getúlio Vargas promulgou o novo Código

Eleitoral, garantindo, finalmente, o direito de voto às mulheres brasileiras (D‟ALKMIN et al,

2006).

No caminho oposto, durante o Estado Novo foi instituído o Decreto 3199, que

proibia as mulheres de praticar vários esportes, tais como lutas, futebol de salão e de praia,

halterofilismo e beisebol, por considerá-los incompatíveis com as “condições femininas”.

Após a Segunda Guerra Mundial, a igualdade de direitos entre homens e mulheres

foi reconhecida em documento internacional, através da Carta das Nações Unidas. Dois anos

depois, foi aprovada pela Organização Internacional do Trabalho a igualdade de remuneração

entre trabalho masculino e feminino.

A conquista por direitos da mulher ainda caminhava a passos lentos. Diante de um

cenário marcado pela exclusão, no final da década de 1960 os movimentos feministas

tomaram força em países capitalistas questionando a divisão tradicional dos papéis sociais

atribuídos a homens e mulheres. Esses movimentos buscavam desnaturalizar as compreensões

relacionadas às diferenças entre os sexos, pautando que a identidade feminina não é uma

determinação biológica, mas uma construção histórica e social.

Por influência internacional, os movimentos de mulheres tiveram período de

ascensão no Brasil a partir da década de setenta. Nesse período, o país vivia uma ditadura

política que assolava as condições sociais, econômicas e políticas da população e, por essas e

outras razões, muitos movimentos e organizações populares emergiram a partir de bandeiras

como liberdade de expressão, a democracia, a reforma agrária e melhores condições de vida.

Em decorrência de baixos salários e do aumento do custo de vida, as mulheres

começaram a exigir do Estado o atendimento de necessidades básicas como creches, melhores

salários e demais direitos sociais. Para tanto, começaram a se reunir motivadas pela

identificação de que possuíam direitos que lhes eram sistematicamente negados, seja pela

ausência do reconhecimento oficial destes direitos seja para carência de efetividade social

daqueles já formalmente conquistados.

É a partir desse período histórico e por reivindicação de grupos feministas, que a

violência contra a mulher passou a receber crescente atenção e a pautar muitas de suas ações.

Em 1962, foi sancionada a Lei nº 4.121, que ficou conhecida como “Estatuto da

Mulher Casada”. Esse estatuto garantiu, entre outras coisas, o direito da mulher de trabalhar e

de receber herança sem precisar de autorização do marido, bem como a possibilidade de

requerer a guarda dos filhos em casos de separação (ALVES, 2007).

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Já em 1979, caminhando com o reconhecimento de direitos políticos, Eunice

Michilles tornou-se a primeira mulher a ocupar o cargo de Senadora, por falecimento do

titular da vaga (D‟ALKMIN et al, 2006).

Em 1980 foi recomendada a criação de centros de autodefesa para coibir a violência

doméstica contra a mulher, momento histórico em que surge o lema “Quem ama não mata”

(FARIA, 2010).

Três anos mais tarde surgiram os primeiros conselhos estaduais da condição feminina

com o objetivo de traçar políticas públicas para as mulheres. O Ministério da Saúde criou o

Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher em resposta à forte mobilização dos

movimentos feministas, baseando sua assistência nos princípios da integralidade do corpo, da

mente e da sexualidade de cada mulher.

No ano de 1984 foi ratificada pelo Estado Brasileiro a Convenção da Organização

das Nações Unidas sobre Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher

(FARIA, 2010). No ano seguinte, foi criada a primeira Delegacia de Atendimento

Especializado à Mulher no Estado de São Paulo que, paulatinamente, foram sendo

implantadas em outros estados brasileiros. Ainda neste ano, com a Nova República, foi

aprovado Projeto de Lei que criou o Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres.

A partir da reivindicação dos movimentos de mulheres, no ano de 1987 foi criado o

Conselho Estadual dos Direitos da Mulher do Rio de Janeiro, para assessorar, formular e

estimular políticas públicas de valorização e promoção femininas (DESLANDES, 1999).

Finalmente, em 1988, por meio da “bancada do batom”, expressão pela qual ficou

conhecido o movimento liderado por feministas e pelas 26 deputadas federais constituintes, as

mulheres obtiveram importantes vitórias na Constituição Federal, garantindo-se a igualdade

de direitos e obrigações entre homens e mulheres como um direito fundamental.

Com a finalidade de efetivar a igualdade propugnada pela Constituição da República,

algumas normas foram criadas. É o caso da Lei 9504, de 1997, que instituiu o sistema de

cotas na Legislação Eleitoral, obrigando os partidos e coligações a respeitarem a proporção de

no mínimo 30% (trinta por cento) e o máximo de 70% (setenta por cento) de cada sexo para o

registro de candidaturas ao Legislativo. Esta política foi uma resposta à insuficiente

representação feminina na vida política institucional, funcionando como mecanismo de

estímulo a participação da mulher na vida pública do país.

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Da mesma forma, em 1995, o Brasil ratificou a Convenção Interamericana para

Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, salvaguardando a prática da

discriminação positiva em favor do gênero feminino (FARIA, 2010).

Nesse mesmo ano, a Lei 9.099/95 instituiu os Juizados Especiais, trazendo a proposta

de maior celeridade e eficácia às punições de delitos de menor potencial ofensivo, dentre os

quais estavam incluídos alguns dos mais recorrentes casos de violência doméstica contra a

mulher.

Com a criação dos juizados especiais criminais, os delitos abarcados pelo novo

procedimento ficavam excluídos da prisão em flagrante ou da exigência de fiança, impondo-

se rotineiramente como condenação o pagamento de multas, cestas básicas ou a prestação de

serviços à comunidade. Destarte, os ideais de celeridade e efetividade da jurisdição que

orientaram a criação dos juizados especiais acabaram por impactar negativamente o combate

à violência doméstica contra a mulher, vez que a suavidade das penas permitia a banalização

deste crime.

A reivindicação por políticas de ações afirmativas para conter a violência doméstica

contra a mulher ganha força no final da década de noventa. Defende-se que por meio da

afirmação e do enfrentamento da diferença, seja possível alcançar a igualdade nas relações de

gênero.

A Lei Federal 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, é fruto desta

concepção. Conferindo tratamento diferenciado à mulher vítima de violência doméstica, essa

Lei constitui um exemplo de política de ação afirmativa, com o reconhecimento pelo Estado

da existência da discriminação contra as mulheres e da necessidade de se alcançar a igualdade

por meio de um tratamento diferenciado.

3. O ALCANCE DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE E A LEI MARIA DA PENHA

A igualdade é um dos direitos e garantias fundamentais assegurados pelo

Constituição de 1988. Está expresso no artigo 5º do texto constitucional que todos são iguais

perante a lei e que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações.

A realidade social demonstra que as mulheres ainda estão em luta para conquistar

essa igualdade.

O próprio texto constitucional reconhece as diferenças entre homens e mulheres e

trata de impor mecanismos anti-discriminatórios e de conferir tratamento diferenciado a

ambos como estratégia de superação das desigualdades. Como exemplo, o artigo 201 da

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Constituição, que trata do regime previdenciário, garante o direito às mulheres aposentadoria

aos 60 anos de idade, e, para os homens, aos 65 anos de idade.

Estas normas, assim como a Lei Maria da Penha, tratam de conferir eficácia social ao

princípio da igualdade. Para tanto, este princípio deve ultrapassar a garantia formal de

igualdade propugnada pelo art. 5º da Lei Maior em busca da igualdade material, o que só é

possível conferindo-se tratamento diferenciado àqueles que ocupam posições sociais

diferentes em decorrência possuem de um déficit de reconhecimento ou da escassez de

recursos e bens necessários à manutenção da vida.

As decisões judiciais que asseveram a inconstitucionalidade da Lei Maria da Penha

com o argumento de que ela atentaria contra o princípio da igualdade incorrem em um erro

tremendo, pois ao desconsiderar a realidade social conferem a este princípio alcance

infinitamente menor do que lhe é devido.

Não é demais relembrar a sempre sábia lição de Aristóteles, para quem igualdade e

justiça são indissociáveis. A igualdade de que fala o Estagirita não é aquela igualdade formal,

que apaga e desconsidera as diferenças, mas antes uma igualdade que propugna que deve ser

reservado tratamento igual aos que são iguais e desigual aos que são desiguais, na medida em

que se desigualam.

A Lei Maria da Penha surge a partir da identificação de que a violência doméstica e

familiar contra a mulher é um tipo de violência fundada na assimetria das relações de gênero,

na sobreposição do masculino sobre o feminino ao longo da história, o que justifica o

tratamento diferenciado que é direcionado à mulher vítima de violência e aos agressores.

A constitucionalidade da Lei Maria da Penha deve ser afirmada como forma de

promover de maneira plena o princípio da igualdade. Decisões em contrário primam por uma

interpretação da norma jurídica que se descola da realidade social ao considerar que homens e

mulheres possuem o mesmo nível de reconhecimento social. Afirmam, com apego peculiar ao

sentido literal do texto normativo, que se homem e mulheres são iguais perante a lei, a Lei

Maria da Penha seria inconstitucional pelo fato de tratar de maneira especial os casos de

violência doméstica contra as mulheres.

Tal interpretação não deve prevalecer pelo fato da Lei Maria da Penha se inserir em

um contexto maior de políticas de ações afirmativas que partem do pressuposto de que a

mulher, apesar de suas lutas e vitórias ao longo da história, ainda é vítima da exclusão e

opressão masculinas. A Lei Maria da Penha é, outrossim, uma medida legislativa que ao

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admitir a desigualdade visa combatê-la conferindo tratamento diferenciado a pessoas que

estão em posições diferentes e não iguais, como querem alguns.

Admitir a existência da desigualdade é o primeiro passo em direção à conquista da

igualdade.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Mesmo diante da conquista de direitos da mulher ao longo da história, a assimetria

nas relações de gênero ainda é um problema que afeta as relações sociais. A participação da

mulher na vida pública ainda é muito mais tímida que a participação dos homens. Os dados

também expressam que não obstante as garantias legais, as mulheres ainda são vítimas da

discriminação profissional, com média salarial inferior à dos homens.

Não se pode deixar de reconhecer que predomina na sociedade brasileira uma cultura

machista, que dissemina preconceitos velados e socialmente consentidos. A naturalização das

características atribuídas ao feminino e ao masculino engendra as mulheres numa trama de

opressão que as submetem à autoridade dos homens, manifestada em muitos casos por meio

da violência doméstica e familiar.

Por esta razão, a desnaturalização das posições femininas e masculinas se faz

importante para que a opressão da mulher seja encarada como um problema real, carecedor da

implementação de políticas públicas pautadas pela promoção da igualdade.

A Lei Maria da Penha é uma ação afirmativa que evidencia este compromisso com a

discussão de novas relações sociais pautadas na igualdade de gênero.

Os mecanismos de proteção previstos nesta norma contribuem para que o silêncio da

vítima seja rompido e que o problema ultrapasse a esfera da família para atingir o debate

público, que contribuem decisivamente para a continuidade do ciclo de violência. Neste

processo, rompe-se com a indiferença da sociedade em relação ao tema e força-se o debate

sobre a condição social da mulher.

A aplicação da Lei Maria da Penha pelos tribunais é o reconhecimento de que a

democracia não é uma obra que se acaba com a positivação de uma Constituição, mas que

depende da construção diária para que possa existir. Assim, a igualdade pressuposta pelas

democracias modernas é um princípio que depende da prudência de juízes capazes de

reconhecer que muito mais que tratar a todos de maneira igual, sem estabelecer qualquer

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distinção, a aplicação do princípio da igualdade deve considerar as diferenças existentes para

que possa, de fato, atender aos reclames por justiça.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Page 14: Revista Ciência Dinâmica - 4ª Edição

14

GESTÃO SOCIAL, PARTICIPAÇÃO POLÍTICA,

CONSELHOS E DESENVOLVIMENTO DELIBERATIVO

Douglas Luis de Oliveira1

Resumo

Compreender o processo de transformações pelas quais a Administração Pública vem

passando faz parte da autopoiese do Direito. Compreender como novos atores sociais se

comportam e as exigências advindas das mais diferentes camadas da população mostram o

contorno desse processo de delineamento de um novo Direito Administrativo. Num recorte

meramente experimental, buscou-se compreender como procedimentos de inserção da

população na tomada de decisão ambiental podem influenciar o resultado final de políticas

públicas, quanto podem somente figurar como instrumentos de legitimação. Os conselhos,

comitês de bacias hidrográficas, dentre outras formas de participação têm se mostrado

instrumentos de gestão que permitem a abertura de determinados temas, antes deixados tão

somente ao poder discricionário do administrador, à intervenção da sociedade interessada.

Com um estudo de cunho exploratório, o trabalho levanta mais questões que propriamente

respostas, a fim de trazer a lume a discussão sobre um tema pouco enfrentado na literatura

jurídica nacional, que é a dos papéis dos novos atores no século XXI e como estas atuações

contribuem para novas interpretações do Direito Administrativo.

Palavras chave: gestão pública; participação; decisão.

Introdução

Gestão social é um conceito que busca descrever processos diversos que envolvem

algum nível ou grau de institucionalização de mecanismos de partilha do poder decisório,

entre o Estado e a sociedade, sobre a elaboração e implantação de políticas públicas. Esta

partilha do poder de decisão entre governo e sociedade pode assumir diversos formatos, que

variam, principalmente, de acordo com o grau de institucionalização que alcançam e com o

tipo ou nível de participação social que mobilizam. Assim, temos, por exemplo, consultas

públicas, comitês, assembléias, câmaras setoriais, fóruns, orçamentos participativos,

conselhos e órgãos colegiados diversos. Quanto ao tipo ou nível de participação, os processos

de gestão social podem envolver desde a simples consulta para recolher subsídios junto a

comunidades até a delegação de poder e controle a cidadãos ou a seus representantes

(Arnstein, 1969, Bandeira, 2000).

Os conselhos, instâncias ou órgãos colegiados podem ser inicialmente definidos como

um tipo de organização que possibilita mediações entre interesses locais e processos de

1 Douglas Luis de Oliveira é professor na Faculdade Dinâmica Vale do Piranga (Ponte Nova) e Faculdades

Sudamérica (Cataguases). Mestre em Extensão Rural pela Universidade Federal de Viçosa. Área de pesquisa:

novas configurações do Direito Administrativo.

Page 15: Revista Ciência Dinâmica - 4ª Edição

15

elaboração de políticas públicas. Neste sentido, os conselhos seriam espaços que viabilizariam

o diálogo entre os interesses ou demandas dos atores sociais dos lugares com as políticas

públicas que geralmente são elaboradas tendo por referência dimensões macrosociais

(Appendini & Nuijtem, 2002). Outro traço característico dos conselhos é sua forma de

composição. Eles são geralmente compostos por delegados, isto é, pessoas que representam,

nestas instâncias, interesses de segmentos populacionais, grupos sociais, corporações, órgãos

públicos ou organizações da sociedade civil. Neste sentido, o conselheiro ou a conselheira é

um representante, socialmente legitimado, eleito ou indicado, de determinados interesses que

ele procurará fazer valer no ambiente de argumentação, discussão e construção de acordos ou

entendimentos que é propiciado pela reunião ou plenária deste conselho.

Desenvolvimento

Um conselho pode ter ou não ter participação popular ou de representantes de

organizações da sociedade civil. Caso tenha, esta participação pode ser partilhada igual ou

paritariamente entre representantes da estrutura administrativa do Estado e representantes da

sociedade civil (Pereira, 2005). A composição também pode não assumir formato paritário,

sendo, nestes casos, acordadas maneiras de distribuição percentual de seus componentes, de

modo a manter um certo equilíbrio entre as forças políticas presentes. Esta composição é

também bastante flexível, já que além dos conselheiros titulares há os suplentes e é comum

haver rotatividade na presença destes em reuniões. Além disso, a escolha e indicação de

representantes é condicionada pela conjuntura política. As mudanças nas configurações das

forças políticas municipais, estaduais ou federal implicam tanto mudanças na composição dos

conselhos – principalmente com relação aos representantes de órgãos governamentais – como

mudanças na importância que os próprios governos passam a atribuir a estas instâncias de

gestão social (Dagnino, 2002).

A mudança habitual de componentes e a freqüência relativamente esparsa em que

ocorrem as reuniões – ou seja, em que os conselhos se tornam de fato uma organização –

conferem um caráter específico e contingente a estas organizações. Além disso, é importante

considerarmos que seus componentes pertencem a outros ambientes organizacionais, ou seja,

na maior parte do tempo se dedicam ao trabalho em outra entidade ou instituição, estando, por

isso, mais acostumados (e dedicados) às suas especificidades, interesses e modos de

organização do trabalho. Eventualmente os conselheiros assumem um outro papel, saem da

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16

rotina e passam a atuar em um órgão colegiado. Evidencia-se, desta maneira, além de um tipo

peculiar de organização, um modo particular de pertencimento institucional.

De acordo com Appendini & Nuijtem (2002, p.74), a literatura sobre desenvolvimento

tende a usar de modo indiscriminado e confuso os conceitos de instituição e organização. Por

isso estes autores acentuam a distinção entre estes dois conceitos, identificando que na

literatura as organizações têm sido definidas em termos de “estruturas de funções

reconhecidas e aceitas”, enquanto as instituições são mais definidas em termos de crenças,

costumes, normas e regras que possibilitam o desenvolvimento daquelas estruturas e funções.

Esta definição automaticamente nos remete ao fato de que organizações como os conselhos

mobilizam certas crenças ou concepções, costumes, regras para instituir determinada estrutura

normativa e reguladora a respeito de certo tema considerado socialmente relevante. O

substrato desta instituição é a existência de interesses distintos e/ou conflitantes e também de

capacidades distintas de exercício social do poder. Seria no ambiente de interação instituído

pelos conselhos que supostamente estas diferenças poderiam ser negociadas e relativizadas.

Dadas estas características peculiares dos conselhos, é interessante discutirmos,

brevemente, a respeito de algumas teorias que informam e dão importância aos mecanismos

de gestão social de bens públicos, como também o cenário sociopolítico mais amplo que vem

possibilitando, no Brasil, a disseminação dos conselhos.4 Neste sentido, a Professora Maria da

Glória Gohn argumenta que, a partir da década de 1990, no Brasil, a crescente mobilização da

sociedade civil que se seguiu ao gradual processo de democratização pós-regime militar,

levou à revisão de alguns conceitos-chave que informam a ciência política e,

conseqüentemente, a construção de novas instituições políticas que administram os bens

públicos. A característica principal desta revisão foi a incorporação, bastante desigual e

diversificada, da idéia de participação na conformação das formas de gestão e de governo. Ao

tratar, por exemplo, das mudanças de concepção sobre poder local, a autora destaca que:

O poder local passou a ser visto como espaço de gestão político-administrativo e não como

simples sede das elites (econômicas, sociais e políticas). Mudanças na conjuntura política e no

cenário econômico explicam tais alterações. O poder local foi redefinido como sinônimo de

força social organizada como forma de participação da população, na direção do que foi

definido como empowerment ou empoderamento da comunidade, isto é, a capacidade de gerar

processos de desenvolvimento auto-sustentável com mediação de agentes externos – novos

educadores, principalmente ONGs do Terceiro Setor. O novo processo ocorre,

predominantemente, nas novas redes societárias, sem articulações políticas mais amplas com

partidos políticos ou sindicatos (Gohn, 2003, p.35).

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17

A este processo se associa a crescente importância conferida à dimensão cultural do

desenvolvimento, para a qual contribui o resgate e valorização de tradições, conhecimentos e

costumes locais, relativizando com isso antigas e dominantes perspectivas etnocêntricas

(Harrinson, 2002). Ao mesmo tempo, conferia-se maior importância à noção de esfera pública

que, de acordo com Jürgen Habermas, possibilitava a “dessacralização da política” ao trazer a

público assuntos e temas antes restritos à esfera privada. Desencadeava-se assim um amplo

processo de publicização de demandas específicas e construção de identidades que

transcendiam às tradicionais questões operárias e de classe. Como pano de fundo,

engendrava-se um amplo processo de questionamento e revisão do papel do Estado frente às

demandas da sociedade; uma revisão das próprias formas tradicionais em que ocorriam as

relações do Estado com a sociedade. É neste marco que as noções de governança (Putnam,

1996) e governança local ganham importância (Tendler, 1998). Os conselhos ou instâncias

colegiadas de deliberação fazem parte, de certo modo, de um amplo e gradual processo de

descentralização do poder decisório do Estado a respeito das ações de governo. Como tal, se

inserem no conjunto de propostas e/ou práticas que buscam formas diversas de “melhorar o

governo” por meio de processos de descentralização.

A noção de governança local colocou em discussão a necessidade de ampliar o

conceito de gestão de bens públicos, de modo a incorporar, nos mecanismos de governo, as

demandas dos diversos atores sociais que, a partir da década de 1980, principalmente, ao se

mobilizarem e se organizarem, colocaram na cena pública a necessidade de que suas

reivindicações e direitos fossem considerados pelo Estado, tanto no atendimento às suas

demandas mais imediatas quanto em relação à consideração de suas especificidades no

momento de elaboração e execução de políticas públicas. Deste modo, não apenas os atores

que compunham os aparatos governamentais ou a esfera pública estatal deveriam ser

responsáveis pela formulação e implantação de políticas públicas. A participação política,

neste contexto, deveria ser estendida aos amplos setores sociais que podiam ser capturados

pelo conceito genérico de sociedade civil.5 Para Tendler (1998), falando a partir de sua

pesquisa sobre novos mecanismos de governança no estado do Ceará, o principal mérito das

instituições deliberativas ou da institucionalização da participação política da sociedade civil

nos processos de tomada de decisão e, de modo mais amplo, nos mecanismos de governança,

é sua contribuição para tornar os governos mais transparentes e menos corruptos. Outros

autores valorizam de modo menos instrumental a participação, relacionando, como o faz

Page 18: Revista Ciência Dinâmica - 4ª Edição

18

Amartya Sen, à ampliação de liberdades e capacidades de decidir sobre seu próprio futuro em

sociedade (Sen, 1998).

Como já foi ressaltado, esta participação, embora valorizada, é incorporada de formas

bastante variadas pelos poderes públicos e, na prática, vem ocorrendo por meio de

mecanismos participativos também bastante diversos, dentre os quais os conselhos parecem

ser o formato institucional mais disseminado, principalmente a partir da necessidade de sua

existência formalizada pela constituição brasileira de 1988 e das leis que regulamentaram suas

atribuições a partir dos anos 1990 (Andrade, 2004). O debate parece ocorrer em torno do

papel que a participação deve assumir nos processos de revisão ou reforma do Estado e, mais

especificamente, nos modos de relacionamento entre Estado e sociedade. Neste debate há, por

um lado, posições que argumentam que o papel da participação da diversidade de atores

sociais restringe-se à “influência” sobre os processos decisórios que ocorrem na esfera

decisória estatal. Este, de acordo com Gohn (2003, p.41), é o argumento de Habermas quando

ele constrói o conceito de “esfera pública”, que limita “o papel dos novos „públicos‟ a

interlocutores de uma ação comunicativa, constituídos via interlocuções públicas, à mera

„influência‟ nas decisões governamentais, legislativas ou do executivo”.

Por outro lado, há autores, como Boaventura de Sousa Santos e Leonardo Avritzer,

dentre outros, que enxergam um papel mais ativo para os atores sociais organizados e para sua

participação. Esta participação, para estes autores, teria uma função de “deliberação pública”

direta, portanto mais ativa e propositiva, da maneira como vem ocorrendo nas experiências de

orçamento participativo conduzidas em importantes capitais brasileiras como Porto Alegre e

Belo Horizonte (Sousa Santos & Avritzer, 2003). Desta forma, a democracia participativa ou

deliberativa vem, no ambiente marcado pela globalização e de forma reativa a ela, propor uma

revisão do papel e das funções tradicionalmente atribuídas ao Estado. Neste novo contexto,

caberia ao Estado:

(...) mais funções de coordenação do que funções de produção direta de bem-estar, o controle

da vinculação da obtenção de recursos a destinações específicas por via dos mecanismos da

democracia representativa torna-se virtualmente impossível. Daí a necessidade de

complementar com mecanismos de democracia participativa. A relativa maior passividade do

Estado, decorrente da perda do monopólio regulatório, tem de ser compensada pela

intensificação da cidadania ativa, sob pena de essa maior passividade ser ocupada e colonizada

pelos fascismos societais (Sousa Santos, 1999, p.70).

Partindo deste suposto, os mecanismos de democracia deliberativa se baseiam na

representação política e chamam os atores sociais organizados para vocalizar publicamente

Page 19: Revista Ciência Dinâmica - 4ª Edição

19

suas demandas e opiniões, discutindo, nestes processos, as formas, conteúdos e meios de

elaboração e implantação de políticas públicas. Numa visão otimista do processo, os atores

são chamados a qualificar a elaboração das políticas públicas, trazendo à cena pública e ao

debate suas visões, percepções e diagnósticos sobre problemas que enfrentam e alternativas

que vislumbram para solucionar os mesmos. Este processo democrático de discussão, de

acordo com Avritzer (2003), além de possibilitar espaços à participação, fortalece

mobilizações, construção de identidades e novas formas de solidariedade. Além disso,

também contribui para a capacitação política dos atores envolvidos, não apenas os da

sociedade civil, forjando “competências e habilidades a partir das experiências que

vivenciam” (Gohn, 2003, p.43).

É importante ressaltar que, de um modo geral, a instituição conselho ou instância

deliberativa implica a existência de uma sociedade civil organizada ou “robusta” que lhe dê

suporte (Tendler, 1998). Nas palavras de Evans (2003), a efetiva participação social requer

um contexto sólido de instituições formais. Argumentos corroborados por Houtzager (2004)

ao afirmar que as ações descoordenadas e descentralizadas da sociedade civil são insuficientes

para a emergência ou sustentação de instituições deliberativas. Além de uma sociedade civil

organizada e atuante, demanda o interesse e um papel ativo do Estado no fomento a esta

organização e na definição de um planejamento estratégico de longo prazo, capaz de oferecer

um norte às ações de promoção do desenvolvimento.

Esta nova percepção sobre a participação traz consigo, portanto, um enorme desafio às

instituições governamentais, histórica e culturalmente acostumadas a atuar de modo

centralizado e não-participativo. Fungerik & Wright (1999), após estudar várias experiências

em democracia deliberativa, enumeram o que eles denominam de princípios institucionais que

devem reger as instituições de participação deliberativa. Seriam eles: (a) orientar sua ação

para a solução de problemas; (b) centralidade da deliberação direta para descobrir soluções e

programas para implementá-los; (c) redução da distância entre o público (marcado pela lógica

burocrática organizacional) e o privado (marcado pela lógica de mercado, do lucro); (d)

engajamento de grupos diversificados no diálogo; e (e) transformação dos aparatos estatais

em instituições de participação deliberativas permanentemente mobilizadas.

Como argumenta Evans (2003), a existência de um aparato administrativo público

capacitado para dar apoio e sustentação tanto ao funcionamento quanto à implementação das

decisões que resultem dos processos de deliberação é fundamental. Do lado das organizações

Page 20: Revista Ciência Dinâmica - 4ª Edição

20

da sociedade civil, destacam Santos Jr. et al. (1998, p.29), surgem dois problemas principais

colocados pela concepção de governança: “o primeiro, relacionado à capacidade dos grupos

sociais de traduzir suas necessidades em demandas sociais. O segundo, de ver legitimadas e

reconhecidas suas demandas pelo governo, gerando políticas públicas”.

Considerando estes princípios e problemas colocados aos atores que interagem nos

recentes mecanismos de governança local e de democracia deliberativa, os desafios colocados

às instituições governamentais e à sociedade civil são imensos. E é neste contexto que os

conselhos gestores de políticas públicas surgem e gradualmente se legitimam como espaços

que possibilitam, com vários limites, a busca dialogada de soluções aos problemas trazidos

pela sociedade civil organizada e pelo próprio governo.

Neste contexto de mudanças, a democracia deliberativa também passou a ser uma

referência aos processos de promoção do desenvolvimento. Amartya Sen, Prêmio Nobel de

economia, defende que o desenvolvimento deve ser compreendido, principalmente, em termos

do fortalecimento das capacidades das pessoas de levarem o tipo de vida que valorizam (Sen,

1999). Sen defende que as instituições deliberativas devem ser referências importantes para os

processos de desenvolvimento, envolvendo de modo contínuo e deliberativo os cidadãos na

definição das prioridades econômicas e sociais relacionadas ao desenvolvimento. Estas

instituições representam um meio mais efetivo para engajar os cidadãos envolvidos pelos

projetos ou programas de desenvolvimento, possibilitando, de acordo com Peter Evans, “uma

base mais sólida para avaliar as prioridades de desenvolvimento”. Além disso, corroborando o

argumento de Sen, afirma que eles “expandem o que o desenvolvimento oferece, dando aos

cidadãos a oportunidade de exercer a capacidade humana fundamental de fazer escolhas”

(Evans, 2003, p.23).

É neste sentido que Appendini & Nuijten (2004) argumentam que as instituições

passam a ser vistas como ambientes nos quais os agentes econômicos e sociais têm acesso aos

recursos e podem reforçar, por exemplo, seu potencial de renda. Deste modo, a “adequação

das instituições” vem se tornando paradigma dominante na formulação de políticas na agenda

do desenvolvimento internacional. Por isso, as políticas têm focado na capacitação e no

empoderamento da população, para torná-la parceira dos esforços em prol do

desenvolvimento. A Professora Maria Celina D‟Araújo, discutindo a noção de capital social,

argumenta, de modo muito pertinente, que não basta valorizar a noção de participação, mas

principalmente reforçar a correspondência entre a cultura de um povo e suas instituições

Page 21: Revista Ciência Dinâmica - 4ª Edição

21

políticas. As leis, normas e arranjos institucionais, por mais bem intencionados que sejam,

podem ser “completas abstrações” e se tornar arranjos formais independentes aos contextos

em que operam (D‟Araújo, 2003).

Como pano de fundo desta valorização dos mecanismos de participação e deliberação

temos um processo de revisão das concepções e métodos de promoção do desenvolvimento

que vem ocorrendo desde a década de 1970, quando os resultados dos esforços internacionais

para promovê-lo, particularmente o desenvolvimento rural, nos países do Terceiro Mundo

foram se revelando cada vez mais inapropriados, ou seja, desvinculados dos contextos locais,

desenraizados e vinculados à obsessão com a modernização tecnológica dos processos

produtivos. E mais, tiveram conseqüências sociais e ambientais reconhecidamente perversas

(Altiere & Masera, 1997).

Pensar o desenvolvimento a partir da idéia de democracia deliberativa trás

significativas implicações para a própria definição de desenvolvimento. A promoção do

desenvolvimento passa a ser um processo preocupado em articular e conciliar os diversos

interesses dos atores e grupos sociais, públicos (estatais ou não) e privados, representados nas

instâncias de deliberação responsáveis pela gestão social dos bens e recursos públicos a serem

mobilizados nestes processos. Além de articular interesses, uma vez que está em jogo a

construção de consensos, os processos de promoção do desenvolvimento têm que articular os

diversos conhecimentos (tradicionais ou científicos, locais ou externos) para a construção de

diagnósticos e planejamento das intervenções que determinarão os rumos das próprias

intervenções. Por tudo isso, o desenvolvimento passa a ser uma ação principalmente

relacionada a práticas de aprendizado coletivo, envolvendo tanto as populações locais quanto

os agentes ou mediadores externos, todos preocupados em superar os limites históricos que

costumam separar ou compartimentar as funções de cada ator nestes processos, geralmente

privilegiando o técnico, o assessor ou o extensionista como o detentor da autoridade

profissional e científica para determinar os rumos das ações e a direção dos processos. É deste

modo que o desenvolvimento deliberativo cria a necessidade de possibilitar espaços de

encontro entre os diferentes projetos de mudança e desenvolvimento que estão em cena em

determinado contexto.

Page 22: Revista Ciência Dinâmica - 4ª Edição

22

Considerações Finais

Deste rol de boas intenções à prática e à realidade dos processos cotidianos há ainda

um longo caminho a ser percorrido. No Brasil a trajetória das experiências com democracia

deliberativa, embora recente, já acumula um enorme aprendizado (Dagnino, 2002). A

experiência de democratização das políticas públicas por meio da ação dos conselhos

gestores, por exemplo, é ainda incipiente. Avaliando a ação destes conselhos na década de

1990, Luciana Tatagiba concluiu que os conselhos gestores exerciam, à época da pesquisa,

início dos anos 2000, “uma baixa capacidade propositiva, exercendo um reduzido poder de

influência sobre o processo de definição das políticas públicas” (Tatagiba, 2002, p.98-9). Dois

fatores gerais são indicados pela autora como possíveis responsáveis por esta baixa

capacidade de influência dos conselhos gestores. Primeiro, os conselhos e a própria

democracia deliberativa enfrentam, no Brasil, um padrão de planejamento e execução de

políticas públicas arraigado em culturas e práticas elitistas, que desconsideram a pertinência

da participação cidadã. Segundo, os conselhos estariam também “na contramão de um

processo histórico-conjuntural marcado pela ação deliberada de redução da esfera pública,

com as grandes decisões nacionais sendo tomadas a partir de acordos, em geral, não

publicizáveis”. Poderíamos também falar sobre as enormes dificuldades para mobilização,

organização e representação de interesses enfrentadas pelos atores que estão na base da

sociedade e encararam as assimetrias que no Brasil caracterizam as possibilidades de acesso a

recursos para o exercício da cidadania. Estes fatores, dentre outros, contribuem para a enorme

dificuldade de colocar em prática mecanismos viáveis de partilha do poder decisório.

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Page 25: Revista Ciência Dinâmica - 4ª Edição

25

INTERROGATÓRIO POR VÍDEOCONFERÊNCIA:

tecnologia a serviço da justiça ou violação dos direitos do acusado!?

Thiago Grazziane Gandra1

A possibilidade de realização do interrogatório do acusado no processo penal por meio

de videoconferência é tema incandescente que desafia os estudiosos do direito.

As posições encontradas na doutrina e na jurisprudência são divergentes e suscitam

caloroso e apaixonado debate entre os defensores desta ou daquela tese. Afinal, na seara do

processo penal, em que a condenação do individuo deve estar lastreada em provas

suficientemente precisas de autoria e materialidade, carreadas aos autos da forma mais

escorreita possível, em estrita obediência aos preceitos legais e constitucionais, a introdução

de novas tecnologias, como é o caso da videoconferência, carece de aprofundados estudos

capazes de concluir sobre a legalidade ou não do procedimento, afim de que não se subtraiam

do acusado direitos a ele, constitucional e processualmente, garantidos.

Ampla defesa, contraditório, devido processo legal, entre outros, são princípios que

devem sempre ser observados na atividade jurisdicional, por expressa disposição da

Constituição da República de 1988. Nesse contexto, seria a presença do acusado diante do

juiz, no Fórum, meio necessário para se garantir a prevalência de tais princípios!? O

interrogatório por videoconferência garante a realização do ato em obediência a tais

princípios!? A tecnologia atual é suficiente para garantia dos direitos do acusado!?

Essas são as questões nefrálgicas trazidas a baila nesse trabalho.

Com efeito, nos dias atuais, em que o avanço tecnológico rompe diuturnamente as

barreiras da distância, promovendo encontros antes inimagináveis, é fundamental reconhecer

que o aparato judiciário vem se tornando obsoleto aos olhos da sociedade, especialmente

quando a morosidade da justiça é lançada na mídia como razão de todos os problemas do

mundo, como se nada mais houvesse que ser feito, senão tornar célere os julgamentos, para

que a sociedade atingisse o ponto mais alto de civilidade, justiça e segurança.

Todavia, se esquecem os que querem concentrar suas críticas à justiça que o Brasil é

um estado de Direito, em que estão garantidos, pela lei e pela constituição, aos cidadãos,

1 Juiz de Direito do Estado de Minas Gerais, Professor de Direito Processual Penal, Graduado em Direito pela

Universidade Federal do Estado de Minas Gerais, Pós-graduado em Direito de Empresa pela Universidade Gama

Filho/RJ

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meios adequados para o processo e julgamento dos casos que afligem a sociedade e romper

com a lógica do ordenamento jurídico não é tarefa que se promova de um dia para o outro. A

revolução do poder judiciário é lenta porque deve ser lenta, sob pena de se saltar etapas

importantes na evolução da justiça.

Assim, não basta o surgimento de uma nova tecnologia para que a mesma seja

incontinentemente implantada no âmbito da justiça. É necessário investigar seus efeitos para o

processo e para as partes e, porque não, seus efeitos para a sociedade.

Nesse sentido, a videoconferência, embora inegavelmente moderna e útil em inúmeros

setores da sociedade, para ser implantada na atividade jurisdicional carece de maturação. Daí

a importância de se discutir o tema, não apenas no meio acadêmico, mas em sede doutrinária

e jurisprudencial.

Adentrando diretamente no tema central desse trabalho, em primeiro é importante

verificar o que diz a atual legislação processual penal sobre o assunto.

Fato é que, ainda na década de 1990, no estado de São Paulo, sinalizou-se pela

realização do chamado interrogatório on line, ou seja, o interrogatório por videoconferência,

em razão dos elevados custos de deslocamento de presos. Essa possibilidade chegou a ser

admitida por alguns juristas que admitiram a utilização do meio eletrônico no interrogatório.

Noutra senda, outros, argumentam pela inconstitucionalidade do instituto por violar o

princípio da dignidade da pessoa humana. Por sua vez, a Lei n.º 10.792/03, que alterou os

dispositivos do Código de Processo Penal referentes ao interrogatório nada mencionou com

relação à possibilidade de videoconferência. Apenas introduziu a possibilidade de ida do

magistrado ao estabelecimento prisional se presentes os requisitos do §1.º do art. 185, Código

de Processo Penal.

De outra margem, a comissão de reforma do Código de Processo Penal já tem pronto o

projeto que atualmente está sendo discutido no Congresso para inserir o interrogatório on line

no ordenamento jurídico brasileiro, como expediente regular e legal de produção de prova e

defesa do réu.

Em verdade, na recente reforma de 2008 tal possibilidade não foi inserida. Por sua

vez, o Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucional a Lei Estadual paulista por

violação da competência privativa da União para legislar sobre o tema.

Nesse contexto, vale atentar para o que dispõe o novel art. 217 do Código de Processo Penal,

inserido pela Lei n.º 11.690/08, que prevê a inquirição do ofendido e das testemunhas por

videoconferência. Com efeito, o atual art. 217 do Código de Processo Penal estabelece que:

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27

Se o juiz verificar que a presença do réu poderá causar humilhação, temor, ou sério

constrangimento à testemunha ou ao ofendido, de modo que prejudique a verdade do

depoimento, fará a inquirição por videoconferência e, somente na impossibilidade

dessa forma, determinará a retirada do réu, prosseguindo na inquirição, com a

presença do seu defensor.

Como se nota pela redação do dispositivo acima transcrito, a recente reforma

processual previu expressamente a utilização da videoconferência no processo penal. No

entanto, também é forçoso aquilatar que tal possibilidade está prevista apenas para a oitiva do

ofendido e de testemunhas, nada sendo mencionado em relação ao interrogatório do acusado.

Ao contrário, a previsão expressa na lei processual é a de que, como regra, o acusado

será interrogado no estabelecimento prisional, devendo juiz e seus auxiliares, promotor e

defensor se dirigirem ao estabelecimento, desde que haja segurança para o ato. Essa é a

redação do art. 185, §1.º do Código de Processo Penal. Vale a pena colacionar:

O interrogatório do acusado preso será feito no estabelecimento prisional em que se

encontrar, em sala própria, desde que estejam garantidas a segurança do juiz e

auxiliares, a presença do defensor e a publicidade do ato. Inexistindo segurança, o

interrogatório será feito nos termos do Código de Processo Penal.

Evidentemente, o legislador demonstrou com tal norma o total desconhecimento da

realidade prisional brasileira, já que em quase a totalidade dos cárceres pátrios é impossível a

realização do interrogatório do preso. Demonstrou ainda desconhecimento da atividade

jurisdicional, pois o tempo de deslocamento e a ausência do magistrado do Fórum causa

sensível impacto na celeridade de tramitação dos processos, celeridade esta eleita como

garantia constitucional (art. 5.º, LXXVIII), pela Emenda Constitucional n.º 45/2004.

Diante disso, a videoconferência viria como forma de equacionar e compatibilizar a

realização do interrogatório do acusado no sistema prisional, sem que o juiz, promotor e

defensor tenham que deixar o Fórum.

No entanto, não seria eloqüente o silêncio do legislador reformista em relação ao

interrogatório, ficando claro que não é admitido tal ato por meio de videoconferência, já que

em relação à vítima e testemunhas fez previsão expressa de ouvi-las por meio eletrônico,

deixando de fazê-lo em relação ao acusado? A mens legis não seria a vedação do

interrogatório por videoconferência?

Ou, noutra margem, seria possível a aplicação analógica do art. 217, CPP, que autoriza

a videoconferência para oitiva do ofendido e testemunha, na hipótese do interrogatório, caso

esteja disponível a tecnologia?

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Nas palavras de Luis Flávio Gomes, Rogério Sanches e Ronaldo Batista, comentando

o dispositivo:

Representa inequívoco avanço que, entretanto, poderia ter ido além, tivesse o

legislador aproveitado para incluir, também, o chamado interrogatório virtual, haja

vista que a declaração de inconstitucionalidade se deu em controle difuso, pela

Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal.

De fato, no HC 88.914, o Ministro César Peluso, relator do caso entende pela

inconstitucionalidade do interrogatório por videoconferência. Vale a pena colacionar:

Quando se impede o regular exercício da autodefesa, por obra da adoção de

procedimento sequer previsto em lei, tem-se agravada a restrição à defesa penal,

enquanto incompatível com o regramento contido no art. 5.º, LV, da Constituição da

República, o que conduz à nulidade absoluta do processo, como a tem reconhecido

este Tribunal, à vista de prejuízo ínsito ao descumprimento da forma procedimental

adequada [...]

Em verdade, não há como negar que a realização do interrogatório do acusado por

meio de videoconferência não está disciplinada na lei e se afasta dos preceitos legais relativos

ao processo, afrontando o devido processo legal.

Não fosse só isso, reconheceu o insigne Ministro que “o interrogatório por meio de

teleconferência viola a publicidade dos atos processuais e que o prejuízo advindo de sua

ocorrência seria intuitivo, embora de demonstração impossível”.

Ademais, o moderno direito processual penal reconhece no interrogatório meio mais

de defesa do que de prova. Assim, o interrogatório é a oportunidade conferida pela lei para

que o acusado possa promover sua autodefesa, independentemente da defesa técnica de seu

causídico. Limitar essa defesa, impossibilitando o contato próximo e direto do acusado com

seu julgador é procedimento que viola a ampla defesa garantida pela Carta Magna.

No escólio de Guilherme de Souza Nucci:

Uma tela de TV ou de computador jamais irá suprir o contato direto que o

magistrado deve ter com o réu, até mesmo para constatar se ele se encontra em

perfeitas condições físicas e mentais. Qual réu, detido numa penitenciária a

quilômetros de distância, sentir-se-á à vontade para denunciar os maus tratos que

vem sofrendo a um juiz encontrado atrás da lente de uma câmera? Qual acusado terá

oportunidade de se soltar diante do magistrado confessando detalhes de um crime

complexo, voltado a um aparelho e não a um ser humano? Por outro lado, qual

julgador terá oportunidade de sentir as menores reações daquele que mente ou ter a

percepção de que o réu conta a verdade visualizando-o por uma tela? Enfim, o ato

processual do interrogatório é importante demais para ser banalizado e relegado ao

singelo contato dos maquinários da tecnologia”.

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29

Na mesma esteira, Nestor Távora e Rosmar Alencar comentando a decisão do STF

asseveram:

Não podia ser outro o entendimento. O interrogatório é ato de fundamental

importância na construção do convencimento do julgador. A expectativa é não só

extrair as informações colhidas com as respostas às perguntas do réu, mas também

sentir o comportamento dele. Os gestos, a atitude do réu na audiência, suas

expressões, os detalhes só perceptíveis por aqueles que estavam presentes ao ato, são

decisivos muitas vezes para o deslinde da causa. Não se pode afastar ainda mais o

julgador do julgado. A indiferença não pode imperar, transformando o interrogatório

num ato pró-forma, um faz de conta a integrar os autos.

Admitir o interrogatório por videoconferência é desconhecer a atividade jurisdicional,

vilipendiar a dignidade da pessoa humana e a publicidade dos atos processuais, vulnerar o

devido processo legal e ignorar a garantia da ampla defesa.

Na verdade, ocorre que o juiz passivo não é recomendável, pois deve o mesmo se

preocupar com a qualidade do resultado do processo visando atingir a justiça. Noutra senda, a

imparcialidade do magistrado é essencial, pois não pode ter interesse no litígio, não podendo

favorecer qualquer das partes. Por fim, é forçoso concluir que a neutralidade não existe, na

medida em que o juiz é um ser humano e suas decisões sempre sofrerão influência de suas

impressões e experiências pessoais.

Assim, as impressões pessoais do magistrado são fatores determinantes na formação

de sua convicção. Além disso, a qualidade da decisão depende da atuação do magistrado na

busca da verdade real. Ora, nesse contexto, o contato pessoal com o acusado, longe de ser

uma mera formalidade processual ou mais um direito do mesmo, é necessário ao magistrado

para que possa através desse contato extrair suas impressões pessoais e buscar do acusado os

elementos suficientes para uma decisão justa, seja para condenar, seja para absolver.

Ademais, o acusado não é um animal do qual se quer distância. Em regra, é vítima da

própria desigualdade social e seu resgate ao convívio com a comunidade passa,

fundamentalmente, por um tratamento humano e solidário, buscando compreender as mazelas

sociais, sem se ignorar a necessidade de punição do crime. Desse modo, renegar o acusado,

afastá-lo ainda mais de seu julgador, é ato de desumanidade. É simplesmente desfazer-se da

condição humana do acusado para tratá-lo como mero objeto da relação processual, em

afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana, esculpido no art. 1.º, III da Constituição

da República de 1988.

Diariamente, na atividade jurisdicional, o que se percebe é que a proximidade do juiz

com os encarcerados, a conversa leal e a capacidade de ouvir aquele que teve sua liberdade

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ceifada são fatores imprescindíveis na manutenção da tranqüilidade e ordem do cárcere, bem

como na busca por uma real chance de recuperação daquele indivíduo que está à margem da

sociedade.

Não é diferente com o acusado. O interrogatório é o momento sublime do processo

penal. É a oportunidade única de ser ter um diálogo direto entre julgador e acusado,

contribuindo sensivelmente para a busca da verdade real. Por outro lado, o acusado aguarda

ansiosamente pela oportunidade de falar com o juiz, de contar sua versão e buscar sua

absolvição.

Nesse ponto se insere a garantia da ampla defesa, prevista no art. 5.º, LV, da

Constituição de 1988. Ampla defesa não é simplesmente entregar ao acusado a possibilidade

de se defender, mas conceder-lhe essa oportunidade com qualidade e real possibilidade de

convencer o magistrado de sua versão. Conversar com a tela da TV não é garantir a ampla

defesa.

Nas palavras de Alexandre de Moraes, “por ampla defesa entende-se o asseguramento

que é dado ao réu de condições que lhe possibilitem trazer para o processo todos os

elementos tendentes a esclarecer a verdade ou mesmo de omitir-se ou calar-se, se entender

necessário [...]”.

Quanto ao devido processo legal, é clarividente sua violação pela realização do

interrogatório por videoconferência. Não há previsão legal para tanto. A lei processual é

expressa em admitir, no máximo, o deslocamento do magistrado ao estabelecimento prisional,

mas em momento algum sinalizou no sentido de realização do ato sem que julgador e acusado

estejam frente a frente.

Ainda nas lições de Alexandre de Moraes, “o devido processo legal configura dupla

proteção ao indivíduo, atuando tanto no âmbito material de proteção ao direito de liberdade,

quanto no âmbito formal, ao assegurar-lhe paridade total de condições com o estado-

persecutor e plenitude de defesa [...]”

Enfim, no atual ordenamento jurídico brasileiro, a nosso sentir, a possibilidade de

realização do interrogatório on line não pode ser admitida, na medida em que não há amparo

legal para tanto. E mesmo que se defenda a tese de que bastaria uma modificação no Código

de Processo Penal, tal alteração legislativa deve ser interpretada à luz do texto constitucional

que garante a ampla defesa, dignidade da pessoa humana e publicidade dos atos processuais.

Na verdade, na hipótese de modificação da norma processual, certamente, seria o Supremo

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31

Tribunal Federal chamado a decidir sobre o assunto e havendo respeitabilíssimas posições em

ambos os sentidos, certamente se instalaria relevante celeuma jurídica no país. É esperar para

ver...

Bibliografia:

CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 13. ed. rev. e atual.. São Paulo: Saraiva, 2006.

CARVALHO, Kildare Gonçalves. 13.ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.

GOMES, Luis Flávio. CUNHA, Rogério Sanches. PINTO, Ronaldo Batista. Comentários às

Reformas do Código de Processo Penal e da Lei de Trânsito. São Paulo: RT, 2008.

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 10.ed., rev.,atual e ampl..São Paulo:

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MORAES, Alexandre de. 23. ed.. São Paulo: Atlas, 2008.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 23.ed.São Paulo: Atlas, 2008.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 8. ed. rev. atual. e

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TÁVORA, Nestor. ALENCAR, Rosmar. Curso de Direito Processual Penal. 2. ed. rev. atual.

e ampl.. Salvador: JusPodivm, 2009.

Page 32: Revista Ciência Dinâmica - 4ª Edição

32

A PRISÃO COMO INSTRUMENTO DE CONTROLE SOCIAL

NA ÓTICA DE MICHEL FOUCAULT: uma análise de “Vigiar e Punir”

Maria Antonieta Rigueira Leal Gurgel1

INTRODUÇÃO

A idéia há muito sedimentada no pensamento moderno, desde a vetusta obra do

italiano Cesare Bonesana, o Marquês de Beccaria2, é a de que a pena de prisão teria

representado um grande avanço nas formas e nos métodos de repressão penal, tendo como

parâmetro os suplícios corporais públicos que eram praticados até então, na denominada era

pré-moderna. Isso porque a noção de penalidade carregava ínsita a noção de vingança, que

iria se abater sobre um indivíduo, especificamente, mas destinava-se a todos os súditos do

soberano, ao corpo social, ainda que fisicamente atingisse uma única pessoa.

Com a publicação de sua mais conhecida obra, Vigiar e Punir, no ano de 1975, o

pensador e epistemólogo francês Paul-Michel Foucault desmistificou a concepção liberal da

pena de prisão acima mencionada, ao realizar um estudo científico acerca da evolução do

Direito Penal e dos meios de coerção utilizados pelo Estado na repressão da criminalidade.

A questão do poder e de seu exercício sempre foi tema central em todas as análises

de Foucault. Entretanto, em Vigiar e Punir, a abordagem centra-se em uma nova forma de

poder, aplicada agora sobre o corpo humano, não para martirizá-lo, mas sim para discipliná-

lo, tornando-o útil e dócil, tendo nas instituições prisionais seu exemplo mais nítido e

proeminente. Por essa razão, é que Foucault, para analisar os métodos punitivos, centra-se no

modelo corporificador da tecnologia de poder, que tanto respaldo encontrou nos tempos

modernos: a prisão.

1 A autora é mestre em Teoria Geral do Estado e Direito Constitucional, com ênfase em Direitos Humanos, pela

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC/Rio; professora de Direito Penal e Processo Penal da

Escola de Estudos Superiores de Viçosa e da Faculdade Dinâmica do Vale do Piranga; Defensora Pública do

Estado de Minas Gerais. 2 Aos 26 anos de idade, no ano de 1764, o Marquês de Beccaria escreveu sua mais famosa obra “Dei Delitti e

delle Penne”, após passar uma temporada no cárcere, por influência do seu pai, que não admitia a união do filho

nobre com uma jovem de família pobre, Teresa de Blasco. Sentindo na pele as agruras da masmorra do século

XVIII, Beccaria as denunciou, protestando contra os julgamentos secretos, a tortura, o confisco, as penas

degradantes, atrozes e desproporcionais aos delitos praticados. Defendeu os princípios da legalidade e da

igualdade de todos perante a lei. Apesar do estilo metafórico e muitas vezes prolixo, Beccaria com seu “Dos

Delitos e das Penas” deu sua contribuição, principalmente em seu teorema final, para o estudo das penas.

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33

Partindo da idéia de que o poder disciplinar está pulverizado em várias instituições

sociais (“microfísicas do poder”3), e não apenas no Estado, Foucault passa pelo modelo do

Panóptico, explicitado por Jeremy Bentham, para chegar até o que chamou de panoptismo,

como técnica moderna e eficaz de dominação.

Paul-Michel Foucault nasceu em 15 de outubro de 1926, em Poitiers, França. De

família de médicos (seu avô paterno, o materno e seu pai eram cirurgiões e este último

professor de Anatomia), Foucault, contrariando a vontade do pai, seguiu rumo à Filosofia e,

em 1945, mudou-se para Paris, onde ingressou na École Normale da rue d‟Ulm, em 1946.

Era solitário, arredio e anti-social, e no mês e ano em que se licenciou em Filosofia,

pela Sorbone (1948), tentou o suicídio, fato que levou Foucault para um tratamento

psiquiátrico e permitiu a ele o contato com a psiquiatria, a psicologia e a psicanálise, também

marcantes em sua obra.

Em 1949, licenciou-se em Psicologia, também pela Sorbone e, já em 1952, após ter

cursado o Instituto de Psychologie, obteve diploma em Psicologia Patológica. Foi leitor de

Platão, Hegel, Kant, Marx, Nietzsche, Husserl, Heidegger, Freud, Kafka e Bachelard, de

quem foi aluno.

Lecionou em diversas universidades e também trabalhou durante muito tempo como

psicólogo em hospitais psiquiátricos e prisões. Foucault esteve no Brasil em 1965, a convite

de um ex-aluno seu, onde fez conferências sobre A verdade e as formas jurídicas. Fez parte

da criação do GIP (Grupo de Informações sobre as prisões), em 1971, dele tendo participado e

acompanhado algumas rebeliões em estabelecimentos penitenciários franceses.4 Publicou

várias obras5 e morreu em 25 de junho de 1984, no auge de sua produção intelectual.

O fato é que Foucault marcou profundamente o pensamento contemporâneo,

principalmente com suas teorizações acerca do poder, do saber e do sujeito, centrando suas

análises em alguns aspectos da vida social que a razão moderna pretendeu excluir ou taxar de

desviante, para tentar normalizá-los.

3- O termo “Microfísica do poder” é também um livro de Foucault, lançado em 1979. Trata-se de uma coletânea de

textos (artigos, entrevistas, cursos, debates, dentre outros), onde a abordagem recai sobre variadas questões

relacionadas à psiquiatria, geografia, economia, sexualidade e, como não poderia deixar de ser, à prisão, à justiça

e ao Estado. 4- Logo depois de sua experiência junto a esse órgão, Michel Foucault publica, em 1975, a primeira edição de seu

Vigiar e Punir. 5- Dentre elas, podemos citar: Doença mental e Psicologia (1954); História da Loucura (1961); Raymond

Roussel (1963); O nascimento da clínica (1963); As palavras e as coisas (1966); A arqueologia do saber

(1969); A ordem do discurso (1970); Vigiar e Punir (1977); A vontade do saber – História da sexualidade I

(1976); O uso dos prazeres – História da sexualidade II (1984); O cuidado de si – História da sexualidade

III (1984).

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34

O presente ensaio pretende revisitar a obra mais conhecida e festejada do

epistemólogo francês Paul-Michel Foucault, sem pretender a inovação ou a originalidade, já

que muito sobre ela foi escrito. O objetivo é adentrar na sua análise acerca da prisão, para

buscar uma visão panorâmica de seu pensamento.

1. SUPLÍCIO

Michel Foucault, logo na primeira página de Vigiar e Punir, descortina, aos olhos

dos leitores, um espetáculo macabro: a história de Damiens, em meados do século XVII,

parricida condenado a pedir perdão publicamente diante da igreja de Paris. Vestido apenas

com uma camisola, o condenado é atenazado nos mamilos, braços e pernas e na sua mão

direita segura a faca, com que cometeu seu crime, queimada com fogo de enxofre. Sobre seu

corpo, são derramados chumbo derretido, óleo fervente, piche em fogo, cera e enxofre

derretidos, tudo ao mesmo tempo. Depois disso, Damiens é puxado por cavalos, até seus

membros se desprenderem do tronco, o que ocorre não sem muitas dificuldades. Por fim, suas

partes são atiradas ao fogo e reduzidas a cinzas.

A esse ponto, o que o estudioso francês pretende não é denunciar ao mundo uma

prática bárbara do suplício do corpo humano, mas sim definir o estilo da execução penal de

toda uma época, na qual as amputações, os esquartejamentos, as fogueiras, as rodas de tortura

e os enforcamentos eram freqüentemente utilizados. Os suplícios eram, ao mesmo tempo, um

procedimento técnico e um ritual, aptos a infligir o maior sofrimento possível ao condenado,

considerando a natureza do crime por ele cometido, e também a demonstrar o poder daquele

que pune sobre o que é punido, não somente para ele, mas para todos os demais súditos que

assistiam, vibrantes, ao espetáculo público da punição.

Destarte, o suplício penal deveria tatuar o criminoso, lançando-lhe marcas indeléveis,

para que em suas memórias guardasse para sempre a lembrança da tortura, da exposição e da

humilhação pública, do sofrimento sentido na própria carne. Ao mesmo tempo, deveria ser a

expressão do poder do soberano6 triunfante sobre a atitude criminosa; uma resposta, um

verdadeiro castigo, para aquele que desobedeceu às leis estatais.

6 FOUCAULT (2002, p.41-43) explica: “O crime, além de sua vítima imediata, ataca o soberano; ataca-o

pessoalmente, pois a lei vale como vontade do soberano; ataca-o fisicamente, pois a força da lei é a força do

príncipe (...). A cerimônia do suplício coloca em plena luz a relação de força que dá poder à lei.”

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Nesse sentido, “o suplício judiciário deve ser compreendido também como um ritual

político. Faz parte, mesmo num modo menor, das cerimônias pelas quais se manifesta o

poder.” (FOUCAULT, 2002, p.41).

E, sendo assim, o povo desempenhava papel fundamental, enquanto espectadores das

cerimônias de suplício, já que, além da punição direta a um indivíduo, visava-se à

conscientização de todos a respeito da séria possibilidade de punição, no caso de cometimento

de delitos, acarretando efeito aterrorizador nas consciências daqueles que assistiam ao

cerimonial violento.

Entretanto, os efeitos dessa lógica passaram a não ser mais sentidos da forma como

eram esperados. Isso porque os condenados, muitas vezes, eram passíveis da admiração ou da

compaixão da multidão agitada. A iminência da morte encorajava os moribundos, que

bradavam, contra os representantes do poder estatal, palavras presas na garganta do povo. E

tais efeitos eram potencializados, se a condenação parecia, aos olhos da platéia, injusta.7

Os crimes cometidos acabavam no esquecimento, mas os condenados eram sempre

lembrados por sua postura diante do sofrimento. O Estado, a seu turno, se distanciava da

figura de protetor dos cidadãos, para incorporar o monstro sedento de sangue, mais selvagem

e violento que os próprios criminosos.

Em contraponto à narrativa da execução pública, o autor relata o exemplo da

utilização do tempo, desde o amanhecer até a hora do recolhimento noturno, apenas três

décadas mais tarde, na Casa de Jovens Detentos de Paris8. Parece não haver mais sofrimento,

apenas a definição de uma rotina fria e milimetricamente calculada de educação e trabalho.

Isso demonstra a passagem da era dos suplícios (que já tinham se tornado negativos,

extremamente violentos, até mesmo intoleráveis) para uma fase de castigo sem sofrimento

físico, no decorrer do século XVIII.

Nesse sentido, assevera FOUCAULT (2002, p.14):

(...) as práticas punitivas se tornaram pudicas. Não tocar mais no corpo, ou o mínimo

possível, e para atingir nele algo que não é o corpo propriamente. Dir-se-á: a prisão,

a reclusão, os trabalhos forçados, a servidão de forçados, a interdição de domicílio, a

deportação – que parte tão importante tiveram nos sistemas penais modernos – são

penas „físicas‟: com exceção da multa, se referem diretamente ao corpo. Mas a

relação castigo-corpo não é idêntica ao que ela era nos suplícios. O corpo encontra-

se aí em posição de instrumento ou de intermediário; qualquer intervenção sobre ele

pelo enclausuramento, pelo trabalho obrigatório visa privar o indivíduo de sua

7Nesse ponto, FOUCAULT (2002, p.51) já menciona as diferenças existentes entre os tipos de condenação a que

eram submetidos os ricos e os pobres, mesmo que tivessem cometido a mesma modalidade criminosa. 8- FOUCAULT, 2002, p.10-11.

Page 36: Revista Ciência Dinâmica - 4ª Edição

36

liberdade considerada ao mesmo tempo como um direito e um bem. Segundo essa

penalidade, o corpo é colocado num sistema de coação e de privação, de obrigações

e de interdições. O sofrimento físico, a dor do corpo não são mais os elementos

constitutivos da pena. O castigo passou de uma arte de sensações insuportáveis a

uma economia de direitos suspensos. Se a justiça ainda tiver que manipular e tocar o

corpo dos justiçáveis, tal se fará à distância, propriamente, segundo regras rígidas e

visando a um objetivo bem mais „elevado‟.

A partir daí, o epistemólogo francês lança suas reflexões sobre a passagem da era dos

castigos corporais públicos e sangrentos para a disciplina rígida, torturante e oculta das

prisões.

2. PUNIÇÃO

Iniciou-se um processo de transformação do direito penal, para deslocá-lo do foco da

vingança do soberano para a defesa da sociedade, visando a constituição de uma nova

tecnologia do poder de punir.9

A pena deveria ter o objetivo de prevenir novos delitos, mas a punição só se

justificaria se fosse aplicada na justa medida para impedir as práticas criminosas. O exemplo

da penalidade perde sua característica de ritual, e passa a ser um sinal destinado a criar

barreiras naturais contra a delinqüência.10

Destarte, o poder de punir passa a se firmar sobre uma tecnologia de representação,

bem explicitada nessa passagem de FOUCAULT (2002, p.87):

Encontrar para um crime o castigo que convém é encontrar a desvantagem cuja idéia

seja tal que torne definitivamente sem atração a idéia de um delito. É uma arte de

energias que se combatem, arte das imagens que se associam, fabricação de ligações

estáveis que desafiem o tempo. Importa constituir pares de representação de valores

opostos, instaurar diferenças quantitativas entre as forças em questão, estabelecer

um jogo de sinais-obstáculos que possam submeter o movimento das forças a uma

relação de poder.

9- FOUCAULT (2002, p.76).

10FOUCAULT (2002, p.79) explicita as regras mais importantes com as quais se procurou dotar o poder de punir

nessa fase: regra da quantidade mínima (o delito é cometido porque traz vantagem; se o seu cometimento

estivesse ligado a uma idéia de desvantagem um pouco maior, ele seria indesejável); regra da identidade

suficiente (a eficácia da pena está na desvantagem que se espera dela, ou seja, é a representação da pena que

deve ser maximizada, não sua realidade corpórea); regra dos efeitos laterais (a pena deve ter efeitos mais

intensos naqueles que não cometeram a falta); regra da certeza perfeita (a idéia do crime e das suas vantagens

devem necessariamente estar associadas à idéia de um castigo correspondente e não a da impunidade); regra da

verdade comum (a verificação do crime deve obedecer aos critérios legais da verificação de qualquer verdade) e

regra da especificação ideal (todas as infrações penais têm que ser qualificadas e reunidas em códigos que não

deixem à margem dele nenhuma conduta ilícita).

Page 37: Revista Ciência Dinâmica - 4ª Edição

37

Para seu funcionamento ideal, a nova mecânica da punição deveria obedecer a

algumas condições, dentre elas: o afastamento da arbitrariedade, a diminuição da atração

provocada pelo delito, substituindo-a pelo temor da pena; a definição de um termo final para a

maioria das penas11

; a propagação nos demais membros do corpo social dos efeitos da sanção

penal; a necessidade de rápida resposta penal para o crime e o criminoso; inversão do

tradicional discurso de glorificação da delinqüência para mostrar o crime como um mal, e o

criminoso como um inimigo, a quem se deve reeducar para a vida em sociedade, dentro de

regras pré-estabelecidas.

A partir daí, descortina-se o projeto da instituição carcerária, no qual a punição é

uma técnica de coerção dos indivíduos, ou seja, não se pune para apagar o crime, mas sim

para transformar aquele indivíduo por ele responsável.

A punição passa a significar a tentativa de exterminar as condutas indesejáveis, mas

sempre com uma intenção disciplinadora, por meio da utilização de diversos mecanismos

corretivos (FOUCAULT, 2002, p.106):

O aparelho da penalidade corretiva age de maneira totalmente diversa. O ponto de

aplicação da pena não é a representação, é o corpo, é o tempo, são os gestos e as

atividades de todos os dias; a alma, também, mas na medida em que é sede de

hábitos. O corpo e a alma, como princípios dos comportamentos, formam o

elemento que agora é proposto à intervenção punitiva. Mais que sobre uma arte de

representações, ela deve repousar sobre uma manipulação refletida do indivíduo (...)

Quanto aos instrumentos utilizados, não são mais jogos de representação que são

reforçados e que se faz circular; mas forma s de coerção, esquemas de limitação

aplicados e repetidos. Exercícios, e não sinais: horários, distribuição de tempo,

movimentos obrigatórios, atividades regulares, meditação solitária, trabalho em

comum, silêncio, aplicação, respeito, bons hábitos. E, finalmente, o que se procura

reconstruir nessa técnica de correção não é tanto o sujeito de direito, que se encontra

preso nos interesses fundamentais do pacto social: é o sujeito obediente, o indivíduo

sujeito a regras, hábitos, ordens, uma autoridade que se exerce continuamente sobre

ele e em torno dele, e que ele deve deixar funcionar automaticamente nele.

A partir deste ponto, o foco da análise de Foucault é transportado para a disciplina

das instituições carcerárias e os mecanimos, explícitos e implícitos nela existentes,utilizados

para domesticar os indivíduos.

3. DISCIPLINA

A disciplina visa atingir a utilidade e a docilidade do corpo, como uma nova técnica

de controle de suas operações. Para tanto, lança mão de dois dispositivos para impor seu

11

FOUCAULT (2002, p.89) utiliza a expressão “utilidade de uma modulação temporal” das penas.

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poder e sua autoridade: a distribuição dos indivíduos em espaços fechados e heterogêneos,

onde cada qual tem um papel definido e um lugar determinado e o controle das atividades

fixado em horários rígidos e previamente determinados.

Assim, o novo poder disciplinar volta-se para o adestramento das pessoas12

, não

apenas no interior dos estabelecimentos prisionais, mas em outros espaços distintos, tais como

os quartéis militares, as escolas, os hospitais, e até mesmo em instituições sociais, como a

família e a igreja. O adestramento eficaz deve guiar-se por três mecanismos: a vigilância

hierárquica, a sanção normalizadora e o exame.

A vigilância hierárquica pressupõe um mecanismo de constante vigília, ou seja, os

indivíduos submetidos ao processo de adestramento devem sentir-se constantemente vigiados;

era o olhar disciplinador anônimo que tudo via13

, refletindo-se, sobremaneira, na arquitetura

de todas as instituições estatais e sociais de controle. Surge o modelo do Panóptico,

idealizado por Jeremy Bentham e descrito com precisão por FOUCAULT (2002, p.165-166):

O Panóptico de Bentham é a figura arquitetural dessa composição. O princípio é

conhecido: na periferia uma construção em anel; no centro, uma torre; esta é vazada

de largas janelas que se abrem sob a face interna do anel; a construção periférica é

dividida em celas, cada uma atravessando toda a espessura da construção; elas têm

duas janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra, que dá

para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar

um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um

condenado, um operário ou um escolar. Pelo efeito da contraluz, pode-se perceber da

torre, recortando-se exatamente sobre a claridade, as pequenas silhuetas cativas nas

celas da periferia. Tantas jaulas, tantos pequenos teatros, em que cada ator está

sozinho, perfeitamente individualizado e constantemente visível. O dispositivo

panóptico organiza unidades especiais que permitem ver sem parar e reconhecer

imediatamente. Em suma, o princípio da masmorra é invertido; ou antes, de suas três

funções – trancar, privar de luz e esconder – só se conserva a primeira e suprimem-

se as outras duas. A plena luz e o olhar de um vigia captam melhor que a sombra,

que finalmente protegia. A visibilidade é uma armadilha.”

Com tal descrição, o pensador francês ressalta os efeitos mais significantes do

modelo panóptico, que é o de induzir no indivíduo uma percepção contínua e permanente de

visibilidade, tornando possível o exercício automático de um poder invisível. O essencial é

12

FOUCAULT (2002, p. 143) explica: “O poder disciplinar é, com efeito, um poder que, em vez de se apropriar e

de retirar, tem como função maior „adestrar‟, ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e

melhor. Ele não amarra as forças para reduzi-las; procura ligá-las para multiplicá-las e utilizá-las num todo. Em

vez de dobrar uniformemente e por massa tudo o que lhe está submetido, separa, analisa e diferencia, leva seus

processos de decomposição até as singularidades necessárias e suficientes. „Adestra‟ as multidões confusas,

móveis, inúteis de corpos e forças para uma multiplicidade de elementos individuais – pequenas células

separadas, autonomias orgânicas, identidades e continuidades genéticas, segmentos combinatórios. A disciplina

„fabrica‟ indivíduos: ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como

objetos e como instrumentos de seu exercício.” 13

Esse modelo, inegavelmente, é lembrado na leitura da obra de George Orwell, 1984, na figura do “Big Brother”,

na vigilância constante, na estranha sensação de ser visto sem ver.

Page 39: Revista Ciência Dinâmica - 4ª Edição

39

que o condenado saiba que está sendo ininterruptamente vigiado, mesmo que tal realidade não

se apresente faticamente, já que a ele não é dada a possibilidade de verificação.14

Por sua vez, a sanção normalizadora traduz toda uma “micropenalidade do tempo”,

das atividades, do modo de se comportar, da sexualidade, da postura do corpo, visando atingir

e aniquilar os comportamentos desviantes, tanto nos orfanatos, nas escolas, nos quartéis, nas

fábricas e oficinas, como também, e principalmente, nos estabelecimentos prisionais.

Por fim, o exame reúne as técnicas da hierarquia que vigia e da sanção que

normaliza, permitindo a qualificação, a classificação e a punição. “O exame supõe um

mecanismo que liga um certo tipo de formação de saber a uma certa forma de exercício do

poder” (FOUCAULT, 2002, p.156), fazendo a inversão da economia de visibilidade no

exercício do poder, ao mesmo tempo em que transporta a individualidade para o campo

documentário, transformando cada indivíduo em um caso.

4. PRISÃO

Michel Foucault delimita o período compreendido entre o final do XVIII e o início

do século XIX como o marco para o acesso do sistema penal à característica da

“humanidade”, através da consagração da prisão como a pena por excelência.

Não obstante isso, e desde então, é de conhecimento de todos que ela é perigosa, na

maioria das vezes, e até inútil, em muitas situações e extremamente cara. Entretanto, a

sociedade pós-moderna ainda não visualizou o que poderia substituí-la, fazendo com que o

discurso a respeito de sua aceitação e necessidade, fosse quase hegemônico. “Ela é a

detestável solução, de que não se pode abrir mão.” (FOUCAULT, 2002, p. 196)15

, só que não

mais voltada para o castigo físico, simbólico e exemplar, mas para a disciplina do corpo e da

alma do recluso, buscando a obtenção de “corpos dóceis e úteis”.

14

FOUCAULT (2002, p.170) ressalta a polivalência da aplicação do modelo panóptico: “serve para emendar os

prisioneiros, mas também para cuidar dos doentes, instruir os escolares, guardar os loucos, fiscalizar os

operários, fazer trabalhar os mendigos e ociosos. É um tipo de implantação dos corpos no espaço, de distribuição

dos indivíduos em relação mútua, de organização hierárquica, de disposição dos centros e dos canais de poder,

de definição de seus instrumentos e modos de intervenção, que se podem utilizar nos hospitais, nas oficinas, nas

escolas, nas prisões. Cada vez que se tratar de uma multiplicidade de indivíduos a que se deve impor uma tarefa

ou comportamento, o esquema panóptico poderá ser utilizado.” 15

Nesse sentido é que RADBRUCH, Gustavo. Filosofia do Direito, 5ª ed., rev. e acrescida (Trad. L. Cabral

Moncada), Coimbra, ed. A. Amado, 1974, v. II, p. 97, seguindo a linha de que a prisão parece corporificar o

significado do sistema penal, afirma que “não precisamos de um Direito Penal melhor; mas de algo melhor do

que o Direito Penal.”

Page 40: Revista Ciência Dinâmica - 4ª Edição

40

A prisão deve promover uma disciplina incessante, lançando sua atuação sobre os

reclusos de forma contínua, em um local de isolamento do criminoso do mundo exterior, e de

encontro consigo mesmo.16

Sintetizando sua opinião sobre a prisão, FOUCAULT (2002, p. 214) afirma:

A prisão, essa região mais sombria do aparelho da justiça, é o local onde o poder de

punir, que não ousa mais se exercer com o rosto descoberto, organiza

silenciosamente um campo de objetividade em que o castigo poderá funcionar em

plena luz como terapêutica e a sentença se inscrever entre os discursos do saber.

Compreende-se que a justiça tenha adotado tão facilmente uma prisão que não fora,

entretanto, filha de seus pensamentos. Ela lhe era agradecida por isso.

Foucault abandona o paradigma clássico de enfoque dos efeitos negativos da

repressão da criminalidade, para analisar os efeitos positivos da prisão, como estratégia

política de dominação, definidora da moderna tecnologia do poder de punir, atuante sobre os

corpos, para criar docilidade e utilidade.

Ressalta a lógica invertida do sistema carcerário e o seu fracasso: ao invés de reduzir

a criminalidade, introduz os condenados em verdadeiras escolas do crime, estimulando a

reincidência e contribuindo para a organização da delinqüência.

Michel Foucault busca uma explicação para a manutenção desse modelo falido,

concluindo que ele não desapareceu porque não atinge seus objetivos idealizados (repressão e

diminuição da criminalidade), mas alcança plenamente seus objetivos reais e ocultos (a

repressão seletiva da criminalidade, a produção e individualização do delinqüente como

“sujeito patologizado”17

), que tem cunho nitidamente político de submissão.

A teoria da criminalidade e da prisão construída por Foucault afasta a natureza

criminosa de determinados indivíduos, para desnudar o crime como um jogo de forças, a

depender da posição de classe ocupada pelo sujeito.

CONCLUSÃO

Com Vigiar e punir, Michel Foucault pretendeu contar a história do poder punitivo,

partindo dos suplícios carnais da época medieval, apresentados como espetáculos públicos

16

A discussão sobre o isolamento traz à tona a análise sobre os dois sistemas penitenciários americanos: o de

Auburn e o de Filadélfia, ambos adeptos do absoluto confinamento do condenado. 17

FOUCAULT (2002, p.230) utiliza essa expressão, no meu entender, para dizer que o indivíduo egresso do

sistema penitenciário ficará para sempre marcado com o seu brutal estigma, já que passará a ser alvo da polícia,

terá que exibir sua folha de registros criminais, encontrará dificuldades em se recolocar profissionalmente; verá

sua vida pessoal e familiar ser completamente desestruturada.

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41

dantescos, até aportar no poder disciplinar exercido sobre os corpos condenados da era

moderna.

Percebe-se, nitidamente, que o poder disciplinar não foi implementado apenas nos

estabelecimentos prisionais, mas em várias outras instituições de controle social: as escolas,

os orfanatos, os hospitais, as clínicas psiquiátricas, os conventos, as fábricas, estendendo sua

poderosa e invisível teia sobre todos os indivíduos, levando-nos à inevitável conclusão de que

os microssistemas de poder estão espalhados por toda a parte (visando a produção em massa

de corpos dóceis e úteis) e não centralizados apenas no aparelho estatal.

Esse momento histórico coincidiu com o surgimento de saberes antes inexistentes

(por exemplo, a Pedagogia, a Psicologia, a Psiquiatria e a Criminologia), porque se

encontravam presentes as condições políticas de possibilidade, tão mencionadas por Foucault.

Em Vigiar e punir, Foucault analisa as formas de punição, de modo inovador,

abandonando o paradigma tradicional, para centrar-se nas tecnologias de saber/poder,

presentes nos mecanismos de controle social, encontrando na prisão um dos ambientes mais

propícios, ante as possibilidades quase infinitas de adestramento dos condenados.

Alguns estudiosos das ciências penais viram na inédita análise de Foucault um quê

de desdém, em relação às punições bárbaras praticadas em outras épocas. Na verdade,

considerando sua atuação junto ao sistema prisional francês, e junto à sua população (como

psicólogo e membro do GIP – Grupo de Informações sobre as Prisões), ousamos discordar de

tais posicionamentos. Ao que parece, Foucault pretendeu transmitir a mensagem de que as

atuais práticas carcerárias (e o poder disciplinar a elas indissociavelmente ligado) é que

devem ser tidas como intoleráveis, no tempo por nós vivenciado.

E assim o é porque já restou amplamente demonstrado o fracasso da pena de prisão,

pelo menos no que toca aos seus objetivos imaginados de reeducar e disciplinar, matando o

criminoso e devolvendo o homem à sociedade.

Foucault não acredita na genética do crime, produtora de uma natureza criminógena,

e aponta para as forças que, segundo a classe a que pertencerem, poderão levá-los ao poder ou

à prisão. Emblemática é a sua afirmação, com a qual finalizamos esse breve ensaio: “Pobres,

os magistrados de hoje sem dúvida povoariam os campos de trabalhos forçados; e os

forçados, se fossem bem nascidos, tomariam assento nos tribunais e aí distribuiriam justiça.”

(FOUCAULT, 2002, p. 240).

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42

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BECCARIA, Cesare Bonesana. Dos delitos e das penas. [Tradução J. Cretella Júnior e

Agnes Cretella]. 2 ed. rev. e ampl., 2. tir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.

BENTHAM, Jeremy. O Panóptico. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.

FOUCAULT, Paul-Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 25. ed. [Tradução de

Raquel Ramalhete]. Petrópolis, Vozes, 2002.

______. Microfísica do poder. Organização e tradução de Roberto Machado. 4. ed., Rio

de Janeiro: Edições Graal, 1984.

ORWELL, George. 1984. 11. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1978.

RADBRUCH, Gustavo. Filosofia do Direito. Coimbra: Coleção STVDIVM, trad. do Prof. Cabral de

Moncada, Armênio Amado Editor, 1974.

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A RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANO CAUSADO AO PATRIMÔNIO

HISTÓRICO E CULTURAL

Arimaire Alvernáz1

RESUMO: Através de um estudo histórico da responsabilidade civil e de uma pesquisa

teórica multidisciplinar, busca-se a compreensão de como o referido instituto pode ser

utilizado para a reparação de dano ao patrimônio histórico e cultural, tendo em vista que se

trata de bem de natureza peculiar, ou seja, um bem ou interesse meta individual. Busca-se,

ainda, identificar qual o modelo de responsabilidade civil que melhor se adequa quando se

trata de ressarcimento de dano ao bem jurídico patrimônio histórico e cultural.

Palavras-chaves: Responsabilidade civil; dano imaterial. Patrimônio histórico e cultural.

ABSTRACT: Through a historical study of the civil liability of a multidisciplinary

theoretical research seeks to understand how the institute that might be used for repair damage

to historic and cultural heritage in order that it is very likely peculiar, or goods or interest

metaindividual. The aim is also to identify which model best fits liability when it comes to

compensation for damage to the legal history and cultural heritage.

Keywords: Responsability civil; dano imaterial; historical and cultural heritage.

1 INTRODUÇÃO

A responsabilidade civil é um dos institutos do Direito que mais vem sofrendo

mutações desde o seu surgimento. E, uma das principais razões destas mutações é a

necessidade de adequação do instituto em tela frente à ocorrência de danos a bens jurídicos

que não se limitam à esfera individual, atingindo a esfera jurídica de um número

indeterminável de pessoas, ou seja, bens ou interesses cujos titulares são anônimos. Dentre os

bens jurídicos cuja dimensão os caracteriza como interesse difuso, metaindividual,

transindividual ou plurisubjetivo, destaca-se o patrimônio histórico e cultural.

Através do art. 216, a nossa CR/88, a par de reconhecer a existência de valores

próprios aos bens coletivos materiais e imateriais relevantes para preservação da memória

1 Bacharel em Direito pelo Instituto de Ensino Superior de João Monlevade. Especialista em Direito Processual

pelo Instituto de Ensino Superior de João Monlevade. Advogada e Professora do Curso de Direito da Faculdade

Dinâmica de Ponte Nova-MG.

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nacional, considera tais bens como parte integrante do patrimônio cultural brasileiro

independentemente de qualquer ato de tombamento, protegendo assim as funções históricas e

culturais nos mesmos existentes pelo seu valor intrínseco. Assim, toda e qualquer intervenção

que venha a prejudicar tais funções é passível de criar obrigação de sua desconstituição, para

conseqüente recomposição do interesse coletivo subjacente à essa proteção específica.

Não obstante tal relevância, inexiste em nosso ordenamento jurídico um diploma legal

que trace de forma explícita e sistemática, como se dá a tutela jurídica do patrimônio histórico

e cultural em caso de lesão. O mesmo não ocorre nos casos do dano ao meio ambiente, caso

em que o ordenamento jurídico pátrio, já traz um arcabouço de normas jurídicas que permitem

responsabilizar o causador do dano, prevendo, inclusive, o modelo de responsabilidade civil

aplicável in casu.

Diante dessa constatação, a presente pesquisa justifica-se pela necessidade de se

investigar o modelo de responsabilidade civil que deve ser aplicado na ocorrência de danos ao

patrimônio histórico e cultural, bem como a forma de reparação do dano mais adequada à

natureza do bem jurídico em questão. Isto porque, está "em jogo" interesses e valores de um

número indeterminável de sujeitos, tendo todos eles o direito de ter sua esfera jurídica

recomposta em caso de lesão, demandando do intérprete e aplicador do Direito um esforço e

sensibilidade ímpar, a fim de garantir, ao máximo, o restabelecimento do equilíbrio rompido

no seio social, quando da ocorrência de danos a interesses que trazem em si mesmos, imensa

conflituosidade e complexidade.

Os objetivos fundamentais dessa pesquisa são: identificar a natureza da

responsabilidade civil por dano ao patrimônio histórico e cultural, visando a constatação do

modelo de responsabilidade mais adequado à reparação deste dano, tendo em vista o fim

último do instituto, qual seja, o restabelecimento do equilíbrio rompido por ocasião de um

dano e identificar critérios que devem ser utilizados para se definir a reparação adequada do

dano ao patrimônio histórico e cultural, tendo em vista a natureza peculiar deste bem jurídico.

Para tanto, procurou-se descrever o atual estágio do instituto responsabilidade civil no

Direito brasileiro, identificar as inovações trazidas pelo novo Código Civil em relação ao

instituto, verificar como se dá a proteção jurídica do patrimônio histórico e cultural e, por fim,

constatar de que maneira a responsabilidade civil pode ser aplicada ao patrimônio histórico e

cultural, quando este bem jurídico tiver sido violado.

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45

2 RESPONSABILIDADE CIVIL: UM INSTITUTO EM CONSTANTE MUTAÇÃO

Antes de mergulharmos no estudo da responsabilidade civil por dano causado ao

patrimônio histórico e cultural, faz-se mister, empreendermos uma igual ou mais difícil tarefa:

tentar desvendar os contornos e, principalmente, o fundamento precípuo do complexo e

fascinante instituto em questão.

Desde logo, esclareço não ter a pretensão de resolver os dissídios que permeiam o

arcabouço conceitual da responsabilidade civil. Até mesmo os mais ilustres pesquisadores da

matéria, como os Mazeaud não esconderam a tentação de enfrentar o instituto sem defini-lo.2

Também, em nosso Direito, Pontes de Miranda, um dos maiores e mais importantes

privatistas, deixou sem resposta a indagação básica do em que consiste a responsabilidade

civil. 3

Todavia, considero, como já mencionado anteriormente, requisito indispensável para

uma melhor compreensão do instituto em nosso Direito , conceituá-lo tendo em vista o seu

fundamento primeiro, sem nos preocuparmos, por ora, de inserir a culpa ou o risco dentre seus

elementos fundamentais, muito menos em identificar o modelo de responsabilidade civil que

deve ser aplicado em caso de lesão ao patrimônio histórico e cultural. A falta deste esforço

conceitual pode ser considerado, talvez, como a gênese de muitos dos equívocos cometidos

nas investigações acerca do tema.

Existe no Direito um princípio basilar do neminem laedere, considerado por muitos

como fundamento intangível da responsabilidade civil. Hodiernamente, porém, as

preocupações impostas pela nova realidade social suscitam problemas que não podem ser

solucionados com recurso apenas ao aludido princípio geral proibitivo. Em sede de

responsabilidade civil, o desafio imposto ao Direito consiste, contemporaneamente, em

estabelecer não apenas o alicerce principiológico de uma disciplina reparatória, mas,

sobretudo, assentar um fundamento axilológico para essa reparação.4

Não percebemos, entretanto, tal preocupação ao analisarmos as teorias dominantes

sobre o instituto, quais sejam, aquelas derivadas dos modelos subjetivo e objetivo, que,

vagando em outros terrenos, forjam concepções estreitas, as quais envelhecem

prematuramente em virtude do desenvolvimento de novas práticas sociais.

2 DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995, V.I, p. 13.

3 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade civil. 8. ed. São Paulo: Forense, 1996, p.8.

4 MELO, Albertino Daniel de. Estudo sobre o fundamento da responsabilidade civil in Revista de Direito da

UFMG, Belo Horizonte,nº18, p.331-346, mai./1977.

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Nesse sentido, de um lado, sempre sustentaram ardorosamente os subjetivistas ser a

culpa o fundamento, a pedra angular essencial da responsabilidade civil, sem a qual inexiste o

direito à reparação. De outra parte, os objetivistas, críticos ferrenhos do modelo subjetivo,

debruçaram-se na tentativa de ampliar os contornos do instituto, pela substituição da noção de

culpa, pela idéia do risco!

Aparentemente antagônicos, tais modelos, deveriam, em verdade, ter como

fundamento último o restabelecimento de um equilíbrio rompido no seio social por ocasião de

um dano. Como bem adverte João Baptista Villela ao procurar assentar que:

Na teoria da responsabilidade civil, o que se procura obter, em última análise, á a

restauração de uma igualdade destruída . Qualquer que seja o fundamento que se lhe

dê- culpa ou risco- é a um resultado igualitário- reconstitutivo que se objetiva.5

Indubitavelmente, pois, as teorias dominantes no instituto em tela, não fizeram mais

do que procurar encontrar quem deveria suportar o dano, incorrendo assim num mesmo

equívoco: o de procurar o fundamento da responsabilidade civil dentro de seus próprios

fundamentos estruturais, esquecendo-se que o mesmo, por apresentar natureza valorativa,

encontra-se extrínseco a estes modelos concretos de regulação da disciplina reparatória.

Além disso, abandonar como princípio norteador do instituto o fundamento último do

mesmo, compromete e muito, a sua correta e eficaz aplicação.

Diante dessa premissa, ou seja, do reconhecimento da insuficiência dos modelos de

responsabilidade civil para atingir o fim precípuo do instituto, quando analisados de maneira

estanque, é que compreenderemos, a partir do próximo ponto a ser discutido no presente

trabalho, como se deu a evolução do instituto no Direito Civil brasileiro, e procuraremos

demonstrar a impossibilidade de se bem equacionar os problemas suscitados neste setor do

Direito pela aplicação de um modelo de responsabilidade civil em detrimento do outro, pois,

como afirma Aguiar Dias, “a culpa e o risco não são mais que critérios possíveis, mais ou

menos freqüentes. A distribuição do ônus do prejuízo atende, primordialmente, ao interesse da

paz social.”6

5 VILELLA, João Baptista. Para além dos lucro e do dano: efeitos sociais benéficos do risco,in Repertório

IOB de Jurisprudência, Belo Horizonte, 1991, nº 22, p.490. 6 DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995. Vol. I, p.43.

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2.1 O sistema de responsabilidade adotado no Código Civil brasileiro de 1916

Sempre que falamos em responsabilidade civil, temos, a priori, a idéia de que somente

o “culpado” deve responder pelo dano causado a outrem. Esta concepção repousa em um

princípio moral existente em todo ser humano e, em termos jurídicos, deriva do antigo dever

geral do neminem laedere.

Partindo-se desse pressuposto, o legislador de 1916 consagrou, no Código Civil, a

teoria da culpa, ou seja, o modelo eminentemente subjetivo de responsabilidade civil. Para

tanto, recebeu inspiração direta do Código Civil francês de 1804, que pela primeira vez

explicitou, de forma inequívoca, a idéia de culpa, como pedra angular da responsabilidade

civil, sem a qual não se poderia sequer indagar sobre o direito ao ressarcimento do prejuízo

causado por um fato danoso.

Da análise do artigo 159 do nosso Código Civil de 1916, podemos afirmar, com

amparo nas observações de Gustavo Tepedino, que três eram os pressupostos básicos da

responsabilidade civil , quais sejam: a conduta culposa do agente, o dano e o nexo causal

entre a conduta e o dano.7 Dessa forma, podemos concluir que o legislador de 1916 adotou de

forma explícita a teoria da culpa como princípio regulador da responsabilidade civil, tomando

como parâmetro o Código Civil francês.

Paradoxalmente, entretanto, na época em que entrava em vigor o nosso Código Civil,

já se encontrava em curso na França, um notável esforço doutrinário, capitaneado por

Sailelles e Josserrand, para atualizar a exegese do artigo 1.382 do Código de Napoleão, em

virtude da necessidade de adaptá-lo às exigências do progresso verificado a partir de sua

entrada em vigor. Já brotava daí uma vigorosa tentativa de se desmitificar o dogma da culpa.

O Código Civil brasileiro, entretanto, muito embora tenha previsto exceções à teoria

da culpa, deixou-se impregnar por completo das idéias subjacentes ao modelo subjetivista.

Dessa maneira, mesmo onde o legislador procurou afastar sua incidência, as hipóteses

excepcionais nunca lograram alcançar a extensão pretendida. Por conseguinte, como bem

observou Afrânio Lyra, “em matéria de responsabilidade civil, o Código brasileiro nasceu

velho.”8

7 TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 178.

8 LYRA, Afrânio. Responsabilidade Civil. Salvador: Bahia, 1977, p. 69.

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2.1.1 A concepção de culpa presente no Código de 1916

Tomando a culpa como fundamento da responsabilidade civil, o artigo 159 do Código

Civil brasileiro de 1916, inspirado no artigo 1.382 do Code9, estabeleceu que o ressarcimento

do prejuízo não tem fundamento num fato qualquer do homem, mas apenas naqueles fatos

humanos em que o agente procede com culpa.10

Daí dizer-se que, no modelo adotado pelo

legislador de 1916, o âmago da responsabilidade está na pessoa do agente e em seu

comportamento contrário ao Direito.

A culpa exigida pelo dispositivo supratranscrito deve ser tomada em seu sentido lato,

isto é, abrange não apenas a culpa strictu sensu ( derivada de imprudência, negligência ou

imperícia), com também o dolo. Neste ponto, importante salientar que o nosso Direito

desprezou a gradação de culpa em leve, levíssima e grave, feita, notadamente, pelos

doutrinadores franceses.

É neste sentido que, em seu magnífico trabalho de comentário ao nosso Código Civil,

Clóvis Beviláqua, acentua ser o ato ilícito a violação de direito ou o dano causado a outrem

por dolo ou culpa. Vale dizer : o ato ilícito pressupõe a culpa lato sensu do agente, ou seja, a

intenção de violar o direito alheio ou de prejudicar outrem (dolo), e, ainda, a violação de

direito proveniente de imprudência ou negligência.

Além disso, em face do artigo em tela, o elemento subjetivo do ato ilícito, como causa

do dever de indenizar, está na imputabilidade do agente, ou seja, a culpa deve ser apreciada in

concreto, no momento da ação ou omissão, devendo o autor do dano ter a capacidade de

entender e de querer no momento em que foi cometido o fato danoso.

A propósito da distinção entre culpa contratual e extracontratual, o nosso Código,

acompanhando o modelo de legislações mais antigas, a manteve. Todavia, na definição deste

elemento subjetivo, carece de importância tal distinção, como já o havia dito o nosso Pontes

de Miranda: “A culpa é a mesma, para a infração contratual e para a extracontratual. O adágio

in lege Aquilia et levissima culpa venit não significa que deva ser mais grave a culpa

contratual.”11

9 Dispõe o art.1.382 do Código Napoleônico: “Tout fait quelconque de l‟homme, qui cause à autrui un dommage,

oblige celui par la faute duquel il est arrivé, à la repárer”. 10

PEREIRA, Caio Mário da. Responsabilidade Civil. 8. ed. São Paulo: Forense, 1996, p. 32. 11

MIRANDA, Pontes de. Fontes e evolução do direito civil brasileiro. Rio de Janeiro, 1985 apud José de

Aguiar Dias. Da Responsabildade Civil. 10. ed. V.I, Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 124.

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Destarte, ao consagrar a idéia de culpa, temos que, segundo o preceito genérico

instituído no Código Civil brasileiro, o elemento anímico ou volitivo constitui pressuposto

fundamental para o surgimento da obrigação de indenizar.

2.1.2 Ônus da prova na teoria subjetiva

O modelo de responsabilidade civil adotado em 1916 tem no que se refere ao ônus da

prova a fonte de seus maiores problemas.

Daí que a teoria subjetiva, não sem razão, é freqüentemente tachada como

individualista e liberal. A razão para tal entendimento remonta ao fato de que o ônus da prova

dos elementos exigidos para a configuração da responsabilidade, segundo a teoria subjetiva

(culpa, dano e nexo de causalidade),cabe exclusivamente à vítima. É a adoção do princípio

“actori incumbitio probatio”. E, como se opera o ônus probandi segundo tal princípio?

Com relação ao elemento dano, é indispensável que o prejudicado prove não apenas

que o fato do qual se queixa é capaz de gerar um dano hipotético, mas que prove o dano

concreto, ou seja, aquele que ele efetivamente sofreu. O nexo entre o fato e o dano, também

deve ser provado de forma inequívoca, uma vez que o prejuízo sofrido deve ter como causa

direta o fato danoso, praticado pelo autor. Porém, a demonstração que exige esforço singular,

por demandar uma investigação de índole anímica, consiste na prova do substractum do

modelo subjetivo, qual seja, a culpa do responsável.

Neste contexto, apesar de a vítima ter à sua disposição todos os meios de prova, já que

inexiste limitação em relação à matéria, exigindo-se dela, em todos os casos a prova de que o

agente agiu ou deixou de agir culposamente, o modelo subjetivo, em sua feição clássica,

deixa-a a mercê da mais completa desproteção. Isso porque, em havendo dúvida, o juiz

encontra-se forçado a rejeitar a ação indenizatória da vítima, que geralmente não consegue ver

ressarcido o seu prejuízo. Daí afirmar Caio Mário, com lastro em De Page, que, no sistema de

responsabilidade civil arrimado na teoria subjetiva clássica, “a irresponsabilidade era a regra;

a responsabilidade, a exceção.”12

Desta forma, num contexto em que a responsabilidade era transferida ao próprio

lesado,13

frustando-se a possibilidade de restabelecimento do equilíbrio social rompido com o

12

PEREIRA, Caio Mário. Responsabilidade civil. 8. ed. São Paulo: Forense, 1996,p. 30. 13

LYRA, Afrânio. Responsabilidade Civil. Salvador:s.e, 1977. p.65.

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50

advento do dano, diversas críticas foram dirigidas ao modelo adotado pelo legislador de 1916,

dentre as quais destacam-se, como principais, as seguintes:

1ª) A noção de culpa é estreita, e não abarca todos os casos da vida social em ocorre dano;

2ª) Exigindo-se da vítima a prova de todos os elementos essenciais na responsabilidade

subjetiva, principalmente a culpa, difícil torna-se o restabelecimento do equilíbrio rompido;

3ª) Além disso, a teoria da responsabilidade fundamentada na culpa, não encontra explicação

para a responsabilidade dos entes coletivos, eis que, as pessoas coletivas, não tendo vontade

própria, jamais poderiam incorrer em culpa e, conseqüência nunca seriam responsabilizadas

por quaisquer danos.

Assim, após a entrada em vigor do Código Civil brasileiro de 1916, o que se observou,

foi o progressivo abandono do paradigma actori incumbitio probatio em matéria de

responsabilidade civil, aliado ao esforço da doutrina e da jurisprudência de ampliar a noção de

culpa, presumindo-a em diversas situações.

2.2 Alargamento da noção de culpa: culpa indireta e presunção de culpa

Não obstante ter sido a teoria da responsabilidade civil fundada na tradicional idéia da

culpa alvo de inúmeras críticas, seus defensores, ao invés de construírem um novo modelo de

responsabilidade, desprovido do “velho conceito”, preferiram lançar mão de meios técnicos

que pudessem alargar a noção , sem, no entanto, abandoná-la.

Entre estes meios, dois se destacam: a construção do conceito de culpa indireta e a

adoção da presunção de culpa, que, segundo Afrânio Lyra, transformaram o instituto em uma

mentira jurídica, que, cercada de artifícios, mascarava a realidade.14

De que maneira, operou, no Direito brasileiro tais mudanças?

Primeiramente, é importante ressaltar que estes processos de expansão conceitual da

culpa e modificação do ônus probatório surgiram de preceitos legais existentes no próprio

Código Civil de 1916. Em segundo lugar, ambos os processos foram obra, a princípio, da

jurisprudência, que, através da exegese das normas jurídicas, procurou refutar as críticas

dirigidas ao modelo subjetivo, através da tentativa de se dirimir os novos conflitos que

surgiam e não encontravam solução segundo os cânones tradicionais do modelo. Iniciou-se

14

LYRA, Afrânio. Responsabilidade Civil. Salvador: s.e.,1977, p.58.

Page 51: Revista Ciência Dinâmica - 4ª Edição

51

assim, em nosso Direito, um intenso fenômeno de flexibilização do conceito de culpa,

elemento intocável até então.

A culpa indireta foi adotada nos artigos 1.518 a 1.521do Código Civil, nos quais o

legislador brasileiro logrou atribuir o dever de reparar o dano, não apenas àqueles que, por

ação própria e culposa, deram causa a um dano, mas também aos que faltassem com o dever

objetivo de vigilância sobre as pessoas que estivessem sob sua guarda ou dever de boa

escolha de prepostos, incorrendo, respectivamente, na culpa in vigilando e in elegendo.

Entretanto, pela sua simples adoção, não conseguiu o nosso legislador ampliar a

efetividade da tutela pretendida, pois, à luz do art. 1.523 do antigo Código Civil, as pessoas

referidas nos artigos supra transcritos, em regra, só seriam responsáveis se se provasse que

elas concorreram para o dano por culpa ou negligência. Por isso, a concepção trazida pelo

Código não é objetivista como afirmaram alguns e nem mesmo presumia a culpa dos

indiretamente responsáveis.15

Por conseguinte, dada a insuficiência do preceito legal, coube à jurisprudência realizar

uma interpretação extensiva do artigo 1.523, presumindo a culpa de forma jures tantum, o que

representou um avanço considerável em matéria de responsabilidade civil, facilitando o êxito

da vítima quanto à decisão judicial, já que inverteu-se com isso o ônus da prova. Tal postura

jurisprudencial, mais tarde, seria sumulada no enunciado nº 341 do Supremo Tribunal

Federal.16

Por outro lado, tomando por base a culpa presumida das estradas de ferro pelos danos

provocados a seus usuários, estabelecida no art. 17 do Decreto-lei nº 2.681 de 1912, a

jurisprudência estendeu a presunção de falta subjetiva a todas as modalidades de transporte.

No entanto, notável era a insuficiência da adoção dos procedimentos supracitados,

dado o caráter tópico e emergencial dos mesmos. Indubitavelmente, estes não conseguiam

solucionar um número cada vez maior de problemas oriundos das transformações nos

processos produtivos e, conseqüentemente, do aumento dos riscos impessoais inerentes às

sociedades urbanizadas e da grande mobilidade social. Fazia-se, mister, pois, a formulação de

uma teoria capaz de abarcar não problemas pontuais e pré-determinados, mas sim, que fosse

capaz de solucionar as lesões em massa que se multiplicavam diariamente.

15

TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 179. 16

Dispõe a súmula 341, do STF:

"É presumida a culpa do patrão ou comitente pelo ato culposo do empregado ou preposto."

Page 52: Revista Ciência Dinâmica - 4ª Edição

52

3 SURGIMENTO DO MODELO OBJETIVO DE RESPONSABILIDADE CIVIL NO

DIREITO BRASILEIRO

Sem dúvida, após a exaustão da tentativa de se ampliar a concepção de culpa, não

havia mais razão de se insistir em fundamentar o sistema de responsabilidade civil brasileiro

na idéia sintetizada na conhecida fórmula de Ihering: “Sem culpa, nenhuma reparação.”17

Assim, seguindo as teorias objetivas de responsabilidade civil que há muito haviam

sido proclamadas, especialmente na França, o nosso Direito procurou estabelecer novo

fundamento para a obrigação de indenizar.

Mas, não foi fácil tal tarefa. No âmbito de nosso Estatuto Civil, como sabemos,

embora tenha previsto em seu corpo normativo, sub-sistemas que trazem a marca da

responsabilidade objetiva, como aqueles estruturados pelos arts.1.519 e 1.520 do Código de

1916 , nunca passaram estes, de exceções à regra geral do art.159 do citado diploma legal.

Necessitava, ainda, o nosso Direito de abandonar o dogma da culpa, como princípio absoluto

no campo da responsabilidade.

No entretanto, nos primeiros tempos, o entendimento dominante , e ainda hoje, entre

muitos de nossos doutrinadores, é que não deve o modelo objetivo substituir o subjetivo. Tal é

o pensamento de, por exemplo, Orozimbo Nonato, como bem se observa:

O que não é possível é negar a existência, nesses e em outros casos de

responsabilidade, do elemento moral, e perigoso seria, generalizando, pretender

substituir o elemento central da culpa pelo da normalidade, ou da confiança, ou do

risco ou da causalidade objetiva, que escondem uma idéia repugnante à nossa

sensibilidade jurídica e que, pretendendo a moralizar o direito, procura destruí-lo em

seus fundamentos primários.18

Mas não faltaram defensores da teoria objetiva no Direito brasileiro, dentre os quais

não se pode deixar de mencionar Aguiar Dias, que, em sua obra Responsabilidade Civil,

procurou demonstrar a insuficiência da regra clássica da culpa e, ainda, rebateu diversas

críticas que foram dirigidas à responsabilidade civil objetiva, como, por exemplo, a de que a

doutrina do risco faz abstração da personalidade humana.

Além destes, Alvino Lima, com sua preciosa monografia Culpa e Risco, defendeu

ardorosamente o modelo objetivo, como sendo o mais consonante com os novos ditames da

17

IHERING, apud Afrânio Lyra. Responsabilidade Civil. Salvador: s.e, 1977, p. 65. 18

NONATO, Orosimbo. Aspectos do Modernismo Jurídico e Elemento moral na culpa objetiva, conferência

pronunciada no Instituto dos Advogados Brasileiros em 1930 e inserta em Rev. Forense, v.56, p.5 e seguintes

apud Wilson Melo da Silva. Responsabilidade sem culpa e socialização do risco. Belo Horizonte: Editora

Bernardo Álvares, 1962, p. 131.

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53

vida moderna. Com relação à adoção deste pelo nosso Direito, assim manifestou o autor em

tela: “não nos devemos encastelar dentro de princípios abstratos, ou de preceitos envelhecidos

para a nossa época, só por amor à lógica dos homens, à vaidade de concepções, ou à

intransigência de moralistas de gabinete.”19

Por sua vez, a respeito deste movimento de surgimento da responsabilidade objetiva

em nosso Direito e seu acolhimento, principalmente em leis esparsas, o grande mestre

Orlando Gomes, vincula, como outros autores, o apogeu da culpa aos áureos períodos de

prevalência, no Direito, da doutrina individualista. Dentro desta perspectiva, apresenta o risco

como a doutrina contemporânea que mais evidencia a expansão das tendências da

socialização do Direito. Assevera, ainda, que a multiplicação em nosso Direito, de leis

especiais, acolhedoras da tese nova, é prova do desprestígio marcante da doutrina subjetiva e

termina por assinalar que seria pretender negar-se a própria evidência não se admitir que uma

influência, cada vez mais crescente, se faz sentir, por parte da tese da responsabilidade

objetiva, nos arraiais adversos da culpa. 20

O próprio Clóvis Beviláqua, autor de nosso Código de 1916, afirma que embora tenha

distinguido, no Código, entre dolo e culpa, não faz depender desta ou daquele a obrigação de

indenizar. Ou seja, admite o autor que a responsabilidade não está adstrita ao modelo clássico

adotado pelo Código, podendo-se admitir outros modelos de responsabilidade não previstos

no mesmo .

Assim, podemos concluir que, se, em nosso Estatuto Civil, o legislador não

estabeleceu um verdadeiro sistema de responsabilidade civil objetiva, as leis esparsas e

subseqüentes acolheram notoriamente o princípio, que, assim, paulatinamente, passou a servir

de modelo subsidiário.

3.1 A pulverização do modelo objetivo de responsabilidade civil em nosso Direito

Fazendo-se um estudo das diversas leis especiais ou esparsas que previram o modelo

de responsabilidade desvinculado da velha e clássica culpa, calcado apenas nos elementos

nexo causal e dano, encontraremos no Dec. nº 2.681 de 1912, que já fora mencionado

anteriormente, a primeira manifestação, em nossa legislação, do modelo objetivo de

19

LIMA, Alvino. Culpa e Risco. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1960, págs. 348-349. 20

GOMES, Orlando. A Crise do Direito. São Paulo: Limonad apud Wilson Melo da Silva. Responsabilidade

sem culpa e socialização do risco. Belo Horizonte: Bernardo Álvares, 1962. p. 134.

Page 54: Revista Ciência Dinâmica - 4ª Edição

54

responsabilidade civil. Tal decreto, mesmo anterior ao nosso Código Civil, regulamentava a

responsabilidade por acidentes nas estradas de ferro sob a égide do modelo objetivo,

dispondo, por exemplo quanto aos danos sofridos pelos proprietários marginais da linha, que a

responsabilidade das estradas de ferro será objetiva, mesmo se tais prejuízos forem resultante

de força maior ou caso fortuito. A única escusativa para tal responsabilidade seria se o dano

adviesse do fato de o proprietário contrariar alguma disposição legal ou regulamentar

concernente a edificações, plantações, escavações, depósito de materiais ou guarda de gado à

beira das estradas de ferro.21

Vale ressaltar que o aludido decreto, foi regulamentado pelo

Decreto nº 51.813/63 e alterado pelos decretos 59.809 e 58.365, ambos de 1966 e pelo decreto

61.488/67, mantendo-se, contudo, na mesma orientação quanto à natureza da responsabilidade

pelos fatos em questão.

No que tange aos acidentes de trabalho, profundamente objetivista, o Decreto nº

13.724/19, atualmente, regulamentado pelo Dec. nº 79.037/76, que manteve a mesma

orientação anterior, pois que, segundo os dispositivos deste decreto, o operário vitimado

sempre fará jus à sua indenização, havendo ou não culpa sua ou do patrão. É a adoção da

teoria do risco profissional, segundo a qual, a responsabilidade é inerente à atividade exercida

pelo empresário, sem que se leve em consideração o elemento culpa do patrão ou do

empregado.

Ainda com relação à responsabilidade do transportador, no transporte aéreo, nítida é a

incidência da teoria objetiva, no regime estabelecido pelo antigo Código Brasileiro de Ar, no

que se refere à responsabilidade causada pelos danos a terceiro na superfície, quando

provocados diretamente por aeronave em vôo ou manobra, assim como por pessoa ou coisa

dela caída ou projetada (arts.268 e 269, lei nº 7.656 de 19 de dezembro de 1986, antigo

decreto-lei nº 483.

Com relação aos demais meios de transporte, quais sejam, ônibus, bondes, elevadores

e automóveis, nossos juízes e tribunais, têm aplicado analogamente a teoria objetiva adotada

na responsabilidade por acidente ferroviário.

Outro importante setor da vida social em que se percebe uma clara ingerência do

modelo objetivo de responsabilidade é nas atividades do Estado, não importando-nos, nesta

feita, incluir tal tipo de responsabilidade no Direito público ou privado. O que nos interessa

neste ponto é sabermos que impera no que tange à responsabilidade dos entes estatais, a teoria

21

DINIZ, Maria Helena. 13. ed. Curso de Direito Civil Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1999. Vol. 7, p.52.

Page 55: Revista Ciência Dinâmica - 4ª Edição

55

do risco administrativo, hoje expressamente prevista na CF/88, tendo sido derrogada a regra

do art.15 do nosso Código Civil22

, a qual se filiava à teoria da culpa administrativa do agente

estatal. Assim, sob a égide do Art.37,§6º da CF/88, aplica-se a teoria do risco administrativo,

não apenas às pessoas jurídicas de direito público, mas também aos entes privados prestadores

de serviços públicos, de forma que, na responsabilidade civil do Estado:

torna-se de menor importância o saber se o ato foi praticado com culpa ou sem

culpa, se era lícito ou ilícito; o que ocorre é que em decorrência do Estado de

Direito, Estado controlado e submetido ao direito, não resulta aceitável a causação

de danos, a incidência de lesões sobre alguns, decorrentes do exercício de uma

atividade estatal que procura o bem-estar de todos sem o preço da sobrecarga de

alguns.23

Também nas relações de consumo, é notório o acolhimento da teoria objetiva da

responsabilidade, após o advento do Código de Defesa do Consumidor, aprovado pela Lei

8.078, de 11 de setembro de1990. Tratando das relações jurídicas entre consumidor e

fornecedor, os cânones da referida lei dispõem que a responsabilidade do fabricante, produtor,

construtor, nacional ou estrangeiro, e do importador é objetiva, ou seja, respondem, os

mencionados fornecedores independentemente da existência de culpa(art.12). Igualmente,

responderá, independentemente de culpa, o fornecedor dos serviços, pela reparação dos danos

causados aos consumidores por defeitos relativos à sua prestação, bem como por informações

insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.

Diante desta sistemática, cabe ao consumidor, apenas, provar o dano e o nexo causal

com o produto ou serviço prestado. Ou seja, conforme comenta Eduardo Gabriel Saad, o

Código não quer “que o consumidor prove a culpa do fornecedor, mas damos como evidente

que aquele tem de provar o nexo de causalidade entre o dano alegado e o produto adquirido

ou serviço prestado”.24

22

Art. 15, CC: “As pessoas jurídicas de direito público são civilmente responsáveis por atos dos seus

representantes que nessa qualidade causem danos a terceiros, procedendo de modo contrário ao direito ou

faltando a dever prescrito por lei, salvo direito regressivo contra os causadores do dano.” 23

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 1993,

p. 187. 24

SAAD, Eduardo Gabriel. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 1. ed. São Paulo: LTr,

p.129 apud Alvino Lima. Culpa e risco.2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1988, p. 323.

Page 56: Revista Ciência Dinâmica - 4ª Edição

56

3.2 Fundamento da responsabilidade civil objetiva: teoria do risco

Como é cediço, a teoria da responsabilidade civil desvinculada do elemento moral

culpa surgiu em virtude de razões de ordem prática e social que, paulatinamente demostraram

a insuficiência do modelo tradicional. Tentativas foram feitas para se deixar intacta a

responsabilidade subjetiva, mas estas não foram suficientes para resolver todos os casos não

solucionáveis pela teoria clássica.

E, assim como para os subjetivistas o elemento essencial da responsabilidade é a

culpa, reside no risco o fundamento da responsabilidade objetiva. No entanto, constitui ainda,

um ponto obscuro em nosso ordenamento jurídico, especialmente no campo doutrinário, um

conceito satisfatório para este elemento.

Para o ilustre civilista Caio Mário, v.g., o conceito de risco que melhor se adapta às

condições da vida social é o que se fixa no fato de que, se alguém coloca em funcionamento

uma qualquer atividade, responderá pelos eventos danosos que esta atividade gerar para os

indivíduos, independente de indagar-se se houve, em cada caso isoladamente considerado,

negligência, imprudência, ou um erro de conduta, configurando-se, assim, a teoria do risco

criado do qual o referido autor é adepto.25

Outros autores, trilhando um novo caminho, adotam a teoria do risco- proveito,

sintetizada no brocardo ubi emolumentum, ibi onus, para a qual, quem por suas atividades

colhe benefícios, deve, por justiça, suportar também os encargos, carregar os ônus, responder

pelos riscos disseminados.26

A última teoria exposta, todavia, parece-nos padecer de grave defeito, pois o que se

deve entender por “proveito”? Qualquer atividade poderia está maculada deste tipo de risco?

A respeito disso, eis as palavras do mestre Alvino Lima:

a objeção é demasiadamente superficial, porque o proveito não se determina

concretamente, mas é tido como finalidade da atividade criadora do risco. Se agimos

criando um risco ameaçador da integridade ou do patrimônio de terceiro,

procuramos tirar desta atividade o proveito maior possível. Se não conseguimos,

nem por isso deixamos de criar o risco, tendo em vista uma finalidade de lucro, sem

que a vítima tenha concorrido para a sua realização.27

25

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade Civil.8. ed. São Paulo: Forense, 1996, p.270. 26

DÍAZ, Jullio Alberto. Responsabilidade Coletiva. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 47. 27

LIMA, Alvino. Culpa e risco. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1960, p.212.

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57

Apesar das controvérsias, no que todos os autores estão concordes é que pela teoria

objetiva fundada no risco, denominada por alguns de teoria da causalidade, exige-se do lesado

que prove apenas o dano e a relação de causalidade entre o fato desenvolvido em determinada

atividade e o dano causado por ele, sendo este último elemento tomado de forma inflexível,

assim como a culpa o era nos seus tempos de triunfo.

Importante e revolucionária consideração, acerca dos efeitos sociais do risco foi

realizada pelo catedrático João Baptista Vilella, talvez preocupado com a exacerbação da

teoria do risco entre nós. Ao analisar um caso verídico em que ocorreu o dano provocado por

uma substância de uso farmacêutico, que, posteriormente foi utilizada eficazmente no

combate de outras manifestações patológicas, o autor assim se expressa:

não parece teoricamente absurda a hipótese de que o risco, além de lucros e danos

imediatos, possam advir resultados sociais úteis. Para essa eventualidade cabe ao

direito desenvolver respostas que neutralizem ou reduzam a responsabilidade civil

dos agentes que puseram em marcha a atividade arriscada. Não, evidentemente, por

modo a encurtar o direito dos que tenham sido lesados. Mas, quem sabe, na linha de

uma compensação por parte do Estado, que exprime os interesses da coletividade.

Será esta, com efeito e em resumo, a beneficiária dos proveitos do risco.”28

Está

aqui, um alerta para aqueles que tomam a teoria do risco de foram extremista e,

muitas vezes, irracional e absoluta, incorrendo no mesmo erro dos fiéis escudeiros

da teoria da culpa, uma vez que como assevera o referido autor, se o acaso serve

para condenar, poderia, também, servir para premiar, pois o progresso é

indispensável à todos os seres humanos.29

Outra importante tendência, defendida ardorosamente por Wilson Melo da Silva, é a

da socialização dos riscos. Segundo tal teoria o indivíduo constitui não uma unidade isolada,

independente, meramente egocêntrica. Ao contrário, faz parte de um organismo social, no

qual , faz-se mister, a prevalência da solidariedade sobre o egoísmo. Somente desta forma

minimizarão as misérias humanas, segundo o aludido autor.30

Acresce, ainda, que a

socialização dos riscos oferece perspectivas promissoras, pois que não leva a cerceamento da

livre atividade e da iniciativa de ninguém, introduzindo no Direito um critério mais eqüitativo

de distribuição de justiça, uma vez que os prêmios cobrados variariam conforme a

28

VILELLA, João Baptista. Para Além do Lucro e do Dano: Efeitos Sociais Benéficos do Risco. Repertório

IOB de Jurisprudêcia. São Paulo, n.22/91, p. 489-90, nov. 1991, R.J. 3, 2ª quinzena. 29

VILELLA, João Baptista. Para Além do Lucro e do Dano: Efeitos Sociais Benéficos do Risco. Repertório

IOB de Jurisprudêcia. São Paulo, n.22/91, p. 489-90, nov. 1991, R.J. 3, 2ª quinzena. 30

SILVA, Wilson Melo da. Responsabilidade sem culpa e socialização do risco. Belo Hrizonte: Editora

Bernardo Álvares, 1962, p.349.

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58

probabilidade da atividade produzir danos. Quanto maior a probabilidade, maior o montante a

ser pago.31

Neste ponto, vale a pena ressaltar que o nosso Direito não veda a produção de riscos,

eis que isso seria inibir as atividades produtivas. O que se pune, é o dano, provocado pelo

exercício de uma atividade qualquer da qual decorra uma probabilidade de ocorrência de

lesões.

4 ESTÁGIO ATUAL DO INSTITUTO NO DIREITO BRASILEIRO: SISTEMA

DUALISTA DE RESPONSABILIDADE CIVIL

Não obstante seja evidente o acolhimento cada vez maior da teoria objetiva em nosso

Direito, temos consagrado, no ordenamento jurídico pátrio, inequivocadamente, os dois

modelos de responsabilidade civil, o clássico, calcado no antigo art.159 do Código Civil de

1916, que tem como fonte o ato ilícito, e as normas reguladoras da responsabilidade sem

culpa, informadas por fonte legislativa que, a cada dia, se torna mais volumosa.32

Delineia-se, assim, no nosso ordenamento jurídico, um verdadeiro sistema dualista de

responsabilidade, orientado não pelos fundamentos culpa ou risco, como pretende a quase

totalidade dos autores filiados a cada uma das teorias, mas sim, assentado no fundamento

maior do instituto, explicitado no início do presente trabalho, que consiste no

restabelecimento do equilíbrio rompido no seio social pela ocorrência de um fato danoso. É

deste, portanto, que emana o sistema geral de responsabilidade civil. Note-se, neste ponto,

que a tônica deste instituto modificou-se, substancialmente, com a entrada em vigor do novo

Código Civil, eis que em seu art. 927, parágrafo único33

, existe a previsão em caráter geral do

modelo objetivo de responsabilidade que, hodiernamente, existe no ordenamento jurídico

pátrio apenas em caráter tópico e pulverizado.

E, ainda com relação ao sistema dualista de responsabilidade existente em nosso

Direito, conforme lição de Caio Mário, deve-se admitir a convivência das duas doutrinas, pois

que seria inexato extirpar do nosso ordenamento uma ou outra: a culpa exprimiria a noção

31

SILVA, Wilson Melo da. Responsabilidade sem culpa e socialização do risco. Belo Hrizonte: Editora

Bernardo Álvares, 1962, p.351.

32

TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p.177. 33

Art. 927, parágrafo único do novo Código Civil: Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de

culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano

implicar, por sua natureza, riscos para o direito de outrem.

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59

básica e o princípio geral definidor da responsabilidade, aplicando-se a doutrina do risco nos

casos em que a lei prevê, ou quando a lesão provém de situação criada por quem explora

profissão ou atividade que sujeitou o lesado ao risco do dano que sofreu.34

Marco importante para tal constatação é a Constituição de 5 de outubro de 1988, que

trouxe em seu corpo normativo uma série de princípios, tais como o da solidariedade social e

da justiça distributiva, previstos no art.3º, incisos I e II da Carta Magna, segundo os quais

constituem em objetivos fundamentais da República a construção de uma sociedade livre,

justa e solidária, bem como a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das

desigualdades sociais e regionais. Tais princípios, não podem, pois, deixar de moldar os

contornos da responsabilidade civil.

Além disso, prevê a Constituição de 1988, certas hipóteses de responsabilidade

objetiva e de seguro social, que constituem verdadeiras marcas da preocupação do constituinte

com mecanismos para a socialização dos riscos.

Daí que o instituto, apesar de tradicionalmente ser objeto de discussões na seara do

Direito Privado, não deve ser tomado para interpretação e estudo de maneira estanque, pois

isso só empobreceria o Direito. Devemos, assim, entendermos, que inevitavelmente a Carta

Magna de 1988, com sua ideologia democrática, influencia e muito o instituto da

responsabilidade civil, pois que nenhum outro instituto jurídico é tão fortemente marcado pela

idéia de justiça quanto este.

Assim, podemos concluir que o sistema dualista da responsabilidade civil no Direito

brasileiro, busca seu fundamento e legitimidade, não apenas nos preceitos do nosso Código

Civil e das diversas leis especiais acerca do instituto, como também, na nossa Constituição,

eis que deve ser orientado pelos princípios inseridos na mesma, que convergem para dois:

justiça social e igualdade entre os membros do organismo social. Desta forma, nos casos em

que tal igualdade for rompida deve-se buscar o restabelecimento da mesma, de maneira a

obter o máximo de justiça, independente da maneira pela qual se conseguirá tal feito.

5 CONCEITO DE PATRIMÔNIO HISTÓRICO E CULTURAL

Após verificarmos o estágio atual da evolução do instituto Responsabilidade Civil em

nosso Direito, cabe-nos agora, a tentativa heróica de definir o bem jurídico patrimônio

histórico e cultural.

34

PEREIRA, Caio Mário. Responsabilidade Civil. 8. ed. São Paulo: Forense, 1996, p.268.

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60

Antes, porém, nos reportaremos ao sociólogo, Clifford Geertz para quem é impossível

definir universalmente o que seja cultura, uma vez que "as muitas formas que esse conceito

assume não são mais que produtos da experiência histórica particular das sociedades que o

manifestaram"35

. Defende o antropólogo:

O conceito de cultura (...) é essencialmente semiótico. Acreditando, como Max

Weber que o homem é um animal amarrado as teias de significados que ele

mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e sua análise; portanto,

não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência

interpretativa, à procura do significado.36

Disso se infere ser inviável a tentativa de muitos, que teimam em definir de maneira

geral e indeterminada o conteúdo do conceito de cultura, uma vez que este é extremamente

diversificado e mutante, consoante o desenvolvimento de cada povo. Tentar defini-lo seria,

pois, chegar à conclusão de que este conceito não tem conteúdo.

O conceito de patrimônio histórico e cultural constitucional que passaremos a expor é

fruto de uma evolução contínua, eis que nossa Carta Magna adota uma ótica mais abrangente

reconhecendo o patrimônio cultural como a memória de vida da sociedade brasileira,

elencando assim, tanto elementos materiais como imateriais. 37

No seu art. 216, a nossa CR,

refere-se à expressão "patrimônio cultural" como sendo constituído pelos bens de natureza

material e imaterial, tomados individualmente ou em seu conjunto, portadores de referência à

identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira,

consagrando além da visão mais ampla do que seja patrimônio cultural, dois princípios de

grande relevância, quais sejam, o da diversidade cultural e o da autonomia da cultura, cujos

significados coadunam com a conclusão do antropólogo Clifford Geertz já apresentada, no

que tange à impossibilidade de se definir o conteúdo da cultura de um determinado povo.

Outro ponto que é importante destacarmos é que o bem jurídico em tela é classificado

dentro do gênero interesse metaindividual, como sendo um interesse difuso, que tem como

características básicas: a indeterminação dos sujeitos; a indivisibilidade do objeto; a intensa

conflituosidade interna e a transição ou mutação no tempo e no espaço.

A indeterminação dos sujeitos significa que os interesses difusos não são referíveis a

um titular específico ou determinável, como ocorre com o esquema tradicional de relação

jurídica com a qual somos habituados a tratar. A sua tutela deriva não da titularidade, mas da

35

GEERTZ, Clifford. A interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1989, p. 53. 36

GEERTZ, Clifford. A interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1989, p. 59. 37

O Decreto nº 3.551 , publicado no Diário Oficial de 7 de setembro de 2000, instituiu o registro de bens

culturais de natureza imaterial, como forma de proteção aos mesmos.

Page 61: Revista Ciência Dinâmica - 4ª Edição

61

relevância social, em si, desses interesses chamados difusos. Tais interesses não comportam,

por sua própria natureza, aglutinação em grupos sociais definidos a priori. Isso quer dizer

que:

se o interesse é sempre uma relação entre uma pessoa e um bem, no caso dos

interesses difusos essa relação é super ou metaindividual, isto é, ela se estabelece

entre uma certa coletividade, como sujeito, e um dado bem de vida "difuso", como

objeto.38

Por serem insuscetíveis de apropriação a título exclusivo, referindo-se a uma série

indeterminada de sujeitos situam-se no "extremo oposto" dos direitos subjetivos.

Analisados sob a ótica objetiva, verifica-se que os interesses difusos são indivisíveis,

uma vez que são insuscetíveis de partição em quotas atribuíveis s pessoas ou grupos

preestabelecidos. Em virtude da fluidez de seu objeto, esparso por um número indeterminável

de sujeitos, os interesses difusos apresentam uma estrutura bastante peculiar, isto porque,

como eles não têm seus contornos definidos numa norma, como os direitos subjetivos, nem

estão aglutinados em grupos definidos, como os interesses coletivos (v.g., os direitos dos

consumidores), sua existência não é afetada nem alterada pelo fato de virem a ser exercitados

ou não.

Além das características já apresentadas, a maioria dos doutrinadores, sobretudo os

italianos, aponta a intensa conflituosidade interna, para eles a conflittualità massima, como

uma das notas essenciais dos interesses difusos. Os conflitos oriundos do entrechoque de

massas de interesses que constituem os interesses difusos, não trazem consigo as

características dos conflitos concebidos na tradicional fórmula "Tício versus Caio". Conforme

esclarece Rodolfo de Camargo Mancuso,

não se cuidando de direitos violados ou ameaçados, mas de interesses (conquanto

relevantes), têm-se que a esse nível, todas as posições, por mais contrastantes,

parecem sustentáveis. É que nesses casos de interesses difusos, não há um parâmetro

jurídico que permita um julgamento preliminar sobre a posição "certa" ou "errada".39

Outra característica dos interesses difusos, categoria à qual pertence o patrimônio

histórico e cultural, é a transição ou mutação no tempo e no espaço. Isso significa que, os

interesses difusos, não estão atrelados a um vínculo jurídico básico, mas a situações de fato,

38

MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos: conceito e legitimação para agir. São Paulo: RT,

1988, p. 68. 39

MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos: conceito e legitimação para agir. São Paulo: RT,

1988, p. 72.

Page 62: Revista Ciência Dinâmica - 4ª Edição

62

contingenciais, sendo, por consequência, mutáveis como essas mesmas situações. Isso os

diferencia dos direitos, uma vez que estes (os direitos) estão presos ao plano ético-normativo,

enquanto aqueles (os interesses), oriundos do plano fático tendem a repetir-se e transformar-se

indefinidamente.

O Estado, durante muito tempo, negou-se a tutelar tais interesses, restringindo sua

atuação apenas aos direitos subjetivos, sob o fundamento de que somente os direitos

derivados de uma relação jurídica de titularidade definida, seriam passíveis de tutela.

Entretanto, como já nos referimos anteriormente, a relevância social de tais interesses

constitui motivo suficiente para sua proteção, afinal "sem os homens certamente não haveria

cultura, mas, de forma semelhante e muito significadamente, sem cultura não haveria

homens."40

Na busca da tutela eficaz desse interesse difuso que é o patrimônio histórico e

cultural, verifica-se em nossa legislação ordinária, dois importantes diplomas normativos, o

primeiro é o Decreto-Lei nº 25/37, que institui o procedimento administrativo chamado de

tombamento, que traz em seu art. 1º um conceito de patrimônio histórico e artístico nacional:

Art. 1º- Constitui o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto de bens

móveis e imóveis, existentes no país e cuja conservação seja de interesse público,

quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu

excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico.

§ 1º (...)

§ 2º - Equiparam-se aos bens a que se refere o presente artigo e são também sujeitos

a tombamento os monumentos naturais, bem como os sítios e paisagens que importe

conservar e proteger pela feição notável com que tenham sido dotados pela natureza

ou agenciados pela indústria humana.41

Desse dispositivo, interessa-nos, precipuamente dois aspectos, o primeiro diz respeito

à definição do objeto do tombamento. A idéia que deve prevalecer é que embora o objeto

tutelado seja a coisa que detém o valor a ser conservado, preservado, este valor dela se

destaca, constituindo um bem autônomo que, por ser imaterial e não econômico, é

insuscetível de apropriação individual. Esse valor contido nas coisas de interesse cultural

formam, no seu todo, o "patrimônio histórico e artístico nacional", que como universalidade e

bem jurídico, interessa a toda a coletividade. 42

40

GEERTZ, Clifford. A interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1989, p. 61. 41

BRASIL. Decreto-Lei 25, de 30 de novembro de 1937. Organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico

nacional. Código Civil. 50. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. (Legislação Brasileira). 42

CASTRO, Sônia Rabello de. O Estado na preservação de bens culturais. Rio de Janeiro: Renovar, 1991,

p.68.

Page 63: Revista Ciência Dinâmica - 4ª Edição

63

Outro aspecto de destaque no referido dispositivo é que fica claro que o tombamento

só se materializa sobre a coisa, móvel ou imóvel, excluindo-se, pois, deste tipo de proteção, os

bens imateriais, como, v.g., as práticas religiosas, os hábitos industriais, dentre outras

manifestações da cultura nacional. 43

O instituto tombamento como um dos instrumentos administrativos específicos de

proteção do patrimônio histórico e artístico nacional, vem sendo, muitas das vezes mal

compreendido, especialmente pelos administrativistas nacionais, que, presos às regras de

direito público, colocam o tomamento como ato constitutivo e não declaratório. E tal

classificação empobrece, sobremaneira, o conceito de patrimônio histórico e cultural que nos

parece ser o mais viável à correta tutela desse interesse difuso.

Sônia Rabello de Castro, em sua obra sobre o instituto do tomamento, coloca da

seguinte maneira sua posição, calcada nos ensinamentos de Celso Antônio Bandeira de

Mello e José Afonso da Silva :

para integrar o patrimônio cultural nacional é preciso que o seja bem tombado, isto

é, que não só tenha os pressupostos fáticos de valor cultural, como também que estes

sejam reconhecidos através de processo administrativo, com a manifestação de

vontade do poder público, e inscrição do bem no livro do Tombo.44

Ora, neste ponto, somos obrigados a discordar da brilhante autora, uma vez que a

exegese do tomamento, à luz da CR/88, indubitavelmente, deixa claro que o instituto é

apenas uma das formas que o Estado tem de reconhecer o valor histórico e cultural de

determinado bem, o que significa que o valor histórico e cultural existe faticamente e merece

proteção estatal independentemente da constrição administrativa ter se efetivado ou não.

Quem atribui este valor aos bens, são os diversos grupos sociais.

Todos os bens culturais, conforme o art. 216 da CR/88 merecem proteção automática

do Estado, independentemente de lei ou ato administrativo específico. Pensar o contrário,

seria flagrante desrespeito ao princípio constitucional inserto no art. 215, da CR que dispõe

que é dever do Estado garantir a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às

fontes da cultura nacional. Entendemos até que nos casos de bens que não sejam passíveis

de tomamento, ou que ainda, embora possam ser objeto do referido ato não tenham sido

43

Foi assinado pelo Presidente da República e pelo Ministro da Cultura o Decreto nº 3.551, publicado no Diário

Oficial de 7 de setembro de 2000, instituindo o registro de bens culturais de natureza imaterial, como forma de

proteção aos mesmos. 44

CASTRO, Sônia Rabello de. O Estado na preservação de bens culturais. Rio de Janeiro: Renovar, 1991,

p.94.

Page 64: Revista Ciência Dinâmica - 4ª Edição

64

ainda tombados, merecem uma atenção ainda maior por parte do Estado e também da

sociedade, uma vez que o ato administrativo cria para todos uma presunção de que o bem

não será danificado, tendo em vista ás diversas limitações e obrigações impostas aos seus

proprietários, vizinhos e ao Estado.

O conceito de "patrimônio histórico e artístico" previsto no decreto- lei 25/37 deve

ser lido como "patrimônio cultural", eis que o valor de um bem transcende em muito o seu

valor histórico comprovado ou reconhecido oficialmente, por meio, v.g., do tomamento ou

de suas possíveis qualidades artísticas. Este bem é sempre parte de um conjunto maior de

bens e valores que envolvem processos múltiplos e diferenciados de apropriação, recriação e

representação construídos e reconhecidos culturalmente e, aí sim, histórica e cotidianamente,

portanto anterior à própria concepção e produção daquele bem. Assumir essa concepção

constitucionalmente adequada significa darmos um relevo a todos os valores intrínsecos e

extrínsecos dos bens, práticas sociais, ações que constituem o patrimônio histórico e cultural

brasileiro. Adotar uma interpretação literal do preceito à luz da nossa Constituição de 1988

que dispõe sobre tal patrimônio, quer dizer, empobrecer o seu significado, o que, na prática

pode levar à inutilidade da proteção constitucional à tudo aquilo que compõe o patrimônio

histórico e cultural brasileiro.

Outro diploma legal de importância ímpar e incontestável na tutela eficaz dos

interesses difusos, dos quais faz parte o patrimônio artístico e cultural á ação civil pública,

regulada pela Lei 7. 347/85, de índole predominantemente processual.

A importância do referido instrumento processual vai desde a previsão expressa de

um leque extenso de legitimados para a proposição de ação civil que vise resguardar

interesse difuso, com papel de destaque para o Ministério Público que, através do inquérito

civil, tem o dever de agir (propor a ação) sempre que verificar a presença de justa causa

para a sua propositura. O princípio da obrigatoriedade norteia não só a propositura da ação

civil pública pelo Órgão Ministerial como também a promoção da referida ação em todas as

suas etapas. Assim, não poderá desistir arbitrariamente do pedido, ou deixar de assumir a

continuidade da ação em caso de desistência infundada de um co-legitimado, nem deixar de

promover a execução da sentença.

Não obstante a importância inegável destes dois institutos referidos anteriormente,

foi a partir da matriz constitucional dos interesses difusos, destacando-se o meio- ambiente e

o patrimônio histórico e cultural, que estes puderam contar com mecanismos de proteção

Page 65: Revista Ciência Dinâmica - 4ª Edição

65

mais sistêmicos e efetivos, eis que alcançaram um nível constitucional o reconhecimento

explícito da importância desses bens para toda a Nação.

Por último, cabe levantar um ponto bastante complexo que permeia os interesses

difusos, notadamente, o patrimônio histórico e cultural, que diz respeito ao valor, mas não

um valor qualquer, e sim um valor que se caracterize como valor histórico e cultural. Como

definir este valor ou mesmo identificá-lo?

Já mencionamos neste capítulo que o intuito da proteção constitucional ao

patrimônio histórico e cultural é, indubitavelmente, proteger os valores históricos e culturais

presentes intrinsecamente nos bens de natureza material ou material, daí porque como

também já nos referimos, o tomamento, muito embora tenha grande relevância na proteção

destes valores representa não mais do que uma declaração, oriunda da Administração

Pública, do valor de um bem determinado, isto é, não pode ser tomado como ato essencial à

constituição de um conjunto de valores históricos, artísticos e culturais. Estes prescindem do

referido procedimento administrativo e são anteriores a ele. Esta é, a nosso ver, a principal

importância do conceito constitucional apresentado.

Assim, o conceito de patrimônio histórico e cultural constitucionalmente previsto e a

impossibilidade do Estado definir o conteúdo desse conceito devem ser encarados como

ponto de partida para todas as discussão acerca desse bem jurídico, especialmente a que

constitui o motivo central deste trabalho monográfico, qual seja, a discussão do modelo do

instituto responsabilidade civil que deve aplicável na ocorrência de dano ao patrimônio

histórico e cultural, uma vez que inexiste no nosso ordenamento um diploma legal que

explicite tal questão, bem como as formas de reparação desses danos. Eis, pois, a

importância de uma correta compreensão do conceito desse bem e de suas peculiaridades,

peculiaridades essas que lhe dão a qualificação de interesse difuso.

6 O DANO AO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E CULTURAL

Interessa-nos como objeto do presente trabalho o estudo do dano ao patrimônio

histórico e cultural sob a dimensão coletiva, ou seja, será discutida a lesão ao interesse difuso,

cuja titularidade pertence a toda a coletividade.

Para a abordagem deste tema, faz-se mister, termos em mente as características do

interesse difuso patrimônio histórico e cultural, abordadas no capítulo anterior, assim como o

Page 66: Revista Ciência Dinâmica - 4ª Edição

66

conceito de deste bem jurídico adotado pela Constituição de 1988. A Carta Política da Nação,

em seu art. 216 dispõe:

Art. 216 Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e

imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à

identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade

brasileira, nos quais se incluem:

............................................................................

§ 1º O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o

patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância,

tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.

.................................................................................

§ 4º Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da lei.

(Destacou-se)45

Ao reconhecer a existência de valores próprios aos bens coletivos materiais e

imateriais relevantes para a preservação da memória nacional, protegendo assim as funções

históricas e culturais existentes nos mesmos, independentemente de qualquer ato de

tombamento, nossa CR/88, deixa claro que qualquer ato de intervenção que venha a

prejudicar tais funções será passível de criar a obrigação de sua desconstituição, para a

conseqüente recomposição do interesse coletivo subjacente à proteção específica.

Mas como é possível dimensionarmos ou definirmos um dano ao patrimônio histórico

e cultural?

Primeiramente deve-se ter em mente que qualquer ato comissivo ou omissivo que

venha a descaracterizar quaisquer dos múltiplos valores históricos e culturais intrínsecos a um

bem é considerado um dano ao mesmo.

Quanto à questão, temos que sua resposta é bastante complexa, pois sempre que

falamos em dano a um bem qualquer, somos tomados pelo apego a uma percepção de índole

individualista do Direito, ligada a interesses intersubjetivos e não ao tratamento solidário e

difuso, relativo a interesses metaindividuais, como é o caso do patrimônio histórico e

cultural.46

Sem dúvida, a riqueza deste bem jurídico traz consigo a constatação de que é

necessária uma sensibilidade ímpar, ao identificarmos os atos danosos ao mesmo. O que é

importante examinar no caso concreto é se a alteração do patrimônio histórico e cultural

prejudicou ou não a capacidade de uso do bem pela coletividade ou a sua capacidade

45

BRASIL. Constituição, 1988. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro

de 1988. Organização do texto: Juarez de Oliveira. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1990. 168 p. (Série Legislação

Brasileira). 46

LEITE, José Rubens Morato. Dano Ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 2000, p. 177.

Page 67: Revista Ciência Dinâmica - 4ª Edição

67

funcional protegida pelo Direito. Isto porque a lesão sofrida pelo proprietário de um bem

possuidor de valores históricos e culturais não se confunde com o dano sofrido pela

coletividade atingida na sua vivência e privada da possibilidade do exercício do seu direito de

participação e reprodução cultural, previsto constitucionalmente no art. 215 da nossa Carta

Maior. Embora a coisa seja privada, seu valor cultural reveste-a de interesse público,

caracterizando-a por dois interesses: o privado, enquanto propriedade particular, e o público

enquanto bem de valor cultural.

Neste ponto é interessante tocarmos num ponto crucial do presente tema que é

justamente o fato de que os valores culturais insertos num determinado bem são bens

imateriais inapropriáveis individualmente e, por consequência disso, toda lesão ao patrimônio

histórico e cultural possui duas faces distintas e interligadas entre si: a material,

correspondente ao valor necessário para a recomposição material do bem e a imaterial,

oriunda da lesão ao direito de toda a coletividade de participação na vida cultural.

A interrelação entre essa duas faces dá-se na própria visão que a sociedade possui

sobre um bem, na medida em que somos todos nós quem atribuímos, simbolicamente, valores

imateriais (culturais) a ele. Assim, um determinado bem de valor histórico e cultural como,

por exemplo, o centro histórico da cidade mineira de Ouro Preto é, senão, a concretização ou

materialização de práticas culturais da sociedade local, regional, nacional e mesmo

internacional. É fruto da uma teia de práticas sociais mutáveis no tempo e no espaço, cada

qual atribuindo um conjunto de valores que interrelacionados atribuem aos interesses difusos,

in casu, ao patrimônio histórico e cultural seu significado.

Essas duas faces do dano ao patrimônio histórico e cultural independem do

reconhecimento por parte do Estado, através de lei ou ato administrativo, de que um bem

possua ou não valores históricos e culturais, que exijam sua conservação ou manutenção.

Assim, a imputação de um dano ao patrimônio histórico e cultural prescinde da verificação da

existência ou não uma autorização administrativa, através, v.g., do IPHAN (Instituto do

Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) para a alteração de um bem tombado. Ocorrendo

um dano nestas circunstâncias, pode o agente estar isento da sanção administrativa ao dano,

mas isso não quer dizer que na esfera cível não venha este a ser considerado responsabilizado

por um dano ao patrimônio histórico e cultural.

A lesão à dimensão imaterial de um bem com valores culturais é denominada de dano

extrapatrimonial ou moral, eis que atinge valores imateriais da coletividade, como, por

Page 68: Revista Ciência Dinâmica - 4ª Edição

68

exemplo, ao destruir a imagem de Aleijadinho pertencente ao acervo do Museu da

Inconfidência em Ouro Preto ou ao pichar a fachada de uma casa no centro histórico de Ouro

Preto, está-se atingindo um direito intercomunitário e intergeracional.

Embora hodiernamente, seja patente a existência de danos distintos do material, a

aceitação do dano extrapatrimonial no direito brasileiro era incipiente e implícita no Código

Civil de 1916. A redação do Código gerava inúmeras dúvidas doutrinárias e jurisprudenciais

acerca do dano extrapatrimonial, ganhando novos ares com a promulgação da Constituição de

1988, que selou definitivamente qualquer dúvida a respeito da reparabilidade do dano

extrapatrimonial e representou um marco de extrema importância neste tema.

Assim, no capítulo dos direitos e deveres individuais e coletivos , foi disposto no art.

5º:

V- É assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização

por dano material, moral ou à imagem

( ... )

X- São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra, e a imagem das pessoas,

assegurado o direito de indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua

violação. 47

Não obstante, tenha o dano extrapatrimonial tomado outra dimensão a partir de seu

reconhecimento constitucional, em matéria de interesse difuso, foi a Lei 7.347, de 1985 Lei da

Ação Civil Pública, com nova redação dada pela Lei 8.884, que inseriu em nosso

ordenamento, em seu art. 1º, o primeiro fundamento legal ao dano extrapatrimonial a esses

bens:

Art. 1º Regem-se pelas disposições desta Lei, sem prejuízo da ação popular, as ações

de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados:

I - ao meio ambiente

( ...)

IV - a qualquer outro interesse difuso ou coletivo.48

Trata-se da consagração da reparação de toda e qualquer espécie de dano aos

interesses difusos, no que toca à sua extensão.

Voltemos aqui ao segundo questionamento proposto no início do deste capítulo: qual a

extensão de um dano ao patrimônio histórico e cultural? Como equacionar todos os valores,

47

BRASIL. Constituição, 1988. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro

de 1988. Organização do texto: Juarez de Oliveira. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1990. 168 p. (Série Legislação

Brasileira). 48

BRASIL. Lei 7.437, de 24 de julho de 1985. Disciplina a ação civil pública por danos causados ao meio

ambiente, consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico e paisagístico (vetado) e dá outras

providências. Código Civil. 50. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. (Legislação Brasileira).

Page 69: Revista Ciência Dinâmica - 4ª Edição

69

especialmente os imateriais, presentes em um bem cultural, a fim de dimensionar o dano

sofrido pelo mesmo, sem empobrecer seu significado?

Conforme já mencionado, esta não é uma tarefa fácil, visto que nem mesmo o bens

cultural que se materializam em uma coisa, é a coisa em si: " é o seu significado simbólico,

traduzido pelo valor que ela representa"49

conforme diz a própria Sônia Rabello de Castro,

que, entretanto, equivocadamente, atribui ao ato administrativo do tombamento o condão de

constituição dos valores culturais de um bem.

O mais razoável, seguindo o que se prevê, comumente, para a averiguação dos danos

ambientais, é a aplicação de duas regras, quais sejam: a consideração dos múltiplos valores

que podem estar inseridos no bem lesado; o entrelaçamento dos valores históricos e culturais

materiais e imateriais constantes no bem. Sem atentar-se a essas duas regras, impossível a

verificação, o dimensionamento do dano a um interesse difuso, como o é, o patrimônio

histórico e cultural.

Infelizmente, o nosso Direito positivo muitas vezes parece esquecer da orientação

constitucional, prevendo normas distintas para a proteção do patrimônio histórico e cultural

material e outras para o imaterial, em desobediência à constatação fática de que é impossível a

dissociação entre ambos em se tratando do patrimônio histórico e cultural. Trata-se, como

sintetiza Rodolfo de Camargo Mancuso50

, de um interesse, em torno do qual se discutem

valores e sentimentos mais profundos da sociedade, sendo titularizado por uma coletividade

indeterminável e insuscetíveis de apropriação exclusiva por quem quer que seja. Daí que a

lesão ao patrimônio histórico e cultural significa um dano impessoal, de todos aqueles que

atribuem a ele valores culturais, através das mais diferentes práticas sociais. Esse chamado

dano moral ou extrapatrimonial coletivo, na orientação de Carlos Alberto Bittar Filho, seria "

a injusta lesão da esfera moral de uma dada comunidade, ou seja, é a violação antijurídica de

um determinado círculo de valores coletivos.51

E, prossegue o insigne jurista:

Quando se fala em dano moral coletivo, está-se fazendo menção ao fato de que o

patrimônio valorativo de uma certa comunidade (maior ou menor), idealmente

considerada, foi agredido de maneira absolutamente injustificável do ponto de vista

49

CASTRO, Sônia Rabello de. O Estado na preservação de bens culturais. Rio de Janeiro: Renovar, 1991, p.

33. 50

MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos: conceito e legitimação para agir. São Paulo: Editora

Revista dos Tribunais, 1988, p. 102. 51

BITTAR FILHO, Carlos Alberto Bittar. Do dano moral coletivo, no atual contexto jurídico brasileiro. Revista

do Direito do Consumidor, São Paulo, v.12. p. 55, out./dez. 1994.

Page 70: Revista Ciência Dinâmica - 4ª Edição

70

jurídico: quer isso dizer, em última instância, que se feriu a própria cultura, em seu

aspecto imaterial.52

Das considerações postas acima, podemos concluir que o dano a qualquer bem que

componha o patrimônio histórico e cultural, conforme já mencionado, possui duas dimensões

bastantes claras que se interpenetram, atribuindo ao bem lesado um conjunto de valores

múltiplos, todos eles importantes para a verificação da configuração do dano ao patrimônio

histórico e cultural, ou seja, deve-se analisar não apenas cada valor individualmente

considerado, mas também o conjunto dos valores atribuídos a um dado bem pertencente ao

patrimônio cultural. Somente assim, obtém-se o efetivo respeito ao princípio constitucional

que é o da pluralidade dos valores culturais, previsto no art. 220 da nossa CR/88.

7 A RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANO AO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E

CULTURAL

7.1 Modelo de responsabilidade civil mais adequado à recomposição dos danos ao

patrimônio histórico e cultural

Toda a estruturação do nosso Direito positivo, até bem pouco tempo, encontrava-se

impregnada de institutos e conceitos que sequer previam a possibilidade de seu ajustamento a

novas categorias de direitos que não fossem os individuais previstos, muito menos, se

imaginava o surgimento de interesses jurídicos metaindividuais, dos quais fazem parte os

interesses difusos, categoria na qual está incluído o patrimônio histórico e cultural.

O surgimento destes interesses (direitos) difusos vem desafiando o nosso sistema

tradicional acostumado à tutela de relações jurídicas bem definidas, fazendo com que nosso

Direito positivo lançasse mão de institutos novos, como é o caso da Lei da Ação Civil Pública

7.347/85, considerada uma lei de índole preponderantemente processual, conforme conclui

Rodolfo de Camargo Mancuso53

ou de adaptações de institutos concebidos para a defesa de

direitos subjetivos, como os do interesse de agir, a legitimação entre tantos outros.

52

BITTAR FILHO, Carlos Alberto Bittar. Do dano moral coletivo, no atual contexto jurídico brasileiro. Revista

do Direito do Consumidor, São Paulo, v.12. p. 55, out./dez. 1994.

53

MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação Civil Pública: em defesa do meio ambiente, do patrimôno

cultural e dos consumidores. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 27.

Page 71: Revista Ciência Dinâmica - 4ª Edição

71

Muito embora, podemos observar atualmente, uma evolução do nosso Direito na busca

da tutela desses interesses "novos" revelados no processo social, somos compelidos a admitir

que essa tutela ainda encontra-se incipiente.

O instituto da responsabilidade civil, instituto clássico, construído com elementos

rígidos, próprios à proteção das relações interindividuais, vê-se, inadaptável à

responsabilidade por danos causados a interesses difusos, onde o prisma é deslocado da

aferição da culpabilidade do agente para a efetiva reparação da lesão causada à coletividade.

Assim, de maneira geral, tem-se admitido que a responsabilidade, em matéria de

interesses metaindividuais, deve ser a objetiva ou do risco integral, as únicas capazes de

assegurar uma proteção eficaz a esses interesses.

Quanto à responsabilidade por danos causados ao meio ambiente, o modelo de

responsabilidade já não gera quaisquer dúvidas, pois o caráter objetivo da responsabilidade é

previsto explicitamente no § 1º, do art. 14 da Lei 6.938/81, in verbis:

o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou

reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade. 54

Sérgio Ferraz, salientando que o "patrimônio ambiental ao contrário do que dizem os

juristas e algumas leis, não é res nullius, mas res omnium- coisa de todos"55

, é conclusivo ao

dizer:

Não se fará, seguramente, qualquer passo à frente, no tema da responsabilidade por

dano ecológico, se não compreendermos que o esquema tradicional da

responsabilidade subjetiva, da responsabilidade por culpa, tem que ser

abandonada.56

Conforme já exposto e pelas razões acima aduzidas, a responsabilidade objetiva por

dano ambiental já não nos traz tantas indagações e dúvidas como ocorre com os danos

perpetrados contra o patrimônio histórico e cultural.

Primeiro porque, inexiste, no nosso ordenamento jurídico uma legislação que preveja

o caráter da responsabilidade in casu; segundo, porque a doutrina e jurisprudência tendem a

ter uma visão retrógrada e, porque não dizer, inconstitucional acerca do entendimento do que

seja o interesse difuso patrimônio histórico e cultural, o que é inadmissível à luz da CR/88.

54

BRASIL. Lei 6.938, de 31 de agosto de 1981. Dispõe sobre a política nacional do meio ambiente, seus fins e

mecanismos de formulação e dá outras providências. Código Civil. 50. ed. São Paulo: Saraiva, 1999.

(Legislação Brasileira). 55

FERRAZ, Sérgio. Responsabilidade civil por dano ecológico. RDP 49/50, p. 35. 56

FERRAZ, Sérgio. Responsabilidade civil por dano ecológico. RDP 49/50, p. 37.

Page 72: Revista Ciência Dinâmica - 4ª Edição

72

Ilustrando tal visão cito o autor Hugo Nigro Mazzilli, para quem:

Nos danos causados ao patrimônio cultural, a responsabilidade será objetiva se a

lesão coincidir com a ofensa ao meio ambiente, na sua ampla conceituação

legal. Contudo, há lesões ao patrimônio cultural que não atingem o meio ambiente (a

destruição de peças raras em museu, p. ex.).

A responsabilidade por lesões aos demais interesses coletivos e difusos dependerá

ou não da apuração da culpa, conforma seja o regime de direito material a respeito.57

No mesmo sentido, conclui Rodolfo de Camargo Mancuso58

que devemos

compreender a expressão meio ambiente num sentido amplo, holístico e não em seu aspecto

apenas naturalístico, de biota.

Acresce o autor que essa percepção vai de encontro ao conceito de "patrimônio

cultural brasileiro", constante do art. 216 da nossa Carta Magna. E, sendo considerada essa

percepção abrangente e contemporânea, não se deve compreender

que, diante da degradação de um sítio arqueológico ou de um prédio de interesse

histórico tornado ruína, se entrasse em perquirições sobre a mera culpabilidade do

agente. (...) A se entender de outro modo, correr-se-ia o risco, no limite, de que um

pichador de um monumento público pretenderia se eximir de responsabilidade,

alegando que não procedeu com culpa, porque, de um lado, adquiriu a tinta spray no

mercado, e, de outro, porque sua obra representa manifestação de arte popular...59

Interessante notarmos que a nossa Carta Maior prevê, em seu art. 24:

Art. 24 - Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar

concorrentemente sobre:

(...)

VIII - responsabilidade por dano ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos

de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico;

(...)60

Mas qual o interesse da observância deste preceito constitucional para a verificação de

qual o modelo de responsabilidade mais adequado à tutelar o dano ao interesse difuso

estudado no presente capítulo?

Fazendo um apanhado dos modelos de responsabilidade civil adotado pelo legislador

ordinário para o cumprimento da norma constitucional acima citada, percebe-se que tanto no

57

MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p.

302/303. 58

MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação Civil Pública: em defesa do meio ambiente, do patrimôno

cultural e dos consumidores. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 265. 59

MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação Civil Pública: em defesa do meio ambiente, do patrimôno

cultural e dos consumidores. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 266. 60

BRASIL. Constituição, 1988. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro

de 1988. Organização do texto: Juarez de Oliveira. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1990. 168 p. (Série Legislação

Brasileira).

Page 73: Revista Ciência Dinâmica - 4ª Edição

73

caso de dano ao meio ambiente, como no caso do dano ao consumidor, foi adotado o modelo

objetivo de responsabilidade, respectivamente nas Leis 6.938/81 e 8.078/90, de onde se pode

inferir que em se tratando de dano à interesses sociais relevantes, a regra da responsabilidade

é a objetiva, eis que somente através desse modelo, poderemos contar com um sistema de

responsabilidade civil capaz de garantir ao máximo o restabelecimento do equilíbrio social

rompido com a ocorrência de danos a tão relevantes valores como o é o patrimônio histórico e

cultural.

Assim, faz-se mister, não apenas a adoção do modelo objetivo de responsabilidade no

caso de danos ao patrimônio histórico e cultural, mas também, afastar desse campo da

responsabilidade as excludentes de ilicitude: caso fortuito e força maior, de aplicabilidade

indicada para interesses individuais, mas não em se tratando de interesses difusos.61

7.2 Formas de satisfação do dano ao patrimônio histórico e cultural

Conforme já mencionado, optamos por focalizar o dano ao patrimônio histórico e

cultural na sua face mais complexa, mas também a mais fascinante, qual seja, o dano na sua

dimensão coletiva e extrapatrimonial.

Ao tratarmos da proteção desse interesse difuso, buscamos salientar a riqueza de

valores que o compõem, em especial ao conceituá-lo e ao discorrermos acerca do dano.

Tudo isso faz emergir uma premissa: em se tratando de lesão ao patrimônio histórico

e cultural, devemos buscar, assim como na responsabilidade por dano ambiental, a sua

reparação integral. Entretanto, bem sabemos que reconstituir um dano dessa natureza,

fazendo-se restabelecer o status quo ante mostra-se, na maioria das vezes, solução

inatingível, tendo em vista a multiplicidade de valores que estão em jogo, valores estes que

compõem uma espécie de "patrimônio imaterial" da coletividade. Daí, acreditar-se que o

melhor mesmo é a adoção de medidas ou instrumentos jurídicos que inibam as condutas

omissivas e comissivas atentatórias aos múltiplos valores que compõem o patrimônio

histórico e cultural.

Por outro lado, sabemos que todo aquele que causar dano a outrem é obrigado a

reparar o dano. Essa reparação indica uma idéia de ressarcimento ou compensação do dano

61

SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 215-216.

Page 74: Revista Ciência Dinâmica - 4ª Edição

74

sofrido, um dos sucedâneos do instituto responsabilidade civil. Nesse sentido observa

Aguiar Dias62

: "O problema da reparação se considera satisfatoriamente resolvido quando se

consegue adaptar a nova realidade àquela situação imaginária."

Não por outra razão, constata Mirra que:

um bem como um monumento histórico não pode, a rigor, ser restaurado, mesmo

com o concurso dos peritos mais competentes. Após os trabalhos de reconstituição,

não se tratará mais do mesmo monumento, e seu valor artístico e, talvez, histórico

terá diminuído consideravelmente.63

No caso do patrimônio histórico e cultural, interesse difuso previsto

constitucionalmente no art. 216, existe no § 4º do mesmo preceito a previsão que "os danos

e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da lei". No entanto, inexiste em

nosso ordenamento lei que disponha sobre o assunto, restando à doutrina e jurisprudência a

busca da satisfação dos danos a este interesse relevantíssimo à toda a coletividade e que,

portanto, não pode deixar de ser tutelado satisfatoriamente.

Trata-se, pois, de árdua tarefa a discussão acerca da melhor maneira de se reparar um

dano extrapatrimonial, especialmente, quando se trata de um bem formado de múltiplos

valores que lhe são atribuídos pela comunidade no dinâmico processo social. Como apurar o

quantum debeatur referente à lesão extrapatrimonial causada por, por exemplo, a uma igreja

ou casarão no Centro histórico de cidades como Mariana e Ouro Preto?

Apesar de toda essa dificuldade temos, por outro lado que, em razão da própria

natureza difusa do patrimônio histórico e cultural, inexistem razões para limitarmos a

responsabilidade na recomposição do dano a esse bem por parte daqueles que o transgridem,

especialmente se levarmos em consideração o fim último do instituto da responsabilidade

civil que é a recomposição do equilíbrio social causado por ocasião de um dano, seja ele

restrito à esfera individual ou de abrangência coletiva. Ora, se mesmo em casos de danos

individuais, ocorre um dano também à estrutura social, indiscutível é que quando o dano é

essencialmente à essa estrutura. Neste caso, a reparação integral do mesmo se impõe, como

forma de realizar ou concretizar o direito fundamental garantido constitucionalmente no art.

216 de nossa Carta Magna já mencionado anteriormente em outras passagens desse trabalho.

62

DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995, v. 1, p. 217. 63

MIRRA, Álvaro Luiz Valery. A reparação de dano ambiental. Tradução atualizada pelo autor. Estrasburgo,

França, 1997, p. 26-27. Dissertação (Mestrado em Direito Ambiental)- Faculdade de Direito, Universidade de

Estrasburgo apud José Rubens Morato Leite. Dano ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial.

São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p 217.

Page 75: Revista Ciência Dinâmica - 4ª Edição

75

Alguns autores, diante da dificuldade de reparação do dano extrapatrimonial

decorrentes de lesões a interesses difusos, como o patrimônio histórico e cultural chegam a

negar-lhe a possibilidade de reparação, como Lafayete e Lacerda de Almeida.64

No entanto, a dificuldade em se avaliar os danos extrapatrimoniais, especialmente os

coletivos, não pode ser razão suficiente para não se indenizar, como durante muito tempo

quiseram fazer crer os adeptos da tese negativa da reparação. A concordância com essa tese

poderia significar um enriquecimento ilícito do causador do dano, o que, como é cediço, é

vedado pelo nosso Direito.

Deste modo, conforme já mencionado, configurado o dano extrapatrimonial, este há

que ser reparado, não obstante as inúmeras dificuldades existentes para sua valorização ou

para a verificação de sua extensão.

Ante a inexistência, no nosso ordenamento jurídico, de normas legais, que versem

acerca das formas específicas de reparação do dano extrapatrimonial, quer seja ele

individual ou coletivo, fornecendo critérios que possibilitem uma melhor apuração do valor

a ser indenizado à sociedade, por ocasião de danos aos seus mais relevantes interesses, como

o patrimônio histórico e cultural, alternativas tiveram de ser buscadas, tanto pela doutrina

quanto pela jurisprudência.

De fato, para que não se deixasse o dano moral ou extrapatrimonial sem reparação,

especialmente após o advento da nossa CR/88, em que o mesmo foi erigido no seu art. 5º,x,

à qualidade de garantia individual e coletiva de todos os cidadãos, a doutrina privatista

encontrou, dentro do próprio ordenamento jurídico vigente, uma solução para o impasse.

Trata-se da norma contida no art. 1.533 do Código Civil brasileiro, que, inserida na parte

relativa à liquidação das obrigações resultantes de atos ilícitos, dispõe que, nas hipóteses ali

não previstas, "se fixará por arbitramento a indenização".

Ora, não havendo critérios legais seguros para se aferir o quantum indenizatório do

dano extrapatrimonial, deve o julgador, observadas as circunstâncias do caso concreto,

utilizar-se do arbitramento, para fixar o valor da condenação. Pronuncia-se de acordo com

este entendimento José de Aguiar Dias, para quem: " Não é razão suficiente para não

64

LEITE, José Rubens Morato. Dano Ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 2000, p. 304.

Page 76: Revista Ciência Dinâmica - 4ª Edição

76

indenizar, e assim beneficiar responsável, o fato de não ser possível estabelecer equivalente

exato, porque, em matéria de dano moral, o arbitrário é até da essência das coisas".65

Sérgio Severo, na tentativa de estabelecer critérios para a satisfação dos danos

extrapatrimoniais, salientou terem os mesmo duas particularidades que exercem influência

sobre o estabelecimento do montante satisfatório: o caráter aberto desses danos e a

possibilidade de haver mais de um dano decorrente do mesmo fato, característica essa que o

autor denomina de cumulação objetiva.66

A primeira particularidade define-se pelo fato de que "os danos extrapatrimoniais,

como decorrência de sua própria definição, não podem compor um elenco fechado e rígido

de situações, uma vez que são todos aqueles que não têm expressão econômica"67

. A

segunda, parte da constatação de que

na maioria dos casos, um mesmo fato dá ensejo a mais de um dano, podendo

combinar-se um dano patrimonial e um dano extrapatrimonial e mesmo mais de um

dano extrapatrimonial.68

Assim, os danos extrapatrimoniais individuais e coletivos, muito embora sejam

altamente complexos em sua estrutura, são passíveis de reparação, sendo que a quantificação

deve ser feita por arbitramento. Entretanto, o quantum debeatur será sempre variável,

confome as circunstâncias do caso concreto. É que as lesões de ordem extrapatrimonial,

diferente do que ocorre com aquelas de natureza patrimonial, possuem uma dimensão mais

ampla, na medida em que podem lesar simultaneamente interesses estritamente subjetivos e

da coletividade.

De todo o exposto, conclui-se que em matéria de dano extrapatrimonial causado ao

patrimônio histórico e cultural incumbe ao órgão judicante a difícil tarefa de reunir o

máximo possível de valores coletivos lesados, para que possa arbitrar ao causador do dano

um quantum de indenização que possa, na medida do possível, reparar o dano causado

integralmente. Somente assim é que se poderá amenizar os efetivos prejuízos a valores tão

caros para a sociedade, como são aqueles atribuídos ao patrimônio histórico e cultural, ao

mesmo tempo em que poderá servir de desestímulo à repetição da lesão. Note-se ainda,

conforme já pudemos verificar ao longo deste trabalho monográfico que soma-se à essa

dificuldade o fato de que, em matéria de dano ao patrimônio histórico e cultural, a legislação

65

DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995, v. 1, p. 340. 66

SEVERO, Sérgio Os danos extrapatrimoniais. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 170. 67

SEVERO, Sérgio Os danos extrapatrimoniais. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 170. 68

SEVERO, Sérgio Os danos extrapatrimoniais. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 177.

Page 77: Revista Ciência Dinâmica - 4ª Edição

77

pátria não é clara quanto ao modelo de responsabilidade que deve ser adotado in casu, o que

significa que incumbe ao juiz ainda, a sensibilidade e a percepção de que somente o modelo

objetivo de responsabilidade é capaz de restabelecer, ao máximo, o conjunto de valores

lesados na ocorrência de um dano ao patrimônio histórico e cultural.

8 CONCLUSÃO

Chegamos ao final deste trabalho e não a uma, mas a algumas conclusões pudemos

chegar.

Em primeiro lugar que o instituto da responsabilidade civil vem sofrendo desde seu

surgimento inúmeras e constantes transformações na busca de atender aos reclamos da vida

social. Em nosso ordenamento jurídico essas mutações podem ser vislumbradas claramente

observando-se que o instituto em tela passou de um modelo eminentemente subjetivo, calcado

na culpa como elemento central, chegando a um modelo objetivo e alcançando o atual modelo

híbrido de responsabilidade civil, tudo isso na busca do alcance do fim último do instituto que

é o restabelecimento do equilíbrio social rompido pela ocorrência de um dano.

Atingir esse desiderato, entretanto, torna-se mais difícil quando o instituto de caráter

essencialmente privatístico entra em contato com outros interesses que não os individuais,

quais sejam, os interesses difusos, como o patrimônio histórico e cultural, caracterizados por

serem “aqueles que depassam da órbita dos grupos institucionalizados, pelo fato de que sua

indeterminação não permite sua “captação” em termos de exclusividade” 69

. No caso desses

interesses que são os que mais necessitam de tutela, os modelos de responsabilidade civil

rígidos em suas estruturas, necessitam de uma adaptação, caso contrário, toda uma parcela dos

anseios e ideais mais profundos da sociedade restará desatendida, à falta de um instrumento

hábil que a viabilize sua proteção. Esse é um desafio que incumbe ao Direito, eis que é uma

ciência-meio, e não um fim em sim mesma.

Na busca de qual o modelo de responsabilidade que melhor realiza o finalidade

primeira do instituto, em se tratando de lesão ao patrimônio histórico e cultural, pudemos

observar a necessidade da adoção do modelo objetivo, uma vez que se nos afastarmos desse

modelo, o interesse difuso em apreço, relevantíssimo para o desenvolvimento da sociedade e

69

MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos: conceito e legitimação para agir. São Paulo: Editora

Revista dos Tribunais, 1988, p. 64.

Page 78: Revista Ciência Dinâmica - 4ª Edição

78

para que o direito fundamental que representa esse interesse seja alcançado e garantido de

forma eficaz não restará preservado. Se não fizermos essa adaptação de institutos como a

responsabilidade civil, na espera de que os interesses difusos alcancem o status de liberdades

públicas ou se definam como direitos subjetivos, a tutela destes interesses não se concretizará.

Entretanto, não é apenas esse o desafio da responsabilidade civil. É princípio primeiro

do instituto a reparação do dano causado. E, conforme verificamos no decorrer desta

monografia, o dano ao patrimônio histórico e cultural possui uma face extrapatrimonial

latente e, como tal, torna-se difícil sua reparação. Em primeiro lugar, porque se não existe no

ordenamento jurídico pátrio a previsão do modelo de responsabilidade adequado à tutela do

patrimônio histórico e cultural, também inexitem critérios que indiquem qual a melhor forma

de se garantir uma reparação, a mais eficaz possível, dos danos aos inúmeros valores que

compõem o patrimônio histórico e cultural, o que exige dos profissionais do Direito uma

sensibilidade ímpar a fim de que primeiro se identifique o bem (interesse) lesado na sua

completude, para depois verificar qual a melhor forma de reparação do dano. Somente assim

poderemos considerar que a responsabilidade civil atingiu seu fim precípuo que é a satisfação

não apenas de danos materiais e individuais, mas também a ampla satisfação dos danos

extrapatrimonias e a interesses difusos, como o patrimônio histórico e cultural, especialmente

a partir da Constituição de 1988, que consagrou as bases da matéria, cabendo aos demais

ramos do Direito a busca do atendimento do mandamento constitucional.

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Page 81: Revista Ciência Dinâmica - 4ª Edição

81

OS AVANÇOS DA POLÍTICA NACIONAL DE RESÍDUOS SÓLIDOS NA

PRESERVAÇÃO DO MEIO AMBIENTE E A RESPONSABILIDADE

COMPARTILHADA

Raíssa de Oliveira Murta1

Filipe Rodrigues Garcia 2

Iglesias Fernanda de Azevedo Rabelo3

RESUMO

A tutela jurídica ambiental tem sido tema dos mais recorrentes na atualidade. Ante a enorme

degradação dos recursos naturais e a possibilidade de a situação se agravar nos próximos anos

têm sido criados diplomas legislativos a fim de regulamentar as atividades humanas e

possibilitar o chamado desenvolvimento sustentável. Neste sentido, recentemente foi

promulgada a Lei 12.305 de 03 de agosto de 2010, que instituiu a Política Nacional de

Resíduos Sólidos e que trouxe diversas alterações no que diz respeito à gestão,

gerenciamento, disposição e responsabilização no que tange os resíduos sólidos. Neste artigo

buscou-se estudar as nuances da referida lei, em especial analisando como a mesma

estabelece a responsabilidade civil por danos ambientais. Concluiu-se que a referida lei é um

importante instrumento de proteção ambiental que trouxe diversas inovações no que diz

respeito ao tratamento do lixo urbano, que é um dos maiores problemas ambientais do país na

atualidade. No que tange à responsabilidade civil, verificou-se que foi instituída a

Responsabilidade Compartilhada imputando responsabilidade a quaisquer dos que

participaram do ciclo de vida do produto, a fim de que a proteção ao Bem Ambiental seja a

mais ampla e completa possível.

Palavras-chaves: Política Nacional de Resíduos Sólidos; Responsabilidade Compartilhada;

Tutela Ambiental

ABSTRACT

The legal protection of our environment has been one of the most recurrent themes nowadays.

Given the massive degradation of natural resources and the negative perspective of a worse

situation in next years, we can observe the creation of new laws aiming the regulation of

human activities to allow a sustainable development. Recently promulgated, Law 12.305 of

August 03, 2010, established the National Policy on Solid Waste. This law brought many

changes with regard to management, disposal and responsabilization on solid wastes. In this

1 Graduando em Direito pela Universidade Federal de Viçosa.

2 Graduando em Direito pela Universidade Federal de Viçosa.

3 Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Viçosa; Mestra em Economia Doméstica pela Universidade

Federal de Viçosa; advogada e Professora do Curso de Direito da Faculdade Dinâmica em Ponte Nova/MG.

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82

paper, we study the nuances of Law 12.305, especially considering how it establishes civil

liability for environmental damage. We concluded that the law is a very important instrument

of environmental protection that has brought several innovations with respect to the treatment

of urban waste, which is one of the biggest environmental problems of our country nowadays.

With respect to civil liability, the Shared Responsibility was established, allocating

responsibility to any party of the lifecycle of the product, making environmental protection as

broad and comprehensive as possible.

Keywords: National Policy on Solid Waste, Shared Responsibility, Environment Legal

Protection

1. INTRODUÇÃO

A tutela jurídica ambiental tem sido tema dos mais recorrentes na atualidade. Ante a

enorme diminuição e deterioração dos recursos naturais nas últimas décadas e a falta de

consciência ambiental das últimas gerações, a preservação do meio ambiente tem sido tema

presente nas principais discussões de políticas publicas da atualidade, na tentativa de reverter

o quadro atual de degradação.

Com o escopo de frear a desordenada destruição ambiental e de regulamentar as

atividades humanas, diplomas legislativos ambientais têm sido criados com objetivo de

proteger o meio ambiente, mas ainda assim possibilitar o desenvolvimento econômico da

sociedade.

É neste sentido que, após mais de duas décadas de discussões no Congresso Nacional

foi aprovada a Lei que instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos, constituindo em um

importante instrumento de preservação ambiental em um país que produz aproximadamente

150 mil toneladas de resíduos diariamente, sem, no entanto, barrar o desenvolvimento

econômico.

Desta forma, o presente artigo tem por escopo discutir a recente Lei 12.305 de 03 de

agosto de 2010, que instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos, as alterações e

inovações trazidas por esta lei, bem como a Responsabilidade Civil por Danos Ambientais,

em especial a Responsabilidade Compartilhada trazida pelo referido diploma normativo. Para

tanto, inicialmente, será abordada a questão da tutela jurídica ambiental, para, em seguida,

apresentar as inovações trazidas pela Lei 12.305 de 03 de agosto de 2010, além de abordar a

responsabilidade civil sob o prisma da política nacional de resíduos sólidos.

Page 83: Revista Ciência Dinâmica - 4ª Edição

83

2. DA TUTELA JURÍDICA AMBIENTAL

A Constituição Federal de 1988 se preocupou, em seu texto, em versar sobre a

conservação da biodiversidade. É dotada de um capítulo próprio para o meio ambiente, além

de, ao longo de diversos outros artigos, tratar sobre as questões ambientais. O meio ambiente

saudável e ecologicamente equilibrado é tido como um direito fundamental pela Carta Magna.

Paulo Antunes (1998, p. 62) assevera que:

A Lei Fundamental reconhece que as questões pertinentes ao meio ambiente são de

vital importância para o conjunto de nossa sociedade, seja porque são necessárias

para a preservação de valores que não podem ser mensurados economicamente, seja

porque a defesa do meio ambiente é um principio constitucional que fundamenta a

atividade econômica.

Assim, é possível perceber que a tutela ambiental na Constituição se dá enquanto

principio que rege a Ordem Econômica (artigo 170, inciso VI, da Constituição Federal) e

enquanto direito fundamental previsto na Ordem Social (artigo 225 da Constituição Federal).

Da leitura do artigo 225 da Constituição Federal, podemos depreender duas questões

importantes: que a concepção de meio ambiente é tida como sendo um bem comum, e que há

um direito, ou uma expectativa de direito, das futuras gerações a um meio ambiente

ecologicamente equilibrado. Segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2003, p. 545)

“consideram-se bens de uso comum do povo aqueles que, por determinação legal ou por sua

própria natureza, podem ser utilizados por todos em igualdade de condições”.

O direito ao ambiente é, portanto, um dos direitos fundamentais da pessoa humana, e

um “importante marco na construção de uma sociedade democrática e participativa e

socialmente solidária.” (ANTUNES, 1998, p. 46).

No que tange à expectativa de direito das gerações futuras, segundo Edith Brown

(1999, p. 12)

Nós representamos as gerações passadas, mesmo que ainda tentemos obliterar o

passado, porque personificamos o que nos foi passado. Nós representamos as

gerações futuras, porque as decisões que tomarmos hoje afetarão o bem estar de

todas as pessoas que nos sucederem e a integridade e a vida na Terra que eles

herdarão.

Isto, porém, de acordo com Patrícia Silveira (2005, p. 234), trata-se, não de “privar a

presente geração da disposição dos bens ambientais, mas sim, de criarmos e desenvolvermos

padrões de desenvolvimento sustentável”.

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84

Há ainda a inserção do meio ambiente no rol de princípios que regem a Ordem

Econômica. Quanto a isto, as questões de ser ou não possível conciliar desenvolvimento

econômico e proteção ao meio ambiente ou, de até que ponto um dos dois interesses prevalece

ao outro precisam ser analisadas.

Neste sentido, Paulo Bessa (1998, p. 15-16) traz que

A concepção do desenvolvimento sustentado tem em vista a tentativa de conciliar a

preservação dos recursos ambientais e o desenvolvimento econômico. Pretende-se

que, sem o esgotamento desnecessário dos recursos ambientais, haja a possibilidade

de garantir uma condição de vida mais digna e humana.

Percebe-se que a Constituição da República de 1988 se preocupou em tutelar a questão

ambiental não apenas como direito fundamental, mas, também, como conceito atrelado ao

desenvolvimento econômico. Assim, faz-se necessária uma reavaliação do modelo atual de

economia, mercado e desenvolvimento, uma vez que a análise da história do meio ambiente

no Brasil mostra a insustentabilidade dessa exploração para o mercado.

Deste modo, a regulamentação visando a proteção ambiental deve buscar conjugá-la

com a possibilidade de desenvolvimento econômico. É o que preceitua o Principio do

Desenvolvimento Sustentável, princípio norteador do Direito Ambiental.

Assim, verifica-se que a tentativa de regular o que hoje é considerado um direito

fundamental imprescindível para a manutenção da qualidade de vida – o meio ambiente- é

tratado não apenas na Constituição Federal, mas na esfera inconstitucional também, através de

leis específicas sobre diversos assuntos.

Neste liame é que surge a recente Lei nº 12.305 de 03 de agosto de 2010, que instituiu

a Política Nacional de Resíduos Sólidos. A seguir, serão abordadas as inovações trazidas por

essa norma.

3. AS INOVAÇÕES TRAZIDAS PELA LEI 12.305 DE 2010

Recentemente, foi promulgada a Lei que instituiu a Política Nacional de Resíduos

Sólidos no Brasil. Após mais de duas décadas de discussões no Congresso Nacional, um

projeto de lei foi aprovado trazendo inovações importantes para a proteção ambiental em um

país que produz aproximadamente 150 mil toneladas de lixo diariamente.

Dentre as principais inovações da lei pode-se citar a Logística Reversa (artigo 3º, XII

da Lei 12.305), que é a área da logística que trata, genericamente, do fluxo físico de produtos,

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85

embalagens ou outros materiais, desde o ponto de consumo até ao local de origem (Dias,

2005, p. 205).

A referida lei prevê uma série de ações, com o objetivo de facilitar o retorno dos

resíduos sólidos ao setor empresarial para que sejam reaproveitados em algum ciclo

produtivo, ou ainda que seja dada outra destinação final ambientalmente adequada aos

mesmos.

Embalagens de agrotóxicos, pilhas e baterias, pneus, óleos lubrificantes, lâmpadas

e produtos eletrônicos passam a ter locais próprios para serem depositados após o uso, e o

consumidor passa a ser também responsável neste processo.

Além da Logística Reversa, criou-se ainda a obrigatoriedade de estados e municípios

elaborarem seus respectivos Planos para Resíduos Sólidos, sempre orientados pelos ditames

da Política Nacional. Neste sentido, condiciona-se o recebimento de investimento federal para

projetos de limpeza pública e manejo de resíduos sólidos à aprovação de planos de gestão,

tendo como prioridade no financiamento federal os consórcios intermunicipais para gestão

dos resíduos (artigo 45).

Ademais, objetiva-se a eliminação, pelas entidades públicas, dos chamados lixões

(artigo 15, V). Com a lei as prefeituras devem construir aterros sanitários adequados

ambientalmente, onde só poderão ser depositados os resíduos sem qualquer possibilidade de

reaproveitamento ou compostagem.

Foi criado igualmente o Plano de Gerenciamento de Resíduos Sólidos, que será

integrado ao processo de licenciamento ambiental, a ser elaborado por empresas geradoras

determinados resíduos, como de mineração, construção civil, saúde, entre outros (artigo 20).

A Lei 12.305 traz ainda algumas proibições, como a importação de resíduos sólidos

perigosos e rejeitos; o lançamento de resíduos sólidos nos recursos hídricos ou in natura em

céu aberto ou a queima de lixo a céu aberto ou em instalações e equipamentos não licenciados

para essa finalidade.

A mencionada lei reforça também o papel das cooperativas de catadores de resíduos

no trabalho junto às prefeituras e empresas, por meio de linhas de financiamento (artigo 18,

§1º, II), consagrando também o viés social da reciclagem no Brasil.

Neste sentido, as embalagens de produtos fabricados em território nacional devem ser

fabricadas com materiais que propiciem a reutilização ou a reciclagem (artigo 32), de forma a

viabilizar ainda mais a atuação dos profissionais de coleta seletiva e reciclagem.

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86

Além de instituir a Política de Resíduos Sólidos, a aludida lei tem ainda um viés

educativo na medida em que dispõe e esclarece sobre princípios, objetivos, instrumentos e

diretrizes relacionadas com a gestão integrada e o gerenciamento dos resíduos sólidos.

Distingue, por exemplo, resíduo (material descartado resultante de atividade humana passível

de reaproveitamento ou reciclagem) e rejeito (resíduo sólido não passível de

reaproveitamento).

Outra importante inovação trazida pela lei foi a chamada Responsabilidade

Compartilhada, entre governo, indústria, comércio e consumidor final no gerenciamento e na

gestão dos resíduos sólidos.

As normas e sanções previstas em caso do descumprimento da lei aplicam-se às

pessoas físicas ou jurídicas, de direito público ou privado, responsáveis, direta ou

indiretamente, pela geração de resíduos, em toda a cadeia produtiva do produto.

Deste modo, pela lógica da responsabilidade compartilhada, os consumidores finais

estão também responsabilizados e terão de acondicionar de forma adequada seu lixo para a

coleta, inclusive fazendo a separação onde houver coleta seletiva.

4. A RESPONSABILIDADE CIVIL E A POLÍTICA NACIONAL DE RESÍDUOS

SÓLIDOS

A responsabilidade civil é uma obrigação sucessiva decorrente do não cumprimento de

um dever preexistente ou de um dever geral de cautela. No primeiro caso, fala-se em

responsabilidade civil contratual e, no segundo, extracontratual. Para a configuração da

responsabilidade, necessária a existência de três requisitos: o dano, ou prejuízo que pode ser

de ordem patrimonial ou extrapatrimonial; a conduta omissiva e comissiva do agente; e o

nexo causal, que une os dois requisitos anteriores.

A culpa é requisito reservado apenas à responsabilidade subjetiva. Nesta, deve-se

apontar a negligência, imprudência ou imperícia do causador do dano. Quando, por outro

lado, dispensa-se a análise da culpa, está-se diante da responsabilidade objetiva.

O artigo 186 do Código Civil, ao que indica, parece ter consagrado a regra da

responsabilidade subjetiva: “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou

imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete

ato ilícito”. Implica dizer que, se o legislador não mencionar que a responsabilidade do

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87

causador do dano é objetiva, aplica-se a regra do artigo 186, devendo, portanto, haver

comprovação da culpa.

O dever de reparar o dano causado veio insculpido no artigo 927 do Estatuto Civil,

objetivando, inclusive, a responsabilidade dos que praticam atividade de risco. Enunciado 38

da I Jornada de Direito Civil promovido pelo Conselho da Justiça Federal prevê que a

responsabilidade fundada no risco da atividade, como prevista na segunda parte do parágrafo

único do art. 927 do novo Código Civil, configura-se quando a atividade normalmente

desenvolvida pelo autor do dano causar a pessoa determinada um ônus maior do que aos

demais membros da coletividade.

Tem-se como atividade de risco aquelas suscetíveis a provocar o dano ambiental. Veio

nesse sentido a Lei 6.938/1981 (Lei da Política Nacional do Meio Ambiente) que consagrou a

responsabilidade objetiva do poluidor, nos termos do artigo 14, §1º. Significa dizer que,

aquele que ocasiona danos ao meio ambiente, responde pelo ilícito, independentemente de

culpa.

A intenção está justamente em proteger o Bem Ambiental, garantindo a sadia

qualidade de vida de todos os cidadãos, das presentes e futuras gerações, conforme prediz o

artigo 225 da Constituição Federal de 1988.

Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal já se pronunciou no MS 22.164, em

17.11.1995:

O direito à integridade do meio ambiente – típico direito de terceira geração –

constitui prerrogativa jurídica de titularidade coletiva, refletindo, dentro do processo

de afirmação dos direitos humanos, a expressão significativa de um poder atribuído

não ao indivíduo identificado em sua singularidade, mas, num sentido

verdadeiramente mais abrangente, a própria coletividade social.

A Lei 12.305 de 02 de agosto de 2010 que trata sobre os resíduos sólidos aprimorou a

responsabilidade dos envolvidos no ciclo de vida dos produtos aptos a gerar resíduos sólidos.

Essa responsabilidade, chamada compartilhada, faz as vezes da responsabilidade solidária, na

medida em que abrange fabricantes, importadores, distribuidores e comerciantes, os

consumidores e os titulares dos serviços públicos de limpeza urbana e de manejo de resíduos

sólidos, conforme dita o artigo 30 da mencionada lei.

A responsabilidade compartilhada tem como fito: compatibilizar interesses entre os

agentes econômicos e sociais e os processos de gestão empresarial e mercadológica com os de

gestão ambiental, desenvolvendo estratégias sustentáveis; promover o aproveitamento de

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88

resíduos sólidos, direcionando-os para a sua cadeia produtiva ou para outras cadeias

produtivas; reduzir a geração de resíduos sólidos, o desperdício de materiais, a poluição e os

danos ambientais; incentivar a utilização de insumos de menor agressividade ao meio

ambiente e de maior sustentabilidade; estimular o desenvolvimento de mercado, a produção e

o consumo de produtos derivados de materiais reciclados e recicláveis; propiciar que as

atividades produtivas alcancem eficiência e sustentabilidade; incentivar as boas práticas de

responsabilidade socioambiental.

Quer-se, com isso, envolver todos os que, direta ou indiretamente, participam das

etapas de desenvolvimento do produto, inclusive aquela atinente à disposição final. A

preocupação deixa de ser a investigação da culpa ou de quem praticou a conduta danosa,

adotando uma postura de integral proteção ao meio ambiente, buscando os meios mais

eficazes para a reparação do dano.

Nessa senda, possível suscitar a teoria esposada por Giselda Maria Fernandes Novaes

Hironaka (2005), que evolui de uma responsabilidade objetiva para uma responsabilidade

pressuposta. Segundo o autor Flávio Tartuce (2010, p. 425), pela responsabilidade

pressuposta, “deve-se buscar, em um primeiro plano, reparar a vítima, para depois verificar-se

de quem foi a culpa ou quem assumiu o risco”. Por esse raciocínio, coloca-se em evidência o

dano e a necessidade de sua reparação.

Percebe-se que a proposta da responsabilidade compartilhada surge exatamente nesse

contexto de preocupação com o Bem Ambiental, visando, num primeiro momento, a

reparação do dano, imputando responsabilidade a quaisquer do que participaram do ciclo de

vida do produto.

Contudo, para que haja a responsabilidade civil, necessária a existência de um dano. O

dano ambiental, como se sabe, é capaz de gerar repercussão coletiva, prejudicando as

gerações presentes e futuras.

Muito se tem falado dos danos sociais que, nas palavras de Antonio Junqueira de

Azevedo, citadas por Flávio Tartuce (2010, p. 432), “são lesões à sociedade, no seu nível de

vida, tanto por rebaixamento de seu patrimônio moral – principalmente a respeito da

segurança – quanto por diminuição da qualidade de vida”. O fundamento do dano social está

na cláusula geral de tutela da pessoa humana, insculpida no artigo 1º, III da Constituição

Federal. Por referida norma, tem-se a possibilidade de sustentar a idéia de novos danos

reparáveis. A conclusão procede de uma análise principiológica e sistêmica entre a Carta de

Page 89: Revista Ciência Dinâmica - 4ª Edição

89

1988 e o Código Civil de 2002 que tem como pilar o princípio da socialidade, superando o

caráter individualista da codificação anterior.

A reparação dos danos sociais deve seguir na senda do Código de Defesa do

Consumidor que, dentre outros temas, versa sobre os direitos difusos. O artigo 6º do Estatuto

Consumerista, em seu inciso VI, garante a efetiva prevenção e reparação de danos

patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos.

O valor da indenização paga em caso de danos sociais advindos de resíduos sólidos

deve ser revertido aos prejudicados, ainda que de forma indireta. Além disso, a Lei 12.305

prevê como Política Nacional de Resíduos Sólidos o Fundo Nacional do Meio Ambiente e o

Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (art. 8º, X), motivo pelo qual

há de se concluir que parte da indenização deve ser destinada a esses Fundos, com o fim de

reparar os danos sociais causados.

Importante notar que a Lei de Resíduos Sólidos atribui obrigações aos participantes do

ciclo de vida do produto. Implica dizer que, descumprida tais obrigações, nasce a

responsabilidade de reparar o dano, se este existir.

O uso da expressão “responsabilidade compartilhada” aponta para o princípio da

solidariedade garantido pela Constituição Federal, em seu artigo 3º, I. Quer dizer que toda a

sociedade está envolvida na Política que fita a garantia da qualidade de vida. Mesmo o

consumidor, sendo destinatário final de produtos, deve, nos termos do artigo 33 da Lei

12.305/2010, efetuar a devolução dos produtos e das embalagens mencionados no mesmo

dispositivo após o uso, aos comerciantes ou distribuidores que darão o devido fim.

5. CONCLUSÕES

A Política Nacional de Resíduos Sólidos instituída pela Lei 12.305 é um importante

instrumento de proteção do meio ambiente. A partir da criação de instrumentos específicos de

proteção e do incentivo à educação ambiental de consumidores, fabricantes, comerciante e do

próprio poder público traz-se um novo jeito de lidar com um dos maiores problemas

ambientais do país: o lixo.

É possível verificar que a referida lei traz diversas inovações no que diz respeito ao

tema, e que se efetivamente implementadas, trarão benefícios ímpares para a sociedade atual e

futuras gerações.

Page 90: Revista Ciência Dinâmica - 4ª Edição

90

No que diz respeito á responsabilidade civil, verifica-se que a Política Nacional de

Resíduos Sólidos instituiu a chamada Responsabilidade Compartilhada, imputando

responsabilidade a quaisquer do que participaram do ciclo de vida do produto.

Esta é, também, uma importante forma de proteção do meio ambiente e também de

conscientização da própria população no que diz respeito ao seu dever de preservação

ambiental, uma vez que os consumidores também podem ser responsabilizados pelo

acondicionamento adequado dos seus resíduos produzidos.

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1998, p. 505;

AZEVEDO, Antonio Junqueira apud TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Direito das

Obrigações e Responsabilidade Civil. 5. ed. São Paulo: Método, 2010.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasilia, DF:

Senado Federal, 1988. Disponível em: <http: www.planalto.gov.br>. Acesso em 20 de

novembro de 2010.

BRASIL. Lei 12.305 de 03 de agosto de 2010. Institui a Política Nacional de Resíduos

Sólidos; altera a Lei no 9.605, de 12 de fevereiro de 1998; e dá outras

providências. Disponível em: <http: www.planalto.gov.br>. Acesso em 22 de novembro de

2010.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. MS 22.164, DJ 17.11.1995.

DIAS, João Carlos Quaresma. Logística global e macrologística. Lisboa: Edições Sílabo,

2005.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 15. ed. São Paulo: Atlas, 2003;

HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Responsabilidade pressuposta. Belo

Horizonte: Del Rey, 2005.

SILVEIRA, Patrícia Azevedo da. Competência Ambiental. Curitiba: Jaruá, 2005, p. 234.

TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Direito das Obrigações e Responsabilidade Civil. 5. ed.

São Paulo: Método, 2010.

WEISS, Edith Brown. O direito da biodiversidade no interesse das gerações presentes e

futuras. Revista do Centro de Estudos Jurídicos, Brasília, n. 8, p. 10-15, mai./ago. 1999.

Page 91: Revista Ciência Dinâmica - 4ª Edição

91

O DIREITO CONSTITUCIONAL SOB A PERSPECTIVA DO

NEOCONSTITUCIONALISMO

Leilson Soares Viana1

“Não há, numa constituição, cláusulas a que se deva

atribuir meramente o valor moral de conselhos, avisos

ou lições. Todas têm força imperativa de regras”.

Rui Barbosa, Comentários à Constituição Federal

Brasileira, v. 2, p. 475.

Resumo

A superação do modelo jurídico-positivista reinante até meados do século XX levou os

estudiosos da ciência jurídica a buscarem uma nova alternativa para a aplicação do Direito,

que não pautasse unicamente ao apego literal da lei, conduzindo à criação de um modelo de

estado constitucional, fundado num conjunto de normas de caráter aberto, cuja realização

envolve diversos atores sociais, bem como a interrelação do Direito com outras ciências afins.

Palavras-chave: Direito Constitucional – Pós-positivismo – Neoconstitucionalismo

Abstract

Overcoming the legal positivist model prevailing until the mid-twentieth century has led

scholars of legal science to seek a new alternative for applying the law, not solely determined

by attachment letter of the law, leading to the creation of a constitutional state model,

founded on a set of open standards of character, whose implementation involves various

social actors, as well as the interplay of law with other related sciences.

Keywords: Constitutional Law – Post-positivism – Neoconstitutionalism

1. A dogmática jurídica tradicional e sua superação

O Direito é uma invenção humana, um fenômeno histórico e cultural, concebido

como técnica de solução de conflitos e instrumento de pacificação social2. A base jurídica

romano-germânica surge e se desenvolve em torno das relações privadas, com o direito civil

1 Advogado e Professor Universitário, Mestre em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da

Universidade de Coimbra – Portugal, Coordenador-adjunto do Curso de Direito da Faculdade Dinâmica de

Ponte Nova – MG. 2 A origem do Direito, enquanto instrumento de pacificação social, se confunde com a origem da própria

sociedade. Já na antiguidade mais remota, com o surgimento das primeiras teias sociais, já se ouvia falar em

regras de organização da vida em conjunto, seja num núcleo mais limitado como o da família, seja num mais

aberto como o das primeiras formações sociais. Nessa época, como ainda não existia a organização estatal, as

regras eram impostas pelo chefe familiar – o pater familia – e, um pouco mais tarde, pela própria autoridade

religiosa. Assim, o direito antigo não foi obra de um legislador, mas antes, se impôs a ele. Foi na família que

ele nasceu saindo espontaneamente dos princípios que a constituía e das crenças religiosas que eram

universalmente admitidas. Para uma leitura mais aprofundada sobre essa origem, ver, entre outros: Numa

Dénis Fustel de Coulanges, La Cité Antique; Cláudio De Cicco, Direito Tradição e Modernidade.

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92

no centro do sistema jurídico. Seus institutos, conceitos e ideias fizeram a história de povos

diversos e atravessaram os tempos. O Estado moderno surge no século XVI, ao final da Idade

Média, sobre as ruínas do feudalismo e fundado no direito divino dos reis. O absolutismo

monárquico toma as rédeas da criação do direito ditando as regras a serem seguidas. Os reis se

legitimavam no poder pela “vontade de Deus”3.

Na passagem do Estado absolutista para o Estado liberal, o Direito incorpora o

jusnaturalismo racionalista dos séculos XVII e XVIII, fundado na crença a princípios

universalmente válidos, que serviu de matéria-prima das revoluções francesa e americana.

Vive-se a chamada “idade da razão” – age of reason – onde a razão humana e o próprio

homem vão fixar-se no centro das atenções4.

É sobre esse vetor – a razão – que o Direito moderno, em suas categorias

principais, consolida-se no século XIX, já arrebatado pela onda positivista, com status e

ambição de ciência, seguindo a linha da filosofia positiva iniciada por Auguste Comte5.

Nesse período a lei é difundida como instrumento condutor da razão. A ciência do

Direito é o domínio da segurança e da justiça. O Estado é a fonte única do poder e do Direito.

O sistema jurídico é visto como completo e auto-suficiente (completude do Direito) e as

eventuais lacunas são resolvidas internamente, pelo costume, pela analogia, pelos princípios

gerais do Direito6.

Cindida das questões filosóficas, sociológicas, históricas e antropológicas, a

dogmática jurídica volta seu conhecimento apenas para a lei e o ordenamento positivo, sem

qualquer reflexão sobre seu próprio saber e seus fundamentos de legitimidade. Nesse

3 Nesse sentido: Luis Roberto Barroso, Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional

brasileiro (pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo). In. “A nova interpretação constitucional:

ponderação, direitos fundamentais e relações privadas, p. 12. 4 Representam bem o referido ideal as palavras de Thomas Paine na dedicatória de seu livro, The age of reason:

“A mais poderosa arma contra qualquer espécie de erro é a Razão. Eu nunca usei qualquer outra, e acredito que

nunca usarei.” Thomas Paine, The age of reason, p. 4. 5 Ver nesse sentido Auguste Comte, Discurso sobre o Espírito Positivo, p. 12-28.

6 Essa ideia de completude do Direito passa por duas linhas doutrinárias distintas, mas próximas entre si. Uma

decorrente do sistema fechado próprio do positivismo jurídico de base Kelseniana, onde o ordenamento

jurídico esgota as possibilidades de aplicação do Direito (para um maior aprofundamento acerca dessa corrente

doutrinária, ver entre outros, Hans Kelsen, Teoria Pura do Direito; Norberto Bobbio, Positivismo Jurídico).

Outra decorrente do sistema autopoiético (que tem como um de seus principais expoentes nas ciências sociais

Niklas Luhmann) teoria assente no pressuposto de que a unidade e identidade de um sistema deriva da

característica fundamental de autoreferencialidade das suas operações e processos. A ideia de autoreferência e

autopoiesis pressupõe que os pilares ou bases do funcionamento dos sistemas residem, não nas condições

exógenas impostas pelo meio envolvente às quais tenham de se adaptar da melhor forma possível (como é

entendido pelas teorias dos sistemas abertos), mas afinal no próprio seio sistêmico. Nesse sentido ver, entre

outros, Gunther Teubner. O Direito como sistema autopoiético, p. 31-32.

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93

momento o positivismo afasta a construção teórica, a interpretação e qualquer forma criadora

de Direito que não seja a própria lei escrita.

O Estado funciona como árbitro imparcial aplicador desse direito puro e

idealizado. A interpretação jurídica se resume em um processo silogístico de subsunção fato-

normativa. O juiz – la bouche qui prononce les paroles de la loi7 – é um revelador de

verdades abrigadas no comando geral e abstrato da lei. Refém da separação de poderes não

lhe cabe qualquer papel criativo. Em síntese, pode-se lançar como elementos característicos

principais do Direito na perspectiva clássica: o caráter científico; o emprego da lógica formal; a

pretensão de completude; a pureza científica; a racionalidade da lei; e, a neutralidade do

intérprete8.

Esse conjunto de características está representado na deusa Têmis, vendada, com a

balança à mão e espada ao punho: essa era a simbologia do Direito que produzia ordem e

justiça, com equilíbrio e igualdade e sob a força do Estado.

2. O pós-positivismo e as bases teóricas da pós-modernidade

O final do século XX descortina-se como uma nova fase na evolução da era do

direito, com um rótulo genérico que abriga a mistura de estilos, a descrença no poder absoluto

da razão, o desprestígio do Estado. É a era da velocidade. A imagem acima do conteúdo. O

efêmero e o volátil parecem derrotar o permanente e o essencial. Vive-se a angústia do que não

pôde ser e a perplexidade de um tempo sem verdades seguras9. Uma era aparentemente “pós-

tudo”: pós-kelseniana, pós-positivista, pós-moderna10

.

O Direito já não comportava mais o positivismo jurídico, no entanto, o simples

retorno ao jusnaturalismo também não se mostrava como alternativa capaz de suplantar as

7 Cf. Montesquieu, O Espírito das Leis: “Mas os Juízes da Nação, como dissemos, são apenas a boca que

pronuncia as palavras da lei; seres inanimados que não lhe podem moderar nem a força, nem o rigor.”

Grifado 8 Nesse sentido: Luis Roberto Barroso, Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional

brasileiro (pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo). In. “A nova interpretação constitucional:

ponderação, direitos fundamentais e relações privadas, p. 12-13. 9 Cf. Luís Roberto Barroso, Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro (pós-

modernidade, teoria crítica e pós-positivismo). In. “A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos

fundamentais e relações privadas, p. 2-3. 10

“A pós-modernidade é uma tentativa de descrever o grande ceticismo, o fim do racionalismo, o vazio teórico, a

insegurança jurídica que se observam efetivamente na sociedade, no modelo de Estado, nas formas de

economia, na ciência, nos princípios e nos valores de nossos povos nos dias atuais. Os pensadores europeus

denominaram este momento de rompimento (Umbruch), de fim de uma era e de início de algo novo, ainda não

identificado.” Cf. Cláudia Lima Marques, A crise científica do direito na pós-modernidade e seus reflexos na

pesquisa, Revista Cidadania e Justiça, n° 6, 1999.

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deficiências vivenciadas no sistema jurídico convencional. O pós-positivismo surge então não

com o objetivo de desconstruir o pensamento positivista, mas como um fundamento teórico

voltado a superar o conhecimento tradicional. Embora ele reconheça a importância do

ordenamento jurídico positivo, nele insere elementos como o ideal de justiça e legitimidade.

O paradigma jurídico vivido na modernidade, no qual a lei funcionava como o

elemento preponderante para a atividade jurisdicional, reverte-se para o caso concreto e, a

partir dele, se busca a melhor solução para a resolução dos conflitos, partindo do ordenamento

positivo, mas sem limitar-se a ele.

Nessa evolução, o discurso acerca do Estado atravessou, ao longo do século XX,

três fases distintas: a pré-modernidade (ou Estado liberal), a modernidade (ou Estado social –

welfare estate) e a pós-modernidade (ou Estado neoliberal), sendo essa última influenciada

por algumas teorias marcantes para identificação dessa fase11

.

3. A Teoria Crítica do Direito

A teoria crítica do direito consiste num conjunto de movimentos e de ideias

voltados a questionar o saber jurídico tradicional a partir da refutação de suas premissas

centrais, quais sejam: a cientificidade, a objetividade, a neutralidade, a estabilidade e a

completude. Enfatiza o caráter ideológico do Direito, equiparando-o à política, a um discurso

de legitimação do poder. Preconiza, ainda, a atuação concreta, a militância do operador

jurídico, à vista da concepção de que “o papel do conhecimento não é somente a interpretação

do mundo, mas também a sua transformação”.12-13

O pensamento crítico sustenta a tese de que as bases do Direito não estão

inteiramente contidas na lei, podendo existir fora do domínio da positivação. Cabe ao

intérprete buscar um ideal de justiça, mesmo quando não o encontre literalmente na lei. A

11

Cf. Cf. Luís Roberto Barroso, ob. cit., p. 5. 12

Cf. Luís Roberto Barroso, Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro (pós-

modernidade, teoria crítica e pós-positivismo). In. “A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos

fundamentais e relações privadas, p. 14-15. 13

É essa a concepção traçada por Castanheira Neves ao afirmar sem hesitação que: “O político não é a única,

nem a decisiva dimensão da prática humana: o ético, o político e o direito são dimensões de uma específica e

relativa autonomia nessa praxis que nenhum holismo de cariz político pode unilateralmente dissolver ou

reduzir. Pelo que é à filosofia do direito e não à filosofia política que havemos de pedir a compreensão e a

solução do problema e sentido últimos e fundamentais do direito. Ficando só pela filosofia política ou

convocando-a exclusivamente, não é apenas a filosofia do direito que se vê preterida, é o próprio direito no seu

sentido e na sua exigida compreensão específica que se sacrifica. Cf. Castanheira Neves, A Crise actual da

Filosofia do Direito no contexto global da Filosofia, p. 114-115.

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95

teoria crítica contesta também às ideias de completude, de auto-suficiência e de pureza, da

ordem jurídica condenando, também, o afastamento de outras áreas do conhecimento da

esfera de atuação do Direito. Pode-se assim afirmar que “o estudo do sistema normativo

(dogmática jurídica) não pode insular-se da realidade (sociologia do direito) e das bases de

legitimidade que devem inspirá-lo e possibilitar a sua própria crítica (filosofia do direito)”. A

interdisciplinariedade presta uma colaboração indispensável ao universo jurídico, inclusive

em áreas que, a princípio, guardam pouca referência a sua realidade, como por exemplo, a

psicanálise e a linguística. As décadas de 70 e 80 foram profícuas para a difusão do

pensamento crítico influenciando na produção acadêmica de diversos países14

.

Em Portugal, autores como o sociólogo da Universidade de Coimbra Boaventura

de Souza Santos contribuíram para repensar a dogmática tradicional a partir de uma teoria crítica que

trouxesse para o centro das discussões os desafios e as diversidades do mundo contemporâneo não só no plano

sociológico, como também nas mais diversas áreas do conhecimento humano, inclusive no

plano jurídico15

.

Também no Brasil a Teoria Crítica denunciou o papel até então desempenhado

pelo Direito enquanto instância de poder e instrumento de dominação social, compartilhando

dos mesmos fundamentos filosóficos que a inspiraram em sua matriz europeia e americana16

.

14

“Na França, a Critique du Droit, influenciada por Althusser, procurou atribuir caráter científico ao Direito, mas

uma ciência de base marxista, que seria a única ciência verdadeira. Nos Estados Unidos, os Critical Legal

Studies, também sob influência marxista – embora menos explícita –, difundiram os fundamentos de sua crença

de que law is politics, convocando os operadores jurídicos a recompor a ordem legal e social com base em

princípios humanísticos e comunitários. (Uma das lideranças do movimento foi o professor brasileiro de

Harvard, Roberto Mangabeira Unger, que produziu um dos textos mais difundidos sobre esta corrente de

pensamento: The critical legal studies movement, 1986). Anteriormente, na Alemanha, e denominada Escola

de Frankfurt lançara algumas bases da teoria crítica, questionando o postulado positivista da separação entre a

ciência e a ética (...). A produção filosófica de pensadores como Max Horkheimer, Herbert Marcuse, Theodor

Adorno e, mais recentemente, Jürgen Habermas e Hans-Georg Gadamer, terá sido a principal influência pós-

marxista da teoria crítica. Cf. Luís Roberto Barroso, Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito

constitucional brasileiro (pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo). In. “A nova interpretação

constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas, p. 15-16. 15

Boaventura de Souza Santos, não só apresentou uma crítica à dogmática tradicional, como também apontou

críticas ao próprio modelo traçado pela teoria crítica. Apesar de reconhecer o caráter emancipatório da crítica,

para ele, “o pensamento crítico é centrífugo e subversivo, pois visa criar desfamiliarização em relação ao que

está estabelecido e é convencionalmente aceito como normal virtual inevitável necessário”. Por fim,

Boaventura discorda do fato de as teorias críticas não se questionarem no ato de questionar, nem aplicar a si

próprias o grau de exigência com que critica. Nesse sentido: Boaventura de Souza Santos, A Crítica da Razão

Indolente. Contra o desperdício da experiência, p. 17; 16

Entre os autores brasileiros que tiveram participação na difusão da teoria crítica no Brasil, destaque para Lênio

Luiz Streck, Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: uma nova crítica do Direito (2004); Hermenêutica

Jurídica e(m) Crise (2003); e, Concretização de Direitos e Interpretação da Constituição (BFDUC n°

81/2005).

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Em que pese o papel desempenhado no desenvolvimento do pensamento crítico,

voltado a condenar o modelo de dogmática convencional, isso não implicou, contudo, ao

abandono da lei. Ela ainda representa um avanço na evolução do Direito e, por isso, há que se

explorar as suas potencialidades positivas (legalidade democrática), mas também, investir na

interpretação principiológica, fundada em valores, na ética e na razão possível.

4. O Constitucionalismo Aberto e a Transdisciplinariedade

Conforme já visto, o positivismo legalista, centrado, única e exclusivamente, na

letra da lei, fechado ao exterior, procurou apresentar o Direito como objeto de uma ciência

unidisciplinar. O jurista, em seu papel de intérprete e aplicador da lei, devia abster-se de fazer

considerações de ordem política, de justiça e de adequação à realidade social.

Contrapondo a esse formalismo tecnicista do direito, surge uma corrente de

pensamento jurídico, de base constitucionalista, que dá ao Direito e especificamente ao

Direito Constitucional uma maior abertura em seu âmbito de atuação demandando um maior

conhecimento dos outros saberes, além da simples letra do texto escrito17

.

Ciente de que quem quer empenhar-se em compreender o lugar e o papel do

direito nas sociedades humanas não deve menosprezar nenhuma das dimensões precedentes a

Constituição e, por conseguinte, o Direito Constitucional tornam-se multidisciplinares.

Peter Häberle parte da noção de que “a Constituição é um texto mutável” e,

portanto, “sua interpretação deve ser alterada para atender às demandas do momento”. Para

Häberle, os intérpretes diretos da Constituição devem reconhecer a Constituição como um

ponto de partida, e não como um fim em si mesma. A Constituição não é estática, pois faz

parte da dinâmica da sociedade e sua interpretação deve ser feita no seu tempo e assente à

realidade que a cerca.

Essa abstração do Direito Constitucional serve como pressuposto de sua

adaptabilidade, de sua evolução, criando uma “Constituição viva”, que acompanha o

desenvolvimento da própria sociedade. Destarte, não haveria mais como diferenciar a

17

Um dos maiores expoentes dessa corrente doutrinária é, sem sombra de dúvidas, o jurista alemão Peter

Häberle, autor da célebre obra Hermenêutica Constitucional – A sociedade aberta dos intérpretes da

Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da constituição, que propõe a

seguinte tese: “no processo de interpretação constitucional estão potencialmente vinculados todos os órgãos

estatais, todas as potências públicas, todos os cidadãos e grupos, não sendo possível estabelecer-se um

elemento cerrado ou fixado com numerus clausus de intérpretes da constituição. (...) A interpretação

constitucional é, em realidade, mais um elemento da sociedade aberta.” Peter Häberle, ob. cit., p. 13.

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dogmática jurídica constitucional da sociologia, da filosofia, da antropologia, da ciência

política, superando-se, assim, a mentalidade que se tinha acerca do sistema jurídico, como um

sistema fechado.

Essa abertura oxigena o texto da Constituição ao mesmo tempo em que possibilita

não só a participação formal dos diversos atores sociais, enquanto intérprete da Constituição, mas

também uma participação material nos julgamentos das causas que lhes interessem. Os Tribunais

Constitucionais passam a ser vistos como uma instância de participação das pessoas nas decisões,

na medida em que se abrem para que todos possam se manifestar nos julgamentos18

.

Mais uma vez Peter Häberle justifica sua teoria ao afirmar que “uma Constituição,

que estrutura não apenas o Estado em sentido estrito, mas também a própria esfera pública

(Öffentlichkeit), dispondo sobre a organização da própria sociedade e, diretamente, sobre

setores da vida privada, não pode tratar as forças sociais e privadas como mero objeto. Ela

deve integrá-las ativamente enquanto sujeitos.”19

A lógica dessa afirmativa é muito simples: permitir um maior cotejo das normas

constitucionais com a realidade social. Nesse processo de delimitação do conteúdo da norma

constitucional, a presença e a opinião de estudiosos, pesquisadores e pensadores, de outras

áreas do conhecimento afiguram-se como essenciais para uma maior compreensão e para a

fixação de uma maior convicção por parte do julgador.

5. O neoconstitucionalismo e as novas metodologias interpretativas

Com o fito de superar o modelo do Estado de Direito clássico, marcado pela

supremacia da lei, pelo princípio da legalidade e pelo positivismo jurídico, a proposta metodológica

foi a criação de um Estado Constitucional20

, cuja principal característica consistia na subordinação

da lei a um estrato substantivo de direito, estabelecido pela Constituição21

.

18

Foi seguindo esse pensamento que o Supremo Tribunal Federal brasileiro permitiu, por exemplo, a

participação de índios em julgamento que tratava da demarcação de terras indígenas; de sociedades

representativas das classes médicas e pesquisas científicas, bem como de diversas representações religiosas e

de direitos humanos em julgamento que tratava da manipulação genética de células-tronco e da despenalização

do aborto. 19

Cf. Peter Häberle, Hermenêutica Constitucional – A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição, p. 33. 20

Para Aguiló Regla, os Estados Constitucionais são sistemas jurídico-políticos que reúnem as seguintes

características: 1) a existência de constituições formais, ou seja, que possuam um grau diferenciado em relação

às leis ordinárias; 2) essa constituição formal deve cumprir suas funções: uma constitutiva, criando instituições

e procedimentos e outra valorativa, reconhecendo valores e fins que devem ser protegidos e/ou promovidos; 3)

por fim, a constituição formal deve ser efetiva, ou seja, utilizada como parâmetro de estabilização das relações

do Estado. Cf. Josep Aguiló Regla, Sobre la constitución del Estado Constitucional, p. 40-42. 21

Cf. Gustavo Zagrebelsk, El Derecho Dúctil: Ley, derecho e justicia, p. 21-34.

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Vivencia-se, com isso, no plano constitucional, um momento de ascensão científica

e política. Os estudos que se desenvolveram ao longo dessa transição procuraram investigar os

antecedentes teóricos e filosóficos desse novo direito constitucional, identificar seus principais

adversários e acenar com algumas ideias para o presente e para o futuro.

O Direito Constitucional ganha status de “super ciência” abarcando quase todas as

áreas da vida social, política e jurídica. Vivencia-se, num primeiro momento, uma onda de

constitucionalização do direito. A Constituição passa a ser vista não mais como uma

“ordenação fundamental dum Estado, que define os titulares do poder público, enuncia os

órgão políticos e a sua competência, indica os fins supremos da comunidade e, normalmente,

assegura um elenco de garantias dos particulares”22

, mas também como um conjunto de

orientações programáticas ou uma ordem principiológica, sem força normativa (mas que

passa a cada dia ganhar mais normatividade), que visa construir um norte, uma meta a ser

seguida pelos entes estatais.

Inicia-se aí o neoconstitucionalismo. O sentido do prefixo “neo” “presume-se

considerar algo que é novo ou que ainda não foi desvendado, que está em desenvolvimento,

determinando certo avanço em relação ao estado anterior”23

. É dentro dessa premissa que

nasce o neoconstitucionalismo, ou seja, no sentido de visualizar o constitucionalismo

contemporâneo, e sinalizar para um “constitucionalismo do por vir”24

.

O neoconstitucionalismo surge da complexidade das relações sociais atuais,

fundadas no princípio da dignidade da pessoa humana, que tornou-se o centro do vasto rol de

direitos protegidos pelos mais variados instrumentos internacionais e, principalmente, pelas

constituições modernas dos Estados democráticos25

.

No âmbito da dogmática jurídica, o neoconstitucionalismo expõe as mudanças

ocorridas nos sistemas jurídicos contemporâneos, marcadas pelo surgimento de uma

Constituição viva e mutável, caracterizada pela presença de princípios e regras que vinculam

a interpretação e a aplicação das demais normas do ordenamento jurídico26

; uma Constituição

22

Cf. conceituação de Rogério E. Soares, Constituição, in “Dicionário Jurídico da Administração Pública”, p. 671. 23

Nesse sentido: Leandro Soares Lomeu, Aspectos do Neoconstitucionalismo. 24

Cf. André Ramos Tavares, Curso de Direito Constitucional, p. 14. 25

Cf. Carlos Roberto Siqueira Castro, A constituição aberta e os direitos fundamentais: ensaios sobre o

constitucionalismo pós-moderno e comunitário, p. 15.

26 Em tempos não tão remotos o Poder Judiciário não reconhecia qualquer papel relevante no conteúdo da

Constituição, não vislumbrava força normativa a Constituição tal como hoje. Tratava-se a de um documento

político que direcionava-se mais aos Poderes Públicos e principalmente ao Poder Legislativo. Tal é o avanço

ocorrido no plano constitucional que esclarece o Professor Luis Roberto Barroso: “Atualmente, passou a ser

premissa do estudo da Constituição o reconhecimento de sua força normativa, do caráter vinculativo e

obrigatório de suas disposições. Vale dizer: as normas constitucionais são dotadas de imperatividade, que é

atributo de todas as normas jurídicas, e sua inobservância há de deflagrar os mecanismos próprios de coação,

de cumprimento forçado. A propósito, cabe registrar que o desenvolvimento doutrinário e jurisprudencial na

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normativa e real que guarde correspondência entre o texto escrito e os anseios e valores

presentes na sociedade.

Foi em busca dessa “Constituição Real” que o neoconstitucionalismo propugnou a

“passagem de um constitucionalismo meramente programático para um constitucionalismo

social de incontrastável eficácia e juridicidade”, sem romper, contudo, com a ordem

constitucional já instaurada 27

.

Utilizando-se do papel da interpretação da Constituição como instrumento de

busca da efetividade de suas normas, a teoria neoconstitucional reforça a ideia da força

normativa de seu texto, onde fica claro o reconhecimento de normatividade aos princípios e

regras que lhe dão sustentação28

.

Se os princípios, diferentemente das regras, não trazem em seu conteúdo

semântico o esgotamento de sua proposta normativa, compete ao intérprete, em última

análise, extrair dos princípios a resposta normativa a que eles se propõem.

Um texto constitucional nasce com um propósito de continuidade. Não se pensa

ao criar uma Constituição na sua mutabilidade material, ou mesmo no esgotamento ou na falta

de aplicabilidade de suas normas. Daí a tendência principiológica das normas constitucionais

de modo a permitir a sua oxigenação com uma mínima intervenção no seu texto29

. Mais uma

matéria não eliminou as tensões inevitáveis que se formam entre as pretensões do constituinte, de um lado, e,

de outro lado, as circunstancias da realidade fática e as eventuais resistências do status quo.” In.:

Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito. In. “Boletim da FDUC”, Vol. LXXXI, 2005, p. 239. 27

Cf. Paulo Bonavides, Constitucionalismo luso-brasileiro: influxos recíprocos, In: Jorge Miranda, “Perspectivas

Constitucionais”, p. 52.

28 “Os princípios não são, como as regras, comandos imediatamente descritivos de condutas específicas, mas sim

normas que consagram determinados valores ou indicam fins públicos a serem realizados por diferentes meios.

A definição do conteúdo de cláusulas como dignidade da pessoa humana, razoabilidade, solidariedade e

eficiência transfere para o intérprete uma dose importante de discricionariedade. A menor densidade jurídica de

tais normas impede que delas se extraia, no seu relato abstrato, a solução completa das questões sobre as quais

incidem. É nesse ponto que se impõe a atuação do intérprete na definição concreta de seu sentido e alcance”.

Luis Roberto Barroso, In.: Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito. In. “Boletim da FDUC”,

Vol. LXXXI, 2005, p. 244-245. 29

Um exemplo clássico desse pragmatismo constitucional é a Constituição Norte-Americana (1787) que lida com

a ideia de uma Constituição da continuidade, visando a sua atualização, reafirmando a sua progressão e não o

desfalecimento, tal como leciona o Professor José Luiz Quadro de Magalhães: “A história constitucional norte-

americana reforça a ideia de uma Constituição dinâmica, viva, que se reconstrói diariamente diante da

complexidade das sociedades contemporâneas. Uma Constituição presente em cada momento da vida. Uma

Constituição que é interpretação, e não texto. A experiência norte-americana nos revela uma nova dimensão da

jurisdição constitucional, presente em toda a manifestação do Direito. É tarefa do agente do Direito, nas suas

mais diversas funções, dizer a Constituição no caso concreto e promover leituras constitucionalmente

adequadas de todas as normas e fatos. A vida é interpretação, não há texto que não seja interpretado. A

interpretação do mundo, dos fatos, das normas é inafastável”. Cf. José Luiz Quadros de Magalhães.

Constitucionalismo e interpretação: um certo olhar histórico. In: “Revista Brasileira de Direito

Constitucional”. Vol. 6, jul./dez. 2005, p. 208.

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100

vez o papel do intérprete é de fundamental importância, pois a ele compete não só manter viva

e atualizada a Constituição face ao acompanhamento das relações contemporâneas, como

evitar a sua mutação material ou desnaturação.

6. A realização do direito do ponto de vista neoconstitucionalista

As doutrinas políticas que deram sustentação, na Europa, ao Estado Moderno e ao

Estado Liberal colocaram o legislador no centro das discussões teóricas voltadas ao

entendimento do fenômeno jurídico, em razão da consagração da ideia de lei como expressão de

uma vontade popular qualificada. Fundado nessa dogmática o positivismo jurídico reinou ao

longo de todo o século de XIX transpassando por boa parte do século XX30

.

O advento do Estado Constitucional e a abertura dos textos jurídicos

possibilitando uma maior interrelação entre o Direito e outras áreas de formulação teóricas

como a Política, a Moral e a ideia de Justiça levaram a uma revisão dos papéis

desempenhados pelos atores jurídicos no exercício de realização do Direito.

Assim, o legislador perde o protagonismo enquanto figura principal na realização

do direito, abrindo espaço para outros órgãos de poder como o Judiciário. A razão disso se dá

no fato de que o intérprete da norma deixa de buscar a resolução dos conflitos somente no

interior do ordenamento jurídico31

, mas lhe abre a possibilidade de interagir com elementos

externos ao ordenamento, como a dimensão concreta do caso posto em juízo.

Dessa maneira, o neoconstitucionalismo muda o foco de atenção da legislação para

a aplicação do Direito. O legislador que antes era a figura central na formulação jurídica a partir

da sua vontade expressa na lei, cede lugar ao intérprete do Direito e ao juiz. Essa concepção

30

O jurista italiano Gustavo Zagrebelsky denomina esta forma de expressão da figura estatal, na qual o legislador

exerce forte influência no cenário político e jurídico, de “Estado de Direito Legislativo” e a ciência jurídica

produzida em seu contexto, de concepção positivista, de “Ciência da Legislação Positiva”. In.: El derecho

dúctil: Ley, derechos, justicia, p. 33.

31 Zagrebelski afirma que “segundo a concepção positivista tradicional, na aplicação do direito a regra jurídica se

obtém tendo em conta exclusivamente as exigências do direito”. Essas exigências estavam previstas

expressamente nos mecanismos de interpretação e nos critérios hermenêuticos (ou “cânones”) elaborados pelo

positivismo. Gustavo Zagrebelski, El derecho dúctil: Ley, derechos, justicia, p. 132.

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comunga da ideia que fazia alusão ao direito indeterminado e à resolução de casos difíceis –

hard cases, entendendo que o Direito não está inteiramente contido na lei 32

.

Por certo, essa mudança na perspectiva jurídica só se mostra viável se

entendermos o intérprete do Direito como figura capaz de conduzir a solução de conflitos

postos em juízo, de modo a conciliar as regras e princípios expressos na Constituição,

intermediando a lei abstrata e o caso concreto.

Nesse momento, falar em protagonismo judicial como uma característica do

neoconstitucionalismo não se mostra como uma afirmação precipitada e sem fundamento, posto

que nessa concepção dogmática cabe ao Judiciário exercer a função de realização do Direito33

.

Contudo, a liberdade conferida ao juiz no exercício da sua atividade jurisdicional

não pode transmudar-se em arbítrio haja vista que muitas das vezes está nas mãos do juiz o

poder de determinar o conteúdo do Direito, a partir da utilização instrumentos interpretativos

aplicáveis aos princípios constitucionais com vistas à solução do caso concreto34

.

32

Dworkin utiliza a expressão hard cases para designar os casos não cobertos por uma regra “clara” a determinar

a forma como devam ser decididos (In.: Ronald Dworkin, Levando os direitos a sério, p. 127). Hart utiliza a

mesma expressão para caracterizar a chamada “zona de penumbra” que determina um processo incerto de

tomada de decisão (intepretativa) (Hebert L. A. Hart, Essays in jurisprudence and philosophy, p. 275). Em

síntese, o uso desse termo quer indicar que para determinadas situações a dogmática jurídica não oferece

solução unívoca imediata, dependendo de uma construção posterior alicerçada em proposições que sejam

juridicamente adequadas e admissíveis. Cf. André Ramos Tavares, Fronteiras da Hermenêutica

Constitucional, p. 80.

33 Dworkin reforça a abordagem dessa transição de uma teoria da legislação e de sua interpretação, nos moldes

positivistas, para uma teoria da decisão judicial e de sua justificação, na forma pretendida pelos

neoconstitucionalistas, adotando como ponto de partida para sua construção teórica “o argumento jurídico

formal a partir do ponto de vista do juiz, não porque apenas os juízes são importantes ou porque podemos

compreendê-los totalmente se prestamos atenção ao que dizem, mas porque o argumento jurídico nos

processos judiciais é um bom paradigma para a exploração do aspecto central, proposicional, da prática

jurídica. (...) a estrutura do argumento judicial é tipicamente mais explícita, e o raciocínio judicial exerce uma

influência sobre as outras formas de discurso legal que não é totalmente recíproca”. In.: Ronald Dworkin, O

Império do Direito, p. 19. Em contraponto, Luis Pietro Sachis afirma que “no sé si será exagerado decir que

los principios convierten a los jueces em los señores del Derecho, aunque tampoco parace casual, y es sólo un

ejemplo, que el Hércules de Dworkin sea um juez y no un legislador”. In.: Luis Pietro Sanchis, Ley, Principios,

Derechos, p. 64.

34 Ana Paula Barcellos sustenta que “[...] os sistemas jurídicos contemporâneos, e em particular o brasileiro,

conferem ao intérprete um espaço de atuação e criação cada vez mais amplo. [...] a utilização intensiva pelos

enunciados constitucionais e legais de princípios e conceitos abertos ou indeterminados, dentre outros

mecanismos, transfere ao Judiciário contemporâneo um amplo poder na definição do que é, afinal, o direito.”

Ana Paula de Barcellos, Ponderação, Racionalidade e Atividade Jurisdicional, p. 39.

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Conclusão

Por essas breves anotações verifica-se nessa evolução da aplicação do Direito a

passagem de um modelo jurídico fechado, pautado numa proposta legalista onde a figura do

legislador exerce função preponderante ao ditar as regras que nortearão a realização do Direito,

para o modelo neoconstitucional que transfere ao Poder Judiciário da tarefa de realizar o Direito

promovendo soluções jurídicas a partir dos princípios e regras integrantes do ordenamento

jurídico.

Nesse papel o juiz deve vincular sua decisão às regras postas e aos valores

defendidos pelo Estado em sua carta constitucional, aplicando-as de modo a promover decisões

justas e fundamentadas, sob pena de transpor a vontade constitucional para uma vontade própria

do aplicador do Direito.

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