184
REVISTA DA 2º. SEMESTRE

REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

  • Upload
    doanbao

  • View
    219

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

R E V I S TA D A

2 º . S E m E S T R E

Page 2: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos
Page 3: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

R E V I S TA D A

Page 4: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS 2016Patrono: José de Anchieta

DIRETORIA Presidente: RICARDO CRAVO ALBINVice-Presidente: CLÁUDIO MURILO LEALPrimeiro Secretário: ADRIANO ESPÍNOLASegundo Secretário: MIRIAM HALFIMTesoureiro: GODOFREDO DE OLIVEIRA NETODiretora da Biblioteca: TERESA CRISTINA MEIRELES DE OLIVEIRADiretor da Revista: SERGIO FONTA

CONSELHO FISCALTitulares: Bernardo Cabral (presidente), Cícero Sandroni, Nelson Mello e SouzaSuplentes: Omar da Rosa Santos (presidente), Sonia Sales, Waldir Ribeiro do Val

COMISSÃO DO ESTATUTO E DO REGIMENTO INTERNODomício Proença Filho (presidente), Maria Beltrão, Murilo Melo Filho

REVISTA DA ACADEMIA CARIOCA DE LETRASDiretor: SERGIO FONTAConselho Editorial: Antonio Carlos Secchin (presidente), Gilberto Mendonça Teles, Luiz Cláudio AguiarComissão de Publicações: Ivan Cavalcanti Proença (presidente), Marcus Vinicius Quiroga, Stella Leonardos

PRODUÇÃOCoordenação Editorial: Carlos Barbosa (Editora Batel) Capa e Projeto Gráfico: Julio LapenneRevisão: Edmilson CarneiroEditoração das Emendas: Solange Trevisan zcIlustrações: Antonio Nássara Poemas de João Cabral de Melo Neto© titulares dos direitos de João Cabral de Melo NetoAutorização gentilmente concedida por Agência Riff - www.agenciariff.com.br

Ilustrações Antonio Nássara – Autorizaçao gentilmente concedida por Oscar Mattos Jr.

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO

SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

R349

Revista da Academia Carioca de Letras : edição comemorativa 90 anos (1926-2016) : 2. semestre / Academia Carioca de Letras. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Batel, 2016. 184 p.: il.; 24 cm. ISBN 9788599508787 1. Literatura brasileira. 2. Academia Carioca de Letras. 3. Língua portuguesa - BrasilI. Academia Carioca de Letras.16-38148 CDD: 869.909 CDU: 821.134.3(81).09

24/11/2016 25/11/2016

ACADEMIA CARIOCA DE LETRASRua Teixeira de Freitas, 5, sala 306 – 20021-350 – Rio de Janeiro – RJ Telefone: 21.2224-3139E-mail: [email protected]: http://www.academiacariocadeletras.org.br Esta revista está disponível, em formato digital, no site www.academiacariocadeletras.org.br

Page 5: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

Sumário

APRESENTAÇÃO .................................................................................................................

PALAVRA DO PRESIDENTE – RICARDO CRAVO ALBIN

EDITORIAL ..........................................................................................................................

SERGIO FONTA

OS FUNDADORES (II) .......................................................................................................

ALMÁQUIO DINIZ (1880-1937) – Cláudio AguiAr

ESPECIAL: OS ANOS 1920 (2ª PARTE)

HOMENAGEM À ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS

E SUA FUNDAÇÃO EM 1926

POESIA ..................................................................................................................................

OS ANOS 20, NA POESIA – MAriA AMéliA PAllAdino

JORNALISMO ......................................................................................................................

A MAçã E O LADO OBSCURO DE HUMBERTO DE CAMPOS,

O CONSELHEIRO X.X. – Aline HAluCH

ARQUITETURA ...................................................................................................................

A ARQUITETURA CARIOCA DA DéCADA DE 1920 – Alexei Bueno

CIÊNCIA / A MEDICINA ....................................................................................................

A MEDICINA DO RIO DE JANEIRO NA DéCADA DE 20 – oMAr dA rosA sAntos

Page 6: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

6 | REVISTA DA ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS 2016 • SEGUNDO SEMESTRE 2016

ESPECIAL II – “O ESPORTE E A CULTURA”

A INVENçãO DOS ESPORTES – CArlos eduArdo novAes ..............................................

EU SOU AMéRICA, COM MUITA HONRA – ArnAldo niskier ......................................

POEMAS – João CABrAl de Melo neto ...............................................................................

O CORPO E O FUTEBOL – leonel kAz e PAulo dA CostA e silvA ...................................

EFEMÉRIDES

OS 400 ANOS DE CERVANTES – Cláudio Murilo leAl ...................................................

JOSUé MONTELLO: UM EX-PRESIDENTE DA

ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS – Murilo Mello FilHo ........................................

50 ANOS SEM ORESTES BARBOSA – João MáxiMo .........................................................

70 ANOS DO SESC – ClAudiA FAdel ...................................................................................

UMA LUZ SOBRE O ACADÊMICO PASCHOAL CARLOS MAGNO:

TEATRO E MECENATO

PASCHOAL, O MAGNO – sergio FontA ....................................................................

PASCHOAL CARLOS MAGNO,

UM QUIXOTE DO NOSSO TEATRO – MiriAM HAlFiM ............................................

DEPOIMENTO - FernAndA Montenegro ...................................................................

A POESIA DOS CONFRADES HOJE

REyNALDO VALINHO ALVAREZ ......................................................................................

MARITA VINELLI ................................................................................................................

DIEGO MENDES SOUZA (membro correspondente) .........................................................

TRÂNSITO LIVRE

AMORES EM TEMPO D’EL REI – LITERATURA E

HISTóRIA – MAry del Priore ..............................................................................................

LOUVAçãO DO RIO – José ArtHur rios ...........................................................................

CONVERSA DE BOTEQUIM – CíCero sAndroni ..............................................................

O CENTRO DE ESTUDOS MACHADIANOS – AlCMeno BAstos ....................................

Page 7: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

SUMÁRIO | 7

ARQUIVO CARIOCA

CRôNICAS DE MACHADO DE ASSIS

CRôNICA 1 .....................................................................................................................................

CRôNICA 2 .....................................................................................................................................

CRôNICA 3 .....................................................................................................................................

ENTREVISTA: SÉRGIO PAULO ROUANET ......................................................................

Entrevista a Alvaro da Costa e Silva e Ana Arruda Callado,

com a participação de Bárbara Freitag .......................................................................................

QUADRO ACADÊMICO ....................................................................................................

Page 8: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos
Page 9: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

ApreSentAçãoPalavra do presidente

Em preito aos 90 anos da ACL e aos 70 anos do parceiro SESC

Costumo exclamar que a Revista da Academia Carioca de Letras não é mais Revista. Nossas últimas publicações já têm o número de páginas, a cerimônia da excelência, o desenho formal, enfim,

de um livro. Portanto, a Revista não é senão um apelido, uma maneira possível de marcar periodicidade.

Page 10: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

10 | REVISTA DA ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS 2016 • SEGUNDO SEMESTRE 2016

Por certo que a Academia se engrandece com a roupagem nova, consolidada neste 2016, tempo exato dos seus 90 anos, fartos e férteis em celebrações, homenagem e fazimentos. Tantos e tantos que incluíram não só uma grande homenagem às nove décadas no plenário solene da Assembleia Legislativa do Rio, como até a única celebração feita no Brasil pelos 20 anos da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa), com o Secretário-Executivo, Embaixador Murade Isaac Miguigy Murargy, vindo especialmente de Lisboa. Foi comovedor vê-lo em nosso Salão Acadêmico, cercado por todos os embaixadores dos países de língua portuguesa acredi-tados em Brasília, recebidos na ACL pelo Acadêmico Martinho da Vila. O poderoso Ministro Plenipotenciário da Lusofonia foi condecorado com o mais alto galardão da Academia Carioca de Letras, a Comenda da Ordem Padre José de Anchieta.

Mas, retomando às nossas publicações, os dois livros editados ao longo destes 360 dias só foram viáveis porque a adesão do SESC-DN, o parceiro do ACL nos dois últimos anos, permitiu que os fizéssemos.

E nos orgulhamos de que a Academia e o SESC sejam quase vizinhos em datas redondas e aniversários, ambos aclamados e úteis, severamente a serviço do Brasil.

Isso porque o nosso parceiro cumpre, neste 2016, vigorosos 70 anos de comprometimento com a educação, o bem estar e, sobretudo, com o socorro às muitas deficiências que este país ainda amarga em lazer, serviços, turismo. Ou seja, o suprir necessidades há que ser uma prio-ridade da invenção e da construção que a cidadania exige como consolidação de seu corpus, tanto estrutural quanto anímico.

A Casa de Anchieta absorveu os requisitos que uma Casa para as letras e para a cultura deveria modelar. E fez. Fez muito para celebrar o aniversário de suas nove décadas. Tempo benéfico, todo ele, porque alimentado pela constelação de seus acadêmicos, que inserem nomes indispensáveis à uma procissão de intelectuais do porte de Paschoal Carlos Magno, de Jorge de Lima ou até, pasmem, de artista vário como Luiz Peixoto. Que fez reluzir a alma da cidade como revistógrafo (sem preconceitos, por favor) da Praça Tiradentes (oh, as operetas populares, de que ele foi mestre e renovador nos anos 10, 20 e 30), e ainda foi poeta e letrista (“Maria, o seu nome principia na palma da minha mão” – com Ary Barroso), e até jornalista, caricaturista e pintor.

Desde à edição do primeiro Livro-Revista de 2016, que veio a lume no primeiro semestre do ano, a Academia Carioca pode demonstrar que produziu sem parar em celebração ao ani-versário emblemático. E pôs sua cara na janela do Rio, exibindo-se com a eficiência de ser útil e consolidando vultos e temas indispensáveis à maneira original, criativa, e libertária de ser/viver do carioca. Sempre com um pé na seriedade necessária aos textos acadêmicos, mas sempre com o outro na descontração, na criatividade, no pêndulo voltado para os alicerces de livro aberto ao pouco usual, à audácia, até ao atrevimento da unicidade do traço (sempre da caricatura) em todas as muitas ilustrações que lhe perfilam as páginas. De J. Carlos (na edição anterior),

Page 11: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

APRESENTAçãO | 11

como as de Nássara (nesta que o leitor porta às mãos), artistas ambos que têm hoje repercussão internacional em salões europeus e japoneses.

O editor Carlos Barbosa recolheu os melhores trabalhos dos dois mestres do traço e cons-truiu nossos livros de 2016. Emoldurando, com vigor (e sabor), os textos coletados pela com-petência do acadêmico Sergio Fonta, o atento Diretor de Publicações da Academia. Apraz-me encerrar esta pequena saudação aos 90 anos da Academia e aos 70 do parceiro SESC, com um comentário do sociólogo italiano Domenico de Masi. Ele resume pensamento originalíssimo, quando questiona, em entrevistas concedidas aos maiores jornais do mundo, os porquês de a maioria dos povos do Primeiro Mundo não exalar o halo de felicidade, a mola-mostra que lhes deveria fecundar o ato de viver. E responde, com sabedoria, que os chamados povos sisudos temem a descontração da dança e o laissez-faire da cantoria, do lazer. Têm pudor de abraçar a alegria. Mas De Masi, na mão contrária, louva fartamente o Brasil como modelo de sociedade que aponta caminhos civilizatórios muito raros, a partir da miscigenação. Tal como Gilberto Freire sinalizava corajosamente muitas décadas antes.

Este livro não deixa de apregoar valores possíveis ao reconhecimento da alma do brasileiro, um povo que quase sempre é capaz de abrigar a alegria, a busca da felicidade (o valor supremo), ou a gestualização sensual e provocadora da beleza.

RICARDO CRAVO ALBINPresidente da Academia Carioca de Letras

Page 12: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos
Page 13: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

editoriAl

Neste novo número da Revista da Academia Carioca de Letras, sempre contando com a energia do Presidente Ricardo Cravo Albin, damos continuidade à seção Os Fundadores, quando

se homenageia aqueles que fundaram as Cadeiras da Academia, através das palavras de seus atuais ocupantes. Nesta edição temos o texto do Presiden-te do PEN Clube do Brasil e Acad. Cláudio Aguiar sobre a biografia de Almáquio Diniz (1880 - 1937), fundador da Cadeira 3, hoje ocupada por Aguiar, e também damos continuidade às comemorações dos 90 anos desta instituição com a segunda parte do Especial “Os Anos 1920”, em busca de mais alguns segmentos não abordados na edição anterior. Na poesia, a Profª Maria Amélia Palladino, secretária geral da Academia Luso-Brasileira de Letras, faz um balanço do movimento poético no Rio de Janeiro daquele período, em palestra apresentada no Fórum Carioca de Cultura, não sem antes abrir um painel sobre o movimento intelectual da época e fazer um

Page 14: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

14 | REVISTA DA ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS • SEGUNDO SEMESTRE 2016

sobrevoo com algumas citações sobre futebol que até caberiam em nosso outro Especial “O esporte e a cultura”, sobre o qual falaremos um pouco mais abaixo. No jornalismo, a escritora e designer curitibana Aline Haluch traça um perfil do escritor e acadêmico Humberto de Campos. Este, em sua breve vida, deixou uma extensa obra e causou sensação na imprensa de 1922 ao lançar a polêmica e popularíssima revista literária A Maçã (extinta em 1927), que resultou em oportuno livro de Aline. Já o poeta e historiador Alexei Bueno, com sua pena ágil e contunden-te, faz uma preciosa radiografia da arquitetura do Rio de Janeiro dos anos 1920. No segmento da ciência a Medicina é lembrada pelo Acad. Omar da Rosa Santos com amplo levantamento técnico, desde os tempos imperiais à década de 1920 até chegar aos nossos escritores-médicos, que não são poucos e todos bastante expressivos.

No Especial “O Esporte e a Cultura”, ainda no rastro vitorioso das Olimpíadas e Paralim-píadas, durante a pesquisa, nos surpreendemos com a enorme quantidade de textos literários sobre futebol e quase nada sobre outras modalidades. Mesmo assim, trouxemos o escritor e jor-nalista Carlos Eduardo Novaes, que escreveu a divertida e informativa crônica “Quem inventou o esporte”, de seu livro A invenção do Esporte (Ed. Moderna), cuja reprodução foi gentilmente cedida pelo Autor. Em seguida, o Acad. Arnaldo Niskier, revela sua inquebrantável devoção pelo América Futebol Clube. Já o historiador e editor Leonel Kaz e o professor Paulo Costa e Silva escrevem uma interessantíssima e original matéria sobre a antropologia do corpo do jogador de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos Barbosa, foram também gentilmente cedidos por sua família. Todos os poemas são dedicados ao... futebol.

Na seção Efemérides, esta palavra um tanto feiosa, mas que carrega nela a beleza da me-mória, procurou-se incluir algumas das inúmeras (seria impossível reunir todas) datas icônicas – e redondas – que enfeixam o ano de 2016. Os 70 anos do SESC são comemorados por esta Revista e por Claudia Guimarães Fadel, diretora da dinâmica Escola de Ensino Médio daquela entidade, no artigo SESC, 70 anos de cultura em todo o Brasil. Foram também lembrados os 400 anos do nascimento de Cervantes, num sucinto, mas abrangente texto do Acad. Cláudio Murilo Leal, vice-presidente desta Casa, enquanto que o jornalista e escritor Murilo Mello Filho, mem-bro da Academia Brasileira de Letras e da Academia Carioca de Letras, em um texto arejado e fluente, filtra toda a sua admiração pelo também acadêmico e intelectual Josué Montello, morto há exatos 10 anos. Os 50 anos de morte do poeta e letrista (ou poeta-letrista) são destacados em uma análise do jornalista e crítico musical João Máximo, traçando um paralelo com a obra de Vinicius de Moraes e pontuada por deliciosos “causos” da MPB. Finalizamos com o fruto de uma mesa-redonda histórica, realizada na própria ACL, com a atriz Fernanda Montenegro, a Acad. Miriam Halfim e este também Acad. e diretor da Revista, no evento chamado “Uma luz sobre o Acadêmico Paschoal Carlos Magno: teatro e mecenato”, em que se aborda o universo deste apaixonado e empreendedor homem de teatro que, em 2016, completa 110 anos de nascimento.

Page 15: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

EDITORIAL | 15

A recém-criada seção “A poesia dos confrades hoje” vai, a partir de agora, prestigiar os poetas da Casa. Infelizmente ela não pode conter um número enorme de colaborações, pois a produção dos poetas-acadêmicos é imensa – mereceria um livro só dela -, e uma Revista tem de atender a todos os outros temas que uma publicação cultural deve comportar. Hoje temos a participação dos Acadêmicos Reynaldo Valinho Álvarez e Marita Vinelli, ao lado de Diego Mendes Souza, nosso jovem e ativo membro correspondente no Piauí, que possui um dos blogs culturais mais concorridos do país. Em cada edição traremos poetas da ACL e a produção de um membro correspondente, seja no Brasil ou no exterior.

Em “Trânsito Livre” encontramos as contribuições inestimáveis de acadêmicos em temas livres, como já diz o título da seção, e assim somos brindados com os textos dos Acads. Mary del Priore, Cícero Sandroni e Alcmeno Bastos, este último dando voz ao Centro de Estudos Machadianos, recém-inaugurado na Academia Carioca de Letras.

O Arquivo Carioca, que traz textos de escritores do passado, nascidos no Rio de Janeiro, tem como autor escolhido para esta edição o eterno Machado de Assis, com crônicas sugeridas pelo Acad. Alcmeno Bastos. Selecionamos três das crônicas enviadas e que prazer reler Machado! Seu estilo elegante e, ao mesmo tempo, coloquial, seu humor, sua ironia nos aproximam do Rio de Janeiro daquela época de uma forma absoluta e natural. é como se olhássemos seus textos por uma janela e víssemos seus personagens passando por ela... vivos. Como se pudéssemos abrir a porta de casa e estar nos anos 1800, ou no início dos 1900, em nossa cidade.

A entrevista desta edição é com o professor, filósofo, historiador e ensaísta Sérgio Paulo Rouanet, membro da Academia Brasileira de Letras, que comemora seus 80 anos bem vividos com o lançamento de um livro e a ocupação de uma cátedra na Universidade de São Paulo. Ele fala com desenvoltura e clareza sobre o pensamento humano em todas as suas vertentes. A matéria ficou a cargo do jornalista Alvaro Costa e Silva e da Acad. Ana Arruda Callado, com uma participação especialíssima da escritora e professora Bárbara Freitag, casada com Rouanet e que trouxe um brilho diferenciado a este momento de inteligência, lucidez, cultura e sensibi-lidade vivido por nós através das palavras de Sergio Paulo Rouanet em uma das salas do Petit Trianon, na ABL.

E fechamos a Revista com o nosso Quadro Acadêmico, neste ano enriquecido pelos nomes das escritoras Mary del Priore, Dirce de Assis Cavalcanti, Ana Arruda Callado e Tania Zagury, fazendo brilhar mais ainda a presença feminina nesta Casa, além da recentíssima eleição do historiador e musicólogo Vasco Mariz.

SERGIO FONTADiretor da Revista

Page 16: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

16 | REVISTA DA ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS • SEGUNDO SEMESTRE 2016

O centenário de Marcos Almir Madeira

O professor, sociólogo e escritor Marcos Almir Madeira teria completado seu centenário em 2016, se não tivesse nos deixado em 2003. Ocupou a Cadeira 4 da Academia Carioca de Letras, sendo sucedido pela escritora Sonia Sales, e a Cadeira 19 da Academia Brasileira de Letras, sendo sucedido por outro membro da Carioca, o poeta Antonio Carlos Secchin. Presidiu o PEN Clube do Brasil nada menos que 35 anos e imprimiu ali sua personalidade cativante, culta e galante. O Instituto Histórico e Geográfico do Brasil, quadro que ele também integrou, prestou-lhe, recentemente, bela e justa homenagem em uma Mesa composta por seu presidente, Arno Wheling, e uma série de notáveis, além da presença de seus familiares. Nesta edição a Revista da Academia Carioca de Letras se junta a essas homenagens com saudade daquela grande figura, não só pelo intelectual que foi, mas por sua maneira elegante de ser. Era um mestre da convivência e do bem viver. E, quando saboreava um bom uísque, seu drinque preferido, nas inesquecíveis festas que frequentava ou promovia, dizia, com bom humor: “Vamos tomar um guaraná escocês? E num copo longo, claro”. Que assim seja, querido e fraterno Madeira. Saúde!

Page 17: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos
Page 18: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos
Page 19: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

oS fundAdoreS(ii)

Page 20: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos
Page 21: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

Almáquio diniz

1880-1937 Cláudio Aguiar (membro efetivo)

A cadeira 3 foi ocupada sucessivamente pelos seguintes escritores: Almáquio Diniz, o fundador, Evaristo de Moraes, Leopoldo Braga, Carlos de Oliveira Ramos, Abeylard Pereira Gomes e

Francisco Silva Nobre. Quando, por volta do meado da década de 1920, foi fundada esta Aca-

demia o Brasil vivia, no campo das ideias, uma fase de debilidades e incertezas em relação ao futuro de sua vida republicana. Em todas as áreas de atividades havia uma constante preocupação com as tentativas de rupturas institucionais e até dúvidas quanto à consolidação do processo democrático brasileiro.

Na década anterior Euclides da Cunha, em Os Sertões, verberara denúncia tão profunda sobre os desvios e desacertos da convivência entre brasileiros. Ficava, portanto, cada vez mais patente e à mostra a verdade que ele repetiria com essas duras palavras em Contrastes e Confrontos:

“O verdadeiro Brasil nos aterra; trocamo-lo de bom grado pela civilização mirrada que nos acotovela na Rua do Ouvidor”.

Page 22: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

22 | REVISTA DA ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS 2016 • SEGUNDO SEMESTRE 2016

Esse abismo entre os dois (ou mais?) Brasis, tantas vezes denunciado à inteligência na-cional, parecia não encontrar eco nas ações dos governantes. Foi exatamente sob o impacto dessas vicissitudes e incertezas que a geração de Almáquio Diniz e Evaristo de Moraes, os dois primeiros ocupantes de nossa Cadeira, nas décadas de 20 e 30, construíram suas obras e viveram seus destinos literários.

A característica principal desse período da vida brasileira foi a dificuldade encontrada pelas lideranças dos conservadores e liberais em consolidar a transição da monarquia para a república. Velhos hábitos obstaculizavam a implementação real de reformas sobre as quais deveriam assentar-se os proclamados princípios republicanos. A república então nascente – mais tarde denominada de Velha República – apesar de facilmente conquistada, até hoje, perante a visão dos mais dedicados historiadores, se apresenta como algo frágil, distante, passível de permanentes cuidados.

Essa geração, portanto, terminaria abraçando com ênfase um certo liberalismo que, no final de contas, contraditoriamente, não a libertaria de seus anseios e angústias,sobretudo porque, na prática assumiam o antigo papel do mais serôdio conservadorismo.

Almáquio Diniz, o fundador, segundo observação do arguto crítico e historiador de nossa literatura Antonio Candido foi, ao lado de Afrânio Peixoto, também baiano, um bom exemplo de autor preocupado com a chamada literatura comparada. Aduz Candido que “estes são exemplos de uma difusa tendência que favorecia o que se pode chamar de ânimo comparatista, mesmo antes da instauração e divulgação da Literatura Comparada. Ou, em seguida, manifestada por quem não tinha informação sobre ela. Mas há outra modalidade que coincide com a sua difusão, algo mais sistemático, embora desligado do ensino e de atividades institucionais. Refiro-me – pros-segue o crítico paulista – ao interesse pelo estudo monográfico de autor estrangeiro, marcando ainda aqui as obsessões da referência inevitável. O ensaio de Sílvio Romero sobre Emile Zola, por exemplo; o de Araripe Júnior sobre Ibsen; o de Tasso da Silveira sobre Romain Rolland; os de Tristão de Athayde e Jorge de Lima sobre Proust, - este último, aliás, tese de concurso”.

Almáquio Diniz Gonçalves nasceu em 1880 na Bahia e morreu no Rio de Janeiro em 1937. Escreveu quase três dezenas de livros contemplando os mais variados gêneros, circunstância que lhe valeu a condição de romancista, contista, teatrólogo, crítico, ensaísta, bacharel em direito, professor e jurista, segundo verbete constante da conhecida Enciclopédia Brasileira de Literatura, organizada por Afrânio Coutinho e J. Galante de Souza.

Adorava valer-se de pseudônimos. Os mais conhecidos são os seguintes: Achilles Donato, Alonso Danden, Antonius Lupus, Chamfort, Geliz Dongalves, Justo Canuto, Nolasco Brutto, Sarcey e Zinid. é possível que ainda existam outros por aí.

Foi também membro da Academia de Letras da Bahia. A obra de Almáquio Diniz, de temática abrangente, aborda quase todos os gêneros, inclusive

entra no domínio da filosofia, notada sobretudo em Zoilos e Estetas, de 1908 ou, no âmbito da crítica literária quando põe à prova sua incondicional admiração por autores portugueses no

Page 23: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

OS FUNDADORES (II) • ALMÁQUIO DINIZ (1880-1937) | 23

livro A Perpétua Metrópole, no qual estuda autores e livros de Portugal. Destacam-se, ainda, as seguintes obras: Sociologia e Critica (1910); Da esthetica na literatura comparada (1911); A cultura literária na Bahia contemporânea (1911); Na imortalidade (1911); Moral e Critica (1912); Meus ódios e meus Afetos (1913), etc.

Apesar de sua copiosa obra literária, Almáquio Diniz, hoje, corre o risco de ser lembrado por um incidente que lhe valeu um poema de Carlos Drummond de Andrade, publicado em Boitempo. Tudo começou quando o romance A Carne de Jesus, de Almáquio Diniz, editado em 1910, foi proibido e o autor ameaçado de excomunhão pela Igreja Católica. Apesar disso, o livro foi exposto pelo livreiro Francisco Alves. Drummond, irônico, crítico mordaz da intolerância política ou religiosa, dono de um humor inimitável, conseguiu registrar o incidente quando uniu o trágico ao cômico neste poema-prosa digno de leitura:

LIVRARIA ALVES

Primeira livraria, Rua da Bahia.A Carne de Jesus, por Almáquio Diniz(não leiam, obra excomungada pela Igreja)rutila no aquário da vitrina.Terror visual na tarde de domingo.

Volto para o colégio. O título sacrílegorelampeja na consciência.Livraria, lugar de danação,lugar de descoberta.

Um dia, quando? Vou entrar naquela casa,vou comprarum livro mais terrível que o de Almáquioe nele me perder – e me encontrar.

CLáUDIO AGUIAR, Cadeira 3 da Academia Carioca de Letras, é graduado pela Faculdade de Direito do Recife e Doutor pela Universidade de Salamanca (Espanha), que o contemplou com o prêmio-homenagem internacional 1994 pelo conjunto de obra. Publicou cerca de 20 livros, sendo o mais recente A última noite de Kafka e outros dramas. Membro também do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, é presidente do PEN Clube do Brasil.

Page 24: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos
Page 25: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

eSpeciAl: oS AnoS 1920

(2ª pArte)Homenagem à Academia Carioca de Letras

e sua fundação em 1926

Page 26: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos
Page 27: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

P O E S I A

oS AnoS 20, nA poeSiA

Maria Amélia Palladino

Ah!...os anos 20!!! As primeiras imagens que nos vêm à mente trazem-nos o jazz, Rodolfo Valentino, Josephine Baker, o char-leston, Coco Chanel, a art- déco, e, mais importante, ainda, a

lembrança de Ulisses, de James Joyce, e Scott Fitzgerald, com a importante obra, Contos da Era do Jazz.

E como estava a poesia, no Brasil?No Brasil, pouco antes da virada do século, os modelos estéticos

europeus predominavam, na literatura e na arte, onde o Parnasianismo imperava. Os poetas parnasianos costumavam usar uma linguagem próxima do português de Portugal, do século XVIII, com o predomínio da ordem inversa, e empregavam termos raros e incomuns. Destacavam-se Olavo Bilac, Raimundo Correia e Alberto de Oliveira, entre outros. Este último, um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, assim como Raimundo Correia e Olavo Bilac. Obras de todos eles, embora escritas e lançadas no século 19, perpassaram o século 20, levando, a seus leitores, um distanciamento de problemas morais, sociais, políticos ou religiosos, trazendo a postura da

Page 28: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

28 | REVISTA DA ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS 2016 • SEGUNDO SEMESTRE 2016

arte pela arte, que apenas buscava criar a beleza, cultivando o gosto pelo exótico, a inspiração voltada para a antiguidade clássica, a visão do amor sensual, carnal, em contraposição ao amor espiritualizado que pontilhava nos poemas românticos, e a objetividade, em oposição à senti-mentalidade e ao predomínio da imaginação, que eram a tônica dos textos românticos. Essa objetividade, fielmente assumida no Parnasianismo francês, não foi cumprida à risca e nem obedecida, rigidamente, pelos brasileiros.

Insatisfeitos com os antigos conceitos do século XIX, a nova geração da intelectualidade brasileira quis libertar-se da repetição cansativa de modelos europeus e criar uma cultura nacional, por excelência. Os maiores objetos de insatisfação eram a literatura e, particularmente, a poesia. Desde 1913, as sementes do Modernismo eram cultivadas em cabeças pensantes avançadas. A pintora Anita Malfatti realizara, em 1914, a 1ª Exposição do Modernismo Brasileiro, com ideias trazidas da Europa, iniciando uma batalha contra a influência dos padrões europeus, em diversas tendências diferentes. E, assim, desencadeou-se a ideia da Semana Moderna, através das artes plásticas, que, como toda inovação, foi mal recebida e compreendida, inicialmente, mas deixou um grande valor histórico e cultural, só perceptíveis com o passar do tempo. Em 1917, Anita Malfatti, educada no estrangeiro, realiza, em São Paulo, a 2ª Exposição de pintura, e, sob a influência do expressionismo alemão, apresenta telas de pintores cubistas, que despertaram frenéticas reações, destacando-se a postura de Monteiro Lobato.

Monteiro Lobato foi muito enfático em suas opiniões (um exemplo, a dura crítica feita à 2ª exposição expressionista de Anita Malfatti, no artigo “Paranoia ou mistificação?”, publicado no Estado de São Paulo, a que o professor Domício Proença Filho, em seu livro Estilos de Época na Literatura, atribui a péssima repercussão do evento, muito mais do que à qualidade do mesmo. Cito: “ não tanto pelos quadros renovadores da artista, mas sobretudo pela violência da crítica de Monteiro Lobato”).

Algumas de suas frases irônicas referem-se à volta ao Brasil, depois de uma temporada, na França, do escultor brasileiro, Vítor Brecheret, um baluarte das novas ideias, logo após a 1ª Guerra Mundial, para participar da Semana de Arte Moderna. Na crônica “As quatro asneiras de Brecheret”, incluída no volume “ Figuras do Brasil” (80 autores em 80 Anos da Folha de São Paulo “, organização de Arthur Nestrovsky, Professor titular da PUC, S.P.), em que Lobato diz que o escultor, “apesar de moço, já tem, na vida, uma série de asneiras colossais”, parece-nos que as duas primeiras têm algo a ver com suas divergências a respeito da Semana de Arte Moderna. Confiram: “Asneira básica, fundamental, mãe de todas as outras: nascer no Brasil. O Brasil não é terra onde um artista nasça.” “ Segunda asneira: voltar ao Brasil convencido de que, pelo simples prestígio de seu talento, todas as portas se abririam. A dura realidade fez-lhe ver o contrário: as portas só se abrem com gazuas e gorjetas.” A 3ª asneira, apenas por curiosidade, referia-se à falta de crença na seriedade dos concursos abertos, no Brasil, e a derradeira asneira do ilustre amigo teria sido o fato de não ter exposto a sua escultura EVA, logo ao chegar a São Paulo, fazendo-o somente no

Page 29: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

ESPECIAL: OS ANOS 1920 (2ª PARTE) – HOMENAGEM à ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS E SUA FUNDAçãO EM 1926 | 29

momento da volta ao Velho Mundo, impedindo, assim, a contemplação de tanta beleza, num momento propício à sua apresentação.

Se considerarmos que Lobato foi um dos brasileiros que mais amou sua pátria, e tinha o maior interesse pelos problemas brasileiros, o que é notório por sua bela carreira profissional (além de escritor, foi homem de negócios, promotor público, na cidade de Areia, S.P., fazendeiro, na serra da Mantiqueira, experiência que transpôs para sua obra, autor de vigorosa campanha editorial, através da imprensa e pessoalmente, pelo urgente saneamento do país e pela exploração do petróleo e do ferro), constataremos que, quando percebia a injustiça ou não concordava com uma determinada empreitada , transformava-se em apaixonado defensor da causa, sem prejuízo de ser paradoxalmente devotado ao Brasil.

Mas, apesar das oposições e críticas de ilustres personalidades, sem dúvida alguma, a Semana da Arte Moderna foi o acontecimento cultural mais importante dos anos 20, cuja importância veio a ser sedimentada e reconhecida, com o passar do tempo, despertando uma autenticidade de expressão tipicamente brasileira, que se consolidou a partir dos anos 30. Antes da Semana, aconteceu um período de transição, surgindo novos modelos culturais, sociais e estéticos. O Parnasianismo, bem como o Realismo-Naturalismo, resistia bravamente, graças ao prestígio adquirido, mas, aos poucos, desistia de impor-se às novas tendências como o Simbolismo que já se fizera sentir e amadurecera no primeiro quartel do século. O Modernismo preparou os chamados “poetas de transição”, e fortificou a nossa literatura, com a continuidade das escolas literárias, mesmo as importadas. Portanto, de 1902 a 1920, encontramos uma época de pre-paração para o Modernismo, que conjuga a essência nacional e o aspecto europeu. O convívio com o momento europeu do pós-guerra, a percepção nua e crua da nossa arte tão empobrecida, em que, apenas, certos valores individuais destacavam-se, pela acomodação e sentimentalismo, fizeram eclodir a revolução literária e cultural, trazida pela Semana Moderna.

Os intelectuais, promotores da iniciativa, pretendiam apresentar ideias avançadas, con-ceitos novos sobre arte, uma libertação de posturas tradicionais e, até mesmo, uma exposição personalíssima de seus atores, através de uma apresentação quase teatralizada, que abriria uma sintonia mais direta com o público.

A poesia, antes apenas escrita, passou a ser declamada; a música, acompanhada por orquestras sinfônicas; os artistas plásticos, arquitetos, escritores e compositores exibiram seus trabalhos, no Teatro Municipal de São Paulo. Sob vaias ou aplausos, iniciava-se uma nova era, dedicada a uma cultura essencialmente nacional. A mídia, em boa parte, reagiu, conservadoramente, chamando os vanguardistas de “subversores da arte”, “espíritos cretinos e débeis”, “futuristas endiabrados”. Apenas o “Correio Paulistano”, órgão do partido governista paulista, cujo governador, Washington Luís, apoiara o movimento, em 29 de janeiro de 1922, registrou que estava ali, condensada, “a perfeita demonstração do que há, em nosso meio, em escultura, arquitetura, música e literatura, sob o ponto de vista rigorosamente atual”. Por outro lado, houve adesões importantíssimas, como

Page 30: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

30 | REVISTA DA ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS 2016 • SEGUNDO SEMESTRE 2016

registra Manuel Bandeira, em sua obra, Apresentação da Poesia Brasileira, uma bela antologia de seus poemas favoritos, “a solidariedade de Graça Aranha, nome de vasto prestígio, desde a publicação de seu romance Canaã, membro da ABL, de cujo convívio se afastou para unir-se, em literatura e política, à mocidade revolucionária”.

O evento marcou o início do modernismo, no Brasil. Nomes convalidados pela opinião pública, consagrados pelo Modernismo brasileiro, nos anos 20, são, entre outros, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Jorge de Lima, Manuel Bandeira, Ribeiro Couto, Guilherme de Almeida, Menotti del Picchia e Carlos Drummond de Andrade. Alguns serão revividos, neste trabalho.

Mário de Andrade (1893 - 1945) e Oswald de Andrade (1890-1954), na opinião abalizada do crítico literário Antônio Cândido, “ são raros escritores, com domínio do vocábulo, fazendo da ficção uma maneira de conhecer o mundo.” Registrem-se, entre outros, o excepcional romance Macunaíma, de Mário, de 1928, e Memórias sentimentais de João Miramar, de Oswald, em 1923, autores que destacaram-se, também, na poesia. Mário estreou, em 1917, com Há uma gota de sangue em cada poema, bela obra influenciada pelo sentimento aos horrores da guerra, seguindo--se, em 1922, Pauliceia Desvairada, marco expressivo da poesia modernista. Oswald cultivou, também, a poesia: “Pau Brasil” e é outra importante referência da mesma poesia modernista brasileira, a que se seguiu a obra Poesias reunidas. Escreveu também Oswald de Andrade roman-ces, ensaios e cultivou o teatro de vanguarda. Sua participação no movimento modernista foi de grande importância, trazendo ideias diferentes e descobrindo novos talentos, que se tornaram valores significativos para a nossa literatura.

Característica das pessoas inteligentes é, sem dúvida, a irreverência. Quando atacados pelos críticos, ou mesmo, por companheiros da literatura, ambos reagiam de forma um tanto pito-resca. Mário de Andrade, ao apreciar certas posturas de Hélio Pellegrino, que se rotulava “um socialista histórico, eventualmente histérico”, chamou-o de “vulcão caótico”. Décio de Almeida Prado, considerado, por muitos, o maior crítico cultural do Brasil, em uma de suas crônicas, na Folha de São Paulo, intitulada “Latejando com o futebol”, de 17/09/1988, pede que o time do Brasil, após o jejum de vitórias desde 1970, “restitua-nos o perdido pundonor”, e cita a “versão” de Mário para essa expressão: “ o pum d’honor”...

Já Oswald de Andrade, que é, também, conhecido como o criador do poema-piada, no entanto, realizou uma obra de grande seriedade nas várias vertentes a que se aplicou. Censurado por Décio, (“ tem secura futurista”, entre outras críticas), reagiu, intitulando-o, junto com alguns avalistas da vanguarda modernista, com a alcunha de “chato-boys”...

Décio de Almeida Prado, um apaixonado por futebol, publica, (na mesma crônica em que cita a irreverente expressão de Mário de Andrade para o nosso insucesso, nesse esporte), uma ocorrência futebolística, um tanto pitoresca, que serviu de inspiração a Oswald de Andrade, para escrever, na opinião do amigo Décio, “essa admirável síntese minimalista”.

Page 31: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

ESPECIAL: OS ANOS 1920 (2ª PARTE) – HOMENAGEM à ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS E SUA FUNDAçãO EM 1926 | 31

“Histórico” do fato: O Clube Atlético Paulistano, após o final das Olimpíadas, em 1924, em que dois times sul-americanos se enfrentaram (Uruguai 1x 0 Argentina), para a decepção dos europeus, sentiu renascer a paixão futebolística, tão amortecida, em virtude de maus resultados obtidos, nesse campo, e organizou uma excursão à Europa, para testar, novamente, a superioridade sul-americana, frente ao continente europeu. Foi um sucesso. O time venceu escretes franceses e suíços, goleando os portugueses, mas teve que suportar uma inesperada, embora honrosa der-rota (0 x 1), diante de um despretensioso time de uma cidadezinha do Mediterrâneo, chamada Cette, que veio a mudar, posteriormente, a grafia de seu nome, para Sète. Como constatamos, no poema-piada, os orgulhosos paulistanos não conseguiram aceitar a derrota...

Mário de Andrade publica Pauliceia Desvairada justamente em 1922, livro que inclui o polêmico poema intitulado “Prefácio interessantíssimo.” Em 1924, em O losango cáqui, ele aborda uma temática inusitada: relata as atividades de um mês de exercícios militares. São ano-tações líricas em que o poeta se nomeia “defensor interino do Brasil”. Em 1927, aparece Clã do Jaboti, poemas com uma feitura mais esmerada. Apesar de seu forte pendor musical, Mário foi essencialmente um poeta. Sua obra poética, com exceção de seu livro de estreia, está reunida no volume Poesias, integrante das Obras Completas, publicadas em 1955. Seu tema predominante é a cidade de São Paulo, que se encontra, igualmente, em muitos de seus contos e romances. Mas seu sentimento de brasilidade produz belos versos em outros poemas, como “Carnaval Carioca”, “Noturno de Belo Horizonte”, além do magistral romance “Macunaíma’. Seu estilo poético é versátil: tanto enobrece a pátria brasileira, como brinca com as palavras, como faz versos senti-mentais ou despojados, como os “Poemas da Negra” ou “Poemas da Amiga”.

Acusaram-no de “poeta difícil” e ele, de forma sarcástica, respondeu:

Eu sou um escritor difícil,Porém culpa de quem é?Não carece vestir tangaPra penetrar meu caçanje. Você sabe o francês “singe”Mas não sabe o que é “guariba”?-Pois é macaco, seu mano,Que só sabe o que é da estranja.

Como contraponto, relembremos um dos “Poemas da negra”, pleno de ternura. Diz Ban-deira, no livro já citado: “Não há vestígio de exotismo na sua maneira de tratar o tema da negra; é a mesma suavidade singela e natural das endechas a Bárbara, de Camões”:

Page 32: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

32 | REVISTA DA ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS 2016 • SEGUNDO SEMESTRE 2016

Você é tão suave,Vossos lábios suavesVagam no meu rosto,Fecham meu olhar.

Sol-posto.

É a natureza suaveQue vem de você,Que se dissolve em mim.

Que sono...

Eu imaginavaDuros vossos lábios,Mas você me ensinaA volta ao bem.

Citando-se figuras representativas do movimento modernistas, é imperioso lembrar o poeta e romancista, Jorge de Lima, (1895 –1953), que, inclusive, integrou o quadro acadêmico da Academia Carioca de Letras. Apesar de o escritor ter alcançado uma prematura celebridade com um soneto parnasiano, “O acendedor de lampiões”, que o Brasil acolheu, admirou e, até hoje, é declamado em tertúlias e saraus literários. Sua obra mais relevante é o volume, intitulado, simplesmente, “Poemas”, (1927), a que se seguiu outro, “Novos Poemas” (1929), que continha um de seus poemas, muito conhecido e festejado, “Essa nega Fulô”, com o qual a região nordeste incorporava-se ao desbravador movimento poético que se iniciara, em São Paulo, cinco anos antes.

Jorge de Lima trouxe a sua região para a poesia, aproveitando todos os componentes pi-torescos, oferecidos pelo folclore, abordando a miscigenação entre raças diferentes e os ventos do tropicalismo, em sintonia com as expressões culturais da época. Revelando altas exigências intelectuais, deixou, em breve tempo, a poesia perceptiva e sensorial pela poesia religiosa e de temática bíblica, com “Tempo e eternidade”, tendo, como parceiro, Murilo Mendes, amigo e companheiro de letras, e, ainda, “A túnica inconsútil”, já nos anos 30. Escreveu um romance regional, “Calunga”, e a novela “O anjo”, dentro dos conceitos suprarrealistas. “Poemas negros” aparece em 1947 e, em 1949, a forma fixa do soneto é renovada, através do seu “Livro de Sone-tos”, demonstrando a perenidade da forma. Pouco antes de sua morte, em 1952, foi publicado “Invenção de Orfeu”, no qual o poeta tenta cultivar lendas e mitos, e partir para a conquista de uma nova linguagem poética.

Page 33: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

ESPECIAL: OS ANOS 1920 (2ª PARTE) – HOMENAGEM à ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS E SUA FUNDAçãO EM 1926 | 33

Manuel Bandeira nasceu em Pernambuco, em 1886, mas escreveu que nasceu, “para a vida consciente”, em Petrópolis, pois aí estão as suas velhas reminiscências... Viveu o poeta entre a doença e as recordações transplantadas para seus poemas. Faleceu, no Rio, em 1968.

“Febre, hemoptise, dispneia, suores noturnosA vida inteira que podia ter sido e não foi.Tosse, tosse, tosse.”

No entanto, o sofrimento e a angústia pela expectativa da morte, acrescido pelas dificul-dades financeiras, não conseguiram fazer desse homem um ser revoltado, infeliz. Ao contrário, começou a escrever poemas retratando o seu dolorido cotidiano, ora, com tristeza (“Eu faço versos como quem chora...”), ora, com irreverência (“Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax? / Não, a única coisa a fazer é tocar um tango argentino.”)

Além do grande poeta que foi, Bandeira escreveu ensaios, crítica, traduções e trabalhos de história literária nacional e universal. Itinerário de Pasárgada é considerado sua autobiografia literária. Mas, sem dúvida alguma, foi sua poesia que lhe deu um grande destaque, na literatura brasileira. Bandeira sentiu também a influência da herança parnasiana e simbolista sobre sua alma extremamente romântica, como ocorre em A cinza das horas, (1917), Carnaval( 1919 ) e Ritmo dissoluto ( 1924 ). Somente, a partir de Libertinagem, 1930, é que o poeta se liberta, integrando-se, definitivamente, ao movimento modernista brasileiro, seguindo-se as publicações de Estrela da manhã, Opus 10 e vários outros poemas que foram reunidos em Poesias Completas (1958), quando o poeta harmoniza o Modernismo com o verso tradicional.

Mas voltemos aos anos 20:

Tristão de Athayde sintetiza “o enorme progresso de forma que se nota na poesia de Bandeira: a “Cinza das Horas” foi a despedida aos ritmos e símbolos herdados; Libertinagem é a Primeira Missa, no ilhote da Coroa Vermelha...Terra firme de novo, depois da viagem acidentada.”

Em qualquer livro, de qualquer época, podemos encontrar a beleza da poesia de Manuel Bandeira. às vésperas dos anos 20, ele escreveu o poema “Desencanto”:

Eu faço versos como quem choraDe desalento... de desencanto...Fecha o meu livro, se, por agora,Não tens motivo nenhum de pranto.

Page 34: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

34 | REVISTA DA ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS 2016 • SEGUNDO SEMESTRE 2016

Meu verso é sangue. Volúpia ardente...Tristeza esparsa...remorso vão...Dói-me nas veias. Amargo e quente,Cai, gota a gota, do coração.

E nesses versos de angústia roucaAssim dos lábios a vida corre,Deixando um acre sabor na boca.

Eu faço versos como quem morre.

Neste belo poema, publicado na aurora dos anos 20, o poeta descreve o seu “desalento” (título de outro poema seu), usando recursos metalinguísticos para revelar a sua dor. Ele elabora a sua poesia, dentro de um estado de espírito de emoção, esperando a hora da partida, “com um acre sabor na boca”; o poeta, vítima de uma doença, incurável àquela época, a tuberculose, extravasa a sua melancolia em lindos versos. Como expressa em “Consoada”:

Quando a Indesejada das gentes chegar(Não sei se dura ou caroável),Talvez eu tenha medo.Talvez eu diga:-Alô, iniludível!O meu dia foi bom, pode a noite descer.(A noite com os seus sortilégios)Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,A mesa posta,Com cada coisa em seu lugar.

Por mais que tenhamos motivo para chorar, para sofrer, jamais deveremos fechar o livro de um poeta que entende a nossa dor, que nos comove com sua coragem e força interior, comuni-cando a sua amargura, com pudor, confessando-se na 1ª pessoa, dando-nos o exemplo de que a arte é capaz de suavizar o sofrimento, tornando-nos imunes `a desesperança...

E, como fechamento deste modesto trabalho sobre as “acontecências” (usando o neologismo de Vilma Guimarães Rosa) dos anos 20, e o movimento modernista que se seguiu, não poderia deixar de ser citado um poeta, cuja primeira obra, “Alguma poesia”, veio a lume, em 1930, porém, muitas de suas poesias já tinham sido publicadas em jornais, revistas, impregnando, de beleza, a

Page 35: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

ESPECIAL: OS ANOS 1920 (2ª PARTE) – HOMENAGEM à ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS E SUA FUNDAçãO EM 1926 | 35

alma e a mente dos brasileiros, com sua franca individualidade, com sua linguagem escorreita, com suas “notas puras de lirismo”, como define o professor Afrânio Coutinho.

Carlos Drummond de Andrade (1902 –1987) - em citação do Professor e crítico literário Emanuel de Moraes, na Obra Completa, da Aguilar Editora - brincava que “sua derivação para o modernismo decorrera da falta de jeito para versejar conservadoramente e da incapacidade de estudar, por preguiça ou qualquer motivo obscuro, os compêndios de metrificação”. Bem sabemos que nada disso é verdade, pois jamais lhe faltaram “ o engenho e arte”, tanto que sua magnífica obra merece um exclusivo ensaio... Para contestar, portanto, essa rápida observação a respeito da tal incapacidade de “versejar conservadoramente”, relembremos um belo soneto, em que Drummond nos deixa seu “Legado”:

Que lembrança darei ao país que me deuTudo que lembro e sei, tudo quanto senti?Na noite do sem-fim, breve o tempo esqueceuMinha incerta medalha e a meu nome se ri.

Page 36: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

36 | REVISTA DA ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS 2016 • SEGUNDO SEMESTRE 2016

E mereço esperar mais do que os outros, eu?Tu não me enganas, Mundo, e não te engano a ti.Esses monstros atuais, não os cativa Orfeu,A vagar, taciturno, entre o talvez e o se.

Não deixarei de mim nenhum canto radioso,Uma voz matinal palpitando na brumaE que arranque de alguém seu mais secreto espinho.

De tudo quanto foi meu passado caprichosoNa vida, restará, pois o resto se esfuma,Uma pedra que havia em meio do caminho.

Drummond, pelo muito de humor, de lirismo, de “sentimento do mundo” que nos legou, o Brasil lhe agradece!

MARIA AMÉLIA AMARAL PALLADINO, mineira, de São João del Rei, recebeu o título de Cidadã Carioca, em 2004. Professora e advogada, foi Diretora do Colégio Pedro II, por 33 anos. Especialista em Educação, pelo MEC, Presidente da Federação das Academias de Letras e Artes do Estado do Rio de Janeiro e Secretária-Geral da Academia Luso-Brasileira de Letras. Entre os títulos recebidos, Mulher do Ano, em Cultura (2004) e Medalha de Ouro, pela Societé Académique des Arts, Sciences et Lettres, de Paris.

Page 37: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

ESPECIAL: OS ANOS 1920 (2ª PARTE) – HOMENAGEM à ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS E SUA FUNDAçãO EM 1926 | 37

Page 38: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos
Page 39: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

J O R N A L I S M O

A mAçã e o lAdo obScuro de Humberto

de cAmpoS, o conSelHeiro X.X.

Aline Halouch

Há autores cuja vida é um livro aberto, conhecemos tudo sobre ele – desde pequenos fragmentos até suas grandes obras. Há outros cuja obra não cabe neles mesmos e há os heterônimos,

que desdobram facetas inusitadas do mesmo autor. Humberto de Campos teve em vida um turbilhão dentro de si. Talvez pelo pouco tempo de vida que teve – e também pela necessidade de sobreviver do que escrevia –, bus-cou a urgência da produção literária; escreveu muito até morrer. Com uma obra sólida, que vai da poesia ao conto, da crônica à crítica e da memória ao diário – teve uma obra paralela, sob o pseudônimo de Conselheiro X.X. (xis, xis) que chocou a sociedade acadêmica conservadora e satisfez os leitores de sua adorável obra satírica, publicada em 11 volumes a partir de 1917 e, semanalmente em A Maçã, a partir de 1922.

Page 40: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

40 | REVISTA DA ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS 2016 • SEGUNDO SEMESTRE 2016

A Maçã era uma revista literária, ilustrada e com um projeto gráfico inovador para a época. Privilegiava textos que falavam de desejos, paixões e traição. Mostrava uma face inusitada da socie-dade carioca de 1922, que era, como afirmava o próprio Humberto de Campos, “uma sociedade que conhecia o pecado”.

O editor da revista A Maçã era uma dessas figuras notórias e influentes na formação de lei-tores. Adorado por milhares, autor de poesias, contos e crônicas brilhantes, Humberto deu outra dimensão ao termo pseudônimo. Seus continhos galantes, excelentes textos que tinham como mote principal casos extra-conjugais, desejos proibidos e situações engraçadas – e que resultavam em histórias com uma boa dose de malícia e sarcasmo –, foram consumidos vorazmente. O Conselheiro era um verdadeiro personagem, tinha local e data de nascimento e até um retrato estampado na revista. Humberto, que tinha uma sólida carreira literária e jornalística, tinha uma carreira paralela com o Conselheiro X.X.. Ao ingressar na Academia Brasileira de Letras, após ser muito aclamado pelos colegas, alguns passaram a criticá-lo impiedosamente. Luiz Edmundo, por exemplo, religioso intransigente, via os contos do Conselheiro como uma aberração produzida pelas mesmas mãos que escreviam obras aclamadas como A Poeira ou O Monstro.

Humberto de Campos escreveu durante toda sua vida um diário, publicado postumamente em dois volumes com o titulo Diário secreto, onde relatou casos descritos com mestria e riqueza de detalhes de situações que serviam de inspiração para seu trabalho diário. O Diário secreto teve apenas uma edição e foi um daqueles livros-bomba – com revelações de pessoas da elite carioca, de intelectuais a damas da sociedade.

Humberto de Campos ocupava desde 1920 a cadeira número 20 da Academia Brasileira de Letras. No decorrer da pesquisa, descobri um homem admirável, que aprendeu a ler sozinho e que desde então passou a amar os livros. Até chegar ao Rio de Janeiro e iniciar sua carreira de sucesso como escritor e jornalista, passou por maus bocados.

Curiosamente, Humberto de Campos, que nunca teve religião, é hoje bastante conhecido pelos livros atribuídos a ele, psicografados pelo médium Chico Xavier. Como um autor pôde ser apagado do cenário literário a ponto de suas supostas obras psicografadas serem mais conhecidas do que toda sua obra em vida?

Page 41: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

ESPECIAL: OS ANOS 1920 (2ª PARTE) – HOMENAGEM à ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS E SUA FUNDAçãO EM 1926 | 41

Page 42: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

42 | REVISTA DA ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS 2016 • SEGUNDO SEMESTRE 2016

HUMBERTO DE CAMPOS, O CONSELHEIRO X.X.

Terça-feira, 4 de fevereiro (1930):O amor ideal é como esses balões dirigíveis que vêm fazendo a travessia dos mares e dos

continentes: vive no ar, entre as nuvens e as estrelas, nas proximidades do céu mas, ao fim de cada vôo, lançam a âncora, fixando-a na terra.

A paixão mais pura precisa, de quando em quando, para viver, de um pensamento imundo.

Humberto de Campos, Diário Secreto

Humberto de Campos Veras nasceu em Miritiba, atual Humberto de Campos, Ma-ranhão em 1886. Autodidata, escreveu quarenta volumes que abrangem poesia, contos, crônicas, memórias, crítica literária e artigos para jornais e revistas. Suas principais obras são: Poeira (1911), Da seara de Booz (1918), Vale de Josafá (1919), O Tonel de Diógenes (1920), O Mealheiro de Agripa (1920), Carvalhos e Roseiras (1923), e Memórias (1933). Aos doze anos, após algumas incursões desastradas pelo comércio e alfaiataria, sua mãe teve a idéia de fazê-lo aprendiz de uma oficina tipográfica em Parnaíba. Sua primeira função no jornal O Comercial foi separar os tipos empastelados adquiridos de segunda mão, nas respectivas caixas, mas alguns dias depois já começou seu aprendizado na composição. Alternando com os empregos em jornais e tipografias, Humberto trabalhou em casas comerciais de alguns tios, mas ele estava decidido a abraçar a profissão de tipógrafo, pois tinha verdadeira paixão pelos livros. Voltou aos tipos por apenas um mês, no Jornal da Manhã, dirigido por Agripino Azevedo e Joaquim Francisco de Sá, em São Luís. Aos 18 anos foi para Belém, onde novamente foi trabalhar como tipógrafo no jornal Notícias onde era também revisor e autor de alguns versos. Nesse momento Humberto de Campos passou por grandes dificuldades financeiras, quando pas-sou a ser redator político do Província do Pará, um jornal da situação. Foi quando conheceu aquela que seria sua futura esposa. Humberto de Campos realiza uma fuga espetacular por conta de perseguições políticas ao jornal em que trabalhava e embarca para o Rio de Janeiro. (Campos Filho, 1997:74)

Humberto de Campos iniciou sua carreira no Rio de Janeiro em 1912 no jornal O Imparcial. Fascinado por estar na capital da República e entre os escritores que tanto admirava, teve em Coelho Neto seu maior amigo e colaborador. Segundo Macario de Lemos Picanço, escritor que fez sua biografia, além d’O Imparcial, Humberto de Campos colaborava com versos e crônicas para folhas e revistas de grande circulação. Em 1919, com apenas 33 anos, foi eleito para ocupar a cadeira número 20 da Academia Brasileira de Letras. Nesse momento Humberto de Campos já era considerado um grande jornalista. De 1918 a 1927 produziu uma série de contos satíricos

Page 43: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

ESPECIAL: OS ANOS 1920 (2ª PARTE) – HOMENAGEM à ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS E SUA FUNDAçãO EM 1926 | 43

sob o pseudônimo de Conselheiro X.X. — um trocadilho fonético — e também escreveu artigos sobre personalidades nacionais e estrangeiras. Em 1922, já com um público cativo, fundou a revista A Maçã onde adotou vários pseudônimos como Batuh-Allah, Almirante Justino Ribas, Giovanni Morelli, Luis Phoca entre outros. (Picanço, 1935:180)

Humberto de Campos se elegeu deputado federal pelo Maranhão sem muito destaque mas suas crônicas refletiam sua postura política. Defendia a reforma agrária, a distribuição mais igualitária de renda e se posicionou a favor da revolução socialista na Rússia em 1917, mesmo pensando que esta não seria adequada num país como o Brasil, onde o povo precisava mais de pão do que de liberdade. Por volta de 1928 descobriu que estava com uma grave doença, uma hipertrofia da glândula hipófise e daí para frente sofreu de forma brutal, perdendo aos poucos a visão e os movimentos dos membros. Em 1º de dezembro de 1934 escreveu seu último artigo despedindo-se de seu grande amigo Coelho Neto que havia morrido. Uma semana depois foi Humberto de Campos que morreu no dia 5, deixando uma verdadeira legião de fãs.

“Sexta-feira, 6 de julho:Em uma vila fronteira à minha casa, à Rua Barão de Ubá, suicidou-se, a 30 de junho

último, um capitalista de nome Gomes da Silva, que se achava, no momento, em visita a um casal aí residente. Os jornais tem comentado o caso, admitindo a hipótese de um crime, e dando a jovem dona de casa como amante do capitalista, a quem explorava. Um morador da vila, sem que eu lhe pergunte, informa-me ser da mesma opinião adiantando que o velho namorado tinha grandes ciúmes da amante, à qual dizia, em altas vozes, nas discussões que travavam:

— Não admito que você namore; você é minha; minha e de seu marido!O marido, esse, não dizia nada...”

Humberto de Campos, Diário Secreto

Quando nos concentramos na leitura dessas duas obras paralelamente – os contos satíricos e o Diário Secreto –, observamos que há neles uma relação. O Diário Secreto e sua observação do cotidiano é a matéria-prima dos contos satíricos. A malícia, a traição, o desejo e o pecado per-meiam a obra galante de Humberto de Campos e traz à tona seus próprios demônios. Quando inicia a publicacão de A Maçã, seus contos ganham uma nova dimensão, com o suporte visual. As surpreendentes ilustrações potencializam suas palavras e a revista vira uma febre. O duplo sentido das palavras se alia à sensualidade do desenho, à delicadeza da diagramação e ao projeto gráfico primoroso.

é difícil saber se ele mesmo tinha dimensão da importância da revista como fonte geradora dessa potência – a força das palavras despertavam a força do desejo por aquelas imagens.

Page 44: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

44 | REVISTA DA ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS 2016 • SEGUNDO SEMESTRE 2016

A MAçã: OBJETO DE DESEJO

A imprensa ilustrada da virada do século XX foi identificada como um ponto crucial no desenvolvimento das linguagens gráfica e literária brasileiras e as revistas ilustradas tornaram-se essenciais na construção do gosto e da identidade cariocas, atraindo uma diversidade de intelec-tuais e artistas do Brasil e do exterior. Esse processo possibilitou a experimentação de linguagens gráficas fundamentais para o desenvolvimento do moderno design brasileiro.

A Maçã tinha uma proposta bastante diferenciada das outras revistas mundanas por seu conteúdo e seu projeto gráfico. O objetivo inicial da minha pesquisa era identificar as soluções gráficas de projeto e discutir a sua relevância para o design brasileiro. Para isso fiz o registro e análise gráfica do período considerado mais fértil da publicação para apresentar as soluções empregadas e demonstrar as relações de linguagem entre seu projeto gráfico e literário. A Maçã está inserida em um período histórico no qual já se observa a existência da profissão de designer, embora o design não contasse ainda com um ensino sistematizado no país.

Estava começando a escrever a história d’A Maçã, que envolvia design, literatura, moda, propaganda; e também de seus idealizadores: o próprio Humberto de Campos (Conselheiro X.X.) e os profissionais que faziam aquela revista. Para se falar de design é preciso falar das coisas presentes no cotidiano das pessoas que o projetam e consomem. Os marcos históricos consa-grados, nesse caso, já não são tão importantes quanto os marcos reais que aparecem na prática do projeto, no uso da tecnologia, na experimentação de novas linguagens.

Humberto de Campos, editava A Maçã de forma bastante ousada, ela era direcionada ao público masculino, trazia contos, crônicas e comentários picantes. Desde seus primeiros números utiliza ilustrações e clichês tipográficos, caricaturas, fotografia e uma diagramação dinâmica, resultando numa integração primorosa entre a imagem e o texto. A Maçã foi esquecida, bem como o seu editor. Pouco se fala de Humberto de Campos hoje em dia embora tenha sido um dos autores mais lidos e queridos do país na época. Ele foi literalmente um autor de best-sellers, chegou a vender 18 mil exemplares de suas crônicas compiladas. Um grande cronista e poeta que, como ele mesmo profetizou, tornou-se esquecido

... tenho certeza que ao fim de 50 anos não se imprimirá mais um só livro no qual se

encontre, mesmo vagamente, o meu nome... Humberto de Campos, Diário Secreto

A Maçã explorava assuntos como relacionamentos extra-conjugais não só dos homens com as cocottes, mas também os de suas esposas. Mesmo em trechos publicados de obras de escritores como Eça de Queiroz, Olavo Bilac, Aluísio de Azevedo e do próprio Humberto de Campos, são privilegiados os que tenham em seu pano de fundo o desejo e a traição.

Page 45: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

ESPECIAL: OS ANOS 1920 (2ª PARTE) – HOMENAGEM à ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS E SUA FUNDAçãO EM 1926 | 45

A Maçã era um sucesso de vendas: segundo seu editorial, chegou a ser o semanário de maior circulação na capital. Além disso era vendida através de assinaturas para outros estados e até no exterior. Teve fases distintas: das mais ousadas graficamente no início; uma fase com ilustrações mais comedidas (familiar, como ela mesma anunciou); uma fase final mais vulgar (depois de 1928) quando a revista deixa de ser dirigida por Humberto de Campos.

A revista brincava o tempo todo com a noção do pecado, Eva e a maçã, criando um rico referencial simbólico. Utilizava as metáforas verbais e visuais com principal recurso do duplo--sentido que explorava em suas páginas. Ao contrário de suas contemporâneas que aparecem em todos os livros de referência sobre o assunto, A Maçã, quando é citada, o é superficialmente e muitas vezes como uma revista “mal-vista” e secundária. Muitos críticos não se conformavam que um escritor como Humberto de Campos pudesse escrever aqueles contos, usar tantos pseu-dônimos e veicular uma revista tão escandalosa. Mas os números não mentem, se os críticos diziam não gostar dela, o público, pelo contrário, a disputava. O primeiro número da revista esgotou rapidamente, tendo que ser reeditado. Aqueles críticos que relegaram A Maçã a um segundo plano desconsideraram seu sucesso e sua qualidade gráfica.

Enquanto conhecia sua obra (e me apaixonava por ela) tive a necessidade de trazê-la de volta à vida. Eu queria contrariá-lo em seu prognóstico de que em 50 anos não seria mais lembrado. Publiquei pela Tinta Negra Bazar Editorial, em 2014, a coleção Humberto de campos – Renascendo 80 anos depois, onde selecionei uma pequena parte de sua obra em 4 volumes: Poesias Completas, Contos e Crônicas, Contos Satíricos do Conselheiro X.X. e Diário Secreto. A obra foi lançada em comemoração aos 80 anos da morte de Humberto ocorrida em 5 dezembro 1934.

Desejo profundamente que a obra de Humberto de Campos possa ser redescoberta, como tem sido a de tantos autores da nossa literatura, pelo seu valor e qualidade, pelo intenso esforço desse homem que viveu do seu ofício de escrever e o fez de forma honesta e brilhante.

ALINE HALUCH é designer e pesquisadora formada pela Universidade Federal do Paraná, mestre em Design pela PUC-Rio e sócia do Studio Creamcrackers Design. Há mais de 18 anos está à frente da coordenação dos projetos de design editorial do Studio, onde são desenvolvidas pu-blicações completas, capas de livros, ilustrações, projetos gráficos e diagramações. é autora do livro A Maçã / As mudanças de comportamento e a representação feminina no início do século XX.

Page 46: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos
Page 47: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

A R Q U I T E T U R A

A ArquiteturA cAriocA dA décAdA

de 1920Alexei Bueno

A terceira década do século passado, a dos célebres e incompa-ráveis Anos 20, aquela compreendida, para ser bastante exato, entre o dia 1º de janeiro de 1920 e o dia 31 de dezembro de

1929, caracterizou-se arquitetonicamente, no Rio de Janeiro, então Capital Federal, por uma continuada floração do Ecletismo, já triunfante desde finais do século XIX, por uma forte voga do Neocolonial, sustentado por uma ideologia de estética nacionalista morfologicamente equivocada, por uma notável e irreprimível verticalização da cidade, tudo ao lado da emergência de elementos Art Déco e pré-modernistas que se tornariam dominantes na década seguinte, levando a uma radical mudança no perfil arquitetônico do Rio de Janeiro.

Page 48: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

48 | REVISTA DA ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS 2016 • SEGUNDO SEMESTRE 2016

Uma das décadas mais conflagradas da história brasileira, sacudida por uma série de movimentos revolucionários, a maior parte deles sob a denominação geral de Tenentismo, e pelas reações legalistas a elas - os Dezoito do Forte, em 1922, a Revolução de 1924, a Coluna Prestes, o estado de sítio do Governo Artur Bernardes, a Revolta de Princesa, tudo culminando na Revolução de 30 – a década de 1920 foi igualmente a que assistiu, em relação às técnicas construtivas, ao definitivo triunfo do concreto armado entre nós, técnica aqui surgida nos pri-meiros anos do século e com a qual seria escrito um capítulo glorioso da nossa engenharia civil e da nossa arquitetura.

Num pequeno texto como este, sempre ocorre ao autor uma dúvida, qual ordem, afinal, seguir, a puramente cronológica, a de autores, a de tipos de edifícios, a de regiões da cidade, e assim por diante. Como essa questão é e sempre foi insolúvel, seguimos ao sabor da pena, aliás, do teclado, e acreditamos que, no final, todos os caminhos sejam equivalentes.

A década de 1920 é, na arquitetura carioca, antes de tudo uma década de transição. Seu estilo dominante, o Eclético, não produziu, no período, obras da importância das surgidas em décadas anteriores, desde a lenta inserção, a partir da década de 1870, de elementos ecléticos dentro do vocabulário neoclássico por Francisco Béthencourt da Silva – embasamentos ou andares térreos inteiramente em cantaria de gnaisse, ornamentos característicos sobre as plati-bandas, como as famosas compoteiras, frontões rebuscados, telhados em ardósia, etc. - como podemos encontrá-los, ora uns, ora outros, no Colégio Amaro Cavalcanti, Escola (atual Centro Cultural) José Bonifácio, sedes da Caixa Econômica Federal (atual Procuradoria Geral do Estado, totalmente descaracterizada na parte interna), Colégio Pedro II, Banco do Brasil (atual CCBB, descaracterizado igualmente), etc., até alcançarmos algumas construções especialmente notáveis, como aquela originalmente prevista para sede do Banco do Brasil, na Rua Primeiro de Março (atual Centro Cultural da Justiça Eleitoral), magnífica obra de Luís Schreiner, de 1892, chegando mais tarde às principais realizações do General Marcelino de Sousa Aguiar: Hospital Central do Exército, Palácio Monroe, Quartel Central do Corpo de Bombeiros, Palácio da Prefeitura, demolido para a abertura da Avenida Presidente Vargas; de Heitor de Melo: Palácio da Polícia Central, na Rua da Relação, Quartel do Quinto Batalhão da Polícia Militar, na Saúde, Palacete Otto Theiler, com seus elementos medievalizantes e renascentistas franceses, na esquina da Praia do Flamengo com a Avenida de Ligação, depois Osvaldo Cruz; de Adolfo Morales de los Rios: Escola (depois Museu) Nacional de Belas Artes, Cine-Teatro Passeio, sede do Supremo Tribunal Federal, Palácio São Joaquim; de Antonio Virzi: Casa Villino Silveira, Villa Smith de Vascon-cellos, Elixir Nogueira, os dois últimos demolidos; bem como alguns dos melhores exemplares construtivos da Avenida Central, a Caixa de Amortização, de Gabriel Junqueira; a sede das Docas de Santos, do famoso arquiteto paulista Ramos de Azevedo, com execução de Antonio Jannuzzi; o Clube Naval, de Tommaso Bezzi; a sede social do Jockey Club, de Heitor de Melo, demolida; o Teatro Municipal, de Francisco de Oliveira Passos; a Biblioteca Nacional, do francês

Page 49: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

ESPECIAL: OS ANOS 1920 (2ª PARTE) – HOMENAGEM à ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS E SUA FUNDAçãO EM 1926 | 49

Hector Pépin, embora comumente atribuída a Sousa Aguiar, etc. Se, de fato, a primeira década do século, a das grandes reformas urbanas do governo Rodrigues Alves, com a ação enérgica de Pereira Passos e a obra hercúlea de Osvaldo Cruz, se nos revela como um período especificamente construtivo, a terceira década, a de 1920, caracterizar-se-á pela destruição, com a abertura da Esplanada do Castelo, só terminada já nos anos de 1930, e na qual, por isso mesmo, surgirão grandes exemplares do Art Déco – Ministério do Trabalho -, vastos edifícios pré-modernos ou de um Ecletismo muito tardio – Ministério da Fazenda –, ou já do mais pleno Modernismo, que tem o seu exemplo máximo, sob todos os aspectos, no prédio do Ministério da Educação e Saúde, atual Palácio Capanema.

O primeiro evento ocorrido no Rio de Janeiro, mas de repercussão nacional, que começou a delinear claramente as tendências arquitetônicas do período, em diversos e mesmo díspares dos seus aspectos, foi, de fato, sem qualquer dúvida, a Exposição Internacional de 1922, co-memorativa do Centenário da Independência. Antes de tudo, teve início juntamente com a Exposição o maior crime urbanístico da história carioca, a destruição do Morro do Castelo, berço e acrópole quinhentista da cidade, rigorosamente ao lado dos pavilhões que para ela eram erguidos. Nesses dominava o Ecletismo, como podemos constatar naqueles poucos que sobreviveram: o Pavilhão de Estatística, atual sede do Serviço de Saúde dos Portos, projeto do arquiteto Gastão Bahiana, em estilo próximo ao Luís XVI, mas que, no entanto, perdeu a sua cúpula, coroação de toda a estrutura; o Pavilhão da Administração e do Distrito Federal, de Sílvio e Rafael Rebecchi, onde depois se instalou o Museu da Imagem e do Som; ou o Pavilhão da França, simples réplica do Petit Trianon de Versalhes, por Viret e Menorat, a partir de projeto Jacques-Angel Gabriel, doado no ano seguinte à Academia Brasileira de Letras, que nele mantém a sua sede tradicional. Entre os pavilhões demolidos, a maioria dos quais não passava de obra efêmera, com elementos daquela espécie de arquitetura de confeitaria que dominara a Exposição de 1908, comemorativa do Centenário da Abertura dos Portos, na região da Praia Vermelha, o mais notável, por sua escala e monumentalidade, era o Pavilhão dos Estados, de Morales de los Rios Filho, que mais tarde sediaria o Ministério da Agricultura, marcante na paisagem urbana do Centro do Rio de Janeiro por sua volumetria e sua cúpula em tijolos de vidro, como a do Palácio Tiradentes, até ser demolido, sem motivo justificado, em 1978, mesmo destino que tiveram, na mesma década, outros grandes prédios públicos da cidade, como o Palácio Monroe e a sede da Faculdade Nacional de Medicina, na Avenida Pasteur. O mais curioso, no entanto, entre as diretrizes estéticas da arquitetura da Exposição, foi a metódica descaracterização do conjunto colonial e imperial formado pela Casa do Trem e o Arsenal de Guerra, para abrigar o Palácio das Indústrias, onde depois foi criado o Museu Histórico Nacional, que lá permanece. Seguindo o projeto de Arquimedes Memória e Francisque Cuchet, um prédio legitimamente da era colo-nial era “neocolonizado”, recebendo, entre outros elementos, uma série de balcões de madeira característicos do colonial hispano-americano, como podemos encontrá-los em Lima, Cusco

Page 50: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

50 | REVISTA DA ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS 2016 • SEGUNDO SEMESTRE 2016

ou Quito, apenas como exemplo, além dos ridículos frontões curvilíneos, tão característicos do estilo, e que jamais foram vistos na arquitetura civil colonial brasileira. O mais interessante é que, no mesmo momento em que transformavam em neocolonial esse vasto conjunto de edificações militares, punham abaixo, na imediata vizinhança, duas igrejas, um convento, um forte e todo o arruamento do século XVI do Morro do Castelo, transformado em lama pelas mangueiras de alta pressão para ele apontadas pelo então prefeito Carlos Sampaio, de triste memória. Na mesma gestão, aliás, o Rio de Janeiro assistiu à destruição do mirante do Passeio Público, que abriu espaço para o pavoroso e também neocolonial Cassino Beira Mar.

Obra que teve início em período muito próximo ao da Exposição foi o Palácio Tiradentes, também da dupla Arquimedes Memória e Francisque Cuchet. Iniciado em 1923, no terreno aberto pela demolição da histórica Cadeia Velha, edificação do século XVII imortalizada pelo julgamento dos envolvidos na Inconfidência Mineira e no qual funcionou a Câmara dos De-putados durante todo o período imperial e parte do republicano, trata-se de um exemplo de Ecletismo em regra, com vasta profusão de estátuas e adornos, muitos deles inspirados nos sím-bolos do poder romano, aqueles tradicionalmente portados pelos lictores, o que lhe outorga um indisfarçável ar de família com a arquitetura fascista. O nome de Arquimedes Memória, assim com o de Joseph Gire, manterá grande protagonismo na arquitetura carioca de toda essa época de que tratamos, palco pouco antes dominado pelos de Heitor de Melo, Antonio Jannuzzi e Adolfo Morales de los Rios.

Outro prédio público clássico da cidade no período, próximo em funções e em data ao Palácio Tiradentes, é a sede da Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro, mais uma obra do escritório de Arquimedes Memória e Francisque Cuchet, continuadores, após a sua morte, da profícua atividade de Heitor de Mello, seu autor original. Erguido entre 1920 e 1923, esse elegante palácio, anos mais tarde renomeado Pedro Ernesto, em homenagem ao injustiçado prefeito, e situado entre o Teatro Municipal e o Quarteirão Serrador, custou aos cofres públicos quantia tão desmarcada que deu origem a seu popular apelido, Gaiola de Ouro.

A esse mesmo afortunado escritório de Arquimedes Memória e Francisque Cuchet deve o Rio a existência de outros prédios, agora ligados à área esportiva, e sobejamente conhecidos, como a muito bela sede do Jockey Club Brasileiro, erguida entre 1924 e 1925, na Gávea, e a sede do Botafogo Futebol e Regatas, inaugurada em 1928, no bairro do mesmo nome, esta plenamente neocolonial e de dificultosa história. Para continuarmos no terreno do esporte, é preciso lembrar a mais bela sede de um clube de futebol brasileiro a do Fluminense Football Club, nas Laranjeiras, de autoria de Hipólito Pujol Júnior, e terminada em 1922.

O mesmo Neocolonial, teorizado e defendido entre nós por José Mariano Filho, como por Raul Lino e Ricardo Severo em Portugal, e dentro do qual teria início a atividade de Lúcio Costa, mais tarde não apenas renegada como escamoteada por ele, foi, indubitavelmente, uma das constantes cariocas dos Anos 20. Fielmente dentro do estilo foram realizadas construções

Page 51: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

ESPECIAL: OS ANOS 1920 (2ª PARTE) – HOMENAGEM à ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS E SUA FUNDAçãO EM 1926 | 51

importantes desse período, como o Hospital Gaffrée e Guinle, na Tijuca, da autoria de Hae-ring e Porto D’Avé; a Escola Municipal Soares Pereira, no Maracanã, projeto de José Amaral Nieddermeyer, de 1926, com a sua elegante rotunda com colunas em granito, e, a mais vasta e mais importante de todas, a imensa sede do Instituto de Educação, também na Tijuca, com projeto de Ângelo Brunhs e José Cortez, iniciada em 1928 e terminada dois anos depois, além de um sem número de residências particulares, a mais famosa entre elas, et pour cause, a de José Mariano Filho, no bairro do Jardim Botânico, erguida em 1928 e por ele denominada, em ho-menagem à sua ilustre ascendência pernambucana, Solar de Monjope. Esse exemplar prestigioso do Neocolonial, onde o seu proprietário chegou a reunir um importante conjunto de obras de arte e elementos construtivos verdadeiramente coloniais, adquiridos em demolições por todo o país, foi demolido em 1973 para dar lugar a um condomínio. Como no caso do antigo Arsenal de Guerra e da Casa do Trem, outros prédios autenticamente coloniais da cidade sofreram o flagelo da “neocolonização” então em voga, como a igreja do Convento de Santo Antônio, de 1608, a mais antiga da cidade após o arrasamento do Morro do Castelo, que teve a sua fachada seiscentista lamentavelmente “barroquizada” por um “frei arquiteto”, com acréscimos que só recentemente foram extirpados, em obra, aliás, pessimamente acabada, ou, o mais importante entre todos, o Paço Imperial, sem dúvida a construção de maior relevância histórica do Rio de Janeiro, grotescamente descaracterizada, quando sediava os Correios e Telégrafos, no governo de Washington Luís, e feliz e competentemente reconduzida a seu estilo original por Glauco Campello, em 1985. Outras edificações coloniais, de maneira, na verdade, menos contraditória, foram simplesmente demolidas para dar lugar a um sucedâneo neocolonial, caso da igreja de Nossa Senhora da Lampadosa, perante a qual Tiradentes fez a sua última oração, com projeto de Paulo Candiota, mas isso já nos primórdios dos Anos 30.

Voltando ao Ecletismo, é preciso recordar edifícios marcantes daquilo que podemos cha-mar de arquitetura industrial na cidade, como a sede da Perfumaria Kanitz, tão interessante na fachada como no interior, projeto de Santos Filho, erguida em 1922, na Rua Washington Luís, e a imponente Estação da Leopoldina, obra de Robert Prentice, do mesmo ano, que ficou inacabada, sem a ala esquerda espelhada em relação ao seu corpo central. No início da década de 2000 o arquiteto Glauco Campello apresentou ao INEPAC um excelente projeto para a sua revitalização, que não resultou em nada, estando hoje a tradicional gare em estado quase ruinoso. Sem poder classificar-se no mesmo gênero, mas sendo um exemplo marcante do Ecletismo na arquitetura hospitalar carioca, temos a sede da Cruz Vermelha do Brasil, na praça do mesmo nome, aberta por Pereira Passos no espaço resultante do desmonte do Morro do Senado. Com fachada curva, correspondente a uma das quatro seções que ladeiam o círculo que compõe a praça, foi inaugurada em 1923, com projeto de Leonídio Gomes.

Ainda no Ecletismo, tratando agora das mansões erguidas nessa época para a elite carioca - já que uma análise da arquitetura residencial e comercial popular do período não caberia aqui

Page 52: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

52 | REVISTA DA ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS 2016 • SEGUNDO SEMESTRE 2016

- podemos relembrar, de início, o Palacete Seabra, atual Casa Julieta de Serpa, uma das únicas sobreviventes das muitas que ocupavam a Praia do Flamengo, obra realizada, em estilo perfei-tamente francês, por Gaspar José de Sousa Reis, e terminada em 1921. Muito mais marcante, e com implantação magnífica, é o Palacete Henrique Lage, com seu imenso parque pelo qual é comumente conhecido, na Rua Jardim Botânico, projetado por Mário Vodret e terminado em 1927. Sem o requinte dos dois últimos, vale ainda a pena lembrar a mansão em estilo norman-do da Ilha de Brocoió, projetada por Joseph Gire, construída no apagar das luzes da década de 1920, e depois transformada em residência de praia do Governador do Estado Guanabara, e, a partir de 1975, do governador do Estado do Rio de Janeiro. Do mesmo final de década, 1929, é a admirável Casa Villiot, de Antonio Virzi, na Rua Sá Ferreira, em Copacabana.

Para que não digam que, tal como impios, não tratamos aqui da arquitetura religiosa, ainda que aquela produzida nessa época de República positivista - mas sempre lembrando o que afirmou o genial Joris-Karl Huysmans, ou seja, que a feiura na arte sacra, assim como na arquitetura, só pode ser obra do diabo -, devemos recordar dois exemplares cariocas de igrejas surgidas nesse período de pleno Eclectismo, a horrível igreja, soi disant neobizantina, dos Capuchinhos, na Tijuca, de 1928, onde se encontram, muito mal ambientados o marco de fundação da cidade, a imagem quinhestista do padroeiro e a lápide e os ossos de Estácio de Sá, todos sordidamente despejados do Morro do Castelo, onde deveriam estar até hoje e per saecula saeculorum, e a muito interessante Igreja de Nossa Senhora de Lourdes, em Vila Isabel, do mesmo ano, outra obra do grande Antonio Virzi, autor da sempre pranteada sede do Elixir Nogueira, obra única na cidade e no país, criminosamente derubada em 1970.

Importante marco da verticalização da cidade foi o Quarteirão Serrador, conjunto de sete arranha-céus – para os padrões de época – construídos pelo empresário espanhol Francisco Serra-dor, entre 1925 e 1926, nos terrenos onde outrora se erguera o Convento da Ajuda, demolido em 1911, na Praça Floriano. Como quatro dos edifícios, todos ainda sob uma morfologia eclética e de grande apuro construtivo, abrigassem vastas salas de cinema - o Odeon, o Capitólio, o Império e o Glória – o logradouro passou a ser popularmente conhecido como Cinelândia, nome que praticamente sepultou na memória da população a homenagem anterior e oficial ao Marechal de Ferro. A lamentável demolição de dois desses edifícios, na década de 1980, substituídos por torres de vidro que, na melhor tradição carioca, destruíram toda a volumetria do logradouro, privou a cidade de um conjunto admiravelmente harmônico de edifícios da década de 1920, o que, unido à estúpida demolição do Palácio Monroe, em 1976, edificação que era como que o fecho monumental de toda a Avenida Rio Branco, junto a mais alguns equívocos urbanísticos, retirou definitivamente da Cinelândia a possibilidade de ter a importância arquitetônica que por muito pouco poderia haver conservado.

Outros notáveis marcos da verticalização da arquitetura carioca são a sede do Banco Francês e Italiano, de Viret e Memorat, na Rua da Candelária, do ano de 1924, ou o notável Edifício

Page 53: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

ESPECIAL: OS ANOS 1920 (2ª PARTE) – HOMENAGEM à ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS E SUA FUNDAçãO EM 1926 | 53

Guinle, com a sua muito bela galeria para pedestres em L, na esquina da Avenida Rio Branco com Rua Sete de Setembro, empreendimento da empresa Sousa Cruz, da autoria de Gusmão,

Dourado e Baldassini, inaugurado em 1929.A era dos grandes prédios de apartamentos, no entanto, iniciara a sua longa e vitoriosa

história, sempre sob a égide do Ecletismo, como no Edifício Praia do Flamengo, de Joseph Gire, de 1923 - mesmo ano da inauguração do Copacabana Palace, também de sua autoria, e sua obra mais famosa -, talvez o mais francês dos edifícios residenciais do Rio de Janeiro; como no grandioso Edifício Lage, de 1924, na Rua do Russell, projeto de Ricardo Buffa, de 1924; no Edifício Itaoca, de Anton Floderer e Ronald Prentice, notável pelos seus elementos decorativos em estilo marajoara, na Rua Duvivier, em Copacabana, de 1928; no Edifício Milton, também na Glória, de Dourado Lopes, de 1929; ou no Edifício Victor – originalmente um hotel – na esquina da Rua do Riachuelo com Lavradio, na Lapa, do mesmo ano.

Em toda essa década de 1920 o nome do arquiteto francês Joseph Gire – que, na década anterior, já assinara, junto com Armando Carlos da Silva Telles, o projeto do Palácio Laranjeiras - é presença fundamental nos grandes canteiros de obras cariocas, em hotéis como o já lembrado Copacabana Palace, bem como no Hotel Glória, inaugurado no ano anterior de 1922, para a Exposição Internacional; em sedes de instituições financeiras, como a da Sul América, de 1925, todos dentro de Ecletismo; até chegar, já então em pleno Art Déco, ao arranha-céu que, de certa maneira, como um glorioso coroamento, encerra a década, o edifício A Noite, na Praça Mauá, projeto seu e do brasileiro Elisiário da Cunha Bahiana – autor do Viaduto do Chá, em São Paulo - que, com os seus 22 andares e 102 metros de altura, foi, ao ser inaugurado em 1929, a maior estrutura em concreto armado do mundo.

Nesse mesmo ano, último da década de 1920, a arquitetura carioca, com as sobrevivências de sempre, dava adeus ao Ecletismo, afastava-se gradativamente do Neocolonial e abria o largo caminho para a arquitetura moderna, da qual o Rio de Janeiro foi o principal e mais prestigioso berço no Brasil, isso no mesmo momento em que o país se dirigia para o fim da República Velha, com a Revolução de outubro de 1930, irrevogável término de uma época.

ALEXEI BUENO é poeta, ensaísta e tradutor carioca. Publicou, entre outros títulos, As escadas da torre, Poemas gregos, Livro de haicais, A decomposição de J. S. Bach, Lucernário, A via estreita, A juventude dos deuses, Entusiasmo, Em sonho, Os resistentes, Gamboa, Glauber Rocha, mais fortes são os poderes do povo!, Poesia reunida, O Brasil do século XIX na Coleção Fadel, A árvore seca, Uma história da poesia brasileira, O Nordeste e a epopeia nacional, Machado, Euclides & outros monstros, Cinco séculos de poesia e As desaparições.

Page 54: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos
Page 55: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

C I Ê N C I A / A M E D I C I N A

A medicinA no rio de JAneiro nA décAdA doS vinte

Omar da Rosa Santos

A Medicina tem tido papel de proa no Brasil, principalmente no Rio de Janeiro Capital Federal até1960. Basta lembrar que Pedro Calmon diz que a língua francesa de longo relevo até a metade

do último século, foi introduzida no Brasil não pelos juristas ou diplomatas, mas sim pelos médicos, nos Hospitais; pelos brasileiros que lá iam beber da fonte da Profissão. Assim, Soares de Meirelles imaginou e criou a Academia Imperial de Medicina, tão só nove anos depois da francesa. (1820).

Page 56: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

56 | REVISTA DA ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS 2016 • SEGUNDO SEMESTRE 2016

Esta Academia Carioca, fundada em 8 de abril de 1926 e chega à décima década, buscando, já, rememorar a feição do Rio de Janeiro na época da Fundação. A Medicina tem tido papel norteador na cidade, desde a Academia Médico-Cirúrgica (1808), da Academia Imperial (1829) e da implantação da Faculdade em 1832. Torna-se difícil comentar a Medicina em separado, que sua ciência e sua prática dependiam da divulgação de teses estrangeiras e de instrumental que, na época, tardavam na chegada e no viço. Destarte, os usos advinham de conhecimentos encadeados de anos pretéritos, que seriam (como, demais, noutros campos) fixados do filtro nas avenças na sociedade, nas peculiaridades da nosologia local.

No início do século XX a vida média dos adultos era 47 anos. Foram as descobertas de drogas e métodos terapêuticos; vacinas; condições higiênicas; expansão das capacidades e conceitos à sociedade; criação de fornos de investigação científica; de unidades e sistemas de saúde, etc. que influíram no progresso médico.

No primeiro quarto do século XX as vacinas, sucessivamente contra a tuberculose (BCG, 1925); difteria (1923), tétano (1927) e febre amarela (1935), só mais tarde contra poliomielite, sarampo, rubéola e hepatite, tornaram-se disponíveis, juntando-se à vacinação contra varíola (1796) e a raiva (1885). – A coloração Papanicolau trouxe identificação precoce do câncer genital feminino, hoje prevenível com a vacina contra o Papilomavirus.

A aspirina, disponível a contar de 1920. – A insulina, oferecida por Banting e Best (1921), mudou a feição da diabetes mellitus tipo 1. – A penicilina foi descoberta em 1928 por Flem-ming, Florey e Chain, embora só aplicada à população na 2ª guerra mundial. – As sulfas seriam disponibilizadas na metade da década dos 30. – Os diuréticos mercuriais, descobertos em 1920. – O fenobarbital, pouco antes (1912). Seguindo-se numerosos hipnoanalgésicos, a partir de modificações na fórmula da morfina. – A heparina, desde 1916, veio a ser difundida em seguida. – No tratamento da malária, o antigo quinino foi aperfeiçoado na metoquina e na plasmaquina (1926), principal arma até a eclosão da 2ª guerra. – A estreptomicina, que vinha sendo investigada desde 1916, só viria ao uso corriqueiro depois de 1943. – O hormônio tireoideano (tiroxina) foi sintetizado em 1927, seguido do isolamento de hormônios do eixo hipotálamo-hipofisário. etc...

Merece relevo o comentário da contribuição nacional à Radiologia. Manoel Dias de Abreu fôra a França (1915, donde retornaria em 1923). O único radiologista do Hôtel Dieu foi logo convocado no esforço da 1ª guerra a coube a Abreu, inexperiente, chefiar o serviço. Hábil in-ventor, pôs mãos à obra no campo da “peste branca”. Sua criação foi a fotografia dos pulmões (abreugrafia) que iria constituir (até há 25 anos, entre nós) notável arma no controle da tuber-culose, desde a década dos trinta. O natalício de Abreu (4 de janeiro) foi destinado por lei a “dia nacional da abreugrafia”, prática amplamente acolhida na Alemanha e em outros países.

Os antigos hospitais alguns de desde a Colônia (H. do Exército; Lazareto Frei Antonio; Santa Casa; V. O.Terceira de S. Francisco da Penitência; Asilo dos Mendicantes, depois H. S. Francisco de Assis), haviam sido acrescidos em número com o H. Imperial dos Alienados (1852),

Page 57: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

ESPECIAL: OS ANOS 1920 (2ª PARTE) – HOMENAGEM à ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS E SUA FUNDAçãO EM 1926 | 57

a Policlínica Geral do R.J. (1882); e, à face das condições de pobreza, alcoolismo e alienação mental, diversos estabelecimentos privados: C. Saúde Dr. Abílio, Dr. Eiras, Policlínica de Bota-fogo, São Zacarias, e públicos: Maternidade (1904), Pronto Socorro Central (1907), Alienados do Engenho de Dentro, S. Sebastião no Caju, criando-se rede público-privada. – Nos anos 20 vieram os Hospitais da V.O. Terceira, na Tijuca; C. Saúde São José, Colônia de Leprosos de Curupaiti (1929) etc. Notável iniciativa foi a de Gaffrée e Guinle ao oferecer à população grande Hospital, na Tijuca, 1929, (hoje da Uni-Rio) e uma rede de postos de saúde projetada para doze bairros, para fazer frente às sífilis, gonorréia e outras doenças venéreas. – A Dermatologia nasceu (1912) das endêmicas lepra e sífilis. Gabizo e depois Fernando Terra e Eduardo Rabello, junto a clínicos e investigadores (A. Lutz, W. Machado, Gaspar Vianna, etc.) fizeram da Policlínica Geral destacada fonte de formação de especialistas, ainda em esforçada atividade.

Também pelos anos 20 os contrastes hidro e lipossolúveis radiográficos, ensejaram o surgi-mento de gabinetes radiológicos, aquele de Alvaro Alvim (mártir da Radiologia). No Rio, haviam sido implantados os serviços de imagens na Santa Casa (1912) onde a Faculdade ofereceu o primeiro curso, em 1916 (há exatos 100 anos) por Duque Estrada. – Egas Moniz, em Portugal, fora proposto por cinco vezes para o Nobel, desde 1928, até a premiação (1949) em razão da introdução a angiografia cerebral. – Tudo amadurecido e praticado no correr dos anos vinte.

Page 58: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

58 | REVISTA DA ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS 2016 • SEGUNDO SEMESTRE 2016

A questão do Prêmio Nobel nos conduz a consideração particular, relativa a Carlos Chagas (1879/1934) dedicado pesquisador da malária desde 1912, que dirigiu-se a Lassance (1907) onde identificou, de forma primorosa, o curso da tripanosomiase americanosa, desde identificação e da vinculação do Trypanosoma cruzi na etiologia, até o curso clínico, o diagnóstico, as complicações, a anatomopatologia e a epidemiologia da enfermidade (que Miguel Couto cognominaria Doença de Chagas). Fez histórica conferência na Academia Nacional em abril, examinada e aprovada na sessão de 26.10.1910. Mereceu duas indicações para o Nobel (1913 e 1921), quando (há relatos) foi escolhido embora não galardeado, quiçá por enfrentar acerba oposição no Brasil, pois havia contraditores, que não consideraram o agente patogênico. – Contudo, fato é que a Academia Sueca negou a concessão do Prêmio, à Medicina, seis vezes entre 1915 e 1925. Assim, quem sabe (?) perdeu o Brasil incluir algum nacional na galeria ilustre. Aliás, houve duas outras oportunidades: Cesar Lattes, com “méson pi” em 1947, e Peter Medawar com estudos sobre a imunologia dos transplantes em 1960. Carlos Chagas tem merecido mais de uma manifestação de reconhecimento póstumo. O Rio chegara à Suécia em 1921...

Chagas, que viria a suceder Oswaldo Cruz (1917) na direção de Manguinhos teve pro-fícua gestão ali, onde plantou pujante Escola de Investigadores: Ezequiel Dias, Aragão, Rocha Lima, Adolpho Lutz, Artur Neiva, Mac Dowell, Evandro Chagas, Parreiras Horta, seguidores do espírito pioneiro de Oswaldo Cruz. Seu filho Carlos Chagas Filho veio desempenhar im-portante papel na investigação científica nacional, implantando o Instituto de Biofísica (UFRJ) que vem gestando numerosos pesquisadores de escol. Presidiu, longânimemente, a Academia de Ciências do Vaticano, até falecer já em 2000, após sustentar a chama de estudos originais desde estudante na década dos vinte. O primogênito, Evandro, faleceu jovem, não sem antes cintilar na área das enfermidades infectoparasitárias; seu nome patroniza excelente Hospital em

Page 59: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

ESPECIAL: OS ANOS 1920 (2ª PARTE) – HOMENAGEM à ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS E SUA FUNDAçãO EM 1926 | 59

Manguinhos. Contudo, releva não preterir a pujante vida científica da Escola de Manguinhos pela década dos vinte.

A década trouxe à tona a necessidade de ampliar a prevenção, a assistência e a reabilitação das enfermidades à população. O Sindicato dos Médicos, de 1927, tem, entre seus próceres, figuras notáveis da Medicina carioca (Carlos Seidl, primeiro Presidente; Fernando Magalhães, Cumplido de Santana, Rolando Monteiro). – O primeiro Congresso Médico Brasileiro (Con-gresso dos Práticos) no Centenário da Independência (1922), marcou a evolução da Medicina no Rio. – A Lei Eloy Chaves (1933) viria estimular: tanto às campanhas (v.g. Malária e Febre Amarela) – apoiadas na Fundação Rockfeller – desaguando no Serviço Nacional da Malária e no DENERU, a partir da criação do Departamento Nacional de Saúde Pública; quanto à rede da Medicina Previdenciária (“não há Previdência sem Assistência, como não há Regimentos de Cavalaria sem cavalos” – Fioravanti Di Piero, 1938), que, no Rio de Janeiro [Capital], fulgiu, em consequência, nos mais de 10 grandes nosocômios. – Na década dos 30 recaíram os efeitos sociais nos programas de cuidados às endemias, às epidemias, às doenças mentais, às degenerativas, ao câncer etc., além da Secretaria de Fiscalização da Medicina, Saúde dos Portos, Bioestatística, Águas e Esgotos, futuramente (1953) integrados no Ministério da Saúde.

A década dos vinte fulgurou no Rio na pessoa de cirurgiões Eméritos, que estabeleceram verdadeiras Escolas Cirúrgicas, de que existem hoje ainda herdeiros operantes: Vamos mencio-nar, por breve, o Príncipe dos Cirurgiões, Brandão Filho; Fernando Magalhães, (obstetrícia). J. Maurity Santos e Alfredo Monteiro (que participou da Força Expedicionária nas duas Guerras). – Quanto à área clínica, sintetizêmo-la na figura ímpar de Miguel Couto, Professor Catedrático até 1934, Presidente da Associação Brasileira de Educação desde 1926, Presidente da Academia Nacional de Medicina de 1913 até 1934 (perpétuo), Chefe de Serviço na Santa Casa]. Político inatacável, pelo D. F. e pelo Estado do Rio. Seu nome está perenizado de várias maneiras no Rio de Janeiro. Dos seus pupilos viriam a vigorar as especialidades clínicas. – Outras figuras notáveis foram Azevedo Sodré, Rocha Faria, Aloysio de Castro, Oscar Clarck, Austregésilo e Rocha Vaz, chefes de escola da maior envergadura.

A Educação Médica no Rio experimentou, nos vinte, profícuo impulso. A antiga Faculdade se transferira em 1918, da Misericórdia para a Praia Vermelha, em majestoso prédio. – Em 1925 seria fundada a Faculdade Fluminense de Medicina (UFF) – Em 1912 fora fundada a Faculda-de Hanehmaniana, então equiparada às congêneres e depois federalizada (a quarta Faculdade, Escola de Medicina e Cirurgia, no país). A Faculdade de Ciências Médicas (hoje na UERJ) seria estabelecida nos anos 30. – Portanto, da década dos 20, do Rio derramavam-se cerca de 600 médicos a cada ano, que estabeleceram arraiais hipocráticos por todo o Brasil. Os Serviços Universitários foram fontes robustas para toda a nação. O Instituto da Livre-Docência, desde a Reforma Rivadávia de 1915, angariou inúmeros talentos para a Universidade (que foi criada em 1925), forja dos inúmeros Professores que, até os anos 80, seriam os chefes-de-fila por todo

Page 60: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

60 | REVISTA DA ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS 2016 • SEGUNDO SEMESTRE 2016

o país. O Rio era o centro da formação médica na década dos vinte. A turma de 1929 gerou Professores, Cientistas, Políticos, Literatos, Generais, Empresários, Jornalistas... até Médicos...

Enfim as relações entre a Medicina e a Literatura podem ser retiradas das listas de integrantes da Academia Nacional de Medicina (hoje mais de 650) e da Academia Brasileira de Letras (hoje cerca de 230). – O primeiro é o “Divino Mestre”, Francisco de Castro, o primeiro imortal depois do estabelecimento da Academia Brasileira, que consagrou a tese de serem, “as letras médicas, também letras... e das boas”. Desde então, Roquette-Pinto, Constâncio Alves, Clementino Fraga Senior, Claudio de Souza, Ivan Lins, M. Scliar, etc. Quatro são Patronos nas letras: Manoel Antonio de Almeida, Maciel Monteiro, Gonçalves de Magalhães e Laurindo Rabelo. A Academia Nacional de Medicina entrelaçou-se na de Letras, nas pessoas de: F. de Castro, Oswaldo Cruz, Aloysio de Castro, Fernando Magalhães, Miguel Couto, Miguel Osório, Antônio Austregésilo, Afrânio Peixo-to, Peregrino Junior, Mauricio de Medeiros, Deolindo Couto, Silva Melo, Carlos Chagas Filho e Ivo Pitanguy. Contam-se, pois, 25 ou mais liames que correspondem a mais de 10% dos Imortais nas Letras. – Diga-se que seis médicos: Aloysio Castro (2 vezes), F. Magalhães, Miguel Osório, A. Austregésilo, Afrânio Peixoto e Peregrino Junior ocuparam por sete mandatos a curul presidencial literária por um total de 14 anos dos 120 (cerca de 11%) da vida da Academia Brasileira.

Igualmente esta Academia Carioca de Letras tem acolhido não poucos médicos desde 1926 incluindo Acadêmicos de Medicina: Dagmar Chaves, Magalhães Gomes, Geraldo Halfeld... além de outros esculápios: Luiz Castro e Souza, Henrique Lagden, Jorge Picanço Siqueira, Caruso Madalena.

Quem traz este relatório, quiçá mal merecidamente, vem ocupando a Cadeira 17 na Academia Nacional de Medicina e a 23ª aqui. Esta pode ser chamada a “cadeira dos médicos”, patronímica do pioneiro da Geriatria e notável cronista do Rio, Vieira Fazenda, ocupada sucessivamente por Carlos Silva Araujo, Olavo Dantas e Halfeld. Orgulha-me haver feito contubérnio na Academia Nacional de Medicina com meu antecessor, Fioravanti Alonso Di Piero (da turma de 1929), prógono da Medicina Previdenciária, cultor do Jornalismo (Gazeta de Notícias) e Mestre da Clínica Médica Propedêutica na Capital Federal; único Acadêmico a varar o Centenário (2004) na plenitude, cujas hermas ornam o saguão da ANM e do Hospital Universitário Gaffrée e Guinle, que frequento há já 57 anos.

Obrigado pelo convite. Se me alonguei é porque não aprendi o segredo da brevidade. Vale!

OMAR DA ROSA SANTOS nasceu no Rio de Janeiro, é escritor, médico e professor. Entre artigos, teses, monografias e publicações literárias já produziu perto de 800 trabalhos. Membro--titular na Cadeira 23 da Academia Carioca de Letras, membro-titular na Cadeira 17 da Academia Nacional de Medicina e Prof. Emérito na UNI-RIO.

Page 61: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

ESPECIAL: OS ANOS 1920 (2ª PARTE) – HOMENAGEM à ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS E SUA FUNDAçãO EM 1926 | 61

Page 62: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos
Page 63: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

eSpeciAl ii:o eSporte e A culturA

Page 64: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos
Page 65: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

quem inventou o eSporte? *

Carlos Eduardo Novaes

Lembro como se fosse anteontem: o professor Mattos, mestre em Educação Física do Colégio Zaccaria, na minha adolescência, reunindo a turma no pátio e anunciando: – Santos Dumont

inventou o avião; Graham Bell inventou o telefone e quem inventou o esporte? – Girou o olhar pela garotada à procura de uma resposta e não viu uma única boca se abrir.

Diante do silêncio, um aluno mais esperto levantou o braço: – Foi aquele barão que não lembro o nome... – arriscou.

– Coubertin – acrescentou o mestre. – Não! Ele apenas inspirou as Olimpíadas modernas.

Novamente fez-se silêncio e o professor Mattos, saboreando a igno-rância geral, mandou:

– Quem inventou o esporte... foram as guerras!

*Texto extraído do livro A invenção dos esportes – crônicas olímpicas, Editora Moderna, 2014.

Page 66: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

66 | REVISTA DA ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS 2016 • SEGUNDO SEMESTRE 2016

A afirmação deu um nó na cabeça da garotada. Esporte não rima com guerra!Pedimos uma explicação e o mestre viajou à Pré-história para nos dizer que os fundamentos

iniciais do esporte estavam ligados às ações do homem de correr, saltar, nadar e lançar objetos a distância.

– é provável – acrescentou – que a primeira competição entre nossos antepassados tenha surgido de um desafio: “Vamos ver quem chega primeiro àquela árvore”. Mas – afirmou ele de dedo em riste –, o desenvolvimento do esporte veio com as guerras. Foram os gregos os primeiros a perceber a necessidade de preparar seus homens com exercícios físicos para as contínuas batalhas que marcaram a Antiguidade. Dos exercícios (coletivos) surgiram as disputas, as competições, e daí para a criação dos Jogos Pan-Helênicos (depois chamados Olímpicos) foi um pulo ou um salto ou uma corrida.

– A primeira Olimpíada foi realizada em 776 a.C. – continuou ele –, mas seus registros se perderam na poeira dos tempos. Só restou a informação de uma corrida de 192,27 metros vencida por um cozinheiro, Coroebus de Elida, que acabou entrando para a História e ganhando uma estátua não por seus quitutes, mas por ser considerado o mais antigo campeão olímpico.

A distância da prova – 192,27 metros – intrigou a turma, e o colega mais esperto perguntou ao mestre a razão dos centímetros a mais.

– Os gregos diziam – respondeu o professor, do alto de sua autoridade – que a distância correspondia a 600 pés de Héracles (Hércules para os romanos), aquele herói mitológico cujas façanhas, segundo a lenda, estavam ligadas a origem dos Jogos.

Os Jogos Olímpicos da Antiguidade eram realizados a cada quatro anos, como ocorre até hoje, disputados apenas por cidadãos livres que competiam completamente pelados. Mulheres, nem nas arquibancadas.

O professor perguntou: – Lembram da Guerra do Peloponeso?Ninguém lembrava. éramos péssimos alunos de História Geral.– Pois bem – continuou ele –, essa guerra resultou da rivalidade entre as duas maiores

cidades-estado da Grécia Antiga, Atenas e Esparta. Uma guerra desastrosa – entre torcidas? – que acabou por enfraquecer o mundo helênico, abrindo caminho para o domínio macedônio e, dois séculos depois, para o Império Romano.

O esporte ainda teve uma sobrevida em Roma até o ano 393 d.C., quando o impera-dor Teodósio I se converteu ao cristianismo, após curar-se de grave enfermidade, e pôs fim às festividades ditas pagãs em solo romano, entre elas os Jogos Olímpicos. Tarde demais, contudo. Apesar de ter atravessado uma fase de estagnação na Idade Média, a semente do esporte organizado, lançada pelos gregos, não parou de dar frutos e alimentar as emoções do planeta.

No fim de sua aula teórica, o professor Mattos nos jogou no colo uma informação que bem revela as voltas que o mundo dá.

Page 67: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

ESPECIAL II: O ESPORTE E A CULTURA | 67

– O esporte tornou-se tão importante que durante a realização dos Jogos na Grécia... as guerras eram interrompidas!

Ao que o aluno mais esperto retrucou:– Não seriam as guerras interrompidas porque os soldados estavam competindo?Vai saber. Foi a vez de o mestre permanecer em silêncio.

CARLOS EDUARDO NOVAES é cronista, romancista, contista e dramaturgo. Publica seu primeiro livro – O caos nosso de cada dia – em 1974, fruto de seu trabalho no Jornal do Brasil, onde trabalha por 13 anos e, a partir daí, tem mais de 30 obras editadas, sendo o humor uma das principais plataformas de sua escrita. No campo teatral presidiu a Sociedade Brasileira de Autores e escreveu inúmeras peças, entre elas, WM, na boca do túnel, Confidências de um esper-matozóide careca e O tiro que mudou a História.

Page 68: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos
Page 69: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

“eu Sou AméricA, com muitA HonrA.”

Arnaldo Niskier

Quando garoto, morando no bairro do Riachuelo, por influência dos meus irmãos mais velhos, escolhi, inicialmente, ser torce-dor do Fluminense F. C. Era tricolor, como poderia ter sido

vascaíno ou botafoguense. Ao competir nos jogos de botões, carimbava o nome dos jogadores do Flu da época nas peças que movimentava com certa competência.

Robertinho, Gualter e Haroldo; Pascoal, Telesca e Bigode; Pedro Amorim, Ademir, Careca ou Simões, Orlando e Rodrigues. Esse era o meu time de botões, que levava para a escola, e defendia ardentemente. Em 1946, ano do primeiro ginasial, o Fluminense alcançou o título inédito de supercampeão, sendo seu treinador o famoso e gordo Gentil Cardoso. Era famosa a sua frase à diretoria: “Deem-me o Ademir e eu lhes darei o campeonato”. Não deu outra.

Page 70: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

70 | REVISTA DA ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS 2016 • SEGUNDO SEMESTRE 2016

A DESCOBERTA DO AMÉRICA

Depois de dois anos morando em São Paulo, meu pai resolveu retornar com a família para o Rio de Janeiro. Os negócios não justificavam a permanência na capital paulista e, também, o clima foi fator decisivo. Com nove anos de idade, sofri uma séria crise de reumatismo que me deixou uma semana de cama, sem poder mexer com a perna esquerda. Sofri dores terríveis. O médico que me atendeu culpou o clima úmido e mais as minhas extravagâncias quando chovia, o que era uma constante naquela região do Jardim Paulista. Gostava de ficar na porta de casa, com os pés na água, recolhendo latinhas e outros objetos que desciam na enxurrada. O resultado não foi dos melhores.

O meu irmão Odilon, que tinha ficado no Rio, por ser funcionário concursado do Banco do Brasil, encarregou-se de procurar um apartamento para a família. Foi feliz na escolha, que recaiu sobre o prédio novinho, na rua Haddock Lobo número 290 (Edifício Sisena), apartamen-to 503, que ficava praticamente de fronte ao famoso Instituto La-Fayette, com suas palmeiras imperiais, que passaram a ser uma vista permanente extremamente agradável.

Garoto ainda, com dez anos de idade, sonhava que, um dia, quem sabe, iria frequentar aquela linda escola e que, ainda por cima, tinha uma Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Ali nos instalamos, pai, mãe e quatro irmãos (o Sylvio ficou em São Paulo, no primeiro ano do curso de engenharia do Mackenzie College, com a promessa jamais cumprida de voltar ao Rio quando obtivesse a indispensável transferência).

Assim começamos a nossa vida no bairro da Tijuca, ao qual nos afeiçoamos muito. Foram 16 anos relativamente felizes, convivendo com a classe média carioca, predominante na região.

PELADAS NA MANOEL LEITÃO

O prédio em que morávamos era quase esquina da rua Manoel Leitão. Naturalmente, fiz amizades naquela rua, que tinha uma enorme vantagem: não havia saída, acabando numa imensa escadaria que servia aos prédios da localidade. Ali conheci os primeiros amigos da nova etapa no Rio: Guilherme, Amauri, Sérgio Alais e Paulo Fabião. Com eles, conversava e jogava futebol no paralelepípedo, com um dos gols balizados pela escadaria (do outro lado, eram duas pedras removíveis quando aparecia algum automóvel incômodo).

A bola era de meia ou de borracha (um luxo), mas a gente jogava descalço e dificilmente se saía da pelada sem alguma contusão. Lembro-me de passar um longo tempo com dor no joanete esquerdo, machucado por uma pisada de mau jeito. Ralar a pele, então, era coisa comu-níssima. Mas os jogos eram divertidos e certamente incomodavam os mais velhos. Jogávamos ao entardecer, somente parando mesmo quando já não se enxergava a bola. éramos os atletas da Manoel Leitão.

Page 71: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

ESPECIAL II: O ESPORTE E A CULTURA | 71

PRIMEIRAS BRAÇADAS

Um dia, conversando com o Paulo Fabião, surgiu a ideia de procurar o América Futebol Clube, ali perto, que tinha uma piscina de 20 metros que poderia ser utilizada para a nossa ini-ciação nesse esporte. O pai dele era oficial de Marinha e poderia pagar a inscrição no clube. Não era o meu caso. Então, apelei para o esquema “sócio-atleta”, que era o menino que se dispunha a disputar competições oficiais pelo clube (desde que tivesse qualidades, é claro).

Nos idos de 1948, obtive a carteirinha vermelha de sócio-atleta e comecei a treinar no “tanque” de Campos Sales. Era uma das poucas piscinas de 20 metros existentes no Estado. Essa dimensão esdrúxula é porque não havia espaço para fazer a piscina de 25 metros, naquele canto em que confluíam as ruas Campos Sales e Martins Pena.

Aprendi a nadar na raça, sendo jogado na água pelo treinador Chagas, da Marinha de Guerra, que era auxiliar do seu colega Leônidas da Silva, treinador principal e que nadara pelo Brasil na Olimpíada de 36, na Alemanha (revezamento). Levei um tremendo susto da primeira vez, mas aos poucos fui me acostumando, até aprender mesmo a nadar, o que aconteceu seis meses depois do primeiro “caldo”. Tive uma dificuldade com as batidas de perna. Elas eram des-conexas, sei lá porque, e isso exigia um esforço adicional de batidas de tábua, a que me dediquei com incrível afinco. Já então o meu treinador era o Leônidas e depois o João Barbalho, quando comecei a disputar as primeiras competições, primeiro nas Olimpíadas internas do Clube, depois em piscinas oficiais como as do Fluminense, Vasco, Guanabara, Botafogo, Santa Teresa etc.

O meu estilo preferencial foi o nado livre (crowl), em que me esmerei durante os três anos em que me dediquei ao esporte. Treinava todas as tardes, quando voltava do colégio e ia para os treinos, sem conhecer inverno ou verão. Não podia deixar de treinar um dia sequer, para não ser superado pelo Fabião ou pelo Elso, que disputavam comigo. às vezes, o frio era desumano, mas os três estavam lá, firmes, treinando sem parar.

De uma feita, voltei para casa em companhia do treinador Leônidas. Ele pegava o ônibus no ponto da rua Haddock Lobo e aproveitei para conversar um pouco com ele. “O senhor acha que estou progredindo?” Com a resposta afirmativa, arrisquei mais um pouco: “Será que um dia serei um bom nadador?” Ele então confessou que estava me preparando para, quando chegasse à categoria de aspirante (fui juvenil júnior e juvenil sênior) seria um bom nadador de fundo. “Você tem um fôlego muito bom!” Então me desdobrei nos treinos.

A PRIMEIRA MEDALHA

Até que chegou o dia da primeira competição no América, valendo medalha. Eram 20 metros de corrida. Tirei o 2º lugar e ganhei uma bonita medalha. Radiante, naquele domingo, voltei para casa, a fim de mostrar o laurel para a família, toda reunida no almoço dos domingos.

Page 72: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

72 | REVISTA DA ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS 2016 • SEGUNDO SEMESTRE 2016

Foi uma festa quando eu mostrei a medalha e afirmei que tinha tirado o 2º lugar, na minha primeira competição. Já na hora da sobremesa, o meu irmão Júlio lembrou de perguntar quantos atletas tinham disputado a prova. Quando eu disse a verdade, ou seja, tinham sido só dois, levei uma baita vaia. “Segundo com dois?” Expliquei que era uma façanha, pois há casos em que o nadador mal chega ao outro lado da piscina – e eu, pelo menos, havia completado o percurso. A vaia diminuiu de intensidade.

BOLAS DE GUDE

Nos primeiros tempos de Tijuca, dediquei-me a um esporte invejável: bola de gude. Não que desprezasse o pião ou á pipa, ambos também do meu agrado. Mas é que virei uma fera em matéria de pontaria na bola de gude e isso me valeu muito, nas disputas do bairro.

A rua Manuel Leitão ainda tinha terrenos baldios, alguns dos quais confrontavam com as áreas do Instituto La-Fayette – Departamento Preliminar. Colhiam-se frutas nesses terrenos, especialmente cajá, sapoti e jambo. às vezes, invadíamos o próprio La-Fayette para colher ca-rambolas, mas aí já era transgressão e se fôssemos apanhados podia dar confusão.

Nesses terrenos, era possível também demarcar espaços para jogar bolinhas de gude, esporte que requer firmeza na mão e um olhar de especial precisão. Antes de frequentar o América, foi esse o esporte da minha preferência. Aliás, com uma razão clara: ganhava sempre dos meus adversários. Não usava óculos, mas enxergava longe. Com isso, fui acumulando bolinhas em casa, trazendo sempre um número cada vez maior para ampliar a minha coleção.

O que despertava admiração nos meus irmãos eram os preciosos “olhinhos”. Eram bolas de gude lindíssimas, feitas de um vidro trabalhado, que pareciam verdadeiras obras de arte. Ganhei muitas delas às vezes até sem lhes dar sequer um teco, nas apostas paralelas. Cheguei a ter em casa cerca de 350bolas de gude (já imaginaram o que isso representa?). à medida que fui crescendo e me dedicando mais a outros esportes, foi decrescendo o interesse pelas bolas de gude. Comecei a dar aos amigos aquelas preciosidades, até ficar somente com uma pequena e belíssima coleção de “olhinhos”, com a qual me mudei para a rua Dr. Satamini. Guardei essas preciosidades até o momento em que casei e tive que abrir mão da relíquia. Assim como da minha coleção de chapinhas (outra moda da gurizada da época).

BOM DE BOLA

Em março de 1946, meu pai foi obrigado a escolher uma escola para colocar a mim e a minha irmã RacheI. Fui com ele primeiro ao Instituto La-Fayette, onde fomos recebidos na Secretaria. Fiquei impressionado com a beleza e o tamanho da escola. O velho Marcos, quando soube do preço das mensalidades, levou um susto. “Não tenho dinheiro para isso!”, foi a sua exclamação.

Page 73: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

ESPECIAL II: O ESPORTE E A CULTURA | 73

Dali partimos para a segunda opção: o Colégio Vera Cruz, que ficava também na rua Haddock Lobo, numa imensa área, defronte à rua Afonso Pena. Os preços eram bem mais camaradas e suportáveis pelo magro bolso do meu pai. Ele nos inscreveu para o início das aulas, que foi logo depois. Fui aprovado em primeiro lugar no “Admissão”, uma espécie de 5ª série de um ano de duração.

Foi o início de uma carreira de oito anos no Vera Cruz, ao qual me afeiçoei de verdade. Fiz o admissão, os quatro anos do ginásio e mais os três do científico. Sempre em primeiro lugar nas turmas respectivas. Nunca passei com média global inferior a nove. Do 2º para o 3º ano, na turma 26, a minha média global bateu o recorde: 9,6. Só não foi melhor porque o professor e maestro Canuto, que dava Canto Orfeônico, era um pouco descuidado nas notas. Ele reunia grupos de cinco alunos e mandava cantar a primeira estrofe de um dos hinos clássicos. Aí apon-tava o dedo e distribuía as notas: 8,7, 8,9 e 8. Não dei sorte algumas vezes e ficava com 8, o que reduzia a minha média global, onde havia muitas matérias com 10 o ano todo, principalmente em Português e Matemática.

O fato curioso é que, mesmo sendo o primeiro aluno da turma, chamado de CDF pelos colegas, não deixava de ser bom de bola. Também jogava todos os dias. Colocava o uniforme cáqui do colégio, o sapato tank colegial, e ia a pé para a escola, cedo, a tempo ainda de jogar uma pelada antes do início das aulas. Em geral, entrava na sala de aula vermelho, suado, quase esbaforido, mas feliz pelos gols assinalados, no campo de terra do colégio, que era muito espaçoso na parte dos fundos. Era um terreno em nítido desnível, uma parte mais alta que dava para a rua Barão de Itapagipe. Mas tinha um luxo para aquela época: balizas de madeira, demarcando os gols, o que facilitava a artilharia.

Lembro-me de uma ocasião em que, por pura estupidez, um colega chamado Ronaldo me deu um pontapé no joelho esquerdo, praticamente criando uma pequena fratura que me acompanhou durante muito tempo. Coisas da pelada.

Havia também as aulas de Educação Física, a cargo do professor Altair. Ele era alto, boni-tão, e berrava com tudo e com todos. Não usava apito. As aulas consistiam em jogo de futebol, uma turma contra a outra, mas então de calção e tênis. Lembro-me de jogos memoráveis e gols inesquecíveis. Um deles, de cabeça, quando me deram um passe pelo alto e dei de coco, de costas, pegando o goleiro adversário desprevenido. Fui muito aplaudido. Jogava sempre pela esquerda, valendo-me da canhota potente que assustava os goleiros.

Cheguei a integrar a seleção do Colégio Vera Cruz. Jogamos uma vez no La-Fayette (perde-mos feio) e no Colégio Baptista (ganhamos bem). Mas esses jogos não eram frequentes. Faltava sempre condução para levar os atletas. Vez por outra, alguém nos levava a jogar no Colégio de São Bento, no centro da cidade. Também num espaço de terra batida, onde havia belas peladas aos sábados, com especial permissão dos padres beneditinos que comandavam a escola. Só não podia haver bagunça, nem dizer nome feio. Aliás, no São Bento, cheguei também a jogar no seu

Page 74: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

74 | REVISTA DA ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS 2016 • SEGUNDO SEMESTRE 2016

magnífico ginásio. Foi numa partida de basquetebol, já então defendendo as cores do América (juvenil). Penso que, naquela época, o colégio era dirigido por D. Lourenço de Almeida Prado, extraordinário educador, de quem depois me tornei um bom amigo, nas andanças do Conselho Estadual de Educação do Rio de Janeiro e depois no Conselho Federal de Educação. Foi uma figura exemplar, que soube conciliar o humanismo com os novos tempos do avanço científico e tecnológico.

Depois de muitos anos, encontrei também, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da então Universidade do Distrito Federal (hoje, Uerj), o meu amigo de turma do Colégio Vera Cruz Eugênio Siqueira Sut. Ao me abraçar, já oficial do Exército, perguntou ao seu circunstancial professor de Complementos de Matemática, no curso de Pedagogia: “O senhor ainda torce pelo Fluminense?” Era a lembrança que havia ficado em seu espírito, dos tempos ginasianos. Precisei dar algumas voltas e explicar ao então meu aluno que virei América, não pelo prazer de virar a casaca, que costuma ser condenável, mas porque eu havia passado a frequentar o América e a torcer primeiro pelos seus esportes amadores, depois o futebol seria uma consequência inevitável. Nunca mais mudei.

Page 75: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

ESPECIAL II: O ESPORTE E A CULTURA | 75

Nunca esqueço do futebol de campo, no gramado de Campos Sales. Peladas e treinos do infanto juvenil. Tinha também o América Júnior e o Maguari, meio piratas, que disputavam par-tidas sem compromisso, fora do clube. Estava com 15 anos e uma vontade imensa de ser jogador de futebol. Quanto mais me elogiavam, mas crescia o apetite. Era o sonho de um menino pobre.

Para disputar o campeonato juvenil do ano seguinte, o jeito foi subir com o infanto. Che-guei a treinar algumas vezes na meia-esquerda e na ponta esquerda do juvenil do América, pois era titular do infanto juvenil. O treinador era o Seu Freitas, sogro do meu amigo Max Haus.

Jogava de médio esquerdo, meia-esquerda ou ponta esquerda, dependendo das circuns-tâncias. Tinha uma incrível velocidade, que me fez depois ser campeão dos 100 metros rasos da Marinha de Guerra (ao tempo em que fiz, na Ilha das Enxadas, o meu serviço militar).

O time juvenil do clube foi desmantelado, por uma saída maciça para o Flamengo. Desse grupo fazia parte o Zagalo.

Infelizmente, para mim, embora com ordem de voltar sempre, tive que interromper os treinos, que eram à tarde. Precisava trabalhar, para pagar os meus estudos e ajudar minha mãe. Fui empregado num escritório de joias, das 14 às 19 horas, não podendo mais treinar no juvenil. O futebol talvez tenha perdido um bom jogador, mas não me arrependo do curso da minha vida. Sobretudo porque me permitiu continuar amando o América, clube que nas décadas de 10, 20 e 30 chegou a ser uma das três maiores forças do futebol brasileiro. O AFC foi sete vezes campeão carioca.

Hoje, existe o América em muitas cidades brasileiras, como foi o sonho de Belfort Duarte (Acre, Alagoas, Amapá, Rio Grande do Norte, Ceará, Pernambuco, Amazonas, São Paulo, Minas, etc). Todos despertando a mesma e forte paixão. Temos torcedores ilustres, como o Romário, filho do Seu Edevair. E tivemos outros, como os Acadêmicos Sérgio Correa da Costa e Marques Rebello, o Senador Mário Martins e a escritora Zora Seljan. Sem dúvida, um clube que merece respeito.

ARNALDO NISkIER é professor, escritor, jornalista e membro da Academia Brasileira de Le-tras, com uma vasta obra dedicada à Educação, onde ocupa um lugar de destaque. Foi Secretário Estadual de Cultura do Rio de Janeiro em 2004/2005. Também trafega com desenvoltura no universo infantil e juvenil, inclusive no teatro, onde encenou diversas peças. Já recebeu mais de 50 condecorações e distinções, além de inúmeros prêmios, entre eles o Gustavo Capanema, o Alfred Jurzikowski, o Golfinho de Ouro, o Adolpho Bloch e o Clio de História da Educação.

Page 76: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos
Page 77: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

poemAS

João Cabral de Melo Neto

O TORCEDOR DO AMÉRICA F. C

O desábito de vencernão cria o calo da vitória;não dá à vitória o fio cegonem lhe cansa as molas nervosas.Guarda-a sem mofo: coisa fresca,pele sensível, núbil, nova,ácida à língua qual cajá,salto do sol no Cais da Aurora.

ADEMIR DA GUIA

Ademir impõe com seu jogoo ritmo do chumbo (e o peso),da lesma, da câmara lenta,do homem dentro do pesadelo.

Ritmo líquido se infiltrandono adversário, grosso, de dentro,impondo-lhe o que ele deseja,mandando nele, apodrecendo-o.

Ritmo morno, de andar na areia,de água doente de alagados,entorpecendo e então atandoo mais irrequieto adversário.

Page 78: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

78 | REVISTA DA ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS 2016 • SEGUNDO SEMESTRE 2016

A ADEMIR MENESES

Você, como outros recifenses,nascido onde mangues e o frevo,soube mais que nenhum passarde um para o outro, sem tropeço.

Recifense e, assim, divididoentre dois climas diferentes,ambidextro do seco e do úmidocomo em geral os recifenses,

como você, ninguém passoude dentro de um para o outro ritmonem soube emergir, punhal, do lento:secar-se dele, vivo, arisco.

O FUTEBOL BRASILEIROEVOCADO DA EUROPA

A bola não é a inimigacomo o touro, numa corrida;e embora seja um utensíliocaseiro e que se usa sem risco,não é o utensílio impessoal,sempre manso, de gesto usual:é um utensílio semivivo,de reações próprias como bicho,e que, como bicho, é mister(mais que bicho, como mulher)usar com malícia e atençãodando aos pés astúcias de mão.

(in Museu de tudo, 2009, Alfaguara)

JOÃO CABRAL DE MELO NETO (1920-1999), poeta, diplomata, acadêmico (ABL) nascido no Recife, tem mais de 30 livros publicados, inúmeras traduções e premiações. O professor, igualmente poeta e acadêmico (ABL) Antonio Carlos Secchin, também membro da Academia Carioca de Letras, é um profundo estudioso da obra de Cabral, com vários volumes dedicados àquele que é um dos maiores ícones da poesia nacional.

Page 79: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

ESPECIAL II: O ESPORTE E A CULTURA | 79

Page 80: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos
Page 81: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

o corpo e o futebol

Leonel Kaz e Paulo da Costa e Silva

É preciso entender porque o futebol virou uma linguagem singular, surgida, em sua origem, no que restou ao escravo: o próprio corpo e a rua

“O brasileiro inventou o futebol de delícias... O futebol de malícias… Foi,

então, que o brasileiro entrou em campo, desossando o futebol europeu, dos pés à cabeça. Em vez da linha reta, a corrida sinuosa, célere, coleante, repleta de florões e arabescos. Tal como a capoeira, irmã gêmea da finta, inspiração do chute de curva, do passe de calcanhar , pérolas do barroco brasileiro no campo de futebol. O brasileiro, vindo da taba e da senzala, inventa, então, a pelada, o futebol da medula. Que antes de pensar, intui. Que, antes de sentir, pressente. Leônidas da Silva não parou para pensar no instante em que fez gol de bicicleta. Nem Didi, quando inaugurou, nos campos, o chute de folha seca. Muito menos Pelé, ao dar ao corta-luz a graça de um gesto de balé. Ou Garrincha, quando corria o campo todo, compondo, com seus dribles, espirais de vento e alegria. Jogo de futebol, jogo de cintura. Sem dúvida, uma das mais belas metáforas da alma brasileira.”

Armando Nogueira, jornalista

Page 82: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

82 | REVISTA DA ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS 2016 • SEGUNDO SEMESTRE 2016

Com os mesmos pés que impulsionam a bola, nossa terra já era percorrida mais de dez mil anos antes da Descoberta. Os indígenas das etnias tupis, tapuias e tupinambás já haviam palmilhado todo o território brasileiro e criado as designações geográficas por meio das quais identificamos rios, rochas, enseadas e, certamente, campos de pelada (os índios já praticavam um esporte muito semelhante ao futebol, conforme relatado pelo antropólogo Gilberto Freyre).

Pois foi aqui que quatro séculos mais tarde, um inglês resolveu plantar um pé de futebol que se transformou em flor e fruto da inventiva brasileira. Mais que isso: fizemos do futebol uma linguagem própria, tão nossa como a música popular – esta também flor e fruto da mestiçagem de nossas raízes. No futebol, enfrentamos o acaso e o transformamos em gol. Assim como na música, a do chorinho, baseado no culto ao talento individual, mas repleto de acasos de diálogo entre os “jogadores” do cavaquinho, flauta e bandolim. Cada qual em sua posição, formando uma misteriosa combinação de jogadas individuais que surge da linha de passe entre instrumentos.

Como seria o mundo, hoje, sem o pé de futebol que aqui brotou e deu, a cada safra, um sem-número de frutos endiabrados? O mundo dos homens, em sua crença no óbvio, não teria visto – para crer! – algumas obras-primas da arte e da inventiva brasileiras que pares de pés, entre volteios, arabescos, volutas e curvas, reinventaram da idéia de mobilidade (afinal, quando tremula, a bandeira do Brasil põe sua bola em movimento).

Há uma bola na bandeira do Brasil. Esta imagem poderia nos levar à analogia que louva o futebol como algo típico do brasileiro, parente próximo do Carnaval. Não é bem assim. Nosso futebol não foi uma dádiva, mas uma conquista. Uma das raras “guerras” internas em que o povo entrou e venceu. Venceu e se apropriou de algo implementado pelas elites que pretendiam fazer do futebol um traço da “raça” brasileira sadia, “embranquecida”. O país negro e mestiço não podia existir dentro das quatro linhas do campo, apregoavam os introdutores do esporte entre nós, na década seguinte à Abolição e à República, ao final do século XIX. Porém, se antes era apenas testemunhado à distância pela população mais pobre, reunida lá no alto dos morros cariocas, o futebol transformou-se num apaixonado triunfo de todos. Um raro pertencimento coletivo a que se entregam os brasileiros, já que nossas escolas não cultuam os valores de origem, os valores de nossa formação étnica, nem incentivam o orgulho de nossa mestiçagem. Poucos conhecem sua herança cultural, que não a de branco europeu; poucos se assumem como ma-meluco, cafuzo, mulato, índio. Sobra-nos a identificação geral proposta pelo futebol, porque esta é uma história comum.

O futebol não é um jogo. O futebol é a poesia do brasileiro. Nossa prosa é o passe. Nosso verso é o drible. Nossa estrofe é o time. Nosso estribilho é o gol. Nossa metáfora é a vida. Falar de futebol é falar de nós mesmos.

O campo de futebol é um terreiro de crendices, úmido, poroso, elástico. Ali, tudo se mistura e se dissolve: o cuspe, o suor, o sangue, a chuva; um goleiro pode beijar a trave, benzer a rede; um jogador pode orar à grama, conversar com a bola. O campo de futebol é um dos únicos lugares

Page 83: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

ESPECIAL II: O ESPORTE E A CULTURA | 83

onde todas as manias são perdoadas – e até mesmo incentivadas. Uma partida – 90 minutos suspensos no tempo – é um espetáculo ritualístico no qual jogadores e torcedores, bandeirinhas e juízes encarnam (ou encenam) tudo aquilo que não vivem no cotidiano.

Diferentemente de algumas expressões artísticas, no futebol não há distanciamento entre os jogadores e a torcida. As pessoas não assistem ao futebol, vivenciam o futebol; todos estão em campo. O futebol é uma dramatização, um ritual coletivo. Um envolvimento emocional. Nele, os jogadores vencem ou perdem para que nós não o façamos em vida. é como se o time de futebol assumisse as tensões pessoais de cada um. é como se as demandas de fantasia e desejo coletivo fossem individualizadas por meio do corpo vivo de cada jogador em movimento.

O grande jogador não é o que pretende controlar todas as situações, mas o que sabe apro-veitar os lances do acaso. Os movimentos do seu corpo devem se adaptar aos movimentos da bola e não o contrário. Essa preponderância do efeito coreográfico – portanto, plástico – do futebol é realçada pelo filósofo Nicolau Sevcenko, da Universidade de São Paulo:

“No futebol, a inevitável imprecisão e a maior lentidão do uso dos pés amplia enormemente os papéis do acaso, do senso de oportunidade, dos deslocamentos e do sentido do conjunto. Essa preponderância do elã coletivo e do efeito coreográfico, assim como a ênfase sobre a habilidade dos pés e o uso malicioso dos movimentos do corpo, diminui ou compensa as exigências do des-taque físico, de forma que o jogador não tem que ser por força extremamente veloz, o comum mesmo sendo o jogador de um porte que corresponda ao padrão físico médio da sociedade a que ele pertence.”

O artístico passa a ser o esportivo. O futebol torna-se um espetáculo – como evidenciado por José Carlos Bruni – no qual “corpo e alma, força física e sagacidade se combinam num todo que tem algo de dança, de teatro, de circo, de arena, o que se combina com as artes do malabarismo e do atletismo, tudo isso gerando enormes efeitos de sedução.”

O princípio do século XX foi o das explosões inventivas: o gramofone arrancava o dó de peito das cantoras líricas, retirava-as do aparato teatral do palco e as levava para as salas de visita. As cantoras líricas ou os músicos populares, como Manuel Pedro dos Santos, o Baiano, que gravou nosso primeiro samba, em 1917: Pelo Telephone (outro invento que também começava a ornar os lares das classes emergentes). O cinema acentuava o crescimento da percepção do mundo por meio das imagens e lhe transmitia movimentos que criavam arroubos, paixões. Era possível entrar numa sala escura e, por meio de jogos de luz e sombra projetados numa tela, desatar risos ou lágrimas. Freud inventou uma interpretação dos sonhos e revelou o inconsciente, este que nos governa contra nossa própria vontade, nós que acreditávamos dominá-la inteiramente... O ritmo da vida deixava a previsibilidade de lado. Tudo passava a ser fruto do inesperado, os atos passavam a ser menos controlados pela regularidade da vida cotidiana e mais pelos imprevistos,

Page 84: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

84 | REVISTA DA ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS 2016 • SEGUNDO SEMESTRE 2016

Page 85: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

ESPECIAL II: O ESPORTE E A CULTURA | 85

pela urgência, pelo movimento incessante, pelo ritmo percussivo das máquinas e ruídos das cidades. Não por acaso, o futebol começou a despontar, primeiro na Inglaterra, na segunda metade do Século XIX, e depois aqui, seis anos antes do alvorecer do Século XX.

O futebol era um esporte adequado para um mundo que estava sendo posto de pernas para o ar. Um mundo em que os trabalhadores passavam a ter alguma voz ativa, apesar de o Brasil continuar a impedir o acesso de pobres e negros a qualquer tipo de privilégio cultural, aí incluída a prática do futebol. Estes eram proibidos até de torcer pelos clubes, todos grã-finos. O país dos capitães hereditários, dos patriarcas da cana de açúcar, era o mesmo dos barões do café que impuseram à Princesa Isabel a Abolição – ainda que tardia – da escravatura. O ato não estava imbuído de espírito libertário, mas aos interesses das oligarquias dominantes: a de não mais sustentar escravos, em vista da imigração européia que chegava com mão-de-obra qualificada e até mais barata. Os negros eram atirados às ruas. Quanto aos mestiços, eram considerados seres ‘desqualificados’ para construir o futuro de qualquer país, ainda mais um Brasil que se olhava no espelho da Europa!

Nem se falava em futebol profissional nos clubes, como o Botafogo, que definia claramen-te em seus estatutos um dos requisitos para a aceitação de novos sócios: “não ser nem ter sido profissional de qualquer serviço braçal”. Ou seja, continuávamos sendo um país de retóricos, de homens nobres e “livres”, de onde, segundo parece, saiu o nome de “liberais” dado a deter-minadas artes, em oposição às mecânicas, que pertenceriam às classes servis. Assim, mais de um século depois da tomada da Bastilha, os princípios da Revolução Francesa permaneciam longe dos trópicos: padeiros, marceneiros, açougueiros, enfim, os brasileiros (como origem: aqueles trabalhadores que carregavam o pau-brasil às costas) estavam excluídos da vida social. Sérgio Buarque de Holanda, em seu Raízes do Brasil, assim definia, em 1936, essa situação que permanece aderente a nosso cotidiano:

“O trabalho mental, que não suja as mãos e nem fatiga o corpo, pode constituir, com efeito,

ocupação em todos os sentidos digna de antigos senhores de escravos e dos seus herdeiros. Não significa amor ao pensamento especulativo [...] mas amor à frase sonora, ao verbo espontâneo e abundante, à erudição ostentosa, à expressão rara. É que para bem corresponder ao papel que, mesmo sem o saber, lhe conferimos, inteligência há de ser ornamento e prenda, não instrumento de conhecimento e ação.” Os filhos dos barões do café decidiram pouco a pouco cultuar o “nobre esporte bretão”,

já que praticar futebol poderia contribuir para salvar o futuro do país comprometido com a mestiçagem... Em seu importante trabalho de pesquisa Footballmania: Uma história social do futebol no Rio de Janeiro (1902-1938), Leonardo Affonso de Miranda Pereira assim resume o espírito da época:

Page 86: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

86 | REVISTA DA ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS 2016 • SEGUNDO SEMESTRE 2016

“Desde o final do século XIX, quando a ideologia de dominação senhorial que sustentava e legitimava a desigualdade e a dominação dos senhores sobre os seus dependentes dava os seus primeiros passos de deterioração, os círculos senhoriais começavam a procurar novos meios de justificar sua superioridade sobre a massa de negros e pobres que se espalhava pelas ruas da cidade. Proclamada a República e extinta a escravidão, esta parecia ser uma questão crucial para esses grupos endinheirados – que buscaram, por isso, diferentes meios de respondê-la. O esporte aparecia, a partir das formulações das teorias higiênicas, como uma solução perfeita: afirmando a superioridade “natural” dos indivíduos adeptos de uma boa educação física sobre aqueles que mantivessem seu apego à preguiça e ao marasmo que seriam uma das marcas do caráter nacional, dava aos jovens elegantes a oportunidade de buscar, nos campos, a justificativa moral para sua superioridade que se perdera no final do século XIX. Excluídos desses clubes, os trabalhadores continuariam condenados à degeneração física e mental, distanciando-se cada vez mais dos corpos bem-educados e fortes dos jovens foot-ballers.” Não foi isso o que se deu, todavia, e pouco a pouco o povo se apropriou do futebol, cuja

prática mais simples não exigia gramados nem estádios, mas apenas um terreno baldio e uma bola de meia. E o futebol, “brinquedo de menino rico” passou a ser fruto de um Brasil mestiço.

O antropólogo Roberto Da Matta produziu uma síntese deste espírito, que terminou por permear toda a história do futebol no século XX e até os dias de hoje:

“Como uma atividade aberta, o futebol não discrimina tipos físicos e classes sociais. O

sujeito pode ser preto ou amarelo, alto ou baixo, culto ou ignorante, mas o que interessa, é que saiba jogar. Mais: seu foco não são as nobres mãos que levam para o céu (como acontece no vôlei ou no basquete); mas os humildes pés que nos atrelam ao chão e a terra. No futebol, o pé que carrega o nosso corpo, transforma-se num mágico instrumento capaz de enganar o adversário e de controlar e passar a bola. Como a capoeira, o jogo do “pé na bola” trouxe a multidões de brasileiros a possibilidade de, ao menos simbolicamente, inverter o jogo. No Brasil, ele abriu a possibilidade de trocar as mãos pelos pés.”

“PÉ NA BOLA” vs “SAMBA NO PÉ”

O carioca criou duas singularidades, por meio de sua paixão pelo futebol e sua paixão pela música. O futebol significando o movimento do corpo. A música significando o movimento do mesmo corpo. São eles que sacolejam, remelexam o corpo diante de uma bola que passa na terra ou a um som que caminha no ar.

O futebol e a música produziram a mestiçagem não apenas entre jogadores e torcidas,

Page 87: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

ESPECIAL II: O ESPORTE E A CULTURA | 87

não apenas entre quem toca e quem dança ou canta. O futebol e a música são dois elementos intrinsecamente constitutivos do comportamento do carioca que pensa e age – de preferência, os dois ao mesmo tempo – movido pela certeza de que nada de mais importante existe do que o futebol e a música. Ou o ritmo que ambos provocam.

No Rio, os dois principais times são o Flamengo (Fla) e o Fluminense (Flu). O jogo entre ambos é chamado de Fla-Flu. Pois foi o teatrólogo Nelson Rodrigues, ao escrever belas crônicas esportivas, que assim definiu: “O Fla-Flu começou 20 minutos antes do Nada.” é assim, levi-tando na origem do Universo, que os cariocas vivem o futebol.

LEONEL kAz é editor de UQ!/ Aprazível Edições, professor de Cultura Brasileira e membro do Conselho do Instituto Brasileiro de Museus/ IBRAM; foi Secretário de Cultura e Esporte do Estado do Rio e curador do Museu do Futebol/ SP

PAULO DA COSTA E SILVA é professor de estética e filosofia da arte no Departamento de História da Arte da Universidade Federal do Rio de Janeiro. é colunista musical do site da revista Piauí e autor do livro A Tábua de Esmeralda e a Pequena Renascença de Jorge Ben (Cobogó, 2014).

Page 88: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos
Page 89: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

efemérideS

Page 90: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos
Page 91: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

SeSc, 70 AnoS de culturA em todo o brASil

Claudia Guimarães Fadel

Num país onde a educação e a cultura devem ser olhadas com absoluta atenção, o Serviço Social do Comércio – Sesc faz a sua parte, cada vez mais, ampliando seu alcance por todo o

país e desenvolvendo-se também por outros segmentos.O Sesc é mantido por empresários do comércio de bens, serviços e

turismo, e beneficia os trabalhadores desses setores e suas famílias. Criado em setembro de 1946, o Sesc possui unidades fixas ou móveis e está presente em todo o Brasil, com o objetivo de promover ações nas áreas de educação, saúde, cultura, lazer e assistência, em mais de 2,2 mil municípios.

Page 92: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

92 | REVISTA DA ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS 2016 • SEGUNDO SEMESTRE 2016

Page 93: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

EFEMéRIDES | 93

Ao longo desses 70 anos de história, o Serviço Social do Comércio tem transformado a vida das pessoas a partir da abrangência de suas ações e da eficácia de seus programas. Brasileiros e brasileiras, de todas as idades, podem se beneficiar de grandes áreas de lazer, de centros de assistência social e de saúde, bem como de uma das maiores redes de teatro e biblioteca do País.

No campo da Educação, o Sesc mantém escolas de Educação Infantil, Ensino Fundamental, Ensino Médio e de Educação de Jovens e Adultos. Em 2008, inaugurou a Escola Sesc de Ensino Médio, um marco na história da educação brasileira. Uma escola-residência, que reúne alunos de todas as Unidades da Federação Brasileira para uma experiência educacional pioneira. A instituição amplia a cada dia sua missão de promover uma educação integral e cidadã, compondo uma verda-deira cidade educativa em seu campus de 131 mil metros quadrados, localizado no Rio de Janeiro.

No mesmo ano em que a Escola Sesc iniciou suas atividades, foi aprovada, em 2008, a Lei 11.769, que inclui a Música como conteúdo obrigatório do componente curricular, concedendo às instituições de ensino o tempo de três anos letivos para se adaptarem às exigências estabelecidas. No entanto, para a Escola Sesc esse tempo não foi necessário. A visão de que educação e cultura, incluindo todas as linguagens e manifestações artísticas, estão intrinsecamente relacionadas é um conceito central, documentado no Projeto Pedagógico Cultural da instituição.

é nesse contexto que se estabelece o projeto de parceria entre a Escola Sesc de Ensino Mé-dio e o Instituto Cultural Cravo Albin, por exemplo. Iniciado no primeiro semestre de 2016, o projeto contempla uma ampla agenda de atividades que incluem palestras e oficinas ministradas pelo fundador e diretor do ICCA, o musicólogo e pesquisador Ricardo Cravo Albin, bem como visitas ao espaço do Instituto, que possui salas destinadas a exposições permanentes sobre a era do rádio brasileiro e um salão utilizado para programação de exposições temáticas, além do extraordinário acervo sobre música popular brasileira em diversos suportes.

Os encontros são extremamente prazerosos e ricos em conhecimento, contribuindo de forma significativa para a contextualização e compreensão histórica dos alunos acerca dos gêneros e manifestações culturais nacionais. Temas como a gênese da MPB, passando por composito-res e estilos musicais genuinamente brasileiros - como o Choro, o Samba e a Bossa Nova -, os primeiros registros fonográficos, os anos de ouro do rádio e a Era dos Festivais são alguns dos exemplos do amplo itinerário apresentado aos alunos.

Essa parceria é, portanto, um feliz encontro entre instituições que têm em sua missão o compromisso de valorização da cultura brasileira, configurando-se um exemplo bem-sucedido de educação musical escolar.

é o Sesc colocando em prática a sua missão: Educação e Cultura caminhando juntas, transfor-mando a vida das pessoas, proporcionando novas histórias e um futuro melhor para o povo brasileiro.

CLAUDIA GUIMARÃES FADEL é diretora da Escola Sesc de Ensino Médio.

Page 94: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos
Page 95: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

HomenAgem AoS 400 AnoS dA morte de miguel de cervAnteS

y SAAvedrA

Cláudio Murilo Leal

Tenho a certeza de quem leu as aventuras de don Quijote de la Mancha guardou para sempre a figura do magro, eu diria mesmo esquálido Cavaleiro da Triste Figura, montado em seu também

esquelético cavalo de estranho nome: Rocinante. Um cavaleiro mentalmente refugiado no tempo da cavalaria andante, e que se lançava, justiceiro, contra inocentes moinhos de vento, pois os confundiu, certa vez, com um bando de gigantes inimigos. Nesta luta desigual entre o frágil cavaleiro e as enormes pás daqueles moinhos, o nosso herói foi fragorosamente derrotado.

Cervantes pertenceu à geração de escritores e dramaturgos do Renasci-mento, período tão importante da literatura em Espanha que foi chamado de Siglo de Oro, o Século de Ouro.

Page 96: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

96 | REVISTA DA ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS 2016 • SEGUNDO SEMESTRE 2016

Para a realização do Quijote, Cervantes utilizou-se dos recursos da paródia, dissimulada sátira às canções de gesta Chanson de Roland, Cantar de Mio Cid, Amadis de Gaula ou Tirant le Blanc, epopeias sobejamente apreciadas na Idade Média. Estas aventuras de cavalaria consolidaram uma peculiar literatura, mas já tornada anacrônica quando Cervantes escreveu a sua obra máxima.

El Caballero de la Triste Figura declara o seu lema quando afirma que seu ofício é andar pelo mundo reparando afrontas e desfazendo agravos.

Usufruímos, então, das peripécias da ação hiperativa de don Quijote e dos diálogos entre ele e seu fiel escudeiro, Sancho Panza. E saboreamos os registros de dois discursos: o do Quijo-te, conhecido como sermo nobilis, elevado e culto, e o sermo vulgaris da fala bem-humorada de Sancho Panza, de cunho popular e coloquial.

No capítulo primeiro somos informados que o nosso personagem parece ter perdido o juízo após ler, durante dias e noites, os códices e cartapácios que narravam os sucessos da an-dante cavalaria:

Enfim, ele se embrenhou tanto na leitura dos antigos alfarrábios que passava as noites lendo até clarear e os dias até escurecer; assim, por dormir pouco e ler muito, secou-lhe o cérebro de maneira que veio a perder o juízo.

Em sua primeira saída, don Quijote se faz armar cavaleiro numa estalagem, modesto al-bergue cujo dono vai encenar todo um falso e cômico ritual que é aceito como pura realidade.

Assim, passa-se de maneira esdrúxula, e de certo modo ridícula, a cerimônia em que o nosso Quijote é armado cavaleiro.

Desastrosas aventuras começam a ocorrer como a descrita no famoso capítulo VIII, quando don Quijote confunde alguns moinhos de vento com gigantes inimigos.

Naquele dramático transe, Sancho Panza, com o bom senso da gente simples do povo, mas muito assombrado, pergunta ao seu amo:

– Que gigantes? – Ali – responde don Quijote – aqueles de braços enormes.Ao que Sancho contesta: – aqueles não são gigantes, são moinhos, e o que parece braços

são as pás, rodadas pelos ventos, que fazem trabalhar as mós.Mas don Quijote, montado no magro Rocinante, sem dar a mínima para o que dizia o seu

assustado e sensato escudeiro, investiu a toda brida contra o primeiro moinho que encontrou pela frente. Quando deu uma lançada na pá, o vento girou-a com tanta fúria que levou junto cavalo e cavaleiro, que foram rolando desconjuntados pelo campo. O acontecimento ficou marcado como o primeiro dos muitos insucessos que, infelizmente, o nosso intrépido Quijote sofreria ao longo dos contos e recontos de Cervantes.

Quantas coisas via don Quijote, logo as transformava em desvairados e enlouquecidos sonhos.

Page 97: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

EFEMéRIDES | 97

Mas nosso tempo vai-se esgotando, assim como as forças de don Quijote ao voltar para casa, já doente e cansado, consequência de tantas aventuras vividas e sofridas.

Neste momento, estamos todos à volta do nosso utópico, mas visivelmente combalido cavaleiro.

Sancho, muito, muito emocionado, fala:– Ai, meu senhor não morra! – Ouça o meu conselho: viva muitos anos, porque a maior

loucura que um homem pode fazer nesta vida é deixar-se morrer assim, sem mais nem menos, sem que ninguém o mate nem lhe dê cabo tristezas e melancolia. Não seja preguiçoso, levante-se desta cama e vamos para o campo vestidos de pastores.

No final desta obra-prima da literatura espanhola, os leitores e os personagens de Miguel de Cervantes y Saavedra acompanham entristecidos os derradeiros momentos de don Quijote. Vemo-lo receber os sacramentos e finalmente desistir das desastrosas lições que aprendera nos livros de cavalaria. Entre lamentos e lágrimas dos que se encontravam ali, como a sobrinha Antonia Quijana, Sancho Panza, o padre, o médico, o escrivão, e nós seus leitores, todos despediam-se daquele que foi Alonso Quijano, ficcionalmente apelidado de don Quixote de la Mancha, e que acabara de entregar a sua alma ao Criador, isto é, morrera.

CLáUDIO MURILO LEAL se considera “profeta”, professor e poeta. Lecionou na UFRJ, na UnB e na Universidade de Essex. Publicou mais de 20 livros de poesia. Sobre Machado de Assis escreveu O círculo virtuoso. Ex-Presidente do Pen Clube do Brasil e atual Vice-Presidente da Academia Carioca de Letras. Com humor, diz que está muito mais velho que na Revista anterior e cita Rubem Braga: “Ultimamente tem passado muitos anos”.

Page 98: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos
Page 99: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

JoSué montello: um eX-preSidente dA AcAdemiA brASileirA

de letrAS

Murilo Melo Filho, da ABL

Peço-lhes, de início, paciência e permissão para volver os meus olhos ao ano de 1936, quando um jovem maranhense, de nome Josué Montello, chegava ao Rio, num navio e desembarcava

no cais do Porto.Justamente no dia 15 de março de 2016, deste ano, que agora estamos

vivendo, completaram-se 10 anos de sua morte no dia 15 de março de 2006. Como na toada famosa do sanfoneiro Luís Gonzaga, ele vinha num

Ita do Norte, dando adeus a Belém do Pará, graças a uma passagem que a soprano Bidu Sayão conseguira para ele junto ao Prefeito paraense Antônio Lemos.

Naquela manhã, o Rio estava envolvido numa tênue neblina, que escondia o Edifício de “A Noite”, na Praça Mauá.

Page 100: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

100 | REVISTA DA ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS 2016 • SEGUNDO SEMESTRE 2016

O moço de São Luís, ali desembarcava com 100 mil réis no bolso, carregando numa mala pequena uma fatiota branca e outra azul.

Na mala maior, os seus livros. Em ambas, muitos projetos e muitos sonhos.Em companhia dos seus amigos Nélio Reis e Dante Costa, o jovem maranhense descia as

escadas do navio com 100 mil réis no bolso, trazendo na mala uma fatiota branca, seus livros, e muitos projetos.

Assim chegava ao Rio Josué Montello, julgando-se aparelhado para enfrentar o desafio de uma aventura.

Ele era apenas mais um personagem no extenso fabulário daquela nossa geração de jovens nortistas e nordestinos nômades, que emigravam de suas terras secas lá no Norte e no Nordeste.

Foi conduzido para a pensão de uma portuguesa, Dona Clarinda, em Botafogo, com a promessa e a garantia de que estava se hospedando num quarto silencioso. Mas quando abriu a janela dos fundos, facilmente entendeu aquela promessa de silêncio: é que se estendia, logo abaixo, o Cemitério de São João Baptista.

Josué mudou-se depois para a Rua Clovis Bevilacqua na Tijuca.No bonde da Light, fazia o trajeto diário entre o seu apartamento tijucano e a Biblioteca

Nacional, onde então já trabalhava com Rodolfo Garcia (este mesmo que dá nome à Biblioteca da ABL), e convivia com Tobias Monteiro e Alberto Rangel.

Em seguida, já casado com yvonne, - sua grande companheira durante muitos anos - Josué frequentava a Livraria José Olympio, na Rua do Ouvidor, onde se misturava, entre outros, com Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Peregrino Júnior, Múcio Leão, Lúcia Miguel Pereira e Otávio Tarquínio.

No bonde ronceiro, sentava-se na ponta do banco, para não ser incomodado nem inco-modar os outros passageiros, e aí lia Gide, Balzac e Victor Hugo.

Era um leitor tão calado e tão recluso, quanto o “Dom Casmurro”, de Machado. Certo dia, através de Guimarães Rosa, chefe do seu gabinete no Itamaraty, o Chanceler

João Neves da Fontoura fez um convite oficial a Josué Montello para ser Professor de Estudos Brasileiros na Universidade peruana de São Marcos. E explicou-lhe:

– Sei bem por que o estou convidando. E o Presidente Getúlio Vargas também sabe.No dia 11 de junho de 1953, Josué cruzou a Cordilheira dos Andes e chegou a Lima,

iniciando ali a sua missão.De lá, retornou em fevereiro de 54, recebendo no dia 3 de julho seguinte uma carta na

qual Viriato Corrêa lhe comunicava a morte do Acadêmico Cláudio de Souza e o informava sobre as consultas que já havia feito para a sua candidatura a esta Academia.

Josué enviou sua carta de Inscrição, com data de 4 de julho, e começou as visitas pro-tocolares, conseguindo conquistar, um a um, importantes apoios e votos: dos já Acadêmicos Afonso Pena Júnior, Alceu Amoroso Lima, Aluísio de Castro, Manuel Bandeira, Múcio Leão,

Page 101: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

EFEMéRIDES | 101

Luiz Edmundo, José Carlos de Macedo Soares, Guilherme de Almeida, Pedro Calmon, Antônio Austregésilo, Gustavo Barroso e Elmano Cardim.

Havia 12 candidatos, entre os quais Celso Kelly, o principal deles, além de Osório Dutra, Paschoal Carlos Magno e Arnaldo Santiago.

Durante essa campanha, para distraí-lo, seu conterrâneo, Viriato Corrêa, contou uma anedota sobre Ataulfo de Paiva.

Estavam na última semana da campanha eleitoral, e apesar da anedota ser muito boa, Josué não riu. Viriato insistiu:

– Não achaste este fato muito engraçado?– Achei, muito.– Se achaste engraçado, por que não riste?Josué respondeu:– Porque para mim, anedota sobre Acadêmico só me fará rir depois da próxima quinta-

-feira, dia da eleição. Antes disto, só penso nela e nenhum outro assunto.No dia 4 de novembro de 1954, Josué afinal elegeu-se para esta Academia, como um dos

seus mais jovens acadêmicos.Ocupou a Cadeira 29, que tem como Patrono Martins Pena, como Fundador Artur Aze-

vedo, como Antecessores Vicente de Carvalho e Cláudio de Souza, e como atual Ocupante, o Acadêmico e ex-Presidente Geraldo Holanda Cavalcanti.

Saudando-o em sua posse, como Acadêmico, disse seu conterrâneo Viriato Corrêa:– Ao entrares nesta Casa tendes apenas 37 anos de idade. Ganhastes dinheiro vendendo

versos aos Editores. Esta Academia é feminina e gosta de ser namorada. Ela é também impeca-velmente soberana, fraternal e democrática. Não tem proprietário, porque todo Acadêmico é dono da sua escolha e do seu voto.

Josué conseguiu eleger-se, a 4 de novembro de 1954, logo no 1º Escrutínio, para a Cadeira nº 29, permanecendo como acadêmico, durante mais de meio século.

Foi saudado por Viriato Corrêa:– Aqui estais chegando, meu prezado conterrâneo, pelos vossos próprios méritos e sem

nada dever a ninguém.– Nosso comum Maranhão hoje está muito feliz com a vitória deste seu filho, muito

amado e muito querido.Ele era um Técnico de Educação e Professor do DASP – ambos por severos concursos

públicos – Diretor da Biblioteca Nacional e do Serviço Nacional do Teatro, Sub-chefe da Casa Civil do Presidente Juscelino Kubitschek, seu amigo e confidente, colaborador do “Jornal do Brasil” e da “Manchete”, amigo de Adolpho Bloch, de Justino Martins e de Arnaldo Niskier, Professor de Literatura Brasileira nas Universidades de Lisboa e de Madri, Fundador e Presiden-te do Conselho Federal de Cultura, Conselheiro Cultural da Embaixada do Brasil na França,

Page 102: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

102 | REVISTA DA ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS 2016 • SEGUNDO SEMESTRE 2016

Embaixador do Brasil na UNESCO, Fundador e Diretor do Museu da República e, finalmen-te, Presidente da Academia Brasileira de Letras, no biênio 94/95, sucedendo a Austregésilo de Athayde e realizando uma administração simplesmente inesquecível.

Nesse mesmo tempo, Josué realizava uma das mais brilhantes e completas carreiras literárias no Brasil, que começou com o romance “Janelas Fechadas”, em 1941, prosseguiu com “A luz da estrela morta”, “Labirinto de espelhos”, “A décima noite” (escrito em Portugal), “Os degraus do paraíso”, “Cais da Sagração”, “Os tambores de São Luiz”, “Noite sobre Alcântara”, “Largo do Desterro”, “A coroa de areia”, “Pedra viva”, “Um beiral para os bem-te-vis” e “O camarote vazio”, até “O baile da despedida”, “A viagem sem regresso”, “A mulher proibida”, e “Sempre serás lembrada”, para não falarmos nos seus ensaios sobre Hamlet, sobre o português António Nobre, o espanhol Cervantes, o francês Stendhal, os brasileiros Artur Azevedo, Machado de Assis,

Page 103: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

EFEMéRIDES | 103

Tobias Barreto e Pedro I, os Anedotários da Academia, os “Diários” da Manhã, da Tarde, do Entardecer, da Noite e da Noite Iluminada, com traduções para o inglês, o francês, o italiano, o castelhano e o sueco, e versões para o cinema, num total de 131 títulos publicados – dos quais 27 romances – afora os discursos, conferências, entrevistas, aulas, palestras, prefácios e artigos para jornais e revistas, que o transformaram num trabalhador braçal da inteligência e no maior operário-produtor da nossa literatura, como professor, biógrafo, administrador, jornalista, orador, romancista, historiador, cronista, teatrólogo, ensaísta e memorialista, com a abrangência sobre todo o espectro e o universo literários, numa produção erudita e enciclopédica, que rivalizava com a fecundidade do seu conterrâneo Coelho Neto.

Concluo dizendo-lhes que Josué acordava diariamente às 3 horas da manhã e escrevia de madrugada, tudo à mão, que a sua mulher, yvonne, depois datilografava.

Dizia-se dele que redigia mais rápido do que a nossa capacidade de lê-lo.Não era à-toa nem por acaso que Josué se definia como um escritor não seduzido por

nenhum outro título ou recompensa.Certa vez, declarou-me ele numa entrevista à “Manchete”:– Já estou descendo a outra encosta da vida e nada mais aspiro do que a este meu canto,

a esta folha de papel, a esta caneta, a estes livros e à luz desta mesma lâmpada, enquanto ouço perto os passos de yvonne, a companheira perfeita, outra dádiva que Deus me deu.

Na peça de Goethe, Mefistófeles aconselha ao Dr. Fausto: – Meu bom amigo. Confie em ti próprio e lute para viver.Foi justamente isto o que fez Josué de Souza Montello, ao longo dos seus últimos 19 meses

de tanto sofrimento, durante os quais, num estóico amor à vida, lutou, desesperadamente, para sobreviver.

E viveu de bem com o seu Deus, com yvonne, sua admirável mulher e inigualável heroína, com toda a sua família, unida e coesa em torno de um respeitável patriarca.

Ele viveu 52 anos como membro desta ABL e Príncipe do nosso romance, numa atmos-fera de respeito, de admiração e de carinho pelos seus exemplos de vida correta e de intelectual competente, através dos inestimáveis serviços que, com dedicação e trabalho, prestou à cultura e à inteligência brasileiras.

MURILO MELLO FILHO, nascido em Natal, RN, é escritor e jornalista profícuo, já tendo trabalhado nos mais importantes veículos de Comunicação, em especial na revista Manchete. Membro da Academia Brasileira de Letras, do PEN Clube do Brasil e da Academia Carioca de Letras, onde ocupa a Cadeira 8. Inúmeros livros editados, entre eles O desafio brasileiro (16ª ed. e também publicado na Espanha), Testemunho político, Tempo diferente e O brasileiro Rui Barbosa.

Page 104: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos
Page 105: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

oreSteS bArboSA (1893-1966)

Amor e dor em verSoS de cAnção

João Máximo

O modo menos original de se escrever sobre Orestes Barbosa é começar repetindo a tão repetida declaração de Manuel Ban-deira: “Se se fizesse aqui um concurso, como fizeram na França,

para apurar qual o verso mais bonito da nossa língua, talvez eu votasse naquele de Orestes em que ele diz: ‘Tu pisavas os astros distraída...” Uma declaração tão definitiva que não há originalidade que a substitua. Pois sigamos com o óbvio: o Orestes Barbosa que nos fala é mesmo o poeta. E passemos logo ao não tão óbvio: o poeta que nos encanta em Orestes Barbosa é o dos versos de canção.

Page 106: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

106 | REVISTA DA ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS 2016 • SEGUNDO SEMESTRE 2016

Não que desconsideremos o dos poemas de estreia em “Penumbra Sagrada”, o cronista de “Bambambã”, o jornalista da “Crítica” ou o autor de “Samba – sua História, seus Poetas, seus Músicos, seus Cantores”. Ou o carismático intelectual do Rio boêmio da primeira metade do século passado, centralizador, agregador, mentor, sedutor, fazedor de cabeças. Já se disse que Orestes Bar-bosa fez em sua época o que Vinicius de Moraes faria na dele: influenciar os jovens que o cercavam para aprender com seu charme, seu talento, saber. Mas nem este nem os outros Orestes Barbosas nos é tão memorável quanto o que enriqueceu com sua poesia o cancioneiro romântico brasileiro.

A associação com Vinicius procede. Já foi feita em mais de uma ocasião. Talvez por serem ambos poetas publicados que acabaram abraçando à música popular. Ou talvez por fazerem da mulher seu tema mais recorrente, seja exaltando-a em poemas apaixonados (mais Vinicius), seja sofrendo por ela em versos de dor (mais Orestes). Ou talvez, ainda, porque um e outro, inteligentes, cultos, bem nascidos, tenham se aproximado tão honesta e corajosamente da ala mais pobre e ainda malvista do samba. No caso, coragem maior de Orestes que de Vinicius, pois na geração deste, nascido vinte anos depois, já seria mais natural a integração de um intelectual da classa média com a gente dos morros e dos subúrbios. Fora essas possibilidades – e mais a do papel de guru, atribuído a Orestes e de fato vivido por Vinicius – o que mais os aproxima? Pouco ou nada. E pelo menos um ponto importante (já falaremos dele) certamente os separa.

Antes, lembremos que vários eram os estilos de letra de canção na década de 1930, a chamada época de Ouro de nossa música popular. Um deles é o da crônica, mais ligado ao carnaval, cujos sambas e marchas pareciam sob medida para descrição de tipos, críticas, anedotas, modas, fatos do momento. Alguns letristas, novos e inovadores, Noel Rosa à frente, levaram esse tipo de letra para as canções de meio de ano, criando com isso um segundo estilo. Um terceiro será o da canção romântica de inspiração parnasiana, um passo à frente das letras pernósticas e pseudossertanejas de um Catulo da Paixão Cearense ou do rebuscamento preciosista de um Cândido das Neves, o Índio. Orestes Barbosa foi, nesse estilo, o mais iluminado letrista, ou melhor, poeta musical.

Embora adorasse imagens que vinham de poética mais antiga (“vespa da intriga”, “abelha da ironia”, “guizos falsos da alegria”, “mar de franjas e plumas”, “coração, ninho de penas”, “coração, pássaro roxo”, “coração, chama oculta”...), Orestes Barbosa teve em suas canções a aprovação popular que Catulo, Índio e outros buscavam pelo falar difícil, pelo palavrório co-lhido nos dicionários. Orestes, não. Seu romantismo valia não só pelas imagens e pelas rimas, mas principalmente pelas situações e histórias que contava, mais próximas do homem comum, do dia a dia, da realidade.

Poeta musical, realmente, pois são muitas as evidências de que a quase totalidade de suas letras foi concebida como poesia. Rimada, metrificada, rigorosamente no modelo de um de poema escrito. “Chão de Estrelas”, sua obra-prima, é um exemplo: duas sextilhas decassílabas, o primeiro verso rimando com o segundo, o quarto com o quinto e o terceiro com o sexto. Perfeito, exemplar, mas poema que só ganhou vida com a música que Sílvio Caldas lhe pôs.

Page 107: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

EFEMéRIDES | 107

Muitos foram os compositores que musicaram versos de Orestes Barbosa: melodistas como Eduardo Souto e Custódio Mesquita, sambistas como Wilson Batista e Ataulfo Alves, artistas tão distintos quanto Valzinho Teixeira e Vicente Celestino. Esse método, música depois da letra, vem até as últimas criações de Orestes, em especial com élton Medeiros. Mas foram mesmo Sílvio Caldas e Francisco Alves os mais constantes – e certamente os mais bem sucedidos – dos cantores compositores a criar música para o poeta.

Com os dois, sobretudo nas valsas seresteiras, o processo de criação era o mesmo: Orestes Barbosa criando os versos e entregando-os ao parceiro para musicá-los. “Chão de Estrelas”, como decassílabo, é quase exceção. Na maioria das vezes prevalecem os hectassílabos, sextilhas ou quadras (redondilhas maiores).

Com Sílvio Caldas, em “Torturante ironia”:Porque a canção mais aflitaÉ a forma que é mais bonitaDe a gente poder chorar...

Ou em “Arranha-céu”:Pensando que te abraçavaAlucinado apertavaEu mesmo o meu coração...

Ou em “Meu erro”:E a dor é que me suplantaA voz de amor na gargantaPor causa desta mulher...

Ou em “Vestido das lágrimas”:A nossa vida era calmaMas eu sentia em minh’almaUm medo não sei de quê...

Ou em “Quase que eu disse”:Na febre dos meus desejosFui à procura de beijosEm bocas tão desiguais...

Page 108: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

108 | REVISTA DA ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS 2016 • SEGUNDO SEMESTRE 2016

Ou na temporã “Única Rima’:Tens a graça das abelhasO olhar, interrogção,Onde o til das sobrancelhasÉ o til da palavra não.

Opiniões sobre música são sempre discutíveis, de modo que não se deve levar muito em conta a do autor dessas linhas sobre ser Sílvio Caldas melhor intérprete que Francisco Alves. Isso ficou patente quando, nos anos 50, em sua fase na gravadora Colúmbia, Sílvio andou gravando coisas do repertório do Rei da Voz: “Meu companheiro”, “Dona da minha vontade”, “Feitio de oração”, “Favela”, “A voz do violão”. Mas, e quanto a ser Francisco Alves melhor compositor que Sílvio Caldas? Se não sempre, ao menos nas valsas serenatas com Orestes Barbosa, sua par-ticipação é musicalmente melhor. Ou mais natural. Também nelas prodominam as sete sílabas.

Como em “Por teu amor”:As rosas nascem da mágoaSó essas posso colherBanhadas sempre na águaDo pranto do meu viver...

Ou em “A mulher que ficou na taça”:Quanto mais bebida eu ponhoMais cresce a mulher no sonhoNa taça e no coração...

Ou em “Dona da minha vontade”:Coração, por que preferesAmar todas as mulheresNo amor de uma só mulher...?

Ou em “Ciúme”:Ver sempre a mulher amadaNa alegria de outro amor...

Ou em “Adeus”:Adeus, palavra pequenaTão grande na tradução

Page 109: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

EFEMéRIDES | 109

Adeus, eu disse com penaSangrando meu coração...

Orestes usa as duas métricas em versos que, em tributo ao instrumento preferido de todo seresteiro, Francisco Alves musicou admiravelmente. Decassílabo na primeira parte:

E hoje, na minha vida dolorosaSó tu me entendes, triste violão

E as sete sílabas na segunda:De tanto roçar meu peitoTens hoje o timbre perfeiroDa voz do meu voração...

Quanto ao conteúdo, Orestes Barbosa foi mesmo o letrista poeta da paixão, da perda, da ausência, das dores do amor. Seus dramas são a crônica de uma época de amores proibidos, ou não confessados, ou mais sofridos que vividos. Daí um dos temas mais fascinantes de seus versos é justamente o da amada cujo nome deve ficar em segredo.

Com Francisco Alves:Só nesta valsaEu te diriaComo é tão falsaMinha alegriaComo é tão tristeO meu cantarQuando o teu nomeVivo a ocultar...

Ou com Sílvio Caldas:O nome dela não digoO nome guardo comigoNa urna do coraçãoMeu coração, um bandidoQue até a mim tem traídoNa febre desta ilusão...

Page 110: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

110 | REVISTA DA ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS 2016 • SEGUNDO SEMESTRE 2016

Ou novamente com Sílvio, uma obra-prima do romance não confessado: Ó quanta desgraça junta!Toda a cidade perguntaE vai dizendo o que querDa mágoa que me devora...E quase que eu disse agoraO nome dessa mulher.

(anos depois, o próprio Sílvio revelaria que “devora” é certa Débora que Orestes quase não consegue esconder).

Muitas histórias de suas canções só foram contadas depois de sua morte em 15 de agosto de 1966. Por exemplo, “Positivismo”, samba com Noel Rosa. Orestes deu para o parceiro musicar quatro quadras. Numa delas, atribui a Pôncio Pilatos o que, até onde sabemos, o que lavou as mãos nunca disse:

A verdade, meu amor, mora num poçoÉ Pilatos lá na Bíblia quem nos diz

Em outra, justifica o título do samba com uma citação a Augusto Comte:O amor vem por princípio, a ordem por baseO progresso é que deve vir por fim

Uma historinha, já contada, sobre a gravação desse samba, merece ser lembrada. Como Noel guardasse a letra no bolso e a esquecesse lá, Orestes se queixou com o amigo comum Antônio Nássara. O que Noel teria feito dos seus versos? Perdeu-os? Jogou-os fora? Apossou--se deles? Nássara levou a queixa a Noel, que preparou uma surpresa para Orestes: musicou as quatro quadras e decidiu gravá-las ele mesmo, com arranjo de Pixinguinha. Pediu ao maestro que, depois da última quadra, fizesse uma passagem completa de orquestra para que, no fim, ele respondesse a Orestes cantando uma quinta quadra, com letra dele mesmo:

A intriga nasce num café pequenoQue se toma para ver quem vai pagarPara não sentir mais o teu venenoFoi que eu já resolvi me envenenar

Concluindo, voltemos a Vinicius de Moraes. Para deixar claro que a diferença maior entre os dois está justamente no método de criação. Enquanto na quase totalidade as letras de Vinicius foram escritas para música já feita, com as de Orestes dava-se o contrário: letra ou poesia antes da música.

Page 111: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

EFEMéRIDES | 111

Vinicius foi um artista, em sua poesia, e outro, em suas letras. Enquanto o poeta era livre para escrever como quisesse, sonetos perfeitos ou longos poemas em versos livres, o letrista criava obediente a um molde, a uma matriz, determinada pelo número de sílabas, pontuação e tonicidade preestabelecidos pela melodia do parceiro. Com ele, era assim, música sendo feita antes. No caso, letras que perdem muito quando simplesmente lidas. Quer dizer, sem a melodia que lhes deu lugar, sentido e vida. Com Orestes, o poeta e o letrista são um só. Suas letras foram concebidas como poesia. E, por isso, são tão bonitas lidas como ouvidas.

Em resumo, digamos que Orestes Barbosa, para se expressar poeticamente, trocou o livro pela canção. E que Vinicius de Moraes, em vez de trocar um pela outra, fez-se letrista. Exceções? Certamente. Vinicius já fez poesia antes, nos sonetos que Tom Jobim musicou, ou ao mesmo tempo, ao criar música e letra para obras sem parceiros (“Serenata do adeus”, “Medo de Amar”, “Luciana”). E Orestes já letrou música pronta, como nas versões, possivelmente encomendadas, para canções de Franz Lehar, Con Conrad, Mischa Spoliansky. No fim da história, ficam as diferenças que os distingue, mas não os hireraquizam. E a certeza de que foram igualmente grandes.

JOÃO MáXIMO é jornalista. Trabalha no Caderno de Cultura de O Globo e produz programas para a Rádio Batuta, do IMS. Tem 19 livros publicados. Prêmio Esso de Jornalismo, com a re-portagem “Futebol Brasileiro, o longo caminho da fome à fama”, e prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte pela pesquisa, roteiro e apresentação da série “Vinicius, música, poesia e paixão”, 32 programas de uma hora cada originalmente transmitidos pela Rádio Cultura de São Paulo.

Page 112: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos
Page 113: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

umA luz Sobre o AcAdêmico pAScHoAl

cArloS mAgno: teAtro & mecenAto

“Pierrot, pierrot, teu destino tão lindo é sofrer, é chorar toda a vida por amor

do amor de alguém...”(Joubert de Carvalho em parceria com Paschoal Carlos Magno)

Mesa-redonda em homenagem a Paschoal Carlos Magno realizada em 5 / 10 /2015 na Academia Carioca de Letras, com a participação da atriz Fernanda Montenegro e as

palestras dos Acadêmicos Miriam Halfim e Sergio Fonta.

Page 114: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

114 | REVISTA DA ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS 2016 • SEGUNDO SEMESTRE 2016

pAScHoAl, o mAgno

Sergio Fonta

Falar que o teatro é o homem, todos sabem. Desde os gregos, com suas tragédias e comédias, o homem é a estrela do espetáculo. Mas e quando é o contrário? Quando o homem é o Teatro? Quando o homem suplanta sua condição humana e se transmuta em Teatro? Aí tudo se torna missão. Você olha aquele homem e vê um teatro inteiro andando nele. Ele vasa brilho, palco, serragem, sonhos, sons. Sua vida toda voltada para uma convicção, uma verdade absoluta que encontra eco e permanência em sua escolha. Este homem múltiplo, multifacetado, desvairado e apaixonado se chama Paschoal Carlos Magno. Ocupou a Cadeira nº 7 da nossa Academia Carioca de Letras, cujo patrono é o Visconde de Araguaia – que não é outro senão Gonçalves de Magalhães, o autor do primeiro drama brasileiro - e tomou posse no dia 8 de setembro de 1976. O atual ocupante da Cadeira nº 7 é o poeta, contista, crítico e ensaísta Marcus Vinicius Quiroga.

Paschoal era carioca, nascido em 13 de janeiro de 1906. Talvez pelo sangue italiano, her-dado de seus pais, foi um incandescente cidadão dos tablados de todo o país. Não tinha papas na língua, era visceral, necessitado do amor e com enorme capacidade de amar. Com apenas doze anos escreve seu primeiro livro, de poesias – Templos -, aos 16 anos o segundo, Tempo que passa, e o terceiro, aos 21, Chagas de sol; um ano depois seu romance Drama da alma e do sangue ganha Menção Honrosa na Academia Brasileira de Letras, até que inicia, finalmente, sua trilha pelo teatro, quando funda, em 1929, a Casa do Estudante do Brasil, para apoiar os jovens que precisavam estudar e não tinham condição financeira para o sustento na megalópole em que começava a se transformar o Rio de Janeiro.

Na fundação da Casa do Estudante, conta com uma grande parceira a seu lado: a escritora e poeta Anna Amélia Carneiro de Mendonça que, como se não bastasse ser uma mulher de larga visão, nos deu uma filha que conquistou um lugar especialíssimo no ensaio e na crítica, Bárbara Heliodora, uma trajetória fulgurante na análise teatral e que há pouco nos deixou. Para fortalecer sua ideia e de Anna Amélia, Paschoal viaja por todo o norte, durante meses, realiza conferências e feiras literárias, divulgando a ideia da Casa do Estudante. Já faz por lá o que faria a vida inteira: criar projetos para o teatro brasileiro, ceder seus bens, pedir ajuda de políticos, de intelectuais e do povo, acreditar nisso e doar-se como pouca gente fez, em função, sempre, de uma pequena palavra de seis letras: Teatro.

Como dramaturgo, Paschoal estreia aos 26 anos com a peça Pierrot, contemplada, desta vez, com o prêmio máximo da mesma Academia Brasileira de Letras e encenada no Teatro João

Page 115: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

EFEMéRIDES | 115

Caetano, em 1931, pela Cia. Jayme Costa. Escreve mais duas peças, a segunda delas – Amanhã será diferente – a que maior alcance teve em relação às outras, inclusive internacionalmente, pois estreia em Londres, em 1946. é saudada com entusiasmo pela imprensa inglesa e publicada pela mesma editora de Bernard Shaw. No Brasil, só é montada em 1951, pela Cia. Graça Melo e seu Teatro de Equipe, no antigo Teatro Regina, hoje Dulcina. Em 1947, sua terceira peça – Seremos sempre crianças – entra em cartaz no Teatro Ginástico, com a Cia. Alma Flora. Deixa inédita uma quarta peça, Depoimento pessoal, editada pela Universidade Federal do Ceará.

Em Londres, porém, durante a II Guerra ainda lança um novo romance – Sun over the palm, que desperta a atenção da crítica europeia e de escritores do porte de H.G.Wells_e J.B. Priestley, sendo traduzido para diversas línguas. Mas o forte mesmo de Paschoal é o Teatro do Estudante do Brasil, inaugurado em 1938. Ali começa a real mudança de sua vida. Segundo alguns, o TEB teria sido o responsável pela implantação do cargo de diretor artístico e não o ensaiador, pela exclusão do ponto, a valorização da cenografia e do figurino e pela introdução do modo de falar do brasileiro no palco, antes dominado pelo sotaque lusitano. Bem, aí há controvérsias: para outros, a exclusão do ponto – que era uma pessoa escalada para dizer o texto da peça para os atores, durante a apresentação, escondido do público - foi feita por Dulcina de Moraes, assim como uma atenção maior que ela sempre deu aos cenários e figurinos, na Cia. Dulcina-Odilon. O jornalista Álvaro Armando, em O Globo, em 27 de outubro de 1938, menciona a questão do ponto.

Diz ele: “(...) De repente estabeleceu-se a confusão. E o Ponto? Ninguém se lembrara dele. - E o Ponto? Quem vai ser o ponto?, pergunta o Paschoal Carlos Magno, revirando para trás os olhos e o cabelo em desalinho. - O Ponto? Inda não foi “sorteado”, responde um estudante, distraído”.

Ou seja, não só o ponto ainda existia no TEB, como Paschoal perguntava por ele. Pelo menos, em 1938... Já a introdução da prosódia brasileira em nossos palcos teve início bem antes, em 1921, no Teatro Trianon, com uma Companhia formada por Oduvaldo Vianna, Nicolino Viggiani e Viriato Corrêa, que só encenava textos nacionais e não permitia o sotaque português em seus elencos. O que não invalida em nada a explosão que foi o surgimento do Teatro do Estudante.

A estreia de Romeu e Julieta, sob a direção de Itália Fausta, com Paulo Porto e Sonia Oiticica nos papéis principais, no Teatro Municipal, causou sensação. Naquele tempo, principalmente em peças com estudantes, as apresentações se distribuíam por outros teatros, mas nesta estreia, em 28 de outubro, os jornalistas especializados não poupam elogios. Mário Nunes, um crítico tão respeitado nos anos 1930 / 40 como, por exemplo, yan Michalski no anos 1960/70 e 80, é efusivo em artigo do Jornal do Brasil, no dia seguinte à estreia:

“O belo sonho de Paschoal Carlos Magno teve ontem, à noite, uma esplêndida realização. Es-tudantes das nossas escolas superiores interpretaram Romeu e Julieta, de Shakespeare, na bela versão portuguesa do Dr. Domingos Ramos. Foi um espetáculo de arte a que Itália Fausta sem outro estímulo

Page 116: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

116 | REVISTA DA ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS 2016 • SEGUNDO SEMESTRE 2016

do que a satisfação do seu ideal de teatro emprestou como ensaiadora sua valiosa colaboração. Um público seleto aplaudiu com entusiasmo e espontaneidade todos os quadros e, no final do espetáculo, fez vir à cena para merecida consagração Paschoal e Itália. (...) O lindo espetáculo repete-se hoje e amanhã. O público deve estimular o belo esforço para que ele frutifique como é de desejar”.

Mas nem tudo são flores. A revista Dionysos, em 1975, faz um nº especial sobre o Teatro do Estudante do Brasil, o Teatro Universitário e o Teatro Duse e, num levantamento de comentários na imprensa à época da estreia de Romeu e Julieta, assinala um artigo de Rubem Braga, em que excelente o cronista, alçado à posição de crítico teatral, que nunca foi a sua praia, no jornal O Imparcial, de 6 de dezembro de 1938, faz várias restrições à montagem, até mesmo a Shakes-peare, na ocasião de uma das temporadas. Braga, porém, rende-se ao projeto como um todo:

“(...) O importante é que os estudantes fizeram teatro de verdade. Fizeram, estão fazendo e vão fazer. Antes do último ato um rapaz apareceu no palco para anunciar a instalação do Congresso Nacional de Estudantes. Eles vão discutir os problemas culturais, econômicos e esportivos da classe. E essa classe é das tais que todo mundo precisa ajudar. (...) Eu, francamente, quando percorro com os olhos e com os ouvidos a turma que representa a cultura , a elite cultural do Brasil de hoje, é verdade que vejo algumas pessoas decentes e ouço algumas vozes altas e honestas. Mas vejo tanto chicharro e ouço tanto tereré que prefiro acreditar que a melhor geração é essa que vem aí...”.

A estreia do Teatro do Estudante do Brasil com o clássico de William Shakespeare, autor a quem Paschoal recorreria muitas vezes, sempre com êxito, certamente serviu de balão de ensaio para o que aconteceria dez anos depois, em 1948, no Teatro Fênix, com a montagem de Hamlet e a consagração de um jovem e desconhecido ator: Sérgio Cardoso. A temporada sacode a imprensa e a cidade, sendo Cardoso apontado como o maior acontecimento artístico dos últimos cinquenta anos. Não foi pouca coisa. é o coroamento do Teatro do Estudante e das ideias arrojadas, concebidas pelo mago de Santa Teresa, bairro carioca onde ele ancorou sua casa por toda a vida e criou o Teatro Duse.

Paschoal bebe na fonte do bardo também em 1949, com o Festival Shakespeare e as en-cenações, mais uma vez, de Romeu e Julieta, ao lado de Macbeth e Sonho de uma Noite de Verão, sempre com a revelação de novos valores em todos os segmentos, com atores, atrizes, diretores, cenógrafos e figurinistas, muitos dos quais se profissionalizaram e marcaram seus nomes definitivamente no teatro nacional.

Este compulsivo e talentoso empreendedor, um verdadeiro agitador cultural, devia ter uma personalidade forte e sedutora, assim como acurada e, até mesmo, patriarcal. Defendia ou, melhor dizendo, prezava por seus filhotes – os componentes do TE - com elegância, senso de oportuni-dade e uma tênue sutileza... Durante a temporada de Hamlet, que, já sabemos, foi um sucesso retumbante, Paschoal, em sua página no jornal Correio da Manhã, em nota publicada em 14 de março de 1948, um domingo, depois de elogiar vários atores e espetáculos em cartaz, inclusive Inês de Castro, montagem do Teatro do Estudante, diz “en passant”, quase como se fosse sem querer:

Page 117: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

EFEMéRIDES | 117

“(...) Ia me esquecendo. Há também Hamlet, pelo Teatro do Estudante, às 15h, no República. Este teatro – diziam – tinha má sorte. Para que esse adjetivo? Com Hamlet está se enchendo. Boa sorte. Hoje vai ser o mesmo. Olhe, se chover, não fique em casa. Tome de seu guarda-chuva, capa. Chuva não mata ninguém. Se não o interessar o táxi da esquina, espere seu ônibus ou bonde. Mas vá a um teatro”.

Ou antes, quando da estreia de Hamlet, no mesmo Correio da Manhã, em 8 de janeiro, completamente arrebatado pela montagem e pelo desempenho de Sérgio Cardoso. Disse ele:

“Nunca uma batalha foi arduamente ganha como essa de encenar Hamlet, de Shakespeare, na admirável tradução de Tristão da Cunha, pelo TE. Quando a cortina rolou sobre a última cena com os seis capitães ordenados por Fortinbras conduzindo por sobre a cabeça de braços levantados como lanças rijas de carne, o corpo inteiro içado de Hamlet, a plateia que superlotava o Fenix prorrompeu numa ovação extraordinária. Intérpretes e diretor aclamados delirantemente. A cortina abria-se e fechava-se, tantos eram os vivas, palmas, chamadas pelos artistas que por fim a cortina ficou des-cerrada para um espetáculo novo: de uma plateia inteira d pé que aplaude sem fatigar-se os artistas que lhe sorriam do palco iluminado. Sérgio Cardoso, que vinha de interpretar Hamlet genialmente, consagrara-se em 4 horas de espetáculo como o maior ator do Brasil...”.

Depois, foi o que se viu: Sérgio Cardoso, com seus trabalhos em teatro e tv, tornou-se um ídolo, até morrer, em 1972. Da fábrica de talentos em que se transforma, primeiro o Teatro do Estudante, depois o Teatro Duse, são quase incontáveis os nomes que construíram suas carreiras com brilhantismo, como os já citados, ao lado de Maria Fernanda, Sergio Britto, Fregolente, Pernambuco de Oliveira e Luís Linhares, a partir de Hamlet. E muitos outros que também en-traram para a história do teatro brasileiro, como Cacilda Becker e Glauce Rocha. E também a nossa Maria Pompeu, aqui presente. O Teatro Duse foi uma das joias de estimação de Paschoal, que tudo fez por ele e por sua manutenção, abrindo mão de bens pessoais valiosíssimos para sustentar seu ideal.

O Duse, inaugurado em 1952, também foi muito importante no afloramento de vários autores brasileiros que ali tiveram sua estreia, seu campo de ação e de aprendizado. Perto de vinte originais foram apresentados, entre eles textos de Rachel de Queiróz, Francisco Pereira da Silva, Antonio Callado e Maria Inez Barros de Almeida.

Rachel de Queiróz, que estreou no Duse como dramaturga com a peça Lampião, disse sobre Paschoal, quando escrevia na revista O Cruzeiro: “Creio que nunca outra pessoa, nessa Terra, foi responsável por um movimento cultural de tão amplas repercussões, pois criando o Teatro do Estudante, Paschoal não lançou apenas uma geração de artistas, foi realmente o cabeça de uma revolução. Tal é a importância de sua contribuição que se pode falar em teatro no Brasil antes e depois de Paschoal, como fases complementares separadas na vida de nossas artes dramáticas…”.

Paschoal fez de tudo em nossa cultura, mesmo quando estava fora do país, na Inglaterra e na Grécia, em sua carreira diplomática. Do período no berço do teatro, posteriormente, escreve o

Page 118: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

118 | REVISTA DA ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS 2016 • SEGUNDO SEMESTRE 2016

livro Não acuso nem me perdôo (Diário de Atenas). Quando partia para missões mais demoradas, sempre deixava profissionais, como Maria Jacintha e José Jansen, cuidando de seus projetos no Brasil. Na política, quando eleito vereador em 1950, ou no trabalho como oficial de gabinete do então Presidente Juscelino Kubitschek, em 1957, o teatro está sempre em sua cabeça. Estimulou a criação do Teatro Experimental do Negro, nos anos 1940, realizou festivais e viagens com artistas por todo o país, com repertório de altíssimo nível, na maior parte das vezes sem ajuda oficial. São históricas suas passagens com as “Caravanas da Cultura” e a “Barca da Cultura”. Desbravava o país com imensa coragem e destemor. Ia para o norte, nordeste, centro-oeste, sudeste ou sul, onde fosse. Não tinha medo de Brasil. Nem do Brasil.

Seu sonho e sua devoção pelo teatro eram maiores que qualquer obstáculo. E quando o obstáculo lhe impunha parar, ele não tinha pudor em declarar sua penúria quase de forma ope-rística ou, mesmo, patética, como no artigo intitulado “A despedida do fracassado”, no Correio da Manhã de 23 de junho de 1949. Depois de citar obras de arte suas que foram vendidas para saldar compromissos, como uma talha italiana do século XIV e um quadro de Gregório Prieto que retratava Garcia Lorca, depois de imprecar contra os ouvidos surdos das ajudas governamentais e de se dirigir aos jovens que lhe escrevem de todo os cantos do país, Paschoal diz:

“(...) Minha contribuição terminou, mas a deles será muito mais importante, mais séria, porque partirá da juventude, os que ainda não estão comprometidos com a vida. Não há desencantos no meu gesto. Há cansaço, muito cansaço e uma certeza de que se poderia fazer grandes coisas neste país se houvesse menos banquetes oficiais, se os homens não interessassem, em vez das ideias que defendem; se a cultura encontrasse junto das autoridades o clima que só os prélios esportivos alcançam; se não existisse a permanente preocupação de diminuir os que lutam pela educação do povo, obrigando--os à humilhante perda de tempo, na antecâmara dos importantes do governo e da fortuna. E uma melancolia imensa de saber que não fui útil como desejei ardentemente. Essa despedida é a confissão da qual não me envergonho: de haver fracassado”.

E completa com um PS: “se algum de nossos leitores quiser contribuir para a venda acima, poderá fazê-lo, mandando os seus presentes aos meus cuidados, para o Teatro Fenix”.

Ou então, sempre atilado e teatral, quando em 1978, como conta Martinho de Carvalho que, junto com Norma Dumar, organizou o livro Paschoal Carlos Magno / Crítica teatral e outras histórias, editado pela Funarte em 2006, vende sua casa em Santa Teresa, linda e adquirida pela mesma Funarte, para pagar dívidas da Aldeia de Arcozelo, sobre a qual Miriam Halfim falará em breve, projeto único no Brasil, que deveria render homenagens para seu criador através da eternidade. Com as cobranças estratosféricas que batiam à sua porta, Paschoal não se furta a declarar, dramaticamente: “Já que não me ajudam os poderosos, vou tocar fogo na Aldeia”.

Convém não brincar com o fogo de Paschoal... Foi um homem que incendiou o país com suas ideias, seus projetos mirabolantes e audaciosos, seu irretocável e profundo amor pelo teatro. Mas a vida não é exatamente como se quer. Hoje me caiu nas mãos um comunicado da

Page 119: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

EFEMéRIDES | 119

Funarte, publicado em seu site – acho que nem Miriam talvez saiba – avisando da interdição da Aldeia de Arcozelo sine die.

A Portaria nº 255, de 23 setembro de 2015, ao acatar a sugestão constante de um laudo técnico, afirma, em certo trecho, que estão suspensas as atividades internas e externas do Com-plexo Cultural Aldeia de Arcozelo, por tempo indeterminado, tendo em vista o estado do imóvel e a necessidade de obras de reforma.

Pelas informações que obtive, a Aldeia se encontra, de fato, em estado lastimável, neces-sitando de reformas urgentes e a providência da suspensão é correta. Mas o que me assusta, na Portaria, é o “por tempo indeterminado”. Quanto tempo? Teremos tempo? Até quando uma obra do porte e da dimensão da Aldeia de Arcozelo ficará no limbo? Que os deuses – e os homens, claro – olhem, com carinho e objetividade, para esta causa. Não se esqueçam que Paschoal está lá no olimpo, mas tem poder de fogo...

Para concluir, aí vão duas pequenas declarações dele e da atriz Maria Fernanda, em depoi-mento dado ao antigo Serviço Nacional de Teatro, que mostram bem o espírito de Paschoal, cinco anos antes de sua morte. Da entrevista participaram Maria Fernanda, Luiza Barreto Leite, Pernambuco de Oliveira, Rachel de Queiroz e o criador da Aldeia de Arcozelo.

Diz Maria Fernanda em certo momento: “(...) O Paschoal é uma criatura incrível. Outro dia, fomos nós a uma missa de sétimo dia. O Paschoal não me deixava em paz. Ele dizia: “Me lembra aí cinco peças importantes para eu fazer no meu festival de Arcozelo. Vamos, me lembra!”. A cabeça dele estava longe da missa. Só pensava no teatro. (...)”.

E o próprio Paschoal, em uma fala definitiva, simples, direta e passional como ele o foi em toda a vida: “(...) Eu não estou me queixando. Eu vim pela rua, agora mesmo, e parei várias vezes, porque várias pessoas me beijaram, homens, mulheres, artistas, jovens, velhos, todos. Eu os amo a todos. Não fosse a minha capacidade de amá-los, não valeria a pena continuar vivendo”.

Esse era Paschoal, o Magno.

SERGIO FONTA é escritor, dramaturgo e ator. Membro-titular do PEN Clube do Brasil, da Academia Brasileira de Arte e da Academia Carioca de Letras, onde ocupa a Cadeira 14 e dirige esta Revista. Acaba de receber da União Brasileira de Escritores / RJ o Certificado de Grande Mérito Cultural 2016.

Page 120: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

120 | REVISTA DA ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS 2016 • SEGUNDO SEMESTRE 2016

pAScHoAl cArloS mAgnoum quiXote do noSSo

teAtro

Miriam Halfim

‘Sem a ajuda do artesão, o diamante continuaria carvão’.Com certeza, assim pensava Paschoal Carlos Magno, artesão respirando teatro, arte ama-

da acima de tudo. Ator, diretor, poeta, romancista, dramaturgo, crítico e diplomata, por onde passava tinha o olhar atraído para o teatro. Deste, amava todos os gêneros, menos o mau teatro, que não perdoava. Com razão.

Nascido em 1906, já em 1929 começou seu trabalho em prol dos estudantes brasileiros. Desde então, seu interesse pela Educação e pela Cultura só fez aumentar. Em 1933, Paschoal, então vice-cônsul do Brasil em Manchester e depois em Londres, já havia lido e estudado toda a obra de William Shakespeare, e afirmou, em uma de suas palestras, que... ‘enquanto houver Shakespeare, o teatro não morrerá no mundo.

Sobre Paschoal Carlos Magno sempre caíra o peso de arcar com os encargos financeiros de seus empreendimentos, mas a Aldeia de Arcozelo é, sem dúvida, o maior de todos: o gigante que o alimentaria - e depois destruiria.

Encantara-se o mecenas com as ruínas da fazenda colonial portuguesa de 1792, que no século XVIII era adjacente a Petrópolis e à terra de um fazendeiro próximo à família real portu-guesa. Numa pequena parte dessa extensão de terras viviam os Arcozelo; posteriormente, a área foi passada às mãos de outro fazendeiro, que em 1945 a perdeu, no carteado, para João Pinheiro.

A fazenda-hotel só fizera fenecer até a chegada de Paschoal Carlos Magno. Os netos de João Pinheiro gostaram de seu projeto e a doaram, com a condição de que fosse usada apenas para atividades culturais.

Em 1958, Paschoal Carlos Magno decidiu realizar o maior dos sonhos deste que seria conhecido como o Quixote das Artes: a Aldeia de Arcozelo. Então, o espaço conheceu, sob a batuta do novo dono, uma luta de sete anos de angariação de fundos para a aquisição e restauro do estilo arquitetônico, além dos acréscimos sonhados pelo amante da Cultura. A Aldeia de Arcozelo seria ‘um lugar de beleza’, um espaço de reflexão, de estudo e de paz.

Paz, entretanto, o local pouco conheceu. Paschoal lidava com a crônica falta de verba e

Page 121: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

EFEMéRIDES | 121

sua limitada capacidade de administrar projeto tão ambicioso. Tratava-se de um mecenas sem dinheiro, um intelectual romântico enfrentando crises políticas, jurídicas e financeiras.

Alheios aos problemas, grupos de estudante se reuniam na Aldeia de Arcozelo, onde Pas-choal Carlos Magno construía o maior espaço destinado às artes. A Aldeia, inaugurada em 1965, contava dois teatros – um ao ar livre, com capacidade para 1.200 pessoas, batizado com o nome de Itália Fausta, e outro, em ambiente fechado, com 400 lugares, homenageando Renato Vianna.

No local havia, ainda, um albergue, museu, biblioteca, salas para oficinas e aulas de dan-ça, teatro, música, pintura, refeitório (com refeições providenciadas graciosamente ou a preço simbólico para os participantes), anfiteatro, etc. Preocupou-se Paschoal Carlos Magno em dar a cada espaço um nome que homenageasse artistas de várias áreas, como Renato Vianna, Patrícia Galvão, Pancetti, Itália Fausta, e outros. Ele conseguira. Dava vida, enfim, à ‘Universidade Livre de Artes’ que, no entanto, tão efêmera duração teria.

Na Aldeia aconteceram os dois últimos Festivais de Estudantes que Paschoal organizou, ministrando cursos, seminários, espetáculos sob a direção de José Celso Martinez Correa, Amir Haddad, Antônio Abujamra, Ziembinski, Gianni Rato, entre outros artistas que colaboravam com a obra deste brasileiro apaixonado pela Cultura.

No entanto, vivendo aos trancos com a ditadura e os militares, as forças de Paschoal termi-naram, por fim, minadas. Sua eterna obstinação, que antes parecia crescer diante de obstáculos, finalmente o abalava e atormentava.

O Mecenas berrava por apoio à sua querida Aldeia de Arcozelo, como antes havia con-clamado a atenção das autoridades e dos poderosos para atividades artísticas anteriores, que desenvolvera em sua longa trajetória em prol da Cultura brasileira. Seu amor sem limites pelo teatro (que incluiu a construção do teatro Duse em sua própria casa, com entrada gratuita, e onde, nos intervalos coletava-se para a cantina dos atores que lá atuavam) havia forjado sua consagração e era agora causa de seu definhar.

Aliás, O teatro Duse foi fechado em 1957, aberto, cerrado e reaberto em 1975. Sem qual-quer apoio financeiro, apenas uma peça foi apresentada na última investida, sendo interditado de novo, o que Paschoal muito lamentou; como afirmava ‘era o único teatro-laboratório no Brasil, para o qual poucos ajudaram materialmente’. Parece que, desde então, a falta de apoio à Cultura já se tornaria uma constante.

Paschoal, que jamais medira esforços pelo teatro, chegou a promover a ida de uma delega-ção cultural de 18 estudantes à Europa, onde se encontrava a trabalho, em mais uma atitude de mecenato que lhe custaria, à época, 8 mil dólares de seu próprio bolso, além da movimentação de entidades culturais nos países visitados, todas em apoio ao seu esforço.

Mas, em 1978, Paschoal teve de vender sua casa em Santa Teresa e todos os seus bens para pagar dívidas da Aldeia de Arcozelo, cujos custos já mantinha havia muitos anos, como acontecia habitualmente com seus projetos; o piano de cauda, aliás, foi dos primeiros a deixar a sala de

Page 122: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

122 | REVISTA DA ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS 2016 • SEGUNDO SEMESTRE 2016

Santa Teresa, a fim de construir a piscina da Aldeia. Em 1979, beirando os 80 anos e vendo, de novo negado o apoio necessário, tanto dos poderosos quanto das autoridades brasileiras (o que, infelizmente, não nos soa estranho ao ouvido), endividado até a alma, proclamou que atearia fogo em seu amado empreendimento. Esbravejava a plenos pulmões contra a ignorância vigente, consciente de que esta podia acabar com um país, com um povo, com toda uma civilização.

Em resposta, de cada canto do Brasil vieram notas de um cruzeiro para salvar a capela, os teatros, a sala de música, os dormitórios, os museus, o restaurante, a biblioteca, a sala de exposi-ção e a pinacoteca, espaços que haviam abrigado tantos estudantes de arte. A renda de inúmeros espetáculos também foi doada para pagar a dívida. Nada, porém, foi suficiente.

Em 1980, o poeta, ator, crítico, dramaturgo, diplomata, mecenas, amante do teatro e da Cultura, morreu. A partir de então, a Aldeia de Arcozelo teve a decadência ainda mais acelerada. Hoje, após acertos com os herdeiros de Paschoal Carlos Magno, pertence à Funarte. Teoricamente, está aberta à visitação pública e em seus espaços acontecem espetáculos teatrais e festivais. Na prática, o local está interditado, pois um acordo para sua manutenção entre a Aldeia, a Funarte e a prefeitura local jamais foi cumprido como devido, correndo na Justiça uma ação judicial que busca resolver a questão.

Apesar de tudo, como é verdadeira a frase de Paschoal Carlos Magno de que ‘enquanto houver Shakespeare, o teatro não morrerá no mundo’, podemos afirmar sem medo que, apesar do quadro pouco animador em que se encontra a Cultura brasileira, enquanto lembrarmos e nos inspirarmos em seres geniais como Paschoal Carlos Magno, o teatro certamente não morrerá.

MIRIAM HALFIM é mestre em Literatura Inglesa, escritora e dramaturga. Membro do PEN Clube do Brasil e da Academia Carioca de Letras – Cadeira 33.

Page 123: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

EFEMéRIDES | 123

depoimento Sobre pAScHoAl cArloS mAgno

Fernanda Montenegro

Eu não preparei nada especial, é mais uma impressão de quem olhou para esse homem quando da montagem de Romeu e Julieta, em 1938, com Paulo Porto. Eu, na época, tinha nove anos, uma menina do subúrbio, uma família classe média-média, e se ouviu falar do Paschoal através de Romeu e Julieta, que são nomes emblemáticos na obra de Shakespeare, você pode nunca nem ter lido, mas sabe que tem Romeu e Julieta, você sabe que tem Hamlet, você sabe que tem Macbeth. Essa figura do Paschoal, voltei a prestar atenção nele, quando já adolescente. Ele teria vindo, antes de 38, da Inglaterra tocado pelo teatro inglês, apaixonado por Shakespeare, então começaram a busca de se organizar o Teatro do Estudante. Eu me lembro do Hamlet do Sérgio Cardoso, eu vi dezoito vezes... Vocês não têm ideia do que foi aquilo, eram multidões, vinha gente do Brasil inteiro para ver o espetáculo, dirigido pelo Harnisch (Hoffmann Harnisch) um dos tantos estrangeiros que tinham fugido da guerra para cá, um alemão. Era um espetáculo extremamente romântico, tinha uma escadaria e o Sérgio Cardoso, ungido por uma interpretação altamente romântica, se trucidava na cena, saía ferido dos duelos, tomava óleo canforado pra poder ter força para voltar para o espetáculo. Ele tinha que ter fôlego para chegar ao final e que, no fim, naturalmente, ele rolava aquela escadaria e a plateia ficava tomada por essa força cênica que nunca mais eu vi no Brasil, essa pujança de talento e de loucura que era o Sérgio Cardoso. Aí, tinha Sérgio Brito, tinha Fregolente, pessoas com quem eu me liguei na vida.

Então isso tudo é para dizer o seguinte: o Paschoal seria indestrutível, na nossa geração a figura do Paschoal e tudo isso que foi dito aqui era mítico, ele daria o caminho e a vida ou a vida e o caminho para todos nós. O teatro tinha saído dos escombros, o teatro tinha saído do anonimato, porque o Teatro do Estudante trazia autores extraordinários, clássicos, todos que eram assim de gerações e de épocas, cenários... Isso não fazia parte do visual e da estética do teatro no Brasil. E o Paschoal era essa força e também um criador, vamos dizer, celular. Porque ele fez escola, foi buscar as pessoas, juntou professores, criou um mundo de atendimento inte-lectual, atendimento profissional para as gerações. Como é possível que se esqueça uma figura como essa, como é possível que, nesse país, se apague uma figura como essa? Se se apaga uma figura dessa dimensão, nenhum de nós tem futuro. Porque culturalmente estamos sempre nas catacumbas, o teatro hoje em dia está nas catacumbas. São experiências, são espetáculos que

Page 124: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

124 | REVISTA DA ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS 2016 • SEGUNDO SEMESTRE 2016

têm que ser alternativos, que têm que ser marginais, que têm que ser como podem ser... Se é uma peça que tem dez atores ou dez personagens e você tem que fazer com três ou quatro, e não pode nem ter cenário porque, no mesmo palco, há três espetáculos, tem um das crianças no fim de semana, tem um às oito, outro às dez e mais um à meia noite. Geralmente vamos para o teatro do governo e o governo agora só da um mês para cada grupo para representar de quinta a domingo ou de sexta a domingo, como uma luz que tem, na medida do possível, servir a todos.

Então a minha geração, a gente que viu um líder como Paschoal e que construiu o que construiu com seu dinheiro e com a sua vida, com seu esforço, com seus relacionamentos surdos, porque ninguém atendia o Paschoal... muito pouco. E é engraçado ele se projetava achando que era tão grande, tão importante culturalmente falando que vinha com ele o povo, que o governo ajudaria, que os ministérios da educação e da cultura o ajudariam... Não! E nunca mais apareceu alguém igual, nunca mais! Porque ele terminou tão esquecido, tão infeliz e tão desautorizado, tão desprestigiado, não passou a chama dele para ninguém nessa dimensão de liderança. Cer-tamente tudo o que nós estamos falando hoje ficará aqui dentro dessa sala, não sairá daqui.(Felizmente saiu, Fernanda, querida) Para a imprensa, se tivesse ou se tem alguém aqui, isso não

Page 125: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

EFEMéRIDES | 125

é assunto. O Paschoal não tem dimensão histórica real e eu até pergunto quem tem dimensão histórica real nesse país. Então também eu sinto o seguinte: enquanto o teatro for nada nesse país, este país será nada. (Aplausos) Um país que é um país tem que ter teatro! Não precisam ser grandes produções de Broadway, não é isso que se está falando. Mas lá também tem porque é um capitalismo assinado, desfigurado e o cidadão vai lá e compra ações e tem os espetáculos. O rico vai lá e doa X para aquele espetáculo, seja orquestra, seja dança, seja teatro de Broadway, seja off Broadway, porque eles são autenticamente capitalistas e sem pudor. Nós vivemos num país onde a direita ela existe sempre, mesmo quando o cara se diz de esquerda, ele é uma direita camuflada. Então nós nem temos capitalismo e nem temos o socialismo, temos uma vontade de sovietização. Então não há lugar para o teatro. Então se vivemos na catacumba, o país está na catacumba. é claro que a gente tem riquezas, como a gente tem autores, é claro que a gente tem personalidades importantes... claro que se tem. Mas não se tem uma visão cultural educacional, não se forma gente dessa maneira. E eu acho que o Paschoal, dentro do século passado, para quem não o conheceu, é eterno. Eu me lembro do Paschoal, eu tinha assim um santo nele, eu falava com ele com muito respeito, porque ele estava numa altura que na minha mocidade, no meu início de carreira, era aquele que estava abrindo todas as portas do teatro no Brasil e trazendo para o teatro do Brasil o que tinha de melhor em torno, o que tinha de melhor em volta. E um dia esse homem acaba. Me lembro da última vez que o vi, foi até em São Paulo, eu estava em São Paulo nessa época. Ele estava apagado, não tinha aquele rosto de romano sabe, estava com um rosto... estava falido economicamente. Que lição a gente pode tirar disso? Esperar que, um dia, a gente aconteça culturalmente, que a gente aconteça educacionalmente? Não sei... Eu tenho 86 anos, desde criança que ouço que devemos dar cultura ao nosso povo, devemos dar educação ao nosso povo. Desde o primário que ouço isso. Os governos se sucedem em todas as direções, em todos os níveis e esse problema da cultura e principalmente o problema da educação... Esse problema é eternamente adiado. Terminamos o século, estamos iniciando outro e o caos é total no campo da cultura e educação. Então acho que se devia propor sair o movimento qualquer de uma estátua a Paschoal Carlos Magno, como representante daquilo que nós podemos ser como seres humanos e como brasileiros. Que é um líder cultural, um líder educacional e eu acho que Paschoal merece estar numa praça pública, não só para que se volte de alguma maneira a falar dele, a lutar por alguma coisa por ele e deixar alguma coisa escrita ali embaixo ao pé da estátua, lembrando a liderança desse grande homem que foi Paschoal. é isso que eu tinha a dizer.

FERNANDA MONTENEGRO é um dos nomes mais representativos do teatro nacional, sempre com atuações de imensa qualidade nos palcos e nas telas. Como se não bastasse isso, é também uma artista de ativa participação na frente cultural brasileira.

Page 126: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos
Page 127: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos
Page 128: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos
Page 129: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

A poeSiA doS confrAdeS HoJe

Page 130: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

reynAldo vAlinHo AlvArez Cadeira nº 17

O CANSAÇO DAS HORAS*

2Cintilações do cérebro puerilvertiam as esperas desatentas,ingênuas quanto às covas e ao covildas serpentes sinuosas e agourentas.

O som que as cores têm quando conversamsobre tons, entre si, sempre em segredo,e jamais quanto a eles tergiversamnem de longe anunciava o arcaico medoque outros dias trariam, quando as vozesvestidas numa roupa de amargurafingiriam mudez ante as atrozescenas de apocalíptica tortura.

Secariam dos risos as sementessob o som de cruel ranger de dentes.

3Mas nesses dias de um sonhar afoito,nessas manhãs envoltas nos afetos,nascidas de um ardente e amável coito,germinavam em jorros os projetos.

Canto 1Manhã

1Claras manhãs quando acabava o sonoe brilhava um céu feito de alegria,sem que a mão implacável do abandonohouvesse sepultado a fantasia.

Horas banhadas em perfeita luz,o mundo despertando para a vida,ninguém pensava na secreta cruz,no mais fundo recanto recolhida,e um vento irreal soprava como um sinosoando as seis batidas da alvorada,sob o lume de estrelas, opalino,que se entregava à luz do sol, dourada.

Ninguém diria nesse tempo claroque, no amanhã, o sol seria raro.

Page 131: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

A POESIA DOS CONFRADES HOJE | 131

Em mentes infantis e adolescentes,nimbadas de uma luz vertida a prumo,floresciam as messes imprudentesdos que se perderiam do seu rumo,mas nesse então viviam nas alturasdos ilusórios píncaros voltadospara as paragens vistas como puras,mas que exalam o fel dos renegados.

Aves do céu abandonado e anildecairiam na gaiola vil.

4Manhãs assim, esplêndidas e antigas,dessas infâncias presas nos seus nichos,tinham a cor dourada das espigasde um amarelo pleno de caprichos.

Tal um rei, no seu trono de ouropel,vendo como ouro os ínfimos metaise sorvendo esse néctar de um melfeito de choros, gritos, urros e ais,os espelhos convexos são as redesde iludir os que os fitam e se veemnão como os que os penduram nas paredes,mas como um outro e engrandecido alguém.

Aves que a luz cegou voam no espaçoe agarram, como presa, o seu fracasso.

5Manhã que o sonho enriqueceu no sono,alimento da noite, como um rioque alegrasse a paisagem do abandono,abriu-se num alegre desafio.

A escola acolhedora, seio fartode um leite inaugural pleno de espanto,tinha a grandeza súbita de um parto,enquanto o coro oferecia o cantoemerso das fileiras juvenis,sempre de pátrias míticas falando,como quem mente e crê no quanto diz,a si mesmo fraudando-se e enganando.

O coração ardia em plena chamacom a determinação daquele que ama.

6O amor à pátria era o geral conceitodos hinos melodiosos do recreiovibrando como um sino em cada peitoonde brotava o inicial anseio.

Florestas, céus, heróis, praias e mares,tudo vibrava em festa em cada lábiotocado pelo fluxo dos cantares,atentos ao conselho austero e sábioincrustado em cada hino, esperto vermeinstalado à vontade em sua concha,enquanto a mente, adormecida e inerme,não reagia, obscurecida e troncha.

A música e a poesia se casavamNa ilusão coletiva que criavam.

7O espaço mágico do pátio longo,território de diálogos truncados,tinha o úmido calor de um novo Congonos uniformes brancos e suados.

Page 132: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

132 | REVISTA DA ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS 2016 • SEGUNDO SEMESTRE 2016

Enquanto vozes múltiplas batiamumas nas outras como espadas loucase em metálico choque retiniampara expulsar ansiedades roucas,o pátio era uma arena no entreverode alegrias urgentes e vadias,antecipando o arcaico desesperoque incendiaria tantas fantasias.

Subia o carro, lá no céu, do sol,estendendo no pátio o áureo lençol.

8Cantorias e sóis, jogos e estudos,horas de sono e despertar, os ritosque se desfazem ao calor de entrudos,carnavais de afogar loucos e aflitos.

A vertigem do tempo, vida afora,tão rápida ao correr, mas, nesses anos,com a lentidão soberba em que uma horadesliza, lerda, num colchão de enganos,o dia a desdobrar-se em curvas calmas,um rio de planície, uma florestacheia de longas e de esguias palmas,na preguiça ancestral de fim de festa.

Dias imensos, mares irreaisde recifes traiçoeiros e fatais.

* “O cansaço das horas” faz parte do livro inédito Trívio e é dividido em cinco cantos, sendo que os quatro primeiros são compostos de 25 poemas, cada um, e o quinto, de 10.

REyNALDO VALINHO ALVAREz é poeta de produção trilíngue (português, espanhol e galego), editado no Brasil, em Portugal, na Espanha, na Itália, na Suécia e no Canadá, traduzido para inúmeras línguas, entre elas, o espanhol, o galego, o francês, o inglês, o italiano, o sueco e o persa, premiado no Brasil, em Portugal, na Espanha e no México, membro da Academia Carioca de Letras e do Pen Clube do Brasil. Representou a poesia brasileira em diversos eventos literários internacionais.

Page 133: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

mAritA vinelli Cadeira 28

VOU ESCREVER ATÉ MORRER...

Eu escrevo versos de noiteE às vezes de madrugada, Quando os anjos vão dormirE os fantasmas se levantamJunto com as bruxas e as fadasE os duendes pequeninosVão dançando de mãos dadasE as amazonas febris,Estremecendo as florestasCom seus gritos de guerreiras,Vão em doidas galopadas.

Já escrevi versos sorrindo,Já escrevi versos rezando,Já escrevi versos fremindo,Já escrevi versos desnuda,Já escrevi versos amando,Já escrevi versos tremendo,Já escrevi versos dançando,Já escrevi versos morrendo,Já escrevi versos chorando.

Mas hoje escrevo cantando,Jogando por onde passoO perfume dos meus versos,Que vão voando aos pedaços,

Que vão ficando perdidos,Que vão ficando dispersos.

Vou escrever até morrer.E me impedir ninguém há deQue um dia eu fale da vida,No outro eu fale da morte,No outro fale do amor,Da loucura, da paixão,Da tristeza e da saudade.

Vou escrever até morrer,Porque este é o meu fadário,Porque esta é a minha sina.Sou cativa e prisioneiraDe uma força muito estranha,Misteriosa e divina.Vou escrever até morrer,Porque amo tanto a vida,Que não sei o que fazer,Porque trago no meu serToda a festa do universoE dentro d’alma a ferver,Mil baladas, mil cantigas,Milhões e milhões de versos.

Page 134: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

134 | REVISTA DA ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS 2016 • SEGUNDO SEMESTRE 2016

MEUS POEMAS AzUIS

São lascivos, ardentes,Sensuais e alados.São poemas de amor.Se alguém encontrar,Devolva embrulhadosNum papel multicorPara a rua do pecado,Esquina da paixão,Escrito em cima:Estes poemas de perdição,Loucuras cheirando a flor,Vão para o dono desta mulherLouca de amor!

Meus poemas azuisSão poemas intensos.São todos teus.Vou mandá-los pelo correioDo mar azul profundoE se se perderemNo mundo deste mar imenso,Alguém os vai colher.São poemas azuis,Da cor do céu,Da cor do mar, com cheiro de paixãoe perfume de flor.

MARITA VINELLI é ensaísta, conferencista, escritora e poetisa. Diretora Cultural da Sociedade Eça de Queiroz. Aos 93 anos, junto com Stella Leonardos, é a decana do PEN Clube do Brasil e da Academia Carioca de Letras, onde ocupa a Cadeira 28. Entre outros livros publicou Encontro marcado com Eça de Queiroz (ensaio), No vale verde do meu sonho, Tu chegaste, primavera e Vou cantar até morrer, todos de poesia.

Page 135: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

diego mendeS SouSA

Membro correspondente

TINTEIROS DO ANDEJO SEM RUMO

Para onde vamosnão existe maisa casa dos tinteirosperante a qualforam erguidos os adágios sem pejo e sem rumo?

A casa por que passamospreserva os hábitosdo errar permanenteà luz dos clarõesconsumidos?

Sonhos de pesadeloscaíram como telhadosdespencados no precipíciodessa casa escura em ruínas.

Vivemos ainda o tempo de um séculoquando amarsão constelaçõesàs ocultas.

DIEGO MENDES SOUSA é membro titular correspondente da Academia Carioca de Letras. é autor de 10 livros de poemas, entre eles, Metafísica do Encanto e Tinteiros da Casa e do Coração Desertos. Nasceu na Parnaíba (PI), em 1989, quando o Boi de São João ainda brincava nas ruas da sua cidade, beira de rio, janela de mar.

Page 136: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos
Page 137: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

trânSito livre

Page 138: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos
Page 139: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

AmoreS em tempoS d’el rei:

literAturA e HiStóriA Mary del Priore

Portugal tem sobre o amor, uma história fundadora: aquela de D. Pedro e Inês de Castro. Inês de Castro é uma figura da his-tória de Portugal tomada inúmeras vezes como tema de várias

obras literárias, não só na literatura nacional, como também na de outros países. A Inês de Castro histórica era filha de um fidalgo galego, D. Pedro Fernandes de Castro. Foi uma das damas que acompanharam D. Constança quando esta veio de Castela para Portugal para casar, 1336, com D. Pedro, futuro D. Pedro I, filho de D. Afonso IV. Este se apaixonou por D. Inês, de quem teve filhos, e, segundo algumas fontes, declarou ter casado com ela, secretamente, já após a morte de D. Constança. O amor de D. Pedro e D. Inês suscitou forte oposição por motivos de ordem política. Temia-se que D. Fernando - filho de D. Pedro e D. Constança - fosse afastado do trono, tornando-se herdeiros da coroa os filhos de D. Inês. Por esse motivo, D. Afonso IV, pressionado pelos seus conselheiros, mandou, em 1355,

Page 140: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

140 | REVISTA DA ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS 2016 • SEGUNDO SEMESTRE 2016

executar Inês. Esta história de amor trágico tem sido tema de obras teatrais, narrativas e líricas que abordam, em maior ou menor grau, quer o fundo psicológico de Inês, quer o conflito de que ela é centro. Como personagem, Inês de Castro tem assumido características diferentes de acordo com o autor e a época em que os textos são produzidos. A universalidade do tema do amor puro, amor que sobrevive à morte, no caso de D. Pedro; um dos aspectos fecundos da lenda é o da coroação de Inês, já morta, por D. Pedro e a tragédia da morte inocente face à mesquinhez dos interesses humanos, têm garantido à figura de D. Inês uma resistência ao tempo e possibilitado uma atualização permanente, em termos estéticos, dos meios de contar a sua história. Mais do que uma personagem, Inês, e com ela D. Pedro, é o símbolo do amor inocente e infeliz.

Para além desta estória, desde o século XIII, tal como na França, trovadores em Portugal, cantam amores. O tema? A idéia de que Deus se revela na exaltação amorosa, sendo a beleza feminina seu testemunho na Terra. Os cantos poéticos, modelos de breves e rigorosas artes de amar, cultuam a “dona” que encarna a sabedoria e que dá a conhecer ao homem o seu destino.

Mas não é qualquer mulher esta por quem se “apaixona” o trovador alfacinha. Ela é elevada. Sua excelência de espírito e sua inteligência contam. A amada é portadora de valores morais que estimulam o que há de melhor no sexo masculino. Ela acende no parceiro o desejo do que lhe é superior. O homem, por sua vez, reconhece o lado sublime da mulher, renunciando, por isso ao prêmio material - o seu corpo. Neste código amoroso o que está em jogo não é a diminuição do desejo, mas a tensão em que o indivíduo se reconhece na experiência de desejar. O amor serve, assim, para aperfeiçoar moralmente a personalidade do amante. Numa cantiga amorosa de D. Dinis, o rei-poeta distingue o amor que é renúncia, daquele que é feito de cupidez e de sensações fáceis. Ele opta pelo primeiro e pela devoção total à mulher. Quanto aos outros, des-preza, pois “Amores semelhantes, tenho eu mais de um cento”. O conteúdo da maioria destas canções louva, também, a sublimação de sentimentos carnais considerados, então, inferiores.

Já as “cantigas de amigo” repõe o amor na sua dimensão humana, cantando a saudade do amigo ausente e o desejo de atender às suas solicitações sexuais: “Como morreu quem nunca amar/ se faz pela coisa que amou/ e quando dela receou/ sofreu, morrendo de pesar/ ai, minha senhora, assim morro eu”. “Por que muito quero, muito não desejo/ daquela a quem amo e tenho por bem”. “Vosso amor me leva a tanto! Se partindo, provocais quebranto que não curais/ a quem de amor desespera, de vós conselho quisera? ó formosa, que farei?”.

Uma parte destas cantigas se inspira na vida popular rural. Tem como personagem principal a jovem que vai à fonte lavar a roupa, ou a que vai pentear os cabelos no rio, onde se encontra com o namorado. Ou aquela outra que na romaria espera o amigo ou que aos santos oferece promessas pelo seu regresso. Outro grupo de cantigas leva-nos para ambientes domésticos; deixa-nos ver a moça a fiar, conversando com a mãe e com as amigas; o rapaz a pedir autorização para o namoro A protagonista das estórias é desembaraçada; sabe jogar

Page 141: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

TRÂNSITO LIVRE | 141

às escondidas com o amor, conhece o seu poder de sedução e o manipula; conhece a arte de provocar ciúme, do qual freqüentemente também é vítima. Os romances contam desde a alvorada do primeiro encontro até o casamento.

Um terceiro conjunto de poemas, também chamados “cantares”, se situa no ambiente da corte. O seu tema é o amor cortes, tal como o trovador fidalgo o imagina sentido pela mulher. Ele, então, louva a personagem principal por sua beleza – ela é “fremosa e louçã” -, ou enumera os que dela sentem saudades. Não se trata, como nos casos anteriores de uma experiência sen-timental a dois, mas, da aspiração do amante a um objeto inatingível. De um estado de tensão que só existe quanto mais ele se distancia de seu objeto do desejo. Manter este ideal de tensão parece ser o ideal do verdadeiro amante e do verdadeiro poeta. é como se – na tradição explica-da por Denis de Rougemont - o “amor do amor” o motivasse mais do que o amor à mulher. E não só a ela dirigem os poetas as suas implorações e queixas, mas, sobretudo, ao próprio amor personificado. Todo um código de obrigações regra o “serviço” do amante. Por exemplo, ele deve guardar segredo sobre a identidade da dama, controlando toda a expansão pública da paixão. A sua qualidade suprema é o autodomínio ou “mesura”. O apaixonado dever passar inúmeras provações comparáveis aos ritos de iniciação nos graus da cavalaria, antes de chegar a drudo, amante espiritual da midons ou dama.

Neste mesmo meio palaciano onde se aprecia e se coleciona a poesia lírica, não podia faltar o interesse pelos relatos de aventuras entre damas e cavaleiros. Eles aludem com freqüência a personagens bastante conhecidos como Tristão e Isolda, o mago Merlim, Flores e Brancaflor, na maior parte, traduzidos de romances franceses bretões. O maior e mais conhecido herói era Amadis de Gaule. Em sua estória, o tema da sensualidade se associa ao ideal do cavaleiro audaz e generoso, combativo e terno, casto e roído de desejos, a serviço de uma paixão bem humana, mas, ao preço de infindáveis dificuldades. Trata-se de uma obra profundamente conformista, que dá um lugar específico ao amor no interior de uma ordem preestabelecida, fixando-lhe regras e reconciliando-o com o casamento.

Amadis e Oriana se entregam, um ao outro, depois que uma determinada aventura os deixa as sós na floresta “naquela erva e em cima daquele manto, mais por graça e comedimento de Oriana que por desenvoltura e ousadia de Amadis”, é feita dona a mais formosa donzela do mundo”. A virtude é premiada no happy-end com que se encerra a obra. O Amadis, finalmen-te, se constituiria, para seu contemporâneos, num manual romanceado das virtudes do bom amante cortesão. Os discursos grandiosos dos cavaleiros, a quem os serviços amorosos impões combates pelas florestas, os diálogos dos amantes, as cartas, as mensagens de desafios ou os lamentos, oferecem modelos literários da vida fidalga entre aventuras empolgantes que eram o entretenimento preferido do alto a baixo da sociedade.

Mas a obra em que melhor se exprime o sentimento trágico de uma vida apenas orientada para o amor, é uma novela de psicologia amorosa, editada em 1554. Trata-se de “Menina e moça”

Page 142: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

142 | REVISTA DA ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS 2016 • SEGUNDO SEMESTRE 2016

de Bernardim Ribeiro. O romance começa pelo monólogo de uma jovem, em que se entrevê um amor infeliz, uma dolorosa separação, tudo isto num extenso crescendo de tristezas e perdas. Cada motivo de sofrimento é logo ultrapassado por outro, pior. O tom é o de confidência. A personagem diz não acabar o livro, pois suas mágoas não acabam nunca. Curiosidade: há um diálogo entre a donzela e uma “dona do tempo antigo” que também sofre de amores. E vemos aí as mulheres criticando os homens, por não conhecerem a importância dos cuidados amorosos. Só o isolamento doméstico – dizem elas -, lhes permite, o culto dos sentimentos delicados e à devoção que o sentimento exige.

O enredo do livro exprime a filosofia trágica do amor. Nele tudo acontece: a morte trai-çoeira de dois amigos, o suicídio de suas amadas, casos sentimentais de personagens secundários, revoltas do amor-paixão contra compromissos assumidos. Fiel à tradição portuguesa, o livro insere-se na ortodoxia católica, pois se arremata por dois casamentos e um funeral. Em Menina e Moça, as mulheres são seres vitais e práticos, sempre em busca de meios viáveis para levar a cabo o imperativo de amar. O isolamento e a tristeza em que vivem, podem, contudo, ser in-terpretados, não como derrota, mas, como expressão do inconformismo perante os obstáculos que impedem a realização do amor.

Camões, que dedica alguns versos a “linda Inês e a seu branco colo”, se deixa influenciar por santo Agostinho. Em sua poesia, a mulher aparece, não como companheira humana, mas, como um ser angélico que sublima e apura a alma dos amantes. Ele vai buscar na Itália renas-centista sua inspiração. Da mesma forma como Beatriz conduz Dante pelas alturas do paraíso, ele busca impregnar seus personagens femininos de uma luz sobrenatural que lhe transfigura as

Page 143: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

TRÂNSITO LIVRE | 143

feições. Luminosos são seus cabelos de ouro e o olhar sereno. Ela tem o dom de apaziguar os ventos, a sua presença faz nascer flores. Toda a sua figura é revestimento físico de um ideal de calma e gravidade, No retrato da amada, Camões persegue Laura de Dante.

Mas a experiência vivida por Camões não poderia se limitar a tais convenções. E, assim, ele registra o conflito entre o desejo carnal e o ideal do amor desinteressado. Se o “amor é um “efeito da alma” como entender que o amante queira ver corporalmente a amada – pergunta num soneto? E a resposta nos é dada por um personagem do Auto de Filodemo, Duriano, que aponta ironicamente a contradição entre amar pela “ativa” – fisicamente - e amar “pela passiva” – espiritualmente -, mostrando que a idéia de dois amores já estava bem consolidada.

Em grande parte da literatura de nossos ancestrais, o amor surge como um rebelde. Os heróis amorosos são sempre parceiros proibidos, amantes desunidos. Tristão e Isolda, Abelardo e Heloísa, Dante e Beatriz, Romeu e Julieta; todos amam de amores insubmissos aos ditames da lei, do costume, do casamento e da própria morte. Mas esse amor é também sempre irrealizado e portanto, fonte de sofrimento. A ambigüidade entre esse sentimento extremo que é vivido em meio a conflitos, provocando dor e prazer alternada e simultaneamente, é representado no maneirismo do século XVII como uma “concordância discordante”. Em Camões, por exemplo, esta visão dilacerada se manifesta em vários poemas.

“Amor é fogo que arde sem se verÉ ferida que dói e não se senteÉ um contentamento, descontenteÉ dor que desatina sem doerÉ um não querer mais que bem quererÉ solitário andar por entre a gente;É nunca se contentar de contente;É cuidar que se ganha em se perder;É querer estar preso por vontade;É servir a quem vence, o vencedor;É ter com quem nos mata lealdade;Mas como causar pode seu favorNos corações humanos amizadeSe tão contrário a si é o mesmo Amor?”

Na vida prática, os métodos de corte amorosa exigiam certas regras. Entre os membros das elites, por exemplo, a correspondência ajudava a codificar cada gesto. Escrever não era só comu-nicar, mas, também, arquivar lembranças e informações. Mais além, a carta vencia a ausência, a separação, à distância e o tempo. A idéia era estar junto, estando separado. Era prolongar,

Page 144: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

144 | REVISTA DA ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS 2016 • SEGUNDO SEMESTRE 2016

tanto quanto possível, a presença de alguém ausente. Mas não de qualquer forma. Daí autores ensinarem, passo a passo, a corte amorosa via correio. Tudo o que dissesse respeito à redação de missivas, à arte de conversar, às boas maneiras fazia parte do desejo de aprimorar, entre outras coisas, as conversações galantes. Quanto à assinatura do amante, o autor explica:

“nome e sinal de quem escreveu a carta, nem há de estar tão junto das letras que pareça sôfrego delas, nem no meio do papel como quem escolheu melhor lugar, nem tão apartado que fique ausente das regras, nem tanto na ponta do fim que pareça que se amuou naquele canto; mas assinar-se um pouco abaixo, mais inclinado à parte direita, que á esquerda, que é uma certa modéstia e humildade de quem escreve [...] porque há uns que se nomeiam servidor de vossa mercê, outros, vassalos, outros, cativo, outros, seu Nome, outros, o menor criado e há nisto muita variedade e ignorância. Seguro é cada um escrever o seu nome, sem mais leitura”.

Não faltavam recomendações estéticas: “o papel seja limpo para nele empregar, sem fastio, a vista; o selo, claro, pois é o cadeado que a defende (a carta) dos curiosos de saber segredos alheios”. As cartas de galantaria, no seu entender, serviam “de recreação para o entendimento e de alívio e consolação para a vida”. Elas tinham vários motivos: “agradecimentos, desculpas, de queixumes”. O missivista que não usasse clichês de mau gosto do tipo “cavalo ligeiro, árvore alta, calma ardente, ferro frio”, evitando palavras batidas como “firme sofrimento, incansável diligência, solícito desejo, cuidadoso receio, importuna lembrança...”. Uma boa carta de amor tinha que demonstrar “clareza de razão e brevidade de palavras”.

Não faltavam tampouco conselhos quanto à importância da voz do enamorado. Ela tinha que “ser clara, branda, cheia e compassada; porque a voz escura esconde as palavras; áspera e seca tira-lhe a suavidade; e muito delgada e feminina faz imprópria à ação de quem fala.”. Funda-mental, era evitar “voz de flauta espremida”. “Os olhos, como são as janelas da alma, por eles se comunica vida às palavras; e assim hão de ser claros, alegres e movíveis, porque os muito intensos e estendidos entristecem; os muito apertados e franzidos, movem o desprezo; os muito abertos, pasmados e saídos, fazem temor...Não vos esqueçais das sobrancelhas...Porque franzidas fazem carrancas...Baixas, representam tristeza ou vergonha; muito arqueadas, representam espanto, levantadas, alegria...a barba, fincada no peito mostra desconfiança e posta no ar, vanglória...o pescoço, nem muito firme que pareça espetado no pescoço...a boca há de ser quieta quando fala, sem torcer nem inchar as palavras...não se braceja quando fala, nem se festeja com risadas os próprios ditos...rir e festejar moderamente...não há de rir com a boca aberta, bem com os beiços apertados”. No vocabulário amoroso, não era incomum comparar uma bela jovem a “porcelana de ovos doces” e um mancebo a um “frangão espetado”. No momento do encontro entre a dama e o galante, ela devia aparentar ter “olhos de esguelha, ar no peito, tento no descalçar da luva, guedelha descuidada”, ou seja, despenteada!

Page 145: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

TRÂNSITO LIVRE | 145

Mas o amor não era somente coisa de elite. No universo popular também se encontram instantâneos de suas manifestações. Pense-se nas “aravias”, de influência árabe, narrativas he-róicas em verso, cantadas ao som de guitarra. Nelas, desfilam esposas fiéis como D. Catarina; mulheres cativas como Brancaflor, Melisandra, e heroínas perseguidas como Silvana e Iria ou a Imperatriz Porcina. As poesias populares, assim chamadas pelos etnógrafos também celebram amor; “Com as penas do pavão, com o sangue da cotovia, hei de escrever uma carta, ao meu amor algum dia”. Nestes poemas anônimos, era comum a presença de fontes onde enamorados se encontram, de pastoras que fogem com seus amados, ou de afirmações do tipo, “ o amor é cego, já vai me vencendo”. Cantadas na noite de são João, considerada festa ideal para adivinhas amorosas, certas músicas celebram a intercessão de santos milagreiros nas relações de pessoas que se querem bem: “Fui-me à porta do Batista (são João), perguntar por meus amores, lá de dentro me atiraram, uma capela de flores”. “Meu amor não vás a Avintes, nem pra lá tomes o jeito, olhe que as moças de lá, trazem a semente do feito”.

Já os conto de fadas ou “de encantos” tem sempre como herói principal um príncipe ou princesa enfeitiçada ou perseguida por conhecidos desafetos: gigantes, bruxas, feiticeiras, fadas, monstros. Só com muitos trabalhos e perigos, consegue quebrar o encanto ou escapar à perse-guição que lhe é movido por inimigos de seu amor. O tom geral é dramático e o desfecho, um casamento por amor.

Toda esta tradição textual, na qual obras de poetas, letrados, ou moralistas sistematizam conceitos e práticas sobre o amor, era devolvida à sociedade, mesmo aos seus grupos menos cultos, por meio da literatura vulgarizada, dos contos de fadas, da pregação nos sermões dominicais, da tradição oral. Ao lado da tradição culta, consolidada em nomes como Camões ou Rodrigues Lobo, viceja uma cultura popular. Da mistura de ambas, se plasma o imaginário luso sobre o amor. Ele não é nem simples reflexo da realidade, nem é detentor de autonomia absoluta; ele é, sim, uma convergência das mentalidades, logo de modos de pensar e agir, com as árduas condições de vida, mas, também de trabalho intelectual que se tinha que enfrentar.

Dentre elas, valeria lembrar ao leitor do papel do atraso da educação de homens e sobre-tudo, de mulheres, em Portugal. Educadores, leigos ou religiosos passam o tempo a inculcar a idéia de que o mundo é um lugar de tentações. Os meninos devem ser afastados “dos prazeres corporais”. A “familiaridade entre os dois sexos” constituía a mais importante questão na educação das crianças. Os meninos não deviam participar nas brincadeiras ou nas conversas onde estivessem meninas. Assim, para os separar mais facilmente davam-se nas Regras para a educação cristã dos meninos, obra publicada, em 1783, exemplos extraídos das Sagradas Escrituras: “Não olheis para a mulher inconstante nos seus desejos, para que não caiais nas suas redes”; “Não fixeis os vossos olhos numa donzela para que a sua beleza não seja motivo de sua perda”; “Fiz um contrato com os meus olhos para nem ao menos pensar numa virgem”. São muitos os exemplos.

Page 146: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

146 | REVISTA DA ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS 2016 • SEGUNDO SEMESTRE 2016

Já os conselhos destinados às meninas, começam por sublinhar a condição inferior do seu sexo, por estar a mulher diretamente ligada ao pecado. Nessa ordem de idéias, lembra-se a in-conveniência de uma infância desregrada na futura mulher. Os trabalhos domésticos, afastando-a das tentações amorosas, era o que convinha ao seu sexo. As companhias eram escolhidas pela mãe, que não devia deixá-la ler romances ou poesias, mas, apenas, salmos e hinos de igreja, de preferência em francês. A dança não era aconselhável porque era “um laço do demônio”. E a música e os concertos tinham igualmente maus efeitos para as jovens – as árias profanas “excitam as paixões, servem de isca à sensualidade”. O desprezo da beleza, simplicidade no vestir, deitar e acordar em horas certas eram regras básicas. Além do papel que a economia doméstica devia desempenhar na sua educação, os pais escolhiam o confessor e o próprio homem com quem tinham que casar.

Outra condição que devem ter influído nas concepções amorosas decorria da polarização entre segmentos sociais: de um lado a nobreza que se queria letrada. E por outro, as classes não letradas. Uma recebendo mais rapidamente os modismos amorosos importados do exterior do que a outra. Não há dúvida, contudo, que a influência da cultura literária francesa foi grande. Reis alocavam agentes em Paris, encarregados da compra de livros. As elites aristocráticas ou comerciantes aderiram à leitura de autores franceses, ajudando a difundir o gosto pelos modismos que faziam do amor, fonte permanente de sofrimento, alimentando assim o mito fundador do amor infeliz, amor que uniu D. Inês de Castro e D. Pedro.

A construção de identidades amorosas, em Portugal como no Brasil, enraíza-se, contudo, menos na literatura – as elites eram majoritariamente iletradas - e mais, na interiorização, por homens e mulheres, de normas enunciadas pela Igreja ou a Ciência. O importante a observar, leitor, foram os dispositivos que asseguraram a eficácia de um tal imaginário amoroso. Imaginário eficaz, somente, na medida em que os indivíduos contribuem ou se predispõe a eles. Nossos antepassados consentiam e garantiam a reprodução de representações sobre o amor, e não fo-ram raras as vezes em que eles deslocaram ou subverteram a relação de dominação que a Igreja exercia na sociedade, aproximando-se, e mesmo inspirando, os ideais cantados em prosa e verso.

MARy DEL PRIORE é escritora e historiadora, com doutorado em História Social na USP e pós-doutorado na école des Hautes études en Sciences Sociales, de Paris. Tem 37 livros publi-cados, entre eles Condessa de Barral, a paixão do Imperador e Histórias da Gente Brasileira, Vol.1: Colônia. é membro titular do PEN Clube do Brasil e foi eleita, neste ano, para a Academia Carioca de Letras, onde passou a ocupar a Cadeira 32. Entre seus muitos prêmios estão o APCA, o Casa Grande e Senzala e o Jabuti.

Page 147: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

louvAção do rio José Arthur Rios

Nasceu o carioca numa cidade apertada entre mar e montanha, de frio e calor, trópico, temperado, chuvas torrenciais no verão escaldante, friozinho com direito a gripes no inverno.

Povinho composto e complexo. Mistura de portugueses campesinos e mercadores, muita escravaria africana, depois levas de italianos ditos carca-manos, franceses, algum alemão, nipões, galegos do Alto Minho, turcos de armarinho. Mas, basicamente, portugueses de secos e molhados, barroquis-mos nas igrejas e conventos. Nas procissões devoção temperada de crendices, ciosa dos dias santos, lenta nas obrigações e nos respeitos, curvatura breve nos altares e beijo rápido, de passagem, no polegar; clerical sem excessos, mais devota da vela acesa e do foguetório, de joelhos, na escadaria da Penha.

Page 148: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

148 | REVISTA DA ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS 2016 • SEGUNDO SEMESTRE 2016

Resistiu à investida de piratas franceses, assimilando-os. Leclerc acabou repimpado, se balançando em alguma rede, tomando cachaça. Classe média dependente, de olho no juro bancário, escrava do aumento de fim de ano, da natalina providencial, da concessão salvífica, sempre modesta em seus anseios – a feijoada de fim de semana, o fla x flu, o cafezinho em pé, o papo sem compromisso.

Cidade de grandes tribunas Nabuco, Rui, Lacerda - de civismos espasmódicos onde as favelas chamam-se comunidades e tudo fica por isso mesmo. A Oposição é complacente e a elite, em tempos, foi chamada por um Ditador “pobreza envergonhada”. Administração do “deixa pra lá”, “depois se vê”, “quem vier depois que resolva”.

Pouco radical em política, sacudida por movimentos como a campanha do Lenço Branco por Teófilo Ottoni e Carlos Lacerda entre mordomias pasmaceiras e partidárias, sede de con-fortável ditadura. Depois, deixou-se ficar a beira-mar plantada, quando lhe tiraram a auréola de capital federal. Só não lhes tirem o cinema, a praia e o futebol. Cidade de contrastes, também de aparências como a viu Gastão Cruls, vistosa nas Copacabanas iluminadas, molambo e pé sujo nas favelas, população favelada em expansão, descendo dos morros para os alagados, subindo para mata devastada, depois emergente nas repartições e clubes, muito a vontade de sandália havaiana e palito na boca, galgando degraus de classe média, de arribação, mais que de reivindicação.

Lírica, de recantos e chorinhos, de feijoadas aos sábados e samba de roda, sofrida nas com-pressões dos trens de subúrbio. Aberta a gregos e mineiros. Cantada e decantada por grandes poetas em prosa e verso – Mário Pederneiras, Pedro Nava, Rubem Braga e Raquel de Queiróz, Noel Rosa e Pixinguinha. Sempre insubmissa a vários rolos-compressores, cargas tributárias e ditadura de consórcios, de grupos imobiliários e políticos que desfiguram sua paisagem e vão demolindo sua história viva.

Se houve “país do carnaval”, sua alma mater-, Jorge Amado que me desculpe – não foi a tão cara Bahia, mas o Rio onde essa festa é estação perene, ainda que desfigurada, oficializada, subvencionada, “para gringo ver”, em espaços contidos, e desfiles arrumados, mas sempre, espar-ramada, transbordando em praças e ruas, como modo de ser, estado de espírito, do – não – levar a sério, do otimismo imbatível, seu símbolo verdadeiro não é pendão ou medalhão concedido, mas o moleque da rua e do morro, da vaia e do assovio, também da pedra e do protesto.

Tudo aqui é pretexto para folia. A verdadeira festa nacional em que se mergulha por três dias, oficialmente, e o ano todo, quando calha, festa onde tudo se dissolve: classes, raças e par-tidos em comunhão orgiástica, em folia lustral.

Cidade do boato e da fofoca que aqui se chama “coluna social” e derruba até administrações e governos. é também metrópole noturna, da bala perdida, do batuque e do tiroteio, do “rigoroso inquérito” onde o preso foge pela porta de frente da cadeia, a polícia fraterniza com o bandido, o banditismo empresarial é empreendedorismo, com direito à prisão domiciliar. De foro privilegia-do, por isso, muito cotada e procurada por gangues internacionais, para vilegiaturas e refrescos.

Page 149: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

TRÂNSITO LIVRE | 149

Também cidade erótica por excelência onde traseiros expostos ganham foro de emblemas nacionais, jornais burgueses apregoam todos os vícios, onde se anuncia a chegada da droga nos morros com festivo foguetório sob proteção da polícia, afastado risco do bando concorrente e do fiscal honesto.

Na realidade duas cidades a de “para americano ver”, das elites complacentes, do crachá e do “sabe com quem está falando?” – e a outra do hospital; sem médico, sem cama, sem remédio, da escola sem mestra, sem vaga, do preso esquecido na cadeia, do funcionário que deixa o palitó na cadeira que foi ao cinema e não se sabe quando volta ou se volta.

Nesse clima de ásperas contradições, criou-se um tipo humano especial, espanto e atração de turistas. Cidade de vocação cósmica, tudo hospeda, recebe de braços abertos o migrante, pé no chão, o intelectual desiludido. Quando Fernando Carneiro definiu o Brasil como “uma mixórdia, uma terra em que padre era maçom, alemão joga no bicho e judeu come carne de porco”, certamente, estava pensando no Rio de Janeiro.

Para o futuro imediato, lança-se mãos dos búzios, da cartomante prestativa que vira a carta sebosa, vê a namorada certa, aconselha a loteca, o bicho do dia – leão ou macaco? – Ou, para o além, o culto dos espíritos, o Xangô suado e providencial.

Nessa paisagem, quase esquecíamos, imperdoável machismo, a mulher carioca. A cocote francesa que, segundo Gilberto Amado, ratificado por Gilberto Freire, educou muito figurão brasileiro, foi depois a melindrosa dos anos 1920, alegria de políticos e coronéis fazendeiros da velha República e “garota de Ipanema” e as grandes damas que abriam o salão, sem falar nas “senhoronas” políticas que foram para rua, terço na mão, para derrubar governos.

Essa é a população cética, propensa ao revide pelo gracejo, a sátira, a piada, de alma livre propensa à orgia e à melancolia. Impermeável ao business como a toda disciplina, demolidora mais pela caricatura e erosão do que por uma revolução. Desde sempre paixão nossa, desiludida. Figuração da cidade que sonhamos e, talvez, ainda voltemos a ver.

JOSÉ ARTHUR RIOS, sociólogo, escritor, autor de ensaios sobre sociologia, educação e lite-ratura. é sócio do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Ocupa a Cadeira 24 da Academia Carioca de Letras.

Page 150: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos
Page 151: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

converSA de botequimCícero Sandroni

Dura lex, sede louca

Para o mais carioca dos escritores paulistas, João Antônio, autor de Malagueta, Perus e Bacanaço, Leão de Chácara e olmos livros marcar. da literatura brasileira a rua era a escola, e o bar e o

botequim a universidade. Integrado no espírito do povo, suas paixões, sua linguagem e seus problemas, ele encontrou na sua “universidade” personagens e histórias e os levou para seus livros forma a imortalizá-los. João admirava o romancista Afonso Henriques de Lima Barreto, frequentador dos bares e botequins do Rio de Janeiro de sua época e morreu no primeiro dia de novembro de 1922, aos 44 anos de idade. Naquele mesmo ano, no mês de fevereiro realizára-se em São Paulo, a Semana de Arre Moderna, movimento sem qualquer relação com o botequim ou com Lima Barreto, ignorado eles. Os modernistas preferiam os restaurantes, em um dos quais, quando comiam rãs a doré com chablis gelado, surgiu o movimento antropofágico.

Page 152: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

152 | REVISTA DA ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS 2016 • SEGUNDO SEMESTRE 2016

Assim como Lima Barreio, João Antonio também faleceu cedo, em 1996, no Rio de Janeiro, aos 59 anos e dele guardo recordações não só do amigo, colega e colaborado, mas do exemplo de dedicação à Literatura, sem esquecer jamais do botequim. Com seu jeito peculiar. de ser às vezes indignado quando informado do fim de um botequim tradicional da cidade, ele, paulista, mostrava conhecer o assumo e até surpreendia muitos cariocas boêmios, mesmo gente da velha guarda, os assim chamados profissionais da mesa de bar.

Nos tampo do doce pássaro da juventude, e na maturidade, frequentei botequins, hábito que na senectude, embora sem senilidade, ainda é possível cultivar. Trabalhei em senectude, de jornais instalados na Lapa, no Rio de Janeiro como o Correio da Manhã e a Tribuna de Imprensa e a Lapa, a Lapa dos anos 50 e 60 era a capital dos botequins e ainda hoje, levado pelo grande conhecedor dos botecos cariocas, o Luis Guilherme Baeta Medina, ainda frequentamos, com amigos fiéis, alguns botequins daquela zona da cidade. Francisco (Chico) Paula Freitas, autor de livros fundamentais sobre o comer e beber no Rio também é do ramo.

A Lapa talvez tenha sido o bairro mais boêmio do Brasil. Quando Mario de Andrade viveu no Rio, a rua Santo Amaro nº 5, entre o Cate e Glória, confessou:

- Eu tanto aprecio uma boa caminhada a pé até o alto da Lapa como uma tocata de Bach.O bairro foi uma síntese da cultura brasileira: do ateliê de Portinari, na rua Teotônio Rega-

das, à malandragem viril e homossexual briguenta de Madame Satã às figuras da música que passaram por ali, - Pixinguinha que tocava flauta a cinco ou seis mil reis por dia, no cine Rio Branco, para depois rodar todos os cabarés do bairro. Vilia Lobos fez as suas primeiras compo-sições no teclado de velhos e encrencados pianos das hospedarias francesas da Lapa. Noel Rosa, Herivelto Martins... A Lapa das crônicas de Luis Martins e dos poemas de Manuel Bandeira, à sinuca do bar e café Indígena, na avenida Mem de Sá, onde ases do pano verde como Lincoln e Carne Frita se defrontaram.

A Lapa está votando a ser a Lapa, como cantou Herivelto? Não sei. Reconheço, não sou profissional nesta área. Profissional, mesmo, era o Albino Pinheiro, que todos os dias percorria o circuito dos botequins entre a Lapa e o Leblon. Nesta odisséia etílica, Albino aprendeu, tal como um Ulisses travestido de Baco, que em qualquer jornada em busca do chope perdido, o primei-ro é sempre o melhor; o segundo ainda é bom e o terceiro é passável. Mas a partir do quarto, colocado no copo sob pressão, o famoso schnit que algumas casas ainda servem, o líquido vai perdendo o sabor e as papilas gustativas se entorpecem. E assim acontece em razão progressiva, até o bebedor chegar ao décimo sétimo, quando, num milagre dionisíaco, só reservado aos eleitos que perseveram na viagem e chegam até lá, o malte e o lúpulo recuperam o frescor e gosto do primeiro copo e então o sabor inicial é recuperado e começa tudo de novo.

Profissionais são Jaguar, Aldir Blanc ou o saudoso Fausto Wolff, homem de língua afiada, pois quando alguém lhe perguntou porque você bebe? respondeu: bebo porque é líquido, se fosse sólido, eu comia. Ou João Ubaldo Ribeiro, nos últimos anos um abstêmio constrangido

Page 153: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

TRÂNSITO LIVRE | 153

mas ainda fiel cliente dos bares do Leblon, onde bebia seu guaraná diet enquanto conversa com amigos encharcados de caipirinha. Mas nos bons tempos de Itaparica, sou testemunha ocular da história, passei três dias com ele lá. João Ubaldo frequentava um botequim da ilha onde consumia doses de Odete todos os dias na companhia dos amigos, apresentados aos leitores, personas de suas crônica, contos e romances. Odete, para quem não sabe, era o uísque nacio-nal Old Eight. Antes de beber João cantava aquele versinho “Odete, ouve o meu lamento”, do samba de Herivelto Martins e Claudionor Cruz e lá ia uma boa talagada do scotch nacional fabricado no Paraguai.

O que é um botequim? Perdoem-me os modernos, mas tenho o direito, conquistado menos pela assiduidade e mais pela idade, de achar que o bom botequim ainda é aquele com pó de serragem no chão, mesa de tampo de mármore, pés de madeira, se possível imitando galho de árvores ou de ferro batido. Decoração kitsch com azulejos azuis e brancos, painéis do mestre Nilton Bravo, o Miguelangelo do boteco, e ao fundo as imagens de devoção nos seus oratórios, adornados com florzinhas de plástico e pequenas luzes coloridas. Na definição de Ricardo Cravo Albin, baiano carioquisado elas, surgem como estrelas perdidas numa galáxia de garrafas e copos de todas as variedades.

O frequentador habitual deve conhecer o pessoal, do garçom ao cozinheiro ou cozinheira, os companheiros sempre na mesma mesas e o dono da casa. E este deve saber exatamente que prato, na grande variedade de uma meia dúzia de três ou quatro é o da preferência do cliente. A cozinha é importante. Lá são preparadas a feijoada com todos os seus pertences, o caldinho de feijão com torresmo, o picadinho inventado pelo barão Von Stuckart, dona da boate Vogue, de Copacabana, mais tarde adotado pelo botequim, o sanduíche de mortadela, a rabada, a carne assada ao molho ferrugem, a língua ao madeira, o filé alto com fritas ou a bacalhoada, tudo com muita gordura, que hoje as estatinas estão aí mesmo, para expulsar o colesterol ruim das nossas artérias.

Mas se o fundamental no botequim é o ambiente, a clientela também é importante, pois dela dependerá a conversa jogada fora no vagar das ideias, das discussões inúteis ou fúteis mas sempre úteis, sempre salvadoras do Brasil ou do futebol pátrio. Tudo isso faz desses templos de resistência cultural candidatos naturais ao patrimônio artístico imaterial brasileiro. Imaginem se tivesse sido possível registrar as conversas de botequim de nossa gente, populares anônimos ou artistas, de escritores, intelectuais ou de bêbados e até mesmo dos vadios na melhor acepção da palavra, (aquele que vadia vade) no correr dos últimos dois séculos? Uma história da vida privada dos botequins de dar água na boca na école des Annales, de Braudel que se perdeu, da qual só nos resta alguns trechos de memorialistas como Luiz Edmundo, João do Rio e Brito Broca, os três excelentes botiquineiros e bons de copo que nos legaram um tesouro incalculável: narrativas sobre como era a vida boêmia, no tempo em que viveram.

Conversa de botequim, é também o título de um samba de Noel Rosa que todos conhe-cem, no qual o sambista engrena um monólogo com o garçom que lhe serve: “Seu garçom faça

Page 154: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

154 | REVISTA DA ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS 2016 • SEGUNDO SEMESTRE 2016

o favor/ de me trazer depressa/ uma boa média que não seja requentada/ um pão bem quente com manteiga a bessa/ um guardanapo e um copo d’água bem gelado/ fecha a porta da direita com muito cuidado/ que eu não estou disposto a ficar exposto ao sol/ vá perguntar ao seu freguês do lado/ qual foi o resultado do futebol/ telefone ao menos uma vez para 35/53/33.../”

Nesta letra síntese, descrição de um flagrante de vida no botequim, pura poesia do cotidiano, não há referência à comida, com exceção da média com pão bem quente com manteiga a bessa. O cliente narrador, como se conclui pela letra, é um “pronto”, como se dizia antigamente. A ausência de referência às comidas mais opulentas, indica que Noel preferia as bebidas, embora na sua Conversa também nada conste sobre as bebidas alcoólicas. Logo ele!

Talvez Noel fosse como Ciro Monteiro, com quem conversei pela madrugada, num bo-tequim, depois de um show que ele fez na boate Chicote, em São Paulo. Eu estava com dois amigos, e éramos ias incondicionais do Formigão, este grande artista brasileiro, o único capaz de cantar e se acompanhar com maestria, batucando numa caixa de fósforos como se todo um regional estivesse com ele. Nós três, além de beber os chopes, comíamos uns salgadinhos e quando a madrugada foi dando lugar ao dia, pedimos uns sanduíches, que Ciro recusou. “Quando eu bebo eu não como” disse ele, definitivo. No Rio, Ciro tinha o seu QG no bar Pardellas, e sua roda reuniu, além dos amigos de Niterói e do Rocha, onde o cantor nasceu, figuras musicais de ponta Lírio Panicalli e Radamés Gnatalli.

Nos bares do Rio, Ciro fazia parte de um triângulo famoso, talentoso e sentimental, cujos dois outros vértices eram Vinicuis de Moaraes e Paulo Soledade, (autor do Zum-Zum-Zum está faltando um, referência ao famoso Edu, piloto da Panair do Brasil e um dos integrantes do Clube dos Cafagestes).

O Formigão também gostava de recordar Antonio Maria, o Bom Maria, morto em ação no Rond Point, em Copacabana.

- Quando eu chegava, Maria dizia dizia: senta aí minha crônica.Ciro Monteiro teve vários apelidos: Saco Preto, Sangue de Boi, Brucutu, Caó, Marquês,

para só finalmente ser Formigão. Quando narrava um encontro casual com Vinícius, dizia:- Quando a gente se encontra, o abraço é tão apertado que quem vê de fora não sabe qual

dos dois é o mais viado.Tio de Cauby Peixoto, se derramava em elogios para o sobrinho, e não se envergonhava

de ser piegas. Chorava com imensa facilidade. Uma vez, tentou explicar:- Meu irmão, tenho duas caixas d’água atrás das orelhas.Noel Rosa também não comia, quando bebia. Então, botequim é lugar onde se bebe ou

onde se come?Aparentemente a pergunta é ociosa. No botequim os clientes comem, sim, mas o botequim

também não é exatamente um restaurante. Ou talvez seja um restaurante onde se come apenas comida de botequim. Faço estas ponderações iniciais pois já vi guias de botequim do Rio de

Page 155: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

TRÂNSITO LIVRE | 155

Janeiro, todos excelentes, nada contra eles, que listam restaurantes como botequins. Eu diria que o botequim vai do popular pé sujo, até o nível, digamos do Lamas, no Rio de Janeiro, mas aquele Lamas antigo, o do Largo do Machado, cujos donos atuais vão protestar pela classificação de sua casa na condição de botequim. Mas o Lamas, além de um bom restaurante, com uma história de glórias boémias, (ver Luis Edmundo, no capítulo sobre os lamistas) é um botequim, e sabem porque? Porque você pode entrar, ocupar sozinho uma mesa de quatro lugares e pedir uma boa média que não seja requentada/ um pão bem quente com manteiga a bessa/ um guardanapo e um copo d’água bem gelada/.

Segundo o indispensável dicionário Houaiss, cujo autor foi frequentador de botequins, a palavra em questão designa um estabelecimento comercial popular onde servem bebidas, lanches, tira-gostos e eventualmente alguns pratos simples; bar, boteco. Nada a corrigir na definição, mas creio que prato simples é pouco. Alguns pratos de botequim são bem complicados. Segundo a etimologia, botequim vem do italiano botteghino, diminutivo de bothega, isto é “lojinha”. Entre sinônimos de botequim, taberna ou taverna, Houaiss recolheu, nos regionalismos brasileiros, nomes a exemplo de baiúca, bar, bitaca, bitáculo, bodega, boliche, boteco, caipirinha, catraia, chafarica, frege, frege-moscas, futrica, girianta, guarita, locanda, malcozinhado, pulperia, tasca, tasco, tenda, tendinha, venda, vendola. Certamente o leitor conhece outros nomes para designar o botequim; creio que os atuais lexicógrafos que trabalham no Houaiss, sob a chefia de Mauro Villar, no Aurélio ou no Vocabulário da Academia Brasileira de Letras sob a orientação do in-cansável Evanildo Bechara agradecerão muito qualquer contribuição nesse sentido.

Encontrei no livro Memórias da Cidade do Rio de Janeiro, de Vivaldo Coaracy a informa-ção de que a primeira cervejaria do Rio estabeleceu-se no Largo da Carioca, em frente ao Teatro Lírico, conhecida como Cervejaria da Guarda Velha. A casa não só vendia, mas foi também a primeira fábrica de cerveja do Rio e talvez do Brasil. A Guarda Velha era uma cerveja de baixa fermentação, e a água utilizada na sua produção vinha das nascentes do morro do Corcovado por canais abertos em Santa Teresa e no aqueduto da Lapa, construído por Gomes Freire de Andrade.

Extraordinária obra da engenharia portuguesa da época, o aqueduto trazia para o chafariz do Largo da Carioca as águas do rio Carioca, cuja nascente fica no morro do Corcovado. Estas águas, de forte teor de ferro - daí o nome de Águas Férreas, como era conhecido antigamente o bairro do Cosme Velho - segundo as lendas indígenas tinha um grande poder afrodisíaco e os portugueses que beberam dela saíam como loucos atrás das índias. Assim foi desta água que se fez a primeira cerveja brasileira, engarrafada em botijas primitivas com rolhas de cortiça amarradas com barbante. A cerveja era tão ruim que a expressão “marca barbante” passou para o léxico brasileiro como referência pejorativa, designação de algo de péssima qualidade.

A cerveja tem uma longa história no botequim, seja a marca barbante ou as de boa qua-lidade de hoje, mas não temos tempo para nos alongar sobre ela. Prima pobre do vinho, nos últimos tempos vem sendo valorizada, com marcas especiais e segundo uma regra de cavalheiros

Page 156: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

156 | REVISTA DA ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS 2016 • SEGUNDO SEMESTRE 2016

não escrita, o que se combina numa roda em que a bebida é a cerveja, vale como um tratado. Querem um exemplo? Em 23 de março de 1999, a nomeação do italiano Romano Prodi como presidente da Comisão Europeia foi acertada com um canecão de cerveja entre o chanceler Gerhard Schroeder e o primeiro ministro Jacques Chirac, no bar berlinense Zur Letzten Imstanz. Quer dizer, gente fina fazendo seus acordos em tomo de um boa rodada de chope.

Cerveja e cachaça são as bebidas fundamentais em um botequim que se preze. E antes que os vinhos brasileiros alcançassem a razoável qualidade que hoje apresentam, e o uísque ainda não se tomasse popular entre os brasileiros, a cerveja era a bebida preferida dos boêmios do século XIX, ao lado do conhaque, da cachaça e, entre os poetas mais melancólicos, do absinto.

Por falar em absinto, vamos dar um pulo à última década do século XIX, quando literatos de todos as gêneros e estilos frequentavam os bares, botequins e restaurantes da rua do Ouvidor e adjacências, onde Brito Broca identifica o “período áureo da boêmia”. Lá se encontravam o Café do Rio no cruzamento da Ouvidor com a Gonçalves Dias, o Java, no Largo de São Francisco, esquina de Ouvidor. O Café Paris, o Café Papagaio; o Café Globo na rua Primeiro de Março entre Ouvidor e o Beco dos Barbeiros.

Henrique Pongetti tinha outra impressão: “eu me lembro de Noel Rosa compondo um samba na mesa do cabarezinho: os músicos suspensos do seu lápis ágil, à espera do rascunho para uma primeiríssima e inesperada audição. Parece cena de filme, essa história imaginosa de um samba que talvez não tenha existido. Mas existiram outros, na prodigiosa obra de Noel Rosa, senão nascidos na Lapa, certamente nascido da Lapa, de gente da Lapa, de mulheres a, damas dos cabarés, damas da música popular brasileira. O mais significativo do ponto de vista do bairro, pelas referências explícitas que a ele faz, celebra o encontro com Ceci, na noite de 23 de junho de 1934, festa de São João no cabaré Apoio. “Dama de Cabaré” é também um quadro de costumes.

Ceci do Apoio, do Roxy, do Assirius, do Royal Pigalle, pelo menos mais seis grandes sambas essa mulher - e, portanto, a Lapa, inspiraram Noel Rosa: “Só pode ser você” “O maior castigo que eu te dou”, “Cem mil réis”, “Quantos Beijos” e as obras primas “Pra que mentir?” e “Último Desejo” todos com Vadico que fechou o ciclo do romance com a dançarina.

O meu querido e saudoso amigo Otto Lara Resende uma vez sugeriu que no chá servido aos acadêmicos da Academia Brasileira de Letras o presidente da casa mandasse incluir uma garrafa de uísque para os apreciadores da bebida escocesa. A sugestão não foi aceita, por várias razões, a mais fraca delas o fato do chá ser servido às três da tarde; e como todo especialista sabe, só se deve beber após as cinco da tarde. Diante de tal desculpa, Otto respondeu que as três da tarde no Brasil em algum lugar do mundo correspondia às cinco horas exigidas pelo protocolo etílico e portanto para ele isto significava bar open a qualquer hora do dia ou da noite.

Para quem trabalhou no Jornal do Brasil, na década dos sessenta do século passado, ain-da na Avenida Rio Branco o melhor botequim era o Simpatia, com suas cadeiras e mesinhas

Page 157: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

TRÂNSITO LIVRE | 157

amarelas, de vime, onde os velhos garçons não serviam cachaça, batidas ou bebida quente nas mesas. Tomava-se águardentes, conhaques, genebras e vodcas de umbigo colado ao balcão, ou melhor, de pé. Só depois, então, a gente se sentava para o chope gelado. O escritor João Antônio, repórter do Jornal à época lembra-se que por isso, dava-se ao Simpatia, o apelido de El Paredon. El Paredon era ponto de encontro de jornalistas como José Ramos Tinhorão, Hélio Pólvora, Lago Burnett, Esdras Passaes, Décio Vieira Ottoni e vários outros. Nelson Pereira dos Santos copydesk do Jornal, também aparecia, sempre agarrado a algum livro de Graciliano Ramos. Trazia debaixo do braço e lia como se lesse a Bíblia.

Ainda acompanhando João Antônio encontramos, para o lados da Praça Mauá o bar Hanseática, que vibrava e fervia: marafonas do cais, profissionais do amor, espúrio ou não, cronometrado ou não, ao bangue-bangue do asfalto, moças do comércio, soldados, vadios, funcionários públicos saídos de seus expedientes, as paredes do bar Hanseática aninhavam de um tudo e de todos no coração da Praça Mauá.

O Bar Luiz, na rua da Carioca número 39, famoso pela idade, pelo chope preto, pelos frios, ponto de velhos e novos bebedores e de namoros. O bar Bico Doce, uísqueria de um ve-lho português, no Beco dos Barbeiros, que segundo o dono, havia sido frequentado por Oscar Niemeyer, Juscelino Kubitschek, Vinicius de Morais e figuraças da política. A uísqueria Gouveia na rua Rodrigo Silva, ponto obrigatório das tardes de Pixinguinha, que ali teve cadeira cativa e a cada aniversário atra um enxame de jornalistas, artistas da música popular, a rádio e tevê. O Juca’s Bar, um dos mais elegantes do Brasil, na rua Senador Dantas, no Hotel Ambassador. Fre-quentado por jornalistas da área política onde de vez em quando era possível ver um deputado ou senador entrar muito bem acompanhado por uma dama elegante.

CíCERO SANDRONI é escritor, jornalista, membro da Academia Brasileira de Letras e da Academia Carioca de Letras, onde ocupa a Cadeira 13. Trabalhou em inúmeros jornais e, por longos anos, no Jornal do Brasil e no Jornal do Commercio. Fez ferrenha oposição ao regime militar instalado no Brasil nos anos 1960/70 e ajudou a coordenar um manifesto contra a censura aos livros, assinado por mais de mil intelectuais brasileiros. Escreveu, junto com sua mulher, a escritora Laura Sandroni, um dos mais importantes volumes biográficos brasileiros: Austregésilo de Athayde, o século de um liberal.

Page 158: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

o centro de eStudoS mAcHAdiAnoS

Alcmeno Bastos

O Centro de Estudos Machadianos, instalado oficialmente no dia 19 de setembro de 2016, representa necessária e justa home-nagem ao maior escritor carioca, cuja obra toma como espaço

físico-social privilegiado a cidade do Rio de Janeiro, onde ele nasceu, em 1839, passou toda a sua vida, dela se ausentando uma única vez, para trata-mento de saúde, e morreu, em 1908. Como se vê, mais carioca, impossível. Compreende-se assim que não poderia haver melhor local para instalação do Centro que a Academia que partilha com o notável escritor a condição de “carioca”. Recente votação entre personalidades da vida cultural do Rio de Janeiro, promovida pela Academia, para indicação dos “Construtores da Literatura Carioca”, consagrou o autor de Dom Casmurro como o nome mais expressivo das letras cariocas em todos os tempos.

O Centro de Estudos Machadianos deverá constituir-se em centro de referência para os estudos sobre a obra machadiana em seus variados aspec-tos, contemplando:

a) a constituição de um acervo físico, uma “machadiana”, com exem-plares de todas as edições conhecidas, especialmente as “obras completas”, para disponibilização aos pesquisadores, devidamente catalogadas de acordo com normas técnicas. O acervo físico deverá estender-se a outras formas de registro da obra machadiana e de sua fortuna crítica, como filmes, dvds etc.

b) a promoção de eventos ligados à obra machadiana, alguns regulares, como um Encontro anual de pesquisadores, outros eventuais; poderá ser também confeccionado um calendário machadiano, com registro “come-morativo”, nas datas respectivas, de fatos significativos da vida e/ou da obra de Machado de Assis;

Page 159: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

TRÂNSITO LIVRE | 159

c) a oferta regular de cursos (ou ciclo de palestras) sobre aspectos da obra machadiana, definidos com antecedência e com duração compacta, e oferta facultativa de curso (ou ciclo de palestras) a cargo de convidados especiais, sem determinação de periodicidade e sem formatação previamente definida.

d) a assinatura de convênios com entidades culturais e universidades (públicas e particu-lares), preferencialmente situadas no Rio de Janeiro, tais como Academia Brasileira de Letras, PEN Clube do Brasil, Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Fundação Biblioteca Nacional, Casa de Ruy Barbosa, Centro Cultural do Banco do Brasil etc.

e) a constituição de um banco de dados, com atualização permanente, reunindo informa-ções sobre a produção bibliográfica em torno da obra de Machado de Assis (especialmente teses e dissertações acadêmicas, mas também trabalhos fora do circuito universitário), assim como filmografia, discografia etc., de modo a propiciar a pesquisadores e interessados a informação rápida sobre o acesso às fontes levantadas;

f ) a publicação de material produzido como resultado dos trabalhos de pesquisa e de apre-sentação de trabalhos em eventos promovidos pelo Centro, preferencialmente em coedições, bem como boletins (ou revista, conforme a viabilidade financeira), em edição impressa e/ou eletrônica;

g) a conexão, em diálogo constante, com outras áreas de atividade direta ou indiretamente ligadas à obra machadiana, tais como Turismo e Urbanismo (“O Rio de Janeiro de Machado de Assis”), Historiografia (“a História do Rio de Janeiro em Machado de Assis”), Artes (cinema, teatro, música popular e erudita, quadrinhos etc.);

h) a realização de concursos sobre a obra de Machado de Assis, para público alvo específico (por exemplo, para alunos de graduação da rede pública e privada e/ou para alunos de pós--graduação da rede pública e privada, como o concurso em andamento que tem como tema “A paisagem urbana na obra de Machado de Assis”), ou abertos ao público em geral;

Para a realização desse conjunto de atividades, o Centro de Estudos Machadianos espera contar não só com a colaboração dos acadêmicos da Academia Carioca de Letras, mas também com a de todos os interessados na obra do notável escritor carioca.

ALCMENO BASTOS é professor de Literatura Brasileira da Universidade Federal do Rio de Janeiro, membro do PEN Clube do Brasil e da Academia Carioca de Letras, onde ocupa a Ca-deira 37. Autor de diversos livros na área de Letras, sendo o mais recente Alencar, o combatente das letras (2014). Na ACL coordena o Centro de Estudos Machadianos.

Page 160: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos
Page 161: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

Arquivo cAriocA

Page 162: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos
Page 163: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

crônicAS de mAcHAdo de ASSiS

Crônica 1 4 de julho de 1883

Ocorreu-me compor umas certas regras para uso dos que frequen-tam bondes. O desenvolvimento que tem tido entre nós esse meio de locomoção, essencialmente democrático, exige que ele

não seja deixado ao puro capricho dos passageiros. Não posso dar aqui mais do que alguns extratos do meu trabalho; basta saber que tem nada menos de setenta artigos. Vão apenas dez.

Page 164: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

164 | REVISTA DA ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS 2016 • SEGUNDO SEMESTRE 2016

ART. I Dos encatarroados

Os encatarroados podem entrar nos bondes com a condição de não tossirem mais de três vezes dentro de uma hora, e no caso de pigarro, quatro. Quando a tosse for tão teimosa, que não permita esta limitação, os encatarroados têm dois alvitres: — ou irem a pé, que é bom exercício, ou meterem-se na cama. Também podem ir tossir para o diabo que os carregue. Os encatarroados que estiverem nas extremidades dos bancos, devem escarrar para o lado da rua, em vez de o fazerem no próprio bonde, salvo caso de aposta, preceito religioso ou maçônico, vocação, etc., etc.

ART. II Da posição das pernas

As pernas devem trazer-se de modo que não constranjam os passageiros do mesmo banco. Não se proíbem formalmente as pernas abertas, mas com a condição de pagar os outros lugares, e fazê-los ocupar por meninas pobres ou viúvas desvalidas, mediante uma pequena gratificação.

ART. III Da leitura dos jornais

Cada vez que um passageiro abrir a folha que estiver lendo, terá o cuidado de não roçar as ventas dos vizinhos, nem levar-lhes os chapéus. Também não é bonito encostá-los no passageiro da frente.

ART. IV Dos quebra-queixos

é permitido o uso dos quebra-queixos em duas circunstâncias: — a primeira quando não for ninguém no bonde, e a segunda ao descer.

ART. V Dos amoladores

Toda a pessoa que sentir necessidade de contar os seus negócios íntimos, sem interesse para ninguém, deve primeiro indagar do passageiro escolhido para uma tal confidência, se ele é assaz cristão e resignado. No caso afirmativo, perguntar-lhe-á se prefere a narração ou uma descarga de pontapés. Sendo provável que ele prefira os pontapés, a pessoa deve imediatamente pespegá-los. No caso, aliás extraordinário e quase absurdo, de que o passageiro prefira a narração, o proponente deve fazê-lo minuciosamente, carregando muito nas circunstâncias mais triviais, repetindo os ditos, pisando e repisando as coisas, de modo que o paciente jure aos seus deuses não cair em outra.

Page 165: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

ARQUIVO CARIOCA | 165

ART. VI Dos perdigotos

Reserva-se o banco da frente para a emissão dos perdigotos, salvo nas ocasiões em que a chuva obriga a mudar a posição do banco. Também podem emitir-se na plataforma de trás, indo o passageiro ao pé do condutor, e a cara para a rua.

ART. VII Das conversas

Quando duas pessoas, sentadas a distância, quiserem dizer alguma coisa em voz alta, terão cuidado de não gastar mais de quinze ou vinte palavras, e, em todo caso, sem alusões maliciosas, principalmente se houver senhoras.

ART. VIII Das pessoas com morrinha

As pessoas que tiverem morrinha, podem participar dos bondes indiretamente: ficando na calçada, e vendo-os passar de um lado para outro. Será melhor que morem em rua por onde eles passem, porque então podem vê-los mesmo da janela.

ART. IX Da passagem às senhoras

Quando alguma senhora entrar, o passageiro da ponta deve levantar-se e dar passagem, não só porque é incômodo para ele ficar sentado, apertando as pernas, como porque é uma grande má-criação.

ART. X Do pagamento

Quando o passageiro estiver ao pé de um conhecido, e, ao vir o condutor receber as passagens, notar que o conhecido procura o dinheiro com certa vagareza ou dificuldade, deve imediata-mente pagar por ele: é evidente que, se ele quisesse pagar, teria tirado o dinheiro mais depressa.

Texto-fonte: Obra Completa de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, Vol. III, 1994. Publicado originalmente na Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro, de 04/07/1884. Balas de estalo.

Page 166: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

166 | REVISTA DA ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS 2016 • SEGUNDO SEMESTRE 2016

Crônica 2 14 de março de 1885

Trago aqui no bolso um remédio contra os capoeiras. Nem tenho dúvida em dizer que é muito superior ao célebre Xarope do Bosque, que fez curas admiráveis e até milagrosas, até princípios de 1856, decaindo em seguida, como todas as coisas deste mundo. A minha droga pode dizer-se que tem em si o sinal da imortalidade.

Agora, principalmente, que a guarda urbana foi dissolvida, entregando ontem os refles, receiam alguns que haja uma explosão de capoeiragem (só para os moer), enquanto que outros creem que a substituição da guarda é bastante para fazer recuar os maus e tranquilizar os bons. Hão de perdoar-me: eu estou antes com o receio do que com a esperança, não tanto porque acredite na explosão referida, como porque desejo vender a minha droga. Pode ser que haja nesta confissão uma ou duas gramas de cinismo; mas o cinismo, que é a sinceridade dos patifes, pode contaminar uma consciência reta, pura e elevada, do mesmo modo que o bicho pode roer os mais sublimes livros do mundo.

Vamos, porém, à droga, e comecemos por dizer que estou em desacordo com todos os meus contemporâneos, relativamente ao motivo que leva o capoeira a plantar facadas nas nossas barrigas. Diz-se que é o gosto de fazer mal, de mostrar agilidade e valor, opinião unânime e respeitada como um dogma. Ninguém vê que é simplesmente absurda.

Com efeito, não duvido que um ou outro, excepcionalmente, nutra essa perversão de en-tranhas; mas a natureza humana não comporta a extensão de tais sentimentos. Não é crível que tamanho número de pessoas se divirtam em rasgar o ventre alheio, só para fazer alguma coisa. Não se trata de vivissecção, em que um certo abuso, por maior que seja, é sempre científico, e com o qual, só padece cachorro, que não é gente, como se sabe. Mas como admitir tal coisa com homem e fora do gabinete?

Bastou-me fazer esta reflexão, para descobrir a causa das facadas anônimas e adventícias, e logo o medicamento apropriado. Veja o leitor se não concorda comigo.

Capoeira é homem. Um dos característicos do homem é viver com o seu tempo. Ora, o nosso tempo (nosso e do capoeira) padece de uma coisa que poderemos chamar — erotismo de publicidade. Uns poderão crer que é achaque, outros que é uma recrudescência de energia, porque o sentimento é natural. Seja o que for, o fato existe, e basta andar na aldeia sem ver as casas, para reconhecer que nunca esta espécie de afecção chegou ao grau em que a vemos.

Sou justo. Há casos em que acho a coisa natural. Na verdade, se eu, completando hoje cinquenta anos, janto com a família e dois ou três amigos, por que não farei participante do meu contentamento este respeitável público? Embarco, desembarco, dou ou recebo um mimo,

Page 167: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

ARQUIVO CARIOCA | 167

nasce-me um porco com duas cabeças, qualquer caso desses pode muito bem figurar em letra redonda, que dá vida a coisas muito menos interessantes. E, depois, o nome da gente, em letra redonda, tem outra graça, que não em letra manuscrita; sai mais bonito, mais nítido, mete-se pelos olhos dentro, sem contar que as pessoas que o hão de ler, compram as folhas, e a gente fica notória sem despender nada. Não nos envergonhemos de viver na rua; é muito mais fresco.

Aqui tocamos o ponto essencial. O capoeira está nesta matéria como Crébillon em matéria de teatro. Perguntou-se a este, por que compunha peças de fazer arrepiar os cabelos; ele respondeu que, tendo Racine tomado o Céu para si e Corneille a Terra, não lhe restava mais que o Inferno em que se meteu. O mesmo acontece ao capoeira. Não pode distribuir mimos espirituais, ou drogas infalíveis, todos os porcos nascem-lhe com uma só cabeça, nenhum meio de ocupar os outros com a sua preciosa pessoa. Recorre à navalha, espalha facadas, certo de que os jornais darão notícias das suas façanhas e divulgarão os nomes de alguns.

Já o leitor adivinhou o meu medicamento. Não se pode falar com gente esperta; mal se acaba de dizer uma coisa, conclui logo a coisa restante. Sim, senhor, adivinhou, é isso mesmo: não publicar mais nada, trancar a imprensa às valentias da capoeiragem. Uma vez que se não dê mais notícia, eles recolhem-se às tendas, aborrecidos de ver que a crítica não anima os operosos.

Logo depois a autoridade, tendo à mão algumas associações, becos e suspensórios ainda sem título, entra pelas tendas e oferece aos nossos Aquiles uma compensação de publicidade. Vitória completa: eles aceitam o derivativo, que os traz ao Céu de Racine e à Terra de Corneille, enquanto as navalhas, restituídas aos barbeiros, passarão a escanhoar os queixos da gente pacífica. Ex fumo dare lucem.

Texto-fonte: Obra Completa de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, Vol. III, 1994. Publicado originalmente na Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, de 14/03/1885.

Page 168: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

168 | REVISTA DA ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS 2016 • SEGUNDO SEMESTRE 2016

Crônica 37 de março de 1889

Bons dias! Pego na pena com bastante medo. Estarei falando francês ou português? O Sr. Dr. Castro

Lopes, ilustre latinista brasileiro, começou uma série de neologismos, que lhe parecem indis-pensáveis para acabar com palavras e frases francesas. Ora, eu não tenho outro desejo senão falar e escrever corretamente a minha língua; e se descubro que muita coisa que dizia até aqui, não tem foros de cidade, mando este ofício à fava, e passo a falar por gestos.

Não estou brincando. Nunca comi croquettes, por mais que me digam que são boas, só por causa do nome francês. Tenho comido e comerei filet de boeuf, é certo, mas com restrição mental de estar comendo lombo de vaca. Nem tudo, porém, se presta a restrições; não poderia fazer o mesmo com as bouchées de dames, por exemplo, porque bocados de senhoras dá idéia de antropofagia, pelo equívoco da palavra. Tenho um chambre de seda, que ainda não vesti, nem vestirei por mais que o uso haja reduzido a essa simples forma popular a robe de chambre dos franceses. Entretanto há nomes que, vindo embora do francês, não tenho dúvida em empregar, pela razão de que o francês apenas serviu de veículo; são nomes de outras línguas. E todo o mal não é a origem estrangeira, mas francesa. O próprio Dr. Castro Lopes se padecer de spleen, não há de ir pedir o nome disto ao general Luculo; tem de sofrê-lo em inglês. Mas é inglês. é assim que ele aprova xale, por vir do persa; conquanto, digo eu, a alguns parece que o recebemos de Espanha. Pode ser que esta mesma o recebesse de França, que, confessadamente, o recebeu de Inglaterra, para onde foi das partes do Oriente. Schawl, dizem os bretões; a França não terá feito mais que tecê-lo, adoçá-lo e exportá-lo. Deslindem o caso, e vamos aos neologismos. Cache-nez, é coisa que nunca mais andará comigo. Não é por me gabar; mas confesso que há tempos a esta parte entrei a desconfiar que este pedaço de lã não me ficava bem. Um dia procurei ver se não acharia outra coisa, e andei de loja em loja. Um dos lojistas disse-me, no estilo próprio do ofício:

— Igual, igual não temos; mas no mesmo sentido, posso servi-lo. E, dizendo-lhe eu que sim, o homem foi dentro, e voltou com um livro português, antigo,

e ali mesmo me leu isto, sobre as mulheres persianas: “O rosto, não descobrem nunca fora de casa, trazendo-o coberto com um cendal ou guardacara...”

— Este guarda-cara é que lhe serve, disse ele. Cache-nez ou guarda-cara é a mesma coisa; a diferença é que um é de seda, e o outro de lã. é livro de jesuíta, e tem dois séculos de composição (1663). Não é obra de francelho ou tarelo, como dizia o Filinto Elísio.

Sorriu-me a troca, e estive a realizá-la, quando me apareceu o focáler romano, proposto pelo Sr. Dr. Castro Lopes; e bastou ser romano, para abrir mão do outro que era apenas nacional.

Page 169: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

ARQUIVO CARIOCA | 169

O mesmo se deu com preconício, outro neologismo. O Sr. Dr. Castro Lopes compôs este, “porque a todos os homens de letras que falam a língua portuguesa, foi sempre manifesta a dificuldade de achar um termo equivalente à palavra francesa reclame”. Confesso que não me achei nunca em tal dificuldade, e mais sou relojoeiro. Quando exercia o ofício (que deixei por causa da vista fraca), compunha anúncios grandes e pomposos. Não faltava quem me acusasse de fazer reclame para vender os relógios. Ao que eu respondia sempre:

— Faça-me o favor de falar português. Reclamo é o que eu emprego, e emprego muito bem; porque é assim que se chama o instrumento com que o caçador busca atrair as aves; às vezes, é uma ave ensinada para trazer as outras ao laço. Se não quer reclamo, use chamariz, que é a mesma coisa. E olhe que isto não está em livros velhos de jesuítas, anda já nos dicionários.

Contentava-me com aquilo; mas, desde que vi o recente preconício, abri mão de outro termo, que era o nosso, por este alatinado. Nem sempre, entretanto, fui severo com artes fran-cesas. Pince-nez é coisa que usei por largos anos, sem desdouro. Um dia, porém, queixando-me do enfraquecimento da vista, alguém me disse que talvez o mal viesse da fábrica. Mandei logo (há uns seis meses) saber se havia em Portugal alguma luneta-pênsil das que inventara Camilo Castelo Branco, há não sei quantos anos. Responderam-me que não. Camilo fez uma dessas lunetas, mas a concorrência francesa não consentiu que a indústria nacional pegasse.

Fiquei com o meu pince-nez, que, a falar verdade, não me fazia mal, salvo o suposto de me ir comendo a vista, e um ou outro apertão que me dava no nariz. Era francês, mas, não cuidando a indústria nacional de o substituir, não havia eu de andar às apalpadelas. Vai senão quando, vejo anunciados os nasóculos do nosso distinto autor. Lá fui comprar um, já o cavalguei no nariz, e não me fica mal. Daqui a pouco, ver-me-ão andar pela rua, teso como um petit-maitre... Perdão, petimetre, que é já da nossa língua e do nosso povo.

Boas noites. Texto-fonte: Obra Completa de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, Vol. III, 1994.Publicado originalmente na Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro, de 07/03/1889.

Page 170: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos
Page 171: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

entreviStA

Page 172: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos
Page 173: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

o Homem e o SAber Diplomata e ensaísta Sérgio Paulo Rouanet

fala de literatura e modernidade, Freud e a crise no Brasil, sem esquecer Machado de Assis

Diplomata, filósofo, professor universitário, cientista político, pensador freudiano, conferencista, tradutor, ensaísta. Que campo do conhecimento Sérgio Paulo Rouanet não domina?

Aparentemente nenhum. A certa altura desta entrevista, realizada no Petit Trianon, sede da Academia Brasileira de Letras, Rouanet lembrou o dia em que, numa viagem de carro pelo Rio de Janeiro, propôs o jogo de relacionar cada bairro da cidade por onde passava a uma música popular. A primeira foi “Madureira Chorou”, de Carvalhinho e Júlio Monteiro. Em seguida, “Eu Quero é Rosetar”, de Haroldo Lobo e Milton de Oliveira. “Eu vou a pé pro Irajá/ Que me importa que a mula manque/Eu quero é rosetar”, cantou ele, afinadíssimo. Não à toa, Rouanet é carioca da gema, nascido em 1934.

Page 174: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

174 | REVISTA DA ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS 2016 • SEGUNDO SEMESTRE 2016

Com pouco mais de 20 anos, estreou no jornalismo cultural, escrevendo sobre Kierkegaard nas páginas do “Suplemento Dominical do Jornal do Brasil”. Autor de vasta obra escrita, alguns de seus livros se tornaram “cult” – “”O Homem e o Discurso: Arqueologia de Michel Foucault”, em parceria com José Guilherme Merquior, “Imaginário e Dominação”, “édipo e o Anjo”, “Teoria da Psicanálise” – assim como sua tradução para ensaios de Walter Benjamin. Suas obras de maior circulação, não apenas nos meios acadêmicos, são “O Mal-Estar na Modernidade” e “As Razões do Iluminismo”, hoje clássicas.

Em 2007 fez uma leitura inédita das “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis, no livro “Riso e Melancolia”. A admiração pela obra de Machado o levou, a pedido da Academia Brasileira de Letras (na qual ocupa a cadeira 13 desde 1992), a organizar, em cinco volumes, a correspondência completa do maior escritor brasileiro.

Com longos serviços prestados ao Itamaraty, servindo em Washington, Zurique, Argel, Nova Iorque, Genebra, assumiu a pasta da Secretária da Cultura, cargo equivalente a ministro do Estado, em 1991, durante o governo Collor. Considerado um intelectual progressista, criou a Lei de Incentivo à Cultura, que passou a ser conhecida como Lei Rouanet.

A socióloga Barbara Freitag Rouanet costuma contar uma história: voltando de um congresso no exterior, o oficial da alfândega no Rio examinou o passaporte dela com atenção e perguntou: “Rouanet? A senhora tem algo a ver com a Lei Rouanet?” Espontaneamente, ela respondeu: “Sim, sou casada com ela!”.

Foi justamente na companhia de Barbara – para quem Sérgio Paulo tem olhos de eterno apaixonado – que a Revista da Academia Carioca realizou a conversa a seguir. Dela participaram a Acadêmica Ana Arruda Callado, o Acadêmico Sergio Fonta e o jornalista Alvaro Costa e Silva. De bom humor, Rouanet comentou a publicação de sua mais recente obra reunindo ensaios sobre modernidade e literatura, o trabalho envolvendo a correspondência de Machado de Assis (aproveitou para teorizar sobre a questão Capitu), seus tempos de psicoanalisado na Suíça, a influência francesa em sua formação, a crise política na qual o Brasil está mergulhado e, não por último, explicou a origem e rebateu críticas acerca da lei que leva o seu nome.

O senhor acaba de lançar o livro “Rouanet, 80”. São ensaios de maturidade? A ideia foi fazer um livro reunindo todos os temas que têm me interessado ultimamente,

sobretudo em minha carreira de ensaísta, a saber: democracia, modernidade, psicanálise e literatura. Há uma conexão interna entre as disciplinas. Achei que seria uma maneira racio-nal de integrar as diferentes partes desse todo. Obviamente, democracia tem tudo a ver com psicanálise, como sabia Freud muito bem. Sempre me interessei pela política e também pelos temas dos quais somos contemporâneos. A modernidade existe ou não existe, ela foi o início da civilização ou o prenúncio da barbárie? E, não por último, a literatura, que para mim é e sempre foi fundamental.

Page 175: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

ENTREVISTA: SéRGIO PAULO ROUANET | 175

O senhor é daqueles pensadores que acham necessário deixar um livro autobiográfico ou não tem essa tentação?

Já me disseram isso. Que seria oportuno que eu escrevesse um livro autobiográfico. Mas prefiro me ater aos ensaios. O autor intelectual da forma dos ensaios, Michel de Montaigne, dizia: “Sou eu que me pinto”. Disse isso a propósito do indígena brasileiro, mas ao mesmo tem-po falava da sinceridade e da transparência de opinião que havia nos seus ensaios. Não chega a ser um Rousseau, que escreveu confissões propriamente ditas. Este meu último livro tem um salpico de cada uma dessas coisas.

Como o senhor descreveria a sua trajetória intelectual? Quais obras e pensadores influen-ciaram o seu percurso?

Montaigne, já citado, foi fundamental na minha formação. é uma figura síntese que im-pregna o pensamento ocidental. Com Montaigne, vem também, claro, toda a cultura francesa, que foi marcante para mim. Muito por influência dos meus pais, minha mãe estudou num colégio francês. Muitas vezes ela não me contava histórias infantis, preferia recitar estrofes de Racine. Lembrei muito de meus pais quando tomei posse na Academia Brasileira de Letras. Eles já haviam falecido, mas senti-os ao meu lado, vivíssimos.

No seu livro-ensaio “Riso e Melancolia”, o senhor trata da chamada forma shandiana, ligada a autores como Sterne, Diderot, Xavier de Maistre, Almeida Garret. É possível dizer que Machado de Assis foi o mais completo autor shandiano?

Machado de Assis provavelmente foi o inventor da forma shandiana. Sem ser ele próprio um autor exclusivamente shandiano, influenciado que foi não só pelos escritores ingleses como também pelos franceses e alemães. Mas, no caso deste ensaio, quis destacar esse lado que vem do clássico do século 18, “A Vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy”, de Laurence Sterne. Um lado que você encontra nas “Memórias Póstumas de Brás Cubas”. O que é a forma shandiana? Uma forma digressiva, em que existem distorções do espaço temporal e uma hi-pertrofia da subjetividade: “Eu, Brás Cubas”. Mas, de modo mais geral, ou menos geral talvez, o que acho mais importante em Machado de Assis, independente da estrutura formal, é sua beleza e sua profundidade.

O senhor diria “uma profundidade psicanalítica”? Certa vez estava conversando numa sociedade de psicanálise, e quando terminou minha

exposição, uma senhora pediu que eu exemplificasse, com uma lista, alguns livros importantes. Eu disse: “Machado de Assis”. Ela retrucou que eu não havia entendido a pergunta. Ela gostaria de uma lista de obras que fosse importante para quem estivesse fazendo um estudo em psicanálise. Eu respondi: “Então, um autor importante é... Machado de Assis!”.

Page 176: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

176 | REVISTA DA ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS 2016 • SEGUNDO SEMESTRE 2016

Ainda há autores shandianos na atualidade?Certamente houve autores europeus e americanos influenciados pelo “Tristram Shandy”

e, através dessa filiação, pode-se dizer que a família shandiana ainda não morreu. Mas tenho a impressão que perdeu um pouco de brilho depois da morte de Machado de Assis. Ele foi o escritor shandiano por excelência. Machado assinalou todas as características estruturais e formais desse modelo e, ao fazer isso, se transformou no principal autor shandiano.

Ainda sobre Machado de Assis, fale sobre seu trabalho com a correspondência completa. Qual Machado de Assis emerge das cartas? De que maneira a leitura da correspondência desvenda a figura do escritor?

Em primeiro lugar, descobri várias cartas inéditas. Em termos de machadologia, creio que as cartas não trouxeram grandes novidades. Mas corrigiu alguns estereótipos. Por exemplo: que Machado de Assis era um funcionário público sisudo, chato no que dizia respeito a suas funções, um pouco “medalhão”, para usar a expressão de seu conto famoso, “A Teoria do Medalhão”. As cartas demonstram que ele tinha suficiente ironia para enxergar a si mesmo. Pode-se dizer que o missivista era uma espécie de conselheiro Aires. Quem lê o primeiro volume das cartas descobre um Machado de Assis brejeiro, para usar um termo que ele e o José de Alencar gostariam. Aparece a roda de Machado de Assis, rapazes de 20 e poucos anos, e todos irreverentes, namoradores, e até usuários de palavrões. Posso dizer um palavrão machadiano? Ele havia prometido um artigo a uma revista de direito de São Paulo. O texto nunca ficava pronto. Então ele escreveu a si mes-mo, fazendo as vezes do editor da revista: “ó, Machado, manda logo a porcaria desse artigo!”

É possível falar, com a publicação das cartas, em uma “nova biografia” de Machado de Assis?Não, acho que seria muita pretensão nossa. Fizemos, eu e as pesquisadoras Irene Moutinho

e Sílvia Eleutério, o melhor possível, um bom trabalho, que ainda não terminou. Ao todo são cinco volumes, mas depois de fecharmos as edições descobrimos mais material. Pelo menos umas 10 cartas inéditas. Isso é muito comum: quando pretendemos fazer uma edição definitiva, chegamos à conclusão, perfeitamente machadiana, que nada é definitivo. E talvez nem seja uma boa ideia publicar tudo... Em algumas cartas aparecem figuras femininas ainda nebulosas, não identificadas. Ninguém entendeu a mulher tão profundamente quanto Machado. Talvez só o Vinicius de Moraes.

Sendo assim, Capitu traiu ou não traiu?é ocioso ou cair demais na banalidade fazer discussões intermináveis sobre se Capitu deu

ou não deu, traiu ou não traiu. às vezes a “vox populi” acerta. E o que ela mais gosta em “Dom Casmurro” é a questão da possível honestidade ou inocência de Capitu. Mas o que está em jogo ali é o ciúme. A maravilha do livro é deixar tudo em suspenso, fugir do chavão, e assim entrar

Page 177: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

ENTREVISTA: SéRGIO PAULO ROUANET | 177

no domínio da grande literatura. E note que, em outros romances notáveis, citemos “Anna Karenina”, “Madame Bovary” ou “O Primo Basílio”, não há ambivalência alguma, o adultério é claramente consumado.

Como o cientista político Sérgio Paulo Rouanet vê a atual crise política do Brasil?Não conheço nenhuma pior do que essa. E tenho idade suficiente para ter vivido e poder

rememorar antigas crises, inclusive a que vivi no tempo em que fui secretário de Cultura no governo do presidente Collor, que acabou sofrendo o impeachment. O importante é saber o que vai advir de tudo isso.

Como chegamos nesse ponto?Em grande parte foi uma questão de partidarismo político. Uma tentativa de impor

uma visão de mundo mais ou menos stalinista e mais ou menos benevolente. São homens que foram extraordinários lutando contra a ditadura, mas que traíram sua própria biografia. Não creio ter sido banditismo político por parte de homens que arriscaram a vida pela de-mocratização do Brasil. Mas como é possível que eles traíssem a si mesmos? Para implantar um projeto de poder.

Qual a saída? Eu tenho saudade da época em que sabíamos exatamente em que lado nós estávamos.

Se eles tomavam uma direção, nós tomávamos outra. Agora acabou essa simplicidade bonita, heroica, ingênua. Nossos paradigmas se evaporaram.

O Brasil sobre a falta lideranças?Pergunte ao Fernando Henrique Cardoso. Eu acho que sim. O Fernando Henrique deixou

de ser um líder pela questão da idade, evidentemente. Mas hoje em dia o mundo foi esvaziado da dimensão homérica. é impossível a existência de grandes homens. Em tempos não tão distantes, toda vez que aparecia um fato estranho e inexplicável na política, nós nos perguntávamos: o que o Fernando Henrique pensa disso? Ele, queira ou não queira, é quem chega mais perto da figura de um príncipe moderno na política brasileira. Tirando, naturalmente, a conotação negativa que Maquiavel emprestou à palavra.

Como o senhor analisa a invasão da ordem política na esfera pessoal? Amigos que discor-dam politicamente e se envolvem em brigas. Acabam deixando de se falar. Há casos desse tipo até entre pais e filhos.

é que a política é uma coisa pessoal, ela faz parte do espaço emocional de todos nós. Talvez a política sempre tenha sido isso, mas só se revelou completamente agora. A situação não era

Page 178: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

178 | REVISTA DA ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS 2016 • SEGUNDO SEMESTRE 2016

tão evidente uma geração atrás. A política enfim passou a ser protagonista no espaço existencial em que nos movemos. Talvez antes também fosse, mas estava oculto, escondido, difícil de ver. Hoje o que existia em tom menor não precisa mais ser decifrado. A política está na rua, sob a forma de “Fora, Temer”, por exemplo. E isso pode ser um lado positivo da crise. Quem sabe?

A Lei Rouanet tem 25 anos. O senhor podia fazer um histórico dela? Se ao longo do tempo, ela manteve sua finalidade, ou se houve distorções e falhas no caminho?

Acho que não precisa, nem deveria mais, chamar Lei Rouanet. Pode ser Lei de Incentivo à Cultura ou Lei nº 8.313.

Quem decidiu que seria Lei Rouanet?O Collor. Ele estava de saco cheio, para usar uma expressão popular, de ser atacado por

causa da Lei Sarney, também de incentivo à cultura, e me deu ordens de produzir uma nova lei. Perguntei se ela se chamaria Lei Collor. Ele disse não, sugerindo meu nome, pois sabia per-feitamente que estava me entregando às feras. Ele sabia que a classe cultural sempre reage com perplexidade a qualquer tipo de intervenção.

Deve ser uma situação incômoda ter o próprio nome exposto dessa maneira?Muito incômodo. Eu não me arrependo da lei. Mas acho que está na hora de acabar com

o culto à personalidade. Em todas as dimensões, sobretudo na matéria de autoria de leis.

Por que a lei se transformou num monstro?Monstro é um pouco demais. Não chega a ser teratológico a esse ponto. A lei teve o des-

tino de certas boas ideias, ou seja, foi distorcida no momento da sua implementação. Apesar das muitas críticas que se fazem a Lei Rouanet, vá lá que seja este o nome, acho que algumas coisas funcionaram, e se preservaram. O lado elitista talvez pudesse ser melhorado em uma futura edição. Existe uma concentração excessiva de projetos culturais em regiões mais ricas do Brasil, em especial o eixo Rio-São Paulo. A verdade é que está na hora de reformar a lei. Não precisa ser revogada. Mas existem problemas e distorções que precisam ser revistos, inclusive na esfera policial.

Policial?Sim. Há um grupo de bandidos que introduziu práticas criminosas valendo-se da lei, algu-

mas de caráter grotesco como o episódio de financiamento de um casamento em Florianópolis em um badalado clube ao som de música sertaneja. é lamentável.

O senhor gostaria que fosse realizada uma CPI ou uma investigação policial?

Page 179: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

ENTREVISTA: SéRGIO PAULO ROUANET | 179

Uma investigação policial. Não acho que uma CPI seja boa ferramenta de trabalho nesse caso. é preciso fazer o que a Polícia Federal está fazendo, investigar, chegar aos culpados, para depois julgá-los e puni-los.

Nesse ponto da conversa, Barbara Freitag Rouanet pede a palavra, para prestar mais esclarecimentos:

A lei é maior de idade. Portanto não se pode cobrar o autor por uma lei que foi usada e abusada. Além disso, ela é muito mal conhecida. Ouso dizer que praticamente ninguém a conhece, com exceção do autor e do grupo que nela trabalhou. O Sérgio Paulo estudou todas as leis de incentivo cultural que existiam dentro e fora do Brasil antes de começar seu trabalho. O que foi feito de errado não está na lei, e sim no uso que se faz dela. Não se trata meramente de uma renúncia fiscal, como muitos pensam. Por exemplo, a lei admite, com recursos do Fundo Nacional de Cultura, a possibilidade de financiar a restauração de igrejas e outros bens patrimoniais. Ninguém fala nisso. Ou, melhor dizendo, só se fala no assunto nas redes sociais, que demonstram uma maior compreensão e cobertura dos problemas e acertos que envolvem a lei. O errado muitas vezes está na escolha das empresas sobre esse ou aquele projeto que elas decidem financiar. Mas o maior entrave, sem dúvida, está no desconhecimento da lei. Digo isso sempre ao Sérgio Paulo, para aliviar a carga que ele é obrigado a carregar. E, para terminar o assunto, eu dou uma informação em primeira mão: a Fernanda Montenegro é tão apaixonada pela Lei Rouanet que quer casar com o Sérgio. Eu é que não deixo. (Risos)

O senhor acompanha as redes sociais?Não. Mas se ainda tivesse alguma função pública, ligada à cultura ou não, eu acompanharia.

Como também acompanharia as telenovelas. Não tenho nenhum problema de rejeição a redes sociais. Vou dizer algo totalmente original, prepare-se para ouvir: elas têm lados positivos e lados negativos.

O que o senhor acha do conceito de “apropriação cultural”?é preciso ser mulher para falar sobre mulher e é preciso estar externo ao universo feminino

para poder se apropriar de visões e aspectos que, por excesso de proximidade, não ocorrem às vítimas do machismo, por exemplo. é preciso viver a experiência do oprimido e, ao mesmo tempo, é preciso ver de fora para saber em que consiste essa opressão. Para entender a cabeça do opressor. Para compreender o dentro é preciso compreender o fora.

Como anda a psicanálise hoje?Acho que ela atravessa uma crise. Eu diria que hoje é impossível ser outra coisa que não

um pós-freudiano. Não podemos fingir que o furacão chamado Freud que se abateu sob a hu-manidade deixou de existir. Ele existiu e nunca mais o mundo foi igual.

Page 180: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

180 | REVISTA DA ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS 2016 • SEGUNDO SEMESTRE 2016

O senhor foi psicoanalisado? Há muitos anos. Até acho que estou precisando voltar... Fiz na Suíça com um psicanalista

grego. Havia de ser ao menos um conterrâneo de Homero. Faz parte da psicanálise uma refle-xão crítica sobre a própria psicanálise. Existe o fenômeno da transferência pelo qual em certos momentos você não sabe se está amando o seu pai ou amando o seu psicanalista. Através disso, você consegue informações que são importantes para a terapia. O grego era freudiano, não era lacaniano. Fora do Brasil e da França, Lacan provavelmente não é uma figura tão importante. E eu fui acometido de uma antipatia muito forte pelo meu psicanalista grego. E resolvi conquistá-lo, através da minha inteligência, digamos, superior. Passei a produzir sonhos maravilhosos, cada vez mais maravilhosos, e ficava decepcionado porque meus esforços não chegavam ao objetivo. Ou seja, o grego continuava achando que havia outros pacientes mais interessantes do que eu. Um dia, inventei um sonho que me pareceu impecável na forma e no conteúdo, cheio de sutilezas e profundidades insuspeitadas. Submeti o sonho perfeito ao grego. No fim dos 45 minutos da sessão, ele disse, em francês: “Je vous remercie monsieur de votre conférence; je vous signale toutefois, que vous avez oublié la bibliographie. Merci monsieur. à demain!” (“Senhor, eu lhe agradeço pela sua conferência. Entretanto, assinalo que o senhor esqueceu a bibliografia. Obri-gado. Até amanhã”). Eu dei uma gargalhada homérica e, a partir daquele momento, consenti em ser psicoanalizado.

Page 181: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

quAdro AcAdêmico CADEIRA 01Patrono: Antônio José da Silva (O Judeu)Fundador: Cândido Jucá (filho)Ocupantes: Djacir Menezes, Edmo Rodrigues LutterbachMembro efetivo: Teresa Cristina Meireles de Oliveira

CADEIRA 02Patrono: Alvarenga Peixoto Fundador: Carlos Sussekind de Mendonça Ocupantes: Jonas de Moraes Correia FilhoMembro efetivo: Arno Wehling

CADEIRA 03Patrono: Monsenhor Pizarro e AraújoFundador: Almáquio Diniz Ocupantes: Evaristo de Moraes, Leopoldo Braga, Carlos de Oliveira Ramos, Abeylard Pereira Gomes, F. Silva NobreMembro efetivo: Cláudio Aguiar

CADEIRA 04Patrono: Antônio de Morais SilvaFundador: Lindolfo GomesOcupantes: Jorge de Lima, Moacyr Silva, Antenor Nascentes, Paulino Jacques, Armindo Pereira, Marcos Almir MadeiraMembro efetivo: Sonia Sales

CADEIRA 05Patrono: Monte AlverneFundador: Honório SilvestreOcupantes: Carlos Maul, J. E. Pizarro Drummond, Emanuel de MoraesMembro efetivo: Adriano Espínola

CADEIRA 06Patrono: Evaristo da VeigaFundador: Heitor MonizOcupantes: Antônio Assumpção, Fernando SegismundoMembro efetivo: Martinho da Vila

CADEIRA 07Patrono: Gonçalves de Magalhães, Visconde de AraguaiaFundador: Ivan LinsOcupantes: Paschoal Carlos Magno, Prado Kelly, J. M. Othon SidouMembro efetivo: Marcus Vinicius Quiroga

CADEIRA 08Patrono: Justiniano José da RochaFundador: Raul PederneirasOcupantes: L. F. Vieira Souto, J. C. de Melo e Sousa (Malba Tahan), Joaquim Inojosa, Paschoal Villaboim FilhoMembro efetivo: Murilo Melo Filho

CADEIRA 09Patrono: Martins PenaFundador: Jônatas SerranoOcupantes: Murilo AraújoMembro efetivo: Gilberto Mendonça Teles

Page 182: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

182 | REVISTA DA ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS 2016 • SEGUNDO SEMESTRE 2016

CADEIRA 10Patrono: Joaquim NorbertoFundador: Luciano LopesOcupantes: Mons. Guilherme SchubertMembro efetivo: Stella Leonardos

CADEIRA 11Patrono: Francisco OctavianoFundador: Alfredo Cumplido de Sant’AnnaOcupantes: Nísia Nóbrega, Antonio William Fontoura ChavesMembro efetivo: Nelson Mello e Souza

CADEIRA 12Patrono: Laurindo RabelloFundador: Fábio LuzOcupantes: Mário Linhares, Benjamim Moraes Filho, yves de OliveiraMembro efetivo: Libórni Siqueira

CADEIRA 13Patrono: Manuel Antônio de AlmeidaFundador: Prado RibeiroOcupantes: Adelino Magalhães, Horácio de Almeida, Dagmar ChavesMembro efetivo: Cícero Sandroni

CADEIRA 14Patrono: Dom Pedro IIFundador: J. Paulo de MedeirosOcupantes: Paulo Coelho Neto, Álvaro Faria, Ronaldo Rogério de Freitas MourãoMembro efetivo: Sergio Fonta

CADEIRA 15Patrono: Quintino BocayuvaFundador: Afonso CostaOcupantes: Homero Prates, Murilo Cardoso Fontes, Elysio Condé, Jorge Picanço SiqueiraMembro efetivo: Edir Meirelles

CADEIRA 16Patrono: França JúniorFundador: Atílio MilanoOcupantes: Álvaro Moreyra, Luiz Peixoto, Gastão Pereira da Silva, Hélcio Pereira da Silva, Sylvio de OliveiraMembro efetivo: Paulo César Martinez y Alonso

CADEIRA 17Patrono: Machado de AssisFundador: Modesto de AbreuOcupantes: Oliveiros LitrentoMembro efetivo: Reynaldo Valinho Alvarez

CADEIRA 18Patrono: Visconde de TaunayFundador: Alcides BezerraOcupantes: Osório Dutra, Herculano Borges da Fonseca, Leodegário A. de Azevedo FilhoMembro efetivo: Antonio Carlos Secchin

CADEIRA 19Patrono: Luiz GuimarãesFundador: Hermeto LimaOcupantes: Nelson Romero, Povina Cavalcanti, Heitor Fróes, Umberto Peregrino, Antonio OlintoMembro efetivo: Paulo Roberto Pereira

CADEIRA 20Patrono: Barão do Rio BrancoFundador: Victor Ferreira AlvesOcupantes: João Lyra Filho, José Caruso MadalenaMembro efetivo: Godofredo de Oliveira Neto CADEIRA 21Patrono: Gonçalves CrespoFundador: Mello NóbregaOcupantes: Theophilo de Andrade, Francisco Agenor Ribeiro da SilvaMembro efetivo: Ivan Cavalcanti Proença

Page 183: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

QUADRO ACADÊMICO | 183

CADEIRA 22Patrono: Ferreira de AraújoFundador: Leôncio CorreiaOcupantes: Francisco Leite, Haroldo Valadão, Venâncio IgrejasMembro efetivo: Cláudio Murilo Leal

CADEIRA 23Patrono: Vieira FazendaFundador: M. Nogueira da SilvaOcupantes: Carlos da Silva Araújo, Olavo Dantas, Geraldo HalfeldMembro efetivo: Omar da Rosa Santos

CADEIRA 24Patrono: Carlos de LaetFundador: Henrique LagdenOcupantes: Oscar Tenório, Oscar Dias CorrêaMembro efetivo: José Arthur Rios

CADEIRA 25Patrono: Valentim MagalhãesFundador: J. B. de Melo e SouzaOcupantes: Sylvio de Abreu Fialho, Mellilo Moreira de Mello, João Christiano Maldonado, E. G. de CamposMembro efetivo: Ana Arruda Callado CADEIRA 26Patrono: Júlia Lopes de AlmeidaFundador: Afonso Lopes de AlmeidaOcupantes: Nelson Costa, Luiz de Castro SouzaMembro efetivo: Tania Zagury

CADEIRA 27Patrono: Gonzaga DuqueFundador: Carlos RubensOcupantes: Edgar Sussekind de Mendonça, Frederico Trotta, Sílvio Meira, Jonas de Morais Correia NetoMembro efetivo: Dirce de Assis Cavalcanti

CADEIRA 28Patrono: Tito Lívio de CastroFundador: Saladino de GusmãoOcupantes: Pádua de Almeida, Fernando SalesMembro efetivo: Marita Vinelli

CADEIRA 29Patrono: Olavo BilacFundador: Henrique OrciuoliOcupantes: A. Machado PauperioMembro efetivo: Waldir Ribeiro do Val

CADEIRA 30Patrono: Mário PederneirasFundador: Zeferino BarrosoOcupantes: Heitor Beltrão, Renato de MendonçaMembro efetivo: íris de Carvalho Drummond

CADEIRA 31Patrono: Alberto FariaFundador: Othon CostaOcupantes: Lyad de AlmeidaMembro efetivo: Maria Apparecida Picanço Goulart

CADEIRA 32Patrono: Mário de AlencarFundador: J. G. Lemos BritoOcupantes: Mário da Veiga Cabral, Pontes de Miranda, Dahas Chade ZarurMembro efetivo: Mary del Priore

CADEIRA 33Patrono: Mário BarretoFundador: Jacques RaimundoOcupantes: Victor de Sá, padre Jorge O’Grady de Paiva, Ana Helena Ribeiro Soares Membro efetivo: Miriam Halfim

Page 184: REVISTA DA - diegomendessousa.files.wordpress.com · de futebol. Também do Especial constam três poemas de João Cabral de Melo Neto que, por intermédio de nosso editor Carlos

184 | REVISTA DA ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS 2016 • SEGUNDO SEMESTRE 2016

Este livro foi editado na cidade de

São Sebastião do Rio de Janeiro em dezembro de 2016

Fonte do miolo: Adobe Garamond – corpo 11/15

Papel de miolo: avena 80g/m2

Papel de capa: cartão triplex 250g/m2

CADEIRA 34Patrono: Arthur MottaFundador: Roberto MacedoOcupantes: Edgard de Magalhães Gomes, Antonio JustaMembro efetivo: Ricardo Cravo Albin

CADEIRA 35Patrono: Luís CarlosFundador: Bernardino José de SouzaOcupantes: M. Paulo Filho, Lasinha Luiz Carlos, Ovídio Cunha, Luís Ivani de Amorim AraújoMembro efetivo: Maria Beltrão

CADEIRA 36Patrono: Lima BarretoFundador: Phocion SerpaOcupantes: Joaquim Thomaz de Paiva, Geraldo de MenezesMembro efetivo: Domício Proença Filho

CADEIRA 37Patrono: Paulo BarretoFundador: Paulo MagalhãesOcupantes: Antônio Vieira de Mello, Aloysio Tavares PicançoMembro efetivo: Alcmeno Bastos

CADEIRA 38Patrono: Vicente Licínio CardosoFundador: Castilho GoycocheaOcupantes: Membro efetivo: Fernando Whitaker da Cunha

CADEIRA 39Patrono: Ronald de CarvalhoFundador: Sílvio JúlioOcupantes: M. Pinto de AguiarMembro efetivo: Tobias Pinheiro

CADEIRA 40Patrono: Moacyr de AlmeidaFundador: D. Martins de OliveiraOcupantes: Alcides Carneiro, Vicente Faria Coelho, Humberto BragaMembro efetivo: Bernardo Cabral