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O Brasil, que se constitui em um país de migrantes, iniciou, após a década de 1930, um conjunto de políticas restritivas que dificultou a entrada de imigrantes e refugiados. Passado o período da escravidão, consolidou-se o último grande fluxo migratório, que tem seu início no fim do século XIX e seu término na década de 1920. Fora estimulado e or- ganizado um conjunto de políticas públicas que facilitavam a entrada, a legalização e a instalação dos recém-chegados, essencialmente para su- prir as necessidades de mão de obra nas plantações de café de São Paulo. Nessas migrações “desejadas”, era privilegiada a “ascendência euro- peia”, tida como garantia de um povoamento compatível com uma vi- são de civilização dominada pelo imaginário europeu. A partir de 1933, a imigração foi regulada de forma restritiva pela Constituinte (Geraldo, 2009). Foi determinado, então, que o Brasil re- ceberia anualmente um número máximo de 2% do total de imigrantes da cada nacionalidade que tivessem imigrado nos últimos 50 anos. Passou-se, desse modo, da promoção de fluxos coletivos das décadas anteriores a uma gestão restritiva de trajetórias individuais seletiva- mente indesejáveis. Desde então, e apesar de sua reformulação na dé- cada de 1980, a lei brasileira de imigração continua determinada pelo paradigma minimalista da porta estreita, não sendo estabelecidas polí- ticas migratórias proativas, as quais definiriam o posicionamento do Brasil dentro das dinâmicas migratórias globalizadas. http://dx.doi.org/10.1590/00115258201431 1007 Nem Refugiados, nem Migrantes: A Chegada dos Haitianos à Cidade de Tabatinga (Amazonas) Jean-François Véran 1 Débora da Silva Noal 2 Tyler Fainstat 3 1 Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: [email protected]. 2 Universidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil. E-mail: [email protected]. 3 John Howard Society, Kingston, Ontário, Canadá. E-mail: [email protected] DADOS – Revista de Ciências Sociais , Rio de Janeiro, vol. 57, n o 4, 2014, pp. 1007 a 1041.

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O Brasil, que se constitui em um país de migrantes, iniciou, após adécada de 1930, um conjunto de políticas restritivas que dificultou

a entrada de imigrantes e refugiados. Passado o período da escravidão,consolidou-se o último grande fluxo migratório, que tem seu início nofim do século XIX e seu término na década de 1920. Fora estimulado e or-ganizado um conjunto de políticas públicas que facilitavam a entrada, alegalização e a instalação dos recém-chegados, essencialmente para su-prir as necessidades de mão de obra nas plantações de café de São Paulo.Nessas migrações “desejadas”, era privilegiada a “ascendência euro-peia”, tida como garantia de um povoamento compatível com uma vi-são de civilização dominada pelo imaginário europeu.

A partir de 1933, a imigração foi regulada de forma restritiva pelaConstituinte (Geraldo, 2009). Foi determinado, então, que o Brasil re-ceberia anualmente um número máximo de 2% do total de imigrantesda cada nacionalidade que tivessem imigrado nos últimos 50 anos.Passou-se, desse modo, da promoção de fluxos coletivos das décadasanteriores a uma gestão restritiva de trajetórias individuais seletiva-mente indesejáveis. Desde então, e apesar de sua reformulação na dé-cada de 1980, a lei brasileira de imigração continua determinada peloparadigma minimalista da porta estreita, não sendo estabelecidas polí-ticas migratórias proativas, as quais definiriam o posicionamento doBrasil dentro das dinâmicas migratórias globalizadas.

http://dx.doi.org/10.1590/00115258201431 1007

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Nem Refugiados, nem Migrantes: A Chegada dosHaitianos à Cidade de Tabatinga (Amazonas)

Jean-François Véran1

Débora da Silva Noal2

Tyler Fainstat3

1Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS), Universidade Federal do Rio de Janeiro(UFRJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: [email protected] de Brasília, Brasília, DF, Brasil. E-mail: [email protected] Howard Society, Kingston, Ontário, Canadá. E-mail: [email protected]

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Neste início de século XXI, os deslocamentos em larga escala se multi-plicam com a velocidade dos meios modernos de comunicação.Amplas transformações geopolíticas, climáticas e econômicas impac-tam realidades demográficas de continentes inteiros. Nesse contexto, oBrasil surge como uma potência econômica politicamente estável ecom uma diplomacia abertamente desafiadora das políticas restritivasdo Ocidente: cooperação Sul-Sul, militante da quebra de algumas pa-tentes médicas (por razões humanitárias), protagonista da missão depaz no Timor e artesão central da intervenção das Nações Unidas noHaiti. Nessa conjuntura, era de se esperar que o Brasil entraria na rotadas migrações globalizadas. Entretanto, quando, do início de 2010 amarço de 2012, se deu um inédito fluxo de aproximadamente 4 mil mi-grantes haitianos na região Norte (Acre e Amazonas), evidenciaram-seos limites da capacidade de resposta legal e operacional nos níveis mu-nicipal, estadual e federal.

Com base no estudo de caso da cidade de Tabatinga (AM), que recebeu 3mil desses migrantes, este artigo propõe descrever e analisar as dificul-dades de assistência e proteção vivenciadas pela população haitiana du-rante a intervenção de uma organização humanitária internacional(Médicos Sem Fronteiras – MSF) entre outubro de 2011 e março de 2012.Os dados aqui apresentados resultam de uma pesquisa preliminar reali-zada entre setembro e outubro de 2011. Nesta ocasião, um questionáriofoi aplicado em crioulo a 180 migrantes (24% da população haitiana to-tal que se encontrava na cidade no momento da pesquisa). Ademais,foram constituídos três grupos focais e realizadas 18 entrevistas semidi-retivas com migrantes, além de discussões com autoridades e atoreslocais1. Em Manaus, entrevistas semidiretivas foram realizadas comparlamentares, representantes da Polícia Federal e atores do sistema pú-blico de saúde. Em Brasília, entrevistas semidiretivas foram realizadascom responsáveis do Conselho Nacional de Imigração (CNIG), do Co-mitê Nacional para os Refugiados (Conare), e do Alto Comissariado dasNações Unidas para os Refugiados (Acnur). Considerando-se a expe-riência de MSF em questões migratórias adquirida em diferentes proje-tos nos últimos 40 anos, o intuito aqui é trazer elementos que possam ali-mentar a reflexão sobre a política migratória do Brasil.

TABATINGA À LUZ DA NOÇÃO DE “EVENTO CRÍTICO”

Partiremos do princípio de que a migração haitiana em Tabatinga, emseu auge, entre junho de 2011 e fevereiro de 2012, constituiu-se em um“evento crítico” na história migratória brasileira.

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No que concerne a “evento crítico”, tomaremos emprestadas deFrançois Furet as ideias de “singularidade” e de “erupção” de uma“nova modalidade de ação histórica” (Furet, 1978). Pode-se supor que,no decorrer dos últimos 20 anos, outros movimentos migratórios (co-lombianos, bolivianos...) já haviam desafiado o dogma do controle dosfluxos; porém, amplamente confinadas à informalidade de relaçõesentre países vizinhos, elas não haviam impactado as políticas públicasmigratórias (Baeninger, 2012). No caso da migração haitiana, por meiode seu desenvolvimento político e midiático, surgiu ainda como umevento na ordem do imaginário (Furet, 1978), ativando ou reativando umconjunto de representações que conferem ao evento seu status comotal. “O Haiti é aqui” funcionou como um operador sintético entre regis-tros que foram do humanitarismo internacional a medos romantiza-dos do haitianismo do século XIX (medo da contaminação política darevolução haitiana), passando pela reativação do poderoso imaginárioda “África no Brasil” (Fry e Vogt, 1996).

Como segundo ponto de estudo, retemos o conceito de “evento crítico”de Veena Das (1995), o qual comporta a ideia de que a análise de deter-minados eventos permite apontar para realidades sociopolíticas com-plexas, articulando escalas local, nacional e internacional. De fato, seos casos microlocais de Tabatinga (no Amazonas) ou de Brasileia (noAcre) acabaram por configurar uma questão nacional, é tanto pelacomplexidade da conjuntura quanto pela estratégia de resposta técni-co-legal, além da forma com que o Estado apropriou-se do “caso doshaitianos” para enunciar uma excepcionalidade e reafirmar uma nor-ma migratória: atribuir vistos “humanitários” aos haitianos já em solobrasileiro, enfocando, assim, a legitimidade internacional do Brasil,bem como sua “generosidade”, e tentar voltar a um regime restritivode cotas para garantir uma imigração de qualidade ou “escolhida”.

Ao resgatar em seus detalhes o caso particular de Tabatinga, acompa-nhamos Veena Das em seu cuidado de “resgatar os momentos perdi-dos” pela narrativa nacional e restituir algo da verdade das pessoasenvolvidas, concordando com ela que tal escuta abre para novas possibi-lidades de justiça (1995).

Finalmente, a situação de Tabatinga será apreendida aqui pelo prismaoperacional de uma organização humanitária médica de emergência(MSF). Vale ressaltar que este artigo não é um exercício de comunica-ção institucional na forma de um documento de advocacia, tal como a

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organização procede quando da atuação em determinado contexto,mas, sim, uma publicização, na medida em que o trabalho realizadotorna a organização testemunha privilegiada dos acontecimentos nar-rados.

Trata-se aqui de um trabalho de pesquisa operacional, cujo objetivo éproduzir conhecimentos sobre intervenções, estratégias ou ferramen-tas que possam melhorar a qualidade, a efetividade e a cobertura dosprogramas nos quais a pesquisa é conduzida (MSF, 2010). Nesse caso,tal pesquisa se justificou pelo caráter inédito no contexto brasileiro dasituação que motivou a decisão da organização de lançar um projetopontual de assistência para os migrantes haitianos de Tabatinga. Defato, vale registrar que, salvo em contextos de catástrofes naturais(Alagoas, 2010; Rio de Janeiro, 2011), MSF não desenvolve projetos noBrasil desde 2009, o que ressalta essa excepcionalidade percebida na si-tuação de Tabatinga aos olhos da organização.

No momento em que a pesquisa foi iniciada, e baseando-se em sua ex-periência dos fluxos migratórios em várias regiões do mundo, acredi-tava-se também na dimensão exemplar de Tabatinga, no sentido deque tal situação prefigurava potencialmente um novo polo de tensãomigratória com riscos humanitários. A pesquisa operacional buscou,por esse motivo, evidenciar as dinâmicas que compuseram em Taba-tinga uma “situação humanitária”.

Tabatinga, uma Situação Humanitária

Tabatinga está localizada na tríplice fronteira Peru/Brasil/Colômbia,na região amazônica, com uma população de cerca de 50 mil habitan-tes. A “fronteira seca” com a cidade colombiana de Letícia e a fronteiraaberta com a ilha peruana de Santa Rosa fazem da cidade um lugar denomadismo intersticial. Comércio, casamentos, vida noturna: as po-pulações transitam entre os três países em um território socialmentecontínuo. A esse fluxo de fronteira somam-se as idas à cidade das po-pulações indígenas vizinhas e a rotatividade do contingente militar,importante em razão da localização estratégica de Tabatinga.

Nesse contexto, tecido por incessantes trajetórias individuais e coleti-vas, a chegada dos haitianos não constituiu uma ruptura na rotina deum povoado isolado da Amazônia, apenas mais fluxo em uma cidadede fluxos. Isso talvez explique a relativa serenidade com a qual a popu-lação local recebeu os migrantes haitianos, os quais ressaltaram a cor-

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dialidade do acolhimento e avaliaram o “primeiro contato” como glo-balmente bom.

Contudo, rapidamente os migrantes compuseram uma “minoria visí-vel”, e a cor da pele, assim como o “imaginário” do Haiti, não foram osúnicos elementos de destaque. Como quaisquer migrantes recém-chegados, sua visibilidade decorreu de sua precariedade (Noiriel,1988): ocupação ociosa dos espaços públicos, forte presença nos servi-ços de assistência e na Polícia Federal, incorporação marginal nos su-bempregos informais (venda de jornais, estivadores do porto...). Nãofaltaram espaços onde a visibilidade apontou para as necessidadesmúltiplas de uma população inesperada.

No entanto, Tabatinga mostrou-se constitutiva de poucos recursospara suprir as necessidades básicas de uma população migrante excep-cionalmente precária, assim como veremos a seguir. No momento emque a pesquisa foi realizada, a cidade tem uma estrutura sanitária insu-ficiente mesmo para a população local. Apesar de ser banhada por umdos maiores rios do mundo, o Solimões, sofre pela falta constante deágua para o consumo humano. A disposição geográfica e a distânciamarcam a relação com a capital do estado, complicando tanto a visibili-dade política quanto a alocação dos recursos: a cidade só é acessívelpor via aérea (voos diários de Manaus) ou vias fluviais (de barco, setedias no sentido Manaus-Tabatinga e três dias no sentido Tabatin-ga-Manaus). Tabatinga possui um hospital militar (cofinanciado peloSistema Único de Saúde – SUS) frequentemente sobrecarregado compacientes oriundos do próprio município e das cidades adjacentes. Apopulação vive, majoritariamente, na precariedade, decorrendo deum mercado local reduzido, com poucas oportunidades e rendasbaixas.

Haitianos em Tabatinga

Entre os anos 2010 e 2012, a Polícia Federal brasileira contabilizou a en-trada de 3.814 haitianos (456 em 2010; 1.898 em 2011 e 1.460 apenas nomês de janeiro de 2012). Esses haitianos exploravam uma nova rota dediáspora. Nesse momento, as terras de migração tradicional – EUA,Canadá, Europa – apresentavam-se com suas fronteiras fechadas oufechando, à medida que se esgotava o argumento humanitário de aber-tura que se seguiu ao período pós-terremoto no Haiti, em janeiro de2010. Apesquisa quantitativa realizada em Tabatinga no mês de setem-

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bro de 2011 apontou que 30% dos migrantes que chegaram à cidade en-tre setembro e outubro desse ano estavam saindo da República Domi-nicana, onde se queixavam de rendas baixas e múltiplas discrimina-ções. No Equador, só podiam circular de forma transitória mediante aassinatura de um documento, tendo, inclusive, o direito ao casamentonegado.

A complexidade do percurso vivenciado até chegar a Tabatinga refletebem essa geopolítica de barragens. Os migrantes não podiam entrardiretamente no Brasil por falta das condições necessárias à obtençãodo visto. Da mesma maneira, uma vez que entravam sem visto, não po-diam solicitar o Estatuto de Migrante Econômico, restando apenas apossibilidade de solicitar o Estatuto de Refugiado, condicionado aofato de entrar no Brasil a partir de um país fronteiriço, acarretando aimpossibilidade de acesso por via aérea direta.

As condições descritas explicam por que a viagem era tão segmentada:do Haiti, o migrante precisava ir até a República Dominicana, de ondeembarcava para o Panamá ou para o Equador (de avião, três a quatrohoras de viagem); em seguida, acontecia a viagem de ônibus (24 horas)ou de avião (uma hora) até Iquitos, no Peru; daí, um percurso de barcode 24 horas o levava até Tabatinga.

O pioneirismo do percurso ainda era agravado pelas condições finan-ceiras de sua execução. Enquanto, pelas tarifas oficiais, o custo médiodessa viagem devia estar abaixo de US$ 2,000, incluindo despesas (ho-tel, alimentação), apenas 17% dos migrantes entrevistados declararampagar esse valor ou um pouco acima (até US$ 2,400): 65% pagarammais de US$ 1,000 acima do previsto. O custo adicional era causadopela presença de atravessadores (coiotes), que atuavam em todos ospontos da rota; 42% dos migrantes entre setembro e outubro de 2011 es-pontaneamente relataram a presença de coiotes atuando em todo opercurso do Haiti ao Brasil. Relatou-se, ainda, que os coiotes basea-vam-se no Haiti, Equador, Peru e Brasil (em Tabatinga, onde a PolíciaFederal chegou a prender um homem acusado de tráfico de sereshumanos).

Além de coagidos ao longo da viagem, o dinheiro dos migrantes tam-bém havia sido “capturado” em sua fonte: na maioria dos casos, elefora obtido pela venda de terras e gado da família e, sobretudo, pormeio de empréstimos contraídos no Haiti, onde parte da família queficara permanecia como garantia à espera de remessas financeiras

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oriundas da aposta e do investimento feito por um dos membros da fa-mília. Ecoando com outras realidades já relatadas na antropologia dasmigrações (Sayad, 1975), longe de se constituir em uma aventura indi-vidual, a vinda para o Brasil inscreve-se em uma rede densa de deverese obrigações. Assim, para os haitianos, a descoberta do Brasil nas con-dições precárias de Tabatinga foi logo marcada pela angústia de umsentimento de dívida incompensável. A realidade, rapidamente reve-lada, do salário mínimo no Brasil sobrecarrega essa sensação de gran-de desilusão.

Em suas crônicas da servilidade na Amazônia brasileira, ChristianGeffray, Neide Esterci e Ricardo Figueira mostram o quanto relaçõesde sujeição mantidas com violência e dívidas imaginárias marcam pro-fundamente o modelo social da região amazonense (Geffray, 1995;Esterci e Figueira, 2007). E por que não dizer que, do parentesco haiti-ano ao paternalismo local, migrantes haitianos e população tabatin-guense tinham em comum o ethos da sujeição.

No entanto, os primeiros contatos foram marcados por equívocos quemascararam essa relativa comunidade de destino. Em uma região des-provida economicamente, como a Tabatinga, a importância dos valo-res pagos pelos haitianos para a viagem levou à percepção de que elestinham dinheiro e, por isso, não precisavam de ajuda. Ressalta-se aquium detalhe irônico dessa percepção: aos olhos da população local, oshaitianos andavam bem vestidos demais para serem qualificadoscomo necessitados. Os tabatinguenses não imaginavam que as roupashaviam sido compradas em feiras de segunda mão nos mercados derua do Haiti (em média US$ 4 a peça) e de pontas de estoque oriundasdos EUA, as quais chegam inicialmente como ajuda humanitária.

Dadas essas condições, não é de se estranhar que os migrantes chegas-sem a Tabatinga com poucos recursos financeiros para suportar osdois/três meses de espera que o processo de solicitação do status de re-fugiado havia demandado.

Uma Migração de Trabalho

O perfil socioeconômico dos migrantes, tal como fora estabelecido nabase da pesquisa quantitativa realizada por Médicos Sem Fronteirasentre setembro e outubro, ressalta mais ainda a condição de vulnerabi-lidade na qual se realizou a migração. Dentre os migrantes entrevista-dos, 63% possuíam entre 25 e 35 anos de idade, com uma idade média

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de 30 anos – em um país (Haiti) onde a população média é de 18 anos e aexpectativa de vida é de 60 anos, os migrantes estavam predominante-mente em sua meia-idade; 70% eram homens e 30%, mulheres; 71,5%dos homens e 62% das mulheres tinham filhos, e apenas 3% haviamviajado para Tabatinga com pelo menos um de seus filhos; 46% eramcasados, 44%, solteiros, e 38% dos solteiros haviam deixado filhos noHaiti.

A grande maioria dos migrantes tinha uma família que dependia de-les; 24% haviam cursado até o primeiro grau e 59%, até o segundo; en-quanto 5% haviam cursado a universidade, apenas 2% tinham umdiploma universitário – considerando que no Haiti apenas 33% da po-pulação cursam o segundo grau, o grau de escolaridade dos migrantesera maior do que a média do país. Esse indicador se explica sobretudo,pelo efeito de classe de idade, já que se trata de uma migração relativa-mente jovem; 47% dos homens trabalhavam na construção civil, prin-cipalmente como pedreiros; 7% eram motoristas; 6%, mecânicos; asmulheres possuíam experiência profissional principalmente no co-mércio (33%) e/ou como costureiras (25%). Esse quadro aponta para abaixa qualificação dos migrantes, com consideráveis exceções, taiscomo um economista, um contador e um jornalista. É notável que ape-nas 3% dos migrantes relataram ser camponeses. Trata-se claramentede uma migração urbana.

Boa parte dos migrantes (70%) declararam ter sido afetados pelo terre-moto: 33% perderam um membro da família e 51% tiveram suas casasdestruídas. Ressalta-se que a importância das perdas familiares refor-ça a responsabilidade dos membros sobreviventes e que a relevânciada destruição da casa aponta para uma situação de pouca autonomiano país de origem. Essa observação é reforçada pela percepção dos mi-grantes: 56% referiram-se ao terremoto como uma motivação para amigração. É notável que a falta de trabalho é, de longe, o principal fatoralegado (84%), mas esse fator não é independente, uma vez que estavarelacionado com o terremoto, a pobreza (40%) e a insegurança/medo(41%).

É interessante observar que, se existe uma forte correlação entre a mi-gração e o terremoto, esta não é independente, uma vez que não levaem conta uma realidade invisível: nenhum ou poucos migrantes vi-nham das regiões severamente afetadas. Por exemplo, pouquíssimas

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pessoas oriundas da região de Léogâne foram contabilizadas, aindaque a cidade tivesse 80% de seu território destruído.

Quanto ao deslocamento, 62% haviam viajado com amigos ou familia-res e 8%, com outros haitianos. Esses dados evidenciam uma migraçãocoletivamente planejada e efetuada, obedecendo a uma forte lógica derede. Essa pode ser a explicação principal para a distribuição geográfi-ca desigual da origem dos migrantes. O terremoto é um fator, mas aexistência de uma rede transforma a situação objetiva em uma oportu-nidade subjetiva.

O tratamento midiático e político foi dominado pela ideia de que “osimigrantes haitianos que chegam ao Brasil são profissionais qualifica-dos, oriundos da classe média, como engenheiros, professores, advo-gados, pedreiros, mestres de obras e carpinteiros”2. Os dados apontampara um padrão bastante diferente: trata-se de uma migração de traba-lho carregando consigo a realidade dominante no Haiti: a de uma po-pulação pouco qualificada e assolada por múltiplas vulnerabilidades.

As Condições de Vida

Em muitos contextos em que fluxos migratórios se dão com popula-ções em situações precárias (Quênia, Sudão, Líbia, Malta...), progra-mam-se mecanismos de assistência e proteção por parte ora deinstituições públicas, ora de redes densas de organizações não gover-namentais e organismos internacionais. No entanto, como veremos nasegunda parte deste texto, não foi esse o caso de Tabatinga. Com exce-ção de medidas paliativas da Pastoral da Mobilidade Humana (igrejacatólica local), que disponibilizou recursos para auxiliar na assistênciaemergencial logo após a chegada desses haitianos, não houve outrosdispositivos de assistência para esse fluxo de migrantes. Estes se en-contraram entregues à realidade áspera de uma pequena cidade fron-teiriça da Amazônia e contaram principalmente consigo mesmos parasobreviver. Nessas condições, todos os aspectos básicos foram rapida-mente comprometidos.

Na ausência de políticas públicas que facilitassem o acesso a alojamen-tos adequados, os migrantes dependeram do aluguel privado, co-locando o mercado local sob tensão inédita. Entregues a uma espe-culação imobiliária oportunista, os preços dos aluguéis aumentaramvertiginosamente em um período inferior a três meses, enquanto aqualidade das casas disponíveis foi decrescendo em razão da satura-

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ção do mercado imobiliário. Em pouco tempo, as casas disponíveiseram cada vez mais afastadas do perímetro central da cidade e commenos subsídios básicos (não ofereciam água encanada e/ou eletrici-dade, banheiro, cozinha). Ainda assim, o valor médio do aluguel(R$ 500,00 a R$ 600,00) dobrou em relação à situação ordinária(R$ 200,00 a R$ 250,00). As moradias, em sua maioria, eram alugadasvazias a uma população sem recurso para equipá-las minimamente,passando a funcionar como os acampamentos que os migrantes já ha-viam vivenciado em seu país de origem após o terremoto: elevada con-centração habitacional, refeições coletivas preparadas em fogões a le-nha improvisados, banhos ao ar livre, rodízio para dormir em quartossem colchões...

É fato que muitos tabatinguenses também vivem nesse tipo de mora-dia e, dessa forma, partilharam objetivamente com os haitianos umamesma “miséria de condição” (Bourdieu, 1993), sendo esses modosparticulares de ocupação coletiva que marcaram uma fronteira de “po-sição” com a população local. Essa fronteira se materializou em poucassemanas por placas que apareceram pela cidade mencionando “nãoalugo para haitianos”. Os argumentos alegados eram de que elesnão possuíam boas condições de higiene, eram barulhentos e/ou esta-vam em situação de deslocamento frequente, havendo um grande ris-co de não pagarem o aluguel.

Foi nesse contexto crítico que a “casa dos haitianos” (um motel desati-vado) surgiu como um paliativo de emergência para os migrantes quechegavam sem nenhum ou pouco recurso. A sala principal, de 50 m2,passou a hospedar 49 pessoas (1 m²/pessoa) dividindo três colchõescortados em dois, enquanto oito quartos de 10 m² abrigaram, cada um,de cinco a sete pessoas (1,5 m²/pessoa). Nesses quartos, cujo valor co-brado era de R$ 100,003 cada, mulheres, crianças e casais dormiamcoletivamente. Em um total de 118 pessoas, havia apenas um banheiroe um acesso a água não potável para banho, lavagem de roupas, utensí-lios domésticos e consumo humano.

Nessas condições, agressividade, raiva e forte estresse marcaram regu-larmente as relações sociais do cotidiano. Brigas surgiram por conta deum colchão, de um objeto pessoal desaparecido ou pelo uso da únicarede do quintal.

Logo nas primeiras semanas de “aluguel”, a energia elétrica foi corta-da, fato atribuído ao não pagamento das faturas (que chegaram a tota-

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lizar R$ 3.500,00) pelos haitianos. Entretanto, essa dívida não era real,uma vez que remetia, na verdade, aos últimos meses de funcionamen-to de um motel em falência.

Na casa dos haitianos e em todos os demais pontos de moradia dosmigrantes, a água de consumo passou a ser um problema. Após a águalocal ter sido testada pela vigilância sanitária como não potável, a Pre-feitura tomou a medida de fechar dois pontos públicos de acesso apon-tados como contaminados. O único ponto de abastecimento de águatratada encontrava-se a 5 km de distância da maioria dos migrantes, osquais dispunham de poucos recursos para se deslocar. Quando, emjaneiro de 2012, as unidades de saúde locais passaram a distribuir gra-tuitamente produtos de tratamento da água, a informação não alcan-çou os haitianos, confrontados com o obstáculo da língua. O consumoda água contaminada provocou frequentes problemas estomacais e depele.

De todos os problemas enfrentados, a fome passou a ser o principal.Para a maioria dos migrantes, a única fonte de alimentação eram as re-feições distribuídas pela Pastoral da Mobilidade Humana uma vez aodia durante a semana. “Nos finais de semana, eu carrego meu calvá-rio” resume bem essa situação cíclica de fome, como expressado porum migrante. De fato, a pesquisa quantitativa realizada entre setem-bro e outubro de 2011 apontou que 85% dos migrantes declararam co-mer uma vez ao dia e 83% declararam sentir fome.

Avaliadas em uma base técnica, as condições de vida da maioria dosmigrantes passaram rapidamente a ser aquém das experienciadas pe-los migrantes africanos nos centros de retenção de Malta, já denuncia-das por MSF como “não humanas”4. De fato, nos meses em que os flu-xos migratórios se intensificaram, Tabatinga se configurou como uma“situação humanitária”. Entretanto, para as autoridades locais, os mi-grantes eram sobretudo percebidos como um “risco sanitário”.

O Medo Sanitário

Em um alerta na tribuna da Câmara Municipal de Manaus, um dos ve-readores locais, médico de formação, lamentou-se da ausência de con-trole sanitário para os migrantes haitianos, ressaltando que “a cólerano Haiti é muito intensa, assim como a Aids, e nenhum país pode aju-dar outro com o risco de causar doenças em seu próprio povo”5. Em umartigo posterior6, ele mesmo ressaltara que, como no Haiti “não há ser-

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viço público de saúde e, em razão da precariedade da economia, 80%procuram cuidados de curandeiros tradicionais, que consideram aAids um feitiço encomendado, e não uma doença transmitida sexual-mente. Imagine, então, falarmos de prevenção em um cenário tão des-favorável. Certamente os curandeiros preferem os tambores a umasimples camisinha – por pura, triste e lamentável ignorância” (pala-vras do vereador/médico de Tabatinga).

Como aponta Noiriel (1988) em sua história da imigração na França, adoença que vem do exterior é um tema recorrente na percepção de to-dos os movimentos migratórios desde o século XIX. No caso de Taba-tinga, a saúde foi sem dúvida o principal cristalizador do medo que osmigrantes haitianos inspiraram na população local. O padre da IgrejaCatólica local ressaltou que, à medida que os haitianos começaram areceber ajuda alimentar de fiéis, o pavor do contato físico se manifesta-va até nos atos de generosidade, e que por isso as doações diretas aospróprios haitianos eram raras. Ao exemplo do vereador médico citado,essa xenofobia (em seu sentido etimológico: medo do estrangeiro) ga-nhou certo espaço institucional, alimentando a representação de umamigração incontrolada e perigosa que poderia fazer incorrer em riscosanitário.

Em 2010, testes de HIV foram oferecidos pelos governos municipal eestadual a 300 migrantes e aceitos por 140 deles, sendo revelados qua-tro casos de HIV positivo (2,85%)7. A morte, em Manaus, em janeiro de2012, de um haitiano HIV positivo, amplamente comentada nas mídiaslocais, deflagrou uma onda de inquietação e preconceito. A Secretariade Saúde do Estado chegou a solicitar ao governo federal recursos parao reforço na compra de insumos para o diagnóstico e tratamento doHIV e de outras doenças, como cólera, febre amarela e sífilis, conside-radas prevalentes no Haiti. Autoridades de saúde chegaram a comen-tar que, com a chegada dos haitianos, o índice de infecção de HIV entrebrasileiros poderia aumentar8, despertando o tema da Aids como a do-ença dos 5H (homossexuais, hemofílicos, haitianos, heroinômanos[usuários de heroína injetável] e hookers [profissionais do sexo]), carac-terística que predominava 30 anos atrás, no princípio da epidemia.Bourdier (2001) tornou público que, na região vizinha da zona de fron-teira com a Guiana Francesa, o mesmo tratamento como “agente dadoença” foi aplicado ao migrante brasileiro.

O quadro médico estabelecido por MSF para os migrantes haitianosdelineou uma realidade bem diferente desse alarmismo sanitário. Tan-

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to as autoridades sanitárias governamentais quanto a equipe de MSFnão identificaram nenhum caso de cólera. Em sua maioria, os adoeci-mentos recorrentes caracterizaram-se como: dermatites (escabioses emicoses), doenças gastrointestinais (diarreias e vômitos), febres semcausa esclarecida, infecções respiratórias, gripes e vaginoses. Essequadro clínico geral apontou para condições socioeconômicas de vul-nerabilidade, mas que não diferiam das condições da população localem geral. Em uma população de 287 migrantes, 12 (4,2%) relataram al-gum tipo de adoecimento crônico e/ou agudo9. Vale pontuar que umapopulação recém-chegada e em situação de vulnerabilidade pode terdificuldades de comunicar seu quadro efetivo de saúde.

Do mesmo modo, a percepção de sua “ilegalidade” pode ter levado oshaitianos a evitar o contato com as equipes de saúde, em particularcom o hospital militar. Ainda assim, a equipe de MSF que avaliou o es-tado geral de saúde da população considerou que ela não apresentavaum quadro de saúde particular que diferisse da população local. Esse“diagnóstico” coletivo não se mostrou surpreendente, uma vez que setratava de migrantes recém-enviados por famílias que os haviam elegi-do beneficiários dos investimentos familiares esperando auxílio finan-ceiro, e, por isso, mandavam indivíduos em boas condições de saúde.

No Canadá, múltiplos estudos mostram que os migrantes, particular-mente os recém-chegados, têm condição de saúde globalmente melhordo que a população geral. Esse fenômeno é comumente denominadoefeito da boa saúde dos migrantes (Clarkson, Tremblay e Audet, 2002).

Esses dados apontam para a viabilidade de um acompanhamento nonível de saúde pública local, sem acarretar grandes alterações no pro-cesso de trabalho das equipes locais. Embora o município de Tabatingatenha como forma de organização da atenção básica a estratégia desaúde da família, as equipes da atenção básica não realizaram visitasdomiciliares até fevereiro de 2012 (quando solicitado e acompanhadopor MSF), ainda que os haitianos estivessem dentro das áreas adstritas.A invisibilidade legal, conjugada ao obstáculo linguístico, explica emparte essa falha no sistema de assistência.

Processo Migratório e Saúde Mental

Considerando a complexidade do contexto haitiano nesses dois últi-mos anos (conflitos urbanos, miséria, instabilidade política, terremo-to, entre outros desastres naturais, lentidão na reconstrução do país,

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epidemia de cólera etc.), o processo migratório se iniciou na interfaceentre perdas afetivas significativas, trajetórias individuais feitas deacidentes biográficos e desejos de construção pessoal e/ou coletiva.

O investimento feito pelo coletivo familiar potencializa a carga emo-cional, que muitas vezes torna-se difícil de ser suportada, em parti-cular quando há um grande número de impedimentos legais e econô-micos limitando as possibilidades de geração de renda e subsistência.Nessas condições, a saúde mental é um dos indicadores que refleteparticularmente o impacto dessa conjunção de elementos na vida dosmigrantes.

Ao medir o impacto10 desses eventos na saúde mental dos migranteshaitianos, a equipe de MSF encontrou uma situação humanitária ba-seada em relatos e sofrimentos: maus-tratos sistemáticos e organiza-dos pelo tráfico de pessoas, irresolução administrativa, condições dealojamento desumanas, acesso insuficiente de alimentos, dificuldadesfinanceiras, múltiplas lacunas na assistência e proteção, distorção deimagem no nível da população local, estereótipo e “discriminação cor-dial” foram os elementos apontados de forma recorrente.

Tal conjunto de dificuldades alimentava nos migrantes, por sua vez, assensações de culpa e confusão, sentimento de não saber o que fazer, in-certeza quanto ao futuro, sentimento de humilhação, vergonha, sensa-ção de invisibilidade e ausência de esperança. Enfim, tal quadro foiampliado pela fragilidade dos mecanismos de enfrentamento da situa-ção. A busca por empregos (trabalho informal, além de pagamentos ir-regulares e de baixo valor), as missas e os cultos (em português), asconversas em pares, as leituras e caminhadas e a expectativa de chegara Manaus e de “ter uma vida melhor” ofereciam poucos paliativos auma situação subjetivamente percebida como crítica.

É importante apontar que, embora os mecanismos de enfretamentodas dificuldades fossem frágeis, não foi identificado, em Tabatinga,nenhum caso de transtorno psiquiátrico (apenas um em Manaus); abu-so de álcool e/ou outras substâncias; situação de agressividade e/oude conflito entre migrantes e/ou entre migrantes e a população local.Isso sugere que os haitianos que chegaram ao Brasil eram bastante resi-lientes e preparados para as dificuldades encontradas durante um pro-cesso migratório complexo e penoso. Em outros termos, as dificulda-des enfrentadas não surgiram de uma fraqueza inerente à própriapopulação migrante.

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INVISIBILIDADE POLÍTICA

A segunda parte deste artigo busca entender como se configurou a si-tuação humanitária de Tabatinga descrita anteriormente. A ideia de“situação” é aqui metodologicamente construída no âmbito da Escolade Manchester (Gluckman, 1958; Mitchell, 1966). O intuito da análisesituacional é apreender um conjunto de eventos e ações interconecta-dos a diferentes escalas para possibilitar a compreensão da situaçãodeterminada. No caso presente, a descrição das estruturas objetivas e aanálise dos diferentes elementos que compõem uma história permitementender como a situação particular de Tabatinga foi produzida peloefeito cumulativo de uma série de acontecimentos.

Simetricamente, a situação de Tabatinga deve ser apreendida em suadimensão performativa, no sentido de que não apenas configurou um“caso” exemplificando ou representando um processo mais abrangen-te, tendo contribuído para definir tanto local quanto nacionalmente aconstrução de uma nova questão migratória.

Situando a análise nos níveis local, estadual, federal e internacional,trata-se, ainda, de praticar o que Revel chama de “jogos de escalas”(Revel, 1996), ou seja, fazer variar por hipótese as condições da obser-vação, principalmente a escala ou a focal. O intuito é de restituir a ex-periência vivida dos haitianos em Tabatinga na pluralidade dos con-textos sociopolíticos aos quais ela se encontra presa.

Nível Municipal

Para as autoridades locais, a chegada dos haitianos configurou um gi-gantesco hiato, que pode ser resumido no seguinte enunciado:enquanto não recebiam o protocolo como solicitante de refúgio, oshaitianos não podiam ser contemplados por nenhum dispositivo deassistência municipal. Um beneficiário não pode ser legalmente invisí-vel. Quando finalmente recebiam o protocolo e podiam então transfor-mar-se em beneficiários, eles deixavam Tabatinga em direção a Ma-naus em menos de uma semana.

Mas esta situação transitória não foi a única barreira impedindo a as-sistência pública. A questão do financiamento municipal surgiu logocomo uma impossibilidade técnica. A Lei Complementar no 101, de 4de maio de 2000 (Brasil, 2000), integra o princípio de gestão por proje-tos amplamente adotados no contexto internacional, assujeitando o or-

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çamento a um plano plurianual definido por diretrizes orçamentáriasclaras. Nesse contexto, a chegada maciça e inesperada de três mil haiti-anos a uma prefeitura do tamanho de Tabatinga ultrapassava a mar-gem de flexibilidade dos dispositivos de financiamento: “não existelinha orçamentária para os haitianos” (entrevista com o gestor munici-pal de saúde) soou como uma justificativa para a não assistência aosmigrantes.

A esse argumento somou-se o da escassez de recursos. Como justificara alocação de verbas para os migrantes haitianos enquanto o municí-pio não dispunha de recursos suficientes para despender assistência àsaúde e/ou assistência social mesmo para a população tabatinguense,não ofertando nenhuma possibilidade de auxílio a alimentação, mora-dia e transporte? Nesse contexto, a gestão local invocou o custo políti-co de uma assistência a outrem que não seria entendida e aceita pelapopulação. Manifestou-se também, frequentemente, a preocupação de“não facilitar”. Temia-se que qualquer assistência criasse um efeitode oportunidade, acelerando um fluxo migratório já fora de controle.

Finalmente, um último argumento remeteu ao princípio de subsidia-riedade: como repetidamente argumentado pela prefeitura, a assistên-cia aos requerentes de asilo deveria ser assegurada pelo governo fede-ral por meio do Conare, responsável pelas questões que envolvem oprocesso migratório. Em termos legais, o município não teria compe-tência para prover assistência.

Uma atenção mais específica à saúde funciona como um analisadorpertinente dessas barreiras. Na ausência de uma política explícita degestão da população migrante, os profissionais de saúde ficaram compouca margem de adaptação e ação. Muitos mencionaram as limita-ções em termos de comunicação, dificultando e/ou impedindo o aten-dimento, ainda que organizações não governamentais (MSF e IgrejaCatólica) se propusessem a auxiliar na elaboração de materiais impres-sos e de formações para os trabalhadores da assistência que facilitas-sem os atendimentos no nível da atenção primária.

Mesmo sendo oferecida formação técnica gratuita para o atendimentoàs reações e aos adoecimentos recorrentes com populações em situaçãode migração, bem como material para comunicação (em ambas as lín-guas: português e crioulo), a gestão municipal não repassou a informa-ção para seus técnicos e não facilitou a liberação desses trabalhadoresdas unidades de saúde onde estavam para a participação na formação,

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acarretando o esvaziamento dos espaços de formação. O discurso pre-dominante nas estruturas locais de saúde foi diplomático e cordial;contudo, baseou-se na ausência de uma articulação política e técnicaclara com os haitianos, os quais acabaram por ficar de fora dos disposi-tivos existentes de assistência.

Resultou dessa situação o paradoxo de que, na escala local na qual osmigrantes estavam fisicamente presentes, sua situação estava legal epoliticamente invisível aos olhos do poder da região.

Nível Estadual

O município de Tabatinga dista 1.200 km da capital do Estado do Ama-zonas, em uma área rodeada pela maior floresta do mundo – Amazô-nia – e sem acesso por via terrestre. Apequena cidade sofre por sua pró-pria situação periférica. Soma-se a essa particularidade o fato de que oEstado do Amazonas não possui órgãos governamentais que tratem dagestão de fluxos migratórios e/ou de tratamento legal dos requerentesde asilo, aumentando ainda mais a lacuna entre a situação local e o ní-vel federal no qual esta podia ser de fato abordada.

Salienta-se que o estado e o município poderiam ter estabelecido umainterface com o poder federal na construção política da questão e desuas dimensões emergenciais e humanitárias. A ajuda estatal versousobre o transporte dos haitianos de Tabatinga a Manaus e a alimenta-ção apenas nas últimas semanas do processo migratório. Os barcos ori-undos de Tabatinga começaram a trazer até Manaus os contingentes demigrantes protocolizados. Tanto na praça central quanto nos bairrosperiféricos, os haitianos estavam se tornando visíveis, não apenas porseu fenótipo distinto da população manauara, mas pelas notícias coti-dianas anunciadas pela mídia municipal.

As notícias diárias anunciavam as dificuldades de alojamento, alimen-tação, acesso ao mercado de trabalho, entre outras necessidades dosmigrantes. Por esses e outros motivos (medo sanitário, de fluxos incon-trolados, de perder espaço no mercado de trabalho para estrangei-ros...), “os haitianos” estavam de fato se configurando como uma“questão social” para a população de Manaus.

Ainda assim, os haitianos bloqueados em Tabatinga permaneceramem uma ampla invisibilidade política. Quando o assunto foi discutidona Assembleia Legislativa do Estado, constituiu-se dentro de uma re-

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tórica sanitarista, fazendo dos haitianos um grupo de risco. Sob solici-tação oficial do Ministério da Saúde, o estado elaborou, em fevereirode 2011, um diagnóstico da saúde da população haitiana, a fim de evi-tar a proliferação do cólera no país. A visita técnica foi encerrada semque fossem propostas soluções e/ou auxílio à população de migrantes.

Apenas um deputado estadual, também membro ativo da Igreja Cató-lica, tentou sem sucesso, durante meses, levantar a questão para am-bos os Poderes Legislativo e Executivo estadual e federal. Ele denun-ciou que, em Tabatinga, os haitianos viviam “em condições precárias equase subumanas, um verdadeiro aglomerado de pessoas”. Alertoupara “a situação dos haitianos, já que está se tornando insustentávelpor parte da Igreja, pois, após eles serem legalizados pela Polícia Fede-ral, acabam migrando para Manaus”; mas, como ele próprio resumiu:“ninguém quer se envolver, porque pode criar um efeito bola de neve”(entrevista com deputado estadual, que pediu anonimato).

Como resultado das inúmeras tentativas, o governo do Estado, por meioda Secretaria de Assistência Social, orçou uma verba de R$ 350.000,00(dos R$ 700.000,00 solicitados ao governo federal), mas parte desse re-curso chegou apenas em benefício da última leva de migrantes.

Finalmente, o estado não se constituiu em uma testemunha privilegia-da perante as autoridades federais. Deixamos a análise para a conclu-são deste texto. Por enquanto, vale mencionar que as fronteiras legaisentre as competências territoriais nos níveis municipais e estaduais esua articulação dificultaram um tratamento “holista” da populaçãohaitiana de Tabatinga e sua construção como “sujeito” com necessida-des assistenciais.

O evento de Tabatinga surge dentro de determinada “estrutura” insti-tucional que não estava preparada. Sem dúvida, a irresolução normati-va sobre o status legal dos migrantes também dificultou a qualificaçãopolítica de sua situação.

Supõe-se que, no plano estadual, a situação de Tabatinga tenha sidomantida em relativa confidencialidade, talvez porque tenha sido apre-endida pelos atores locais como um risco político. Um risco peranteuma significativa parte da população do estado, que não necessaria-mente interpretaria como “generosidade” uma política de assistênciaa estrangeiros em um contexto altamente competitivo pela alocaçãodos recursos. Um risco perante o poder federal, na ausência de uma

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qualificação clara do significado político e diplomático a ser atribuídoà chegada dos haitianos ao solo brasileiro.

Nesse contexto, a distância geográfica de Tabatinga tornou-se, de certaforma, conveniente. Funcionou como uma medida de contenção de umapopulação inesperada e do problema político por ela acarretado. Essahipótese permitiria entender como, durante mais de um ano, a situaçãode Tabatinga não alcançou a visibilidade política para que pudesse seconstruir em um “evento crítico”11 e ser efetivamente resolvida.

A Polícia Federal

Em Tabatinga, a Polícia Federal foi o principal ator responsável peloprocessamento dos requerentes de asilo, controlando a entrada e a saí-da de pessoas nas fronteiras nacionais. Nos últimos anos, sua função li-mitou-se a processar os poucos e esporádicos pedidos ainda oriundosde uma Colômbia em vias de pacificação. A chegada dos haitianoscolocou sob tensão extrema o posto de fronteira, que se encontrou derepente na primeira linha de gerenciamento de um fluxo migratórioinesperado.

Ressalta-se que os haitianos entraram como requerentes de asilo. Emseu artigo 9o a Lei de Refúgio (Brasil, 1997) estipula que: “A autoridadea quem for apresentada a solicitação deverá ouvir o interessado e pre-parar termo de declaração, que deverá conter as circunstâncias relati-vas à entrada no Brasil e às razões que o fizeram deixar o país de ori-gem” (s.p.).

Em outros termos, coube à Polícia Federal de Tabatinga “ouvir” as cen-tenas de “interessados” na forma de entrevistas individuais, por meiodas quais os até então migrantes ilegais podiam transformar-se em re-querentes de asilo e receber um protocolo temporário, que liberava,por sua vez, o embarque de Tabatinga para Manaus. Em termos práti-cos, dadas as condições locais de recurso da Polícia Federal, a esperapara a entrevista passou a ser, em média, de três meses.

Toda a situação de Tabatinga transcorreu dentro dessa perspectiva.Nesse sentido, parte dos migrantes haitianos encontrou-se por três ouquatro meses em situação humanitária crítica, pelo fato de a Polícia Fe-deral de Tabatinga não possuir condições operacionais para conduziras entrevistas em prazo menor.

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Estabeleceu-se que a capacidade de atendimento do posto seria de 24entrevistas por semana, divididas em pares de oito, três dias por sema-na. Nesse mesmo período, o fluxo de entrada era de 100 a 150 novos mi-grantes por semana. O contingente de migrantes em Tabatinga aumen-tou, assim como o tempo de espera. Por sua vez, as condições de vida ede subsistência pioraram com a saturação dos recursos e da solidarie-dade local. A lógica era aritmética.

Uma rotina de crise se estabeleceu. A Polícia Federal acabou terceiri-zando a manutenção da lista de espera à Pastoral da Mobilidade Hu-mana, único ator que provera assistência aos migrantes em caráteremergencial. A justificativa versava sobre o fato de que os migrantestentavam negociar com os policiais uma posição mais “vantajosa” nalista.

A fim de solucionar parte dessa problemática, a Pastoral da Mobilida-de Humana passara a receber os passaportes por ordem de chegada,estabelecendo uma lista que semanalmente era publicada nos murosda pastoral, sendo, na sequência, os passaportes entregues à Polícia.Esta solicitava repetidamente ajuda ao Estado, a fim de realizar todasas entrevistas em um período menor de tempo. Por duas vezes, foi pos-sível organizar “mutirões” com reforços de Manaus, que permitiramrealizar 300 entrevistas por semana.

Em seu cotidiano, os policiais estavam vivendo o Mito de Sísifo, talcomo narrado por Albert Camus (1989) em sua reflexão sobre o absurdo.Eles sabiam que os migrantes não seriam reconhecidos como refu-giados, porque a informação já havia sido comunicada pelo centro dagestão governamental. Ainda assim, tinham de realizar as entrevistasdentro da Lei de Refúgio. Ou seja, dispunham-se a operar uma ficção ju-rídica custosa, ainda que no Itamaraty a decisão já tivesse sido tomada.

Então, como aponta Camus (1989), diante do absurdo, a revolta foi aúnica opção. Revolta ao manifestar sua incompreensão: “não são refu-giados, mas são recebidos como tais”; “os haitianos estão em um vaziojurídico, nem ilegais nem legais” (entrevista com migrante haitiano).Revolta perante os próprios haitianos, que “manipulam a categoria derefugiados”. Policiais admitiram, assim, ter perdido a paciência nasentrevistas diante de argumentos como “sou requerente de asilo por-que gosto do Brasil” ou “sou fã da seleção brasileira de futebol”. Revol-ta, enfim, perante o que percebiam como a passividade dos políticosem face de uma invasão maciça.

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Parte dos atores locais acreditava que prover um tratamento adminis-trativo veloz iria “chamar muito mais gente”. Somava-se a este o re-ceio de que as condições de vida difíceis fossem facilitar “amizadescom o narcotráfico”: “o Brasil já não consegue cuidar de seus [crimi-nosos] e tem que cuidar dos de outros”, conforme palavras de autori-dades locais.

Como principal ator do governo federal em contato direto com os mi-grantes, os policiais de Tabatinga viviam muito concretamente as con-sequências da irresolução legal e política sobre o assunto dos migran-tes haitianos. Tinham consciência de que a situação de Tabatinga eradiretamente provocada pela lista de espera para a entrevista que elespróprios realizavam. Sabiam que necessitavam aumentar o contingen-te de policiais para solucionar um problema, afetando tanto os migran-tes quanto a cidade inteira. Mas, na ausência de visibilidade e de umapolítica migratória clara, também sabiam que permaneceriam conde-nados ao absurdo: “a solução está em Brasília”.

O Conare

O Brasil assinou, em 1960, a Convenção de 195112 das Nações Unidasdefinindo o Estatuto de Refugiado dentro de uma dupla reserva, cir-cunscrevendo-o ao contexto particular da Segunda Guerra Mundial:reserva geográfica (a convenção somente se aplica a refugiados oriun-dos da Europa) e reserva temporal (refere-se a acontecimentos ocorri-dos antes de 1o de janeiro de 1951). É somente no contexto da redemo-cratização que o Brasil começa a levantar essas reservas e receberpequenos contingentes oriundos do Irã e de Angola. Na época, mesmoos vizinhos, chilenos e argentinos fugindo de regimes ditatoriais, so-mente conseguiram entrar no Brasil como “estrangeiros temporários”,e não como refugiados.

Aderindo à Declaração de Cartagena (OEA, 1994), o Brasil finalmenteabre mão, em 1989, da reserva geográfica por meio do Decreto no 98.602e torna-se livre para receber refugiados independentemente da ori-gem. Mas é somente em 1997 que uma lei específica é promulgada (Leino 9.474). Ela define o mecanismo para a implementação do Estatuto deRefugiados e cria o Conare.

Segundo Luiz Barreto (2010), ex-presidente do Conare, a lei foi, então,considerada “pela própria ONU como uma das leis mais modernas,mais abrangentes e mais generosas do mundo”. Sua originalidade con-

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siste notavelmente na composição tripartite do Conare: governo, so-ciedade civil e Nações Unidas. A diplomacia brasileira ainda ganhoudestaque por sua participação, em 2004, na implementação de um Pla-no de Ação para Fortalecer a Proteção Internacional dos Refugiados naAmérica Latina e por ter promovido a tese de que “assuntos migrató-rios sejam tratados de maneira absolutamente vinculada aos direitoshumanos” (Barreto, 2010).

Entre 1997 e julho de 2010 (quando se iniciou o fluxo migratório doshaitianos), o Brasil havia recebido um total de 4.306 refugiados, princi-palmente de países como Angola e Colômbia. Em comparação a núme-ros brutos, somente no ano de 2011, o Paquistão recebeu 1.702.700 refu-giados, a Alemanha, 571.500, e os EUA, 264.80013. Conforme sugereBarreto (2010:21), o que esses dados apontam é que a lei brasileira “éainda pouco conhecida na sociedade, é pouco conhecida dos operado-res do direito, é pouco conhecida, enfim, até dos meios acadêmicos”.Nesse contexto, ao solicitar o Estatuto de Refugiados, os 3.500 haiti-anos constituiriam, a princípio, um desafio para a aplicabilidade desuas intenções e disposições.

O artigo 7o do Título II da Lei no 9.474 estipula que “o estrangeiro quechegar ao território nacional poderá expressar sua vontade de solicitarreconhecimento como refugiado a qualquer autoridade migratóriaque se encontre na fronteira”. No contexto das leis migratórias restriti-vas vigentes no país, como veremos em seguida, entrar como solicitan-te de refúgio era de fato o único caminho legal que os haitianos pode-riam seguir. No entanto, o artigo 1o define que será reconhecido comorefugiado todo indivíduo que, “devido a fundados temores de perse-guição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ouopiniões políticas encontre-se fora de seu país de nacionalidade” (s.p).Nessa base e sob a orientação do Acnur, foi determinado que os haiti-anos não poderiam ser reconhecidos como refugiados porque sua si-tuação não correspondia a nenhum dos critérios da lei. Afinal, nem omedo sísmico, nem o surto de cólera, nem a extrema precariedade eco-nômica fundamentavam um “temor” tal como definido pela lei. Logo,a situação configurou-se como um gigantesco hiato: requerentes do es-tatuto de refúgio para entrar legalmente no Brasil, os haitianos não po-deriam permanecer como refugiados. Sua visibilidade, do ponto devista legal, tinha prazo marcado: a data de expiração do protocolotemporário.

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Ainda assim, até a decisão final e estritamente individual do Conare,os migrantes eram oficialmente requerentes do Estatuto de Refugiadose deveriam ter sido tratados como tais. Ou seja, poderiam beneficiar-sedas medidas de assistência e proteção garantidas pelas leis e conven-ções internacionais. No entanto, esse não fora o caso desses migrantes.Enquanto havia condições legais para uma cooperação direta com omunicípio e o estado, o Conare antecipou, de certa forma, o indeferi-mento dos pedidos como justificativa da não implementação dos dis-positivos assistenciais. Por exemplo, no procedimento padrão, os mi-grantes deveriam proceder a uma segunda entrevista, mas, no caso doshaitianos, recomendou-se não fazê-lo, configurando-se como uma vio-lação dos direitos garantidos na legislação.

A gestão tripartite do Comitê, inicialmente pensada como virtude polí-tica e instrumento de boa governança, potencializou uma desrespon-sabilização do poder público: o dever de assistência foi sistematica-mente terceirizado à sociedade civil (Caritas, Pastoral do Migrante)sem coordenação e meios adequados.

Dois elementos podem explicar parte dessa situação. O primeiro versasobre a dificuldade de obter uma visão clara, por parte do Poder Exe-cutivo, do estatuto político dos haitianos nos contextos nacional e in-ternacional. Não podendo se configurar como refugiados, então o queseriam? Haveria uma medida humanitária “generosa” que viria ali-viar o complexo processo legal? O que aconteceria uma vez que fossemindeferidos como refugiados? O status internacional pós-terremotodos haitianos permitiria sua extradição?

O segundo elemento diz respeito ao próprio momento político doConare na condição de instituição. Em 2010, sua decisão de não reco-nhecer o Estatuto de Refugiado político e de extraditar o italiano CesareBattisti14 foi ignorada, e o caso, transferido ao Supremo Tribunal Fede-ral, que acabou deferindo o pedido do ex-ativista italiano. Àfrente des-se caso, o Comitê ganhou visibilidade política, polarizando a insatisfa-ção dos parlamentares dos dois lados (pró e contra a extradição deBattisti). Como resultado, em 2011, cerca de 20 processos tramitaramno Congresso para modificar ou até suprimir a lei brasileira de refugia-do e/ou redefinir as atribuições do Comitê. Consequentemente, oConare ficou politicamente fragilizado na tomada de decisões que di-ziam respeito aos migrantes haitianos. Possivelmente, a discrição foiuma das consequências desse processo.

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Adotando uma postura de confidencialidade, o Conare antecipou o in-deferimento dos pedidos antes do fim de sua tramitação legal, transfe-rindo-os para o CNIG, que, em “condições especiais”, pode conceder apermanência para não refugiados.

O CNIG

A posição do CNIG somou-se ao hiato no qual se transformou a situ-ação de Tabatinga. Resumindo, os haitianos não eram refugiados, maspodiam entrar no Brasil como requerentes. Eles eram migrantes,mas não podiam entrar no Brasil como tais. O motivo foi apontado emrelatório do Acnur, o qual denotara que a lei de migração nacional é ul-trapassada e restritiva, o que resulta em migrantes usando o processode asilo em uma tentativa de legalizar a sua permanência no Brasil. Noentanto, foi pela lei estabelecida na Resolução Normativa no 27, de 25de novembro de 1998, que alguns haitianos acabaram por conseguir apermanência. A resolução estipula, em seu artigo 1o, que “serão sub-metidas [sic] ao Conselho Nacional de Imigração as situações especiaise os casos omissos, a partir de análise individual”. Nessa base, o Cona-re passara a transferir os pedidos para o CNIG, com o intuito de trans-formar, na medida do possível, os “não refugiados” em migrantes em“situações especiais”.

A transferência de centenas de casos constituiu por si só uma situaçãoespecial para o próprio CNIG, que acabou criando um grupo específi-co de conselheiros após ter “separado os haitianos” das demais solici-tações. Passou-se a analisar sequencialmente os casos que teriam rela-ção direta com o terremoto desde janeiro de 2010. Assim, essa é a baseem que foi resolvida a aplicação da resolução normativa referente àatribuição da permanência por “motivos humanitários”. Porém, talcritério provou ser de difícil avaliação: as entrevistas tinham sido reali-zadas dentro dos critérios da Lei de Refúgio, e não com o intuito de es-tabelecer uma relação direta ou não com o terremoto. Por sua parte, ospróprios migrantes não tinham sido informados do critério, de talmodo que não especificavam espontaneamente de que forma tinhamsido afetados.

Ainda, em desconformidade com a Lei de Refúgio, as entrevistas fo-ram realizadas sem tradutores profissionais, e muitas informações nãoforam formalizadas. O critério, sobretudo, estabelecia um corte, impe-dindo a avaliação de situações individuais “especiais” em outra base,

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pois um terço dos migrantes não vivia no Haiti no momento do terre-moto. Enfim, como apontou um assessor governamental, “a distânciado terremoto está ficando grande”: na medida em que o fluxo migrató-rio aumentava, até quando o argumento seria justificável?

O CNIG autorizou a permanência no Brasil de 199 haitianos em marçode 2011, de 237 em junho do mesmo ano e de 354 em setembro de 2012.Em outubro de 2011, um conselheiro reconheceu que “uma luz amare-la” estava acesa: “Se continuarmos, abriremos portas para outros paí-ses. E a África?” A falta de uma determinação política clara potenciali-zou a dificuldade de suportar uma resolução. Sem indeferir, o CNIGpassou a pedir complementos individuais de informação pelo viés doConare, ciente de que tais pedidos dificilmente chegariam a uma po-pulação em situação de trânsito sem resolução.

O ACNUR

O Acnur foi criado pela Assembleia Geral da Organização das NaçõesUnidas (ONU) em 14 de dezembro de 1950 para “proteger e assistir àsvítimas de perseguição, da violência e da intolerância”15. No Brasil, otrabalho do Acnur é pautado pelos mesmos princípios e funções queem qualquer outro país: proteger os refugiados e promover soluçõesduradouras para seus problemas. Como mencionado anteriormente, aagência atua em cooperação com o Conare com representação perma-nente. A princípio, como requerentes de refúgio à espera de uma deci-são individual final, os haitianos deveriam ter-se beneficiado da redede assistência estabelecida no Brasil pelo Acnur, mas, antecipando oindeferimento legal, ou seja, que eles não seriam reconhecidos comorefugiados, não foi esse o procedimento utilizado para os quase 4 milmigrantes. O Acnur não disponibilizou aos requerentes os direitosprevistos para aqueles em situação de refúgio: duas noites de hotel, as-sistência social e financeira de até R$ 300,00 durante três a seis meses.

Como membro do Conare, o Acnur apontara para o fato de que os haiti-anos requerentes de asilo não possuíam pré-requisitos básicos para se-rem considerados refugiados. Essa orientação foi determinante noprocesso de operacionalização do status dos haitianos, dando legitimi-dade a decisões que estimularam a não assistência: “a ONU diz quenão são...”. Entretanto, o Acnur fizera um trabalho de advocacia, reco-mendando a não deportação dos haitianos, e, nesse sentido, mobilizoupara que uma solução “humanitária” fosse encontrada.

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Ressalta-se aqui o fato de esses migrantes serem considerados, em ca-ráter coletivo, “não refugiados” anteriormente a um parecer indi-vidual. Apesar de ter um bom conhecimento da situação local (o Acnurmantém em Manaus sua única representação no Brasil fora deBrasília), o escritório encontrou-se incapacitado de tomar decisões.Nesse sentido, dois elementos requereram objetivamente sua atençãoe atuação.

O primeiro diz respeito ao tratamento coletivo de situações legalmenteindividuais, embora tendo consciência de que um dos grandes dificul-tadores dos movimentos migratórios contemporâneos está no caráter“misto” dos fluxos, ou seja, na medida em que reúne migrantes econô-micos, deslocados e refugiados. Com relação aos haitianos, embora agrande maioria se encaixasse de fato na primeira categoria, alguns ca-sos remetiam a situações que poderiam se enquadrar na Lei de Refúgiobrasileira. Como exemplo, pode-se citar o relato de um homem amea-çado por sua militância política junto a uma candidata opositora àsgangues de Porto Príncipe nas últimas eleições presidenciais(2010-2011). Esse caso foi detectado pelo CNIG (e não pelo Conare).Assim, questiona-se aqui o número de exemplos como esse que perma-neceram na invisibilidade em razão das condições nas quais os reque-rentes foram entrevistados e administrativamente processados.

O segundo elemento diz respeito ao tráfico internacional de seres hu-manos, o qual é um dos critérios de demanda de proteção internacio-nal. A clandestinidade frequentemente implica o tráfico de sereshumanos, sendo esse o caso de parte dos haitianos que chegaram a Ta-batinga. O Acnur recomenda, baseado na convenção de 1951, que ne-cessidades potenciais de proteção de pessoas que foram traficadas ouestão em risco de serem traficadas devem ser levadas em consideraçãoa fim de serem protegidas. No entanto, essa prerrogativa não se apli-cou ao pedido dos haitianos, ainda que fosse notório que sua grandevulnerabilidade tivesse sido acentuada pela atuação dos coiotes.

Parte dessa conjuntura explica-se pelo cenário geopolítico internacio-nal tenso (Afeganistão, Sudão, República Democrática do Congo, Lí-bia...), sendo o Brasil percebido como “indo muito bem” e isento daproblemática dos refugiados. Por esse motivo, o Acnur do Brasil pade-ce de uma dotação orçamentária reduzida, incapacitando qualquermedida da escala que a situação dos haitianos requer. Em outros ter-

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mos, a invisibilidade dos haitianos refletia parte da invisibilidade doAcnur do Brasil em âmbito internacional.

O Poder Executivo e a Política Externa

No contexto geopolítico de 2010-2011, a migração haitiana conformou,para o Brasil, uma situação diplomática delicada. No momento da de-finição do status dos migrantes haitianos, o Brasil apresentava sua can-didatura ao Conselho de Segurança da ONU. Um forte apelo fora dadoà implicação do país na ajuda à regulamentação internacional dos di-reitos humanos, com o exemplo da participação decisiva do Brasil nacoordenação da Missão das Nações Unidas para a estabilização noHaiti (Minustha). Isto é, o Haiti, nesse sentido, apresentara-se comouma vitrine do savoir-faire (saber-fazer) brasileiro, e por isso denotavaimportância estratégica. Nesse contexto, deportar maciçamente mi-grantes haitianos seria fechar fronteiras para uma solução politica-mente insustentável. De outro lado, na ausência de um acordo subcon-tinental acerca das migrações haitianas, e como as fronteiras dos paísestradicionais de migração estavam se fechando, o Brasil não podia porsi só assumir uma postura de “generosidade” sem correr o risco de esti-mular fluxos que seriam politicamente custosos em nível nacional. Emoutros termos, o hiato sentido nos âmbitos municipal e estadual e den-tro dos próprios órgãos federais refletia a questão “ontológica” dadiplomacia brasileira. De certo modo, também para o Executivo a situ-ação de Tabatinga fora “funcional”, no sentido de que funcionavacomo uma zona hermética, permitindo manter a distância entre o pro-blema e sua solução e amortecendo custos políticos.

O Desfecho: Uma Reabertura da Questão Migratória

Em janeiro de 2012, passados dois anos do início das migrações haitia-nas na Amazônia e com a já consolidada situação humanitária em Ta-batinga, essa irresolução política já não era mais possível. Entretanto, ocaso dos haitianos tinha ganhado notoriedade midiática e, em novem-bro de 2011, alcançado o estágio de “questão nacional”.

Em Brasileia, pequena cidade localizada na fronteira do Acre com oPeru, onde haitianos também passaram a chegar, estruturou-se umamelhor articulação com o governo federal, facilitando a politização daquestão. A implementação – altamente simbólica – de um projeto deassistência da organização não governamental dos MSF em Tabatinga

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também pode ter contribuído para uma maior conscientização do pro-blema.

Nesse período de dois anos, fora decidido que os haitianos que esta-vam em solo brasileiro seriam excepcionalmente regularizados. Emcontrapartida, novos migrantes seriam impedidos de entrar no Brasilcomo requerentes de refúgio. Considerados ilegais, poderiam ser de-portados. Uma cota de 100 vistos mensais por dois anos seria, entretan-to, concedida a requerentes a partir do solo haitiano.

Rapidamente, porém, o dispositivo mostrou suas insuficiências paraconter o fluxo e as regularizações por motivos humanitários se acelera-ram, chegando a 13.669 em 2013 (fonte: Ministério da Justiça). Logica-mente, em abril de 2013, o CNIG determinava o fim do limite de 1.200vistos anuais e devolvia a “questão haitiana” para uma reforma emprofundidade da Política Nacional de Migração.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A chegada dos haitianos à cidade de Tabatinga constitui um evento crí-tico na história migratória brasileira: a entrada do Brasil nas rotas mi-gratórias globalizadas. Tal evento confirma a atratividade do país nonovo cenário geopolítico do século XXI. Revela também que, desde aimplementação das cotas migratórias na década de 1930, os temposmudaram: a globalização dos fluxos de comunicação e o transportetornam consideravelmente complexo o controle dos fluxos migra-tórios.

Porém, como demonstrado neste artigo, a situação de Tabatinga per-durou justamente porque não alcançou a visibilidade necessária paraser reconhecida como um evento crítico. Nem refugiados nem migran-tes, os haitianos sofreram por sua posição intersticial entre uma Lei deRefúgio moderna, mas inaplicável a amplos movimentos coletivos, euma lei de migração “ultrapassada e restritiva”. Essa indeterminaçãolegal estava atrelada a uma complexa invisibilidade política. Nos pla-nos locais, estaduais ou federais, a chegada dos haitianos surgiu comoum fato singular, atrapalhando os mecanismos orçamentários e de go-vernança, desafiando os dispositivos de assistênciae trazendo ques-tões inconfortáveis sobre a oportunidade política de “cuidar dos ou-tros” em um contexto de competição generalizada pelos recursos doEstado. Por esses motivos, Tabatinga funcionou tacitamente como es-paço de contenção.

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Mas a irresolução também foi antropológica. Como qualquer momen-to de “primeiro contato”, a chegada dos haitianos deslocava a fronteirada alteridade e da identidade. No contexto amazonense, em que a dife-rença étnica e cultural tornou-se uma via importante de acesso a direi-tos fundamentais, a aparição dessas “alteridades radicais” ameaçavaperturbar as fronteiras – tênues – das alteridades locais.

No Brasil voluntariamente multiculturalista do século XXI, que pro-move as “diferenças” e a “diversidade” no seio de uma população decidadãos desiguais, mas fortemente integrados à comunidade nacio-nal, a chegada dos haitianos reavivou a pergunta sempre angustiadado “nós”. Contudo, logo essa pergunta se encontrou agitada pelo vivoimaginário humanitário de um contexto ainda marcado pelas imagensdo terremoto. De vítimas a transmissores de HIV, de invasores a sujei-tos da solidariedade internacional, os haitianos passaram por transfi-gurações múltiplas que também contribuíram para a indeterminaçãode sua situação. Quantos movimentos espontâneos de assistência es-boçados em nome da solidariedade foram abortados por receio docontato?

Rompendo com essa hesitação, foi finalmente com base nos argumen-tos da generosidade e da compaixão que o Poder Executivo enfrentou asituação apresentada. Aos haitianos que já estavam em solo brasileiro,vistos especiais foram ofertados por razões humanitárias. Aos que ain-da poderiam vir ao Brasil uma cota de 100 vistos mensais foi ofertada.Segundo o Itamaraty, a medida teve o intuito tanto de limitar a “fugade cérebros” do Haiti de pessoas importantes para reconstruir o paísquanto de não alimentar uma rota criminosa, a qual poderia estimulara ilicitude das migrações, como o tráfico de pessoas e casos de traba-lhadores escravos. A supressão desta política de cotas em 2013mostrou os limites e os artifícios do argumento da generosidade e seuregime de exceção perante a realidade dos fluxos migratórios globali-zados.

A respeito desse ponto, Fassin (apud Vidal, 2011) denomina “governohumanitário” um poder que tira sua força do lugar central das emo-ções na definição das políticas destinadas a aliviar o sofrimento de ou-trem em nome da experiência da compaixão. Porque essa lógica de“governo humanitário” mantém a distância e entretém uma relaçãopermanente de desigualdade, Fassin faz dela a parte sombria das de-mocracias modernas. No mesmo registro argumentativo, Boltanski

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(1993) aponta, em seu livro sobre o “sofrimento à distância”, que “a po-lítica da piedade”, que somente reconhece pessoas nas dimensões dafelicidade ou da infelicidade, faz obstáculo a uma verdadeira “políticada justiça”.

Aplicado à situação de Tabatinga, esse debate geral aponta para a evi-dência de que a generosidade invocada de vistos humanitários e de co-tas restritivas não substitui o que deveria ser uma consistente políticamigratória. Da mesma maneira, na ausência da compreensão e da aná-lise de múltiplos níveis políticos de gestão das falhas de assistência eproteção, outras situações análogas à de Tabatinga poderão vir. Oevento crítico de Tabatinga, mesmo sendo pouco reconhecido comotal, ainda pode fornecer a ocasião ímpar de transformar a singularida-de de sua erupção na exemplaridade de uma resposta e tratamento po-lítico global.

(Recebido para publicação em março de 2013)(Reapresentado em novembro de 2013)

(Aprovado para publicação em junho de 2014)

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NOTAS

1. Frédéric Vandenberghe (IESP/UERJ) participou da primeira fase da pesquisa em Ta-batinga. Agradecemos muito por sua valiosa contribuição à coleta de dados e análi-se.

2. Disponível em <http://oglobo.globo.com/pais/acre-sofre-com-invasao-de-imi-grantes-do-haiti-3549381>.

3. No último mês do fluxo migratório, a Igreja Católica responsabilizou-se pelos alu-guéis daqueles que não eram capazes de fazê-lo por sua própria conta. Uma compen-sação financeira pelo Estado do Amazonas foi negociada.

4. Disponível em <http://www.aerzte-ohne-grenzen.at/fileadmin/data/pdf/re-ports/2009/MSF_Report_Malta_2009.pdf.

5. Disponível em <http://www.blogmarcossantos.com.br/2012/02/08/homero-de-miranda-leao-medico-e-vereador-alerta-riscos-de-colera-em-haitianos/>.

6. Disponível em <http://www.blogdafloresta.com.br/o-grito-da-saude/9588-haiti-anos-controle-sanitario-de-fronteira-homero-de-miranda-leao-.html>.

7. MSF, que não participou dessa operação, lembra que, ao aplicar os testes, é necessá-rio que se tenha um conjunto de ações (detecção, orientação, tratamento, acompa-nhamento), o que não foi o caso, segundo relatos da população testada.

8. Disponível em <http://www.agenciaaids.com.br/noticias/interna.php?id=18464>.

9. Dados obtidos por meio da Ficha A, preenchida pelos agentes comunitários de saúdebrasileiros em colaboração com haitianos voluntários.

10. Foram utilizados instrumentos qualitativos, como: escuta ativa, visita domiciliar,grupos focais, role-play, desenhos e entrevistas individuais.

11. Restrita à situação de Tabatinga, a análise não dá conta da maneira com que a assis-tência acabou se organizando para os haitianos que chegaram a Manaus a partir demarço de 2011, quando foi criada uma Comissão de Apoio aos Haitianos pelo gover-no do Estado, reunindo várias secretarias e organizações da sociedade civil.

12. Disponível em http ://www.acnur.org/t3/portugues/informacao-ge-ral/o-que-e-a-convencao-de-1951/

13. Disponível em <http://www.unhcr.fr/501145f39.html>.

14. Ativista dos Camisas-Vermelhas, Battisti foi acusado do assassinato de quatro pes-soas na década de 1970 e recebeu pena de prisão perpétua na Itália. Escapou em 1981,refugiou-se no México e, em seguida, na França. Após a decisão da França, em 1994,de extraditá-lo para a Itália, ele fugiu para o Brasil. Preso em 1997, cumpriu quatroanos de prisão no Brasil beneficiando-se, finalmente, de uma decisão de não extradi-ção. Assumida no último dia do mandato do presidente Lula, em 31/12/2010, apósdebates tensos no Supremo Tribunal Federal, a decisão provocou uma tensão diplo-mática com a Itália.

15. Disponível em <http://www.acnur.org/t3/portugues/informacao-geral/bre-ve-historico-do-acnur/>.

Nem Refugiados, nem Migrantes

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Nem Refugiados, nem Migrantes

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RESUMONem Refugiados, nem Migrantes: A Chegada dos Haitianos à Cidade deTabatinga (Amazonas)

O artigo visa a analisar a migração de 4.000 haitianos entre o início de 2010 emarço de 2012 em Tabatinga (Amazonas), como um “evento crítico” na históriamigratória recente do Brasil. Baseando-se no trabalho in situ de assistência daorganização internacional Médicos Sem Fronteiras junto a esta população, otexto evidencia os limites da capacidade de resposta legal e operacional nos ní-veis municipal, estadual e federal. Este jogo de escala analítico permite aindaentender a convergência de elementos e circunstâncias que produziram a si-tuação humanitária de Tabatinga. No momento em que o Brasil está entrandonas rotas de migração globalizadas, o artigo pretende contribuir para o debatesobre a reforma da política migratória brasileira.

Palavras-chave: migração; Haiti; Tabatinga; Amazônia

ABSTRACTNeither Refugees, nor Migrants: The Arrival of Haitians to the City ofTabatinga (Amazonas)

This article sets out to analyze the migration of 4,000 Haitians between thebeginning of 2010 and March of 2012 in Tabatinga (Amazonas), as a “criticalevent” in the history of recent migrations to Brazil. Based on onsite work by theDoctors Without Borders international organization, this text highlights thelimits of the legal and operational response at the municipal, state and federallevels. This scale-based analytical approach allows for a comprehension of theconvergence of elements and circumstances, which produced thehumanitarian situation in Tabatinga. At the very time Brazil enters globalmigration routes, this article intends to contribute to the debate on Brazilianmigratory policy reform.

Keywords: migration; Haiti; Tabatinga; Amazonia

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RÉSUMÉNi Réfugiés, ni Migrants: L’Arrivée des Haïtiens à la Ville de Tabatinga(Amazonie)

L’article se propose d’analyser la migration des 4.000 Haïtiens entre début 2010et Mars 2012 à Tabatinga (Amazonie), comme un “événement critique” dans larécente histoire migratoire du Brésil. S’appuyant sur le travail in situd’assistance de l’organisation internationale Médecins Sans Frontières aveccette population, le texte met en évidence les limites de la capacité de réactionjuridique et opérationnelle dans les niveaux locaux, provinciaux et fédéraux.Ce jeu d’échelle analytique permet aussi de comprendre la convergence defacteurs et circonstances qui ont produit la situation humanitaire de Tabatinga.A un moment où le Brésil commence à entrer dans les rotes migratoiresmondialisés, l’article vise à contribuer au débat sur la réforme de la politiquemigratoire brésilienne.

Mots-clés: migration; Haïti; Tabatinga; Amazonie

RESUMENNi Refugiados, ni Migrantes: La Llegada de los Haitianos a la Ciudad deTabatinga (Amazonas)

Este artículo busca analizar la migración de 4.000 haitianos entre principios de2010 y marzo de 2012 en Tabatinga (Amazonas) como un “evento crítico” en lahistoria migratoria reciente de Brasil. Basándose en el trabajo in situ deasistencia desarrollado por la organización internacional Médicos SinFronteras junto a esta población, el presente texto evidencia los límites de lacapacidad de respuesta legal y operacional en los niveles municipal, estatal yfederal. Este juego analítico de escalas permite entender la convergencia deelementos y circunstancias que produjeron la situación humanitaria deTabatinga. En un momento en que Brasil pasa a adentrarse en las rutasglobalizadas de migración, el texto también pretende contribuir al debatesobre la reforma de la política migratoria brasileña.

Palabras clave: migración; Haití; Tabatinga; Amazonia

Nem Refugiados, nem Migrantes

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