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VOLUME 4 / Ano 4 / Nº 4 / MARÇO 2013 Revista do Centro de Estudos Sociais e Sindicais da Bahia REVISTA DIALÉTICA Geografia da segregação de Salvador Ubiratan Castro As contradições sistêmicas que obstaculizam a efetividade dos direitos humanos fundamentais Agnaldo Matos O porto e a cidade do Salvador Ricardo Moreno O porto de Salvador e a dinâmica comercial e social da cidade Flavio Gonçalves Ação Social em Programas de Educação e Artes Ivana Kuhn Reflexões sobre educação e cultura hegemônica em Angola e no Brasil nos meados do século XX Laila Brichta ISSN 2317-1391

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VOLUME 4 / Ano 4 / Nº 4 / MARÇO 2013 Revista do Centro de Estudos Sociais e Sindicais da Bahia

REVISTA DIALÉTICA

Geografia da segregação de SalvadorUbiratan Castro

As contradições sistêmicas que obstaculizam a efetividade

dos direitos humanos fundamentaisAgnaldo Matos

O porto e a cidade do SalvadorRicardo Moreno

O porto de Salvador e a dinâmica comercial e social da cidade

Flavio Gonçalves

Ação Social em Programas de Educação e Artes

Ivana Kuhn

Reflexões sobre educação e cultura hegemônica em Angola e no Brasil nos

meados do século XXLaila Brichta

ISSN 2317-1391

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Ano 4 / Vol. 4 / Nº 4 / 2013

Conselho Editorial

Ricardo Moreno (editor)Milton BarbosaIlka BicharaMuniz FerreiraMilton PinheiroJoão AugustoJéferson BragaOlival FreireRenildo SouzaElias RamosElias DouradoUbiratan Castro de AraújoFlávio GonçalvesJorge WiltonAudrin CastellucciGisélia SouzaAugusto VasconcelosNilton VasconcelosÂngela GuimarãesCaio BotelhoUrano Andrade Ana Guedes Antonio Barreto

REVISTA DIALÉTICA

Centro de Estudos Sociais e Sindicais da Bahia

Rua Comendador Gomes Costa, 44 CEP: 40070-120 Salvador - BA

www.revistadialetica.com.br

DIALÉTICA / Centro de Estudos Sociais e Sindicais da Bahia - v.4, n.4 (2013). Salvador.

ISSN 2317-1391

1. Dialética I. Centro de Estudos Sociais e Sindicais da Bahia

___________________________

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VOLUME 4 / Ano 4 / Nº 4 / FEVEREIRO 2013Revista do Centro de Estudos Sociais e Sindicais da Bahia

REVISTA DIALÉTICA

EDITORIAL ....................................................................................................... 4

CULTURA

Geografia da segregação de SalvadorUbiratan Castro .......................... ....................................................................... 6

FILOSOFIA

As contradições sistêmicas que obstaculizam a efetividade dos direitos humanos fundamentaisAgnaldo Matos ................................................................................................ 12

BRASIL

O porto e a cidade do SalvadorRicardo Moreno ............................................................................................... 19

O porto de Salvador e a dinâmica comercial e social da cidadeFlavio Gonçalves ............................................................................................. 25

INTERNACIONAL

Ação Social em Programas de Educação e ArtesIvana Kuhn ........................... ...........................................................................40

Reflexões sobre educação e cultura hegemônica em Angola e no Brasil nos meados do século XXLaila Brichta .........................................................................................................................48

SUMÁRIO

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Mal iniciamos o ano de 2013 e uma multidão se dirigiu ao cemitério Jardim da Saudade, em

Salvador. Todos unidos em homenagem ao Professor e Historiador Ubiratan Castro de Araújo.

Certamente um dos maiores intelectuais baianos, que nos deixara. No ar havia uma espécie de

celebração a vida, marcada por uma saudade alegre, embalada pelas lembranças das

Histórias, e estórias, sempre narradas com o inigualável humor do Bira gordo.

Bira realizou a sua formação acadêmica no período mais duro da ditadura militar, graduou-se

em História pela Universidade Católica do Salvador (1970), e em Direito pela Universidade

Federal da Bahia (1971), já o Mestrado e o Doutorado em História fez na Université de Paris X,

na, França.

Em 1978, o ex militasnte do MR-8, passou a lecionar na Universidade Federal da Bahia, e no

inicio do Governo Lula, em 2003, assumiu a Presidência da Fundação Palmares, dando uma

grande contribuição para a titulação de terras remanescentes de quilombo. E em 2007

emprestou a sua experiência à frente da Fundação Pedro Calmon.

Dentre muitas das homenagens que recebeu, em vida, em 2011 recebeu uma placa em

reconhecimento à sua contribuição à cultura baiana dada pela fundação Mauricio Grabois. À

época, uma palestra descontraída foi realizada, e o Professor Bira se comprometeu a

transformar aquelas informações em um texto que seria publicado pela Revista Dialética.

Com os problemas de saúde que o abateram, este texto jamais foi concluído, de forma que

recuperamos em nossa quarta publicação alguns fragmentos daquele encontro.

2013 é também o ano comemorativo do centenário do Porto de Salvador. Os estudos acerca da

relação porto e cidade ainda engatinham no Brasil, com uma produção ainda pequena,

concentrada no Rio de Janeiro, Espírito Santo, e na Bahia. Flávio Gonçalves dos Santos, e

Ricardo Moreno, nos trazem artigos focando o porto soteropolitano, ainda em sua estrtutura

colonial.

EDITORIAL

Revista Dialética, v. 4, n. 4, Março 2013 04

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A musicista Ivana Pinho Kuhn traz um debate acerca do papel das ONGs na America Latina,

que utilizam os métodos educacionais de Paulo Freire, Piaget, e Vygotsky, em programas que

relacionam música, arte em Educação, para crianças e jovens em faixa de risco. Segundo ela,

os exemplos dos projetos Axé, El Sistema e Neojiba, permitem identificar os pontos relevantes

que tem contribuido para o sucesso e alcance dos objetivos de integração social e formação

individual desses projetos de ação solidaria.

E por fim Agnaldo Matos, discute o Direito na sua gênese como sendo determinado pelo

movimento da História decorrente das transformações empreendidas pelos atores sociais no

curso de uma batalha política na busca de sua organização, defesa e subsistência.

Denunciando o paradoxo da efetividade dos direitos humanos fundamentais no modo de

produção capitalista como decorrência da forma como o sistema capitalista historicamente se

estruturou.

Desta forma, os convidamos a visitarem o quarto número da nossa Revista Dialética, abrindo

bastante os braços para abraçarmos a memória do nosso querido Professor Bira.

05Revista Dialética, v. 4, n. 4, Março 2013

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2Ubiratan Castro de Araújo

1Geografia da segregação de Salvador

- A capital e o Governo Geral representou o centro do capitalismo em expansão, o planejamento da cidade de Salvador estava relacionado à estrutura dos portugueses que chegavam e que possuíam sintonia com o poder, assim, quem trabalhava em um órgão do Estado ficava na cidade alta, protegido no promontório na Misericórdia até o Largo de São Bento, ou então, estavam na cidade baixa protegidos no porto e na Rua do Comércio que é onde entrava e saia riqueza, e um policiava o outro. Isso era o núcleo português, fora desse núcleo os colonos, ou o governo geral, deveriam manter as aldeias dos índios desde que eles fossem bem comportados no lugar que estavam e fossem capazes de senhorear esses índios, de governar esses índios, de usar o trabalho deles, mas, não deixar de estarem em pé, ou seja, quem melhor definiu isso para mim no passado foi o Professor Marcos Paraguaçu de Arruda Câmara, ele fez uma tese primorosa sobre os séculos dezessete e dezoito mostrando como a cidade portuguesa foi planejada para a discriminação e para, o que a gente chama hoje, essa cidade partida.

Apresentação

Durante as comemorações de aniversário da Cidade do Salvador, em março de 2011, a Fundação Mauricio Grabois promoveu um evento comemorativo que incluiu um debate entre dois dos mais importantes intelectuais baianos, Luis Henrique dias Tavares, e Ubiratan Castro de Araújo. Ambos também receberam homenagens naquela oportunidade. A transcrição da palestra do Historiador Ubiratan Castro de Araújo foi posteriormente a ele apresentada, sendo que o mesmo se comprometera o organizar, à partir dali, um texto a ser publicado pela Revista Dialética. Já vivia o professor Bira os sérios problemas de saúde que lhe tirariam a vida em janeiro do corrente ano. De forma que tal texto jamais foi concluído.

Diante a grande perda que representou para a cultura baiana e nacional, nos unimos a suas homenagens e resgatamos aqui algumas passagens daquele encontro, pautado pelo debate da formação dos espaços segregados da capital baiana, a má distribuição dos serviços e transportes, a natureza de classe desta lógica perversa, e também o papel da mulher como organizadora da família em uma sociedade marcada pelo machismo.

Imagino que o debate deve estar tendo prosseguimento, e certamente muitos são os “causos” o querido Bira deve estar contando a Omolú.

Como sempre dizia o Professor, entramos em vossas leituras, com a benção e permissão dos mais velhos.

Ricardo Moreno

06Revista Dialética, v. 4, n. 4, Março 2013

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Tinha que ter igreja, a casa de câmara e cadeia e o pelourinho, as instituições que abrigavam a população dominante branca, mas, era preciso manter uma aldeia indígena em uma distancia suficientemente perto que p e r m i t i s s e o u s o d o t r a b a l h o e suficientemente longe para reprimir as revoltas que então já nasciam na periferia, no bairro popular.

Com o tempo surgiram grupos de quilombos. O quilombo também era suficientemente longe para que os senhores não fizessem expedições para recuperar os escravos, mas, suficientemente perto para que as cidades pudessem comprar os produtos da lavoura dos quilombolas a preço de banana, porque os quilombolas não se integravam no mercado e não precisavam tanto de dinheiro. A rigor a lógica colonial continuava.

Continua-se planejando uma cidade para a segregação espacial, não é a toa que se olharmos os antigos bairros vemos que sempre houve uma distinção muito clara. No passado eram as cumeadas, a população “melhorzinha”, empregada, branca, morava sempre nas cumeadas, e os pobres, os negros, moravam na baixada descendo a pirambeira. Se você olhar o que é que é Nazaré, o Tororó, os Barris, o que é o Garcia, você vai ver que o povão está em baixo. Essa é uma lógica que permitia que o rico da Graça pudesse usar a preço de banana o trabalho da lavadeira que morava no Vale do Canela, e em troca se estabelecia uma relação paternalista. No dia que alguém do Vale era preso pedia o favor ao Doutor que morava em cima, ele ia soltar criando-se uma relação de dependência entre aquele que morava em cima e o que morava em baixo.

Assim era o lugar por onde passava o bonde, tinha consequências até afetivas e sexuais, porque muitas mães e muitas famílias reparavam muito bem quando aparecia um namorado de uma filha, para o pé e para a barra da calça, se estava suja de barro e de poeira era morador do Pero Vaz e da Liberdade, não prestava porque não andava

em rua calçada.

Com o fim desse sistema vertical, sistema totalmente colonial do sobrado e da loja dos brancos senhores que moravam no primeiro andar, dos mulatos que moravam no térreo e dos negros que dormiam no socavão da loja ou no porão, com esse negócio das avenidas de vale, o que se fez foi dissolver esse modelo e segregar na horizontal e criar esses bolsões de gente que ao mesmo tempo em que são recusadas do convívio, são necessárias para baratear os serviços.

Então temos um Calabar encravado no meio dos bairros de gente rica como Barra, Apipema e outros. Mas é no Calabar que se lava roupa, que se tem serviços, pessoas que agora estão lá para atender ao público de garotos e garotas ricas. Para atender o prazer da droga tem os meninos aviõezinhos, tem lá o ladrãozinho, o traficante que, esse sim, é o grande bandido, e o consumidor que compra as drogas, esse é o doente. Ora essa é a lógica da cidade, não é que ela seja anárquica, é que ela foi montada para isso, para ser hierarquizada! Para ter grupos concentrados, e cada um desses grupos se defenderem coletivamente.

O pessoal da Barra sabe muito bem se defender, esse espaço reclama quando se tem a presença de gente pobre no Porto da Barra, exige policiamento especial. O povo de lá da Pituba tem medo do Nordeste, isso aí que aparentemente é uma crise que desorganiza a cidade, na verdade organiza a cidade de uma maneira perversa!

Isso é tão ostensivo que o carnaval nos deu isso! Você olha o carnaval, você tem um carnaval onde os espaços de classe ou de segmento social são hierarquizados de “gente bonita” que pode pagar e sai em um bloco com a corda e com um bocado de peão defendendo do resto do povo para não entrar e compartilhar daquela maravilha. Agora já tem outro passo adiante da segregação que é o camarote, que são daqueles que são muito mais ricos e que não são nem daqui, e

Cultura - Ubiratan Castro

07Revista Dialética, v. 4, n. 4, Março 2013

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que não querem andar na rua, e que não querem gastar a vitamina ou energia andando atrás do trio. Num camarote, que é selecionado pelo preço, tem tudo, tem manicure, tem massagista, tem a própria música, a comida, a bebida, o lugar onde o escornado dorme lá e acorda no outro dia, quer dizer, e o povão é pipoca, espremido pelos lugares de longe, onde ele vê o show.

Esta coisa típica do antigo regime pré-capitalista continua e sobrevive muito ainda em Salvador. É evidente que isso tem um caráter econômico, tem um caráter racial, porque esses bolsões terminam se definindo e se agrupando também racialmente e em alguns casos também economicamente. É para isso que servem as políticas públicas, o Estado está do lado de um dos grupos que se fecha, ele só governa e só age para as áreas com que ele tem identidade, um grande desequilíbrio, que a gente vê desde o passado com a ausência absoluta de investimento social de serviços nas áreas que não são as áreas em que a elite mora. Onde é que teve o Bonde na Bahia? - Tinha linha de bonde onde morava gente decente. No brongo não tinha bonde, tinha uma linha que levava gente da Liberdade para trabalhar no centro, era a linha como tem hoje como a que leva gente de Pirajá pra Barra para levar o pessoal que vai prestar serviço e que mora lá, mas não é uma linha de transporte pensada das pessoas que moram nas Cajazeiras em busca da sua sobrevivência, é para prestar serviço.

Eu vim entender isso mais agressivamente em Brasília, é a mesma coisa porque que nos dias de folga do povo, nos dias de domingo, a oferta de transporte coletivo cai a menos de cinqüenta por cento em Brasília, o metrô para. Não se pode manter a mesma quantidade de transporte em Brasília porque o plano piloto é tombado, é um patrimônio universal, é o templo de Niemayer, e vai trazer essa horda de bárbaros no fim de semana para usar os equipamentos do plano piloto? -Quer dizer, ir para os parques, para os museus, tudo isso é invasão dos

farofeiros!

Se você olhar e observar, Salvador só tem ônibus quando tem evento que interessa para ganhar dinheiro. É carnaval, é o show da Ivete, coisas desse tipo. Mas normalmente nos fins de semana você tem uma freqüência muito maior e uma oferta muito menor de transporte, por quê? - É para esse povão não vir pra cá, é pra ficar no Doron mesmo, na Mata Escura, é pra não levar “gente feia” para a praia. Evidente que eu não tenho nenhuma varinha de condão para o futuro, mas quando Alice, a Deputada Alice Portugal, levanta a proposta é muito apropriada, a gente tem que desmontar essa cidade colonial e levantar e refundar a cidade do ponto de vistas de uma cidade de massa, com circulação, com áreas comuns, essa é uma grande tarefa. Agora, por onde começar, não é verdade?

- Temos uma cidade cosmopolita, uma cidade que é a terceira em termos de massa urbana, e é governada por uma oligarquia rural. Na abertura do carnaval eu vi o Balé do Senegal e quando veio a bailarina com roupas típicas que ficava em cima uma juba, o Prefeito viu a mulher, e ai ele viu nela Omolu, e saiu correndo! -é o diabo! -Ter medo de Omolu em uma cidade como Salvador?

- A segunda questão é que existe uma classe de proprietários da cidade, então quem são esses proprietários da cidade? -Eu acho que é o modo como estão organizados, há um planejamento sim, daqueles que compram e vendem terrenos, há um conluio em que se criam os bolos segregados, donde estão os grandes empreendimentos imobiliários, os grandes edifícios, isso cria como na paralela os quilombos dos ricos. Os ricos também têm seus quilombos, e eles investem em seus quilombos, e ai é zero de investimento para fora do quilombo. O poder público gira em torno do quilombo, os investimentos e as melhorias para essas áreas de quilombos, e o resto é na base do puxadinho, ai na hora que desmorona ai diz - está vendo?

É em cima de uma estrutura que era para ter

Cultura - Ubiratan Castro

08Revista Dialética, v. 4, n. 4, Março 2013

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um pavimento só, ai nego casa uma filha, ai você faz mais um puxadinho bota mais uma laje, casa outro filho bota uma terceira laje, e ai de repente você tem um edifício de quatro andares com estrutura que não aguenta um! Todos sabem muito bem que os donos de empresa de ônibus de Salvador agem como se fossem donos da cidade. Fico até triste quando vejo parlamentares fazendo o jogo dos grandes donos de circulação da cidade, as empresas de ônibus. Esse grande problema que são as saídas, para a questão de mobilidade urbana na Bahia nunca foi prioridade. Os donos das empresas de ônibus boicotam tudo, mas boicotam mesmo! É um golpe poderosíssimo que controla e corrompe. Eu vejo que vai ser preciso eles quererem a cidade bonita para a copa, nós também queremos, mas uma cidade bonita para quem? Que cidade é essa?

Essa palavra de ordem para mim passa primeiro por uma grande rebelião, não estou falando de revolução não, estou falando de uma rebelião de cidadania como os meninos fizeram algumas vezes ai, rebelião quebra–quebra, rebelião de ônibus. Veja bem, esta cidade ganha consciência de que é preciso explodir esse modelo colonial dentro da cidade e que para isso é preciso outra liderança, é preciso outro Estado na esfera municipal, porque com esse Estado e com esses arranjos, vai ser sempre empurrado com a barriga. A planificação vai existir, mas uma planificação para excluir mais, para criar espaços cada vez mais segregados porque isso faz parte do nosso racismo baiano, todo mundo é amigo, chama para tomar uma cachacinha, bate com a mãozinha nas costas, meu companheiro, mas você lá e eu cá. Esta forma de segregação já é tão arraigada diametralmente, que é preciso um choque!

O político é fundamental, pois é ele quem pode desbloquear o uso dos recursos coletivo para aprofundar esse estado hierárquico colonial de brancos ricos, pobres, mulatos, negros, enfim, é preciso revirar isso então! Eu acho que é uma obra de todo

cidadão da Bahia!

- Você fala do gueto do Nordeste de Amaralina, você tem os bolsões onde você tem que manter a ordem, onde você tem que manter lá segregada para não se misturar com os outros e não levar mau costume, e você também mantém essa baixa oferta de serviços que se teriam direitos enquanto cidadãos. Veja quanto se tem de escola, a qualidade das escolas, veja o que se tem de postos de saúde, equipamentos culturais, esse não adianta nem falar! Se a gente circula nesses bairros segregados o que se tem de cultura é feito por ONGs, são as ONGs que o rgan izam b ib l i o tecas comunitárias, são as ONGs que organizam certos projetos comunitários e isso é devidamente mostrado porque o Estado sempre achou que essas ONGs são cúmplices da criminalidade.

O Subúrbio Ferroviário nasce como um espaço segregado. É o Subúrbio Ferroviário, Plataforma o outro lado que é a Ribeira. Até a Ribeira tinha o veraneio de gente de bem, se veraneava na Ribeira, você atravessava o bairro as grandes fábricas, como a fábrica São Braz e outras fabricas de tecido estavam todas em Plataforma. A classe operaria foi toda jogada para lá, começou no Luiz Tarquínio, foi colocando para Itapagipe, e na medida do tempo isso foi se deslocando de Itapagipe para fora, para Plataforma e lá ficou.

Havia a forma de controle que os catarinos exerciam sobre Plataforma, como donos de terreno que alugavam tudo e cobravam sobre cada aluguel dos operários. Toda a área de Periperi, Paripe, São Tomé de Paripe eram áreas de veraneio com algumas casas, para quem morava na cidade pegava-se um trem e ia passar final de semana em praias como a de Inema.

Hoje tudo isso não passa de uma área segregada é uma área que não tem nem transporte, o trem não funciona mais, o trem passa nem no túnel, compraram um trem que

Cultura - Ubiratan Castro

09Revista Dialética, v. 4, n. 4, Março 2013

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é maior que o túnel para você vê a pouca atenção que se tem por essa área.

- Uma questão controversa é a da mulher, porque esta cidade é uma cidade de mulheres, mas se você olha por um lado é, nas palavras de Gilberto Gil, metade do copo está vazio e metade do copo está cheio, a depender do olhar. As mulheres têm uma presença muito forte nessa cidade em função da omissão dos homens. Esse negócio de matriarcado na África é o maior absurdo! A estrutura africana ela é patriarcal! No Brasil e nas Américas a escravidão virou isso ai, um regime voltado preferencialmente para escravidão de homens, de homens em idade adulta, preferencialmente com idade para o trabalho escravo, e, portanto, com renovação imediata destes sempre na mesma idade.

A questão da reprodução da força do trabalho para o escravismo nunca se colocou já quando se começou a entrar em crise o trafico escravo passou-se a substituir os estoques de trabalhadores escravos por outro estoque de escravos vindos de outras províncias. Não é a toa que eles vão se abastecer e secar o nordeste todo.

O escravismo não sobrevivia pela criação de famílias, de famílias negras, então a mulher não era tão necessária, era um produto com um uso mais especifico, de luxo, de uso urbano, de um artesanato especifico, de um trabalho doméstico, de comida, de roupa. E os africanos também não vendiam escravas, eles vendiam menos mulheres do que homens porque para a lógica dos africanos eram as mulheres que trabalhavam. Por essa razão eu entendo que durante todo o escravismo as mulheres ficaram muito mais próximas do trabalho urbano, do trabalho assalariado, semi-assalariado e mercantil, e desenvolveram uma capacidade de segurar as famílias. As mulheres que seguravam a família por que os homens, a rigor, estavam na escravidão mais pesada. E convencidos pelos seus senhores de que o que eles podiam fazer era inseminar para criar mais escravos, mas, não assumir mais nenhuma

responsabilidade.

Em 1871 quando surge a lei do ventre livre, havia na Bahia uma posição das mulheres negras que foi de resistência a procriação, porque para uma mulher dar luz a uma criança era produzir mais um escravo para seu senhor, então a linha de aborto foi difundida nas mulheres escravas para não darem crias para o senhor e em contra partida o senhor tinha a linha de corromper as mulheres de dar a alforria e liberdade se tivessem sete filhos. A gente encontra vários documentos em que mulheres negras protestavam porque tiverem sete crianças e depois disso não fora dada a alforria como tinham prometido.

A questão da procriação era uma questão tensa, com a Lei do Ventre livre, no momento que fica claro que o filho de uma mulher negra não é mais escravo, ai você tem uma efusão na população de nascituros. Isso tudo implica no controle da mulher, no controle da procriação, no controle da família. Encontramos até casos de muitas mulheres que tinham comercio de comida, da rua, tudo que se fazia na rua, no seu bairro.

A l g u m a s c a s a v a m c o m h o m e n s rigorosamente aleijados, que colocavam dentro de casa só para cuidar deles, inclusive na religião um papel importante as mulheres como aquelas que organizam famílias, as famílias de santo, organizam a vida material, o dinheiro, e custa muito dinheiro. Ainda hoje quanto é que custa uma saída de Yaô? Não é fácil não, tem que pagar e é uma coisa que é cara!

Essas mulheres que podiam agregar pessoas, não sei como que puderam f inanciar essas casas. Há outras explicações, outras coisas, mas eu não vou entrar mais. Eu não quero me meter porque eu sou orioko, não sou iniciado, mas há alguns antropólogos que defendem inclusive a questão da relação simbólica da Yaô e seus Orixás, ou seja, é só para procurar briga com vocês, quem é que é marido dessas Yás, é

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10Revista Dialética, v. 4, n. 4, Março 2013

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muito difícil vocês encontrarem essas Yás com maridos.

Eu tinha uma tia de Omolu e ela tinha uma casa e as irmãs delas diziam:

-mais Musura você tem um filho de cada homem! –

E ela dizia:

-é claro porque homem para mim é para vadiar! porque marido para mim é Omolú!

É a relação de uma Ialorixá é de que o seu verdadeiro marido é o orixá.

E ela tá ali para isso! Para cuidar família, das coisas do Orixá, da sua comida, o homem entra como uma diversão carnal. Você já viu ele entrar em uma casa que tem uma Ialorixá? Você já viu um patriarca de terreiro? Não tem ou ele vai assumir em ser um Babalorixá, ou ele vai assumir essa tarefa, mas a grande questão é que o marido dela é outro. Não é porque ela não gosta de homem, não é porque ela seja homossexual não, algumas até são porque são livres, mas não por uma questão da homossexualidade, mas a estrutura da casa, organização da casa e da família, a figura masculina é divina e isso da também outra distorção que é, esses homens ausentes da Bahia.

- Outras questões foram colocadas, eu acho que esse esquecimento dos indígenas, um genocídio! Um etnocidio que nesse texto original já se aconselharam a Thomé de Souza que ele senhoreasse o gentil, tornando-os escravos, e para amansar o gentil cristianizasse a todos. Eles precisavam virar cristãos, e para virar cristão você tinha que apagar a sua memória e a sua identidade cultural não cristã ou pagã. Essa também foi a maneira que usaram para colocar os negros, e não deu certo pois estes não quiseram se cristianizar e seguiram com as suas mensagens e tradições africanas. Os índios não foram dissolvidos fisicamente, os índios estão ai eu olho para cá e vejo um

bocado de descendentes de índios cada um de nós tem pelo menos trinta por cento de sangue indígena mesmo que não tenha pele escura pelo lado materno e isso já foi demonstrado pela Universidade de Minas Gerais. Mas, no entanto, você não vê mais índio, você não vê mais cultura, você não vê mais tradições, língua, virou tudo caboclo, virou tudo caipira, virou tudo brasileiro.

Evidente que nós somos todos brasileiros, mas o apagamento da presença indígena significa também o apagamento da historia, o apagamento dos direitos que foram usurpados, o apagamento de uma reivindicação de reparação, sobretudo porque os indígenas são pequenos no grande Sertão, no interior no Brasil que hoje tem cerca de 190 milhões, o que se vê é a destruição da população indígena.

___________________________________

Notas________________________________

1Trechos da Palestra realizada em março de 2011, no auditório da Biblioteca Pública da Bahia, em evento comemorativo do aniversário da cidade do Salvador, promovido pela Fundação Maurício Grabois.

2Presidente da Fundação Pedro Calmon (in memorian)

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11Revista Dialética, v. 4, n. 4, Março 2013

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Agnaldo Matos Batista*

As contradições sistêmicas que obstaculizam a efetividade dos direitos humanos fundamentais.

Introdução

Inicia-se essa reflexão fazendo uma abordagem não menos filosófica sobre categorias como o conceito da cidadania, de liberdade, da alienação, de democracia, de economia, e do Direito. Dessa forma, refletir as possíveis contradições endógenas ao sistema capitalista que obstaculizam a efetividade dos direitos humanos fundamentais.

Nas palavras de Enzo Bello no artigo Cidadania, Alienação e Fetichismo Constitucional in Lima & Bello (2010, p. 7), o século XXI representa um marco histórico caracterizado por significativas transformações históricas, no campo da economia, nas relações sociais e na política, diz ele, "mas também, é notabilizado pelas suas ambivalências".

Resumo

Esse artigo discute o paradoxo da efetividade dos direitos humanos fundamentais no modo de produção capitalista o qual ocorre em decorrência da forma como o sistema capitalista historicamente se estruturou, onde de um lado a produção da riqueza material da sociedade dar-se de forma socializada, ao passo que do outro a apropriação dessa riqueza calha de forma privada, originando as desigualdades sociais e perpetuando as injustiças. Dessa forma, representa a primeira grande contradição histórica, intrínseca do desenvolvimento do capitalismo, a qual repercute enquanto obstáculo à efetividade dos direitos humanos fundamentais. Percebe-se que o Direito na sua gênese é determinado pelo movimento da História decorrente das transformações empreendidas pelos atores sociais no curso de uma batalha política na busca de sua organização, defesa e subsistência.

Palavras-Chaves: cidadania; liberdade; democracia; Direitos Humanos; emancipação.

12Revista Dialética, v. 4, n. 4, Março 2013

*Graduado em Pedagogia pela FACED / UCSAL (BA), em 1996 com Especialização Metodologia e Didática do Ensino Superior - CEPEX / UCSAL (BA), em 1998; Bacharel em Direito pela Faculdade Regional da Bahia – UNIRB, em 2011 é Diretor de Formação do Sindicato dos Bancários da Bahia.

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Ao analisar a relação entre cidadania e constituição, relacionando a teoria política, a sociologia e o direito utiliza uma abordagem interdisciplinar, tendo como referencial as teorias da alienação e do fetichismo da mercadoria, formuladas por Marx como instrumento de análise, apresenta duas hipóteses controvertidas da cidadania:

· a vertente passiva da cidadania, como status de direito, é limitada em termo de uma democracia material, pois se restringe a enunciar direitos de cidadania, sem proporcionar a sua real efetividade;

· no atual período histórico, verifica-se um processo de dupla alienação da cidadania (do homem em relação à política e da cidadania para o direito), no qual esta é transferida no âmbito da pratica política e social para o espaço jurídico e a figura do estado, gerando um fetichismo constitucional dos cidadãos, que são eximidos de uma participação política ativa em prol de uma ampliação do espaço estatal. Lima & Bello, (2010, p. 8)

Para esse autor o conceito de cidadania vincula os indivíduos à comunidade política e que desde a antiguidade delineia duas noções fundamentais: a da cidadania ativa e a da cidadania passiva.

Analisa ainda que, ao longo do tampo, materializa-se em dez aspectos no seu relacionamento com o Estado, sendo os cidadãos sempre identificados como: sujeitos; pagadores de tributos; soldados; detentores de direitos; constituintes; soberanos; (co)nacionais; indivíduos privados; participantes políticos; e iguais.

Para Lima & Bello (2010, p. 9) na Grécia antiga, a título de exemplo,

a cidade-estado era considerada uma comunidade política e moral, composta por indivíduos que, em sua dimensão pública, constituía uma identidade coletiva e assumia a forma de um corpo político; daí a visão de Aristóteles da comunidade como organismo vivo. No contexto dos helênicos, a

população (formada apenas por homens adultos, livres e militares) era tida como responsável pela existência da democracia direta, e em condições de igualdade entre os indivíduos reconhecidos como cidadãos.

Lembra o autor que os gregos daquela época tinham desprezo pelas atividades não políticas, especialmente o trabalho, considerado indigno, conferido apenas aos escravos, sujeitos não reconhecidos como seres humanos. Os cidadãos dedicavam todo o seu tempo a polis e à sua participação na Agora, consubstanciada na figura aristotélica do zoon politikon (animal político).

Segundo Lima & Bello (2010, p. 11), apesar das particularidades de pensamento, Rousseau e Marx compartilhavam certas p r e m i s s a s f u n d a m e n t a i s p a r a a compreensão da noção de cidadania ativa. Assevera que

ao contrário dos liberais, entendem que o individualismo puro não existe antropologicamente e que o homem é naturalmente um ser social, constituído no meio em que nasce e (com)vive com seus semelhantes. A propriedade é considerada como a origem das desigualdades entre os homens e a fonte de desagregação social. Já a liberdade e a igualdade são compreendidas em sent ido mater ial , l igada a sua efet iva implementação no campo social. Portanto, tais pensadores não aceitavam a figura moderna da democracia representativa, argumentando que o poder político não pode ser delegado pelos homens e conferido a uma elite, e defendiam a democracia direta.

Explicam que o Estado moderno assenta sob princípio da nacionalidade ao passo que a cidadania está relacionada aos indivíduos com base no localismo territorial de cada nação. Segundo seu entendimento outros elementos são decisivos para a formação e consolidação dos Estados nacionais modernos, tais como os elementos políticos e econômicos. Assevera ainda que concorrem também fatores como o idioma, a etnia, a tradição, o território, a moeda, a pátria, e a identidade histórica e cultural que deram ensejo ao surgimento da nacionalidade Lima & Bello (2010, pp. 12-13).

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Nessa perspectiva afirmam que para adotar o conceito de "classe social" sob o ponto de vista marxiano, a partir do desenvolvimento do conceito de "cidadania l iberal-democratica ampliada" do sociólogo britânico Thomas H. Marshall, na obra "Cidadania, Classe Social e Status" a qual abrange a idéia de seguridade social como r e d e d e p r o t e ç ã o q u e a t r i b u i responsabilidade ao Estado por seus cidadãos como forma de compensar as desigualdades geradas pelo mercado na distribuição da riqueza entre as pessoas, devemos compreender que Marshall aponta um progresso em relação ao modelo liberal restrito de cidadania. Isso, resultado das tensões nas disputas pelo poder político Lima & Bello (2010, p. 15).

Para eles, quando Marx formulou a teoria da alienação e o conceito de fetichismo da mercadoria estabelece uma dura crítica à cidadania moderna, particularmente aos "direitos do homem" pela afirmação de sua natureza individual e privada desses direitos. Segundo afiram, Marx em seu "texto de juventude A questão judaica" denunciou a discrepância entre os "direitos humanos" e os "direitos dos cidadãos" como uma discriminação classista burguesa, legalizada entre a burguesia e o proletariado em formação.

Apontam que naquela época direitos como o sufrágio universal era atribuído somente aos proprietários, tendo por base critérios censitários. Dessa forma, afirma que segundo Marx para a consecução da meta histórica de superação do capitalismo, ser necessário pautar um processo de ampliação da cidadania, "com a expansão dos direitos civis – inclusive com uma re-significação da propriedade privada dos meios de produção em termos coletivos e verdadeiramente universais" Lima & Bello (2010, pp. 16-17).

Assim, no texto do artigo "A atualidade do pensamento de Karl Marx e sua contribuição para a crítica do Direito" como introdução da obra dos autores Lima & Bello parafraseando

Engels extraindo da obra "Introdução às Lutas de Classe na França de Marx" (2010, p. xv) assim leciona:

A ironia da história mundial tudo resolve. Nós os 'revolucionários', os 'agitadores' temos muito mais a ganhar através dos métodos legais, do que pela ilegalidade e agitação. Os partidos da ordem, como eles se denominam, perecem diante da legalidade por eles próprios estabelecida e clamam desesperados com Odilon Berrot:. la légalité nos tue, a legalidade é a nossa morte (...).

Dessa feita, os críticos da desordem, da miséria, da desigualdade, da falta de democracia, da opressão, da exploração, têm como tarefa imprimir uma práxis r e v o l u c i o n á r i a n a l e g a l i d a d e institucionalizada, no sentido de exacerbar na democracia para transformar a realidade concreta em outra desejável, racional e eticamente aceitável. Nessa perspectiva de análise afiançam que a leitura de Marx em relação a elementos da super-estrutura política em sentido amplo, e cidadania e direitos em sentido estrito, é resultado do processo histórico-social endógeno das relações de produção material do modo de produção e organização tipicamente capitalista, representado pelo binômio alienação/desalienação, idem, Ob. cit.

Segundo Marx in "Crítica da Filosofia do Direito de Hegel" (2005, p.22), tanto

em Hegel como em Montesquieu, a constituição é entendida não como um código particular de leis positivas mas como produto do espírito de um povo, conjunto de determinações fundamentais da vontade racional. Segundo Marx, uma tal concepção, para ser consequente, exigiria fazer do homem o 'princípio da constituição', que teria em si mesma a determinação e o princípio avançar com a consciência.

Nesse sentido percebe-se uma inversão na compreensão de Hegel e de Montesquieu em relação ao pensamento de Marx, uma vez que, formulam respectivamente, em um contexto histórico cujo desenvolvimento do pensamento de Hegel se desenvolve sob a égide da dialética idealista hegueliana no

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auge do absolutismo monarquista alemão, ao passo que Montesquieu já desenvolve seu pensamento com certa maturidade dos ideais revolucionários liberais burgueses, mas que não desvencilham do idealismo hegueliano, como afirma Lima & Bello in Marx (2010, p. 21),

Hegel parte do Estado e faz do homem o Estado Subjetivado; a democracia parte do homem e faz do Estado o homem objetivado. Do mesmo modo que a religião não cria o homem, mas o homem cria a religião, assim também não é a constituição que cria o povo, mas o povo a constituição.

Portanto, para o autor essa lógica cria um estranhamento entre os indivíduos e o próprio Estado, na medida em que o constitucionalismo moderno prevê um modelo econômico capitalista no que pese dizer-se voltado para a justiça social. Nesse sentido prevalecem os valores liberais, sociais ou individualistas em especial no campo social e político na hora de determinar "o que", "para quem" e "como" serão efetivados os direitos fundamentais.

Salienta ainda que fenômenos como o que ocorreu na América Latina e especialmente no Brasil, com a "confluência perversa" entre a ampliação da democracia e a retração neoliberal camuflada pelo fetichismo constitucional, consolidou um processo de dupla alienação da cidadania, com a qual é transferida "(i) do homem político concreto para a figura abstrata do "cidadão", projetada nas instituições do estado, e (ii) do âmbito da prática político-social da cidadania para o espaço do direito, simbolizado pela constituição" Lima & Bello (2010, p. 31). Para os autores, nessa compreensão dos fenômenos jurídicos catalisadores dos fenômenos sociais constitucionalmente, verificam-se uma vertente passiva da cidadania como status de direitos, muito limitada em termos de sua materialização, restringindo-se a enunciar direitos de cidadania. Contraditando-se assim, com sua possibilidade de efetividade material. E a possibilidade existente de se afirmar outra vertente ativa de cidadania, com ênfase na

participação política, incorporando-se e aprimorando-se as conquistas do século XXI, como os espaços e as formas de manifestações, configurando em verdadeiros atores político-sociais.

Noutro giro em artigo escrito por Alexandre Veronese, Cássio Brancaleone e Ana Maria Macedo Corrêa in Lima & Bello (2010, pp. 42-43) sob o título "Direito e Utopia: o lugar da soberania popular e a contribuição marxista à crítica democrática contemporânea", nos trás os autores a visão do próprio Marx, ao referirem ao caráter formalista do Estado e a possibilidade para a emancipação humana, da constituição de uma sociedade orgânica, dizem eles:

Para Marx esta operação pode ser realizada através da idéia de que a emancipação humana implica na constituição de uma sociedade orgânica, capaz de devolver à organização social seu "nexo comunitário" que a divisão social do trabalho e a dissolução privada da vida fizeram emigrar para o mundo abstrato do estado político. Esta transposição conceitual anulou tanto a sociedade puramente civil (sociedade das pessoas privadas), quanto à sociedade puramente política (comunidade ilusória alienada de seus nexos sociais reais).

Nesse entendimento os autores antecipam a idéia da necessidade de reorganização desses espaços das sociedades privada e política tendo por referência a vida material e política, como possibilidade para abrir caminho para uma verdadeira democracia.

Em um artigo do autor Newton de Menezes Albuquerque, "Estado de Direito: dialética entre a ordem normativa e Estado de Exceção na concepção de marxista do político" in Lima & Bello (2010, p. 107) afirma o autor que o Estado de direito herdeiro da influência do iluminismo, buscava submeter toda realidade ao escrutínio da razão humana, dessa forma,

esmasculou-se da subjetividade ativa, criadora e de sua substância comprometida com os valores do universalismo ético-político proclamado por Rousseau, Regel e outros e definha perante as exigências descivilizadoras da ordem capitalista.

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Assevera ainda que a dominação capitalista mediada pela lei liberal em consonância com os paradigmas do Estado de Direito, cede lugar a livre compulsão do capital, tornando a exceção em caráter de permanência Lima & Bello (2010, p. 113).

Para Tarso Genro in Lima & Bello (2010, p. 162) no artigo "Marxismo, Relação de trabalho e direito subjetivo" considera que as características mais importantes das regras do direito como incidentes sobre iguais, contribuem para que as classes e as pessoas se reconheçam como desiguais. Assevera ainda que

Ao ficcionar que todos são iguais perante a lei (perante o Estado, portanto) o Direito declara explicitamente a desigualdade, que formalmente quer corrigir. É assim, necessário reforçar esta igualdade fictícia para que a desigualdade real, motor do desenvolvimento do capitalismo, permaneça legítima e portanto socialmente aceitável.

Sustenta que esta categoria concentra-se na abstração doutrinaria e legal da pessoa, a qual elimina a objetividade de cada homem na sua singularidade, seus limites, forças, capacidade, inteligência e por outro lado concebe a coletividade dos homens como um grupo indiferenciado uns dos outros.

Segundo Michel Miaille apud Genro in Lima & Bello (2010, p. 163) é interessante perceber que

o fetichismo da norma e da pessoa unidos doravante sob o vocábulo único do Direito faz esquecer que a circulação, a troca, e as relações entre as pessoas são, na realidade, relações entre coisas, entre objetos que são os mesmos da produção e da circulação capitalistas. E, de fato, no mundo do Direito tudo parece passar-se entre pessoas: as que mandam e as que obedecem, as que possuem, as que trocam, as que dão, etc. Tudo parece ser objeto da decisão da vontade, numa palavra, de Razão. Jamais aparece a densidade de relações que não são queridas, de coisas as quais os homens estariam ligados, de estruturas constrangedoras, mas invisíveis.

Segundo Thamy Pogrebinschi in Lima & Bello (2010, pp. 169-189) no artigo "Liberdade + Igualdade = Emancipação" ao

extrair dos ensinamentos de Marx de que a emancipação humana significa a restituição aos homens de sua essência genérica. Isso deve ocorrer quando os homens tomarem consciência de que devem ensinar a si mesmos, guiar a si mesmos, determinar a si mesmos, governar a si mesmos, na busca da sua emancipação enquanto sujeito político histórico.

Dessa forma, afirma que o homem ao levar a cabo a sua própria emancipação, torna possível a emancipação do sujeito político real, o homem genérico. Este diz ele, emancipa a humanidade.

Para esse autor a emancipação política é uma forma limitada de emancipação, pois representa apenas um "modo", uma parte de emancipação humana, consiste apenas na última etapa desta. Diz o autor à emancipação política converte o direito publico em direto privado. A separação do homem em indivíduo e cidadão representa o modo político da emancipação. Defende o autor que:

Enquanto ainda for necessário aos homens reivindicar direitos em face do Estado, enquanto a democracia não puder ser concebida sem o reconhecimento destes direitos estatais, enquanto um Estado de direito ainda for necessário porque os homens não aprenderam a determinar-se e governar-se a si mesmos, enquanto tudo isso acontecer, enfim, não será possível fazer da emancipação política uma emancipação humana Pogrebinschi In Lima & Bello (2010, p. 177).

Nessa esteira de raciocínio Marx leciona que a e m a n c i p a ç ã o p o l í t i c a c o m o correspondente reconhecimento dos direitos do homem pelo Estado moderno tem o mesmo significado que o reconhecimento da escravidão pelo Estado antigo.

Defende o autor que a liberdade e a igualdade devem apresentar-se de forma simultânea, mas não idêntica e que devem calhar como pressupostos para a emancipação. Assim diz o autor: "é preciso que a liberdade e a igualdade se realizem, cada uma a seu modo, cada uma com as

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parcialidades e limitações que impõem uma a outra, para que então se conceba a emancipação" Pogrebinschi in Lima & Bello (2010, p. 184).

A liberdade é, portanto, nesse desiderato histórico, um sentimento dos homens que os orientam a se associarem e a organizarem-se polit icamente, para formar uma comunidade. Afirma o autor que o objetivo de Marx de reunir o homem e o cidadão não se realizará pela mera equiparação dos direitos do homem com os direitos do cidadão, ou da liberdade com a igualdade. Mas ao contrario afirma, "a união do homem com o cidadão se d á , e m M a r x , n a a f i r m a ç ã o d o Gattungswesen, do ser social , da humanidade genérica" idem Ob. Cit.

Nessa linha de raciocínio Marx apud Antonio José Avelãs Nunes in Lima & Bello (2010, p. 233) assim assevera: Marx mostra que a gênese histórica do capital, o que está por detrás da acumulação primitiva do capital "é a expropriação do produtor imediato, é a dissolução da propriedade fundada no trabalho pessoal de seu possuidor".

Ainda Marx quando faz uma crítica do Programa de Gotha discute as bases políticas para a transição histórica do sistema capitalista a uma sociedade coletivista, como assevera Nunes in Lima & Bello (2010, p. 242):

Numa fase superior da sociedade comunista, quando tiverem desaparecido a escravizante subordinação dos indivíduos à divisão do trabalho e, com ela a oposição entre trabalho intelectual e o trabalho manual, quando o trabalho não for somente um meio de viver, mas se tornar ele próprio a primeira necessidade vital; quando, com o desenvolvimento múltiplo dos indivíduos, as forças progressivas se tiverem desenvolvido também e todas as fontes de riqueza coletiva brotaram com abundancia, só então o horizonte l imitado do direito burguês poderá ser definitivamente ultrapassado e a sociedade poderá escrever nas suas bandeiras: De cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades.

Nessa linha de raciocínio já não existirá a

propriedade privada dos meios de produção, a propriedade burguesa expressão da produção e da apropriação dos produtos eivados de antagonismos de classes, da exploração de uma classe por outras. Não estará em discussão à mitigação do poder de apropriação dos produtos sociais, o que faz parte da análise é que por esta apropriação não permitirá subjugar a si o trabalho alheio. Portanto não está em apreciação a propriedade privada em geral, mas a propriedade privada dos mios de produção, bem como a apropriação privada do trabalho social alheio.

Para Friedrich Müller in Lima & Bello (2010, pp. 269-283) em artigo "Elementos para a renovação de um pensamento jurídico materialista: Constituição, Sociedade, Democracia", faz necessário um repensar na perspectiva teórica que aponte no caminho do desenvolvimento para a sociedade atual alargando a democracia, num determinado sentido que possa criar certas condições:

Uma vida digna na sociedade é – além da superação do sistema de espoliação – inimaginável sem direitos humanos e civis, sem pluralismo e liberdade democrática de oposição, em resumo: fora do Estado democrático de direito. Um pensamento jurídico e constitucional renovado, que transite por Marx e Engels e que para novas situações procure novas respostas deveria defender incondicionalmente a base democrática (exposta por ambos, mas não desenvolvida).

Está a dialogar com o que vem sendo tratado até aqui, vez que as contradições amparadas pelo sistema legal no escopo constitucional de cada Estado referendam as discrepâncias no atendimento a direitos elementares da pessoa humana. Não se limita esta análise ao direito liberal burguês, mas ao conjunto de possibilidades humanas apontada pelo desenvolvimento histórico em constante coalizão.

Nesse sentido para esse autor a verdadeira democracia precisa ser politicamente levada a sério, onde o povo possa ter participação ativa nas decisões da sociedade, onde o

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mesmo povo possa ser ordenado no sistema legal, e destinatário do que é enunciado.

Sustenta que a democracia é a forma de governo de inclusão, garantida a base da igualdade e de direitos humanos e civis realizados. Tendo assegurado a sua perspectiva formal e material atendidos. Diz o autor que "o pensamento constitucional materialista situa, como visto, o socialismo como objetivo político aspirado na práxis democrática" Müller in Lima & Bello(2010, p. 283). Nesse sentido a política democrática de cada Estado deverá ter como destinatário o povo, não apenas os elegíveis cidadãos, mas "todos os aqui viventes seres humanos".

O que se tem na prática são desafios no campo da teoria política, da filosofia, da sociologia, da economia, enfim no campo dos valores fundamentais da pessoa humana no sentido de garantir-lhe a dignidade. Não se pode conformar com a prolixidade principiológica do constitucionalismo moderno, se seus destinatários não são atendidos mater ia lmente por seus enunciados.

Não se pode também ficar apenas no anfiteatro das ideologias, mas dialogar com o contraditório no sentido de avançar na análise da realidade concreta e imprimir uma práxis que possa atender aos milhões de famintos, desempregados, desassistidos, desamparados, excluídos do mercado produtor de mercadorias desse sistema de desordem econômica, social e política.

Nas lições de Eros Roberto Grau in Lima & Bello (2010, pp. 369-379) no artigo "Ainda o Direito Posto e o Direito Pressuposto ou Marx, Sartre e Charles de Gaulle" leciona que o direito posto está no plano do ser, a realidade, o direito positivo, ao passo que o direito pressuposto se encontra no plano do dever ser, ou seja, nas relações jurídicas que tem a forma de contrato onde nela se refletem as relações econômicas, cujos conteúdos são determinados pelas próprias relações econômicas. Assim afirma:

A forma jurídica sendo imanente à infra estrutura, como pressuposto interior à sociedade civil, mas a transcendendo enquanto posta pelo Estado, como direito positivo – o posto e o pressuposto interagem no momento da produção das normas jurídicas pelo intérprete. Como, no entanto, em última instância nesse momento prevalecem os desígnios das classes dominantes, a transgressão do direito posto, tendo em vista a conservação do modo de produção social – transgressão que opera tanto para o bem [aí o direito alternativo], quanto para o mal – seguidamente conduz a danos às classes subalternas Grau in Lima & Bello (2010, p. 372).

Afirma ainda Eros Grau que na relação direto posto / direito pressuposto e da oposição entre constituição formal e a constituição material é determinante que haja a compreensão de que o direito é um espaço da luta de classes e a legalidade é o último instrumento de defesa das classes subalternas. Dessa forma "o direito constitui a única resposta racional possível à violência de toda a sociedade" Grau in Lima & Bello (2010, p. 379).

Desse modo a empreitada na arena do terreno jurídico deixa de ser apenas jurídico (stricto senso) ganhando contornos e dimensões de ordem política na práxis cotidiana, real, como trincheira decisória da perspectiva de futuro da humanidade. Como possibilidade de descortinar outro pacto civilizacional a partir do desenvolvimento de constructos teóricos, balizadores de intenções a serem realizadas no mundo do ser, materializadas. Contrapondo-se assim, ao formalismo do direito liberal do mundo dever ser, nem sempre realizável. ___________________________________

Referências________________________________

LIMA, Martônio Mont`Alverne Barreto e BELLO, Enzo. Direito e Marxixmo ; - Rio de Janeiro : Editora Lumen Juris, 2010;

MARX, Karl. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel /; tradução de Rubens Enderle e Leonardo de Deus ; supervisão e notas Marcelo Backes. – São Paulo : Boitempo, 2005.

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Ricardo Moreno**

O porto e a cidade do Salvador*

A baía e o porto

A magnífica posição da baía de Todos os Santos na costa brasileira sempre ofereceu enorme proporção na entrada e facilidade em ser demandada por navios de longo curso que dobravam o cabo de Horn ou da Boa Esperança, seja em relação aos ventos ou em relação às correntes oceânicas. Com 30 léguas de periferia, certamente a maior do Brasil em superfície, e também a maior em massa d'agua, permitindo navegação franca a 15 milhas, a rumo, encontrando sempre grandes profundidades, que diminuem com aproximação da terra ou ilhas do fundo da baía, ou na embocadura dos rios Paraguaçu e Sergi, devido os depósitos de vasa por eles transportados.

Porém a imensa baía não era o porto de Salvador, este se reduzia a um pequeno golfo natural,

Resumo

Apresenta alguns elementos constitutivos do porto colonial baiano, a baia e suas dificuldades de navegação, uma delimitação da area do porto, que corresponde ao espaço de maior atividade trapicheira, o Arsenal da Marinha, a Alfandega, o mercado de abastecimento. Discutindo fatores que contribuíram para a transormação do espaço portuário.

Palavras-Chaves: Porto, Salvador, Alfandega, Arsenal, Mercado.

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*Esse artigo é parte dos resultados da pesquisa desenvolvida no bojo dos Projeto Ilhéus e o Atlântico: Portos, Negócios e Cidades aprovado no Edital/ CNPq /CAPES N º 07/2011 e Modelo de gestión de Puertos e LaComunidad Portuaria em el àmbito atlàntico (siglo XIX e XX) (HAR-2010-17408). E foi apresentado no Congresso da ANPUH- BAHIA, realizado em Ilheus, 2011.

**Doutorando do Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF); Mestre em História – UFBa; Professor de História da África- UNEB/Campus II; Editor da Revista Dialética.

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frente ao Horst dominando a praia e sobre a qual se levantou o primeiro núcleo da cidade em meados do século XVI.

A sua entrada possui largura de seis milhas proximamente, sentido E-O, das quais apenas três de franca navegação aos navios maiores. Da ponta de Santo Antônio, seguindo até a de Montserrat cinco milhas que vão se alargando formando uma superfície de 20 milhas quadradas, com fundo de 12 a 49 metros.

De Montserrat até a ponta da Sapoca, seis milhas navegáveis, que se alargam ainda cinco a dez milhas, formando outra superfície de 45 milhas quadradas com fundos de 11 a 47 metros.

Da Sapoca tem-se navegação segura até a baía de Aratu, em uma extensão também de seis milhas. E desta, ao lado oposto da baía, no sentido E-O pode-se avaliar uma distancia de 19 milhas, e a superfície aquosa que diminui ao norte na extensão de seis milhas, sendo 14 milhas de distancia em relação ao lado oposto. Adiante esta zona diminui a superfície, sendo a área ocupada por ilhas e baixios. A presença de pedras mergulhadas torna a navegação mais difícil e praticada apenas nos canais, pelos vapores da companhia baiana de navegação, navegações de cabotagem e tráfego do porto. Também pertence à baía de Todos os Santos a superfície entre a costa ocidental da Itaparica e a terra firme, e a extensa baía de Aratu. As dimensões extremas se podem calcular, sendo 22 milhas da baía de Aratu à foz do Paraguaçu, na direção E-O, e 25 da ponte de Santo Antônio à foz do Rio Sergi, na direção NNO-SSE.

O porto comercial era parte da baía, e foi feito em frente, muito próximo a capital, por causa da sua enorme barra, e abertura que apresentava aos ventos de SE a SO, batido no inverno pelos ventos deste quadrante, e

algum tanto no verão pelos do NO com trovoadas, e por isso atrasava as condições de movimento de carga e descarga das embarcações de toda espécie e paquetes, comprometendo o desembarque de mercadorias, que muitas vezes demoravam-se dias sobre a água a espera de bom tempo, além do incomodo a passageiros expostos aos perigos ao desembarcar meio a grandes ressacas.

Alfandega

A construção da Alfândega foi determinada por Provisão Real entregue a Antônio Cardoso de Barros, e consistiu em uma das primeiras preocupações de Thomé de Souza.

"tendo que na dita Bahia a terra estiver assentada darei ordem que se faça huas casas para Alfândega perto do mar em lugar conveniente para despacho das partes e arrecadação do meu direito e vereis que oficiais ao presente são necessários para a dita Alfândega e dareis conta disso ao dito Thomé de Souza para ele com vosso parecer prover dos oficiais" (Provisão Real conferida a Antônio Cardoso de Barros, ordenando a construção da Alfândega. In: ACIOLI; AMARAL. Memórias históricas e políticas da Província da Bahia. Salvador: Imprensa Oficial da Bahia, 1919, p. 289)

Diferente do recomendava a Provisão Real, a Alfândega não foi construída próximo ao mar, e sim, era uma casa em taipa coberta de palha, localizada no sítio onde foram erguidos os muros da cidade fortaleza, na atual Praça Municipal, na banda norte desta, ao lado da Fazenda, e armazéns. O aumento das exportações de açúcar e de fumo, e o desenvolvimento do comércio, levaram Dom João de Lencastro a ordenar a construção de um novo edifício para a Alfândega, desta vez, próximo à ribeira da cidade, com contribuição dos comerciantes locais, conforme confirmou a Carta Régia redigida em Lisboa em 15 de dezembro de 1694:

"Havendo visto o que me escrevestes sobre a necessidade de que tem esta cidade de huma nova casa de Alfândega para recolhimento das fazendas

Brasil - Ricardo Moreno

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dos navios de frota, pelo máo citio que se acha a que hoje há o discommodo que tem os donos das fazendas em que lhe ficarem pela Praça, exposta à inclemência do tempo, por ser tão pequena esta casa que só servia de princípio desta conquista que a ella hião poucos navios, de que resultava não só demorar-se a descarga das embarcações mas também o despacho nas fazendas com grande detrimento de seus donos, parecendo conveniente o fabricar-se de novo huã casa que sirva de Alfândega na Ribeira dessa cidade, donde focaria utilíssima, assim para meu serviço como para descarga de navios e despachos das partes, sou servido resolver faça-se esta obra da Alfândega, não sendo no lugar que se tomou para a ribeira das naus; e porque o haver esta casa he em grande conveniência da mercancia me pareceo ordenar-vos que vejaes se os mercadores poderão concorrer para esta despesa persuadindo-os para a utilidade que isso tem. (LIVRO de Ordens Régias, 1702-1720. APB)

Inaugurada em 1700, a nova sede localizou-se na esquina da Rua das Portas da Ribeira com o Largo das Princesas, na Praça Visconde de Cairú, e atraiu para a estreita faixa de terra, entre a praia e a montanha, casas de negócio que visavam à aproximação com os navios que chegavam ao porto. Em 1743 a Casa da Alfândega desabou, vindo a ser reconstruída, e reinaugurada em julho de 1746, então uma edificação de três pisos, contando com o subsolo. Escapou ainda de ser destruída por um incêndio em novembro de 1848. Com o grande aumento das atividades de exportação e importação tornou-se necessário à construção de uma nova Alfândega, uma vez que as instalações existentes eram insuficientes. Uma das formas adotadas para superação da deficiência de armazéns oficiais era o alfandegamento de trapiches particulares, que consistiam em depósitos sob a fiscalização de funcionários da Alfândega Provincial, que registravam as entradas e saídas das mercadorias. Em 1824 foram alfandegados 24 trapiches e 13 armazéns privados de Salvador, e seus proprietários lucravam com isso, passando a cobrar preços mais elevados pelos serviços. O novo prédio da Alfândega foi construído ao

mar, com 8.410 m2. Dispostos em três pavimentos, um dos quais, inteiramente abobadado. A construção do edifício estava vinculada ao projeto de alargamento do aterro da cidade baixa, com a criação do Cais do Pedroso, e a retificação do Cais do arsenal da Marinha, obras que, além de desafogar o bairro comercial, visavam facilitar o acesso ao novo edifício e absorver as terras provenientes das obras na Montanha. As obras do aterro iniciaram em 1843, e as da Alfândega seis anos depois, um projeto do arquiteto André Przedowiski. O prédio foi concluído no ano de 1861, sendo que a entrega da ponte de atracação e outras obras complementares estenderam-se por mais dois anos. Em 1862 as obras atrasaram devido à falta de recursos, e também por conta de um embargo movido pelo trapicheiro Antônio Pedroso de Albuquerque, contrario a demolição de algumas de suas propriedades, previstas no projeto de urbanização da área em torno da Alfândega. A ponte de ferro contratada desde 1861, junto à fundição Jhon Watson, foi concluída em de dezembro de 1863, uma extensão de 400 pés e terminação triangular, que permitia receber simultaneamente, três navios. Possuía três guindastes fixos de capacidade três ton., e três guindastes móveis, de capacidade uma ton. Esta ponte não permitia receber navios com mais de 15 pés de calado, e anos mais tarde tornou-se obsoleta devido ao assoreamento de areias, e os serviços por ela prestados passaram a ser feitos em pequenas embarcações, que recebiam mercadorias dos navios e traziam para retirada de volumes em guindastes, daí ao armazém destinado.

A Alfândega nova foi à segunda obra realizada no estilo neoclássico em Salvador, a primeira foi o prédio da Associação Comercial, em 1816. Junto a Alfândega nova construiu-se o cais do Pedroso, um prolongamento do cais das Amarras,

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estendendo-se a faixa aterrada da praia.

Arsenal da Marinha

O Arsenal da Marinha da Bahia foi instalado em 1571 por Dom Francisco de Souza. Um estaleiro de construção que visava o aproveitamento das ricas florestas. A sua construção revela que a administração portuguesa era sensível às condições vantajosas apresentadas pelo porto. Além de atender as embarcações para reparos, desmanchos, etc. estava aparelhado para receber construir navios de longo curso. Esta atividade industrial proporcionou bons lucros à Coroa Portuguesa.

Longe de resumir suas atividades à construção naval (entenda-se produção, reparo e manutenção de navios militares e mercantes), esse arsenal abastecia de água os navios ancorados, recebia presos de toda espécie, recrutava marinheiros para a Armada, assim como operários para suas próprias atividades, embarcava artífices (carpinteiros, calafates etc.). Embarcações comerciais e militares frequentavam suas oficinas, e sua população era formada por homens livres, estrangeiros, forros e tantos escravos e escravas.

A posição geográfica e estratégica do Brasil em relação à rota da Índia e a grande disponibilidade de madeira de boa qualidade foram os ingredientes necessários para a instalação de estaleiros tanto para reparação em embarcações como para projeto e construção de vários outros. No mesmo estabelecimento do Arsenal, criou-se a repartição da Intendência da Marinha, em 1770. Em 1785, Dom Rodrigo José de Menezes instituiu ali o Celeiro Público, ou Tulhas.

Consta que em 1798 o Arsenal da Marinha possuía uma bacia de pequena superfície, que servia de abrigo para pequenas embarcações, e que junto a esta possuía para defesa duas baterias de extensão de 80 braças, aradas com 13 peças de ferro de

calibre 24, e 17 de calibre 18, contendo ainda pólvora, 1950 balas de 24, e 2550 de 18, além e178 granadas de mãos carregadas, e fornos de balas ardentes.

A ideia da extinção de alguns arsenais é atribuída à ascensão do Partido Liberal ao poder, em 1877. Os defensores da manutenção do arsenal baiano alegavam a preservação de pontos estratégicos de defesa das entradas em todo o território nacional, as vantagens de custos com a construção das embarcações quando realizadas por nacionais, e chegaram a realizar estudos visando à melhoria de desempenho destes. Na Bahia, tais estudos apontaram para a necessidade de relocação deste para a baia de Aratu.

Em cinco de janeiro de 1899, o Decreto 3.188 determinou a supressão dos arsenais de marinha estabelecidos nos Estados da Bahia e de Pernambuco, ordenando a alienação de todos os seus terrenos e prédios.

O mercado

O fornecimento de produtos de subsistencia deu outra função ao porto baiano. O Recôncavo transformou-se em grande abastecedor da cidade, e as embarcações de pequeno porte, como os saveiros, passaram a realizar este papel.

"Esta dupla função acarreta também dupla organização do espaço portuário. Ao longo da extensão de cais, construída especialmente para os grandes navios, há as "rampas" onde podem abortar os saveiros. São duas: a "Rampa do Mercado", logo ao lado da Praça Cairú e a de Água de Meninos, no final da Av. Frederico Pontes, ambas muito pitotrescas e ricas de côr local. Recebem uma multiplicidade de produtos agrícolas: farinha, frutas, legumes. Assim como o grande porto acarretou a instalação do grande comércio nas proximidades, o outro provocou o aparecimento de feiras ao ar livre, espécie de "feira grossista", aonde vem se abastecer os comerciantes de outras feiras, os proprietários de armazéns, vendas e barracas, os restaurantes e hotéis, vendedores ambulantes e donas de casa previdente"(SANTOS, Milton, org. Cidade do

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o Salvador. Salvador, Imprensa Oficial da Bahia, 1960, p.125. pg. 73)

Os fardos seguiam nas costas da estiva para os trapiches, armazéns e casas comerciais. Escravos, libertos e trabalhadores avulsos se espalhavam nas ruas da cidade baixa, espacialmente na zona portuária da cidade. Na feira de Água de Meninos os fregueses se multiplicavam em busca de frutas, verduras, legumes, farinha, que chegavacom os saveiros, que logo eram transportados por um carregador, ou por uma carroça, indo direto para a quitanda do comprador. No bairro comercial se destacaram, portanto, dois mercados municipais, o de Santa Bárbara e o de São João. A ampliação do porto e a criação de um novo centro de abastecimento somente foram realizadas no inicio do século XX. Em 1906, o Governo aprovou os estudos definitivos das obras do Porto, com exceção das modificações relativas à Doca do Mercado, que poderia ser transferida para a área do ex- Arsenal de Marinha. O Ministro Miguel Calmon exigiu então da Cia Docas e Melhoramentos da Bahia a construção, não apenas do Mercado Modelo, bem como do prédio dos Correios.

"A construção do Mercado Modelo foi concluída no final de 1912. Tratava-se de um edifício retangular, medindo aproximadamente 40x60 metros, envolvido por marquises. Estrutura metálica, importada, com cobertura, constituída por três telhados superpostos, de modo a permitir boa ventilação e iluminações naturais, este edifício foi, provavelmente, o primeiro edifício inteiramente metálico montado na Bahia." (AZEVEDO, p 50)

O novo Mercado logo se transformou num dos mais impor tantes cent ros de abastecimento da cidade. Não havia muitos outros na época. Além do Mercado Modelo e de Água de Meninos, os maiores, podia-se optar pelos mercados das Sete Portas, do Ouro, Popular, de São Miguel (na baixa dos sapateiros), pela Feira do Cortume ou outras menores, de bairro, como a da Barra, a do Porto da Lenha, no Bomfim, e a da Ribeira. Com exceção dos mercados das Sete Portas e São Miguel, os demais tinham em comum o abastecimento pelo mar. Os saveiros, que

vinham do Recôncavo, abarrotados de farinha, cereais, carne seca, peixe, mariscos, frutas e verduras, voltavam para as suas cidades de origem carregando outros produtos. O Mercado comercializava a grosso e a varejo, a variedade de produtos era enorme. Havia também muitos serviços em seu interior, especialmente restaurantes e bares. Segundo um adágio popular "se entrava no mercado nu e saía comido e vestido".

Considerações finais

A ideia de melhorar este porto existiu desde os tempos coloniais, visando facilitar o desembarque de cargas para realiza-lo o mais perto possível da baía, uma vez que em períodos de temporais, as fortes vagas e rajadas de vento, forçavam as embarcações a arribarem da ponta de Montserrat para diversos pontos do interior, pelos rios Cotegipe e Itapagipe.

Coube ao Conde dos Arcos, a elaboração do primeiro plano de intervenção visando à melhoria das condições do porto, em 1816. A abertura de um canal, a fim de comunicar o braço de mar de Itapagipe, denominado Papagaio, com o porto, saindo em Jequitaia. Algo que lhe fora sugerido por Antonio Vaz de Carvalho, proprietário do Engenho Conceição, que intencionava levar seus produtos à cidade com mais facilidade. Foi o primeiro de muitos outros projetos que não fora realizado. Esta primeira tentativa de modernizar o porto de Salvador visava distinguir áreas de atracação para embarcações que serviam ao comercio costeiro, da navegação de longo curso. O plano do Conde dos arcos não se concretizou, e em 1845 voltou a ser discutido em uma versão ampliada, iniciando a abertura de um canal e assentamento de alicerces, mas ao final do mandato do Presidente da Província, o Engenheiro Militar Francisco José de Souza Soares Andrea, em 1847, foi interrompido.

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No Ano de 1854, o comerciante João Gonçalves Ferreira, encaminhou diversas petições solicitando ao Governo Imperial, autorização para alargar a zona comercial e construção de canais que facilitassem a navegação. Jamais foi atendido. Outras petições se sucederam em 1866 a Wilson Het e Cia queria permissão para construir uma doca; em 1869 um grupo de grandes comerciantes reivindicava a construção de docas e armazéns no porto; em 1871, os herdeiros de João Gonçalves Ferreira conseguiram consentimento para construção de docas, no entanto, no ano seguinte foi criada, em Londres a Bahia Docks Company Limited, que reformulou e ampliou o plano dos irmãos Ferreira. Em 1887 o governo declarou caduca a concessão da Companhia, sem que nada houvesse sido realizado. Entre os anos de 1871 a 1887, vários comerciantes encaminharam propostas vinculadas ao plano dos irmãos Ferreira, todas recusadas pelo Governo. Em janeiro de 1891 foi feita uma concessão ao Engenheiro Frederico Merei, e Augusto Candido Harache. Concessão que depois foi transferida para a Companhia de Docas e Melhoramentos da Bahia, que passou a denominar-se Companhia Internacional de docas e Melhoramentos do Brasil, e posteriormente Companhia Concessionária de Docas do Porto da Bahia. As obras inauguradas em 1891 somente foram iniciadas em 1906. A modernização do porto (1906 – 1930), juntamente com a ampliação do bairro comercial e, a abertura da Avenida Sete de Setembro, na cidade alta (1912 – 1916), foi determinante para a remodelação da cidade do Salvador. Mas a resistência à modernização do porto deu-se pela ação dos trapicheiros, que lucravam com o controle do armazenamento precário das mercadorias, e se constituíram em um grupo de pressão de mentalidade conservadora.

As obras somente se iniciaram, de fato, em 1908, mas a lentidão da sua execução e a taxa de 2% ouro sobre o comercio, revertido para a Companhia Concessionária de Docas do Porto da Bahia, eram acusadas de práticas extorsivas.

A inauguração de 400 metros de Cais, quatro armazéns, dos quais apenas dois pareciam funcionar, como sendo a primeira etapa das obras em 1913, frustrou a expectativa dos baianos, e os comerciantes passaram a reivindicar o fim da cobrança de taxas de carga e descarga de mercadorias por todo o trecho inadequado do novo porto.___________________________________

Referências________________________________

ACIOLI, e Amaral. Memórias Históricas e Políticas da Província da Bahia. Salvador, Imprensa oficial da Bahia, 1919.

CAMARA, Antonio Alves. A Bahia de Todos os Santos – Com relação ao melhoramento de seu porto. Rio de Janeiro, Typographia Leuzinger, 1911.

MATTOSO, Katia M. de Queirós. Bahia: a cidade do Salvador e seu mercado no século XIX. Secretaria de Educação e cultura do Estado da Bahia, Salvador, 1978.

RIBEIRO, Jayme Augusto. Da euforia à desilusão:Discurso sobre a modernização do porto de Salvador 1904 – 1914.UCSal, 1999. Monografia.

ROSADO, Rita. O Porto de Salvador – Modernização em projeto 1854/1891. (Dissertação de Mestrado). UFBa, 1983.

SANTOS, Flávio Gonçalves dos. Economia e cultura do candomblé na Bahia: o comércio de objetos litúrgicos afro-brsileiros 1850 / 1937. Tese (Doutorado) – Universidade Federal Fluminense, Departamento de História, 2007.

SANTOS, Milton. O Centro da Cidade do Salvador. Salvador, Imprensa Oficial da Bahia, 1960., 2005.

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Flávio Gonçalves dos Santos*

O porto de Salvador e a dinâmica comercial 1e social da cidade

Introdução

Esse artigo traça um panorama da economia brasileira e baiana na segunda metade do século XIX e analisa a dinâmica comercial e social da cidade de Salvador a partir de seu movimento portuário.

A escolha da cidade de Salvador deu-se por ser um importante porto de entrada e saída de mercadorias do país e por nela se encontrar laços e traços africanos que ainda sobrevivem de forma vigorosa. Já o marco cronológico justifica-se a partir da idéia de que uma vez findado o tráfico de escravos, o porto de Salvador sofreu um impacto na movimentação de seus negócios. Além disso, marca o período por assim dizer, de paulatina substituição dos navios a vela por

Resumo

Esse artigo se propõe analisar a dinâmica comercial e social da cidade de Salvador a partir de seu movimento portuário na segunda metade do século XIX. O caminho escolhido foi situar Salvador como um espaço privilegiado, onde as opções políticas e econômicas das elites baianas se fizeram sentir de modo mais profundo, pois ela foi e ainda é o centro político e econômico da Bahia.

Palavras-Chaves: História, Porto, Comércio, Cidade

25Revista Dialética, v. 4, n. 4, Março 2013

1Esse artigo é parte dos resultados da pesquisa desenvolvida no bojo dos Projeto Ilhéus e o tlântico: Portos, Negócios e Cidades aprovado no Edital/ CNPq /CAPES N º 07/2011 e Modelo de gestión de Puertos e LaComunidad Portuaria em el àmbito atlàntico (siglo XIX e XX) (HAR-2010-17408).

*Professor Adjunto da Universidade Estadual de Santa Cruz, Universidade Estadual de Santa Cruz, Departamento de Filosofia e Ciências Humanas Rodovia Ilhéus/Itabuna, Km, 16 - Campus Soane Nazaré de Andrade, Salobrinho - 45662-000 - Ilhéus, BA – Brasil, 55 73 3680-50140 / 55 73 9994-1072; [email protected]

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embarcações movidas a vapor, que mudaram de modo significativo a dinâmica dos portos.

O objetivo perseguido neste texto é o de fazer um balanço das condições de vida e saúde da população soteropolitana, importante para compreender como essas condições estavam diretamente ligadas à vida econômica da Cidade de Salvador e, conseqüentemente, da Bahia como um todo.

A C i d a d e : c e n á r i o s , d r a m a s e personagens

O ano de 1850 já se encaminhava para o seu termo. O movimento do porto ainda se

3adaptava à Lei nº. 581 de 04 de setembro. E n t r e s o b r e s s a l t o s , p r o t e s t o s e especulações sobre a nova lei, a comunidade portuária esperava o desfecho dos acontecimentos, para se certificar se essa não era mais uma das leis “feitas para inglês ver”. Afinal, desde 1815 que se vinha assistindo às inúteis tentativas britânicas de acabar com o tráfico de escravos entre a

4Costa da África e o Brasil.

O clima de tensão e incerteza lançado sobre o comércio com a Costa Africana, desde 1831, tornara as viagens mais perigosas, porém esses mesmos riscos tornavam a

5empreitada muito mais lucrativa. Com a Lei de Eusébio de Queiroz talvez não fosse diferente. Entretanto, havia algo de novo. A Marinha Britânica estava cada vez mais audaciosa, já se arvorava a patrulhar e capturar embarcações suspeitas de tráfico de escravos, até mesmo em águas brasileiras. Uma verdadeira afronta à soberania nacional. A esquadra inglesa, amparada pelo Bill Aberdeen, aprisionava e conduzia para julgamento, em tribunais do Almirantado e Vice-Almirantado inglês, embarcações brasileiras que estivessem

6praticando o comércio de escravos.

Movidos a vapor os cruzadores britânicos, cada vez mais ousados e eficientes, pressionavam os traficantes de escravos na

Bahia e no Rio de Janeiro. O governo imperial protestava, para uma, cada vez mais indiferente, diplomacia inglesa. A Lei Eusébio de Queiroz foi promulgada, então, com o intuito de fazer cessar, depois de quase 35 anos de adiamentos, o tráfico de escravos da Costa da África para o Brasil.

Após alguns parcos desembarques de africanos em pontos afastados dos principais portos brasileiros, o “tráfico culpado” cedeu lugar ao “comércio inocente” de azeite de dendê, palha da costa, sabão da

7costa e outros gêneros.

O porto de Salvador, que até então supria satisfatoriamente as necessidades da economia local, ia gradualmente se tornando obsoleto para atender à crescente frota de

8navio a vapor que chegava à cidade.

Os vapores seriam também os responsáveis pela modificação das feições urbanas da capital, alterando a topografia da Cidade Baixa, a partir da ampliação e modernização da região portuária. Aterros foram feitos com o objetivo de ampliar a profundidade do ancoradouro, para permitir a atracação de embarcações de maior calado que os navios à vela, como os Brigues, Galeotas, Galeões

9e Saveiros, que operavam no antigo porto.

O fluxo de embarcações de longo curso, que c o m e ç a v a a a u m e n t a r , e r a predominantemente oriundo, desde os meados do século XIX, dos portos ingleses e alemães. Liverpool e Hamburgo figuram

10entre os principais, porém, também, era considerável o comércio entre a Bahia e a

11Região Platina. À medida que o final do século XIX se aproximou, mais raras foram as embarcações com dest ino ou procedência dos portos africanos ou da genérica Costa da África.

A topografia, por demais acidentada, dificultava o transporte das mercadorias que chegavam ao porto. As íngremes e compridas ladeiras, que ligavam a parte alta à parte baixa da cidade, estavam sempre em

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condições precárias e eram vencidas com grandes esforços e prejuízos. As cargas eram trazidas e levadas no lombo dos escravos que, ao enfrentarem as ladeiras, exauriam suas forças e deixavam cair os pacotes, quando não rolavam ladeira abaixo com carga e tudo.

As ruas eram estreitas, mal iluminadas à noite e cheias de dejetos. Basicamente, a cidade de Salvador do século XIX era ainda uma cidade de aspecto colonial. Foi neste cenário que em 1850 a população soteropolitana presenciou uma epidemia de febre amarela. Este surto epidêmico determinaria o aumento da animosidade em relação à presença de embarcações ligadas ao tráfico negreiro. As pessoas viram nos tumbeiros, potenciais agentes difusores de epidemias por causa de suas péssimas condições de higiene que no geral apresentavam, e pelos freqüentes contatos com o continente africano, que na época era

12considerado um lugar inóspito e doentio.

Os surtos epidêmicos do século XIX atingiram a população soteropolitana em dois pontos essenciais. O primeiro, no abastecimento de gêneros alimentícios e, por conseguinte, no fluxo comercial. O segundo, na questão da saúde pública e do atendimento médico precário, mesmo para os padrões da época.

Por outro lado, as epidemias assinalaram, também, a necessidade de promover obras de saneamento em toda a cidade, mas principalmente na região portuária. Segundo Rita Rosado, as primeiras reivindicações dos comerciantes baianos de melhorias das instalações do porto datam de 1854. Eles queriam equipar o porto com instalações mais modernas, de modo a facilitar o p r o c e s s o d e a n c o r a g e m e

13armazenamento.

Porém, as obras não foram imediatas como esperado. Elas se deram em pelo menos três etapas, sendo que, de fato, as obras só se iniciaram no ano de 1906, depois de um

longo período de espera. Segundo a cronologia de Rosado, a primeira etapa começou com as reivindicações de 1854. Ela chegaria a seu termo em 1891 quando “a Companhia Docas e Melhoramentos da Bahia colocou oficialmente, no Cais das Amarras, o marco simbólico que daria início

14às obras”. A segunda fase, que se iniciou em 1891, foi também de espera, em vista dos freqüentes adiamentos que retardaram as obras até 1906. Uma vez iniciadas as obras no porto, elas levariam pelo menos mais sete anos até a inauguração dos armazéns e dos 360 metros de cais. A última etapa foi a de conclusão das obras de melhorias do porto.

15Concluídas definitivamente em 1922.

As questões em torno da modernização portuária diziam respeito à dinâmica comercial da Cidade, mas também estavam envoltas por outras preocupações, que afligiam o comércio, as autoridades públicas e os círculos de letrados da cidade.

O porto era, então, além de porta de entrada de muitas mercadorias, entrada de graves enfermidades através da circulação de marinheiros de navios nacionais e estrangeiros, decorrente, principalmente, das péssimas condições de salubridade das embarcações [...] A cidade estava, assim, continuamente exposta às moléstias pelo constante movimento do porto, ao tempo em que não possuía infra-estrutura para receber os muitos marinheiros contaminados por todo tipo de doença [...].

O comércio e seus agentes

Salvador quase sempre acordava da mesma forma. O sol nem bem havia raiado e o movimento dos saveiros já era intenso na rampa do Mercado Modelo e na feira de Água de Meninos. Eles traziam toda sorte de gêneros do Recôncavo. De farinha de mandioca e carne seca, bases da alimentação popular no século XIX, a gêneros manufaturados trazidos da Europa pelos navios que ficavam fundeados na Baia de Todos os Santos, impossibilitados de

17atracar no porto.

Das rampas do Mercado e de Água de

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Meninos, os fardos tomavam seu rumo nas costas do pessoal da estiva, em direção aos trapiches, armazéns e daí para as mãos dos comerciantes. Esse ritmo diário, intenso e frenético punha a cidade em movimento.

Os escravos, os libertos e mais tarde os trabalhadores avulsos se espalhavam, ao longo das ruas do Bairro Comercial, notadamente as freguesias de Nossa Senhora da Conceição da Praia e Nossa Senhora do Pilar, zona portuária de Salvador. Lá, em seus cantos de trabalho, sob a direção de um capitão, esperavam os clientes que necessitavam dos seus serviços de carregadores. Eles colocavam em movimento a rede de transporte de carga que fazia a cidade e o comércio

18funcionarem. Se eles, trabalhadores de ganho, estavam impedidos de descarregar as mercadorias fiscalizadas pela alfândega, não lhes faltava serviço com a navegação de cabotagem e com o transporte das bagagens dos passageiros que chegavam a

19Salvador.

Entre uma empreitada e outra, nos momentos em que a fome apertava, havia sempre, nas imediações, alguma vendeira com o seu tabuleiro a oferecer, a quem passava frutas, mingaus, efós, carurus, mocotós, acarajés, acaçás. Comidas que davam sustância para aqueles que estavam na lida desde antes do sol nascer.

À medida que os anos foram passando, na transição do século XIX para o século XX, alguns personagens vão desaparecendo e dando lugar a outros. Os africanos cedem seu lugar de destaque nos cantos de trabalho para os afro-brasileiros vindos de ou t ras c idades da p rov ínc ia , os carregadores braçais vão lentamente se

20transformando em carroceiros. Mas outros personagens continuavam os mesmos. Os vendedores ambulantes continuaram, e continuam ainda hoje, com seus bolos, mingaus, cafezinhos, canjicas, mungunzás e até comidas mais pesadas, saciando a fome dos trabalhadores da madrugada. A cidade

conservaria a sua maneira de despertar.O sol ia esquentando e o movimento da rua aumentando, as casas de comércio iam abrindo as suas portas. Os funcionários das lojas recebiam dos carregadores os fardos que reporiam seus estoques. A Feira de Água de Meninos, em intensa atividade desde a madrugada, afluíam os primeiros fregueses em busca de frutas, legumes, verduras e frescos, da farinha recém-chegada do Recôncavo nos saveiros. Ainda nem bem foram descarregados, alguns fardos logo voltavam às costas de um carregador ou eram depositados em uma carroça, para serem transportados à quitanda de seu comprador.

Era esse pulsar do comércio que fazia a Cidade de Salvador viver.

De alto a baixo da escala social, homens, mulheres exerciam algum tipo de comércio [...] Eram um conjunto que só tinha em comum a essência da atividade que lhes garantia a subsistência – a compra e a venda -, e extremamente díspar no tipo,

21volume e nível de negócios praticados.

Na base da pirâmide social e comercial encontravam-se os vendedores ambulantes ou de tabuleiro, chamados assim por que viviam a percorrer as ruas da cidade com seus tabuleiros, não tendo ponto estabelecido, mas nem por isso eram isentos das taxações da Municipalidade. Durante a escravidão muitos cativos se dedicaram a essa modalidade de comércio, pela autonomia e mobilidade que adquiriam frente aos seus senhores, bem como pela maior possibilidade de acumular o suficiente para comprarem suas alforrias. Passada a escravidão, essa ainda era uma atividade predominantemente de afro-brasileiro, pois garantia grande autonomia.

Esses trabalhadores de rua viviam em íntima relação com a dinâmica da cidade. Nada escapava aos seus olhos e principalmente aos seus ouvidos atentos. Eles eram entre outros os que contavam, de boca-em-boca, as novidades que se passavam na cidade. Prática que em Salvador, ainda nos dias

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As relações desses vendedores ambulantes com o poder público e a imprensa sempre foram tensas. Embora eles prestassem um serviço fundamental à cidade, não raro eram vítimas de acusações de falta de higiene, adulteração de pesos e medidas e de desordens públicas. As elites os viam perambulando pela rua com os olhos de quem enxergava o atraso e a barbárie.

Por outro lado, “um ato municipal, datado de 1914, que, visando a sanar a crise de abastecimento por que passava a cidade, dispensou provisoriamente de taxas e impostos as ganhadeiras e os ambulantes

22em geral”. Essa medida da Intendência demonstra o quanto era importante para Salvador esse pequeno comércio a ponto de ser liberado das taxas e dos impostos como forma de estimular o seu desenvolvimento e conter mais uma crise de abastecimento pela qual a cidade passava. Isso se entende melhor quando se descobre que o preço pago por uma refeição era mais barato que

23uma folha de papel para embrulhá-la.

Ferreira Filho aponta dois elementos que permitem a compreensão dos baixos custos dos produtos comercializados nas ruas de Salvador. O primeiro seria a “utilização de matéria-prima regional, abundante e

24barata”. O segundo elemento, seria a pouca valorização do trabalho feminino, entendendo que as técnicas e habilidades e m p r e g a d a s p a r a p r o d u ç ã o d a s mercadorias não eram razões palpáveis para elevação dos preços. Essa constatação leva a um outro ponto de bastante significado e é o cerne do trabalho de Ferreira Filho: a predominância feminina do pequeno comércio em Salvador.

Esse é um dado interessante na medida em que nos permite estabelecer paralelos entre as experiências das mulheres no comércio de Salvador, com a experiência das mulheres no comércio na Costa Ocidental da África, a partir da análise feita por Roger Bastide e Pierre Verger dos mercados do Baixo Benin. Segundo esse estudo, o ofício

de mercadejar é próprio da tradição local e, sobretudo, uma função predominantemente

25feminina.

Pois todas as mulheres são “comerciantes” e deixam seus lares, principalmente quando jovens, para percorrer as feiras, e, quando idosas, mandam alguma filha em seu lugar e permanecem próximas de casa, vendendo nas ruas, com seu tabuleiro, produtos que variam com a estação ou, então, montando seu negócio numa venda em

26 frente à própria casa.

Uma característica muito particular do tipo de comércio analisado por esses dois autores em meados do século XX é o seu caráter rotativo. A atividade de comerciante conferia às mulheres certa autonomia em relação aos homens, bem como lhes possibilitava a circulação por várias comunidades, criando ou fortalecendo laço identitários e de solidariedade. Assim, a tradição de autonomia das mulheres que se dedicavam ao pequeno comércio dos mais variados gêneros é algo característico dos rearranjos encontrados no Brasil, e particularmente na Bahia, da forma como homens e mulheres buscavam sua sobrevivência e, reflete a adoção e a adaptação de práticas sociais que remetem ou têm paralelo com soluções encontradas em regiões do continente a f r i c a n o , i n t i m a m e n t e l i g a d a s à ancestralidade afro-brasileira.

Outro aspecto preponderante para essas considerações encontra-se na vinculação de determinados ramos do pequeno comércio com os orixás. Isso não é por certo uma novidade, entretanto, falta ainda um estudo mais detalhado desse fenômeno e suas explicações e implicações religiosas. Na tradição religiosa do candomblé na Bahia, a cada orixá é consagrado um ramo comercial que, invariavelmente, está associado à comida ritual que lhe é atribuída. Assim, as filhas de Omolu deveriam vender sarapatel, moqueca, xinxins etc; as de Oxalá venderiam acaçás, mungunzá, cuscuz etc;

27as de Xangô, acarajé, caruru etc.

Essa estreita vinculação entre os adeptos do candomblé da Bahia com certos ramos de

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comércio pode tanto ser entendida como um elemento interno à própria estruturação da religião, quanto pode ser um fator externo que foi absorvido e integrado à dinâmica religiosa através de sua ritualização. O fato é que, sendo um elemento interno ou externo ao candomblé, a atividade do comércio encontra suas raízes culturais no continente africano. Outro fator importante é que a consagração a alguns orixás tinha como parte do processo de iniciação a dedicação a determinadas atividades comerciais. O próprio exercício das obrigações religiosas vinculava o culto ao orixá às atividades que garantiam a sobrevivência e a autonomia dos adeptos.

O tipo de comércio desses vendedores ambulantes era bem diverso, mas pode-se dizer que um número significativo de ambulantes se dedicava ao comércio de frutas, verduras, legumes e um variado número de iguarias culinárias. Esse era um comércio de pequena dimensão. Um comércio como se diz em Salvador, “a retalho”.

O comércio a retalho se dava com o fracionamento da mercadoria à sua menor unidade de valor possível, deste modo, o produto, embora mantenha o seu preço no total, permite a compradores mais modestos o acesso ao gênero que estão procurando. Por exemplo, a farinha que poderia ser vendida por quilo, nas mãos de um retalhista era vendida por litro ou por cuia. Essas unidades de medida consuetudinária ao comércio soteropolitano facilitavam tanto no fracionamento da mercadoria, quanto no transporte do equipamento de medição, afinal é mais fácil transportar um litro ou uma cuia do que uma balança.

Aqueles que não podiam ou não queriam sair de rua em rua oferecendo suas mercadorias optavam por abrir uma quitanda. As quitandas “eram montadas, geralmente, na sala, corredor ou quarto da frente da casa do proprietário. Nelas encontravam-se à venda temperos, hortaliças e outros produtos de

cozinha, como carvão, lenha, panelas e porrões de barro”.28

O quitandeiro era um comerciante estabelecido em um ponto e se dedicava a um comércio muito similar ao do vendedor ambulante. A diferença era que ele não ia mais em busca dos fregueses, os fregueses é que vinham a sua procura. Distintos dos vendedores ambulantes, os quitandeiros passavam pelas mesmas limitações e vicissitudes. Eles se distinguiam pouco uns dos outros em termos de operações comercias. O comércio retalhista marcava, também, o perfil das relações comerciais adotadas por esses comerciantes, bem como o fiado. Vender fiado, ou melhor, a crédito, não era uma prática exclusiva dos ambulantes e quitandeiros. Era uma prática institucionalizada em todos os níveis de negócios na Bahia.

A compra de qualquer bem comercializável podia ser efetuada com ativos como moeda metálica ou papel-moeda, títulos de fundos públicos, ações de companhias e todos os papéis de crédito comercial. Além disso, tudo que pudesse ser comprado ou vendido podia ser trocado, sem a intervenção de qualquer meio de pagamento: as mercadorias trocadas serviam de preço e compensação recíprocos.

Na Bahia, o que contava nas transações comerciais era a palavra, que “valia ouro”.

A economia da cidade era abalada pela escassez de moedas, que limitava o mercado consumidor impedindo ampliação do volume de negócios. Por esse motivo os lucros deveriam ser altos e em curto prazo. Por outro lado, era necessário facilitar as linhas de crédito, sob pena de que regras m a i s r i g o r o s a s d e p a g a m e n t o inviabilizassem, substancialmente, as transações comerciais. Curiosamente, a Cidade de Salvador era uma praça onde todos comerciavam, mas poucos de fato tinham dinheiro. Esse fenômeno se evidencia de modo particular em um dos dizeres mais comuns da cidade, qual seja: mais vale um amigo na praça que dinheiro na caixa.

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A partir desse dizer popular, podemos inferir que a base das relações comerciais em Salvador estava alicerçada em uma profunda noção de confiança e do estabelecimento de sólidas noções de reciprocidade. Elementos típicos, aliás, de sociedades profundamente marcadas por relações de subordinação pessoal e clientelismo. Esse tipo de relacionamento, embora presente também no comércio ambulante, era mais visível e acentuado no comércio de médio e grande porte. Essa relação é tanto mais visível quando se analisa o processo de estabelecimento dos

30lojistas em Salvador.

Pierre Verger sugere que esse ramo comercial, por volta de 1850, era dominado por portugueses que iniciavam suas carreiras no comércio ambulante da cidade até acumularem pecúlio suficiente para se estabelecerem como lojistas de secos e

31molhados. A diferença entre esses ambulantes que se alçavam a lojistas está precisamente nos laços de parentesco e sol idariedade que mantinham com comerciantes já estabelecidos no ramo a que se dedicavam. De acordo com Thales de Azevedo, para manter a estrutura comercial, “o grupo renovava-se continuamente com a i m i g r a ç ã o d e j o v e n s d a m e s m a nacional idade, os quais começam trabalhando em posições modestas e terminam por constituir novas firmas ou por

32integrar as antigas”.

A afirmação de Azevedo, embora se refira à a n á l i s e d o c o m p o r t a m e n t o d o s comerciantes espanhóis na Bahia de meados do século XX, também é válida para realidades anteriores e para outras colônias de imigrantes que se dedicavam aos mais variados ramos comerciais. Essa prática tanto foi apontada por Matoso para o século XIX, quanto ainda sobrevive na Bahia dos dias atuais.

Relação diferente, contudo, se estabeleceu com os grandes negociantes da Bahia, já que a forma de recrutamento de novos

membros para renovação do grupo se dava pelos casamentos. Mui tos desses negociantes eram herdeiros de tradições da aristocracia da terra e os casamentos se davam mais por interesses e arranjos do que por qualquer outro motivo. A ascensão do pequeno ou médio comerciante, ao status de grande negociante implicava, mais uma vez, a contração de uma série de vínculos e obrigações deste com aquele indivíduo ou família que o apadrinhava.

O comércio impulsionava todos os demais ramos de atividade em Salvador. Desde o pequeno comércio ambulante até o grande atacadista, todos dependiam do movimento portuário para o afluxo de capitais e mercadorias. Entretanto, não se deve tomar o comércio como se fosse uma coisa homogênea.

O movimento portuário de Salvador: valores, cargas e produtos

A posição comercial dos negociantes baianos entre o final do século XIX e início do XX era bastante precária. Matoso afirma que a relação que se estabelecia entre esses homens de negócios era caracterizada como um oligopsônio, isto é, uma relação onde havia muitos vendedores para poucos compradores.

Isso revela as especificidades inerentes à atividade comercial. A primeira delas é quanto à sua divisão e ordem de importância. O comércio pode ser dividido em comércio de atacado e varejo; pode ser definido como de importação e exportação sem que necessariamente esteja se falando de relações comerciais conflituosas. Elas, na verdade, são complementares entre si, em uma longa cadeia de operações entre os diversos agentes comerciais desde a produção até as mãos do consumidor final.

Segundo uma definição do século XIX, o comércio está dividido em Comércio Exterior e Comércio Interior. O Comércio Interior é o que se estabelece entre as praças

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comerciais de um mesmo país e pode ser efetuado por via marítima, fluvial, terrestre. Já o Comércio exterior se desenvolve entre o país e as nações estrangeiras na troca de produtos in natura ou manufaturados e se dá pelas mesmas vias que o Comércio Interior a

33depender da geografia.

No caso especifico deste trabalho, a atenção será conferida ao Comércio Marítimo. Era ele que impulsionava a economia e a sociedade soteropolitana e era fiscalizado de muito perto pelas agências estatais, tanto em âmbito local como nacional. A razão de tal vigilância reside no fato de ser essa atividade uma das principais fontes de arrecadação de imposto por parte do Estado.

O Comércio Marítimo, por sua vez, estava dividido em de Longo Curso, de Cabotagem e Costeiro ou Pequena Cabotagem. O Comércio de Longo Curso se realiza por mar entre países de diferentes nacionalidades ou entre regiões de mesma nacionalidade, desde que situados em diversas divisões geográficas do globo terrestre. O Comércio de Cabotagem, por sua vez, se dá por mar entre províncias ou estados de um mesmo país que trocam entre si produtos in natura ou indus t r i a l i zados nac iona is ou estrangeiros. Já o comércio costeiro – ou pequena cabotagem – é o que se realiza por mar ligando as diversas praças comerciais de uma mesma província ou estado, diferindo da cabotagem por se circunscrever

34aos limites desta província ou estado.

A pequena cabotagem

Se a grande cabotagem representa o comércio entre distintas regiões de um país, a navegação costeira, ou pequena cabotagem, representa o comércio entre os distintos portos de uma mesma região. Assim se dava o comércio costeiro da Bahia entre o porto de Salvador e os portos de Santo Amaro, Cachoeira, Nazaré, Itaparica, Valença, Camamú, Ilhéus, Porto Seguro e Caravelas.

Em termos de mercadorias esses portos, em sua maioria, escoaram em diferentes contextos, produtos de variada importância para a economia baiana. Até a primeira metade do século XIX saíam desses portos, principalmente, carregamentos de farinha de mandioca e madeiras. Entretanto, à medida. que o século XIX foi avançando, outros produtos foram introduzidos nestas regiões. A borracha, o cacau, o café e o fumo, no caso do Recôncavo, foram assumindo maior relevo nas atividades comerciais desses portos, sem que as culturas de mandioca, no caso do Sul e extremo Sul baiano, e da cana-de-açúcar deixassem de ser exploradas.

A grande cabotagem

Entre os anos de 1871 e 1872, por exemplo, na exportação de produtos pela grande cabo tagem, a Bah ia mov imentou 1.007:235$161 com o Rio de Janeiro. Deste montante, 572:190$702 estavam vinculados à venda de fumo e seus derivados. O segundo lugar na pauta de exportação baiana para a capital do Império movimentou a cifra de 148:972$599 e estava relacionado ao comércio de couro em cabelo, ou seja couro não curtido. Os outros produtos mais destacados que compuseram a pauta de exportação da Bahia para o Rio de Janeiro eram o açúcar, o algodão e o café que movimentavam valores muito abaixo dos

35100:000$000.

No movimento de importação de produtos da capital do Império o fluxo de 1871-1872 foi de 527:154$211. Deste valor, curiosamente, 221:754$008 estavam vinculados ao comércio de fumo e seus preparados. O segundo produto da pauta de exportação, movimentando 71:726$755 eram legumes. Assim, percebe-se que, no comércio com o Rio de Janeiro, a balança comercial era favorável à Bahia. Na comercialização de um só produto, o fumo, essa balança encontrava o seu equilíbrio.

Entretanto, esse desempenho não é mantido para o comércio com outras províncias,

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como se pode notar a partir das cifras totais do comércio de cabotagem. O valor total registrado entre 1871-1872 da exportação baiana para outras províncias foi de 3.198:900$442, ao passo que o valor total das importações foi de 9.517:190$737. O déficit da balança comercial baiana neste

37período foi de 6.318:290$295.

O principal foco desse desequilíbrio era o comércio com o Rio Grande do Sul. A Bahia exportou para lá 231:310$084, sendo os principais produtos negociados: o açúcar, a aguardente de cana e o fumo, que m o v i m e n t a r a m r e s p e c t i v a m e n t e 91:137$104, 54:126$575 e 43:318$282. Por outro lado, o Rio Grande do Sul exportou para a Bahia a cifra de 4.412:474$288. Deste valor, 4.172:432$971 estavam relacionados ao comércio de carnes preparadas, ou seja, a carne de charque. O segundo produto da pauta de exportação gaúcha para a Bahia foi o sebo e movimentou 201:730$444. O terceiro produto foi o couro e os pelos curtido e atingiu a modesta cifra de 22:431$560.

A pauta de exportação riograndense não era mu i to d ive rs i f i cada , cons t i tu ía -se basicamente de derivados do gado bovino, mas atingia sobremaneira a balança comercial da Bahia, em função dos crônicos problemas de abastecimento de gêneros alimentícios que a assolou durante todo o século XIX e início do XX. Ademais, os hábitos alimentares da população baiana – baseados na dieta de carne seca e farinha – e a péssima qualidade do gado baiano dificultavam o fim da dependência da carne gaúcha.

Embora o quadro descrito acima, em relação ao comércio com o Rio Grande do Sul, fosse de normalidade, já que essa situação se manteve assim durante longos anos, o comércio mais intenso da Bahia se dava com Sergipe e Alagoas. Entre 1871-1872, todos os itens da pauta de exportação baiana, em maior ou menor número, foram negociados com a Praça de Sergipe. Tiveram destaque o café, com a cifra de 91:922$350 e o fumo

com 89:649$994. Para Alagoas, no mesmo período, foram exportados 134:976$350 em café e 56:589$890 em fumo. Se esses são os valores parciais dos principais produtos baianos do período, as cifras totais são de 385: 183$598 para Sergipe e de 321:194$140 para Alagoas.

Quando se compara o movimento comercial baiano de importação dos produtos dessas duas províncias, nota-se que também a balança comercial era desfavorável para a economia baiana. Sergipe comercializou com a Bahia 3.643:592$512. Em seguida veio a província de Alagoas com 824:33$823. Os produtos de maior destaque na comercialização com essas províncias foram o algodão e o açúcar.

Uma peculiaridade do movimento do comércio de cabotagem entre 1871-1872 e que revela as deficiências do abastecimento da cidade de Salvador e da Bahia é o comércio sob a rubrica legumes. Das nove províncias com as quais mantinha um comércio mais ativo a Bahia importava legumes de seis delas. Embora o montante dessas transações comerciais não tenha atingindo os 100:000$000, apenas o Rio de Janeiro era possuidor de 71:726$755 do comércio desses legumes. Ora, esse fato revela a precariedade em que se encontrava a lavoura de subsistência baiana, incapaz, apesar das dimensões territoriais da província, de suprir as demandas de gêneros alimentícios.

No período de 1871-1872, o principal produto da pauta de exportação baiana ainda era o fumo, movimentando 1.179:464$458. Em segundo lugar estava o café com 655:924$042 e em terceiro o algodão com 544:265$927. Por outro lado, mesmo o produto de mais destaque na exportação baiana estava muito longe dos valores que representavam a importação da carne de charque do Rio Grande do Sul. E, a l é m d i s s o , e s t a v a a b a i x o d o s 1.648:883$360 importados em açúcar apenas de Sergipe.

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Ironicamente a Bahia, outrora uma das principais exportadoras de açúcar, converteu-se em importadora. A outra ironia era que durante um tempo o fumo, que sustentou a economia baiana, tinha, no seu plantio e manejo, características muito distintas da cultura da cana-de-açúcar. A primeira, e mais importante, é que se tratava de uma cultura de pequenas propriedades e

38predominantemente familiar.

A cultura do fumo se caracterizava por um tipo de agricultura que dispensava a aplicação de grandes capitais na lavoura e, por um lado, conferia um retorno bastante rápido do trabalho empregado. Outro elemento atrativo para o cultivo do fumo era sua grande aceitação nos mercados interno e externo. Entretanto, algumas limitações restringiram significativamente o potencial econômico do fumo para os pequenos produtores. O primeiro elemento era as condições de trabalho desses pequenos lavradores. Quase sempre o cultivo se dava em terras arrendadas sob o regime de meação, o que implicava numa séria restrição à autonomia econômica desses indivíduos. Essa autonomia, aliás, sofreu o intercurso também dos intermediários que compravam o fumo para exportação.

Detendo o controle da lavoura, os comerciantes e exportadores “adquiriam o fumo em seu estado bruto, portanto mais barato, beneficiavam-no e o exportavam para o exterior e/ou outras regiões do Brasil”. Muitas vezes, o beneficiamento era realizado no país importador, que reexportava o produto para outros mercados consumidores, alcançando os comerciantes um lucro duplo, situação que agravava o caso do “meeiro”.

Embora o cultivo do fumo sofresse severas restrições, desde o manejo da terra até a sua colocação no mercado, foi ele que até a década de 1890 sustentou a economia baiana e o ritmo de exportação do porto de Salvador. O cenário da Bahia no terceiro quartel do século XIX não foi nada animador. O fim do tráfico de escravos, a Guerra do Paraguai e a decadência acentuada da lavoura de cana-de-açúcar compuseram o quadro de quase estagnação da economia

baiana.

A Guerra do Paraguai, motivada por questões de fronteiras, foi estimulada e aproveitada pela Inglaterra em todos os seus aspectos. E atendeu, sobremaneira, aos interesses ingleses na região. Ela neutralizou o crescimento econômico do P a r a g u a i , j á e m p r o c e s s o d e industrialização; precipitou a crise política e econômica brasileira e desestabilizou a economia de toda a Região Platina, na medida em que os países em guerra foram forçados, pelas circunstâncias do conflito, a contraírem empréstimos em casas bancárias dos países capitalistas centrais, principalmente as inglesas.

Tanto a Guerra do Paraguai quanto o fim do tráfico de escravos provocaram na economia baiana efeitos devastadores. O primeiro porque desarticulou, mais do que a lavoura da cana-de-açúcar, todos os ramos de negócios que gravitavam em torno do tráfico negreiro. A construção naval; o escoamento da produção de fumo-de-rolo, aguardente; a reexportação com lucro de produtos manufaturados, passando a armação das viagens ao continente africano e a redistribuição da carga humana sofreram um golpe fortíssimo. Se do ponto de vista moral o tráfico de escravos tardou a acabar, do ponto de vista econômico a Bahia não estava devidamente preparada para absorver o impacto da sua extinção.

As finanças baianas continuaram a ser solapadas. Na década de 1860, a Bahia quando esboçou uma reação ao impacto do fim do tráfico, foi surpreendida com os pesados encargos da Guerra com o Paraguai. Tanto o esvaziamento da mão-de-obra recrutada para as fileiras do exército, quanto o esvaziamento dos cofres públicos e dos capitais disponíveis na praça para fazer frente aos esforços de guerra, provocaram uma nova retração nas atividades comerciais e econômicas baianas.

Todo o fluxo comercial baiano foi atingido. O

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comércio de cabotagem acabou agindo como uma válvula de escape para a incapacidade de colocação dos produtos baianos no mercado internacional, ao passo em que a movimentação do comércio de longo curso passou por oscilações mais ou menos freqüentes como fica ilustrado na análise do gráfico a seguir:

GRÁFICO 1 – COMÉRCIO MARÍTIMO DE LONGO CURSO - PROVÍNCIA DA BAHIAFonte: Relatórios do Ministério da Fazenda de 1859 a 1887 (BMFRJ).

Analisando o GRÁFICO 1 percebe-se uma curva decrescente entre os anos de 1859 e 1861. Neste período, o porto de Salvador tem seu movimento retraído por uma série de epidemias que assolaram a cidade durante essa década. Esse é um momento em que as importações e exportações se encontravam em baixa, provavelmente em decorrência da desarticulação da economia. Em 1861, percebe-se uma curva ascendente do movimento comercial de exportação que encontra o seu ápice no ano de 1862, mantendo-se estável até 1863. Entretanto, esse movimento ascendente foi seguido por uma queda abrupta em 1864.

O movimento instável dos negócios de exportação é a característica básica desse período. Houve alguns momentos de significativa melhora comercial, mas eles são igualmente acompanhados por quedas contínuas nos volumes negociados.

A movimentação nervosa das transações comerciais que caracterizaram o comércio de exportação baiano, também se verifica nos movimentos comerciais de importação. Porém, as flutuações são menos abruptas, o que sugere que as demandas de produtos importados, a capacidade de aquisição destes ou mesmo a necessidade premente dos produtos adquiridos pela importação, impunham à Província da Bahia a manutenção do volume do comércio de importação. Essa situação contribuiu para o agravamento da saúde financeira da Bahia.

O estado de crise e de instabilidade só agravou as dificuldades para desenvolvimento de alternativas econômicas para uma região, que se habituara a uma atividade produtiva pautada na monocultura escravista. A desconfiança em relação a atividades produtivas, ou a investimentos que significassem uma margem de lucro modesta, e investimentos de alto risco fizeram com que as elites econômicas baianas optassem retração, não se arriscando em investimentos que representassem riscos à manutenção do capital aplicado. A lógica destas

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elites consistia em que “mais valia” um investimento seguro e que representasse margens menores de lucro do que um invest imento de longo prazo que representasse um risco maior à preservação de seus capitais.

Se continuarmos observando o Graf. 1 é possível identificar o momento de maior impacto na economia baiana. O ano de 1871 assinala o ponto de maior declive dos negócios de exportação e importações de longo curso. Foi como se viu páginas acima um momento em que, também o comércio de cabotagem baiano estava passando por seus reveses.

O fato é o que os produtos baianos sofreram uma dura concorrência tanto no mercado internacional como no mercado interno. Caso flagrante é a concorrência do açúcar sergipano, que a Bahia foi forçada a comprar, por causa da crise na produção provocada pelo adoecimento dos canaviais, o que acabou onerando a sua pauta de importação.

Esse foi o preço pago pelas elites econômicas do pe r íodo po r não modernizarem o seu sistema de produção e distribuição, o que impediu que seus produtos fossem qualitativamente mais atrativos e competitivos. Com o fim da muleta representada pela exploração do trabalho compulsório negro-africano, o custo da produção do açúcar inviabilizou a sua comercialização no mercado externo, agravando a crise da lavoura que já se fazia presente desde o início do século XIX. Além disso, as rendas advindas do tráfico clandestino de escravos cessaram definit ivamente, deixando as elites econômicas sem opção de investimento que representassem uma boa liquidez em curto prazo.

A obstinação pela cana-de-açúcar impediu a diversificação da lavoura e as novas possibilidades de lucro nos mesmos moldes que do comércio açucareiro, isto é, de uma

monocultura agro-exportadora só se fez definitivamente presente, a partir da década de 1890, com o aumento significativo do volume de cacau comercializado. Ainda assim, esse que seria o novo esteio da economia baiana até a segunda metade do século XIX, o qual se comparou em termos de lucratividade e importância, à cana de açúcar, nem ao café.

Com o fim do Império e início da República, o cenário ficou cada vez mais sombrio para a Bahia. Algumas culturas como a do fumo, a do cacau foram os sustentáculos da combalida economia e da cada vez mais desprestigiada elite baiana.

Em resumo, pode-se dizer que a cabotagem era o elo que unia o comércio à navegação de longo curso ao escoamento das produções locais, nacionais e estrangeiras.

A operação dos agentes comerciais

Os grandes comerciantes da praça de Salvador dependiam dos negociantes ligados aos mercados internacionais – i n v a r i a v e l m e n t e , e s t r a n g e i r o s representantes de suas firmas na Bahia – para desenvolver suas atividades.

O número relativamente pequeno de negociantes estrangeiros – em que os ingleses tinham forte predomínio e cujos membros podiam estar eventualmente comprometidos entre si – limitava as chances que tinha o comerciante baiano de

40escolher parceiros.

E s s a p o s i ç ã o , a t é c e r t o p o n t o desprivilegiada, tornou os comerciantes baianos especial istas no comércio intermediário. Eles se puseram na intersecção entre o produtor agrícola e o mercado exportador e importador. Quer fosse no comércio de Cabotagem ou no de Longo curso, certos produtos possuíam os seus representantes. Este é o caso de Aristides Novís que com o apoio da família Moniz de Aragão tornou-se um importante intermediário do açúcar baiano no mercado

41internacional.

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Esses indivíduos, por conta da sua própria condição de intermediários, possuíam um raio de atuação muito amplo e diversificado. Eles não se limitavam apenas ao mercado externo, atuavam com bastante vigor no comércio de cabotagem. Açambarcavam, muitas vezes, as produções agrícolas de regiões como o sul baiano antes mesmo do plantio.

A ação desses indivíduos foi deveras nefasta para a economia e o abastecimento de Salvador. Figuras como Joaquim Pereira Marinho controlavam quase que com exc lus i v idade o fo rnec imen to de determinados produtos essenciais ao abastecimento da cidade como a carne de charque e a farinha de mandioca. Era esse controle que lhes permitia a manipulação dos preços e da oferta dos principais gêneros alimentícios. O resultado desse controle era o constante estado de fome da população e a péssima qualidade dos

42gêneros comercializados na cidade.

Iolanda Nascimento constatou que, em muitos casos, mesmo os gêneros alimentícios produzidos em quantidade suficiente para o abastecimento local, so f r iam as in te r fe rênc ias desses atravessadores, que, objetivando maior lucro, os exportavam para outras regiões do país, aumentando a crise de abastecimento

43e dos preços na Bahia.

O destaque da navegação marítima torna-se evidente ao se recordar que os portos eram os verdadeiros respiradores da economia nacional e regional, sobretudo se considerarmos que a importância econômica das províncias era calculada pelo volume e valor das suas exportações, que por sua vez eram estimuladas e es t imu lavam as a t i v idades ag r í co las ,

44manufatureiras e fabris.

Assim, da mesma maneira que Salvador assistia chegar, pelo porto, os artigos de luxo, as modas e toda sorte de produtos e mercadorias que comporiam os signos da, apenas aparente, abastança das classes médias e superiores, ela assistia também ao escoamento, pelas mesmas vias, dos

g ê n e r o s m a i s n e c e s s á r i o s p a r a sobrevivência dos mais pobres em nome dos parcos lucros de um grupo de negociantes que se especializaram no comércio como intermediários.

Parte dos males e das fortunas que chegavam a Salvador, vinha pelo movimento portuário. Não que a cidade vivesse apenas para o porto, mas sem dúvida, entre 1850 e 1937, ela era ainda uma cidade voltada para o mar.

Considerações finais

Até aqui tentei analisar o cenário sócio-econômico da Bahia e, em particular, da Cidade de Salvador, entre 1850 e as primeiras décadas do século XX, a partir do movimento portuário e de suas relações com a dinâmica da sociedade baiana. O caminho escolhido foi o de situar Salvador como um espaço privilegiado, onde as opções políticas e econômicas das elites baianas se fizeram sentir de modo mais profundo, pois ela foi e ainda é o centro político e econômico da Bahia.

Assim, como forma de apresentação do palco onde se desdobraram os processos que analisei, tratei rapidamente da evolução espacial de Salvador, ressaltando a m a n u t e n ç ã o d e s e u s a s p e c t o s medievalescos e coloniais durante quase todo o século XIX e início do XX. Aspectos estes que orgulhavam as elites baianas, pois representavam a opulência de seu passado e seus valores mais arraigados. Entretanto, com avançar do século XIX, o agravamento da crise econômica baiana e a ascensão de novos centros econômicos e a conseqüente perda de influência política das elites baianas, os aspectos coloniais da cidade passaram a ser traduzidos como sinônimo de atraso e a justificar o fracasso do desempenho econômico da Bahia.

Um dos elementos que contribuíram para essa mudança de percepção do espaço da cidade e de sua ordenação foram as

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epidemias que assolaram toda a Província e depois Estado durante todo o século XIX e início do XX. Os surtos epidêmicos trouxeram à tona os problemas de saúde pública, de higiene e colocaram em pauta a necessidade de obras de modernização e higienização do porto e da cidade.

Assim, foi possível inferir a partir do porto da Cidade de Salvador as camadas sociais que nele gravitavam e dele retiravam seu sustento; as relações dessas camadas entre si com os espaços da cidade que ocupavam em meio ao processo de retração econômica da Bahia.___________________________________

Notas________________________________

1Esse texto é um excerto da tese de doutoramento “Economia e cultura do candomblé na Bahia: o comércio de objetos litúrgicos afro-brasileiros 1850-1937” defendida em 2007, no Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal Fluminense e contou com o apoio financeiro da Universidade Estadual de Santa Cruz UESC.* Professor Adjunto da Universidade Estadual de Santa Cruz, Universidade Estadual de Santa Cruz, Departamento de Filosofia e Ciências Humanas; [email protected]

2Provérbio consagrado ao orixá Iroko, também conhecido como Tempo.

3Lei nº. 581 de 04 de setembro de 1850. Lei Eusébio de Q u e i r o z . www.direitoshumanos.usp.br/couter/Doc_hist/texto/Trafico_negreiro.html.

4Sujeição dos navios de bandeira brasileira de tráfico de escravos a tribunais da marinha inglesa e ao ataque pelos navios ingleses. Ato do Parlamento Britânico de 08 de agosto de 1845 – Bill Aberdeen apud. BONAVIDES, Paulo e AMARAL, Roberto. Textos políticos da História do Brasil. 3ª ed. – V. II, Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2002, pp. 135-138. Neste documento há referências às Convenções assinadas pela coroa portuguesa e àquelas em que o governo imperial brasileiro se comprometida em reconhecer os termos dos tratados anteriores, referentes ao fim do tráfico de escravos anteriores.

5ARAÚJO, Ubiratan Castro. “1846: um ano na rota Bahia - Lagos. Negócios, negociantes e outros parceiros”. Afro-Ásia, nº. 21-22 (1998-99), pp. 83-110.

6BONAVIDES. Op. Cit.

7VERGER, Pierre. Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o Golfo de Benin e a Bahia de Todos os Santos dos séculos XVII ao XIX, São Paulo, Corrupio, 1987, pp. 574/629.

8Para uma perspectivam mais abrangente das questões em

torno da modernização dos portos no Brasil ver: HONORATO, Cezar Teixeira. O Polvo e O Porto: A Cia. Docas de Santos, São Paulo/ Santos, HUCITEC/ Prefeitura Municipal de Santos, 1996.

9ROSADO, Rita de Cássia S. de C. O Porto de Salvador: modernização em Projeto – 1854/1891. Dissertação de Mestrado, PPGH/UFBA, Salvador, 1983, pp. 38-39; CHAVES, Cleide. De um porto a outro: a Bahia e o Prata (1850-1889). Dissertação de Mestrado. PPGH/UFBA, Salvador, 2001, pp. 57-61.

10Mapa de Entrada e Saída de embarcações do Porto de Salvador 1840/1889, APEB.

11CHAVES, Op. Cit. pp. 52-88.

12CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo: Cia. das Letras, 1996, p. 73. 13ROSADO, Op. Cit., p. 10.

14Ibid.

15Ibid.

16 CHAVES, Op. Cit., pp. 91-92.

17Essas inferências do movimento dos saveiros na rampa do Mercado e na Feria de São Joaquim foram feitas a partir da análise de várias iconografias de períodos históricos diferentes que estão anexas e de TAVARES, Odorico. Bahia: imagens da terra e do povo. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1967.

18 REIS, A greve negra, p. 8. 19Ibid, p. 203; 209. 20Ibid, p. 210. 21MATTOSO, Kátia de Queiróz. Bahia, século XIX: uma provincial do Império. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992, p. 490 22FERREIRA FILHO, Alberto Heráclito. Quem pariu e bateu, que balance!: mundos femininos, maternidade e pobreza. Salvador, 1890-1940. Salvador, CEB, 2003, p. 40. 23PEIXOTO, Afrânio. Breviário da Bahia. Rio de Janeiro: Conselhos Federais de Cultura, 1980, p. 288.

24 FERREIRA FILHO. (2003) Op. Cit., p. 44. 25VERGER. Pierre; BASTIDE, Roger. Artigos. Tomo I. São Paulo: Corrupio, 1992, pp.122-155. 26Ibid, p.138. 27FERREIRA FILHO. Op. Cit., p. 47. 28FERREIRA FILHO. (2003) Op. cit., 46. 29MATOSO, Op.Cit, p. 501. 30Ibid, p. 218. 31VERGER, Pierre. Notícias da Bahia de 1850. Salvador: Corrupio, 1999, p. 123.

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32AZEVEDO, Thales de. Elites de cor numa cidade brasileira: um estudo de ascensão social & Classes sociais e grupos de prestígio. Salvador: EDUFBA:EGBA, 1996, p. 82.

33BMF/RJ – SOARES FERREIRA, Sebastião (org.). Estatística do Commercio Maritimo do Brasil do exercício de 1871-1872, 1ª. Parte: Navegação de longo curso e Interprovincial. V. 1. Rio de Janeiro: Typografia Nacional, 1878, p. 3. 34Ibid, pp. 3-4.

35Os dados do movimento do comércio de cabotagem foram retirados de: BMF/RJ – SOARES FERREIRA, Sebastião (org.). Estatística do Commercio Maritimo do Brasil do exercício de 1871-1872, 4ª. Parte: Navegação de longo curso e Interprovincial. V. 5. Rio de Janeiro, Typografia Nacional, 1880, p.74. 36Ibid, p.62. 37Ibid, p.74 e p.62.

38FUNDAÇÃO DE PESQUISA – CPE (Bahia). A inserção da Bahia na evolução nacional 1ª. Etapa: 1850-1890; Atividades produtivas. Salvador, 1978, p. 68. 39Ibid, p. 71. O trecho entre aspas é do autor citando: BORBA, Silza Fraga Costa. Industrialização e exportação do Fumo na Bahia . Dissertação de Mestrado. Salvador, PPGH/ UFBA, 1975. p. 12. 40MATTOSO, Op. cit. p, 499. 41Ibid. 42NASCIMENTO, Iolanda Maria do. O comércio de cabotagem e o tráfico interprovincial de escravos em Salvador (1850-1880). Dissertação de Mestrado. PPGH/UFF, 1986, p.12.

43Ibid, pp. 9-10.

44Ibid, p.6.

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1Ivana P. KuhnProfessora de História da UESC

Ação Social em Programas de Educação e Artes

Introdução

A função comum da educação e das artes no contexto de uma pedagogia social consiste em promover o desenvolvimento do individuo para que o mesmo possa exercer uma posição participativa na sociedade. Na sua filosofía pedagógica, Paulo Freire propõe que, entre as condições necessárias para se criar um processo de aprendizagem que alcance a meta de transformação social, e primordial inclui-se como prática fundamental a implementação de um sistema cooperacional entre educando e educadores (Freire, 1998). O proceso de aprendizagem torna-se efetivo a partir do intercâmbio recíproco de conhecimentos e experiências. O ensino voltado para alunos que se encontram em condições de desvantagem social e marginalização requer considerações ainda mais particulares neste aspecto. Neste âmbito, o conceito de aprendizagem vem a ultrapassar o simples ato de entrega do conhecimento e treinamento do indivíduo, para atingir o objetivo mais amplo de gerar experiências positivas que conduzam o educando à sua autonomía pessoal e consequente integração social.

Resumo

As referencias de propostas filosóficas e sócio-pedagógicas apresentadas por Paulo Freire, Piaget, e Vygotsky tem fornecido o apoio teórico para a prática de ensino empregada nesses programas. No cenário atual, fundações e organizações não-governamentias ou ONGs, tem tomado a iniciativa de projetos sociais relevantes. A partir da observação dos resultados obtidos em alguns desses programas desenvolvidos na América Latina, tendo como exemplos os projetos Axé, El Sistema e Neojiba, se torna possivel identificar os pontos relevantes que tem contribuido para o sucesso e alcance dos objetivos de integração social e formação individual desses projetos de ação solidaria.

Palavras-Chaves: Pedagogia, Ação Social, Cultura, Musica, Artes.

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Chossudovsky, 2010). A sociedade contemporânea encontra-se num momento de restruturação econômica e social, em direção ao estabelecimento de uma nova perspectiva política de ámbito global. O surgimento de organizações voltadas para causas e interesses sociais a nível mundial, tem contribuido para sedimentar um setor atuante e independente do sistema governamental. Nos últimos cinquenta anos, organizações internacionais com diversos fins tem sucedido em criar um sistema de regras, normas, e iniciativas que respondem a interesses independentes de setores públicos e governamentais. Com iniciativas, decisões, e tratados, instituições autónomas vem desempenhando funções sociais importantes na sociedade contemporânea. Estabelecendo um senso de autoridade moral em áreas distintas, desde sua fundação ao final da segunda guerra mundial, a Organização das Nações Unidas (ONU) segue implementando estratégias e ações solidárias visando atender e garantir os principais direitos básicos do cidadão em todo o mundo (www.un.org). Definindo áreas especificas de atuação a ONU conta atualmente com agencias afiliadas como o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), e a Organização Educacional Cientifica e Cultural das Nações Unidas (UNESCO). Estas instituições de caráter independente foram criadas a partir de inciat ivas da ONU com propósi to humanitário de oferecimento de apoio a organizações não-govenamentais (ONGs) em vários países, oferecendo auxilio na implementação de projetos sociais. Os programas apoiados pela UNICEF abrangem principalmente as áreas de saúde e educação, e dirigem-se a população alvo de crianças, jovens e famílias que se

iencontram em condições críticas de vida. Os programas de educação e cultura afiliados a UNESCO têm como meta garantir ao individuo o direito a educação e legado cultural como um princípio humano

iifundamental. As organizações não-governamentais

ocupam um terceiro setor, com caráter de ação distinto das partes pública e privada, preenchendo então a lacuna deficiente deixada por esses outros dois setores. As ações sociais de fundações independentes constituem cada vez mais a opção única, disponível para indivíduos e comunidades em situações sociais criticas como garantia do acesso a educação e outros direitos básicos. O impacto social dos programas implementados por organizações não-governamentais nos últimos trinta anos, apresenta resultados signif icantes, atendendo a um grande número de crianças e ado lescen tes em comun idades desprovidas de opções e perspectivas futuras. Essas organizações concentram esforços na provião de serviços essenciais e de direito. Uma grande parte das ações sociais de educação e artes desenvolvidas por entidades não-governamentais têm sido voltadas para a população alvo nas fase da infância e adolescência. O proceso de empreendimento e manutenção desses projetos sociais, desde o financiamento, a p o i o e d e s e n v o l v i m e n t o a t é a implementação final, apresentam desafíos econômicos e também sociais. O estabelecimento de uma confiança mútua entre o indivíduo, sua comunidade, e a organização social constitui fator relevantes para o êxito da ação solidária. Os projetos sociais iniciados por insituições sem fins lucrativos, dependem do investimento de empresas e de cotribuições individuais, que por fim são também dependentes das variações econômicas. A participação do setor público através de leis de incentivo fiscal, e ate mesmo com o estabelecimento de parcerias com alguns programas, tem garantido a continuidade de vários projetos.

Projetos sociais na América Latina Significantes projetos sociais de educação e artes vem sendo realizados na América Latina na duas últimas décadas, com resultados que têm contribuido para a

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A pedagogia de âmbito social concentra-se numa metodologia de apoio que busca oferecer o conhecimento do objeto do saber, para promover o desenvolvimento humano e consequente formação integral do educando. A garantía e acesso aos direitos básicos incluindo educação, oferece ao indivíduo a oportunidade de aceitação social, e de atuação participativa na sociedade. A prática do ensino voltada para a formação integral do aluno em condição social vulnerável, observa a necessidade de restabelecer o nucleo de valores humanos muitas vezes comprometido pelas dificuldades económicas e sociais nas quais o aluno se encontra. No ensino direcionado a uma ação social, a formação do indivíduo busca gerar uma autonomía pessoal que acompanhe o exercício e desenvolvimento intelectual, social e emocional do educando. Nesse contexto, a realidade do aluno tem referência d i reta no conteudo de aprendizagem. O empreendimento de atividades artísticas integram experiências que influenciam na percepção e formação de valores, a partir de uma interação simultânea que relaciona o âmbito intelectual, emocional, e social. O desenvolvimento cognitivo bem como os processos de aprendizagem e criatividade intelectual têm base na experiência de descoberta pessoal. A expressão artística por exemplo, desperta habilidades senso-motoras e respostas emocionais que viabilizam um processo simutâneo de auto conhecimento e aprendizado (Eissner, 2002). A experiência artística ocorre de maneira continua, a partir da interação do indivíduo com o ambiente no qual este se encontra. A conexão do indivíduo com seu contexto socio-cultural estabelece uma base de conhecimentos e valores comuns, que refletem a percepção de valores humanos e identidade do individuo (Dewey, 2005). O desenvolvimento social resulta deste proceso de interação, onde os fatores de mediação são aqueles e lementos relacionados diretamente a cultura. O indivíduo responde à cultura, por ser o

mesmo contribuinte e parte integrante desta. Na pedagogía social o educador pode encontrar na cultura o mecanismo mediador e facilitador do aprendizado (Vygotsky, 1978). Desempenhando então a função de assistente social e cultural, o educador vem a viabilizar o proceso de aprendizagem. Quando consciente da cultura como objeto de saber , o educando establece uma conexão intrínseca com o ambiente e sua sociedade. Na educação através das artes, os educadores atuam ainda como embaixadores culturais, ultrapassando barreiras sócio-culturais na implementação de uma prática pedagógica de inclusão social. Os principios básicos para definição de uma prática pedagógica que venha a transformar educadores e educandos, depende de uma prática fundamentada em metodologias definidas, baseada em pesquisas que observam uma visão ética, e que respeita os saberes do educando (Freire, 2007). A educação social deve garantir ao educando o direito a autonomía pessoal e participação c o n t r i b u i n t e n a s o c e d a d e . O reconhecimento da identidade cultural do aluno, bem como a reflexão crítica das práticas pedagógicas e disponibilidade para o diálogo recíproco, são parâmetros imprescindíveis para o estabelecimento do respeito mútuo e da disciplina saudável entre o educador e educando.

Entidades sociais e projetos solidários Os fatores relevantes de globalização, superpopulação urbana, e consequente reestruturação econômica mundial definiram nas três últimas décadas, o início de uma nova era na história da civilização humana. Os problemas resul tantes dessas transformações recentes refletem-se nos vários contextos da sociedade atual. O capitalismo global criou um cenário de pobreza e desigualdade social generalizada com consequências marcantes, que seguem fomentando o contínuo comprometimento dos direitos humanos (Marshall &

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melhoria de condição de vida de individuos e comunidades. No Brasi l , desde a regulamentaçao da lei dos direitos do

iiicidadão na fase inicial de vida, vários projetos solidários têm sido criados centralizando uma atenção especial nas áreas de educação e cultura, para alunos na faixa etária dos seis aos dezoito anos. O projeto Axé, desenvolvido no Brasil, e o programa El Sistema, implementado na Venezuela, representam exemplos de propostas pedagógicas fundamentadas na formação do indivíduo através das artes e cultura. Os principais elementos desses dois programas têm base na incorporação de elementos artísticos e culturais na aprendizagem.

O projeto Axé, iniciado nos centros urbanos da cidade de Salvador com apoio da UNICEF, esta integrado ao movimento nacional em defesa da infância e juventude. Desde sua inscrição, o projeto empreende uma obra solidaria que por mais de vinte anos tem contribuido para restituir a crianças e adolescentes marginalizados seus direitos a educação e saude na infância e juventude. O projeto Axé atua nas áreas de atendimento relacionadas a educação e apoio a família. Através de nucleos educacionais voltados para cultura e artes, bem como saúde e família, o Axé tem resgatado um grande numero de criancas de ruas, exercendo ainda sua função social junto a esas comunidades onde essas crianças se encontram. Em torno de treze mil educandos tem sido beneficiados pelos programas do projeto Axé. A proposta pedagógica iniciada no Axé tem tido influencia direta no proceso de redefinição do o cenário social urbano no Brasil, e em outros países. A preparação de educadores atuantes no programa Axé tem servido de modelo para iniciativas semelhantes desenvolvidas em outros países da América Latina. A iniciativa do projeto Axé tem inspirado tambem outras organizações na criação de projetos de educação e artes j u n t o a p o p u l a ç ã o d e m e n o r e s marginalizados. Sua estratégia tem servido

de modelo para o desenvolvimento de outras in ic iat ivas governamentais e não-

ivgovernamentais. A prefeitura da cidade de Salvador, por exemplo, implementou o projeto Cidade Mãe com base no programa implementado pelo projeto Axé. O projeto Axé, seguindo um propósito pedagógico social, tem devolvido a um grande numero de crianças e adolescentes, a diginidade e iden t idade pessoa l an te r io rmente comprometida debido a marginalização e abandono social. Resgatando-lhes o senso de valores humanos a partir da criacao de novos hábitos saudáveis, o programa do Axé segue um conceito de educação social aliada as artes e a cultura (Almeida e Carvalho, 1995).

Com um enfoque concentrado em ambos aspectos de educação e profissionalização, a estrutura do Axé cumpre uma missão social de educação e ao mesmo tempo de resgate. O Axé utiliza como conteúdo pedagógico a influência cultural Africana predominante no Brasil nas suas várias manifestações populares. Fundamentado nos principios filosóficos de Piaget e Vygotsky, o projeto Axé enquadra orientações teóricas complexas de práticas ps ico lógicas, soc ia is , emocionais , educacionais, e culturais, que observam a vulnerabilidade da população amparada nos seus programas. Dentro do conceito construtivista de Piaget, o sujeito concretiza sua aprendizagem através das interações e trocas sociais. A teoria de mediação cultural de Vygotsky evidencia o elemento cultural como facilitador pré-existente para o conhecimento. Dessa maneira, a proposta educacional do Axé establece o principio de interação social através da cultura, para a formação individual.

Axé tornou-se um dos mais importantes programas sociais dedicados a defesa e proteção de crianças desamparadas e marginalizadas na América Latina. Contudo, apesar da continuidade do programa com contribuições de setores privados, incentivos governamentais, e patrocinios

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individuais de artistas e intelectuais, o projeto tem encontrado inumeras dificuldades e o comprometimento de sua continuidade. Devido a falta de verbas suficientes para custear a manutenção dos seus programas, o projeto Axé sofre o r isco de descontiunuidade. A colaboração e iniciativas individuais e privadas são ainda escassas e sem frequencia. Atualmente o programa conta ainda com o rendimento obtido a partir das vendas de artefatos artesanais, criados por alunos e famílias integrantes do programa.

O êxito do projeto social El Sistema criado na Venezuela, tem gerado grande interesse pela educação musical como um mecanismo eficiente de integração social. Através da formação de orquestras e c o n j u n t o s m u s i c a i s o p r o g r a m a implementado pelo El Sistema desenvolve um projeto educacional de integração social estabelecendo como base o ensino musical coletivo. Desde sua implementação, o programa tem alcançado seus objetivos pedagógicos e sociais, alem de produzir resultados artísticos de alto padrão cultural. O nucleo de participação do El Sistema inclui a lunos , famí l i as , e comun idades identificados como desplazados. Essa população corresponde aqueles grupos de indivíduos vivendo em precarias condições economicas, e que habitam as zonas perifericas dos centros urbanos. Fundado em 1975 por iniciativa privada, El Sistema consiste de um programa de orquestras e conjuntos juvenis, seguindo um plano de ação que involve educandos, famílias e comunidades. Em quase quarenta anos de existencia, El Sistema tem atendido a mais de trezentas mil crianças e jovens na Venezuela, garantindo a estes individuos seus direitos a educação e artes (Wakin 2012). O projeto oferece instrução individual e coletiva seguindo o treinamento de música clássica com fundamentações sólidas de teoria e prática. A formação de conjuntos mus ica is en fa t i za o ap rend izado comunitário, relacionando daí os níveis psicológico e social dentro do proceso

cognitivo. Pesquisas recentes demonstram que a participação em programas de artes, c o m o e m a t i v i d a d e s d e g r u p o implementados no horário pós-escolar, promove o reconhecimento de valores sociais alem de desenvolver a atenção e o auto-controle dos alunos nas fases infanto-juvenil. O involvimento de educandos em atividades que enfatizam a criatividade e o convivio social como em classes de música e artes cênicas, estimulam no individuo um senso de independência e iniciativa diligente direcionadas a metas futuras (Uy 2012). O treinamento da música clássica e a prática em grupo estimula o educando a vivenciar um conjunto complexo de experiências simultaneas, as quais afetam sua percepção a níveis intelectual, psicológico e social.

Como requisito de participação no programa, El Sistema requer das familias uma parceria interativa. A integração da familia e c o m u n i d a d e s t o r n a - s e u m f a t o r imprescindível para o sucesso do educando no programa. Através das sociedades de padres, os pais são responsáveis pelos instrumentos musicais fornecidos aos alunos, e por garantir que a criança ou jovem participante no programa, cumpra seus horários e tarefas escolares e extra cu r r i cu la res , e ob tenha um bom desempenho nas suas atividades escolares. Para garantir a continuidade no programa, os alunos devem comprovar bom rendimento escolar e o atendimento regualr na escola. Desta maneira o El Sistema establece no núcleo familiar o ponto de apoio e referência que vem a garantir a formação do educando.

As contribuições efetivas do El Sistema tem inspirado semelhantes iniciativas em vários outros países (Price-Mitchell, 2012). Em 1995, José Antonio Abreu, fundador do programa, foi eleito Embaixador da UNESCO para o desenvolvimento de uma cadeia global de orquestras e coros infanto-juvenis, dentro de uma ação educacional com base na sua estratégia iniciada na Venezuela. Desde então, a UNESCO tem

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ipromovido em colaboração com entidades governamentais e privadas em diversos países, o “Movimento Mundial de Orquestras e Coros Infanto-Juvenis.” No Brasil por exemplo, o projeto Neojiba (Núcleos de Orquestras e Corais Infanto-juvenis no Estado da Bahia) conta com a parceria da UNESCO e de outras entidades privadas e governamentais, para o oferecimento de educação através da formação de orquestras e conjuntos musicais seguindo uma iniciativa semelhante ao El Sistema. As atividades do Neojiba tem atendido a população de crianças e adolescentes em comunidades carentes no estado da Bahia, criando grupos musicais de orquestra e coros. O objetivo do programa visa criar uma ação social através da educação e excelência musical. Apesar do seu desenvolvimento recente, a orquestra juvenil do projeto Neojiba tem obtido éxito, tendo apresentado desde então vários concertos no Brasil e em outros países.

Os principios filosóficos de Paulo Freire e Lev Vygotsky definem a estrutura educacional desses programas solidarios de educação. Utilizando a criatividade artística e a cultura como elementos socio-pedagógicos, esses projetos oferecem atraves da educação a base social que vem a garantir a formação integral do indivíduo, e sua integração na sociedade. A prática comunitária e o senso de valorização social ocorre quando da participação do educando, bem como da família e comunidades. A responsabilidade da prática pedagógica social por parte dos educadores, refere-se ainda a crição de um sistema de delegação de funções importantes, que debe incluir os vários indivíduos relacionados ao universo do aluno na familia e comunidades. A metodología de ensino com fundamentação na teoria psicológica de autonomía pessoal enfatiza e estimula o desenvolvimento de ação e iniciativas por parte do educando. De tal maneira, o aprendizado segue um paralelo correspondente, o qual reflete o avanço do aluno em outras áreas vivenciais (Freire 1996). A interação do indivíduo com o

ambiente no qual este se encontra inserido ocorre de maneira reciproca. O individuo tem influencia direta nas suas relações com o ambiente ao qual pertence, e este mesmo ambiente pode influenciar e modificar os hábitos pessoais do indivíduo (Vygotsky, 1978). Desta maneira, a criação de hábitos saudáveis proporcionados por esses programas de educação e artes, contribui para a restruturação do ambiente social do aluno.

Conclusão

A implementação de programas de educação e artes com um propósito social visa promover a integração do indivíduo na sociedade. A prática pedagógica social observa as condições extraordinárias do educando no seu contexto de vida social. As considerações diversas, quando da implementação de uma proposta de educação com caráter abrangente, involvem vários aspectos referentes ao proceso de formação do indivíduo que se encontra em uma condição social vulnerável. A formação integral involve um complexo metodológico de desenvolvimento cognitivo, emocional, intelectual, e social.

O educador tem um papel importante na pedagogía social. O educador desempenha funções decisivas que vem a determinar a efetividade da ação solidária e sua proposta pedagógica. Atuando como mediador do proceso de conhecimento iniciado pelo próprio educando, o educador viabiliza a aquisição do saber e a percepção dos valores humanos. A conscientização pessoal e o proceso de auto-va lor ização desencadeados no aprendizado solidário, ocorre através de experiências vivenciais e socio-culturais que conduzem o aluno a um proceso de auto conhecimento e consequente autonomía pessoal.

As mudanças sociais e econômicas ocorridas nos últimos cinquenta anos vêm definindo a natureza global do mundo contemporâneo. As condições de vida de

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grande parte das populações em vários países têm sido seriamente comprometidas desde a persistente crise econômica gerada pela nova política mundial. Formando um terceiro setor, independente e mediador, as organizações não governamentais vêm assumindo responsabilidades políticas e sociais através de iniciativas solidárias. As organizações UNICEF e UNESCO têm dado incentivo a projetos educacionais, culturais e artísticos em vários países, garantindo a indivíduos em precárias condições de vida o acesso ao direito básico da educação. Observando as necesidades básicas do individuo e sua comunidade, tais projetos solidários buscam extender sua atuações a áreas de saúde e familia, consolidando assim uma proposta educacional e social.

As iniciativas de organizações sem fins lucrativos têm criado oportunidades de acesso a educação e artes como medidas preventiva e paleativa de assistência social. Garantindo os direitos básicos a população vulnerável e marginalizada, o projeto Axé implementado no Brasil, e o programa El Sistema desenvolvido na Venezuela, vem contribuindo com suas ações solidárias para a melhoria de vida da população infanto-juvenil na América Latina. Com propostas educacionais e objetivos sociais definidos, esses projetos tem sucedido na suas missões, promovendo uma mudança social através do resgate humano e cultural. Observando e analisando esses programas, obtém-se modelos e considerações importantes que servem de referencias para o planejamento de projetos sociais de educação e artes com propósitos similares. A definição de estratégias filosófícas e pedagógicas apresentadas por esses programas garante a estrutura fundamental de cunho cultural e social que proporcionam a formação integral do aluno. A ênfase nos valores humanos e exercicio da práticas ética no proceso de educação social, ocorre através da produção artística, quando o aluno autentica então sua experiência educacional e social.

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Internacional - Ivana P. Kuhn

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Notas________________________________

1Ivana P. Kuhn - Doutora em Educação Musical; Professora e

Consultora Acadêmica.

ihttp://www.unicef.org

iihttp://www.unesco.org

iiiLei n. 8069 de 13 de Julho de 1990

.http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm

ivhttp://www.projetoaxe.org.br

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Laila Brichta*

Reflexões sobre educação e cultura hegemônica em Angola e no Brasil nos meados do século XX.

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Esse artigo investiga o papel de intelectuais e associações culturais na proposição de ideias e ações que tem como fito a construção de uma sociedade mais justa para parcelas da população excluídas ou marginalizadas dos projetos oficiais estatais em Angola e no Brasil em meados do século XX. Partindo de diferenças e semelhanças nas formações socioeconômicas e políticas do Brasil e de Angola observaremos o processo de constituição das identidades e dos sentimentos de pertencimento nacional na contemporaneidade nos dois países, notando que Angola foi uma colônia de Portugal até o ano de 1975. A análise que se segue pretende nos aproximar do processo de elaboração dos projetos nacionais hegemônicos e contra hegemônicos nas sociedades atuais, tendo como base o campo da educação.

Tomemos como marco inicial para a análise o ano de 1930, o que se explica em função tanto da publicação de um relevante documento da legislação portuguesa, o Ato Colonial, quanto pela subida ao governo central do Brasil de Getúlio Vargas. O Ato Colonial foi o documento que regulamentou a colonização portuguesa no século XX, permitindo que Portugal melhor definisse

1sua política colonial, aplicando-a através de uma série de medidas econômicas e sociais. Contudo é preciso esclarecer que o principal regulador da sociedade era o direito civil específico para os naturais das colônias, estabelecido anteriormente, em 1926. Vigorava desde então o Estatuto Político, Civil e Criminal do Indígena de Angola e Moçambique, estendido em seguida também para a Guiné, e que tinha por objetivo limitar os direitos dos nativos africanos ao tempo

2que justificava moralmente a dominação portuguesa. O ano de 1930 também foi definidor para o Brasil, pois se colocou termo à chamada primeira república, iniciando-se uma nova fase para o país que caminhava para um nacional-desenvolvimentismo, apresentando novas regras políticas e econômicas. Foi neste ano, também, que o governo provisório de Vargas criou o Ministério da Cultura e Saúde Pública, responsável a partir de então pelos programas de

3educação, fundamentais para o projeto nacionalista.

Como limite final dessa análise não ultrapassaremos o ano de 1961, também por dois importantes acontecimentos ocorridos nas duas margens do Atlântico: a extinção em Portugal do Estatuto Político, Civil e Criminal do Indígena e o lançamento da Política Africana pelo

4presidente do Brasil Jânio Quadros. O Estatuto do Indígena, como era conhecido, foi revogado e se traduziu em um texto legal que elevou todos os portugueses à categoria de cidadão, independente de sua origem, ou seja, fossem negros, brancos ou mestiços, europeus ou africanos. Isso gerou o início de uma nova etapa nas relações entre as províncias ultramarinas e a metrópole portuguesa, condicionadas pela explosão da guerra de libertação nacional africana no mesmo ano. Já a Política Africana indicava a intenção do Estado brasileiro em estabelecer aproximações econômicas com o continente africano, diretriz nova para as relações externas brasileiras, mas que não foi concretizada naquela altura, dada a renúncia do presidente e a

5instauração, poucos anos depois, da ditadura militar, que deu novos rumos ao país.

Revista Dialética, v. 4, n. 4, Março 2013

*PROFESSORA DE HISTÓRIA DA UESC.

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Nesse período de 1930 a 1961, as ações realizadas pelo Estado tiveram como intuito manter a população no Brasil e em Angola dominada e dirigida a trabalhar em favor dos projetos oficiais. Portugal, que era uma metrópole colonial, passou a estimular a ocupação e o povoamento dos territórios

6africanos. Para tanto, concedeu incentivos financeiros e estabeleceu direitos legais para a imigração portuguesa em Angola, causando a expulsão da população local que via suas terras sendo tomadas pelos portugueses metropolitanos e cultivadas por gêneros agrícolas de exportação, ao passo que era levada ao trabalho recrutado por falta de outra condição de sobrevivência e

7por imperativos da legislação civil. No Brasil encontramos na mesma época a política trabalhista de Getúlio Vargas, que buscou controlar o trabalhador brasileiro através dos sindicatos e de uma legislação que gerou alguns ganhos materiais e diversas perdas no campo da autonomia política do trabalhador. Devemos recordar que apesar do Brasil não ter sido uma nação colonialista apresentou uma política de cunho nacional orientada por ideais de direita, o que ajuda a compreender os dois períodos de governo ditatorial no século XX, o Estado Novo (1937-45) e o militar (1964-85).

Diante do quadro das políticas públicas que pretendiam desenvolver economicamente o Brasil e Portugal, de forma que as hierarquias sociais se mantivessem inalteradas, alguns intelectuais e algumas associações culturais passaram a propor alternativas aos projetos oficiais. Uma das principais bandeiras dos sujeitos advindos das camadas mais baixas da sociedade, ou de sujeitos da elite que apresentavam um compromisso político alternativo, era precisamente no campo da educação. Estudando o caso do Brasil e de Angola no período aqui delimitado, percebemos a articulação de alguns campos sociais para a elaboração do discurso das nações e do sentimento de existência das chamadas identidades nacionais ocidentais no século XX. Observemos aqui três desses campos –

a literatura, o associativismo e a educação – tratados como experiências práticas promovidas por indivíduos de origem econômica e social diversa. Esses indivíduos e grupos sociais convivem na sociedade, ora em complementaridade e ora em disputa, quando se trata dos projetos políticos nacionais. É nessa convivência que são construídos os projetos hegemônicos e em algumas vezes, poucas vezes, os projetos contra-hegemônicos.

Utilizando a elaboração de “sistema corporativo” de Raymond Willians, quando se observa uma sociedade contemporânea, por exemplo o Brasil e Angola no século XX, é possível encontrar um “sistema central efetivo e dominante de significados e valores que não são meramente abstratos, mas que

8são organizados e vividos”. São práticas geradas pelos mais diversos sujeitos sociais, práticas que se relacionam entre si, construindo o que Gramsci havia definido

9como hegemonia. Trazer o conceito de hegemonia gramsciano é se referir a um conjunto de práticas diversas também, que estão sempre renovando e recriando uma

10realidade de dominação. É algo que está sempre em movimento, devido ao seu dinamismo e abrangência, e que pelo processo de “incorporação” de novas experiências acaba mantendo uma realidade de dominação.

Em outros termos, o aparato hegemônico não se configura em um rol de ideias, pressupostos e hábitos sociais meramente impostos por manipulação pela classe dominante sobre os dominados. Pois se assim fosse, se fossem ideias impostas de cima para baixo, como bem nos mostrou Williams, a hegemonia tenderia a ser estática e com poucas alterações, assim como tenderia a ser fechada e bem definida, portanto de fácil decodificação, o que a tornaria mais facilmente combatida pelos opositores. Mas não, a o aparato hegemônico em uma sociedade é plástico e dinâmico, moldando-se a partir de experiências que criticam o sistema, mas

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que acabam complementando-o.

É preciso lembrar que a hegemonia se exerce sobre os grupos opositores que o grupo dominante deseja assimilar e que sobre os demais opositores se usa a força

11coercitiva. Isso explicaria, por exemplo, o porquê de alguns grupos subordinados adotarem a concepção de mundo dos dominantes, sendo que nem sempre essa adoção ocorre após uma análise crítica, mas, sim, por uma ação mecânica de imitação. Para um exemplo de como isso se passa no campo prático observemos como se procedeu com a elite nativa angolana durante o colonialismo português no século XX, elite esta que era composta em sua maioria pelos alcunhados “assimilados”. Estes procuravam adotar o modo de vida português, ainda que a assimilação cultural tenha, em diversos momentos, reafirmado uma situação de opressão e que tenha alimentado o aparato hegemônico do Império Colonial Português.

Entretanto é interessante notar que com a adoção do modo de vida dominante por parte dos dominados o conjunto de ideias, crenças, valores e práticas dominantes acaba sendo reconfigurado através de outras práticas sociais que agregam novas experiências, vindas dos subjugados, e que são complementares ao sistema central, mesmo que haja práticas que se oponham à cultura principal. E nisso reside a importância da noção de hegemonia, pois ela se apresenta dinâmica mantendo, entrementes, as classes sociais em seus tradicionais espaços de poder e dominação.A história recente do Brasil e de Angola no século XX está repleta de exemplos de como uma determinada cultura hegemônica se estabelece, mesmo quando há indivíduos e grupos que lutam contra a imposição de políticas vindas de um Estado conservador. Notamos isso com a produção intelectual de autores como Jorge Amado e Mário Pinto de Andrade, ou com as ações de grupos como a Frente Negra Brasileira e a Liga Nacional Africana, esta de Angola. A literatura

produzida por intelectuais angolanos – como Viriato da Cruz, Agostinho Neto e mesmo Óscar Ribas, por exemplo, primeiros bem diversos ideologicamente do último – estava imbuída de questões nat iv istas e nacionalistas, mesmo que Angola fosse uma

12colônia de Portugal. E essa produção literária angolana possuía uma influência da l i teratura brasi leira, l i teratura que apresentava questões sobre nacionalismo de forma mais clara e objetiva, pois o Brasil, desde quando uma nação soberana, se pensava enquanto povo, Estado, sistema político, economia, etc.

Um exemplo da influência da literatura brasileira para a formação da angolana se deu com a produção do escritor brasileiro Jorge Amado. Sua obra gerou grande impacto entre os africanos de língua portuguesa de modo geral, lembrando que o autor foi um militante do PCB e que teve uma produção intelectual crítica ao Estado brasileiro e à dominação do sistema capitalista mundial, propositor, até um dado período de sua vida, de uma nova

13organização social. As questões de ordem política na obra de Jorge Amado são visíveis não somente nas mensagens presentes em seus romances, mas também na incorporação de alguns elementos formais e temáticos em sua obra que serviram de estímulo para a produção literária nascente

14dos escritores em Angola. Ao investigar mais de perto essa produção é possível notar que mesmo diversos ideologicamente Jorge Amado e Óscar Ribas, por exemplo, estavam no mesmo campo quando se tratava de provocar reflexões em seus leitores, o que acabava gerando um exercício crítico da cultura hegemônica. No caso de Amado isso ocorria forma direta e objetiva, mas não se poder dizer o mesmo de Ribas.

Após um exame da obra de Jorge Amado e Óscar Ribas, confirmamos para o caso do Brasil e de Angola a importância dos intelectuais e da literatura no projeto de construção das nações e na elaboração dos

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sentimentos nacionais. Esse evocado papel dos intelectuais já havia sido abordado por diversos autores como Benedict Anderson e

15Edward Said. Contudo para o caso de Angola é interessante notar que para além dos escritores revolucionários, também os intelectuais angolanos que se beneficiavam do poder colonial por vezes trabalhavam em prol de uma profunda alteração do cotidiano, sem proporem, entretanto, o fim direto do sistema colonial. Ou seja, além dos intelectuais que fizeram parte do movimento literário lançado em 1948 chamado “Vamos descobrir Angola”, intelectuais estes que uma década depois estavam se organizando estrategicamente no que veio a ser o movimento por libertação política – Agostinho Neto, Lúcio Lara, Viriato da Cruz, Antônio Jacinto, Mário Pinto de Andrade e diversos outros – também autores como Óscar Ribas contr ibuíram para o questionamento do colonialismo da forma como ele se apresentava em Angola, porquanto seus escritos levantavam questões para reflexão.

Óscar Ribas é um intelectual instigante justamente por sua ambiguidade e contradição. Sua literatura incomoda e provoca o leitor exatamente por trazer e lementos dúb ios e con f l i tan tes , observando-se em seus trabalhos uma clara defesa da cultura portuguesa, ao passo que há elementos que buscam valorizar determinados aspectos das culturas

16angolanas. Ribas não parece aceitar a imposição da cultura portuguesa tal qual os colonialistas a fixam, apesar de valorizá-la como modelo cultural e comportamental.

Para entendermos a posição no mínimo difícil dos escritores angolanos, é preciso entender as mais diversas implicações do colonialismo português no século XX. Apesar do Brasil também ter sido uma colônia portuguesa, as histórias das duas nações são bem diferentes. Para começar, a colonização propriamente em Angola só se deu a partir das primeiras décadas do século XX, quando não existia mais o sistema

17escravagista. Na colonização brasileira o sistema da escravidão dividia a sociedade entre homens livres, libertos e escravos e foi instituído no Brasil colônia desde o início da dominação portuguesa no século XVI. Em Angola do século XX não havia mais o sistema escravista, abolido em 1869, mas havia o sistema do indigenato, que dividia os homens entre cidadãos, "indígenas" e

18assimilados.

Associado ao fato da existência de um sistema de indigenato que hierarquizava social e juridicamente a sociedade colonial está o de que a literatura angolana ocorria em língua portuguesa, conhecida de uma ínfima parcela da população nativa, que basicamente compunha o grupo dos chamados assimilados – indivíduos de origem africana que optaram por viver de acordo com a cultura portuguesa, sendo aceito pela sociedade de direito em forma da concessão da cidadania portuguesa. Ser um intelectual e um escritor, portanto, era pertencer a um grupo privilegiado da estrutura colonial portuguesa em Angola, pois significava deter conhecimentos e habilidades próprias dos colonizadores. Um intelectual ou um escritor, em Angola no período enfocado, era, normalmente, um cidadão – fosse por nascimento ou por assimilação – ou seja, era um sujeito regido pela mesma legislação dos portugueses brancos nascidos em Lisboa, por exemplo. Óscar Ribas era um cidadão angolano de nascimento, pois era filho de um português com uma africana e para termos uma ideia do que isso significava estatisticamente, em 1930 o grupo dos que possuíam algum direito político, ou seja, dos cidadãos, equivalia a cerca de 1%; os demais 99% eram os designados "indígenas", regidos pelo Estatuto dos Indígenas, que era um

19código civil específico.

Entretanto, o sistema de dominação não era imposto de cima para baixo meramente, mas era construído ardilosamente em instâncias diversas, contando com a participação de sujeitos também diversos, muitos dos quais

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cooptados ideologicamente pelos agentes do Estado salazarista. E é assim que se pode entender a assimilação: uma forma de trazer indivíduos que eram originalmente chamados de "indígenas" para o seio da sociedade de direito e que ao ingressarem no seleto grupo dos privilegiados passavam a reproduzir o discurso da hierarquização social de forma a se manterem na situação de privilégio, conservando o status quo. Contudo, apesar destes indivíduos terem sido privilegiados – pois tinham sido assimilados pela cultura portuguesa e eram, portanto, cidadãos portugueses – eles pleiteavam certos direitos políticos que a princípio eram garantidos a todos os que tinham a cidadania portuguesa. Pleiteavam, por exemplo, o direito de terem um representante angolano nativo no Concelho Administrativo, pois não tinham, mesmo sendo contabilizados para efeito de

20eleição.

Percebemos em reivindicações como a citada acima, reclamações por direitos considerados em tese os mesmos para todos, que o Estado português dividiu a cidadania portuguesa em duas: a primeira se dava por nascimento, ou seja, os cidadãos nasciam de pais portugueses; a segunda ocorria por aquisição, o que se dava mediante solicitação e trâmites jurídicos. A primeira era irrevogável e mais ampla que a segunda, que poderia inclusive ser

21suspensa. E não é coincidência que a maioria absoluta dos cidadãos portugueses por nascimento eram brancos, bem como os cidadãos por aquisição (ou assimilação) eram negros ou mestiços.

Na Angola de 1930 do 1% de cidadão encontramos 0,4% de portugueses metropolitanos (basicamente os imigrantes brancos) e 0,6% de assimilados, portanto

22negros ou mestiços. Ou seja, havia 99% de africanos sem qualquer direito político e com um código civil próprio e 0,6% de africanos com a cidadania, o que fazia destes, obviamente, um grupo de privilegiados. Mas ainda que os assimilados fossem cidadãos,

eles pleiteavam espaços, empregos, salários equiparados com os brancos. E o faziam diligenciando nos espaços literários e das associações culturais. Participar de uma associação, por seu turno, era um direito somente dos cidadãos, o que significava que a maioria absoluta da população em Angola estava legalmente impedida até mesmo de se organizar em associações para reivindicações de qualquer natureza ou mesmo para ajuda mútua.

Ao observarmos uma das associações angolanas, a Liga Nacional Africana (criada em Luanda em 1930 e herdeira de uma associação anterior, a Liga Angolana, que teve uma vida ativa entre 1912 e 1922) e o seu periódico chamado Angola: revista de doutrina, educação e propaganda instrutiva, notamos que seus membros – oriundos de um seleto grupo de privilegiados, apesar de uma origem subalternizada, por serem todos nativos angolanos – apresentavam críticas aos projetos coloniais, debatiam as verdades científicas vindas da Europa que tentavam just i f icar o racismo que hierarquizava a sociedade e propunham alternativas para o chamado Império Ultramarino Português. E percebemos que durante os meados do século XX o associativismo em Angola esteve no mesmo patamar da literatura, tratado pelos angolanos enquanto um espaço de discussão do nativismo e de questões políticas, e também elaborado e composto pelo mesmo grupo de privilegiados que produzia a nascente literatura angolana. Contudo, o associativismo apresentava um componente essencial que o diferia da literatura, oferecendo um elemento prático e objetivo: havia propostas e ações concretas para alterar o estado de subordinação dos angolanos nativos, fossem somente dos cidadãos assimilados num primeiro momento, fossem também dos "indígenas" a partir da década de 1950.

Ou seja, além de debates sobre direito, moral e ética, que encontramos na literatura da mesma época, literatura que discutia o povo,

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o Estado, a política, economia, o bem estar, a revolução, etc., as associações passaram a promover ações para garantir mais espaços para seus membros. Isso ocorreu também no Brasil e como exemplo na mesma época temos a Frente Negra Brasileira, uma associação negra fundada em São Paulo no ano de 1931 e que debateu o racismo, propondo ações para tentar integrar os negros na sociedade brasileira em igualdade

2 3de condições aos brancos. Mas diferentemente, aqui já não havia um Código Civil para negros e outro para brancos. A nação era democrática, na letra da lei. Mas existia o racismo e os não-brancos no Brasil eram mais pobres, com menos trabalho e com menos oportunidades que os brancos. A Frente Negra, como uma associação, também primava pelos direitos de seus associados e para tanto também propôs uma série de ações que viessem a melhorar a

24condição de vida dos mesmos.

Aqui já começamos a delinear o sistema corporativo “efetivo e dominante de significados e valores” que Raymond Williams propôs. Em Angola as associações eram compostas por estratos privilegiados – a classe intermediária, vamos chamar assim, que não era a dos portugueses brancos cidadãos de primeira categoria e nem os designados por "indígenas", negros e mestiços que viviam de acordo com os usos e costumes africanos e não ocidentais. No Brasil a associação citada era composta por estratos desprivilegiados, empobrecidos e marginalizados pelas políticas públicas. Mas nas duas margens do Atlântico essas associações estavam dialogando e interagindo com o Estado, com diversas esferas da sociedade civil (como a Igreja) e com todos os agentes promotores e reprodutores da ideologia de exclusão social, que estava pautada ainda na questão racial.

Uma das principais ferramentas desse diálogo foi precisamente a educação. A Liga Nacional Africana e a Frente Negra Brasileira propuseram a instrução escolar como o

principal meio de valorização dos indivíduos excluídos socialmente. E a campanha se deu tanto na discussão do racismo e da educação, quanto na proposição efetiva de ações para a implementação do que consideravam o melhor meio para a e l evação daque les exc lu ídos ou marginalizados: a escola.

O racismo estava sendo escamoteado pelo discurso dominante, que passava a negar sua existência. Tanto em Portugal e em Angola quanto no Brasil se construía a ideia de que a exclusão ou marginalização dos africanos e afrodescendentes ocorria não por um imperativo racial, mas por falta de desenvolvimento social e por falta de habilidades técnicas. Isso explicaria o atraso dos africanos e afrodescendentes e o fato de não ocuparem os espaços dos já mais “evoluídos”, que eram, de acordo com esse discurso, os brancos ou europeus.

Todavia, somente no campo do discurso o racismo não conseguia ser combatido e as associações passaram a promover a escolarização de seus associados. Ou seja, se a questão era de habilidade técnica, então se ofertava a condição para sua aquisição, que se traduziu em duas frentes: alfabetização e formação profissional. Tanto a Frente Negra quanto a Liga Nacional ofereceram cursos de alfabetização, cursos de explicação, de artes, de costura, de piano, etc., e fundaram escolas seguindo o

25currículo oficial.

Quando notamos que essas escolas criadas pelas associações foram encampadas pelo governo de Angola e do Brasil torna-se evidente que para a hegemonia é de significativa importância a incorporação de novas práticas sociais, ou de práticas promovidas por novos grupos sociais. Em um primeiro momento as escolas foram reconhecidas oficialmente e valorizadas enquanto espaços de formação dos angolanos e dos brasileiros, para depois serem esvaziadas de seu significado original, pois foram colocadas sob a tutela do

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escolas. A justificativa do Estado vinha na forma de um discurso que empenhava todo mundo, todos os estratos sociais, todas as classes, todos os indivíduos em um compromisso com a nação e com seu crescimento. O movimento era de elaboração de uma identidade nacional de forma que todos foram considerados, no discurso, peças fundamentais desse edifício nacional.

E aqui vale lembrarmos Gramsci novamente que destacou na sociedade civil as instituições educacionais como uma das principais agências de transmissão da cultura dominante, juntamente com a Igreja e

26a imprensa. Através da educação e da escola se pode difundir uma cultura de forma alargada e convincente e em se tratando de Brasil e de Angola no século XX a cultura que se queria difundir era a chamada cultura ocidental civilizada.

A civilização é um conceito chave para os casos em análise, conceito que Norbert Elias definiu cuidadosamente e relacionou com o modo que a Europa ocidental representa a si

27mesma. A civilização foi um grande paradigma que ordenou a movimentação dos sujeitos em Angola e no Brasil. Pois tanto lá como aqui foi a civilização europeia ocidental, ou seja, o modo de vida da Europa com seus valores e significados que estava sendo buscado tanto pelos intelectuais por meio da literatura, quanto presente nos anseios do movimento associativo. Queria-se a civilização e isso foi mais que um discurso, foi uma prática. Tanto os agentes das classes dominantes no Brasil e em Angola, quanto os indivíduos intermediários e, por fim, até mesmo parte dos extratos mais baixos da sociedade, reproduziam uma noção de ser civilizado, de que a civilização era melhor do que a incivilidade, a falta de c iv i l idade, a barbár ie, a fa l ta de conhecimentos vindos da Europa e definidos como fundamentais pelo mesmo discurso dominante.

Mas a civilização que os africanos e

afrodescendentes queriam não possuía a componente racial que existia no discurso da civilização do século XIX e das primeiras décadas do século XX. Um exemplo disso é que em nome da civilização a África foi colonizada e percebe-se isso no discurso colonial dos portugueses, que afirmava levar conhecimentos aos povos considerados inferiores. Inicialmente essa suposta inferioridade foi considerada atávica e natural da “raça negra”, o que somente com muito tempo poderia ser alterado, segundo a doutrina colonial portuguesa construída ao longo do tempo e presente no discurso de figuras de proa em assuntos coloniais, como Ol ivei ra Mart ins, e em propostas educacionais como as do Alto Comissário

28Norton de Matos. Mas a ação dalguns intelectuais africanos encontrada na literatura e no associativismo procurava esvaziar o componente racial da civilização, mantendo-a como paradigma a ser alcançado. Para tanto, não comungavam da ideia de que a afirmada inferioridade dos povos negros era atávica, mesmo que diversas vezes tenham reafirmado o pressuposto de que havia certo atraso civilizacional de alguns povos, justificado por falta de educação e oportunidades. Daí a importância da escola para os grupos aqui enfocados.

A civilização foi uma cultura hegemônica não meramente imposta, mas foi retroalimentada por práticas sociais que mantiveram o paradigma inicial, apesar de alterado e modificado, porque complementado com elementos alternativos. Exemplo disso encontramos com a valorização de rituais e tradições africanas, simbolizado pelos quimbandas no romance Uanga e nos diversos trabalhos de natureza folclórica de

29Óscar Ribas; ou com as representações do candomblé e as referências ao universo cultural de matriz africana presente na obra de Jorge Amado; ou ainda com as bolsas de estudo para os filhos da elite nativa angolana estudarem nas escolas oficiais e com a criação das próprias escolas pelas associações, como se deu com a Liga

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também foram criadas pelas associações, como a Frente Negra Brasileira, e inicialmente também eram escolas voltadas para seus membros, passando depois a abranger a comunidade pobre de forma geral, como ocorreu em Angola.

Paro caso de Angola, que fazia parte da nação portuguesa como província ultramarina até o ano de 1975, vale destacar que com o passar das décadas as escolas foram pleiteadas para todos os habitantes, incluindo os designados "indígenas". Esse pleito só passou a ser feito pela elite nativa quando esta percebeu que a raça ainda era o fator de identificação mais importante da sociedade. O fato de serem negros, mesmo que civilizados, ainda sobressaia em relação a sua condição social, pois só isso poderia explicar ganharem até 5 (cinco) vezes menos que um branco, quando ocupando o mesmo cargo e função, tendo a mesma fo rmação l i t e rá r i a e as mesmas

30habilidades. Por isso é possível afirmar que tanto no Brasil quanto em Angola segmentos da sociedade civil desejavam anular o componente racial da civilização, mantendo-a como paradigma de ordenação social.

Com esses exemplos da história do Brasil e de Angola percebemos como pode ocorrer a manutenção de uma cultura prática dominante e normatizadora da sociedade, hegemônica, portanto, apesar das alterações sociais sugeridas e promovidas por alguns grupos e apesar de ter havido a l g u n s p o u c o s p r o j e t o s c o n t r a -hegêmonicos. Os projetos alternativos e contestadores estiveram presentes, por exemplo, na literatura que evocava a Revolução em Jorge Amado ou no movimento separatista angolano a partir de 1961, movimento que propôs e rompeu com a colonização portuguesa, simbolizado na literatura não mais de Óscar Ribas, mas na de Agostinho Neto, Viriato da Cruz, Mario Pinto de Andrade e muitos outros, tema para outra investigação, agora sobre as mais novas culturas hegemônicas nos países africanos saídos do colonialismo português.

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Notas________________________________

1Ato Colonial publicado pelo Decreto nº. 18:570, ver DG nº156, I Série de 8 de julho de 1930. Disponível em www.dre.pt consultado em 13/12/2011.

2Estatuto Civil Político e Criminal dos Indígenas ou Decreto n. 16:473, no DG n. 30 de 06 de Fevereiro de 1929. Disponível em www.dre.pt consultado em 13/12/2011.

3Simon Schwarzman, Helena Maria Bousquet Bomeny, Vanda Maria Ribeiro Costa. Tempos de Capanema. São Paulo, Rio de Janeiro, Paz e Terra, FGV, 2000.

4Ver a Revogação no Estatuto do Indígena pelo Decreto-Lei 43.833 no DG nº. 207, I Série, 06 de setembro de 1961. Uma avaliação do contexto da política africana em José Honório Rodrigues. Brasil e África: outros Horizontes. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1961.

5José Flávio Sombra Saraiva. O lugar da África: a dimensão atlântica da política externa brasileira (de 1946 à nossos dias). Brasília, UNB, 1997.

6Cláudia Castelo. Passagem para a África: o povoamento de Angola e Moçambique com naturais da metrópole (1920-1974). Porto, Edições Afrontamento, 1997.

7Douglas Wheeler. História de Angola. Lisboa, Tinta da China, 2009.

8Raymond Willians. “Base e superestrutura na teoria da cultura marxista” em Cultura e Materialismo. São Paulo, Editora UNESP, 2011, p.53.

9Hughes Portelli. Gramsci e o Bloco Histórico. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1977.

10Antonio Gramsci. Concepção dialética da História. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1978.

11Antonio Gramsci. Maquiavel, a Política e o Estado. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1978.

12Ver a coletânea de entrevistas de escritores angolanos em Michel Laban. Angola: encontro com escritores. Fundação Eng. António de Almeida, Porto, s/d.

13Um rico estudo sobre a relação do comunismo com Jorge Amado se encontra em Paula Palamartchuk. Os novos bárbaros: escritores comunismo no Brasil 1929-1948. Tese de Doutorado, Unicamp. 2003.

14Para uma análise sobre a literatura angolana ver Rita Chaves. A formação do romance angolano: entre intenção e gestos. São Paulo, Coleção Via Atlântica, 1999; e, Carlos Erverdosa. Roteiro da Literatura Angolana. Luanda, União dos Escritores Angolanos, 1975.

15Benedict Anderson. Comunidades Imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo, Companhia das Letras, 2009; Edward Said. Cultura e

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Imperialismo. São Paulo, Companhia das Letras, 1995; Eric Hobsbawn. Nação e Nacionalismo desde 1780. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2002.

16Ver a biografia do autor em Gabriel Baguet Jr. Óscar Ribas a memória como escrita. Coimbra, Gráfica de Coimbra, 2008. 17René Pélissier. Histórias das Campanhas de Angola: resistências e revoltas, 1845-1941. Lisboa, Editora Estampa, 1997.

18Maria Emília Madeira Santos e Vítor Luis Gaspar Rodrigues. “Política da Sociedade das Nações para a extinção da escravatura e do trabalho forçado em colônias africanas (1922-36): o caso português” em Trabalho forçado africano: experiências coloniais comparadas. Porto, Campo das Letras/ Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto, 2006, pp. 344/345.

19Ver o anexo “Quadro Estatístico” em Fernando Tavares Pimenta. Angola, os brancos e a independência. Porto, Edições Afrontamento, 2007.

20Manuel Pereira do Nascimento. “Mais um vogal angolano no Conselho Legislativo” em Angola: revista de doutrina, estudo e propaganda instrutiva. Ano XXVI, Janeiro/Junho de 1958, nº. 156, pp. 6 e 21.

21Ney Ferreira e Vasco Soares da Veiga. Estatuto dos Indígenas Portugueses das Províncias da Guiné, Angola e Moçambique. s/e, Lisboa, 1957, 2ª. edição.

22Fernando Tavares, op.cit.

23Há uma vasta literatura sobre o assunto como Florestan Fernandes. A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo, Ática, 1978; e, Antônio S. A. Guimarães. Classe, Raça e Democracia. São Paulo, Ed. 34, 2002.

24Márcio Barbosa (org.) Frente Negra Brasileira: depoimentos. São Paulo, Quilombhoje, 1998.

25Ver uma análise desta questão em Laila Brichta. A Bem da Nação: literatura, associativismo e educação no Brasil e em Angola (1930-1961). Tese de Doutorado, UNICAMP, 2012.

26Para esta discussão ver Antonio Gramsci. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968.

27Norbert Elias. O Processo Civilizador. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1994.

28Para uma discussão sobre educação colonial ver Alfredo Noré e Áurea Adão. “O ensino colonial destinado aos 'indígenas' de Angola. antecedentes do ensino rudimentar instituído pelo Estado Novo” em Revista Lusófona de Educação. Número 001, Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, Lisboa, Portugal, 2003.

29Óscar Ribas. Uanga. Luanda, Tip. Angolana, 1969.

30Ver “Enfermeiros Nativos: uma injustiça prestes a acabar”em Angola: revista de doutrina, estudo e propaganda instrutiva. Ano XIII, Julho/Dezembro de 1945, nº. 99/104 ou Laila Brichta, op. cit.

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