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DIREITO FEDERAL REVISTA DA AJUFE AJUFE91.indb 1 22/06/2011 08:10:00

Revista Direito Ajufe

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Revista de Direito Federal nº 91

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Direito FeDeral

revista Da aJUFe

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Direito FeDeral

revista Da aJUFe

associação Dos JUízes FeDerais Do Brasil

Ano 24 – Número 91(1o semestre/2011)

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Direito FeDeral

Revista da

AJUFEUtilidade Pública FederalDecreto De 08/08/96 (DoU De 09/08/96, p. 15057)

PresiDente: Gabriel WeDy

Diretor Da revista: José lázaro alfreDo GUimarães

caPa: eDitora impetUs ltDa.PintUra Da caPa: coleção ana maria f. G. santos

minas Gerais

número De reGistro: acrílico sobre tela, 80 x 100 cm. – cheGaDa Da cavalGaDa ao serro.

assinaDa

* paiva fraDe arte e leilões

Barrocão•SimoneriBeiro

Diagramação e ProJeto gráFico: eDitora impetUs ltDa.imPressão e acaBamento: Gráfica capital ltDa.

oBs.: os textos e sUa revisão são De responsabiliDaDe De seUs aUtores.

associação dos Juízes Federais do brasil – aJUFeSHS Quadra 06 – bl. e – conjunto a, Sala 1305 a 1311

brasil XXi, edifício business center Park i,70322-915 – brasília – dF

telefone: (0xx61) 3321-8482Fax: (0xx61) 3224-7361

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Diretoria Da AJUFEbiênio 2010/2012

Gabriel de Jesus Tedesco Wedy Presidente

Fernando da Costa Tourinho Neto Vice-Presidente da 1a região

Fabricio Fernandes de Castro Vice-Presidente da 2a região

Ricardo de Castro Nascimento Vice-Presidente da 3a região

Fernando Quadros da Silva Vice-Presidente da 4a região

Nagibe de Melo Jorge Neto Vice-Presidente da 5a região

José Carlos Machado Júnior Secretário-Geral

Carla Abrantkoski Rister Primeiro Secretário

Cynthia de Araújo Lima Lopes tesoureiro

José Lázaro Alfredo Guimarães diretor de revista

Márcia Maria Ferreira da Silva diretor de cultura

Érika Giovanini Reupke diretor Social

Vladimir Passos de Freitas diretor de relações internacionais

Jorge Luís Girão Barreto diretor de assuntos legislativos

José Francisco Andreotti Spizzirri diretor de relações institucionais

Francisco de Queiroz Bezerra Cavalcanti diretor de assuntos Jurídicos

Wilson José Witzel diretor de esportes

Abel Fernandes Gomesdiretor de assuntos de interesse de aposentados

Sidmar Dias Martins diretor de comunicação

Ivo Anselmo Höhn Junior diretor administrativo

Alexandre Ferreira Infante Vieira diretor de tecnologia de informação

Antonio André Muniz Mascarenhas de Souza coordenador de comissões

Reynaldo Soares da Fonseca Suplente

Suane Moreira Oliveira Suplente

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colégio De DelegaDos seccionais

Juízes Estado

Jair Araújo Facundes ac

Gustavo de Mendonça Gomes al

Dimis da Costa Braga aM

Sem Delegado aP

Eduardo Gomes Carqueija ba

José Eduardo de Melo Vilar Filho ce

Hamilton de Sá Dantas dF

Rodrigo Reiff Botelho eS

Gabriel Brum Teixeira GO

Newton Pereira Ramos Neto Ma

Raphael Cazelli de Almeida Carvalho Mt

Raquel Domingues do Amaral Corniglion MS

José Henrique Guaracy Rebêlo MG

Daniel Santos Rocha Sobral Pa

Bianor Arruda Bezerra Neto Pb

Marta Ribeiro Pacheco Pr

Carolina Souza Malta Pe

Sem Delegado Pi

Vellêda Bivar Soares Dias Neta rJ

Fábio Luiz de Oliveira Bezerra rN

Rodrigo de Godoy Mendes rO

Helder Girão Barreto rr

Rodrigo Machado Coutinho rS

Janaina Cassol Machado Sc

Fernando Henrique Corrêa Custodio SP

Fernando Escrivani Stefaniu Se

Marcelo Velasco Nascimento Albernaz tO

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ínDice

Palavra Do PresiDente ....................................................................................11

Palavra Do Diretor ........................................................................................15

seção De DoUtrina .........................................................................................19Fechamento sistêmico do procedimento dos juizados federais pelos precedentes judiciais ............................................................................................................. 19

Caio Mércio Gutterres Taranto

As forças armadas e a garantia da lei e da ordem (Armed forces and the guarantee of law and order) ...............................................................................................47

Emerson Garcia

“Princípio” da não-cumulatividade ....................................................................67

Francisco Alves dos Santos Jr.

Aposentadorias precoces: Uma realidade a ser transformada .............................95

Francisco Luís Rios Alves

Breves considerações sobre o direito processual constitucional ........................127

Francisco Wildo

Consequências do descumprimento da obrigação ambiental prévia à transação penal .................................................................................................................173

Marcelo Adriano Michelot

Interpretando o parágrafo 3o do art. 16 da Lei no 8.213/1991 à luz da Constituição de 1988 .............................................................................................................179

Márcia Hoffmann do A. S. Turri

Supremo Tribunal Federal: Tempo de mudança e de fortalecimento ...............185

Paulo Fernando Silveira

Código modelo de cooperação interjurisdicional para Iberoamérica ................235

Ricardo Perlingeiro

Do mito da neutralidade à concepção do juiz politizado e independente como modelo de gestor judicial ..................................................................................267

Tiago Antunes de Aguiar

Recebimento e rejeição da peça acusatória, à luz da Lei no 11.719/2008............281

Victor Roberto Corrêa de Souza

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Palavra Do PresiDente

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Prezados leitores,

temos o prazer de apresentar a edição de 2011 da nossa revista da ajufe que vem para contribuir com o aprofundamento de discussões e o aperfeiçoamento da doutrina e da jurisprudência da magistratura federal. Por meio dos artigos aqui publicados, vamos ampliar o debate sobre temas importantes para a ciência jurídica e, em consequência, para a condição do estado de direito brasileiro.

São onze artigos que abordam diferentes ramos do direito, como o tributário, o penal e o previdenciário, com vistas a aprimorar as discussões sobre nosso ordenamento jurídico. especial atenção foi dada pelos autores às matérias constitucionais.

Nesta edição, o leitor vai encontrar temas como: “Fechamento Sistêmico do Procedimento dos Juizados Federais pelos precedentes judiciais”; “as Forças armadas e a Garantia da lei e da Ordem”; “Princípio da Não cumulatividade”; “aposentadorias Precoces: Uma realidade a ser transformada”; “breves considerações sobre o direito Processual constitucional”; “consequências do descumprimento da obrigação ambiental prévia à transação penal”; “interpretando o parágrafo 3o do artigo 16 da lei no 8.213/91 à luz da constituição de 1988”; “Supremo tribunal Federal - tempo de Mudança e Fortalecimento”; “código Modelo de cooperação interjurisdicional para iberoamérica”; “do Mito da Neutralidade à concepção do Juiz Politizado e independente como Modelo de Gestor Judicial”; e “recebimento e rejeição da Peça acusatória à luz da lei 11.719/2008”.

desejo a todos uma boa leitura.

Gabriel WedyPresidente

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Palavra Do Diretor

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Os temas abordados nos artigos que compõem esta revista revelam um aspecto fundamental da magistratura federal: a consciência de que a Justiça serve à sociedade, os diversos institutos jurídicos devem ser analisados e aplicados de modo a atender às necessidades da população.

É assim que caio Márcio Guterres taranto alerta para os riscos inerentes ao crescente fechamento do sistema recursal, com a introdução de mecanismos diversos de trancamento da via revisional em razão de orientação firmada pelos tribunais.

Nessa linha também se apresentam as advertências de Paulo Fernando Silveira, ao comentar o princípio da independência judicial e defender uma dose maior de ativismo, e as considerações de tiago antunes de aguiar sobre a concepção de gestão judicial politizada.

ainda nessa trilha, os fundamentos do direito Processual constitucional recebem uma apreciação profunda e sistemática de Francisco Wildo lacerda dantas. Outro belo trabalho é o de Marcelo adriano Micheloti, que cuida das conseqüências do descumprimento das obrigações assumidas pelo acusado em decorrência de transação no processo pela prática de crime ambiental.

No campo do direito material, este número conta com o valioso estudo de Francisco alves dos Santos Júnior sobre o princípio da não cumulatividade, de aplicação diuturna na atividade da maioria dos juízes federais.

Francisco luiz rios alves contribui com densa pesquisa sobre a Previdência Social no brasil, como técnica de proteção social. importante, nessa mesma seara, a reflexão de Márcia Hoffman Turri sobre a incompatibilidade entre a previsão constitucional que atribui o direito de pensão à companheira do segurado falecido e as restrições constantes do parágrafo 3o do art. 16 da lei 8.213/91.

ricardo Perlingueiro vai ao código Modelo de cooperação interjurisdicional para a Ìbero américa e destaca a imprescindibilidade da atuação coordenada dos magistrados de diversos países para dar efetividade ao processo.

extremamente relevantes e atuais são as análises da atualidade processual penal nos artigos de Vitor roberto correa de Souza, sobre o recebimento da denúncia, e de emerson Garcia, sobre a atuação das Forças armadas destinada à garantia da lei e da ordem.

aos leitores, bom proveito.

José lázaro alfredo Guimarãesdiretor da revista

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seção De DoUtrina

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Fechamento sistêmico Do ProceDimento Dos JUizaDos FeDerais Pelos PreceDentes JUDiciais1

caio márcio gUtterres taranto

JUiz feDeral sUbstitUto Do 1o JUizaDo especial feDeral De niterói;

mestre em Direito público.

Resumo: O julgamento de mérito sem citação conjugado com outros instrumentos processuais de aplicação de precedentes judiciais – especialmente a não-admissão de recurso inominado por força do acolhimento de dada orientação e a vinculação em controle incidental, no procedimento dos Juizados especiais Federais (JeFs) – pode gerar um fechamento do sistema recursal apto a fomentar o surgimento de um ambiente qualificado por violência simbólica.

Palavras-Chave: Processual civil. instrumentos processuais de aplicação de precedentes judiciais. Juizados especiais Federais (JeFs).

Abstract: the trial without citation of merit in conjunction with other procedures of application of judicial precedents - particularly the non-admission of appeal under innominate host link in amended guidance and control incidental, in the procedure of the Federal Small claim courts (JeFs) – can generate a closed recursal system able to foster the emergence of an environment qualified by symbolic violence.

KEYWORDS: Federal Small claim courts. civil Procedure. Procedural tools of judicial application of precedents.

1 recebido em 7/11 e aprovado em 12/12/2008.

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INTRODUÇÃO a racionalidade,2 utópica flor azul, quase nunca se mantém constante ao

longo das práticas jurídicas; apesar do culto à normatividade, enquanto “fórmulas mágicas”3 são pensadas como solução para um contexto crônico de crise do Poder Judiciário. a argumentação, então, é preenchida por assertivas pré-construídas, como pseudoprecedentes e (pseudo) “princípios” a serem aplicados por mera subsunção. essas praxes não se referem ao pragmatismo argumentativo, mas à ausência de compreensão, inclusive histórica, de certos institutos.

Os precedentes atuam em um campo pragmático de linguagem jurídica e a devida aplicação necessita ser contextualizada pelo magistrado ou pelo interessado. em outras palavras, isoladamente não assumem o status de argumento pragmático, ao menos no sentido retórico defendido por Perelman,4 mas podem potencializar a transmissão da matéria de direito quando inseridos no discurso jurídico, especialmente em um processo posterior. Não possuiriam razão de ser, caso o sistema processual não desenvolva instrumentos para aplicá-los, inserindo-os na prestação da atividade jurisdicional.

Os JEFs consubstanciam uma arena de confluência de instrumentos de acesso à Justiça que, uma vez deturpados, se tornam obstruções (ora racionais ora irracionais) à efetiva prestação da atividade jurisdicional. trata-se de “sumarizar” o procedimento previsto na lei no 10.259/2001 com os instrumentos processuais de aplicação dos precedentes jurisdicionais a partir do julgamento do mérito sem citação e da posterior sistematização, com a inadmissão do recurso inominado pelo acolhimento de uma dada orientação ou com a produção de efeito vinculante em sede de controle incidental.

Uma potencial deturpação pragmaticista (e não pragmática) pode fomentar um ambiente de violência simbólica por parte dos precedentes, sobretudo quando os instrumentos de aplicação se transmudam em meios de imposição de uma decisão, gerando uma supracontrolabilidade difusa. Fecha-se, assim, o sistema recursal do rito 2 Habermas aborda o tema da seguinte forma: “a normatividade no sentido da orientação obrigatória do agir não coincide com a racionalidade do agir orientado pelo entendimento em seu todo. Normatividade e racio-nalidade cruzam-se no campo da fundamentação de intelecções morais, obtidas em um enfoque hipotético, as quais detêm uma certa força de motivação racional, não sendo capaz, no entanto, de garantir por si mesma a transposição das idéias para um agir motivado.” (HaberMaS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. V. i, 2. ed; tradução de Flavio beno Siebeneicheler. rio de Janeiro: tempo brasileiro, 2003. p. 21).3 MOreira, José carlos barbosa. Súmula, jurisprudência, precedentes: uma escalada e seus riscos. Revista Dialética de Direito Processual, São Paulo, no 27, jun. 2005. Saraiva, 2004. p. 6. temas de direito Processual – 8a Série.4 Perelman chama de argumento pragmático “um argumento das conseqüências que avalia um ato, um acontec-imento, uma regra ou qualquer outra coisa, consoante suas conseqüências favoráveis ou desfavoráveis; transfere-se assim todo o valor destas, ou parte dele, para o que é considerado causa ou obstáculo.” (PerelMaN, chaïm. Retóricas. tradução de Maria ermantina de almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 11).

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dos Juizados especiais Federais em desarmonia com o múnus revisório constitucional exercido pelos órgãos jurisdicionais responsáveis pela defesa do jus in thesi.

1. A evolução histórica do julgamento de mérito sem citaçãoa aplicação do julgamento do mérito sem citação remonta a 2003,5 segundo

ano de implantação dos Juizados especiais Federais, quando um número de demandas muito além da possibilidade de processamento do Judiciário Federal, a maioria repetitivas, foi proposto, com ênfase para as relativas ao reajuste de 39,67% pela aplicação do Índice de reajuste do Salário Mínimo sobre o salário-de-contribuição de fevereiro de 1994 dos benefícios previdenciários,6 a qual se sobrepunha a outras demandas de massa, especialmente as referentes ao reajuste dos benefícios previdenciários pelo iGP-di e ao pagamento à vista da diferença de 3,17% dos servidores públicos civis.

Forte comoção social foi formada pela divulgação nos veículos de comunicação de massa,7 no sentido de que, em 20/11/2003, estaria “prescrito” o direito de revisão de todos benefícios previdenciários, apesar do esclarecimento em sentido contrário por parte da comunidade jurídica, associada à divulgação do direito a “reajuste de 39,67% incidente sobre o valor do respectivo benefício” (fato inverídico). Vale lembrar que, em 19/11/2003, os então ministros da Previdência Social, ricardo berzoini, e da casa civil, José dirceu, enviaram ao presidente da república a emissão de Mensagem interna no 57/cc/aGU/MPS para submeter proposta de edição da Medida Provisória no 138, dispondo que:

[...] No atual momento, o problema se acentua, em face da proximidade do vencimento do prazo decadencial ora em vigor que tem levado milhares de cidadãos a procurar as agências da Previdência Social e órgãos do Poder judiciário, notadamente dos Juizados especiais Federais. Há, por parte da sociedade em geral, em todo o país, clamor

5 Sobre o aspecto histórico, encontra-se equivocado o Superior tribunal de Justiça no resp no 780.825, rela-tora: ministra Nancy andrighi.6 em relação a essa demanda, foi ajuizada, em novembro de 2003, pelo Ministério Público Federal, a ação civil Pública no 2003.51.01.533987-6 perante o juízo da 38ª Vara Federal da Seção Judiciária do rio de Janeiro, sendo prolatada decisão com seguinte dispositivo: “Pelas razões expostas, presentes os pressupostos legais au-torizadores da tutela de urgência, nos termos do artigo 273 do cPc, deFirO eM Parte O PedidO de tUtela aNteciPada, para determinar ao iNSS que revise todos os benefícios de prestação continuada, concedidos pelo iNSS no estado do rio de Janeiro, cuja renda mensal tiver sido iniciada ou houver de ser calcu-lada computando-se o salário-de-contribuição referente a fevereiro de 1994, incluindo-se, na atualização deste, o valor integral do irSM, no percentual de 39,67%, implantando as diferenças positivas nas parcelas vincendas. Concedo para tanto o prazo de 180 (cento e oitenta) dias para conclusão de todas as revisões findo o qual, se não cumprida a decisão e não apresentada justificativa, estará o Requerido sujeito ao pagamento de multa diária de r$ 500,00 (quinhentos reais). em réplica. intimem-se. cumpra-se. rio de Janeiro, 19 de novembro de 2003”.7 a respeito do tema, vide reportagem publicada no jornal Extra, de 17 de fevereiro de 2003.

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quanto aos efeitos que decorrerão da manutenção do prazo decadencial ora previsto, que atingiria milhares de cidadãos, os quais, por não terem oportunamente exercido seu direito de pleitear a revisão, por desconhecimento ou falta de acesso à Justiça e à Previdência seriam impedidos de fazê-lo posteriormente. agrava o fato a circunstância de que em algumas localidades importantes, como é o caso do estado do rio de Janeiro, o último dia do prazo que vinha sendo noticiado pelos meios de comunicação será feriado local (dia 20 de novembro).

No caótico mês de novembro de 2003, foram ajuizados 92.509 processos na Seção Judiciária do rio de Janeiro, sendo que 36.609 tinham por objeto o irSM de fevereiro de 1994 (39,58% dos processos ajuizados).8 Posteriormente, em 23/7/2004, o Poder executivo editou a Medida Provisória no 201, convertida na lei no 10.999/2004, que autoriza, mediante acordo, a revisão dos benefícios previdenciários e o pagamento de diferenças vencidas, estipulando-se transação judicial e extrajudicial.

Na emissão de Mensagem no 17/2004-MF/MPS, de 23/7/2004, os ministros da Fazenda e Previdência Social informaram:

trata-se de 1.883.148 (um milhão, oitocentos e oitenta e três mil, cento e quarenta e oito) benefícios que potencialmente teriam sido prejudicados, cujos titulares poderão beneficiar-se da revisão ora proposta. O valor do passivo corresponde aos cinco anos anteriores a agosto de 2004 foi estimado em r$ 12,33 bilhões. além desse valor, correspondente a “atrasados” (estoque), haverá, também um impacto no fluxo de despesa corrente do INSS da ordem de R$ 2,313 bilhões anuais, pois continuam ativos cerca de 1,58 milhão desses benefícios. em cumprimento ao disposto no art. 17 da lei complementar no 101, de 4 de maio de 2001, cumpre informar que a despesa efetivamente prevista para o presente exercício será de, no máximo, seiscentos e setenta milhões de reais, correspondente à revisão dos benefícios a partir da competência agosto de 2004. trata-se do valor máximo possível, a ser verificado apenas na hipótese de adesão de todos os potenciais benefícios. desse valor deverão ser deduzidos os montantes que forem devidos aos beneficiários já em gozo da revisão por força de decisão judicial.Para os exercícios de 2005 e 2006, além do desembolso de r$ 2,3 bilhões por ano correspondente às competências vincendas (fluxo), estima-se o gasto adicional de r$ 1,5 bilhão e r$ 2 bilhões, respectivamente, para pagamento das primeiras vinte e quatro parcelas dos atrasados.

8 Fonte: direção do Foro da Seção Judiciária do rio de Janeiro.

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como solução para uma distribuição caótica, determinados magistrados optaram por julgar improcedentes demandas cuja matéria de mérito já havia sido consolidada, criando e desenvolvendo, de forma pragmática, esse instrumento de aplicação de precedentes jurisdicionais.9 a questão a ser ressaltada gravita em torno do acesso à prestação jurisdicional de demandas efetivamente procedentes, como a hipótese das ações sobre o reajuste de 39,67% sob o salário-de-contribuição de fevereiro de 1994 pelo irSM. Para tanto, fora necessário o julgamento célere de improcedência de outras ações que já continham consolidação jurisprudencial em sentido contrário à pretensão dos demandantes, como as que envolviam a correção dos benefícios previdenciários pelo iGP-di.10 esse foi o paradoxo que ensejou a formação do julgamento de improcedência sem citação.

Para evitar atos processuais despojados de finalidade e concentrar a estrutura orgânica dos juizados em ações potencialmente procedentes, dispensou-se a citação sem, contudo, indeferir a petição inicial para se apreciar, de imediato, o mérito. Ora, para demandas sobre direitos individuais homogêneos, foi utilizada a máxima de experiência, na medida em que o teor das contestações quanto à matéria de direito já era conhecido e inexistia prejuízo para o réu, que, quase sempre em sede de JeFs, consubstancia o Poder Público.

esse momento histórico, de certa forma, inspirou o legislador reformista a provocar o Projeto de lei no 4.728/2004, que propunha a seguinte alteração ao código de Processo civil (cPc):

Art. 285-A. Quanto a matéria controvertida for unicamente de direito, em processos repetitivos e sem qualquer singularidade, e no juízo já houver sentença de total improcedência em caso análogo, poderá ser dispensada a citação e proferida sentença reproduzindo a anteriormente prolatada.§ 1o Se o autor apelar, é facultado ao juiz, no prazo de cinco dias, cassar a sentença e determinar o prosseguimento da demanda.§ 2o caso mantida a sentença, será ordenada a citação do réu para responder ao recurso.

9 Francisco de Queiroz bezerra cavalcanti salienta a experiência dos JeFs na 5ª região, com a extinção em bloco de milhares de processos, até no nascedouro, antes mesmo da previsão do artigo 285-a do código de Processo civil. (caValcaNti, Francisco de Queiroz bezerra. considerações acerca da improcedência liminar nas ações repetitivas: um estudo sobre a compatibilidade do artigo 285-a do código de Processo civil, com o sistema processual vigente. Revista da Associação dos Juízes Federais do Brasil, no 85, ano 23, 3o trim. 2006. p. 127-144).10 essa demanda de massa teve por objeto a atualização dos benefícios previdenciários nos anos de 1997, 1999, 2000 e 2001 com base no Índice Geral de Preços – iGP-di (Fundação Getúlio Vargas). acolhendo essa pre-tensão, a turma Nacional de Uniformização dos Juizados especiais Federais (tNU), na sessão de 30/9/2003, editou a Súmula no 3: “Os benefícios de prestação continuada, no regime geral da Previdência Social, devem ser reajustados com base no iGP-di nos anos de 1997, 1999, 2000 e 2001”. entretanto, o StF, ao apreciar o re-curso extraordinário no 376.846, na sessão de 24/9/ 2003, entendeu constitucionais os artigos 12 e 13 da lei no 9.711/1998; 4o, §§ 2o e 3o, da lei no 9.971/2000; 1o, da Medida Provisória no 2.187-13, de 24 de agosto de 2001, e 1o do decreto no 3.826/2001, revogando a orientação da tNU e das turmas recursais dos JeFs.

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esse projeto de lei foi convertido na lei no 11.277/2006, que inseriu o artigo 285-A ao CPC, com a seguinte redação final:

Art. 285-A. Quando a matéria controvertida for unicamente de direito e no juízo já houver sido proferida sentença de total improcedência em outros casos idênticos, poderá ser dispensada a citação e proferida sentença, reproduzindo-se o teor da anteriormente prolatada.§ 1o Se o autor apelar, é facultado ao juiz decidir, no prazo de 5 (cinco) dias, não manter a sentença e determinar o prosseguimento da ação.§ 2o caso seja mantida a sentença, será ordenada a citação do réu para responder ao recurso.

Tanto a redação do projeto de lei quanto a do texto definitivo sofrem merecidas críticas de redação dos estudiosos do movimento reformista.11 de forma geral, a doutrina aponta que o dispositivo sequer faz menção a expressões como “súmula ou jurisprudência dominante”, dando a entender que basta apenas o juízo ter prolatado sentença em matéria similar. Salienta, também, o pensamento doutrinário, que o artigo possui à expressão “matéria controvertida” em um contexto que dispensa a citação, bem como utiliza o termo “casos idênticos” apto a se confundir com a identidade de ações.

as críticas procedem, com a ressalva de que texto não se confunde com norma. As referidas redações, tanto a da proposta inicial como a final, não discorrem a respeito de se tratar de um instrumento de aplicação de precedente jurisdicional, nem tecem menções de que um dado julgado figurará como paradigma. As redações não disciplinam que se trata de instrumento apto a reger o julgamento de demandas de massa, desconsiderando os fatores históricos que ensejaram o julgamento de mérito sem citação.

a redação consagra verdadeiro culto ao positivismo pela crença à atemporalidade do fenômeno jurídico e à destituição das normas dos fatores históricos, como se possível fosse. instiga a discricionariedade (exacerbada) do julgador, ao estabelecer como pressuposto não a existência de um precedente, mas de um outro caso sentenciado pelo juízo. Uma interpretação do artigo 285-a em desconformidade com a constituição esbulha a função dos tribunais superiores de defesa do jus in thesi, a partir da vinculação à razão de decidir, e fomenta a utilização de pseudoprecedentes.

11 Nesse sentido vide: caValcaNti, op. cit., p. 127-144; MattOS, luiz Norton baptista de. a refor-ma Processual. Revista da Associação dos Juízes Federais do Brasil, no 82, ano 23, 4o trim. 2005. p. 159-199; MOreira, op. cit., p. 58.

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2. A inovação da concepção tradicional de cognição exauriente perante o artigo 285-A como instrumento processual de aplicação de precedentes

Ultrapassadas as observações de redação, esse instrumento de origem pretoriana também sofre severas críticas do pensamento doutrinário quanto à validade, à aplicabilidade e à eficácia. Quanto à constitucionalidade, o artigo 285-A sofre muito mais que críticas: constitui objeto da ação direita de inconstitucionalidade (adi) no 3.695 (relator Ministro cezar Peluso) impetrada pela Ordem dos advogados do brasil, que questiona a lesão desse dispositivo em face dos princípios da legalidade, segurança jurídica, contraditório e devido processo legal, bem como ao direito de ação. A impetrante, na petição inicial, defende que o dispositivo cria a figura da “sentença emprestada”, vinculante e impeditiva do curso do processo em primeiro grau. Nessa ação, o instituto brasileiro de direito Processual pede a inclusão na qualidade de amicus curiae,12 enquanto o procurador-geral da república emitiu parecer opinando pela improcedência do pedido.

Nesse contexto, merece ênfase o trabalho de daniel Mitidiero,13 ao defender a inconstitucionalidade do artigo 285-a do cPc, partindo da ideia de “processo como actum trium personarum, democrático, cooperativo e permeado pelo contraditório”. defende, ainda:

Parece-nos, antes, que esse expediente de sumarização instrumental guarda relação justamente com a outra face da efetividade, identificada outrora por carlos alberto Álvaro de Oliveira como ‘efetividade perniciosa’, que se encontra em aberto conflito com os direitos fundamentais encartados em nosso formalismo processual. com efeito, a pretexto de agilizar o andamento dos feitos, pretende o legislador sufocar o caráter dialético do processo, em que o diálogo judiciário,

12 O instituto brasileiro de direito Processual, na petição em que requer a intervenção na qualidade de amicus curiae na adi no 3.695, subscrita pelo eminente Professor Cássio Scarpinella Bueno, sustenta que “fica claro que o art. 258-a do código de Processo civil, introduzido pela lei no 11.277/2006, não é inconstitucional. ele não viola, venia concessa das alegações da petição inicial, os princípios constitucionais lá referidos: isonomia, se-gurança jurídica, direito de ação, contraditório e devido processo legal. Muito pelo contrário, venia redobrada, a técnica legislativa empregada mais recentemente realiza adequadamente outros valores (princípios) constitucionais na busca de um processo civil de resultados, mais efetivo e que realiza de forma segura, isonômica, equânime e racional a distribuição da justiça pelos juízos de primeiro grau de jurisdição nos ‘casos repetitivos’. Não há como, em uma sentença, confundir ‘direito de ação’ com desperdício da atividade jurisdicional naqueles casos em que, à falta de outros argumentos, a sentença de improcedência, mesmo que liminar, é providência infastável”. (petição disponível em: <http://www.direitoprocessual.org.br/dados/File/enciclopedia/textos%20importantes/Micro-soft%20Word%20-%20amicus%20curiae%20-%20285-a%20-%20ibdP.pdf>. acesso em: 2/3/2009)13 MitidierO, daniel. a multifuncionalidade do direito fundamental ao contraditório e a improcedência liminar (art. 285-a, cPc): resposta à crítica de José tesheiner. Revista de Processo no 144, ano 32, fevereiro de 2007, p.105-111; MitidierO, daniel. Comentários ao Código de Processo Civil, t. iii (arts. 270 a 331). São Paulo: 2006, p. 173 e 174. idem. Elementos para uma teoria contemporânea do processo civil brasileiro. Porto alegre: livraria do advogado, 2005, p. 53.

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pautado pelos direitos fundamentais, propicia ambiente de excelência para reconstrução da ordem jurídica e conseguinte obtenção de decisões justas. aniquila-se o contraditório, subtraindo-se das partes o poder de convencer o órgão jurisdicional do acerto de seus argumentos. Substitui-se, em suma, a acertada combinação de uma legitimação material e processual das decisões judiciais por uma questionável legitimação pela eficiência do aparato judiciário, que, de seu turno, pode facilmente desembocar na supressão do caráter axiológico e ético do processo e de sua vocação para ponto de confluência de direitos fundamentais.É lugar comum observar a multifuncionalidade dos direitos fundamentais. dessa comezinha, mas extraordinária impostação, ressai que o direito fundamental ao contraditório não se cinge mais a garantir tão-somente a bilateralidade da instância, antes conferindo direito, tanto ao demandante como ao demandado, de envidar argumentos para influenciar na conformação da decisão judicial. É o que vem se consagrando na doutrina, paulatinamente, como a dimensão ativa do direito fundamental ao contraditório, consagrada à vista do caráter fortemente problemático do direito contemporâneo, constatação hoje igualmente corrente, e da complexidade do ordenamento judicial atual.Nessa perspectiva, o contraditório deixa de ser um direito fundamental que se cifra à esfera jurídica do demandado, logrando pertinência a ambas as partes, abarcando, portanto e evidentemente, inclusive o demandante. a nosso juízo, o art. 285-a, cPc, está a ferir, justamente, o contraditório do autor, e não o do réu.enveredando por essa senda, o contraditório deixa de ser uma norma de igualdade formal para assumir um papel central na experiência do processo, cujo resultado não pode ser outro que não um “ato de três pessoas” como um autêntico ambiente democrático e cooperativo. a igualdade substancial vai, evidentemente, ser atendida de maneira mais adequada nessa segunda impostação, porque possibilita uma efetiva participação daqueles que sofrerão a eficácia do processo sobre a formação do provimento jurisdicional.

Quanto às críticas relativas à aplicabilidade e à eficiência, Luiz Rodrigues Wambier et. al.14 defendem que o artigo 285-a é uma

demonstração eloqüente e lamentável da tentativa de resolver os grandes problemas estruturais do País (inclusive do processo) pela via da negativa de fruição das garantias constitucionais”. Sustentam que os tribunais serão sobrecarregados com apelações e terão de “cumprir, de certo modo, papel de juízo de primeiro grau, na hipótese do réu oferecer suas contra-razões.

14 WaMbier, luiz rodrigues; MediNa José Miguel Garcia; WaMbier, teresa arruda alvim. Breves Comentários à Nova Sistemática Processual Civil 2. São Paulo: revista dos tribunais, 2006. p. 63, 64 e 71.

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Por fim, concluem:Que diferença trará, esse novo método, em relação ao julgamento antecipado da lide, esse sim, com pleno contraditório e com o exaurimento da atividade jurisdicional em primeiro grau? certamente nenhuma diferença expressiva, até porque a única ‘fase’ que se está evitando será a da citação seguida da apresentação de contestação. Ora, se se trata de matéria de direito, logo após o eventual exercício do direito de defesa, pelo réu, ou, ainda, na hipótese de revelia, pode o magistrado (pela via do julgamento antecipado) proferir sentença, sem qualquer atropelo e sem qualquer fissura no conjunto de garantias processuais constitucionais.Vê-se, portanto, que a aplicação do art. 285-a deverá ser realizada de modo extremamente comedido, apenas em casos em que, evidentemente, de sua aplicação decorram conseqüências vantajosas, não só para os juízes de primeiro grau e dos tribunais, mas, especialmente, para o jurisdicionado. Não sendo assim, a aplicação do art. 285-a poderá resultar em manifesto desperdício de tempo e de atividade jurisdicional, o que estaria em descompasso com a garantia constitucional de duração razoável e celeridade da tramitação do processo (cF, art. 5o, lXXViii, inserido pela ec no 45/2004).Note-se, ademais, que, imediatamente após a apresentação de resposta pelo réu, poderá o juiz, versando a causa apenas sobre matéria de direito, proferir sentença julgando antecipadamente a lide (cPc, art. 330, i), emitindo uma sentença mais amadurecida sobre o caso, e, por isso mesmo, com maior probabilidade de ser mantida, se contra ela houver recurso.a opção pelo mecanismo previsto no artigo 330, i, em detrimento do referido no art. 285-a, tem, ainda, a vantagem de evitar que ocorram vários incidentes processuais de difícil solução, tais como aqueles indicados acima.

Uma vez sintetizadas as críticas a esse instrumento relativas à constitucionalidade, à aplicabilidade e à eficiência, cabe tecer respectivos comentários no contexto de busca para a adequada aplicação de precedentes na experiência brasileira.15 a primeira colocação a ser feita gravita em torno da necessidade de se interpretar, de acordo com a constituição, o disposto no artigo 285-a do código de Processo

15 a existência dos instrumentos processuais de aplicação dos precedentes jurisdicionais é defendida por nós desde 2006 (taraNtO, caio Márcio Gutterres. O incidente de repercussão geral como instrumento de aplicação de precedente jurisdicional: novas hipóteses de efeitos vinculante e impeditivo de recurso em sede de controle incidental de constitucionalidade. Revista da Seção Judiciária do Rio de Janeiro, n. 19, abr. 2007. p. 93-108).

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civil, lembrando-se a dissociação que o intérprete deve fazer entre texto e norma,16 ao ponto de visualizar sistema pragmático na linguagem a ser atribuída, para torná-lo mecanismo apto a satisfazer aos anseios constitucionais de concretização do devido processo legal e do acesso à prestação célere da atividade jurisdicional.

com o merecido respeito aos críticos do julgamento de mérito sem citação, constitucionalidade e inconstitucionalidade são construções (hermenêuticas) e inexistem fora de um contexto fático e argumentativo. O artigo 285-a exige interpretação de acordo com a constituição tal qual todos os demais dispositivos infraconstitucionais, mesmo porque se encontra ultrapassada a decantação existente entre jurisdição constitucional e jurisdição ordinária.17

a exposição de Motivos da lei no 11.277/2006 mostra-se apta a inspirar vários dos críticos e comentaristas do movimento reformista, a ponto de lhes vendar os olhos para o contexto de surgimento e aplicação desse instrumento voltado às demandas multitudinárias. diversos estudiosos que se atreveram a adentrar no estudo desse dispositivo, como Francisco de Queiroz bezerra cavalcanti,18 José Henrique Mouta araújo19 e leonardo José carneiro da cunha20 ponderam a realidade massificadora que gerou o artigo 285-A, fato desconsiderado pela referida exposição de motivos.

Para a proposta compreensão constitucional do julgamento de mérito sem citação, é necessário que o precedente a figurar como paradigma se baseie em orientações consolidadas dos tribunais responsáveis pela defesa do jus in thesi, ou seja, o Superior tribunal de Justiça, a turma Nacional de Uniformização dos Juizados especiais Federais e o Supremo tribunal Federal, apesar de o texto não se referir às expressões “súmula ou jurisprudência consolidada” ou, conforme propomos, a

16 “Normas não são textos nem o conjunto deles, mas os sentidos construídos a partir da interpretação sistemática de textos normativos. Daí se afirmar que os dispositivos se constituem no objeto da interpretação; e as normas, no seu resultado. O importante é que não existe correspondência entre norma e dispositivo, no sentido de que sempre que houver um dispositivo haverá uma norma, ou sempre que houver uma norma de-verá haver um dispositivo que lhe sirva de suporte.” (ÁVila, Humberto. Teoria dos princípios. Da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 22)17 lênio Streck leciona que “velhos paradigmas de direito provocam desvios na compreensão do sentido de constituição e do papel da jurisdição constitucional. antigas teorias acerca da constituição e da legislação ainda povoam o imaginário dos juristas, a partir da divisão entre ‘jurisdição constitucional’ e ‘jurisdição ordinária’, entre ‘constitucionalidade’ e ‘legalidade’, como se fossem mundos distintos, separáveis metafisicamente, a partir do esquecimento daquilo que Heidegger chamou de diferença ontológica”. (StrecK, lênio luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito, 2. ed. rio de Janeiro: Forense, 2004).18 caValcaNti, op.cit., p. 127-144.19 araúJO, José Henrique Mouta. Processos repetidos e os poderes do magistrado diante da lei no 11.277/2006: Observações e críticas. Revista Dialética de Direito Processual, v. 37, São Paulo, dialética, 2006.20 cUNHa, leonardo José carneiro da. Primeiras impressões sobre o artigo 285-a do cPc. Julgamento imediato de processos repetitivos: uma racionalização para as demandas de massa. Revista Dialética de Direito Processual, no 39, jun. de 2006, p. 95.

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precedentes jurisdicionais das respectivas cortes. em outras palavras, o artigo 285-a não disciplina processo subjetivo, mas demandas cujo thema decidendum já fora devidamente objetivado pelos referidos tribunais.21

essa exigência é necessária para evitar que esse instrumento obstrua o acesso às vias excepcionais. trata-se de tema já decidido pelo direito Pretoriano, como denota o exposto pelo Superior tribunal de Justiça no recurso especial no 299.196-MG, relatado pelo ministro Franciulli Netto:

a expressão “jurisprudência dominante do respectivo tribunal” somente pode servir de base para negar seguimento a recurso quando o entendimento adotado estiver de acordo com a jurisprudência do Superior tribunal de Justiça e do Supremo tribunal Federal, sob pena de negar às partes o direito constitucional de acesso às vias excepcionais (extraordinária e especial).22

dessa forma, interpretar o artigo 285-a em desconformidade com a constituição pode fazer com que haja julgamento de mérito com base em pseudoprecedentes ou em sentença anterior do juízo sem pronunciamento consolidado dos tribunais responsáveis pela tutela do jus in thesi ou em desarmonia com as orientações já fixadas.

como o dispositivo é expresso, esse instrumento apenas pode ser aplicado quando a matéria for unicamente de direito. Por outro lado, é necessário que o magistrado que o aplique já tenha prolatado sentença de mérito em demanda cujo thema decidendum seja a mesma matéria, envolvendo direito individual homogêneo ou coletivo em sentido estrito. em outras palavras: que ambas as demandas sejam fragmentos do mesmo fenômeno massificador. Essa exigência dirigida ao magistrado consubstancia verdadeira garantia do jurisdicionado, de status constitucional, na medida em que se extrai força normativa do parágrafo 2o do artigo 5o do texto Magno, que deve ser compreendida no contexto da função constitucional dos tribunais Superiores de tutelar o jus in thesi para evitar provimentos jurisdicionais díspares a jurisdicionados na mesma situação jurídica. adequa-se, assim, esse instrumento de aplicação do precedente jurisdicional ao devido processo legal e ao princípio da isonomia.

Portanto, na adi no 3.695, deverá o Supremo tribunal Federal atribuir interpretação de acordo com a constituição à lei no 11.277/2006 para, sem a redução do texto, fixar que o artigo 285-A do CPC deve ser aplicado em demandas

21 Nesse sentido, Cássio Scarpinella Bueno leciona que “assim, para todos os fins, parece-me que a melhor interpretação a ser dada ao art.285-a é aquela que admite a rejeição liminar da petição inicial apenas quando a ‘tese repetitiva’ já tenha sido repelida pelos tribunais Superiores, como objetivamente podem demonstrar suas súmulas ou, quando menos, a sua jurisprudência notoriamente predominante”. (bUeNO, cássio Scarpinella. a nova etapa da reforma do código de Processo civil. V. 2, 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 59)22 2ª turma, publicado em 5/8/2002.

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massificadas em que a matéria de direito já tenha sido consolidada por precedentes das cortes responsáveis pela defesa do direito objetivo.23

Uma aplicação desse instrumento fora de um contexto de demandas multitudinárias pode, sim, consubstanciar lesão ao devido processo legal e à isonomia. a hipótese fática poderá exigir a aplicação do processo paradigma por negação, ou seja, poderá (deverá, em algumas situações) o magistrado, fora da hipótese de demandas de massa, ter de aplicar o distinguishing24 como método de decisão.

O artigo 285-a instiga o aplicador a separar um precedente jurisdicional de pseudoprecedentes – ou seja, consolidações formadas para pura e simplesmente projetarem-se para o futuro, sem o respeito ao procedimento de gênese de uma orientação, assumindo existência autônoma para que se fundamentem decisões judiciais a posteriori. Ora, esse risco, por si só, não torna o dispositivo em comento inconstitucional.

Ultrapassada essa observação, esse instrumento de aplicação de precedente jurisdicional, adequadamente utilizado, representa mecanismo de celeridade e eficiência, haja vista que concede a resposta da atividade jurisdicional com o mínimo de atos praticados e com a mesma segurança jurídica, pois dispensa a citação e várias rotinas cartorárias, expondo, desde o início, as razões da improcedência da pretensão do demandante.25

23 de certa forma, a necessidade de se determinar interpretação, de acordo com o artigo 285-a da constitui-ção, é exigida pelos comentaristas e críticos do movimento reformista. luiz rodrigues Wambier, teresa arruda alvim Wambier e José Miguel Garcia Medina lecionam que “o exame desse conjunto de normas permite extrair um princípio jurídico fundamental, que permeia todo o direito processual civil: o de que devem ser observadas, nas decisões proferidas pelos órgãos jurisdicionais, as orientações traçadas pela jurisprudência firmada pelas instâncias hierarquicamente superiores – em especial o Supremo tribunal Federal e o Superior tribunal de Justiça, que existem para determinar a inteligência das normas constitucionais e federais infra-constitucionais respectivamente. [...] a coincidência entre a orientação adotada pelo juízo de primeiro grau e o entendimento manifestado por tribunal que lhe seja hierarquicamente superior é, assim, pressuposto fundamental para a incidência do art. 285-a.” (op. cit., p. 66-67) No mesmo sentido, luiz Norton baptista de Mattos sustenta que “a regra só faz sentido se a questão jurídica já está pacificada na jurisprudência dos Tribunais Superiores ou do Supremo tribunal Federal contrariamente ao pleito do autor e o juiz adota o mesmo entendimento, pois a providência seria racional, possibilitando o máximo de resultado do processo com o mínimo de atividade processual.” (op. cit., p. 159-199).24 taraNtO, caio Márcio Gutterres. A utilização do método distinguishing pelo Supremo Tribunal Fed-eral. a experiência da Medida cautelar na adc no 4-6/dF e da Súmula 729, in revista JurisPoiesis, ano 8, n. 8, 2005, p. 43-60. Revista da Seção Judiciária do Rio de Janeiro no 14, julho de 2005, p. 19-35. celso de albu-querque Silva sustenta que a aplicação do método distinguishing significa criar uma exceção à regra geral, “na medida em que, como o caso que atualmente se decide se encontra por ela abrangido, deveria ser, mas de fato não é por ela alcançado.” (SilVa, celso de albuquerque. Do efeito vinculante: sua legitimação e aplicação. rio de Janeiro: lumen Juris, 2005, p. 247)25 cássio Scarpinella bueno leciona que o dispositivo em comento “repousa na busca de maior racionalidade e celeridade na prestação jurisdicional nos casos em que há, já, decisão desfavorável à tese levada novamente e repetitivamente para solução perante o estado-juiz”. (op. cit., p. 53)

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Por outro lado, o magistrado, ao aplicar o instrumento do artigo 285-a do cPc utiliza sua máxima de experiência quanto ao teor da contestação,26 pois se trata de demanda multitudinária cujo thema decidendum é unicamente de direito. daí não haver prejuízo, tanto ao réu quanto ao autor, pela não-citação, na medida em que o demandado, caso citado, provavelmente apresentaria contestação idêntica à de um sem-número de processos.

Por fim, o adequado uso do instrumento previsto no artigo 285-A do CPC não é apto a lesionar a finalidade conciliatória da atividade jurisdicional. Em geral, demandas massificadas, cujo thema decidendum seja matéria exclusivamente de direito são propostas em face do Poder Público.27 ao menos é a realidade atual. Qual seria, então, o interesse ou a razão de o estado transacionar, na qualidade de demandado, em dada situação na qual há orientação consolidada e talvez vinculante no sentido da improcedência da pretensão do demandante? a resposta, claro, é nenhuma.

dessa forma, sem dúvida, devidamente aplicado, o instrumento previsto no artigo 285-a do cPc consubstancia mecanismo mais vantajoso do que o julgamento antecipado da lide: representa uma verdadeira ferramenta para o acesso à justiça, ao desobstruir as conclusões dos juízos para os demais processos serem devidamente julgados.

3. Fechamento do sistema recursal pela sistematização da extinção do processo com o exame do mérito sem citação com outros instrumentos processuais de aplicação dos precedentes

Os instrumentos de aplicação28 de precedentes consubstanciam ações autônomas ou incidentes processuais desenvolvidos para que uma dada orientação

26 em sentido análogo, leonardo José carneiro da cunha defende que “as contestações, nesses casos, contêm o mesmo teor, consistindo em reproduções sucessivas, daí se seguindo sentenças absolutamente idênticas, ape-nas adaptadas para cada caso, com a modificação do número do processo e do nome das partes”. (op. cit., p. 94)27 essa constatação também fora percebida por leonardo José carneiro da cunha, ao dispor que “com efeito, não é raro que uma determinada situação atinja, em massa, uma quantidade exagerada de pessoas, que, diante disso, passariam a ingressar em juízo na busca do reconhecimento de sue direito. tal situação ocorre com bas-tante frequência em demandas propostas contra a Fazenda Pública. em outras palavras, a Fazenda Pública é ré em muitas demandas de massa, em demandas cuja solução é a mesma ao decidir os primeiros casos, o juízo está dando solução a todos os demais. a sentença passará a constituir um padrão, um formulário, um modelo que se aplicará a todos os casos. Nessas hipóteses, despende-se atividade cartorária desnecessariamente, pois já se sabe qual será o resultado.” (op. cit., p. 93).28 a existência dos instrumentos processuais de aplicação dos precedentes jurisdicionais é defendida por nós desde 2006. (taraNtO, 2007, p. 93-108). Marcelo alves dias de Souza leciona que “um precedente judicial pode ser seguido em um caso posterior por possuir considerável poder de persuasão. apesar de não possuir caráter cogente, dada a excelência do seu fundamento, é aprovado e seguido no caso posterior. de outro lado, um precedente deve, em regra, ser seguido se, verificada a hierarquia das cortes envolvidas, estão presentes os lineamentos da doutrina do stare decisis. todavia, mesmo no segundo caso, a própria doutrina do stare decisis, desenvolvida com o passar dos anos pela tradição do common law, prevê técnicas ou circunstâncias que, cui-

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seja acolhida por meio de uma decisão (em sentido estrito), uma sentença ou um acórdão. assim, o precedente que contém a orientação a ser aplicada atua como paradigma, incide por dedução ou indução. O sistema processual pátrio, em especial a partir da lei no 8.038/1990, passou a desenvolver tais instrumentos dentro de um contexto de solução para a baixa efetividade do processo.

Ao se visualizar e interpretar os referidos instrumentos, identifica-se a presença dos princípios regentes dos precedentes jurisdicionais na experiência brasileira: a legalidade na expressão material; a igualdade, na medida em que se busca atribuir a mesma prestação jurisdicional a jurisdicionados com a mesma pretensão; e a segurança jurídica.

Os instrumentos, assim, para a aplicação de precedentes podem ser divididos em três espécies: os inerentes à admissibilidade de recurso; os voltados para os precedentes em matéria de mérito; e, por fim, a reclamação, consubstanciando verdadeira ação autônoma para a aplicação de um precedente jurisdicional editado pelo Supremo tribunal Federal.

O instrumento de aplicação de precedente inserto no artigo 285-a do cPc deve ser compreendido em harmonia com os demais, com a ressalva de que é o primeiro dos instrumentos a incidir nos ritos inerentes ao processo de conhecimento. Trata-se, assim, de desafio perante patológico contexto histórico de utilização de pseudoprecedentes, fato que pode gerar o fechamento do sistema recursal e impedir o acesso às instâncias excepcionais. O sistema dos instrumentos de aplicação de precedentes dentro do procedimento dos JeFs – assim como em outros ritos – exige interpretação conforme apta a resguardar a função constitucional dos órgãos jurisdicionais responsáveis pela defesa do jus in thesi, sobretudo para se evitar a formação de um ambiente de violência simbólica.29

dadosamente analisadas, implicam a não-aplicação do precedente, muito embora, à primeira vista, pareça ser ele de seguimento obrigatório.” (SOUZa, Marcelo alves dias de. Do precedente judicial à súmula vinculante. curitiba: Juruá, 2006, p. 142)29 “a concorrência entre os intérpretes está limitada pela circunstância de as decisões judiciais só poderem distinguir-se de simples atos de força políticos na medida em que se apresentem como resultado necessário de uma interpretação regulada de textos unanimente reconhecidos. como a igreja e a escola, a Justiça organiza segunda uma estrita hierarquia não só as instâncias judiciais e os seus poderes, portanto, as suas decisões e as interpretações em que elas se apóiam, mas também as normas e as fontes que conferem a sua autoridade a essas decisões” (bOUrdieU, Pierre. O poder simbólico. tradução de Fernando tomaz. rio de Janeiro: bertrand, 1989. p. 213); “a violência simbólica dispensa a violência física por conseguir os mesmos efeitos de maneira mais eficaz. A naturalização das crenças realizada pelo domínio da linguagem, ao impor uma estrutura de pensa-mento específico (habitus), faz com que os dominados, diferentemente da arbitrariedade física, não percebam as imposições que lhes estão sendo apresentadas, criando desta forma uma estabilidade maior na manutenção do poder do campo.” (dUarte, Fernanda; iOriO FilHO, rafael M. O Supremo tribunal Federal e o pro-cesso como estratégia de poder: uma pauta de análise. Revista da Seção Judiciária do Rio de Janeiro, n. 19, 2007, p. 109-135)

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Na hipótese de o autor recorrer da sentença de mérito sem citação, o § 2o do artigo 285-a dispõe que, caso o juiz não se retrate, será ordenada a citação para responder ao recurso. trata-se de um verdadeiro antídoto à possível aplicação equivocada do instrumento via previsão de recurso per saltum – uma vez combinado, sistematicamente, com o parágrafo 3o do artigo 515 do cPc, introduzido pela lei no 10.352/2001 – pois as demandas em que incide versam sobre questão unicamente de direito.

caso a turma recursal entenda inadequado o precedente que atuou na qualidade de paradigma, e os autos estejam devidamente instruídos, poderá então reformar a sentença e, até mesmo, prolatar acórdão líquido. essa estrutura recursal visa a mitigar a concepção de aplicação rígida do princípio do duplo grau de jurisdição, ao tornar mais célere e efetiva a prestação da atividade jurisdicional, um verdadeiro abandono a antigos dogmas e mitos. estamos perante uma racional ponderação entre o acesso efetivo da prestação jurisdicional em face ao duplo grau de jurisdição.

cabe, então, apreciar a conjugação da norma do artigo 285-a com três outros instrumentos processuais de aplicação de precedentes jurisdicionais que se harmonizam no rito dos JeFs: a não-admissão de recurso inominado por forçada aplicação do artigo 518, § 1o, a negativa de seguimento de recurso inadmissível, improcedente ou prejudicado, nos termos do caput do artigo 557, ambos do cPc, e com os artigos 14 e 15 da lei no 10.259/2001, combinado com o artigo 321 do regimento interno do Supremo tribunal Federal.

3.1. a conjugação do artigo 285-a com o juízo negativo de admissibilidade do recurso inominado por força da aplicação do artigo 518, § 1o, e com a negativa de seguimento de recurso inadmissível, improcedente ou prejudicado nos termos do caput do artigo 557, ambos do código de Processo civil

a grande indagação a ser feita em sede da utilização cadencial dos instrumentos de aplicação de precedentes no rito dos JeFs gravita em torno da possibilidade de conjugação do artigo 285-a com o juízo negativo de admissibilidade do recurso inominado por força da aplicação do artigo 518, § 1o, do cPc; ou com a negativa de seguimento de recurso inadmissível, improcedente ou prejudicado, nos termos do caput do artigo 557 do mesmo código – gerando, assim, o trânsito em julgado sem uma reapreciação propriamente dita do mérito.

O sistema formado pelos parágrafos do artigo 285-a – ao prever um recurso per saltum voltado para a reforma da sentença inaudita altera parte por potencial error in judicando – não impede a aplicação conjunta da extinção do processo com exame de mérito sem citação com um desses outros instrumentos processuais de aplicação de precedentes jurisdicionais.

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a redação original do parágrafo único do artigo 518 do cPc dispunha que, apresentada a resposta, seria facultado ao juiz o reexame dos pressupostos de admissibilidade do recurso. a lei no 11.276/2006 alterou a sistemática do dispositivo, ao prever no § 2o norma equivalente, acrescentando o prazo (impróprio) de cinco dias. entretanto, essa lei inseriu no artigo 518 o § 1o, que disserta que o juiz não receberá o recurso de apelação quando a sentença estiver em conformidade com súmula do Superior tribunal de Justiça ou do Supremo tribunal Federal.

Na verdade, esse dispositivo não cria, em nosso sistema, a súmula ou o precedente impeditivo de recurso, mas atribui ao juízo a quo o acolhimento desse efeito, que não mais é prerrogativa exclusiva do relator, nos termos do caput do artigo 557. agora essa possibilidade estende-se à primeira instância. Por oportuno, cabe ressaltar a crítica de luiz rodrigues Wambier30 no sentido de que, nesse caso, o recurso não é indeferido em razão da ausência de um de seus requisitos de admissibilidade, já que saber se a sentença está ou não em consonância com um entendimento sumulado pelo Supremo tribunal Federal ou pelo Superior tribunal de Justiça é questão atinente ao juízo de mérito do recurso.

O § 1o do artigo 518, dentro do estudo adequado para a aplicação dos precedentes na experiência brasileira, merece certas considerações. A priori, o texto utiliza a expressão “súmula” em sentido amplo, como “precedente jurisdicional”, ou seja, o instrumento mediante o qual o Poder Judiciário edita normas jurídicas a serem aplicadas em decisões posteriores, o qual assumirá, em dado caso, a qualidade de paradigma para o recurso de sentença que o confirme não ser admitido.

Portanto, a norma extraída do texto determina a não-admissão de recurso caso o conteúdo da sentença reproduza orientações consolidadas do Superior tribunal de Justiça ou do Supremo tribunal Federal.31 Para a produção do efeito impeditivo de recurso em 1ª instância, também é necessário a totalidade do teor decisório da sentença estar em consonância com a referida orientação consolidada.32

30 WaMbier et al., Op. cit., p. 226.31 Nesse sentido, cássio Scarpinella bueno sustenta a necessidade de se atribuir interpretação conforme à constituição. defende que o parágrafo 1o do artigo 518 reclama, para sua incidência, a existência de súmula do Superior tribunal de Justiça ou do Supremo tribunal Federal. (bUeNO, op. cit., p. 34; 42)32 “PrOceSSUal ciVil. aGraVO de iNStrUMeNtO. deciSÃO QUe NeGOU SeGUiMeNtO À aPelaÇÃO. SúMUla iMPeditiVa de recUrSO (cPc, art. 518, ParÁGraFO 1o). iNaPlica-bilidade. – a lei no 11.276, de 7/2/2006 (em vigor a partir de 10/5/2006), modificou o art. 518 do CPC, adotando em seu parágrafo 1o, a chamada súmula impeditiva de recurso. – agravo interposto contra decisão que negou seguimento à apelação, ao entendimento de que a sentença fora prolatada em consonância com a súmula 314 do StJ. – a inadmissibilidade do recurso pressupõe que a súmula abranja todo o conteúdo da sentença e não apenas parte dela, como foi o caso. – admissibilidade da apelação. (tribunal Federal da 5ª região, Processo no 2006.0500053070-4, decisão de 12/4/2007, relator: desembargador federal rivaldo costa).

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O recurso deve ser admitido, todavia caso a sentença expuser orientação revista ou revogada pelos referidos tribunais, bem como se o recurso questionar o fato de a sentença não ter atribuído adequada aplicação ao precedente paradigma,33 sob pena de deturpação do sistema, a ponto de provocar o jurisdicionado a agravar de instrumento, nos termos do artigo 522 do cPc.

Já o instrumento previsto no caput do artigo 557 do cPc, com a redação determinada pela lei no 9.756/1998, é, de certa forma, o precursor em sede de aplicação de precedentes jurisdicionais. a lei no 8.038/1990, disciplinou, no artigo 38, o poder do relator, no StF e no StJ, de negar seguimento a pedido ou a recurso manifestamente intempestivo, incabível ou improcedente, ou, ainda, que contrarie, nas questões predominantemente de direito, súmula do respectivo tribunal.

Posteriormente, a lei no 9.139/1995 alterou a redação do caput desse artigo, que passou a dispor:

O relator negará seguimento a recurso manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou contrário à súmula do respectivo tribunal ou tribunal superior”. Por fim, a Lei no 9.756/98, acrescentou nova redação ao dispositivo: “O relator negará seguimento a recurso manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou em confronto com súmula ou com jurisprudência do respectivo tribunal, do Supremo tribunal Federal, ou de tribunal Superior.” cabe ressaltar que o texto utiliza a expressão “súmula ou jurisprudência” em sentido amplo, significando o que propomos por “precedente jurisdicional.

esse dispositivo sofre severas críticas da doutrina, sobretudo por transformar o julgamento em segundo grau em decisão monocrática. É divergente a natureza do efeito introduzido pelas leis no 8.038/1990, 9.139/1995 e 9.756/1998. Há três orientações: a primeira vislumbra que, apesar do poder atribuído ao relator, as súmulas referidas produzem efeito meramente persuasivo;34 a segunda35 reza que se

33 luiz Wambier et al. sustentam que “como as súmulas em geral não têm efeito ‘vinculante’ – expressão aqui utilizada no sentido do art. 103-a da constituição –, pode a parte interpor a apelação contra a sentença fundada em súmula, por exemplo, para demonstrar que o entendimento sumulado já foi abandonado, por jurisprudência mais recente do StF ou do StJ, ou ainda, que o entendimento sumulado é errado, contrário à norma constitu-cional ou a lei federal. Pode ainda a parte pretender demonstrar, na apelação, que a sentença não deu adequada aplicação à súmula, e assim sucessivamente.” (op. cit., p. 228).34 luiz Guilherme arcaro conci e Marcelo lamy sustentam que “esse papel persuasivo tem, no entanto, sofrido trajetória sensível de mutação, incorporando gradativamente eficácia expansiva em face de casos pen-dentes e futuros, atingindo certas vezes força obrigatória, vinculante.” cONci, luiz Guilherme arcaro. laMY, Marcelo. Reflexões sobre as Súmulas Vinculantes. In: TAVARES, André Ramos; LENZA, Pedro; ALARCÓN, Pietro de Jesus (Org.). Reforma do Judiciário analisada e comentada. São Paulo: Método, 2005, p. 305.35 crUZ e tUcci, rogério. Precedente judicial como fonte do Direito. São Paulo: revista dos tribunais, 2004. p. 260.

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trata de efeito impeditivo de recurso;36 já a terceira37 defende a presença de efeito vinculante, inserido de forma indireta. No contexto da erudição com que essas teses são defendidas, entende-se que as referidas leis, ao construírem o instrumento de aplicação de precedentes inserto no caput do artigo 557, desenvolveram sistema para aplicação de precedente com efeito impeditivo38 de recurso, durante o juízo de admissibilidade efetuado pelo relator.

Os instrumentos previstos no caput do artigo 557 e no § 1o do artigo 518 necessitam de interpretação conforme à constituição, no sentido de não ser negado o acesso às vias excepcionais, de índole constitucional; razão pela qual verbetes de tribunais locais, apenas, podem produzir efeitos impeditivos interna corporis quando a orientação for conexa à dos tribunais de superposição. trata-se de tema já decidido pelo direito Pretoriano, como denota o exposto pelo Superior tribunal de Justiça no recurso especial no 299.196-MG, relatado pelo ministro Franciulli Netto:

[a] expressão “jurisprudência dominante do respectivo tribunal” somente pode servir de base para negar seguimento a recurso quando o entendimento adotado estiver de acordo com a jurisprudência do Superior tribunal de Justiça e do Supremo tribunal Federal, sob pena de negar às partes o direito constitucional de acesso às vias excepcionais (extraordinária e especial).39

O artigo 285-a, combinado com esses outros instrumentos, pode gerar o fechamento do sistema. imaginemos a seguinte hipótese: o StJ edita a Súmula no X. esse precedente pluriprocessual atua na qualidade de paradigma na utilização do artigo 285-a, e o magistrado julga improcedente o pedido sem citação. em se tratando de JeF, o autor, inconformado, interpõe recurso inominado, não admitido por força da aplicação do artigo 518, § 1o, ou pelo artigo 557, caput, na medida em que a sentença aplicou o referido verbete.

Para a conjugação adequada desses instrumentos, é necessário o julgador empenhar-se em um juízo de faticidade perante a súmula aplicada como paradigma.

36 a parte da reforma do Judiciário (Pec no 29/2000) que retornou à câmara disciplinava, em sede con-stitucional, a súmula impeditiva de recurso, prevendo a inserção do artigo 105-a ao texto da constituição. a lei no 11.276/2006 passou a permitir a utilização desse mecanismo pelo Juízo de primeiro grau, dispondo no parágrafo 1o que “o juiz não receberá o recurso de apelação quando a sentença estiver em conformidade com súmula do Superior tribunal de Justiça ou do Supremo tribunal Federal”.37 lênio Streck defende a inconstitucionalidade desses dispositivos ao estabelecerem efeito vinculante de forma indireta. (StrecK, lênio luiz. Súmulas no Direito brasileiro – eficácia, poder e função: a ilegitimidade constitucional do efeito vinculante, 2. ed. Porto alegre: livraria do advogado, 1998. p. 145). essa orientação é seguida por João luís Fischer dias em efeito Vinculante: dos Precedentes Jurisprudenciais: das Súmulas dos tribunais. São Paulo: iOb thomson, 2004, p. 63.38 essa é a orientação defendida por rogério cruz e tucci. (op. cit., p. 260).39 2ª turma, publicado em 5/8/2002.

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Os processos que atuaram como referência para a formação desse precedente devem ser apreciados, até por força da possibilidade de distinção.

a reiteração para a edição de um dado verbete é uma garantia do jurisdicionado,40 sob pena de o Poder Judiciário editar um pseudoprecedente. O julgador também deverá exercer um juízo de validade da súmula. É nula, pois, ocasional sentença de improcedência (sem citação) que apenas reproduza o texto do enunciado por lesão à garantia constitucional da fundamentação das decisões judiciais.

O fechamento do sistema e a vedação de acesso às vias excepcionais pela utilização torpe e distorcida da conjugação de dois desses três instrumentos, com fundamento em pseudoprecedentes, deve ser impugnado pela utilização de outros recursos e ações autônomas, inclusive a reclamação constitucional, quando possível. desenvolve-se, assim, um contexto de supracontrolabilidade difusa perante os juízos inferiores, em grau ainda mais expressivo do que José eduardo Faria41 e, posteriormente, lênio Streck42 abordaram como “controlabilidade difusa”.

3.2. O julgamento de mérito sem citação e a vinculação em controle incidental43

a dogmática jurídica pátria confeccionou a assertiva, a ser aplicada a priori, de que o julgamento oriundo de recurso extraordinário tem eficácia apenas inter partes, e não erga omnes, despojado de vinculação, com o fundamento de consubstanciar instrumento do controle incidental, não concentrado, de constitucionalidade.44

essa assertiva passou a perder força a partir de 12 de julho de 2001, quando foi promulgada a lei no 10.259, que trata da instituição dos Juizados especiais cíveis e criminais no âmbito da Justiça Federal, cujo artigo 15 reza: “O recurso extraordinário, para os efeitos dessa lei, será processado e julgado segundo

40 “O precedente pluriprocessual vinculante, seja isolado ou sumulado, é defendido, em geral, em nome da segu-rança jurídica, com enfoque na idéia de eficiência devida ao jurisdicionado, tomado como consumidor de justiça, linha de José Marcelo Menezes Vigliar ou, mais freqüentemente, com enfoque na exigência de isonomia devida ao jurisdicionado cidadão, dotado de direitos fundamentais exercitáveis mesmo quando em face do estado Juiz, linha de rodolfo de carmargo Mancuso” (NaSciMeNtO, rogério José bento Soares do. aspectos processuais da súmula vinculante: reflexos na efetividade da defesa dos direitos fundamentais. In: PradO, Geraldo luiz Mascar-enhas (coord.) Acesso à justiça e efetividade do processo. rio de Janeiro: lumen Juris, 2005).41 “a uniformidade propiciada pelos tribunais superiores é produto de uma situação de ‘controlabilidade difusa’ da atuação dos tribunais inferiores (ordinários)”. (Faria, José eduardo. Eficácia jurídica e violência simbólica. São Paulo: edusp, 1988. p. 29).42 “O poder de violência simbólica exercido pelas Súmulas sobre os juristas em sua prática cotidiana é resul-tado de uma situação que pode ser chamada de controlabilidade difusa do sistema jurídico sobre os operadores do direito. esse controle difuso funciona como poder normativo.” (StrecK, 1998. p. 227).43 taraNtO, caio Márcio Gutterres. efeito vinculante decorrente de recurso extraordinário. estudo do re no 418.918-6/rJ e da Medida cautelar no 272-9. Revista da Seção Judiciária do Rio de Janeiro, n. 17, ago. 2006, p. 19-42.44 Nesse sentido, vide o agravo regimental no recurso especial no 511.279, relator: ministro luiz Fux.

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o estabelecido nos §§ 4o a 9o do artigo 14, além da observância das normas do regimento.”

Os parágrafos 5o, 6o e 9o do artigo 14 dispõem:§ 5o No caso do § 4o, presente a plausibilidade do direito invocado e havendo fundado receio de dano de difícil reparação, poderá o relator conceder, de ofício ou a requerimento do interessado, medida liminar determinando a suspensão dos processos nos quais a controvérsia esteja estabelecida.§ 6o eventuais pedidos de uniformização idênticos, recebidos subseqüentemente em quaisquer Turmas Recursais, ficarão retidos nos autos, aguardando-se pronunciamento do Superior tribunal de Justiça.§ 9o Publicado o acórdão respectivo, os pedidos referidos no § 6o serão apreciados pelas turmas recursais, que poderão exercer juízo de retratação ou declará-los prejudicados, se veicularem tese não acolhida pelo Superior tribunal de Justiça.

O § 10 do artigo 14 da lei no 10.259/2001 disserta que os trFs, o StJ e o StF, no âmbito das respectivas competências, expedirão normas regulamentadoras da composição dos órgãos e dos procedimentos a serem adotados para o processamento e o julgamento do pedido de uniformização e do recurso extraordinário.

em seguida, o Supremo editou a emenda regimental no 12/2003,45 alterando o artigo 321 do regimento interno, albergando o provimento cautelar extensivo a outros processos em que seja discutida a mesma questão constitucional:

§ 5o ao recurso extraordinário interposto no âmbito dos Juizados especiais Federais, instituídos pela lei no 10.259, de 12 de julho de 2001, aplicam-se as seguintes regras:I – verificada a plausibilidade do direito invocado e havendo fundado receio da ocorrência de dano de difícil reparação, em especial quando a decisão recorrida contrariar Súmula ou jurisprudência dominante do Supremo tribunal Federal, poderá o relator conceder, de ofício ou a requerimento do interessado, ad referendum do Plenário, medida liminar para determinar o sobrestamento, na origem, dos processos nos quais a controvérsia esteja estabelecida, até o pronunciamento desta corte sobre a matéria............................................................................................................................Vi – eventuais recursos extraordinários que versem idêntica controvérsia constitucional, recebidos subseqüentemente em quaisquer turmas Recursais ou de Uniformização, ficarão sobrestados, aguardando-se o pronunciamento do Supremo tribunal Federal;

45 lênio Streck defende a inconstitucionalidade de vinculação oriunda dos regimentos dos tribunais brasileiros. (StrecK, 1998, p. 152-157).

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VII – publicado o acórdão respectivo, em lugar especificamente destacado no diário da Justiça da União, os recursos referidos no inciso anterior serão apreciados pelas turmas recursais ou de Uniformização, que poderão exercer o juízo de retratação ou declará-los prejudicados, se cuidarem de tese não acolhida pelo Supremo tribunal Federal;

Ora, existiria finalidade em provimento de urgência para suspender processos não identificados, mas identificáveis pelo objeto, mesmo que ainda não ajuizados, a não ser a vinculação à ratio decidendi firmada pelo STF no julgamento do recurso extraordinário? O provimento de urgência, caso configure processo autônomo, é incidental ao processo em fase de recurso excepcional ao qual é distribuído por dependência e a todos os demais processos em trâmite nas instâncias inferiores atingidos pela suspensão, bem como, ao mesmo tempo, preparatório para os não ajuizados.

esses dispositivos não merecem ser interpretados despojados do conteúdo decisório do recurso extraordinário de efeito vinculante,46 que atuará como paradigma perante os sobrestados, pois representaria excluir-lhes força normativa, o que manteria o regime antigo dos recursos excepcionais. trata-se, pois, de mecanismo de simplificação (sumarização) do procedimento pelo uso de precedente vinculante monoprocessual ou pluriprocessual.

a utilização desse complexo instrumento produz efeito vinculante para o recurso extraordinário em relação aos processos sobrestados pelo provimento de urgência, seja autônomo ou incidental – mesmo não ajuizados, mas identificáveis pelo objeto e nos termos da medida cautelar. todavia, produz efeito meramente persuasivo ou impeditivo de recurso para os processos não sobrestados, caso já ajuizados, nem identificáveis pelo teor do provimento de urgência.47

dessa forma, esse instrumento de aplicação de precedentes suspende os processos a que potencializa a produção do efeito vinculante, antes mesmo do despacho inicial, impedindo a incidência da regra do 285-a. Por outro lado, caso a orientação consolidada pelo Supremo tribunal Federal for no sentido da improcedência, o juízo de 1ª instância poderá (deverá) utilizar o julgamento sem citação.

46 ao apreciar o complexo normativo do recurso extraordinário das decisões oriundas dos juizados especiais federais, Gilmar Ferreira Mendes sustenta a presença de um tratamento diferenciado por parte do legislador, consubstanciando disposição assemelhada ao estabelecido no art. 21 da lei no 9.868/99 – que prevê a cautelar na ação declaratória de constitucionalidade, e no artigo 5o da lei no 9.882/99, que autoriza provimento de urgência em sede de descumprimento de preceito fundamental. (MeNdeS, Gilmar Ferreira. Direitos funda-mentais e controle de constitucionalidade: estudos de direito constitucional. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2004).47 Foi o que ocorreu perante a apelação cível no 336.092, perante o trF da 2ª região (julgamento em 10/5/2005, relator: desembargador federal Poul erik dyrlund. Nesse caso, o recurso extraordinário no 418.918 produziu, apenas, efeito meramente persuasivo. O acórdão da referida apelação recebeu a seguinte ementa: “adMiNiStratiVO. FGtS. terMO de adeSÃO Na FOrMa da lc No 110/2001. JUriS-PrUdÊNcia dO StF: atO JUrÍdicO PerFeitO. 1. a Suprema corte já teve oportunidade de apreciar questão semelhante, assentando que o termo celebrado constitui ato jurídico perfeito, que só pode ser desfeito pelas vias próprias, e não de forma incidental (StF, re no 418.918, informativo StF no 381), subsistindo em sua integridade até que sobrevenha ato desconstitutivo. 2. recurso conhecido e desprovido.”

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Há, assim, uma antecipação da manifestação do Supremo tribunal Federal no múnus de fixação do jus in thesi. cria-se, então, um imenso ciclo de fechamento do sistema a partir dos artigos 14 e 15 da lei no 10.259/2001 e do artigo 258-a do CPC, findando-se com aplicação dos instrumentos previstos nos artigos 518, § 1o, e 557, caput, ambos desse código.

O fechamento cíclico por conta desses instrumentos de aplicação de precedentes, para ser válido, deve ser pautado em orientação devidamente construída a ponto de não obstruir o exercício do direito ao acesso às vias excepcionais.48 ademais, em todos esses atos, independentemente de assumirem a qualidade de decisão, sentença (hipótese do artigo 285-a) ou acórdão, é necessário decantar a ratio decidendi e averiguar se a hipótese de direito é a mesma.

CONCLUSÃOtodos os ramos do saber – independentemente da indagação de constituírem,

ou não, ciência – possuem um conjunto de conhecimento pré-construído, acumulado ao longo do tempo e aplicado como ponto de partida em oportunidades posteriores. em uma dada pesquisa, por exemplo, não é necessário repetição da experiência apta a extrair a informação da temperatura em que a água muda do estado líquido para o gasoso ao nível do mar, na medida em que o respectivo resultado já se tornou exaustivamente conhecido. Não se repetem, igualmente, experiências aptas a tentar transformar chumbo em ouro, pois foi incorporado ao conhecimento geral não só essa impossibilidade, mas também os frustrados resultados.

em todos os sistemas,49 parcela do saber jurídico pré-construído é expresso por decisões (soluções) prolatadas em processos anteriores, empregadas como paradigmas para outros casos e utilizadas na qualidade de instrumento de exposição das razões de decidir quanto à matéria de direito. São, pois, os precedentes jurisdicionais50 que representam o mecanismo mediante o qual o Poder Judiciário

48 recurso especial no 299.196-MG, relator: ministro Franciulli Netto.49 Marcelo alves dias de Souza sustenta que o precedente judicial “é um tema fascinante. Primeiramente, por uma razão muito simples: ele está presente em todo e qualquer sistema jurídico. em qualquer país, indepen-dentemente de sua filiação a esta ou àquela família jurídica, a decisão de um caso tomada anteriormente pelo Judiciário constitui, para os casos a ele semelhantes, um precedente judicial. apenas seus atributos, tais como seu poder criativo ou meramente declarativo, seu caráter persuasivo ou obrigatório, é que vão depender dos contornos atribuídos a ele pelo sistema jurídico estabelecido.” (SOUZa, op. cit., p. 15).50 Sob certo enfoque, Ronald Dworkin define que “um precedente é um relato de uma decisão política ante-rior; o próprio fato dessa decisão, enquanto fragmento da história política, oferece alguma razão para se decidir outros casos de maneira similar no futuro”. (dWOrKiN, ronald. Levando os direitos a sério. tradução de Nelson boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 176).

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edita normas jurídicas a serem aplicadas em decisões posteriores,51 atribuindo àquelas racionalidade, na medida em que o julgador expressa as razões de decidir.52

Reflexões à parte quanto à legitimidade, a supracontrolabilidade difusa ou a irracionalidade no uso dos precedentes jurisdicionais e dos instrumentos de aplicação é um risco derivado da incompreensão, por parte do aplicador, do papel dos órgãos jurisdicionais, sobretudo dos que exercem o múnus constitucional de defesa do jus in thesi no sistema pátrio. esse risco existe em relação a todos os meios de acesso à prestação da atividade jurisdicional. O artigo 285-a pode, perfeitamente, conjugar-se com a inadmissão do recurso inominado pelo seguimento de orientação consolidada e pela vinculação em controle incidental nos JeFs pela expressa satisfação de certos requisitos.

A priori, o precedente a atuar na qualidade de paradigma deve ser oriundo do referido múnus constitucional de defesa do jus in thesi, que, por si só, exige exaustiva reflexão e exposição argumentativa – além da reiteração, em caso de pluriprocessualidade sumulada. logo, é necessário que o paradigma percorra todos os atos de formação válida do precedente, desde a provocação do jurisdicionado até a atuação do juízo revisor.

No ato final da gênese do precedente – ou seja, quando o julgador o elege como paradigma – deve ser exercido juízo de validade formal e material. Por fim, em momento anterior à incidência do julgamento de mérito sem citação, o juiz deverá fazer um juízo de faticidade, inclusive no que diz respeito à vigência da orientação. Nesse momento, mostra-se relevante a função confirmativa de outros precedentes a serem utilizados também como paradigma, como expressa – e, portanto, racional –

51 Steven H. Gifis conceitua precedents no sistema common law como “a previously decided case which is recognized as authority for the disposition of future cases. at common law, precedents were regarded as the major source of law. a precedent may involve a novel question of common law or it may involve as interpreta-tion of a statute. in either event, to the extent that future casesrely upon it or distinguish it from themselves without disapproving of it, the case wil serve as a precedent for future cases under the doctrine of stare decisis.” (GiFiS, H. Steve. Law Dictionary, 5th ed, New York: barron’s, 2003. p. 388-389). É clássico, no pensamento doutrinário de autores do common law, conceitos com teor parecido. Nesse sentido, Henry campbell black, em seu dicionário jurídico, conceitua precedente jurisdicional como “an adjudged case or decisiona of a court, considered as furnishing as example or authority for na identical or similar case afterwards arising or a similar question of law.” (Law Dictionary, 6. ed. St. Paul: West Publishing, 1990. p. 1.176) Marcelo alves dias de Souza traduziu esse conceito dispondo que precedente é “um caso sentenciado ou decisão da corte considerada como fornecedora de um exemplo ou de autoridade para um caso similar ou idêntico posteriormente surgido ou para uma questão similar de direito.” (SOUZa, op. cit., p. 41).52 O esforço para a conceituação de precedentes merece ser contextualizado perante os principais embates jurídico-epistemológicos da atualidade, em especial o realismo-sociológico, o procedimentalismo e o substan-cialismo, sobretudo naquilo em que essas orientações concluem a respeito do limite da independência funcio-nal do magistrado. François rigaux defende que “entre as fontes que se acumulam assim ao longo dos anos, figuram em bom lugar as próprias decisões judiciárias. A doutrina do precedente é uma verdadeira ciência cujos refinamentos desafiam toda explicação simples.” (RIGAUX, François. A Lei dos Juízes. Tradução: Edmir Misso. São Paulo: Martins Fontes, 2000).

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exigência de demonstração da coerência interna do Poder Judiciário como instituição em, mais uma vez, reproduzir a orientação consolidada. ademais, deve pertencer ao discurso a razão da não-aplicação da distinguishing como método de decisão.

a aplicação de precedentes deve, portanto, despojar possíveis dissimulações de sentido e de razão para o auditório/receptor das orientações, magistrado ou não, deixar de transformar essa conjugação de instrumentos em neutralização de possibilidades ou opções dos jurisdicionados ou dos próprios órgãos jurisdicionais. busca-se evitar a utilização em massa de pseudoprecedentes como “fórmulas mágicas” para os problemas, sobretudo numéricos, dos JeFs, e elevar a sistematização dos instrumentos de aplicação perante a sumarização do procedimento, em efetivo meio de acesso à prestação adequada da atividade jurisdicional. trata-se de um desafio perante um paradoxo.

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as Forças armaDas e a garantia Da lei e Da orDem

(armeD Forces anD the gUarantee oF law anD orDer)

emerson garcia

membro Do ministério público Do estaDo Do rio De Janeiro. ex-consUltor JUríDico Da procUraDoria Geral De JUstiça (2005-2009).

assessor JUríDico Da associação nacional Dos membros Do ministério público (conamp). DoUtoranDo e mestre em ciências JUríDico-políticas pela UniversiDaDe De lisboa. especialista em Education

Law and PoLicy pela EuroPEan association for Education Law and PoLicy (antUérpia – bélGica) e em ciências políticas e internacionais pela UniversiDaDe De lisboa. membro Da intErnationaL association of

ProsEcutors (the haGUe – holanDa)

Sumário: 1. aspectos introdutórios; 2. Polícia administrativa; 3. contornos essenciais da ordem pública; 4. a defesa da paz e a funcionalidade da força pública; 5. a sistemática legal para o emprego das Forças armadas; epílogo.Resumo: O aumento da violência nos grandes centros urbanos constantemente evidencia a ineficiência dos órgãos de segurança pública e realimenta o debate em torno da utilização das Forças armadas na defesa da ordem pública interna. a análise realizada busca demonstrar a forma de efetivação dessa medida e a sua excepcionalidade, já que um aparato voltado ao combate e, ipso facto, à eliminação do inimigo, não está ontologicamente vocacionado ao policiamento ostensivo e à repressão à criminalidade civil.Palavras-chave: defesa da paz; Forças armadas; ordem pública; polícia administrativa; segurança pública.

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Abstract: the increase of violence in the great urban centers constantly evidences the inefficiency of the public security bodies and nourishes the discussion about the utilization of armed Forces in the defense of the internal public order. the examination we realized aspires to demonstrate the form of accomplishment of these measure and her exceptionality, since a body utilized for combat and, ipso facto, to the elimination of the enemy, isn’t ontologically prepared to the ostensible policing and to the repression of the civil criminality.Key-words: peace defense armed Forces; public order; administrative policy; public security.

INTRODUÇÃOa linha evolutiva do estado de direito, marcada por períodos de instabilidade

institucional e uso abusivo da força, culminou com o surgimento da dicotomia entre poder militar e poder civil. a subordinação de um ao outro no âmbito da organização política permitirá que se fale, conforme o caso, em regime militar ou em regime civil, com distintos reflexos na subsistência da própria democracia. Os estados contemporâneos, em sua grande maioria, adotam regimes civis, cabendo normalmente ao chefe de estado o controle das Forças armadas, com maior ou menor influência do Parlamento ou de outros órgãos colegiados (v.g.: conselho de defesa).1

1 No direito francês, o presidente da república é o “chefe das armadas”, presidindo os conselhos e comitês superiores de defesa nacional (constituição de 1958, art. 15), colegiados que tomam as decisões mais relevantes nessa matéria: enquanto a segunda atribuição se dilui nas deliberações dos referidos órgãos, a primeira apresenta maior importância, o que é realçado pelo decreto de 12 de junho de 1996 (antecedido pelo decreto de 14 de janeiro de 1964), que conferiu ao presidente da república a competência exclusiva de utilizar a força nuclear. apesar do título “chef des armées”, as limitações impostas ao Presidente da república levaram dUVerGer a afirmar, ainda sob a égide da Constituição de 1946, que se tratava “de um humor muito saboroso, embora in-voluntário” (Manuel de Droit Constitutionnel et de Science Politique, Paris: Presses Universitaires de France, 1948, p. 338). O Primeiro-Ministro é o responsável pela defesa nacional, devendo coordenar a preparação e a execução das medidas a serem adotadas (constituição de 1958, art. 21). as forças armadas, a exemplo da admi-nistração, estão à disposição do governo (idem, ibidem). cf. PrÉlOt, Marcel e bOUlOiS, Jean. Institutions Politiques et Droit Constitutionnel, 10a ed., Paris: dalloz: 1987, pp. 719 e 752; PaNNetier, Martin. La Dé-fense de La France, Indépendance et solidarité, lavauzelle, 1985; leclerQ, claude. Droit Constitutionnel et Institutions Politiques, 5a ed., Paris: librairies techniques, 1987, pp. 591/592; e HaMON, Francis, trOPer, Michel e bUrdeaU, Georges. Manuel de Droit Constitutionnel, 27a ed., Paris, lGdJ, 2001, p. 559-560. No direito italiano, o presidente da república, chefe de estado (Capo dello Stato), preside o conselho Supremo de defesa, órgão meramente consultivo, e detém o “alto comando” da “forze armate” (constituição de 1947, art. 87, no 9), mas não possui qualquer poder de direção efetiva para o seu emprego concreto em operações militares específicas. As decisões de natureza político-administrativa são tomadas pelo Governo, com a apre-sentação de relatórios informativos ao chefe de estado e possibilidade de responsabilização perante a câmara

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Não parece haver dúvidas quanto à constatação de que o princípio democrático, delineado pela participação popular na escolha dos governantes e pela contínua renovação do poder, é de todo incompatível com o regime militar. Afinal, não há democracia sem liberdade, e regimes militares, de forma nitidamente antagônica, são caracterizados pelo uso da força ou pela manipulação do sistema de modo a afastar o pluralismo político, o que inevitavelmente conduz à tentativa de perpetuação de um indivíduo ou de um grupo no poder.

Princípio democrático e regime militar, em verdade, encerram premissas antinômicas, não sendo possível sua coexistência, conclusão clara na medida em que inexistem mecanismos aptos a apurar a responsabilidade daqueles que controlam a força e estão no poder graças a ela.2 a força armada, como assinalou benjamin constant,3 não é um poder constitucional, mas é um “terrível” poder de fato.

Não obstante os riscos que oferecem, praticamente todos os regimes democráticos têm feito uso do poder militar, o que, por vezes, mostrado-se especialmente relevante na garantia da soberania e na preservação do próprio

legislativa. cf. di rUFFia, Paolo biscaretti. Diritto Costituzionale, XV ed., Napoli, Jovene editore, 1989, p. 491, notas 31 e 32; p. 341; di celSO, M. Mazziotti e SalerMO, G. M.. Manuale di Diritto Costituzionale, Padova: cedaM, 2002, p. 471. No direito espanhol, o rei possui o “mando supremo de las Fuerzas Arma-das” (Constituição de 1978, art. 62, h), poder que, como assinalam BALAGER CALLEJÓN et al., apresenta “dimensão mais simbólica que real” (Derecho Constitucional, v. ii, 2a ed., Madrid: editorial tecnos, 2003, p. 432). em verdade, cabe ao ministro da defesa e, acima dele, ao presidente do conselho de Ministros a direção da política militar e de defesa, observada a legislação de regência e com assessoramento da “Junta de Defensa Nacional” e da “Junta de Jefes de Estado Mayor”. No direito norte-americano, o presidente é o “Comandante Supremo” (Commander in Chief) do exército e da Marinha, isso sem esquecer a milícia, força civil somente utilizável em situações de emergência e que teve papel decisivo na Guerra de independência (constituição de 1787, art. II, Seção 2; e Segunda Emenda de 1791); a omissão à Aeronáutica é justificável na medida em que o avião ainda não havia sido inventado à época da promulgação do texto constitucional. O objetivo dos framers, como anota Hamilton (O Federalista no 69), era atribuir ao presidente uma posição um pouco superior à de um primeiro general ou almirante, mas inferior à do rei inglês, que podia declarar a guerra, bem como recrutar e regulamentar a armada, competências que seriam do legislativo (vide constituição de 1787, art. i, Seção 8). em 1866, a Suprema corte declarou que os Poderes do presidente alcançavam, apenas, “o comando das forças e da condução das campanhas” (Ex parte Milligan, 71 U.S. 2, 139, 1866). Posteriormente, passou-se a entender que a “Commander in Chief Clause” alcançava tudo o que fosse inerente à autoridade marcial que o presidente deve possuir. cf. tribe, lawrence H.. American Constitutional Law, 3a ed., New York: Foundation Press, 2000, p. 657/658; WillOUGHbY, Westel W.. Principles of the Constitutional Law of the United States, 2a ed., New York: baker, Voorhis & co., 1938, p. 641/661; MadiSON, James, HaMiltON, alexander, JaY, John. Os artigos Federalistas (The federalist papers), trad. de bOrGeS, Maria luiz X. de a., rio de Janeiro: editora Nova Fronteira, 1993, p. 435/436; e Black’s Law Dictionary, 6a ed., St Paul: West Publishing, 1990, p. 993. Sobre os poderes do Presidente norte-americano na guerra contra o terrorismo, vide cHeMeriNSKY, erwin. Constitutional Law, Principles and Policies, 3a ed., New York: aspen, 2006, p. 376/385. No direito brasileiro, como veremos, o presidente da república exerce o “comando supremo” (na verdadeira acepção da expressão) das Forças armadas, mas a declaração de guerra depende de aprovação do congresso Nacional (constituição de 1988, arts. 49, ii; 84, Xiii; e 142, caput).2 Como afirmou FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves, “não há bombeiros para apagar o fogo que bom-beiros atearam e atiçam [...]” (Curso de Direito Constitucional, 32a ed., São Paulo: Saraiva, 2006, p. 240). 3 Cours de Politique Constitutionnelle, Tome Premier, 2a ed., Paris: librairie de Guillaumin et cie, 1872, p. 106.

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regime. O importante, no entanto, é que o poder militar não abandone seu papel coadjuvante, subjugando o poder civil. além da imposição de restrições operacionais, afastando a possibilidade de atuação de ofício e exigindo a subordinação a agentes democraticamente legitimados, já se sustentou, inclusive, que o contingente das Forças armadas deveria ser periodicamente renovado. Montesquieu,4 por exemplo, defendia que as forças armadas deveriam ser o povo e ter o mesmo espírito do povo, o que exigia a responsabilidade por seus atos e um serviço temporário, por prazo não superior a um ano. Esse padrão, à evidência, dificilmente poderia ser alcançado por estados que contêm com grande contingente, o que inviabiliza renovações periódicas de tamanha extensão. enfraquecer a organização e a especialização das Forças armadas, por outro lado, não parece ser a melhor solução para mantê-las subordinadas ao regime.

O melhor caminho, ao que parece, é investir na solidez das instituições democráticas, estimulando a ideologia participativa de modo a criar um ambiente sociopolítico infenso a rupturas. com isso, as Forças armadas prestarão um relevante serviço para a preservação da paz no próprio território brasileiro, medida de caráter excepcional e que será objeto de algumas reflexões nessas breves linhas. Para tanto, analisaremos alguns aspectos do poder de polícia estatal e da concepção de ordem pública que lhe é inerente, premissas que serão integradas à funcionalidade da força pública no Estado de Direito, permitindo verificar em que situações será possível o emprego das Forças armadas para a garantia da lei e da ordem.

1. Polícia Administrativaa “polícia administrativa” – também denominada “poder de polícia” ou

“limitações administrativas à liberdade e à propriedade” – não possui contornos propriamente finalísticos, mas instrumentais, estando essencialmente voltada à garantia da ordem pública (ou interesse público).5 Não designa propriamente uma estrutura orgânica, mas uma atividade que impõe restrições à esfera jurídica alheia de modo a preservar a harmônica coexistência do grupamento e a permitir que o estado execute as atividades que lhe são características. em um estado de direito, essa tensão dialética entre liberdade e autoridade deve ser sempre resolvida com os olhos voltados à advertência de Waline: “a liberdade é a regra, a restrição por medidas de polícia a exceção”.6

Na identificação das estruturas estatais de poder competentes para o exercício da polícia administrativa, deve ser observada a divisão de competências 4 De L’Esprit des Lois, Tome Premier, Paris: Éditions Garnier Frères, 1949, p. 172-173.5 Código Tributário Nacional, art. 78.6 Droit Administratif, 9a ed., Paris: Éditions Sirey, 1963, p. 637.

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da Federação brasileira. essa atividade pode assumir contornos preventivos ou repressivos: no primeiro caso, o objetivo é prevenir distúrbios à ordem pública, fim normalmente alcançado com a regulamentação administrativa de certas matérias e com a fiscalização de atividades potencialmente lesivas; no segundo, por sua vez, busca-se reprimir os distúrbios à ordem pública, o que é alcançado por meio da coerção, inclusive com o uso da força pública.7 como consequência dessas atividades, ainda será possível a aplicação das sanções cominadas pela ordem jurídica. Regulamentação, fiscalização e coerção são as formas de manifestação da polícia administrativa.

a existência do poder regulamentar está associada à concepção de que outras estruturas estatais de poder podem especificar, com imperatividade, as providências a serem adotadas para a integração ou o aperfeiçoamento dos comandos legais postos pelo legislador democraticamente legitimado. como disse chapus:8 “Se não há senão um único legislador, há uma pluralidade de detentores do poder regulamentar”. trata-se de manifestação especial do princípio da legalidade, permitindo concluir que o facere estatal pode assumir contornos concretos, o ato administrativo típico, ou gerais, aqui se enquadrando o regulamento.9 a generalidade é uma característica indissociável dos regulamentos, apontando para a impessoalidade dos seus comandos.10 Observados os balizamentos estabelecidos pela lei, os regulamentos podem impor restrições à esfera jurídica alheia, exigindo a prática de atos comissivos (v.g.: definindo requisitos de ordem sanitária a serem observados pelos estabelecimentos que comercializem gêneros alimentícios) ou omissivos (v.g.: obstando a venda de produtos que não observem as especificações sanitárias). No âmbito da polícia administrativa, os regulamentos, como dissemos, assumem contornos eminentemente preventivos.

A fiscalização, como instrumento preventivo de proteção à ordem pública, ocupa uma zona intermédia entre a regulamentação e a coerção. em outras palavras, reflete a atividade administrativa que verifica o cumprimento dos comandos legais e regulamentares e, em caso de inobservância, adota as providências necessárias, quer à imediata cessação da ilicitude, o que faz incidir a coerção estatal, quer ao sancionamento dos respectivos responsáveis, o que pode ocorrer nas instâncias cível, criminal, política e administrativa, neste último caso com a aplicação das denominadas “sanções de polícia” (v.g.: multa). existem, ainda, atos administrativos intimamente ligados à atividade fiscalizatória desenvolvida pelo Poder Público,

7 cf. HaUriOU, Maurice. Précis de droit administratif et de droit public, 12a ed., Paris: dalloz, 1932, p. 549.8 Op. cit., p. 649.9 MaYer, Otto. Le droit administratif allemand, Tome 1er, Paris: V. Giard & e. brière, 1903, p. 115/116.10 WaliNe, Marcel. Op. cit., p. 117.

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indicando a observância das normas legais e regulamentares incidentes no caso (v.g.: a concessão de licença ou autorização para o exercício de certa atividade).

a coerção, em sentido lato, pode ser vista como um mecanismo de execução forçada dos atos administrativos, isso em relação àquelas situações que comportem providências dessa natureza (v.g.: apreensão de mercadorias comercializadas sem autorização legal), não quanto às demais (v.g.: atos meramente declaratórios). a partir da autoexecutoriedade inerente aos atos administrativos, que independem de chancela por outro Poder,11 permitindo que a administração os implemente tão logo identifique a presença dos requisitos legais que os justifiquem, são adotadas as medidas necessárias à sua efetividade. É importante ressaltar que não se identifica uma linearidade entre os sistemas jurídicos quanto à matéria, havendo grandes oscilações sobre a possibilidade de execução forçada dos atos administrativos (v.g.: enquanto o direito espanhol12 a reconhece como princípio geral, o direito francês só a admite em situações específicas, expressamente previstas em lei).13

Nem toda situação de fato ou ato voluntário dissonante da lei permitirá que a administração Pública promova a sua execução forçada (v.g.: a satisfação de créditos da Fazenda junto aos particulares). em um estado democrático de direito, atos dessa natureza devem estar necessariamente amparados pela lei, sendo de todo descabida a realização de intervenções na esfera jurídica alheia à margem de qualquer balizamento estabelecido pelo órgão legislativo competente. a lei, assim, há de definir as ações ou omissões a cargo do administrado e a amplitude da coerção estatal (v.g.: o código de Águas, em seu art. 33, autoriza a apreensão de equipamento de pesca de uso proibido).14 À míngua de previsão normativa, ainda que a medida seja conveniente, a tutela jurisdicional, em regra, será imperativa. em situações excepcionais e que exijam ação imediata da administração para a proteção de relevante interesse público, a coerção, estando caracterizada a urgência, é igualmente admitida, ainda que não haja previsão legal expressa e não seja possível assegurar o contraditório e a ampla defesa de modo prévio (v.g.: demolição de

11 cf. MedaUar, Odete. Direito Administrativo Moderno, 5a ed., São Paulo: revista dos tribunais, 2001, p. 155; e carValHO FilHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo, 15a ed., rio de Janeiro: editora lumen Juris, 2006, p. 74.12 cf. GarcÍa de eNterrÍa, eduardo e FerNÁNdeZ, tomás-ramón. Curso de Derecho Adminis-trativo, vol. i, 12a ed., Madrid: civitas, 2004, p. 782-784.13 cf. WaliNe, Marcel. Op. cit., p. 641.14 Como afirmam GARCÍA DE ENTERRÍA e FERNÁNDEZ, “la coacción administrativa es, por de pronto, como ya nos consta, una manifestacción jurídica de la Administración y por ello resulta sometida a la misma regla de la legalidad que las restantes manifestaciones de la misma. Esa legalidad, como en todos los casos, ha de habilitar la acción administrativa, definir una potestad de obrar (aqui de obrar coactivamente forzando o supliendo voluntades ajenas) más o menos amplia, pero nunca ilimitada” (op. cit., p. 793).

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construção prestes a ruir).15 Neste último caso, sobre a administração recairá o ônus argumentativo voltado à demonstração da correção do seu proceder, arcando o responsável com os excessos que venha a cometer.

assim, apesar da autoexecutoriedade que acompanha os atos administrativos, sendo inerente à regra de competência e à presunção de veracidade que ostentam, a coerção exige um plus. Para que a coerção administrativa seja cabível, é necessário que (1o) o comportamento omissivo ou comissivo a cargo do particular decorra, ainda que mediatamente, de imposição legal; (2o) haja inobservância dessa imposição legal; e (3o) estejam presentes, no exercício do poder de polícia, os requisitos de todo e qualquer ato administrativo (competência, forma, etc.), em especial, que a providência adotada pela administração, além de necessária (rectius: proporcional),16 encontre amparo na lei “em seu objeto, em seu alcance e em seu procedimento”17 (v.g.: interdição de estabelecimento). O ato de coerção, além disso, deve render estrita obediência aos direitos fundamentais, em especial o direito à igualdade, evitando que grupos específicos sejam perseguidos ou privilegiados com a ação do Poder Público, isso sob pena de caracterização do desvio de finalidade.

A coerção, como forma de manifestação da polícia administrativa, reflete o emprego da força para a obtenção de um dado resultado de fato (v.g.: apreensão de mercadorias), que pode consubstanciar a execução forçada de atos administrativos ou de normas jurídicas direcionados a esse objetivo. a dicotomia aqui referida, no entanto, deve ser objeto de um prévio esclarecimento: toda coerção será antecedida por uma decisão administrativa, ainda que verbal e não reduzida a termo, que aproximará a abstração da previsão normativa às especificidades do caso concreto, concluindo pela necessidade de consecução de um fim (rectius: recomposição da ordem pública) a ser racionalmente alcançado. conquanto o ato administrativo sempre se faça presente na coerção, em um caso assume a feição de simples “ordem de execução”, refletindo reação instantânea a uma situação de fato dissonante do comando normativo; no outro, tem-se o fluxo normal de um processo administrativo formal, com teses e antíteses, assegurando-se o contraditório e a ampla defesa.18

Nas hipóteses de cumprimento de ordem judicial a situação é diversa.19 aqui não se tem um ato de natureza administrativa, mas órgãos administrativos

15 cf. GaSPariNi, diógenes. Direito Administrativo. 11a ed., São Paulo: Saraiva, 2006, p. 77-78 e 135; e PiNHeirO Madeira, José Maria. Reconceituando o Poder de Polícia. rio de Janeiro: lumen Juris, 2000, p. 51 e ss.16 cf. laUbadÈre, andré de. Traité Élémentaire de Droit Administratif, vol. i, 3a ed., Paris: l.G.d.J., 1963, p. 513.17 GarcÍa de eNterrÍa, eduardo e FerNÁNdeZ, tomás-ramón. op. cit., p. 793.18 cf. GarcÍa de eNterrÍa, eduardo e FerNÁNdeZ, tomás-ramón. op cit., p. 790.19 cf. HaUriOU, Maurice, Précis de droit administratif [...], op. cit., p. 578.

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garantindo a efetividade de um ato judicial. a polícia administrativa, aliás, não se confunde com a polícia judiciária, atividade voltada à apuração das infrações penais e que busca viabilizar a sua persecução judicial, atuando como órgão auxiliar do dominus littis da ação penal, o Ministério Público ou, se for o caso, o particular, e, em um segundo momento, do órgão jurisdicional competente.20 acresça-se que a polícia administrativa atua voltada para si própria, ainda que sua atividade possa vir a balizar a apuração de responsabilidades na esfera criminal. Polícia administrativa e polícia judiciária, conquanto sejam atividades distintas, podem ser realizadas pelos mesmos agentes e estruturas orgânicas: o ponto nodal de distinção entre ambas é a existência de uma “infração penal determinada”.21 além disso, enquanto a primeira é regida por normas puramente administrativas, a segunda também é alcançada por normas processuais administrativas.22

Enquanto a regulamentação e a fiscalização possuem um caráter continuado, a coerção é eminentemente temporária, cessando tão logo acbe o distúrbio à ordem pública que motivou seu aparecimento. essa tensão dialética entre um status contínuo e outro temporário guarda correlação direta com os conceitos de eficácia e efetividade da norma: enquanto a regulamentação e a fiscalização devem ser deflagradas com a só vigência do comando normativo, a coerção exige um plus, a sua inefetividade, a sua falta de eficácia social.

a forma mais drástica de coerção, não só pelos riscos que enseja, como por sua potencialidade lesiva, é aquela realizada com o emprego de armas de fogo, a cargo da força pública. a coerção armada é medida excepcional, último recurso a ser utilizado. Não há liberdade para o seu emprego; há necessidade.23 liberdade haverá, unicamente, para que o agente público, iluminado por ideais morais ou teológicos, não obstante compelido pelas circunstâncias e colocando em risco sua própria integridade física, deixe de utilizá-la para preservar a integridade alheia. caso a ação armada resulte em danos a terceiros, restará ao autor demonstrar a presença de uma das excludentes de antijuridicidade contempladas na legislação penal.

20 cf. HaUriOU, Maurice, Précis de droit administratif [...], op. cit., p. 549; cHaPUS, rené. Op. cit., p. 737; e WaliNe, Marcel. Op. cit., p. 639. 21 cHaPUS, rené. Op. cit., p. 737. 22 cF. GaSPariNi, diógenes. Op. cit., p. 132.23 convenção europeia dos direitos Humanos, art. 2o: “A morte não será considerada infringida com inf-ração do presente artigo quando se produza como conseqüência de um recurso à força que seja absolutamente necessário: a) em defesa de uma pessoa contra uma agressão ilegítima; b) para deter uma pessoa de acordo com o direito ou para impedir a evasão de um preso ou detido legalmente; c) para reprimir, de acordo com a lei, uma revolta ou insurreição.”

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2. Contornos essenciais da ordem públicaA concepção de ordem pública, cuja preservação é o fim último da polícia

administrativa, assume feições nitidamente voláteis, apresentando variações que acompanham os referenciais de tempo e lugar utilizados. Sob o prisma etimológico, o designativo ordem, do latim ordine, sempre estará associado ao conceito de correção, que pode ser analisado em diversos planos, como (1) o normativo, em que ordem se assemelha à lei (ordem jurídica), ou o (2) sociológico, no qual ordem aponta para a paz e a tranquilidade públicas (ordem pública).

Na medida em que, tanto a realidade social, como a normatização utilizada para regulá-la, são extremamente cambiantes – apresentando variações conforme a época e o local objeto de análise – é fácil intuir que a essência da ordem pública não permanecerá indiferente a esses circunstancialismos, não sendo uniforme e muito menos invariável. Na definição de Hauriou,24 “a ordem pública, no sentido da polícia, é a ordem material e exterior considerada como um estado de fato oposto à desordem, o estado de paz oposto ao estado de problemas”. reprime-se o que afeta a ordem, protege-se ou tolera-se o que não a perturba.

No direito francês, a concepção de ordem pública é tradicionalmente formada pela necessidade de manutenção da segurança, da tranquilidade e da salubridade públicas,25 o que pouco a pouco vai se ampliando para alcançar a salvaguarda de outros interesses de indiscutível relevância para a coletividade, como o meio ambiente e o patrimônio histórico cultural,26 ou, mesmo, a dignidade da pessoa humana ou a própria “ordem moral”, vedando a realização de condutas que as afetem.

Especificamente em relação à dignidade da pessoa humana, merece lembrança o polêmico caso Commune de Monsang-sur-Orge (lancers de nain), em que o conselho de estado francês decidiu que ela deveria ser vista como componente da ordem pública, justificando que os poderes constituídos adotassem as providências necessárias à sua proteção.27 Na situação concreta, o prefeito de Monsang-sur-Orge havia interditado os espetáculos de “lançamento de anão” que seriam realizados nas discotecas da referida cidade, tendo tomado sua decisão não com base no poder de polícia especial relativo aos espetáculos, mas com base no poder de polícia geral, que se destinava a garantir a segurança do público ou a prevenir eventuais turbações à ordem pública. O prefeito, no entanto, fundamentou sua decisão no fato de o espetáculo ser atentatório à dignidade humana.

24 cf. HaUriOU, Maurice, Précis de droit administratif [ ...], op. cit., p. 549. 25 cf. laUbadÈre, andré de. Op. cit., p. 506. 26 cf. cHaPUS, rené. Op. cit., p. 705/706.27 J. em 27/10/1995, Rec. Lebon, p. 372.

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apesar de a ordem pública ser associada à clássica trilogia – segurança, tranquilidade e salubridade públicas (alcançando, em alguns casos, também a moralidade pública) –, o conselho de estado, pela primeira vez, enquadrou a dignidade humana no conceito. entendeu-se que o lançamento de anão pelos frequentadores da discoteca terminava por utilizar, como projétil, uma pessoa afetada por uma deficiência física e apresentada como tal. Assim, a redução do homem à condição de objeto seria manifestamente degradante e atentatória à sua dignidade.28

a ordem pública, em um sentido mais amplo, alcança não só aquele estado de fato imprescindível à preservação da paz social (v.g.: garantia da segurança pública), como aquelas situações que aumentem a comodidade ou a qualidade de vida do grupamento, fins a serem sempre perseguidos pelo Estado (v.g.: proibição de comércio ambulante na via pública). em alguns casos, pode alcançar medidas que busquem proteger o indivíduo contra si próprio (v.g.: a obrigação do uso do cinto de segurança), evitando resultados que mediatamente poderiam afetar a coletividade (v.g.: despesas financeiras para o atendimento de acidentados e manutenção de hospitais).

a polícia administrativa está voltada ao restabelecimento da ordem material, com abstração das causas de natureza político-social que podem ter influenciado sua formação (v.g.: situações de pobreza extrema, políticas públicas equivocadas, etc.). Não deve ser motivada por interesses financeiros do Poder Público,29 ou pessoais da autoridade competente, isso sob pena de caracterização do desvio de finalidade.

cada quadrante da ordem pública será objeto de proteção por órgãos específicos. Naquilo que diz respeito ao nosso estudo, vale dizer, à segurança pública, que se identifica a atuação dos órgãos de segurança pública e, subsidiariamente, das Forças armadas. Não obstante, a terminologia empregada pela constituição brasileira de 1988, que admite o emprego das Forças armadas, no âmbito interno, para a proteção da “lei e da ordem”, cremos que a primeira é absorvida pela segunda, sendo possível falar em ordem jurídica ou em ordem pública. considerando que a ordem jurídica está finalísticamente voltada à garantia da ordem pública, parece claro que esta última noção absorverá todas as demais.

28 MOUtOUH, no entanto, após colocar em dúvida o enquadramento do “lancer de nain” como atentatório à dignidade humana, adverte para o risco de considerações de moralidade pública tornarem prevalecentes as próprias concepções morais da autoridade competente, com sério risco para a liberdade individual [La dignité de l’homme em Droit, in Revue du Droit Public no 1, p. 159 (187/188), 1999]. No mesmo sentido: JerOiN, benoit. La Dignité de la Personne Humanine: ou la difficile insertion d’une règle morale dans le droit positif, in Revue du Droit Public no 1, p. 197 (224/231), 1999.29 cf. WaliNe, op. cit., p. 642/643.

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3. A defesa da paz e a funcionalidade da força públicaO primeiro dever de qualquer governo é a defesa da paz, que deve ser

compreendida em seu sentido lato, abrangendo tanto a paz interior, como a paz exterior.30 a análise das situações de risco e do status do opressor permite afirmar que a força pública possui quatro objetivos fundamentais: (1) defender a soberania brasileira, garantindo suas fronteiras e reprimindo o inimigo externo; (2) atuar no cumprimento das obrigações internacionais, de caráter militar, assumidas pelo País; (3) defender a ordem interna em situações de anormalidade institucional e (4) defender a ordem interna em situações de normalidade institucional. Os três primeiros objetivos devem ser outorgados, primordialmente, à força pública permanente militar, que é justamente a força armada ou simplesmente armada, e o último à força permanente civil,31função que pode ser desempenhada por agentes meramente administrativos ou por agentes armados, atribuição que recai, neste último caso, sobre os órgãos de segurança pública.

a atuação das Forças armadas na garantia das fronteiras e na repressão ao inimigo externo são atribuições que emergem de sua própria ratio essendi. As profundas mutações verificadas na sociedade internacional, pautadas na concepção de coexistência pacífica entre os povos, culminaram com a abolição do jus belli (“direito à guerra”), legitimado pelo direito internacional clássico e que constantemente integrava a pauta das relações externas dos estados mais fortes. O argumento de que o direito à guerra refletia mera projeção da soberania estatal, integrando-se às competências discricionárias do estado, que poderia fazer uso das armas sem qualquer preocupação em justificá-lo, mostrou-se especialmente preocupante com o aumento da força lesiva dos artefatos de guerra.32 daí as construções voltadas à distinção entre guerras justas e injustas, ofensivas e defensivas. após a Primeira Guerra Mundial, prevaleceu a concepção de que o uso da força deveria ser precedido de uma causa de justificação (v.g.: a legítima defesa), bem como que uma organização internacional, a Sociedade das Nações, sucedida pela Organização das Nações Unidas, desempenharia um papel primordial na resolução dos conflitos. O Pacto de Paris, conhecido como Briand-Kellog, de 27 de agosto de 1928, condenou o recurso à guerra para a solução dos conflitos internacionais e vedou a sua utilização como instrumento de política nacional.33

30 cf. HaUriOU, Maurice. Précis de Droit Constitutionnel, 2a ed., Paris: recueil Sirey, 1929, p. 421.31 cf. dUGUit, léon. Manuel de Droit Constitutionnel, 2a ed., Paris: Fontemoing & cie. Éditteurs, 1911, p. 410.32 reUter, Paul. Droit international public, 4a ed., Paris: Presses Universitaires de France, 1973, p. 358-360.33 A sedimentação de uma ideologia pacifista é especialmente percebida na Constituição japonesa de 1946 (art. 4o), em que o constituinte, além de renunciar à guerra “como direito soberano da nação”, afastando qualquer “ameaça ou uso de força como meio de solucionar litígios internacionais”, vedou “a manutenção de forças de terra, mar e ar com aquele objetivo”.

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a segunda forma de atuação das Forças armadas está relacionada ao cumprimento de obrigações internacionais de natureza militar assumidas pelo País, que podem derivar imediatamente de tratados ou convenções internacionais de natureza bilateral ou multilateral ou decorrer de deliberações adotadas por alguma organização internacional de que faça parte. É neste último contexto que se inserem as operações de manutenção da paz mantidas pela Organização das Nações Unidas, utilizadas com frequência apesar da ausência de qualquer referência na Carta da ONU. São formadas por combatentes cedidos por alguns estados-Membros e buscam alcançar a paz e a segurança internacionais influindo na não-deflagração ou na cessação de uma disputa armada.34

a terceira forma de atuação das Forças armadas é essencialmente voltada ao âmbito interno, manifestando-se em situações de anormalidade institucional.35 as constituições modernas costumam autorizar a imposição de limitações aos direitos fundamentais em decorrência de graves crises institucionais, com a correlata necessidade de se atribuírem poderes reforçados aos órgãos de soberania: os poderes do órgão executivo são ampliados e a divisão entre as funções estatais atenuada, tudo com o objetivo de assegurar a “paz pública”.36 daí se falar em “estado de sítio”,37 “estado de defesa”,38 “estado de emergência”,39 “estado de exceção”40 e “estado de urgência”.41Os poderes emergenciais, como anota loewenstein, 34 cf. MOta de caMPOS, João et alii. Organizações internacionais, lisboa: Fundação calouste Gulben-kian, 1999, p. 291/296.35 No direito português, a atuação das Forças armadas no âmbito interno somente é admitida quando de-cretado o estado de sítio ou o estado de emergência (art. 275, 7, da constituição de 1976). No entender da doutrina, “fora disso, estariam em perigo tanto o papel institucional das Forças Armadas, como o princípio do Estado de Direito democrático (como a experiência histórica, portuguesa e de outros países, demonstra, são re-gimes autoritários e totalitários que se servem das Forças Armadas para, em nome da segurança interna, se per-petuarem)” – MiraNda, Jorge e MedeirOS, rui. constituição Portuguesa anotada, tomo iii, coimbra: coimbra editora, 2007, p. 684. Sobre a materialização desse “perigo” na realidade brasileira, vide: ribeirO baStOS, romeu costa e GUiMarÃeS teiXeira rOcHa, Maria elizabeth. Os militares e a ordem con-stitucional republicana brasileira: de 1898 a 1964. in: revista de informação legislativa no 158, p. 241.36 HaUriOU, Maurice. Précis de Droit Constitutionnel, op. cit., p. 705.37 constituições brasileira de 1988, art. 139; portuguesa de 1976, art. 19, 6; espanhola de 1978, art. 55, 1; francesa de 1958, art. 36; e moçambicana de 2004, art. 282.38 constituições brasileira de 1988, art. 136, § 1o; e moçambicana de 2004, art. 282; bem como a Grundgesetz alemã de 1949 (art. 115a). 39 constituição portuguesa de 1976, art. 19, 6.40 constituição espanhola de 1978, art. 55, 1.41 O estado de urgência encontra-se previsto em uma lei francesa de 3 de abril de 1955, decidindo o conselho constitucional no sentido de sua recepção pela constituição de 1958 [Décision no 85-187 dc, de 25/1/1985 (Loi relative à l’état d’urgence en Nouvelle-Calédonie et dépendances), Recueil, p. 43, JO de 26/1/1985, p. 1.137]. como principal linha argumentativa, aduziu o conselho que o art. 34 da constituição autoriza o leg-islador a impor restrições ao exercício dos direitos fundamentais. a decisão foi analisada por FaVOreU e PHiliP: Les grandes décisions du Conseil Constitutionnel, 12a ed., Paris: dalloz, 2003, pp. 620/632. Vide, ainda, PRELÓT e BOULOUIS, Institutions [...], p. 882. a constituição francesa de 1958 (art. 16) também prevê a possibilidade de o presidente da república instituir um regime de exceção, passando a dispor de poderes

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poderiam ser considerados “atributo natural” do governo, utilizáveis sempre que uma crise institucional delineasse um quadro sociopolítico distinto daquele que direcionou a elaboração da ordem jurídica.42 No entanto, como construções desse tipo contribuíram para que estados democráticos se transmudassem em arbitrários e ditatoriais (vide o famoso art. 48 da constituição de Weimar, que consagrava o Notrecht – direito de emergência –, permitindo que o presidente do “Reich” suspendesse direitos fundamentais sem autorização prévia do parlamento),43 sua utilização passou a ser precedida de grande cautela, inclusive com a previsão de mecanismos parlamentares e judiciais de controle. Poderes excepcionais que são, como tais hão de ser exercidos. São meios de garantia constitucional, não de ruptura, devendo-se manter adstritos aos delineamentos traçados na constituição, sempre com o objetivo de preservar o estado e o regime político vigente.44

em situações de anormalidade institucional, a força permanente civil (rectius: os órgãos de segurança pública) não se mostra apta a preservar o estado e o regime político vigente, o que justifica a intervenção das Forças Armadas. Nesse caso, a dicotomia entre poder militar e poder civil sofre atenuações, permitindo-se ao primeiro o exercício da polícia administrativa no âmbito interno do território.

Quanto à defesa da ordem interna em situações de normalidade institucional, trata-se de atribuição a ser primordialmente exercida pela força permanente civil, estrutura formada por órgãos e agentes vocacionados à manutenção da paz interna. essa força está mais “acostumada a perseguir que a combater, a vigiar que a conquistar”.45 a necessidade de a força permanente militar permanecer apartada da ordem interior, isso em razão da especificidade de suas características existenciais, há muito foi realçada pelo abade Sieyès, expoente do movimento revolucionário francês,46 verbis:

excepcionais, inclusive o de limitar os direitos fundamentais. cf. FaVOreU, louis. La Protection Constitu-tionnelle des Droits Fondamentaux. in: Droit des Libertés Fondamentales, org. por FaVOreU, louis, 2a ed., Paris: dalloz, 2002, p. 137.42 Political Reconstruction, New York: the Macmillan company, 1946, p. 322.43 constituição de Weimar, art. 48: “se no Reich alemão houver alteração ou perigo grave da segurança e da ordem públicas, o presidente do Reich pode adotar as medidas necessárias ao seu restabelecimento”. a doutrina do notrecht foi encampada pela carta brasileira de 1937, dispondo que a declaração do “estado de emergência” (1) era faculdade privativa do presidente, (2) não podia ser suspensa pelo congresso, (3) podia resultar na sus-pensão das imunidades de qualquer membro do congresso, (4) afastava a apreciação do Judiciário e (5) pres-supunha a mera “ameaça externa”, a “iminência de perturbações internas” ou a “existência de concerto, plano ou conspiração”. Na ditadura de Vargas, “o País viveu em permanente ‘estado de emergência’” (JacQUeS. Paulino. Curso de Direito Constitucional, 8a ed., rio: Forense, 1977, p. 524). 44 cf. MiraNda, Jorge. Manual de Direito Constitucional, tomo iV, 3a ed., coimbra: coimbra editora, 2000, p. 342-344.45 cONStaNt, benjamin, op. cit., p. 110.46 Exposição Refletida dos Direitos do Homem e do Cidadão (Preliminaire de La Constitution. Reconais-sance et Exposition Raisonée des Droits de l’Homme et du Citoyen), trad. emerson Garcia. rio de Janeiro: lumen Juris editora, 2008, p. 64-65.

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A liberdade, enfim, pode ser atacada por um inimigo estrangeiro. Daí a necessidade de um exército. É evidente que ele é estranho à ordem interior, que não é criado senão na ordem das relações externas. com efeito, se fosse possível que um povo permanecesse isolado sobre a terra, ou si se tornasse impossível aos outros povos atacá-lo, não seria certo que não teríamos nenhuma necessidade de um exército? a paz e a tranqüilidade interiores exigem, em verdade, uma força coercitiva, mas de natureza absolutamente diferente. Ou, se a ordem interior, se o estabelecimento de uma força coercitiva legal pode se passar por um exército, é de suma importância que, lá onde é um exército, a ordem interior tenha uma independência tal que jamais haja alguma espécie de relação entre um e outro.É então incontestável que o soldado jamais deve ser empregado contra os cidadãos, e que a ordem interior do estado deve ser de tal modo estabelecida que, em qualquer caso, em qualquer circunstância possível, não haja necessidade de recorrer ao poder militar, a não ser contra o inimigo estrangeiro.47

em situações pontuais, no entanto, em que a coerção estatal deva assumir proporções extremas, a atuação das Forças armadas na ordem interna, mesmo em situações de normalidade institucional, tem sido admitida.

No direito espanhol, por exemplo, as “fuerzas armadas” e as “fuerzas y cuerpos de seguridad del Estado” têm atribuições bem definidas: às primeiras compete “garantir a soberania e independência da Espanha, defender a integridade territorial e o ordenamento constitucional”;48 às segundas compete “proteger o livre exercício dos direitos e liberdades e garantir a segurança cidadã.”49 em qualquer caso, a força pública atua sob autoridade e direção do Governo, que poderá, em situações extremas, pleitear a declaração dos estados de alarme, de exceção e de sítio.50 a política militar e de defesa, apesar de essencialmente ligada à política exterior, o que se verifica nas hipóteses de conflito bélico com Estado estrangeiro, também alcança a política interior, assegurando a defesa da ordem constitucional em caso de rebelião interna.51 Na itália, situa-se no âmbito das funções presidenciais a possibilidade de determinar o emprego legítimo das forças armadas em caso de crise internacional ou interna.52 Na alemanha, do mesmo modo, admite-se que

47 No mesmo sentido: cONStaNt, benjamin, op. cit., p. 109.48 constituição espanhola de 1978, art. 8o.49 idem, ibidem, art. 104.50 idem, ibidem, art. 116.51 BALAGUER CALLEJÓN et alii, p. 432.52 di celSO, M. Mazziotti e SalerMO, G. M., op. cit., p. 341.

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as Forças armadas, em caso de defesa ou tensão,53 apóiem as medidas policiais, atuando em regime de cooperação com as autoridades competentes.54 tratando-se de perigo imediato para a existência ou o regime fundamental de liberdade e democracia da Federação ou de um estado, e não estando o estado afetado disposto ou em condições de combatê-lo com suas forças de segurança, o Governo Federal o fará com o emprego das Forças armadas, assumindo o controle da polícia desse estado ou, se necessário, também de outros.55

como se percebe, a atuação das Forças armadas pode ocorrer em situações de guerra ou de paz, no exterior ou no interior do seu território de origem. essa atuação, no entanto, tanto pode ocorrer a título principal, refletindo um dever jurídico imediato, como a título acessório, que surgirá quando constatada a impossibilidade de os órgãos de segurança pública remediar a situação de injuridicidade que abala o estado e a sociedade. Neste último caso, uma interpretação teleológico-sistemática da constituição brasileira de 1988 exige que seja observado um referencial de subsidiariedade. No plano administrativo, o princípio da subsidiariedade parte da premissa de que o interesse público será mais bem tutelado com a descentralização administrativa: o poder administrativo, assim, deve ser exercido no plano mais baixo possível, aproximando os centros de decisão dos sujeitos destinatários da ação administrativa; somente quando o exercício do poder se mostre ineficaz no plano inferior é que será acionado o órgão de escalão superior, e assim sucessivamente.56

enquanto “a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio”57 é atribuição específica dos órgãos de segurança pública, as Forças armadas somente atuarão em defesa da “lei e da ordem” por iniciativa dos poderes constitucionais,58 claro indicativo de que sua atuação está condicionada à realização de um juízo valorativo pela autoridade competente, caracterizando um dever jurídico meramente mediato. conclui-se, assim, que a intervenção das Forças armadas, no âmbito interno, em situação de normalidade institucional, há de ser devidamente motivada pela ineficiência dos órgãos que, por imposição constitucional, possuem, como dever jurídico imediato, a obrigação de zelar pela segurança pública.

53 as Forças armadas (Streitkräfte) poderão ser utilizadas, inclusive, no caso de catástrofe natural (Naturka-tastrophe). cf. rObertS, Gerhard. Einführung in das Deutsche Recht, 3a ed., bade: Nomos Verlagsgesell-schaft, p. 76.54 Grundgesetz de 1949, art. 87a, 3.55 idem, arts. 87a, 4; e 91, 2.56 cf. baSSi, Franco. Lezioni di Diritto Amministrativo, 7a ed., Milano: dott a. Giuffrè editore, 2003, p. 66-67.57 constituição brasileira de 1988, art. 144, caput. as constituições de 1934 (art. 162), 1946 (art. 177) e 1967 (art. 92, § 1o), bem como a ec no 1/1969 (art. 91) previam expressamente, como atribuições das Forças arma-das, a defesa da Pátria e a garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem. a constituição de 1891 (art. 48, 3o) falava em “defesa da ordem interna ou externa”.58 constituição brasileira de 1988, art. 142, caput.

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4. A sistemática legal para o emprego das Forças ArmadasO legislador infraconstitucional, valendo-se da liberdade de conformação

deixada pelo art. 142, § 1o, da constituição de 1988, editou a lei complementar no 97, de 9 de junho de 1999, diploma normativo que “dispõe sobre as normas gerais para a organização, o preparo e o emprego das Forças Armadas”.59 estas – constituídas pela Marinha, pelo exército e pela aeronáutica – estão subordinadas ao governo civil e apresentam linhas verticais de comando: cada Força dispõe de um comandante,60 todos os comandantes estão subordinados ao ministro da defesa61 e este ao presidente da república.

cada comandante, além da responsabilidade pelo preparo de seus órgãos operativos e de apoio,62 tem competência para, no termos de decreto baixado pelo Executivo, dispor sobre a criação, a denominação, a localização e a definição das atribuições das organizações integrantes das estruturas da respectiva Força.63

O ministro da defesa exerce a direção superior das Forças armadas,64 traçando a política a ser observada pelos respectivos comandantes no preparo de seus órgãos operativos e de apoio. É assessorado pelo conselho Militar de defesa, pelo estado-Maior de Defesa e por outros órgãos previstos em lei. Especificamente em relação ao estado-Maior de defesa, compete a esse órgão, além de outras atribuições que lhe sejam outorgadas, elaborar o planejamento do emprego combinado das Forças armadas e assessorar o ministro de estado da defesa na condução dos exercícios combinados e na atuação de forças brasileiras em operações de paz.65

No sistema brasileiro, diversamente ao que se verifica em outras plagas, o chefe do executivo federal é, de fato e de direito, o “Comandante Supremo das Forças Armadas”,66 detendo poderes de grande amplitude. Se não vejamos: (1) nomeia e define a competência dos seus Comandantes,67 (2) promove os oficiais-generais68 e (3) apesar de assessorado pelo conselho Militar de defesa ou pelo

59 a matéria fora anteriormente regulada pela lei complementar no 69/1991. 60 lei complementar no 97/1999, art. 4o.61 idem, art. 3o.62 idem, art. 13.63 constituição de 1988, art. 84, iV; e lc no 97/1999, art. 6o. 64 lc no 97/1999, art. 9o.65 idem, art. 11.66 constituição de 1988, art. 84, Xiii. todas as constituições republicanas, a partir de 1891, recon-heceram expressamente que as Forças armadas estavam sob a autoridade (suprema) do presidente da república (constituições de 1891, art. 48, 3o; 1934, art. 56, 7o; 1937, art. 74, e; 1946, art. 176; 1967, art. 92; e ec no de 1969, art. 90).67 idem, art. 84, Xiii; e lc no 97/1999, arts. 4o e 6o.68 idem, art. 84, Xiii ; e lc no 97/1999, art. 7o, parágrafo único.

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ministro de estado da defesa, conforme a natureza da matéria,69 detém a palavra final sobre o emprego das Forças Armadas em situações de guerra ou de paz, no exterior ou no interior do território brasileiro.70 decidindo pela ativação de órgãos operacionais, expedirá a respectiva determinação ao Ministro de estado da defesa.71

Prestigiando a unicidade de comando, dispôs a lei complementar no 97/1999 que a utilização das Forças armadas, no âmbito interno, sempre estará condicionada à decisão do presidente da república, o que poderá ocorrer

por iniciativa própria ou em atendimento a pedido manifestado por quaisquer dos poderes constitucionais, por intermédio dos Presidentes do Supremo tribunal Federal, do Senado Federal ou da câmara dos deputados.72

Foram estabelecidos, assim, balizamentos à “iniciativa” referida no art. 142, caput, da constituição de 1988, que passa a ser vista como provocação ou requerimento dos poderes constitucionais, condicionado ao juízo valorativo e consequente decisão do chefe do executivo.

a legislação de regência ainda realça a subsidiariedade da intervenção das Forças armadas, que somente deve ocorrer

após esgotados os instrumentos destinados à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, relacionados no art. 144 da constituição Federal.73

O preenchimento dessa condicionante, além de uma análise detida e cautelosa dos dados disponíveis, pressupõe o reconhecimento formal, pelo respectivo chefe do Poder executivo Federal ou estadual, de que as estruturas de segurança pública são “indisponíveis, inexistentes ou insuficientes ao desempenho regular de sua missão constitucional”.74

69 lc no 97/1999, art. 2o.70 idem, art. 15.71 a forma de subordinação apresentará variações conforme a natureza do comando (combinado ou único) e da operação (combinada, isolada ou de paz). eis o que dispõem, a respeito da subordina-ção, os incisos do art. 15 da lei complementar no 97/1999: “i – diretamente ao comandante Supre-mo, no caso de comandos combinados, compostos por meios adjudicados pelas Forças armadas e, quando necessário, por outros órgãos; II – diretamente ao Ministro de Estado da Defesa, para fim de adestramento, em operações combinadas, ou quando da participação brasileira em operações de paz; iii – diretamente ao respectivo comandante da Força, respeitada a direção superior do Ministro de estado da defesa, no caso de emprego isolado de meios de uma única Força”.72 lc no 97/1999, art. 15, § 1o.73 idem, art. 15, § 2o.74 idem, art. 15, § 3o.

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a exigência de reconhecimento formal, pelo chefe do executivo, da inaptidão dos órgãos de segurança pública para restabelecer a ordem e garantir o primado da lei, mostra-se adequada por duas razões básicas. a primeira baseia-se na ascendência hierárquica desse agente, que ocupa o ápice do funcionalismo público estadual, sendo natural que seja devidamente considerada a avaliação a qual faz a respeito de seus subordinados. a segunda e mais importante aponta para a preservação da coerência do sistema, visto que o art. 34, iii, da constituição de 1988 prevê, como causa de intervenção da União nos estados e no distrito Federal, a necessidade de “pôr termo a grave comprometimento da ordem pública”, objetivo condicionado a um processo específico que tem consequências drásticas, claro indicativo de que não pode ser alcançado por vias transversas. Uma atuação não consentida assumiria visíveis contornos de intervenção.

a atuação das Forças armadas ainda deverá observar os balizamentos de natureza modal, espacial e temporal fixados pelo Chefe do Executivo.

O presidente da república, além de decidir sobre o emprego das Forças armadas, ainda estabelecerá “diretrizes” a respeito de seu modo de atuação.75 a possibilidade de fixação dessas “diretrizes”, no entanto, não parece se afeiçoar com a posição de extraneus do chefe do executivo, agente que não integra qualquer das Forças e que não parece qualificado a definir estratégias ou instrumentos de atuação necessários à recomposição da ordem. No direito francês, há muito observara Hauriou76 que a requisição de emprego das Forças armadas deveria indicar claramente o objetivo a ser alcançado, mas deixar ao comando militar a escolha dos meios que permitiriam alcançá-lo. trata-se, aliás, de um imperativo de ordem lógica, pois não faz sentido que agentes estranhos aos quadros militares dirijam operações dessa natureza.

No plano temporal, a atuação deve ocorrer de forma episódica e por tempo limitado.77 a atuação, por ser episódica, deve apresentar contornos de eventualidade e acessoriedade, referenciais de todo incompatíveis com a noção de continuidade. deve ser, tanto quanto possível, inesperada. além disso, é imperativo que a atuação ocorra por tempo limitado, sem ultrapassar o estritamente necessário à superação da situação de injuridicidade que motivou o seu surgimento.

No plano espacial, a atuação das Forças armadas deve ser antecedida pela delimitação da respectiva área territorial em que se desenvolverá.78 essa delimitação será orientada, consoante critérios de razoabilidade, pela natureza e extensão do

75 lc no 97/1999, art. 15, § 2o.76 Précis de droit administratif [...], op. cit., p. 583-584, nota 40.77 lc no 97/1999, art. 15, § 4o.78 lc no 97/1999, art. 15, § 4o.

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problema a ser combatido, podendo se estender desde pequenas parcelas de uma cidade à integralidade de um estado ou região.

Observados esses balizamentos, os órgãos operacionais das Forças armadas, que também deterão o controle operacional79 dos órgãos de segurança pública,80 poderão desenvolver todas “as ações de caráter preventivo e repressivo necessárias para assegurar o resultado das operações na garantia da lei e da ordem.”81 ao assegurar às Forças armadas o exercício de todas as “ações” “necessárias”, o legislador infraconstitucional, como é intuitivo, não lhes conferiu uma autorização ampla e irrestrita para atuarem da forma que melhor lhes aprouver. Hão de observar os balizamentos estabelecidos pela ordem jurídica, com especial reverência aos direitos fundamentais, sem se distanciar da juridicidade característica de toda e qualquer ação do Poder Público.

acresça-se que a prescrição legal não deixa margem a dúvidas em relação ao poder de polícia outorgado às Forças armadas, pois referidas “ações” nada mais são que as medidas a serem adotadas na consecução do objetivo almejado, alcançando os poderes de fiscalização e coerção. Apenas a regulamentação, que, além de não ser propriamente uma ação, situa-se na esfera de competência do executivo por imposição constitucional,82 não poderá ser exercida. Não é demais lembrar que ao exercer uma competência característica dos órgãos de segurança pública, inclusive com a assunção do seu comando operacional, as Forças armadas necessariamente praticarão todos os atos da alçada desses órgãos, o que, à evidência, alcança o poder de polícia.83

ainda é oportuno frisar, isso com escusas pela obviedade, que os poderes de polícia referidos no art. 17-a da lei complementar no 97/199984 não têm o

79 idem, art. 15, § 6o: “Considera-se controle operacional, para fins de aplicação desta Lei Complemen-tar, o poder conferido à autoridade encarregada das operações, para atribuir e coordenar missões ou tarefas específicas a serem desempenhadas por efetivos dos órgãos de segurança pública, obedecidas as suas competências constitucionais ou legais”.80 lc no 97/1999, art. 15, § 5o.81 idem, art. 15, § 4o.82 constituição brasileira de 1988, arts. 84, iV, e 25, caput.83 esse aspecto foi especialmente realçado pelo art. 3o do decreto no 3.897, de 24 de agosto de 2001, que fixou “diretrizes para o emprego das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem”, verbis: “Na hipótese de emprego das Forças Armadas para a garantia da lei e da ordem, objetivando a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, porque esgotados os instrumentos a isso previstos no art. 144 da Constituição, lhes incumbirá, sempre que se faça necessário, desenvolver as ações de polícia ostensiva, como as demais, de natureza preventiva ou repressiva, que se incluem na competência, constitucional e legal, das Polícias Militares, observados os termos e limites impostos, a estas últimas, pelo ordenamento jurídico”.84 lc no 97/1999, art. 17-a: “Cabe ao Exército, além de outras ações pertinentes, como atribuições sub-sidiárias particulares: [...] IV – atuar, por meio de ações preventivas e repressivas, na faixa de fronteira ter-restre, contra delitos transfronteiriços e ambientais, isoladamente ou em coordenação com outros órgãos do Poder Executivo, executando, dentre outras, as ações de: a) patrulhamento; b) revista de pessoas, de veículos terrestres, de embarcações e de aeronaves; e c) prisões em flagrante delito”.

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condão de legitimar uma conclusão a fortiori, de modo a excluir da alçada das Forças Armadas, mais especificamente do Exército, o exercício do poder de polícia fora das circunstâncias ali previstas. Nessas situações, tem-se um dever jurídico principal, a ser exercido em caráter continuado, não um dever jurídico subsididiário, condicionado à ineficiência dos órgãos de segurança pública.

Epílogoa disseminação da violência nos grandes centros urbanos, fruto de uma

exclusão social facilmente perceptível a um olhar desatento, tem desnudado a ineficiência dos órgãos de segurança pública na garantia da ordem pública interna.

O que muitos não querem perceber é que a ineficiência não é apanágio exclusivo dos órgãos de segurança. em verdade, é um padrão de conduta do próprio estado brasileiro, ainda preso a políticas puramente assistencialistas e que pouco tem feito em termos de inclusão social. a massa de iletrados (ou tecnicamente alfabetizados se preferirem) não alcança padrões mínimos de qualificação técnica e a cada dia aumenta o abismo entre as classes sociais.

empregar as Forças armadas em operações tipicamente urbanas é medida extrema, a ser adotada em situações igualmente extremas. trata-se de dogma que jamais deve ser esquecido em um País recém-saído de um regime de exceção. além do risco mediato à democracia e à própria população civil, ainda está em jogo a credibilidade das instituições, pois um aparato voltado ao combate e, ipso facto, à eliminação do inimigo, não está ontologicamente vocacionado ao policiamento ostensivo e à repressão à criminalidade civil. imaginar (ou forçar) o contrário pode desaguar em um extermínio generalizado ou no descrédito de uma instituição essencial à solidez do estado brasileiro.

REFERÊNCIAS

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“PrincíPio” Da não-cUmUlativiDaDe

Francisco alves Dos santos Júnior

GraDUaDo em Direito pela faDUsp em 1979mestraDo no cUrso De Direito público, com Dissertação sobre

DecaDência e prescrição no Direito tribUtário Do brasil pela fDr/Ufpe em 2000

JUiz feDeral, titUlar 2o vara-peprofessor Universitário

pUblicoU livros e trabalhos

Resumo: discute-se neste trabalho a origem européia da técnica da não-cumulatividade tributária, sua introdução no direito positivo do brasil, por meio de lei e, mais tarde, via emenda constitucional, indicando-se que tributos são submetidos a essa técnica na atual Constituição da República brasileira, suas finalidades, a sistemática do crédito/débito nas diversas operações que envolvem o imposto sobre Produtos industrializados-iPi e o imposto sobre circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de transporte intermuncipal e interestadual e de comunicações-icMS e o entendimento dos tribunais, principalmente do Supremo tribunal Federal do brasil, a respeito dessas operações. examina-se, também a recente extensão dessa técnica para algumas contribuições da Seguridade Social, com peculiaridades próprias. E, no final, são extraídas conclusões, firmando-se um exame crítico a respeito do direito positivo e das decisões dos tribunais.

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INTRODUÇÃONeste trabalho, iremos discutir a parte histórica da não-cumulatividade

tributária, tomando posicionamento sobre seu enquadramento como mera técnica de tributação ou como princípio geral de direito tributário, e ainda analisaremos as diversas teses relativas ao seu uso no brasil e a evolução da jurisprudência do Supremo tribunal Federal brasileiro no que diz respeito às aquisições de insumos isentos ou não tributados (aqui se enquadram também os imunes) pelo imposto sobre circulação de Mercadorias e sobre Prestação de Serviços intermunicipais e interestaduais de transportes de Pessoas e cargas e de comunicação (icMS), e com alíquota zero, isentos ou não tributados (entre os quais os imunes) pelo imposto sobre Produtos industrializados (iPi), para aplicação em produtos cujas saídas são tributadas. enfrentaremos também a problemática da manutenção ou do estorno dos créditos das entradas, quando as saídas são isentas, o icMS na venda de ativo fixo e a correção monetária dos créditos escriturados nas entradas como observância da não-cumulatividade e da isonomia com créditos da Fazenda Pública.

analisaremos ainda a extensão dessa técnica de tributação para algumas das contribuições existentes no atual direito tributário brasileiro.

Finalmente colocamos nossas conclusões, visando a um aprimoramento da não-cumulatividade, no combate ao aumento da carga tributária e no controle da inflação.

1. Breves dados HistóricosMuitos autores brasileiros tratam a não-cumulatividade tributária como

princípio. No entanto, outros, entre os quais me incluo, não a veem como um princípio geral de direito tributário, por não ter característica de orientação principiológica para o sistema, para o ordenamento jurídico, mas sim como mera técnica ou fórmula de tributação, aplicada a alguns tributos.

Nenhum dos autores que consultei de países da União europeia – Ue, dentre os quais destaco Pedro Mário Soares MartiNeZ (Portugal),1 Juan Martín QUeralt et al. (espanha),2 e Gian antonio MicHeli (itália),3 tratou da não-cumulatividade como princípio, mas sempre como simples técnica de tributação, para evitar sobrecarga tributária no preço final dos produtos e/ou dos serviços.

a não-cumulatividade existia no sistema tributário da França, para o seu imposto sobre Valor acrescido-iVa, imposto este que foi estendido para os países

1 Direito Fiscal, ed. 10o, coimbra: 1988, coimbra/Portugal: almedina, p. 615-623. 2 Curso de Derecho Financiero Y Tributário, ed. 10o, Madrid/espanha: editorial tecnos, 1999, p. 631-653.3 MicHeli , Gian antonio. Corso di Diritto Tributario, Sesta Edizione, Torino/Itália: União Tipografico-editrice torinense (Utet), 1981, p. 556-557.

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da europa que faziam parte da então comunidade econômica europeia (cee), em decorrência de duas diretivas de 11 de abril de 1967 dessa comunidade, para aplicação a partir de janeiro de 1970, tendo esse prazo sido prorrogado para o início de 1971 (bélgica) e início de julho de 1972 (itália) pela terceira diretiva de 9 de dezembro de 1969 a 1 de maio de 1972.4

a obrigatoriedade do uso da não-cumulatividade por todos os países da referida comunidade, exigida no respectivo tratado, teve a visível intenção de buscar a harmonização na tributação da circulação de mercadorias e prestação de serviços nesses países.

No Brasil, influenciado pela legislação francesa, a não-cumulatividade foi introduzida pela lei relativa ao antigo imposto de consumo (ic), mais precisamente pela lei no 3.520, de 30 de dezembro de 1958,5 que foi substituída pela lei no 4.502, de 30/11/1964,6 ainda em vigor, com várias alterações, principalmente as veiculadas pelo decreto-lei no 34, de 1964, que adaptou essa lei à emenda constitucional no 18, de 1965 7(que transformou o imposto de consumo (ic) em imposto sobre Produtos industrializados – iPi), e as veiculadas na lei no 7.798, de 1989, que adaptou a lei no 4.502, de 1964, à constituição da república de 1988.

a não-cumulatividade foi introduzida na constituição da república pela noticiada emenda constitucional no 18, de 1965, que a manteve para o imposto sobre Produtos industrializados (iPi), que, como já dissemos, substituiu, nessa emenda constitucional, o ic, e a estendeu para o então imposto sobre circulação de Mercadorias (icM), que substituiu, nessa emenda constitucional, o antigo imposto sobre Vendas e consignações (iVc), que era cumulativo.

4 MicHeli, Gian antonio. Op. cit.5 extrai-se do art. 125 da lei no 4.502, de 1964, que a lei no 3.520, de 30/12/1958, já tratava da técnica da não-tributação, verbis: “art . 125. aos fabricantes, sujeitos ao pagamento do impôsto de consumo pelo sistema de selagem direta ou pelo sistema misto, de selagem direta e por guia, que já procederam no regime das leis anteriores, à dedução dos impostos pagos sôbre as matérias-primas que concorreram para produção de artigos de seu fabrico, fica assegurado o direito expresso no artigo 5o da alteração 1o da lei número 3.520, de 30 de dezembro de 1958, desde então até a data de início de vigência da presente lei”.Obs.: mantive a ortografia da época. 6 No art. 27 da lei no 4.502, de 30.11.1964, há detalhadas regras sobre a aplicação da não-cumulatidade, verbis: “art. 27 – a importância a recolher será:i – [...].ii – [...].iii – no caso do inciso iii a resultante do cálculo do imposto relativo aos produtos saídos do estabelecimento produtor na quinzena anterior, deduzida:do valor do imposto relativo às matérias-primas, produtos intermediários e embalagens, adquiridos no mesmo período, quando se tratar de estabelecimento industrial”.O § 1o do art. 25 dessa lei também trata da não-cumulatividade.7 À constituição da república de 1946, então vigente.

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eis a redação da não-cumulatividade nessa emenda constitucional:Art. 11. compete à União o imposto sobre produtos industrializados.Parágrafo único. O imposto é seletivo em função da essencialidade dos produtos, e não-cumulativo, abatendo-se, em cada operação, o montante corado nas anteriores.Art. 12. compete aos estados o imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias, realizadas por comerciantes, industriais e produtores.§ 2o – O imposto será não-cumulativo, abatendo-se, em cada operação, nos termos do disposto em lei complementar, o montante cobrado nas anteriores, pelo mesmo ou por outro estado [...].

a vigente constituição da república brasileira, que é de 1988, manteve essa técnica, no inciso ii do § 3o do art. 153 para o imposto sobre Produtos industrializados (iPi), com a seguinte redação:

Art. 153. compete à União instituir impostos sobre:i – [...];ii – [...].iii – [...].iV – produtos industrializados;[...].§ 3o – O imposto previsto no inciso iV:i – [...];ii – será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação com o montante cobrado nas anteriores;

No inciso i do § 2o do art. 155, a não-cumulatividade encontra-se fixada para o imposto sobre circulação de Mercadorias e sobre Prestação de Serviços intermunicipais e interestaduais de transportes de Pessoas e cargas e de comunicação (icMS), com a seguinte redação:

Art. 155. compete aos estados e ao distrito Federal instituir impostos sobre: (redação dada pela emenda constitucional no 3, de 1993)i – [...].ii – operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior; (redação dada pela emenda constitucional no 3, de 1993)§ 2o O imposto previsto no inciso ii atenderá ao seguinte: (redação dada pela emenda constitucional no 3, de 1993)

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i – será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro estado ou pelo distrito Federal.

Note-se que houve uma pequena alteração: substituiu-se a expressão “abatendo-se” da emenda constitucional no 18, de 1965, por “compensando-se”.

Houve também alterações de fundo: a não-cumulatividade foi estendida para os impostos da competência residual da União, previstos no inciso i do seu art. 154 constituição da república, verbis:

Art. 154. a União poderá instituir:i – mediante lei complementar, impostos não previstos no artigo anterior, desde que sejam não-cumulativos e não tenham fato gerador ou base de cálculo próprios dos discriminados nesta constituição.8

e para as outras fontes de custeio da Seguridade Social que a União também passou a poder instituir, utilizando-se de outra competência residual que lhe foi outorgada pelo legislador constituinte originário, no § 4o do seu art. 195, outras contribuições, verbis: “§ 4o – a lei pode instituir outras fontes destinadas a garantir a manutenção ou a expansão da seguridade social, obedecido o disposto no art. 154, i”.9

Note-se que a exigência para observar o art. 154-i da constituição da república implica, entre outras coisas, na observância da não-cumulatividade tributária.

8 É importante registrar que, no direito constitucional do brasil, só a União tem competência residual para instituir outros impostos, além daqueles que estão na sua competência regular. trata-se da denominada competência residual. 9 também apenas a União tem competência residual para instituir outras fontes de custeio da seguridade social, ou seja, outras Contribuições para tal fim. Quanto a estas “outras fontes” de custeio da seguridade social, a União utilizou-se dessa competência residual, pela primeira vez, por meio da lei complementar no 84, de 1996, quando instituiu a contribuição previdenciária sobre pagamentos feitos a autônomos e avulsos. Na época, a não-cumulatividade não se aplicava às contribuições (isso só passou a existir, para algumas contribuições, depois da emenda constitucional no 42, de 19/12/2003, conforme se demonstrará na sequência do texto deste trabalho). como mencionada lei complementar no 84, de 1996, não estabeleceu que aquela contribuição seria não-cumulativa, como exigia o art. 154-i da constituição, a cujos requisitos remete o § 4o do art. 195 da mesma carta, os contribuintes a impugnaram no Supremo tribunal Federal e este decidiu que a não-cumulatividade não era aplicável às contribuições, mas apenas aos impostos indicados na constituição da república. braSil. Supremo tribunal Federal. Partes(n/c). embargos declaratórios ao recurso extraordinário-re no 234.321-8, relator Min. Moreira alves. diário da Justiça da União de 12/2/1999, p. 0017. 1o turma do Supremo tribunal Federal. Nota: a matéria tratada na lei complementar no 84, de 1996, depois da emenda constitucional no 20, de 15/12/1998, passou a poder ser tratada por lei Ordinária, e de fato o foi pela lei Ordinária no 9.876, de 26/11/1999, cujo art. 9o revogou expressamente mencionada lei complementar, que depois da referida emenda constitucional foi reduzida, materialmente, a lei Ordinária.

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a emenda constitucional no 42, de 19/12/2003, aprofundou mais ainda a aplicação da não-cumulatividade, pois a estendeu para as contribuições da Seguridade Social previstas na alínea “b” do inciso i e no inciso iV, todos do art. 195 da constituição da república, conforme o § 12 desse mesmo dispositivo constitucional, igualmente acrescido pela mencionada emenda constitucional.

as contribuições da alínea “a” do inciso i do art. 195 da constituição da República são a Contribuição para Financiamento da Seguridade Social (Cofins) e a contribuição para o Programa de integração Social (PiS).

as contribuições do inciso iV do mesmo dispositivo correspondem à incidência dessas duas contribuições sobre a importação de bens ou serviços,10 sendo conhecidas por Cofins-Importação e PIS-Importação.

2. Em que Consiste a Não-Cumulatividadeinicialmente, chamo a atenção para o fato de que a não-cumulatividade não

se aplica, no brasil, a todos os impostos que incidem sobre serviços, como costuma acontecer nos países que adotam o imposto sobre Valor acrescido-iVa, mas apenas nos impostos e contribuições acima indicados, dos quais apenas o icMS incide sobre alguns serviços.

cabe também destacar que o brasil é o único País que tem dois impostos sobre Valor acrescido (iVa), o icMS e o iPi, e que não submete à não-cumulatividade o imposto que incide sobre quase todos os serviços, qual seja, o imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (iSSQN), da competência dos Municípios, situação essa que tem lhe causado grande dificuldade para harmonizar-se com os demais países signatários do tratado do Mercosul, que adotam apenas o iVa, incidindo sobre a produção e circulação de mercadorias e sobre a prestação de serviços. Ou seja, um único imposto desses países vale pelos três referidos impostos do brasil.

No brasil, a não-cumulatividade consiste em compensar-se o valor do próprio imposto, pago nas operações anteriores, na presente operação de saída e nas subsequentes e assim sucessivamente sempre que houver o respectivo fato gerador e até que o produto chegue às mãos de um não-contribuinte que, no caso do ICMS, será, regra geral, o consumidor final. No caso do Imposto sobre Produtos Industrializados deixa de incidir quando chega às mãos de um consumidor final e também quando entra em estabelecimento não industrial e/ou não equiparado à industrial ou em estabelecimento meramente comercial e sai sem incidência do iPi, mas apenas com a incidência do icMS.10 a constitucionalidade da emenda constitucional no 42, de 2003, e das leis que, com base nessa emenda, instituíram essas contribuições está sendo discutida perante o Poder Judiciário Federal e com certeza será apreciada finalísticamente pelo Supremo Tribunal Federal.

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Já vimos, na transcrição, em nota de rodapé acima, do art. 27 da lei no 4.502, de 1964, que essa técnica passou a ser observada no brasil pelo sistema de crédito-débito, sendo que o § 1o do art. 25 dessa lei também traz regras a respeito do assunto.11

O comerciante ou industrial adquirente credita-se, no livro de registro de entradas das mercadorias (produtos), do valor do imposto destacado (iPi) e indicado (ICMS) na nota fiscal do Fornecedor e debita-se do valor do imposto destacado (IPI) e indicado (ICMS) na sua nota fiscal de saída (venda, etc.), no livro de registro de saídas dos produtos (iPi) e das mercadorias (icMS) e, no final do período de apuração (fixado na Lei), deduz-se do total do débito o total do crédito e, se aquele for maior, será o saldo devedor que terá de ser recolhido para os cofres da Fazenda Pública titular da respectiva receita tributária. Se o total da coluna do crédito for maior, o saldo credor será transferido para o período seguinte, quando então será abatido dos débitos respectivos. Finalísticamente, chega-se à conclusão de que só haverá imposto a pagar se o valor da venda for superior ao da aquisição, ou seja, se houver valor acrescido, igual ao iVa acima mencionado.12

extrai-se também dessa técnica que se pressupõe a incidência dos impostos nas aquisições (entradas) e nas saídas (vendas, revendas, consignações, etc.), para que possa haver o crédito-débito.11 Contabilidade fiscal, adotando-se algo parecido com as partidas dobradas da contabilidade comercial, criada pelo Padre luca Pacioli, no século XVi. apenas parecida, porque nestas o crédito será sempre igual ao débito, o que raramente ocorre no crédito-débito do icMS e do iPi. a respeito dessas partidas dobradas, v. nosso “Finanças Públicas, Orçamento Público e direito Financeiro”, 1o edição, recife: livro rápido, 2008, p. 315. 12 imaginemos dois exemplos bem simples, com valores redondos, para facilitar o entendimento: 1) Estabelecimento “A” adquire insumos no valor de R$ 100,00. Na nota fiscal do Fornecedor “Y”, constou destacado o valor de r$ 10,00 de iPi (alíquota de 10%) e indicado o valor de r$ 17,00 de icMS (alíquota de 17%). Valor total da nota: r$ 110,00 (o valor do iPi é calculado “por fora” e por isso é destacado e somado com o preço da operação; o valor do icMS é calculado “por dentro”, faz parte indissociável do preço da operação e, por isso, é apenas indicado na nota fiscal, não sendo somado ao preço da operação, porque já se encontra nele incluído). registre-se que quando a operação constitui fato gerador, simultâneo, desses dois impostos, entre contribuintes do icMS e o produto destinado à comercialização e/ou industrialização, o icMS não incide sobre o valor da parcela do iPi (essa não incidência já constava do § 5o do art. 2o do hoje revogado decreto-lei no 406, de 31/12/1968, e consta agora do inciso Xi do § 2o do art. 155 da vigente constituição da república, tratando-se, pois, de um caso de imunidade tributária, porque se trata de uma desoneração tributária veiculada na constituição da república). Voltando ao exemplo: se o estabelecimento “a”, depois de fabricar o seu produto final, o vendesse para Comerciante “Z”, pelo mesmo valor da aquisição (R$ 100,00), sob as mesmas alíquotas, e no período de apuração fizesse apenas uma operação, no final não pagaria nem IPI, nem ICMS, pois ter-se-ia creditado de r$ 10,00 de iPi e de r$ 17,00 de icMS e debitado de idênticos valores, de forma que o débito menos o crédito corresponderia a r$ 0,00. 2) No entanto, o mais normal seria o estabelecimento “a”, do exemplo da nota anterior, após a fabricação, vender o produto por, no mínimo, o dobro do preço de aquisição, qual seja, por r$ 200,00. adotando-se para o produto final os mesmos 10% de IPI (R$ 20,00) e os mesmos 17% de ICMS (34,00), após a compensação dos créditos feitos na entrada com os débitos da saída, o estabelecimento “a” recolheria r$ 10,00 de iPi e r$ 17,00 de icMS. Ou seja, tributaria apenas o valor acrescido (r$ 100,00).

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O código tributário Nacional tem regra, no seu art. 49, nesse mesmo sentido para o iPi e tinha idêntica regra no seu art. 54 para o então icM, artigo que foi revogado pelo decreto-lei no 406, de 30/12/1964, que passou a tratar do assunto para o icM,13 ato legal esse atualmente substituído pela lei complementar no 87, de 13/9/1996, que trata da não-cumulatividade do icMS14 em seus art. 19-20.

Quanto à sistemática da não-cumulatividade das contribuições acima referidas e às respectivas leis que delas tratam, serão examinadas abaixo, em tópico próprio.

3. Saídas Imunes, Não Tributadas, Isentas ou com Alíquota Zero

Se a saída (venda, revenda, consignação, etc.) não for onerada por qualquer um desses impostos, o crédito relativo à entrada, tendo em vista a regra da não-cumulatividade, não deve ser feito e, se tiver sido efetuado, deverá ser estornado quando da saída sem o imposto. a manutenção desse crédito só será admitida a título de incentivo fiscal (renúncia fiscal para a Fazenda Pública); logo, dependerá de autorização na própria Constituição da República ou em lei específica (§ 6o do art. 150 da constituição da república).15

com relação ao então icM, o Supremo tribunal Federal chegou a enfrentar esse assunto, verbis:

2) eMeNta: – cONStitUciONal. tribUtÁriO. icMS. PriNcÍPiO da NÃO-cUMUlatiVidade. direitO de

13 O Código Tributário Nacional só poderia ser modificado por Lei Complementar, porque a Lei que o instituiu sempre teve natureza material de lei complementar. todavia, estávamos em 1968 sob autoritário regime político-militar, que houvera fechado o congresso Nacional, por isso a alteração do código tributário Nacional foi veiculada via Decreto-lei (figura normativa existente na Constituição da época, editada pelo presidente da república). Posteriormente, a doutrina e a jurisprudência passaram a considerá-lo, materialmente, lei complementar, porque tratava de matéria afeta à lei complementar. É tanto que, posteriormente, em períodos de normalidade institucional, foi esse decreto-lei sempre alterado por lei complementar, como aconteceu via leis complementares no 44, de 1983, no 56, de 1987, etc. e, finalmente, pela Lei Complementar no 87, de 1996 e, mais recentemente, pela lei complementar 116, de 2003.14 O antigo icM foi substituído na vigente constituição da república de 1988 pelo icMS, posto que passou a incidir sobre alguns serviços. 15 exemplo: a saída de produtos industrializados para outro país goza de imunidade do iPi (inciso iii do § 3o da constituição da república) e do icMS (inciso iii do § 3o do art. 155 da constituição da república, com redação dada pela emenda constitucional no 42, de 2003). a lei no 4.502, de 1964, que trata do iPi, autoriza, para essa situação, a manutenção dos créditos da entrada dos insumos (§ 1o do art. 7o). No caso do icMS, a própria regra constitucional, ora referida, autoriza essa manutenção, bem como a lei complementar no 87 (§ 2o e final do inciso II do § 3o do seu art. 20), de 1996, que traça as regras gerais sobre esse imposto. No entanto, se não houver regra constitucional ou legal autorizando a manutenção dos créditos das entradas, nas saídas desoneradas desses impostos (autorização essa que se consubstancia em contrariedade à técnica da não-cumulatividade, mas por razões extrafiscais – incentivo fiscal), os créditos referentes às entradas não podem ser feitos e, se tiverem sido efetuados, têm de ser estornados (§ 3o do art. 25 da lei no 4.502, de 1964, para o iPi; § 1o do art. 20 da lei complementar no 87, de 1996, para o icMS).

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crÉditO. c.F., 1967, art. 23, ii, cOM redaÇÃO da ec No 23, de 1983. OPeraÇÃO realiZada Na ViGÊNcia da ec No 23/83.i – icM recolhido na entrada de matéria-prima empregada na fabricação de produto cuja saída é isenta do referido imposto, operação realizada já na vigência da e.c. 23/83, que introduziu alteração no art. 23, ii, da cF/67. inocorrência do direito ao crédito. Precedente do StF.16

creio que se deveria permitir que o contribuinte, com relação a impostos não-cumulativos, pudesse renunciar à isenção, em saídas para dentro do País, para poder recuperar os créditos relativos a entradas, possibilidade essa existente nos países da União europeia-a, conforme registra o jurista português Pedro Mário Soares MartÍNeZ:

a isenção do i.V.a. oferece a vantagem de libertar os isentos de qualquer obrigação de liquidar o imposto e de realizar a respectiva prestação pecuniária. Mas, em contrapartida, aos isentos não é facultado deduzir o imposto que tenham suportado pelas aquisições de bens e de serviços. daí o código permita a renúncia à isenção (art. 12o). 17

Pode-se perguntar, mas qual a vantagem de renunciar à isenção?respondo: nas hipóteses em que o valor dos créditos das entradas seja

superior ao valor dos débitos das saídas. imagine-se que as alíquotas do iPi dos insumos para aplicação em determinado produto final sejam em porcentual bem alto e a alíquota desse produto final seja em porcentual bem baixo, alíquota esta que não será aplicada por gozar a saída de isenção legal. Poderia ser interessante para o estabelecimento industrial renunciar a esta isenção, tributar pela alíquota que é bem baixa e creditar-se do valor do IPI da nota fiscal do Fornecedor dos insumos que, por encontrarem-se sob alíquota de porcentual bem alto, poderá ser maior que o total do iPi destacado nas saídas.

O mencionado autor português, Soares Martínez, nos traz outro exemplo:assim, por exemplo, as entidades patronais estarão, em princípio, isentas do i.V.a., pelos serviços de alimentação e bebidas que prestem aos seus empregados (art. 9o, no 40); mas poderão ter interesse na renúncia à isenção, porque essa renúncia lhes permitirá deduzir do imposto as importâncias que lhes sejam cobradas pelos fornecedores a título de i.V.a., que onerem os preços dos bens e serviços prestados.18

16 braSil. Supremo tribunal Federal. Partes (n/c). ai agr 54.666-9/eS. agravo regimental em agravo de instrumento. rel. Min. Sepúlveda Pertence. Julgamento em 6/12/2005. 1o turma do Supremo tribunal Federal. disponível em: <www.stf.gov.br>. acesso em: 2/6/2008.17 Grifos nossos. Op. cit., p. 621. 18 ibidem.

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Ou seja, na União europeia – eU, cabe a cada contribuinte analisar se é ou não vantajosa a renúncia à isenção, para fazer jus aos créditos do imposto consignado na nota fiscal do Fornecedor e deduzi-los quando do pagamento relativo às suas saídas. Repito, a legislação brasileira deveria outorgar essa possibilidade aos nossos contribuintes.

4. Aquisição para Uso, Consumo ou Ativo Fixoa doutrina sempre sustentou que as empresas industriais, tendo em vista a

não-cumulatividade dos icMS e do iPi, nas aquisições para uso, consumo e/ou para o imobilizado (ativo fixo) teriam o direito de creditar-se do valor desses impostos indicado e destacado, respectivamente, na nota fiscal do Fornecedor, porque o valor do preço dessas aquisições finda por compor o preço final dos seus produtos e serviços. assim, tendo em vista o explicado no item anterior, esse direito seria possível se o produto da produção (fabricação) e venda dessas empresas fossem tributados na saída por esses impostos ou gozassem de desoneração incentivada.

O mesmo raciocínio seria aplicável às empresas comerciais, com referência ao ICMS, ou seja, se esse tipo de Empresa fizesse aquisições para uso, consumo e/ou para o imobilizado (ativo fixo) faria jus ao crédito do valor desse imposto indicado na nota fiscal do Fornecedor, desde que revendesse mercadorias tributadas por esse imposto, ou prestasse os respectivos serviços com igual incidência, ou então o revendesse ou prestasse os serviços sem esse imposto e houvesse regra constitucional ou legal autorizando a manutenção.

a lei complementar no 87, de 1996, findou por adotar esse entendimento, obviamente, apenas para o icMS, porque essa lei trata somente desse imposto, permitindo o respectivo crédito na entrada de mercadorias para uso, consumo e/ou para o ativo fixo (caput do art. 20 e respectivo § 5o dessa lei), exceto se o estabelecimento só der saída a mercadorias e/ou prestar serviços isentos ou não tributados por esse imposto (inciso i do § 3o do art. 20 dessa lei). Mantém-se o direito ao crédito, nesta última hipótese, quando a própria constituição da república ou a lei própria autorizar essa manutenção (como, por exemplo, na exportação, conforme final do inciso I do § 3o do art. 20, nas saídas de produtos agropecuários ou outras isenções indicadas em leis estaduais, conforme inciso i do § 6o do art. 20, todos dessa lei complementar).

estabeleceu-se que o gozo integral desse crédito seria a partir de 1o/1/2000 (art. 33-i dessa lei), mediante escrituração dupla (a regular, no livro registro de apuração, e, outra, em livro próprio, segundo § 5o do art. 20 dessa lei).

O início do gozo desse direito foi alterado mais de uma vez, sendo que a última alteração consta da lei complementar no 122, de 2006, que o adiou, finalísticamente,

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para 1o./1/2011 (nova redação ao inciso i do ar. 33-i da lei complementar no 87, de 1996) e, quando isso for possível, o crédito será feito em conta-gotas, ou seja, à razão de 1/48 (um ponto quarenta e oito avos) ao mês, vale dizer, ao longo de 48 (quarenta e oito) meses (nova redação do inciso i do § 5o do art. 20 da lei complementar no 87, de 1996), vedando-se, proporcionalmente, o crédito com relação às operações isentas ou não tributadas que não gozem de incentivo fiscal (nova redação do inciso ii do § 5o do art. 20 desta lei).

com relação ao iPi, ainda não há lei complementar, nem lei Ordinária Federal autorizando esse tipo de crédito, o qual vem sendo concedido apenas para alguns instrumentos, equipamentos e máquinas a título de incentivo fiscal, principalmente a produtos de fabricação nacional, que finda sendo estendido para a aquisição de produtos estrangeiros, que lhes sejam iguais ou similares, em face da isonomia tributária, decorrente da cláusula de Nação mais favorecida, consignada em acordos internacionais dos quais o brasil é signatário, tais como o tratado do Mercosul e o tratado da Organização Mundial de comércio. Mas, com referência aos demais produtos (que não gozam desse tipo de incentivo fiscal), adquiridos para uso, consumo ou ativo fixo, continua sendo contrariada a técnica da não-cumulatividade, quando o estabelecimento industrial fabrica produtos cujas saídas são tributadas por esse imposto federal.19

4.1. Saída (a qualquer título) de bem do ativo FixoO Supremo tribunal Federal, quanto ao icMS, posicionou-se, em julgado

de 29/4/1997 e em julgados posteriores, no sentido de que não há incidência desse imposto na venda de bem do ativo fixo, porque esse fato não se enquadra como circulação de mercadoria no sentido jurídico tributário, tampouco esse tipo de operação seria habitual, daí não se concretizar o fato gerador (a hipótese de incidência).20

19 Há, sim, regra em sentido contrário. Veja o texto do § 1o da lei no 4.502, de 1964:“art. 25.[...]. § 1o O direito de dedução só é aplicável aos casos em que os produtos entrados se destinem à comercialização, industrialização ou acondicionamento e desde que os mesmos produtos ou os que resultarem do processo industrial sejam tributados na saída do estabelecimento. (redação dada pelo decreto-lei no 1.136, de 1970).”20 braSil. Supremo tribunal Federal. Partes (n/c). icMS. beNS dO atiVO FiXO. VeNda. NÃO-INCIDÊNCIA. “A venda de bens do ativo fixo da empresa não se enquadra na hipótese de incidência determinada pelo art. 155, i, b, da carta Federal (art. 155, ii, da cF/1988, com a redação determinada pela ec no 3/93, tendo em vista que, em tal situação, inexiste circulação no sentido jurídico tributário: os bens não se ajustam ao conceito de mercadorias e as operações não são efetuadas com habitualidade. recurso extraordinário não conhecido”. re no 194.300-9/SP, julgado em 29/4/1997. rel. Min. ilmar Galvão. Unânime. 1o turma do Supremo tribunal Federal. diário da Justiça da União de 12/9/1997. Nesse mesmo sentido, entre outros, os res 182.721-1, 2o t do StF. rel. Min. Maurício corrêa, j. em 25/11/1997, v.u., diário da Justiça da União de 27/2/1998, p. 19 e agrg no ai 177.698-7/SP, mesma turma, rel. Min. Marco aurélio, julgado em 12/3/1996, v.u., diário da Justiça da União de 264/1996.

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O § 1o do art. 21 da lei complementar no 87, de 1996, estabelecia que se estornasse o crédito do ICMS, caso o bem adquirido para uso ou para ativo fixo fosse vendido no prazo de cinco anos, contado da data da aquisição, à razão de 20% (vinte por cento) por ano ou fração. essa determinação contrariava a não-cumulatividade, porque o valor de aquisição desse bem é repassado para o preço dos produtos de venda no mês seguinte ao da aquisição. Felizmente, a lei complementar no 102, de 2000, em seu art. 8o, revogou aquele § 1o do art. 21 da lei complementar no 87, de 1996, de forma que, depois dessa revogação, mesmo que o bem adquirido para uso ou para ativo fixo seja alienado dentro do prazo de cinco anos, contado da data da aquisição, não há mais que se falar em estorno dos créditos decorrentes da entrada.

Quanto ao iPi, só ocorrerá o fato gerador se o bem, que se encontra no imobilizado, tiver sido de importação própria ou de fabricação própria.21 Se o contribuinte não tiver feito o crédito relativo à entrada ou o tiver estornado no ato da imobilização, terá direito de creditar-se no ato da saída tributada (observância da não-cumulatividade).

Óbvio que, se a saída ocorrer depois de cinco anos da imobilização, não há que se falar em incidência do imposto, em face da decadência quinquenal relativamente a esse bem.

5. Entradas de insumos imunes, não tributados, isentos ou com alíquota zero do ICMS ou IPI e aplicados em produtos cujas saídas são tributadas por esses impostos.

aqui analisaremos situações contrárias às indicadas no item anterior e que já foram enfrentadas pelo Supremo tribunal Federal.22

5.1. Quanto ao icMSNo final da década de setenta do século XX, um advogado, na cidade de São

Paulo, chamado Sílvio Pereira lima,23 propôs uma ação contra a Fazenda Pública

21 lei no 4.502, de 30/11/1964: art. 2o constitui fato gerador do impôsto: i – quanto aos produtos de procedência estrangeira o respectivo desembaraço aduaneiro; ii – quanto aos de produção nacional, a saída do respectivo estabelecimento produtor. § 1o Quando a industrialização se der no próprio local de consumo ou de utilização do produto, fora de estabelecimento produtor, o fato gerador considerar-se-á ocorrido no momento em que ficar concluída a operação industrial. 22 É interessante notar que as questões a respeito deste tema parecem ter ocorrido apenas no brasil, pois dos autores europeus consultados, acima indicados, nenhum lhe faz qualquer referência. discutem apenas e tão-somente as aquisições tributadas com saídas isentas, analisadas no tópico “4” supra. 23 Faço este registro histórico apenas de memória, pelo que espero não errar o nome desse advogado. e lembro-me desse detalhe porque, à época, eu era estudante de direito da Faculdade de direito da USP, e Sérgio Pereira lima, irmão do mencionado advogado, era meu colega de turma. Naquele tempo, eu já trabalhava com direito tributário e por isso acompanhava todas as novidades. consta-me também que o mencionado

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estadual e foi vencedor, tendo o Judiciário autorizado a empresa de sua cliente a creditar-se do então imposto sobre circulação de Mercadorias (icM), relativamente a insumos adquiridos sem esse imposto, por terem tais insumos sido aplicados em produtos finais cujas saídas do Estabelecimento industrial da Empresa sofriam incidência desse imposto. concluiu-se que se assim não fosse haveria contrariedade à não-cumulatividade, porque aqueles insumos findaram por ser tributados por esse imposto na saída do produto final, posto que o respectivo valor, integrado no custo, passara a fazer parte integrante do preço final de tais produtos.24

A matéria chegou ao Supremo Tribunal Federal e este pacificou referido entendimento a favor das empresas contribuintes, conforme os julgados que, a título de exemplo, seguem:

1o caso:recorrente: Formil Química S/a e Outrosrecorrido: O estado de São Paulo.eMeNta: icM. iMPOrtaÇÃO de MatÉria-PriMa cOM iSeNÇÃO. direitO de crÉditO. cF/69, art. 23, ii. JUriSPrUdÊNcia cONSOlidada.A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal – STF pacificou-se no sentido de que, havendo isenção na importação de matéria-prima, há o direito de creditar-se do valor correspondente, na fase de saída do produto industrializado, sob pena de afronta ao princípio da não-cumulatividade.recurso extraordinário conhecido e provido.25

2o caso:recorrente: 3M dO braSil ltda.recorrido: eStadO de SÃO PaUlOeMeNta: – icM. iMPOrtaÇÃO de MatÉria-PriaM cOM iSeNÇÃO. direitO de crÉditO. cF/69. art. 23, ii. JUriSPrUdÊNcia cONSOlidada.

advogado faleceu muito jovem, naquela década, em um acidente de automóvel. 24 eis um exemplo bem simples, com valores, para que melhor se entenda esse assunto: empresa “Y” adquire insumos (matéria-prima, material de embalagem e produtos intermediários), pelo valor de r$ 100,00, isentos do icMS e do iPi. a alíquota do icMS de 17% e a do iPi de 10%, mas o valor desses impostos não constou da nota fiscal do Fornecedor, por conta da isenção legal. A Empresa “Y” aplicou esses insumos em um produto final, que foi vendido por R$ 300,00, com 17% de ICMS e 10% de IPI. Aqueles R$ 100,00, relativos à aquisição dos insumos, encontram-se dentro destes r$ 300,00, de forma que estão sendo tributados no momento da saída do produto final. Então, pela técnica da não-cumulatividade, a Empresa “Y“ teria direito a creditar-se do icMS e do iPi sobre referidos r$ 100,00.No caso histórico, referido no texto, que cito de memória, envolveu apenas o então icM. 25 braSil. Supremo tribunal Federal. recurso extraordinário-re no 113.751-7/SP. Julgado em [s/d]. rel. Min. ilmar Galvão. diário da Justiça da União no 81, de 28/4/1995, p. 11.137.

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A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal – STF pacificou-se no sentido de que, havendo isenção na importação de matéria-prima, há o direito de creditar-se do valor correspondente na fase de saída do produto industrializado, sob pena de afronta ao princípio da não-cumulatividade.descabimento da incidência de correção monetária.26

recurso extraordinário conhecido e provido, em parte.”27

eis como era o dispositivo da constituição de 1967-1969 a respeito dessa matéria e que gerou aquele entendimento do Supremo tribunal Federal:

Art. 23. compete aos estados e ao distrito Federal instituir impostos sôbre:i – [...].ii – operações relativas à circulação de mercadorias, realizadas por produtores, industriais e comerciantes, impostos que não serão cumulativos e dos quais se abaterá nos termos do disposto em lei complementar, o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou por outro estado.

Os governadores dos estados e do distrito Federal, ante aquele entendimento do Poder Judiciário, organizaram-se e conseguiram arrancar do congresso Nacional a emenda constitucional no 23, de 1983,28 e então esse inciso do art. 23 daquela carta passou a ter a seguinte redação:

ii – operações relativas à circulação de mercadorias realizadas por produtores, industriais e comerciantes, imposto que não será cumulativo e do qual se abaterá, nos termos do disposto em lei complementar, o montante cobrado

26 Note-se: sem correção monetária, entendimento até hoje mantido pelo Supremo tribunal Federal, porque para essa Suprema corte trata-se de mero crédito escritural, entendimento muito criticado pela doutrina, porque, embora sendo um crédito escritural, representa um valor em moeda, e a correção monetária visa apenas a repor o poder aquisitivo desta. No livro Código Tributário Nacional Comentado (coordenador FreitaS, Vladimir Passos de), ed. 3o, São Paulo: rt, 2005, p. 317-318, há um rol imenso de julgados do Supremo Tribunal Federal, do final da década de noventa do século XX até o ano de 2002, nos quais essa Suprema Corte manteve o seu entendimento. a respeito desse assunto, vide cOSta, alcides Jorge. in: revista de direito tributário atual, Vol. 15, São Paulo: instituto de direito tributário do brasil/dialética, 1998, p 5, no qual esse autor se penitencia, dizendo que ele fora o precursor dessa história de “crédito escritural”, mas que caberia a correção monetária, porque envolve um valor em moeda. Ora, se os créditos icMS da Fazenda Pública também são escriturais e, no entanto, gozam de correção monetária ou atualização pela tabela Selic (depende da legislação de cada estado), logo, data maxima venia, tem-se de dar aos créditos do contribuinte perante a Fazenda Pública, decorrentes de pagamento indevido desse imposto, o mesmo tratamento, sob pena de contrariedade à técnica da não-cumulatividade, além de dar-se tratamento diferenciado discriminatória, sem razão alguma.27 braSil. Supremo tribunal Federal. recurso extraordinário-re 113.792-4/SP. Julgado em [sd]. rel. Min. ilmar Galvão. diário da Justiça da União: 16/2/1996. p. 2.999. Plenário do Supremo tribunal Federal. 28 conhecida por emenda Passos Porto, em homenagem ao Parlamentar que apresentou o respectivo projeto.

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nas anteriores pelo mesmo ou por outro estado. a isenção ou não-incidência, salvo determinação em contrário da legislação, não implicará crédito de imposto para abatimento daquele incidente nas operações seguintes. (redação dada pela emenda constitucional no 23, de 1983).

Note-se que o crédito, para tais aquisições, passou a só poder ser efetuado com expressa autorização da legislação estadual, dificilmente concedida pelos Estados. A possibilidade de crédito foi transformada em renúncia fiscal (incentivo fiscal, via crédito presumido).

depois dessa emenda constitucional, o Supremo tribunal Federal mudou radicalmente sua jurisprudência e passou a decidir que não mais caberia a recuperação do então imposto sobre circulação de Mercadorias (icM) em tal situação, verbis.

1) eMeNta: – icM. isenção na importação de matéria-prima. crédito. antes da edição da ec 23/83, há direito ao crédito do valor do icM, que seria devido pela importação de matéria-prima industrializada, na saída do produto, no qual utilizada. Precedente.29

Contrario sensu, após a emenda constitucional no 23, de 1983, deixou de caber o crédito nas aquisições de insumos isentos, mesmo que aplicados em produtos finais tributados, exceto com expressa autorização legal.

a constituição da república de 1988 manteve essa vedação já na sua redação originária, com a seguinte dicção:

Art. 155. compete aos estados e ao distrito Federal instituir impostos sobre: (redação dada pela emenda constitucional no 3, de 1993)i – [...].ii – operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior; (redação dada pela emenda constitucional no 3, de 1993)§ 2o O imposto previsto no inciso ii atenderá ao seguinte: (redação dada pela emenda constitucional no 3, de 1993)i – [...].ii – a isenção ou não-incidência, salvo determinação em contrário da legislação:a) não implicará crédito para compensação com o montante devido nas operações ou prestações seguintes;b) acarretará a anulação do crédito relativo às operações anteriores.

29 braSil. Supremo tribunal Federal. Partes (n/c). re 112.554, de 3/10/1988, rel. Francisco rezek. 2o turma do Supremo tribunal Federal. in: diário da Justiça da União de 25/10/1991.

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Ou seja, só caberá o crédito na entrada dos insumos e/ou mercadorias ou produtos isentos ou não tributados se houver expressa autorização na própria Constituição da República ou em Lei, o que caracterizará renúncia fiscal da Fazenda Pública, na modalidade incentivo fiscal (crédito presumido, nos termos do § 6o do art. 150 da constituição da república).30

Note-se que não se fala em alíquota zero, porque esse tipo de alíquota não é utilizado no campo do icMS, mas apenas no iPi.

5.2. Quanto ao iPiembora o imposto sobre Produtos industrializados (iPi) tivesse, quanto

à não-cumulatividade, a mesma estrutura do imposto sobre circulação de Mercadorias (icM), imposto que foi transformado na constituição da república de 1988 em imposto sobre circulação de Mercadorias e sobre Prestação de Serviços intermunicipais e interestaduais de transportes de Pessoas e cargas e de comunicação (icMS), não se lhe foram estendidas, expressamente, tais regras quanto aos créditos das aquisições com desoneração desse imposto, para aplicação em produtos finais tributados e/ou cujas saídas fossem tributadas por esse imposto (o iPi).

então, as empresas contribuintes do imposto sobre Produtos industrializados (iPi), adotando a tese analisada no item anterior, que o Supremo tribunal Federal chegou a adotar para o então imposto sobre circulação de Mercadorias (icM) de antes da emenda constitucional no 23, de 1983, foram ao Judiciário, requerendo crédito na entrada dos insumos sem iPi, quando da saída tributada por esse imposto de produtos fabricados com tais insumos.

a primeira decisão do Supremo tribunal Federal a respeito do assunto foi no recurso extraordinário no 212.484-rS,31 tendo por relator o então ministro Nelson Jobin, permitindo que o contribuinte (indústria de bebidas) do iPi se creditasse do valor desse imposto, quando da saída tributada do produto final, relativamente aos insumos adquiridos isentos na Zona Franca de Manaus.

30 atenção: a constituição anterior falava em legislação (poderia ser lei ou ato normativo infralegal). atualmente, em face da emenda constitucional no 3, de 1993, que introduziu na constituição da república o § 6o no art. 150, qualquer renúncia fiscal só poderá ser concedida por Lei específica.É verdade que a doutrina, não obstante a redação anterior, com acerto, sempre entendeu que qualquer renúncia fiscal só poderia ser feita por Lei. E digo, com acerto, porque nunca se admitiu renunciar-se à verba pública, sem base em lei.31 braSil. Supremo tribunal Federal. Partes(n/c). re no 212.494-rS rel. Min. ilmar Galvão (vencido). rel. para o acórdão Min. Nelson Jobin. Julgado em 5/3/1998. in: diário da Justiça da União de 27/11/19.antes, essa decisão tinha sido noticiada no informativo StF no 101.

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Houve outras decisões dessa Suprema corte no mesmo sentido. 32

depois do julgamento daquele primeiro recurso extraordinário-re no 212.484-rS, e de a União constatar, segundo noticiou a imprensa da época, que iria ter de desembolsar ou deixar de arrecadar aproximadamente duzentos bilhões de reais, relativamente aos créditos dos últimos dez anos,33 que os contribuintes teriam para recuperar (via repetição de indébito ou via compensação), houve redobrado esforço da Procuradoria da Fazenda Nacional, que conseguiu levar o caso ao Plenário do Supremo tribunal Federal e convencer essa corte a mudar o seu entendimento e essa mudança ocorreu pela unanimidade dos seus ministros, no julgamento do recurso extraordinário-re 353.657-5/Pr, verbis:

iPi – iNSUMOS – alÍQUOta ZerO – aUSÊNcia de direitO aO creditaMeNtO.conforme disposto no inciso ii do § 3o do art. 153 da constituição Federal, observa-se o princípio da não-cumulatividade, compensando-se o que for devido em cada operação com o montante cobrado nas anteriores, ante o que não se pode cogitar de direito a crédito quando o insumo entra na indústria considerada a alíquota zero.iPi – iNSUMO – alÍQUOta ZerO – creditaMeNtO – iNeXiStÊNcia dO direitO – eFicÁcia.descabe, em face do texto constitucional regedor do imposto sobre Produtos industrializados – iPi e do sistema jurisdicional brasileiro, a modulação de efeitos do pronunciamento do Supremo, com isso sendo emprestada à Carta da República a maior eficácia possível, consagrando-se o princípio da segurança jurídica.34

32 No julgamento do recurso extraordinário-re no 370.682, abaixo referido, o ministro relator cuidou de relacionar todas as decisões do Supremo tribunal Federal a respeito da matéria, as favoráveis e as desfavoráveis aos contribuintes, a saber:“– acórdãos citados: Pet 2859 Mc-segunda (rtJ 193/866), re 135189 (rtJ 140/300), ai 158863, re 165438, re 197917, re 212484 (rtJ 167/698), re 217358, re 219020, re 219318, ai 252801, re 293511 agr, re 300343 (rtJ 191/1039), re 327004 agr, re 350446, re 353657, re 353668, re 357277, re 358493 (rtJ 187/1114), re 363777, re 370230, re 371848, ai 531274. – decisão monocrática citada: re 370722”.33 O Superior tribunal de Justiça, interpretando o inciso i do art 168 do código tributário Nacional, entendia que os tributos submetidos a lançamento por homologação, caso desse imposto, retroagia a dez anos na repetição de indébito ou na compensação, entendimento esse que prevaleceu até o advento da lei complementar no 118, de 2005, cujo artigo 3o, interpretando referido dispositivo do código tributário Nacional (ctN), estabeleceu que a repetição só retroage à data do pagamento indevido (cinco anos). Há um antigo precedente do Supremo tribunal Federal no qual este entendimento foi adotado, verbis: “[...]. Segue-se do exposto que não é da homologação do pagamento, expresso ou tácito, que flui o prazo prescricional de cinco anos, senão do pagamento mesmo. [...]”. braSil. Supremo tribunal Federal. Partes (n/c). ai no 69363 (agrg)-SP, julgado em 19/ 4/1977. rel. Min. cordeiro Guerra. 2o turma do Supremo tribunal Federal. Apud SaNtOS Jr., Francisco alves dos. Decadência e Prescrição no Direito Tributário do Brasil: Análise das principais teorias existentes e proposta para alteração da respectiva legislação. rio de Janeiro: renovar, 2001, p. 261-262.34 braSil. Supremo tribunal Federal. União x Madeira Santo antonio ltda. re 353.657-5/Paraná. Julgado em 25/6/2007. Min. relator Marco aurélio. dJe no 41, divulgação 6/3/2008, publicação 7/3/2008, ementário no 2310-3. disponível em: <www.stf.gov.br>. acesso em: 10/6/2008. Plenário do Supremo tribunal Federal.

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esse entendimento foi mantido pelo mesmo Plenário dessa Suprema corte, no julgamento do recurso extraordinário-re no 370.682/Sc, estendendo-o para os insumos não tributados, verbis:

eMeNta: recurso extraordinário. tributário. 2. iPi. crédito Presumido. insumos sujeitos à alíquota zero ou não tributados. inexistência. 3. Os princípios da não-cumulatividade e da seletividade não ensejam direito de crédito presumido de iPi para o contribuinte adquirente de insumos não tributados ou sujeitos à alíquota zero. 4. recurso extraordinário provido.35

É verdade que, após esses julgados, ainda não há pronunciamento do Supremo tribunal Federal a respeito das aquisições isentas desse imposto e aplicadas em produtos cujas saídas sofrem sua incidência. No entanto, como o efeito jurídico-financeiro é o mesmo, acredito que essa Colenda Corte aplicará o mesmo entendimento.

Data maxima venia, não me parece tenha sido essa uma boa solução para o caso porque feriu a técnica constitucional da não-cumulatividade e certamente contribuirá para o aumento de preços, com pressão inflacionária, o que não é positivo para o brasil. creio que o Supremo tribunal Federal poderia, valendo-se do art. 27 da lei no 9.868, de 1999, ter modulado os efeitos, vedando os créditos das operações passadas (evitando, à União, o eventual e alardeado prejuízo de quase duzentos bilhões de reais), sem nenhum prejuízo para as empresas autoras das ações judiciais, posto que já recuperados por elas nos preços dos seus produtos, e autorizar a realização de tais créditos apenas para as operações futuras, em observância à referida técnica constitucional da não-cumulatividade, e como beneplácito para os consumidores finais, que suportariam menor carga tributária.

6. Não-Cumulatividade nas Contribuições SociaisVimos que o Supremo tribunal Federal, quando analisou a constitucionalidade

da hoje revogada lei complementar no 84, de 1996, aplicando o § 4o do art. 195 da constituição da república, concluíra que a não-cumulatividade não se aplicava às contribuições, mas apenas aos impostos (embargos declaratórios ao recurso extraordinário-re no 234.321-8, conforme nota de rodapé 9, supra).

No entanto, por meio da emenda constitucional no 42, de 2003, introduziu-se na constituição da república a possibilidade de instituir-se contribuição da seguridade social não-cumulativa, acrescentando-se ao seu art. 195 o inciso iV e o § 12, verbis:

35 braSil. Supremo tribunal Federal – StF, recurso extraordinário-re, Processo: 370682 UF: Sc – Santa catarina. Partes [n/c]. Julgado em 25/6/2007.relator Ministro ilmar Galvão. dJe no 165, divulgado em 18/12/2007, publicado em 19/12/2007, p. 00024. ementário Volume 02304-03 p. 00392. disponível em: <www.stf.gov.br>. acesso em: 13/6/2008. Plenário do Supremo tribunal Federal.

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Art. 195. [...] e das seguintes contribuições sociais:iV – do importador de bens ou serviços do exterior, ou de quem a lei a ele equiparar.§ 12 – A lei definirá os setores de atividades econômicas para os quais as contribuições incidentes na forma dos incisos i, b; e iV do caput, serão não-cumulativas.

então, o legislador constituinte derivado criou a possibilidade de aplicar-se a não-cumulativadade, na forma prevista em lei, nas contribuições incidentes sobre receita ou faturamento (art. 195-i, b da constituição da república) e também nas contribuições sobre a importação de bens ou serviços do exterior, ou de quem a lei a ele equiparar (art. 195-iV da constituição da república).

Note-se que o legislador constituinte não estabeleceu, como o fez para o icMS e para o iPi, em que consistiria a não-cumulatividade. deixou que o Legislador Ordinário o fizesse.

e o legislador Ordinário o fez, na lei no 10.632, de 30/12/2002 (já com inúmeras alterações), relativamente à contribuição para o Programa de integração Social (PiS), e na lei no 10.833, de 29/12/2003, referentemente à contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins), mediante transformação em crédito de determinadas despesas arroladas nessas leis, que é abatido do valor a recolher dessas Contribuições, mediante aplicação de fórmula nelas fixada.

a respeito da contribuição PiS, a mencionada lei no 10.632, de 30/12/2002, tratou do assunto no seu art. 3o com a seguinte redação:

Art. 3o. do valor apurado na forma do art. 2o a pessoa jurídica poderá descontar créditos calculados em relação a: (Vide lei no 11.727, de 2008) (Vigência)i – bens adquiridos para revenda, exceto em relação às mercadorias e aos produtos referidos: (redação dada pela lei no 10.865, de 2004)a) no inciso iii do § 3o do art. 1o desta lei; e (redação dada pela lei no 11.727, de 2008) (Vigência)b) no § 1o do art. 2o desta lei; (incluído pela lei no 10.865, de 2004)ii – bens e serviços, utilizados como insumo na prestação de serviços e na produção ou fabricação de bens ou produtos destinados à venda, inclusive combustíveis e lubrificantes, exceto em relação ao pagamento de que trata o art. 2o da lei no 10.485, de 3 de julho de 2002, devido pelo fabricante ou importador, ao concessionário, pela intermediação ou entrega dos veículos classificados nas posições 87.03 e 87.04 da TIPI; (redação dada pela lei no 10.865, de 2004)iii – (VetadO)

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iV – aluguéis de prédios, máquinas e equipamentos, pagos a pessoa jurídica, utilizados nas atividades da empresa;V – valor das contraprestações de operações de arrendamento mercantil de pessoa jurídica, exceto de optante pelo Sistema integrado de Pagamento de impostos e contribuições das Microempresas e das empresas de Pequeno Porte – SiMPleS; (redação dada pela lei no 10.865, de 2004)Vi – máquinas, equipamentos e outros bens incorporados ao ativo imobilizado, adquiridos ou fabricados para locação a terceiros ou para utilização na produção de bens destinados à venda ou na prestação de serviços. (redação dada pela lei no 11.196, de 2005)VII – edificações e benfeitorias em imóveis de terceiros, quando o custo, inclusive de mão-de-obra, tenha sido suportado pela locatária;Viii – bens recebidos em devolução, cuja receita de venda tenha integrado faturamento do mês ou de mês anterior, e tributada conforme o disposto nesta lei.iX – energia elétrica consumida nos estabelecimentos da pessoa jurídica. (incluído pela lei no 10.684, de 30/5/2003)iX – energia elétrica e energia térmica, inclusive sob a forma de vapor, consumidas nos estabelecimentos da pessoa jurídica. (redação dada pela lei no 11.488, de 2007).

O § 1o desse art. 3o estabelece que o cálculo desse crédito é feito aplicando-se alíquota (no caso, fixada no art. 2o dessa lei) sobre os valores das despesas decorrentes de operações arroladas no referido art. 3o.

a lei no 10.833, de 29/12/2003, instituiu a contribuição para Financiamento da Seguridade Social (Cofins) não-cumulativa, com estrutura semelhante (inclusive vedações), quanto à não-cumulatividade, à da contribuição PiS.

tanto aquela lei como esta vedam crédito decorrente de valor de despesa de mão de obra paga à pessoa física, e o decorrente de valor da aquisição de bens ou serviços não sujeitos ao pagamento dessas contribuições, ou quando isento e for revendido ou utilizado como insumo em produto ou serviços sujeitos à alíquota zero (0), isentos ou não alcançados pela contribuição PiS (§ 2o do art. 3o da lei no 10.632, de 2002; § 2o do art. 3o da lei no 10.833, de 2003).

a primeira vedação (valor de despesa de mão de obra de pessoa física) encontra-se em debate perante o Poder Judiciário, sob alegação de ferimento ao princípio da isonomia de tratamento (agasalhado no inciso ii do art. 150 da constituição da república), alegação essa que me parece de todo pertinente, porque não há nenhuma razão lógica para esse discrimen.

a lei no 10.865, de 30/4/2004, pela qual se instituiu a contribuição para os Programas de integração Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público

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incidente na importação de Produtos estrangeiros ou Serviços (PiS/Pasep–importação) e a contribuição Social para o Financiamento da Seguridade Social devida pelo Importador de Bens Estrangeiros ou Serviços do Exterior (Cofins–importação), também autoriza que os valores dessas contribuições sejam utilizados como créditos para dedução nas contribuições descritas nos parágrafos anteriores, nas situações que estabelece no seu art. 15 e respectivos parágrafos, transcritos em nota de rodapé abaixo,36 em verdadeira criação de um crédito presumido.

36 lei no 10.865, de 30/4/2004: “art. 15. as pessoas jurídicas sujeitas à apuração da contribuição para o PiS/Pasep e da Cofins, nos termos dos arts. 2o e 3o das leis nos 10.637, de 30 de dezembro de 2002, e 10.833, de 29 de dezembro de 2003, poderão descontar crédito, para fins de determinação dessas contribuições, em relação às importações sujeitas ao pagamento das contribuições de que trata o art. 1o desta lei, nas seguintes hipóteses (Vide lei no 11.727, de 2008) (Vigência): i – bens adquiridos para revenda; ii – bens e serviços utilizados como insumo na prestação de serviços e na produção ou fabricação de bens ou produtos destinados à venda, inclusive combustível e lubrificantes; III – energia elétrica consumida nos estabelecimentos da pessoa jurídica; iV – aluguéis e contraprestações de arrendamento mercantil de prédios, máquinas e equipamentos, embarcações e aeronaves, utilizados na atividade da empresa; V – máquinas, equipamentos e outros bens incorporados ao ativo imobilizado, adquiridos para utilização na produção de bens destinados à venda ou na prestação de serviços; V – máquinas, equipamentos e outros bens incorporados ao ativo imobilizado, adquiridos para locação a terceiros ou para utilização na produção de bens destinados à venda ou na prestação de serviços. (redação dada pela lei no 11.196, de 2005); § 1o O direito ao crédito de que trata este artigo e o art. 17 desta lei aplica-se em relação às contribuições efetivamente pagas na importação de bens e serviços a partir da produção dos efeitos desta lei.§ 2o O crédito não aproveitado em determinado mês poderá sê-lo nos meses subseqüentes.§ 3o O crédito de que trata o caput deste artigo será apurado mediante a aplicação das alíquotas previstas no caput do art. 2o das leis nos 10.637, de 30 de dezembro de 2002, e 10.833, de 29 de dezembro de 2003, sobre o valor que serviu de base de cálculo das contribuições, na forma do art. 7o desta lei, acrescido do valor do iPi vinculado à importação, quando integrante do custo de aquisição.§ 4o Na hipótese do inciso V do caput deste artigo, o crédito será determinado mediante a aplicação das alíquotas referidas no § 3o deste artigo sobre o valor da depreciação ou amortização contabilizada a cada mês.§ 5o Para os efeitos deste artigo, aplicam-se, no que couber, as disposições dos §§ 7o e 9o do art. 3o das leis nos 10.637, de 30 de dezembro de 2002, e 10.833, de 29 de dezembro de 2003.§ 6o O disposto no inciso ii do caput deste artigo alcança os direitos autorais pagos pela indústria fonográfica desde que esses direitos tenham se sujeitado ao pagamento das contribuições de que trata esta lei. § 7o Opcionalmente, o contribuinte poderá descontar o crédito de que trata o § 4o deste artigo, relativo à importação de máquinas e equipamentos destinados ao ativo imobilizado, no prazo de 4 (quatro) anos, mediante a aplicação, a cada mês, das alíquotas referidas no § 3o deste artigo sobre o valor correspondente a 1/48 (um quarenta e oito avos) do valor de aquisição do bem, de acordo com regulamentação da Secretaria da receita Federal.§ 8o as pessoas jurídicas importadoras, nas hipóteses de importação de que tratam os incisos a seguir, devem observar as disposições do art. 17 desta lei: i – produtos dos §§ 1o a 3o e 5o a 7o do art. 8o desta lei, quando destinados à revenda;ii – produtos do § 8o do art. 8o desta lei, quando destinados à revenda, ainda que ocorra fase intermediária de mistura;iii – produtos do § 9o do art. 8o desta lei, quando destinados à revenda ou à utilização como insumo na produção de autopeças relacionadas nos anexos i e ii da lei no 10.485, de 3 de julho de 2002;iV – produto do § 10 do art. 8o desta lei.V – (Vide Medida Provisória no 413, de 2008). V – produtos referidos no § 19 do art. 8o desta lei, quando destinados à revenda; (incluído pela lei no 11.727, de 2008) Vi – produtos mencionados no art. 58-a da lei no 10.833, de 29 de dezembro de 2003, quando destinados à revenda. (incluído pela lei no 11.727, de 2008)

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esta mesma lei permite também, em seu art. 17, créditos para abatimento na apuração das contribuições–importação por ela criadas, observando, assim, a não-cumulatividade ora sob análise.37

§ 9o as pessoas jurídicas de que trata o art. 49 da lei no 10.833, de 29 de dezembro de 2003, poderão descontar créditos, para fins de determinação da contribuição para o PIS/Pasep e da Cofins, em relação à importação dos produtos referidos nos §§ 6o e 7o do art. 8o desta lei, utilizados no processo de industrialização dos produtos de que trata o § 7o do mesmo artigo, apurados mediante a aplicação das alíquotas respectivas, previstas no caput do art. 2o das leis nos 10.637, de 30 de dezembro de 2002, e 10.833, de 29 de dezembro de 2003. (incluído pela lei no 10.925, 2004) (Vigência) (Vide lei no 11.727, de 2008) (Vigência).§ 10. as pessoas jurídicas submetidas ao regime especial de que trata o art. 52 da lei no 10.833, de 29 de dezembro de 2003, poderão descontar créditos, para fins de determinação da contribuição para o PIS/Pasep e da Cofins, em relação à importação dos produtos referidos nos §§ 6o e 7o do art. 8o desta lei, utilizados no processo de industrialização dos produtos de que trata o § 7o do mesmo artigo, determinados com base nas alíquotas específicas referidas nos arts. 51 e 52 da Lei no 10.833, de 29 de dezembro de 2003, respectivamente. (incluído pela lei no 10.925, 2004) (Vigência) (Vide lei no 11.727, de 2008) (Vigência)”.37 art. 17. as pessoas jurídicas importadoras dos produtos referidos nos §§ 1o a 3o, 5o a 10, 17 e 19 do art. 8o desta lei e no art. 58-a da lei no 10.833, de 29 de dezembro de 2003, poderão descontar crédito, para fins de determinação da Contribuição para o PIS/Pasep e da Cofins, em relação à importação desses produtos, nas hipóteses (redação dada pela lei no 11.727, de 2008): i – dos §§ 1o a 3o e 5o a 7o do art. 8o desta lei, quando destinados à revenda; i – dos §§ 1o a 3o, 5o a 7o e 10 do art. 8o desta lei, quando destinados à revenda; (redação dada pela lei no 11.051, de 2004); ii – do § 8o do art. 8o desta lei, quando destinados à revenda, ainda que ocorra fase intermediária de mistura; iii – do § 9o do art. 8o desta lei, quando destinados à revenda ou à utilização como insumo na produção de autopeças relacionadas nos anexos i e ii da lei no 10.485, de 3 de julho de 2002; iV – do § 10 do art. 8o desta lei, quando destinados à revenda ou à impressão de periódicos. (revogado pela lei no 11.051, de 2004); V – (Vide Medida Provisória no 413, de 2008); V – do § 19 do art. 8o desta lei, quando destinados à revenda; (incluído pela lei no 11.727, de 2008); Vi – do art. 58-a da lei no 10.833, de 29 de dezembro de 2003, quando destinados à revenda. (incluído pela lei no 11.727, de 2008); § 1o as pessoas jurídicas submetidas ao regime especial de que trata o art. 52 da lei no 10.833, de 29 de dezembro de 2003, poderão descontar créditos, para fins de determinação da contribuição para o PIS/Pasep e da Cofins, em relação à importação dos produtos referidos no § 6o do art. 8o desta lei, utilizados no processo de industrialização dos produtos de que trata o § 7o do mesmo artigo, bem como em relação à importação desses produtos e demais produtos constantes do anexo único da lei no 10.833, de 29 de dezembro de 2003. (Vigência) (revogado pela lei no 10.925, de 2004).§ 2o Os créditos de que trata este artigo serão apurados mediante a aplicação das alíquotas da contribuição para o PIS/Pasep e da Cofins incidentes sobre a receita decorrente da venda, no mercado interno, dos respectivos produtos, na forma da legislação específica, sobre o valor de que trata o § 3o do art. 15 desta lei.§ 3o Na hipótese do § 6o do art. 8o desta lei, os créditos serão determinados, conforme o caso, com base nas alíquotas de que trata o art. 51 da lei no 10.833, de 29 de dezembro de 2003. (redação dada pela lei no 11.727, de 2008).§ 3o-a. Os créditos de que trata o inciso Vi deste artigo serão determinados conforme os incisos do art. 58-c da lei no 10.833, de 29 de dezembro de 2003. (incluído pela lei no 11.727, de 2008).§ 4o Sem prejuízo do disposto no § 3o deste artigo, os créditos dos demais produtos constantes do anexo único da lei no 10.833, de 29 de dezembro de 2003, serão determinados com base nas alíquotas de que tratam os incisos i e ii do caput do art. 8o desta lei. (revogado pela lei no 10.925, de 2004).§ 5o Na hipótese do § 8o do art. 8o desta Lei, os créditos serão determinados com base nas alíquotas específicas referidas no art. 23 desta lei.§ 6o Opcionalmente, o contribuinte poderá calcular o crédito de que trata o § 4o do art. 15 desta lei, relativo à aquisição de embalagens de vidro retornáveis, classificadas no código 7010.90.21 da Tipi, destinadas ao ativo imobilizado, de acordo com regulamentação da Secretaria da receita Federal do brasil: (redação dada pela lei no 11.727, de 2008)i – no prazo de 12 (doze) meses, à razão de 1/12 (um doze avos); ou (incluído pela lei no 11.727, de 2008);

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e, seu art. 18, admite que esses créditos sejam aproveitados pelo encomendante, quando a importação for feita por conta e ordem de terceiros,38 nos seguintes termos: “art. 18 – No caso da importação por conta e ordem de terceiros, os créditos de que tratam os arts. 15 e 17 desta lei serão aproveitados pelo encomendante”.

Merece destacar que a estruturação da não-cumulatividade dessas contribuições seguiu modelo diverso da não-cumulatividade estabelecida para o icMS e para o IPI, analisadas em tópicos acima, tendo, no entanto, a mesma finalidade, evitar repasse de custos tributários para os preços dos produtos e serviços, contribuindo assim para evitar aumento de preços e combater a inflação.

e, como já dito, a fórmula da não-cumulatividade dos icMS e iPi encontra-se consignada no texto da própria constituição da república, enquanto a das contribuições, no texto das leis Ordinárias acima referidas.

CONCLUSÃOa técnica da não-cumulatividade não chega a ser um princípio, porque não

serve de orientação alicerçal para todo o sistema tributário nacional, mas mera técnica de tributação relativa a alguns tributos, visando a evitar excesso de transferência de tributos para os preços finais dos produtos e serviços, ou seja, evitando a tributação “em cascata” e favorecendo o combate à inflação.

essa técnica é aplicada, atualmente, no direito tributário do brasil, ao imposto sobre circulação de Mercadorias e sobre Prestação de Serviços intermunicipais e interestaduais de transportes de Pessoas e cargas e de comunicação (icMS), imposto sobre Produtos industrializados (iPi), contribuição para Financiamento da Seguridade Social (Cofins), Contribuição para o Programa de Integração Social (PiS) e essas duas contribuições quando incidentes nas operações de importação.

a fórmula da aplicação da não-cumulatividade dos dois impostos é diversa da fórmula adotada para essas contribuições, embora a finalidade seja a mesma, evitar

ii – na hipótese de opção pelo regime especial instituído pelo art. 58-J da lei no 10.833, de 29 de dezembro de 2003, no prazo de 6 (seis) meses, à razão de 1/6 (um sexto) do valor da contribuição incidente, mediante alíquota específica, na aquisição dos vasilhames, ficando o Poder Executivo autorizado a alterar o prazo e a razão estabelecidos para o cálculo dos referidos créditos. (incluído pela lei no 11.727, de 2008);§ 7o O disposto no inciso iii deste artigo não se aplica no caso de importação efetuada por montadora de máquinas ou veículos relacionados no art. 1o da lei no 10.485, de 3 de julho de 2002. (incluído pela lei no 11.051, de 2004);§ 8o O disposto neste artigo alcança somente as pessoas jurídicas de que trata o art. 15 desta lei. (incluído pela lei no 11.051, de 2004).38 lei no 10.865, de 30/4/2004:“art. 18 no caso da importação por conta e ordem de terceiros, os créditos de que tratam os arts. 15 e 17 desta lei serão aproveitados pelo encomendante.”

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excesso de transferência de tributos para os preços finais das mercadorias e dos serviços, contribuindo, assim, para evitar ou diminuir a inflação.

O direito ao crédito nas entradas das aquisições pressupõe saídas de mercadorias (produtos) e serviços tributados e, caso essas saídas sejam desoneradas desses impostos, a manutenção dos créditos das entradas consubstancia-se em renúncia fiscal da Fazenda Pública (incentivo fiscal, modalidade crédito presumido); por isso, necessitará de expressa autorização na própria constituição da república ou, por força do § 6o do art. 150 dessa Carta, em Lei específica.

Neste caso, nas hipóteses de saídas isentas, o legislador Ordinário brasileiro deveria seguir o modelo da legislação do imposto sobre Valor acrescido (iVa) da União europeia – Ue e facultar a renúncia à isenção, possibilitando a recuperação dos créditos das aquisições.

a entrada de mercadorias isentas ou não tributadas pelo icMS – desde a emenda constitucional no 23, de 1983, cuja respectiva regra foi mantida na atual constituição da república (alíneas “a” e “b” do inciso ii do § 2o do art. 155 e o já referido § 6o do art. 150) – não gera direito a crédito desse imposto, quando as respectivas saídas sofrerem sua incidência, exceto se houver regra constitucional ou legal autorizando, conforme exigem os referidos dispositivos da mencionada vigente constituição.

embora as regras constitucionais por último referidas não façam menção ao iPi, o Supremo tribunal Federal, relativamente às aquisições com alíquota zero ou não tributadas,39 em face de futuras saídas tributadas, findou por modificar o seu entendimento anterior e firmou novo entendimento, vedando esse crédito nessas situações, devendo manter este último entendimento para as saídas isentas, porque os efeitos jurídico-financeiros destas são idênticos aos daquelas.

como mencionada técnica, além do aspecto jurídico, tem uma forte conotação financeira, voltada para a redução de preços finais, vedando a totalidade da transferência da carga tributária de operações anteriores para os consumidores finais, tenho que, data maxima venia, não obrou com o acerto que lhe é peculiar a nossa Suprema corte nas suas últimas decisões a respeito do assunto. com efeito, como as empresas contribuintes, autoras das ações que chegaram à Suprema corte, já tinham repassado para seus preços os valores que não foram creditados na época própria, acredito que referida Suprema corte deveria, com base no art. 27 da lei no 9.868, de 1999, ter modulado os efeitos, autorizando o crédito iPi, nas situações indicadas no subitem anterior, apenas doravante, pelo que se evitaria a restituição ou compensação dos aproximadamente duzentos bilhões de reais que a União teria de

39 as regras constitucionais referidas na primeira parte da conclusão não fazem menção à alíquota zero, quando trata do icMS, porque esse tipo de alíquota não é utilizada nesse imposto, mas apenas com referência ao iPi.

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restituir ou deixar de receber (no caso de opção pela compensação). deveria ainda ter estabelecido que os créditos nos momentos das saídas, com relação às aquisições com alíquota zero e n/t (não tributado) na tabela do iPi, deveriam ser feitos com base na alíquota do produto final da Empresa Contribuinte,40 devendo, para tanto, ser baixada lei com essa autorização. e, com relação aos produtos adquiridos com isenção ou imunidade, os créditos deveriam ser feitos com base na alíquota do produto constante da referida tabela iPi.

REFERÊNCIAS DOUTRINÁRIAS cOSta, alcides Jorge. ICMS – Aquisição de Mercadorias ou Certos Serviços e Crédito contra o Estado. in: revista de direito tributário atual, Vol. 15, São Paulo: instituto de direito tributário do brasil/dialética, 1998, p. 5.MartÍNeZ, Pedro Mário Soares. Direito Fiscal. ed. 10o, coimbra (Portugal): almedina, 1988. MicHeli, Gian antonio. Corso di Diritto Tributário. Sesta edizione, torino(itália): União Tipografico-Editrice Torinense(UTET), 1981.QUeralt, Juan Matrin et all. Curso de Derecho Financiero Y Tributario, ed. 10o, Madrid/espanha: editorial tecnos, 1999.SaNtOS Jr., Francisco alves dos. Finanças Públicas, Orçamento Público e Direito Financeiro, 1o edição, recife: livro rápido, 2008. _______________. Decadência e Prescrição no Direito Tributário do Brasil: análise das principais teorias existentes e proposta para alteração da respectiva legislação. rio de Janeiro: renovar, 2001.

REFERÊNCIAS JURISPRUDENCIAISbraSil. Supremo tribunal Federal. Partes (n/c). embargos declaratórios ao recurso extraordinário-re no 234.321-8, relator Min. Moreira alves. diário da Justiça da União de 12/2/1999, p. 0017. 1o turma do Supremo tribunal Federal. braSil. Supremo tribunal Federal. Partes (n/c). ai agr 54.6669/eS. agravo regimental em agravo de instrumento. rel. Min. Sepúlveda Pertence. Julgamento em 6/12/2005. 1o turma do Supremo tribunal Federal. disponível em: <www.stf.gov.br, acesso em 02.06.2008>.braSil. Supremo tribunal Federal. Partes (n/c). icMS. beNS dO atiVO FiXO. VENDA. NÃO-INCIDÊNCIA. A venda de bens do ativo fixo da empresa não se enquadra na hipótese de incidência determinada pelo art. 155, i, b, da carta Federal (art.

40 como acontece com a contribuição PiS Não-cumulativa, conforme § 1o do art. 3o da lei no 10.632, de 2002. creio que o Supremo tribunal Federal até poderia autorizar sua aplicação analógica, enquanto não editada a lei estabelecendo regra semelhante para o crédito do iPi, mandando aplicar a alíquota do produto final, para os casos de aquisições com N/T ou Alíquota Zero na Tabela desse imposto.

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155, ii, da cF/88, com a redação determinada pela ec no 3/93, tendo em vista que, em tal situação, inexiste circulação no sentido jurídico tributário: os bens não se ajustam ao conceito de mercadorias e as operações não são efetuadas com habitualidade. recurso extraordinário não conhecido. re no 194.300-9/SP, julgado em 29/4/1997. rel. Min. ilmar Galvão. Unânime. 1o turma do Supremo tribunal Federal. diário da Justiça da União de 12.09.1997. braSil. Supremo tribunal Federal. Partes (n/c). recurso extraordinário-re no 113.751-7/SP. Julgado em [s/d]. rel. Min. ilmar Galvão. diário da Justiça da União no 81, de 28/4/1995, p. 11.137.braSil. Supremo tribunal Federal. recurso extraordinário-re 113.792-4/SP. Julgado em [sd]. rel. Min. ilmar Galvão. diário da Justiça da União de 16/2/1996, p. 2.999. Plenário do Supremo tribunal Federal.braSil. Supremo tribunal Federal. Partes (n/c). Partes (n/c). re 112.554, de 3/10/1988, rel. Francisco rezek. 2o turma do Supremo tribunal Federal. in: diário da Justiça da União de 25/10/1991. braSil. Supremo tribunal Federal. Partes (n/c). icM. isenção na importação de matéria-prima. crédito. antes da edição da ec 23/83, há direito ao crédito do valor do icM. re no 112.554, de 3/10/1998. rel. Min. Francisco rezek. 2o turma do Supremo tribunal Federal. diário da Justiça da União de 25/10/1991.braSil. Supremo tribunal Federal. Partes (n/c). icM recolhido na entrada de matéria-prima empregada na fabricação de produto cuja saída é isenta do referido imposto, operação realizada já na vigência da ec 23/83, que introduziu alteração no art. 23, ii, da cF/67: inocorrência do direito ao crédito. Precedentes do StF. agr 546669/eS. Julgamento em 6/12/2005. rel. Sepúlveda Pertence. disponível em: <www.stf.gov.br>. acesso em: 13/6/2008. braSil. Supremo tribunal Federal. Partes (n/c). re 212.484-rS. rel. Min. ilmar Galvão (vencido). rel. para o acórdão Min. Nelson Jobin. Julgado em: 5/3/1998. in: diário da Justiça da União de 27/11/19. braSil. Supremo tribunal Federal. “[...]. Segue-se do exposto que não é da homologação do pagamento, expresso ou tácito, que flui o prazo prescricional de cinco anos, senão do pagamento mesmo. [...]” ai no 69.363 (agrg)-SP, julgado em 19/4/1977. rel. Min. cordeiro Guerra. 2o turma do Supremo tribunal Federal.braSil. Supremo tribunal Federal. União x Madeira Santo antonio ltda. re 353.657-5/Paraná. Julgado em: 25/6/2007. Min. relator Marco aurélio. dJe no 41, divulgação 6/3/2008, publicação 7/3/2008, ementário no 2310-3. disponível em: <www.stf.gov.br>. acesso em: 10/6/2008. Plenário do Supremo tribunal Federal. braSil. Supremo tribunal Federal – StF, recurso extraordinário-re, Processo: 370.682 UF: Sc – Santa catarina. Partes [n/c]. Julgado em: 25/6/2007. relator Ministro ilmar Galvão. dJe no 165, divulgado em 18/12/2007, publicado em: 19/12/2007, p. 00024. ementário Volume 02304-03 p. 00392. disponível em: <www.stf.gov.br> acesso em: 13/6/2008. Plenário do Supremo tribunal Federal.

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REFERÊNCIAS PRINCIPAIS DO DIREITO POSITIVOconstituição da república Federativa do brasil de 1946 e alterações. disponível em: <www.planalto.gov.br>. acesso em: 10/6/2008 a 8/7/2008.constituição da república Federativa do brasil de 1988 e alterações. ibidem.lei no 5.172, de 25/10/1966 – código tributário Nacional e alterações. ibidem.lei no 3.520, de 30/12/1958 e alterações. ibidem.lei. no 4.502, de 30/11/1964 e alterações. ibidem.decreto-lei no 406, de 31/12/1968 e alterações. ibidem.lei complementar no 87, de 13/9/1996 e alterações. ibidem.lei no 10.865, de 30/4/2004 e alterações. ibidem.lei no 10.637, de 30/12/2002 e alterações. ibidem.lei no 10.833, de 29/12/2003 e alterações. ibidem.lei no 10.865, de 30/4/2004 e alterações. ibidem.

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aPosentaDorias Precoces: Uma realiDaDe a ser transFormaDa

Francisco lUís rios alves1

principal ativiDaDe: JUiz feDeral Da 15ª vara, na seção JUDiciária Do ceará.

informações sobre o aUtor: foi promotor De JUstiça e JUiz Do trabalho. a atUalmente é JUiz feDeral no ceará, com Dez anos De ativiDaDe. é

especialista em Direito previDenciário.E-mail: [email protected]; [email protected]

Resumo/abstract: este trabalho realizou uma pesquisa sobre a Previdência Social no brasil, como técnica de proteção social, dando enfoque ao envelhecimento populacional como risco social. O estudo examinou a situação das aposentadorias precoces no brasil, em comparação com outros países, mostrando a existência de incoerências sistêmicas que provocam desequilíbrio financeiro e atuarial. concluiu apontando a necessidade de mudanças no regime jurídico que levem à postergação das aposentadorias por idade e tempo de contribuição, especialmente mediante a adoção de critérios uniformes de acesso aos benefícios para homens e mulheres.Palavras-chave: Previdência Social; aposentadoria; Precoces; expectativa; Vida; envelhecimento.

SUMÁRIO: Introdução. 1. Alguns aspectos específicos sobre proteção social. 1.1. a previdência como técnica de proteção social. 1.2. O papel do estado em relação à proteção social. 1.3. a proteção social não é exclusiva do estado. 1.4. a previdência social é guiada por princípios. 1.5. Os benefícios previdenciários como instrumento de materialização de direitos fundamentais. 1.6. benefícios previdenciários: garantia do mínimo existencial. 2. riscos

1 Juiz Federal e especialista em direito Previdenciário pela PUc Minas.

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Sociais: o envelhecimento populacional. 2.1. a expectativa de vida do brasileiro. 3. aposentadoria: modalidades. 3.1. aposentadoria por invalidez. 3.2. aposentadoria por tempo de serviço 3.3. aposentadoria por tempo de contribuição. 3.4. aposentadoria por idade. 3.5. aposentadoria especial. 4. aposentadorias antecipadas: uma realidade a ser transformada. conclusão. referências.

INTRODUÇÃOa previdência social é técnica de proteção social que tem origem remota.

evoluiu da assistência prestada por mera caridade dos homens até galgar o status de direito subjetivo, sendo atualmente assumida pelo estado com o apoio da sociedade.

A previdência tem por fim primordial a cobertura de riscos sociais:2 idade avançada, doença, invalidez, maternidade, morte, desemprego involuntário, etc. Nesse universo, destaca-se a idade avançada pela importância no campo da proteção social, sendo o envelhecimento populacional, atualmente, objeto de preocupação mundial.

dentre as várias concepções do risco velhice, a aposentadoria demanda atenção especial, notadamente diante de suas repercussões no equilíbrio financeiro e atuarial do seguro social. a verdade é que a crise vivenciada pela previdência social decorre de fatores exógenos e endógenos que acarretam distorções no sistema. dentre esses fatores se correlacionam o envelhecimento da população e a concessão de aposentadorias, muitas delas precoces.

O objetivo deste ensaio é, justamente, examinar o impacto da concessão de aposentadorias antecipadas ou precoces na previdência social e a necessidade de alteração da realidade hoje existente. a questão colocada à discussão é de extrema relevância em tempos de reforma previdenciária, especialmente se considerarmos a que ainda está por vir e o desejo do governo de elevar o limite de idade mínima para a aposentadoria das mulheres.

Portanto, o trabalho considerará, dentre outros aspectos, a realidade brasileira antes, durante e depois das reformas previdenciárias, focando-se principalmente naqueles casos de aposentadorias antecipadas, tais como da mulher, dos trabalhadores rurais, dos professores e empregados que desempenham atividades em condições especiais (nocivas à saúde ou integridade física). além disso, deve-se considerar a questão da aposentadoria por tempo de contribuição, diante da necessidade urgente

2 Sarlo Jorge (2006, p. 179) ensina que “risco social é um fato existente na ordem dos fatos que ameaça constantemente a força de trabalho dos indivíduos e que, se concretizado, lança o ser humano no denominado estado de necessidade social”.

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de se criarem mecanismos para sua postergação, como já o fez o governo ao instituir o fator previdenciário.

a intenção deste trabalho é primordialmente demonstrar a necessidade de uma reforma previdenciária que incida fundamentalmente sobre as aqui chamadas aposentadorias antecipadas, ou seja, sobre aquelas aposentadorias em que os segurados ainda se encontram plenamente capazes de produzir, mas que pela liberalidade da lei se aposentam ainda jovens, tanto que na maioria das vezes retornam ao mercado de trabalho. Ora, a aposentadoria pressupõe que o segurado não mais seja ou esteja apto ao trabalho, precisando de repouso permanente em sua terceira idade. assim, a concessão de aposentadorias a pessoas que ainda demonstram plena higidez e capacidade produtiva vai de encontro à lógica do benefício previdenciário e provoca distorções sistêmicas. aduz-se, então, ser imprescindível uma reforma previdenciária que ataque esse ponto específico do plano de benefícios da Previdência Social brasileira.

Deve-se, por outro lado, de modo específico, investigar ligeiramente a origem da proteção social, apenas para que se situe o leitor quanto à finalidade do amparo social; apontar alguns dos princípios que informam a Previdência Social, de modo a revelar a noção de solidariedade, o aspecto ligado à dignidade da pessoa humana, a imprescindibilidade do equilíbrio financeiro e atuarial e a essencialidade da equidade entre gerações; indicar os riscos sociais, com destaque ao risco velhice, hoje uma preocupação mundial; apontar distorções no sistema previdenciário resultantes de fatores endógenos e exógenos, sendo exemplo desses a dinâmica populacional; mostrar como a questão da aposentadoria é tratada atualmente pelo ordenamento jurídico; demonstrar a necessidade urgente de mudança quanto aos limites de idade para aposentadoria de algumas classes de segurados, tendo em vista o desequilíbrio financeiro e atuarial que as aposentadorias antecipadas vêm provocando nas contas da previdência social; fazer um apanhado da situação vivenciada no mundo quanto à questão do limite etário para aposentadoria; concluir apontando possíveis soluções.

A proposição se justifica pela crise financeira da previdência, a exigir mudanças inadiáveis, e igualmente pela constatação de que o brasil está na contramão do que ocorre em outros países quanto ao limite mínimo de idade para aposentadoria do segurado, sendo oportuna uma referência comparativa ao que ali se aplica.

Por outro lado, não é razoável a diversidade hoje existente de idades mínimas para aposentadorias entre homens e mulheres; também não é aceitável a redução em voga de idade para aposentadoria de trabalhadores rurais e professores; não se justifica ainda que se conceda aposentadoria antecipada aos 15, 20 e 25 anos de serviço aos trabalhadores submetidos a condições especiais de trabalho (insalubres, perigosas ou penosas, com risco de dano à Saúde). É preciso pensar alternativas!

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Afirma-se, ainda, que a aposentadoria por tempo de contribuição, sem a conjugação de exigência de idade mínima, deveria ser extinta ou, não sendo isso possível, por questões políticas, pelo menos se deve adiar a sua consumação. Nesse particular, o fator previdenciário constitui-se em importante e louvável iniciativa. O fato é que em todas essas situações eclodem aposentadorias antecipadas, as quais devem ser postergadas o quanto antes, impondo-se, então, que se mude essa realidade.

A problemática da aposentadoria antecipadaressalta Sarlo Jorge que

as aposentadorias são especialmente sensíveis a uma série de fenômenos de ordem social, tais como envelhecimento populacional, queda dos índices de natalidade, fluxos migratórios, bem como aumento da expectativa de vida. (Sarlo Jorge, 2006, p. 172).

De fato, a dinâmica demográfica influi diretamente nessa espécie de benefício, podendo conduzir a resultados ponderáveis outros não. assim, por exemplo, poderá ocorrer de a elevação da expectativa de vida inviabilizar o sistema previdenciário, considerando a concessão de aposentadorias a pessoas muito jovens. Por outra vertente, a elevação da idade mínima para aposentadoria, acompanhando o aumento da expectativa de vida, poderá resultar em um esvaziamento da massa de contribuintes, por não reconhecerem legitimidade na exigência de contribuições por período excessivo de anos. Vê-se, pois, que a problemática da aposentadoria antecipada não é de fácil solução. Não basta impor medidas que retardem a aposentação dos segurados, como a elevação da idade mínima, sem que se faça antes um estudo sobre o impacto que isso pode ocasionar no sistema de arrecadação.

Não se revela, entretanto, impossível a implementação de mudanças nesse campo. ao reverso, a adoção de medidas que adiem a aposentadoria, conforme a dinâmica populacional, é perfeitamente factível. Não se pode é extrapolar o limite do razoável.

1. Alguns aspectos específicos sobre proteção socialantes de adentrar ao tema principal deste ensaio, mostra-se importante

tecer algumas considerações preliminares sobre a proteção social, para que o leitor se inteire melhor da sua origem, do seu desenvolvimento, da sua natureza e dos princípios que a qualificam.

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1.1. a previdência social como técnica de proteção socialNo prisma evolutivo, a Previdência Social, como técnica de proteção social,

tem origem remota: do regime de poupança individual, passamos pelas técnicas mutualistas, as quais foram superadas pela caridade, até o advento do sistema previdenciário atual.

Explanando sobre as primeiras formas de assistência, Feijó Coimbra afirma que:

a marcha evolutiva que levou o amparo do homem, desde a assistência prestada por caridade de seus semelhantes, até o estágio em que se mostra como um direito subjetivo, garantido pela sociedade aos seus membros, é na verdade o reflexo de três formas de atuação: a da beneficência, a da assistência pública e a da previdência. (Feijó coimbra, 1990, p. 47)

Considerando em específico a Previdência Social, percebe-se que é marcada especialmente pela visão da proteção universal.

Conceituando-a, Wladimir Novaes Martinez afirma tratar-se de:[...] técnica de proteção social que visa a propiciar os meios indispensáveis à subsistência da pessoa humana – quando esta não pode obtê-los ou não é socialmente desejável que os aufira pessoalmente através do trabalho, por motivo de maternidade, nascimento, incapacidade, invalidez, desemprego, prisão, idade avançada, tempo de serviço ou morte –, mediante contribuição compulsória distinta, proveniente da sociedade e de cada um dos participantes. 3

Por seu turno, a lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991 (dOU 25/7/1991, consolidada no dOU 14/8/1998), no art. 1º, dispõe expressamente que a Previdência Social

tem por finalidade assegurar aos seus beneficiários os meios indispensáveis de manutenção, por motivo de incapacidade, desemprego involuntário, idade avançada, tempo de serviço, encargos familiares e prisão ou morte daqueles de quem dependiam economicamente.

a constituição Federal de 1988 (dOU 5/10/1988 – anexo), ao atribuir ao Poder Público a competência para organizar a seguridade social, aponta os objetivos a ser seguidos com vistas à implementação dessas técnicas de proteção, sendo de suma importância observarmos o princípio do acesso universal, pois, com base nele, identificadas as causas de vulnerabilidade do sistema de proteção, resta autorizada a implementação de medidas ampliativas e de melhoria do sistema.

3 a seguridade social na constituição Federal. 2. ed. São Paulo: ltr, 1992, p. 99.

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Nesta perspectiva, chegamos ao estágio atual da proteção previdenciária, no regime contributivo, fincada em princípios constitucionais.

a previdência social, porém, é apenas um foco da atuação estatal no âmbito da proteção social, pois, além dela, coexistem os regimes de proteção à Saúde e à Assistência Social. De fato, a proteção social no Brasil é fincada em três pilares: a Previdência, a Saúde e a assistência Social, que integram a área de atuação da Seguridade Social. Sobre o assunto, dispõe a nossa constituição Federal no art. 194 que “a seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social.”

1.2. O papel do estado em relação à proteção socialO estado chamou para si a responsabilidade pela aplicação das técnicas de

proteção social, mediante ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à Saúde, à Previdência e à assistência Social.

O Estado, entretanto, é perdulário e ineficiente, pois, embora dotado dos recursos oriundos de arrecadações tributárias, desvia ou aplica os valores arrecadados em fins diversos, conduzindo o sistema previdenciário à falência. A consequência da má gestão dos recursos financeiros é o malogro do nosso sistema previdenciário. A valer, o estado não cumpre a contento o desígnio que lhe foi imposto pelo constituinte. Aplica pessimamente os recursos, quando na maioria das vezes não os utiliza em fins diversos. Com isso, conduz o sistema à ineficácia, outorgando prestações mínimas aos participantes do regime previdenciário; restringindo o acesso à previdência social, ou melhor, omitindo-se quanto à ampliação do sistema para alcançar um maior número de beneficiários, frustrando, desta maneira, o princípio do “acesso universal”. Assim, a má gestão dos recursos públicos destinados à seguridade social aparece como um dos principais entraves à atuação do estado no manejo das técnicas de proteção social. No entanto, devemos reconhecer que o estado exerce relevante papel no amplo universo da proteção social. Na realidade, como executor e intermediador da política social, tem o dever de fomentar e implementar as medidas necessárias à ampliação do sistema de proteção social, diagnosticando os pontos de vulnerabilidade, alargando as prestações materiais e o universo de pessoas favorecidas. Sem a ação dos Poderes Públicos, coadjuvados pela sociedade, seguramente não teríamos alcançado o nível de proteção social que temos atualmente, a qual, ainda que deficiente, atende satisfatoriamente aos apelos da sociedade.

Portanto, a atuação do estado neste campo é imprescindível. compete-lhe, então, assumir com responsabilidade o encargo, adotando medidas eficazes que conduzam à ampliação das técnicas de proteção social. ao invés da inação, da

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ineficiência, da má gestão, deve partir para a ação; para a ação pró-ativa, pois não foi aquela a missão que lhe reservou a constituição, nem é isso que espera a sociedade dos agentes públicos.

Nesta perspectiva, é de se esperar que o estado, sempre que perceba falhas no sistema previdenciário que possam conduzir à sua falência, procure adotar medidas que conduzam à sua melhoria. Nesse sentido, são as reformas recentemente implantadas; e por essa razão é que se espera que outras reformas pontuais, tais como a elevação da idade mínima para aposentadoria das mulheres, professores e segurados especiais sejam implementadas a curto prazo, por ser uma medida necessária à solvência do seguro coletivo.

1.3. a proteção social não é exclusiva do estadoSegundo a lição do jurista cardoso de Oliveira a Seguridade social compreende

um:conjunto de medidas adotadas pelo estado, por meio de organizações próprias ou subvencionadas, destinadas a prover as necessidades vitais da população do país, nos eventos básicos previsíveis e em outras eventualidades, variáveis segundo as condições nacionais, que podem verificar-se na vida de cada um, por meio de um sistema integrado de seguro social e de prestação de serviços sociais, de cuja administração e custeio participam direta ou indiretamente, os próprios segurados ou a população mesma, as empresas e o estado (OliVeira, 1987, p. 21)

efetivamente, a nossa realidade deixa patente que as ações de proteção social não se desenvolveriam satisfatoriamente sem o engajamento do estado coadjuvado pelas entidades e organizações civis, ou seja, pela sociedade em mútua colaboração e com plena aplicação do princípio da solidariedade. aliás, a chamada economia social ou terceiro setor vem alcançando espaço cada vez maior em nossa sociedade em razão da carência dos Poderes Públicos, dando origem a uma nova forma de economia: a economia solidária.

Ora, sendo partícipe do estado, a sociedade deve contribuir para o debate, absorver as mudanças e entender como necessárias as reformas que são implementadas no seguro coletivo.

Além disso, a sociedade deve discutir o problema do déficit previdenciário e buscar alternativas de solução. a participação da sociedade é sempre incentivada e desejada. Afinal, o que se discute é a previdência de hoje e de amanhã, como um patrimônio público.

Assim, com segurança, afirma-se que não se pode deixar apenas para o Estado a responsabilidade pela solução dos problemas que atingem a Previdência Social.

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1.4. a previdência social é guiada por princípiosMartins, com apoio na lição de José Cretella Jr., afirma que os princípios são

“as proposições básicas que fundamentam as ciências”. (MartiNS, 2000, p. 66). de Plácido e Silva (Vocabulário Jurídico, Vol. III, p. 1.220) define princípios como “normas elementares ou os requisitos primordiais instituídos como base, como alicerce de alguma coisa”. Martinez ressalta que

basicamente, os princípios têm duplo papel: inspirar e orientar a construção do ordenamento jurídico e, durante a construção, ou depois dela, colaborar na sua aplicação, limitadamente, nas hipóteses de integração e de interpretação. (MartiNeZ, 1993, p. 74)

como mandamentos nucleares de um sistema, os princípios servem para orientar e atribuir um sentido harmônico ao sistema normativo. Os princípios funcionam, ainda, como critérios para a correta compreensão do sistema. dentre os vários princípios relevantes que orientam a previdência social, destacam-se os da solidariedade, da dignidade da pessoa humana, da equidade entre gerações e do equilíbrio financeiro e atuarial.

acerca da solidariedade, Martins explica que “pode ser considerada um postulado fundamental do direito da Seguridade Social” (MartiNS, 2000, p. 73).

Martinez ensina que a solidariedade social “tem por limite a sociedade. Seu alcance corresponde à universalidade da técnica de proteção social considerada. enorme no seguro, maior ainda na seguridade social” (MartiNeZ, 1993, p. 79).

Ao discorrer sobre Direito de Solidariedade, Calmon de Passos afirma que:a atividade securitária e a própria seguridade social são formas de solidariedade jurídica, co-participação imposta em termos de desembolso financeiro para constituição de um fundo comum, administrável em termos de satisfação de carências, sem preocupação de se perquirir sobre culpa de qualquer espécie e de quem quer que seja, vale dizer, descartando o perquirir sobre responsabilidade de algum sujeito. como se todos fossemos, em última análise, responsáveis por tudo e por todos, nos termos em que a lei disciplinar essa responsabilidade sem culpa, que pode ser apelidada juridicamente de solidariedade social. (calMON de PaSSOS, 2004)

Nessa perspectiva, a solidariedade social pressupõe a contribuição de todos em proveito da minoria. Para Martinez “A solidariedade significa cooperação da maioria em favor da minoria, em certos casos da totalidade em direção à individualidade.” (MartiNeZ, 1998, p. 129).

Sobre a dignidade da pessoa humana, eleita como fundamento de nossa república (cF/88, art. 1º, iii), resta evidente que as prestações previdenciárias

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visam a assegurar um mínimo vital que garanta a sobrevivência dos participantes do seguro coletivo. assim é que “nenhum benefício que substitua o salário-de-contribuição ou o rendimento do trabalho do segurado terá valor mensal inferior ao salário mínimo” (cF/88, art. 201, § 2º).

discorrendo sobre as prestações previdenciárias como garantia do reconhecimento da dignidade da pessoa humana, dâmares Ferreira (2002) ressalta o seguinte:

como direito social de cunho prestacional (direitos a prestações fáticas e jurídicas), a previdência social encontra-se a serviço da igualdade e da liberdade material e objetiva à proteção do beneficiário contra as necessidades de ordem material e à garantia de uma existência com dignidade, conforme os ensinamentos do professor iNGO Sarlet.

A articulista afirma, ainda, com muita propriedade, queO direito à manutenção da vida, exercido com qualidade, preserva a dignidade da pessoa humana. Uma das formas de instrumentalização e garantia deste direito básico é o exercício do direito às prestações da Previdência Social.

ao cuidar do princípio da equidade entre as gerações ou intergeracional, Ricardo Lobo Torres, citado por Sarlo Jorge (2006, p. 63), afirma o seguinte:

A equidade entre as gerações significa que os empréstimos públicos e as despesas governamentais não devem sobrecarregar as gerações futuras, cabendo à própria geração que delas se beneficia arcar com o ônus respectivo.

a inobservância desse princípio pode levar ao sacrifício de uma geração.Por fim, destaco o princípio do equilíbrio financeiro e atuarial.Segundo Sarlo Jorge, o

equilíbrio financeiro significa a existência de saldo zero ou positivo no confronto entre despesas e receitas do sistema. Já o equilíbrio atuarial está ligado à denominada estabilização da massa, ou seja, controle, previsão e prevenção de variações extremas no perfil daqueles que são segurados (JOrGe, 2005, p. 31).

1.5. Os benefícios previdenciários como instrumento de materialização de direitos fundamentais

a constituição Federal de 1988, já no art. 1º, iii, dispõe que a república Federativa do brasil constitui-se em estado democrático de direito e tem como um dos seus fundamentos a dignidade da pessoa humana, e como um dos objetivos essenciais a constituição de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, i).

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além disso, a constituição Federal, no art. 6º, elegeu como direitos sociais “a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados”.

evoluindo no exame da constituição, no título da Ordem Social, temos o art. 194 da carta, onde posto que a seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social. a saúde é direito de todos e dever do estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. a previdência social será organizada sob a forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, nos termos da lei, a: i – cobertura dos eventos de doença, invalidez, morte e idade avançada; ii – proteção à maternidade, especialmente à gestante; iii – proteção ao trabalhador em situação de desemprego involuntário; iV – salário-família e auxílio-reclusão para os dependentes dos segurados de baixa renda; V – pensão por morte do segurado, homem ou mulher, ao cônjuge ou companheiro e dependentes, observado o disposto no § 2º. a assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos: i – a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice; ii – o amparo às crianças e adolescentes carentes; iii – a promoção da integração ao mercado de trabalho; iV – a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária; V – a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei.

Na arguta lição de Paulo bonavidescriar e manter os pressupostos elementares de uma vida na liberdade e na dignidade humana, eis aquilo que os direitos fundamentais almejam, segundo Hesse, um dos clássicos do direito público alemão contemporâneo. ao lado dessa acepção lata, que é a que nos serve de imediato no presente contexto, há outra, mais restrita, mais específica e mais normativa, a saber, direitos fundamentais são aqueles direitos que o direito vigente qualifica como tais (BONAVIDES, 2000, p. 514).

Bonavides classifica os direitos fundamentais em:a) de primeira geração ou direitos da liberdade, que são aqueles que

têm por titular o indivíduo, são oponíveis ao estado, traduzem-se como faculdades ou atributos da pessoa e ostentam uma subjetividade que é seu traço mais característico; enfim, são direitos de resistência ou de oposição perante o estado (bONaVideS, 2000, p. 517);

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b) de segunda geração, que são “os direitos sociais, culturais e econômicos bem como os direitos coletivos ou de coletividades, introduzidos no constitucionalismo das distintas formas de estado social” (bONaVideS, 2000, p. 518);

c) de terceira geração ou direitos da fraternidade (direito ao desenvolvimento, à paz, ao meio ambiente, de propriedade, sobre o patrimônio comum da humanidade, etc.). São aqueles que

não se destinam especificamente à proteção de interesses de um indivíduo, de um grupo ou de determinado estado. têm primeiro por destinatário o gênero humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta (bONaVideS, 2000, p. 523); e

d) de quarta geração: direito à democracia, direito à informação e o direito ao pluralismo, dos quais “depende a concretização da sociedade aberta do futuro, em sua dimensão de máxima universalidade, para a qual o mundo parece inclinar-se no plano de todas as realizações de convivência” (bONaVideS, 2000, p. 525).

Nessa linha doutrinária, a Seguridade Social, envolvendo Previdência, Saúde e assistência Social, conquanto direito social, insere-se no rol dos direitos fundamentais ou de direitos humanos, qualificando-se como direito de segunda geração.

Segundo tavaresO direito da seguridade social é um direito social, nos termos do art. 6º da constituição da república Federativa do brasil. a carta relaciona a saúde, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados, como direitos prestacionais sociais de índole positiva no rol dos direitos fundamentais. (taVareS, 2006, p. 1)

tecendo considerações sobre direitos humanos, ben-Hur rava inclui a seguridade social nos direitos de segunda geração por exigirem uma prestação estatal:

[....] os direitos econômicos, sociais e culturais têm por característica, contrária aos direitos de primeira geração, a prescrição de um dever-fazer, de uma prestação positiva por parte do estado. com efeito, pelos direitos de segunda geração, o estado se obriga a prover os meios materiais para a realização de serviços públicos, como é o caso do ensino, assistência médica, seguridade social, etc. isso equivale à obrigação de fazer, por parte do estado; isto é, proporcionar e destinar

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os recursos para a satisfação de tais necessidades reconhecidas como fundamentais por uma opção política, dependentes do seu alcance por uma manifestação jurídica. (raVa, 2003)

Contudo, para Sarlo Jorge, não é pacífica a inclusão dos direitos sociais no rol dos direitos humanos ou fundamentais. “É que a doutrina debate acerca da questão da jusfundamentabilidade dos direitos sociais e, entre eles, a previdência social”. (JOrGe, 2006, p. 11)

de acordo com ricardo lobo torres, referido por társis Nametala:A saída para a afirmação dos direitos sociais tem sido, nas últimas décadas: a) a redução de sua jusfundamentalidade ao mínimo existencial, que representa a quantidade mínima de direitos sociais abaixo da qual o homem não tem condições para sobreviver com dignidade; b) a otimização da parte que sobreexecede os mínimos sociais na via das políticas públicas, do orçamento e do exercício da cidadania. O equilíbrio entre os dois aspectos – de liberdade e de justiça – passa pela maximização do mínimo existencial e pela minimização dos direitos sociais em sua extensão, mas não em sua profundidade. (SarlO JOrGe, 2005, p. 12)

1.6. benefícios previdenciários: garantia do mínimo existencialtavares, citado por társis Nametala (2006, p. 12-13), assevera que:

O conceito de mínimo existencial, como visto, pressupõe um conjunto de prestações sociais destinadas a resguardar as pessoas da situação de indignidade, encontrando justificação em aspectos específicos dos valores da liberdade, igualdade e solidariedade. como direito humano social, caberá ao constituinte apenas reconhecê-lo e declará-lo juntamente com os demais direitos fundamentais. isso faz com que possam ser exigidos diretamente do estado, como direitos subjetivos. As demais prestações sociais [estas sim] ficarão dependentes de previsão programática através de produção legislativa e de atos administrativos de governo, observadas as limitações orçamentárias – serão direitos fruíveis “na medida do possível”.

a dignidade da pessoa humana e o direito à vida se incluem no “núcleo duro” do direito, pois não comportam restrição no seu exercício. a constituição elegeu a dignidade humana como fundamento da república (art. 1º, iii). a previdência social é um dos instrumentos utilizados pelo estado para assegurar a dignidade da pessoa humana. É por meio dela, juntamente à Saúde e a assistência Social, que o estado brasileiro concretiza a proteção do mínimo existencial ou mínimo social,

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assegurando prestações mínimas que garantam ao ser humano uma vida digna, seja no aspecto material, seja moral. assegura-se, ainda, o direito à vida, conquanto se atribua aos trabalhadores prestações que supram suas necessidades vitais. ao longo da constituição, várias disposições conduzem à conclusão inafastável de que o estado atraiu para si o dever de assegurar o mínimo existencial, como concreção do princípio fundamental da dignidade humana. a título de exemplo, o art. 7º, inciso iV, da constituição Federal, ao cuidar do salário mínimo, estabelece que ele se destina a atender às necessidades básicas do trabalhador e às de sua família com moradia, alimentação, educação, Saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e Previdência Social. corroborando este comando, o art. 201, § 2º, da cF, dispõe que nenhum benefício que substitua o salário-de-contribuição ou o rendimento do trabalho do segurado terá valor mensal inferior ao salário mínimo.

Por seu turno, a Lei nº 8.213/1991, no art. 1º, dispõe que a finalidade da Previdência Social é assegurar aos beneficiários os meios indispensáveis de manutenção, quando estes estiverem em situações de incapacidade, de desemprego involuntário ou em idade avançada, ou ainda, em razão do tempo de serviço ou elevação de encargos familiares. também assegura a manutenção da família do segurado em razão de prisão ou morte. Ou seja, os benefícios previdenciários destinam-se a prover o trabalhador de um mínimo social, visando à sua manutenção digna e de sua família. cuida-se de um mínimo vital.

como se observa, a Previdência Social objetiva a manutenção digna dos segurados e seus dependentes mediante a entrega de prestações mínimas, arroladas no art. 18 da lei nº 8.213/1991, a saber: i – quanto ao segurado: a) aposentadoria por invalidez; b) aposentadoria por idade; c) aposentadoria por tempo de serviço; d) aposentadoria especial; e) auxílio-doença; f) salário-família; g) salário-maternidade; h) auxílio-acidente; i) (revogada pela lei nº 8.870, de 15/4/1994); ii – quanto ao dependente: a) pensão por morte; b) auxílio-reclusão; iii – quanto ao segurado e dependente: a) (revogada pela lei nº 9.032, de 28/4/1995); b) serviço social; c) reabilitação profissional.

assim, as prestações previdenciárias revelam-se como instrumento de materialização do princípio da dignidade humana e se apresentam como um mínimo vital indispensável.

2. Riscos sociais: o envelhecimento populacionalNo brasil os trabalhadores de hoje custeiam os benefícios atuais, e assim

sucessivamente. Em função disso, afirma Jorge que o regime de repartição é “tido como mecanismo de transferências intergeracionais de fundos. em tal sistema –

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embora também, em menor grau, no de capitalização –, é que aparece de modo inafastável o princípio da equidade entre as gerações”. (JOrGe, 2005, p. 1-2). Para Feijó coimbra (1997, p. 233), o modelo de repartição repousa no ideal de solidariedade, no pacto entre gerações – já que cabe à atual geração de trabalhadores em atividade pagar as contribuições que garantem os benefícios dos atuais inativos, e assim sucessivamente, com o passar dos tempos.

Percebe-se, então, o quanto é importante o estudo da dinâmica demográfica (decréscimo do nível de fertilidade e a crescente elevação da taxa de longevidade) para a sustentabilidade do sistema previdenciário do País, especialmente a questão do prolongamento da expectativa de vida de parcela importante da população adulta.

Sobre o ponto, ricardo lobo torres, referido por társis Nametala Jorge (2005, p. 24), destaca a importância da equidade entre gerações, principalmente na área da seguridade social. É que

com o alongamento da expectativa de vida (no brasil passou de 58 anos, em 1978, para 65 anos em 1989 e 68 anos em 1998) e o decréscimo dos índices de natalidade houve o desequilíbrio no sistema de repartição no financiamento da previdência, posto que cada vez é menor o número de contribuintes e maior o de beneficiários e aposentados.

realmente, o envelhecimento da população destaca-se atualmente como um dos principais pontos de vulnerabilidade do nosso sistema previdenciário, sustentado em contribuições, notadamente diante do desequilíbrio que isso vem provocando no orçamento da seguridade social. Sobre o tema, a iniciativa de estocolmo4 revelou a preocupação mundial com a previdência para a idade avançada, propondo formas de equacionar o problema, tendo o relatório do comitê das Nações Unidas para assuntos de Planejamento do desenvolvimento deliberado, entre outras questões, sobre as implicações econômicas e sociais das tendências demográficas, incluindo a mudança na relação entre população economicamente ativa e jovens e idosos. Segundo o Comitê, “As projeções demográficas precisam ser consideradas no planejamento, na reformulação e na reavaliação de sistemas previdenciários” (item 34). a verdade é que os planos previdenciários são fortemente dependentes das contribuições e benefícios concedidos, havendo, nesta relação, um desequilíbrio evidente, o qual é agravado pela dinâmica demográfica. Em virtude disso, é corrente a discussão no Brasil e em outros países acerca das alterações necessárias no modelo previdenciário em face do aumento da expectativa de vida e da redução da taxa de natalidade.

Nesta perspectiva, o sistema de seguridade social em vigor mostra-se, à evidência, deficiente para uma proteção adequada à sociedade, estando, pois, a exigir alterações fundamentais, sejam no aspecto do financiamento sejam quanto 4 reproduzida na revista conjuntura Social, vol. 10, nº 1, jan./fev./mar., 1999.

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aos benefícios concedidos, embora as mudanças recentemente implementadas pelas emendas constitucionais nº 20, de 1998, e nº 41, de 2003, tenham proporcionado fôlego à estrutura.

Não se defende mudança no modelo do sistema (de repartição para capitalização), pois se entende que o modelo de repartição é o ideal para a nossa sociedade, enquanto fincado na solidariedade entre gerações. O que é urgente pôr em prática é um novo modelo de financiamento, que traga equilíbrio às contas da Previdência Social.

como ressaltam Pereira de castro e lazzari,basta que se adotem métodos de financiamento mais equânimes que o atual, acabando com as diferenças entre o mercado formal e o informal, e retirando o peso do financiamento do sistema de segurança social das contribuições sobre a folha de pagamentos de pessoal formalmente contratado, com a conversão paulatina num regime em que a contribuição decorra primordialmente da movimentação de capital. (Pereira de caStrO e laZZari, 2005, p. 692)

Outro ponto essencial é a definição de uma idade mínima para aposentadoria em combinação com o tempo de contribuição. atualmente, no brasil, não existe exigência de idade mínima para aposentadoria no regime Geral da Previdência Social, ao passo que no serviço público foram estabelecidos os limites de 60 anos para homens e 55 anos para mulheres, com 35 e 30 anos de contribuição, respectivamente (cF/88, 40, § 1º, iii), a) ressalte-se que no regime Geral da Previdência Social (rGPS), com a emenda constitucional nº 20, de 1998, e posterior edição da lei nº 9.876/1999, foi criado o que se denomina “fator previdenciário”, em substituição à exigência de idade mínima para aposentadoria voluntária. O fator previdenciário leva em consideração a idade do segurado, o tempo de contribuição do mesmo e a expectativa de sobrevida da população. com isso, procurou-se reduzir as despesas com a concessão de aposentadorias por tempo de contribuição a pessoas que se aposentem com idades bem abaixo daquelas consideradas ideais pelos atuários. além do fator previdenciário, a lei nº 9.876/1999 estabeleceu nova forma de cálculo dos benefícios de prestação continuada apurados com base na noção de salário de benefícios. ampliou-se o período básico de cálculo. agora não mais se consideram os trinta e seis últimos salários de contribuição, mas sim a média de 80% de todos os salários de contribuição para a concessão dos benefícios.

a adoção do fator previdenciário para muitos veio a solucionar o problema do déficit previdenciário em longo prazo. Logo após a reforma de 1998, o ex-ministro da Previdência e assistência Social, Waldeck Ornélas, ao abrir o seminário internacional organizado pelo Ministério da Previdência Social, realizado em

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Brasília, em dezembro de 1999, chegou a afirmar que o déficit da Previdência estava estabilizado e que tenderia a se esvaziar ao longo dos anos. São suas palavras:

a política do Governo em relação à previdência básica do setor privado é de estabilização do déficit. O saneamento deste passivo não será cobrado dos atuais segurados, pois tal situação é reflexo de um desequilíbrio estrutural. É interessante enfatizar a confusão que se estabelece quando as pessoas tratam sempre a questão previdenciária do ponto de vista do fluxo financeiro, do fluxo de caixa. Deve-se considerar, sim, do ponto de vista atuarial, o que é posto hoje na regra constitucional a partir da emenda nº 20.dessa forma, – concluiu o ex-Ministro da Previdência e assistência Social – o que se pode afirmar hoje, a partir da sanção da Lei nº 9.876, a qual estabeleceu o novo método de cálculo do benefício previdenciário, é que se introduziram pela primeira vez na previdência brasileira critérios atuariais. A previdência tem o seu déficit estabilizado. Esse déficit vai se esvair ao longo dos próximos 30, 35 anos, e toda a sociedade vai continuar pagando por ele. contudo, o importante é que a partir de agora está-se, de fato, dando início a uma nova previdência no brasil, pois inicia-se um sistema em que a correlação entre contribuições e benefícios é um princípio fundamental5.

Não é essa, contudo, a realidade que vivenciamos. O controle do déficit da Previdência é um aspecto relevante que exige atenção especial, porém não é o único a ser enfrentado pelo Governo. com efeito, diversos fatores ameaçam o sistema brasileiro de proteção social. O envelhecimento da população é um deles. além do risco velhice, o número de acidentes de trabalho, a economia informal, o aumento do desemprego, as fraudes, a sonegação fiscal, dentre outros são ameaças que pairam sobre o sistema, estando a merecer especial atenção. riscos sociais outros, como o aumento da pobreza, o desemprego, a informalidade, os déficits em Saúde pública, os problemas em educação, etc. também agravam a situação, levando à exclusão social progressiva, como revelado no estudo realizado por bernardo Kliksberg.6

Na verdade, as alterações no sistema previdenciário visaram mais reduzir às despesas com o pagamento de benefícios, substituindo a aposentadoria por tempo de serviço pela aposentadoria por tempo de contribuição e extinguindo a aposentadoria proporcional por tempo de serviço. além disso, colocou-se a obrigatoriedade do equilíbrio financeiro e atuarial, o que veio a permitir a adoção de providências para a administração do problema do pagamento de benefícios, como é exemplo a instituição do fator previdenciário. contudo, além das reformas 5 Seminário reforma da Previdência – Mudanças e Perspectivas. a Previdência sem caixa-Preta, Revista Conjuntura Social, brasília, jan./mar./2000, p. 14 e 15.6 América Latina: uma região de risco, pobreza, desigualdade e institucionalidade social – tradução de Norma Guimarães azeredo. brasília: Unesco, 2002.

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já implementadas, outras devem ser colocadas em prática, as quais não devem se limitar ao aspecto financeiro, de redução de gastos, mas principalmente com o escopo de ampliar a cobertura e universalizar o atendimento, devendo obrigatoriamente passar pela questão da redução dos riscos sociais que abalam o sistema como um todo e põem em risco o seu futuro, merecendo destaque as medidas tendentes à redução da miséria, dos infortúnios no ambiente de trabalho, do desemprego, da informalidade, dos déficits em Saúde pública (mortalidade infantil, saneamento, etc.), em suma, ações que procurem erradicar a exclusão social e eliminar aquilo que bernardo Kliksberg denominou, no artigo acima referido, de o “círculo perverso da exclusão”.

2.1. a expectativa de vida do brasileiroa esperança de vida é aspecto essencial a ser considerado em qualquer sistema

previdenciário, pois influi diretamente no cálculo atuarial dos benefícios. Giambiagi adverte, contudo, que

do ponto de vista técnico, porém, o argumento é errado – e muito. Por quê? Porque, para a Previdência Social, o conceito relevante não é o de expectativa de vida ao nascer e sim o de expectativa de vida – ou sobrevida – quando se atinge a idade de aposentadoria. (GiaMbiaGi, 2007, p. 35)

Realmente, o que se revela importante para fins atuariais não é a expectativa de vida ao nascer, mas sim a dinâmica demográfica no futuro. As taxas de natalidade e mortalidade oscilam com o tempo. assim, deve-se considerar não a situação vivenciada hoje, mas sim a perspectiva de amanhã. Se a expectativa de vida aumenta, o limite de aposentadoria deve ser repensado. Veja-se que atualmente a expectativa média de vida do brasileiro é de 72 anos quando nasce, podendo chegar a 81 quando a pessoa chega viva aos 60 anos. Nesta hipótese, aposentando-se aos 65 anos, teria uma sobrevida de 16 anos.

Segundo o ibGe a expectativa de vida do brasileiro subiu para 71,3 anos em 2003, com aumento de 0,8 anos em relação à de 2000 (70,5 anos). Observe-se a tabela abaixo.7 ela mostra a expectativa de vida do brasileiro conforme a idade. Por meio dela percebe-se que a expectativa de vida do brasileiro aumenta ano a ano e que as mulheres têm esperança de vida superior à dos homens.

7 disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=266&id_pagina=1>. acesso em: 11/5/2007.

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BRASIL – Esperanças de Vida às idades exatas – 1980, 1991, 2000 e 2003

IdadesAmbos os sexos Homens Mulheres

1980 1991 2000 2003 1980 1991 2000 2003 1980 1991 2000 2003

0 62,6 66,9 70,5 71,3 59,7 63,2 66,7 67,6 65,7 70,9 74,4 75,2

10 58,5 61,2 63,3 63,9 55,8 57,7 59,7 60,4 61,4 64,8 66,9 67,5

15 53,7 56,4 58,4 59,1 51,1 52,9 54,9 55,5 56,6 60,0 62,0 62,6

20 49,1 51,7 53,8 54,4 46,5 48,4 50,4 51,0 51,9 55,2 57,2 57,8

25 44,6 47,3 49,3 49,9 42,2 44,2 46,2 46,8 47,2 50,4 52,4 53,0

30 40,2 42,9 44,8 45,4 37,9 40,1 42,0 42,5 42,7 45,7 47,7 48,3

50 23,6 26,1 27,8 28,2 22,0 24,2 25,9 26,2 25,4 27,9 29,7 30,1

55 19,9 22,3 23,9 24,3 18,4 20,7 22,2 22,5 21,4 23,9 25,6 26,0

60 16,4 18,8 20,3 20,6 15,2 17,4 18,8 19,1 17,6 20,0 21,7 22,1

65 13,2 15,4 17,0 17,2 12,2 14,4 15,7 15,9 14,1 16,4 18,1 18,4

70 10,2 12,4 13,9 14,1 9,4 11,5 12,9 13,1 10,9 13,1 14,8 15,0

Fonte: IBGE/DPE/Coordenação de População e Indicadores Sociais. Gerência de Estudos e Análises da Dinâmica Demográfica.

Martins ressalta que o aumento da expectativa de vida está ocorrendo em todo o mundo, inclusive no brasil (MartiNS, 2006, p. 78). O renomado autor fez o seguinte apanhado sobre a evolução da expectativa de vida no brasil:

em 1900, a expectativa de vida do brasileiro era de 31 anos. e, 1930, a expectativa de vida do brasileiro era no máximo de 40 anos. entre os anos 30 e 40, era de 41,5 anos. entre os anos 40 e 50, era de 45,5 anos. entre os anos de 1950 e 1955, a expectativa de vida do trabalhador era de 49 anos. entre os anos 50 e 60, era de 51,6 anos. entre os anos 60 e 70, era de 53,5 anos. em 70/75 passou a ser 57,57 para homens e 62,17 para mulheres.em 1980, a expectativa de vida gera era de 66,6 anos. Para homem era de 59,7 anos e para mulher, 65,7 anos. em 1990, era de 65,5 anos. em 1991, a expectativa de vida geral era de 66,9 anos. Para o homem era de 63,2 anos e para mulher, de 70,9 anos.em 1998, era de 68,1 anos. em 2000, a expectativa de vida geral era de 70,5 anos. Para o homem era de 66,7 anos e para a mulher, de 74,4 anos. em 2001, era de 68,9 anos. em 2002, a expectativa de vida geral era de 71 anos. Para o homem era de 67,3 anos e para a mulher, de 74,9 anos. em 2003, a expectativa de vida geral era de 71,3% anos. Para o homem era de 67,6 anos e para a mulher, 75,2 anos. em 2004, era de 71,59 anos.

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entre 1980 a 2003, a expectativa média de vida do brasileiro aumentou 8,7 anos.em 2001, a expectativa de sobrevida de um homem de 50 anos era de mais 23,4 anos, ou seja, 73,4 anos. Um homem de 53 anos vivia 21,1 anos. Uma mulher de 48 anos vivia 29,5 anos.

a realidade era que as pessoas idosas viviam pouco após a aposentadoria. com o progresso da medicina, as pessoas passaram a viver mais. assim, a concessão de aposentadoria a pessoas ainda jovens acarreta naturalmente a sua manutenção por períodos muito longos, provocando um desequilíbrio nas contas da Previdência Social. Neste contexto, deve ser repensada a questão do limite mínimo de idade para aposentadoria, de modo a adequá-lo à expectativa de sobrevida após a concessão do benefício. O ideal é que se eleve o limite mínimo de idade para aposentadoria, equiparando homens e mulheres em uma faixa etária única, e que, após a inatividade, as pessoas continuem a contribuir para a manutenção do sistema. Somente assim se pode manter o equilíbrio financeiro e atuarial da massa.

3. Aposentadoria: modalidadesa aposentadoria revela-se o mais importante benefício previdenciário,

podendo derivar de causas diversas: invalidez, idade avançada, tempo de contribuição, etc. destina-se a substituir os ganhos do segurado e a assegurar a sua manutenção e de seus familiares.

a aposentadoria do trabalhador é direito expressamente assegurado pelo art. 201, § 7º, constituição Federal de 1988, nos seguintes termos:

Art. 201. [...]§ 7º É assegurada aposentadoria no regime geral de previdência social, nos termos da lei, obedecidas as seguintes condições:i – trinta e cinco anos de contribuição, se homem, e trinta anos de contribuição, se mulher;ii – sessenta e cinco anos de idade, se homem, e sessenta anos de idade, se mulher, reduzido em cinco anos o limite para os trabalhadores rurais de ambos os sexos e para os que exerçam suas atividades em regime de economia familiar, nestes incluídos o produtor rural, o garimpeiro e o pescador artesanal. (Redação dada ao parágrafo pela Emenda Constitucional nº 20/98, DOU 16.12.1998)§ 8º Os requisitos a que se refere o inciso i do parágrafo anterior serão reduzidos em cinco anos, para o professor que comprove exclusivamente tempo de efetivo exercício das funções de magistério na educação infantil e no ensino fundamental e médio. (Redação dada ao parágrafo pela Emenda Constitucional nº 20/98, DOU 16.12.1998)

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3.1. aposentadoria por invalideza aposentadoria por invalidez tem por fato gerador a incapacidade

permanente do segurado para o trabalho. Nos termos do art. 42 da lei nº 8.213/1991, a aposentadoria por invalidez, uma vez cumprida, quando for o caso, a carência exigida, será devida ao segurado que, estando ou não em gozo de auxílio-doença, for considerado incapaz e insusceptível de reabilitação para o exercício de atividade que lhe garanta a subsistência, e ser-lhe-á paga enquanto permanecer nesta condição. O período de carência do benefício é de 12 contribuições mensais, salvo nos casos de acidente de qualquer natureza ou causa ou quando o segurado for acometido de alguma das doenças especificadas na Portaria Interministerial nº 2.998, de 23/8/2001. Os segurados especiais estão isentos do cumprimento do período de carência, devendo, no entanto, comprovar o exercício de atividade rural nos 12 meses anteriores ao requerimento do benefício. a renda mensal corresponde a 100% do salário de benefício.

3.2. aposentadoria por tempo de serviçoa aposentadoria por tempo de serviço foi extinta com o advento da emenda

constitucional nº 20/1998. Quando vigorava era devida de forma proporcional ao segurado que completasse vinte e cinco anos de serviço, se mulher, ou trinta anos, se homem, desde que cumprido o período de carência exigido. Para a aposentadoria com proventos integrais, o homem necessitava comprovar trinta e cinco anos de serviço e a mulher trinta anos. ao tempo em que foi extinta, não havia necessidade de comprovação de idade mínima para sua concessão. ressalte-se que a emenda constitucional nº 20, de 1998, no art. 3º, assegurou a concessão da aposentadoria por tempo de serviço, a qualquer tempo, aos segurados do regime Geral da Previdência Social que, até a data da sua publicação, em 16/12/1998, tivessem cumprido os requisitos para obtenção desse benefício, com base nos critérios então vigentes.

3.3. aposentadoria por tempo de contribuiçãoresulta de determinado número de contribuições destinadas ao sistema. com

a reforma da previdência resultante da emenda constitucional nº 20, de 1998, o tempo de serviço passou a ser considerado como tempo de contribuição.

conforme o regulamento da Previdência Social, a aposentadoria por tempo de contribuição passou a ser concedida da seguinte forma:8

8 Pereira de caStrO, carlos alberto; laZZari, João batista. Manual de Direito Previdenciário, 6ª ed. São Paulo: ltr, 2005, p. 533.

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– Os segurados inscritos no rGPS até 16 de dezembro de 1998, data da publicação da emenda constitucional (ec) nº 20, inclusive os oriundos de outro regime de Previdência Social, desde que cumprida a carência exigida, terão direito à aposentadoria por tempo de contribuição nas seguintes situações:i – aposentadoria por tempo de contribuição ou de serviço, conforme o caso, com renda mensal no valor de cem por cento do salário de benefício, desde que cumpridos:a) 35 anos de contribuição, se homem;b) 30 anos de contribuição, se mulher;ii – aposentadoria por tempo de contribuição com renda mensal proporcional, desde que cumpridos os seguintes requisitos, cumulativamente:a) idade: 53 anos para o homem; 48 anos para a mulher;b) tempo de contribuição: 30 anos, se homem, e 25 anos de contribuição, se mulher;c) um período adicional de contribuição equivalente a quarenta por cento do tempo que, em 16 de dezembro de 1998, faltava para atingir o tempo de contribuição estabelecido na alínea b.– Os segurados inscritos no rGPS a partir de 17 de dezembro de 1998, inclusive os oriundos de outro regime de Previdência Social, desde que cumprida a carência exigida, terão direito à aposentadoria por tempo de contribuição desde que comprovem:a) 35 anos de contribuição, se homem;b) 30 anos de contribuição, se mulher.

como se nota, não há exigência de combinação de idade mínima com tempo de contribuição, salvo nas regras de transição.

em relação ao professor, observa-se que somente poderá se aposentar 5 anos antes, caso comprove exclusivamente tempo de efetivo exercício das funções de magistério na educação infantil e no ensino fundamental e médio (cF/88, art. 2001, § 8º).

3.4. aposentadoria por idadea aposentadoria por idade tem por fato gerador a idade avançada. É devida

ao segurado que, cumprida a carência exigida, comprovar 65 anos de idade, se homem, ou 60 anos de idade, se mulher. tais limites são reduzidos em cinco anos para os trabalhadores rurais de ambos os sexos e para os que exerçam atividades em regime de economia familiar.

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3.5. aposentadoria especialSegundo chamon, cuida-se de “espécie do genro aposentadoria por

tempo de contribuição. a hipótese de incidência estabelecida em lei é a atividade laboral exercida durante determinado número de anos em ambientes insalubres” (cHaMON, 2005, p. 124).

Nos termos do art. 57 da lei nº 8.213/1991 a “aposentadoria especial será devida, uma vez cumprida a carência exigida nesta lei, ao segurado que tiver trabalhado sujeito a condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física, durante 15 (quinze), 20 (vinte) ou 25 (vinte e cinco) anos, conforme dispuser a lei”. A finalidade da aposentadoria especial, segundo Lúcia Luz Leiria, referida por Pereira de castro e lazzari “é amparar o trabalhador que laborou em condições nocivas e perigosas à saúde, reduzindo o tempo de serviço/contribuição para fins de aposentadoria”. (de caStrO, Pereira e laZZari, 2005, p. 537).

4. Aposentadorias antecipadas: uma realidade a ser transformada

após esse breve relato das diversas espécies de aposentadoria, pode-se verificar que a passagem para a inatividade ocorre de forma diversa para os segurados homens em relação às mulheres. Há ainda distinções em relação aos professores, trabalhadores rurais e segurados especiais que trabalham individualmente ou em regime de economia familiar (produtor rural, garimpeiros, pescadores artesanais) e trabalhadores que desempenham suas atividades em condições especiais. Por fim, a aposentadoria por tempo de contribuição leva à inatividade pessoas ainda jovens, que na maioria das vezes retornam ao mercado de trabalho. em todos estes casos, o instituto da aposentadoria deve ser repensado, seja para que se defina uma idade mínima uniforme para aposentadoria, sem distinção entre homens e mulheres ou classes de trabalhadores, seja ainda para a postergação da aposentadoria por tempo de contribuição.

Já se ressaltou que a aposentadoria destina-se a assegurar ao trabalhador um descanso perene quando há diminuição de sua força de trabalho, em decorrência, principalmente, da idade avançada. Afirma-se, portanto, no princípio da dignidade da pessoa humana. ao sistema previdenciário, gerido e mantido pelo estado, atribui-se a responsabilidade legal de proteger o ser humano quando não mais tem forças para trabalhar, assegurando-lhe um mínimo vital destinado à sua sobrevivência e de seus familiares e que vem consubstanciado em uma prestação previdenciária: a aposentadoria. Qual, no entanto, o momento oportuno para que a aposentadoria seja concedida? Seguramente não deve ser quando o beneficiário ainda demonstra ter

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plena capacidade laborativa. a concessão de aposentadorias a pessoas que apresentam higidez e plena disposição para o trabalho vai de encontro à lógica do instituto.

Giambiagi (2007, 167-177) enfrenta a problemática da aposentadoria concedida a pessoas ainda jovens em confronto com a realidade de outros países. após evidenciar que no brasil a aposentadoria contempla pessoas ainda jovens, a quem intitulou de “Os gatões de meia-idade”, demonstra a realidade vivenciada em outros países. Para o referido autor:

a diferença é que, no caso do brasil, os homens se aposentam por tempo de contribuição, na média, com 57 anos, sendo 55 anos para a população que se aposenta por tempo de contribuição, incluindo as mulheres. enquanto isso, na Suécia, ainda que a idade concreta de aposentadoria seja, na média, inferior à exigência de 65 anos – pelos mecanismos existentes de aposentadoria antecipada –, a eurostat nos informa que ela é de 63 anos, conforme registrado em capítulo sobre a Previdência Social do documento “O estado de uma Nação” do ipea de 2006. em outras palavras, na média, as pessoas no brasil que se aposentam por tempo de contribuição vivem apenas em torno de um a dois anos menos do que na Suécia, mas se aposentam oito anos antes. Em termos financeiros e atuariais, essa diferença de seis a sete anos a mais de recebimento da aposentadoria – e de anos a menos de contribuição! – é enorme. (GiaMbiaGi, p. 170-171).

interessante e digno de nota é o estudo realizado por Paulo tafner (2007), pesquisador do instituto de Pesquisa econômica aplicada (ipea), sobre regras de acesso e de fixação de valor de benefícios de 20 países da Europa, da América e da Ásia, comparando-as com as do sistema brasileiro. Sobre as regras de acesso à aposentadoria, a pesquisa revelou que:

Uma característica da concessão de aposentadoria no brasil é a possibilidade de uma pessoa permanecer no mercado de trabalho e receber a aposentadoria. O acúmulo de aposentadoria e renda do trabalho é permitido nos estados Unidos, mas não no canadá e na itália. Na França é exigida a saída do emprego no qual se aposentou, porém, é permitido trabalhar em outro emprego e assim acumular aposentadoria e renda do trabalho. No brasil, quase 1/3 dos aposentados trabalham.Outra característica da concessão de aposentadorias no brasil é a idade mínima.Somente na itália e no brasil é possível se aposentar sem idade mínima. entretanto na itália isso não será mais possível porque já existe uma regra de transição que eliminará essa brecha. Outra questão ainda relacionada à idade mínima é a diferenciação por sexo. a alemanha, o canadá, os estados Unidos, o México e a França são países onde a idade mínima para obter aposentadoria não difere por sexo.

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Prosseguindo no seu estudo sobre acesso à aposentadoria, tafner (2007), selecionando os paises com exigências menos restritivas, apanhou os seguintes e importantes dados:

2.3.1 Europabélgica:• A aposentadoria exige idade mínima de 60 anos com 35 anos de contribuição para homens e mulheres. a expectativa de vida é de 76 anos para homens e 83 anos para as mulheres.França:• A aposentadoria só pode ser concedida à idade mínima de 60 anos de idade, sem diferenciar por sexo, e 37,5 trimestres de contribuição. É exigida a saída do emprego no qual foi requerida a aposentadoria.alemanha:• Já as condições de elegibilidade às aposentadorias também são relacionadas à idade mínima de 60 anos. O tempo de contribuição mínimo é que varia de acordo com o sexo do segurado: para homens são exigidos 15 anos de contribuição e para as mulheres o tempo de contribuição pode reduzir-se para 10 anos, dependendo das condições.itália:• Possui 20% de sua população com 65 anos ou mais. Possui regras de transição após a reforma dos anos 1990. a regra de transição não exige idade mínima, mas na regra permanente é exigida a idade mínima de 57 anos.Suécia:• País com 17% da população com 65 anos ou mais de idade, exige como idade mínima para aposentadoria 61 anos, sem diferenciar por sexo.reino Unido:• Não existe aposentadoria programada. A aposentadoria que existe é do tipo basic state retirement pension flat-rate e requer contribuições pagas ou creditadas referentes a 90% dos anos de trabalho (geralmente 44 anos para homens e mulheres).a idade para acesso a esse benefício é 65 anos para homens e 60 para mulheres, aumentando gradualmente para 65 anos de 2010 até 2020.2.3.2 Américasestados Unidos:• País com expectativa de vida de 75 anos para homens e 80 anos para mulheres possui idade mínima de 62 anos para concessão de aposentadoria, sem diferenciação por sexo. São exigidos dez anos de contribuição e é permitido ao aposentado permanecer no mercado de trabalho.

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canadá:• Possui idade mínima de 60 anos de idade, sem diferenciar por sexo. Não exige tempo mínimo de contribuição. É o país da américa com maior expectativa de vida de sua população: 78 anos para homens e 83 para mulheres.chile:• É exigida uma idade mínima de 65 anos para homens e 60 para mulher, com dez anos de contribuição. É possível reduzir as exigências, dependendo do montante acumulado. a continuação do aposentado no mercado de trabalho depende de sua ocupação.México:• Não tem diferenciação por sexo para a idade mínima de se aposentar: todos se aposentam aos 64 anos. À semelhança dos japoneses, os trabalhadores postergam a aposentadoria. O tempo de contribuição e serviço exigido é de pelo menos 30 anos, para homens e mulheres.argentina:• Assim como o Brasil, possui diferenciação por sexo para a idade mínima de se aposentar: 60 anos para homens e 55 anos para mulheres. Porém, as idades aumentarão para 65 e 60 nos próximos anos. O tempo de contribuição e serviço exigido é de pelo menos 30 anos, para homens e mulheres. Já possuía 10,2% de sua população com 65 anos ou mais (SSa, 2005).2.3.3 ÁsiaJapão:• A pensão programada é paga entre as idades de 60 e 64 anos. Não há diferenças de idade mínima entre os sexos. Não é exigido que o aposentado deixe o emprego. No Japão cerca de 17% da população possui 65 anos ou mais e a expectativa de vida é de 78 anos para homens e 85 anos para mulheres.china:• A idade mínima para aposentadoria programada é de 50 anos para homens e 45 anos para as mulheres, com 10 anos de cobertura.

concluindo sua análise, lafner (2007) fez a seguinte observação:dos países analisados, o brasil é o que possui regras menos restritivas para a concessão de aposentadorias programadas: não existe limite mínimo de idade e são necessários 35 anos de contribuição para homens e 30 para as mulheres. Nos países analisados, todos definiram limite mínimo de idade e a maioria não diferenciou por sexo.

As mulheres representam 46% dos beneficiários de aposentadorias do instituto de Previdência ou do governo federal com uma despesa de 36% desse

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benefício. essa diferença relativa é observada principalmente entre as idades de 50 a 59 anos, para homens e mulheres (tabela 8).

como se nota, é crescente o endurecimento dos critérios de acesso à aposentadoria no mundo, não podendo ser diferente no Brasil. Não se justifica a manutenção dos critérios atuais sob o argumento falso de que haveria prejuízo para os “velhinhos”. Os dados revelam que as aposentadorias antecipadas por tempo de contribuição beneficiam pessoas ainda jovens, na faixa etária inferior a 60 anos de idade e com sobrevida após a aposentadoria de 19 e 22 anos, considerando-se homens e mulheres, respectivamente, e favorecem aquelas pessoas pertencentes à classe média, que se aposentam com renda mensal bem superior ao mínimo legal e que ainda por cima retornam ao mercado de trabalho, dado o nível de qualificação.

assim, a aposentadoria por tempo de serviço/contribuição mostra-se um expediente que conduz à aposentação precoce, sendo urgente a sua extinção ou então a adoção de critérios legais que adiem sua concessão, como veio a ocorrer com a instituição do fator previdenciário pela lei nº 9.976, de 28/11/1999. Pelo fator previdenciário leva-se em consideração a idade do segurado, o tempo de contribuição deste e a expectativa de sobrevida da população, levando à concessão mais racional do benefício previdenciário. A sua adoção levou à redução significativa do número de aposentadorias por tempo de contribuição, deferidas a pessoas com idades bem inferiores àquelas consideradas ideais.

Não mais se concebe atualmente aposentadorias antecipadas, aos 25 (mulheres) ou 30 (homens) de serviço, independentemente da idade, como ocorria no passado. Essa incoerência sistêmica contribuiu em muito para o déficit previdenciário. A extinção da aposentadoria por tempo de serviço e a instituição da aposentadoria por tempo de contribuição foi um avanço por demais tímido. O legislador constituinte não teve a coragem de associar o tempo de contribuição à exigência de idade mínima, como seria o ideal. coube ao legislador infraconstitucional a criação de um mecanismo alternativo, no qual se pudesse adiar a concessão de aposentadorias a pessoas muito jovens. Fala-se novamente do fator previdenciário.

Já agora cabe pensar em alternativas que evitem esse tipo de aposentadoria, que estão na contramão da evolução dos sistemas previdenciários modernos. É preciso a adoção de mecanismos que alonguem o período de atividade dos trabalhadores e, consequentemente, de sua contribuição para o sistema previdenciário. a criação de estímulos à permanência na atividade, como um benefício previdenciário mais vantajoso para aqueles que se aposentem com a idade mais avançada seria um destes estímulos. além disso, a vedação do retorno ao trabalho pelo aposentado seria um fator de contribuição. O estabelecimento de uma idade mínima para aposentadoria, não inferior ao limite já posto na constituição Federal, de 65 anos para os homens,

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é medida que igualmente deveria ser adotada. a valer, é preciso que a constituição seja alterada para que se fixe a exigência de acesso à aposentadoria por tempo de contribuição com uma idade mínima, nunca inferior a 65 anos, inclusive de forma uniforme para homens e mulheres.

de fato, outro aspecto a considerar é a equiparação da idade para aposentadoria de homens e mulheres. essa é uma realidade já vivenciada em diversos países. O brasil não pode fugir dessa tendência de uniformidade. O argumento de que as mulheres se submetem a dupla jornada não é suficiente para justificar esse tratamento diferenciado. a verdade é que as mulheres têm uma sobrevida bem superior a dos homens. Na maioria dos países desenvolvidos não há essa distinção: como regra, as mulheres se aposentam na mesma faixa etária dos homens. No brasil, além de poderem se aposentar por tempo de contribuição inferior (30 anos), as mulheres ainda se beneficiam da redução da idade (cinco anos). A consequência é que as mulheres no brasil se aposentam precocemente em porcentual bem superior ao dos homens e com idade muito reduzida, se considerarmos os parâmetros mundiais. Vale aqui referência aos dados colhidos por Giambiagi (2007, p. 180):

três de cada quatro mulheres se aposentam por tempo de contribuição no Brasil antes dos 55 anos. O perfil delas é, em sua maioria, de jovens senhoras de classe média de 50 e poucos anos, em plena forma e com expectativa de viver até em torno dos 80 anos.

Merece ainda destaque a advertência feita por Giambiagi:Uma análise racional do tema, despojada das emoções que costuma suscitar o tratamento da questão, conduz à conclusão de que um país que paga aposentadoria às pessoas de 50/51 anos está jogando recursos públicos pela janela. a revisão dessas normas, claramente exageradas, deveria ser item obrigatório de qualquer cardápio de reforma previdenciária, nos próximos anos. (GiaMbiaGi, 2007, p. 180-181)

Seria o caso, então, de eliminar essa distorção ou pelo menos amenizá-la, considerando a situação peculiar da mulher, com sua sujeição à dupla jornada e à própria condição de mãe. a situação não pode é continuar como se encontra. as aposentadorias precoces concedidas indistintamente às mulheres – tenham filhos ou não; submetam-se à dupla jornada ou não – são um fator de desequilíbrio orçamentário que deve ser urgentemente equacionado. Afinal, as mulheres brasileiras não são diferentes daquelas que vivem no resto do mundo, não se justificando que venham a se aposentar ainda jovens, permanecendo, em alguns casos, aposentadas por período superior àqueles que contribuíram para a previdência.

Neste contexto, deve haver uma unificação das regras de aposentadoria aplicadas a homens e mulheres no brasil ou pelo menos uma rigidez maior nas regras atuais

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de concessão de aposentadorias para mulheres com fixação de uma idade mínima, compatível com a sua condição especial, nunca inferior à média mundial.

Também não se justifica igualmente a distinção de idade para aposentadoria de trabalhadores rurais (55 anos, se mulher, e 60 anos, se homem) em relação aos trabalhadores urbanos. em que se distinguem? tecnicamente em nada. a valer, os trabalhadores urbanos se submetem a uma carga de trabalho tanto ou até mesmo mais estressante do que os trabalhadores rurais. Por outro lado, não há distinção quanto ao aspecto da sobrevida. Os trabalhadores rurais vivem tanto ou até mais que os trabalhadores urbanos. a única distinção visível resulta do ambiente de trabalho. O trabalhador rural submete-se a uma jornada debaixo do sol ardente. Mas o trabalhador urbano, em muitos casos, também trabalha em condições ambientais adversas. além disso, favorece ao trabalhador rural o fato de ser privado de bens de primeira necessidade. Contudo, detalhes dessa natureza não justificam por si só a diversidade de tratamento. Afinal, os trabalhadores urbanos se submetem também a privações decorrentes de ambientes insalubres de trabalho e até mesmo privações de bens de primeira necessidade, às vezes em maior grau que o trabalhador rural.

O fato é que os trabalhadores rurais contribuem muito pouco para a manutenção do sistema previdenciário, provocando um desequilíbrio nas contas da Previdência Social, especialmente pelo fato de não se exigir contribuição do segurado especial. a solução para isso seria eliminar a distinção de idades para aposentadoria entre trabalhadores rurais e urbanos, equiparando-os neste particular, extinguindo-se paulatinamente as isenções aplicadas aos segurados especiais e elevando-se, ainda, o porcentual de contribuição para a previdência rural.

do mesmo modo, não há razão para que os professores da educação infantil e do ensino fundamental e médio tenham redução de cinco anos no tempo de contribuição. Os professores exercem função relevante para o País, contudo a especialidade de suas atividades não autoriza a concessão de um privilégio. a rigor, a jornada de trabalho do professor do ensino fundamental e médio não é mais ou menos estressante ou mesmo árdua do que aquela a que se submetem os demais trabalhadores brasileiros. Assim, não há razão técnica que justifique a redução em cinco anos do tempo de contribuição. a remuneração desprezível que se paga ao professor não é razão técnica que determine a redução do tempo de contribuição. Muitos trabalhadores têm remuneração desprezível e nem por isso se beneficiam dessa redução. a questão não deve ser resolvida por este enfoque. a rigor, se não existe razão técnica para que se aplique o redutor, não há motivo para que ele permaneça em vigor.

Quanto às aposentadorias especiais, destinadas àqueles trabalhadores que se submetem a condições adversas de trabalho (insalubres, perigosas ou penosas),

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verifica-se que a sistemática em vigor deve igualmente ser modificada. Atualmente, estes trabalhadores se aposentam com 15, 20 ou 25 anos de tempo de contribuição, sem qualquer limite de idade. À evidência, muito destes trabalhadores se aposentam jovens, com custos elevados para a Previdência Social, que mantém a aposentadoria por um tempo muito alongado de sobrevida do aposentado, o qual, na maioria das vezes, não se encontra incapacitado para o trabalho. ao reverso, após a aposentadoria precoce continuam a produzir, revelando, assim, que não deveriam estar aposentados, pois aptos ao trabalho. O tratamento diferenciado que se outorga a essa classe de trabalhadores se justifica pelo ambiente de trabalho altamente prejudicial à Saúde. contudo, existem alternativas viáveis que podem compatibilizar o trabalho em condições adversas com a postergação da aposentadoria, de modo a evitar aposentadorias precoces. a título de exemplo, sugere-se a extinção da aposentadoria especial, passando essa classe de trabalhadores a receber um tratamento de acesso à aposentadoria diferenciado e mais flexível da previdência social, submetendo-se, por exemplo, a regras mais brandas para aposentadoria por idade (redução do limite mínimo) ou por tempo de contribuição (redução do tempo de contribuição), em consideração à natureza especial das atividades que desenvolvem. além disso, em sendo constatada a inatividade para o trabalho, por meio de avaliações periódicas, em decorrência do ambiente insalubre de trabalho, poderia ser concedida aposentadoria por invalidez, em não sendo possível e recomendável a reabilitação profissional.

CONCLUSÃOconstatou-se que as aposentadorias antecipadas são facilitadas pela ordem

jurídica em vigor, principalmente no âmbito constitucional, impondo-se uma reforma urgente no paradigma hoje existente, de modo que sejam criados mecanismos de postergação das aposentadorias, alterando-se as condições de acesso ao benefício.

as considerações aqui feitas sobre a alteração das regras atuais de acesso às aposentadorias poderiam contribuir em muito para reduzir o déficit previdenciário, que sofre o influxo de distorções sistêmicas, como é o caso das aposentadorias precoces.

a título de sugestão, pensou-se na extinção da aposentadoria por tempo de contribuição. Não sendo isso viável, impõe que se associe o tempo de contribuição à exigência de limite mínimo de idade para aposentadoria, conforme parâmetros mundialmente aceitos e em face da elevação da esperança de vida do brasileiro. além disso, vislumbrou-se a possibilidade de eliminação de critérios diversos de acesso à aposentadoria para homens e mulheres, especialmente no que diz respeito ao limite mínimo de idade para aposentadoria.

No mesmo sentido, observou-se que não há razão técnica que determine

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a redução da idade para aposentadoria dos trabalhadores rurais e do tempo de contribuição para a aposentadoria dos professores da educação infantil e do ensino fundamental e médio.

Por fim, embora não dispense tratamento diferenciado, sugeriu-se a extinção da aposentadoria especial ou então a adoção de critérios diversos, embora mais flexíveis, para sua concessão, de modo a postergar a aposentadoria da classe de trabalhadores submetida a ambientes insalubres de trabalho.

a adoção de medidas dessa natureza conduziria o brasil à realidade hoje existente no resto do mundo, em que os critérios de acesso à aposentadoria são quase uniformes para as diversas classes de trabalhadores, sejam homens ou mulheres.

as aposentadorias precoces não podem ser incentivadas pela legislação. a ordem jurídica em vigor deve ser alterada. O brasil está vivendo na contramão da realidade previdenciária do mundo. As modificações devem ser implementadas e aceitas pela sociedade. assim o exige a razoabilidade e é o anseio das gerações futuras.

REFERÊNCIASbONaVideS, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 10ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000.cOiMbra, Feijó. Direito Previdenciário Brasileiro. edições trabalhistas, 2ª ed. rio de Janeiro.______________. Direito Previdenciário Brasileiro. 7ª ed., 1997.calMON de PaSSOS, J. J. Direito de Solidariedade – Publicada no Juris Síntese nº 49 – set./out. de 2004.cHaMON, Omar. Introdução ao Direito Previdenciário. São Paulo/barueri: Manole, 2005.Ferreira, dâmares. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e os benefícios previdenciários – Publicada no Juris Síntese nº 33 – jan./fev. de 2002.GiaMbiaGi, Fabio. Reforma da Previdência: o encontro marcado. rio de Janeiro: elsevier, 2007.JOrGe, társis Nametatala. Elementos de Direito Previdenciário, Custeio. rio de Janeiro, 2005.MartiNS, Sérgio Pinto. Direito da Seguridade Social. São Paulo: atlas, 14ª ed., 2000.___________________. Reforma previdenciária. 2ª ed. São Paulo: atlas, 2006.MartiNeZ, Wladimir Novaes. Curso de Direito Previdenciário. São Paulo: ltr, 1998.__________________. Princípios de Direito Previdenciário, 3ª edição. São Paulo: ltr, 1993.OliVeira, Moacyr Velloso c. de. Previdência social. rio de Janeiro: Freitas, 1987.

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Breves consiDerações soBre o Direito ProcessUal constitUcional

francisco WilDo lacerDa Dantas

DesembarGaDor feDeral Do trf Da 5a reGião. DoUtor em Direito pela facUlDaDe De Direito De lisboa (fDl).

mestre em Direito pela facUlDaDe De Direito Da UniversiDaDe feDeral Da bahia (Ufba).

especialista em Direito processUal civil pela UniversiDaDe De brasília (Unb), em convênio com o

conselho Da JUstiça feDeral (cJf) e professor Da Disciplina constitUição e processo Do

cUrso De mestraDo Da UniversiDaDe feDeral De alaGoas (Ufal)

Resumo: examina-se, no texto, a existência ou não de uma nova disciplina jurídica nascida da interseção entre o direito Processual e o direito constitucional. aprecia-se qual a denominação mais apropriada para ela e, considerando os dois grandes planos em que atua: processo em geral e constituição, procede-se a um estudo sumário dos princípios gerais constitucionais aplicáveis a todos os processos: administrativo, legislativo e judicial, tanto no aspecto civil como no penal, encarado o processo na visão moderna de adOlF MerKl, no sentido de conjunto de atos que torna possível o exercício do poder em suas várias formas, para o atingimento de seus fins. Aprecia-se, além disso, e também sumariamente, a disciplina própria de atuação da jurisdição constitucional na defesa da própria constituição, quando se desenvolve um controle da constitucionalidade das normas e dos atos públicos.

Abstract: the following paper exams the existence of a new law academic discipline, born by the intersection of Processual law and constitutional law. it seeks which would be the most suitable

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denomination for that academic discipline, considering the two great fields: General Process and Constitution – a summary study of constitutional principles applied to any process: administrative, legislative and judicial, in it´s civil and criminal aspect, facing the process by adOlF MerKl´s modern view, which means the set of acts able to offer the power exercise in it´s different forms, focusing its aims. beyond that, the constitution Jurisdiction itself is analyzed as an independent academic subject when it is applied within the constitutionality control of rules and public acts towards the constitution protection.

Keywords: Processual law – constitutional law – constitutional Jurisdiction.

Sumário: 1. Introdução 2. A questão da terminologia e do especifico objeto da disciplina 3. a visão moderna e constitucional do processo 4. conceito e breve resumo da matéria do direito Processual constitucional: 4.1 – resumo dos princípios constitucionais do processo: 4.1.1 – Valor sistemático dos princípios 4.1.2 – Sumário crítico dos princípios gerais: 4.1.2.1 – Princípios formativos do processo 4.1.2.2 – Princípios gerais do processo: a) inafastabilidade do controle jurisdicional: interesse legítimo e direito subjetivo b) Juiz natural c) igualdade e as prerrogativas do estado d) contraditório: i – contraditório e as partes ii – contraditório no processo de execução iii – contraditório e tutela coletiva iV – contraditório e atuação do juiz V – liberdade das partes e o principio inquisitório Vi – 0 duplo grau de jurisdição Vii – Motivação das decisões judiciais 4.1.3 – O devido processo legal 4.2 – O processo de constitucionalidade das leis: 4.2.1 – O fundamento do controle de constitucionalidade das normas e a jurisdição constitucional 4.2.2 – controle de constitucionalidade: a) Formas b) Modelos: difuso e concentrado 4.2.3 – O processo do controle de constitucionalidade, no brasil: 4.2.3.1 difuso: a) – introdução b) características: i – caso concreto ii – legitimado a suscitar esse controle iii – Processo em que cabe suscitar-se o controle iV – Normas objeto do controle V – Questão prejudicial Vi – controle difuso Vii – reserva de Plenário c) – Procedimento: 1a etapa: atuação do juiz monocrático 2a etapa- Perante o órgão fracionário do tribunal (art. 480 a 482 do cPc) 3a etapa – Perante o Pleno do tribunal 4a etapa: atuação do

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StJ e do StF d) – efeitos do julgamento e efeitos temporais 4.2.3.2 – abstrato/concentrado: a) características: i – Pronunciamento em abstrato ii – Julgamento de uma questão principal iii – exercício de um controle concentrado iV – competência para julgamento iV – legitimação para a ação V – Objeto da ação b) Procedimento das Leis 9.968/99 e 9.882/99 c) – A figura do amicus curiae: I – Breve histórico ii – recepção no direito brasileiro iii – Natureza jurídica iV – Procedimento 5. conclusões.

1. INTRODUÇÃOem sua obra didática e fundamental para a compreensão do direito

constitucional pátrio, que já vai na 23a edição, Paulo bonavides referiu, com muita propriedade, como soe acontecer, que com o fenômeno da chamada publicização do processo, estreitaram-se de tal modo os laços que uniam o processo à constituição que já reclamava uma nova disciplina em gestação: o direito Processual constitucional.1

2. A questão da terminologia e do específico objeto da disciplina

recentemente, eduardo Ferrer Mac Gregor escreveu artigo em que investiga o relacionamento entre o direito Processual constitucional e a Justiça constitucional, examinando, também, o questionamento a respeito de onde deveria radicar-se o estudo dessa disciplina, se no campo do direito constitucional, ou nos domínios próprios do direito Processual, em razão dos princípios que devem orientar essa nova matéria.

Por fim, entendido o estudo como privativo desses ramos jurídicos, examinou-se se deveria formar uma nova disciplina, informada pelos princípios e regras de ambos os ramos do direito, para concluir: “en el nuevo milenio se aprecia un acercamiento entre constitucionalistas y procesalistas al tratar de consolidar al derecho procesal constitucional como disciplina jurídica autônoma”. anotou, também, sem embargo do que já havia dito que

en ese dialogo interdisciplinario, que trata de abrir nuevos enfoques a la disciplina, se pueden advertir en general dos posturas de autonomia. la vertiente que la considera “autónoma mixta “, al estimar que debe construirse bajo los conceptos, métodos y estructuras del derecho constitucional y del derecho procesal. esta postura atractiva sin lugar a dudas, nos debe llevar a la reflexión de si existen en realidad disciplinas jurídicas “mixtas” o bien si la tendencia contemporánea de cualquier

1 cf. Curso de Direito constitucional. São Paulo: ed. Malheiros, 2008, 21a ed., p. 46.

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materia es el enfoque multidisciplinario, con independencia de su propia naturaleza de pertenencia a una particular rama jurídica2.

a observação é pertinente. O direito Processual constitucional trata de questões que tem um tratamento diferenciado na disciplina tradicional, pois revelam com uma disciplina própria no campo específico da matéria em que atuam. Basta referir que, nessa nova disciplina, não se pode considerar a relação processual que forma a noção de processo para a teoria gerai que, segundo o clássico ensinamento de chiovenda, e vista como “a relação processual tem três sujeitos: o órgão jurisdicional de um lado, e de outro as partes (autor e réu)”.3 O processo destinado ao controle de constitucionalidade das normas, por sua vez, próprio do direito Processual constitucional, revela-se, na lição de Gilmar Ferreira Mendes, aurida nos próprios tribunais constitucionais alemães como um processo objetivo (objektives Veifahren), destinado, para, simplesmente, a defesa da constituição (Veifazsungsrchtsbewahrungsverfahrem),4 o que significa dizer um processo sem partes.

evidente que em se tratando de um processo que busca a defesa da constituição e dos valores nela contemplados, vista esta como a norma fundamental do sistema jurídico, não se busca tutelar, jurisdicionalmente, nenhum interesse particular que tenha sido contrariado por outrem de modo a constituir a clássica lide. busca-se a prevalência do texto constitucional e este é o único objetivo de quem atua no processo. Não havendo um interesse particular que se pretende fazer prevalecer sobre o de outro, não há, a rigor, parte processual. em uma palavra, não há lide constitucional, mas apenas um contencioso constitucional.5

em respeito ao contencioso constitucional – que é diferente do conceito de lide, insista-se – explicou louis Favoreu, em França:

lo contencioso constitucional, que se distingue de lo contencioso ordinario, es competencia exclusiva de un tribunal especialmente creado con este fin, el cual puede resolver, sin que pueda hablarse con propiedad del/itigios, por recurso directo de autoridades politicas o jurisdiccionales o, incluso, de particulares, y sus fallos tienen efecto de cosa juzgada.6

2 cf. Justicia constitucional e derecho constitucional. convergência ou convivência?, artigo publicado na Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais, que tem como direito e fundador Paulo bonavides, 2008, p. 336.3 cf Instituições de Direito Processual Civil, Vol. 1. Os conceitos fundamentais. a doutrina das ações. tradução ao vernáculo da 2a edição italiana por J. Guimarães Menegale, acompanhada de notas pelo Prof enrico tullio liebman. ed. Saraiva, 1942, p. 99.4 cf. Controle de Constitucionalidade – aspectos jurídicos e políticos, São Paulo: ed. Saraiva, 1990, p. 250.5 como reconhece Francisco eguiguren Pradi, “los tribunales constitucionales em la región andina: uma visión comparativa”, artigo inserto na obra coletiva derecho PUc, Revista de la Facultad de Derecho de la Pontifícia Uiversidad Católica de Peru, no 53, dezembro de 2000, p. 07.6 cf. “los tribunales constitucionales”, versão ao espanhol de Vicente Villacampa, ed. ariel S/a, barcelona, 1994, p. 15.

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Cobra interesse, por fim, apurar qual a denominação correta para a disciplina destinada a investigar o processo que se desenvolve a partir dos princípios constitucionais se a expressão direito Processual constitucional ou se outra denominada direito constitucional Processual e qual os limites da matéria de que tratariam.7

entre os propósitos dessa pequena abordagem sobre o tema, cuidar-se-á de apresentar um resumo da visão moderna e constitucional do processo, para, com base nela, apreciar a terminologia e o especifico objeto da disciplina e, definido este, examinar, em apertada síntese, matéria como os princípios constitucionais do processo e as ações constitucionais do controle de constitucionalidade das leis que, aparentemente, radicam no âmbito próprio de cada disciplina: direito Processual constitucional e direito constitucional Processual.

3. A visão moderna e constitucional do processoHá muito tempo ramiro Podetii havia observado que o fenômeno processual

se apresentava trifacetado e que não podia ser estudado sem ter por base os conceitos angulares da jurisdição, da ação e do processo, pois que estas noções se constituíam na base metodológica e científica do estudo da teoria e da prática do processo.8

7 a esse respeito, Paulo roberto de Gouvêa Medina, em obra que já vaia na 3a edição, denominada Direito Processual Constitucional, ed. Forense, rio de Janeiro, 2005, registra o fracionamento que é feito, em parte da doutrina, entre o direito Processual constitucional, que teria por objeto exclusivamente a matéria objeto da jurisdição constitucional enquanto o direito constitucional Processual versaria o estudo dos princípios e institutos constitucionais, para, ao depois, desferir vigorosa crítica a esse entendirnento, por não se fundar em nenhuma base metodológica segura nem apresentar nenhum interesse prático, para o que cita a obra de Willis Santiago Guerra Filho Processo Constitucional e Direito Fundamentais, celso bastos editor, São Paulo, 1999, p. 17 e nota 15 de rodapé. Nesse sentido, ivo dantas, na obra, Constituição e Processo, vol. i – introdução ao direito Processual constitucional, Juruá editora, curitiba, 2006, 1a ed., 4’ tiragem, procede a um excelente resumo dessa dicotomia, com transcrição de escólios de domingo Garcia belaunde, na colômbia; Jose alfredo baracho, no brasil; elvito a rodriguez, no Peru; Nestor Pedro Saqües, na argentina; bem como, ainda no brasil, antonio carlos de araújo cintra, ada Pellegrini Grinover e cândido r. dinamarco, em clássica obra coletiva, José Frederico Marques e José de albuquerque rocha, além do próprio Paulo bonavides, em obra já citada neste trabalho, ao cabo das transcrições, aparentemente concorda com a observação de J. J. Gomes canhotilho, para quem não se deve confundir uma disciplina – direito constitucional Processual – com outra – Direito Processual Constitucional –, pois ambas têrn objetos diferentes, com a afirmação de que o Direito constitucional Judicial (denominação que prefere a Processual). por considerar que esta última disciplina “[...] é constituída pelo conjunto de regras e princípios que regulam a posição juridico-constitucional, as tarefas, o status dos magistrados, as competências e a organização dos tribunais”, citando como obra de referência Direito Constitucional e Teoria da Constituição, ed. almedina, coirnbra, 2000, 5a ed., p. 957.8 cf. trilogia estructural de la ciencia del Proceso civil, artigo publicado na Revista de Derecho procesal, año II (1944), Primera Parte, p. 115. Por estarmos e continuarmos convencidos da correção desse entendimento, basicamente de que nenhuma noção jurisdição + ação + processo pode ser examinada nem disciplinada isoladamente, sem o concurso das demais, em face da intrínseca implicação que mantinham entre si, lastreamos nele a análise que fizemos do processo civil brasileiro em nossa modesta obra inaugural Jurisdição, ação (Defesa) e Processo, editada pela dialética, 1997, cuja obra, com o mesmo embasamento, fora reeditada em 2007, já agora pela ed. Método e sob outro nome: Teoria Geral do Processo (Jurisdição, ação (Defesa) e Processo.

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a visão moderna do processo tem de partir dessa consideração inicial, não pode ser encarada isoladamente, senão que em conjunto com as duas outras noções estruturais do fenômeno processual: jurisdição e ação. além disso, tenha-se em mira que o fenômeno processual já se libertou da antiga ideia que o limitava ao exercício da jurisdição e de que tudo que se assemelhasse ao fenômeno, mas que não se referisse à jurisdição, somente poderia ser encarado como mero procedimento.9

Modernamente, como demonstrou Odete Medauar, desde adolf Merkl, já se concluiu que a processualidade está ínsita a toda atuação estatal, em que se pode distinguir um fieri de um factum, entre o operar e o resultado dessa operação, identificando-se como um vir a ser do fenômeno, com o que ela se apresentava no exercício de cada um dos poderes: administrativo, legislativo e Judiciário e, mais ainda, também na atividade privada, particular.10 corresponde à visão constitucional do processo, como o refere a Seção Viii, do capítulo i, do título iV da cF/88, que, ao tratar da Organização dos Poderes, refere, em respeito ao Poder legislativo, precisamente no art. 59, o processo legislativo, mencionando, também, no título ii, no capítulo i, a respeito dos direitos e Garantias individuais, e, precisamente no inciso lV do art 5o, que faz expressa referência ao processo judicial ou administrativo, sabido que o processo negocial decorre do princípio pacta sunt servanda, pois, como já tinha observado Hans Kelsen, o contrato resulta das vontades concordantes que criam uma norma individual.

isso corresponde à visão constitucional do processo, como o refere à Seção Viii, do capítulo i, do título iV da cF/88, que, ao tratar da Organização dos Poderes, refere, em respeito ao Poder legislativo, precisamente no art. 59, o processo legislativo, mencionando, também, no título ii, no capítulo i, a respeito dos direitos e Garantias individuais no inciso lV do art. 5o, o processo judicial ou administrativo.11 em consequência, a nova disciplina, radicada no campo do

9 como se sabe, esse enquadramento obsoleto do fenômeno processual foi adotado, entre nós, pelo grande processualista José Frederico Marques, como se lê em Manual de Direito Processual civil. São Paulo:rt, 1986, 11 [ed., p. 10, como já se referiu em nossa modesta obra Teoria Geral do Processo (jurisdição, Ação (Defesa) e Processo, ed. dialética, p. 396 e nota 3 nesta página. Nesse sentido, Hans Kelsen já havia observado que “[...] uma ordem jurídica é um sistema de normas gerais e individuais que estão ligadas entre si pelo fato de a criação de toda norma que pertence a este sistema ser determinada por outra norma do sistema e, em última linha, pela sua norma fundamental”, como se pode ler em Teoria Pura do Direito, tradução ao vernáculo por João baptista Machado. São Paulo: Martim Fontes, 1985, p. 252, com o que o processo é encarado, na visão contemporânea, como uma técnica de criação de normas, em que se pode identificar o processo legislativo, que diz respeito ao corpo de normas preestabelecido para o processo de criação das leis – norma geral e abstrata por excelência – e dos demais processos para a criação de normas individuais, como o processo negocial, que visa à criação do contrato; o processo administrativo, que visa à criação do ato administrativo; e o processo judicial, que busca a criação da sentença. cf. op. cit., p. 397-398.10 cf. Odete Medauar Processualidade no Direito Administrativo, São Paulo: rt, 1993, p. 24.11 Sabido que o processo negocial decorre do princípio pacta sunt servanda, pois, como havia observado o mesmo Hans Kelsen, o contrato é uma norma individual que resulta da vontade das partes. cf. cf. Teoria Pura do Direito, op.cit., p. 276.

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processo judicial, tem de ser encarada a partir da interação dos três institutos básicos – jurisdição, ação e processo – para considerar-se que se trata de um processo que radica no texto constitucional e que, portanto, o estudo que se fizer das normas que a disciplinam, ainda que envolvendo dois ramos autônomos do direito – o constitucional e o Processual – está dirigido unicamente para o texto constitucional.

Sendo a natureza do processo essencialmente instrumental,12 deve-se denominar a nova disciplina como direito Processual constitucional, assim como se tem o direito Processual Penal, porque serve de instrumento para o direito Penal e o direito Processual civil, porque instrumentaliza o direito não penal, isto é, cível.

4. Conceito e breve resumo da matéria do Direito Processual Constitucional

com base nessas considerações e lastreado nos inúmeros conceitos já elaborados para essa disciplina, pode-se colaborar para a investigação científica sobre o tema por apresentar também um conceito próprio.

Parece-me que a novel disciplina, que radica na interdisciplinaridade do direito Processual e do direito constitucional, deva ser considerada como o conjunto epistemológico e sistemático dos princípios e normas constitucionais e processuais que disciplinam o fenômeno processual tratado no texto constitucional. conjunto porque os princípios e métodos formam um sistema, com unidade e ordem, obedecendo a uma metodologia e, por isso, epistemológico, dos princípios, pois norteiam o sistema e estruturam a metodologia científica da disciplina e, por fim, que disciplinam o fenômeno processual tratado no texto constitucional.

Partindo desse conceito, pode-se, para atender-se ao propósito deste trabalho, proceder-se a um breve resumo de dois temas de que trata a disciplina do direito Processual constitucional, com o que se revela que a postura adotada pode ser identificada como integrante da corrente doutrinária apontada por eduardo Ferrer Mac Gregor, como mista porque também entende que essa novel disciplina assenta em conceitos, métodos e estrutura do direito constitucional e do direito Processual.13 Refiro-me aos princípios constitucionais do processo em que se percebe a predominância do texto constitucional por ter por objeto a imposição sistemática dos valores humanos contemplados na constituição sobre a processualidade em geral e ao processo do controle de constitucionalidade das leis que se refere, exclusivamente, a instrumentalidade da jurisdição constitucional.

12 como demonstrou cândido rangel dinamarco, A instrumentalidade do Processo, ed. Malheiros, 1993, 3a ed. revista e atualizada.13 cf. Op.cit., p. 336.

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4.1. resumo dos princípios constitucionais do processo4.1.1. Valor sistemático dos princípios

tem-se insistido na importância dos princípios como elementos indissociáveis à ideia de sistema porque, como acentuou Kant, na definição clássica: “sistema é a unidade, sob uma ideia, de conhecimentos diversos ou, se se quiser, a ordenação de várias realidades em função de pontos de vista unitário”.14

Os princípios são indispensáveis à noção de sistema porque, como demonstrado por celso antônio bandeira de Mello, são mandamentos nucleares de um sistema,15 ainda que se considere que o sistema jurídico não atua dentro de um sistema adstrito à lógica formal, pois, como demonstra o mesmo antônio Menezes cordeiro, “[...] a unidade interna do sentido do direito, que opera para o erguer em sistema, não corresponde a uma derivação da idéia de justiça do tipo lógico, mas antes de tipo valorativo ou axiológico”.16 em uma palavra, tem-se que os princípios são indispensáveis à noção de sistema e que o sistema jurídico não repousa em uma concepção lógico formal, senão que em um entendimento da lógica del humano e del razonable, como acentua, com propriedade, recanses Siches.17

4.1.2. Sumário crítico dos princípios gerais4.1.2.1. Princípios formativos do processo

O tema dos princípios constitucionais gerais do processo já foram abordados entre nós, profusamente, pelos mais importantes processualistas e, por não ser matéria inédita, se tratará, nessa abordagem, de condensar o que de melhor se escreveu a respeito.

começo por referir àqueles princípios que, segundo cândido rangel dinamarco, estão previstos expressamente no texto constitucional e, por sua importância, devem prevalecer sobre toda a espécie de processo: civil, Penal, trabalhista, Jurisdicional ou não, apontando-os como o devido processo legal, o

14 O escólio de Kant foi referido por A. Menezes Cordeiro, na excelente introdução que fizera da obra de claus Williem canaris Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito à edição portuguesa, publicada pela Fundação calouste Gulbenkhian, lisboa, 1996, 2a ed., p. lXiV.15 O conceito completo, formulado por celso antônio bandeira de Melo é: princípio e mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, dispositivo fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a 1ógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. acrescentando, em seguida: É o conhecimento dos princípios que preside o intelecto das diferentes partes componentes do todo unitário que dá por nome sistema jurídico positivo. cf. Curso de Direito Administrativo, ed. Malheiros, São Paulo, 1993, 4’ ed. revista, ampliada e atualizada, p. 408/409. O acréscimo posto em ressalto revela a importância dos princípios para a compreensão do sistema jurídico, como defendido no texto. 16 cf. Op.cit., p. 1617 cf. Tratado General de Filosofía del Derecho, ed. Porrúa, 1981, 2a ed. Mexico, p. 627 e s.

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da inafastabilidade do controle jurisdicional, o da igualdade, da liberdade. do contraditório e ampla defesa, o do juiz natural e o da publicidade. incluem-se, ainda, o princípio do duplo grau de jurisdição, o princípio da motivação das decisões judiciárias, que, na verdade, se insere no princípio anterior.18

estes princípios, que serão objeto da análise sumária que se seguirá se ajusta à classificação de Mancini e Manfredini, resumidos por José da Silva Pacheco como decomposto em

a) princípio lógico, conforme o qual dever-se-ia selecionar os mais aptos e rápidos meios de perquirir e descobrir a verdade e de evitar o erro; b) princípio jurídico, que impele a igualdade no direito e justiça na decisão; c) princípio político, de que decorre dar ao processo a máxima garantia social, com o mínimo de sacrifício individual de liberdade; d) principio econômico, pelo qual não devem os processos ser onerados com gravosas taxas ou despesas, nem com a demora, a fim de não se tornar privilégio dos ricos.19

Os ajustes dos princípios constitucionais gerais aos princípios gerais do direito Processual serão observados no exame sumário que se procede a seguir.

4.1.2.2. Princípios gerais do processo

a) Inafastabilidade do controle jurisdicional: interesse legítimo e direito subjetivoentre os princípios constitucionais do processo que se amoldam aos

princípios gerais se revela como o mais importante o da inafastabilidade do controle jurisdicional que se ajusta ao principio político, no sentido de que o processo se identifica como o acesso à justiça e, por isso, recebe a maior garantia social, com o mínimo de restrição individual de liberdade.

tem sua matriz no art 5o, XXXV da cF/88, pois, embora tal dispositivo seja visto como fundamento do direito de ação, se revela, também, como garantia constitucional de submeter, por meio do processo, qualquer lesão ou ameaça de direito à apreciação do Poder Judiciário para que se possa efetuar a tutela jurisdicional.

Muito embora o dispositivo constitucional esteja expresso em formula que, aparentemente, exclui dessa proteção os estrangeiros não residentes no país – afinal, o caput do dispositivo soa: “Art. 5o Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país (Grifos nossos) – a interpretação correta reconhece que, em se tratando 18 cf. Instituições de Direito Processual Civil, vol. i, ed. Malheiros. São Paulo, 2004, 4a ed. Revista atualizada e como remissões do novo Código Civil de 2002, p. 197.19 cf. José da Silva Pacheco, Curso de Teoria Geral do Processo. rio de janeiro: ed. Forense, 1985, p. 2.

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de direito fundamental que, como se sabe, se lastreia no princípio da dignidade da pessoa humana.

Evidentemente, não pode ficar limitada aos nacionais, por ser reconhecido ao ser humano em geral, o que, naturalmente, inclui os estrangeiros. Significa dizer: apesar da redação da garantia constitucional, que o direito de acesso à justiça e, em consequência, aos tribunais pátrios é reconhecido aos estrangeiros, ainda que não residentes no país.20 além disso, o princípio há de ser encarado de maneira ampla, não restrito ou limitado a quem demonstrar previamente ter um direito subjetivo. todos têm o direito subjetivo de ter acesso aos tribunais para alegar a existência de um direito subjetivo ou apenas de um interesse legitimo.21

b) Juiz naturalO principio do juiz natural que NelSON NerY JúNiOr prefere enunciar

como principio do juiz e promotor natural se apresenta de forma tridimensional, por significar que: 1) não haverá juízo ou tribunal ad hoc, isto e, tribunal de exceção; 2) todos têm o direito de submeter-se a julgamento (civil ou penal) por juiz competente, pre-constituído na forma da lei; 3) 0 juiz competente deve ser imparcial22.

c) Igualdade das partes e as prerrogativas do EstadoPrincípio constitucional recorrente do processo é o da igualdade das partes,

encontra-se contemplado no próprio texto infraconstitucional, precisamente no art 125, i, do cPc quando expressamente se estabelece que o juiz tem o poder dever de dirigir o processo para assegurar às partes igualdade de tratamento, que ada PelleGriNi GriNOVer revela tratar-se de princípio que pode ser visto sob duplo aspecto: meramente formal, que se contrapõe ao outro aspecto da igualdade

20 Nesse sentido, Gilmar Ferreira Mendes observa, ao apreciar o tema dos direitos fundamentais em respeito a estrangeiros: “Há, portanto, direitos que se assseguram a todos, independentemente da nacionalidade do indivíduo, porquanto são considerados emanações necessárias do princípio da dignidade humana” (Grifos nossos), como se pode ler em Curso de Direito Constitucional, op.cit., p. 273.21 cândido rangel dinamarco acentua, com precisão, que “O tema de distinção entre meros interesses w direitos subjetivos é muito versado nos países em que existe o contencioso administrativo, porque ali a justiça administrativa é competente para decidir sobre esses interesses, ficando os direitos subjetivos a cargo dos juízes integrantes do Poder Judiciário, ou da magistratura. No brasil, em que vige o sistema da jurisdição una, a garantia constitucional do controle jurisdicional abrange uns e outros porque, com contrário, o titular de meros interesses ficaria desprovido de qualquer tutela jurisdicional relativamente a estes – o que não ocorre lá onde existe o contencioso administrativo”. cf. Instituições de Direito Processual Civil, vol. i, op.cit., p. 203. Nesse sentido, também enrico tullio liebman, Manual de Direito Processual, vol. i, op.cit., p.23.22 cf. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. São Paulo: rt, 2004, 8a ed. revista, atualizada e ampliada, p. 97. Muito embora ainda haja certa discussão em respeito à existência ou não do princípio do promotor natural, Marcelo Navarro Ribeiro Dantas deu notável contribuição no sentido de afirmá-lo. Cf. Princípio do Promotor natural (ensaio recomendado para concurso público). edições Podivm, Salvador, 2004.

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material, ou mais precisamente, há uma dimensão estática e uma outra dinâmica, para concluir:

Na dimensão estática, o axioma de que todos são iguais perante a lei (grifos do original) parece configurar, como foi argutamente observado, mera ficção jurídica, no sentido de que é evidente que todos são desiguais, mas essa patente desigualdade é recusada pelo legislador. a isonomia supera, assim, as desigualdades, para afirmar uma igualdade puramente jurídica. Na dimensão dinâmica, porém, verifica-se caber ao estado suprir as desigualdades para transformá-las em igualdade real.23

Nesse sentido, aconselha-se que o juiz exerça um papel pró-ativo para assegurar essa igualdade dinâmica, fugindo do papel clássico que o queria estático, inerte, por caber-lhe o dever constitucional de garantir um processo justo, o que somente pode ocorrer se for garantido o par condicio, ou seja, a igualdade real de arma, no processo, ainda que, para isso, a equidistância do juiz seja adequadamente temperada.24

O conteúdo do princípio de igualdade, segundo Nelson Nery Júnior, significa que os litigantes devem receber do juiz tratamento idêntico. Isso não significa, porém, como sustenta alguma doutrina, que é inconstitucional a prerrogativa de contagem de prazo diferenciado para a Fazenda Pública, considerada pelos autores que defendem essa postura como um privilégio inaceitável. como esse mesmo autor reconhece em seguida: “[...] O que o princípio constitucional quer significar e a proteção da igualdade substancial, e não a isonomia meramente formal.25

em síntese, o benefício dos prazos a determinados entes públicos, previstos no art. 188 do cPc, não se revela como um privilégio odioso e, por isso, inconstitucional por agredir ao princípio da isonomia. antes, apresenta-se como uma prerrogativa própria desses entes, justificada – apenas e tão-somente – quando servem de instrumento para a satisfação do interesse público que esses entes corporificam.

23 cf. Novas Tendências do Direito processual Civil (de acordo com a constituição de 1988). rio de janeiro: Forense Universitária, 1990, p. 6. 24 idem, ibidem, p. 7. 25 cf. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal, op.cit., p. 72. Nesse sentido, José de albuquerque rocha observa que os entes favorecidos no caput do art. 188 do cPc não podem estar em pé de igualdade substancial com o particular, em razão do interesse público que encarnam, daí porque se observa, com propriedade: “comprovado que estado e sujeitos privados são diferentes, seja quanto à estrutura, seja quanto à função, o passo seguinte é ver qual a finalidade a que servem os instrumentos jurídicos colocados à disposição do Estado no processo, e que constituem o objeto do tratamento desigual de que se beneficia, relativamente às partes privadas. Ou seja, trata-se de investigar qual a finalidade dos benefícios concedidos ao Estado em juízo. Depois de tudo quanto foi dito sobre as atividades do Estado, evidentemente, não há a menor dificuldade em identificar a finalidade do tratamento desigual que lhe é outorgado em juízo: sucintamente, podemos dizer que a finalidade do tratamento normativo desigual dispensado ao Estado em juízo è a realização (Grifo do original) dos interesses públicos que lhe incumbe promover, no processo e fora dele, por expresso mandamento constitucional. Quer dizer, o trato normativo desigual dispensado ao estado é um instrumento que lhe é atribuído para que possa realizar (grifo do original) o interesse publico de que e portador o defensor”. cf. Estudos sobre o Poder Judiciário, São Paulo: ed. Malheiros, 1995, p. 172.

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d) Contraditório:I – Contraditório e as partes

O contraditório é outro princípio constitucional geral do processo. encontra-se previsto no art. 5o, lV, da cF/88 – “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.” (Grifos nossos) como se vê, refere-se, expressamente, ao exercício do direito de defesa.

O contraditório se desdobra em dois momentos: a informação necessária e a reação possível.26 esse princípio decorre de outro, mais amplo, o princípio do devido processo legal due process of law – também resumido a seguir, em razão do que a jurisprudência pátria tem reconhecido que, considerado em sua amplitude, se tomaria desnecessário qualquer acréscimo, ou seja, a inclusão expressa de qualquer outro princípio.

tudo já estaria implicitamente previsto nessa cláusula geral, pelo que já se enumeraram as garantia constitucionais que decorrem dele, a saber:

1o – direito à citação e ao conhecimento do teor da acusação; 2o – direito a um julgamento público e rápido; 3o – direito ao arrolamento de testemunhas e II notificação delas para comparecimento perante os tribunais; 4o – direito ao procedimento contraditório; 5o – direito de não se processado, julgado ou condenado por alegada infração às leis ex post facto, ou seja, com base em lei posterior ao fato que é imputado ao acusado; 6o – direito à plena igualdade entre acusação e defesa; 7o – direito contra medidas ilegais de busca e apreensão; 8o – direito de não ser acusado nem condenado com base em provas ilegalmente obtidas; 9o – direito à assistência judiciária, inclusive gratuita; e, finalmente, 10o – privilégio contra a autoincriminação.27

Acrescente-se, apenas, que não basta garantir-se a notificação das testemunhas para que compareçam ao tribunal. Não basta, também, que se considere indispensável ao atendimento desse princípio a efetiva oitiva da testemunha nem a garantia da produção das provas alegadas para a defesa. essa garantia se tornaria inútil – como um frasco de perfume vazio se, a despeito de tudo isso, o julgamento se fizesse sem nenhuma apreciação das provas produzidas, sem nenhuma argumentação precisa a respeito delas, para aceitá-las ou rejeitá-las, expressamente. Afinal, como demonstrou cândido rangel dinamarco, o contraditório impõe que se garanta às partes o exercício do poder de pedir, alegar e de provar,28 sendo certo, também, que

26 cf. ada Pellegrini Grinover. Novas Tendências do Direito Processual. Op. cit., p. 4.27 cf. Nelson Nery júnior, Princípios do Processo Civil na Constituição Federal, 8a ed., op. cit., p. 70.28 cf. Instituições de Direito Processual Civil, vol. i, op. cit., p. 216 e s.

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o magistrado está obrigado, na fundamentação, a apreciar todas as questões e as questões todas.29

II – O contraditório no processo de execuçãoelio Fazzalari observou, com propriedade, que o processo é um

procedimento com contraditório.30 Se assim o é – e, sem dúvida, é assim –, não se pode conceber a existência de um processo sem a existência de um contraditório. Não se pode, pois, imaginar que o processo de execução, por ser um processo de sujeição, pois somente tem lugar a partir de um título executivo judicial ou extrajudicial e que, por isso, não se destina a provocar um contraditório,31 não se desenvolva por meio de um procedimento em que se respeite o contraditório.

cândido dinamarco demonstrou que existe instrução em todo processo porque não se deve identificar a instrução com a fase probatória, que certamente não existe no processo de execução e em muitos outros processos, mas sim com a preparação. Instruir não se confunde com provar, pois, como afirma, instruir é preparar.32

Nessas condições, forçoso reconhecer que existe, sim, um contraditório no processo de execução, limitado aos atos preparatórios da satisfação do direito já previamente reconhecido, em procedimento que deve se desenvolver sempre com a oitiva da parte contrária.

29 Nesse sentido, Frederico Marques faz alusão ao art. 458, iii do cPc – o juiz resolverá as questões que as partes lhe submeterem – para explicar que elas se apresentam como capítulos da sentença, que define como questões preliminares que o juiz deve apreciar a fim de decidir sobre a admissibilidade da tutela jurisdicional, assim como as preliminares de mérito, as questões prejudiciais, e cada um dos pedidos cumulados em simultaneus processus. cândido dinamarco prefere considerar os capítulos da sentença como “unidades autônomas do decisório da sentença”. cf. Capítulos da Sentença, São Paulo: ed. Malheiros, 2002, p. 35. impõe-se considerar, pois, que havendo sido respeitado o contraditório, os argumentos e provas trazidos pelas partes deverão ser apreciados como unidade autônoma, sendo que não haveria contraditório.30 escreveu, precisamente: [...] il “proceso” è un procedimento in cui partecipano (sono abilitati a participare) colloro nella cui sfera giuridica l’atto finale è destinato a svolgere effetti: in contraddittori, e in modo che l’autore dell’ato non possa obliterare le loro attività. cf. Istituzioni di Diritto Processuale, cedam, Padova, 1996, 8a edição, p. 82.31 Basta observar que o art. 213 do CPC define citação, no processo de conhecimento, como o ato pelo qual se chama a juízo o réu ou o interessado a fim de se defender, enquanto, no processo de execução e no mesmo CPC, a citação é definida, no art. 652 do mesmo CPC, no sentido de que o devedor será citado para, no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, pagar ou nomear bens á penhora. como se vê, a citação não se destina a provocar o contraditório.32 cf. Execução Civil. São Paulo: ed. Malheiros, 1993, 3a ed., p. 1666.

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III – Contraditório e tutela coletivaO contraditório remete à legitimatio ad causam, à eficácia da sentença

e aos limites da coisa julgada, que consagram o acendrado individualismo, tais restrições, no entanto, vem sendo limitadas ultimamente, como demonstra obras recentes.33

Propõe-se que tais institutos sejam substituídos pela concepção da legitimidade adequada e que se considere que os efeitos da sentença e a autoridade da coisa julgada se projetem além dos próprios sujeitos que, nesses casos, figuram como autores, para atingir os integrantes do grupo ou comunidade substituída no processo pelo autor.34 de consequência, não se admite qualquer ofensa ao princípio do contraditório quando, nesses processos, se promove a extensão dos efeitos do provimento jurisdicional a quem não atuou pessoalmente no processo.

IV – Contraditório e atuação do juizEntende-se, também, que embora a garantia do contraditório beneficie as

partes se dirige diretamente ao juiz por ser ele o único que, na relação processual, tem poderes, sendo estes, na verdade, poderes-deveres, como bem estabelece o art 125 do cPc, que lhe impõe, no inciso i, assegurar as partes igualdade de tratamento.

Na concepção moderna do processo, como observa ada Pellegrini Grinover, a visão do contraditório é “menos individualista e mais dinâmica [...] postula a necessidade de a eqüidistância do juiz ser adequadamente temperada, mercê da atribuição ao magistrado de poderes mais amplos, a fim de estimular a efetiva participação das partes no contraditório e, consequentemente, sua colaboração e cooperação no justo processo”.35

V – Liberdade das partes e o princípio inquisitórioJá se disse que o princípio do contraditório beneficia as partes, embora

também seja dirigido ao juiz, por haver-se imputado a ele a responsabilidade maior de observá-lo no processo. acrescente-se, mais, que em respeito às partes, que essa garantia busca estabelecer para ela (as partes) a liberdade de atuar no processo, reconhecendo-lhe que, tanto em respeito ao autor como ao réu – porque ambos 33 Refiro-me à obra de Teoria Albino Zavascky, “Processo Coletivo – tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos e de Gregório assagra de almeida, Direito Processual Coletivo Brasileiro – um novo ramo do direito processual. São Paulo: ed. Saraiva, 2003, p. 88, entre outras obras.34 cf. Instituições de Direito Processual Civil, vol. i, op.cit., p. 220.35 Para o que cita comoglio, na obra La garantia costituzionale dell’azione ed il processo civile, Pádua, 1970, p. 142. cf. Novas Tendências do Direito processual, op.cit., p. 7.

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são partes e não se faz nenhuma distinção processual nesse particular – o exercício de pedir, alegar e provar.36

cândido dinamarco descreve a atuação das partes no processo, em respeito ao contraditório, como sendo “criticamente necessária para a defesa dos direitos em juízo quando surge algum ato contrário ao interesse do sujeito”. diz-se então que o contraditório se exerce mediante reação aos atos desfavoráveis – quer eles venham da parte contrária ou do juiz: reage-se à demanda inicial contestando – e à sentença adversa, recorrendo37.

VI – O duplo grau de jurisdiçãoivo dantas explicou que muito embora houvesse sinais do princípio do

duplo grau de jurisdição na antiga roma foi com a revolução Francesa que ganhou foros de cidadania como uma evolução natural à postura inicial do movimento no sentido de aboli-lo por se considerar que os tribunais configuravam uma espécie de aristocracia judiciária. revela que o tema tem sido alvo de muita discussão, havendo quem os negue e que os afirme, enquanto, em termos legislativos, registra-se tão-somente a turquia como país que adota um único grau de jurisdição.38

Nelson Nery Junior, porém, havia anotado que muito embora a primeira constituição brasileira (a do império, de 1824) houvesse recepcionado o princípio expressamente previsto no art. 158, não havia sido rigorosamente recepcionado no texto de nenhuma constituição que lhe seguiu, contentando-se em mencionar a existência de tribunais, para fixar-lhes a competência, sem qualquer referência a esse princípio como uma garantia constitucional ampla.39

acrescenta que embora a diferença seja sutil, é bastante para concluir-se que

36 A afirmação é de Cândido Dinamarco, cf. Instituições de Direito Processual Civil, op.cit., vol. i, p. 216. Penso, no entanto, com todo respeito ao eminente processualista, que cabe uma restrição técnica em respeito ao pedido porque, no processo de conhecimento, somente o autor pede e o réu resiste, não formulando, tecnicamente, nenhum pedido, exceto quando se torna autor, na reconvenção ou nas chamadas ações dúplices. No processo de conhecimento, como se sabe, onde se discute a procedência de uma pretensão, que lhe constitui o mérito, somente o autor exercita a pretensão, o réu somente resiste a ela. O autor pede, o réu não pede, ainda que ambos postulem a mesma coisa: uma prestação jurisdicional justa. tem-se, então, que o réu, tecnicamente, não pede nada. O réu requer.37 cf. Instituições de Direito Processual Civil. Op.cit., vol. i, p. 217.38 cf. Constituição e Processo, vol. i – introdução ao direito Processual constitucional – curitiba: Juruá editora, 2006, 1a ed., 3a tiragem, p. 178.39 O dispositivo era assim expresso: “Para julgar as causas em segunda e última instância haverá nas províncias do Império as Relações, que forem necessárias para commodidade dos Povos”. Manteve-se a grafia da época. cf. Hilton lobo campanhole e adriano campanhole, Constituições Brasileiras, São Paulo: ed. atlas S ed. atlas Sa, 1998, 4a ed., p. 829.

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não havendo garantia constitucional do duplo grau, mas mera previsão, o legislador infraconstitucional pode limitar o direito do recurso, dizendo, por exemplo, não caber apelação nas execuções fiscais de valor igual ou inferior a 50 OtNs (art. 34, da lei no 6.830/80) e nas causas, de qualquer natureza, nas mesmas condições, que forem julgadas pela Justiça Federal (art. 4o, da lei no 6.825/1980), ou, ainda, não caber recurso dos despachos (art. 504, cPc).40

após analisar, com cuidado de sempre, os vários dispositivos que demonstram não haver a garantia de um duplo grau de jurisdição, acrescenta, já na 8a edição de sua obra, em comento ao artigo da convenção interamericana de direitos Humanos (Pacto de San Jose da costa rica), de 22/11/1969, de que o brasil é signatário, de que o duplo grau de jurisdição foi adotado como garantia constitucional, mas precisamente como um direito de o réu, no processo penal, interpor recurso de apelação, não lhe parecendo, no entanto, à míngua de dispositivo expresso a respeito, de que exista tal garantia, em sentido absoluto, no direito Processual civil ou do trabalho.41

Cândido Dinamarco, ao revés, afirma que a CF/88, ao promover clara opção pela possibilidade de recursos contra as decisões judiciais, conclusão a que chega fundado em três argumentos: 1o – estabelecimento dos tribunais de superposição para o julgamento do recurso ordinário, do extraordinário e do especial; 2o – ao dispor sobre os recursos a serem endereçados aos tribunais integrantes da Justiça da União StM, tSt, tSe e trF, ao que acrescento o Superior tribunal de Justiça bem como ao prever órgãos inferiores e superiores nas Justiças estaduais, teria consagrado “[...] o que ordinariamente se denomina princípio do duplo grau de jurisdição”.42

Nenhuma dúvida pode existir quanto ao recepcionamento do princípio entre nós. realmente ele se encontra consagrado implicitamente no texto constitucional, quando se refere à possibilidade de recorrer-se das decisões judiciais, como observou calmon de Passos:

devido processo constitucional jurisdicional, cumpre esclarecer, para evitar sofismas e distorções maliciosas, não é sinônimo de formalismo, nem culto da forma pela forma, do rito pelo rito, sim um complexo de garantais mínimas contra o subjetivismo e o arbítrio dos que tem poder de decidir. exige-se, sem que seja admissível qualquer exceção, a prévia instituição e definição da competência daqueles a quem se atribua o poder de decidir o caso concreto (juiz natural), a bilateralidade da audiência (ninguém pode sofrer restrição.em seu patrimônio ou em

40 cf.Princípios do Processo Civil na Constituição. Op.cit., p. 163.41 cf. Op.cit., p. 213-214.42 cf. Instituições de Direito Processual Civil, vol. i, op.cit., p. 237.

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sua liberdade sem previamente ser ouvido e ter o direito de oferecer suas razões) a publicidade (eliminação de todo procedimento secreto e da inacessibilidade ao publico interessado de todos os atos praticados no processo), a fundamentação das decisões (para permitir a avaliação objetiva e crítica da avaliação do decisor) e o controle dessa decisão (possibilitando-se. sempre. a correção da ilegalidade praticada pelo decisor e sua responsabilização pelos erros inescusáveis que cometer). (Grifos nossos).43

este não é, porém, um princípio absoluto, nem se revela como uma garantia constitucional.44 em consequência, ainda que não se tenha superado as inúmeras críticas deferidas quanto ao princípio, mais precisamente em respeito, à obrigatoriedade e ao cabimento do recurso, em tese: dificuldade do acesso à justiça, desprestígio da primeira instância, quebra de unidade do poder jurisdicional, insegurança, afastamento da verdade (mais próxima da real) e inutilidade do procedimento oral, pelo que se tem reconhecido a importância do princípio, insiste-se que não se apresenta como uma garantia constitucional porque nossa carta apenas o refere, mas não o garante. em consequência, como se trata de um princípio que pode ser contraposto por outro princípio, impondo-se reconhecer que haja exceções ao princípio, pelo que pode o legislador infraconstitucional restringir ou até eliminar recursos em casos específicos, como é a hipótese do art. 504 do cPc, que proíbe recurso contra despacho (antigamente se dizia contra despacho de mero expediente).45

VII – Motivação das decisões judiciaiseste princípio, albergado no art. 93, iX da cF/88, nunca teve sabor de

novidade em nossa processualística. desde as Ordenações Portuguesas, herdadas dos colonizadores e aqui aplicadas, mesmo depois da independência, mais precisamente do livro iii das Ordenações Filipinas, havia-se estabelecido, no título lXVi, dedicado às Sentenças definitivas, mais precisamente no item 7, seguinte:

43 cf. “direito, poder, justiça e processo (julgando os que nos julgam”. ed. Forense, rio de Janeiro, 1999, p. 69).44 como se sabe, a doutrina se esforça por estabelecer um discrímen entre os princípios e as garantias processuais, ronnie Press duarte, por exemplo, procede a um excelente resumo a respeito, ao esclarecer que o vocábulo princípio, na acepção liberal, não revela nenhuma força vinculante, tendo canaris observado que “Os princípios necessitam, antes, ser ‘normativamente consolidados’ ou ‘normatizados’ (para que cita a obra Sustem denkern und Systembegrif in der Jurisprudenz, traduzida ao vernáculo por antonio Menezes cordeiro, também citada neste trabalho), pelo que “[...] não fazem nascer, na esfera jurídica de qualquer sujeito direito subjetivo algum”, enquanto “o emprego do termo ‘garantia’ traz consigo uma dimensão subjetiva própria, a qual não é passível de verificação nos princípios constitucionais em sentido estrito”. Cf. Garantia de Acesso à Justiça (Os direitos processuais fundamentais), coimbra editora, 2007, p. 90-91.45 cf. Fredie didier Jr. e leonardo carneiro da cunha, Curso de Direito Processual Civil, vol. 3, edições Podivum, 2006, p. 18-25.

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e, para as partes saberem se lhes convém appelar, ou aggravar das sentenças definitivas, ou vir embargos a ellas, e os juizes de mor alçada entenderem melhor os fundamentos, por que os juizes inferiores se movem a condenar, ou absolver, mandamos que todos nossos desembargadores, e quaesquer outros julgadores, ora sejam letrados, ora não o sejam, declarem specificadamente em suas sentenças definitivas, assim na primeira instancia, como no caso de appelação, ou aggravo, ou revista, as causas, em que se fundaram a condenar, ou absolver, ou a confirmar, ou a revogar (Grifos nossos).46

Observa-se que se a motivação da exigência da fundamentação das decisões judiciais decorria, como se percebe, do escólio transcrito das Ordenações Filipinas, da necessidade de as partes examinarem a conveniência ou não de recorrerem e de os julgadores para quem eventualmente se recorria pudessem apreciar a justeza da decisão e, se fosse o caso, reformá-la, ganhou maior dimensão no estado de Direito. Passou a significar a necessidade de justificarem-se, previamente, as razões por que se decidiu de determinada maneira e não de outra.

cândido dinamarco explica, mesmo, quePara cumprir seu objetivo e atender as exigências da constituição e da lei, a motivação deve ser tal que traga ao leitor a sensação de que o juiz decidiu de determinado modo porque assim impunham os fundamentos adotados, mas decidiria diferentemente se tivesse adotado outros fundamentos – seja no exame da prova, seja na interpretação do sistema jurídico.

Penso, pois, que esse princípio se revela como indispensável à legitimação do poder exercido pelo magistrado. diferentemente dos outros agentes políticos que têm legitimação a priori para o exercício do poder, que decorre do fato de haverem sido prévia e periodicamente eleitos para o exercício de cargos públicos, os magistrados não são – nem devem – ser eleitos, mas são obrigados a justificarem, a posteriori, mercê da indispensável fundamentação de todas as decisões que proferem, pois que todas as decisões que proferem são legitimas porque, com base nos fundamentos apresentados, outra não poderia ser proferida na hipótese. acrescente-se que, como bem observado pelo mesmo cândido dinamarco, há de se exigir coerência na motivação, no sentido de que esta deve ater-se às razoes do convencimento, identificando-as cada uma de per si – o texto das Ordenações se refere às causas – e não se limitar a alegações genéricas como os célebres “atendidas as exigências de lei (sem dizer quais eram), concedo a liminar, pelo que tal motivação e nenhuma, em consequencia, é nula. além disso – insiste o autor –, a motivação deve ser completa, no sentido de que não deve omitir a apreciação de pontos cuja solução poderia conduzir o decisor a pronunciar-se de modo diverso.47

46 cf. Ordenações Filipinas – livros ii e iii – Fundação calouste Gulbenkhian, reprodução “fac-símile” da edição feita por cândido Mendes de almeida, rio de janeiro, 1870, lisboa, 1985, p. 669.47 cf. Instituições de Direito Processual Civil, vol. i, op.cit., p. 243.

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4.1.3. O devido processo legal

Qualquer apreciação dos princípios gerais do processo, contemplados no texto constitucional, seria incompleta, ainda que se examinassem em breves considerações como na hipótese, sem que se mencionasse, sumariamente, o princípio maior do devido processo legal, justificadamente considerado como a base sobre a qual todos os demais se sustentam.48

Muito antes de serem recepcionadas, do atual texto constitucional, a doutrina e a jurisprudência brasileira já havia, parcimoniosa e expressamente, construído doutrina a respeito deste princípio, identificando-o, implicitamente, na garantia de direito de acesso à jurisdição expresso no direito de ação, na célebre fórmula com que foi inserido desde o texto constitucional de 1946, mantido desde então, ainda que com importantes aperfeiçoamentos: a lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário, lesão (acrescentou-se, depois, ameaça) a direito individual (restringiu-se, depois, apenas a direito). como se sabe, o dispositivo constitucional – no art. 5o, liV – soa: “Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” (tradução ao pé da letra da expressão inglesa: “due process of law”), sendo certo que Nelson Nery Junior observou que a fórmula adotada, bem resume o conteúdo genérico do princípio, caracterizado pelo trinômio vida–liberdade–propriedade.49

Muito se tem escrito a respeito desse princípio, inclusive para distinguir o substancial due process of law do procedural due process of law, mas, para atender às pretensões deste trabalho, limito-me a reproduzir as observações procedidas por carlos Mario Velloso, ex-presidente do StF, em artigo sucinto a respeito do tema, quando assinalou, de modo conciso e exato, a distinção entre o chamado devido processo legal substantivo – ou substantive due process of law – e o devido processo legal processual – ou procedural due process:

Due process of law, com conteúdo substantivo, estabelece limite ao Poder legislativo, no sentido de que as leis devem ser elaboradas com justiça e, devem ser razoáveis, devem guardar segundo o juiz O. W. Holmes, um real e substancial nexo com o objetivo que se quer atingir, sob pena de incorrer em inconstitucionalidade. Paralelamente, due process of law com caráter processual (ou procedural due process of law, acrescento),

48 cf. Nelson Nery Júnior, Princípios do Processo Civil na Constituição Federal, op.cit., p. 28. Nesse sentido, ivo dantas, Constituição e Processo (introdução no direito Processual civil, op.cit., p. 165).49 A esse respeito, Ada Pellegrini Grinover já havia feito referência, na justificativa que apresentara à “Proposta à constituinte: Princípios Fundamentais e declarações de direito: “Nas garantias do ‘devido processo legal’”, cuidou-se de transpor para o texto constitucional os princípios que a doutrina e a jurisprudência construíram à luz das Constituições anteriores (o texto original não se encontra grifado). O referido trabalho se encontra inserto na obra Novas Tendências do Direito Processual Civil (de acordo com a constituição de 1988). rio de Janeiro: Forense universitária, 1990, 2a ed., p. 391.

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garante às pessoas um procedimento judicial (e também administrativo, acréscimo do original) justo, com o direito de defesa.50

Não se poderia, também, deixar de transcrever precioso resumo das cláusulas do devido processo legal, sob o aspecto processual – ou o procedural due process – no processo americano, procedido por Nelson Nery Junior, quando esse autor esclarece que a obediência esse princípio importa reconhecer o dever de propiciar ao litigante:

a) comunicação adequada sobre a recomendação ou base da ação governamental (que me parece corresponder à citação e à intimação);b) Um juiz imparcial (o que me parece ínsito a cláusula do juiz natural, pois corresponde a exigência, própria deste princípio de que todos tem o direito de exigir submeter-se a julgamento {civil ou penal} por juiz competente, pré-constituído na forma da lei;c) a oportunidade de deduzir defesa oral perante o juiz (o que corresponde ao nosso principio de ampla defesa);d) a oportunidade de apresentar provas ao juiz (o que corresponde ao nosso principio do contraditório, como já visto);e) a chance de reperguntar as testemunhas e de contraditar as provas que forem utilizadas contra o litigante (correspondente ao nosso principio do contraditório, já visto);f) O direito de ter um defensor no processo perante o juiz ou tribunal (o que corresponde ao princípio do contraditório, também já visto);g) uma decisão fundamentada, com base no que consta dos autos (o que corresponde ao nosso princípio do dever de fundamentar as decisões, já anteriormente apreciado e se harmoniza, também, com o art. 131 do nosso cPc).

acrescenta-se, ainda:a) O direito ao processo com a necessidade de haver provas;b) O direito de publicar-se e estabelecer-se conferência preliminar sobre as provas que serão produzidas;c) O direito a uma audiência pública;

50 cf. devido Processo legal e acesso à Justiça, Revista Prática Jurídica, ano Viii, no 83, fev./2009, p. 49. esse autor faz remissão a diversas obras de muitos outros autores, na nota 2 ao pé desta página: Vigoritti, Vincenzo, Garanzie del processo civile, Milano, dott. a. Giuffrè, ed. 1973; SiQUeira caStrO, carlos roberto de. O Devido Processo Legal e a Razoabilidade das Leis na Nova Constituição do Brasil, Forense, 1990; baracHO, José alfredo de oliveira. Processo Constitucional, Forense; rOSaS, roberto. Direito Processual Constitucional, rt; barbOSa MOreira, José carlos. Tendências Contemporâneas do Direito Processual Civil, p. 31-99. Temas do Direito Processual, Saraiva, 1994; baracHO, José alfredo de Oliveira. A Interpretação dos Direitos Fundamentais na Suprema Corte dos EUA e no supremo Tribunal Federal, Jurisdição Constitucional dos Direitos Fundamentais, del rey, 2003; SaMPaiO, José adércio leite (coordenador). O retorno às tradições: a razoabilidade como parâmetro constitucional, nesta última obra citada.

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d) O direito a transcrição dos atos processuais;e) Julgamento pelo tribunal do Júri;f) O ônus da prova, que o governo deve suportar mais acentuadamente do que o litigante individual.51

4.2. O processo de constitucionalidade das leis4.2.1. O fundamento do controle de constitucionalidade das normas e a jurisdição constitucional

Jorge Miranda observou, com precoce acuidade, que qualquer teoria acerca da inconstitucionalidade das normas deveria partir de uma das três perspectivas: a de ser a constituição uma norma fundamental; a da validade das normas que derivam da Constituição; e, finalmente, a ineficácia das normas contrárias ao texto constitucional para que subsista íntegra a garantia, para concluir que “[...] a inconstitucionalidade deve ser apercebida em função da garantia da constituição – a invalidade deve ser iluminada por essa garantia.”52 O fundamento maior da existência de um controle (em Portugal, prefere-se dizer fiscalização) de constitucionalidade das normas é o de permitir a garantia que o texto constitucional oferece e que, por isso, deve ser mantido íntegro. essa perspectiva remete, por sua vez, ao conteúdo da jurisdição constitucional53 que, por sua vez, conduz à existência mesma do direito Processual constitucional, aspecto tratado no início dessa abordagem e que aqui se revela sob o viés de uma disciplina voltada para o processo constitucional de controle de constitucionalidade das normas infraconstitucionais, ou seja, tem por objeto a defesa do próprio texto constitucional.

Por outro lado, penso que este estudo remete à precedente observação de Mauro cappelletti de que a concepção da constituição como norma – e como norma superior, norma normarum – decorre de uma ideia que finca raízes no

51 Os acréscimos, à guisa de comentários procedidos entre parênteses, são meus. Observo que a segunda série de princípios também ínsitos à cláusula geral do due process of law no direito americano não guarda correspondência com o direito brasileiro porque, como se sabe, ali há a predominância do processo oral, com a indispensável participação do júri, entre nós restrito apensas aos processos penais dos crimes dolosos contra a vida. cf. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal, op.cit., p. 68-69.52 cf. Contributo par uma Teoria da Inconstitucionalidade, coimbra editora, reimpressão, 1996, p. 12-14.53 ivo dantas, por exemplo, dedica o item 2 do capítulo 3 – Da Justiça Constitucional e seus principais Modelos – do item A Justiça Constitucional e o Controle da Constitucionalidade ao tema, por reconhecer que “a questão (controle de constitucionalidade, observo) encontra-se intimamente ligada à existência da denominada Justiça Constitucional (grifo do original, instituição que, apesar de sua crescente consagração no constitucionalismo contemporâneo, não se encontra isenta de problemas de ordem teórica e prática, até porque, e apesar do reconhecimento generalizado de que existe a necessidade da Defesa da Constituição, o modo como esta é realizado, varia de ordenamento jurídico para ordenamento jurídico, cada um dos quais criando seus mecanismos próprios”. cf. Constituição e Processo, vol. i – introdução ao direito Processual constitucional, op.cit., p. 256.

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jusnaturalismo, no entendimento de que havia um direito natural superior ao direito positivo, ao qual este havia de se conformar. isso resulta do esforço dos juristas em positivar o jusnaturalismo,54 o que se deu a partir do movimento do constitucionalismo pela adoção das seguintes providências:

1. admitirem-se as constituições modernas como normas prevalente-mente “de valor” porque, ainda que expressa em fórmulas necessariamente vagas, ambíguas, imprecisas e programáticas, têm-se que define uma tábua de valores que rege determinada sociedade e que, por isso, devem ser respeitadas, com caráter vinculativo das demais normas;2. atribuir um caráter rígido a essa constituição, de modo a não poder modificá-la senão cumpridas certas formalidades, nela expressas;3. buscar-se transformar a imprecisão e a imóvel estaticidade dessas daquelas formulas consagradas na constituirão e a inefetividade daquela prevalência, numa efetiva, dinâmica e permanente “concretização” desses valores, através da obra de um intérprete qualificado: o juiz constitucional (Huter der Verfassungt).55

a jurisdição constitucional, explicou José afonso da Silva, se revela comoaquela que tem por objeto a defesa da constituição, entendida esta como a expressão jurídica de um sistema de valores aos quais se pretende dor um conteúdo histórico e político, insistindo, porém, que a constituição assim entendida se revelava como a expressão desse sistema de valores emergentes da comunidade social que se consagra num texto político. Se a constituição não for essa expressão não terá legitimidade.

esse autor ressaltou que a jurisdição constitucional tem por objeto o contencioso constitucional e se exercita de vários modos:

a) controle de constitucionalidade de leis e outros atos normativos do Poder Público, quando a atuação jurisdicional opera mediante provocação por um dos remédios ou ações constitucionais, correspondentes a jurisdição constitucional das liberdades.

b) Resolução dos conflitos que se instauram entre os diversos órgãos do poder em relação ao alcance de suas competências e atribuições estabelecidas nas normas constitucionais, correspondente à jurisdição constitucional orgânica; e, finalmente;

54 Gilmar Ferreira Mendes reconhece que o constitucionalismo moderno se esforça no sentido de positivar o direito Natural. cf. Controle de Constitucionalidade – aspectos Jurídicos e Políticos. São Paulo: ed. Saraiva, 1990, ed. esgotada, p. 105.55 cf. Controle Judicial de Constitucionalidade das Leis no Direito Comparado, trad. ao vernáculo de aroldo Plínio Gonçalves e revisão de José carlos barbosa Moreira, Sérgio antônio Fabris, Porto alegre, 1984 p. 9-15.

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c) Resolução dos conflitos derivados da aplicação das disposições constitucionais internacionais e comunitárias incorporadas ao ordenamento jurídico interno, correspondente a jurisdição constitucional de caráter comunitária ou internacional.56

O controle de constitucionalidade, como visto, se enquadra na hipótese da alínea a, supracitada.

4.2.2. Controle de constitucionalidade

a) FormasValemo-nos do resumo procedido por Gilmar Ferreira Mendes para referir

que as formas de controle podem ser: quanto ao órgão (quem exercita o controle); quanto ao modo ou à maneira como se exercita o controle e quanto ao momento em que se realiza.

Quanto ao órgão, tem-se que o controle pode ser político, jurisdicional ou misto. Será político – como ocorre na França –, quando for realizado por órgão político e não jurisdicional. Observa-se que o controle de constitucionalidade, realizado nas casas legislativas, como uma fase do respectivo processo, e a possibilidade de veto a ser oposto pelo executivo também se enquadram nessa categoria. Será jurisdicional se o controle for exercido por órgão do Poder Judiciário ou por corte constitucional, ainda que considerada fora desse Poder e pode ser difuso (também chamado americano); e concentrado (denominado também de austríaco; e, finalmente, misto).57

b) Modelos: difuso e concentradoO controle difuso – também denominado concreto, porque sempre é exercido

para a defesa de algum direito, daí porque se alega que é exercido pela via exceptiva, sabido que o vocábulo exceptio significa, em sentido amplo, a própria defesa – ocorre quando, no curso de uma demanda judiciária, uma das partes levanta, em defesa da sua causa, a objeção de inconstitucionalidade da lei que se quer lhe aplicar. Verifica-se sempre no curso de uma ação e é exercido por qualquer juiz ou tribunal, sendo certo que somente por este último, com obediência ao princípio da reserva do plenário (cF/88. art. 97) pode o tribunal que conhecer do chamado incidente de inconstitucionalidade declará-la inconstitucional.

56 cf. Jurisdição Constitucional da liberdade, Ação Popular, Ação Civil Pública, Mandado de Segurança, p. 2. apostila distribuída no curso de especialização em direito Processual civil promovido pelo conselho da Justiça Federal (cJF) em convênio com Unb, em 1996.57 cf. MeNdeS, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 2a ed., op.cit., p. 1005.

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O controle concentrado – ou abstrato – é realizado por meio de uma ação prevista abstratamente que o provoca exclusivamente perante a corte constitucional que, no brasil, é o StF, o qual somente atua limitadamente nas precisas hipóteses previstas na CF/88. O controle misto, por fim, consiste no sistema em que opera tanto o sistema difuso – ou concreto – quanto o concentrado – (ou abstrato), como no brasil.

importante observar que “O controle difuso, presta-se mais a defesa do cidadão, e o controle concentrado, mais a defesa do estado”.58

4.2.3. O processo do controle de constitucionalizade, no Brasil

O controle de constitucionalidade exercitado no brasil é misto. ele tanto é realizado incidentemente, pela via de exceção, isto é, com técnicas do sistema difuso, quanto pela via principal, por meio de ações próprias para esse fim, com técnicas de um sistema abstrato/concentrado.

4.2.3.1. Difuso

a) Introduçãocomo assinalou Jorge Miranda, com propriedade, esse controle – que

denominou de modelo judicialista – baseia-se no poder normal que o juiz tem de recusar a aplicação de leis inconstitucionais às lides que tenha de dirimir.59 Para muitos, somente esse tipo de controle oferece ao magistrado a plena dignidade de órgãos de soberania, por atribuírem ao juiz o importante papel de cumprir, antes de tudo, a Constituição, definindo-se a questão da inconstitucionalidade como uma questão jurídica. Não se pode desvincular, porém, o papel político exercido com esse controle, porque o magistrado recusa a aplicação de uma lei, na apreciação do caso concreto, porque o fundamento de validade dessa norma é o próprio texto constitucional que, por sua vez, se apresenta como fundamento do poder político, substancial e formal, de todos e de cada um dos atos de seus órgãos.60 O sistema apresenta inconvenientes, sendo o mais grave o de permitir decisões contraditórias.61 58 cf. reGO, bruno Noura de Moraes, Ação Rescisória e Retroatividade das Decisões do Controle de Constitucionalidade das leis no Brasil, Sergio antonio Fabris editor, Porto alegre, 2001, p. 207.59 cf. Manual de Direito Constitucional, tomo ii – constituição e inconstitucionalidade – op.cit., p. 382.60 Nesse sentido, o mesmo Jorge de Miranda, na mesma obra citada na nota anterior, as p. 362. como se reconhece, resulta do clássico pronunciamento do Chief of Justice John Marshall, quando, em 1803, sob a égide do art. 6o, cláusula 2a da constituição Federal americana de 1787, proclamou, no célebre caso Marbury/Madison: principle, supposed to be essential to all written constitutions, that a law repugnant to the constitution is void, and that courts, as well as other departments, are bound by that instrument. cf. Mauro cappelletti, “O controle Judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado”, op.cit., p. 63.61 Mauro cappelletti refere-se a esses inconvenientes ao assinalar que a introdução do sistema difuso em países sem essa tradição “[...] levaria à conseqüência de uma mesma lei ou disposição de lei poderia não se aplicada, porque julgada inconstitucional, por alguns juízes, enquanto poderia, ao invés ser aplicada, porque não

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tem-se esse controle como o que integra a tradição brasileira desde o início da república, quando foi adotado, expressamente, na cF/1891, sendo considerado, a despeito da expansão do controle de constitucionalidade por via direta ocorrido nos últimos anos, como a única via acessível ao cidadão comum para a tutela de seus direitos subjetivos constitucionais.62

b) CaracterísticasSegundo luís roberto barroso, esse controle apresenta as seguintes

características:I – Caso concreto: o exercício desse controle pressupõe a existência de

um processo, de uma ação judicial, uma lide trazida ao processo, em cujo iter se tenha suscitado a inconstitucionalidade da lei que deveria reger a disputa. chama-se controle por via de exceção (como já se explicou), não apenas porque seja o réu que, em sua defesa, levante a questão de inconstitucionalidade, mas porque, excepcionalmente, se alega a existência de um direito que nasce do fato de se reconhecer, incidentemente, que uma lei e inconstitucional (o que, seguramente, será feito por um autor e não um réu, acrescento. basicamente, se o juiz ou o tribunal, apreciando incidentemente a questão que lhe cabe decidir, concluir que de fato existe incompatibilidade entre a norma invocada e a constituição, deverá negar-lhe aplicação ao caso concreto, declarando a inconstitucionalidade, quando se tratar de tribunal, nos exatos termos do art. 97 da cF/88 (tendo em vista que o juiz singular apenas recusa a aplicação da lei, tida por inconstitucional, mas não a declara, acrescento).

II – Legitimado a suscitar esse controle: embora o controle incidental houvesse sido provocado apenas pelo réu, o que deu origem a denominá-lo controle por via de exceção, que corresponde à defesa, também é reconhecido ao autor quando vem postular, em seu pedido inicial ou em momento posterior, a declaração de inconstitucionalidade de uma norma, para que não tenha de se sujeitar a seus efeitos. Por fim, também o Ministério Público, quer funcione como parte, quer funcione como custos legis, bem como terceiros que tenham intervindo legitimamente (assistente, litisconsorte, opoente) e, ainda, o juiz ou o tribunal de ofício, quando as partes tenham silenciado a respeito.

julgada em contraste com a constituição, por outros”, insistindo que esse comportamento forma verdadeiros “contrastes de tendências”, para concluir com a observação de que “a conseqüência extremamente perigosa, de tudo isso, poderia ser uma grave situação de conflito entre os órgãos e de incerteza do direito, situação perniciosa quer para os indivíduos como para a coletividade e o estado”. cf. O Controle Judicial de Constitucionalidade das Leis no Direito Comparado, op. cit., p. 77-78.62 cf. barroso, luís roberto. O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. São Paulo: ed. Saraiva, 2004, p. 71.

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III – Processo em que cabe suscitar-se o controle: a questão incidental de inconstitucionalidade da lei pode ser levantada em processos de qualquer natureza: conhecimento, execução ou cautelar. O que se exige é que haja, no processo, um conflito de interesses, uma pretensão resistida, um ato concreto de autoridade ou a ameaça de que venha a ser praticado. importante ressaltar, porém, que é um controle incidental de inconstitucionalidade que somente pode operar na tutela de uma pretensão subjetiva. O objeto do pedido não pode ser um ataque frontal à lei, que acontece principaleter, mas a proteção de um direito que seria afetado pela aplicação de uma lei reputada inconstitucional e, portanto, de cognição incidenter tantum. a arguição de inconstitucionalidade, portanto, pode se dar em ação de rito ordinário, sumário, especial, em ação constitucional, como a ação popular e a ação civil pública, apesar da discussão travada em respeito a esta última.

IV – Normas objeto do controle: esse controle pode ser exercido em respeito às normas emanadas de qualquer nível de poder: federal, estadual ou municipal, inclusive às normas anteriores à constituição – o que não é possível pela via abstrata/concentrada, com exceção da ação de arguição de descumprimento de Preceito Fundamental.

V – Questão prejudicial: como já se disse, não se promove, no controle difuso, uma arguição direita de inconstitucionalidade da lei. Não se pede, pois, objetivamente, como pedido próprio, específico, da ação, que se declare inconstitucional. Postula-se um direito que somente poderá ser atendido se se afastar a incidência de uma norma, reputada inconstitucional. diz-se então, que o órgão julgador necessitará formar um juízo prévio sobre a constitucionalidade da lei, ainda que incidentemente.

O exame da questão de inconstitucionalidade da lei dá, pois, como uma questão prejudicial, isto é, como uma questão decidida previamente, como pressupostos lógico e indispensável para a solução da questão principal.

a esse respeito – acrescento –, Francesco Menestrina distingue a prejudicialidade lógica da prejudicialidade jurídica. Somente existirá prejudicialidade jurídica se a questão prejudicial puder ser objeto de um processo independente.63 Penso que, cá entre nós, a questão prejudicial de inconstitucionalidade se revela como questão prejudicial jurídica, porque não há nada que impeça que a alegação incidental de inconstitucionalidade não possa ser suscitada por meio de uma ação direta de inconstitucionalidade, mediante pedido próprio específico ou, dito de outro modo, pela via principal.

VI – Controle difuso: neste controle, tanto o juiz monocrático quanto o tribunal pode apreciar, incidentemente, como questão prejudicial, a alegação de

63 como bem resumido por Mauro cappelletti, na obra La Pregiudizialità Costituzionale nel Processo Civile, dott. a. Giuffrè editore, Milano, 1972, p. 12.

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inconstitucionalidade de uma norma. O juiz monocrático, porém, se limitará a afastar a aplicação da lei que reputa inconstitucional ao caso concreto, mas não a declarará inconstitucional. a competência de o magistrado recusar a aplicação da lei reputada inconstitucional está expressa no art. 13, § 10 da lei no 221, de 20 de novembro de 1894, que organizou a Justiça Federal, que tem a seguinte redação:

§ 10 – Os juizes e tribunaes apreciarão a validade das leis e regulamentos e deixarão de applicar aos casos ocurrentes as leis manifestamente inconstitucionais e os regulamentos manifestamente incompatíveis com as leis ou com a constituição.

VII – Reserva de plenário: desde a cF/1934, introduziu-se entre nós o princípio da reserva de plenário pelo qual, na forma do atual art. 97 da CF/88: “Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo com o poder público”. embora criado na época em que somente havia o controle difuso, estendeu-se também ao controle abstrato/concentrado e esse princípio espelha o princípio da presunção de constitucionalidade das leis.64 Penso que esse dispositivo se encontra ainda em vigor e, como se dirige aos juízes e tribunais, e o Poder Judiciário é uno, serve de lastro para a competência de todo e qualquer juiz brasileiro.

c) Procedimentoanoto como procedimento próprio do exercício desse controle os seguintes

cuidados que devem ser seguidos, em respeito à atuação dos diversos órgãos que nele atuam:

1a etapa – atuação do Juiz monocráticoO juiz monocrático deve observar que:1o – atua no controle difuso de constitucionalidade, sem perder de vista que se trata de um controle incidental;2o – deve prevalecer a presunção de constitucionalidade da lei;3o – por se tratar de um controle exercido pela via da exceção, somente deve apreciar a alegada inconstitucionalidade quando ela se torne indispensável ao julgamento da causa;4o – o objeto de sua atuação é apenas a recusa de aplicação da lei reputada inconstitucional ao caso concreto;5o – incide o reexame necessário (cf. art. 475, ii, cPc).

64 cf. barrOSO, luís roberto. O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. Op. cit., p. 78.

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2a etapa – perante órgão fracionário do Tribunal (art. 480 a 482 do CPC)1o – Na turma, ou Seção do tribunal (órgão fracionário) o relator submeterá a questão de inconstitucionalidade, arguída por qualquer das partes, pelo Ministério Público, pelo juiz monocrático, por ele próprio relator ou por qualquer de seus pares, à turma, câmera ou Grupo de câmeras, Seção, ou qualquer órgão fracionário, ao qual incumba julgar 0 feito (art. 480 cPc);.2o – Se a arguição for rejeitada, o julgamento prosseguirá normalmente, se for acolhida, será lavrado acórdão, a fim de ser submetida a questão ao tribunal pleno (art. 481 do cP). tem-se entendido que dessa decisão na cabe nenhum recurso65.

3a etapa – perante o Pleno do Tribunal (ou órgão especial)Opera, neste preciso momento, a cisão funcional da competência, ou seja, o tribunal Pleno (ou o órgão especial onde houver) decide a questão constitucional e o órgão fracionário julga o caso concreto, com a obrigatória aplicação do julgamento do Pleno do tribunal – ou do órgão especial com competência para esse fim (Cf. art. 97 da CF/88) sobre a questão de inconstitucionalidade. do julgamento do órgão fracionário em que se aplica a decisão do Pleno, cabe recurso extraordinário, mas não da decisão do Pleno, em si.

III – Atuação do STJ e do STFAtuação do STJexerce o controle incidental nas causas de sua competência originária (art. 105, i cF/88), ou nas que aprecia recurso ordinário constitucional (art. 105, ii, cF/88). Não aprecia a questão da inconstitucionalidade por via de recurso.

Atuação do STFexerce o controle difuso nas causas de sua conferência originária ou nos julgamentos dos recursos ordinários constitucionais (art. 102, i e ii cF/88). cabe-lhe a competência exclusiva de reapreciar os julgamentos do Pleno dos tribunais, a partir do recurso extraordinário impetrado das decisões dos órgãos fracionários que aplicaram o julgamento no caso concreto (art. 102, iii da cF/88).

65 cf. Sérgio Porto, Comentários ao CPC, vol. Vi. São Paulo: rt, 2000, p. 373. O autor menciona como partícipes desse entendimento Nelson e rosa andrade Nery, CPC Comentado, p. 937; Pontes de Miranda, Comentários ao CPC, tomo Vi, p. 84, Vicente Greco Filho, Direito Processual Civil Brasileiro, vol. ii, ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 328.

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d) Efeitos do julgamento e efeitos temporaisa decisão pronunciada pelo StF, no ápice do controle difuso de

constitucionalidade somente tem efeito interpartes. diz-se que somente produz coisa julgada entre as partes para as quais é dada, na forma do art. 472 do cPc, o que implica repetir-se a mesma ação onde Sc arguiu a inconstitucionalidade da norma, individualmente, por todos que se julguem prejudicados.66

anoto que, em Portugal, onde se manteve o controle difuso ao lado do controle abstrato/concentrado, mesmo depois que se criou um tribunal constitucional, adotou-se uma prática que considero extremamente salutar, ao estabelecer-se, no art. 281, que trata da disciplina da chamada fiscalização abstrata da constitucionalidade e da legalidade, precisamente no item:

3. O tribunal constitucional aprecia e declara ainda, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade ou a ilegalidade de qualquer norma, desde que lenha sido por ele julgada inconstitucional ou ilegal em ires casos concretos.

Efeitos temporaistem-se entendido que a lei julgada inconstitucional é lei nula e que, em

consequência, a lei julgada inconstitucional é nula desde o seu nascimento, não produzindo efeitos válidos desde então. Os efeitos seriam, pois, ex tunc.67

considero razoável, no entanto, a observação de José afonso da Silva de que se deve considerar os aspectos em respeito ao caso concreto, no curso do qual se declara incidentemente a inconstitucionalidade da norma. a declaração de inconstitucionalidade produz efeitos ex tunc, porque fulmina a relação jurídica nascida sob seu império desde o seu nascimento. essa lei continua válida, válida e eficaz até que o Senado suspenda sua executoriedade – prefiro a sua eficácia ou aplicabilidade. a partir daí, produz efeitos ex nunc.68

66 embora o sistema do controle difuso produza efeitos apenas entre as partes, Gilmar Ferreira Mendes sustenta que a suspensão da execução da lei pelo Senado (cf. art 52, X, da cF/88), como também a demora na apreciação definitiva dessa questão pelo STF, reclamam uma superação nessa disciplina, como se lê na obra, tantas vezes citada, “curso de direito constitucional”, p. 1092. Sustenta mesmo, tanto em voto que proferiu como em artigo que fez publicar, que não há necessidade de esperar-se que o Senado Federal suspenda a execução da lei para que ela produza efeitos erga omnes porque argumenta que o StF vem fazendo uma releitura do referido art. 52, X, da cF/88, no sentido de haver-se tornado dispensável esse ato de suspensão. cf. “O papel do Senado Federal no controle de constitucionalidade: um caso c1ássico de mutação constitucional”. revista de lnformação legislativa, ano 41, no 162, abr/jun 2004, p. 149-168, mais precisamente p. 165. Nada obstante a autoridade de quem defende essa modificação, penso, como apoio em alguns votos dos ministros do StF que não acompanharam esse voto, que essa releitura não pode ser feita, validamente, a menos que se modifique o texto constitucional e que o país abandone, de vez, o sistema da civil law, que sempre seguiu.67 cf. barrOSO, luis roberto. Op.cit., p. 87.68 Direito Constitucional Positivo. São Paulo, 1990, 6a ed., op.cit., p. 52.

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luís roberto barroso refere, porém, um caso curioso em que se observou a eficácia retroativa – ex tunc – de decisão incidental em respeito a terceiros. Uma empresa havia depositado em juízo parcelas de determinado tributo, ao mesmo tempo em que discutia sua exigibilidade em face de alegada inconstitucionalidade. O pedido não foi acolhido, a sentença transitou em julgado e operou-se a decadência obstativa da propositura da ação rescisória.

Posteriormente, em ação movida por outra empresa contribuinte, o StF, apreciando recurso extraordinário, declarou a inconstitucionalidade da norma que autorizava a cobrança, havendo o Senado suspendido a execução da lei. a primeira empresa – que não teve acolhida sua pretensão – requereu o levantamento do depósito que havia feito e que ainda não havia sido convertido em renda da União. a Fazenda Pública, porém, alegou em seu favor a existência de coisa julgada. O entendimento do autor citado – e que acompanho, no particular – é de que a solução correta seria do deferimento do levantamento, tendo em vista que a coisa julgada que, na espécie, nem se havia produzido na plenitude de seus efeitos, porque não tinha havido ainda a conversão em renda, não podia prevalecer sobre a justiça da recuperação ao do valor depositado, por um critério de ponderação de valores: coisa julgada X justiça no caso concreto.69

4.2.3.2. Abstrato/concentrado

a) Característicasluís roberto barroso procedeu a um excelente resumo sobre as características

gerais do controle de constitucionalidade abstrato/concentrado, também denominado, entre nós, de controle de constitucionalidade por via de ação direta que acaba por ser uma de suas características mais marcantes, ou seja, o controle somente é exercido por uma ação própria, direta.

as características apontadas por esse autor, a seguir resumidas, são as seguintes: pronunciamento em abstrato da validade da norma; julgamento de uma questão principal; exercício de um controle concentrado; competência para o processo e julgamento; legitimação para figurar na relação processual; e, finalmente, o objeto da ação.

I – Pronunciamento em abstratoPaulo bonavides considera que essa característica diz respeito a que esse

controle, ao contrário do que acontece com o controle difuso, de natureza incidental,

69 acrescento, ainda, que, no exemplo supramencionado, se deixou também a função social do processo civil que eduardo cambi, em excelente artigo que fez publicar “Função Social do Processo civil”, na revista Tutela Jurisdicional Coletiva, coordenada por Fredie didier Jr. e José Henrique Mouta, ed. Podivm, 2009, com fundamento em vários autores, afirma, de modo contundente: “A dogmática processual, se não quiser converter-se em abstração vazia, deve servir de método (grifo do original) para que o direito se concretize na justiça”.

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se revela como um controle direto. “Nesse caso – explica, então – impugna-se perante determinado tribunal uma lei, que poder perder sua validade constitucional e conseqüentemente ser anulada erga omnes (com relação a todos)”.70

II – Julgamento de uma questão principaldiferentemente do controle difuso, com quem sempre será comparado, o

controle abstrato/concentrado não se pronuncia sobre uma questão prejudicial. como bem demonstrado por José carlos barbosa Moreira, a questão prejudicial é aquela que se põe como antecedente lógico necessário e indispensável na apreciação de outra questão que se tem por principaleter. O juiz a terá de – no juízo lógico que desenvolve –, necessária e de modo indispensável, apreciar a questão de inconstitucionalidade para decidir sobre a questão de direito material posta à sua apreciação.71

a esse respeito, Mauro cappelletti já se pronunciou quando, escrevendo sobre la pregiudizialità costituzionale nel processo civile, apontou como característica fundamental a de que ela se apresenta em determinado juízo como uma questão secundária, muito embora possa transformar-se em uma questão principaleter em outro processo, tendo em vista que, no processo em que atua como questão prejudicial, ela não integra o thema decidendum.72 No processo de controle abstrato/concentrado de constitucionalidade, a alegada inconstitucionalidade da norma é a questão mesma do processo, apreciada como thema decidendum, ou seja, examinada e decidida principaleter, como questão principal.

III – Exercício de um controle concentradoPor exercer-se um controle atribuído a um órgão específico, que pode ou não

integrar o Poder Judiciário, diz-se que se trata de um controle concentrado. luís roberto barroso observa que, em nosso País, esse controle é concentrado porque, no plano federal, ele é exercido apenas pelo Supremo tribunal Federal (StF) e, no plano estadual, pelo tribunal de Justiça.73

IV – Competência para julgamentoProsseguindo na síntese do pensamento do autor acima mencionado, tem-se

que, no sistema federativo brasileiro, o controle de constitucionalidade abstrato/

70 Grifo do original. cf. Curso de Direito Constitucional, ed. Malheiros, 23a ed., op.cit., p. 307.71 cf. Questões Prejudiciais e Coisa Julgada, tese de concurso para a docência livre de direito judiciário civil da Faculdade de direito do rio de janeiro. rio de Janeiro: ed. forense, 1967, ed. esgotada, p. 54.72 cf. La Pregiudizialità Costituzionale nel Processo Civile, Milano dott. a. Giuffrè editore, 1972, p. 34.73 cf. O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. São Paulo: ed. Saraiva, 2004, p. 115.

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concentrado é atribuído, constitucionalmente, ao StF, no plano federal, e aos tribunais de Justiça, no plano dos estados federados, e no que se entende como inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais em face da constituição estadual, na forma do art. 125, § 2o da cF/88, com uma observação derradeira cuja transcrição se impõe:

O sistema concebido pelo constituinte permite o ajuizamento simultâneo de ação direta no âmbito estadual e no âmbito federal – isto é, perante o tribunal de Justiça e perante o Supremo tribunal Federal – tendo por objeto a mesma lei ou ato normativo estadual (grifo do original), mudando-se apenas o paradigma: no primeiro caso a constituição do estado e, no segundo, a carta da república

acrescentando, em seguida:como intuitivo, a decisão que vier a ser proferida pela suprema corte vinculará o tribunal de justiça, mas não o contrário. Por essa razão, quando tramitarem paralelamente as duas ações, e sendo a norma constitucional estadual contrastada mera reprodução da constituição Federal, tem-se entendido pela suspensão do processo no plano estadual.74

V – Legitimação para a açãocomo já se acentuou, a construção do processo constitucional foi içada de

dificuldades, tendo em vista que se procurou adaptar os institutos criados pelo processo civil comum, que prefiro denominar de clássico, e, sobretudo, que o processo jurisdicional do controle de constitucionalidade é um processo objetivo,75 isto é, um processo sem partes.76 como a legitimação se apresenta como uma das condições da ação que decorre da particular situação do titular de um direito subjetivo, o que não acontece com o processo constitucional de controle de constitucionalidade, tornou-se imperioso construir-se uma legitimação própria, específica, para as ações destinadas ao controle de constitucionalidade.

74 idem, ibidem, p. 117.75 andré ramos tavares observou que o processo constitucional, notadamente o processo constitucional de controle de constitucionalidade, passou a ser admitido a partir do fim do século XIX para ressaltar que se tratava de um processo que não servia para defesa de um direito subjetivo, tendo-se construído essa expressão para ressaltar o distanciamento desse processo (o constitucional, considerado objetivo) daquelas regras processuais próprias dos conflitos intersubjetivos de interesses, do tipo clássico. O autor fundamenta as observações nas obras de muitos autores. cf. Teoria da justiça Constitucional. São Paulo: ed. Saraiva, 2005, p. 392 e s.76 como observou Gilmar Ferreira Mendes, trata-se de um processo objetivo, sem partes, no sentido material, porque “constitui processo que não tem outro escopo, senão o de defesa da ordem fundamental contra atos com ela incompatíveis”. cf. Controle de Constitucionalidade – Aspectos Jurídicos e Políticos, 1990, op.cit., p. 251.

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assim é que se tem ressaltado que a disciplina do processo objetivo com institutos próprios do processo civil clássico, que tem por objeto a tutela do direito subjetivo, imperiosamente deve ser feita cum grano salis.

a legitimação passiva – contra quem se deverá propor a ação destinada ao controle de constitucionalidade – recai sobre os órgãos ou autoridades responsáveis pela criação da lei ou do ato normativo, objeto da ação, aos quais caberá prestar informações ao relator do processo. em respeito à legitimação ativa, reconhece-se que se operou profunda transformação no trato da jurisdição constitucional em nosso País, por haver-se alargado o rol de legitimados à propositura da ação, com a definitiva quebra do monopólio do procurador-geral da República, único legitimado desde a criação da ação genérica desse controle.77

VI – Objeto da açãoO objeto da ação destinada ao controle abstrato/concentrado de

constitucionalidade é a lei ou o ato normativo federal ou estadual. incluem-se, nessa rubrica, uma série de atos que forma a multiplicidade normativa brasileira, sobre a qual não se discorrerá: emenda constitucional, lei complementar, lei Ordinária, lei delegada, Medida Provisória, decretos legislativos e resoluções, decretos autônomos, legislação estadual, tratados internacionais, descabendo, no entanto, o exercício do controle de constitucionalidade por essa via em respeito aos atos normativos secundários, às leis e atos de efeitos concretos, às leis anteriores à constituição, às leis que já tenham sido revogadas e, por derradeiro, a lei municipal em face da constituição Federal.78

b) O procedimento das Leis no 9.968/1999 e 9.882/1999O procedimento traçado pelas leis no 9.968/1999 e 9.882/1999 aplica-se a

todas as ações destinadas ao controle abstrato/concentrado de constitucionalidade das leis e, de acordo com o exame feito sobre esses diplomas legais, pode-se concluir que ressalta os seguintes aspectos:

1o – a legitimação ativa é unicamente dos legitimados a propositura da ação direta de inconstitucionalidade, ou, na forma do art. 103 da cF/88: o presidente da república, a Mesa do Senado Federal, a Mesa da câmara dos deputados, a Mesa da assembleia legislativa, o governador do estado, o procurador-geral da república, o conselho Federal da Ordem dos

77 como observa, com precisão, luís roberto barroso. O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. Op.cit., p. 119 e s.78 Na obra de luís roberto barroso, de cuja síntese nos valemos, há estudo minudente sobre cada uma das hipóteses referidas no texto. cf. idem, ibidem, p. 129 e s.

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advogados do brasil, o partido político com representação no congresso Nacional e a confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional, valendo, para identificar-se se ela ocorreu os precedentes já construídos pelo StF a respeito. Faculta-se, porém, a qualquer interessado, representar ao procurador-geral da república que, examinando os fundamentos jurídicos do pedido, decidirá a respeito do cabimento ou não da ação e a proporá ou não (cf art. 2o das leis no 9.868/1999 e no 9.882/1999);2o – a legitimação passiva e das autoridades ou dos órgãos responsáveis (e, nesse caso, se considera o funcionário que, na linguagem de Pontes de Miranda, o presenta);79

3o – O procedimento se inicia por petição que satisfaça aos requisitos do art. 3o das leis no 9.868/1999 e 9.882/1999 (deverá conter: a indicação precisa do preceito fundamental que se considera violado, a indicação do ato questionado, a prova da violação do preceito fundamental e os pedidos, com suas especificações) e os co-legitimados têm capacidade postulatória especial, que dispensa a presença de advogado (adin 127-2/al. rei. Min. celso de Mello. in: dJU de 4/12/92, p. 23.057);80

4o – Não sendo o caso de arguição ou não preenchendo a inicial dos requisitos exigidos em lei, o relator poderá indeferi-la de plano (cf art. 4o das leis no 9.868/1999 e no 9.882/1999). dessa decisão, cabe agravo, no prazo de cinco dias, na forma do § 2o do mesmo dispositivo;5o – Não se admite desistência da ação direta de inconstitucionalidade ou de declaração de constitucionalidade. (cf art. 5o da lei no 9.868/1999);6o – embora não se trate de um processo contencioso, porque, como já se disse, se trata de um processo objetivo (Objektive Verfassung), prevê-se, no procedimento em respeito à ação direta de inconstitucionalidade e na ação declaratória de constitucionalidade, um pedido de informações aos órgãos ou às autoridades das quais emanou a lei ou o ato normativo impugnado, na forma do art 6o da lei no 9.868/1999;

79 cf. Tratado das Ações, atualizado por Vilson rodrigues alves, ed. bookseller, campinas, São Paulo, 1998, i’ ed., p. 268 e s. No mesmo sentido, Jorge Miranda assinala que os centros de formação da vontade, nas pessoas coletivas (pessoas jurídicas) são criados por lei e, como estas não têm existência própria, são atribuídas a certas pessoas físicas a função de preencherem esses órgãos em concreto e de agirem como se fosse a própria pessoa jurídica a agir. desse modo, a vontade que essas pessoas físicas formem – uma vontade psicológica, como outra qualquer – e tida como a vontade da pessoa jurídica e qualquer ato que pratiquem a ela (pessoa jurídica) é atribuída. Nisso – segundo o autor – consiste o fenômeno da imputação, observando que não há dualidade de pessoas (a pessoa jurídica e titular dos direitos e a pessoa que os exerce) como na representação, legal ou voluntária, mas uma unidade: a pessoa jurídica, que exerce o seu direito ou prossegue o seu interesse, mediante pessoas físicas que formam a vontade, que são suporte ou titulares dos órgãos. cf. Funções, Órgãos e Actos do Estado, apontamentos de lições, policopiado, Faculdade de direito de lisboa (Fdl), lisboa, 1990, p. 46-47.80 cf. Juliano taveira bernardes. in: Arguição de Descumprimento de Preceito fundamental. Op. cit., p. 3.

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7o – de igual modo, faculta-se a prévia oitiva dos órgãos ou das autoridades responsáveis pelo ato questionado, bem como do advogado-geral da União ou do procurador-geral da república, no prazo comum de cinco dias, em respeito à ação de descumprimento de Preceito Fundamental (cf, art 5o, § 2o da lei no 9.882/1999);8o – embora não se admita a intervenção de terceiros, faculta-se a participação do amicus curiae, na forma do art 7o, § 2o da lei no 9868/1999 e art. 6o, § 1o da lei no 9.882/1999, sobre cujo instituto será apreciado, resumidamente, a seguir;9o – O pedido de liminar somente poderá ser deferido por decisão da maioria absoluta dos membros do StF (cf. art 10 da lei no 9.868/1999 e art 5o da lei no 9.882/1999);10 – em caso de excepcional urgência, O tribunal poderá deferir medida cautelar sem audiência dos órgãos ou das autoridades das quais emanou a lei ou o ato normativo impugnado (cf. art. 10, § 3o da lei no 9.868/1999) e, em se tratando de ação de descumprimento de Preceito Fundamental, quando houver extrema urgência ou perigo de grave lesão ou, ainda, em período de recesso, o relator poderá concedê-la, ad referendum do Pleno (cf. § 1o do art 5o da lei no 9.882/1999);11 – a liminar a que se refere o item anterior poderá consistir na determinação de que juizes e tribunais superiores suspendam o andamento do processo ou os efeitos de decisões judiciais, ou de qualquer outra medida que apresente relação com a matéria objeto da arguição de descumprimento de preceito fundamental, salvo se decorrente da coisa julgada (cf. § 3° do art 5° da lei no 9.882/99);12 – após o prazo das informações, serão ouvidos, sucessivamente, o advogado-geral da União e o procurador-geral da república, que deverão manifestar-se cada qual, no prazo de 15 (quinze) dias, na forma do artigo da lei no 9.868/1988;13 – Faculta-se, ainda, na forma do art 9o, § 1o, que – embora o relator esteja apto a lançar relatório, com distribuição de cópia para todos os Ministros e pedir dia para julgamento – o relator requisite as informações que julgar necessárias, designe perito ou comissão de peritos para que emita parecer sobre a questão, fixe data para, em audiência pública, ouvir depoimentos de pessoas com experiência e autoridade na matéria e/ou solicite informações de quaisquer tribunais do País, na forma do art. 9o, §§ 1o e 2o da lei no 9.868/1999;14 – em se tratando de ação de arguição de descumprimento de Preceito Fundamental, segue-se prazo para as informações pelas autoridades

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responsáveis pela prática do ato impugnado, por dez dias (cf. art. 6o da lei no 9.882/1999). Mesmo nas arguições incidentais (a que opera como prejudicial de inconstitucionalidade), não é imprescindível a oitiva das partes que compõem a relação processual originária, mas o relator poderá, se entender necessário, ouvi-las ou requisitar informações adicionais, designar perito ou comissão de peritos para que emita parecer sobre a questão, ou ainda, fixar data para declarações, em audiência pública, de pessoas com experiência e autoridade na matéria (cf. art 6o, § 1o da lei no 9.882/1999);15 – No procedimento dessa ação, a intervenção da Procuradoria-Geral da república é obrigatória. terá vista pelo prazo de cinco dias, após o decurso do prazo para informações (cf. cF/88, art 103, § 1o e art 7o, Parágrafo único da lei no 9.882/1999);16 – a decisão somente será tomada se houver quórum de pelo menos oito ministros (cf art. 22 da lei no 9.868/1999) ou, em respeito à ação de descumprimento de Preceito Fundamental, se estiverem presentes pelo menos dois terços dos ministros (cf art. 8o da lei no 9.882/1999) e, julgada a ação, far-se-á a comunicação às autoridades ou aos órgãos responsáveis pela prática dos atos questionados, fixando-se as condições e o modo de interpretação e aplicação do preceito fundamental (cf art. 10 da lei no 9.882/1999). O presidente do StF determinará o imediato cumprimento da decisão, ainda que o acórdão seja lavrado posteriormente;17 – tratando-se de arguição de descumprimento de Preceito Fundamental e em se tratando de ação oriunda de prejudicial de constitucionalidade, o magistrado retomará o curso do feito – que se encontrava suspenso, na forma do art. 265, “c” do cPc – para, tomando a decisão como ponto prejudicial, prosseguir na direção da sentença.81

81 O que bem revela o caráter de prejudicialidade constitucional dessa ação, quando proposta em respeito a questões pendentes de julgamento, inclusive possíveis decisões concessivas ou não de liminares. Nesse caso, a questão prejudicial que é levada ao StF por intermédio da ação de arguição de descumprimento de preceito fundamental volta de lá com a decisão, com eficácia erga omnes e a natureza de ponto prejudicial (sobre essa noção, cf. o nosso modesto Jurisdição, Ação (Defesa) e Processo. São Paulo: dialética, 1997, p. 188). Nos sistemas de controle concentrado – como o da itália –, a provocação para apreciação da prejudicial de constitucionalidade é feita pelo próprio juízo. cappelleti acentua: “II carattere necessario della sospensione del processo per pregiudizialita costizionale, carattere che some s’e visto non e esclusoa dalla caratterislica examinata al parágrafo precedente. sub a, non é escluso nemmeno dal potere-dovere del giudice civile (penale o amministrativo)di giudicare della ‘rilevanza’ della norma di legge della cui legitdimità costituzionale se discute nè (come vedremo nei prossimi paragrafi) da quello di giudicar della eventuale ‘manifesta infondatezza’ della questione di inconstituzionalità[...]. esse autor observa que, no ordenamento jurídico italiano, cessa a suspensão do processo desde o momento em que seja pronunciada na instrução a sentença que resolve a questão (sentenza di proscioglimenlo) não mais sujeita à impugnação (grifos do original). cf. La Pregiudizialià Costituzionale nel Processo Civile, Milano Dott. A. Giuffrè Editore, 1972, p. 101 e 213-214.

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c) A figura do amicus curiaeI – Breve histórico e conceito

O instituto amicus curiae é de origem americana, apesar de se tratar de uma expressão latina. luiz Fernando Martins da Silva assinalou que o projeto de lei posteriormente convertido na lei no 9.868/1999, que introduziria essa figura entre nós, refere que havia se inspirado na figura do mesmo nome – amicus curiae – no caso, o chamado Brandies-Brief, identificado como um memorial-manifestação – esse é o sentido do brief – utilizado pela primeira vez nos estados unidos pelo advogado louis d. brandeis, no case Muller Vs Oregan, em 1908 – pelo que imagino ter recebido o nome Brandies-Brief.

ressaltou que a importância dessa técnica pode ser observada pelo que aconteceu no importantíssimo julgamento na Suprema corte americana, em um caso que envolveu a Universidade de Michigan em 2003: a Universidade contou com o apoio de mais de 150 amicus-curiae, os quais foram identificados como ONGs, empresas públicas e privadas, o que revela que as manifestações – os briefs – haviam sido produzidas pela elite das 500 maiores empresas dos estados Unidos cotadas pela revista Forbes, as mais conceituadas Universidades e, ainda, organizações de direito civis, incluindo-se as de veteranos das Forças armadas.82

O “black’s law dictionary” (algo assim como Manual dos advogados nos estados Unidos) registra o seguinte verbete:

Amicus curiae [latin ‘friend of the court’). a person who is not a party to lawsuit but who petitions the court to file a brief in the action because that person has a strong interest in the subject. – Often shortened to amicus – also termed friend of the court. Pl. amici curiae.

em tradução livre, tem-se:Amicus curiae. [latim. “amigo da corte”]. Uma pessoa que não é parte em um processo, mas cujas petições dirigidas à corte (ou tribunal) são consideradas em razão do forte interesse que tem na matéria sob julgamento. expressão muitas vezes abreviada para amicus. Há também a denominação friend of the court (amigo da corte). Plural: amici curiae.

À míngua de um conceito elaborado pela doutrina, mas com amparo nas contribuições de alguns autores sobre o assunto, divulgadas pela internet, pode-se

82 cf. luiz Fernando Martins da Silva, Anotações sobre o amicus curiae e a democratização da jurisdição constitucional, Jus Navigandi – <htpp//www1.jus.com.br/doutrina/textoasp?id=6358>, p. 2-6. O autor registrou, na nota 11, que a decisão havia sido apertadíssima: 5 votos a favor e quatro contra. Os juízes da Suprema corte americana concluíram que a universidade de Michigan poderia levar em consideração a raça dos candidatos de minorias étnicas no processo de admissão de pós-graduação da sua escola de direito.

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elaborar um conceito da figura como forma análoga à intervenção de terceiros – na verdade um abrandamento à vedação que existia a ela nos processos objetivos de controle de constitucionalidade,83 diversa da tradicional, pois não fundada em interesse jurídico, como o exige a regra do art. 50 do cPc, bastando, para isso, na forma da expressão inglesa ter um strong interest, um forte interesse – ou um interesse relevante, como parece mais bem ajustado – aliado à relevância da matéria, sendo certo que esses inconvenientes têm representatividade para serem ouvidos em juízo, por contribuírem para alargar o espectro dos destinatários da decisão.

De modo mais singelo, pois, pode-se definir o amicus curiae, como uma forma análoga, abrandamento decorrente da pertinência temática,84 da intervenção de terceiro,85 própria do processo objetivo da jurisdição constitucional – em que se permite ouvir o destinatário da decisão a ser proferida – no caso, a sociedade tornando esse processo mais democrático e contribuindo para confirmá-lo como um processo objetivo.86

II – Recepção no direito brasileiroOs estudiosos têm assinalado que – muito embora a figura só tenha ingressado

em nosso ordenamento jurídico, formalmente, com a lei no 9.868, de 10/11/1999, mais precisamente com a regra do art. 7o, § 2o que soa: “o relator, considerando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes, poderá, por despacho 83 como o reconheceu o Prof. Gustavo binembojm, no artigo “a dimensão do Amicus Curiae no Processo constitucional brasileiro: requisitos, poderes processuais e aplicabilidade no âmbito estadual”, publicado na rede – Revista Eletrônica de Direito do Estado, no 1, jan./fev./mar. de 2005, Salvador/bahia/brail, p. 3. 84 O Prof. Gustavo binembojm explicou que, embora a constituição não o preveja. “[...] o StF construiu, ao longo dos últimos anos, uma robusta jurisprudência erigindo a pertinência temática (grifos nossos) como condição específica para que determinados órgãos e entidades se habilitem a manejar a ação direta de inconstitucionalidade. Tal condição consiste na relação de pertinência que deve existir entre os fins institucionais e atribuições do órgão ou entidade e o conteúdo do ato normativo impugnado por meio da ação direta”. cf. Dimensão do Amicus Curiae no Processo Constitucional Brasileiro: requisitos, poderes processuais e aplicabilidade no âmbito estadual, op.cit., nota 3 ao pé da p. 2.85 a doutrina, em geral, repele que se trate de uma forma de intervenção de terceiro. O prof. edgard Silveira Bueno Filho, porém, afirma que o amicus curiae é uma forma qualificada de assistência. cf. Amicus Curiae – a democratização do debate nos processos de constitucionalidade, Revista Diálogo Jurídico, no 14, jun./ago. de 2002. Salvador/bahia, p. 8. como se tem a assistência como uma forma de intervenção de terceiros, é lícito concluir que se trata de uma forma acabada de intervenção. Prefiro, porém, conceber o novo instituto como forma análoga à intervenção, um abrandamento à proibição dela no processo objetivo de controle de constitucionalidade, por não se ajustar essa figura à exigência do art. 50 do CPC.86 Nesse sentido, Gilmar Ferreira Mendes averbou: “a prática americana do amicus curiae brief permite à corte Suprema converter o processo aparentemente subjetivo do controle de constitucionalidade em um processo verdadeiramente objetivo (no sentido de um processo que interessa a todos) no qual assegura a participação das mais diversas pessoas e entidades”. cf. Controle de Constitucionalidade. repercussões na atividade econômica.

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irrecorrível, admitir, observado o prazo fixado no parágrafo anterior, a manifestação de outros órgão ou entidades (grifos nossos)” – já havia precedentes no próprio STF que faziam alusão à figura, como o que se deu com o julgamento do Agravo regimental em adin no 784-5, de que foi relator o eminente ministro celso de Mello, em que o Pleno dessa Corte lhe confirmou decisão monocrática, assim ementada:

aÇÃO direta de iNcONStitUciONalidade. iNterVeNÇÃO aSSiSteNcial. iMPOSSibilidade. atO JUdicial QUe deterMiNa JUNtada, POr liNHa, de PeÇaS dOcUMeNtaiS. deSPacHO de MerO eXPedieNte. irrecOrribilidade. aGraVO reGiMeNtal NÃO cO-NHecidO.– O processo de controle normativo abstrato instaurado perante O Supremo tribunal Federal não admite a intervenção assistencial de terceiro. Precedentes.– Simples juntada, por linha, de peças documentais apresentadas por órgão estatal que, sem integrar a relação processual, agiu, em sede de ação direta de inconstitucionalidade, como colaborador informal da corte (amicus curiae): situação que não configura, tecnicamente, hipótese de intervenção ad coadjuvan-tum.

– Os despachos de mero expediente – como aqueles eu ordenam juntada por linha, de simples memorial descritivo – por não se revestirem de qualquer conteúdo decisório, não são passíveis de impugnação mediante agravo regimental (cPc, art. 504).

Importa ressaltar que a figura do amicus curiae está prevista, em ambas as leis, nas expressões “eventuais interessados” e “manifestação de outros órgãos e entidades”, postas em ressalto na transcrição delas.

III – Natureza jurídicaAinda que não se tenha formalizado o debate, penso que a nova figura não

pode ser considerada como uma espécie de intervenção de terceiro, a exemplo da assistência. Não me parece – com as devidas vênias do prof. edgard Silveira bueno Filho – assistência qualificada. A intervenção de terceiro, como se viu acima, somente é possível quando um terceiro defende um interesse jurídico, que lhe afetará a esfera de atribuições. Ora, o processo constitucional de controle de constitucionalidade é um processo objetivo (cf. retro), em que não há partes, no sentido material (embora possa haver no sentido formal), pela simples e boa razão que o interesse perseguido nesse tipo de processo é o interesse de todos, de toda a comunidade, em que seja mantida íntegra a ordem normativa de acordo com o texto constitucional.

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Por essa razão, a regra foi sempre a do descabimento de qualquer tipo de intervenção. A figura do amicus curiae não se apresenta como a de um terceiro que venha defender um interesse próprio. Pelo contrário, significa que são pessoas representativas da sociedade – sobretudo daquela parcela social que será atingida com a decisão a ser proferida –, daí a exigência de que a matéria a ser discutida seja relevante. Nesse sentido, aliás, o ministro Milton luiz Pereira, do StJ, reconheceu que o amicus curiae é um “terceiro especial ou de natureza excepcional, não se confundindo com a assistência ou qualquer outra forma de intervenção de terceiros, prevista no código de Processo civil”, já tendo a corte de que faz parte – o StJ – admitido a intervenção de agências reguladoras em processos intersubjetivos, na qualidade de terceiro especial (amicus curiae).87

Penso, pois – como ressaltou o prof. Gustavo binenbojm –, que o amicus curiae intervém no processo da ação direta, tal como disciplinado pela lei no 9.868/1999 e em processo semelhantes em que tal figura é, também, cabível, passando a integrar a relação processual na condição de terceiro especial.

Os requisitos de admissibilidade – matéria relevante e representatividade do amicus curiae – apontam para essa figura como o da participação da sociedade, para fazer-se ouvir em processo cuja decisão vai lhe atingir.

Por essas razões, entendo, também, ser cabível em outros processos que não apenas os de controle de constitucionalidade das leis, desde que se trate de uma decisão que vá se revestir de um caráter de generalidade – como forma de democratizar a decisão, no sentido mais genuíno de processualizar a decisão, fazendo com que o destinatário dela participe efetivamente, por participar do processo.88

IV – ProcedimentoA lei não disciplina, especificamente, o procedimento de intervenção do

amicus curiae. Pode-se traçá-lo, porém, com base nos dispositivos legais e nas contribuições doutrinárias existentes.

87 cf. Prof. Gustavo binembojm, com remissão, no particular, a adin no 2238, relator o Min. ilmar Galvão, indicando como fonte o informativo StF no 267, Milton luiz Pereira, no artigo “Amicus Curiae – intervenção de terceiros”, publicado na Revista de Informação Legislativa no 156, ano 39, out./dez. 2002, p. 9.111 e o agravo regimental na Petição no 1.6621/Pe, corte especial j. 2/5/2002; agravo regimental no resp no 326.097/ce, rei. Min. Milton luiz Pereira, j. 2/5/200288 como refere Ovídio a. baptista da Silva, ao esclarecer que, na concepção moderna de governo democrático, se tem como a de um governo participativo, em que – em suas palavras – nos países mais evoluídos, o próprio ato administrativo se “processualize” através do estabelecimento de um contraditório prévio entre as “partes interessadas em sua produção”. insista-se o amicus curiae não intervém como interesse jurídico, próprio, mas como colaborador eventual, para tornar mais democrático o processo judicial e político do controle de constitucionalidade, embora não sejam considerados como parte interveniente nem com intervenção meramente assistencial.

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No caso específico dessa intervenção nas ações de controle de constitucionalidade regidas pela lei no 9.868/1999, o § 2o do art. 7o define ser uma faculdade do relator. realmente, o dispositivo soa “[...] O relator poderá admitir, por despacho irrecorrível, observado o prazo fixado no parágrafo anterior, a manifestação de outros órgãos ou entidades”. Ocorre, porém, que o parágrafo anterior (§ 1o), que fixava o prazo de 30 (trinta) dias para os demais legitimados para ação na forma do 103 da cF/88 se manifestarem por escrito sobre o objeto da ação, foi vetado. em interpretação procedida pelo Prof. Gustavo binembojm tem-se que a oportunidade processual para a admissão do amicus curiae, nos termos do art. 7o, § 2o é a qualquer tempo, sendo de 30 (trinta) dias o prazo para apresentar a respectiva manifestação, depois que for admitida a sua participação pelo relator.

antonio do Passo cabral assinalou, porém, que o StF e o StJ “[...] têm entendido, em nosso sentir com razão, que a intervenção do amicus curiae poderá ocorrer durante a instrução processual, não sendo admissível depois de iniciado o julgamento”.89

esse é o entendimento seguido pelo próprio StF, como se colhe do que foi decidido nos autos da adin no 2.238, que teve como relator o então ministro ilmar Galvão, como se lê no informativo StF no 267: “considerou-se que a manifestação do amicus curiae é para efeito de instrução sendo possível admiti-la quando em curso o julgamento”.90

acrescente-se, mais, que se tem entendido que essa intervenção não se limita, tão-somente, à apresentação dos memoriais – que nada têm a ver com os memoriais que as partes distribuem aos julgadores antes do julgamento dos recursos – pois tem o sentido de registrar a participação do amicus curiae, da forma com que atua no processo, inclua, também, a sustentação oral, como reconhecido pelo Min. do StF celso de Mello, verbis: “[...] entendo que a atuação processual do amicus curiae não deve limitar-se à mera apresentação de memoriais ou a prestação eventual de informações que lhe venham a ser solicitadas”.

essa visão do problema – que restringisse a extensão dos poderes processuais do “colaborador do tribunal” – culminaria por fazer prevalecer, na matéria uma incompreensível perspectiva reducionista, que não pode (nem deve) ser aceita por esta corte, sob pena de frustração dos altos objetivos políticos, sociais e jurídicos visados pelo legislador na positivação da cláusula que, agora, admite o formal ingresso do amicus curiae no processo de fiscalização concentrada de constitucionalidade. Cumpre permitir, desse modo, ao amicus curiae, com extensão maior, o exercício

89 cf. Pelas asas de Hermes: a intervenção do amicus curiae, Revista de Direito Administrativo (rda), no 234, p. 138. citado pelo Prof. Gustavo binenbojm, op.cit., p. 12.90 cf. Prof. Gustavo binenbojm, op.cit., p. 12-13.

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de determinados poderes processuais, como aquela consistente no direito de proceder a sustentação oral das razões que justificaram a sua admissão formal na causa.91

com lastro nessas informações, observo que o procedimento da intervenção do amicus curiae contempla, notadamente nos processos de controle de constitucionalidade concentrado/abstrato, os seguintes elementos, como fases do procedimento:

1. requerimento dos eventuais interessados – ou outros órgãos ou entidades;

2. decisão irrecorrível do relator do processo, admitindo ou não o ingresso do amicus curiae. Para essa decisão examinará, basicamente, a relevância da matéria e a representatividade de quem se apresenta como amicus curiae;

3. Momento da intervenção que se admite até a fase instrutória do processo, considerando-se – em respeito aos processos de controle de constitucionalidade – que ela se dê no prazo de 30 (trinta) dias, contados da decisão que deferiu a intervenção;

4. Possibilidade de o amicus curiae apresentar razões escritas, inclusive com sustentação oral;

5. Julgamento final do feito pelo Tribunal competente, na forma prevista no respectivo regimento.

CONCLUSÃOÉ tempo de concluir. após as investigações realizadas é lícito concluir que na

interseção dos pianos do direito constitucional e do direito Processual nasceu uma nova disciplina, o direito Processual constitucional, que se rege pelos Princípios do direito Processual e do direito constitucional, com institutos próprios destas matérias, que, no entanto, não predominam em cada uma delas, mas apenas na novel disciplina. trata-se, pois, de matéria nova e mista.

No campo de atuação específica dessa nova disciplina, ressaltam os princípios constitucionais gerais aplicáveis ao processo como um todo – administrativo, legislativo, jurisdicional, tanto civil como penal – no sentido de conjunto de atos que torna possível o exercício do poder em suas várias formas, para o atingimento de seus fins e, além disso, a disciplina própria de atuação da jurisdição constitucional na defesa da própria constituição, quando se desenvolver um controle de

91 Grifos do original. cf. voto proferido na adin no 2.777. São Paulo. disponível em: <httplfconjur.uol.com.br/tcroosl23254>, transcrito pelo Prof.G ustavo binenbojm, op.cit., p. 16.

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constitucionalidade das normas e dos atos públicos, além de várias outras matérias aqui não mencionadas.

essas breves considerações foram traçadas, tão-somente, em busca da apreciação da verdadeira definição dessa fascinante disciplina e examinou, ainda que de modo sumário, os princípios constitucionais do processo e a disciplina do processo jurisdicional destinado ao controle de constitucionalidade das normas.

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conseqUências Do DescUmPrimento Da oBrigação amBiental Prévia à transação Penal

marcelo aDriano micheloti

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Resumo: a realização da transação penal em geral independe da prévia composição civil dos danos decorrentes da conduta praticada pelo autor do fato. No caso de crimes ambientais, entretanto, esta é uma condição obrigatória. de qualquer forma, o descumprimento dos termos da transação ou da composição civil deve ter tratamento diferenciado, não só em face do que dispõe a lei, mas também pelo que se observa na prática judiciária.Abstract: Benefit of plea bargaining in Brazil generally does not depend on the settlement on civil consequences of the defendant’s actions. However, it is compulsory if the case involves environmental crimes. at any rate, the defendant’s disobedience of their terms (both plea bargaining and civil settlement) should be treated differently, not only because of what the law says, but also what the practice shows us.Sumário: introdução. 1 Procedimento da transação penal. 2 descumprimento da obrigação de reparar o dano e da transação. Conclusão. Bibliografia.Palavras-chave: Juizado especial criminal. transação. crimes ambientais. descumprimento. consequências.

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INTRODUÇÃOa transação penal está expressamente prevista em nossa constituição, em

seu art. 98, i. Foi delimitada pelos arts. 69 a 76 da lei nº 9.099/1995. com a lei nº 9.605/1995, a composição dos danos passou a ser requisito prévio para seu oferecimento.

a diferenciação do que é a obrigação civil de reparação dos danos, daquilo que efetivamente é objeto da transação penal é necessária para se chegar às devidas consequências do descumprimento de uma ou de outra.

a mistura dessas duas coisas tem levado a tratar o acompanhamento/descumprimento delas da mesma forma.

analisar se existe a apontada distinção e as consequências de adotar uma ou outra posição é o objetivo deste breve texto.

1. Procedimento da transação penala audiência preliminar que faz menção o art. 72 da lei nº 9.099/1995 é

composta de duas partes: [1] composição dos danos e [2] proposta de aplicação imediata de pena não privativa de liberdade,1 que poderá ser restritiva de direitos ou multas.2

a composição dos danos tem relevância na parte penal quando se tratar de ação penal de iniciativa privada ou de pública condicionada à representação, pois o acordo homologado significará renúncia ao direito de queixa ou representação.3

Quando se tratar de ação penal pública incondicionada, a composição dos danos e a transação são completamente independentes uma da outra. em outras palavras, se não houver composição dos danos, isso não será impeditivo para a proposta da pena alternativa. Se acontecer a composição, isso, por si só, não será motivo suficiente para obter a transação.

Um pouco diferente será a situação quando envolver delitos ambientais. de acordo com o art. 27 da lei nº 9.605/1998, a proposta de aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multa (disposta no art. 76 da lei nº 9.099/1995), somente poderá ser formulada se houver a “prévia composição do dano ambiental”.

1 “art. 72. Na audiência preliminar, presente o representante do Ministério Público, o autor do fato e a vítima e, se possível, o responsável civil, acompanhados por seus advogados, o Juiz esclarecerá sobre a possibilidade da composição dos danos e da aceitação da proposta de aplicação imediata de pena não privativa de liberdade.”2 “art. 76. Havendo representação ou tratando-se de crime de ação penal pública incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas, a ser especificada na proposta.”3 “art. 74. [...] Parágrafo único. tratando-se de ação penal de iniciativa privada ou de ação penal pública condicionada à representação, o acordo homologado acarreta a renúncia ao direito de queixa ou representação.”

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essa prévia composição foi entendida pela doutrina especializada como compromisso de recuperação ambiental e não a efetiva reparação do dano.4

Portanto, há uma condição anterior ao momento do oferecimento da proposta de transação penal. assim, se o suposto autor do fato não se comprometer (acordar) a recuperar o ambiente degradado, não se vai para a fase seguinte (transação = aplicação da pena restritiva de direitos ou multa). Firmado o compromisso, então, nos termos do art. 76 da lei nº 9.099/1995, o Ministério Público, não sendo caso de arquivamento, poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas.

2. Descumprimento da obrigação de reparar o dano e da transação

Nos casos de crimes diversos dos ambientais, se não houver o cumprimento da obrigação civil acordada e homologada, o credor disporá de título executivo judicial para exigi-la.5 e, como se viu, se a composição civil não interfere na proposta de oferecimento da transação, consequentemente não traz qualquer interferência no cumprimento das penas restritivas de direito ou multas aceitas na transação penal.6

Se, no entanto, houver descumprimento das penas restritivas de direito ou multas, o Supremo tribunal Federal entendeu que se deve dar seguimento à persecução penal,7 no que foi seguido pela turma de Uniformização Nacional

4 “deve-se fazer a distinção, na esteira do pensamento de cezar roberto bitencourt, entre composição do dano e reparação do dano. Compor significa harmonizar, conciliar, acordar. Não induz, portanto, ao entendimento de que necessário seria reparar previamente o dano ambiental causado. reforça esse entendimento a remissão ao art. 74 da lei nº 9.099/95, que confere à composição do dano eficácia de título executivo judicial. Ora, se pode haver execução, no juízo cível, do título que corporificou a composição, não se está a exigir que antecipadamente o responsável promova a restauração do bem lesado.” (cOSta, Nicolau dino de castro e. Crimes e Infrações Administrativas Ambientais. 2.ed. brasília: brasília Jurídica, 2001. p. 154)“[...] a dúvida que surge é: é possível a transação se o infrator não reparou o dano? a resposta foi dada com clareza por Fábio Nesi Venzon, ao afirmar que ‘não há necessidade de que haja prévia recuperação do dano ambiental para que seja proposta a transação penal. a expressão prévia composição do dano ambiental referida no art. 27 da Lei 9.605/98 significa, isso sim, o necessário acordo, perante o juiz, no qual o infrator se compromete a recuperar o dano (obrigação de fazer), bem como a cessar a degradação que estava realizando (obrigação de não fazer)’.” (FreitaS, Vladimir Passos de Freitas e Gilberto Passos de. Crimes contra a natureza. 8.ed. São Paulo: ed. rt, 2006. p. 314-315).5 “art. 74. a composição dos danos civis será reduzida a escrito e, homologada pelo Juiz mediante sentença irrecorrível, terá eficácia de título a ser executado no juízo civil competente.”6 “[...] em se tratando de ação penal incondicionada, pouco importa tenha ou não ocorrido o acordo civil, pois ele não será considerado causa extintiva; [...]” (Fernando capez. Legislação Penal Especial. vol. 2. 6.ed. São Paulo: editora damásio de Jesus, 2007. p. 30)7 “traNSaÇÃO – JUiZadOS eSPeciaiS – PeNa reStritiVa de direitOS – cONVerSÃO – PeNa PriVatiVa dO eXercÍciO da liberdade – deScabiMeNtO. a transformação automática da pena restritiva de direitos, decorrente de transação, em privativa do exercício da liberdade discrepa da garantia constitucional do devido processo legal. impõe-se, uma vez descumprido o termo de transação, a declaração

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dos Juizados especiais Federais.8 em sentido diverso são as decisões do Superior tribunal de Justiça.9

em se tratando de delito ambiental, o referido compromisso de composição dos danos, se acaso não cumprido, também não gera qualquer interferência na transação penal. em outras palavras, se a pena não privativa de liberdade aplicada estiver sendo cumprida corretamente (ou já tiver sido cumprida), aquele descumprimento não gerará qualquer consequência aqui.

a consequência do descumprimento da obrigação civil (seja ela comum ou ambiental) está disciplinada no art. 76 da lei nº 9.099/1995: execução de título judicial no juízo cível competente. Não há qualquer alteração pelo fato de o compromisso de composição ambiental ser requisito obrigatório para a proposta de transação penal nos crimes ambientais. O título judicial também será executado no juízo cível competente e, como em geral se trata de obrigação de fazer (recuperação da área degradada), o processo seguirá o rito do art. 632 e seguintes do código de Processo civil.

Por outro lado, se o suposto autor do fato cumprir a obrigação ambiental e não fizer aquela da transação penal, a persecução penal estará aberta (seguindo o posicionamento do StF).

Homologado o compromisso de composição dos danos ambientais encerra-se a prestação jurisdicional do juízo criminal acerca desta questão. eventuais

de insubsistência deste último, retornando-se ao estado anterior, dando-se oportunidade ao Ministério Público de vir a requerer a instauração de inquérito ou propor a ação penal, ofertando denúncia.” (StF, Hc 79572-GO, rel. min. Marco aurélio, j. 29/2/2000, dJ 22/2/2002, p. 34).“HabeaS cOrPUS. lei dOS JUiZadOS eSPeciaiS. traNSaÇÃO PeNal. deScUMPriMeNtO: deNúNcia. SUSPeNSÃO cONdiciONal dO PrOceSSO. reVOGaÇÃO. aUtOriZaÇÃO leGal.1. descumprida a transação penal, há de se retornar ao status quo ante a fim de possibilitar ao Ministério Público a persecução penal (Precedentes).” (StF – Hc 88785-SP, dJ 4/8/2006, p. 78, rel. erOS GraU)8 “PedidO de UNiFOrMiZaÇÃO. traNSaÇÃO PreViSta NO art. 76 da lei nº 9.099/95. NatUreZa JUrÍdica. cONSeQUÊNciaS JUrÍdicaS dO deScUMPriMeNtO. a sentença homologatória de transação (art. 76 da lei nº 9.099/95), tem natureza meramente formal, não gerando qualquer efeito extintivo da punibilidade relativamente ao fato objeto da homologação. descumprindo o beneficiado o acordo, devidamente homologado, rescinde- se a homologação, e abre-se a possibilidade ao Ministério Público de instaurar, através de denúncia perante o juizado especial criminal, instância penal. Pedido de uniformização conhecido e desprovido.” (JeF – tNU – PedidO de UNiFOrMiZaÇÃO de iNterPretaÇÃO de lei Federal – Processo: 200361810048660, j. 17/3/2008, dJU 25/4/2008, rel. Juiz Federal aleXaNdre GONÇalVeS liPPel).9 HabeaS cOrPUS. direitO PeNal. FUrtO teNtadO. traNSaÇÃO PeNal aceita e HOMOlOGada. reVOGaÇÃO. iNcabiMeNtO. OrdeM cONcedida. 1. “a sentença homologatória da transação penal, prevista no art. 76 da lei nº 9.099/95, tem natureza condenatória e gera eficácia de coisa julgada material e formal, obstando a instauração de ação penal contra o autor do fato, se descumprido o acordo homologado.” (Hc nº 33.487/SP, relator Ministro Gilson dipp, in dJ 1º/7/2004).2. “Ordem concedida.” (StJ – Hc 72671-rJ, rel. Min. HaMiltON carValHidO – SeXta tUrMa, j. 30/8/2007, dJe 4/8/2008).

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providências (tais como apresentação de projetos de recuperação, demolição de construção irregular) que devam ser tomadas pelo suposto autor do fato devem ser fiscalizadas pelo Ministério Público,10 no âmbito administrativo.

e assim deve ser porque a prática tem demonstrado que a análise desse cumprimento (seja na apresentação dos Prads, seja na sua execução) no juizado criminal só tem servido para levar à prescrição dos crimes ambientais, para os quais a maioria das penas ao final aplicadas sujeitam-se ao prazo prescricional de dois anos. deve-se lembrar que a transação penal não é marco interruptivo da prescrição e que durante o cumprimento das penas alternativas, ela não é suspensa (diferentemente é a hipótese do art. 89, § 1º da lei nº 9.099/1995).11

É que os organismos ambientais (ibama, autarquias ou órgãos estaduais ou municipais) demoram na análise dos PRADs e muito mais ainda na verificação de sua execução. Por outro lado, por vezes, o próprio autor do fato não apresenta o projeto no prazo especificado. Tudo isso leva o processo a um sem número de atos inúteis, nos quais se determina a intimação das partes e do órgão ambiental para ficar um respondendo ao outro.

Portanto, é forçoso concluir que o juizado penal não tem competência para este tipo de fiscalização e que o contrário tem levado os processos à prescrição penal.

CONCLUSÃOSão momentos distintos na audiência preliminar a composição dos danos e

a proposta de transação penal (aplicação de penas restritivas de direitos ou multa). Uma independe da outra, tanto na proposta, quanto em eventual descumprimento. O descumprimento da obrigação civil leva a sua execução no juízo cível competente e o da transação determina o prosseguimento da persecução penal.

Quando se trata de crimes ambientais, a composição dos danos (compromisso de recuperação da área degrada) é condição para possibilitar a proposta de transação penal. Sem a aceitação daquela, não é possível esta. No mais, suas características são idênticas à transação de outras espécies crimes. assim, o descumprimento da obrigação de reparação do dano ambiental levará seu cumprimento no juízo cível competente, não tendo qualquer interferência na aferição da extinção da punibilidade pelo cumprimento das penas restritivas de direito ou de multas objeto da transação.

10 lei complementar 75/1993, artigo 8º.11 “art. 89. [...] § 6º Não correrá a prescrição durante o prazo de suspensão do processo.”

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interPretanDo o ParágraFo 3o Do art. 16 Da lei no 8.213/1991 à lUz Da constitUição De 1988

márcia hoffmann Do amaral e silva tUrri

JUíza feDeral

Abstract: it shall be the role os the interpreter to ask about whether or not certains readings would exist in such a manner that they should be refused by the time of questioning the meaning attributable to a certain text, whether legal or not. When we examine the constitucional rules, emphasizing the article 201, V, we can infer the vertical impossibility of reconciliation between them and the article 16, § 3rd, of the Federal law 8.213/1991, due to the exceding of the limits we may infer from da Federal constitucion.

A interpretação do significado dos textos é a atividade central das designadas “ciências Humanas”. Mas não é, evidentemente, uma atividade inventada no século XX, tendo, ao contrário, uma longa história no pensamento ocidental, derivada, sobretudo, da tarefa de instituir o significado da Palavra de Deus. Na fase moderna dessa história, a questão nuclear que vem se colocando é: existem limites ao significado que se pode dar a um texto? as intenções do autor seriam relevantes para estabelecer tais limites? algumas leituras deveriam ser recusadas? Umberto eco, eminente teórico da Semiótica, além de conhecido romancista, entende que a “intenção da obra” pode estabelecer limites às interpretações possíveis. em suas próprias palavras:

[...] entre a interpretação do autor (muito difícil de descobrir e freqüentemente irrelevante para a interpretação de um texto) e a intenção do intérprete que (para citar richard rorty) simplesmente “desbasta o texto até chegar a uma forma que sirva a seu propósito” existe uma terceira possibilidade. existe a intenção do texto.” 1 Ou, em

1 UMbertO ecO. Interpretação e Superinterpretação. “interpretação e História”. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 29.

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outra passagem: entre “(...) a intenção inacessível do autor e a intenção discutível do leitor está a intenção transparente do texto, que invalida uma interpretação insustentável.2

também na “ciência Jurídica”,3 a interpretação é atividade fundamental, na medida em que não há norma sem interpretação. como diz tercio Sampaio Ferraz Junior, “[...] toda norma, pelo simples fato de ser posta, é passível de interpretação”.4 e não é uma atividade fácil, a começar pelo fato de que os termos utilizados pelo direito são, em sua maioria, semanticamente vagos e ambíguos, vale dizer, costumam denotar campos de objetos indefinidos e conotar várias significações. Além disso, mesmo quando a conotação e a denotação são definidas, pode ocorrer que as conexões sintáticas entre os termos não sejam tão claras. Há de se lembrar, por fim, que os símbolos da língua natural admitem usos diferentes na medida em que são diferentes as suas funções pragmáticas, isto é, as palavras, no contexto pragmático, contêm uma carga emocional que pode produzir alterações na significação, a depender do propósito a que servem. Não esgoto, com isso, o rol de dificuldades encontradas pelo hermeneuta. Há muitas outras, cuja menção refoge aos objetivos deste texto. O que desejo salientar, de qualquer forma, é que o problema da interpretação jurídica está inserido em um universo de complexidades.

a complexidade não pode levar o aplicador do direito, contudo, a uma situação de indecidibilidade. Afinal, um dos princípios que impera em nosso sistema processual é o da indeclinabilidade da jurisdição, consistente na proibição de o juiz pronunciar o non liquet, como se verifica pelo disposto no art. 126 do Código de Processo civil.5 Mesmo diante de uma dificuldade hermenêutica, portanto, cabe ao julgador encontrar um modo de ultrapassá-la no caso concreto, proferindo uma decisão que ponha termo ao conflito de interesses trazido a juízo.

trazendo para o universo jurídico a indagação que vem sendo feita frequentemente na esfera literária, pergunto, então: há limites ao significado que se pode dar a uma norma? Parafraseando Umberto eco, eu diria que, entre a interpretação do legislador originário (difícil de descobrir, até porque o responsável pela positivação da norma raramente é uma pessoa fisicamente identificável, e muitas vezes irrelevante para a interpretação do texto legal) e a intenção do operador

2 UMbertO ecO. Interpretação e Superinterpretação. “entre autor e texto”. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 93.3 coloco entre aspas porque tenho lá minhas dúvidas se o direito seria, de fato, uma ciência, na acepção que lhe dá, por exemplo, Karl r. Popper.4 in: Introdução ao estudo do direto – técnica, decisão, dominação. São Paulo: atlas, 1988, p. 239.5 “art. 126. O juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide, caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito.”

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jurídico que desbasta o preceito normativo até chegar a um sentido que sirva melhor a seu propósito, existe, digamos assim, a “intenção da norma”. e é essa intenção que vou tentar perquirir ao examinar, inicialmente, o art. 201, inciso V, da vigente constituição da república, assim redigido:

art. 201. a previdência social será organizada sob a forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, nos termos da lei, a:[...]V – pensão por morte do segurado, homem ou mulher, ao cônjuge ou companheiro e dependentes, observado o disposto no § 2o.[...]§ 2o Nenhum beneficio que substitua o salário de contribuição ou o rendimento do trabalho do segurado terá valor mensal inferior ao salário mínimo.[...].

lendo o inciso V do supracitado art. 201, vê-se que o estatuto Supremo assegura a pensão por morte do segurado, homem ou mulher, também ao companheiro ou companheira, sem entrar em pormenores. em outras palavras, a constituição de 1988 não diz que a relação entre o segurado e seu companheiro ou companheira só será objeto de proteção securitária se não houver impedimentos jurídicos para o casamento nem delegou a outrem a tarefa de preencher eventual lacuna na conformação do fato regulado. a ausência de detalhamento dessa relação impõe, portanto, certos limites exegéticos, impedindo uma leitura tão descomprometida com as palavras do texto a ponto de fazer com que o alcance da norma constitucional fique muito aquém de sua intenção, que é o que ocorre, por exemplo, quando a legislação ordinária resolve proteger um conjunto de pessoas evidentemente menor que aquele tutelado pela Magna carta. Parafraseando novamente Umberto Eco, eu afirmaria que, entre a intenção inacessível da assembleia Nacional constituinte e a intenção discutível do intérprete, está a intenção transparente do preceito constitucional, que invalida uma interpretação insustentável, como a que foi assumida, no meu entender, pelo parágrafo 3o do art. 16 da lei no 8.213/1991, abaixo transcrito:

considera-se companheira ou companheiro a pessoa que, sem ser casada, mantém união estável com o segurado ou com a segurada, de acordo com o § 3o do art. 226 da constituição Federal.

Dados os limites do significado que se pode dar ao art. 201, inciso V, da Carta Fundamental, afigura-se demasiadamente restritiva, com efeito, a definição veiculada pelo aludido parágrafo 3o, que inclui uma condição (a ausência de casamento) não contemplada pela norma constitucional para o reconhecimento

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da união estável. Poder-se-ia objetar, por certo, que o caput do art. 201 se valeu da expressão “nos termos da lei”, o que daria, em tese, uma razoável margem de liberdade ao legislador para estender ou restringir os marcos significativos dos conceitos inseridos no inciso V. em contraposição a essa réplica hipotética, volto a me socorrer da crítica literária para lembrar que as palavras de um texto constituem um conjunto de evidências materiais que o leitor não pode ignorar. cito, a título ilustrativo, o argumento levantado por Umberto eco, que, embora paradoxal, prova que existem casos em que uma interpretação é decididamente ruim:

[...] se Jack, o estripador, nos dissesse que fez o que fez baseado em sua interpretação do evangelho segundo São lucas, suspeito que muitos críticos voltados para o leitor se inclinariam a pensar que ele havia lido São lucas de uma forma despropositada. Os críticos não voltados para o leitor diriam que Jack, o estripador, estava completamente louco – e confesso que, mesmo sentindo muita simpatia pelo paradigma voltado para o leitor, [...] muito a contragosto eu concordaria com que Jack, o estripador, precisava de cuidados médicos.6

corroborando o entendimento acima, lembro que a lei Fundamental, reverenciando a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, consagrou postulados axiológicos mais sintonizados com a realidade contemporânea do que aqueles agasalhados pela ordem jurídica anterior, a qual, no entanto, já admitia o amparo social da companheira do segurado casado, como se verifica pelo teor da Súmula no 159, do extinto tribunal Federal de recursos, que dizia ser “[...] legítima a divisão da pensão previdenciária entre a esposa e a companheira, atendidos os requisitos exigidos”.

desse modo, cotejando o supramencionado art. 201, inciso V, com o art. 1o, inciso iii – que erige a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos de nosso estado democrático de direito – e com o art. 3o, inciso iV – que elenca, no rol dos objetivos fundamentais de nossa república, a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação – todos da Magna carta, pode-se concluir que há uma incompatibilidade vertical entre a restrição contida no parágrafo 3o do art. 16 da lei no 8.213/1991 e o texto constitucional, o qual admite que a união estável de duas pessoas possa ensejar a proteção securitária, em tese, ainda que uma delas seja casada, em uma exegese que melhor garante, inclusive, a universalidade da cobertura, veiculada no art. 194, parágrafo único, inciso i, da carta de 1988.

Há quem defenda que o conceito do parágrafo 3o do art. 16 do Plano de benefícios esteja amparado constitucionalmente porque se encontra em harmonia com o parágrafo 3o do art. 226 da constituição da república, o qual preceitua 6 in: Op. cit. “interpretação e História”, p. 28-29.

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que, para “[...] efeito de proteção do estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”. a essa segunda objeção, respondo que o estatuto Supremo determinou à lei que facilitasse a conversão da união estável entre homem e mulher em casamento, decerto, mas não disse, expressamente, que apenas a entidade familiar estruturada nos moldes do que o direito civil denomina de “concubinato puro” seja passível de proteção estatal. Pondero, ainda, que o art. 226 diz respeito à família, tutelada por vários ramos do direito, ao passo que o art. 201 cuida especificamente da Previdência Social, não havendo como negar, por conseguinte, que é a norma veiculada por esse último preceito, e não por aquele, a mais adequada para figurar como vetor para soluções interpretativas dentro do contexto securitário. anoto, por fim, que a pensão previdenciária é um substituto da remuneração do segurado falecido aos seus dependentes, os quais devem ser acudidos indistintamente, na ausência do provedor, a fim de que possam, em suma, continuar vivendo. Ora, por mais louvável que seja resguardar a sociedade conjugal das agruras do adultério, parece-me evidente que, na escala de valores consagrada pela constituição em vigor, a subsistência humana configura preocupação mais elevada.

Feitas essas considerações, e devotando todo o meu sincero respeito aos que pensam diferente, espero ter conseguido persuadir algum leitor, pelo menos, de que a intenção do texto constitucional é incongruente com a restrição contida no parágrafo 3o do art. 16 da lei no 8.213/1991, restando ao órgão jurisdicional reconhecer, portanto, sua inconstitucionalidade. aos que ainda estão em dúvida, peço licença para me valer de um último argumento, ab auctoritatem (afinal, o prestígio da opinião de uma autoridade no assunto favorece a tese sustentada, havendo que se admitir que sua menção possui inegável valor retórico): outros magistrados já vêm se posicionando em sentido análogo, como se pode verificar, por exemplo, pelas seguintes passagens, constantes da obra dos ilustres Juízes Federais daniel Machado da rocha e José Paulo baltazar Junior:

A Lei de Benefícios conceitua, para fins previdenciários quem deve ser reconhecido como companheiro ou companheira. tal conceito nos parece restrito em demasia, o que pode ter sérias implicações na percepção do benefício de pensão por morte [...].em nossa opinião, o inciso V do art. 201 da lei Fundamental consagra o direito de pensão ao companheiro ou companheira, conceito que sem dúvida é mais amplo do que o de união estável [...].a constituição, bem se vê, não restringiu o direito à pensão apenas aos companheiros que vivam em união estável [...].7

7 in: Comentários à Lei de Benefícios da Previdência Social. 2a edição. Porto alegre: livraria do advogado/esmafe, 2002, p. 81.

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sUPremo triBUnal FeDeral temPo De mUDança e De

Fortalecimento

paUlo fernanDo silveira

JUiz feDeral aposentaDo.JUrista.

escritor.membro Da acaDemia De letras Do triânGUlo mineiro-altm.

Resumo: comemorando os vinte (20) anos de existência da constituição de 1988 – a constituição-cidadã na expressão de Ulisses Silveira Guimarães – este artigo enfoca a premente necessidade de mudança de mentalidade do judiciário brasileiro, notadamente do Supremo tribunal Federal, como poder não eleito, de característica antimajoritária, de modo a se tornar, de fato, um poder político independente, de igual dimensão constitucional dos demais ramos eleitos governamentais, de cunho majoritário, que elaboram as medidas-provisórias, leis e as emendas constitucionais. assim, poderá – mediante aplicação dos princípios constitucionais, sem esperar pela vinda de leis – proteger, com efetiva eficácia, sua própria independência e o exercício dos direitos individuais, de cunho minoritário, sem perda de sua missão constitucional de freios e contrapesos.

Palavras-chave: a independência do judiciário. Poder antimajoritário. Necessidade de mudança de mentalidade do judiciário. controle das medidas-provisórias, leis e emendas constitucionais com base na doutrina dos freios e contrapesos. aspectos majoritários da legislação. O judiciário como defensor de sua própria independência e dos direitos individuais. cunho minoritário destes.

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Sumário: 1. introdução. 2. Um passado honrado, porém constitucionalmente nada enaltecedor, do judiciário brasileiro. 3. alguns aspectos a considerar. 4. em defesa de sua independência. 5. em defesa da constituição. 6. em defesa do poder legislativo. 7. Valorização política das decisões do Supremo tribunal Federal. 8. dos recursos para o Supremo tribunal Federal. 9. da quebra do princípio do devido processo legal (due process of law). 10. imunidade parlamentar. 11. conclusão. 12. abstract. 13. referências.

Abstract: Celebrating the 20th anniversary of the 1988 Constitution – the citizen Constitution as it was called by Ulisses Silveira Gimarães – this article focuses the pressing necessity of a change in the judiciary mind, mainly by the Justices of the Federal Supreme Tribunal, as a non elective power, characteristically antimajoritarian, in order to become, de fato, an independent politic power, in the same constitutional dimension of the two other majoritarian governmental branches, which make laws and constitutional amendments. Acting so it will protect – with effective efficacy, applying the constitutional principles, without waiting for the coming of the laws – its own independence and the individual civil rights, of minoritarian aspect, without loss of its checks and balances constitutional mission.

Key words: The independence of the Judiciary. Antimajoritarian power. Necessity of a change in the judiciary mind. Control of the medidas-provisórias, laws and constitutional amendments by the checks and balances doctrine. The majoritarian characteristics of the laws. The judiciary as the guardian of its own independence and of the civil rights. Both have minoritarian aspects.

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INTRODUÇÃOPassar a ser, efetivamente, um corpo político independente, da mesma

importância dos demais ramos governamentais, de sorte a exercer, como poder não eleito, de característica antimajoritária, a defesa dos direitos individuais, eminentemente minoritários, em face das leis e emendas constitucionais elaboradas pelos poderes eleitos, de feição majoritária, constitui o maior desafio a ser enfrentado pelo judiciário brasileiro, mormente pelo Supremo tribunal Federal.

1. Um passado honrado, porém constitucionalmente nada enaltecedor, do Judiciário brasileiro

a constituição republicana de 1891 foi, sabiamente, copiada por rui barbosa da constituição americana de 1787. lá, o poder judiciário constitui um poder político, visto que por força interpretativa da Supreme Court foi instituído o judicial review, pelo qual o juiz pode anular as leis aprovadas pelos poderes eleitos (legislativo e executivo). desprezou-se o modelo francês de repartição dos poderes, então em voga, pelo qual o Judiciário é escravo da literalidade da lei, sem força política para anulá-la. ao adotar o paradigma constitucional americano, visou-se libertar o poder Judiciário brasileiro do jugo do executivo, vez que até então o imperador, no exercício acumulado do poder executivo e do poder moderador, podia nomear e demitir juízes, de acordo com sua exclusiva conveniência. Pela primeira vez na história brasileira o Judiciário foi equiparado politicamente aos demais ramos governamentais, ao lhe conferir o poder de ser a última palavra na interpretação da constituição e das leis a ela subordinadas. esse assunto será mais bem explicado no item 5.1 abaixo.

contudo, tal equiparação até agora não ocorreu, de fato, plenamente. Se, formalmente, a teor das diversas constituições que permearam o período republicano, recheado de atos arbitrários do executivo, exercido, quase sempre, por governo ditatorial, o Judiciário sempre foi considerado um poder político, na prática ele nunca desempenhou, com a amplitude autorizada pela carta Política e requerida por uma sociedade escravizada pelas leis, sua missão constitucional, notadamente a de defender os direitos individuais contra os ataques do estado.

Fraco e cambaleante, o Judiciário brasileiro sempre optou pelo formalismo, priorizando o positivismo da lei, aceitando-a tal como expressa, salvo pequenas interpretações vernaculares, sem lhe agregar, em face dos princípios constitucionais, algum valor social adicional, ou restringir-lhe, por força desses mesmos princípios, os privilégios e desigualdades nela contidos. daí por que, no brasil, pouca diferença faz a raça, o sexo e a religião do juiz, ou se tem visão conservadora ou progressista

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do mundo, se é culto ou bisonho (desde que passe no concurso), já que ele – preso à literalidade da lei, conforme a história comprova – não vai interferir na valorização da norma jurídica, cujo conteúdo e abrangência sempre foram delineados, de modo inalterável, pelos poderes eleitos (legislativo e executivo).

Passar a ser um poder político, de modo a ajudar a construir uma nação, tão carente de diretivas sábias e desinteressadas, de modo a, sentido as reais necessidades do povo, em cada momento histórico, exercer o seu papel constitucional, confrontando-se, necessariamente, com o poder executivo na interpretação da constituição e balizando as leis dentro dos princípios ali expressos (já que o legislativo historicamente sempre se comportou como mero apêndice do executivo, vergando-se aos interesses do governo que está, momentaneamente, no poder), revela-se uma necessidade premente de nosso Judiciário, capitaneado, é lógico, pelo Supremo tribunal Federal, que deve ser o primeiro a dar o exemplo e não aquele que, costumeira e decepcionantemente, tem anulado as iniciativas das esferas inferiores.

Ultimamente, após mais de um século de pseudorrepública democrática – os períodos ditatoriais dos governos de artur bernardes (1922/1926), de Getúlio Vargas (1930/1945) e dos militares (1964/1985) contribuíram para a fragilidade do Judiciário, pois nesses períodos sua jurisdição foi diminuída, ora por emendas constitucionais, ora por atos institucionais –, o Judiciário, principalmente suas cortes inferiores, tem, devagarzinho, procurado se firmar como poder político. Não obstante, falta mudar muito a cultura legalista/positivista que está entranhada na mente dos juízes. longo é o caminho e muitas lutas ainda terão de ser travadas até que o Judiciário adquira, de fato, seu status constitucional de poder político.

2. Alguns aspectos a considerarPara se tornar um poder político independente, o Judiciário, representado

pelo Supremo tribunal Federal, necessita, data venia, alterar sua mentalidade judicial (judicial mind), tais como as abaixo elencadas, a fim de ajudar a realizar o bem-estar social por meio de interpretação construtiva da constituição – sem esperar por leis que regulem as normas constitucionais – ao regrar os casos que lhe forem submetidos, ainda que deflagre o inevitável confronto com o poderoso poder executivo. em uma democracia, o ocasional embate entre os poderes políticos é essencial, necessário e salutar.

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3. Em defesa de sua independência3.1. Provimentos definitivos

tem-se como evidente por si que, como regra, toda vez que o estado brasileiro legisla, por meio de seus poderes eleitos, majoritários, por qualquer meio (emenda constitucional, lei e medida provisória), o indivíduo perde, imediatamente, dinheiro (em casos de tributação e multas administrativas) ou parte de sua liberdade (restrições administrativas e/ou tipificação de antiga conduta, antes lícita, agora como tida delituosa). Mesmo os direitos assegurados na constituição raramente são plenamente contemplados na legislação que, às vezes, ignora-os ou não lhes dá eficácia. Dificilmente aparece uma lei concessiva de direitos outros que não os já mencionados na lei fundamental.

daí surge a necessidade, em uma república democrática, da existência do poder Judiciário independente, como poder não eleito, por isso mesmo de feição antimajoritária, para controlar os ramos eleitos, a fim de que só atuem dentro dos precisos termos em que autorizados pela constituição, considerados, principalmente, os princípios fundamentais, os valores sociais e os direitos individuais nela inseridos, superiores que são às regras constitucionais e às leis, estas de inferior hierarquia.

Justamente pela magnitude de sua missão constitucional, o Judiciário não pode ser usado pelos ramos majoritários a fim de escoimar da lei suas impurezas, mediante pronunciamento feito somente com base na análise em tese, antes de se saber os seus múltiplos e incertos efeitos sobre o povo, ou antes de se ter, com base nela, um caso concreto submetido a exame por uma instância inferior. Há de se modificar, pois, o atual modelo de controle constitucional concentrado.

Com efeito, por conta dele, figura na Constituição a competência originária do Supremo tribunal Federal para julgar a ação declaratória de inconstitucionalidade de lei ou a o Normativo Federal ou estadual – adi e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato Normativo Federal – adc (cF-art. 102, i, a).

a adc se distingue da adi, já que esta opera em favor do povo, contra a ação legislativa governamental, que restringe direitos ou impõe tributos, sanções ou obrigações ao indivíduo, enquanto que pela primeira o governo tenta obter, antecipadamente, já prevendo que a lei será atacada por inconstitucionalidade perante o Judiciário de primeiro grau, uma bênção saneadora do Supremo tribunal, de modo a fazer calar aqueles que contra ela, fatalmente, se insurgiriam.

Não obstante sua nobre finalidade, a ADI ressente-se de dois vícios perigosos: a supressão da instância e a solitária decisão de cúpula. a cláusula do devido processo legal (due process of law), contida nos itens liV e lV do art. 5o da constituição Federal, abomina, como inconstitucionais, decisões das quais não

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caibam recursos. Por isso, o dispositivo ressalta o direito à ampla defesa, com os meios e os recursos a ela inerentes.

como o Supremo tribunal Federal é a maior e última instância, das decisões por ele proferidas não cabem recursos para nenhum outro tribunal. aí reside o perigo para o regime democrático. bem apropriado ao caso, apresenta-se a advertência do Chief Justice Warren e burger, da Suprema corte americana, quando diz:

Um tribunal que é final e irrecorrível precisa de escrutínio mais cuidadoso do que qualquer outro. Poder irrecorrível é o mais apto para auto-satisfazer-se e o menos apto para engajar-se em imparciais auto-análises [...] em um país como o nosso, nenhuma instituição pública, ou pessoal que a opera, pode estar acima do debate público.1

Para se vencerem esses dois obstáculos, o melhor será, em se mantendo o controle concentrado de inconstitucionalidade, impor o duplo grau de jurisdição, com os recursos inerentes, como quer a constituição, em face do princípio do devido processo legal, por ela adotado, que prevalece sobre a norma constitucional. assim, em uma interpretação construtiva, admitir-se-á a ação declaratória de inconstitucionalidade (adi), desde que seja ajuizada, pelas pessoas elencadas na carta política, perante os tribunais regionais Federais.

Já no que concerne à ação direta de constitucionalidade (adc), ela é, permissa venia, intolerável em face dos princípios que informam e dão fundamento à nossa constituição Federal. O dispositivo que a autoriza é, a meu ver, inconstitucional, pois fere o princípio da separação dos poderes, eis que em razão deste o Supremo tribunal Federal, como poder político independente, não pode funcionar como mero parecerista, para dizer a pedido do governo, a priori, na ausência de um caso concreto, envolvendo uma disputa litigiosa, já apreciada pelas cortes inferiores, que uma lei ou ato normativo federal é constitucional.

ao se sujeitar à literalidade desse preceito, o Supremo tribunal Federal – com o devido respeito –, despe-se de sua dignidade constitucional, ficando subordinado aos outros ramos governamentais, que o utilizam como emissor de parecer teórico sobre a virtual constitucionalidade de uma lei, ou ato normativo federal, já que ninguém, de bom senso, pode prever os inúmeros ângulos de inconstitucionalidade que um ou outro pode, de fato, suscitar no mundo real. Mesmo as palavras, constantes das próprias normas constitucionais, não podem, antecipadamente, ter seu sentido fixado de modo perene, nem antevistas como tendo um só significado, nem pelo mais dotado dos seres humanos, ou o mais renomado de seus intérpretes, quando esses vocábulos forem confrontados com os fatos, cambiantes, multiformes e variados no tempo, da vida real.1 WOOdWard, bob; arMStrONG, Scott. Por Detrás da Suprema Corte. São Paulo: Saraiva, 1985, p. 7.

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Vale lembrar que também nos estados Unidos o Poder executivo tentou despojar a Supreme Court de sua independência, transformando-a em corte de consulta (advisory opinion), o que foi rejeitado por ela, como exposto em meu livro Devido Processo Legal – Due Process of Law:2

a experiência demonstrou a sabedoria das ponderações de Hamilton. Mesmo na américa, o judiciário demorou a conquistar um lugar de honra como poder político equivalente aos demais. O primeiro teste aconteceu logo no início da república. bernard Schwartz relata que em 1793, o presidente Washington, através de uma correspondência encaminhada aos Justices por Jefferson, então Secretário de estado, procurou aconselhamento da Suprema corte numa série de problemáticas questões abstratas sob a égide do direito internacional, que já haviam ocorrido ou poderiam ocorrer brevemente. O chief-Justice John Jay e seus associados primeiro adiaram a resposta até a reunião da corte e, então, três semanas depois, responderam polidamente, mas firmemente, declinando dar a solicitada resposta.”3

laurence tribe ensina que as cortes Federais são barradas pelo requisito do caso concreto controverso de decidirem questões abstratas, hipotéticas ou contingenciais. a proibição remonta à celebrada recusa da Suprema corte, na gestão do Chief-Justice John Jay, de aconselhar informalmente o presidente Washington sobre questões relacionadas à neutralidade dos estados Unidos na Guerra europeia de 1793 e por uma anterior recusa, por um membro daquela mesma corte, em dar aconselhamentos extrajudiciais ao congresso e ao secretário da Guerra sobre requerimentos de pensões.4

desde então, considerou-se inconstitucional a apreciação de casos abstratos ou hipotéticos. a adjudicação judicial só poderá ocorrer em face de um caso concreto. esclareceu-se que um caso ou controvérsia no sentido de um litígio maduro e certo para adjudicação constitucional pela corte implica uma real contenda. (A case or controversy in the sense of a litigation ripe and right for constitutional 2 SilVeira, Paulo Fernando. Devido Processo Legal – Due Process of Law. belo Horizonte: del rey, 3a ed, 2001, p.104-106.3 ScHWartZ, bernard. A history of the Supreme Court. USa: Oxford University Press, 1993, p. 25: in: 1793 President Washington, through a letter sent to the Justices by Secretary of State Jefferson, sought the advice of the Supreme Court on a series of troublesome “abstract questions” in the realm of international law “which have already occurred, or may soon occur”. Chief-Justice Jay and his associates first postponed their answer until the sitting of the Court and then, three weeks later, replied politely but firmly, declining to give the requested answer.4 tribe, laurence H. American Constitutional Law. USa: Foundation Press, 1988, 2nd ed., p. 73: The ban on advisory opinions traces from de Supreme Court’s celebrated refusal under Chief-Justice Jay to advise President Washington informally on questions relating to the neutral status of the United States in de European war of 1793, and from de earlier refusal by members of that same Court to give extrajudicial advice to Congress and the Secretary of War on pension applications.

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adjudication by this Court implies a real contest). Um ano antes, no caso Hayburn (1792), os Justices haviam decidido que não poderiam, como juízes, emitir decisões que seriam sujeitas à revisão por outro corpo ou autoridade do governo. (As judges, render decision that were subject to revision by some other body of officer).5

Daí por que se me afigura inconstitucional o art. 28, do Código de Processo Penal, que determina ao juiz, se não concordar com o pedido de arquivamento do inquérito policial, que o remeta, com as suas razões, ao procurador-geral para este decidir se oferece a denúncia ou insiste no pedido de arquivamento, quando então o juiz é obrigado a atendê-lo. O correto – já que o pronunciamento judicial (cuja força não pode ser ignorada por nenhuma autoridade) só pode ser cassado ou reformado dentro da própria esfera do Poder Judiciário, por meio dos recursos postos à disposição do prejudicado, no caso o Ministério Público – é que o promotor de justiça colha antes, administrativamente, o assentimento do procurador-geral, ou do órgão especial encarregado desses casos, permitindo seu encerramento e já venha a juízo munido desse consentimento, quando, então, o magistrado acatará o pedido em respeito à posição do Ministério Público como senhor da ação penal (defensor dos interesses da sociedade).

3.2. limitação da competência jurisdicionaldecorre do princípio da separação dos poderes que nem o legislativo

(através de emendas constitucionais e leis) nem o executivo (no brasil, por Medidas Provisórias) pode, constitucionalmente, impor atribuições outras ao Judiciário, que não sejam próprias desse poder, ou retirar de sua competência privativa o que for inerente ao seu poder, ou determinar que o exercício deste seja executado de outra forma, que não a jurisdicional, isto é, de maneira judicial, mediante decisões e julgamentos proferidos dentro de um processo, com efeito de provimentos cautelares ou sentenças definitivas, não sujeitos à revisão pelos outros departamentos do governo, salvo quando superados por emendas constitucionais.

a verdade dessa proposição, que tem origem no princípio acima, é manifesta, uma vez que a constituição, pelo princípio da separação dos poderes, atribui ao Judiciário a jurisdição e especifica sua competência. O poder de dizer o direito, mediante julgamentos, não pode ser restringido ou anulado, sob pena de inconstitucionalidade. a função do juiz de primeiro grau de julgar os casos que lhe são apresentados e dos tribunais de julgar apelações decorre diretamente dos princípios democráticos adotados pelo regime de governo e tem como fonte direta a própria carta política. além do mais, o poder concedido ao legislativo para modificar, por meio de emendas, a competência dos órgãos jurisdicionais só se 5 ScHWartZ, bernard. Op.cit.

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admite quando não abole, destrói ou diminui a jurisdição destes. Por meio de lei, ele não pode alterar as competências constitucionalmente atribuídas.

convém relembrar, neste momento, a opinião do Justice curtis, da Suprema corte dos estados Unidos, lançada há mais de um século e, ainda, considerada como estrela polar das limitações do congresso em termos de abordagem, pelo legislativo, do exercício do poder jurisdicional (Murray’s lessee v. Hobokenland and improvement co.-1855). Para ele – o que se tornou doutrina pacífica na américa do Norte –, o congresso não pode retirar do conhecimento judiciário qualquer assunto que, pela sua natureza, é objeto de uma ação pelos costumes ou pela equidade, ou pelo almirantado, nem, na outra mão, trazer para apreciação do Poder Judiciário uma matéria, que, pela sua natureza, não é sujeita à determinação judicial.6

em razão disso, no brasil, a jurisdição faz parte do núcleo pétreo, contida no princípio da separação dos poderes e nas garantias dos direitos e garantias individuais, ambos não modificáveis por Emenda à Constituição (CF, art. 60, § 4o). Portanto, há limitações que recaem sobre a maioria, ainda que sua vontade seja instrumentalizada mediante emendas constitucionais ou por leis, oriundas dos poderes eleitos, majoritários. a respeito, adverte robert H. bork:

Há coisas que a maioria não pode fazer, por mais democraticamente que tenha sido a decisão. São áreas deixadas para a liberdade individual, sendo a coerção da maioria nesses aspectos da vida uma tirania [...] a tirania da maioria ocorre se a legislação invade as áreas próprias deixadas para a liberdade individual [...].”7

e, ao Poder Judiciário, compete, obrigatoriamente, proteger-se das intrusões dos outros poderes e, precipuamente, assegurar os direitos fundamentais.

alexander Hamilton, no Federalista no 78, salientou, de forma lapidar, essa função magna atribuída ao Judiciário, verbis:

É muito mais racional supor que as cortes foram desenhadas para ser um corpo intermediário entre o povo e o legislativo, de modo, entre outras coisas, manter o último dentro dos limites designados para sua autoridade. a interpretação das leis é a província própria e peculiar das cortes. a constituição é, de fato, e deve ser considerada pelos juízes, como uma lei fundamental. Por conseqüência, pertence a eles

6 tribe, laurence H. Op.cit., p.51: We do not consider Congress can either withdraw from judicial organizance any matter which, from its nature, is the subject of a suit at common law, or in equity, or admiralty; nor on the other hand, can it bring under the judicial power a matter which, from its nature, is not a subject for judicial determination.7 GarVeY, John H. and aleinikof, t. alexander. Modern Constitutional Theory: A Reader. USa: West Publishing co., Second edition,.41: There are some things a majority should not do to us no matter how democratically it decides to do them. These are areas properly left to individual freedom […].

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declarar seus significados, como também o sentido de qualquer ato particular proveniente do corpo legislativo. Se acontecer de haver uma variação entre elas, aquela que tem obrigação e validade superior deve, certamente, ser preferida; ou, em outras palavras, a constituição deve ser preferida à lei, a intenção do povo à intenção de seus agentes.8

Note-se que as nossas constituições republicanas, desde a primeira de 1891, sempre adotaram o modelo americano, do qual são cópias quase fiéis no que se refere à estrutura do governo e à repartição das competências políticas constitucionais e à independência dos ramos legislativo, executivo e Judiciário.

3.2.1. Relaxamento de prisão de deputado e senador pela respectiva Casa

Em face do acima exposto, é inconstitucional, por desafiar o princípio da separação dos poderes, a regra constitucional que autoriza o relaxamento de prisão de deputados e senadores por voto da maioria dos membros das respectivas casas (cF-art.53, § 2o).

essa regra é inconsistente com o princípio da separação dos poderes, pelo qual se atribui ao Judiciário, com exclusividade, dizer a última palavra sobre o que a lei é, sendo que, no caso, há uma usurpação de funções, pois o legislativo não tem a função nem o poder de julgar criminalmente (tarefa afeta constitucionalmente o Poder Judiciário), só podendo proferir julgamentos nos processos administrativos de seus servidores (sujeitos à revisão pelo Judiciário), ou politicamente, nos casos previstos de impeachment.

Não se argumente que o caso está previsto na própria lei fundamental. repudia esse raciocínio o fato de que as regras constitucionais hão de guardar sintonia com os princípios constitucionais (no caso, o da separação dos poderes e o da igualdade de todos perante a lei), que estão acima das regras e, por isso, são prevalentes. atente-se que há na carta Política diversas normas, nela inseridas inconstitucionalmente. esse só fato não as torna intocáveis.

tome-se, por exemplo, a inconstitucionalidade da emenda constitucional 20/1998, que inseriu o inciso Viii, no art. 114, da constituição Federal (repetido pela emenda 45/2004), determinando que a Justiça do trabalho proceda, de ofício,

8 HaMiltON, alexander. The Federalist. USa: the easton Press, 1979, p. 522-523: It is far more rational do suppose, that the courts were designed to be an intermediate body between the people and the legislature, in order, among other things, to keep the latter within the limits assigned to their authority. The interpretation of the laws is the proper and peculiar province of the courts. A Constitution is, in fact, and must be regarded by the judges, as a fundamental law. It therefore belongs to them to ascertain its meaning, as well as the meaning of any particular act proceeding from the legislative body. If there should happen to be an irreconcilable variance between the two, that which has the superior obligation and validity ought, of course, to be preferred; or, in other words, the Constitution ought to be preferred to the statute, the intention of the people to the intention of their agents.

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à execução das contribuições sociais a favor da securidade social, decorrentes das sentenças por ela proferidas, como demonstrei largamente em outro lugar,9 cujos argumentos são aqui resumidos. São três as inconstitucionalidades do dispositivo constitucional, a ver: 1. torna a Justiça do trabalho em parte exequente, como substituta processual do iNSS, o que é uma evidente aberração constitucional, pois um poder político (o Judiciário) passa a funcionar como representante do outro ramo governamental (executivo), do qual é e tem que se manter independente, e não em posição dúplice, isto é, de credor exequente e julgador da execução, o que não é tolerável; 2. a Justiça do trabalho atua usurpando a competência, absoluta e improrrogável, da Justiça Federal, única competente para o julgamento das execuções dos créditos da União e de suas autarquias federais (cF –art.109, i). a delegação à justiça estadual, nas comarcas do interior, também é inconstitucional. 3. a constituição do crédito tributário – no caso, a própria sentença trabalhista – não é sustentável ante o princípio do devido processo legal, albergado na lei fundamental (cF– art.5o, incisos liV e lV), eis que, diferentemente da lide trabalhista, da qual decorre, o crédito tributário segue normas específicas quanto à sua Constituição, nos termos do código tributário Nacional, pelo qual se permite ao suposto devedor o exercício da mais ampla defesa no decorrer das várias fases de sua apuração (autuação, lançamento, notificação e inscrição na dívida ativa).

3.2.2. Concessão de liminares

de igual maneira, são inconstitucionais as leis, como algumas já existentes, que restringem a outorga de liminares em determinadas matérias, ou que obrigam o juiz a ouvir, antes, determinado órgão do executivo, já que a concessão de liminar, estando presentes a plausibilidade do direito e o risco de iminente ameaça a ele ou de perda dele, é da essência mesma do Poder Judiciário (ele foi criado justamente para aferir a constitucionalidade das leis e proteger os direitos individuais), função primordial esta que não pode ser encurtada pelos demais ramos do governo que elaboram as leis.

revela-se sem sentido falar-se em “indústria de liminares” quando o provimento judicial cautelar ou definitivo reveste-se, ontologicamente, da obrigatoriedade de ser concedido, quando assim o juiz entender, ante a missão constitucional atribuída unicamente ao Judiciário de agir em defesa de direito lesionado ou para evitar ameaça de seu perecimento ou extinção. ademais, a liminar concedida em primeiro grau pode ser submetida, por meio dos recursos próprios, à apreciação dos tribunais que imediatamente a cassarão se for abusiva ou ilegal.

9 SilVeira, Paulo Fernando. Tribunal Arbitral-Nova Porta de Acesso à Justiça. curitiba: Juruá editora, 2006, p. 293.

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Viu-se que a lei não pode limitar a função primordial do Supremo de ser a última palavra na interpretação da magna carta, sendo que sua decisão só pode ser superada por uma emenda constitucional. todavia, o procedimento de se fazer a própria emenda está inserido de forma incorreta na constituição brasileira, posto que ele fere, gravemente, o princípio do federalismo. Simultaneamente, essa irregular forma de emenda viola o princípio da separação dos poderes e põe em risco a independência dessa corte Suprema, ante a ameaça que sofre, a todo tempo, de os congressistas, em não lhes agradando a decisão, fazerem, de pronto, uma emenda constitucional para anulá-la. isso é constitucionalmente insustentável, como se verá no tópico próprio, abaixo.

Quanto ao fato de o dispositivo limitador da jurisdição constar da própria carta Política, ou ter sido nela inserido por meio de emenda constitucional, nada impede o Supremo tribunal Federal de lhe negar efeito, já que todas as normas constitucionais se submetem aos princípios constitucionais, prevalentes, máxime os estruturantes da Nação, que são primordiais, tais como o federalismo, o da separação dos poderes e o da moralidade pública.

3.2.3. Ausência de lei regulamentadora de dispositivos constitucionais

de outra sorte, o Supremo tribunal Federal não pode, data venia, omitindo-se e abdicando de sua obrigatória missão constitucional, deixar de interpretar as normas constitucionais, sob o falso argumento de que dependem, ainda, da edição de lei regulamentadora.

Ora, na falta de lei e no exercício de sua função de intérprete final dos princípios e normas embutidos na constituição, ele deve, nos seus julgamentos, para ajudar a construir o arcabouço jurídico do País, regrar o caso concreto, balizando constitucionalmente seus contornos e especificando o alcance do direito posto em juízo. a lei, se vier, terá de respeitar essa orientação, podendo, contudo, ampliar o direito, estendendo-o a outras hipóteses não contempladas na decisão da corte.

como o Supremo tribunal não pode obrigar o congresso Nacional a legislar, deve, ao julgar o caso concreto de norma não regulamentada por lei, traçar as linhas mestras do direito em exame, assegurado pela norma, aplicando, para esse fim, os princípios constitucionais ou o valor intrínseco inserido na norma questionada. O que não se pode permitir é o desprezo e abandono do valor contido na regra constitucional por falta de lei regulamentadora. Na lei fundamental não há vocábulos vazios de conteúdo, nem palavras mortas ou ineficazes. As regras, ditas programáticas, nasceram para se realizar. do contrário, constituem normas que só conferem direito na aparência, apenas decorando a carta Política. São, portanto, enquanto não se realizarem, de valor nenhum.

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Marks e cooper analisam casos semelhantes enfrentados pelo Judiciário americano ante a inércia legislativa. trazem a lume, primeiramente, uma decisão negativa da Suprema corte do estado de dakota do Norte (ex. rel. Vogel v. Garass, em 1978), afirmando que “como regra geral, quando uma constituição estadual recomenda uma ação legislativa, impõe um dever moral às legislaturas, que o Judiciário não pode forçar”.

logo depois, em outro caso (Dade county Classroom Teachers Association v. Legislature, em 1972), explicam que a Suprema corte do estado da Flórida

respondeu ao fracasso do legislativo em editar a legislação recomendada pela constituição, de modo a garantir que os empregados públicos pudessem efetivamente engajar num acordo coletivo. a corte concedeu que não poderia forçar o legislativo a editar a legislação prevista. todavia, não disse, como fez a Suprema corte do estado de dakota do Norte que não existia remédio. a corte aconselhou o legislativo que se, dentro de um prazo razoável, ele não seguisse o mandamento constitucional, o tribunal ‘não teria outra escolha senão introduzir tais linhas mestras através de decreto judicial, de tal maneira que pareça ao tribunal melhor adaptados a encontrar os requerimentos da constituição. A ameaça foi suficiente. O legislativo logo após, bem depressa cumpriu com seu dever constitucional.10

Mesmo as normas programáticas, tidas pela doutrina brasileira como inaplicáveis senão após a mediação do legislador, são, à luz do devido processo legal, na sua dimensão substantiva, inerentemente de imediato exequíveis, bastando ao Judiciário dar-lhes eficácia gradual, de conformidade com as possibilidades materiais da conjuntura histórica do momento.

canotilho, igualmente, repudiou essa interpretação restritiva – tão ao gosto dos que, escondendo-se atrás da lei, não têm de tomar posições inovadoras, naturalmente incômodas – ao dizer:

Precisamente por isso, e marcando uma decidida ruptura em relação à doutrina clássica, pode e deve falar-se da”morte” das normas constitucionais programáticas. Existem, é certo, normas-fim, normas-tarefa, normas-programa que “impõem uma actividade” e “dirigem”

10 MarKS Jr., thomas c. and cooper, John F. State Constitutional Law . USa: West Publishing, 1988, p. 30: In: that case, the Florida Supreme Court responded to the legislature’s failure to enact legislation mandated by the constitution to ensure public employees could effectively engage in collective bargaining. The Court conceded that it could not force the legislature to enact the mandated legislation. It did not, however, concede as did the North Dakota Supreme Court in Garass, supra, that no remedy existed. The Court advised the legislature that if, within a reasonable time, the legislature had not followed the constitutional mandate, the court would have no choice but to fashion such guidelines by judicial decree in such manner as may seem to the court best adapted to meet the requirements of the constitution [...]. This threat was sufficient. The legislature thereafter speedily complied with its constitutional mandate.

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materialmente a concretização constitucional. O sentido destas normas não é, porém, o assinalado pela doutrina tradicional: “simples programas”, “exortações morais”, “declarações”, “sentenças políticas”, “aforismos políticos”, “promessas”, “apelo ao legislador”, “programas futuros”, juridicamente desprovidos de qualquer vinculatividade. Às “normas programáticas” é reconhecido hoje um valor jurídico constitucional idêntico ao dos restantes preceitos da constituição. Não deve, pois, falar-se de simples eficácia programática (ou directiva), porque qualquer norma constitucional deve considerar-se obrigatória perante quaisquer órgãos do poder político (crisafulli). Mais do que isso: a eventual mediação concretizadora, pela instância legiferante, das normas programáticas, não significa que este tipo de norma careça de positividade jurídica autônoma, isto é, que a sua normatividade seja apenas gerada pela “interpositio” do legislador; é a positividade das normas-fim e normas tarefa (normas programáticas) que justifica a necessidade da intervenção dos órgãos legiferantes. concretizando melhor, a positividade jurídico-constitucional das normas programáticas significa fundamentalmente: 1. vinculação do legislador, de forma permanente, à sua realização (imposição constitucional); 2. vinculação positiva de todos os órgãos concretizadores, devendo estes tomá-los em consideração como directivas materiais permanentes, em qualquer dos momentos da actividade concretizadora (legislação, execução, jurisdição); 3. vinculação, na qualidade de limites materiais negativos, dos poderes públicos, justificando a eventual censura, sob a forma de inconstitucionalidade, em relação aos actos que as contrariam. em virtude da eficácia vinculativa reconhecida às “normas programáticas”, deve considerar-se ultrapassada a oposição estabelecida por alguma doutrina entre “norma jurídica actual” e “norma programática” (aktuelle rechtsnorm-Programmsatz): todas as normas são “actuais”, isto é, têm uma força normativa independente do acto de transformação legislativa. Não há, pois, na constituição, “simples declarações (sejam oportunas ou inoportunas, felizes ou desafortunadas, precisas ou indeterminadas) a que não se deva dar valor normativo, e só o seu conteúdo concreto poderá determinar em cada caso o alcance específico do dito valor”(Garcia de Enterria). Problema diferente é o de saber em que termos uma norma constitucional é susceptível de “apelação directa” e em que medida é exequível por si mesma.11

O fato de a magna carta trazer dispositivos que nunca foram dotados de eficácia pelo Judiciário, que ficou no aguardo de legislação a ser editada pelos congressistas, quebra também um princípio básico inerente ao sistema legal: a lei

11 caNOtilHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional. Portugal: almedina, 1996, p. 184-185.

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deve trazer estabilidade, mas é também movimento, devendo acompanhar, em sua dinâmica, a mudança dos tempos. O excesso de leis, porém, causa mais instabilidade social do que a existência de poucas, que geralmente são conhecidas pelo povo e por ele colocadas em prática. À norma estática e genérica – que já nasce literalmente atrás dos fatos –, compete ao Judiciário soprar-lhe sempre o vento da vida, alentando-a e conformando-a aos fatos modernamente ocorrentes. do contrário, ou nunca nasce, ainda que declarado o nascimento, ou fenece por inanição. Não se pode nem se deve ficar aguardando legislação, tornando-se aí o Judiciário um poder inoperante, esclerosado, que não contribui para o progresso do País, nem atende às necessidades da comunidade, tampouco ajuda a indicar ao legislador as mudanças sociais imprescindíveis e detectadas. Por carência de atuação, o Judiciário contribui enormemente para o agravamento das crises institucionais, favorecendo, por anemia, a quebra da paz e o aparecimento da ditadura.12

Subordinando-se a eficácia e concretude da norma carente de regulamentação à vinda de lei (que costumeiramente jamais acontece, tal como o direito do empregado na participação no lucro da empresa, previsto em regra inserida na constituição de 1946 e até hoje sem aplicação prática, em decorrência da omissão interpretativa do Supremo Tribunal ao longo dos anos), significa dizer que a Carta Política, que é impositiva para os três poderes da república, fica sujeita, para sua aplicação real, à vontade de um só deles, ou seja, do legislativo.

Ora, sabe-se perfeitamente que as leis representam a vontade dos poderes eleitos (legislativo, que as cria, e executivo, que as sanciona e executa), cuja validade, em face da lei fundamental, é controlada pelo Judiciário, enquanto a constituição decorre da vontade do povo, que é maior que a de qualquer um dos ramos governamentais. a vontade popular é positivada na carta Política pelo poder constituinte originário ou derivado. como na constituição, que é emanação do poder popular, os três ramos governamentais têm limitada sua esfera de competência, não se concebe, seriamente, que essa mesma magna carta, que expressou valores convergentes e inarredáveis em suas normas, fique, para sua realização plena, na dependência da vontade única do legislativo, ao fazer ou não as leis regulamentadoras, quando o Supremo tribunal Federal tem o dever de aplicar todo o conteúdo da constituição independente de lei infraconstitucional, por isso mesmo, de inferior hierarquia. Ou seja, não pode a norma constitucional, superior hierarquicamente, em que se reconhecem direitos e garantias, ficar na dependência, para sua implementação, da vontade do editor da lei, que é obviamente inferior à do povo e de cuja harmonia com esta depende a sua validação.

12 SilVeira, Paulo Fernando. 500 Anos de Servidão – a lei como instrumento de dominação política no brasil. brasília: Oab editora, 2004, p. 661.

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Observada essa lógica, a exigência de lei para tornar a constituição viva e eficaz torna o legislativo um poder superior aos demais, contrariando, expressamente, o princípio da separação e da independência dos três ramos governamentais, já que o parlamento passa a ficar acima dos outros dois e, mesmo, da própria Carta Política.

4. Em defesa da Constituição4.1. emendas à constituição

Nos estados Unidos, qualquer emenda à constituição, que é de 1787, só passa a valer após sua ratificação por três quartos das assembleias estaduais, às quais é submetida. até hoje, das inúmeras emendas constitucionais aprovadas pelo Congresso, somente 27 foram ratificadas.

Isso acontece em respeito ao princípio federalista, já que o pacto firmado entre a União e os Estados-Membros não pode ser modificado unilateralmente pela União (congresso Nacional). Não se argumente que os senadores representam os estados, dando assim legitimidade à alteração unilateral, eis que recebem seus salários da União, elegem-se pelo voto popular, da mesma forma que os deputados federais, e são, como estes, cooptados pelo governo federal para os cargos nacionais de ministros e dirigentes de estatais, empresas públicas e de economia mista.

Como a Constituição brasileira é, originária e estruturalmente, uma cópia fiel da americana, adotando o mesmo princípio federalista, como cláusula pétrea (cF –art.60, § 4o,I), também, por isso mesmo, é imodificável por decisão unicamente do congresso Nacional. Há de se obter para se validar qualquer alteração – sob pena de inconstitucionalidade (violação do princípio) – o assentimento da maioria das assembleias legislativas estaduais que, sim, são as únicas que representam legitimamente os estados-Membros. O povo, como um todo, por seus representantes estaduais, deve ser ouvido, não bastando o conluio interesseiro e ocasional dos políticos federais.

até a independência do Supremo tribunal corre risco, pois, como se sabe, ele detém, constitucionalmente, o poder de dizer a última palavra na interpretação da carta Política. assim, uma decisão sua só pode ser superada por uma emenda constitucional. Ocorre que, se essa decisão ferir interesse dos poderosos, principalmente o domínio político do País por meio de leis protecionistas desses privilegiados grupos (o que acontece no brasil há séculos, como já demonstrei em livro),13 os congressistas, influenciados pelo lobby deles, poderão fazer, imediatamente, uma emenda constitucional para suplantar a orientação do Supremo tribunal.

13 idem, p. 419.

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ciente do perigo que constituiria para a jovem nação americana a existência de um judiciário fraco e dominado pelo congresso, alexander Hamilton explicitamente rejeitou o sistema britânico que permitia ao Parlamento, pela maioria de votos, tornar sem efeito qualquer decisão da corte que o desagradasse. Preferivelmente, as cortes de justiça eram para ser consideradas o baluarte de uma constituição, que limita poderes, contra as usurpações do legislativo. Somente o esmerado e difícil processo de emenda à constituição, ou a gradual mudança, com o tempo, para outro ponto de vista por parte dos membros do congresso, é que poderia reverter a interpretação dada àquele documento pela Suprema corte.14

Ora, se a emenda constitucional depender – como é correto dizer, em face do Pacto Federativo firmado entre a União e os Estados-Membros – da ratificação da maioria das assembleias estaduais (tal como ocorre nos USa), haverá mais probabilidade de a decisão do Supremo permanecer intocada, já que os grupos de interesses dos parlamentares federais e estaduais nem sempre são os mesmos. retira-se, também, o caráter oportunista e momentâneo da emenda constitucional, que passa a ocorrer somente em casos absolutamente necessários, a critério de toda a representação política de ambas as partes que firmaram o Pacto Federalista.

tenho defendido esta posição, há tempo, em meus livros, a ver:Finalmente, para ganhar sua maioridade, equiparando-se aos demais ramos do governo, o poder judiciário deve declarar inconstitucional, por quebra do princípio federativo, as emendas constitucionais que não forem previamente, antes de entrarem em vigor, submetidas e ratificadas por quorum qualificado das Assembléias Legislativas estaduais. O princípio federalista exige que assim aconteça. Uma só parte, no caso a União, não pode, unilateralmente, alterar o pacto original, firmado com os estados Membros, ainda que, como no caso do brasil, tenha ocorrido em forma de outorga, ao se estabelecer a federação brasileira pela lei Fundamental de l.89l. Há de se envolver, para preservar a democracia e evitar a tirania centralizadora do governo federal, toda a sociedade, através de seus legítimos representantes, no estudo e debate da matéria objeto de emenda constitucional. do contrário, acontecerão três coisas inevitavelmente: a) – os políticos aderirão à emenda, trocando o seu voto (e suas convicções) por interesses fisiológicos, como a concessão de uma rádio, ou a liberação de uma polpuda verba;

14 GlicK, Nathan. Explaining the Constitution: the Federalist Papers. USa: United States information agency, 1990, p. 39: Hamilton explicitly rejected the british system of allowing the Parliament to override by majority vote any court decision it finds displeasing. Rather, “the courts of justice are to be considered the bulwarks of a limited Constitution against legislative encroachments.” Only the painstaking and difficult process of amending the constitution, or the gradual transformation of its members to another viewpoint, could reverse the Supreme court’s interpretation of that document.

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b) – ocorre banalização da carta Política pelas inúmeras e reiteradas alterações de seu texto, transformando-a mais numa lei comum, de conhecimento de uns poucos técnicos no assunto. a verdadeira carta Política, de conteúdo democrático, tem vocação duradoura, só devendo sofrer alterações episódicas, depois que a matéria for debatida por toda a sociedade. antevendo isso, já dizia o chief Justice John Marshall, em l.8l9 (Mcculloch v. Maryland): “Uma constituição é projetada para durar pelas eras vindouras e, conseqüentemente, para ser adaptada às várias crises das atividades humanas” (a constitution intended to endure for ages to come, and consequently, to be adapted to the various crises of human affairs.)15 as alterações devem ocorrer gradualmente, depois de amplo debate público sobre o assunto, de modo que, a um tempo, a constituição se flexione e reflita e atenda as necessidades da época, e, de outro, não perca sua estabilidade – tornando-se volátil e teórica – como documento político, que deve ser conhecido e preservado na memória da população. São mais danosas para a democracia as inúmeras, múltiplas e momentâneas alterações da Carta Maior, do que sua gradual modificação, debaixo do debate público e controle e envolvimento dos políticos de todo o país. c) – extingue-se o pacto federativo, concentrando demasiada e perigosamente o poder político no governo central, desrespeitando-se a outra parte do pacto fundamental, os estados Membros. dentro desse contexto, a tirania está sempre à mão de um presidente ambicioso que, para atingir seus fins, basta desestabilizar propositadamente a economia para justificar suas ações ditatoriais, como sempre aconteceu em nossa história política. deve se ter em mente, sempre, que o indivíduo vive é no Município, no solo do estado Membro e não na União, que é mera ficção jurídica, necessária para a união e fortalecimento de toda a Nação. Não se esqueça que foi, justamente para se conter o despotismo é que se recorreu ao princípio federalista, pelo qual o poder político é horizontalmente dividido entre a União Federal e os estados-Membros e, no caso brasileiro, Municípios, cada um com sua área privativa de competência, não usurpável pelos outros entes políticos. Por esse princípio, a área de atuação da União é restrita (interesses nacionais, ou envolvendo mais de um estado), sendo do estado tudo que disser respeito a assunto regional e, ao Município, o interesse local. relembre-se que os senadores, antes de representar os estados, recebem sua remuneração da União, pouco distinguindo dos deputados, senão pelo enorme tempo de seu mandato de 8 anos, que deveria ser reduzido para 6, como é nos USa. como o legislativo federal acha-se comprometido

15 MarSHall, Jonh. McCulloch v. Maryland. 17 U.S. 316 (Wheat), 1819.

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com o executivo na dominação do país pelas emendas constitucionais, ocorre que somente o judiciário está em condições de liberdade para dar concretude e efetividade ao princípio federalista. Nessa quadra de nossa caminhada histórica em rumo à democratização das instituições políticas, o Judiciário, paradoxalmente, apesar de, no momento, ainda ser o poder político mais fraco, é o único que tem autoridade e força para preservar e estimular a descentralização e desconcentração do poder, dando eficácia ao princípio federalista. A história revela – e a brasileira confirma – que o governo excessivamente centralizado é um convite indeclinável ao golpe de estado, principalmente pelos militares, onde não são, institucionalmente, contidos. a revolução francesa, que derrubou o reinado, absoluto e centralizado, de luis XVi, mas que não teve o cuidado de criar instituições políticas em níveis intermediários, democratizando e dispersando o poder político, acabou colocando no governo do país numa situação pior do que a anterior, isto é, nas mãos de um ditador militar sanguinário: Napoleão bonaparte.16

ao perigo do excesso de legislação só se compara o número excessivo de emendas constitucionais. em 1997, foi criada nos estados Unidos uma organização não governamental (Citizens for the Constitution) com o objetivo de proteger a constituição contra a ameaça colocada pela tese, tão frequente advogada, de emendas formais à carta Política. Na visão dos membros dessa organização, propostas de emendas constitucionais são rotineiramente introduzidas por seus defensores como um primeiro passo favorável à panacéia para todas as doenças sociais. Propondo específicas políticas públicas, tais emendas têm o potencial de solapar a cultura americana que adequadamente entesoura e reverencia a constituição. caso fossem adotadas, elas tornariam a lei fundamental, que é uma carta de governo efetiva e executável, em um documento de aspirações insanas.17

4.2. emendas constitucionais e o princípio republicanoessas emendas sem a necessária legitimidade popular se tornam mais perigosas

quando põem em risco, ainda, o princípio republicano. isso ocorre toda vez que um presidente da república, não contendo suas ambições pessoais de permanecer no cargo dentro do prazo estrito previsto na carta Política – e tendo cooptado uma

16 SilVeira, Paulo Fernando. 500 Anos de Servidão, p. 264-265.17 belZ, Herman. A living Constitution or fundamental law? American Constitutionalism in Historical perspective. USA: Rowman & Littlefield, 1988, p. 267, no 109. In: the view of this organization, constitutional amendments are routinely introduced by their supporters as “the favored first-step panacea for all societal ills.”. Proposing specific public policies, such amendments have “the potential to undermine an American culture that properly treasures and revere our Constitution.” Should they be adopted, they would turn “an effective and enforceable charter of government into a document of faddish aspiration.

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ampla base parlamentar, às vezes até com o predomínio de um só partido –, inventa de aumentar, inconstitucionalmente, seu mandato presidencial, de quatro para cinco anos, ou se arvora no direito de se candidatar a um terceiro mandato.

thomas Jefferson, acompanhando o mesmo pensamento de aristóteles,18 já advertia quanto ao perigo que as instituições democráticas sofrem quando o presidente tem essas ilegítimas e inconstitucionais pretensões. di-lo enfaticamente:

O segundo aspecto que me desagrada, e muito, é o abandono em todas as instâncias da necessidade de rotação nos cargos, e mais particularmente no caso de presidente. a experiência concorre com a razão em concluir que o primeiro magistrado sempre será reeleito se a constituição permitir. então, será uma autoridade vitalícia.19

Seus argumentos ainda são fortes na atualidade, ao acreditar que, uma vez no cargo, e possuindo a força militar da União, sem ajuda ou controle de um conselho, ele não será facilmente destituído, mesmo se o povo for induzido a lhe retirar o suporte do voto.20

em um país que aspira a ser democrático e republicano como o brasil – seguindo o seu paradigma constitucional americano –, o governo, necessariamente, é de leis e não de homens. Ou seja, mais valem as instituições públicas, que devem operar de forma natural e duradoura, que os supostos defensores da pátria, que se dizem insubstituíveis no cargo, sob o falso argumento de que sem a sua liderança vão se instaurar no país a desordem e a ingovernabilidade. a necessidade de ordem sempre foi o argumento utilizado pelos tiranos para se perpetuarem no poder. Portanto, além do aspecto constitucional, emerge, sobranceiro, um inafastável fator moral. confronte-se o exemplo americano abaixo:

em 4/3/1797, George Washington encerrou sua brilhante carreira pública, após ter exercido o segundo mandato presidencial. O primeiro fora iniciado em 30/4/1789. antes de passar para história como o maior líder político dos estados Unidos de todos os tempos, alexander Hamilton lhe perguntou: “Se uma tempestade se forma, como pode você se retirar?” (If a storm gather, how can you retreat?) Seu secretário do tesouro se referia à luta política que estava sendo travada entre o partido do presidente, o federalista, que queria a sua permanência no poder até a morte, ou a simples nomeação, como seu sucessor, do correligionário e vice-18 ariStOtle. Policts and Poetics. USa: the easton Press, 1979, p. 207.19 JeFFerSON, thomas. Writings. USa: the easton Press, 1993, vol.ii, p. 913-914 e 916: The second feature I dislike, and greatly dislike, is the abandonment in every instance of the necessity of rotation in office, and most particularly in the case of the President. Experience concurs with reason in concluding that the first magistrate will always be re-elected if the Constitution permits it. He is then an officer for life. 20 idem: Once in office, and possessing the military force of the union, without either the aid or check of a council, he would not be easily dethroned, even if the people could be induced to withdraw their votes from him.

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presidente John adams, e o partido republicano, que pugnava por eleição popular, liderado por thomas Jefferson, secretário de estado. a resposta de Washington foi peremptória. escreveu que encerraria sua vida pública naquela data, após o quê “nenhuma consideração sob o céu, que podia antever, o retiraria da caminhada para a vida privada” (close my public life on March 4 (1797), after which no consideration under heaven that I can foresse shall draw me from the walks of private life.).21

como a constituição americana não limitava o número de mandatos presidenciais, os federalistas, que estavam no poder, a interpretavam no sentido de que o presidente podia ser reeleito, até sua morte, quantas vezes agradasse ao povo. Na visão deles, o estabelecimento da vice-presidência pressupunha uma sucessão do tipo monárquica. Na morte do presidente, o vice-presidente, como herdeiro, assumiria a presidência vitaliciamente, sujeito apenas à confirmação do povo, por seus representantes, a cada quatriênio.

Porém, Washington, dando um belo exemplo de caráter e despojando-se de ambições de mando, determinou que sua sucessão ocorresse pelas urnas, em observância ao princípio republicano, pelo qual o povo tinha lutado contra a coroa inglesa. Essa decisão foi o ponto culminante de sua carreira e seu presente final (talvez o maior de todos) para o mundo. Foi ele quem, solitariamente, decidiu que os estados Unidos seriam, efetivamente, uma república e não uma Monarquia.

O precedente estabelecido por Washington, no sentido de que o presidente deve se retirar após dois termos, permaneceu intocável até 1940, quando foi quebrado por Franklin delano roosevelt, que – debaixo de circunstância excepcional (a Segunda Guerra Mundial, de 1939 a 1945) – obteve seus terceiro e quarto mandatos consecutivos, ou seja, governou interruptamente de 1933 a 1945, morrendo nesse ano no exercício do cargo.

Para que o desrespeito às tradições jamais ocorresse novamente, o povo americano fez inserir na constituição a proibição do exercício de mais de dois mandatos presidenciais consecutivos por meio da emenda constitucional no 22, que foi aprovada no Congresso em 21/3/1947 e ratificada pela maioria dos Estados-Membros em 27/2/1951.

tendo em vista que o experimento democrático, republicano e federalista americano deu certo, já que a constituição prevalece há mais de 200 anos, sem nenhuma tentativa de qualquer governante se perpetuar no poder, indaga-se: até quando o Supremo tribunal vai permitir tal inconstitucionalidade, que também afeta sua independência? Que exemplo de corte, que tem o dever de zelar e proteger a carta Magna, vai ofertar para as futuras gerações brasileiras?

21 FleXer, James thomas. Washington – The Indispensable Man. USa: back bay books: little, brown and co, 1974, p. 347.

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5. Em defesa do poder Legislativo5.1. Medidas provisórias

Nosso País carrega a tradição de um executivo forte, sem limites e sem respeito aos poderes legislativo e Judiciário. isso vem desde a independência, quando, em 1823, d. Pedro i mandou fechar a assembleia nacional, que estava redigindo uma constituição, que não lhe agradava. ao sair do prédio sitiado, antônio carlos tirou o chapéu à majestade dos canhões do imperador. logo a seguir, o déspota outorgou a constituição de 1824, concentrando em si o exercício pleno e ilimitado dos poderes executivo e moderador. Por meio desses poderes ditatoriais, ele podia, entre outras coisas, nomear senadores, nomear e suspender juízes, convocar e dissolver a assembleia geral e fixar os salários dos deputados (CF – 1824, arts.98 e 101).

Pela constituição brasileira de 1891, que sofreu a revisão de rui barbosa, foram implantados a república e o Federalismo. estabelecia três poderes independentes, seguindo o sistema americano de divisão do poder político, ficando o Judiciário encarregado de verificar a constitucionalidade das leis, podendo anulá-las, caso em confronto com a Carta Política. Pela primeira vez, a lei tinha de ficar subordinada à magna carta e fora instituído um poder independente (o Judiciário) para aferir essa harmonia. a intenção de rui era clara. Pretendeu valorizar o anêmico Judiciário que vinha fragilizado, como instituição, desde o tempo da Monarquia, a fim de que ele participasse, na esteira do Judiciário americano, do exercício do poder político, a fim de proteger o povo, democratizar as instituições e descentralizar, efetivamente, o governo, fazendo prevalecer a separação dos poderes e a forma de estado federalista.

Ou seja, rui barbosa – conhecedor do direito inglês, pelo qual o Judiciário não é poder, já que vinculado ao legislativo (a câmara dos Lords é sua última instância), e do direito francês, em que o Judiciário não tem poder de anular leis, sendo escravo de sua literalidade e, portanto, destituído de poder político, mas caracterizando-se como mero aplicador da lei – optou e inseriu na carta Política brasileira as doutrinas americanas governamentais do judicial review e dos freios e contrapesos (checks and balances).

Pela doutrina da separação dos poderes, adotada também em nossa constituição, o poder político governamental é dividido em três departamentos, sendo que aos popularmente majoritários se incumbiu o poder de legislar. entretanto, há uma interação – somente nos casos permitidos pela própria constituição – entre eles. assim, o executivo interfere no Judiciário quando concede indultos ou comuta as penas, bem como quando nomeia, após aprovação do Senado, os ministros do Supremo tribunal Federal e dos tribunais Superiores, ou nomeia juízes de tribunais,

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dentro da lista tríplice. em relação ao legislativo, ele controla sua atuação por meio do veto às leis, por inconstitucionalidade ou por interesse público. O legislativo compartilha com o executivo a nomeação de ministros dos tribunais superiores e outras autoridades, como o procurador-geral da república, diretores do banco central, os governadores de territórios, etc. O balance, pois, envolve a partilha do poder entre os ramos do governo e um ativo controle de um pelo outro.

Já o “check” advém da doutrina do Judicial Review (controle de constitucionalidade das leis), a qual permite ao Judiciário partilhar e controlar (check) o poder de ambos os ramos governamentais: legislativo e executivo.22

debaixo do princípio da separação, esclarece Jonathan Rose, cada ramo do poder foi provido de independentes meios de exercer checks on and to balance as atividades dos outros dois, assim garantindo que nenhum ramo pudesse alguma vez exercer autoridade ditatorial sobre os trabalhos do governo. desse modo, os três ramos do governo são separados e distintos um do outro. Os poderes dados a cada um são delicadamente controlados pelo poder dos outros dois. cada ramo serve de controle sobre potenciais excessos dos outros dois.23

Por meio do checks and balances, enfatiza Peter l. Strauss, como na separação dos poderes, procura-se proteger o cidadão contra o surgimento de governo tirânico, ao estabelecer múltiplas cabeças de autoridade no governo, as quais se posicionam uma contra a outra em permanente batalha; a intenção da luta é negar a uma (ou duas) delas a capacidade de permanentemente consolidar toda autoridade governamental em si mesma, enquanto permite efetivamente ao todo desenvolver o trabalho de governo.24

esclareceu melhor o entendimento, ao agregar, a seguir:em teoria, a junção de todas as funções governamentais em uma só autoridade, não controlada pelas outras, é um convite à tirania. a interpenetração das funções e a competição entre os ramos protegerão a liberdade ao prevenir à adição irreversível do poder final em um só deles. como escreveu Madison nos Papéis Federalistas, a

22 GarVeY, John H.; aleiNiKOFF, t. alexander. Op.cit., p. 238: and the doctrine of judicial review permits courts to share (and check) the power of both the legislative and executive branches.23 rOSe, Jonathan. About the United States History –Leif Ericson to 1865. USia, 1986, p. 3: Most importantly, it es tablished the prin ciple of a “ba lance of power” to be main tained among the three branches of govern ment – the executi ve, the legis lative and the judicial. Under this principle, each branch was pro vided the independent means to exercise checks on and to ba lance the activities of the others, thus guaranteeing that no branch could exert dictatorial authority over the working of the government.24 idem. Op.cit. p. l87: Checks and balances [...]. Like separation of powers, it seeks to protect the citizens from the emergence of tyrannical government by establishing multiple heads of authority in government, which are then pitted one against another in a continuous struggle; the intent of that struggle is to deny to any one (or two) of them the capacity ever to consolidate all governmental authority in itself, while permitting the whole effectively to carry forward the work of government.

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essência reside em “dar àquele que administra cada departamento os meios constitucionais necessários e motivos pessoais para resistir ao predomínio dos outros”. 25

Nathan Glick explica que os “Artigos Federalistas” fizeram a primeira menção específica que temos na literatura sobre a ideia de checks and balances, como meio de restringir o poder governamental e prevenir abusos.26

a separação dos poderes, instituída constitucionalmente, funciona como ponto nuclear do sistema de freios e contrapesos, equilibrando o exercício do Governo, através do controle de um poder pelos outros. adverte-nos charles l. black Jr.:

O quê um governo de poderes limitados precisa no começo e para sempre, ao utilizar os meios de satisfazer o povo, é tomar todos os passos humanamente possíveis para permanecer dentro do seu poder. isso é condição de sua legitimidade, e sua legitimidade, ao longo do tempo, é condição de sua própria vida. 27

Precisamente, o quê acontece quando um dos poderes não dá conta de proteger sua independência, como é o caso do legislativo brasileiro, e o outro (o Judiciário brasileiro) não exerce sua missão constitucional de frear o poder despótico do executivo, que usurpa as funções do primeiro? Naturalmente, implantam-se, ainda que de forma velada, ou truculentamente ostensiva, a ditadura e a tirania!

No brasil, o executivo edita, diariamente, medidas provisórias inconstitucionais e o Supremo não atua em defesa do legislativo. logo, o executivo sobrepõe-se sobre esses dois poderes, violando a constituição, que lhes assegura igual relevância política, cada um dentro de sua função específica, traçada na lei fundamental.

Nos estados Unidos, o presidente da república não tem poder algum de legislar. Suas executive orders só valem no âmbito da administração pública. O indivíduo não está sujeito ao seu teor. e nenhum presidente alega a ingovernabilidade do país.28

25 idem. Op.cit., p. 191: In theory, the joining of all government functions in one authority, unchecked by others, was an invitation to tyranny. Interpretation of function and competition among the branches would protect liberty by preventing the irreversible accretion of ultimate power in any one. As Madison wrote in the Federalist Papers, the essence ‘lay in giving to those who administer each department the necessary constitutional means and personal motives to resist encroachments of the others’.26 GlicK, Nathan. Explaining the Constitution: The Federalits Papers. In An Outline of the American Government. USIA, 1989, p. 39: The Federalist Papers also provide the first specific mention we have in political literature of the idea of checks and balances as a way of restricting governamental power and preventing its abuse.27 GarVeY, John H.; aleiNiKOFF, t. alexander. Op.cit., p. 11: What a government of limited powers needs, at the beginning and forever, is some means of satisfying the people that it has taken all steps humanly possible to stay within its powers. That is the condition of its legitimacy, and its legitimacy, in the long run, is the condition of its life.28 ScHrOeder, richard; clicK, Nathan. Op.cit, p. 57: The president can issue rules, regulation and instructions called executive orders, which have the binding force of law upon federal agencies.

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lá, o congresso, por sua vez, exerce sua função primária, que não é a de legislar, mas a de fiscalizar a atuação do Executivo, principalmente na alocação dos recursos públicos oriundos dos impostos. O grosso da legislação advém das agências regulatórias, criadas pelo legislativo para atuar em determinadas áreas, tais como a ePa-environmental Protection agency, na esfera do meio ambiente. Sua diretoria, nomeada pelo executivo, em regra com aprovação do Senado, goza de independência, não podendo ser demitida a bel prazer do presidente da república, que necessita, para isso, de justa causa, não a política (estar agindo em desacordo com os interesses presidenciais), mas a de comprovada improbidade administrativa. aqui, já tivemos a cacex, vinculada ao executivo, que tinha poderes para legislar sobre exportação e importação. Sua diretoria, contudo, não gozava de autonomia.

a constituição brasileira em vigor, em seu art. 62, impõe, além de algumas vedações em razão da matéria, que enumera, duas condições básicas, inafastáveis, para que o presidente da república possa editar, legitimamente, uma medida provisória: a relevância e a urgência.

Quanto à relevância, de um modo geral toda matéria regrada por medida provisória ou por lei, se ela assim se converter, atende a esse pressuposto. Porém, é no requisito da urgência que ocorre a inconstitucionalidade.

Na realidade, o presidente da república edita, a todo tempo, medida provisória sem observar a comprovada urgência da matéria. Ou seja, está invadindo a esfera específica do Legislativo e usurpando sua competência. Com isso, esse poder político fica deveras enfraquecido.

Não se alegue, bisonhamente, que isso não sucede, tendo em vista que a medida provisória perde sua eficácia se não convertida em lei, pelo Congresso, em 60 dias. aí acontecem duas coisas: a primeira é que a medida provisória entra em vigor na data de sua edição, com a mesma força de lei; a segunda é que o parlamento, invadido por inúmeras medidas provisórias, que trancam a sua pauta, acaba por convertê-las sem maiores entraves.

Dificilmente, aquele que é prisioneiro dá conta de se libertar sozinho. No caso, o legislativo, para recuperar sua independência, precisa do auxílio do Judiciário, que, no exercício de sua função de “checks and balances”, deve frear a ação inconstitucional do executivo, sob pena de o enfraquecimento do legislativo o atingir também, já que este, debilitado, não o poderá socorrer caso sua competência seja restringida por lei, como acontece na proibição de conceder liminares sobre determinados assuntos, ou a sua jurisdição seja reduzida por emenda constitucional, que tire da jurisdição dos tribunais algumas matérias, como já aconteceu no passado, nos governos ditatoriais de artur bernardes em 1926, de Getúlio Vargas em 1937, e dos militares em 1968 (ai no 5).

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Os dois poderes mais fracos devem unir forças e se proteger contra a incursão inconstitucional do executivo que, em nosso País, tem tradição de tirania. demanda-se uma ação enérgica do Judiciário nesse sentido.

5.2. controle da elegibilidade de candidato, levando em consideração sua vida pregressa

No dia 10/6/2008, o tribunal Superior eleitoral (tSe) decidiu, por sua maioria, que os políticos que são réus em processos criminais, em ação de improbidade administrativa ou em ação civil pública, sem condenação definitiva, isto é, sem sentença transitada em julgado, podem se candidatar nas eleições de 2008.

Os argumentos sustentados pelo relator do processo da consulta, ministro ari Pargendler, e demais ministros que o acompanharam foram no sentido de que a lei de inelegibilidades (lei complementar 64/1990) já limita os critérios para a concessão de registro de candidaturas e que “o Poder Judiciário não pode, na ausência de lei complementar, estabelecer critérios de avaliação da vida pregressa de candidatos para o fim de definir situações de inelegibilidade”.

contrariamente, os três ministros vencidos, carlos ayres britto, Joaquim barbosa e Felix Fischer, defenderam, entre outros aspectos, a competência da justiça eleitoral para apreciar os pedidos de registro de candidatura a cargo político na perspectiva da vida moral pregressa do político, enfatizando que a constituição não exigiria do exercente do cargo um padrão de moralidade que já não fosse a natural continuação de uma vida pregressa também pautada por valores éticos.

Sem dúvida alguma, a decisão do tSe veio de encontro, como uma onda avassaladora, aos justos anseios de moralidade pública manifestados pela população, causando, a um só tempo, estupor, descrédito no Poder Judiciário e, acima de tudo, uma generalizada impotência no povo no sentido de não haver jeito de melhorar as instituições públicas. de outra sorte, a infeliz decisão alimenta a participação de pessoas inescrupulosas seja na administração de recursos públicos (prefeitos e governadores), seja na elaboração de leis (vereadores, deputados estaduais e federais e senadores).

O raciocínio esposado pela maioria dessa digna corte de Justiça eleitoral não convence, data venia, já que a constituição (art.14, § 9o) determina que

lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, além dos especificados na própria Constituição, a fim de proteger a probidade administrativa e a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta. (Grifos nosso)

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a determinação constitucional institui um comando e não é, apenas, uma opção legislativa infraconstitucional. a constituição exige o exame da vida pregressa do candidato. Ora, se os congressistas, legislando em causa própria, ignoraram o preceito constitucional e fizeram constar da lei complementar um óbice intransponível quanto à necessária averiguação prévia da vida pregressa do candidato, ou seja, a exigência de condenação transitada em julgado, a qual, como se sabe, é demorada de se obter, pois, no brasil, os processos criminais perduram por anos e anos, em razão dos inúmeros recursos interpostos e diligências requeridas pelo réu, eles, protegendo-se, agiram com espírito corporativo e contrariaram a intenção clara, precisa e manifesta da carta Política. assim, a lei complementar no 64/1990 (art.1o, alínea “e”), salvo melhor juízo, é, nessa parte, inconstitucional.

atente-se, ainda, que a própria carta Política, em seu art. 37, também erige o princípio da moralidade como uma das condições para a validade dos atos da administração pública. logo, esse princípio, que prevalece sobre as próprias normas constitucionais e muito mais sobre a lei complementar ou ordinária, não pode ser esquecido. como pressupor que um candidato eleito, que responda criminalmente perante a justiça por corrupção ou improbidade administrativa, vá exercer seu cargo e praticar atos administrativos com dignidade, decência e lisura? Pode até acontecer, mas será em virtude de uma milagrosa exceção.

a meu ver, a decisão do tSe afronta o princípio constitucional da moralidade. este permeia não só os atos dos agentes políticos e servidores públicos, mas se entranha também na sua própria conduta, atual e pregressa. O julgado deprecia, ainda, a própria justiça, eis que a denúncia já foi recebida e/ou o candidato já foi condenado por sentença, ainda que em primeiro grau. Ou seja, para o tSe – em uma visão simplista, puramente legalista, positivista e técnica, de extremado amor à literalidade da lei e desconsiderando a vontade do povo, expressa na constituição, que exige uma vida pregressa ética do candidato – nada vale a condenação judicial deste nas instâncias inferiores, já que está sujeita a recurso. também, inacreditavelmente, para o TSE não tem significação alguma o fato de a denúncia ter sido recebida diretamente pelo próprio Supremo tribunal Federal, a mais alta corte de justiça do País.

Não há de se invocar o princípio da inocência, restrito à dimensão penal, já que o princípio da moralidade é mais amplo, como o são, regidos por ele, o direito civil, o administrativo e o eleitoral. Mesmo sob o princípio da inocência, o réu da ação penal pode ter alguns direitos restringidos, como no caso de prisão cautelar, provisória ou preventiva. ele continua sendo considerado inocente, pois ainda não há sentença transitada em julgado, mas pode, eventualmente, responder ao processo na condição de preso. O mesmo acontece no campo político, onde se maximiza o exame da moralidade. a elegibilidade pode sofrer restrições ante a comprovação,

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no exame da vida pregressa do candidato, da prática de atos tidos como imorais, principalmente quando denotados por ações penais e civis públicas relativas a atos ilícitos contra o patrimônio público, ou de improbidade administrativa, em que seja réu, em processos em curso perante a justiça. a carta Política, no que tange ao exercício do cargo e função públicos, por agente político ou servidor concursado, não abre mão do exame da vida pregressa do pretendente, ou seja, da exigência de uma conduta moral ilibada no passado. Se essa condição é exigida para os juízes e para os servidores públicos em geral, também o deve ser em relação aos políticos. Para todos eles, sem distinção – a constituição é cega nesse aspecto, não distinguindo ninguém, em face do princípio da igualdade de todos perante a lei –, o signo da moralidade revela-se por atos diuturnos que não infrinjam os preceitos éticos de honestidade, idoneidade, lisura e decência. a pena, para os que não o detêm, no caso dos cargos eletivos, é a inelegibilidade. Se já eleito, é a perda do mandato, sem prejuízo das ações penal e cível.

a prevalecer o equivocado entendimento de que o restrito princípio penal da inocência se projeta para todas as áreas do direito, inclusive o administrativo, ocorrerá o absurdo de ter-se de dar posse a um juiz de direito ou a um delegado de polícia que tenha sido condenado por crime de corrupção ou fraude, com sentença ainda não transitada em julgado, em face da situação isonômica deles com a dos políticos, a qual, constitucionalmente, não se pode ignorar. É inegável o constrangimento social que será causado pelo fato de o inquérito policial ser presidido por esse tipo de delegado ou a licitude da conduta do réu ser julgada por um magistrado já condenado judicialmente por improbidade ou corrupção. Na área cível, por exemplo, haverá um retrocesso, caindo por terra conquistas recentes. Doravante, ficarão sem efeito os dispositivos que cuidam da responsabilidade objetiva por danos, independentemente da apuração de culpa (cc-arts.927, parágrafo único e 931; código do consumidor: lei no 8.078/1990, arts. 12 e 14). Também fica derrogada a inversão do ônus da prova de que trata o código do consumidor (arts. 6o, Viii e 38), já que o fabricante, o produtor e o prestador de serviços passam a ficar protegidos pelo princípio da inocência, ou seja, só serão considerados culpados se forem condenados definitivamente, incumbindo a prova a quem alegar o prejuízo.

O virtual acesso do eleitor – aquele que tiver fervor excepcional e inusitado interesse e se dispuser a enfrentar com paciência a burocracia forense – à ficha criminal do candidato, se for permitido pelo tSe, conforme divulgado na imprensa, não satisfaz, de maneira alguma, à exigência constitucional de o político comprovar sua vida pregressa pautada pela moralidade.

Não se argumente que o dispositivo infraconstitucional, ao exigir a condenação definitiva, protege o cidadão contra falsos processos crimes engendrado pelo Estado,

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a fim de evitar a sua legítima candidatura. É de se ver que, quando o Judiciário recebe a denúncia penal – o ato fica sujeito ao pronto reexame, por meio do remédio do habeas-corpus, pelo tribunal, que o cassará se for ilegal ou abusivo, trancando-se a ação penal –, já há nos autos a comprovação da materialidade do delito e indícios de autoria, sendo que o fato tido como criminoso já passou pelo crivo da polícia (indiciamento no inquérito policial) e do Ministério Público (autor da denúncia), que são órgãos distintos, ambos vinculados ao executivo, sendo que este último tem caráter permanente e goza de independência e isenção. Sua missão primordial é a de, justamente, defender a sociedade civil e o patrimônio público, como titular da ação penal incondicionada e da ação civil pública (cF – arts. 127 e 129).

Por outro lado, a constituição nunca pode ser interpretada como se fosse uma lei ordinária ou complementar. É de superior hierarquia. Há de se considerar os fins nela objetivados para cujo alcance todo esforço interpretativo deve ser empregado. Quando a constituição emite um comando, tal como o de se apurar a vida pregressa do candidato – que não pode ser ignorado por ninguém –, ela autoriza, simultânea e implicitamente, o emprego de todos os meios necessários para sua realização, notadamente o da interpretação teleológica.

Submetida a matéria ao escrutínio do Supremo tribunal Federal, este, em 6/8/2008, ignorando as sentidas necessidades da Nação e permanecendo inflexível ante as mudanças dos tempos, a exigir incondicionalmente a moralidade na administração pública, proferiu decisão que decepcionou grande parcela de homens sensatos e de boa fé deste País.

No confronto entre duas regras constitucionais conflitantes, a primeira referente à exigência de condenação criminal transitada em julgado para a perda ou suspensão dos direitos políticos (cF – art.15, ii), suportada pelo restrito princípio criminal da inocência, e a segunda que determina o exame da vida pregressa do candidato para a aquisição do direito à elegibilidade (cF – art. 14, § 9o), amparada no princípio da moralidade, o Supremo optou pela de inferior hierarquia, esquecendo-se de que a segunda é de maior amplitude. Ou seja, prestigiou-se a validade da regra menor, que se esteia em um princípio constitucional especial, em detrimento da regra maior, baseada em um princípio superior, primordial e estruturante da Nação. Não se esqueça de que, também, há gradação entre os princípios constitucionais, sobrepondo-se os estruturantes aos princípios gerais e especiais.

Observe-se que as condições de elegibilidade, previstas na constituição, são indispensáveis para se adquirir a capacidade eleitoral passiva (direito de ser votado), bem diferente dos pressupostos estabelecidos para o alistamento (direito de votar), que constituem a capacidade eleitoral ativa. Quando a constituição, que veda a cassação dos direitos políticos, autoriza a perda ou a suspensão dos

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direitos políticos, nos casos em que enumera no seu art.15, pressupõe ato posterior à aquisição e livre exercício de todos os direitos políticos positivos (participação no processo político e nos cargos governamentais). Ou seja, a perda e a suspensão dos direitos políticos diferem profundamente das exigências constitucionais para se adquirir a capacidade eleitoral ativa (alistamento) e passiva (elegibilidade). em suma, para se adquirir a capacidade eleitoral passiva (elegibilidade) – atendendo aos seus requisitos próprios e peculiares, onde se aloja o requisito da vida pregressa – há de se satisfazer, antes, às condições para a aquisição da capacidade eleitoral ativa (alistamento). a capacidade de votar pode e, normalmente, existe sem o exercício da segunda (direito de ser votado). Porém, quando se declara a perda ou a suspensão dos direitos políticos, o ato atinge as duas capacidades, extinguindo ambos os direitos. logo, não há como tratá-las como condições eleitorais idênticas, subordinando-as a um único dispositivo constitucional (art.15), quando a própria constituição cuida delas separadamente, a ver pelo art. 14, §§ 1o, i e ii e § 3o a § 9o.

É obvio que não se cria, se estrutura e se mantém um estado sem a observância do princípio da moralidade. ele constitui o fundamento da justiça e predomina sobre todos os demais, sejam os princípios gerais e/ou os especiais. da mesma forma, se não forem regidos pelo princípio da moralidade, os ramos eleitos (legislativo e executivo), que cuidam, respectivamente, da edição das leis e da administração dos recursos financeiros arrecadados com os impostos, não podem exercitar, com legitimidade, sua ação governamental.

com o devido respeito, nessa equivocada interpretação constitucional, o Supremo seguiu a mesma trilha dos congressistas que elaboraram a lei complementar, que os beneficia. Prejudicados ficaram os valores fundamentais que informam e dão vida e substância à constituição. Note-se que a vontade dos congressistas, externada na lei, é inferior à vontade do povo, manifestada na constituição pelos princípios básicos por ela adotados. a vontade popular é fonte primordial do poder político. Por consequência, a vontade do representante não pode ser, jamais, superior à vontade do representado, seu patrono. desse modo, como a lei busca sua legitimidade na carta Política, há de se conformar, primeiramente, com os seus princípios e, somente depois, com suas normas e regras. O pior de tudo agora, depois da decisão definitiva do Supremo, é que nem o Congresso pode modificar a lei eleitoral. Para superar a decisão do Supremo, há de se fazer uma emenda constitucional.

considerando que em nosso País o executivo sempre foi muito poderoso, necessitando de limitação, e o Legislativo apresenta-se com feição frágil e fisiológica, o Judiciário, que também não escapa de sua tibieza histórica, esquece-se de sua função de freios e contrapesos (checks and balances) – o dever de controlar o exercício constitucional dos dois outros ramos governamentais de modo que nenhum deles

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se sobreponha aos demais – ao deixar de fortalecer o Poder legislativo. Para isso, bastava ao Judiciário considerar inelegíveis os candidatos que sejam réus em processos em curso, sejam criminais, que envolvam danos ao patrimônio público (peculato, por exemplo), ou de improbidade administrativa, já que a reputação desses postulantes aos cargos públicos, agora maculada, deixou de ser ilibada. Não o fazendo, o Judiciário contribui para ampliar, ainda, a imoralidade no Poder executivo, ao permitir a posse nos cargos públicos de pessoas inidôneas. também, enfraquece a si próprio, pois os poderes eleitos (legislativo e executivo), de que tais elementos venham a participar, estarão sempre conluiados para anular o poder político do Judiciário, restringindo sua competência ou esvaziando sua jurisdição, seja por meio de leis, ou de emendas constitucionais, como se viu em 1926, no governo de artur bernardes, em 1937, com Getúlio Vargas e, recentemente, em 1968, durante a ditadura militar, no ai/5.

infeliz é o país em que o povo não pode contar com o seu Judiciário para se defender contra alguns poderosos malfeitores que, eventualmente, queiram ocupar os elevados cargos públicos.

esperar que o povo – em sua maioria pobre, analfabeta e, tradicionalmente, destituída do senso de cidadania – vá, pelo voto, excluir do processo eleitoral esses candidatos de ficha suja, ou que os próprios partidos políticos o façam, é esperar demais, ou patentear que se está vivendo fora da realidade, principalmente se for considerado o incontrolável poder político, decorrente das fortes conexões mantidas nas elevadas esferas governamentais, e da impositiva persuasão financeira e econômica de que normalmente dispõem esses elementos. ao Judiciário, como poder não eleito, cabe ajudar a delinear os contornos de um processo eletivo balizado pela moralidade, a fim de que o povo faça livremente a escolha de seus dirigentes entre homens de bem.

acreditamos, respeitosamente, que o tSe e o StF perderam, nos aludidos julgamentos, excelentes oportunidades de ajudar o povo – que quer e anseia pela moralidade pública – a construir um País com instituições fortes e sadias.

6. Valorização política das decisões do Supremo Tribunal Federal6.1. Peculiar natureza antimajoritária

O Judiciário constitui um poder político e o Supremo tribunal Federal é a sua expressão máxima. contudo, como poder não eleito, carece de representatividade popular. Mas essa é, justamente, sua característica constitucional. Os constituintes originários quiseram-no assim.

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do mesmo modo que os direitos individuais, naturalmente de ordem minoritária em relação às leis, elaboradas pelos poderes majoritários (legislativo e executivo), são consagrados na constituição como direitos fundamentais, livremente exercitáveis (salvo a vinda de lei regulando o seu exercício em vista do bem comum, amparada em evidente e concreto interesse público, a ser comprovado em juízo pelo estado, como ônus seu) e que não podem ser suprimidos, ou diminuídos, nem mesmo por emenda constitucional, pois estão protegidos por cláusula constitucional pétrea, o Poder Judiciário encarna, como poder político antimajoritário, a missão constitucional de se salvaguardar contra as intrusões dos outros ramos governamentais, quando limitam por lei sua função primordial, restringindo a sua natural jurisdição, e de proteger o indivíduo, no exercício de seus direitos fundamentais, contra a opressão do estado, veiculada, normalmente, por meios de leis (oriundas do legislativo) ou de atos administrativos e medidas provisórias, vindas do executivo.

essa peculiar natureza constitucional antimajoritária do Poder Judiciário foi bem ressaltada pelo Chief Justice Rehnquist, referindo-se à divisão do poder adotado na américa, que, ao contrário da tradição inglesa, em que o juiz não pode anular ato do Parlamento, essa foi a intenção clara dos elaboradores da constituição de 1787:

eles queriam que os juízes fossem independentes do presidente e do congresso, mas também, com toda probabilidade, que as cortes federais fossem capazes de dizer se a legislação editada pelo congresso era consistente com as limitações da constituição dos estados Unidos. Os elaboradores reconciliaram, de um modo mais ou menos grosseiro, a necessidade de uma instituição antimajoritária como a Suprema corte para interpretar a constituição dentro de um amplo sistema de governo basicamente comprometido com a regra majoritária.29

Por sua vez, Garvey e aleinikoff veem no Judiciário, como poder antimajoritário, uma missão nobre que deve exercer pelo balanceamento, que, como uma das teorias de interpretação constitucional, possibilita-lhe rever os valores contidos na norma legal – expandindo ou atenuando-os – com base na identificação, avaliação e comparação dos interesses em conflito. Expõem que o melhor argumento utilizado pelos defensores do balancing é o que permite as cortes judiciais aumentar o processo de equilíbrio, dando peso a interesses que o legislativo tende a ignorar ou 29 reHNQUiSt, William H. The Supreme Court. William Morrow, New.York, USa, 1987, p. 306: They wanted the judges to be independent of the president and of Congress, but in all probability they also wanted the federal courts to be able to pass on whether or not legislation enacted by Congress was consistent with the limitations of the United States Constitution. The framers reconciled in a somewhat roughhewn way the need for an anti-majoritarian institution such as the Supreme Court to interpret a written constitution within a broader system of government basically commited to majority rule.

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subavaliar. dentro desse enfoque, a corte desempenha dois importantes papéis: 1. reforça a representação, assegurando que interesses impopulares ou de grupos mal representados politicamente sejam contados e considerados com justiça; 2. protege direitos e interesses constitucionais que, às vezes, são esquecidos no alvoroço da política. advertem, todavia, que o balanceamento pela corte não repete a função legislativa ou suplanta os julgamentos legislativos de boa política social. Usa-se o ato legislativo como medida da importância social e, assim, como uma base para calcular o grau para o qual o interesse constitucional deverá ser “atenuado”.30

Vale repetir que a função primordial do Judiciário, como poder não eleito, isto é, de natureza antimajoritária, é defender os direitos individuais que, também, são, essencial e ontologicamente, antimajoritários; portanto, não podem ser suprimidos pela lei (vontade dos podes eleitos, majoritários: legislativo e executivo), ou deixados de serem exercidos por falta de lei.

contudo, a missão constitucional atribuída ao Judiciário de enfrentamento com os demais ramos governamentais, ao anular, restringir ou ampliar o conteúdo da norma legal, para adequá-las aos fins e propósitos constitucionais, levando-se em conta as sentidas necessidades do povo, não é nada fácil, principalmente se enfocarmos a história de nosso País, em que o juiz, até bem pouco tempo, era considerado – em face de doutrinas administrativas espúrias e equivocadas, baseadas no direito francês, em que o magistrado não detém o poder político, já que não pode anular a lei – um mero servidor público, sujeito às regras administrativas, e não um agente político de grande expressão, como consagrado pela nossa carta Política.

No decorrer da história americana, sempre houve conflitos entre os Poderes da república. robert H. Jackson, citado por rehnquist, em sua outra obra The Supreme Court, sumariza os eventos da seguinte forma:

como criada, a Suprema corte parecia muito anêmica para enfrentar o longo conflito pelo poder [...] A despeito de sua aparente posição vulnerável, a corte tem repetidamente cassado as decisões em oposição ao congresso e ao executivo. tem sido uma colisão nervosa com os mais dinâmicos e populares presidentes da história. Jefferson retaliou com impeachment; Jackson negou sua autoridade; lincoln desobedeceu a um mandado do chief Justice; theodore roosevelt

30 GarVeY, John H.; aleiNiKOFF, t. alexander. Op.cit., p. l07-108: A better argument for the balancer is that the Court improves the balancing process by giving weight to interests that the legislature tends to ignore or undervalue. Under this view, the Court plays two important roles. First, it reinforces representation, ensuring that the interests of unpopular or underrepresented groups are counted and counted fairly. Second, it protects constitutional rights and interests that are sometimes forgotten in the hurly-burly of politics. [...] The balancing court does not replicate the legislative function or supplant legislative judgments of good social policy. It uses the legislative act as a measure of social importance and thus as a basis for calculating the degree to which the constitutional interest should be “softened”.

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após seu mandado propôs a anulação das decisões judiciais; Wilson tentou liberalizar seus membros; e Franklin d. roosevelt propôs reorganizá-la.31

6.2. Pronunciamento único da corte em vez de voz individual discordante de cada ministro

Note-se que o corpo político judicial é representado, em sua instância máxima, por apenas 11 ministros, contrastando com os 513 deputados e 81 senadores, que representam milhões de eleitores, e com o presidente da república, normalmente detentor de enorme popularidade.

daí por que, para maior valorização social e acatamento de suas decisões, inclusive pelos demais ramos governamentais, o Supremo tribunal Federal deve agir preferencialmente, ao proferi-las, como corpo político homogêneo, evitando, ao máximo, que venham a público suas divergências internas.

É deprimente ver pela televisão um ministro do Supremo digladiando, publicamente, com o seu colega, às vezes altercando acaloradamente com o outro membro da irmandade, unicamente porque, ao proferir seus votos, eles dissentem, juridicamente, sobre determinada matéria. Para se evitar esse enfraquecimento do corpo político encarnado pelo Supremo tribunal Federal, impõe-se a supressão do voto seriatim (lido em público um por um).

O fortalecimento da Supreme Court nos estados Unidos também aconteceu por aí. até o início da gestão do Chief Justice John Marshall, que presidiu aquela corte de 1801 a 1835, os Justices, seguindo a tradição inglesa, proferiam seus votos em público de forma individual e seriada. logo que Marshall passou a desempenhar os seus deveres como cabeça da mais alta corte de justiça do País, ele começou a fortalecer a Suprema corte. Pela primeira vez, o Chief-Justice desconsiderou o costume de liberar os votos pelos juízes em forma seriada e, em vez disso, ele calmamente assumiu a função de anunciar, ele próprio, a visão daquele tribunal. Fê-lo no primeiro caso decidido sob sua liderança. “acórdãos da corte” se tornaram o veículo principal do anúncio das decisões, sendo o aresto, virtualmente em quase todos os casos importantes, atribuído ao próprio Chief Justice. a mudança de um número de votos individuais para uma decisão única do tribunal adequou-se admiravelmente para fortalecer o prestígio da jovem corte. Marshall viu que as

31 WilliaM H. rehnquist. Op.cit., p. 306: As created, the Supreme Court seemed too anemic to endure a long contest for power [...] Yet in spite of its apparently vulnerable position, this Court has repeatedly overruled and thwarted both the Congress and the Executive. It has been in angry collision with the most dynamic and popular Presidents in our history. Jefferson retaliated with impeachment; Jackson denied its authority, Lincoln disobeyed a writ of the Chief Justice; Theodore Roosevelt, after his Presidency, proposed recall of judicial decisions; Wilson tried to liberalize its membership; and Franklin D. Roosevelt proposed to reorganize it.

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necessárias autoridade e dignidade da corte só poderiam ser obtidas se os princípios constitucionais por ela proclamados fossem pronunciados por um tribunal unido. Para obter resultado firme e permanente para suas decisões, ele pugnou por um tribunal com uma única voz.32

A voz única não significa, lá, que os membros do tribunal não possam ofertar, em separado, os seus votos concorrentes (concurring opinion) – estão de acordo com o aresto, mas não quanto a determinado ponto, ou a sua extensão e alcance – ou vencidos (dissenting opinions). O que se procura é o consenso prévio, antes da divulgação do acórdão, entre os Justices que, à vista do esboço do voto do relator, que lhes é encaminhado internamente, por cópia, podem aderir ou não a ele, ou condicionar a adesão à inclusão ou exclusão de determinado ponto, ampliando ou restringindo o alcance do aresto. a convergência é a regra. O voto individual, em separado, a exceção. Só ocorre quando a divergência abala as profundas convicções do Justice sobre a matéria posta em julgamento. as divergências jurídicas se resolvem epistolarmente, sem ataques ou mágoas pessoais, no âmbito interno da corte, sem conhecimento do público. O acórdão do tribunal, quando é per curiam, não tem relator determinado e sequer é assinado pelos membros do tribunal. do indivíduo se espera que se dispa de suas vaidades culturais, marcando posição pela divergência (no caso brasileiro geralmente por argumentos técnicos, dogmáticos, positivistas-legalistas, com acentuado amor à letra da lei, e, portanto, estéreis), e prestigie a valorização da instituição, eis que o colegiado dará possivelmente a decisão mais sábia, justa e conveniente aos interesses da nação. O homem, que é mortal, passa, mas a humanidade fica. Assim, o ministro passa, porém a instituição judiciária deve permanecer cada vez mais forte, a fim de poder cumprir sua missão constitucional.

exemplo de voz única, absolutamente necessária na ocasião, com expressiva valorização da instituição, aconteceu no caso Nixon. em 1973, ocorreu novo confronto de poder entre o executivo e o Judiciário quando o presidente Nixon alegou o privilégio Executivo, com base na separação dos poderes, a fim de não entregar as fitas requisitadas pelo juiz Federal John Sirica no caso Watergate. Ele desafiou a Suprema Corte, exigindo um pronunciamento definitivo e conclusivo,

32 SWHWartZ, bernard. Op.cit., p. 20 e 39: As soon as Marshall began to discharge his duties as head of the highest Court, Beveridge’s classic biography inform us, “He quietly began to strengthen the Supreme Court. Before Marshal, the Court followed the English practice of having opinions pronounced by each of the Justices. “For the first time”, says Beveridge, “the Chief-Justice disregarded the custom of the delivery of opinions by the Justices seriatim, and, instead, calmly assumed the function of announcing, himself, the views of that tribunal.” Marshall did so in the very first case decided by his Court. “Opinions of the Court” were made the primary vehicle for announcing decisions, with the opinion in virtually all important cases delivered by the Chief Justice himself. The change from a number of individual opinions to the Court opinion was admirably suited to strengthen the prestige of the fledgling Court. Marshall saw that the needed authority and dignity of the Court could be attained only if the principles it proclaimed were pronounced by a united tribunal. To win conclusiveness and fixity for its decisions, he strove for a Court with a single voice.

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dando a entender que não aceitaria decisões majoritariamente apertadas. tinha confiança nos votos dos quatro juízes que indicara e que faziam parte, atualmente, dela. a Suprema corte, que é composta por um Chief Justice e oito associate Justices, por voto unânime, isto é, por 8 a 0, já que rehnquist se deu por impedido, rejeitou o seu pedido. Nesse caso (United States v. Nixon – 1973), o Chief Justice Burger, falando por uma corte unida (lendo a posição do tribunal e não seu voto condutor), asseverou:

No desempenho das obrigações constitucionais previstas, cada poder do governo tem de interpretar inicialmente a constituição, e a interpretação dos respectivos poderes por qualquer dos três ramos merece grande respeito dos outros dois. O advogado do presidente, como observamos, entende a constituição como fornecendo privilégio absoluto de confidencialidade em todas as comunicações presidenciais. Muitas decisões desta Corte, todavia, têm inequivocamente reafirmado o precedente de Marbury v. Madison, no sentido de que “é enfaticamente a área de atuacão e dever do departamento judiciário dizer o que a lei é.33

acrescentou, ainda, que nem a doutrina da separação dos poderes, nem a necessidade da confidencialidade de comunicação de alto nível, sem mais, pode sustentar um absoluto e desqualificado privilégio de imunidade presidencial em relação ao processo judicial, debaixo de quaisquer circunstâncias.34

Em razão do pronunciamento firme da Supreme Court, manifestada publicamente de modo inequívoco, em uma só voz, Nixon não teve outra opção senão preceder à entrega das fitas. Dezessete dias depois, por falta de legitimidade, e ameaçado de impeachment, renunciou.

7. Dos recursos para o Supremo Tribunal Federalaqui, três aspectos, abaixo comentados, merecem atenção em sua abordagem

constitucional.

33 GarVeY, John H.; aleiNiKOFF, t. alexander. Op.cit., p. 252: The President’s counsel, as we have noted, reads the Constitution as providing an absolute privilege of confidentiality for all presidential communications. Many decisions of this Court, however, have unequivocally reaffirmed the holding of Marbury v. Madison that it is emphaticallv the province and duty of the judicial department to say what the law is.34 Hall, Kermit l.; WieceK, William M.; FiNKelMaN, Paul. American Legal History. USa: Oxford University Press, 2nd ed, 1996, p. 547: However, neither the doctrine of separation of powers, nor the need for confidentiality of high level communications, without more, can sustain an absolute, unqualified Presidential privilege of immunity from judicial process under all circumstances.

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7.1. Necessidade de se alterar urgentemente a constituição para se permitir o recebimento, em caráter discricionário, dos recursos especiais e extraordinários

em face do princípio do devido processo legal (due process of law), adotado pela nossa constituição Federal de 1988 (art.5o, incisos liV e lV) com mais de oitocentos anos de atraso em relação ao direito inglês (Magna carta de 1215) e mais de duzentos anos referentemente ao direito americano (constituição de 1787), o recurso se cinge à instância ordinária: decisão e revisão. O acesso a outro nível, de instância especial, não se acha amparado por ele, salvo nos casos e condições especiais estipulados na própria lei que propiciar essa fase recursal.

extrai-se dessa assertiva que o vencido não tem direito a mais de uma revisão. Pode vir a ter direito a um pronunciamento da instância especial, que fica hierarquicamente acima da ordinária, se demonstrar que atendeu aos pressupostos recursais estabelecidos em lei. Geralmente, a instância especial só reexamina a questão de direito, desprezando os aspectos fáticos, objeto de dilação probatória examinada na instância ordinária.

com base no devido processo, a instância especial não é obrigada a apreciar o recurso a ela interposto, a não ser se tiver lei assim determinando. O princípio garante apenas que os apelos sejam endereçados ao tribunal revisor, evitando-se recursos diretamente às instâncias superiores, salvo ressalva em lei.

esse é o ensinamento que se extrai do direito americano, a ver pela lição de daniel John Meador, para quem

O princípio que embasa esse tipo de solução é o de que cada litigante tem direito a uma revisão do mérito da decisão de primeira instância e que esta revisão é feita pelo tribunal intermediário. Mas a teoria não assegura ao litigante o direito a duas apelações. Qualquer revisão posterior somente será admitida no interesse da construção pretoriana do direito ou do aperfeiçoamento do sistema jurídico. Por isso, a Suprema corte tem a liberdade de determinar quais casos, dentre as inúmeras petições apresentadas, merecem sua atenção, enquanto desenvolve seu papel institucional de formadora do direito e deixa que a corte intermediária se ocupe da maioria das apelações e exerça a função de corrigir erros. É esta a estruturação jurisdicional recomendada pelos Standards de administração Judicial da American Bar Association, que constituem um conjunto prestigiado de estruturas recomendadas e adotadas por muitos reformadores judiciais. No entanto, poucos estados têm um esquema assim tão simples. em muitos deles existem dispositivos legais que asseguram o acesso de determinadas matérias diretamente da primeira instância à Suprema corte, sem passar pelo tribunal intermediário. causas criminais nas quais uma pena de morte tenha sido imposta são freqüentemente tratadas desta forma. em

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alguns estados esta jurisdição abreviada é assegurada para os casos nos quais a primeira instância tenha declarado a inconstitucionalidade de uma lei federal ou estadual. O princípio é o de que casos dessa natureza são muito importantes, e como, provavelmente, alcançarão a Suprema corte, a economia processual e a agilidade da justiça são mais bem atingidas mediante esse atalho.35

todavia, nesse assunto há várias confusões instaladas no brasil.

7.2. Quantidade de recursos extraordináriosa primeira delas consiste no fato de que muitos doutrinadores ensinam que

se deve limitar o número de recursos e dificultar o acesso às instâncias superiores especiais, tais como para o Supremo tribunal Federal. Outra é que o juízo de admissibilidade do recurso extraordinário e do recurso especial é feito, em um primeiro momento, justamente pelo tribunal contra cuja decisão se recorre. a finalidade, evidente, é a de se evitar a subida de recursos para aquelas Cortes. Ora, acredito estar havendo, nesses casos, uma inversão ilógica e irracional. relativamente ao número de recursos para o Supremo tribunal Federal, defendo que seja ampliado, como se viu acima, permitindo-o a partir da sentença de primeiro grau.

Nos estados Unidos, a U.S.Supreme Court recebe, por ano, cerca de 7 mil pedidos de revisão de sentenças, dos quais toma conhecimento, apenas, de cerca de 100 casos, deferindo ou não o Writ of Certiorari. a Justice Sandra day O’connor, recentemente aposentada, conta que, quando tomou posse na corte em 1981,

nós recebíamos em torno de 4 mil pedidos por ano para rever decisões particulares das cortes inferiores, mas nós aceitávamos e decidíamos com sentença fundamentada somente cerca de 150 por ano. recentemente, a corte tem recebido cerca de 7 mil petições por ano e tem aceitado menos de 100. O número de petições admitidas declinou depois que o congresso em 1988 tornou discricionária a sua competência de corte de apelação.36

antes, dissera que outros 100 casos, que não envolvem arrazoados completos e sustentações orais, também são sumariamente (per curiam: pronunciamento do tribunal sem manifestações individuais) julgados por ano.37

35 MeadOr, daniel John. American Courts. USa: West Publishing, 1991. (Os tribunais nos estados Unidos, Usis, p. 19).36 O’cONNOr, Sandra day. The Majesty of the Law. USa: the easton Press, 2005, p. 9 e 11: When I arrived at the Court in 1981 we received around 4,000 applications a year to review particular lower-court decisions, but we accepted and decided with full opinion only about 150 a year. Recently, the Court has been receiving over 7,000 petitions a year and has been accepting fewer than 100. The number of petitions granted declined after Congress in 1988 made the Court’s appellate jurisdiction discretionary.37 idem, p. 5: In addition, the Court summary decides up to another hundred or so cases without oral argument and full briefing.

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Note-se que a discricionariedade para julgar os recursos que lhe são endereçados, como instância especial – e não corte de apelação –, já havia sido autorizada, antes, pelo congresso na revisão judiciária de 1925 (The Judges Bill Act).

O que se vê, lá, é o não-cerceamento do encaminhamento de petições à Suprema corte americana. aliás, essas petições são até incentivadas, ao permiti-las a partir da sentença de primeiro grau, quando for alegada ofensa à constituição ou à lei Federal.

diferentemente, porém, é a aceitação do recurso. a Suprema corte não julga todos eles. devolve a maioria com apenas um carimbo, dizendo que não foi acolhido.

7.3. Juízo de admissibilidadeNo que pertine ao exame da admissibilidade pelos tribunais inferiores, é

evidente que isso fere qualquer senso de razoabilidade. como entender que o tribunal que julgou a improcedência da apelação possa emitir juízo de admissibilidade em relação ao recurso extraordinário, ou ao especial, endereçados pela parte vencida, respectivamente, ao Supremo tribunal Federal e ao Superior tribunal de Justiça?

Os que adoram o tecnicismo dirão que, caso esse tribunal não admita o recurso extraordinário (depois de exaurida toda a complexa processualística a que se refere o art. 542, do cPc), cabe agravo de instrumento para o Supremo que, em assim entendendo, pode mandar subir o recurso. Ora, há um desvirtuamento aí. Primeiro, porque o juízo de admissibilidade do recurso deve ser emitido por quem tem poderes para conhecê-lo. Segundo, porque a permissão da interposição do agravo de instrumento não desnatura a intrusão do tribunal inferior no assunto e, ao mesmo tempo, complica o já embaraçado sistema processual, ao ensejar mais um procedimento e outro recurso, totalmente desnecessários.

7.4. demonstração de repercussão geralOutro aspecto que considero incorreto é o recorrente ter de demonstrar no

recurso extraordinário que a matéria contém questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa, as quais são capazes de denotar a repercussão geral, como exige a lei no 11.418, de 20/12/2006.

Ora, quem decide se questão exposta no recurso extraordinário tem ou não relevância constitucional, ou se vai causar impacto nacional, seja para unificar jurisprudência, seja para alterar uma legislação inconsistente com a constituição, é o próprio Supremo tribunal. assim, de um caso singular, de aspecto puramente individual, ele pode extrair consequências jurídicas de larga aplicabilidade.

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Foi o que a US Supreme Court fez, a partir de casos individuais, aparentemente de interesse particular, sem significação ampla ou expressão geral, a ver:

em Gideon v. Wainwright, em 1963, ela concedeu um writ of certiorari a Gideon, que pessoalmente recorreu diretamente a ela, por ter sido condenado por furto, sendo que, no julgamento, por ser pobre, não teve condições de contratar um advogado. O juiz, em face das leis do estado-Membro, recusou-se a lhe fornecer um defensor dativo (gratuito, custeado normalmente pelo governo).

Vislumbrando a oportunidade de expandir o caso concreto, dando-lhe característica geral, a Suprema corte regrou que:

Razão e reflexão requerem-nos reconhecer pelo sistema contraditório da justiça criminal, que a qualquer pessoa introduzida na corte, que é muito pobre para contratar um advogado, não lhe pode ser assegurado um julgamento imparcial, a menos que um advogado lhe seja providenciado. isso parece ser uma óbvia verdade.38

estabelecendo esse precedente, a Suprema corte disciplinou a assistência advocatícia nos tribunais de Justiça.

em outra oportunidade, ela estendeu esse amparo constitucional (de ter direito a um advogado) à fase do inquérito perante a polícia, desde a prisão do suspeito.

É o que foi decidido no famoso caso Miranda v. Arizona, em 1966. Miranda foi condenado em uma corte estadual por sequestro e estupro. ele havia sido preso e interrogado sem o aviso de que tinha direito de ter um advogado presente. após duas horas, a polícia obteve dele uma confissão, que foi admitida como prova no seu julgamento. O tribunal de apelação estadual manteve a condenação, mas a Suprema corte dos USa a reverteu, sob o argumento de que a polícia, para estar habilitada a usar a confissão, deve demonstrar que deu efeito pleno ao direito do indiciado de permanecer calado, ressaltando que tudo que disser será usado contra ele, e contar com a presença de um advogado, seja contratado por ele ou dativo, caso não possa pagar a um.39

conclui-se que os recursos, diretamente para as instâncias especiais (Supremo tribunal Federal, Superior tribunal de Justiça, etc.), devem ser incentivados, a partir da sentença de primeiro grau, sem a exigência de comprovação de interesse geral da causa, ou o exame da admissibilidade daquele que julgou o caso, eliminando-se toda a parafernália processualística, atualmente existente, aplicável à espécie.38 ScHWartZ, bernard. Op.cit., p. 280: Reason and reflection require us to recognize that in our adversary system of criminal justice, any person haled into court, who is too poor to hire a lawyer, cannot be assured a fair trial unless counsel is provided for him. This seems to us to be an obvious truth.39 ScHWartZ, bernard. Op.cit., p. 28l: “for the police must give so-called Miranda warnings: that the person arrested has a right to remain silent, that anything he says may be used against him, that he can have a lawyer present, and that he can have counsel appointed if he cannot afford one”.

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8. Da quebra do princípio do devido processo legal (due process of law)8.1. Prazos maiores para os órgãos da União e o recurso de ofício

O princípio da separação e independência dos poderes impõe ao Judiciário que não se curve aos poderes eleitos (executivo e legislativo) quando eles asseguram, por meio de leis (ou emendas constitucionais), sua posição privilegiada perante o Poder Judiciário.

assim, em virtude de leis, obriga-se o Judiciário a recorrer de ofício, como se parte fosse, em alguns casos em que os órgãos do Poder executivo foram considerados sucumbentes por sentença judicial (cPc, art. 475; lei no 1.533/1951, art. 12 (mandado de segurança). Ora, essa função de agente do executivo assumida pelo Judiciário é constitucionalmente intolerável.

de igual forma – agora afrontando o princípio da igualdade de todos perante a lei e a cláusula do devido processo legal (due process of Law), em sua dimensão processual, está inserida na constituição Federal (art.5o, incisos liV e lV), e que garante o tratamento isonômico das partes no processo – revela-se inconsistente com a carta Política a concessão, por lei, de prazos especiais para a Fazenda Pública, aí englobando a União Federal (e câmara dos deputados), estados-Membros (e assembleias legislativas), Municípios (e câmara municipal) e suas correspondentes autarquias e fundações públicas e o Ministério Público para contestar ou recorrer (contam-se, respectivamente, em quádruplo e em dobro, ex vi do art.188, do cPc).

dentro da dimensão unicamente processual do devido processo legal, que exige tratamento igualitário para as partes, hão de ser extintos – por mera decisão judicial – os recursos de ofício (O Judiciário não é parte, nem pode pretender socorrer uma das partes), bem como os prazos mais dilatados para os entes estatais e suas autarquias e fundações. Afigura-se inconstitucional, ainda, o privilégio das intimações pessoais, tanto para essas pessoas jurídicas, como para o membro do Ministério Público, este nos processos cíveis, já que o advogado da parte contrária (pessoa física ou jurídica privada) não detém esse privilégio legal.

8.2. assento privilegiado do Ministério Público nas audiências judiciaistambém constitui agressão ao princípio da igualdade o fato de se permitir

ao membro do Ministério Público, principalmente nas ações penais públicas incondicionadas, de que é parte titular, como representante do estado, ter assento, no alto, ao lado do juiz, geralmente confabulando com ele, enquanto o réu e seu advogado permanecem em baixo. essa situação coloca o réu, psicologicamente, em posição de desigualdade processual – inferiorizando, inclusive, o próprio advogado –, o que viola a garantia constitucional da igualdade perante a lei.

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tal deferência da lei, baseada na suposta prerrogativa de função do Ministério Público, na realidade acoberta privilégio que diminui, ainda, o próprio Poder Judiciário, já que, tomando o membro do “parquet” assento no mesmo nível dos juízes, coloca-se na condição de poder, enquanto não passa de órgão, dotado, é certo, de autonomia, mas vinculado ao Poder executivo, o qual o Judiciário tem a obrigação constitucional de controlar e checar seus limites de atuação. Obviamente, trata-se de mais uma intrusão do executivo no Poder Judiciário. O processo criminal ocorrido nessas condições padece de nulidade, por ferir, simultaneamente, o princípio da igualdade das partes e o devido processo legal, que dá executividade a ele.

Nos estados Unidos da américa – lembre-se de que nossa constituição é cópia da americana –, jamais um representante do executivo teve assento junto ao Judiciário. lá, o representante do Ministério Público (District Attorney), além de sentar-se no mesmo nível do advogado, e abaixo do juiz, é tratado, nas cortes de justiça, com a mesma deferência dada aos advogados, podendo, inclusive, ser advertido em audiência, ou, até mesmo, em hipóteses raríssimas, face ao respeito e homenagens mútuos, ser preso pelo juiz por desacato (contempt of the court).

Portanto, não se pode mais permitir que o membro do Ministério Público tome assento, nas audiências públicas, ao lado do juiz, em nível mais elevado que o advogado. esse fato, além de denotar que o Judiciário dá maior realce ao representante do estado, quebra a simetria que deve prevalecer entre as partes, notadamente no processo criminal, em que o MP, indiscutivelmente, é parte. e parte acusadora. aos olhos do réu – e da própria sociedade –, o agente acusador e o juiz se confundem, como se ambos, no alto, estivessem contra ele, em baixo, na mais das vezes colocado longe de seu advogado, com quem, no decorrer da audiência, não pode trocar ideias e informações, de modo a, efetivamente, ter direito à mais ampla defesa. Obviamente, nesse caso, a imagem da justiça fica sob suspeita de parcialidade, vício intolerável para o Judiciário, cujo poder decorre, justamente, de sua imparcialidade e honorabilidade. Psicologicamente, também, até o advogado fica inferiorizado. Quem acredita em um Judiciário, em que uma das partes tem privilégio, ou tratamento diferenciado, como acontece atualmente? Quando o Judiciário perde sua credibilidade, torna-se, naturalmente, descartável, pelo menos como poder político, como aconteceu na França.

Quanto ao cotejo à fotografia dos nove justices que compõem a Suprema corte dos estados Unidos com a dos 11 ministros do Supremo tribunal Federal, noto que esta última retrata 12 pessoas. O procurador-geral da república, que aqui aparece ao lado dos ministros, revela-se, seguramente, um estranho no ninho.

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9. Imunidade parlamentarconstitui garantia constitucional o julgamento pelo juiz natural, isto é, aquele

previamente designado por lei, competente para todos os casos da mesma espécie. logicamente, o princípio refere-se ao cargo, legalmente preenchido, e não à pessoa que o ocupa. Portanto, o indivíduo, por exemplo, tem direito de ser julgado pelo juiz criminal da comarca, ou de determinada vara, consoante a prévia e imparcial distribuição do processo, mas não o de ser julgado pelo juiz tal, como pessoa.

diz, taxativamente, a constituição Federal de 1988 (art.5o, inciso XXXVii) que “não haverá juízo ou tribunal de exceção”. esse preceito é reforçado por outro, com base no princípio da igualdade de todos perante a lei, que deve ser considerado na sua grandeza jurídico-processual: “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente” (art.5o, inciso liii).

Por evidência solar, a garantia do juiz natural, inerente ao Poder Judiciário, não se estende a outros atores que desempenham sua função junto a ele. Por aí se vê que inexiste a figura do promotor de justiça natural, mesmo porque esse fato contrariaria os princípios da indivisibilidade e da obrigatoriedade, que informam essa nobre instituição do Ministério Público (cF, art.127, § 1o; e cPP, arts. 5o, 6o e 24).

Significa o preceito constitucional que o acusado da prática de um delito penal tem direito de ser julgado pelo juiz que é competente normalmente para aquele caso, de acordo com a lei. Não se admite juiz ou tribunal especial para o caso comum, nem por ser o réu também pessoa especial.

revela-se, a meu ver, pois, inconstitucional, seja por ferir o princípio da igualdade, seja por maltratar a cláusula do devido processo legal, a concessão, por lei, ou mesmo por norma constitucional, da chamada prerrogativa de foro, pelo qual são julgados por juízes outros – que não o do distrito da culpa (em ocorreu o crime) – de que gozam deputados, senadores, presidente da república, ministros de estado, governadores, deputados estaduais, prefeitos, juízes e promotores. também constituem tribunais de exceção as cortes militares, quando julgam o militar por crime praticado contra civil. em virtude do devido processo legal, lei abusiva, ou regra inserida na própria constituição, não pode retirar dos juízes ou tribunais sua normal jurisdição, sob pena de afastar do feito o juiz natural. a lei fundamental pretendeu, com isso, proscrever os tribunais de exceção (foro privilegiado em razão das pessoas) e instituindo a garantia do julgamento pelo juiz natural, isto é, por aquele que é, legal e naturalmente, o titular do cargo, na área de jurisdição da ocorrência do fato tido como ilegal ou delituoso. Significa dizer que a Carta Política determinou, como princípio a ser observado, que todos devem ser julgados pelo juiz competente, sem exceção de pessoas, ou de exercício de cargo. esse preceito da lei maior acha-se presentemente desvirtuado, eis que diversas autoridades escapam

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ao juízo natural, sob o frágil argumento de prerrogativa do cargo (presidente da república, governadores, prefeitos, deputados e senadores, magistrados e promotores de justiça, ou seu equivalente federal, o procurador da república).

Os políticos – infelizmente, por falta de coragem do Judiciário, que abdica parte de sua competência privativa e, com isso, diminui a estabilidade política do País – só são processados quando seus pares permitem o julgamento, o que é uma coisa lastimável para a democracia e falta de exemplo de conduta reta pelos representantes do estado, de quem se espera um paradigma exemplar de honra e decência.

a Suprema corte dos estados Unidos nunca permitiu que o legislativo lhe usurpasse parte de sua competência. lá é ela quem decide se a imunidade do parlamentar, por votos e opiniões, tem conexão ou não com o crime pelo qual o parlamentar está sendo processado perante o juiz Federal de primeiro grau ou o júri.

Nada justifica esse pendor judicial de defesa dos representantes do estado, quando sua função primordial e constitucional é, justamente, o contrário, a de defender o povo contra a intrusão, o privilégio e o ataque dos agentes estatais. em razão dessa cultura legalista e de subserviência ao governo, creio eu, é que duas coisas acontecem simultaneamente neste país: a existência de pessoas acima da lei e os milhões de marginalizados, submetidos ao império taxativo da lei.

Note-se que o fato que, realmente, transformou o Judiciário americano em poder político foi quando demonstrou ter capacidade de resguardar sua competência constitucional de ser o último intérprete da lei (dizer o que a lei é, direito conquistado por meio do judicial review), ressalvado ao congresso alterar sua interpretação por emenda constitucional. Para isso, foi natural que ocorressem confrontos com os demais ramos do governo. com relação ao congresso, isso se deu quando os políticos pretenderam, eles mesmos, decidir sobre sua imunidade parlamentar, a fim de serem ou não processados pela justiça, quando denunciados pela prática de crimes. a Suprema corte americana não hesitou em atribuir-se a si, em face do princípio da separação dos poderes e de sua missão constitucional de ser o intérprete final da Constituição, o direito de traçar as fronteiras da imunidade parlamentar, cingindo-a ao direito ao livre discurso e debate, dentro do congresso. Nesse restrito sentido, pronunciou-se a Suprema corte americana (Gravel N. United States – 1972), ao declarar que

a cláusula do discurso e do debate pode ser invocada tanto nos processos civil ou criminal. Sua proteção estende tanto ao membro do congresso quanto a seus assessores, desde que estes executem serviços que seriam imunes se a conduta legislativa fosse praticada pelo membro do congresso.40

40 tribe, laurence H. Op.cit., p. 370: The speech or debate clause may be invoked in either civil or criminal proceedings. Its protection extends both to members of Congress and to their aides, insofar as the aides perform “services that would be immune legislative conduct it performed”by a member of Congress.

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de acordo com laurence tribe,Pelos seus termos, a imunidade, que a cláusula de discurso ou debate confere, é absoluta. a Suprema corte, não obstante, limitou os tipos de ações congressionais protegidas pela imunidade. O primeiro caso (Kilbourn v. thompson – 1881) a corte declarou que a imunidade se estende a todas “coisas geralmente feitas numa sessão do congresso por um dos seus membros em relação aos negócios de que cuida”.41

Por negócios congressionais, a Suprema Corte definiu que não incluía todo ato executado por um membro do parlamento. assim, no caso United States v. Brewster – 1972, um ex-senador federal foi propriamente condenado por simplesmente aceitar suborno, o qual, obviamente, não faz parte do processo ou da função legislativa.42

Segundo esse renomado constitucionalista americano, a linha separando ações protegidas das não protegidas é a última entre “atividades puramente legislativas” e “matérias políticas”. atividades legislativas incluem todas as ações congressionais que são

uma parte integral do processo deliberativo e comunicativo pelo qual os membros participam de comitês e procedimentos da casa relativamente à consideração e passagem ou rejeição de legislação proposta ou referente a outras matérias que a constituição coloca dentro da jurisdição de cada casa. assim, em adição ao literal debate e fala, uma gama de outros atos – votação, preparação de relatórios do comitê, condução de audiências do comitê, por exemplo – é claramente protegida pela cláusula do discurso e do debate. as matérias políticas desprotegidas são, por exemplo, serviços providenciados aos parlamentares, ajuda pessoal na intermediação de contratos governamentais, ou no agendamento de reuniões nas agências governamentais, bem como na comunicação direta com o público, ou através da mídia (newsletter, press release), ou de discursos manifestados fora do congresso ou por meio de publicação de livros. essa publicação externa não é protegida pela cláusula do discurso e do debate, mesmo se o material publicado

41 idem, ibidem: By its terms, the immunity the speech or debate clause confers is absolute. The Supreme Court has nonetheless limited the kinds of congressional actions protected by the immunity. In the first case to construe the speech or debate clause, Kilbourn v. Thompson, the Court held that the immunity extends to all “things generally done in a session of Congress by one of its members in relation to the business before it.42 idem, p. 37l: A former member of the House of Representatives could not be prosecuted on a conspiracy charge where conviction on the charge required proof that the legitimately legislative act of making a speech before Congress was the result of bribery, a former United States Senator was properly convicted for simply taking a bribe, “obviously no part of the legislative process or function.

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estava anteriormente conectado ao curso de uma atividade legislativa protegida.43

Afirma, ainda, esse famoso professor de Direito Constitucional da Universidade de Harvard que há duas principais justificativas para a interpretação pelo Judiciário de cláusula do discurso e do debate a fim de dela excluir pelo menos algumas atividades congressionais. a primeira, porque, não obstante, a cláusula constitucional que dá poderes ao congresso de disciplinar seus próprios membros, de fato ele é mal equipado para investigar, julgar e punir seus membros, em conexão com a conduta somente “incidentalmente relacionada com o processo legislativo”. exceto em circunstâncias extraordinárias ou de partidarismo do congresso, espera-se sua relutância em punir seus próprios membros. e se o parlamento agir, não há garantia de que o alvo de sua ação se beneficiaria das salvaguardas procedimentais contra injustiças, disponíveis no procedimento judicial. a segunda, que uma construção mais abrangente da cláusula do discurso e do debate se justifica pela mútua coexistência da imunidade legislativa e da revisão judicial.44

como asseverou a Suprema corte (Powell v. Mac Komack-1969), “o propósito da proteção deferida aos legisladores não é impeditiva da revisão judicial da ação legislativa”.45 assim, a limitação pela Suprema corte da imunidade congressional à pura “ação legislativa” é, talvez, uma tentativa de acomodação entre as competitivas atribuições constitucionais da revisão judicial e da autonomia legislativa.46

43 idem, p. 371-372: The line separating protected from unprotected congressional action is ultimately one between “purely legislative activities” and “political matters”. Legislative activities include all congressional actions that are “an integral part of the deliberative and communicative processes by which members participate in committee and House proceedings with respect to the consideration and passage or rejection of proposed legislation or with respect to other matters which the Constitution places within the jurisdiction of either house”. Thus, in addition to literally speaking or debating, a range of other acts - voting, preparing committee reports, and conducting committee hearings, for example - are clearly protected by the speech or debate clause. Unprotected political matters include providing constituent services, aiding individuals seeking government contracts and arranging appointments with government agencies, as well as communicating directly with the public through such media as constituent newsletters, press releases, speeches delivered outside of Congress, and book publishing. Such outside publication is not protected by the speech or debate clause even if the material published was previously communicated in the course of protected legislative activity.44 tribe, laurence H. Op.cit., p. 373: However this evidentiary matter is resolved, there are two principal justifications for interpreting the speech or debate clause to exclude altogether at least some congressional activity. First, although article I, § 5, empowers Congress to discipline its own members, it in fact “is ill-equipped to investigate, try and punish its Members” in connection with conduct only “incidentally related to the legislative process.” Except in extraordinary or partisan circumstances, Congress may be expected to be reluctant to punish its own. And if Congress should act, there is no guarantee that the targets of its action would benefit from the procedural safeguards against injustice available in judicial proceedings. A less than encompassing construction of the speech or debate clause is justified, second, by the mutual coexistence of legislative immunity and judicial review.45 tribe, laurence H. Op.cit., p. 373: The purpose of the protection afforded legislators is not to forestall judicial review of legislative action.)46 idem, ibidem, p. 374: The Supreme Court´s limitation of congressional immunity to “legislative action” is perhaps best understood as an attempted accommodation of the competing constitutional commitments to judicial review and legislative autonomy

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atentos a essas lições de direito constitucional sobre a delimitação da imunidade parlamentar, está, com todo respeito, passando da hora de se fazerem os ajustes constitucionais necessários para dar mais transparência na justiça brasileira. assim, nos crimes comuns não envolvendo a liberdade de opinião ou livre manifestação política, toda pessoa, exercente de cargo público ou político, até mesmo o presidente da república, deve responder perante o juiz de primeiro grau.

compete, pois, ao Supremo tribunal Federal dizer e delimitar precisamente a imunidade parlamentar, exercendo sua função constitucional de frear o abuso do congresso, que avocou, inconstitucionalmente (a norma vale menos que o princípio), para si o poder decisório, inclusive o de sustar o andamento da ação penal, usurpando competência essencialmente própria do Poder Judiciário, quando o correto é o contrário.

com efeito, se durante o trâmite de uma ação penal o parlamentar invocar a imunidade, o Supremo Tribunal verificará, após ouvir o ministério público, se ela tem pertinência com seus objetivos de proteger o congressista pela sua livre manifestação do pensamento no exercício da atividade representativa popular. caso o crime não esteja coberto pela imunidade (crime comum, por exemplo), o Supremo tribunal decidirá o incidente contra o parlamentar e autorizará o andamento da ação penal perante o juiz Federal de primeiro grau.

Observe-se que o Supremo tribunal Federal deve atuar, como regra, apenas como instância final recursal. Agride seu status constitucional funcionar como corte de primeiro grau, ouvindo testemunhas e colhendo provas processuais, ainda que essa parte se faça por meio de delegação aos juízes de instância inferior.

O contrário ocorre nos estados Unidos. O presidente bill clinton, no caso de suas relações impróprias com uma estagiária da casa branca, respondeu criminalmente perante um juiz Federal de primeiro grau. apenas teve o privilégio de ser ouvido, por meios eletrônicos, sem sair do recinto presidencial.

Se for deferido ao legislativo tal poder (o de julgar os delitos criminais de seus membros, ou isentá-los da jurisdição criminal judiciária), já não estamos mais regidos por uma forma de governo republicana, com nítida separação dos poderes, mas estaremos debaixo de um sistema de governo parlamentarista, a exemplo da Inglaterra, onde a palavra final sobre as decisões do Judiciário pertence à câmara dos Lords, pois lá só existe um poder: o Parlamento.

Não se esqueça de que nossa constituição Federal, no que toca à estrutura de governo e repartição de poderes, seguiu, a exemplo das constituições republicanas desde a primeira de 1891, o paradigma americano. as normas nela inseridas, de proteção aos congressistas e mandatários do executivo, mesmo cobertas sob o falso manto da prerrogativa do cargo, não encontram sustentabilidade constitucional, em face dos princípios adotados na carta Política, que prevalecem, indiscutivelmente, sobre as normas constitucionais.

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CONCLUSÃOPara mudar o Judiciário brasileiro, principalmente o Supremo tribunal

Federal, o que se torna irremediavelmente necessário, a fim de que se transforme em um verdadeiro poder político – e não mero aplicador literal de lei ou de norma constitucional – de igual dimensão e envergadura dos demais ramos governamentais eleitos, é preciso, muito mais que a edição de leis (um poder político independente e igual aos demais não pode ficar na dependência do Legislativo para exercer sua nobre missão constitucional), que ocorra uma profunda mudança de mentalidade jurídica por parte dos juízes, de modo a passarem a interpretar a constituição sobrepondo-a, efetivamente, às leis e normas constitucionais que não guardem sintonia com ela, ou com os princípios e os valores sociais que ela abriga e que constituem os seus fundamentos. em uma verdadeira democracia, o enfrentamento dos poderes eleitos pelo Judiciário, no exercício de sua missão constitucional de freios e contrapesos (checks and balances), é extremamente salutar e necessário. do contrário, não há de se falar em Judiciário independente.

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cóDigo moDelo De cooPeração interJUrisDicional Para iBeroamérica1

exposição De motivos

Introduçãoa tutela judicial transnacional é uma exigência dos tempos atuais, em que

constantemente as relações jurídicas, sob diversos aspectos, ultrapassam as fronteiras de um Estado. Assegurar a efetividade da tutela judicial sem fronteiras significa muito mais do que apenas reconhecer decisões judiciais estrangeiras transitadas em julgado, proferidas em processos de conhecimento. tudo que for necessário para que seja assegurada a efetividade da jurisdição deve estar compreendido na ideia de tutela judicial transnacional, tais como os atos de urgência, os atos executórios, os atos destinados à comunicação processual ou mesmo os atos probatórios. Pouco importa tratar-se de direito público ou de direito privado; da mesma maneira, a jurisdição há de ser efetiva e estar pautada nos mesmos princípios e ideais da Justiça transnacional.

Não obstante, o tratamento diferenciado, em cada estado, dispensado à cooperação interjurisdicional é sério obstáculo à efetividade da tutela judicial transnacional. embora partindo das mesmas preocupações – plenitude do acesso à Justiça transnacional e preservação da soberania estatal –, as regras internas de cada estado, algumas de índole constitucional, acabam sendo contraditórias ou, ainda, sofrendo interpretações contraditórias. a busca pela uniformidade de regras sobre o tema, ideal imaginado por convenções e tratados no âmbito de organizações internacionais (Mercosul, Oea, Haia, ONU), bem como a busca de um espaço judicial iberoamericano pela rede iberoamericana de cooperação 1 elaborado pela comissão de revisão da Proposta de código Modelo de cooperação interjurisdicional para ibero-américa [ada Pellegrini Grinover, brasil <Presidente>; ricardo Perlingeiro Mendes da Silva, brasil <Secretário Geral>; abel augusto Zamorano, Panamá; angel landoni Sosa, Uruguay; carlos Ferreira da Silva, Portugal; eduardo Véscovi, Uruguay; Juan antonio robles Garzón, espanha; luiz ernesto Vargas Silva, colômbia; roberto Omar berizonce, argentina]. aprovado na assembleia-Geral do instituto iberoamericano de direito Processual, ocorrida no dia 17 de outubro de 2008, por ocasião das XXi Jornadas iberoamericanas de derecho Procesal, lima, Peru.

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Judicial (iberred), dependem preliminarmente de um consenso principiológico. a finalidade de um código modelo de cooperação interjurisdicional reside, justamente, na compilação dos princípios fundamentais e regras gerais inerentes à jurisdição transnacional que, com as adaptações necessárias a cada estado, sejam passíveis de aplicação em todos os sistemas jurídicos que consagrem o estado de direito.

a proposta de um código Modelo de cooperação interjurisdicional para iberoamérica surgiu em julho de 2005, quando das Jornadas especiais de barcelona, do instituto iberoamericano de direito Processual, cujo presidente, Jairo Parra Quijano, em reunião com ada Pellegrini Grinover, angel landoni Sosa e ricardo Perlingeiro, designou-os, juntamente com abel augusto Zamorano, para participar de comissão destinada à elaboração de um pré-projeto. as atividades da comissão – presidida por ada Pellegrini Grinover e secretariada por ricardo Perlingeiro – compreenderam discussões a distância (por e-mail) e duas reuniões presenciais. com efeito, entre julho e dezembro de 2005, a comissão discutiu o assunto via internet, sendo que, nos dias 9 e 10 de fevereiro de 2006, na Faculdade de direito da Universidade Federal Fluminense, em Niterói, foi realizada a primeira reunião presencial, onde se discutiu e aprovou uma das versões da Proposta de código Modelo de cooperação interjurisdicional para iberoamérica. esta versão foi revista e complementada pela mesma comissão, no decorrer do III Congresso Panamenho de Direito Processual, na cidade de Panamá, realizado de 15 a 18 de agosto de 2006. O texto final foi submetido à Assembleia-Geral do Instituto Iberoamericano de direito Processual, nas XX Jornadas Ibero-americanas de Direito Processual, ocorridas entre 25 e 27 de outubro de 2006, em Málaga, quando foi constituída a comissão de revisão, destinada à elaboração do Projeto do código Modelo, também presidida por ada Pellegrini Grinover e secretariada por ricardo Perlingeiro, e da qual fizeram parte Abel Augusto Zamorano, Angel Landoni Sosa, Carlos Ferreira da Silva, eduardo Véscovi, Juan antonio robles Garzón, luís ernesto Vargas Silva e roberto Omar berizonce. Sucederam-se discussões a distância (via e-mail) até que, no dia 15 de setembro de 2007, em Salvador, quando do XIII Congresso Mundial de Direito Processual, da associação internacional de direito Processual, em reunião que contou com a participação do presidente do instituto, Jairo Parra, a Comissão de Revisão aprovou a versão final do Projeto de Código Modelo de cooperação interjurisdicional para iberoamérica.

a ideia de códigos modelo não é novidade no espaço iberoamericano. em 1967, nas Jornadas de caracas e Valencia, na Venezuela, surgiu a ideia de confecção de dois projetos de normas processuais com o objetivo de servirem de orientação às reformas legislativas a serem promovidas nos países latino-americanos. iniciava-se, então, com o trabalho de juristas e comissões organizadas, a elaboração dos

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códigos Modelo de Processo civil e Processo Penal. recentemente, o instituto iberoamericano de direito Processual, nas XIX Jornadas de Processo de Caracas, aprovou o código Modelo de Processos coletivos para iberoamérica.

O Projeto de código Modelo de cooperação interjurisdicional para iberoamérica é bastante arrojado, com uma sistematização absolutamente inédita, não obstante os seus princípios e regras tenham sido construídos a partir da experiência recente dos países iberoamericanos e de suas normas em vigor (de fonte interna e externa), das quais permitimo-nos destacar exemplificadamente as que inspiraram alguns dos seus principais preceitos: a) vínculo entre a concepção de ordem pública internacional e a dos princípios fundamentais do estado requerido/art. 2o, i (código civil Português; ato do conselho ce 29 maio 2000); b) tradução e forma livres para os atos e documentos necessários à cooperação/art. 2o, Vi (convenção interamericana sobre restituição de menores); c) submissão expressa e tácita para fixação da competência internacional condicionadas ao princípio da efetividade/art. 7o, § 1o (código bustamante, Protocolo de buenos aires sobre jurisdição internacional em matéria contratual); d) litispendência e conexão internacionais/art. 9o (código civil Peruano, código bustamante, convenção de Haia sobre reconhecimento e execução de sentenças estrangeiras em matéria civil e comercial, Regulamentos CE 44/2001 e 2201/2003); e) eficácia automática das decisões estrangeiras/art. 10 (regulamentos ce 44/2001 e 1346/2000); f) investigação conjunta/art. 20 (lei Portuguesa de cooperação judiciária internacional em matéria penal, convenção internacional das Nações Unidas para a supressão do financiamento do terrorismo, Convenção da ONU sobre o tráfico ilícito de entorpecentes e de substâncias psicotrópicas, convenção das Nações Unidas contra a corrupção, ato do conselho ce 29 maio 2000); g) comparecimento temporário de pessoas/art. 22 (convenção interamericana sobre assistência mútua em matéria penal; convenção interamericana contra o terrorismo, Protocolo de São luiz de assistência jurídica mútua em assuntos penais no Mercosul, convenção internacional das Nações Unidas sobre a supressão de atentados terroristas com bombas); h) extensão da competência penal internacional nos casos de negativa de extradição/art. 24, III (Convenção Interamericana contra a fabricação e o tráfico ilícito de armas de fogo, munições, explosivos e outros materiais correlatos, convenção das Nações Unidas sobre a proteção física de materiais nucleares); i) transferência de processo e de execução penal/art. 25 (convenção interamericana sobre o cumprimento de sentenças penais no exterior, convenção das Nações Unidas contra o crime organizado internacional); j) extradição de nacional/arts. 30 e 31, iV (constituição Política colombiana, código de Processo Penal da bolívia, tratado de extradição chile e Uruguai, acordo de extradição entre o Mercosul, a república da bolívia e a república do chile, convenção interamericana sobre extradição).

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O Projeto de código Modelo está organizado da seguinte maneira. No capítulo primeiro, dispõe sobre o alcance e os princípios fundamentais da cooperação interjurisdicional; nos capítulos segundo e terceiro, sobre as regras gerais das espécies de cooperação interjurisdicional, distinguindo a cooperação civil da cooperação penal; no capítulo quarto, sobre os procedimentos de cooperação interjurisdicional; e, no capítulo quinto, as disposições finais.

1. Alcance e PrincípiosPrimeiramente, vale registrar que o Projeto não consiste em um modelo para

a cooperação “na iberoamérica”, mas sim de um “código Modelo de cooperação interjurisdicional para Iberoamérica”, isso para que não haja a falsa impressão de que a cooperação seria somente entre os estados iberoamericanos. O Projeto de Código Modelo não é uma proposta de tratado internacional a ser ratificado, mas sim uma proposta de normas nacionais a serem incorporadas internamente por países iberoamericanos e destinado à cooperação interjurisdicional com qualquer estado, iberoamericano ou não.

a expressão “cooperação interjurisdicional” é a mais adequada à tutela judicial transnacional. Os litígios transnacionais, alvo da tutela judicial transnacional, são aqueles que possuem elementos conectados em mais de um estado. Nesses casos, a efetividade da jurisdição depende, sempre, da atuação conjunta de estados soberanos. daí a expressão “cooperação”. É bem verdade que não se trata exatamente de uma cooperação internacional, já que esta expressão é mais apropriada às relações de direito internacional Público e, portanto, à tutela judicial perante tribunais internacionais. chega-se, assim, à expressão “cooperação interjurisdicional”.

em compasso com a denominação “cooperação interjurisdicional”, o art. 1o aponta como objetivo do Projeto de código Modelo o de assegurar a efetividade da prestação jurisdicional em um plano transnacional, a partir do intercâmbio dos atos de natureza administrativa ou jurisdicional, emanados por autoridades administrativas ou judiciárias, no âmbito do direito público e do direito privado. O art. 2o relaciona os princípios gerais da cooperação interjurisdicional, constando, do inciso i ao V, os princípios que dizem respeito ao cabimento da cooperação e, nos incisos Vi, Vii e Viii, os que se referem aos procedimentos da cooperação – ativa e passiva.

a cláusula da ordem pública está associada à observância dos princípios fundamentais do Estado em cujo território se pretenda a eficácia de qualquer ato estrangeiro ou se pretenda praticar ato em favor da prestação jurisdicional perante tribunal estrangeiro (art. 2o, i). dessa maneira, o Poder Público de um estado não deve emanar atos contrários aos seus próprios princípios fundamentais e,

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tampouco, atos que sirvam à prestação jurisdicional, em outro estado, que também seja incompatível com aqueles mesmos princípios. em decorrência dessa cláusula, não se admite nem mesmo a prática de atos administrativos, tal como o registro de uma certidão de divórcio estrangeiro, ou a prática de atos judiciais ordinatórios que visem a uma prestação jurisdicional incompatível com os princípios fundamentais do estado do qual se reclama tais atos. a associação entre ordem pública internacional e princípios fundamentais, inspirada na legislação alemã, austríaca e portuguesa, 2 diminui o grau de imprecisão do conceito indeterminado de “ordem pública”, afasta da compreensão desta a simples contrariedade a leis infraconstitucionais ou constitucionais e a eleva ao patamar de princípio fundamental, expresso ou não em uma constituição.

O obstáculo à cooperação interjurisdicional em razão da falta de observância das garantias do devido processo legal no estado requerente, tal como previsto no art. 2o, ii, é desdobramento da cláusula da ordem pública internacional. Não respeitar as garantias do devido processo legal é o mesmo que negar o direito à tutela judicial efetiva e, consequentemente, ofender os princípios fundamentais de um estado. Frequentemente citada nos diplomas legais, a falta de oportunidade de defesa no processo judicial em curso no estado requerente é um exemplo – mas não o único – da necessidade da observância às garantias do devido processo legal. No mesmo sentido, a publicidade processual assegurada no art. 2o, V, atua como garantia do devido processo legal e da ordem pública internacional, excetuada somente nos casos de interesse público que justifiquem o sigilo (art. 6o, iii, 2a parte).

O Projeto de código Modelo, no art. 2o, iii, rejeita qualquer diferença de tratamento entre nacionais e estrangeiros, residentes ou não residentes, inclusive quanto à possibilidade de extradição. O acesso à Justiça deve ser efetivo, e as garantias correspondentes devem estar ao alcance dos nacionais e dos estrangeiros, indistintamente. a gratuidade de justiça – indispensável aos necessitados – deve incluir as despesas, em especial de tradutores.

No art. 2o, iV, estabelece-se como princípio a não-dependência da reciprocidade de tratamento. O objetivo é assegurar, em um contexto transnacional, o exercício de direitos pertencentes a pessoas privadas, de modo a não sacrificá-los por culpa do estado que se omite, não oferecendo reciprocidade. desta omissão, deve resultar a restrição tão-somente a interesses do próprio estado inerte, sob pena de caracterizar ofensa à tutela judicial transnacional, tal como está previsto nos casos de comparecimento temporário (art. 22), extradição (art. 30, i) e despesas processuais (art. 58).

2 lei de introdução ao código civil alemão (eGbGb), art. 6o, lei austríaca de direito internacional Privado, § 6o, e código civil Português, art. 22.

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O Projeto acolhe o princípio da instrumentalidade processual para o procedimento da cooperação ativa e passiva (art. 2o, Vi), admitindo a tradução livre, que significa não haver necessidade de tradução juramentada ou oficial, sendo até mesmo dispensável, nos casos em que o tribunal e as partes litigantes dela não necessitarem, e admitindo também os meios eletrônicos e videoconferência. Operando em todas as modalidades de cooperação, há previsão expressa desse princípio no art. 5o, parágrafo único (prova por videoconferência) e no art. 6o, parágrafo único (intercâmbio de informações).

a respeito da autoridade central, é consenso de que este organismo deve servir à cooperação interjurisdicional, na medida em que facilite a sua realização (art. 2o, Vii). a tramitação dos pedidos de cooperação perante uma autoridade central somente ocorrerá quando, a critério dos interessados, for considerada necessária. dessa maneira, não obstante os estados sejam obrigados a manter a estrutura administrativa de uma autoridade central, nos procedimentos de carta rogatória ou de auxílio mútuo, admite-se que as entidades interessadas se comuniquem diretamente. também deve ser registrado que, diante do papel atribuído à autoridade central, não compete a esta valorar o cabimento do pedido de cooperação, impedindo o seu processamento ou o seu atendimento.

É admitida a espontaneidade na transmissão de informações a autoridades do estado requerente (art. 2o, Viii). com efeito, existem situações em que não seria necessário – ou mesmo possível – esperar uma solicitação do estado requerente. trata-se das comunicações ou informações sujeitas ao procedimento do auxílio mútuo. citem-se os exemplos das comunicações ao estado requerente quanto à efetivação da medida de urgência (para os fins do prazo instituído no art. 18) ou quanto à ocorrência de procedimentos criminais superveniente (quando posterior ao atendimento de uma solicitação neste sentido).

2. Modalidades de Cooperaçãoa cooperação interjurisdicional – afeta ao direito internacional Privado –

alcança litígios transnacionais de direito privado e de direito público. a legislação nacional, europeia e internacional de cooperação interjurisdicional que não reúne as matérias de direito privado com as de direito público assim procede porque, em razão do detalhamento em que se encontram, tal unificação não seria justificável nem viável. Porém, não é o que ocorre com o Projeto de código Modelo, que contém somente princípios e regras, todos compatíveis com as relações transnacionais afetas a ambos os ramos do direito. a diferença de tratamento foi prevista apenas quando considerada necessária, mesmo em se tratando de princípios e regras, admitindo-se a cooperação penal como especial em relação à cooperação civil, residual. Por

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último, vale lembrar que não seria enfrentado o importante tema “imunidade à jurisdição” (art. 8o, parágrafo segundo), se não fosse incluída no Projeto a matéria de direito público (administrativo, tributário e Previdenciário).

a cooperação interjurisdicional compreende duas classes de modalidades, a de atos ordinatórios e probatórios que não reclamam uma medida jurisdicional do estado requerido e, por outro lado, a de atos que a reclamam. Na primeira classe, encontram-se a citação, a intimação e a notificação judicial e extrajudicial (arts. 3o, i, e 19, i), a realização de provas e obtenção de informações (arts. 3o, ii, e 19, ii), o comparecimento temporário de pessoas (art. 19, iV) e a investigação conjunta (art. 19, III); na segunda, a eficácia e a execução de decisão estrangeira (arts. 3o, iii, e 19, Vi), a medida de urgência (arts. 3o, iV, e 19, Viii), a extradição (art. 19, Vii), a transferência de processo e execução penal (art. 19, V) e, eventualmente, também em alguns casos em que a realização de provas e a obtenção de informações necessitam de medidas jurisdicionais (neste caso sujeita à carta rogatória – art. 41, i), como ocorre com a quebra de sigilo ou medidas constritivas, de acordo com a lei processual interna de cada estado. as regras sobre competência internacional (arts. 7o, 8o e 24) estão situadas estrategicamente entre as duas referidas classes de modalidades de cooperação, pois a competência internacional se presta à jurisdição propriamente dita e não a atos ordinatórios ou desprovidos de conteúdo decisório.

3. Cooperação CivilO capítulo ii inclui modalidades de cooperação que se prestam à própria

cooperação civil e, subsidiariamente, à cooperação penal. referimo-nos às seguintes espécies de cooperação: a) citação intimação e notificação (art. 4o); b) realização de provas e obtenção de informações (arts. 5o e 6o); c) eficácia da decisão estrangeira (arts. 10 e 11); d) execução de decisão estrangeira (arts. 12-14); e) medida judicial de urgência (arts. 15-18).

Quanto aos atos de comunicação processual, estes não serão admitidos quando praticados em relação ao processo – em curso em outro estado – que não seja capaz de ensejar uma decisão final em condições de ser reconhecido pelo estado requerido (art. 4o). Não faz sentido movimentar a máquina judiciária ou administrativa do estado requerido, ainda que se trate de atos judiciais meramente ordinatórios, para contribuir com uma prestação jurisdicional que não seja compatível com os princípios fundamentais deste estado. além disso, implicitamente, admitem-se neste artigo os atos de comunicação processual pelo correio.

em matéria probatória, são admitidos no âmbito da cooperação interjurisdicional todos os meios de prova em geral, desde que obtidos licitamente

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e destinados a processo em curso noutro estado em condições de gerar efeito no estado requerido (art. 5o). Não obstante, além das duas modalidades específicas em matéria penal, sobre investigação conjunta (arts. 20 e 21) e comparecimento temporário de pessoas (arts. 22 e 23), o Projeto de código Modelo destaca o intercâmbio de informações em três níveis: a) informações sobre o direito estrangeiro; b) informações acerca da existência de infrações penais; c) informações a respeito do andamento de processo administrativo ou judicial e das decisões neles proferidas. O pressuposto da licitude para a admissão da prova reafirma a cláusula da proteção da ordem pública internacional, sendo necessário que o meio de obtenção da prova esteja amparado nos princípios fundamentais, tanto do estado requerido quanto do estado requerente.

O parágrafo único do art. 6o, relacionado com o princípio da instrumentalidade, porém fundado especialmente no princípio probatório da livre convicção racional, é contrário à ideia de que algum meio de prova tenha valor absoluto. tem a regra dupla finalidade. Não se exige a tradução de documentos, tampouco uma tradução oficial, bastando que haja a compreensão destes – o que pode ser alcançado por diversos meios de prova. a tramitação perante autoridades centrais ou diplomáticas, de acordo com o papel destas entidades, deve facilitar a cooperação interjurisdicional, gerando a presunção de autenticidade dos documentos sem que, contudo, tal presunção seja iuris et de iure; admite-se prova em contrário.

as regras sobre competência internacional civil (arts. 7o e 8o) estão orientadas pelo princípio da efetividade, que, afinado com o princípio do juiz natural e do forum non conviniens, impõem limites ao princípio da submissão sempre que este levar ao forum shopping, sacrificando o acesso à Justiça, à ampla defesa, ao conhecimento dos fatos, à observância dos direitos adquiridos ou à própria realização fática da tutela executiva ou de urgência (art. 7o, § 1o). de modo geral, as regras sobre competência internacional acompanham a orientação do legislador interno, preferindo o tribunal do estado que estiver mais próximo do litígio: mais próximo do demandado, assegurando a ampla defesa (art. 7o, i, 1a parte); mais próximo do autor, assegurando o amplo acesso à Justiça (art. 7o, iii); mais próximo dos fatos, assegurando uma eficaz instrução probatória (arts. 7o, i, 2o parte, e 8o, i); mais próximo da lei material que regulamente o fato constitutivo do direito subjetivo sub judice (art. 7o, ii); ou, ainda, mais próximo do local da execução, assegurando a efetividade da tutela executiva ou da tutela de urgência (art. 8o, i e ii). Nesse contexto, é competente o tribunal do estado que mantiver algum vínculo efetivo com o litígio capaz de assegurar um processo justo (art. 7o, iii); em caráter subsidiário, é competente o tribunal do estado que for objeto de convenção, expressa ou tácita, pelas partes litigantes (art. 7o, § 1o).

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No plano transnacional, dificilmente prevalece a regra segundo a qual compete ao tribunal do processo de conhecimento promover a execução do julgado. a execução de decisões judiciais é sempre de competência exclusiva do estado em cujo território se materializa. a prática de atos jurisdicionais executórios – atos que expressam soberania – no território de outro estado seria vista como uma interferência direta e indevida na soberania alheia. Portanto, não seria conveniente para a instrução do processo que a condução da execução fosse delegada a outro estado que não o do local dessa execução, sob pena de serem expedidas tantas cartas rogatórias quantos atos executórios forem necessários, inviabilizando o processamento.

a submissão ou escolha dos foros no plano transnacional deve ser subsidiária à observância das regras de competência absoluta (concorrente e exclusiva), salvo se, no caso concreto, e também em nome do princípio da efetividade, nenhum outro tribunal estiver em condições de prestar uma jurisdição adequada (art. 7o, § 1o, segunda parte). No entanto, não se admite a prorrogação de competência diante da ausência do réu ou, ainda, a eleição de foro que contrarie regra de competência absoluta ou não autorizada pela própria norma processual internacional. No art. 7o § 1o propõe-se a submissão expressa ou a submissão tácita, somente nos casos em que o tribunal do estado escolhido ou do estado indicado for um dos legalmente previstos ou, ainda, não houver ofensa à regra de competência absoluta, de acordo com o caso concreto. Portanto, não se admite submissão (expressa ou tácita) a tribunais de estados estranhos ou que sejam absolutamente incompetentes. tampouco se admite submissão tácita sem que haja presença do réu; o Projeto preocupa-se com a certeza de que esteja sendo assegurado o direito de defesa, o que no plano transnacional passa a ser da maior relevância, não se extraindo da revelia a renúncia ou submissão tácita ao foro escolhido pelo demandante. É necessário que o demandado compareça e, contestando o pedido, nada diga a respeito da incompetência (art. 7o § 3o).

a imunidade estatal à jurisdição de outro estado – prevista na convenção de Viena sobre relações diplomáticas – está relacionada diretamente com o tema da competência internacional. decorre da não-incidência de leis estrangeiras sobre relações jurídicas de direito público, sendo causa excludente da competência internacional e fixada em favor dos Estados e, portanto, sujeita à renúncia expressa ou tácita, por parte do estado demandado, como autorizado no art. 7o § 3o.

a litispendência e a conexão entre causas pendentes acarretam a suspensão e não a extinção do processo, para que não haja risco de ofensa à garantia do acesso à Justiça, conforme previsto no art. 9o. essa suspensão, no entanto, deve perdurar até que haja uma decisão final no processo originário ou, então, durante

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um prazo razoável. Isso porque, mais grave que admitir decisões conflitantes e insegurança jurídica, seria suspender um processo por prazo indefinido. Além disso, a litispendência e a conexão somente devem surtir algum efeito se, a critério do tribunal do estado responsável pela suspensão, o processo originário estiver em condições de ensejar uma decisão final compatível com os princípios fundamentais daquele estado. daí a referência a “tribunal internacionalmente competente”.

A eficácia – coisa julgada, exequibilidade e efeitos meramente materiais – transnacional de uma decisão judicial estrangeira é uma das principais modalidades de cooperação interjurisdicional (art. 3o, iii). Prefere-se a expressão “decisão”, que é gênero, em detrimento das expressões “sentença” ou “acórdão”, que são espécies. A eficácia da decisão judicial estrangeira automática e independente de reconhecimento judicial prévio, constante do art. 10, na prática, significa admitir a retroatividade da coisa julgada estrangeira (à data do trânsito em julgado na origem) e a valoração imediata das decisões estrangeiras junto a órgãos administrativos ou em uma relação jurídica qualquer. apenas a execução de decisão judicial estrangeira – por reclamar exercício de jurisdição pelo estado requerido – pressupõe um reconhecimento judicial prévio, ainda que implícito (art. 49). convém registrar que, indiretamente, a eficácia automática da decisão estrangeira legitima a admissão da litispendência e conexão internacionais.

A eficácia da decisão estrangeira depende da observância de requisitos compreendidos entre os princípios fundamentais do estado requerido e as regras sobre competência internacional (art. 11, i, ii e iii). consideram-se, também, os requisitos meramente procedimentais, tais como o de a decisão estrangeira estar provida de efeitos na origem (art. 11, iV) ou o da compatibilidade com as decisões proferidas no estado requerido ou em outro estado, desde que em condições de produzir efeitos no estado requerido (art. 11, V).

a execução de decisão estrangeira está sujeita à observância dos requisitos necessários à eficácia das decisões estrangeiras (art. 12). Porém, apenas para frisar, a execução não se enquadra dentre os efeitos automáticos da decisão estrangeira. aqui, deve-se consignar “a observância aos requisitos”, pois o processo de execução depende de “reconhecimento prévio” incidental pelo ato judicial que autoriza o início da execução e declara a executoriedade do título estrangeiro. anote-se que não impede a execução de decisão estrangeira haver recurso pendente no tribunal de origem; em outras palavras, admite-se execução de decisão estrangeira não transitada em julgado (art. 14), desde que o recurso lá interposto não tenha efeito suspensivo (art. 11, iV), sendo facultada a exigência de caução, se possível ao demandante (art. 14). acrescente-se, no caso de execução de decisão de uma medida judicial de urgência, a necessidade de o processo principal, em curso ou futuro, no qual será

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decidida a questão de fundo, estar em condições de ensejar uma decisão que reúna os requisitos para ter eficácia no Estado requerido, nos termos do art. 13. Aplicam-se à execução de laudo arbitral estrangeiro as mesmas regras da execução de decisão estrangeira (art. 57).

como regra, as medidas de urgência são processadas e decididas pelo tribunal da causa principal. Porém, como o procedimento da execução de decisão estrangeira nem sempre é apropriado à tutela de urgência, tem sido comum autorizar o aforamento destas medidas diretamente no tribunal do estado em cujo território se pretende sua execução. esse fenômeno de dissociação entre processo de conhecimento e processo cautelar no plano transnacional está sujeito a alguns limites devidos aos seguintes princípios: 1) princípio do juiz natural – o tribunal da causa cautelar ou de urgência é sempre o tribunal do processo principal, sendo possível atribuir a competência a outro tribunal somente em situações extremas nas quais ficar demonstrado que o procedimento de reconhecimento ou de exequatur de medidas de urgência for capaz de inviabilizar a realização do direito alegado (art. 16, i); 2) princípio da ordem pública e da competência internacional – o deferimento da tutela de urgência transnacional diretamente pelo tribunal do estado em cujo território seria executada, além da presença do periculum in mora e do fumus boni iuris (art. 17), depende ainda: (a) da demonstração de que o direito material reclamado é compatível com os princípios fundamentais daquele estado e (b) de que a futura e definitiva declaração judicial do direito no exterior será consequência de processo que observe as garantias do devido processo legal perante tribunal que seja competente segundo as regras de competência internacional vigentes naquele estado (art. 16, ii). a natureza provisória de qualquer medida jurisdicional de urgência condiciona a sua eficácia ao advento, em tempo razoável, de decisão final no processo principal (art. 18).

4. Cooperação Penalas modalidades de cooperação interjurisdicional penal que reclamam um

procedimento especial em relação à cooperação civil são as seguintes: a) investigação conjunta (arts. 20 e 21); b) comparecimento temporário de pessoas (arts. 22 e 23); c) transferência de processo e de execução penal (arts. 25 e 26); d) extradição (arts. 30 e 31). As regras sobre competência internacional também possuem especificidades (art. 24). Não obstante, a eficácia e execução de decisão penal estrangeira segue a mesma orientação prevista para as decisões civis (arts. 27, 28 e 29).

a investigação conjunta e o comparecimento temporário de pessoas são modalidades de cooperação em matéria de prova que não reclamam uma medida jurisdicional do estado requerido (art. 19, parágrafo único).

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a investigação conjunta entre autoridades policiais e os órgãos de persecução penal de Estados diversos, para apurar crimes transnacionais, é justificável diante da necessidade de realização de investigações difíceis e complexas com implicações em outros estados (art. 21, i) e da necessidade de ação coordenada nos estados envolvidos (art. 21, ii). É promovida mediante autorização prévia, com objetivos e prazo de duração fixados de comum acordo (art. 20), razão pela qual não há de se falar em ofensa à soberania, especialmente porque na investigação conjunta os atos que reclamarem jurisdição serão levados aos órgãos judiciais competentes do estado requerido.

O comparecimento temporário de pessoas – presas ou não – objetiva a produção de provas em processo em curso em outro estado e tem assento nos arts. 22 e 23 do Projeto de código Modelo. São condições para o comparecimento: a) consentimento da pessoa a ser transferida; b) reciprocidade de tratamento; c) dispensabilidade da pessoa no processo eventualmente em curso no estado requerido; d) no caso de pessoa presa, o compromisso do estado requerente de que ela continuará presa; e) compromisso do estado requerente de promover o retorno da pessoa no prazo fixado; f) compromisso do Estado requerente de que a pessoa transferida não será presa ou sofrerá outras restrições do seu direito de liberdade, por fatos anteriores à sua saída, e, consequentemente, não se sujeite a uma extradição indireta e sem o controle prévio do estado requerido.

No tocante à competência penal internacional, a primeira das suas especificidades é que, ao contrário da competência civil, só comporta a modalidade de competência exclusiva (art. 24). Não se admite a concorrência entre estados para o julgamento da mesma questão. em direito penal internacional, em regra, não se aplica lei estrangeira para definir tipo penal. Portanto, a competência internacional está vinculada à incidência da norma penal do estado ao fato (art. 24, i), o que normalmente ocorre quando o ilícito é no território desse Estado. As exceções ficam por conta de situações extremas, em que a dignidade do acusado ou condenado está em jogo, justificando a modificação de competência, tal como previsto no art. 25 que dispõe sobre a transferência de processo e de execução penal. além disso, prevê-se a extensão da competência penal internacional a um estado – que em condições normais não seria o mais adequado – em situações em que a negativa ou impossibilidade de extradição geraria a impunidade caso não houvesse a extensão da competência internacional (art. 24, iii).

A extradição objetiva assegurar a eficácia transnacional de decisão penal estrangeira restritiva de liberdade (art. 30, caput). a proibição da extradição de nacionais não foi acolhida pelo Projeto, com fundamento no princípio da igualdade de tratamento entre nacionais e estrangeiros, previsto no art. 2o, iii. Na verdade,

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proibir extradição de nacionais é assegurar-lhes um privilégio injustificável, no passado arraigado a uma concepção nacionalista extremada. Se a razão de preocupação reside em não submeter o nacional a um tribunal parcial ou a um tribunal que não assegure as garantias do devido processo, tal preocupação deveria se estender a todos, nacionais ou estrangeiros, mas somente em função daquelas circunstâncias – as de não-observância às garantias do devido processo legal. Nesse contexto, a regra em questão, partindo da premissa de que é possível a extradição de nacional, autoriza que, neste caso, o nacional retorne à sua pátria para o cumprimento da pena. Presume-se que o condenado, na sua pátria, terá melhores condições de reintegração social. Trata-se de uma causa adicional e específica de modificação de competência para execução da pena.

O Projeto de código Modelo, a partir de diversas normas nacionais e internacionais em vigor em grande parte dos estados iberoamericanos, estabelece as seguintes condições para a extradição (art. 30): a) estar fundada em tratado ou promessa de reciprocidade; b) ser o fato considerado crime, ainda não prescrito, no estado requerido e no estado requerente, e ser punível pela lei de ambos os estados com pena privativa de liberdade de duração máxima não inferior a 12 meses ou, se a extradição tiver por finalidade o cumprimento de pena, o tempo de pena por cumprir não pode ser inferior a seis meses; c) não se revestir o processo ou a condenação no estado requerente de caráter político ou não ser consequência de considerações racistas, de religião, nacionalidade, ou outra espécie de discriminação, nem existirem razões sérias para supor que o pedido seja efetuado por alguma dessas razões ou que a satisfação do pedido provocaria um prejuízo à pessoa requisitada por qualquer dessas razões; d) não ser o litígio de competência do tribunal do estado requerido, salvo se, na extradição consentida, se verificar em relação ao Estado requerente uma das condições estabelecidas no art. 25; e) ser o tribunal do estado requerente internacionalmente competente para o litígio nos termos do disposto no art. 24. Se o crime tiver sido cometido em terceiro estado, pode exigir-se ainda que a lei do estado requerido dê competência à sua jurisdição em identidade de circunstâncias ou que o estado requerente comprove que aquele estado não reclama a pessoa; f) não haver risco à pessoa requisitada de ser submetida a processo injusto no estado requerente, sem garantias indispensáveis à salvaguarda dos direitos humanos ou de cumprir pena em condições degradantes ou de vir a ser submetida à tortura ou outro tratamento desumano ou cruel; g) não haver risco à pessoa requisitada, por motivos humanitários que digam respeito à sua idade ou saúde; h) o processo não ter ocorrido no estado requerente à revelia, quando o acusado não tiver sido encontrado para responder à ação penal, a menos que lhe seja garantida a possibilidade de requerer um novo julgamento e de estar nele presente; i) não haver ofensa a princípios fundamentais do estado requerido.

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No mesmo sentido, determina-se, como condição para a execução da extradição, que o estado requerente assuma o compromisso de que (art. 31): a) computará o tempo de prisão que, no estado requerido, foi imposta como consequência da cooperação internacional entre tribunais jurisdicionais; b) não será o extraditado preso nem processado por fatos anteriores à requisição; c) não será o extraditado entregue a outro estado que o reclame pelo mesmo fato; d) será garantida a devolução do extraditado, tratando-se de nacional do estado requerido, para execução da pena que tenha sido ou venha a ser aplicada, salvo se houver recusa expressa dessa pessoa. registre-se por oportuno que o princípio da dupla incriminação opera tão-somente na extradição, não alcançando as demais espécies de cooperação penal.

5. ProcedimentosOs procedimentos da cooperação interjurisdicional consideram,

primeiramente, a natureza – administrativa ou jurisdicional – do ato objeto do intercâmbio; se reclama ou não uma medida jurisdicional perante o estado requerido e, consequentemente, se necessita ou não de um juízo de delibação.

Não reclamando jurisdição ou delibação no estado requerido, o procedimento da cooperação será o do auxílio mútuo, de natureza voluntária – não contenciosa. entre tribunais será um procedimento judicial de jurisdição voluntária; nos demais casos, um procedimento administrativo, de acordo com a legislação administrativa do estado requerido. trata-se do auxílio mútuo judicial e do auxílio mútuo administrativo (art. 34). estão compreendidas no procedimento do auxílio mútuo as seguintes modalidades de cooperação (art. 35): 1. citação, intimação e notificação judicial e extrajudicial, quando não for possível ou recomendável a utilização do correio; 2. informação sobre direito estrangeiro; 3. informação sobre processo administrativo ou judicial em curso no estado requerido, salvo no caso de sigilo; 4. investigação conjunta entre autoridades policiais e órgãos de persecução penal, salvo se a medida reclamar jurisdição no estado requerido, a qual deverá ser objeto de medida judicial de urgência; 5. realização de provas.

em um segundo plano, exigindo-se jurisdição ou delibação do estado requerido, os procedimentos – necessariamente contenciosos de cognição exauriente – consideram a quem compete a iniciativa pela cooperação interjurisdicional. tratando-se de iniciativa direta dos tribunais, adota-se a carta rogatória; porém, quando for a cooperação interjurisdicional de iniciativa e responsabilidade das partes, os procedimentos variam de acordo com a pretensão a ser deduzida no estado requerido (medida de urgência, ação e incidente de impugnação de decisão estrangeira, execução de decisão estrangeira, extradição). O que distingue

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basicamente a carta rogatória desses procedimentos diversos é o seu caráter ex officio. a carta rogatória compreende a “informação sobre processo administrativo ou judicial” e a “realização de provas” que reclamem atos jurisdicionais no estado requerido, a “transferência temporária de pessoas”, a “transferência de processo penal e de execução penal”, e a “execução de medidas judiciais de urgência”, decretadas por tribunal do estado requerente (art. 41).

a lide perante o estado requerido, de acordo com o sentido da expressão “delibação”, está adstrita aos princípios fundamentais daquele estado e à observância das normas sobre competência internacional. Isso não significa exatamente que o tribunal do estado requerido não adentre no mérito da decisão estrangeira, porém somente o fará na proporção em que for necessário à luz dos princípios fundamentais do estado requerido. lembre-se de que o tribunal do estado requerido não é uma instância recursal do tribunal do estado requerente (art. 44, segunda parte), mas negará efeito à decisão que colidir ou à parte da decisão que colidir com seus princípios fundamentais. a possibilidade desse controle judicial delibatório – sem o qual seguramente haveria ofensa à soberania – está previsto nos procedimentos de carta rogatória (art. 40), ação e incidente de impugnação da eficácia de decisão estrangeira (art. 44), execução de decisão estrangeira (art. 49), medida judicial de urgência (arts. 16, ii, e 51) e extradição (art. 52).

Nos procedimentos de extradição, de execução de decisão estrangeira e de medida judicial de urgência, o tribunal do estado requerido é instado a manifestar-se prévia e sumariamente para que a decisão estrangeira seja considerada, sem prejuízo de uma fase de cognição exauriente a posteriori (arts. 49, segunda parte, 51, primeira parte, e 52). Não se promove a citação no procedimento de execução sem que antes o tribunal profira uma decisão equivalente a um ato declaratório de executoriedade; da mesma forma, não se decreta a prisão preventiva do extraditando nem se concede uma medida de urgência sem que haja um juízo delibatório prévio e sumário. Não obstante, conforme previsto no parágrafo único do art. 51, o juiz poderá conhecer a medida de urgência sem escutar a parte contrária e, neste caso, o contraditório se realizará posteriormente. No procedimento de carta rogatória e de ação e incidente de impugnação da eficácia de decisão estrangeira, o juízo de delibação é de cognição exauriente e sempre a posteriori ao início dos efeitos da decisão estrangeira (arts. 39 e 43).

O Projeto de código Modelo afasta-se da competência concentrada em um único tribunal do estado requerido para exercer o juízo de delibação; adota-se o critério de competência difusa, entre os tribunais que seriam competentes para decidir a questão de fundo, de acordo com as normas de competência em vigor no Estado requerido. Além de tornar mais célere o processamento, unificando

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perante o mesmo tribunal a competência para a delibação e execução da decisão estrangeira, propicia um grau de qualidade da jurisdição na medida em que entrega o feito a um tribunal especializado. essa regra é adotada para o procedimento de carta rogatória (art. 38, § 2o), ação e incidente de impugnação da eficácia da decisão estrangeira (arts. 42, parágrafo único, e 46, parágrafo único), execução de decisão estrangeira (art. 48) e medida judicial de urgência (art. 50). A exceção fica por conta da extradição, que deverá ser decidida por um único tribunal do estado requerido, sem que haja a possibilidade de a autoridade central ou outro órgão impedir ou obstar o processamento ou execução, da mesma maneira que ocorre nas demais modalidades de cooperação (art. 2o, Vii).

Os procedimentos de auxílio mútuo e de carta rogatória – ambos de iniciativa de tribunais ou órgãos administrativos – quando a cargo no estado requerido, também devem ser processados e executados com brevidade, nos termos do art. 56.

Quanto à denominação “ação e incidente de impugnação da eficácia da decisão estrangeira”, o código Modelo não se refere a “reconhecimento” de decisão estrangeira; mas à “impugnação da eficácia”, partindo da premissa de que as decisões estrangeiras surtem efeito automático no território de outro estado e não dependem de reconhecimento prévio. Na verdade, corrige-se uma contradição existente no regulamento (ce) 44/2001. logo, o que eventualmente será discutido judicialmente é a impugnação dos efeitos automáticos da decisão estrangeira. essa impugnação pode ser apresentada por via direta ou incidental. a legitimidade ad causam para a ação de impugnação será daquele que se sentir prejudicado com os efeitos automáticos da decisão estrangeira; não somente as partes envolvidas no litígio originário, mas também todos os que, direta ou indiretamente, se sentirem prejudicados pelos efeitos da decisão estrangeira no estado requerido (arts. 42, 46 e 47). A propósito, será no incidente de impugnação da eficácia de decisão estrangeira que se decidirá sobre coisa julgada estrangeira (art. 46) e litispendência internacional (art. 47). a retroatividade dos efeitos da decisão que acolhe a impugnação, prevista no art. 45, é consequência natural da eficácia de as decisões estrangeiras independerem de um reconhecimento prévio. a incompatibilidade entre a decisão estrangeira e a ordem pública existe, naturalmente, desde o início da sua eficácia no estado requerido. com isso, o reconhecimento dessa incompatibilidade terá efeito retroativo.

A propósito da extradição, os fundamentos que a justificam são os mesmos que autorizam a prisão preventiva, preparatória ou incidental, porém perante a ordem jurídica do estado requerente. Não se exige que a prisão preventiva seja necessária à instrução do processo de extradição passiva, pois a prisão é da essência deste; a prisão deve ser necessária no processo que corre no estado requerente,

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segundo os pressupostos de prisão preventiva compatíveis com os princípios fundamentais do estado requerido. em outras palavras, deferir a prisão preventiva do extraditando é o mesmo que reconhecer, provisoriamente, a procedência do pedido de extradição. daí a necessidade, tal como imposto pelo art. 54, de a decisão de prisão ser fundamentada. a natureza jurídica da prisão preventiva no processo de extradição é de medida de urgência que, contudo, não autoriza a entrega do extraditando ao estado requerente, porque aí se geraria uma situação material e processualmente irreversível.

São essas as linhas gerais do Projeto de código Modelo de cooperação interjurisdicional para iberoamérica que submetemos à apreciação desse instituto iberoamericano de direito Processual. estamos convencidos de que o Projeto de código Modelo constituirá uma ferramenta poderosa no processo de reforma legislativa dos sistemas nacionais iberoamericanos de cooperação interjurisdicional, por reunir princípios e regras atuais e modernas, capazes de orientar o legislador de cada país na elaboração de leis nacionais.

lima, 15 de outubro de 2008

A COMISSÃO REVISORAada Pellegrini Grinover

Presidente

ricardo Perlingeiro Mendes da SilvaSecretário-Geral

abel augusto Zamoranoangel landoni Sosa

carlos Ferreira da Silvaeduardo Vescovi

Juan antonio robles Garzónluís ernesto Vargas Silvaroberto Omar berizonce

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Capítulo IParte GeralArt. 1. Âmbito de aplicação.este código dispõe sobre a cooperação entre tribunais, órgãos administrativos, órgãos administrativos e tribunais de estados diversos, com o objetivo de assegurar a efetividade da prestação jurisdicional transnacional.Art. 2. Princípios gerais.a cooperação interjurisdicional de que trata este código está sujeita aos seguintes princípios:i – cláusula da ordem pública internacional: não será admitida a cooperação que se refira a atos contrários aos princípios fundamentais do Estado requerido ou que seja suscetível de conduzir a um resultado incompatível com esses princípios; ii – respeito às garantias do devido processo legal no estado requerente;iii – igualdade de tratamento entre nacionais e estrangeiros, residentes ou não, tanto no acesso aos tribunais quanto na tramitação dos processos nos estados requerente e requerido, assegurando-se a gratuidade de justiça aos necessitados;iV – não-dependência da reciprocidade de tratamento, salvo previsão expressa neste código;V – publicidade processual, exceto nos casos de sigilo previstos na lei do estado requerente ou do estado requerido;Vi – tradução e forma livres para os atos e documentos necessários à prestação jurisdicional transnacional, incluindo-se os meios eletrônicos e videoconferência;Vii – existência de uma autoridade central para a recepção e transmissão dos pedidos de cooperação, ressalvada a convalidação da recepção ou transmissão que não tenham sido perante essa autoridade;Viii – espontaneidade na transmissão de informações a autoridades do estado requerente.

Capítulo IICooperação Interjurisdicional em Matéria CivilSeção IConceito e alcance da cooperação civilArt. 3. Âmbito e modalidades de cooperação em matéria civil.

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esta Seção dispõe sobre a cooperação em matéria civil, que compreende a civil propriamente dita, a comercial ou mercantil, a de família, a do trabalho, a da previdência social, a tributária, a financeira e a administrativa.Parágrafo único. São modalidades desta cooperação interjurisdicional:I – citação, intimação e notificação judicial e extrajudicial;ii – realização de provas e obtenção de informações;III – eficácia e execução de decisão estrangeira;iV – medida judicial de urgência.

Seção IICitação, intimação e notificaçãoArt. 4. Pressupostos da comunicação.A citação, intimação e notificação, que não sejam pelo correio, dependem da possibilidade de o processo em curso no estado requerente estar em condições de ensejar sentença que seja eficaz no Estado requerido.

Seção IIIRealização de provas e obtenção de informaçõesArt. 5. a licitude como pressuposto de admissão da prova.Serão admitidos, na cooperação interjurisdicional, todos os meios de prova obtidos licitamente, observada a condição estabelecida no artigo anterior.Parágrafo único. É admitida a prova por videoconferência.Art. 6. intercãmbio de informações.Será admitido o intercâmbio de informações:i – sobre o direito estrangeiro;ii – acerca da existência de infrações penais;iii – a respeito do andamento de processo administrativo ou judiciais e das decisões neles proferidas, salvo os casos de sigilo.Parágrafo único. Não necessitam de tradução os documentos que podem ser compreendidos, presumindo-se autênticos, salvo prova em contrário, os documentos tramitados por meio de autoridades centrais ou por via diplomática.

Seção IVCompetência e litispendência internacionalArt. 7. competência internacional concorrente.

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Possui competência internacional concorrente o tribunal do estado:i – em cujo território tiver domicílio o demandado ou tiver ocorrido o fato;II – cuja lei regule o fato de acordo com suas normas de conflito;iii – com o qual o litígio tenha vínculo efetivo capaz de assegurar um processo justo.§ 1o É facultada a submissão expressa (eleição de foro) ou tácita a tribunais de um dos estados que seja concorrentemente competente, de acordo com os incisos anteriores, ou ainda nos casos em que for demonstrada a impossibilidade ou ineficácia de acesso a outro tribunal estrangeiro.§ 2o tratando-se de imunidade de jurisdição, a competência dependerá ainda de submissão expressa ou tácita do estado demandado.§ 3o considera-se submissão tácita o comportamento do demandado que demonstre inequivocamente aquiescência com a competência do tribunal do estado indicadoArt. 8. competência internacional com caráter excludente.Possui competência internacional, com exclusão de qualquer outro, o tribunal do estado:i – em cujo território estiver situado o imóvel, nas causas de direito real imobiliário, ou estejam localizados os bens hereditários registráveis e transmitidos por sucessão;ii – do local da execução, na execução de decisões.Art. 9. litispendência e conexão.Quando, no curso do processo, se verificar a prévia pendência, em outro estado, perante tribunal internacionalmente competente, de demanda entre as mesmas partes, com iguais pedido e causa de pedir, ou que seja capaz de levar a decisões incompatíveis, o juiz, de ofício ou a requerimento do interessado, suspenderá o processo, por prazo razoável ou até a comprovação da coisa julgada, desde que a decisão no estado estrangeiro possa produzir eficácia extraterritorial.

Seção VEficácia da decisão estrangeiraArt. 10. efeito automático da decisão estrangeira.Os efeitos da decisão estrangeira são automáticos e independem de reconhecimento judicial prévio.Art. 11. Requisitos para a eficácia da decisão estrangeira.A eficácia da decisão judicial estrangeira no Estado requerido dependerá da observância dos seguintes requisitos:

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i – não ser incompatível com os princípios fundamentais do estado requerido.ii – haver sido proferida em processo em que tenham sido observadas as garantias do devido processo legal;iii – haver sido proferida por tribunal internacionalmente competente segundo as regras do estado requerido ou as estabelecidas na Seção iV precedente;iV – não estar pendente de recurso recebido no efeito suspensivo;V – não ser incompatível com outra decisão proferida, no estado requerido, em ação idêntica ou, em outro estado, em processo idêntico que reúna as condições para ter eficácia no Estado requerido.Parágrafo único. A eficácia da decisão estrangeira poderá ser aferida de ofício, pelo juiz, em um processo em curso, observado o contraditório, ou mediante impugnação, nos termos dos arts. 42 a 47.

Seção VIExecução de decisão estrangeiraArt. 12. execução.a execução de decisão estrangeira está sujeita à observância dos requisitos previstos no artigo anterior.Art. 13. requisito para a execução de medida judicial de urgência.a execução de decisão de uma medida judicial de urgência, decretada por tribunal do estado requerente, depende de o processo principal, em curso ou futuro, no qual será decidida a questão de fundo, estar em condições de ensejar uma decisão que reúna os requisitos para ter eficácia no Estado requerido.Art. 14. Provisoriedade da execução de decisão estrangeira não transitada em julgado.Não havendo coisa julgada, a execução da decisão judicial será provisória, facultada a exigência de caução.

Seção VIIMedida judicial de urgênciaArt. 15. adoção de medida judicial de urgência por tribunal do estado requerido.É cabível o aforamento de medida judicial de urgência, conservativa ou antecipatória, perante tribunal do estado requerido, ainda que a questão de fundo seja da competência de tribunal de outro estado.

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Art. 16. admissibilidade da medida judicial de urgência.admite-se a medida judicial de urgência nos seguintes casos:I – ser impossível ou ineficaz o seu aforamento perante tribunal do Estado competente para conhecer a questão de fundo;ii – estar o processo principal, em curso ou futuro, no qual será decidida a questão de fundo, em condições de ensejar uma decisão que tenha eficácia no estado requerido.Art. 17. aplicação de normas processuais internas do estado requerido.a concessão da medida judicial de urgência no estado requerido obedecerá aos requisitos previstos em suas normas processuais, podendo ser deferida liminarmente ou após ouvir a parte contrária.Art. 18. Eficácia da medida judicial de urgência.A eficácia da medida judicial de urgência estará condicionada ao advento, em tempo razoável, de decisão final no processo principal.

Capítulo IIICooperação Interjurisdicional em Matéria PenalSeção IConceito e alcance da cooperação penalArt. 19. Âmbito da cooperação interjurisdicional penal.São modalidades de cooperação interjurisdicional em matéria penal:I – citação, intimação e notificação judicial;ii – realização de provas e obtenção de informações;iii – investigação conjunta;iV – comparecimento temporário de pessoas;V – transferência de processo e de execução penal;VI – eficácia e execução de decisão penal estrangeira;Vii – extradição;Viii – medida judicial penal de urgência.Parágrafo único. aplicam-se às modalidades de cooperação constantes dos incisos anteriores, salvo as dos incisos “V”, “Vi” e “Vii”, as disposições do capítulo ii, no que forem compatíveis.

Seção IIInvestigação conjuntaArt. 20. cooperação na investigação penal.

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as autoridades policiais e os órgãos de persecução penal de estados diversos, contando com as autorizações prévias pertinentes, podem criar, de comum acordo, uma equipe de investigação conjunta para um objetivo específico e por prazo determinado, para efetuar investigações penais no território dos estados que a criaram.Art. 21. Justificação da investigação comum.São fundamentos da investigação conjunta:i – necessidade de realização de investigações difíceis e complexas com implicações em outros estados;ii – necessidade de ação coordenada nos estados envolvidos.

Seção IIIComparecimento temporário de pessoasArt. 22. comparecimento temporário.Poderá ser solicitado o comparecimento de pessoas no estado requerente, presas ou não, com o objetivo de permitir a prática de atos processuais, quando a solicitação se fundar em tratado ou promessa de reciprocidade e quando a presença da pessoa transferida for dispensável no processo em curso no estado requerido.§ 1o O comparecimento de pessoas perante o estado requerente, na condição de vítima, testemunha, perito ou acusado, dependerá do seu consentimento.§ 2o O comparecimento no estado requerente de pessoa presa no estado requerido somente será concedido, se houver compromisso do estado requerente em mantê-la presa durante o tempo em que permanecer sob sua custódia.§ 3o O estado requerente assumirá a obrigação de promover o retorno de pessoa transferida no prazo assinalado pelo estado requerido.Art. 23. compromissos do estado requerente.O comparecimento de pessoas no estado requerente somente será autorizado se houver compromisso deste de não submeter a pessoa a prisão, medida de segurança ou outras medidas restritivas de liberdade ou de direito, por fatos anteriores à sua saída do estado requerido, diferentes dos que motivaram o pedido de cooperação.

Seção IVCompetência penal internacionalArt. 24. critérios de competência penal internacional.

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tem competência penal internacional o tribunal do estado:i – cuja lei penal seja aplicável ao ilícito;ii – em cujo território houver ocorrido o ilícito;iii – que não seja o do local do ilícito ou o da lei aplicável a esse ilícito, desde que haja falta, negativa ou impossibilidade de extradição fundada no art. 30, i, iV, Vi, Vii e Viii, e no art 31.

Seção VTransferência de processo e de execução penalArt. 25. requisitos para a transferência do processo de conhecimento e de execução penal.a competência penal para o processo de conhecimento e para o processo de execução, havendo consentimento do acusado ou do condenado, pode ser transferida a outro estado, considerado requerido, se observada uma das seguintes condições:i – possuir o acusado ou condenado residência no estado requerido ou neste concentrar suas atividades econômicas;ii – haver aumento das possibilidades de reintegração social do acusado ou condenado, com a transferência para o estado requerido;iii – encontrar-se a pessoa a cumprir, no estado requerido, outra pena privativa de liberdade por fato distinto do estabelecido na sentença cuja execução é ou poderá ser pedida;iV – sendo o estado requerido o de origem do acusado ou condenado e ter-se declarado disposto a encarregar-se da execução;V – não estar o estado requerente em condições de executar a sanção, mesmo com recurso à extradição, possuindo-as, entretanto, o estado requerido.Parágrafo único. Ainda que se verifique uma das condições previstas nos incisos i, iii, iV e V, não haverá lugar à transferência para o estado requerido se houver razões para crer que a mesma não favorece a reintegração social do acusado ou condenado.Art. 26. compromisso do estado requerido de não agravar a pena.a transferência de competência dependerá do compromisso do estado requerido de que não haverá agravamento da pena.

Seção VIEficácia e execução de decisão penal estrangeiraArt. 27. efeitos automáticos de pronunciamentos de natureza patrimonial.

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Sem prejuízo do disposto nos arts. 28 e 29, os efeitos civis e penais de caráter patrimonial de decisão penal estrangeira são automáticos e independem de reconhecimento judicial prévioArt. 28. Requisitos de eficácia.A eficácia da decisão penal estrangeira está sujeita aos requisitos previstos no art. 11 e nos incisos do art. 30, no que couberem.Art. 29. requisitos da execução.a execução de decisão penal estrangeira e de medida judicial penal de urgência, decretada por tribunal do estado requerente, com efeito civil ou penal de caráter patrimonial, está sujeita às regras dos arts. 12 a 18.

Seção VIIExtradiçãoArt. 30. condições da extradição.A eficácia de decisão penal estrangeira restritiva de liberdade, para os fins de entrega ao estado requerente, depende do reconhecimento prévio perante tribunal do estado requerido e da observância das seguintes condições:i – estar fundada em tratado ou promessa de reciprocidade;ii – ser o fato considerado crime, ainda não prescrito, no estado requerido e no estado requerente, e ser punível pelas leis de ambos os estados com pena privativa de liberdade de duração máxima não inferior a 12 meses ou, se a extradição tiver por finalidade o cumprimento de pena, o tempo de pena por cumprir não ser inferior a seis meses;iii – não se revestir o processo ou a condenação no estado requerente de caráter político ou não ser consequência de considerações racistas, de religião, nacionalidade ou outra espécie de discriminação, nem existirem razões sérias para supor que o pedido foi efetuado por alguma dessas razões ou que a satisfação do pedido provocaria um prejuízo à pessoa requisitada por qualquer dessas razões;iV – não ser o litígio de competência de tribunal do estado requerido, salvo se, na extradição consentida, se verificar em relação ao Estado requerente uma das condições estabelecidas no art. 25;V – ser o tribunal do estado requerente internacionalmente competente para o litígio nos termos do disposto no art. 24. Se o crime tiver sido cometido em terceiro estado, pode exigir-se ainda que a lei do estado requerido dê competência à sua jurisdição em identidade de circunstâncias ou que o estado requerente comprove que aquele estado não reclama a pessoa;Vi – não haver risco à pessoa requisitada de ser submetida a processo injusto no estado requerente, sem garantias indispensáveis à salvaguarda

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dos direitos humanos ou de cumprir pena em condições degradantes ou de vir a ser submetida a tortura ou outro tratamento desumano ou cruel;Vii – não haver risco à pessoa requisitada, por motivos humanitários que digam respeito à sua idade ou saúde;Viii – o processo não ter corrido no estado requerente à revelia, quando o acusado não tiver sido encontrado para responder à ação penal, a menos que lhe seja garantida a possibilidade de requerer um novo julgamento e de estar presente nele presente;iX – não haver ofensa a princípios fundamentais do estado requerido.Art. 31. compromissos do estado requerente.a execução da decisão de extradição depende de compromisso do estado requerente de que:i – computará o tempo de prisão que, no estado requerido, foi imposta como consequência da cooperação internacional entre tribunais jurisdicionais;ii – não será o extraditado preso nem processado por fatos anteriores à requisição;iii – não será o extraditado entregue a outro estado que o reclame pelo mesmo fato;iV – será garantida a devolução do extraditado, tratando-se de nacional do estado requerido, para execução da pena que tenha sido ou venha a ser aplicada, salvo se houver recusa expressa dessa pessoa.

Capítulo IVProcedimentos de Cooperação InterjurisdicionalSeção IAuxílio mútuoArt. 32. conceito e extensão.entende-se por auxílio mútuo:i – o procedimento destinado à cooperação entre órgãos administrativos de estados diversos, no intercâmbio de atos ou diligências que objetivem prestação jurisdicional perante o estado requerente;ii – a cooperação entre órgãos administrativos e tribunais, ou entre tribunais, de estados diversos, no intercâmbio de atos ou diligências que não reclamem jurisdição ou não detenham natureza jurisdicional no estado requerido.Art. 33. Via direta entre órgãos interessados.

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a solicitação de auxílio mútuo poderá ser encaminhada, pelo órgão ou tribunal interessado, diretamente àquele que for responsável pelo seu atendimento, competindo-lhe, ainda, assegurar sua autenticidade e compreensão, no estado requerido e no estado requerente.Parágrafo único. São facultados o registro e encaminhamento da solicitação ao órgão ou tribunal competente do estado requerido por uma autoridade central.Art. 34. Procedimentos do auxílio.O procedimento do auxílio mútuo, quando envolver unicamente tribunais, é denominado auxílio mútuo judicial e está sujeito ao procedimento de jurisdição voluntária, de acordo com as normas processuais do estado requerido; os demais, denominados auxílio mútuo administrativo, estarão sujeitos a procedimentos da legislação administrativa.Art. 35. Modalidades admitidas de auxílio.É admissível o auxílio mútuo nas seguintes modalidades de cooperação:I – citação, intimação e notificação judicial e extrajudicial, quando não for possível ou recomendável a utilização do correio;ii – informação sobre direito estrangeiro;iii – informação sobre processo administrativo ou judicial em curso no estado requerido, salvo no caso de sigilo;iV – investigação conjunta entre autoridades policiais e órgãos de persecução penal, salvo se a medida reclamar jurisdição no estado requerido, a qual deverá ser objeto de medida judicial de urgência;V – realização de provas.Art. 36. Normativa do estado requerido.O tribunal ou órgão administrativo requerido executarão o pedido de acordo com a legislação do estado a que pertencem.Parágrafo único. Poderão, porém, a pedido do estado requerente, adotar um procedimento especial previsto pela legislação desse estado a menos que tal procedimento contrarie a ordem pública do estado requerido ou ocorram relevantes dificuldades de ordem prática na sua execução.

Seção IICarta rogatóriaArt. 37. conceito e alcance.entende-se por carta rogatória o pedido de cooperação entre tribunais de estados diversos, no intercâmbio de atos de impulso processual e caráter executório, que reclamem jurisdição ou detenham natureza jurisdicional

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no estado requerido, considerados essenciais à medida decretada, de oficio ou por provocação das partes, pelo tribunal do Estado requerente, em incidente processual próprio.Art. 38. Sujeitos legitimados e formas de remessa.a carta rogatória poderá ser encaminhada pelo tribunal interessado diretamente àquele que for responsável pelo seu cumprimento, competindo-lhe, ainda, assegurar sua autenticidade e compreensão, no estado requerido e no estado requerente.§ 1o aplica-se à carta rogatória o disposto no parágrafo único do art. 33.§ 2o O tribunal competente do estado requerido será o mesmo para aferir a eficácia e executar o ato estrangeiro objeto da carta rogatória, observadas as regras de competência interna que seriam aplicáveis à questão de fundo caso fosse o tribunal do estado requerido originariamente competente.Art. 39. tramitação da carta rogatória.O procedimento da carta rogatória perante o tribunal do estado requerido é de jurisdição contenciosa e deve assegurar às partes as garantias do devido processo legal, podendo o contraditório ser diferido em razão da urgência.Art. 40. limites à defesa.a defesa estará adstrita à observância dos requisitos previstos no art. 11, não podendo a decisão estrangeira, em caso algum, ser objeto de revisão de mérito.Art. 41. Modalidades admissíveis de carta rogatória.É admissível a carta rogatória nas seguintes modalidades de cooperação:i – informação sobre processo administrativo ou judicial e realização de provas que reclamem atos jurisdicionais no estado requerido;ii – transferência temporária de pessoas;iii – transferência de processo penal e de execução penal;iV – execução de medidas judiciais de urgência, decretadas por tribunal do estado requerente.

Seção IIIAção e incidente de impugnação da eficácia de decisão estrangeiraArt. 42. legitimação ativa para o exercício da ação de impugnação.A ação de impugnação da eficácia de decisão estrangeira será proposta por aquele que tenha interesse jurídico no afastamento de seus efeitos no estado requerido.

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Parágrafo único. a ação de impugnação é de competência do tribunal que, segundo as normas processuais do estado requerido, seria competente para decidir a questão de fundo.Art. 43. Garantias do devido processo.O procedimento da presente ação, de jurisdição contenciosa, assegurará às partes as garantias do devido processo legal.Art. 44. Motivos para o exercício da ação de impugnação.a impugnação estará adstrita à observância dos requisitos previstos no art. 11, não podendo a decisão estrangeira, em caso algum, ser objeto de revisão de mérito.Art. 45. efeitos retroativos da decisão sobre a ação.Os efeitos da decisão que acolher a impugnação retroagirão à data do início de sua eficácia no Estado requerido.Art. 46. incidente sobre coisa julgada estrangeira.Observado o disposto nos arts. 42 a 44, cabe incidente de impugnação da eficácia de decisão estrangeira sempre que, invocada por uma das partes a coisa julgada estrangeira, a outra, ou o terceiro juridicamente interessado, quiser discutir a observância dos requisitos previstos no art. 11.Parágrafo único. compete ao tribunal do processo principal processar e julgar o incidente de impugnação.Art. 47. legitimação passiva no incidente de impugnação.O incidente de impugnação poderá ser instaurado em face daquele que for favorecido pela litispendência internacional.

Seção IVProcedimento de Execução de decisão estrangeiraArt. 48. competência para executar uma decisão estrangeira.a execução de decisão estrangeira será proposta perante o tribunal que, segundo as normas processuais do estado requerido, seria competente para executar o título.Art. 49. causas de oposição à execução.É facultado ao executado discutir a existência dos requisitos previstos nos arts. 11, 16, 17 e 18, observadas as garantias do devido processo legal.

Seção VProcedimento de Medida judicial de urgênciaArt. 50. competência para a adoção de uma medida judicial de urgência.

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a medida judicial de urgência, no interesse de processo em curso ou futuro no estado requerente, será proposta perante o tribunal que, segundo as normas processuais do estado requerido, seria competente para decidir a questão de fundo.Art. 51. causas de oposição à adoção da medida.É facultado ao demandado discutir os requisitos para o cabimento da medida de urgência em procedimento incidental, observadas as garantias do devido processo legal.Parágrafo único. O juiz poderá conceder a medida de urgência sem ouvir a parte contrária, caso em que o contraditório previsto no caput deste artigo será posterior.

Seção VIProcedimento de ExtradiçãoArt. 52. Garantia do devido processo no procedimento de extradição.a extradição está sujeita a procedimento de jurisdição contenciosa em que sejam asseguradas as garantias do devido processo legal.Art. 53. Motivos de oposição.a defesa estará adstrita aos requisitos previstos nos arts. 30 e 31, não podendo a decisão estrangeira, em caso algum, ser objeto de revisão de mérito.Art. 54. condição para a efetividade da ordem de detenção e entrega.a ordem de prisão preventiva preparatória ou incidental será fundamentada, vedada a entrega enquanto não houver decisão final da extradição.Art. 55. comunicação da decisão do estado requerido sobre a solicitação de extradição.A decisão final relativa à extradição é comunicada de imediato ao Estado requerente devendo essa comunicação, em caso de recusa, conter os fundamentos da mesma.

Capítulo VDisposições FinaisArt. 56. compromisso de celeridade na cooperação.No que concerne aos procedimentos de auxílio mútuo e carta rogatória e, em geral, sempre que esteja em causa a prática de um ato por parte de tribunal ou órgão administrativo requeridos, estes executarão o pedido do estado requerente com brevidade.

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Parágrafo único. No caso de o pedido não ser satisfeito no prazo de 90 dias, será oferecida justificação para a demora.Art. 57. laudo arbitral estrangeiro.a execução de laudo arbitral estrangeiro está sujeita às regras dos arts. 12, 48 e 49.Art. 58. reciprocidade em matéria de despesas processuais.a isenção de custas ou a responsabilidade do estado requerido pelas despesas processuais dependerão de reciprocidade de tratamento.

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Do mito Da neUtraliDaDe à concePção Do JUiz PolitizaDo e inDePenDente como moDelo De

gestor JUDicial

tiaGo antUnes De aGUiar

JUiz feDeral – pernambUco

Resumo: O artigo trata da evolução do pensamento tradicional da figura do juiz como um ser neutro ideologicamente, como falsa garantia da prestação de uma atividade jurisdicional imparcial, para a ideia de um juiz independente e com concepções ideológicas no exercício da sua atividade pública. explica o papel do Poder Judiciário como garantidor da cidadania na sua relação com os outros poderes, defendendo, por fim, a capacitação do magistrado e de sua equipe como instrumento para o aperfeiçoamento da administração da justiça.Abstract: this paper deals with the evolution of the traditional thought about the person of the judge like a neutral human being, like a false way to assure the impartial jurisdictional activity, to a new idea of an independent judge with ideological conceptions in his public activity. it explains the role of the judicial power like one that garantees the citizenship in the relation with the other powers, defending, at last, the capacitation of the judge and his team as a tool to perfect the administration of the justice.Sumário: introdução; 1 O mito da Neutralidade do Juiz; 2 O juiz como ser político e independente; 3 O papel do Poder Judiciário como garantidor da efetivação da cidadania em face dos outros poderes; 4 administração da Justiça e capacitação do magistrado e de sua equipe como elementos para a efetivação do papel do poder judiciário; conclusão.

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INTRODUÇÃOa complexidade do mundo contemporâneo, seja no seu aspecto cultural,

político ou econômico, exige do Poder Judiciário e, consequentemente, do juiz conhecimentos das mais diversas áreas científicas tais como psicologia, agronomia e economia, não bastando mais o simples conhecimento técnico das disciplinas jurídico-dogmáticas para a resolução dos problemas de uma sociedade globalizada.

Por outro lado, a ideia de um juiz “hermético”, apegado ao excesso de formalismo processual e ao positivismo jurídico tradicional kelseniano, sem atentar para as peculiaridades sociais do caso concreto e para o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, não condiz com os anseios da população, a qual cada vez mais exige celeridade e efetividade na prestação do serviço público a cargo do Poder Judiciário (tutela jurisdicional).

Nesta contextualização, faremos digressões sobre as ideias equivocadas de “neutralidade” do juiz e da necessidade de um julgador “apolítico” como pressupostos de uma resolução de conflito justa e imparcial. Da mesma forma, ingressaremos na análise do papel do Poder Judiciário como garantidor da efetivação da cidadania, trazendo à tona questões relativas à necessária gestão judicial (administração da justiça) planejada e à capacitação pessoal dos juízes e de seus servidores como corolário da efetiva prestação jurisdicional de qualidade.

1. O mito da Neutralidade do Juiza ideia de um juiz neutro, cuja decisão seria desprovida de qualquer

conteúdo político-ideológico, propugnado como garantia da imparcialidade do poder jurisdicional, coincide historicamente com o surgimento do pensamento do liberalismo clássico.

O estado liberal foi marcado por uma rígida delimitação dos seus poderes de intervenção na esfera jurídica privada, repercutindo sobre os julgamentos do estado-Juiz que não poderia interpretar a lei em face da realidade social.1

conforme aludido por luiz Guilherme Marinoni:Esta idéia, bem refletida nos escritos de Montesquieu, espelha uma ideologia que liga liberdade política à certeza do direito. a segurança psicológica do indivíduo – ou sua liberdade política – estaria na certeza de que o julgamento apenas afirmaria o que está contido na lei. Ou melhor, acreditava-se que, não havendo diferença entre o julgamento e a lei, estaria assegurada a liberdade política.

1 MariNONi, luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. São Paulo: editora revista dos tribunais, 2004, p. 35-36.

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Não foi por outro motivo que Montesquieu definiu o juiz como a bouche de la loi (a boca da lei) (G.a.). ainda que admitindo que a lei pudesse ser, em certos casos, muito rigorosa, conclui Montesquieu, no seu célebre Do espírito das leis, (G.a.) que os juízes de uma nação não são “mais que a boca que pronuncia as sentenças da lei, seres inanimados que não podem moderar nem sua força nem seu vigor”.2

apesar de ser quase senso comum reputar-se a Montesquieu a ideia de que este defendia a separação dos poderes ao extremo de considerar como função do juiz a mera declaração da autoridade do legislador, sendo o Poder Judiciário um poder nulo,3 Zaffaroni afirma de forma bastante elucidativa que Montesquieu deve ser lido muito mais de forma sociológica e política que de forma jurídica (dogmática). a ideia básica do autor Francês (contextualizada em uma época em que o Poder Judiciário era tão ou mais arbitrário que o poder monárquico, a ponto da revolução francesa ter sido desdobrada contra o poder dos juízes) consistia muito mais no combate ao abuso de poder que em uma separação de poderes estanques e incomunicáveis.4

Nesse sentido, o mencionado jurista argentino sintetiza com precisão:entendendo Montesquieu sociológica e politicamente – e não jurídica ou formalmente – não resta dúvida de que ele quer significar que o poder deve estar distribuído entre órgãos ou corpos, com capacidade de regerem-se de forma autônoma com relação a outros órgãos ou corpos, de modo que se elida a tendência “natural” ao abuso.Não há em Montesquieu qualquer expressão que exclua a possibilidade dos controles recíprocos, nem que afirme a absurda compartimentalização que acabe em algo parecido com “três governos” e, menos ainda, que não reconheça que no exercício de suas funções próprias esses órgãos não devam assumir funções de outra natureza (o judiciário e o legislativo, em seus autogovernos, assumem funções administrativas; o executivo, ao regulamentar as leis, ao encaminhar projetos e aos vetá-los, exerce funções legislativas; algumas constituições reconhecem limitadas funções de iniciativa parlamentar aos judiciários etc.)5

esse verdadeiro dogma da neutralidade perdurou por longo período como concepção ideal do Poder Judiciário, imperando entre os cultores do direito com base nos ensinamento de Hans Kelsen, que aludia em sua 1ª edição de sua obra

2 ibidem, p. 36-37.3 ibidem, p. 38-39.4 ZaFFarONi, eugênio raúl. Poder Judiciário: crise, acertos e desacertos. São Paulo: editora revista dos tribunais, 1995, p. 79-83.5 ibidem, p. 82-83.

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Teoria pura do direito a tentativa de desenvolver uma teoria jurídica pura, isto é, purificada de toda a ideologia política e dos elementos da ciência natural.6

Modernamente, contudo, não se pode admitir tal pensamento como parte de uma ciência social, sobretudo na ciência jurídica, sendo a ideia da neutralidade algo impossível de se atingir e mesmo indesejável. a dogmática jurídica tradicional, por certo, falhou ao tentar preceituar algo contrário à própria natureza humana: o juiz é um ser humano e, como tal,

não será possível libertá-lo do seu próprio inconsciente, de seus registros mais primitivos. Não há como idealizar um intérprete sem memória e sem desejos. em sentido pleno, não há neutralidade possível.7

Não pode, portanto, o juiz ser considerado um ser asséptico, desvinculado dos problemas da comunidade e desprovido de ideias próprias. esse falso conceito, apesar de associado a uma virtude considerada equivocadamente como necessária à imparcialidade do julgador, além de não atingir a esse fim pretendido (imparcialidade) não passa de uma mera caricatura.8

dito de outra forma, por Marinoni:Na verdade, a idade dos sonhos dogmáticos acabou. a nossa modernidade está na consciência de que o processo, como o direito em geral, é um instrumento da vida real, e como tal deve ser tratado e vivido. O juiz e o processualista, se um dia realmente se pensaram ideologicamente neutros, mentiram a si próprios, pois a afirmação de neutralidade já é opção ideológica do mais denso valor, a aceitar e reproduzir o status quo.9

2. O juiz como ser político e independenteSuperada a questão da impossibilidade da neutralidade do juiz, impõe-se como

corolário que este, como integrante de um poder e detentor de suas convicções pessoais, desempenha função política ao proferir suas decisões. O Judiciário convive com questões políticas em seu cotidiano que lhe são apresentadas para solução, como, por exemplo, a invasão de uma terra particular por movimentos agrários. Neste

6 SilVa, Maria coeli Nobre da. O juiz social: postura exigida numa sociedade de desigualdades. in: XV CONGRESSO PREPARATÓRIO DO CONPEDI, 15, 2006, p. 8. Anais eletrônicos[...]. disponível em: <http://conpedi.org/manaus/arquivos/anais/recife/hermeneutica_maria_coeli_da_silva.pdf>. acesso em: 19/6/2008.7 barrOSO, luís alberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, apud SilVa, Maria coeli Nobre da. Op. cit, p. 10-11.8 ZaFFarONi, eugênio raúl. Op. cit., p. 91.9 MariNONi, luiz Guilherme. Novas linhas do processo civil. 2. ed, São Paulo: Malheiros, 1996, p. 15, 22 e 33. apud rOSa, alexandre Morais da. O papel dos Juízes na sociedade contemporânea: uma visão particular. O neófito – informativo jurídico. disponível em: <http://www.neofito.com.br/artigos/art01/jurid205.htm>. acesso em: 13/6/2008.

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caso, dependendo do grau de formação cultural e ideológica do magistrado, poder-se-á argumentar pela manutenção do esbulho em face do princípio constitucional da função social da terra (levado a um grau absoluto) ou, em sentido contrário, pela necessidade de desocupação do imóvel em face do direito de propriedade, o qual só poderia ser retirado do titular da terra com a declaração de interesse social para reforma agrária, após regular procedimento administrativo contraditório e o consequente processo de desapropriação.

Quando se fala em Poder Judiciário está se falando de um “ramo do governo”, sendo etimologicamente incorreto pensar-se em um poder estatal que não seja político no sentido de “governo da polis”. a separação de poderes (ou de funções preponderantes) nada mais é do que uma distribuição de poder político, sendo a sentença um ato de poder e, portanto, um ato de governo, mediante a prestação de um serviço público relevante, a resolução dos conflitos sociais.10

Não se quer dizer com tal afirmação que os juízes devem proferir suas decisões com base nas orientações de determinado partido político, mas que ao decidir opta pela decisão que lhe repute mais justa e correta dentro do sistema jurídico e considerando sua interpretação (o que não deixa de ser uma manifestação de poder) que, como vimos, não é uma mera manifestação da “boca” da lei.

Mais uma vez, por sua profundidade, citamos as palavras de Zaffaroni:É inegável que a imagem do juiz asséptico foi alimentada pelo perfil resultante da estrutura burocrática européia (bonapartista), que, como vimos, criou espaço para que vários ideólogos – entre eles carl Schmitt – estabelecessem como uma fatalidade a inimputabilidade política dos juízes.Ninguém pode duvidar de que o juiz não pode corresponder às ordens de um partido político, muito além do que uma constituição ou uma lei autorize ou proíba a filiação ou militância política, o que é, definitivamente, anedótico em uma democracia consolidada. Mas, ao mesmo tempo, é insustentável pretender que um juiz não seja cidadão, que não participe de certa ordem de idéias, que não tenha uma compreensão do mundo, uma visão da realidade. (...)a tarefa de interpretar a lei para aplicá-la ao caso concreto é árdua, equívoca e discutível. Se assim não fosse, seriam inúteis as bibliotecas jurídicas. Não há dúvida de que, diante de certos problemas, a lei não é interpretada da mesma maneira por um conservador e um liberal, um socialista ou um democrata-cristão, mas isso não obedece a que qualquer comitê partidário lhe distribua ordens e menos ainda a corrupção.11

10 ZaFFarONi, eugênio raúl. Op. cit., p. 94.11 ZaFFarONi, eugênio raúl. Op. cit. p. 91-92.

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O reconhecimento da “politização” do juiz não implica a falta de imparcialidade do Poder Judiciário. ao contrário, a imparcialidade é inerente ao próprio conceito de jurisdição, sendo sua principal garantia a existência de um juiz independente. Não é o fato de o juiz possuir seus pensamentos (posições ideológicas) que fará com que ele perca sua imparcialidade, mas, sim, a falta de sua independência funcional para com os outros poderes (independência externa) ou para com o seu próprio Tribunal (dependência interna). A imparcialidade significa que um terceiro “supra” ou “inter” partes (ainda que ontologicamente possua valores e crenças) irá decidir a quem cabe o direito, sem atender ao interesse de um determinado grupo partidário em sentido amplo. 12

em uma democracia não pode ser outro o modelo de Poder Judiciário ideal senão aquele em que se possam conviver membros de diferentes concepções político-ideológicas, pessoas com diversidade interpretativa, com tensões próprias de se conceber o direito e a vida. a chave para o alcance da imparcialidade desejada é o respeito ao pluralismo ideológico e valorativo, dentro de um modelo democrático de magistratura com a presença de um controle recíproco dentro da sua estrutura entre os diversos agrupamentos espontâneos.13

Na verdade, o grande desafio do Poder Judiciário na pós-modernidade, sobretudo nos países ditos “em desenvolvimento”, que começam respirar uma brisa de democracia, é atingir a “independência” do magistrado.

consoante aventado anteriormente, a independência plena do juiz implica sua autonomia externa: sua relação com os Poderes executivo e legislativo; e sua autonomia interna: sua relação com os outros juízes da mesma ou superior instância.

Sobre a diferença mencionada, arremata Zaffaroni:a independência do juiz, ao revés, é a que importa a garantia de que o magistrado não estará submetido às pressões de poderes externos à própria magistratura, mas também implica a segurança de que o juiz não sofrerá as pressões dos órgãos colegiados da própria judicatura.Um juiz independente, ou melhor, um juiz, simplesmente, não pode ser concebido em uma democracia moderna como um empregado do executivo ou do legislativo, mas nem pode ser um empregado da corte ou do supremo tribunal. Um poder judiciário não é hoje concebível como mais um ramo da administração e, portanto, não se pode conceber sua estrutura na forma hierarquizada de um exército. Um judiciário verticalmente militarizado é tão aberrante quanto um exército horizontalizado.14

12 ibidem, p. 90-91.13 ibidem, p. 93.14 ibidem, p. 88.

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ainda que em momento recente da história do brasil tenhamos vivido um regime ditatorial no qual o Poder Judiciário foi submetido ao executivo e a constituição transformada em atos institucionais arbitrários (valendo-se ressaltar as posições corajosas de alguns juízes como Márcio José de Moraes que em 27/10/1978 responsabilizou a União Federal pela morte do Jornalista Vladimir Herzog),15 a lesão à independência interna é mais cotidiana e costuma ser de maior gravidade que a lesão à independência externa do magistrado na atualidade.16

enquanto a pressão sofrida pelo juiz em face dos Poderes executivo ou legislativo é relativamente neutralizável pela liberdade de informação e de imprensa, a lesão à independência interna é muito mais sutil e contínua.17

destarte, para que tenhamos uma magistratura imparcial é necessária a outorga de independência ao juiz, externa e interna, sendo que

a independência interna somente pode ser garantida dentro de uma estrutura judiciária que reconheça igual dignidade a todos os juízes, admitindo como únicas diferenças jurídicas aquelas derivadas da diversidade de competência.18

3. O papel do Poder Judiciário como garantidor da efetivação da cidadania em face dos outros poderes

a construção teórica de um juiz “neutro” e “apolítico” guarda uma relação intrínseca com a própria ideia de desconfiança ou incapacidade do Poder Judiciário no exercício do controle dos Poderes executivo e legislativo, mediante a revisão da validade das leis e dos atos administrativos perante a constituição.

tal receio, como vimos anteriormente, deve-se, em parte, à herança do liberalismo clássico e da revolução Francesa que, como forma de combate a um Poder Judiciário submisso e arraigado ao poder monárquico do antigo regime, pregava a importância da lei como única fonte de direito e o Parlamento como local apropriado para a expressão da vontade do povo.

entretanto, o Judiciário por não ser o responsável pela implementação direta das políticas públicas, nem o responsável pela edição de leis que escolheram quais as políticas públicas desejáveis, é o poder que possui o maior grau de imparcialidade e independência para garantir a efetivação da cidadania, garantindo que os outros poderes cumpram os direitos consagrados constitucionalmente.19

15 SilVa, Maria coeli Nobre da. Op. cit. p. 13-14.16 ZaFFarONi, eugênio raúl. Op. cit. p. 88.17 ibidem, p. 89.18 ibidem, p. 89.19 Pereira, andré Melo Gomes. Cidadania e efetividade do processo judicial em face da Fazenda Pública no Brasil. recife: 2004, p. 40. dissertação de Mestrado apresentada e aprovada na UFPe.

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O conceito de cidadania no mundo contemporâneo não pode ser entendido tão-somente, como a liberdade individual do sujeito de direito em contrair obrigações (cidadania civil) ou como a capacidade ativa para escolher os seus representantes políticos (cidadania política), ganhando uma dimensão muito mais ampla ligada à noção de direitos (cidadania socioeconômica).20

Nessa concepção de cidadania, o estado ganha especial importância como responsável, em grande parte, pela implementação dos direitos socioeconômicos; e o Poder Judiciário tem um papel especialíssimo de garantidor da efetivação destes, em caso de lesão desses direitos, seja por comissão ou omissão do Poder executivo ou Legislativo. Esse papel, aliás, fica muito evidenciado no caso do juiz Federal, uma vez que lida com demandas que envolvem a União Federal e suas autarquias federais, nas quais, por diversas vezes, constatam-se lesões cometidas pelo Poder executivo ou legislativo a direitos constitucionais dos cidadãos, a exemplo dos beneficiários da previdência e assistência sociais.

Utilizando-se das palavras de Pereira, em sua dissertação de mestrado apresentada e aprovada na UFPe em 2004:

a cidadania, portanto, deve ser visualizada, na atualidade, como condição inerente ao cidadão de fruir de direitos civis, políticos, sócio-econômicos e ser responsável por determinados deveres perante o estado do qual faz parte e perante a sociedade em que está inserido, para que o estado seja instrumento apto à persecução dos valores considerados básicos da sociedade, construindo-se uma cidadania emancipada que possa “civilizar” o mercado e os outros sujeitos que determinam as organizações humanas.21

a seguir, acrescenta:[...] o legislativo e o executivo podem, por meio de atos legislativos e administrativos, se constituir em violadores da garantia da cidadania. Nessa situação, é necessária a presença do Poder Judiciário como garante de cláusulas das mais importantes da república, controlando a constitucionalidade das leis e a legalidade dos atos administrativos.O papel do poder judiciário, principalmente em um país como o brasil, diante da fragilização de um enorme contingente de pessoas, que vivem abaixo da linha de pobreza e a própria especificidade dos direitos consagrados na constituição de 1988 corroboram esse entendimento. [...]Confiar exclusivamente ao Legislativo e/ou ao Executivo a proteção da cidadania, em qualquer possibilidade de serem revisados os atos

20 ibidem, p. 17, 22-23 e 34.21 ibidem, p. 25.

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legislativos e administrativos utilizados por esses poderes, seria o mesmo que negar eficácia a toda uma ordem constitucional com normas que expressam valores a serem preservados. Não se está negando valor a uma cidadania ativa, que reinvidique os direitos perante o legislativo e o executivo, mas, apenas, ressaltando-se a necessidade de uma instituição para a salvaguarda contra o próprio estado e os particulares. essa revisão, necessária, deve ser realizada por um Poder independente e imparcial que estará mais apto a dirigir suas decisões para observância do texto constitucional, tanto do ponto de vista do processo constitucional como dos litígios individuais em que os cidadãos acionam os entes Públicos em razão da prática de atos administrativos violadores da cidadania ou da omissão da prática de atos necessários para concretizá-la.22

4. Administração da Justiça e capacitação do magistrado e de sua equipe como elementos para a efetivação do papel do Poder Judiciário

entendido o papel do Poder Judiciário na sociedade contemporânea como uma instituição fundamental para a efetivação da cidadania plena, verifica-se que o instrumento de que se utiliza o Poder Judiciário para tanto é o processo judicial.

entretanto, a prática judicial nos mostra que de nada adiantam as diversas reformas das leis processuais na tentativa de reduzir a denominada “morosidade” do Poder Judiciário, se não houver uma mudança na mentalidade de todos os que lidam com o processo, aí incluídos não só os juízes, como os servidores do Judiciário e todos aqueles que exercem sua participação no processo (peritos, intérpretes, contadoria, procuradores, estagiários, etc.).

recentemente, essa “crise do Poder Judiciário” vem sendo estudada por diversos autores e sendo criadas diversas instituições23 no mundo preocupadas com o desenvolvimento de técnicas e capacitação de pessoas com o fito de se reduzir a lentidão da prestação da atividade jurisdicional, fugindo dessa visão tradicional dogmática de que tudo se resolve com uma boa legislação processual.

essa temática da otimização da gestão judicial como forma de se prestar um serviço público jurisdicional de forma adequada e mais célere tem sido denominada pela literatura de “administração da Justiça”.

Nos dizeres de FreitaS, parafraseando a professora Sonia Picado Sotela:

22 ibidem, p. 40-41 e 56-57.23 O professor Vladimir Passos de Freitas cita como exemplo o Federal Judicial center em Washington (eUa) e o centro de estudos de Justiça das américas (ceja) na américa latina.

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[...] a administração da justiça é o sistema sobre o qual se fundamentam os mecanismos judiciais de solução de controvérsias entre particulares, entre estes e o estado, todo ele dentro de um contexto que supõe um estado democrático de direito com as garantias do devido processo legal e a todos os direitos humanos vigentes no país.24

e, continua o mesmo autor:a efetividade da Justiça, na visão tradicional, resume-se e é sistematicamente repetida como um problema de: a) reforma do Poder Judiciário; b) simplificação das leis processuais; c) aumento dos tribunais ou de varas. contudo, estas medidas comprovadamente não resolvem o maior problema da Justiça, que é a sua lentidão.a reforma do Poder Judiciário, depois de tramitar cerca de 12 anos no congresso, foi aprovada pela emenda 45/04. Passados quase dois anos de sua vigência, não se vislumbram grandes transformações. [...]Quanto às leis processuais, em que pese o reconhecido esforço do legislador, promovendo alterações tópicas, muitas delas de excelente efeito simplificador (exemplo do art. 475, § 3º do CPC, que dispensa o reexame de sentença contra os entes públicos, quando fundada em decisão do plenário do StF ou súmula de tribunal Superior), a verdade é que, nem por isso, o prazo de duração das ações diminuiu. [...]Finalmente, a criação de turmas (ou câmaras) nos tribunais e mais varas, a toda evidência, constituem medida tradicional e pouco efetiva. É inquestionável que o problema é mais de sistema do que propriamente de pessoal. Por exemplo, por mais que se criem varas de execuções fiscais, elas estão sempre sobrecarregadas de processos, por vezes com 50 mil ou mais cobranças, sem nunca alcançar maior efetividade.25

as críticas à visão tradicional são feitas no intuito de se fomentar a discussão para o planejamento da gestão judicial como forma de se melhorar e se maximizar os resultados possíveis com as estruturas físicas e de pessoal existentes em cada unidade administrativa do Poder Judiciário.

entretanto, a primeira tomada de consciência de um “bom gestor da Justiça” é a de que este não pode desprezar as experiências tradicionais bem-sucedidas,

pois reconhece nelas uma contribuição essencial para o aprimoramento deste poder. todavia, a elas não se limita. enxerga, além da visão tradicional (exemplo, mais varas, mais funcionários), a existência de métodos que possibilitem melhor rendimento dos trabalhos.26

24 FREITAS, Vladimir Passos de. Eficiência em pauta: Considerações sobre a administração da Justiça. Consultor Jurídico. São Paulo, nov./2006, p. 3. disponível em: <http://conjur.estadao.com.br/static/text/49944?display_mode=print>. acesso em: 13/5/2008.25 ibidem, p. 4.26 ibidem. p. 5.

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a motivação do magistrado e dos servidores da Justiça é essencial para a consecução de uma prestação jurisdicional mais célere e eficaz (adequada). A autoestima das pessoas aumenta com o orgulho pelo bom rendimento dos serviços27 e também com a conscientização do agente público da sua função essencial na distribuição da justiça.

Neste último ponto, verifica-se que a realização de reuniões mensais entre os servidores e os magistrados além de ser uma oportunidade para o Juiz/gestor conscientizar os servidores de sua função essencial para a concretização da justiça, possibilita um debate em torno dos principais problemas do dia a dia e um constante diálogo no sentido de se exigir o comprometimento de todos para o alcance de metas, que devem ser fixadas pelos próprios servidores e acompanhadas regularmente pelo gestor, como forma de se incentivar e controlar o alcance dessas.

O oferecimento de cursos de capacitação aos servidores e magistrados; estágios no exterior; programas-piloto; a realização de concursos de monografia ou outros concursos motivacionais como, por exemplo: a) Minha história de vida; b) Destaque institucional; c) Fotografias; d) Descobrindo talentos são exemplos de meios alternativos para a concretização da motivação do grupo de trabalho.28

O gestor, seja ele juiz ou presidente do tribunal, deve dar o exemplo, dedicando-se de forma comprometida com seu trabalho e sendo acessível aos seus colaboradores para a discussão de melhores formas de se executar o trabalho cotidiano, tanto de uma assessoria quanto de uma secretaria de vara ou de turma.

Utilizando-se da síntese de FreitaS:O juiz nas funções de administrador, como Presidente de tribunal, Vice-Presidente, corregedor, coordenador de Juizados especiais, diretor de escola de Magistrados, diretor do Foro ou Fórum, ou administrando a sua Vara, deve saber que a liderança moderna se exerce com base na habilidade de conquistar as pessoas e não mais em razão do cargo, perdendo a hierarquia seu caráter vertical para assumir uma posição mais de conquista do que mando.ao administrar, cumpre-lhe deixar a toga de lado devendo: a) obrigação à lei e não à jurisprudência; b) inteirar-se das técnicas modernas de administração pública e empresarial; c) adaptar-se aos recursos tecnológicos; d) decidir de maneira ágil e direta, sem a burocracia dos processos judiciais; d) manter o bom e corrigir o ruim; e) delegar, se tiver confiança; f) atender a imprensa; g) lembrar que não existe unidade judiciária ruim, mas sim, mal administrada.29

27 ibidem.28 ibidem, p. 6.29 FreitaS, Vladimir Passos de. Os dez mandamentos do juiz administrador. Revista on line do Ibrajus. curitiba. 2006. disponível em: <http://www.ibrajus.org.br/revista/artigo.asp?idartigo=8>. acesso em: 16/6/2008.

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Por fim, é relevante destacar que para que o gestor judicial efetive o seu papel de garantidor da cidadania faz-se necessário que, além de se capacitar nas modernas técnicas de administração pública e empresarial, possua uma formação interdisciplinar ou transdisciplinar com outras ciências afins.30

basta um simples olhar para questões cotidianas da Justiça Federal como as causas que envolvem o Sistema Financeiro de Habitação, as que tratam da produtividade do imóvel rural para fins de reforma agrária, ou mesmo a constante necessidade de discussão sobre os valores dos cálculos das condenações previdenciárias, para se perceber a importância de uma capacitação do juiz nas ciências contábeis, na matemática financeira e na agronomia.

Não se quer defender com tal afirmação, que seja exigido do juiz o conhecimento de todas as ciências da natureza ou humanas (fato este impossível para qualquer ser humano), mas, sim, que o mundo pós-moderno, com toda sua complexidade, demanda da formação ou capacitação do magistrado algo além da dogmática jurídica tradicional.

tal formação, infelizmente, nem é dada nas universidades de direito, nem nas escolas de magistratura brasileiras, como consequência, inclusive, daquele pensamento tradicional de neutralidade do juiz, antes mencionado, dando-se ênfase ao ensinamento dogmático.31

Sobre a importância da formação interdisciplinar do magistrado, alude Souza:a formação cultural moderna representa a exclusão da monocultura jurídica, objetivando propiciar ao magistrado uma visão integral das questões sobre as quais o direito incide, reconhecendo a importância dos aspectos psicológicos, sociais, econômicos e históricos. a multivisão humanística permitirá um amplo apanhado das aflições convertidas em processo judicial. [...]As influências das ciências afins no âmbito da formação e capacitação do magistrado são de extrema importância para a construção cultural e humanística do juiz, podendo-se enfatizar os seguintes aspectos: a) as ciências sociais conduzem à formação cultural e ideológica do magistrado; b) as ciências econômicas e políticas, a interferência da ordem econômica e política decorrente da globalização na formação subjetiva do sujeito-juiz; c) a história permite ao magistrado refutar a afirmação de existência de uma verdade absoluta, como bem demonstrou Michel Foucault; d) a psicologia e a psicanálise com suas pertinentes observações quanto à influência da consciência e da inconsciência do magistrado no exercício da atividade jurisdicional.32

30 SOUZa, arthur césar. a administração da justiça e a formação e capacitação dos juízes no Século XXi. Revista de Direito Privado. São Paulo, ano 6, n. 29, jan.-mar./2007, p. 13.31 ibidem, p. 12.32 ibidem, p. 13.

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entendendo que o conhecimento é algo inesgotável e que em cinco anos de curso de graduação em direito não seria possível o aprendizado de tantas ciências afins quantas sejam necessárias para os diferentes tipos de matérias enfrentadas pelos magistrados, nas suas diferentes especializações (por exemplo: direito de Família, o qual necessita de conhecimentos de psicologia; direito agrário, o qual necessita de noções de agronomia, sobretudo quanto às formas de avaliação dos imóveis para efeito de se constatar a sua produtividade), chega-se à conclusão de que cabe à administração da Justiça tal desiderato, mediante a capacitação por meio de cursos de média e longa duração, a cargo de suas escolas de magistratura.

Por sua autenticidade, traz-se o caso do chile (lei nº 16 618/77, art. 22) como exemplo da exigência da formação do juiz em Ciências Humanas afins, em que para se exercer a função de juiz em varas de menores é necessária a comprovação de conhecimento em psicologia, mediante certificado de aprovação em cátedra de direito de Menores ou por um exame diante de uma comissão formada por um professor da escola de Psicologia, um professor de direito de Menores e um professor de Medicina legal, todos pertencentes à Universidade do chile.33

CONCLUSÃOO mito da neutralidade do Juiz não pode ser aceito em uma sociedade

contemporânea, onde se reconhece que os julgadores possuem valores oriundos de sua formação familiar, acadêmica e político-ideológica.

O juiz é um ser político ontologicamente, uma vez que exerce um verdadeiro poder ao dizer de quem é o direito. a constatação da politização dos juízes deve ser algo que conduza à sua imparcialidade, na medida em que tenhamos vários grupos sociais espontâneos, com suas diferentes posições ideológicas, exercendo uma discussão democrática e um controle recíproco.

a chave para a imparcialidade do juiz está em sua independência interna e externa e não na sua impossível neutralidade (ser apolítico).

O magistrado, sobretudo o juiz Federal, exerce uma função especialíssima de garantidor da efetivação da cidadania ao exercer o controle constitucional das leis e dos atos administrativos, exercendo um controle constitucional sobre os Poderes executivo e legislativo, quando estes por comissão ou omissão não efetivem os direitos socioeconômicos.

Para a efetivação da cidadania almejada, o juiz utiliza-se do processo como instrumento. Porém, a simples edição de leis processuais que visem à celeridade do processo (a exemplo da criação da tutela antecipada e a dispensa do reexame de

33 ibidem, p. 28.

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sentença contra os entes públicos, quando fundada em decisão do plenário do StF ou súmula de tribunal Superior) não tem o condão de diminuir a morosidade da Justiça, enquanto não houver uma mudança de mentalidade de todos aqueles que lidam diretamente ou indiretamente com o processo.

daí surge a necessidade de que se desenvolva doutrinariamente e pragmaticamente o tema “administração da Justiça” para que o gestor judicial em conjunto como todos os que participam da marcha do processo desenvolvam técnicas e diálogos para a maximização de todos os meios físicos e humanos a fim de prestar um serviço público de prestação de tutela jurisdicional cada vez mais adequada, célere e eficaz.

Finalmente, para a consecução de tal objetivo é necessário que: além de não se desprezar as experiências tradicionais de administração da justiça bem-sucedidas, o gestor judicial e mesmo sua equipe se inteirem das técnicas atuais da administração pública e empresarial e busquem um constante aperfeiçoamento nas ciências humanas afins (Psicologia, História, Economia) e em outras ciências (como a Matemática Financeira, a agronomia, etc.), de acordo com a necessidade que as diferentes questões dos seus trabalhos lhes impõem.

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receBimento e reJeição Da Peça acUsatória, à lUz Da lei no 11.719/2008

victor roberto corrêa De soUza

JUiz feDeral em alaGoas.ex-procUraDor feDeral.

E-mail: [email protected]/2008

Maceió/al

Resumo: O presente trabalho trata de tema específico concernente à recente reforma do código de Processo Penal (lei no 11.719/2008), analisando o embasamento legal e constitucional para novas interpretações acerca do recebimento e da rejeição da peça acusatória, nos diversos procedimentos penais existentes, comuns ou especiais.Abstract: This paper present specific subject concerning to a recent modifications in to the Code of Criminal Process (Law n.o 11.719/2008), by analyzing the constitutional and legal basies for new interpretations about the acceptation and the rejection of acusation act, in the different kind of criminal procedures of the brazil ordenament, specials or ordinaries.

Sumário: introdução; 1 Questão legislativa central; 2 O ato processual da citação e a reforma; 3 rejeição da peça acusatória; 4 O recebimento da peça acusatória nos demais tipos de procedimentos, alheios ao comum; conclusão.

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INTRODUÇÃOcom o presente artigo, pretende-se estudar quais mudanças ocorreram com

a edição da lei no 11.719, de 20 de junho de 2008, no que atine ao recebimento e à rejeição da peça acusatória, em relação aos procedimentos processuais penais.

antes de qualquer explanação mais minuciosa do tema, que, decerto, será feita adiante, desde já deve ser ressaltada a grande revolução causada pelas reformas trazidas nos diversos modelos de procedimentos existentes com a lei no 11.719/2008, findando com uma celeuma que, a nosso ver, não se justifica.

Praticamente todos os autores vêm afirmando que a grande novidade da referida lei teria sido a oportunização de uma “defesa previ” ao denunciado, a ser oferecida antes do próprio recebimento da peça acusatória.

com o presente estudo, almejamos demonstrar que, ao contrário do que se tem dito,1 as mudanças trazidas ao texto do código de Processo Penal, com a simplificação, uniformização e aceleração dos procedimentos processuais penais, têm a intenção pura e simples de concretizar o direito individual, trazido no art. 5o, inciso lXXViii, da constituição Federal, à razoável duração do processo criminal pelo qual responde o acusado de um crime, buscando-se a definição célere de sua situação processual, seja pela condenação ou pela absolvição, mormente quando este acusado estiver detido por qualquer dos tipos de prisão cautelar, decretada antes do trânsito em julgado da sentença.

deste modo, ousamos discordar da opinião de judiciosos doutrinadores que avante serão citados, para afirmar: a partir do início da vigência da Lei no 11.719, o tratamento dado ao recebimento da peça acusatória passou a ser bastante simplificado e uniforme em relação a quase todos os tipos de procedimentos criminais existentes, não havendo a lei no 11.719 trazido qualquer defesa necessariamente preliminar (no sentido de ser anterior ao recebimento da peça acusatória). as mais importantes exceções, como veremos, são o procedimento para recebimento da peça acusatória nos tribunais, em que a decisão é colegiada e de segundo grau, e no qual se faz necessário modificar a Lei no 8.038/1990 para adequá-la ao cPP e ao princípio constitucional da igualdade, bem como o procedimento do tribunal do Júri regulado exclusivamente pelos arts. 406 a 497 do cPP, como determina o art. 394, § 3o, do cPP.

deve ser salientado, inclusive, que, com a promulgação da lei no 11.689/2008, que determinou modificações substanciais em relação ao júri, confirma-se a 1 O ilustre professor lenio luiz Streck, em artigo publicado na internet, assevera, sem, data vênia, analisar as modificações da Lei no 11.719/2008 à luz do art. 5o, lXXViii, da cF, que “os procedimentos que garantiam diretamente a possibilidade de prévia defesa sofreram um prejuízo, porque provocaram retrocesso em termos de garantias”. in: StrecK, lenio luiz. Reforma Penal – O impasse na interpretação do artigo 396 do CPP. consultor Jurídico. São Paulo: disponível em: <http://www.conjur.com.br/static/text/69984?display_mode=print>. acesso em: 24/10/2008.

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voluntas legis de se estabelecer uma unificação e simplificação de procedimentos processuais penais. Observe-se que, em relação à peça acusatória inicial no tribunal do Júri, o mandamento legal do art. 4062 do cPP, com a redação dada pela lei no 11.689/2008, determina que o magistrado receberá primeiramente a denúncia ou queixa ordenando a citação do acusado para responder por escrito à acusação, no prazo de dez dias.3 Ou seja, para os denunciados pela prática de um crime de competência do tribunal do Júri inexiste qualquer possibilidade de oferecimento de defesa prévia ou resposta preliminar antes do recebimento da peça acusatória. Por qual motivo, portanto, violar-se-ia a isonomia e permitir-se-ia, contra legem, a defesa prévia às demais espécies de denunciados?

Por outro lado, a análise de uma possível rejeição da peça acusatória, a nosso ver, poderá ser feita mesmo após a denúncia ou queixa já ter sido recebida.

ainda, em relação à defesa, que é tratada nos arts. 396 e 396-a do cPP, resta claro, da observação literal dos dispositivos, e mesmo do inteiro teor da lei no 11.719, a inexistência sequer do termo “prévia” ou “preliminar”, como acontece, por exemplo, com o parágrafo único, do art. 514 do cPP (“resposta preliminar”) – que, inclusive, entendemos restar derrogado pela redação do atual art. 394, § 4o, do cPP, como explicaremos adiante.

em verdade, a análise é bastante simples e peremptória: esta defesa, que muitos vêm afirmando ser prévia – como se houvesse uma outra oportunidade obrigatória de oferecimento de defesa – pode ser a única defesa escrita a ser apresentada pelo acusado. Isto é confirmado pela leitura do art. 396-A, § 2o, do cPP, que impõe a obrigatoriedade do oferecimento da defesa, podendo o juiz, inclusive, impor a multa do art. 265 do cPP, caso não tenha sido oferecida tal defesa escrita.

além disso, após o recebimento da peça acusatória do art. 396 do cPP, a citação e o oferecimento de defesa escrita, designar-se-á a “superaudiência” do art. 399 do cPP (da qual o réu será intimado, e não citado), que será única e em que serão todas as provas produzidas (art. 400, § 1o, do CPP), havendo, ao final, a prolação da

2 “art. 406. O juiz, ao receber a denúncia ou a queixa, ordenará a citação do acusado para responder a acusação, por escrito, no prazo de 10 (dez) dias. (Redação dada pela Lei no 11.689, de 2008) § 1o O prazo previsto no caput deste artigo será contado a partir do efetivo cumprimento do mandado ou do comparecimento, em juízo, do acusado ou de defensor constituído, no caso de citação inválida ou por edital. (Redação dada pela Lei no 11.689, de 2008) § 2o a acusação deverá arrolar testemunhas, até o máximo de 8 (oito), na denúncia ou na queixa. § 3o Na resposta, o acusado poderá argüir preliminares e alegar tudo que interesse a sua defesa, oferecer documentos e justificações, especificar as provas pretendidas e arrolar testemunhas, até o máximo de 8 (oito), qualificando-as e requerendo sua intimação, quando necessário. (Incluído pela Lei no 11.689, de 2008)”3 Confirmando a tese, eis a opinião de Ivan Luís Marques da Silva, acerca deste aspecto da Lei no 11.689/2008: “abrindo mão da maturação probatória e do tempo para a defesa e a acusação trabalharem, colocou-se como prioridade o rápido encerramento do juízo de acusação. O interrogatório do réu deixa de ser o primeiro ato de prova. Foi levado para o final dos atos de instrução.” SILVA, Ivan Luís Marques. Reforma Processual Penal de 2008. São Paulo: rt, 2008, p. 88.

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sentença por parte do juiz (art. 403, caput, cPP). apenas excepcionalmente, o juiz poderá permitir alegações finais por escrito no prazo de cinco dias (art. 403, § 3o, do cPP), pois a regra, determinada no caput do art. 403 do cPP, será a apresentação de alegações finais orais.

Por fim, todas as observações feitas em relação ao recebimento e à rejeição da peça acusatória não se aplicam apenas aos procedimentos ordinário e sumário, como pode parecer à primeira leitura do caput do art. 396 do cPP. todos estes comentários se referem também aos procedimentos especiais (como aqueles descritos nos arts. 513 a 530-i, do cPP), ainda que contidos em leis esparsas, alheias ao código de Processo Penal, como no caso da lei antidrogas (lei no 11.343/2006).4

É que, segundo o art. 394, § 4o, do cPP, inserido pela novel lei, “as disposições dos arts. 395 a 398 deste código aplicam-se a todos os procedimentos penais de primeiro grau, ainda que não regulados neste código”. Ou seja, o tratamento dado, nos procedimentos ordinário e sumário, à rejeição da peça acusatória (art. 395), ao recebimento da peça acusatória (art. 396), à defesa escrita (art. 396-a) e à possibilidade de absolvição sumária após a defesa escrita (art. 397), passa a se aplicar a todo e qualquer tipo de procedimento criminal de primeiro grau, derrogando quaisquer dispositivos anteriores em sentido contrário, como veremos. apenas as novidades trazidas no art. 399 e ss. do cPP é que não se aplicam aos procedimentos especiais, não sendo possível, nestes casos, utilizar-se a “superaudiência única”.

1. Questão Legislativa CentralAnteriormente às modificações legislativas produzidas no Código de Processo

Penal, pela lei no 11.719/2008, após o recebimento da denúncia ou queixa, o juiz designava audiência para o interrogatório do acusado, iniciando-se o prazo de três dias para a defesa prévia facultativa, peça que, em geral, apenas servia para indicação de testemunhas, malgrado proporcionasse preliminares processuais ou mesmo alegações de mérito (estas comumente postergadas para as alegações finais em face das técnicas de defesa).

Voltando nossas atenções ao rito ordinário do nosso código de Processo Penal atualmente em vigor, é nele que observamos a principal inconsistência das modificações realizadas pela Lei no 11.719/2008. trata-se do art. 399 do cPP, in verbis:

4 excetua-se, é claro, apenas o procedimento sumaríssimo dos Juizados especiais criminais, dos crimes de menor potencial ofensivo, contido nas leis 9.099/1995 e 10.259/2001, pela leitura estrita do próprio art. 396, em que se afirma que as normas acerca do recebimento e rejeição da peça acusatória se aplicam aos “procedimentos ordinário e sumário”.

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art. 399. Recebida a denúncia ou queixa, o juiz designará dia e hora para a audiência, ordenando a intimação do acusado, de seu defensor, do Ministério Público e, se for o caso, do querelante e do assistente. (redação dada pela lei n o 11.719, de 2008).§ 1o O acusado preso será requisitado para comparecer ao interrogatório, devendo o poder público providenciar sua apresentação. (incluído pela lei no 11.719, de 2008).§ 2o O juiz que presidiu a instrução deverá proferir a sentença. (incluído pela lei no 11.719, de 2008). (Grifo nosso)

tal dispositivo deve ser cotejado com o art. 396, que segue abaixo:art. 396. Nos procedimentos ordinário e sumário, oferecida a denúncia ou queixa, o juiz, se não a rejeitar liminarmente, recebê-la-á e ordenará a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, no prazo de 10 (dez) dias. (redação dada pela lei no 11.719, de 2008).Parágrafo único. No caso de citação por edital, o prazo para a defesa começará a fluir a partir do comparecimento pessoal do acusado ou do defensor constituído. (redação dada pela lei no 11.719, de 2008). (Grifo nosso)

Pela leitura dos dois dispositivos acima, nos ritos ordinário e sumário haveria dois momentos de recebimento da peça acusatória, como vem afirmando o professor antonio Scarance Fernandes?5 O juiz continuará a praxe forense de receber a peça acusatória tão logo ela seja oferecida, como aparentemente determina o art. 396, caput, do cPP? Ou ao juiz somente é permitido receber a peça acusatória após o oferecimento da defesa, como aparentemente determina o art. 399, caput, do cPP? este dilema processual é que pretendemos solucionar com o presente artigo.

2. O Ato Processual da Citação e a Reformaa relação processual inicia sua formação com o recebimento da denúncia (ou

da queixa) pelo magistrado, caracterizando-se, neste primeiro momento, a existência de um processo contra o acusado; isto é, para aferir-se a simples existência de um processo criminal, ainda não se faz necessária a citação do acusado. em outras palavras, há processo tão-somente com o oferecimento da peça acusatória perante o 5 “De outro lado, Antonio Scarance Fernandes critica a técnica legislativa, mas concorda com a finalidade prevista na nova lei. Nesta linha, observa que, pela reforma do art. 396, em sua combinação com o artigo 399, há dois atos distintos, ambos com a finalidade de análise da possibilidade de ser aceita a acusação. Haveria, assim, para ele, um recebimento preliminar ou provisório, do qual decorreria a citação para apresentação de resposta (artigo 396) e um recebimento definitivo quando da análise efetiva da admissibilidade da acusação. destaca, pois, a existência de dois juízos de admissibilidade.” Apud: StrecK, lenio luiz. Reforma Penal – O impasse na interpretação do artigo 396 do CPP. consultor Jurídico. São Paulo: disponível em: <http://www.conjur.com.br/static/text/69984?display_mode=print>. acesso em: 24/10/2008.

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órgão investido da jurisdição, embora ali apenas tenha se iniciado a relação processual, que será completada mais adiante, com a prática de outros atos processuais.

concorde conosco, a doutrina do professor eugênio Pacelli:assim, pressuposto de existência do processo é, a nosso juízo, tão-somente o órgão investido de jurisdição, podendo-se até admitir a inclusão da exigência de demanda (ato de pedir em juízo, e não o próprio pedido), já que se nos afigura remotíssima a possibilidade, na prática, após o texto constitucional de 1988, do desenvolvimento de atividade jurisdicional iniciada sem o aviamento de qualquer pretensão, ou mesmo, ex officio, pelo juiz.6 (Grifo nosso)

iniciada a formação do processo com o oferecimento da demanda pelo órgão acusador, na decisão de recebimento da denúncia ou queixa, o juiz deverá ordenar a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, no prazo de dez dias (art. 396, CPP). Se houver citação por edital, o prazo da defesa somente se iniciará a partir do comparecimento pessoal do acusado ou de seu defensor constituído (art. 396, parágrafo único, cPP).

a citação do acusado, a nosso ver, é o ponto nodal que soluciona esta aparente antinomia entre os arts. 396 e 399 do cPP, servindo, inclusive, para uniformizar os demais procedimentos, distintos ao procedimento ordinário ditado pelo código de Processo Penal, como veremos ao final.

assim determina o art. 363 do código de ritos:art. 363. O processo terá completada a sua formação quando realizada a citação do acusado.§ 1o Não sendo encontrado o acusado, será procedida a citação por edital.

desse modo, o processo stricto sensu já existe com a manifestação judicial de recebimento da peça acusatória. de outro lado, a relação processual, cuja formação se iniciara com o oferecimento da denúncia ou queixa ao órgão jurisdicional, estará completa, desenvolvendo-se validamente, apenas com a citação do denunciado, que pode se dar pessoalmente por mandado, por precatória, por hora certa, por edital, e por carta de ordem ou carta rogatória. a citação do acusado é o ato processual cujo fito é chamar o denunciado ao processo, para fins de conhecimento da demanda contra ele instaurada pelo órgão acusador, bem como para oportunizar-lhe o exercício de seu direito à ampla defesa e dos demais direitos individuais a ele garantidos.

Inegável é que as modificações introduzidas no sistema processual penal brasileiro visam à garantia do direito constitucional à razoável duração do processo, permitindo-se ao acusado demonstrar sumariamente sua inocência, requerendo

6 OliVeira, eugênio Pacelli. Curso de Processo Penal. 10a edição. rio de Janeiro: lumen Juris, 2008, p. 106.

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a rejeição da peça acusatória ou sua absolvição sumária,7 com a apresentação de sua defesa escrita, tendo em vista a importante justificativa consistente em que o desfavorável strepitus fori já se iniciou com a citação e a formação da relação processual.

Por conta disso, concluída a citação, à luz do art. 396-a8 do código de Processo Penal, inserido pela lei no 11.719/2008, na defesa escrita deve estar contida toda a matéria de defesa, tais como preliminares (vícios processuais a serem sanados), justificações (excludentes de ilicitude, em particular), oferecimento de novos documentos, propositura de provas a serem realizadas e apresentação do rol de testemunhas, observado o número máximo. eventuais exceções (incompetência, suspeição, impedimento, litispendência, coisa julgada ou ilegitimidade) devem ser apresentadas seguindo-se o disposto nos arts. 95 a 112 do cPP, que não foram modificados pelas recentes reformas processuais penais.

esta defesa escrita, como será observado, é peça imprescindível, tanto que, uma vez o réu citado, se este deixar de apresentá-la, considerar-se-á o réu indefeso, devendo o juiz nomear defensor dativo ou indicar defensor público para elaborar tal peça, concedendo-lhe vista dos autos pelo prazo de dez dias. Frise-se que, é possível, inclusive, que o juiz aplique pena de multa ao defensor que deixou de oferecer tal defesa escrita, tendo em vista que, com isto, estará configurado o abandono do processo, punível com pena de multa de dez a cem salários mínimos, como determinado pelo caput do art. 2659 do código de Processo Penal, também modificado pela Lei no 11.719/2008.

7 Neste ponto, são hipóteses para a absolvição sumária: 1) a existência manifesta de causa excludente da ilicitude do fato; 2) existência manifesta de causa excludente da culpabilidade do agente, salvo inimputabilidade; 3) quando o fato narrado na denúncia evidentemente não constituir crime; 4) quando estiver extinta a punibilidade do agente (art. 397, CPP). Essa possibilidade equivale, no processo civil, à conhecida figura do julgamento antecipado da lide, em que o juiz, nas hipóteses legais, conhecerá diretamente do pedido, proferindo sentença antes de iniciar a instrução (art. 330, cPc). em verdade, será permitida ao juiz a possibilidade de terminar a demanda absolvendo o acusado, mesmo já tendo recebido a denúncia ou queixa, mas tomando conhecimento das alegações do réu, acompanhadas de documento ou outras provas. É preciso salientar, diante da prática forense, que esta absolvição sumária não será uma situação comum, mas sim excepcional, pois o magistrado, antes de receber a denúncia ou queixa, já terá tomado contato com as provas pré-constituídas constantes do inquérito policial ou de outras peças investigativas. assim, malgrado tal não seja impossível, a praxe indica que dificilmente conseguirá o réu demonstrar, em singela defesa preliminar, a desnecessidade da instrução.8 art. 396-a. Na resposta, o acusado poderá arguir preliminares e alegar tudo o que interesse à sua defesa, oferecer documentos e justificações, especificar as provas pretendidas e arrolar testemunhas, qualificando-as e requerendo sua intimação, quando necessário. (Incluído pela Lei no 11.719, de 2008). § 1o a exceção será processada em apartado, nos termos dos arts. 95 a 112 deste código. (Incluído pela Lei no 11.719, de 2008). § 2o Não apresentada a resposta no prazo legal, ou se o acusado, citado, não constituir defensor, o juiz nomeará defensor para oferecê-la, concedendo-lhe vista dos autos por 10 (dez) dias. (Incluído pela Lei no 11.719, de 2008).9 art. 265. O defensor não poderá abandonar o processo senão por motivo imperioso, comunicado previamente o juiz, sob pena de multa de 10 (dez) a 100 (cem) salários mínimos, sem prejuízo das demais sanções cabíveis. (Redação dada pela Lei no 11.719, de 2008).

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Na sequência, não tendo ocorrido a absolvição sumária, e já tendo sido recebida a peça acusatória na oportunidade descrita no art. 396, o magistrado determinará a designação de dia e hora para a audiência de instrução e julgamento, providenciando a intimação do acusado, de seu defensor, do Ministério Público e, se for o caso, do querelante e do assistente.

É neste momento, inclusive, que o juiz deverá intimar o acusado para, na audiência do art. 399, além das finalidades ali delineadas, discutir a suspensão condicional do processo, se for cabível e tiver sido oferecida pelo MP. este é mais um argumento que demonstra que o recebimento da peça acusatória e a citação são anteriores à manifestação defensiva, analisando-se o art. 89, § 1o, da lei no 9.099/1995.

retornando, este é um dos principais pontos, que nos conduz à seguinte conclusão: em nossa opinião, só há um único momento para o recebimento da peça acusatória. É aquele trazido no art. 396 do código de Processo Penal, que se perfaz após o oferecimento da denúncia ou queixa, caso o juiz entenda que o fato denunciado não se subsume a alguma das hipóteses de rejeição liminar da peça acusatória. Não há, portanto, como vem afirmando parte da doutrina, dois momentos para o recebimento da peça acusatória. destarte, em relação ao disposto no art. 399 do cPP, entendemos que a expressão “recebida a denúncia ou queixa” significa “não rejeitada a denúncia ou queixa, nem absolvido sumariamente o denunciado”.

caso contrário, como poderia se entender que o momento trazido no art. 399 é de recebimento da denúncia ou queixa, se, na leitura estrita do dispositivo, observa-se que o juiz, “recebida a denúncia”, designará data para a audiência de instrução, ordenando a intimação do acusado? Ora, se tal ato fosse, de fato, recebimento da denúncia ou queixa, o juiz determinaria a citação do acusado, pois é com o ato citatório que se completa a formação do processo (art. 363, cPP), e não com a simples intimação do acusado – ato detentor de formalidades legais bastante distintas, podendo ser realizado, v.g., por simples publicação pela imprensa oficial, nos termos legais (arts. 370-372 do cPP).

eis a opinião de dois ilustres doutrinadores, a referendar esta conclusão:determina o caput do art. 399 que, recebida a denúncia ou queixa, ‘o juiz designará dia e hora para a audiência, ordenando a intimação do acusado, de seu defensor, do Ministério Público e, se for o caso, do querelante e do assistente’. (Fosse a denúncia, efetivamente, recebida nesse momento processual e, decerto, a lei exigiria a citação do réu e não sua mera intimação).10 (Grifo nosso)

10 cUNHa, rogério Sanches & PiNtO, ronaldo batista. Processo Penal – Doutrina e Prática. Salvador: JusPodivm, 2008, p. 146.

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ainda, de acordo com o art. 396, parágrafo único, do cPP, o prazo para a defesa escrita, no caso de citação por edital, se inicia com o comparecimento pessoal do acusado ou do defensor constituído. este dispositivo deve ser lido sob a ótica do art. 36611 do cPP. Ou seja, caso tenha sido feita a citação por edital, a praxe forense, a doutrina e a jurisprudência são uníssonas no respeito ao art. 366 do cPP, devendo ser determinada a suspensão do processo e do prazo prescricional. Ora, isso nos leva à conclusão irrefragável de que este processo e este prazo prescricional já se iniciaram em algum momento processual anterior, pois só se suspende aquilo que já se iniciara. e que momentos são estes?

Primeiramente, em relação ao processo, temos que a resposta já fora dada pelo professor Eugênio Pacelli, no trecho supra transcrito, em que se afirma que a existência do processo se afere tão-só com a postulação acusatória realizada no órgão investido de jurisdição, completando-se a formação do processo com o recebimento da denúncia ou queixa (art. 396 do cPP) e a conclusão da citação, à luz do já citado art. 363 do cPP.

de outro lado, o início do prazo prescricional é minudenciado pelo art. 11112 do código Penal. Ou seja, o termo inicial da prescrição, em regra, será a consumação do crime. Este prazo prescricional, por sua vez, tem suas causas modificadoras, que podem ser suspensivas (art. 11613 do código Penal, art. 53, § 5o, da cF, art. 89, § 6o, da lei no 9.099/1995 e arts. 366 e 368 do cPP) ou interruptivas (rol taxativo do art. 11714 do código Penal). a diferença entre estas causas é que, nas suspensivas, que são automáticas e dispensam despacho judicial, o prazo prescricional é apenas “congelado”, recomeçando do momento em que parou, tão logo a causa suspensiva termine; enquanto, ocorrida uma causa interruptiva, o prazo prescricional recomeça integralmente.

11 “Art. 366. Se o acusado, citado por edital, não comparecer, nem constituir advogado, ficarão suspensos o processo e o curso do prazo prescricional, podendo o juiz determinar a produção antecipada das provas consideradas urgentes e, se for o caso, decretar prisão preventiva, nos termos do disposto no art. 312.”12 Art. 111 – A prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, começa a correr: I – do dia em que o crime se consumou; ii – no caso de tentativa, do dia em que cessou a atividade criminosa; iii – nos crimes permanentes, do dia em que cessou a permanência; IV – nos de bigamia e nos de falsificação ou alteração de assentamento do registro civil, da data em que o fato se tornou conhecido. 13 Art. 116 – Antes de passar em julgado a sentença final, a prescrição não corre: I – enquanto não resolvida, em outro processo, questão de que dependa o reconhecimento da existência do crime; ii – enquanto o agente cumpre pena no estrangeiro Parágrafo único – depois de passada em julgado a sentença condenatória, a prescrição não corre durante o tempo em que o condenado está preso por outro motivo. 14 art. 117 – O curso da prescrição interrompe-se: i – pelo recebimento da denúncia ou da queixa; ii – pela pronúncia; III – pela decisão confirmatória da pronúncia; IV – pela sentença condenatória recorrível; V – pelo início ou continuação do cumprimento da pena; Vi – pela reincidência. § 1o – excetuados os casos dos incisos V e Vi deste artigo, a interrupção da prescrição produz efeitos relativamente a todos os autores do crime. Nos crimes conexos, que sejam objeto do mesmo processo, estende-se aos demais a interrupção relativa a qualquer deles. § 2o – interrompida a prescrição, salvo a hipótese do inciso V deste artigo, todo o prazo começa a correr, novamente, do dia da interrupção.

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evoluindo, observa-se no art. 117, i, do cP, que o recebimento da denúncia ou da queixa é causa interruptiva do prazo prescricional. Portanto, temos o início da prescrição, em regra, determinado pela consumação do delito.

em seguida, temos a interrupção deste prazo com o recebimento da denúncia ou queixa (não é o simples oferecimento), que é anterior à citação por edital. Não comparecendo o réu citado por edital, suspender-se-á, por determinação do art. 366 do cPP, o processo já iniciado e o prazo prescricional que fora interrompido com o recebimento da peça acusatória. Ou seja, quando o réu tiver sido citado por edital – o que pressupõe o anterior recebimento da peça acusatória como causa interruptiva da prescrição – como poderemos entender que o recebimento da peça acusatória se dará somente após a defesa escrita, nos moldes do art. 399 do cPP?

Nestes casos, em verdade, haverá o recebimento da peça acusatória nos moldes do art. 396 do cPP, com a citação normal, que, frustrada, será feita por edital, suspendendo-se, então, o processo e o prazo prescricional, reiniciado com o recebimento da peça acusatória.

Ora, é extremamente impensável, portanto, que a interrupção da prescrição, com o recebimento da peça acusatória, somente ocorra após a defesa escrita, que, por sua vez, é formulada após a citação. Se esta for feita por edital, pela errônea ótica de que o recebimento se faz após a defesa escrita, nos moldes do art. 399 do cPP, nunca haverá interrupção do prazo prescricional, e, por conseguinte, também nunca poderá haver suspensão do processo, o que é inaceitável, pois que se desrespeitará o art. 366 do CPP, levando-se à indefinição das causas em que o réu revel for citado por edital, hipóteses em que a práxis demonstra serem bastante numerosas!

e, se assim ocorre quando a citação é feita por edital, pela aplicação da regra da igualdade, aos citados nos demais modos existentes, deve ser dada a mesma solução.

concluindo, eis o entendimento de Guilherme de Souza Nucci, insigne magistrado paulista, a ratificar nossas observações acerca da Reforma:

A redação do art. 399 do CPP é defeituosa e merece reparo. Onde se lê “recebida a denúncia ou queixa”, leia-se “tendo sido recebida a denúncia ou queixa”. Logo, não há dois recebimentos da peça acusatória, o que configuraria nítido e autêntico contra-senso. A denúncia ou queixa já foi recebida, tanto que se determinou a citação do réu para responder aos termos da demanda, oferecendo defesa prévia, por escrito, em dez dias. após, não sendo o caso de absolvição sumária, inicia-se a instrução.inexiste, no processo penal, como regra, o recebimento provisório de denúncia ou queixa, a decretação provisória de prisão, a sentença provisória até que outra melhor sobrevenha etc. atos decisórios tomados

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pelo magistrado repercutem imediatamente na esfera da liberdade do réu. O recebimento da denúncia ou queixa é anotado em sua folha de antecedentes, servindo para interromper a prescrição, a decretação de sua prisão implica em imediata privação da liberdade, a sentença prolatada acarreta a soltura (absolvição) ou pode redundar em prisão cautelar (condenação), conforme o caso concreto.15 (Grifo nosso)

Por fim, deve ser salientado que o Projeto de Lei no 2007/2001, do qual resultou a lei no 11.719/2008, pretendia delimitar a resposta escrita nos moldes de uma defesa preliminar, de uma manifestação que deveria anteceder o recebimento da peça acusatória. Todavia, na Câmara dos Deputados, o Projeto foi modificado, sob o argumento de que não teria cabimento mandar citar o réu sem o recebimento da acusação. assim, quando o Projeto de lei foi enviado ao Senado Federal, novamente buscou-se introduzir a defesa preliminar em momento anterior ao recebimento da peça acusatória. Mas, de volta à câmara dos deputados, a emenda do Senado foi acertadamente recusada. eis, a seguir, o parecer do deputado régis Fernandes de Oliveira à mencionada emenda do Senado, quando o atual art. 396 era nominado como art. 395:

emenda no 8: Pretende alterar no caput do art. 395, do código de Processo Penal, o termo ‘recebê-la-á’, sob a justificativa de que o ato de recebimento da denúncia está previsto no momento descrito no art. 399. O instrumento que é o processo, não pode ser mais importante do que a própria relação material que se discute nos autos. Sendo inepta de plano a denúncia ou queixa, razão não há para se mandar citar o réu e, somente após a apresentação de defesa deste, extinguir o feito. Melhor se mostra que o Juiz ao analisar da denúncia ou queixa ofertada fulmine relação processual infrutífera. rejeita-se a alteração proposta pelo Senado.

3. Rejeição da peça acusatóriade sua leitura, nota-se que a lei no 11.719/2008 corrigiu grave inconsistência

que havia no revogado art. 43 do cPP, em que se misturavam, na análise de rejeição da peça acusatória, questões de mérito e questões de admissibilidade da ação penal, ao dispor de causas de extinção da punibilidade e de atipicidade (mérito) juntamente com as condições da ação (processuais).

assim, segundo o atual art. 395 do cPP, a peça acusatória será rejeitada pelo magistrado quando for manifestamente inepta, quando faltar pressuposto processual

15 NUcci, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 5a edição. São Paulo: revista dos tribunais, 2008, p. 678.

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ou condição da ação,16 ou quando faltar justa causa (que, segundo afamada doutrina do professor afrânio da Silva Jardim, é uma das condições da ação penal). Já as hipóteses dos revogados incisos i e ii do art. 43 do cPP, atinentes ao mérito da ação, foram reconduzidas acertadamente para o tratamento da absolvição sumária, do art. 397 do cPP.

Ou seja, a rejeição da peça acusatória, a partir da lei no 11.719/2008, passou a tratar exclusivamente de questões de admissibilidade do processo.

e, como estas questões de admissibilidade do processo são notoriamente matérias de ordem pública, cognoscíveis ex officio pelo magistrado, a qualquer tempo ou grau de jurisdição, inclusive após o recebimento da própria peça acusatória, a conclusão a que chegamos é a de que, com a reforma, a rejeição da peça acusatória deverá (não é apenas poderá) ser realizada a qualquer tempo, mesmo após o regular recebimento, respeitado, por óbvio, o direito ao contraditório (due processo of law) atinente à acusação.

Neste ponto, impende salientar a doutrina de eugênio Pacelli de Oliveira, confirmando o acerto de nossa opinião:

Quanto à rejeição da denúncia por ilegitimidade de parte ou pela ausência de qualquer outra condição exigida pela lei (as chamadas condições de procedibilidade), impende ressaltar que, ainda que equivocadamente recebida a peça acusatória, poderá o juiz posteriormente extinguir o processo sem o julgamento do mérito, na forma do disposto no art. 267, iV, do cPc, perfeitamente aplicável à espécie, por analogia.Mesmo que assim não seja, ou que assim não se admita, haveria ainda uma outra solução, válida, mas que implica a escolha de um caminho muito mais longo, do ponto de vista lógico, cuja conseqüência prática será a mesma: restaria ao juiz, valendo-se do disposto no art. 564, ii, do cPP, anular todos os atos até então praticados, incluindo o ato judicial de recebimento de denúncia, para, feito isso, rejeitá-la por ilegitimidade de parte. e, mais. Poderia agir do mesmo modo em relação a quaisquer outras condições da ação e/ou pressuposto de existência do processo, valendo-se, para tanto, da aplicação analógica do art. 564, ii e iii, e, cPP.17

16 denúncia inepta é aquela que, não satisfazendo aos requisitos do art. 41 do cPP, cerceia o exercício do direito à ampla defesa. Por outro lado, são listadas como condições da ação penal: o interesse de agir, a legitimidade, a possibilidade jurídica do pedido, a justa causa, e, para algumas situações determinadas pelo ordenamento, as condições de procedibilidade, como a representação e a requisição do Ministro da Justiça. Por fim, os pressupostos processuais, que se referem à existência em si do processo, são distintos dos requisitos de sua validade, concernentes ao seu desenvolvimento regular. deste modo, são pressupostos de existência do processo o órgão investido de jurisdição (juiz) e a demanda acusatória (ato de pedir). Os demais requisitos de validade (juiz competente, capacidade postulatória do advogado da parte, validade da citação, etc.) serão analisados no decorrer do processo, mas não importam em rejeição da denúncia, tenha ela sido recebida ou não. 17 OliVeira, eugênio Pacelli de. Op. cit., p. 159-160.

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Neste diapasão, outro argumento que confirma a procedência de nossa opinião é o de que, no art. 396 do cPP, consta a expressão “[...] oferecida a denúncia ou queixa, o juiz, se não a rejeitar liminarmente, recebê-la-á e ordenará a citação[...]”. Ou seja, no momento em que o juiz se detiver sobre a análise do recebimento ou não da peça acusatória poderá rejeitá-la liminarmente. Porém, isso não impede a possibilidade de que ocorra a rejeição em modo que não seja liminar, posteriormente ao recebimento da peça acusatória, com o oferecimento de defesa por escrito que demonstre a manifesta ausência dos pressupostos processuais ou das condições da ação. Vale salientar que, segundo o art. 396-a do cPP, “na resposta, o acusado poderá argüir preliminares [...]”. Ora, se o acusado alega e comprova, na peça defensiva, a ausência de uma preliminar de admissibilidade, como, v.g., a total e manifesta ausência do interesse de agir, o juiz deverá absolvê-lo sumariamente ou rejeitar a peça acusatória? É claro que a resposta correta é pela rejeição da peça acusatória!

4. O recebimento da peça acusatória nos demais tipos de procedimentos, alheios ao comum

O ordenamento processual penal contém, ainda, outras disposições acerca desta fase de recebimento e rejeição da peça acusatória. tratam-se dos procedimentos especiais, distintos do procedimento comum (art. 394, caput, cPP).

O procedimento comum pode se dividir em procedimento ordinário (pena máxima privativa de liberdade igual ou superior a 4 anos), sumário (pena máxima privativa de liberdade igual ou superior a 2 anos e inferior a 4 anos), e sumaríssimo (infrações de menor potencial ofensivo – pena máxima privativa de liberdade inferior a 2 anos).

Por sua vez, dentre os procedimentos especiais, há aqueles que determinam, explícita ou tacitamente, que o regramento procedimental e o recebimento da peça acusatória serão feitos de acordo com as normas do código de Processo Penal. Nestes casos, entender-se-á que o recebimento da peça acusatória é regido pela norma do art. 396 do cPP, passando a mudança determinada pela lei no 11.719/2008 a ser aplicada a estes determinados procedimentos especiais, à luz do art. 394, §§ 2o, 4o e 5o, do cPP.

como exemplo, temos que o recebimento da peça acusatória nos crimes falimentares se rege pelo rito sumário e pelas disposições do cPP, como se colhe dos arts. 185 e 188 da lei no 11.101/2005. Situação análoga se encontra ao analisarmos o procedimento dos crimes de licitações (arts. 89 a 99 da lei no 8.666/1993), à luz dos arts. 104 e 108 da lei no 8.666/1993. isso também ocorre nos crimes

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contra o Sistema Financeiro Nacional da lei no 7.492/1986, nos crimes contra as relações de consumo (lei no 8.078/1990), nos crimes contra a ordem econômica (lei no 8.176/1991), nos crimes contra a criança e o adolescente (art. 226 da lei no 8.069/1990), nos crimes contra o meio ambiente (art. 79 da lei no 9.605/1998), nos crimes de preconceito (lei no 7.716/1989), nos crimes eleitorais (arts. 359 e 364 da lei no 4.737/1965) e nos crimes de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores (art. 2o, i, da lei no 9.613/1998).

de outro lado, em referência ao recebimento e à rejeição da peça acusatória, podemos listar, dentre os procedimentos especiais, aqueles que continham regras próprias, distintas daquelas determinadas pelo antigo cPP, e que não foram expressamente revogadas pela lei no 11.719/2008, mas que estão colidindo com as modificações feitas por este diploma. Entre eles:

a) admitia-se, por exemplo, nos crimes praticados por servidores públicos (cPP, arts. 513 a 518), que, estando a peça acusatória em forma, o magistrado mandasse autuá-la e notificar o acusado para “resposta preliminar” em 15 dias, por escrito, podendo instruí-la com documentos e justificações. Caso estivesse convencido da inexistência do fato ou da improcedência da ação, após a apresentação da resposta defensiva, o juiz poderia rejeitar a peça em decisão fundamentada; se não houvesse tal convencimento, receberia a peça acusatória, dando seqüência ao rito apropriado;b) À luz dos arts. 43 a 45 da lei de imprensa (lei no 5.250/67), o juiz, ao despachar a denúncia ou queixa, determinava a citação do réu para apresentar “defesa prévia”, escrita, no prazo de cinco dias, momento em que, comumente, era a oportunidade de se alegar preliminares, requerer exceção da verdade e indicar provas. após o oferecimento desta defesa escrita, o processo tomava seu curso normal, podendo o juiz rejeitar ou receber a peça acusatória;c) Na vigente lei antidrogas também havia a possibilidade de defesa preliminar antes do recebimento da denúncia ou da queixa. assim, observando-se os arts. 55 e 56 da lei no 11.343/2006, nota-se que o magistrado notificava o acusado para oferecer suas alegações e provas, em “defesa prévia” cujo prazo é de 10(dez) dias (art. 55, caput), decidindo pelo recebimento ou pela rejeição da peça acusatória no prazo de cinco dias (§ 4o do art. 55), após o oferecimento da defesa prévia;d) No procedimento dos crimes de calúnia e injúria, o recebimento da denúncia ou queixa depende de anterior audiência de tentativa de reconciliação (art. 520 do cPP);e) Já o recebimento da peça acusatória nos crimes contra a propriedade imaterial (arts. 524 a 530-i do cPP) depende de uma prévia condição de procedibilidade: o “exame pericial dos objetos que constituem o corpo de delito” (arts. 525 e 526 do cPP);

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f) O recebimento da peça acusatória no procedimento das ações penais que tramitam nos tribunais, órgãos de segundo grau de jurisdição, se dá consoante os arts. 4o a 7o, da lei no 8.038/90, requisitando a lei manifestação colegiada de recebimento (art. 6o) posterior ao oferecimento de “resposta preliminar” por parte do “notificado”;18

g) Por fim, o recebimento da peça acusatória no procedimento do júri se dá conforme os ditames dos arts. 406 e ss. do código de Processo Penal, também modificados recentemente, pela Lei no 11.689, de 09 de junho de 2008.

em relação a todos estes procedimentos, no que atine ao recebimento da peça acusatória, havemos de buscar um critério que identifique se deve ser utilizado o rito novo comum trazido pela lei no 11.719/2008, ou se deve o procedimento especial continuar sendo regido pelas normas especiais existentes até a vigência da lei no 11.719.

como supracitado, todas as observações feitas em relação ao recebimento e à rejeição da peça acusatória não se aplicam apenas aos procedimentos ordinário e sumário, pois o art. 396 do cPP se refere também aos procedimentos especiais, ainda que contidos em leis esparsas, alheias ao código de Processo Penal. É que, segundo o art. 394, § 4o, do cPP, inserido pela novel lei, “as disposições dos arts. 395 a 398 deste código aplicam-se a todos os procedimentos penais de primeiro grau, ainda que não regulados neste código”.

em outras palavras, o tratamento dado, nos procedimentos ordinário e sumário, à rejeição da peça acusatória (art. 395), ao recebimento da peça acusatória (art. 396), à defesa escrita (art. 396-a) e à possibilidade de absolvição sumária após a defesa escrita (art. 397), passa a se aplicar a todo e qualquer tipo de procedimento criminal de primeiro grau, derrogando quaisquer dispositivos anteriores em sentido contrário, estejam no código de Processo Penal ou em leis esparsas.

esta disposição do art. 394, § 4o, do cPP, inserida pela novel lei, a nosso entender, passa a ser a regra. contudo, esta regra, inegavelmente, contém as exceções determinadas em lei. Primeiramente, o art. 394, § 2o, do cPP, determina:

18 Lenio Luiz Streck, no mesmo artigo já citado, ao comentar o art. 396 do CPP, afirma que todos os procedimentos criminais teriam que seguir a lógica da defesa prévia contida na lei no 8.038/1990, sob pena de ofensa à isonomia. eis o trecho: “aliás, espera-se que esta tenha sido a voluntas legislatoris (sic) que informou o processo de formação da nova lei, isto é, isonomizar os demais crimes com aqueles cometidos por autoridades, etc., que sempre tiveram a possibilidade, antes de serem chamados de acusados, de terem a seu favor o prévio contraditório. Portanto, já de há muito havia essa inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade, ou seja, já de há muito a denúncia só deveria ser recebida, para todos os tipos de crimes e pessoas, após o oferecimento da resposta, conforme a holding prevista no artigo 4o da lei 8.038”. Uma vez mais, com a devida vênia ao ilustre professor, seu pensamento é parcialmente procedente. a possível ofensa à igualdade, em verdade, ocorre com o dispositivo do art. 394, § 4o, do cPP, ao se referir apenas aos procedimentos penais “de primeiro grau”. Não houvesse tal expressão, e a defesa prévia da lei no 8.038/1990 corretamente não mais existiria, propiciando o direito constitucional à igualdade, o que pode vir a ser corrigido com a supressão legislativa desta expressão, ou com a adaptação da lei no 8.038/90 ao art. 396 do cPP. StrecK, lenio luiz. Op.cit.

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“§ 2o aplica-se a todos os processos o procedimento comum, salvo disposições em contrário deste código ou de lei especial. (Incluído pela Lei no 11.719, de 2008).”

entre as disposições em contrário, trazidas no cPP ou em lei especial, admitidas como excepcionais ao procedimento comum, podemos afirmar que estão aquelas que contêm a exigência de aferição, anterior ao recebimento da peça acusatória, de algum requisito legal de desenvolvimento processual válido, como no caso do procedimento dos crimes de calúnia ou injúria (requisito: audiência de reconciliação – art. 520, cPP), ou no procedimento dos crimes contra a propriedade imaterial (requisito: exame pericial – art. 525, cPP). Ou, então, a determinação legal expressa de não se aplicar o rito comum, como acontece com o rito do tribunal do Júri, por imposição do art. 394, § 3o, do CPP, ou, por fim, no caso do procedimento das ações penais que tramitam perante os tribunais (requisito: deliberação colegiada do órgão de segundo grau – art. 6o da lei no 8.038/1990 c/c o art. 394, § 4o, do cPP).

Nos demais casos, todos os procedimentos penais de primeiro grau (procedimento nos crimes de tóxicos da lei no 11.343/2006, nos crimes praticados por servidores públicos e nos crimes da lei de imprensa), ainda que não totalmente regulados pelo código de Processo Penal, entendemos que “as disposições dos arts. 395 a 398 do código de Processo Penal”, com a vigência da lei no 11.719/2008, passaram a ditar a rejeição da peça acusatória (art. 395), o recebimento da peça acusatória (art. 396), a defesa escrita (art. 396-a) e a possibilidade de absolvição sumária após a defesa escrita (art. 397) 19 20. Ou seja, a estes três tipos de procedimentos

19 O professor mineiro Eugênio Pacelli manifesta-se no mesmo sentido: “Há, aqui, uma modificação, trazida pela lei 11.719/08. O recebimento da peça acusatória se faz, agora, antes do oferecimento da resposta escrita, aplicando-se o art. 396, cPP, e não o art. 55 e o art. 56 da lei 11.343/06. Mas pode-se perguntar: esta última Lei 11.343/2006 não é lei especial, não modificável por lei geral? Deve-se, então, responder. Sim, exceto quando houver previsão legal em sentido contrário, que é exatamente o caso. Ver, no ponto, o art. 394, § 4o, do cPP, mandando aplicar as disposições do art. 395, do art. 396 e do art. 397, a todos os procedimentos da primeira instância, sejam de rito comum, sejam especiais. A justificativa, perfeitamente aceitável: unificação de procedimentos.” OliVeira, eugênio Pacelli. Op. cit., p. 633-634.20 eugênio Pacelli, novamente, tem posicionamento idêntico: “bem. Para início de conversa, pensamos já revogada a disposição do art. 514 do cPP, particularmente no que diz respeito à distinção entre crimes afiançáveis e inafiançáveis, para fins de determinação de forma procedimental. E revogada também quanto ao seu conteúdo, na medida em que o art. 394, § 4o, do cPP, aplicável a todos os procedimentos de primeira instância, seja comum ou especial, faz prevalecer a norma do art. 396, cPP, que prevê a citação (e não a notificação) para a apresentação de resposta escrita no prazo de 10 (dez) dias (e não mais de 15). Assim, a matéria foi inteiramente abarcada em lei superveniente (lei 11.719/08), estando já, e por isso, revogada. [...] também a anterior previsão de apresentação de defesa prévia (art. 514, cPP), inexistentes ainda para a maioria esmagadora dos demais acusados, cumpria a mesma missão, acrescida de outro fundamento: tratando-se de servidor público, a cautela com os efeitos imediatos de uma ação penal justificava-se e se justifica na preservação do serviço público, inevitavelmente atingido pelos fatos. Com a unificação de procedimentos, agora (lei 11.719/08), não há razão alguma para se insistir no tema. O rito, como se vê, rigorosamente, é o ordinário. e as decisões judiciais anteriormente previstas no art. 516 devem ser redirecionadas para os arts. 395 e 397, cPP, não se aplicando mais a decisão de improcedência da ação, que nem se sabia exatamente o seu real significado, quanto à eficácia preclusiva de seus efeitos” OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Op. cit., p. 628-629.

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especiais, por não conterem nenhum tipo de requisito legal de desenvolvimento processual a ser aferido, se aplica o recebimento da peça acusatória conforme o art. 396 do cPP, inexigindo-se que o recebimento da denúncia ou da queixa tenha que aguardar qualquer tipo de defesa prévia ou resposta preliminar do acusado.

CONCLUSÃOem conclusão, entendemos que, com a vênia das opiniões doutrinárias em

contrário, as mudanças proporcionadas pela lei no 11.719/2008, no que concerne ao recebimento e à rejeição da peça acusatória, vieram para concretizar o direito fundamental à razoável duração do processo criminal (art. 5o, lXXViii, cF), permitindo-se, àquele que detiver provas cabais de que é inocente ou de que responde injustamente a um processo cuja peça acusatória deveria ter sido rejeitada, a absolvição sumária e a rejeição da peça acusatória no menor tempo possível, buscando-se a definição célere de sua situação processual, seja pela condenação ou pela absolvição, mormente quando este acusado estiver detido por qualquer dos tipos de prisão cautelar, decretada antes do trânsito em julgado da sentença.

ainda, a reforma priorizou a celeridade e a oralidade no processo (art. 403, caput do cPP), ao criar a “superaudiência única” do art. 400 do cPP, demonstrando, assim, que seu intuito único e principal é propiciar a aceleração dos feitos criminais, ao contrário do falacioso argumento de que viera para criar uma pseudo “defesa prévia” ao acusado.

Tudo isso só foi possível em vista da celeridade, uniformização e simplificação dadas à fase de recebimento da peça acusatória, que vem descrita no art. 396 do cPP, momento em que o magistrado deve aferir tão-somente a possibilidade de sua rejeição liminar, ou então receber a peça acusatória e citar o acusado, oportunidade em que este levará aos autos sua defesa, que poderá acarretar na absolvição sumária (art. 397 do cPP), na rejeição da peça acusatória, mesmo posterior ao recebimento (art. 395 do cPP), ou na intimação para a “superaudiência única” do art. 400 do cPP (art. 399 do cPP).

Por fim, entendemos que estas disposições se aplicam não só ao procedimento comum, mas também a alguns procedimentos especiais, como naqueles atinentes aos crimes praticados por servidores públicos, aos crimes da lei de imprensa, e aos crimes da lei de tóxicos, bem como em todos aqueles que o procedimento se referir ao procedimento comum, adotado pelo cPP. Nestes, a nosso ver, está extinta a possibilidade de defesa prévia, com a lei no 11.719/2008. apenas em relação aos procedimentos especiais que contenham requisitos de validade processual, cuja aferição seja anterior ao recebimento da peça acusatória, é que o procedimento continuará sendo regido pela norma especial (como nos ritos de ações penais dos tribunais, de crimes de calúnia e injúria, de crimes contra a propriedade imaterial, e nos crimes do tribunal do Júri).

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