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Revista Filosófica de Coimbra
Publicação semestral do Instituto de Estudos Filosóficos da Faculdade de Letras
da Universidade de Coimbra
Director: Miguel Baptista Pereira
Coordenação Redactorial : Francisco Vieira Jordão e António Manuel Martins
Conselho de Redacção: Alexandre F. O. Morujão, Alfredo Reis, Amândio A.Coxito, Anselmo Borges, António Manuel Martins, António Pedro Pita,Edmundo Balsemão Pires, Fernanda Bernardo, Francisco Vieira Jordão,Henrique Jales Ribeiro, João Ascenso André, Joaquim das Neves Vicente,José Encarnação Reis, José M. Cruz Pontes, Luísa Portocarrero F. Silva,Marina Ramos Themudo, Mário Santiago de Carvalho, Miguel BaptistaPereira
As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos Autores
A correspondência relativa a colaboração, pedidos de permuta, oferta de publi-cações, assinaturas, etc. deve ser dirigida a:
Revista Filosófica de CoimbraInstituto de Estudos FilosóficosFaculdade de LetrasP - 3049 Coimbra Codex
Número avulso : 1.500$00
Revista Filosófica de Coimbra
Publicação semestral
Vol. 1 • N.° 1 • Março de 1992
ISSN 0872-0851
Nota de apresentação ........................................................................ 3
Miguel Baptista Pereira - Do Biocentrismo à Bioética ou daUrgência de um Paradigma holístico......................................... 5
Amândio A. Coxito -A Crítica do Inatismo segundo Luís A.Vernei ............................................................................................ 51
Francisco V. Jordão - Natureza, Sentido e Liberdade em Kant ..... 63
Marina R. Themudo - Solipsismo. Viagens de Wittgenstein à volta
de uma Questão ............................................................................
José Reis - Sobre o Conceito de Ser .................................................
Luísa Portocarrero F. Silva - Da Fusão de Horizontes ao Conflito
de Interpretações: a Hermenêutica entre Gadamer e Ricoeur
Fernanda Bernardo - O Dom do Texto: a Leitura como Escrita - o
Programa gramatológico de Derrida .........................................
83
97
127
155
Recensões ............................................................................................ 191
RECENSÕES
Aristoteles Latinus, VII 1. 1-2: Pllvsica. Tr. Vetus. Praefatio. Tr.Vaticana. Editio Altera e VII 1. 2: Phvsica. Tr. Vetus. Editionecurandae praesidit G. Verbeke. E. J. Brill, Leiden- New York, 1990.
Em 1957, A. Mansion publicava na casa Desclée de Brouwer um dos primeirosvolumes da série Aristoteles Latinus, a Translatio Vaticana da Physica do Estagirita.Grande conhecedor de Aristóteles, devemos-lhe uma notável introdução àquela obra
(Lovaina- Paris, 1913). O seu projecto consistia em editar todas as traduções medie-
vais daquele precioso tratado aristotélico, tarefa que mercê da sua complexidadeconsideraríamos praticamente impossível, não fora o desmentido do presente contributo.
Dois investigadores do De Wulf-Mansioncentrum de Lovaina, Fernand Bossier e Josef
Brams, acabam de editar aquela que foi a mais antiga tradução da Física (Translatio
Vetus), feita por Tiago de Veneza cerca de 1140 (p. xxi- xxvii). 1 Recordemos rapidamente
o problema: conhecem-se duas traduções do árabe (2.' metade do séc. XII de Gerardo de
Cremona - p. li- liv -; anos 30 do séc. XIII, atribuída a Miguel Escoto - p. liv- lix-); uma
grande quantidade de Mss., no entanto, apresentam-nos uma versão feita a partir do origi-
nal, a qual se distingue em dois tipos de textos: a Translatio Vetus do séc. XII ou "cor-
pora vetustiora" e a Translatio Nova, revisão da anterior tradução datando da 2.' metade
do séc. XIII e integrada nos "corpora recentiora". Da primeira conhecem-se para cima
de cem mss ., da segunda para cima de duzentos. A complexidade do problema, no entanto,
não fica por aqui. Era já conhecido o facto da existência de um Mss (Avranches BM 232)
da Translatio Vetus recenseando um texto distinto e relativamente mais antigo. Ora e aqui
assinala- se uma descoberta dos pacientes editores de Lovaina, passa-se agora a saber de
forma ainda mais clara que os mss. que integram a Translatio Vetus (131, contamos nós
na presente ed: p. xxvii - xxxv) estão longe de apresentar um texto relativamente uniforme,
1 A título de informação citamos os volumes já editados indicando o nome do respectivo
editor , número de série e o ano da sua publicação : C at. (ed. L. Minio- Paluello; I. 1-5, 1961);
Cat. Supplementa : Porphyrii Isagoge. Liber sex principiorum (ed. L. Minio Paluello; I. 6-7;
1966); De t. (ed. L. Minio-Paluello e G. Verbeke; II. 1- 2, 1965); An. Priora (ed. L. Mínio-
-Paluello; 111. 1-4, 1962); An. Post. (ed. L. Minio-Paluello e B. G. Dod; IV. 1- 4, 1968); TQP.
(ed. L. Minio-Paluello; V. 1-3, 1969); De Soph. Elench. (ed. B. G. Dod; VI. 1- 3, 1975); Dg
Gen. et Corr. (ed. J. Judycka; IX. 1, 1986); De Mundo (ed. W. L. Lorimer, L. Minio-Paluello,
G. F. Muscarella; XI. 1- 2, 1965); De Gen. Anim. (ed. H. J. Drossaart Lulofs; XVII. 2 v, 1966);
11_ (ed. G. Vuillemin- Diem; XXV. 1-1' et XXV. 2, 1970- 76); E t. ic (ed. R. A. Gauthier;
XXVI. 1- 3, 5 fasciculus 1972- 74); pk (ed. P. Michaud-Quantin; XXIX. 1, 1961); Rhet. (ed.
B. Schneider ; XXXI. 1- 2, 1978); Poet. (ed. L. Minio- Paluello; XXXIII, 1968).
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não obstante - asseveram -nos a p. xii - o núcleo da tradição remontar a Tiago de Veneza.
Os editores sublinham ainda o facto ( contrariando a tese de Vuillemin - Diem in:A.H.D.L . M.A. 41, 1974 , 7- 25) de a Translatio Vetus poder ter influenciado ( p. xiv), em
"certaines particularités de cette traduction " ( p. xiii ), a Translatio Vaticana , editada por
A. Mansion e que é uma tradução greco - latina do séc . XII- XIII.A presente edição compõe - se de dois volumes . O "fasciculus primos" com o prefácio
dos editores ( p. v- cix ) e com a feliz reprodução anastática da edição de A. Mansion de
1959; o "fasciculus secundus " com a edição da Translatio Vetus (340 p .) e com um"Appendix" contendo um complemento à edição do texto grego por W . D. Ross ( p. 343-
-52) e os "Indiccs verborum Graeco - Latinus" e "Latino-(jraccus " ( p. 355 - 419). Apesar
do que dissemos até aqui, é impossível dar conta da enorme complexidade de todo o
trabalho exigido para esta edição graficamente impoluta. No longo e a vários títulos
importante Prefácio, os editores estudam os seguintes aspectos: o tradutor da Physica,
Tiago de Veneza ( p. xv - xx ); data da tradução e primeiros testemunhos (p. xxi- xxvii);
Mss. (p . xxvii - xxxv ); as duas recensões da Translatio Vetus ( p. xxxvi- lxxix); referências
sobre a edição, com escolha do texto ( p. lxxx ), qualidade de testemunhos ( p. lxxxiii),
relação da Tr. Vetus com a tradição grega ( p. xlii) e princípios de edição ( p. xlii ). De entreeste importante trabalho ressaltaremos algumas notas . Relativamente ao "enigma Tiagode Veneza" - como C. H. Haskins o designou -, algumas hipóteses de trabalho dos editores
serão de reter : a sua ligação à corte imperial de Bizâncio cujo método rígido de traduções
da respectiva chancelaria poderia estar na origem do seu "literalismo "; não nos repugna
aceitar esta "impressão" jurídica nos trabalhos de tradução e ela deverá ser perseguida e
estendida nomeadamente em paralelo com a hipótese icronimita religiosa ( cf. o nossotrabalho in: Revista da Faculdade de Letras . Porto, Série de Filosofia: 2.', 4. 1987,
p. 293-333 ). Outras hipóteses ainda sobre o tradutor , prendem-se com o seu contributopara o (mas decerto também a sua dependência do) clima de renovação dos estudosaristotélicos em Bizâncio que se fazia sentir naquela época - é até provável que Tiagode Veneza tivesse também comentado Aristóteles (p. xix ), concretamente os ElencosSofísticos . Os editores assinalam bem a aproveitam criteriosamente ( p. xiii - xliv) o factode Hugo de Honau ( c. 1178 ) ser um dos principais testemunhos da Tr. Vetus. Um lugarespecial deve ser dado ao estudo que prepara e funda a edição pela sua amplidão , exaustãoe rigor levando -os à conclusão da superioridade do ms. Af de Avranches (B.M., 221,fol. 25 r - 86 v, séc . XII), nomeadamente em nome dos critérios de preservação doselementos primitivos ( vocábulos gregos, diagramas e grecismos ), logo seguido pelaqualidade de um ms . de Oxford , que no entanto está incompleto ( só até IV , 4. 211 a 20).A nosso ver muito justamente , os editores optaram pela reprodução de uma ortografia maispróxima do tradutor . É sabido como a comunidade medievista se divide em relação a estescritérios , mas no caso particular de traduções uma ortografia "moderna" facilmenteperderia as nuances ideológicas ligadas à semântica terminológica imprimidas quiçádeliberadamente por um escriba comprometido . A documentação das variae lectiones deAristóteles que o aparato latino comparativo nos fornece permite , sempre que for o caso,divergir da opção dos editores . Este pormenor é particularmente bem-vindo porquantopossibilita um estudo mais pormenorizado da recepção de um texto , para além de indicarelementos comparativos suficientes para a dilucidação do estado anterior a Af.
A edição do texto segue a numeração de Bekker , o aparato apesar de complexo eextensíssimo , é de fácil leitura . Eis pois um precioso instrumento de trabalho quer parahistoriadores da filosofia quer para filólogos, aliança difícil mas em que nunca será demaisinsistir.
Mário A. Santiago de Carvalho
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Recensões 193
JAEGER, Werner : Cristiamismo Primitivo e Paideia Grega . Tradução doingl. de Teresa Louro Pérez . (Colecção: Perfil . História das Ideias edo Pensamento , 6). Lisboa , Edições 70, 1991, 127 p.
Publicadas há precisamente trinta anos , acabam de ser editadas entre nós , com revisãode trad . de Artur Morão, as sete prelecções Carl Jackson Newell , que W . Jaeger proferiuna Universidade de Harvard , no ano de 1960 , e então anunciadas como se tratando dacontinuação possível da sua monumental obra , Paideia. Die Formung des GriechischenMenschen (Berlim , 1936). Oscilando entre o método da Quellenanalyse ( e. a. p. 30, 34-38) e uma leitura histórica que procura "encarar a estrutura do pensamento [de um autor]
no seu todo e inquirir qual a função que certas ideias fundamentais nele têm" (p. 94),Jaeger procura aqui mostrar, numa linguagem genericamente acessível a um público leigo,como da admirável património comum da "paideia grega" se evoluiu para um novo
conceito de "paideia cristã" ( lido na Bíblia ) nos primeiros séculos do Cristianismo. Para
tal efeito , perseguiu o encontro da nova religião com a "cultura grega" na época apostólica(p. 43- 54 ); na "reflexão filosófica consciente" de Clemente Romano (p. 29- 41); nos
Apologistas ( p. 43- 54 ); nos "fundadores da filosofia cristã", Clemente de Alexandria e
Orígenes ( p. 67- 91 ); nos Padres Capadócios , "edificadores da paideia cristã" (p. 93- 110);ou, por último , em Gregório de Nissa, "pensador por direito próprio", em quem presumever a metamorfose definitiva da "paideia grega" ( p. 111- 127). A quarta prelecção (p. 55--65) resume , rapidamente , o núcleo da tese do A., apostada naturalmente na centralidade
da ideia de "paideia" na tradição histórica do espírito grego em geral e entendendo "o
desenvolvimento histórico da religião cristã durante os primeiros séculos como um
processo de 'tradução ' contínua das suas fontes [ nomeadamente de Platão ], visando dar
ao mundo uma compreensão e percepção ainda mais fiéis do seu teor" ( p. 55).
Encontramos no livrinho as mais conhecidas e interessantes leituras do A., entre as quais
dest caríamos tão-somente duas: ( i) as páginas dedicadas a Orígenes , pensador em quem
a re4epção da Paideia serve de estrutura ideológica para o desenvolvimento sistemático
de túna teologia cristã com base numa visão básica da história ; ( ii) e a tese inovadora
- em 1937 - segundo a qual a solução ciceroniana no que toca à dimensão epistémica da
certeza religiosa prefigura o desenvolvimento da forma latina do Cristianismo (p. 51- 52).
Entre aqueles povos, como o português , que chegam à filosofia pela mão da suahistória , segmentos desta há que têm sido manifestamente descurados ao nível dadivulgação e do ensino elementar . Estão neste caso , e. g., o Renascimento e, naturalmente,as Patrísticas . É portanto de louvar a iniciativa da edição deste volume dedicadoexclusivamente à Patrística Grega ( e desejaríamos ver iniciativa idêntica no âmbito daLatina , sugerindo mesmo o nome de J. Pépin, eventualmente até para elucidar a tarefalevantada nas páginas finais deste volume: como é que a paideia grega afectou o mundolatino ?) Entretanto, a oportunidade da tradução merece -nos uma brevíssima nota no quantoconcerne à política editorial e aos respectivos "boards" científicos . Porque razão optarpor um título em alguns pontos já ultrapassado pela mais recente investigação histórica,quando são claramente acessíveis trabalhos de maior fôlego? Alguns exemplos do primeirocaso: W. J. permanece indiferente perante a expressão especificamente criacionista doIogas detendo - se na sua dimensão escriturística. e portanto ignorando a pertinência dacontroversa questão da existência de submodelos "alexandrinos ", remotamente filonianose pré - filonianos ; não é pacífico falar -de de uma "partilha" de posição entre Tertuliano eTaciano ( p. 53); depois de R. Goulet (La philosophie de Moïse , Paris, 1987), tendemos aregredir de Fílon para um sincretismo filosófico pré-filoniano , como o do comentáriocursivo ao Pentateuco (p. 56); H . Crouzel propôs recentemente ( vd. Origeniana Quarta,Ed. L. Lies, Innsbruck-Viena , 1987, p . 430) a aplicação da comparação Orígenes - Plotino
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(p. 72); a interpretação filosófica de Orígenes divide-se hoje também entre as dimensõesfísica e soteriológica ( p. 72); não é de aceitar sem especificação que o Cristianismo ocupouuma forte posição no Império "assim que as perseguições terminaram " ( p. 95); além darelação de Agostinho com os Capadócios estudamos hoje em dia com proveito a relaçãodaquele com Orígenes (p. 126); etc. Depois, mesmo que por razões meramente financeirasse aposte em pequenos trabalhos de divulgação como este , porque não apresentar umaedição com bibliografia actualizada e adaptada ao universo lusófono? Parece-noslamentável , e. g., que o editor omita os trabalhos de autores portugueses e brasileiros ouque se esqueça de indicar a existência de uma tradução portuguesa da Paideia ( Lisboa,1975), uma vez que trinta anos depois esta tradução das prelecções de W. J . só interessaráaos não especialistas , precisamente aqueles que carecem de informações adicionais. Teriasido desejável acrescentar um índice analítico.
Algumas notas de leitura, para terminar : - p. 18, n. 8 . não há razão para entre nós
grafar Libertinoi em vez de Libertinos, na sequência aliás de Cirenaicos, etc...; p. 25,n. 28: deve ler - se "carta " e não "careta de Paulo"; -ibid, , n. 29: o trad. poderia terremetido ao menos para o artigo de J. Pépin no segundo volume da História da Filosofia
de F. Châtelet, já traduzida entre nós (Lisboa, 1974. p. 15- 48); -p. 49, n. 21: citaçãoincompleta e por isso incompreensível ; -p. 82, 1. 25 : deve ler - se "é na realidade"; -p. 95,
1. 20: deve ler- se "e se não". As restantes gralhas (p. 15, 18, 22, 37, 51, 62. 73, 86) são
de correcção fácil.
Mário A. Santiago de Carvalho
Daniel O . GAMARRA, Esencia y Objeto (Publications UniversitairesEuropéennes . Série XX: Philosophie , vol. 321), Peter Lang , Berna-Francoforte s. Main-Nova Iorque -Paris , 1990, 388 p.
Daniel O. Gamarra [-Caffieri], professor de História da Filosofia Moderna doDepartamento de Filosofia da secção de Roma da Universidade de Navarra e do AteneuRomano da Santa Cruz , acaba de publicar um interessante exame ao modo como , a partirda tradição aviceniana , a pergunta pela essência e pela sua consistência enquantoconhecida se desdobra numa dupla perspectiva : a primeira , relativa à natureza metafísica
da essência , a outra , relativa à essência enquanto tema de objectividade . Optando por uma"leitura especulativa da história" (p. 357), com este seu estudo retrospectivo de apreciável
poder analítico , este investigador argentino contribui positivamente para a dilucidação
daquele duplo desdobramento. De facto, paralelamente ao esclarecimento do quod quidg. encontra - se a questão do seu conhecimento sendo possível detectar nos autores
estudados (Avicena, Egídio Romano, João Duns Escoto, F. Suarez e R. Descartes) umatradição fundamental comum que dá que pensar precisamente no que toca ao difícilequilíbrio das duas perspectivas perante o problema essencial do fundamento e, portanto,
da existência . Se na linha de uma identificável tradição contemporânea se acusa a
metafísica da essência de esquecer a existência - (" Ia metafísica de Ia esencia (...) no tienerecursos para justificar el alcance real de Ia afirmación de Ia realidad", p. 355) -, alémde demarcar, através da polémica histórica da distinção entre essência/existência (p. 64-
-102), o modo como tal tradição constituiu uma metafísica do objecto (entendido estecomo "aparecimento mental da essência" ) - no prolongamento da temática da rea l ita sobiec tiva de Avicena a Descartes, passando pela distinção suareziana entre realidade for-mal e realidade objectiva, na "coincidência fundamental", apesar das diferenças, entre oconceito objectivo de Suarez (p. 214- 36) e a "ideia" cartesiana (p. 269- 304) - o A. acaba
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por reconhecer em toda esta tradição uma manifesta incompreensão para com o actocognoscitivo . Contra tal incompreensão , radicável enfim na "perda da realidade do acto",ele procurará "recuperar a dimensão da intencionalidade a partir da descrição da actividadecognoscitiva entendida como acção imanente" e - seja - nos permitido sublinhar - aconsequente "irredutibilidade do ser em acto ao ser em pensamento" (p. 323- 53). Apóso trabalho que E . Gilson dedicou ao papel do pensamento medieval na formação dosistema cartesiano , este tipo de indagações retrospectivas - que no caso , como nosinformou por escrito o prof. Gamarra, nasceu da necessidade de estudar os antecedentesmedievais da temática do "ser objectivo", tema da sua dissertação doutoral - tornou-seplenamemente justificável e necessário na medida em que teimam em persistir irritantesequívocos e preconceitos ignorantes no que toca à filosofia "pré-moderna". Num trabalhorecentemente publicado em que as primícias da situação intelectual contemporânea sãocolocadas entre os anos 1250 e 1350, A. de Muralt escreve com toda a pertinência nãoser possível já vermos "em Descartes 'o pai da filosofia moderna ' porque o seupensamento , quando comparado com as suas origens medievais , surge manifestamentecomo um dos produtos mais compósitos do pensamento escolástico tardio . De igual modo,mostra- se como evidente que a reflexão de Bolzano, de Brcntano , de Husserl , de Fregeou de Wittgenstein correspondem à mesma estrutura de pensamento filosófico que à datradição escotista na qual se inscreve um Gregório de Rimini, p. ex..." (L'Enjeu de IaPhilosophie_Médiévale, Leiden, 1991, p. xi) E mais adiante (p. 27): "Nunca nenhumconjunto de obras fundamentais foi durante tanto tempo tão sistematicamente, tãocontinuamente e tão fanaticamente mal avaliada como o pensamento medieval. O excessono desprezo só teve comparação com o excesso de elogios para com aquele que, porcontraste , passou por ser o mestre da filosofia moderna, Descartes, o qual porém pertence,em todos os traços da sua fisionomia intelectual, à escolástica mais compósita, que osderradeiros séculos medievais elaboraram." Ora, o livro presente contribui à sua maneirafelizmente particular para uma reequacionação da deriva da estrutura de pensamentognoseológico ("moderna" ) da metafísica ("antiga"), e o A. anuncia -nos ulteriorespublicações desta feita na casa francesa du Cerf. Para além daquela necessidade, quecertamente o eminente discípulo de Gilson, Jean Paulus, o ajudou a equacionar, o A.argentino inscreve - se numa linha de orientação "tomista" de cunho gilsoniano em par-ticular no que toca a uma filosofia do esse tal como ela aparece em L'Etre et 1'essence(Paris , 1948; ed. ingl.: Being and some philosophers, Toronto, 1949) depois de ter sidoentrevista em 1940 aquando da redacção do seu God and Philosophy (New Haven, 1941).Neste domínio , o A. poderia ainda ter recorrido a J. Maritain, Court traité de l'existenceet de l 'existant (Paris, 1947).
Seria precisamente aqui, nesta distinção entre metafísica da "essência" e da
"existência", que gostaríamos de nos deter, ressalvando sempre a extrema relevância da
obra de D. Gamarra. É bem conhecida a crítica de vária proveniência que se tem dirigido
à tese de Gilson (escolhamos um exemplo justamente em língua castelhana : L. Pena, El
ente y su ser, Leão, 1985). Ora a adopção daquela perspectiva condiciona alguns aspectos
da leitura histórica realizada. Estão neste caso certas páginas dedicadas a Henrique de
Gand, que nos aparece como "teórico da essência e do conhecimento da essência" (p. 74)
além de ser lido, aliás muito justamente , na dimensão mais genuína da procura de uma
resposta à pergunta pelo ser (p. 98). Num livro a todos os títulos importante, curiosamente
publicado nesse mesmo ano, J.-F. Courtine interpreta o teólogo de Gand também na
direcção gnosiológica em que o esse essentiae adquire uma consistência epistémica já
vincada (cf. Suarez et le systènre de Ia métaphysique, Paris, 1990). Aliás, J. Pinborg pôde
perseguir há algum tempo atrás uma linha significativa que une a temática do esse
essentiae ao esse obiectivum( cf. Logik und Seniantik im Mittelalter. Ein Überblick,
Estugarda, 1972). Parece-nos pois indiscutível esta particular componente gnosiológica
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da qual inevitavelmente Henrique de Gand é criterioso herdeiro como se patenteia no
pendor "crítico" das primeiras páginas da sua Sunia de Teologia. Existe aliás umaabundante bibliografia sobre esta dimensão que o A. não mostra conhecer , permitindo-
-nos nós, por isso, remeter aqui para a nossa nota bibliográfica ( in Hutnanística e Teologia
12, 1991, 113- 138) e para a bibliografia recolhida por P . Porto (Enrico di Gand. La via
delle proposizioni universali , Bari, 1990, 175-98 ). Contudo, como J. Gómez Caffarena
mostrou numa impressionante análise à metafísica henriquina (Ser participado y ser
subsistente en Ia metafísica de Enrique de Gante, Roma , 1958) - estudo que alías D.
(ìatnarra ponderou -, logo desde aquelas páginas iniciais da Suma o teólogo flamengo não
cuida tanto de gnosiologiu quanto de metafísica fundamental . E o que a nosso ver há de
mais interessante na tese de Gómez Caffarena resume - se precisamente no corpo de prova
levantado na direcção daquilo que o filósofo espanhol veio a designar como uma
"metafísica de Ia inquictud humana" inerente a um pensador da essência ( iii L'Homme
et son destin d'aprês les penseurs du tnoyen - Age, Lovaina- Paris, 1960, 629-34).Acrescentemos apenas que esta dimensão tem sido desenvolvida pormenorizadamente por
R. Macken em vários estudos apostados em vincar o "dinamismo da essência" do teólogo
de Gand ( entre outros : "Les diverses applications de Ia distinction intentionelle chez Henri
de Gand", Sprache und Erkenntnis im Mittelalter , Berlim , 1981, 769- 76; "Henry of Ghent
& Augustine", Proceedings ofthe Conference 'Ad littera►n':tluthoritative Texts and their
Medieval Readers, no prelo ) e acaba de ser retomada por P . Porro na obra já citada . Para
nós não se trata de pôr em causa a pertinência metodológica assumida pelo presente estudo
(seja dito de passagem que o A. a desenvolve com uma invulgar e invejável acribia ), trata-
-se outrossim de relativizar certas interpretações que dependem daquela assunção, e
fazêmo-lo precisamente na medida em que elas se mostram mais insensíveis para uma
particular vertente do contributo henriquino a qual aliás poderia contribuir
significativamente para condicionar a tese geral da obra ora em apreço . É o caso dapresumível falta de complexidade do ser ( p. 79); da afirmação de que estritamente
considerada a criatura não comporta esse mas essentia (p. 81); ou ainda : Henrique de Gand
reduz o ente à essência ( p. 90) e não apresenta alternativa ao problema franciscanodo exemplarismo e da visão de Deus ( p. 96). Tais afirmações não podem ser tomadassem especificação, como sabemos à luz dos trabalhos dos exegetas que acabamos deindicar.
Finalizaremos com algumas observações de diferente índole . Egídio Romano nãofoi o primeiro a utilizar a expressão esse essentiae (p. 65); já Rogério Bacon a ela recorriaem contexto lógico ( ef. J. Pinborg, op, cit. ). Poder -se-ia ter temetido o leitor para asedições críticas já existentes , como acontece nos seguintes casos : p. 78, n . 26 e 27;p. 81, n. 30 ; p. 85, n . 41; p. 92, n. 51; p. 101 , n. 65). Na perspectiva histórica desenvolvida,gostaríamos de ter visto um tratamento condigno à estatura de um Pedro da Fonseca.Muito recentemente António Martins mostrou numa rigorosa dissertação sobre a lógicae a ontologia nos Comentários aos livros da Metafísica de Aristóteles daquele autor, aimportância que a dimensão cognitiva assume na metafísica de Fonseca e o papel cru-cial da sua distinção entre conceito formal e conceito objectivo de (cf . Lógica eOntologia em Pedro da Fonseca , Faculdade de Letras, Coimbra , 1990, "promanuscripto"). A edição de Esencia e Objeto, comportando algumas gralhas , não apresentaíndices temático nem onomástico . Em contrapartida , a sua bibliografia é de evidenteutilidade . Escusado será dizer que consideramos esta obra de Daniel Gamarraimprescindível em qualquer programa de gnosiologia ou de metafísica e esperamosatentamente a sua próxima publicação.
Mário A. Santiago de Carvalho
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Recensões 197
TOULMIN, Stephen: Cosmopolis. The Hidden Agenda of Modernity.(New York: The Free Press, 1990), xii + 228 pp.
Estamos perante mais um excelente livro de Toulmin sobre o passado mais recente(a Modernidade) e sobre o futuro que poderemos construir no presente que nos é dadoviver. Neste texto, Toulmin reconstrói, em traços muito gerais, a compreensão da ciênciamoderna e da filosofia moderna em que se formou nos anos 1930 e 40 bem como a criseiniciada no final dos anos 60 e aprofundada nos anos 80.
Toulmin não pretende questionar a narrativa dominante na primeira metade desteséculo da emergência dos Tempos Modernos apenas em termos de mero rigor histórico.É claro que esta dimensão também está presente na medida em que a sua reinterpretaçãobrilhante da gestação da Cosmopolis moderna põe a nu as ilusões bem como as trevas ea miséria que a acompanham e que a narrativa de pendor iluminista ocultava. Não se trataapenas de corrigir uma narrativa que nos dizia ter começado a Modernidade no séc. xviicom uma opção pela "racionalidade", possível graças à prosperidade económica elibertação da tutela da Igreja cujas figuras emblemáticas são Galileu e Descartes esublinhar que a história é mais complexa. Ao reclamar um lugar de relevo para oshumanistas do Renascimento a partir de Erasmo (e muito particularmente para Montaigne)na génese dos tempos modernos, Toulmin quer, com certeza, reescrever a narrativa dasorigens da Modernidade em torno de figuras importantes do pensamento europeu dos sécs.xvi e xvii. Mas a sua narrativa histórica gera igualmente uma análise historiográfica eabre novos horizontes à nossa compreensão do que é (deve ser) um saber verdadeiramente
humano. Dado o amplo leque de temas e autores abordados é de todo impossível dar uma
ideia sumária de toda a riqueza do texto. Sublinharemos apenas algumas ideias que nosparecem centrais e que podem sugerir o interesse desta obra de Toulmin.
Não se trata de relatar a emergência da "ciência" moderna tal como a entendem os
positivistas mas de reconstruir os traços mais característicos da "cosmopolis" moderna.Como Toulmin sublinha, é a cosmopolis que dá uma compreensão englobante do mundo
ligando todas as coisas tanto em termos "teológico-políticos" como em termos científicos
ou explicativos. De facto, entre 1660 e 1720 poucos pensadores estavam apenasinteressados numa explicação dos fenómenos mecânicos do mundo físico. Os que
reconstruíram a sociedade e a cultura europeia depois da Guerra dos Trinta Anos tomaram
como princípios orientadores a estabilidade nas e entre as diferentes nações-estado e a
hierarquia dentro das estruturas sociais de cada um dos estados.
Na sua reinterpretação da gestação da Modernidade entre os anos 1570 e 1720,
Toulmin distingue quatro gerações na cultura europeia cada uma delas com o seu traço
distintivo. Até 1610 teria existido ainda uma confiança senão universal pelo menos
bastante partilhada na capacidade humana de conduzir o seu próprio destino e uma certa
tolerância de uma diversidade de opiniões. Figuras representativas desta atitude seriam,
entre outras, F. Bacon e Shakespeare. Depois de 1610 o tom de confiança teria sido
substituído pelo de catástrofe. A aceitação incondicional de doutrinas que ninguém pode
"provar" satisfatoriamente gerou como subproduto um perfeccionismo que viria a ser um
dos traços mais característicos da Modernidade. Neste contexto, Toulmin sublinha que
embora o programa de investigação dos filósofos da natureza do séc. xvii se apresentasse
como sendo, a um tempo, "matemático" e "experimental", de facto, "it was, first and
foremost, a pursuit of mathematical certainty: the search for experiential support and
illustrations was secondary" (p.130).
Depois de 1650 teria havido um período de transição de 40 anos durante os quais se
puseram de lado os conflitos doutrinais e se fez um esforço de reconstrução. As questões
doutrinais perderam o estatuto de que gozavam e um tom de cinismo caracteriza esta fase.
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Só no final do século é que as incertezas começaram a ser substituídas por uma nova
segurança e mesmo complacência. Newton tinha finalmente respondido a algumas
questões deixadas em aberto por Copérnico e descoberto na natureza uma ordem que
aparentemente justificava o compromisso com a estabilidade e a hierarquia que estava
patente na monarquia absolutista de Luís xiv, em França , e na monarquia constitucional
de Guilherme iii, na Inglaterra. Toulmin insiste na necessidade considerar não apenas o
conteúdo teorético da física de I. Newton a A. Einstein ou da biologia desde John Ray
até T.11. Morgan para se compreender a transformação da ciência desde 1750 até 1920
mas Lambem o papel do newtonianismo como justificação "cosmopolítica" da "ordem
social moderna" (p. 133). li lembra aos positivistas de todos os quadrantes que esta
atenção ao enquadramento num contexto social mais amplo é tão antiga como a República
de Platão. Data desde essa época o sonho de uma "cosmopolis" que una as dimensões
da natureza e da sociedade.
Toulmin vê as transformações operadas na cultura e sociedade europeias do séc. xviicomo alterações que puseram de lado a tolerância dos humanistas em favor de teorias maisrigorosas e de práticas mais exigentes. Tudo isto culminou na nova cosmopolis construídaem torno da estrutura formal da física matemática. A partir de 1750, estas mudanças foramsendo eliminadas, uma a uma.
Neste sentido, a história da ciência e da filosofia de 1650 a 1950 "was not simply atriumphal procession of geniusses building on Lhe work of their predecessora: rather ithad both light and shade, both an up and a down lide" (p. 167). Não se trata, paraToulmin, de escolher entre o humanismo do séc. xvi e a ciência exacta do séc. xvii poisprecisamos do contributo positivo de ambos. A tarefa consiste mais em reformar e mesmoreclamar a nossa tradição moderna humanizando-a. Toulmin vai mais longe propondo,contra Wittgenstein e Rorty (que "are overdramatizing Lhe situation" quando afirmam quea filosofia se encontra "at 'Lhe end of Lhe road"') um regresso a Aristóteles: "Lhe dreamof 17th-century philosophy and science was Plato's demand for episteme, or theoreticalgrasp: Lhe facts of 20th-century science and philosophy rest on Aristotle's phronesis, orpractical wisdom" (p. 192).
Em suma, um livro estimulante sobre a Modernidade e as tarefas mais urgentes quese impõem nossa reflexão para que a terra que habitamos possa ser a nossa casa terrestre.
António Manuel Martins
RICOEUR, Paul: Lectures 1. Autour du Politique (Paris: Seuil, 1991)
A obra mais recente de Paul Ricoeur , Lectures 1, com o subtítulo Autour du Politique,publicada pelas éditions du Seuil em Novembro de 1991 , constitui o primeiro tomo deuma nova trilogia , à semelhança do que acontecera entre 1983 e 1985 com os três tomosde Temps et Récit . Desta vez, o percurso anunciado de antemão divide - se nas três áreasda Política ( primeiro volume ), da Poética e Teoria da Narrativa (temas previstos para osegundo volume ) e das relações entre Filosofia e Teologia, tendo como fundoproblemático o Mal (temas para um terceiro volume).
No primeiro volume deste conjunto , os grandes problemas de Filosofia Política e osque se levantam a partir da história política contemporânea agrupam - se em quatro partes(1. «Le Paradoxe politique », 2. «Politique , Langage et Théorie de Ia Justice », 3. «LaSagesse pratique » e 4. «Circonstances»), cujo ritmo lógico varia entre o que se podedesignar por «escritos políticos de circunstância » ( sobre Israel , a China e a reformauniversitária ), os artigos de análise crítica de obras de pensadores da Política (H. Arendt,
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J. Patocka, E. Weil, K. Jaspers, J. Rawis) e textos de carácter mais acentuadamentereflexivo no seguimento dos sétimo, oitavo e nono estudos da obra de 1990, Soi-mêmecomme un Autre (pp. 199-345). Se o interesse de Ricoeur pela temática política não érecente (neste volume incluem-se artigos datados de 1951, 1956 e 1968), é com este livroque a incursão na Filosofia Política assume um aspecto mais sistemático, mau grado aaparente dispersão cronológica e temática dos textos. Mas a importância desta obra nãodeve considerar- se apenas nesta sede, pois todo o valor construtivo e sistemático que sepode extrair dos textos, é subsidiário da Filosofia Hermenêutica que, desde De1'Interprétation - Essai sur Freud, caracteriza o estilo do seu pensamento: aqui, não só aFilosofia Política se esclarece pela Hermenêutica como, de modo mais interessante, ospressupostos teóricos da forma hermenêutica de pensar, revelam uma escolha iniludívelna teoria política. O título Lectures é sugestivo a este propósito.
O leitor que conhece outras obras de Ricocur não se espantará ao verificar novamente
o recurso à mediação no tratamento de pares antinómicos que a teoria (científica oufilosófica) institui . Modelos do uso da mediação são Le Conflit des Interprétations e LaMétaphore Vive, a respeito da articulação entre a análise estrutural e a compreensão
hermenêutica do sentido. Lectures 1 é perpassado por vários efeitos de mediação que seirão exercer no campo de dicotomias tradicionais da Filosofia Política: poder/violência,
opinião/verdade, uso crítico/uso retórico da linguagem, málboa retórica, justo/legal, justo/
/bem, noção deontológica/noção teleológica do bem.
É logo num texto da primeira parte sobre H. Arendt onde o autor tenta situar o
«político» à luz da categoria central do poder, separando este conceito das noções,
tradicionalmente conexas, de «dominação legítima» ou «monopólio do uso legítimo da
coerção física». Esta associação entre poder e violência que Arendt contribuiu para criticar,
apareceria ao longo da reflexão filosófica mais antiga sobre a realidade do «político», para
culminar na definição célebre do «político» de Max Weber.
Das análises da obra de H. Arendt retém-se uma noção de poder como «aptidão do
homem para agir e agir de um modo concertado» (p. 27). Esta ideia «pura» do poder supõe
diversas condições na vida prática das comunidades e, especialmente, certas disposições
da razão prática dos indivíduos, como são a existência de «iniciativa» das acções nos
agentes (que tem a sua correspondência ontológica no acto de nascer individual) e o
«espaço público de aparição» onde é possível visar os ideias da «vida boa», do ponto de
vista da livre comunicação das opiniões. À medida que faz a sua leitura de II. Arendt,
Ricoeur recorre a rectificações críticas frente a algumas das teses de J. Habermas quer
quanto ao estatuto da razão crítico-emancipadora no quadro da razão prática, quer no que
concerne à necessidade de um «esquematismo» para a ideia regulativa de uma
«comunicação sem coerção». A noção de «opinião» que Arendt descobre na base de todo
o poder [«a opinião e não a verdade é uma das bases indispensáveis de todo o poder»
(H. Arendt, Between past and future)] e lhe serve na análise do «espaço público de
aparição», asseguraria as condições práticas do equivalente ao «esquematismo transcen-
dental» da Crítica da Razão Pura, para o ideal regulativo da comunicação livre de coerção.
Se é possível separar o poder da violência e da dominação, tal como se depreende
da leitura de Arendt, isso deve-se à mediação das diferentes formas da acção pela
linguagem. Do ponto de vista dos comportamentos políticos, a expressão desta tese geral
é dada nas utilizações retóricas da linguagem vulgar, ao lado de actos linguísticos
fundamentais como a promessa.
O exame da dimensão retórica das actividades comunicativas é objecto de um dos
títulos mais importantes deste volume: «Langage politique et Rhétorique». O ponto de
partida deste texto é o «conceito puro de poder» de H. Arendt e submete a uma análise
tripartida os problemas contemporâneos de uma Filosofia Política mediada pelo interesse
pela linguagem no seu uso retórico. Em primeiro lugar, o «político» deve ser visado como
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o campo de debate actual entre opiniões que se exprimem num «espaço público». Em
segundo lugar , toda a actividade política baseada na disputa tende para o ideal consen-
sual do «bom» governo, que determina a natureza dos preceitos jurídico -constitucionais
(ou a «constituição material »), aliás de acordo com uma venerável tradição filosófica que,
com Aristóteles e com Hegel , via na Constituição Política um dos cimos da actividade
política de homens livres . Por fim , no mundo contemporâneo , não pode falar - se no sentido
do «político » sem a referência à « crise de legitimidade» (tópico comum a J. Ilabermas e
a algumas análises decisivas de N. Luhmann). A questão da legitimidade enuncia-se, para
Ricocur , na pergunta : « reconheço - me nesta forma de sociedade?», O carácter interrogativo
da expressão implica a hipótese da dúvida sobre o sentido global das orientações do poder
colectivo, de tal modo que é o «sistema de valores » reconhecido como comum ( se aqui
é permitida a terminologia de T. Parsons ) e que de modo mais ou menos indiferenciado
representa o universo de referência da autoridade legítima na esfera das instituições
sociais, que se torna todo ele questionável . Nas «sociedades do capitalismo avançado»
(J. Habermas ) toda a crise de legitimidade coincide com o qq uestionamento sobre a «auto-
-interpretação do homem moderno » e da Modernidade . É a respeito desta auto - inter-
pretação que Ricocur aflora um dos temas mais decisivos do pensamento político de
sempre : o indivíduo (pp. 171-172).
De um modo geral , Ricoeur segue a visão da Modernidade legada por M . Weber.
Para este ponto de vista , a Modernidade pensou o indivíduo de acordo com a «autonomia
da vontade », que o espírito da secularização post-reformista ajudara a cindir numa esfera
pública e numa esfera privada . Sem uma análise detalhada dos problemas que se podem
situar neste nível (o que conduz o leitor à ideia de conclusões apressadas ), o autor articula
o conceito moderno de indivíduo com o «individualismo», graças à aplicação da noção
grega de «pleonexia». Com efeito, o indivíduo « moderno» não pode separar - se do sujeito
como possuidor e consumidor . Assim , a «crise de legitimidade» na era do «indivi-dualismo» significaria uma cisão no próprio ideal do indivíduo promovido nas Luzes, deacordo com o tríptico da Liberdade , Justiça e Igualdade , e terminado ou cumprido nasolidão egoísta do átomo consumidor . Esta situação do indivíduo da modernidade implicaque as nossas sociedades tenham por característica a ambivalência nos actos doadores delegitimidade: «a crítica moral que dirigimos a esta sociedade procede em grande partedos ideais que a engendraram » (p. 173). A respeito dos problemas da crise do ideáriopolítico das Luzes , Ricoeur situa as análises de M. l-lorkheimcr e T. Adorno (na Dialektikder Aufklãrung ) e manifesta a sua concordância com Habermas a propósito do seudiagnóstico sobre o inacabamento do projecto da Aufklãrung . A constatação da «crise delegitimidade » conduz o autor a um deslocamento normativo no seu discurso e, com umsentido próximo do conceito de «fundação » de H. Arendt , propõe uma «relativização»
do até agora valor absoluto da Aufklãrung para a legitimação do poder no Ocidente, emnome de uma trajectória histórica que vá mais fundo no enraízamento axiológico dasnossas sociedades : no sentido da Torah hebraica , do Evangelho da Igreja primitiva e daÉtica grega das virtudes . Assim se deveria unir, no seu pensamento , Tradição e Crise.Porém, só a associação muito estreita entre o Iluminismo e as pretensões mais antigas e
esquecidas à «vida boa» permitirão que o discurso da legitimação não desemboque numretorno nostálgico do «fundamentalismo », de que são exemplo os comportamentospolíticos que tendem a confundir poder e promoção da verdade religiosa.
Embora sem abordar os problemas hoje decisivos da legitimidade que levantam oIslão que segue o modelo iraniano, Ricoeur inclui nesta obra um artigo , cujo títulosugestivo («Tolérance , Intolérance, Intolérable ») levaria a esperar um esboço de históriacrítica do Estado laico . Isso não acontece, embora o artigo estabeleça uma separação queme parece fulcral entre as pretensões ao justo e o Estado como promotor da justiça e aspretensões à verdade no plano específico das pretensões religiosas à convicção verdadeira.
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O Estado contemporâneo ultrapassou a norma legitimadora de «uma fé, uma lei, um rei»,
no sentido de um outro valor básico do Iluminismo: a tolerância (J. Locke, 1689).
A novidade que Ricoeur traz, reside na afirmação de que a igualdade de tratamento entre
todas as confissões religiosas deve obedecer aos dois «princípios da justiça», tal como
foram enunciados por J . Rawls, sendo a justiça o verdadeiro fundamento da tolerância.
As referências à obra capital do professor de Harvard (A Theory of Justice, 1971)
apareciam já em Soi -même comme un Autre, mas aqui , é a aplicação do princípio do
«maximin » ao tratamento das oportunidades das confissões religiosas que mais preocupa
o autor . Tal aplicação pode considerar - se como fundamental na protecção das minorias.
A J. Rawls dedica o presente livro cinquenta e sete páginas ( pp. 176-233 ), fazendo sempre
abordagens críticas dos princípios da justiça, dos problemas que se levantam na
«congruência entre o justo e o bem» tanto na «teoria restrita» como na «teoria alargada»
do bem de J. Rawls. Contudo, Ricoeur nem sempre é convincente nas suas críticas ao
princípio contratualista , que é o ponto nuclear de A Theory of Justice.
Edmundo Balsemão
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