Revista Gragoatá 23

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Revista de Letras e Literatura da Universidade Federal Fluminense

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  • GraGoat

    ISSN 1413-9073

    Gragoat Niteri n. 23 p. 1-236 2. sem. 2007

    n. 23 2o semestre 2007

    Poltica Editorial

    a revista Gragoat tem como objetivo a divulgao nacional e internacional de ensaios inditos, de tradues de ensaios e resenhas de obras que representem contribuies relevantes tanto para reflexo terica mais ampla quanto para a anlise de questes, procedimentos e mtodos especficos nas reas de Lngua e Literatura.

  • Programa de Ps-Graduao em Letras da Universidade Federal Fluminense Direitos desta edio reservados EdUFF Editora da Universidade Federal Fluminense Rua Miguel de Frias, 9 anexo sobreloja Icara Niteri RJ CEP 24220-008 Tel.: (21) 2629-5287 Telefax: (21)2629-5288 http://www.editora.uff.br E-mail: [email protected]

    Organizao:Projeto grfi co:Capa:Reviso:Normalizao:Editorao:Superviso Grfi caCoordenao editorial:Periodicidade:Tiragem:

    Reitor:Vice-Reitor:Pr-Reitor de Pesquisa e Ps-Graduao:Diretor da EdUFF:Conselho Editorial:

    Conselho Consultivo:

    Silvio Renato Jorge e Solange VerezaEstilo & Design Editorao Eletrnica Ltda. MErogrio MartinsSilvio Renato Jorge e Solange Vereza Caroline Brito de OliveiraVvian Macedo de Souzakthia M. P. MacedoRicardo Borges Semestral500 exemplares

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao

    Ana Pizarro (Univ. de Santiago do Chile)Cleonice Berardinelli (UFRJ)Clia Pedrosa (UFF)Eurdice Figueiredo (UFF)Evanildo Bechara (UERJ)Hlder Macedo (Kings College)Laura Padilha (UFF)Loureno de Rosrio (Fundo Bibliogrfi co de Lngua Portuguesa)Lucia Teixeira (UFF)Malcolm Coulthard (Univ. de Birmingham)Maria Luiza Braga (UFRJ)Marlene Correia (UFRJ)Michel Laban (Univ. de Paris III)Mieke Bal (Univ. de Amsterd)Ndia Battela Gotlib (USP)Nlson H. Vieira (Univ. de Brown)Ria Lemaire (Univ. de Poitiers)Silviano Santiago (UFF)Teun van Dijk (Univ. de Amsterd)Vilma Aras (UNICAMP)Walter Moser (Univ. de Montreal)

    2008 by

    proibida a reproduo total ou parcial desta obra sem autorizao expressa da Editora.

    APOIO PROPP/CAPES / CNPqUNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

    G737 Gragoat. Publicao do Programa de Ps-Graduao em Letras da Universidade Federal Fluminense. n. 1 (jul./dez. 1996) - . Niteri : EdUFF, 1996 26 cm; il.

    Organizao: Silvio Renato Jorge e Solange Vereza Semestral ISSN 1413-9073.

    1. Literatura. 2. Lingstica.I. Universidade Federal Fluminense. Programa de Ps-Graduao em Letras. CDD 800

    Roberto de Souza SallesEmannuel Paiva de andradeHumberto Machado FernandesMauro Romero Leal Passos

    Mariangela Oliveira (UFF) PresidenteLvia de Freitas Reis (UFF)Eneida Maria de Souza (UFMG)Solange Vereza (UFF)Silvio Renato Jorge (UFF)Jos Luiz Fiorin (USP)Leila Brbara (PUC-SP)Lucia Helena (UFF)Eurdice Figueiredo (UFF)Regina Zilberman (PUC-RS)Laura Padilha (UFF)Jussara Abraado (UFF)

    Editora liada

  • Sumrion. 23 2 semestre 2007

    GraGoat

    Apresentao ................................................................................... 5

    ARTIGOS

    Semitica e retrica .........................................................................9Jos Luiz FiorinLanterna na proa: sobre a tradio recente nos estudos da lingstica .......................................................................................27Maria Margarida Martins SalomoUma (re)leitura contempornea do imaginrio portugus: as mezinhas de Dom Duarte ........................................................53Mariangela Rios de Oliveira, Sebastio Josu Votre e Ktia Eliane Santos Avelar Tirando os vus, velando o outro: Bakhtin e os dilogos multiculturais contemporneos ..................................................65Valria Rosito FerreiraA semitica tensiva e o nouveau roman de Nathalie Sarraute ......................................................................79Renata Mancini

    Condicionais reportadas e flexibilidade de ponto de vista ....95Lilian Ferrari A literatura, hoje: crnica de uma morte anunciada ............. 111Srgio Luiz P. BelleiReflexes sobre a poesia como abertura ..................................135Juliana P. PerezA conquista do entre-lugar: a trajetria do romance histrico na Amrica ............................................. 149Gilnei Francisco Fleck

    Ideograma e pensamento selvagem: a arte e a cincia do ymy maxakali ...................................................... 169Charles Bicalho

    A literatura marginal e a tradio da literatura: o prefcio- manifesto de Ferrz, Terrorismo Literrio .......................... 189Luciano Barbosa Justino

  • Runas e memria: Dois irmos e um novo regionalismo ..........................................................205Ndia Regina Barbosa da Silva

    RESENHASGRANDIS, Rita de. Reciclaje cultural y memoria revolucionaria: la prctica polmica de Jos Pablo Feinmanni .......................................................... 225Silvia Crcamo

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    apresentao

    A proposta deste nmero vinte e trs da Revista Gragoat privilegiar reflexo terica que aponte para o modo como determinadas correntes interpretativas contemporneas revi-sitam aspectos da tradio, reconfigurando-os ou no, para, a partir da, estabelecer dilogos e atravessamentos. Para alm disso, buscamos incluir textos que, ao se dedicarem a comentar obras literrias ou um corpus lingstico especficos, acabam por evidenciar a recorrncia a novos paradigmas tericos e a presena, neles, de um dilogo com a tradio. Buscamos, assim, compreender o que se apresenta como um legado dos estudos lingsticos e literrios para o sculo que se inicia e estimular a anlise interpretativa e a leitura do contemporneo.

    O legado enfocado por Jos Luiz Fiorin, no artigo que abre a revista, o da retrica. Em Semitica e retrica, o autor prope que herdamos a retrica sob a perspectiva dos problemas tericos da atualidade, considerando sculos de reflexo em torno das questes abraadas por esse campo de pensamento. Inicialmente mostrando que a retrica trata dos procedimentos discursivos que possibilitam ao enunciador produzir efeitos de sentido que permitem fazer o enunciatrio crer naquilo que foi dito, o autor passa a examinar como a semitica francesa tem incor-porado tanto a dimenso tropolgica quanto a argumentativa dos estudos retricos. Esse movimento de resgate da retrica significaria, dessa forma, abord-la luz das questes tericas da contemporaneidade, em que o discurso surge como ncleo central da produo de sentidos. dentro dessa perspectiva que, em um segundo momento, conceitos prprios da semitica so examinados no artigo.

    Maria Margarida Salomo procura, em suas prprias palavras, acender uma lanterna na popa para reler a tradio na produo contempornea nos mares da Lingstica. Essa lanterna aponta para a enunciao de trs teses norteadoras, interrelacionadas, que so desenvolvidas no artigo Lanterna na Proa: sobre a tradio recente nos estudos da Lingstica. a primeira tese a de que a lingstica do sculo XX seria um enorme sucesso como empreendimento poltico e cientfico. A segunda prope que o advento das novas tecnologias, juntamente com a consolidao das cincias cognitivas cria, para as prticas ca-nnicas, uma tenso insuportvel. E, em ltimo lugar, e como conseqncia das teses anteriores, a autora sugere que haja, na tradio recente nos estudos da linguagem, um redesenho disciplinar da lingstica.

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    Maringela Rios, Sebastio Jos Votre e Ktia Avelar em seu artigo Uma (re)leitura contempornea do imaginrio portugus as mezinhas de Dom Duarte, apresentam uma proposta de re-leitura contempornea do imaginrio portugus, com foco nas tradies culturais. releituras, segundo os autores, podem ser compreendidas como exerccios de anlise do contedo e rein-terpretao, na tica situada no hoje, de produtos e processos culturais do passado. O foco especfico da releitura proposta o cuidado com as pessoas, sob a luz de seus valores culturais e linguageiros e em suas prticas alimentares e teraputicas. A anlise dos textos escolhidos, um conselho/regimento e duas mezinhas de Dom Duarte, se detm nos aspectos reveladores de traos de estabilidade e de continuidade nas prticas discursivas e culturais registradas, que permitem a identificao de uma mesma lngua e universo cultural cunhados, pelo menos, h cinco sculos no imaginrio portugus.

    Em Tirando os vus, velando o outro: Bakhtin e os dilogos multiculturais contemporneos, Valria Rosito Ferreira revisita o pensamento do terico russo em torno do conceito de polifonia, procurando articul-lo crtica cultural da contemporaneidade. A autora, em sua reflexo, mostra a riqueza e adequao dessa articulao, principalmente no que se refere interface entre Teoria da Literatura e Lingstica. O fenmeno contemporneo especfico sobre o qual Valria se debrua o multiculturalismo, examinado e problematizado a partir do exame da linguagem cinematogrfica de A Ma de Samira Makhmalbaf, de 1998. A partir dessa reflexo, a autora aponta os riscos que o privilgio das vozes de dentro pode acarretar para o fenmeno do multi-culturalismo e da globalizao na produo cultural e acadmica contemporneas.

    renata Mancini, em seu artigo A semitica tensiva e o nouveau roman de Nathalie Sarraute, examina a semitica tensiva de Claude Zilberberg e Jacques Fontanille como um importante desenvol-vimento recente da semitica greimasiana. os trabalhos nessa linha, segundo a autora, contemplam os elementos sensveis caractersticos da gerao de sentidos os quais, cifrados como categorias, dariam conta do tratamento do texto como processo. De acordo com a autora, apesar de essa abordagem no alterar os procedimentos clssicos da anlise semitica greimasiana, mostra-se particularmente produtiva no tratamento de textos contemporneos, que trazem como uma de suas marcas a ma-nipulao sensvel do enunciatrio. Esse o caso do texto de Sarraute analisado, cujo efeito de sentido, segundo a autora, no pede apenas para ser compreendido, mas, sobretudo, para ser vivenciado.

    Em seu artigo Condicionais reportadas e flexibilidade de ponto de vista, Lilian Ferrari lana mo da teoria dos Espaos mentais para examinar as construes condicionais no portugus brasi-

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    leiro. Essa proposta afasta-se da noo tradicionalmente aceita de uniformidade de postura epistmica, que v esse fenmeno como sendo unificado e coerente. Segunda a autora, a noo tradicional no explicaria os casos de condicionais encaixadas no discurso indireto, que pode ser mais bem compreendido por meio de primitivos discursivos, tais como Base, Ponto de Vista e Foco. Lilian Ferrari argumenta que a exigncia de uniformidade nas construes condicionais no seria de natureza inerentemente sinttica, mas decorreria de fatores discursivo-pragmticos, que poderiam ser tratados adequadamente pelo arcabouo terico-analtico da teoria dos espaos mentais.

    Em A literatura, hoje: crnica de uma morte anunciada, Srgio Luiz P. Bellei retoma a discusso em torno da morte da litera-tura, conforme proposta pelo que se convencionou chamar de a Era da Teoria e que corresponde aos anos que se seguiram dcada de sessenta, para problematiz-la diante das transfor-maes ocorridas nos ltimos quarenta anos, sobretudo a con-siderarmos aspectos scio-culturais e tecnolgicos. Para tanto, rel elementos da teorizao desenvolvida no perodo, interro-gando os conceitos de autor, texto, leitor e arte, para identificar, nos ltimos anos, a presena de questionamentos alternativos, responsveis por indicar a relevncia social e cultural do literrio no momento em que vivemos.

    Juliana P. Perez, em Reflexes sobre a poesia como abertura, investiga o conceito de abertura nos textos de Paul Celan, para, a partir da, compreender a abertura como uma das condies de possibilidade da prpria poesia. Desta forma, a pesquisadora desdobra o conceito em trs nveis - o lingstico, o cognitivo e o tico -, apresentando-o como instrumento capaz de assinalar a disponibilidade da linguagem ao incomensurvel do outro, a percepo do homem como ser efmero e o estabelecimento de um ethos que se configura em plenitude no amor.

    A conquista do entre-lugar: a trajetria do romance histrico na Amrica, artigo apresentado por Gilnei Francisco Fleck, apropria-se de j conhecido conceito estabelecido por Silviano Santiago na dcada de setenta o entre-lugar para pensar a trajetria do romance histrico na Amrica. Este gnero, caracteristicamente hbrido, encontra-se, ao aqui chegar, com realidades histricas singulares, como afirma o prprio autor. Seus romancistas, ao interagirem com essas realidades e estabelecerem uma pers-pectiva que busca dar voz ao colonizado, encaminham-se para a constituio de uma releitura crtica do passado, esboroando a forma como ele fora fixado pelo olhar europeu. Tal procedi-mento o constitui, sintomaticamente, como espao inovador e fundamental para a reflexo acerca da histria do continente, j aqui interrogado por aqueles que o habitam.

    Em Ideograma e pensamento selvagem a arte e a cincia do ymy maxakali, Charles Bicalho busca aproximar Teoria Lite-

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    rria e antropologia, estabelecendo relaes entre o conceito de ideograma, principalmente como postulado por Haroldo de Campos, e a idia de pensamento selvagem, elemento central no pensamento de Lvi-Strauss. Esta aproximao, delineada a partir da observao de uma manifestao performtica, com nfase em seu aspecto verbal, que se insere no rol dos sistemas simblicos dos ndios Maxakali de Minas Gerais, recorre, ain-da, a outros aparatos tericos, como a semitica de Peirce e os estudos de Clifford Geertz, para reconhecer o ideograma como a expresso por excelncia do pensamento selvagem.

    Em A literatura marginal e a tradio da literatura: o prefcio ma-nifesto de Ferrz, Terrorismo Literrio, escrito por Luciano Barbosa Justino, o prefcio-manifesto produzido pelo escritor paulista tomado como objeto privilegiado para o entendimento da litera-tura marginal e da forma singular como esta produo se relacio-na com a tradio literria. Para tanto, convoca a especificidade do lugar de escrita ocupado por esse autor morador de uma favela na periferia de So Paulo para destacar a perspectiva tnica e poltica presente em tal interlocuo.

    Ndia Regina Barbosa da Silva, em Runas e memria: Dois irmos e um novo regionalismo, parte da leitura do romance Dois irmos, de Milton Hatoum, para discutir as aproximaes entre o texto e o modelo do romance regionalista, destacando, sobretudo, o modo como tal romance investe na constituio de matria hbrida, por recorrer a contribuies prprias de matrizes urba-nas clssicas ou modernas de nossa literatura. Desta forma, segundo a autora, o texto de Hatoum reexamina os contedos regionais, ao mesmo tempo em que enfoca as relaes presentes nos seio da famlia, recuperando uma identidade especfica que parece evitar transformao multicultural mais abrangente.

    Por fim, Silvia Crcamo apresenta uma resenha de Reciclaje cultural y memoria revolucionaria: la prctica polmica de Jos Pablo Feinmanni, livro publicado por Rita de Grandis em Buenos Ai-res, em 2007, pela editora Biblos. Na resenha, a autora destaca o desafio assumido pela obra ao se propor a pensar a reciclagem cultural e a memria revolucionria como fenmenos simult-neos, para, a partir delas e considerando a insero de Jos Pablo Feinmann, discutir o campo intelectual argentino.

    Silvio Renato Jorge e Solange Vereza (Org.)

  • Gragoat Niteri, n. 23, p. 9-26, 2. sem. 2007

    Semitica e retricaJos Luiz Fiorin

    Recebido 16, jul. 2007/Aprovado 20, set. 2007

    ResumoEste trabalho, depois de mostrar que a retrica estuda os procedimentos discursivos que possi-bilitam ao enunciador produzir efeitos de sentido que permitem fazer o enunciatrio crer naquilo que foi dito, prope que as diferentes teorias do discurso devem herdar a retrica, levando em considerao sculos de estudos j realizados. Her-dar a retrica quer dizer l-la luz dos problemas tericos enunciados na atualidade, investigar as questes abordadas por ela segundo o ponto de vista das questes tericas modernas. Em seguida, examina-se a maneira como a semitica francesa est tratando, de um lado, a chamada retrica das figuras; de outro, a denominada retrica argumentativa, num processo de incorporao terica das aquisies dos retores antigos. Expe-se o que so figuras e argumentos da mistura e da triagem, figuras da valncia da intensidade, figuras da valncia da extensidade e argumentos implicativos e concessivos.

    Palavras-chave: Figuras da mistura. Figuras da triagem. Intensidade. Extensidade. Implicao. Concesso.

  • Gragoat Jos Luiz Fiorin

    Niteri, n. 23, p. 9-26, 2. sem. 200710

    Esthlo patrs pa, kauts n nos potglssan mn argn, khera dekhon ergtin;

    nn deis lenkhon exin hor brotostn glssan, oukh trga, pnthgoumnn.1

    (Sfocles, Filoctetes, v. 96-99)

    aristteles, seguindo uma longa tradio, divide os ra-ciocnios em necessrios e preferveis (1991, I, 2, 1356b-1358a; 2005, I, 1; II, 27). O primeiro aquele cuja concluso decorre necessariamente das premissas colocadas, ou seja, sendo verda-deiras as premissas, a concluso no pode no ser vlida. o tipo perfeito de raciocnio necessrio era, para o filsofo, o silogismo demonstrativo:

    todos os metais so bons condutores de eletricidade.

    ora, o mercrio um metal.

    Logo, o mercrio um bom condutor de eletricidade.

    Como verdadeiro que os metais so bons condutores de eletricidade e que o mercrio um metal, no pode no ser ver-dade que o mercrio um bom condutor de eletricidade. Nesse caso, a concluso no depende de valores, da viso de mundo, de posies religiosas, de sentimentos, etc.

    Os raciocnios preferveis so aqueles cuja concluso possvel, provvel, plausvel, mas no necessariamente verda-deira, porque as premissas sobre as quais ela se assenta no so logicamente verdadeiras. o silogismo dialtico ou retrico um exemplo desse tipo de raciocnio.

    os bancos antigos so slidos.

    Ora, X um banco antigo.

    Logo, X slido.

    Nesse caso, possvel, provvel, plausvel, mas no lo-gicamente verdadeiro, que X seja slido, uma vez que os bancos antigos no so necessariamente slidos. Nesse caso, a admisso de certas premissas e, portanto, de determinadas concluses depende de crenas e de valores.

    os raciocnios necessrios pertencem ao domnio da lgica e servem para demonstrar determinadas verdades. Os preferveis so estudados pela retrica e destinam-se a persuadir algum de que uma determinada tese deve ser aceita, porque ela mais justa, mais adequada, mais benfica, mais conveniente e assim por diante. Nos negcios humanos, no h, na maioria das vezes, verdades lgicas. Por exemplo: o aborto um direito ou um cri-me; a parceria civil de pessoas do mesmo sexo a reparao de uma situao de iniqidade ou uma aberrao; deve-se fazer o

    1 filho de nobre pai, eu tambm, quando era jovem, outrora, conser-vava a lngua inativa e as mos ocupadas. agora, tendo atingido a experincia, vejo que, entre os mortais, a palavra e no a ao que tudo conduz.

  • Semitica e retrica

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    que conveniente ou o que justo? Nenhuma dessas concluses logicamente verdadeira, porque elas dependem de valores, de crenas, de temores, de anseios, etc.

    A persuaso faz-se, segundo Ccero, pelo convencimento, quando se mobilizam argumentos para levar a aceitar uma tese; pela comoo, quando isso feito insuflando o estado de esp-rito do destinatrio, suas paixes, seus preconceitos, etc.; pelo encantamento, pelo deleite (1966, II, 28, 121). No plebiscito sobre a proibio da venda de armas de fogo, a campanha para o sim foi feita fundamentalmente pelo convencimento; a campanha para o no foi realizada basicamente pela comoo, jogando com a sensao de insegurana da populao.

    os argumentos so os raciocnios que se destinam a persu-adir, isto , a convencer ou a comover, ambos meios igualmente vlidos de conduzir admisso de determinada idia.

    Muitas cincias tm seus mitos fundadores. Conta Roland Barthes que a retrica surge, por volta de 485 a. C., depois que uma sublevao democrtica derrubou os tiranos da Siclia Gelon e Hieron, que, durante seu governo, tinham expropriado muitas terras com a finalidade de distribu-las a seus soldados. Depois da vitria dos insurretos, os proprietrios espoliados reclamaram a devoluo de suas propriedades. Esses processos mobilizavam grandes jris populares, que precisavam ser con-vencidos da justia da reivindicao. A eloqncia necessria para impelir o nimo dos jurados tornou-se objeto de ensino. os primeiros professores foram Empdocles de Agrigento, Crax, seu aluno em Siracusa e o que inaugurou a cobrana pelas lies ministradas, e tsias (BARTHES, 1975, p. 151). Foi Crax quem comeou a codificao das partes da oratio, criando uma retrica do sintagma (BARTHES, 1975, p. 151). Ele estabeleceu o plo sintagmtico da retrica, que a ordem das partes do discurso, a txis ou dispositio (BARTHES, 1975, p 153).

    a retrica , sem dvida nenhuma, a disciplina que, na Histria do ocidente, deu incio aos estudos do discurso. tira ela seu nome do grego rhseis, que quer dizer ao da falar, donde discurso. Rhetorik a arte oratria, de convencer pelo discurso. A emergncia da primeira disciplina discursiva traz consigo a conscincia da heterogeneidade discursiva. Com efei-to, desde o seu princpio, estava presente nos ensinamentos de Crax que todo discurso pode ser invertido por outro discurso, tudo o que feito por palavras pode ser desfeito por elas, a um discurso ope-se um contradiscurso. Conta-se que Crax disps-se a ensinar suas tcnicas a tsias, combinando com ele que seria pago em funo dos resultados obtidos pelo discpulo. Quando Tsias defendesse a primeira causa, pagar-lhe-ia se ga-nhasse; se perdesse, no lhe deveria nada. Terminadas as lies, o aluno entra com um processo contra o mestre. Nessa primeira demanda, ele ganharia ou perderia. Se ganhasse, no pagaria

  • Gragoat Jos Luiz Fiorin

    Niteri, n. 23, p. 9-26, 2. sem. 200712

    nada por causa da deciso do tribunal. Se perdesse, no deveria nada por causa do acordo particular entre eles. Crax constri seu contradiscurso, retomando a argumentao de tsias, mas invertendo-a. Se tsias ganhar o processo, deve pagar por causa do acordo particular; se perder, deve pagar por causa da deciso do tribunal. Nos dois casos, deve pagar (PLANTIN, 1996, p. 5).

    Os sofistas continuaram a impulsionar a nova disciplina. Devem-se a eles quatro noes discursivas:

    a) a antifonia, ou seja, a prtica sistemtica da oposio entre discursos: a cada discurso corresponde um outro discurso, produzido por um outro ponto de vista2;

    b) o paradoxo, que mostra que, diferentemente do que pensa o senso comum, a linguagem no transparente, sua ordem no homloga da realidade, ela tem uma ordem prpria, autnoma em relao realidade3;

    c) a probabilidade, ou seja, a idia de que, no que diz respeito s realidades humanas, no existe apenas o verdadeiro e o falso, o certo e o errado4;

    d) a dialtica, que conduz tese de que a interao discursiva a realidade em que se estabelecem as relaes sociais (PLANTIN, 1996, p. 6-7).

    Grgias de Leontium chegou a Atenas em 427. Foi professor de tucdides e o interlocutor de Scrates no dilogo de Plato que leva seu nome. Comea ele a discutir as figuras de retrica, fundando as bases do plo paradigmtico da retrica, a lxis ou elocutio (BARTHES, 1975, p. 152-153).

    Uma disputa grande entre a retrica, a dialtica e a filosofia est na base dessas trs disciplinas humansticas fundamentais. No Grgias, de Plato, ope-se Grgias a Plato, ou seja, a ret-rica filosofia. Uma discusso fundamental a diferena entre elas: a filosofia visa verdade, enquanto a retrica, ao resultado ( stochastik) e, por conseguinte, no pode ser uma techn (1935, 463a). Uma mediao entre as duas disciplinas provinha da dial-tica, que teve como figura emblemtica Scrates. Ao contrrio da retrica, ela, assim como a filosofia, considera basilar a distino entre o verdadeiro e o falso; mas, ao contrrio da filosofia, julga central a formulao dos conceitos. O ponto de vista de Scrates e da dialtica bem expresso no Mnon, de Plato: Ora, parece-me que o que caracteriza esse esprito (a dialtica) no somente dizer a verdade, mas tambm fundar seu dizer naquilo com que o interlocutor possa concordar (1935, 75d).

    Aqui entra uma questo fundamental para o analista do texto. Se a filosofia est voltada para a obteno da verdade e esta no relativa, a filosofia tem uma concepo no heterognea da linguagem. Na medida em que a retrica visa a resultados,

    2 Veja-se um exemplo de antifonia. Algum foi ferido por um dardo num ginsio. trata-se de saber quem o respon-svel. Ponto de vista 1: o responsvel quem lanou o dardo. Ponto de vista 2: o respons-vel a vtima, que no respeitou as instrues de segurana do gin-sio (PLANTIN, 1996, p. 6).3 Por exemplo: Tudo o que raro caro. Um cavalo barato raro. Portanto, um cavalo barato caro. Amor um fogo que arde sem se ver (CAMES, 1988, p. 270).4 Um exemplo. prov-vel que o homem tenha batido na mulher (pro-babilidade de primeiro nvel). No entanto, como a mulher sabe, em vir-tude da probabilidade de primeiro nvel, que as suspeitas vo recair sobre o homem, ela que bateu nele (proba-bilidade de segundo nvel). Esse conceito, como nota Plantin, mar-ca a emergncia de uma anlise dos esteretipos do comportamento hu-mano (1996, p. 9).

  • Semitica e retrica

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    seja por um caminho lgico, o do convencimento (fidem facere)5, seja pelo humor do auditrio, o da comoo (animos impellere) (BARTHES, 1975, p. 184), tem a ntida noo da heterogeneidade discursiva, da idia de que um discurso se constitui em oposio a outro discurso.

    a Retrica, de Aristteles, compreende trs livros. O pri-meiro trata do enunciador, de como ele concebe os argumentos, de como constri seu thos na enunciao; o segundo analisa o enunciatrio, como ele recebe os argumentos em funo do pthos; o terceiro estuda a mensagem, como se expressam os argumentos.

    a retrica antiga continha cinco operaes, embora so-mente as trs primeiras fossem realmente objeto de estudos mais acurados:

    1. inventio huresis invenire quid dicas

    2. dispositio txis inventa disponere

    3. elocutio lxis ornare verbis

    4. actio hypcrisis agere et pronuntiare

    5. memoria mnme memoriae mandare

    (BARTHES, 1975, p. 182)6

    a retrica conhece grande importncia em roma, com Ccero, Quintiliano, etc.

    Na Idade Mdia, a base de toda a educao o septennium, que prepara para a teologia, que reina soberana sobre as sete artes liberais, smula do conhecimento humano desinteressa-do. Essas artes so divididas em dois grupos: um que estuda a linguagem, o trivium (gramtica, dialtica e retrica) e outro que perscruta a natureza, o quadrivium (msica, aritmtica, geometria e astronomia).7 A retrica a arte do discurso eficaz (ars bene dicendi)8. Ao longo de dez sculos, a proeminncia passou de uma para outra das disciplinas do trivium. No entanto, sempre se manteve uma conscincia da heterogeneidade discursiva. Por exemplo, a disputatio, com seus sic et non, sed contra, respondeo, o exerccio de construo de discursos contraditrios sobre uma dada tese, um exerccio em que um discurso se constri em oposio a outro discurso.

    Mais tarde, a retrica torna-se apenas um estudo de figuras (GENEttE, 1975, p. 129-146), cai num quase total esquecimento, perde o prestgio de que desfrutava e relegada a segundo plano. Lembremo-nos da clebre afirmao de Victor Hugo: Guerre la rhtorique, paix la syntaxe.

    Se, de um lado, verdade que a retrica foi tomada do que Genette denominou fria de nomear (1972, p. 17), o que con-duziu elaborao de taxionomias cada vez mais exaustivas de

    5 interessante no-tar que fides significa a credibilidade, o que demonstra o carter ideolgico da interpre-tao, uma vez que o crer precede o saber (GrEIMaS, 1983, p. 115-134). Cf., por exemplo, nas Metamorfoses, de Ovdio: at ille/ dat ge-mitus fictos commen-taque funera narrat/ et lacrimae facere fidem (VI, 564-566) (porm ele (tereo) emite gemidos fingidos e narra-lhe uma morte imaginria e as lgrimas deram credi-bilidade).6 Como nota Barthes, a inventio o ato de encon-trar argumentos e no de invent-los. Extraem-se argumentos de um lugar (tpos), onde j esto (1975, p. 183). 7 a estrutura do sep-tennium codificada no sculos V e VI por Marciano Capella, com base numa alegoria: as npcias de Mercrio e da Filologia. Esta prometida quele e re-cebe como presente de casamento as sete ar-tes liberais, cada uma apresentada com seus smbolos. a Gramtica uma velha senhora, trajando roupas roma-nas e portando um pe-queno cofre, com uma lima e uma faca para corrigir as faltas dos filhos. A Retrica uma bela mulher, com vestes ornadas, empunhando armas para ferir os ad-versrios (BARTHES, 1975, p. 164).8 Nota rener que, en-quanto a retrica era chamada ars bene di-cendi, a gramtica era a ars recte dicendi e a dialtica, a ars vere dicendi (1989, p. 147).

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    casos particulares; de outro, tambm certo que buscou estudar, com bastante preciso, os mecanismos discursivos que permitem provocar ou incrementar a adeso dos espritos s teses que lhes so apresentadas (PERELMAN, 1970, p. 25). Hoje, embora concordemos integralmente com o enunciado que expe o obje-tivo da retrica, apresent-lo-amos em outra linguagem: estuda os procedimentos discursivos que possibilitam ao enunciador produzir efeitos de sentido que permitem fazer o enunciatrio crer naquilo que foi dito. As diferentes teorias do discurso de-vem herdar a retrica no estudo dos procedimentos discursivos, levando em considerao sculos de estudos j realizados.

    Que significa herdar a retrica? L-la luz dos proble-mas tericos enunciados na atualidade. Quando se disse que a concepo da heterogeneidade lingstica j estava presente na criao da retrica, no se quis dizer que a retrica uma prefigurao da Anlise do Discurso, pois uma viso teleolgi-ca da cincia no se sustenta. O que se estava fazendo ler os temas abordados pela retrica sob a tica das questes tericas modernas.

    Claude Zilberberg observa que o problema da afetividade, do sensvel foi deixado de lado na constituio da lingstica. Isso correspondeu a sua desretorizao (2006, p. 179). A semitica narrativa e discursiva tem como fontes principais a lingstica, a antropologia estrutural e a narratologia de Propp. Buscou tambm contribuies na fenomenologia e na psicanlise. No entanto, ignorou a retrica. Hoje preciso voltar retrica e incorpor-la semitica. Para Zilberberg, isso corresponde incluso dos afetos na teoria, ao abarcamento da dimenso es-tsica do discurso. Afinal, a retrica tinha entre seus objetivos, no apenas docere ou probare, que concerne ao componente inte-ligvel do discurso, mas tambm delectare ou placere e movere ou flectere (CCERO, 1921, I, 21, 69; QUINTILIANO, 1980, XII, 2, 11), que dizem respeito ao componente afetivo do discurso.

    a semitica tensiva, um dos ltimos desenvolvimentos te-ricos da semitica9, busca construir um modelo para descrever os fenmenos contnuos, diretamente associados ao universo sens-vel. Depois da importncia que o primeiro estruturalismo deu descontinuidade, preciso agora dar lugar continuidade, pois essas so as duas maneiras pelas quais o sentido se apresenta. Na verdade, o que pertinente nessa orientao da semitica a direo da continuidade, ou seja, o aumento e a diminuio. Por isso, d-se um espao particular ao aspecto, que no seno a anlise do devir ascendente ou descendente de uma intensida-de (ZILBERBERG, 2006, p. 167). Se se fala em devir, leva-se em conta a velocidade e o andamento. Com efeito, uma semitica dos acontecimentos deve mostrar o papel relevante dos anda-mentos no s no sistema, mas tambm no processo. todas as grandezas lingsticas analisam-se em termos de intensidade e

    9 Nossa exposio so-bre a semitica tensiva tributria de Fontanille; Zilberberg (2001) e Zil-berberg, (2006).

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    de extensidade. Tensividade a categoria semntica que engloba esses dois termos em oposio. O primeiro o lugar da afetivi-dade, dos estados de alma, do sensvel; o segundo, o dos estados de coisas, do inteligvel (ZILBERBERG, 2006, p. 167). Essas duas articulaes da tensividade constituem valncias e a associao de uma valncia intensiva com uma extensiva produz o valor. A intensidade, por sua vez, articula-se em duas subdimenses: o andamento e a tonicidade; a extensidade, tambm em duas: a temporalidade e a espacialidade. A intensidade concerne fora, energia presente numa grandeza, enquanto a extensidade diz respeito extenso do campo controlado pela intensidade no tempo e no espao.

    Essas duas valncias mantm relaes conversas (quanto mais... mais; quanto menos... menos) ou inversas (quanto mais... menos; quanto menos... mais). Por exemplo, diz o provrbio que o amor faz passar o tempo e o tempo faz passar o amor. Note-se que o anexim mostra que h uma relao inversa entre intensida-de e temporalidade (quanto mais intenso o amor menos longo o tempo; quanto mais longo o tempo menos intenso o amor). o produto do andamento e da tonicidade um valor de impacto, ou seja, da superlatividade; o resultado da maior expanso no espao com a maior extenso no tempo um valor de universo, uma universalidade. Entre os valores de impacto, de absoluto, e valores de universo existem tanto relaes conversas como inversas. Se elas forem conversas, a um aumento dos valores de absoluto corresponde uma ampliao dos valores de universo e a mesma coisa ocorre com a diminuio; se elas forem inversas, a um arrefecimento dos valores de absoluto equivale um acrscimo dos valores de universo e assim sucessivamente.

    Essas consideraes so suficientes para explicar os objeti-vos da semitica tensiva. Vamos agora mostrar como ela incorpo-ra a retrica. a retrica antiga era geral, pois comportava tanto uma dimenso tropolgica como uma dimenso argumentativa. Alis, essa diferena s faz sentido atualmente, j que para os antigos os tropos eram formas de argumentar. Pouco a pouco, ocorre o que Genette chama a reduo tropolgica (In: COHEN, 1975, p. 131). Diz Perelman que a retrica dita clssica, que se ope antiga, tinha-se reduzido a uma retrica das figuras, consagrando-se classificao das diferentes maneiras como se podia ornar o estilo (1977, p. 10). Paulatinamente, criam-se duas retricas, uma da argumentao e uma das figuras (KLINKENBERG apud MEyEr, 1990, p. 115-137). a semitica tensiva procura integrar ambas, no seu campo terico.

    Vamos dar alguns exemplos dessa incorporao da retrica na semitica. O que preciso notar que esta necessita expli-car os fenmenos sobre os quais aquela se debrua, a partir de seus pressupostos tericos e no daqueles da ars [...] bene dicendi (QUINTILIANO, 1980, II, 17, 37)10.

    10 Quintiliano, desde o incio de sua obra fala em ratio dicendi, cincia ou arte do dizer (I, Pr, 1) e define a retrica tambm como bene di-cendi scientia (II, 15, 34), determinando seu fim e sua eficcia ltima no simples falar bem, ou seja, falar com eficcia: finis eius et summum est bene dicere (II, 15, 38).

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    Para uma semitica das figuras

    Tomemos um exemplo para mostrar que a semitica no pode aceitar certos postulados da retrica. todos os manuais de retrica aludem dificuldade de sistematizar as figuras de pensamento (Cf. LAUSBERG, 1976, v. 2, p. 190). Lausberg e o grupo de Lige (DUBOIS et al., 1974, p. 174-201), por exemplo, apesar de suas diferenas, partem do mesmo fundamento para estabelecer uma organizao dessas figuras e de todas as ou-tras: a quadripertita ratio, que se compunha de quatro operaes, adiectio, detractio, immutatio e transmutatio (QUINTILIANO, 1980, I, 5, 38-41). No entanto, assim que comeam a sistematiz-las, diversas dificuldades se apresentam. Uma delas o fato de uma figura poder ser constituda de outra ou de outras figuras. Por exemplo, uma anttese pode constituir-se de duas hiprboles (DUBOIS et al., 1974, p. 191). Isso significa que essas duas figuras no pertencem mesma ordem de fenmenos, mas a domnios distintos de fatos.

    O grupo de Lige, em sua Retrica geral, parte do princ-pio de que as figuras constituem desvios (DUBOIS et al., 1974, p. 62-64). Ao estudar os metalogismos (as chamadas figuras de pensamento), defende que o critrio para perceb-los uma referncia necessria a um dado extralingstico, pois eles se fundam no espao exterior que se estabelece entre o signo e o referente. S o conhecimento da realidade permite apreend-los. O metalogismo consiste numa falsificao ostensiva da correspondncia entre o signo e o referente, transgride a re-lao normal entre o conceito e a coisa significada, contesta a verdade dos fatos. A norma em relao qual o metalogismo um desvio constitui a verdade do referente (DUBOIS et al., 1974, p. 174-187). Alm disso, o metalogismo sempre particular, est sempre ligado a um circunstancial egocntrico e, por isso, nunca aparece dicionarizado (DUBOIS et al., 1974, p. 174-177).

    preciso admitir que os efeitos de sentido produzidos pelos chamados metalogismos so sempre circunstanciais e, portanto, nunca dicionarizados. Isso ocorre porque pertencem perfrmance discursiva, estando ligados, por conseguinte, ao ego-hic-nunc da enunciao.

    Entretanto, no possvel aceitar a tese de que os meta-logismos constituam um desvio em relao a um referente, a um dado extralingstico, e que sua norma seja a verdade dos fatos, pois isso seria admitir que os discursos se constroem so-bre a realidade e no sobre outros discursos e que existe uma homologia entre a ordem do discurso e a do mundo. Esses pres-supostos contrariam os princpios tericos em que se assenta a semitica. Ademais, a prpria noo de desvio extremamente problemtica, na medida em que pressupe uma norma dada

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    como algo natural. Na verdade, tanto norma como desvio so efeitos de sentido gerados pelo discurso.

    Figuras da mistura e da triagem Fontanille e Zilberberg mostram que os valores tomam

    forma e circulam no discurso, levando em conta o princpio de excluso e o da participao (2001, p. 27). Esses princpios criam dois grandes regimes de funcionamento das grandezas discur-sivas. O primeiro o da excluso, cujo operador a triagem. Nele, quando o processo atinge seu termo, leva confrontao do exclusivo e do excludo. As grandezas reguladas por esse regime confrontam o puro e o impuro. O segundo regime o da participao, cujo operador a mistura, o que leva ao con-fronto do igual e do desigual. A igualdade pressupe grande-zas intercambiveis; a desigualdade implica grandezas que se opem como superior e inferior (FONTANILLE; ZILBERBERG, 2001, p. 29).

    a triagem e a mistura variam em termos de tonicidade: tona e tnica. H triagens mais ou menos drsticas e misturas mais ou menos homogneas, o que daria o seguinte esquema (FONTANILLE; ZILBERBERG, 2001, p. 33):

    triagem Mistura

    Tnica unidade/nulidade universalidade

    tona totalidade diversidade

    Cada um desses regimes opera com um tipo de valor dife-rente: o da triagem cria valores de absoluto, que so valores da intensidade; o da mistura, valores de universo, que so valores da extensidade (FONTANILLE; ZILBERBERG, 2001, p. 53-54).

    O discurso opera, em qualquer gnero, com triagens e mis-turas. Numa sintaxe extensiva, triam-se as misturas, visando a um valor de absoluto, e misturam-se as triagens, visando a um valor de universo (ZILBERBERG, 2006, p. 192-193). Metfora e metonmia so dois processos de transferncia semntica. Nelas, sempre um sentido substitui outro. A metfora constri-se com a mistura de duas grandezas, que, no caso, so duas isotopias, que mantm entre si uma relao de analogia, de similari-dade, de interseco. No poema Jogos frutais, de Joo Cabral, estabelece-se uma analogia entre as isotopias da feminilidade e das qualidades sensoriais das frutas (MELO NETO, 1994, p. 262-268). A metonmia realiza a triagem de um trao para deno-tar um dado significado. Esse trao pertence mesma isotopia do significado expresso, havendo entre os dois sentidos uma relao de implicao: contigidade, coexistncia, pertena, na metonmia em sentido estrito, ou incluso e englobamento, na

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    sindoque, que um tipo de metonmia11. No entanto, lembra Jakobson que, em poesia, toda metonmia ligeiramente me-tafrica e toda metfora tem um matiz metonmico (1969, p. 149), ou seja, toda triagem contm uma mistura e toda mistura encerra uma triagem.

    No soneto a vaidade, Fbio, nesta vida, de Gregrio de Matos (apud CANDIDO; CASTELLO, 1973, p. 73-74), o poeta explica o que a vaidade por meio de trs metforas: rosa, planta e nau. Nos dois quartetos e no primeiro terceto, expe a analogia que fundamenta essas figuras. No ltimo terceto, pergunta-se Mas ser planta, ser rosa, nau vistosa, / De que importa, se aguarda sem defesa / Penha a nau, ferro a planta, tarde a rosa? Penha (causa) significa naufrgio (efeito); ferro (instrumento = ma-chado, indicado pelo material de que feito) quer dizer corte (ao); tarde (momento) denota o fenecer (acontecimento). So trs metonmias, que, ao contato com as metforas do texto, metaforizam-se e passam a significar morte. Amalgamam-se as isotopias do humano e do no humano e a triagem passa a conter uma mistura. o soneto trata dos temas da inutilidade da vaidade diante da fugacidade da vida e da inexorabilidade da morte.

    Estamos acostumados a considerar a metfora e a meto-nmia figuras de palavras. No entanto, no relevante na sua determinao a dimenso em que operam. Podem, portanto, ter a dimenso de uma palavra, de uma frase, de um texto (veja-se, por exemplo, o texto Um aplogo, de Machado de assis). alm disso, se essas duas figuras funcionam com a mistura ou a tria-gem isotpica, pode-se dizer que as diferentes leituras que um texto admite tambm so metafricas ou metonmicas. A parte final do poema Alguns toureiros, de Joo Cabral, em que se fala de Manuel Rodriguez, permite pelo menos trs leituras: a do tourear, a do poetar e a do viver no Nordeste brasileiro. Essas leituras relacionam-se metaforicamente, pois h uma interseo de sentido entre elas: a conteno das emoes. as anedotas, as frases maliciosas, de duplo sentido, os textos humorsticos jogam tambm com dois planos de leitura. Neles, l-se o que pertence a um plano em outro. Muitas vezes, a relao entre os dois planos de leitura metonmica, porque os diferentes sentidos triados, selecionados, coexistem num mesmo lexema ou numa mesma expresso.

    A metfora e a metonmia no so processos apenas da linguagem verbal (JAKOBSON, 1969, p. 63). Em todas as outras linguagens (a pintura, a publicidade, etc.) usam-se metforas e metonmias. os signos de orientao de usurios em locais pbli-cos ou nas estradas (indicao de restaurantes, de banheiros, etc.) so em geral metonmicos. o caso de uma placa com talheres, que indica a existncia de um restaurante, ou com uma cama, que aponta para a presena de um lugar para alojar-se. Nesse

    11 observe-se o predi-cado cujo objeto direto duas garrafas, nas frases o vinho era to bom que ele bebeu duas gar-rafas e O vinho era to bom que ele comprou duas garrafas: no pri-meiro caso, temos uma metonmia, porque o continente expressa o contedo, ele bebeu o vinho contido em duas garrafas e, nesse caso, temos uma relao de coexistncia; no segun-do caso, temos uma sindoque, porque a parte denota o todo, ele comprou o vinho em seu recipiente e, nesse caso, temos uma relao de incluso.

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    caso, houve a triagem de um elemento para significar outro. O quadro Guernica, de Picasso, metonmico. Ele constitudo de elementos que se implicam para mostrar o horror da guerra. J o quadro Sono, da Dali, metafrico. Nele, mostra-se uma cabea segura por frgeis forquilhas.

    Como mostra Jakobson, todos os processos simblicos humanos, sejam eles sociais ou individuais, organizam-se meta-frica e metonimicamente (1969, p. 65-66). Agatha Christie criou dois detetives que tm grande importncia em sua obra porque aparecem como figuras-chave em vrios romances: Poirot e Miss Marple. o processo de descoberta dos dois completamente diverso. o de Poirot metonmico: a partir de um dado indcio, ele reconstri o crime, por meio de uma srie de implicaes. Comea por uma triagem. O de Miss Marple metafrico: ela percebe analogias entre o crime que est investigando e um outro j ocorrido. Ela mistura os diferentes crimes. Termina sempre afirmando que o mal sempre igual12.

    Jakobson sugere que os tpicos de um texto podem encade-ar-se metafrica e metonimicamente (1969, p. 61), o que significa que tambm a progresso textual pode ser metafrica ou meto-nmica. o que se observa, por exemplo, no primeiro captulo de O guarani, de Jos de Alencar, em que relaes de analogia (portanto, misturas) vo construindo a progresso textual. J o incio do primeiro captulo de O cortio, de Alusio Azevedo, em que se apresentam a figura de Joo Romo, uma relao de causa e conseqncia, bem como uma de sucesso (portanto, triagem) que presidem evoluo do texto.

    As misturas e triagens ocorrem em diferentes nveis e de diversas maneiras na constituio de distintas grandezas discursivas. o procedimento chamado enumerao catica a mistura num texto de elementos sem nenhuma relao aparente entre si para produzir um dado efeito de sentido. Alberto Caei-ro, heternimo de Fernando Pessoa, vale-se dessa construo bastante utilizada por Whitman, para exprimir o dinamismo e a simultaneidade da vida moderna: Obter tudo por suficincia divina -/ As vsperas, os consentimentos, os avisos,/ As cousas belas da vida -/ O talento, a virtude, a impunidade,/ A tendncia para acompanhar os outros a casa,/ A situao de passageiro/ A convenincia em embarcar j para ter lugar,/ E falta sempre uma coisa, um copo, uma brisa, uma frase,/ E a vida di quanto mais se goza e mais se inventa (PESSOA, 1969, p. 306).

    O oxmoro a mistura, numa nica grandeza, de elementos semnticos contrrios ou contraditrios. o caso do verso o mito o nada que tudo, de Fernando Pessoa (1959, p. 25); da definio do sertanejo como Hrcules-Quasmodo, feita por Euclides da Cunha (1982, p. 81); da expresso inocente culpa, presente no poema Elegia a uma pequena borboleta, de Ceclia Meireles (1985, p. 318); dos versos Foste tu que partiste,/ - Meu

    12 Talvez pudssemos tirar concluses sobre os esteretipos sociais a respeito dos papis tradicionais da mulher e do homem, quando vemos, na obra da escri-tora inglesa, que este ra-ciocina por implicaes e aquela, por analogia.

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    amargo prazer, doce tormento!, do poeta Carlos Queirs (1950, p. 64); no verso Aquela triste e leda madrugada do soneto 19, de Cames (1988, p. 272).

    A palavra-valise a mistura de duas palavras, para expri-mir uma realidade em que os conceitos designados pelos dois termos se acham inextricavelmente ligados. o que ocorre no poema Jaguadarte, de Lewis Carroll (1980, p. 197).

    A antanclase uma figura da triagem, pois a retomada de uma palavra em acepes diferentes no mesmo enunciado; nela selecionam-se e distinguem-se os diferentes sentidos. Um exemplo clssico a famosa mxima de Pascal O corao tem razes que a prpria razo desconhece. Em Cames, h o verso Novos mundos ao mundo iro mostrando (II, 45, 8).

    Figuras da valncia da intensidadeH uma srie de figuras que se colocam na valncia da

    intensidade: na subdimenso da tonicidade, aparecem, por exemplo, a hiprbole, que tnica, e o eufemismo, que tono. Outras figuras constroem-se no processo de decadncia, ou seja, de atenuao, ou de ascendncia, ou seja, de tonificao. A grada-o ascendente mostra um processo de aumento da tonicidade: [...] os vales aspiram a ser outeiros, e os outeiros a ser montes, e os montes a ser Olimpos e a exceder as nuvens (VIEIRA, 1959, t. 11, p. 372); Deu sinal a trombeta castelhana / Horrendo, fero, ingente e temeroso (CAMES, 1988, IV, 28, 1-2).

    O texto abaixo, retirado do Sermo histrico e panegrico nos anos da Rainha D. Maria Francisca Isabel de Sabia, de Vieira, constitudo de uma srie de gradaes ascendentes. Para ficar apenas numa delas, observe-se que o orador diz que a guerra um monstro que se sustenta das fazendas, do sangue, das vidas. a gradao mostra a ordem crescente dos prejuzos que a guerra causa: acaba com os bens materiais, deixa pessoas feridas e mutiladas, tira vidas.

    Comeando pela desconsolao da guerra, e guerra de tantos anos, to universal, to interior, to contnua: oh que temerosa desconsolao! a guerra aquele monstro que se sustenta das fazendas, do sangue, das vidas, e quanto mais come e consome, tanto menos se farta. a guerra aquela tempestade terrestre, que leva os campos, as casas, as vilas, os castelos, as cidades, e talvez em um momento sorve os reinos e monarquias inteiras. a guerra aquela calamidade composta de todas as calami-dades, em que no h mal algum, que, ou se no padea, ou se no tema; nem bem que seja prprio ou seguro. O pai no tem seguro o filho, o rico no tem segura a fazenda, o pobre no tem seguro seu suor, o nobre no tem segura a honra, o eclesistico no tem segura a imunidade, o religioso no tem segura sua cela; e at Deus nos templos e sacrrios no est seguro. (1959, t. 14, p. 361)

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    Figuras da valncia da extensidade

    O procedimento de construo de determinadas figuras a extenso de determinadas grandezas lingsticas no tempo ou no espao. Se a expanso ser no tempo ou no espao, depende da natureza da linguagem em que se constitui a figura. Como a linguagem verbal se manifesta no tempo, ser temporal a extenso supramencionada. Na pintura, seria ela, em princpio, espacial.

    A assonncia e a aliterao so expanses, respectivamente, de um determinado fonema ou trao voclico ou de um dado fonema ou trao consonntico. No poema A onda, de Manuel Bandeira (1983, p. 354), aliteraes e assonncias contribuem para recriar, no plano de expresso, o movimento das ondas. A expanso da nasalidade, ao longo de todo o soneto Ho de chorar por ela os cinamomos, de Alphonsus de Guimaraens (1960, p. 258), cria o efeito de sentido de plangncia.

    O homeoteleuto a extenso de finais iguais de palavras colocadas umas junto das outras: A memria trazia-lhe o sabor do perigo passado. Eis aqui a terra encoberta, os dous filhos nados, criados e amados da fortuna (Assis, 1979, p. 974).

    A extenso pode dar-se com quaisquer grandezas lin-gsticas o caso de amplificao, em que se expande um determinado significado, por meio de formulaes lingsticas diversas, em geral sinnimas, com a finalidade de dar nfase idia desenvolvida. Nesse caso, ocorre uma correlao conversa entre a extenso no tempo e a tonicidade. A maior expanso temporal corresponde a uma maior tonicidade. o que acon-tece num passo do livro Leo-de-chcara, de Joo Antnio, em que a enumerao de uma enorme lista de sinnimos do termo dinheiro d nfase s dificuldades da infncia da personagem (1975, p. 63-64).

    H um trecho clebre de A cantora careca, de Ionesco, deno-minado O resfriado (1993), em que se faz uma amplificao das indicaes das relaes de parentesco por meio de uma constru-o recursiva. No entanto, o absurdo consiste no fato de que nela h uma relao inversa entre extenso e tonicidade: a uma extenso imensa no tempo no corresponde nenhum significado, h uma absoluta atonia de sentido, pois toda longussima enu-merao das relaes de parentesco serve para afirmar que uma dada pessoa pegava, s vezes, no inverno, como todo mundo, um resfriado (1954, p. 61-63). Essa pea baseada num manual de conversao franco-ingls e, portanto, como em todos os di-logos construdos para aprender vocabulrio, o sentido o que menos importa. o que conta realmente que uma palavra seja pretexto para o aparecimento de outra. E, por isso, muitas frases so absolutamente despropositadas no contexto.

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    Argumentos implicativos e concessivosComo se mostrou acima, a retrica, alm de sua vertente

    tropolgica, tem tambm um lado argumentativo. a argumen-tao opera com implicaes e concesses. a lgica implicativa a de fazer o que se pode (fez, porque possvel; no fez, porque no possvel); a concessiva a da impossibilidade (fez, apesar de no ser possvel; no fez, apesar de ser possvel). A implicao fala das regularidades, a concesso rompe as expectativas e d acesso descontinuidade do que marcante na vida (ZILBER-BERG, 2006, p. 196-197).

    os argumentos repertoriados pela retrica so majorita-riamente implicativos. Entram nesse rol, por exemplo, todos os argumentos causais: os que indicam causas mediatas e imediatas, os que evocam causas imediatas para ocultar as mediatas; os que minimizam as causas imediatas para tirar a responsabi-lidade do presente; os que apontam as causas finais. Num dos seus Sermes do Mandato, Vieira define o amor fora da lgica implicativa. Se ele tiver causa (porqu), no amor; se ele tiver finalidade (causa final: para qu), no amor:

    Definindo S. Bernardo o amor fino, diz assim: Amor non qua-erit causam, nec fructum. O amor fino no busca causa nem fruto. Se amo, porque me amam, tem o amor causa; se amo, para que me amem, tem fruto: e amor fino no h de ter porqu, nem para qu. Se amo, porque me amam, obrigao, fao o que devo; se amo, para que me amem, negociao, busco o que desejo. Pois como h de amar o amor para ser fino? Amo, quia amo, amo, ut amem: amo, porque amo, e amo para amar. Quem ama porque o amam, agradecido, quem ama, para que o amem, interesseiro: quem ama, no porque o amam, nem para que o amem, esse s fino. E tal foi a fineza de Cristo, em respeito a Judas, fundada na cincia que tinha dele e dos demais discpulos. (1959, t. 4, p. 336)

    Podem-se tambm estudar os argumentos do ponto de vista da articulao dos mecanismos de mistura ou de triagem. Todos os que se fundam na analogia, por exemplo, so argu-mentos de mistura. So argumentos da triagem, por exemplo, o chamado argumento da partio, em que se separa cada um dos aspectos de uma idia complexa para fins argumentativos.

    ConclusoOs exemplos dados constituem uma plida idia do que

    pode fazer a semitica para incorporar no seu arcabouo te-rico as aquisies da retrica. Seria preciso, no entanto, ao final, responder uma objeo que pode ter surgido na mente dos que lem este texto: o que a semitica est fazendo ape-nas estabelecer novos princpios de classificao. Sim e no. Ela est determinando, de acordo com suas bases tericas, os princpios de construo de argumentos e figuras e, por isso

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    mesmo, classificando-os. No entanto, cabe lembrar que o que as teorias devem fazer tornar-se cada vez mais compreensivas, explicando, da mesma maneira, fenmenos cujas relaes no eram percebidas. O que faz a semitica tensiva mostrar que todas as grandezas lingsticas, sejam elas conceitos sobre a realidade, tropos, argumentos, etc., constroem-se segundo os mesmos princpios. Por exemplo, a metonmia, os argumentos fundados na partio, mas tambm a matria de um sermo (por exemplo, Vieira, no Sermo da Sexagsima, diz que a homilia deve ter um s assunto) so definidos pelo mecanismo da triagem. A metfora, os argumentos baseados na analogia, mas tambm os princpios que regem a cultura brasileira so determinados pelo procedimento da mistura. Com efeito, a cultura brasileira sempre se descreveu como uma cultura da mistura. Louva-se a tendncia brasileira assimilao do que significativo e im-portante das outras culturas. No sem razo que Oswald de Andrade erigiu a antropofagia como o princpio constitutivo de nossa cultura (1990). Com Casa grande e senzala, de Gilberto Freyre (1954), comea-se a considerar eufrica a mistura: a colo-nizao portuguesa vista como tolerante, aberta, o que levou mestiagem racial, que no ocorreu nos lugares de colonizao inglesa ou francesa, por exemplo. O Brasil celebra a mistura da contribuio de brancos, negros e ndios na formao da nacio-nalidade, exaltando o enriquecimento cultural e a ausncia de fronteiras de nossa cultura. De nosso ponto de vista, o mistu-rado completo; o puro incompleto, pobre. Observe-se que se est falando de autodescrio da cultura brasileira. H ento todo um culto mulata, representante por excelncia da raa brasileira; do sincretismo religioso, sinal de tolerncia; do con-vvio harmnico de culturas que se digladiam em outras partes do mundo, como a rabe e a judaica.

    a incorporao da retrica semitica implica descrever os procedimentos retricos por meio de princpios mais amplos do que aqueles ento utilizados e, ao mesmo tempo, uma recusa a pontos de vista que no estejam de acordo com as base tericas sobre as quais se erigiu a semitica.

    AbstractIn this paper, after showing that rhetoric studies the discursive procedures that allow the enunciator to produce effects of meaning that permit the enunciatee to be-lieve what is said, I show that the different theories of discourse should inherit Rheto-ric, taking into account centuries of studies already developed. By inherit Rhetoric I mean that it should be read in light of the

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    theoretical problems currently addressed, and that the issues approached by rhetoric should be investigated from the perspective of the questions raised by modern theories. Following that, I examine the way French Semiotics has been addressing the so-called Rhetoric of Figures and Argumentative Rhetoric, in a process of theoretical incor-poration of the tools of ancient rhetoricians. I show figures and arguments of mixture and of triage, figures of valence of intensity, figures of valence of extent, as well as im-plicative and concessive arguments.

    Keywords: Figures of mixture. Figures of triage. Intensity. Extent. Implication Concession.

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    Recebido 20, jul. 2007/Aprovado 20, set. 2007

    ResumoReviso da histria recente da lingstica do ponto de vista dos desenvolvimentos contem-porneos desta disciplina: o amadurecimento das cincias cognitivas (especialmente das tecnologias da informao e das neurocin-cias) determina uma profunda reorganizao metodolgica das prticas disciplinares da Lingstica, vetoriadas agora para a interdis-ciplinaridade, para o trabalho em equipe e para o compromisso de verificao emprica de suas anlises, a partir de evidncias teoricamente independentes. Palavras-chave: Histria da lingstica. Desenvolvimentos disciplinares. Cincias cognitivas. Tecnologias da informao. In-terdisciplinaridade.

    Lanterna na proa:sobre a tradio recente nos

    estudos da lingsticaMaria Margarida Martins Salomo

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    1. Reler a tradio tarefa indispensvel a todos ns que nos aventuramos pelos mares da lingstica. To volumosa e dispersiva a produo contempornea que se torna difcil ao navegador achar um norte. assim, tentador proceder como o memorialista e acender uma lanterna na popa. Afinal, a filoso-fia ensina que a ave de Minerva s ala seu vo ao entardecer. De histrias, mesmo recentes, os estudos da linguagem esto, entretanto, bem servidos. Resta, ento, fazer um balano com o atrevimento da profecia. Deslocar o foco para a frente e contar o que aconteceu do ponto de vista do que ainda vai acontecer.

    Nenhum profeta, no entanto, prescinde de um ponto de vista. A mim, o que me d rgua e compasso a minha forma-o em lingstica cognitiva e o meu gosto (decorrente) pela sintaxe e pela semntica. Mais especificamente, pela semntica da sintaxe.

    No pretendo, portanto, fazer justia. Fazer justia no da natureza do desenvolvimento de nenhum campo disciplinar, que, simplesmente por s-lo, configura-se como rea especfica de disputa e exerccio de poder. Haja vista, no estreito escopo da lingstica americana, a magra fortuna crtica da lingstica de Sapir frente de Bloomfield, tornada definidora do programa analtico hegemnico nos Estados Unidos; mais infausta ainda a sorte de Sidney Lamb, um lingista brilhante, completamente eclipsado pelo sistema solar chomskyano. Uma boa ilustrao das peculiaridades destes processos sociais que se expressam como debates tericos o livro de Geoffrey Huck e John Gol-dsmith, publicado em 1995, Ideology and linguistic theory: Noam Chomsky and the deep structure debates.

    No presente texto pretendo enunciar e desenvolver trs teses gerais, fortemente interrelacionadas:

    A lingstica do sculo XX um enorme sucesso como empreendimento poltico e cientfico.

    O advento das novas tecnologias da informao e a consolidao do jovem campo das cincias cognitivas, especialmente das neurocincias, criam para as prticas disciplinares cannicas uma tenso insuportvel.

    Procede da um redesenho disciplinar da lingstica entre os estudos da linguagem.

    2. Em outro escrito, que tive a satisfao de comparti-lhar com o grande lingista brasileiro Luis Antnio Marcuschi (MARCUSCHI; SALOMO, 2004, p. 13-26), propomos que uma marca dos estudos lingsticos do sculo XX a sua dilemati-zao entre as lingsticas do significante e as lingsticas da significao. No cabe dvida que, neste cenrio, as lin-gsticas do significante se estabeleceram como amplamente hegemnicas e majoritrias. Nos termos postos,

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    [... ] as lingsticas do significante, herdeiras das principais tradies pr-estruturalistas (dos comparatistas e neo-gra-mticos), dos estruturalistas e gerativistas, so desde logo as mais exitosas e respondem pelo sucesso acadmico-poltico da lingstica como campo disciplinar. Incluem em sua folha de servios prestados a reivindicao da oralidade como objeto de estudo, a descrio de um nmero considervel de lnguas das mais diferentes famlias genticas e tipolgicas, a iden-tificao de fenmenos nos planos fnico e morfossinttico, dantes jamais vislumbrados, o desenvolvimento de poderosas metalinguagens para tratar teoricamente seu objeto [... ]. (p. 24-5)

    De fato, foi a anlise formal da linguagem (transforma-da, com a emergncia da lingstica gerativa, em anlise da linguagem como sistema formal) que produziu a autonomia disciplinar da lingstica, por ter sido capaz de demonstrar a possibilidade de estudar a linguagem como sistema descontex-tualizado (ou como competncia modular).

    Desde ento, o treinamento bsico de um lingista supe o reconhecimento de unidades sistemticas identificadas via oposies distintivas (manifestadas atravs de pares mnimos) e o estabelecimento de categorias sintagmticas via regularidades distribucionais (atravs dos testes bem conhecidos da substi-tuio, do deslocamento e da coordenao). a partir dos anos cinqenta do sculo passado, esta heurstica passou a assumir de forma programtica a participao de julgamentos introspectivos sobre a boa-formao das expresses-objeto da anlise.

    Esta metodologia levou descrio circunstanciada de vinte por cento do total das lnguas hoje conhecidas (um feito significativo considerada a brevidade do empreendimento). Muitas das lnguas investigadas careciam de expresso escrita e apresentavam caractersticas inteiramente distintas das famlias lingsticas cujo estudo alimenta a tradio dos estudos gramati-cais do ocidente. Sua descrio constituiu, portanto, importante ampliao do conhecimento cientfico sobre a linguagem. Basta lembrar que os principais insights sobre a semntica do movimen-to (a proposio dos esquemas imagticos e sensrio-motores que constituem a tabela peridica desta semntica) devem-se anlise feita por Leonard Talmy de uma lngua californiana, o Atsugewi, que apresenta um repertrio formidvel de afixos lexicalizadores do movimento (vide TALMY, 1972, 1975, 2000).

    Este mesmo esforo compreende o florescimento dos estu-dos da variao da linguagem, que, sob a liderana de William Labov, seus alunos e interlocutores, conheceu patamar indito de sofisticao metodolgica e abrangncia descritiva, sempre confinada, entretanto, aos aspectos formais da linguagem (vide LABOV, 1972a, 1972b, 1994, 2001).

    Tais trabalhos de investigao da variedade interlingstica e da variao intralingstica seguem-se da legitimao dos

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    usos falados da linguagem, em processo de reabilitao cien-tfica e ideolgica (pelos romnticos) j no decorrer do sculo XIX. Tal inflexo valorativa, disseminada disciplinarmente pela lingstica, tem um poderoso impacto sobre as pedagogias da linguagem praticadas na segunda metade do sculo XX, que quando se mundializam as polticas lingsticas de universali-zao de acesso escrita. Haja vista a influncia do clssico labo-viano de 1972 Language in the Inner City, que, no Brasil, repercute principalmente atravs da voz de Magda Soares em Linguagem e Escola (SOARES, 1986).

    claro que hoje trataramos esta incorporao da oralidade descrio lingstica como ainda um pouco anmica devido sua negligncia da prosdia e da expresso gestual, e, mesmo, devido descontextualizao do dado lingstico em relao ao discurso. Posta em perspectiva, entretanto, esta evoluo , na verdade, ruptura gigantesca com uma tradio milenar de excluso da fala da reflexo gramatical.

    A descrio lingstica assim praticada recebe de Chomsky (1975b, 1957, 1959, 1965), em meados da dcada de cinqenta, o tratamento formal que vai determinar o refinamento analtico e epistemolgico caracterstico da lingstica gerativa. O estudo da sintaxe vai atingir um grau de sofisticao terica que levar ao prprio questionamento do modelo e ao desenvolvimento, nesta esteira, de trinta milhes de teorias da gramtica, na irreverente expresso de James McCawley (1982). No cabe dvida que sem um contnuo impulso em direo anlise de fenmenos formais cada vez mais intrincados, no disporamos hoje de uma agenda problemtica que prioriza o sentido ao tratar da linguagem. Nas palavras de Fauconnier,

    [... ] as linguists advanced further and further in their study of form, they kept stumbling more and more often on questions of meaning. There were two types of responses to this episte-mological quandary. One was to narrow the scope of syntax so as to exclude, if possible, the troublesome phenomena from the primary data. The other was to widen the scope of inquiry so that issues of form and meaning could be encompassed simultaneously. But it was now clear, in any event, that the time had come to break away from a science of language cen-tered exclusively on syntax and phonology; it was urgent to concentrate on the difficult problem of meaning construction []. (FAUCONNIER, 1997, p. 7)

    O quadro que caracterizamos no estaria completo se no assinalssemos como traos associados tentao monopolista do empreendimento gerativista (malgrado a persistente defeco de aliados de primeira hora e/ou discpulos destacados como Paul Postal e John Ross e, subseqentemente, Joan Bresnam e Ray Jackendoff) o relativo desfavorecimento dos estudos diacrnicos neste contexto e, de outra parte, o forte desenvolvimeto dos estu-

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    dos psicolingsticos (j que o tema da aquisio da linguagem evoluiu para a condio de evidncia crtica).

    3. As lingsticas da significao, por sua parte, em nenhum momento, exibiram, em seu mbito, algum processo de disputa de hegemonia, menos por cultivarem conduta mais generosa e sim por lhes faltar sequer uma metalinguagem con-sensual que permitisse um confronto organizado de posies.

    fato que, movidos por diversa deriva epistemolgica, tanto o estruturalismo europeu (e seu desconstrutivismo) como o estruturalismo americano (e seu comportamentalismo) caracteri-zam-se como prticas de anlise do significante. o advento do gerativismo estabelece uma ruptura terica com o estruturalismo americano atravs do expresso mentalismo/cartesianismo de sua direo ideolgica mas no modifica o foco no significante como principal vertente da anlise. Da que, quando, j no final do sculo XX, a lingstica se dispe a tratar a significao, os lingistas vo ter de recorrer a formulaes extradisciplinares para estabelecer uma semntica lingstica.

    Entre os que elegem o estudo da significao a partir do foco no discurso, haver os que recorrero s cincias sociais ( antropologia lingstica e sociologia interacional) para produzir suas categorias analticas: esta , por excelncia, a tradio anglo-americana de anlise do discurso. J outros (a tradio europia continental) buscaro na reflexo foucaultiana e althusseriana, eventualmente cruzada com os grandes russos ps-formalistas Bakhtin e Vygotsky, o ferramental para suas.

    Entre os primeiros, destacam-se, de um lado, os praticantes da antropologia lingstica e os herdeiros do legado goffmania-no de anlise de situaes institucionais, que introduzem na lin gs tica o importantssimo conceito de frame interacional. (vide, a esse respeito, GOFFMAN, 1961, 1967, 1974; GUMPERZ, 1982a, 1982b; taNNEN, 1984, 1989; SCHIFFRIN; taNNEN; HAMILTON, 2001, entre outros. ) De outro lado, os analistas da conversao importam a contribuio da etnometodologia para apresentar lingstica um exame refinado de dados naturalsticos da interao conversacional. (GARFINKEL, 1967; SACKS; GARFINKEL 1970; SACKS; SCHEGLOFF; JEFFERSON, 1974; JEFFERSON, 1989, 1992; SCHEGLOFF, 2006; GOODWIN, 1981, 2003). No Brasil, vale mencionar com relao a esta ltima vertente o trabalho realizado por Marcuschi e seus associados. De toda forma, o entrelaamento deste temas com os interes-ses da lingstica textual vo representados em obras como as de Beaugrande (1984), Brown e Yule (1983), van Dick (1997) e renkema (2004).

    a linha europia representada pela chamada anlise do discurso francesa (PECHEUX, 1969, MAINGUENEAU, 1984),

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    que tem vasto acolhimento no Brasil, e que, diferentemente da verso anglfona, concentra sua ateno em discursos escritos, fora da vertente da alta cultura( literatura ou filosofia, por exemplo). Empregando categorias analticas que muito devem a estudos sobre ideologia e ordem discursiva (FOUCAULT, 1969, 1971; ALTHUSSER, 1970) em grande voga no final dos anos ses-senta, o ponto forte desta linha de estudos o desvelamento das relaes entre linguagem e poder, especialmente como que padres discursivos (narrativos ou argumentais) organizam-se como objetos sociais e convertem-se em foras poderosas, ope-rativas nos jogos polticos. Pelo seu foco nas macrorrelaes entre linguagem e sociedade, estes estudos aproximam-se da histria das mentalidadese dos chamados estudos culturais.

    Em qualquer de suas vertentes, a anlise do discurso lin-gstico rompe com a auto-suficincia disciplinar da lingstica e importa distintas metalinguagens para enfrentar a questo da significao.

    Uma outra tradio, impregnada pela crise da teoria da sintaxe descrita na citao de Fauconnier, recorre semntica filosfica para resolver seus problemas. as duas grandes linhas da filosofia analtica comparecem neste cenrio.

    Em termos cronolgicos, a primeira emergncia da lgica formal, de inspirao fregeana, que toma de assalto as deriva-es transformacionais propostas pela semntica gerativa. Esta soluo foi logo superada no interior das guerras lingsticas (vide HARRIS, 1983) pela sua implausibilidade psicolgica e pela tenso que impunha verso corrente (quela poca) da gramtica gerativa (CHOMSKY, 1971, 1972, 1975a; JACKEN-DOFF, 1969, 1972). A lgica formal retorna domesticada pela proposio da forma lgica, nvel de descrio admitido pela ortodoxia chomskyana no modelo dos Princpios e Parmetros (CHOMSKY, 1981).

    O outro aproveitamento da lgica formal se d pela in-corporao da semntica montagueana (MONTAGUE, 1974) praticada por algumas das formulaes entre os trinta milhes de teorias da gramtica, notadamente as constraint-based grammars, que assumem uma verso da semntica das situ-aes (BARWISE; PERRY, 1984). o caso da GPSG e da HPSG propostas por Gazdar, Pollard, e Sag nas dcadas de oitenta e noventa (GaZDar et al., 1985; POLLARD; SaG, 1994; SAG; WaSoW, 1999).

    A outra linha de aproveitamento da filosofia analtica se d pelo neo-pragmatismo dos praticantes da chamada filo-sofia da linguagem cotidiana, que tem como seus expoentes Wittgenstein, austin, Grice e, mais tarde, Searle. temas que j freqentavam as proposies da semntica gerativa (atos de fala, implicaturas, e pressuposies) so enriquecidos pelo debate sobre a natureza das categorias conceptuais, temas presentes no

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    pensamento de Wittgenstein (categorizaes via ar de famlia) e no de Austin (categorizaes contrafactuais como em fake gun ou inerentemente complexas, caso de good mother versus good government). Para os leitores familiarizados com esta literatura, fcil reconhecer a a genealogia da lingstica cognitiva, que , em grande parte, semntica cognitiva.

    A lingstica cognitiva, uma evoluo da semntica ge-rativa que desistiu da semntica formal (segundo formulao do prprio Lakoff [2001], emerge pela proposio de que as ca-tegorias lingsticas exibem efeitos de prototipia, imagem das categorias cognitivas e culturais estudadas por Eleanor Rosch (1977), Brent Berlin, Paul Kay e colaboradores (BERLIN, 1968; BERLIN; KAY, 1968; BERLIN; BREEDLOVE; RAVEN, 1974). Representa esta tendncia o trabalho de George Lakoff sobre os processos lingsticos de categorizao (LAKOFF, 1987). Emerge tambm pela proposio da semntica de frames por Charles Fillmore (FILLMORE, 1977a, 1977b, 1982, 1985), na esteira de seus esforos anteriores para postulao de uma gramtica de casos, e a partir da contribuio de Minsky (1975) sobre frames na Inteligncia Artificial, e de formulaoes de Bateson (1972) e de Rumelhart (1975) sobre a natureza das estruturas do conhe-cimento. Emerge, ainda, com a forte influncia que a psicologia da gestalt desempenha sobre as teorizaes de Talmy (1978, 1983) e Langacker (1987, 1991). Em outras palavras, a lings-tica cognitiva, que prope a continuidade entre competncia lingstica, as outras capacidades cognitivas e as prticas sociais que lhes correspondem, fortemente tributria, j no seu nascedouro, da psicologia, da antropologia, da filosofia e das cincias cognitivas.

    H uma espcie de diviso do trabalho entre as lingsti-cas da significao do discursoe as lingsticas da significao da sentena. As primeiras, que contribuem com densas aborda-gens no que concerne fenomenologia da situao comunicativa e s determinaes no lingsticas da interpretao, pouco tm a dizer sobre semntica lexical ou sobre a semntica das constru-es gramaticais. J as ltimas, requintadas nas suas descries do lxico e (um pouco menos) da gramtica, mantm-se bem pouco efetivas para tratar do discurso. O cisma na origem (re-curso teoria social, de um lado, e psicologia e filosofia, de outro) continua repercutindo na evoluo cientfica dos estudos do sentido, sem que haja, de parte a parte, um esforo em favor da articulao destas investigaes que representam esforos complementares.

    Uma tentativa interessante de reelaborao destas duas tradies o trabalho de Gilles Fauconnier, Eve Sweetser e Mark turner, que, para isso, empregam a teoria dos espaos mentais (e do processo cognitivo de mesclagem), vinculando-a gramtica das construes, como forma de promover uma

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    abordagem integrada da significao lingstica desde a gram-tica at o discurso. (FAUCONNIER, 1994, 1997; FAUCONNIER; SWEETSER, 1996; FAUCONNIER; TURNER, 2002; DANCYGIER; SWEEtSEr, 2006).

    4. outro ponto a ser ressaltado nestas abordagens a concen-trao do foco analtico nos contedos significativos accessveis conscincia. Diferentemente das anlises do significante que historicamente se definem como tratamento de sistemas computacionais subconscientes (vide sobre isso a interessante discusso travada por JACKENDOFF, 1987, p. 20-23), os estudos da significao, talvez por sua origem extralingstica, relutam em reconhecer os elementos significativos posicionados aqum do nvel de accessibilidade que Jackendoff designa como mente fenomenolgica. Em outras palavras as lingsticas da signi-ficao encaram com reservas os elementos significativos que sejam lingsticamente inefveis, ou seja, que no se expressem como discurso lingstico.

    Boa parte das crticas dirigidas teoria conceptual da metfora partilham deste carter (peas deste debate incluem LAKOFF, 1983; LAKOFF; JOHNSON, 1980, 1999, 2002; RAKOVA, 2002; KRZESZOWSKI, 2002). So crticas dirigidas ao suposto reducionismo biologizante desta abordagem, que, na literatura produzida, reivindica-se como cognio incorporada (em-bodied cognition), conceito aparentado ao neo-materialismo dos Churchland (vide CHURCHLAND, 2000) e s abordagens enativistas de Varela, Thompson e Rosch (1991), Gunther (2003), No (2004) e Gallagher (2005). O fato que a teoria conceptual da metfora, em sua verso mais recente, radicaliza o tema da base experiencial da metfora em termos de uma presumida base neural da metfora. Nosso intrnseco dualismo (renegado mas persistente) contorce-se diante desta blasfmia.

    E neste ponto que o debate chega literalmente ao impas-se. Toda a discusso sobre a significao na lingstica, embora tributria da reflexo extradisciplinar, trava-se com argumentos tipicamente lingsticos e, por esta razo, est condenada ao fracasso. Como bem sabem os pragmatistas, inclusive em sua encarnao pr-socrtica originria (MartINS, 2004, p. 439-473), a significao elusiva e irredutvel a alguma especfica parfrase lingstica.

    Wittgenstein, em texto clssico sobre a dor (WIttGENS-tEIN, 1953), trata do discurso da dor, da expresso da dor, que constitui, para ele, o conceito de dor. Como discurso sobre a dor, a expresso da dor inexaurvel: transforma-se, de fato, em plataforma para uma galxia de novos discursos que so incapazes, porm, de suprimir o substrato neural da dor, de elimin-la do corpo. A rigor, o fato de que seja possvel cons-cientemente falar sobre a dor assinala, contraditoriamente, a

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    indizibilidade deste conceito. A dor, infelizmente, no para ser dita; para ser doda. O discurso da dor no a esgota e nem esgota sua descrio. (No mximo pode conseguir mitig-la pelo concurso da solidariedade que mobilizar). Fenmenos como o da dor, ou da percepo da cor do mar, ou a estimativa distrada que fao sobre quantas pessoas esto hoje na sala de aula so experincias pr-lingsticas e, tecnicamente, pr-conceptuais. A lingstica, sozinha, no tem condies de dar conta destes aspectos da significao. Por isso aqui que comea a prxima seo de nossa viagem.

    5. Os avanos nas neurocincias, gigantescos nos lti-mos quinze anos, foram propiciados pela disponibilizao de tecnologias no invasivas de investigao do crebro humano. A linguagem como capacidade cognitiva especificamente hu-mana foi a rea mais beneficiada por estas descobertas. reas comparativamente muito melhor estudadas, como o caso da cognio visual, utilizavam tcnicas de experimentao com animais irreplicveis em sujeitos humanos. (Uma discusso informativa desta problemtica e uma representao do estado da arte oferecida em CRICK, 1994; CHURCHLAND, 2002; FELDMAN, 2006; AHLSN, 2006).

    Embora possamos dizer que quase tudo ainda est por ser descoberto, o conhecimento acumulado at agora serve para nos dissuadir, por exemplo, da possibilidade da existncia de um rgo da linguagem no crebro, o que talvez justifique a antipatia de Chomsky s investigaes sobre este assunto (CHOMSKY, 2002).

    No que se refere significao, prospectivas importants-simas evoluram da descoberta dos neurnios-espelho ( mirror neurons), tratados como a base material das experincias huma-nas da intersubjetividade e da empatia (RIZZOLATI; CRAIGH-ERO; FADIGA, 2001; FERRARI et al., 2003; GALLESE; LAKOFF, 2005; BRATEN, 2007). Em 2001, Giacomo Rizzolatti e seus colabo-radores descobriram acidentalmente em seu laboratrio que os mesmos grupos neurais ativados no crtice frontal de macacos manipulando um objeto vinham a ser ativados quando estes mesmos indivduos (macacos) observavam algum outro ator manipular os mesmos objetos. tais neurnios no disparavam quando os macacos simplesmente observavam os objetos, sem que estes fossem manipulados.

    Estavam descobertos os neurnios-espelho (mirror neu-rons), cuja existncia foi posteriormente confirmada tambm para os seres humanos (BUCCINO et al., 2001). Nas palavras de Jerome Feldman (2006, p. 68),

    [] The fact that specific human motor circuits are activated when we see or hear about the associated motions provides direct support

  • Gragoat Maria Margarida Martins Salomo

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    for the Neural Theory of Language Hypothesis that meaning is embodied [...].

    Mais do que isso, a existncia dos neurnios-espelho fa-vorece a hiptese de que a compreenso (verbal e noverbal) opera por simulao imaginativa, largamente inconsciente, e modelada evolucionariamente pelas propriedades de nossos corpos em sua interao com outros corpos. Decorre da uma explicao para a insistncia no argumento de Fauconnier e turner (2002) de que os processos de interpretao requeiram a construo conceptual em escala humana. Deixa tambm de ser imotivada a precedente reivindicao de Lakoff e Johnson (desde 1980) de que a razo humana constitutivamente ima-ginativa. Em outra clave, integra-se a explicao de Tomasello (1999, p. 94-133), para a exploso do processo de aprendizagem lingstica das crianas, a partir dos dez meses de idade, por conta do amadurecimento de sua capacidade de operar projees intersubjetivas e de compartilhar ateno.

    Na verdade, a descoberta dos neurnio-espelho desloca epistemologicamente tanto o imperialismo da subjetividade cartesiana (mondica, desencarnada e autocentrada) como a hiptese piagetiana sobre a egocentridade como ponto de par-tida da aprendizagem humana. (cf BRATEN, 2007). O fato que as descobertas das neurocincias, mescladas s postulaes da lingstica cognitiva, anunciam para o prximo futuro a emergncia de uma neurocincia cognitiva (FELDMAN, 2006, p. 338), que pode mudar, em profundidade, a maneira como hoje tratamos analiticamente o crebro, a mente e a linguagem.

    as principais hipteses que resultam deste cenrio so as seguintes:

    O pensamento abstrato emerge de experincias concretas corporificadas, tipicamente experincias somato-sens-rias e sensrio-motoras.

    A gnese do pensamento abstrato procede pela projeo metafrica dos esquemas conceptuais e imagticos que estruturam estas experincias cotidianas.

    Isso tambm se aplica conceptualizao das signifi- caes gramaticais (como Aspecto): especificamente, hipostasia-se que significaes gramaticais so cogs, isto , resultam do aproveitamento parcial de estruturas cerebrais na regio sensrio-motora (GALLESE; LAKOFF, 2005; LAKOFF, 2006, 2007).

    a gramtica consistiria de circuitos neurais que pareiam estruturas conceptuais com padres sgnicos (fnicos). A gramtica no uma capacidade cognitiva isolada mas con-siste de sistemas corporificados (fnicos e conceptuais).

  • Lanterna na proa: sobre a tradio recente nos estudos da lingstica

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    a criana aprende a gramtica pareando, a partir do uso, combinaes fnicas com experincias familiares (CHANG, 2005; TOMASELLO, 2003; GOLDBERG, 2006; FAUCONNIER; TURNER, 2002).

    6. Estas possibilidades so tambm objeto de pesquisa na rea da psicologia cognitiva, agora equipada com tecnologias muito mais sofisticadas de registro videogravado de situaes naturalsticas ou experimentais. Verificam-se, aqui, as condies de parceria assinaladas por Gibbs (2007, p. 3-18) e Nuez (2007, p. 87-118), que requerem que os lingistas estejam dispostos a rever aquilo que tm tradicionalmente computado como evidncia emprica. Uma lista de metforas acompanhada de exemplos lingsticos , nestas novas condies, no mais que uma lista de hipteses de trabalho a serem testadas do ponto de vista tanto das atividades neurais documentadas como dos comportamentos humanos correlativos.

    No o caso que os lingistas abram mo de seu traba-lho na formulao de hipteses lingsticas, a partir de suas intuies especificamente treinadas, e passem a substituir com pior competncia neurocientistas ou psiclogos. Ser, porm, necessrio que os lingistas se preparem para compreender e avaliar as descobertas feitas nestes campos do ponto de vista da formulao de teorias especificamente lingsticas.

    Trabalhos interessantes sobre evidncias nolingsticas da existncia de metforas conceptuais tm sido levados a efeito pelo prprio Gibbs sobre esquemas imagticos estruturadores da transferncia metafrica (vide GIBBS, 2006), por Lera Boroditsky sobre a realidade psicolgica das metforas temporais (BORO-DItSky, 2000, 2001), por teenie Matlock sobre o movimento dos olhos quando o sujeito processa movimento fictcio (MATLOCK et al., 2004 a, 2004b). De outro lado, lingistas como Benjamin Bergen e vrios colaboradores tm desenvolvido experimentos para checar a base corporificada da semntica dos verbos de movimento (BERGEN, 2007; BERGEN; CHANG, 2005; BERGEN; CHANG; NARANAYAN, 2003). H uma produo florescente na rea de semn