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IGREJA LUTERANA Revista Semestral de Teologia

REVISTA IGREJA LUTERANA

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IGREJA LUTERANARevista Semestral de Teologia

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DiretorGerson Luis Linden

ProfessoresAcir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luis Linden,Leopoldo Heimann, Norberto Heine (CAAPP), Paulo Gerhard Pietzsch, PauloProske Weirich, Paulo Wille Buss, Raul Blum, Vilson Scholz

Professores EméritosDonaldo Schüler, Paulo F. Flor

SEMINÁRIOCONCÓRDIA

IGREJA LUTERANAISSN 0103-779XRevista semestral de Teologia publicada em junho e novembro pela Faculdadede Teologia do Seminário Concórdia, da Igreja Evangélica Luterana do Brasil(IELB), São Leopoldo, Rio Grande do Sul, Brasil.

Conselho EditorialPaulo Wille Buss (Editor), Paulo Proske Weirich (Editor Homilético)

Assistência AdministrativaNara Coelho e Cárin Fester

A Revista Igreja Luterana está indexada em Bibliografia Bíblica Latino-Ameri-cana e Old Testament Abstracts.

Os originais dos artigos serão devolvidos quando acompanhados de envelopecom endereço e selado.

Solicita-se permutaWe request exchangeWir erbitten Austausch

CORRESPONDÊNCIARevista Igreja LuteranaSeminário Concórdia

Caixa Postal 20293001-970 – São Leopoldo/RSTelefone: (0xx)51 3592 9035

e-mail: [email protected]

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ÍNDICE

IGREJA LUTERANA

Volume 67 – Junho de 2008 – Número 1

IN MEMORIAM

REV. DR. ARI LANGE, PASTOR E PROFESSOR DA IGREJA 05

Gerson L. Linden

ARTIGOS

2008 - ANO DA BÍBLIA 07

Rudi Zimmer

A PARÁBOLA DO PAI AMOROSO E DOS FILHOSPERDIDOS (LC 15.11-32) SOB A PERSPECTIVA DAANÁLISE DA NARRATIVA 21

Júlio Jandt e Vilson Scholz

PROCEDENDO DE ACORDO COM MATEUS 18:UMA INTERPRETAÇÃO DE MATEUS 18.15-20À LUZ DO SEU CONTEXTO 55

Jeffrey A. Gibbs e Jeffrey Kloha – Trad. Anselmo Graff

AUXÍLIOS HOMILÉTICOS 79

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REV. DR. ARI LANGE,PASTOR E PROFESSOR DA IGREJA

IN MEMORIAM

Gerson L. Linden1

1 O Rev. Prof. Gerson L. Linden é diretor do Seminário Concórdia.

O ano letivo do Seminário Concórdia em 2008 iniciou com fatos quefazem parte de cada início de ano acadêmico: novos alunos chegando,formandos retornando de seus estágios, professores e funcionáriospreparados para mais uma jornada em função da preparação dos alu-nos para o santo ofício do ministério.

Um fato, porém, foi diferente. No culto de abertura do ano letivo,houve uma nota de tristeza, mas não desprovida de esperança. Fale-cera no ano que passou o Rev. Dr. Ari Lange, professor emérito doSeminário Concórdia e com longa história de serviço no reino de Deus,especialmente nas congregações da IELB, em sua administração cen-tral e na educação teológica.

Uma característica do pastor, professor, diretor, doutor Ari Lange foia multiplicidade de funções que desempenhou como servo de Cristoem Sua Igreja. Pastor, professor, diretor, executivo da IELB, mestre edoutor.

O pastor Ari Lange nasceu no dia 27 de novembro de 1942 emJoaçaba, SC. Queria ser pastor. Foi para o Seminário Concórdia, ondeformou-se em Teologia no ano de 1967. Recebeu o chamado para atu-ar no santo ministério em Cruz Alta, RS, onde serviu o povo de Deuscom a palavra e os sacramentos entre 1968 e 1975. No entanto, opastor Ari tinha uma visão aberta para o mundo para o qual Cristo oenviara como seu ministro. Por isso procurou conhecer um pouco maisda sociedade, as pessoas, enfim, o mundo para o qual o evangelhoprecisa ser anunciado. Formou-se em Estudos Sociais no ano de 1973.

O amor pelo estudo teológico se mostrou na continuidade dos seusestudos, na Universidade de Erlangen, na Alemanha. Em 1981, obteveo título de Mestre em Teologia por aquela instituição. Neste períodoestava servindo a Deus em outra congregação, agora no Mato Grossodo Sul, na cidade de Campo Grande, entre os anos de 1975 e 1983.

Em 1983, a Igreja Evangélica Luterana do Brasil abria a Escola Su-perior de Teologia, do Instituto Concórdia de São Paulo. Entre os três

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primeiros professores estava Ari Lange, agora professor de Teologia,responsável por preparar os futuros arautos de Cristo. Nesta escolaatuou por vinte anos, onde também foi diretor geral.

Na Igreja Evangélica Luterana do Brasil, o professor Ari Lange atuounos anos de 1990 a 1994 como coordenador nacional do programa deevangelização e mordomia (PEM) e também como secretário executivodo departamento de ensino entre os anos de 1992 e 1994. Ao final doperíodo retornou ao magistério teológico no Instituto Concórdia deSão Paulo, como professor e diretor.

Em 2003, o Concordia Theological Seminary, de Fort Wayne, EUA,reconheceu seu trabalho em favor da missão e educação teológica daIgreja concendendo-lhe o título de “Doctor of Divinity”. Também noano de 2003, tornou-se pastor emérito da IELB e foi professor convi-dado na Faculdade Luterana de Teologia, em São Bento do Sul, SC.

O Dr. Ari Lange era casado com a senhora Sueli Lange e seu matri-mônio foi abençoado por Deus com os filhos Márcio, Talvane e Candice.Deus chamou este seu filho e servo Ari para junto de Si em 13 desetembro de 2007 em Curitiba, PR, sendo sepultado no dia seguinteem Guarapuava, PR.

O Seminário Concórdia, através de sua direção, professores, funci-onários e alunos, lamenta a perda do seu professor emérito e desejaà família os votos da contínua e graciosa presença do Senhor. Cristoressurreto dentro os mortos é a nossa esperança e certeza da ressur-reição de cada um dos nossos queridos que por Jesus foram acolhidosno batismo e nele depositaram sua confiança.

Esposo, pai, pastor, professor, executivo, diretor, doutor Ari Lange... um homem a quem Deus abençoou e por meio de quem abençooumuitos. O Seminário Concórdia reconhece com gratidão a Deus os dons,talentos e oportunidades dados pelo Senhor da Igreja a este seu ser-vo. E louva a Deus pelas bênçãos que derramou sobre seu povo, aquem o Dr. Ari Lange serviu, pregando, aconselhando, orientando, en-sinando e dirigindo.

“Bem-aventurados os mortos que, desde agora, morrem no Se-nhor. Sim, diz o Espírito, para que descansem das suas fadigas, pois assuas obras os acompanham” (Ap 14.13).

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2008 – ANO DA BÍBLIA1

Rudi Zimmer2

ARTIGOS

1 Aula Magna dos cursos de Teologia do Seminário Concórdia e da ULBRA, proferida noSeminário Concórdia de São Leopoldo, RS, no dia 13 de março de 2008.2 O Rev. Dr. Rudi Zimmer é Diretor Executivo da Sociedade Bíblica do Brasil.

2008 – Ano da BíbliaSociedade Bíblica do BrasilLema: “A Bíblia: um livro para todos”Isaías 40.8: “A palavra do nosso Deus dura para sempre”.

Isaías 40.6-8:6 Alguém diz: “Anuncie a mensagem!”“O que devo anunciar?” — eu pergunto.“Anuncie que todos os seres humanos são como a erva do campoe toda a força deles é como uma flor do mato.7 A erva seca, e as flores caemquando o sopro do SENHOR passa por elas.De fato, o povo é como a erva.8 A erva seca, a flor cai,mas a palavra do nosso Deus dura para sempre”.

INTRODUÇÃO

Senhores Diretores do Seminário Concórdia e do Curso de Teologiada ULBRA, professores e estudantes, muito estimadas irmãs e irmãos,colegas e amigos em Cristo:

É um grande prazer voltar ao Seminário Concórdia, depois de mui-tos anos, para dirigir-lhes a palavra, representando a Sociedade Bíbli-ca do Brasil (SBB). A IELB tem estado ao lado da SBB em praticamentetoda a existência da SBB, seja por meio de representantes em suaDiretoria, seja por meio de pessoas cedidas para a realização de tare-fas especiais, ou seja, para ocupar determinadas funções. Em outraspalavras, a IELB tem uma tradição de dedicação à causa da Bíblia. Porisso, é mais que justo que a SBB se faça presente em eventos da IELB,

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sendo este da “Aula Magna” particularmente interessante, pois noscoloca em contato direto com aqueles que, em poucos anos, serão oslíderes de opinião dentro da IELB.

Anunciou-se no “Esquema Eletrônico” do Seminário Concórdia queeu iria “fundamentar teologicamente o ‘Ano da Bíblia’ promovido pelaSBB” (Ano 3, no 1, 2008). Não sei se podemos fazer algo assim, isto é,fundamentar teologicamente uma celebração como a do “Ano da Bí-blia”. A não ser, talvez, fazendo referências a passagens bíblicas comoa de Josué 24, ou melhor, 1Samuel 7.12 (Ebenézer: Até aqui o SENHOR

nos ajudou).Queremos, isto sim, inicialmente apresentar as razões históricas

que motivaram ou fundamentaram a decisão da SBB de celebrar 2008como o “Ano da Bíblia”. Por outro lado, queremos, também, destacar otexto bíblico escolhido para nos orientar nesta celebração. Por fim,queremos apontar para a importância da Bíblia, uma importância que émerecedora de uma celebração como a do “Ano da Bíblia”.

I

“2008 – Ano da Bíblia.” Vocês talvez se perguntem: Mas por querazão celebrar o ano de 2008 como “Ano da Bíblia”? A que propósito?Gostaria, portanto, para começar, de lembrar alguns pontos do con-texto que informou a decisão da Diretoria da SBB de celebrar 2008como o Ano da Bíblia.

1. Anos cheios, em geral, são motivo de celebração. No matrimônio,por exemplo, celebramos Bodas de Prata aos 25 anos e Bodas de Ouroaos 50. Igrejas celebram datas especiais. Faz pouco - foi em 2004 - aIELB celebrou o seu Centenário. Assim, as Sociedades Bíblicas, que,neste momento, são um total de 145 Sociedades Bíblicas Nacionais nomundo, quando chegam a um número cheio de anos de atividadesnum país (10, 20, 30, etc.), celebram essa data de modo especial. Porexemplo, também em 2004, celebramos os 200 anos de fundação daprimeira Sociedade Bíblica em todo o mundo, a Sociedade Bíblica Britâ-nica e Estrangeira.

A SBB chega, em 2008, mais precisamente em 10 de junho, aos 60anos de existência. É praticamente o tempo de uma vida humana! Issocertamente merece uma celebração especial. Temos aí, portanto, umdos elementos que nos fizeram propor à Diretoria da SBB celebrar 2008como o Ano da Bíblia.

2. O outro fato, importante e inspirador, dessa celebração teve lu-gar dois séculos atrás. Sem entrar nos detalhes da história, foi em1808 que chegou ao Brasil D. João VI, o príncipe regente de Portugal.

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Ele, na verdade, fugia da ameaça dos franceses, pois havia assinadoum acordo de cooperação com os ingleses. D. João VI partiu, com todaa sua corte, em 29 de novembro de 1807, mas só chegou a Salvador,Bahia, em 22 de janeiro de 1808.

Uma semana depois de ter aportado em Salvador, no dia 28 dejaneiro de 1808, D. João VI decretou a abertura dos portos brasileirosàs nações amigas. Além de o próprio D. João VI ter trazido ao Brasil umexemplar da Bíblia de Gutenberg, o Brasil agora estava aberto para aSociedade Bíblica Britânica e Estrangeira, que havia sido fundada ha-via 4 anos. Imediatamente, no mesmo ano de 1808, essa SociedadeBíblica se animou a produzir Escrituras Sagradas em língua portugue-sa e a enviá-las para a colônia portuguesa nas Américas. Os primeiros12.000 exemplares do Novo Testamento em português só chegaramem 1809, mas foram editados e produzidos em 1808, especificamentepara o Brasil. Eis mais uma razão para celebrar 2008, junto com os 60anos da SBB, como o Ano da Bíblia. Em 2008, faz 200 anos que osportos do Brasil estão abertos para receber as Escrituras Sagradas deforma sistemática, contínua e ininterrupta e a primeira grande tiragemde Escrituras foi produzida para o Brasil.

3. Finalmente, gostaria de destacar alguns números. Desde a fun-dação da SBB, em 1948, até o final de 2007, sem contar o que foidistribuído, no Brasil, por outras Sociedades Bíblicas antes da funda-ção da SBB, o número de Escrituras distribuídas no Brasil pela SBB é oseguinte:

Bíblias: 66.909.798 (mais de 1/3 da população atual)Novos Testamentos: 13.330.980Porções Bíblicas: 104.689.383Seleções Bíblicas: 3.923.543.254Total: 4.108.473.415

Será que esse número de Escrituras Sagradas fez alguma diferen-ça na população brasileira? Certamente que sim.

Não há como explicar o desenvolvimento das missões estrangeirasque iniciaram o trabalho missionário no Brasil, principalmente a partirdo século XIX, sem o apoio da distribuição das Escrituras, realizadapelos heróicos colportores que se embrenharam selva a dentro na di-reção de todos os rincões brasileiros.

Não há como explicar o crescimento, em número e qualidade, dasigrejas que resultaram dessas missões, sem o trabalho de apoio àsigrejas, exercido principalmente pelas Sociedades Bíblicas: primeira-mente, a Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira e a Sociedade Bíbli-

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ca Americana, ambas com escritórios no Brasil desde meados do sécu-lo XIX, e, depois, desde 1948, pela Sociedade Bíblica do Brasil, comotambém por outras editoras de Bíblias. Estas proveram-lhes Bíblias,Novos Testamentos e Porções Bíblicas. Ao mesmo tempo, elas abaste-ceram as igrejas com o Antigo Testamento em hebraico e o Novo Tes-tamento em grego e outras obras de apoio ao estudo dos originais,para a formação teológica de seus ministros e missionários.

Não há como explicar o surgimento e o grande crescimento dasigrejas autóctones brasileiras, pentecostais, carismáticas e neo-pentecostais, sem o suprimento abundante das Escrituras Sagradas,nestas últimas décadas, nas traduções mais utilizadas e amadas pelopovo cristão. Não há como não elogiar o seu empenho em entregar asEscrituras Sagradas ao seu povo e aos neo-convertidos.

Enfim, o número estupendo de distribuição das Escrituras Sagra-das, obviamente, fez e faz uma grande diferença na população brasi-leira. No entanto, pergunto: Estamos satisfeitos? Deveria tal abun-dância das Escrituras Sagradas ter produzido maior transformação, ouestar produzindo maior transformação?

Olhando a vida do povo brasileiro de modo geral, desde o que sechama de elite intelectual, passando pela classe política, pela classeabastada, pela classe média, até chegar ao povo das periferias denossas cidades e do interior brasileiro: será que o que vemos em ter-mos de padrões de vida espiritual, com claros reflexos morais e éticose definitiva influência na vida social; olhando isso, será que estamossatisfeitos?

Acredito que concordamos todos em dizer que não estamos satis-feitos. Ou melhor, certamente Deus não está satisfeito e espera mais.

Bem, eis por que a Diretoria e a Assembléia Administrativa da SBBdecidiram apoiar a celebração de 2008 como o “Ano da Bíblia”. O quese pretende com isso é movimentar o povo cristão, em lembrança dedatas festivas, a promover e incentivar a leitura e o estudo da BíbliaSagrada pessoalmente, em família, nas igrejas e em eventos públicos.A SBB quer promover mais do que a distribuição; ela quer engajar aspessoas com a Bíblia de tal maneira que elas sejam profundamentetransformadas e, em conseqüência, as suas vidas pessoal, social ecomunitária sejam impactadas com o poder transformador do TriúnoDeus, Pai, Filho e Espírito Santo.

II

E, para orientar essa celebração, foi escolhido o texto de Isaías,capítulo 40, versículo 8 (a segunda parte): “A PALAVRA DO NOSSO DEUS

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DURA PARA SEMPRE”. Também aqui, quero destacar o contexto da es-colha desta passagem como orientadora da celebração do Ano da Bí-blia.

1. Isaías 40 é, sem dúvida, um capítulo majestoso. Isso é percebi-do por qualquer leitor atento da Bíblia. O livro de Isaías pode ser divi-dido em três grandes partes. A primeira consiste dos capítulos 1 a 39,que contém profecias dirigidas a Judá e Jerusalém e contra as naçõesestrangeiras, no contexto do séc. 8º a.C., época em que o impérioassírio iniciou a sua expansão para o Sul, ameaçando também o povode Deus. O que, porém, preocupava o profeta Isaías não era a ameaçaassíria, mas o pecado do povo e a sua desobediência a Deus. No finaldessa parte, no cap. 39, o próprio rei Ezequias, em vez de confiar noSENHOR, recebe enviados babilônicos, representantes de um povo ain-da inexpressivo, e mostra-lhes todos os tesouros do Templo e dosseus palácios, o que leva o profeta Isaías a revelar da parte do SE-NHOR a seguinte mensagem: “O SENHOR Todo-Poderoso diz que vaichegar o tempo em que tudo aquilo que há no seu palácio, isto é, tudoo que os seus antepassados juntaram até hoje, será levado para aBabilônia. Não ficará nada. Alguns dos seus próprios filhos serão leva-dos para trabalhar no palácio do rei da Babilônia” (Is 39.5-7).

Isso forma o contexto da segunda parte de Isaías, que vai do capí-tulo 40 ao 55. Antevendo a desgraça que haveria de cair sobre o povode Deus, da parte desses mesmos babilônios, o sofrimento a que seri-am submetidos, seja na conquista da terra de Judá, seja o seu cativei-ro em terras babilônicas, o profeta Isaías é levado por Deus a anunci-ar-lhes o consolo de Deus. Portanto, nesta segunda parte, o contextohistórico antevisto é o do final do período do Exílio Babilônico.

Antevendo o arrependimento do povo, mas também o desalento, adesesperança no cativeiro, o profeta Isaías, inspirado por Deus, diri-ge-lhes uma poderosa mensagem de consolo. Percebe-se, no contex-to, que o povo havia concluído:

- que Deus os havia abandonado;- até, porque, talvez, era mais fraco que os deuses da Babilônia;- ou, pelo menos, que Deus não se importava mais com eles.Antevendo esse sentimento de abandono, de desalento e de de-

sesperança, o profeta anuncia a boa nova de que o sofrimento dopovo estava chegando ao fim. Sim, por isso, começa dizendo:

- “Consolem, consolem o meu povo ...- digam-lhes que já terminou a sua escravidão- e que os seus pecados foram perdoados” (40.1-2).A pergunta que devemos fazer é: com que base deveria o povo se

consolar? Com que base poderiam estar seguros do perdão de seus

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pecados? A base chave é esta: “A PALAVRA DO NOSSO DEUS DURAPARA SEMPRE”. E essa base, usando como metáfora a construção civil,está firmada em três estacas:

A primeira diz respeito a Deus com poder soberano e universal;tema este que é repetidamente enfatizado nesta segunda parte deIsaías, principalmente nos trechos que falam de sua incomparabilidade,como Isaías 40.18-19 e 25:

Com quem Deus pode ser comparado?Com o que ele se parece? [...]Com quem vocês vão comparar o Santo Deus?Quem é igual a ele?

Em outras palavras, não há nada e ninguém ou outro deus qual-quer que possa ser comparado a ele; Deus é incomparável. Por issovem o convite na doxologia de 42.10:

“Cantem ao SENHOR uma nova canção!Que ele seja louvado no mundo inteiro:pelos que navegam nos mares,pelas criaturas que vivem nas águas do mare pelos povos de todas as nações distantes”.A segunda estaca em que se firma a base está bem próxima da

primeira, na verdade, decorre da primeira: ela diz respeito à ênfaseem Deus como Criador de todas as coisas. Vejamos Isaías 40.25-26:

“Com quem vocês vão comparar o Santo Deus?Quem é igual a ele?Olhem para o céu e vejam as estrelas.Quem foi que as criou?Foi aquele que as faz sair em ordem como um exército;ele sabe quantas sãoe chama cada uma pelo seu nome.Sua força e o seu poder são tão grandes,que nenhuma delas deixa de responder”.

E a terceira estaca, intimamente ligada às primeiras duas, é a ênfa-se em Deus como Redentor: aquele que tem o soberano poder univer-sal é o Criador, e é também o Senhor e Salvador. Vejam-se Is 45.22-23:

“Povos do mundo inteirovoltem para mim, e eu os salvareipois eu sou Deus, e não há nenhum outro.Fiz um juramento no meu próprio nome;o que eu digo é verdadee nunca deixará de acontecer.Juro que todos se ajoelharão diante de mime prometerão ser fiéis a mim”.

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2008 – ANO DA BÍBLIA

Portanto, a palavra que procede desse nosso Deus pode ser e, defato, é base segura para o consolo e o perdão: “A palavra do nossoDeus dura para sempre”. E, para ressaltar o que isso significa, Deusorienta o profeta a comparar a Palavra de Deus com o ser humano:

“Anuncie que todos os seres humanos são como a erva do campoe toda a força deles é como uma flor do mato.A erva seca, e as flores caemquando o sopro do SENHOR passa por elas.De fato, o povo é como a erva.A erva seca, a flor cai,mas a palavra do nosso Deus dura para sempre” (40.6-8).Lá no fim do exílio, mais do que nunca eles teriam experimentado

que o ser humano é como erva e flor, que ali estão por pouco tempo;até a sua força e beleza duram muito pouco. Por isso mesmo, os ver-bos hebraicos usados para descrever essa realidade são os assim cha-mados, ‘estativos’, isto é, que descrevem simplesmente como as coi-sas são, sem precisar provar; e isso se repete duas vezes:

“A erva seca (vbey), e as flores caem (benl)quando o sopro do SENHOR passa por elas.De fato, o povo é como a erva.A erva seca (beyv), a flor cai (benl)”.Precisaríamos nós de prova para a fragilidade do ser humano? Creio

que todos nós já vimos e acompanhamos algum ente querido nosso,seja o pai, a mãe, talvez até um filho ou a esposa ou o marido, que erauma pessoa tão cheia de vida, exuberante, alegre, mas, de repente,murchou e secou, como a erva do campo ou a flor do mato.

Em contraste com isso, e esta é a grande ênfase do profeta Isaías, Apalavra do SENHOR dura para sempre. Aqui, novamente, precisamoschamar atenção para a forma verbal hebraica utilizada: “A palavra doSENHOR dura para sempre” – yakum (~Wqy) é um Imperfeito, que, porsua vez, descreve o que é verdade para todos os tempos, e isso setraduz, em Português, pelo presente: “está de pé”, “permanece”, “sub-siste”, “dura”: A palavra de Deus está de pé/ (ela) dura para sempre:

- Nada pode destruir a Palavra de Deus, ou contrapor-se à Palavrade Deus; ela é uma palavra eficaz, uma palavra com poder; assim foino passado; é no presente; e será no futuro.

- Ela, afinal, procede do Deus Todo-Poderoso, incomparável em seupoder e força universal, mais do que nunca demonstrado em sua criação.

- E, mais do que isso, incomparável em usar a sua força e o seupoder por amor à justiça, isto é, para salvar os perdidos, os oprimidos,os cegos e os fracos. Na verdade, o amor ou a graça de Deus é preci-samente o uso do seu ilimitado poder para descer à sociedade huma-

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na e salvar aqueles que não têm salvador, como se lê no versículo 10:“O SENHOR Deus vem vindo cheio de força com o seu braço poderoso,ele conseguiu a vitória. E ele traz consigo o povo que ele salvou”.

Assim como o Imperfeito do verbo hebraico enfatiza, o poder salva-dor da Palavra de Deus está de pé, isto é, dura para sempre, tambémhoje, amanhã e para todos os tempos. Eis por que tomamos esta pas-sagem para orientar a celebração do “Ano da Bíblia”.

Händel, no oratório “O Messias”, abre com as gloriosas palavras deIsaías 40.1: “Consolai, consolai o meu povo, diz o vosso Deus”. Semdúvida, Händel começou assim o seu mais famoso oratório, porqueestava convicto que a palavra do nosso Deus está de pé/dura/per-manece para sempre.

Com essa mesma convicção, celebramos o “Ano da Bíblia” e ressal-tamos para o povo cristão e todo o povo brasileiro o valor eterno daPalavra de Deus.

Mas Isaías não diz “a palavra da Bíblia...”; ele, porém, diz: “a pala-vra do nosso Deus dura para sempre”. Estaria a Bíblia incluída na ex-pressão “a palavra do nosso Deus”? Afinal de contas, vamos celebrar,sob a orientação dessas palavras de Isaías o “Ano da BÍBLIA”! Sim, aBíblia é a Palavra de Deus! Essa implicação fica evidente quando aspalavras de Isaías são citadas pelo apóstolo Pedro, em sua PrimeiraCarta, versículos 22-25:

“Agora que vocês já se purificaram pela obediência à verdade eagora que já têm um amor sincero pelos irmãos na fé, amem unsaos outros com todas as forças e com um coração puro. Pois vocês,pela viva e eterna palavra de Deus, nasceram de novo como filhosde um Pai que é imortal e não de pais mortais. Como dizem asEscrituras Sagradas: (citação de Is 40.6-8) ‘Todos os seres huma-nos são como a erva do campo, e a grandeza deles é como a florda erva. A erva seca, e a flor cai, mas a palavra do Senhor durapara sempre. (E o apóstolo conclui:) Esta é a palavra que o evan-gelho trouxe para vocês”.E é óbvio que Pedro se referia ao evangelho bíblico, das Escrituras

Sagradas. Portanto, quando se fala que “a palavra do nosso Deusdura para sempre,” inclui-se indubitavelmente a palavra bíblica, a Bí-blia Sagrada.

III

E, agora, dois aspectos sobre o valor da Bíblia Sagrada como mere-cedora da celebração do “Ano da Bíblia”, não só em 2008, mas emtodos os anos.

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Esse tema, por certo, é inesgotável e, na verdade, é para ser ex-plorado no decorrer da celebração do “Ano da Bíblia”. Da minha parte,gostaria de ressaltar apenas dois aspectos relacionados ao valor daBíblia como palavra de Deus que dura para sempre. A relevância des-ses dois aspectos pode logo ser identificado.

1. O valor da Bíblia consiste no fato de que ela pode ou, até,deve ser traduzida para todas as línguas e linguagens.

A Bíblia nasceu para ser traduzida. Vejam isto:- O Antigo Testamento foi escrito em hebraico, mas já ali há trechos

em aramaico (acima de tudo, em Esdras e Daniel).- Além disso, em Neemias 8, onde se relata um grande momento de

renovação do povo de Deus movido pela leitura da palavra de Deus, oque se diz? Esdras abriu o livro e, a partir daí, diz o texto: “Eles iamlendo o Livro da Lei e traduzindo; e davam explicações para que opovo entendesse o que era lido” (Ne 8.8). Por que isso? É que o povojá não falava mais o hebraico; assim, foi feita uma tradução livre parao aramaico, a fim de que “o povo entendesse o que era lido”. O resul-tado foi um grande avivamento!

- E, na época de Jesus, o que temos? Jesus obviamente falava emaramaico e, nessa língua, conduziu o seu ministério: pregou o Sermãodo Monte em aramaico; ensinou por parábolas, em aramaico. No en-tanto, em que língua nos foi transmitido o conteúdo dos seusensinamentos? Em grego!!! Por quê? Porque a fé cristã se destinava atodos os povos, e o império predominante na época falava grego.

- Além disso, o Antigo Testamento é citado abundantemente noNovo Testamento. De onde foram tiradas essas citações? Do AntigoTestamento hebraico? Não! Predominantemente, da tradução grega,conhecida como Septuaginta. Por exemplo, quando nosso texto deIsaías 40 é citado pelo apóstolo Pedro em sua Primeira Carta, essacitação foi tirada da tradução da Septuaginta, por isso o seu palavrea-do até é um pouco diferente.

Portanto, a Bíblia nasceu para ser traduzida. Ela sempre foi e deveser traduzida. E, como a língua está sempre mudando, a Bíblia deveser traduzida e revisada constantemente, a fim de que as novas gera-ções possam também entender o que é lido.

Essa, na verdade, é a razão de ser principal do movimento dasSociedades Bíblicas. Quando surgiu a primeira Sociedade Bíblica, elafoi fundada precisamente para isso: para que cada pessoa no mundotivesse acesso à Escritura Sagrada, “em uma linguagem que ela pu-desse entender e a um preço que ela pudesse pagar”.

Essa, também, foi e ainda é a razão principal para a fundação da

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Sociedade Bíblica do Brasil, em 10 de junho de 1948, no templo daPrimeira Igreja Batista, no Rio de Janeiro.

Mas o que há de especial no fato de que a Bíblia pode e, até, deveser traduzida para todas as línguas e linguagens? Por que isso ressaltao seu valor para nós e para todas as pessoas, no Brasil e no mundo?

Vejam, as religiões não-cristãs não têm traduções aceitáveis e au-torizadas dos seus livros sagrados. Não existem Comissões de Tradu-ção desses livros. Por exemplo, não existe uma tradução autorizadado Al-Corão, livro sagrado dos muçulmanos. Por quê? Porque, para osmuçulmanos, o único texto autorizado do seu livro está em árabe, alíngua do profeta Maomé. Portanto, para efetivamente ser um religio-so muçulmano, é preciso aprender a língua do deus do profeta Maomé.

Isso se repete em todas as religiões e seitas não-cristãs: para che-gar se ao seu deus, é preciso aprender e absorver a sua língua.

Qual é a diferença, na fé cristã? Enquanto nas não-cristãs é precisosubir a deus, inclusive aprendendo a falar a sua língua, o Deus cristãodesce e vem ao nosso encontro: o nosso Deus desce e vem ao encontroda pessoa mais culta e da pessoa mais humilde, mais simples, maisiletrada, até ao encontro dos cegos, com a Bíblia em Braile ou da Bíbliaem Áudio, e dos surdos, com a Bíblia em Libras. Em outras palavras, oDeus cristão vem falar a nossa linguagem. Esta, na verdade, é a essên-cia da graça e do amor de Deus: Ele desce, ele vem e se identifica comcada um de nós em nossas necessidades mais profundas, inclusive fa-lando a nossa linguagem, a fim de nos redimir e levar com ele para asglórias celestiais. De modo que insistir em querer perpetuar traduçõescom linguagem ultrapassada, que não falam mais de forma compreensí-vel conosco, é trabalhar contra a própria natureza de Deus e da Bíblia.

Não foi isso, em última análise, a missão e a obra de Jesus? Porisso ele é chamado pelo Evangelista João de “A Palavra” que “se tor-nou um ser humano e morou entre nós, cheia de amor e de verdade. Enós vimos a revelação da sua natureza divina, natureza que ele rece-beu como Filho único do Pai”. Sim, Jesus é a Palavra encarnada deDeus, por meio de quem Deus criou o mundo, redimiu o mundo daeterna perdição e entrega isso singelamente a cada um em sua línguae linguagem.

Assim, as Sociedades Bíblicas, ao traduzirem a Bíblia para as maisdiferentes línguas e linguagens, exercem um ministério redentor, poislevam a poderosa e redentora palavra de Deus ao encontro de todasas pessoas, a fim de que, tocadas e transformadas, elas vivam umavida para Deus e com Deus.

E isso me leva ao segundo aspecto que gostaria de ressaltar emrelação ao valor da Bíblia, e este é o seguinte:

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2. O valor da Bíblia está no fato de que a palavra bíblica não sópromete, mas efetivamente realiza a transformação.

“A palavra de Deus dura para sempre.” Na mesma linha do que dizeste verso de Isaías 40, temos Isaías 55.10 e 11:

“A chuva e a neve caem do céue não voltam até que tenham regado a terra,fazendo as plantas brotarem, crescereme produzirem sementes para serem plantadase darem alimento para as pessoas.Assim também é a minha palavra;ela não volta para mim sem nada,mas faz o que me agrada fazere realiza tudo o que eu prometo”.

Como diz Jesus: “O céu e a terra desaparecerão, mas as minhaspalavras ficarão para sempre” (Mt 24.35). Em outras palavras, o queelas dizem são verdade e se cumprem.

O grande modelo e padrão encontramos no relato da criação deGênesis. Isto é assim porque, procedendo da própria boca de Deus, apalavra de Deus, ao ser proferida, desencadeia, ou faz irromper, o pró-prio processo de realização de seu enunciado. Por isso, a palavra deDeus é ação; o termo “palavra”, na expressão “palavra de Deus” é oque, na Bíblia, mais se aproxima da palavra “história”. Vocês se recor-dam do nome dos livros de Crônicas, no Antigo Testamento? divrêhayamim (~ymyh yrbd) – literalmente, “As Palavras dos Dias”, ou,melhor, “As Palavras dos Dias (Passados)”, ou seja, a história do povode Deus desde a criação até a época do autor. O mesmo se aplica atoda a palavra de Deus: o que Deus diz, através dos profetas,evangelistas e apóstolos, é tão certo e seguro que, se já não é histó-ria, certamente vai virar história.

Eis, portanto, o valor da Bíblia. Na celebração do Ano da Bíblia, em2008, o desafio é levar o povo cristão e, por extensão, o povo brasilei-ro a redescobrir e descobrir, no contato com a Bíblia, o poder transfor-mador e renovador da palavra viva de Deus.

Traduções não faltam. Há traduções para todos os níveis de com-preensão e todas as preferências, desde traduções clássicas, erudi-tas, até traduções voltadas à compreensão da maioria absoluta dopovo brasileiro, como a Nova Tradução na Linguagem de Hoje. Há aBíblia em Braile, para deficientes visuais; há porções da Bíblia em LI-BRAS, para os deficientes auditivos; e há a Bíblia em Áudio, para quemou não sabe ou não quer ler.

Se e quando ocorrer o contato com a Bíblia, com compreensão, fé edevoção:

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- certamente haverá transformação e renovação pessoal;- haverá transformação e renovação das famílias;- haverá transformação e renovação das igrejas;- haverá transformação e renovação das comunidades em que

vivemos, com a promoção da paz, da harmonia e do amor entre aspessoas, com reflexos decisivos para o bem-estar do nosso país.

Aqui, hoje, fica o desafio para o envolvimento de toda a IELB nacelebração do Ano da Bíblia; e por que não esperar que os CentrosAcadêmicos do Seminário Concórdia e da ULBRA pensem numa ação?!Essencialmente, o que se espera? Espera-se que todos os membrosda IELB sejam desafiados a ler a Bíblia. Quanto a nós, da SBB, até paradar o exemplo, desafiamos a todos os 450 funcionários a lerem a Bí-blia, e isso, em alguns casos, virou uma verdadeira competição. Por-tanto, propaguem, convidem, desafiem a todos a ler a Bíblia. E comuni-quem-nos a respeito disso, para que possamos publicar como exem-plo a seguir.

Por outro lado, fica o desafio para uma participação ampla dos mem-bros da IELB no projeto “A Bíblia Manuscrita”, um dos pontos altos dacelebração do Ano da Bíblia. Durante quatro meses, pelo menos 900.000pessoas, de todas as idades, regiões e confissões religiosas visitarãoum “Scriptorium” em uma cidade brasileira para participar na cópia àmão de versículos das Sagradas Escrituras, que resultará em 29 Bíbli-as na língua portuguesa, com milhares de caligrafias de pessoas famo-sas e anônimas, de todas as idades, níveis de educação e opçõesreligiosas.

Entre os objetivos, destacamos:a) A promoção da Bíblia na agenda cultural da sociedade brasileira,

sensibilizando a população e a mídia, com o objetivo de fazer chegar amensagem da Bíblia a 184 milhões de brasileiros.

b) A valorização da preservação e transmissão da cultura.c) O envolvimento direto de cerca de 900.000 pessoas na revisitação

pela escrita de um dos textos mais importantes da nossa civilização,matriz da nossa identidade nacional e fonte de inspiração espiritual.

d) A realização de uma ação pedagógica que promova a leitura e oconhecimento, mobilizando inúmeros agentes da cultura, educação eespiritualidade numa ampla reflexão sobre as Sagradas Escrituras e asua contribuição para a paz e a solidariedade.

e) Estímulo à contribuição financeira voluntária para ampliar o al-cance das Bíblias em Braile e em Áudio, para deficientes visuais, aten-didos pelo programa social “Inclusão do Deficiente Visual” desenvolvi-do pela Sociedade Bíblica do Brasil. Será solicitado de cada copistauma doação mínima de R$ 1,00 por versículo copiado.

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CONCLUSÃO

Celebremos, portanto, neste ano de 2008, o Ano da Bíblia!- O seu apoio nos honra.- O seu apoio honra a Deus.- O seu apoio, com a sua presença aqui, confirmando o seu

envolvimento na celebração do Ano da Bíblia, já é um testemunho euma afirmação do valor e da importância da Bíblia em suas vidas.

- É este testemunho e afirmação que precisam tomar conta de todoo povo cristão e do povo brasileiro, no Ano da Bíblia!

Amém e obrigado!

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Quando se trata da “parábola do filho pródigo”, não raras vezesleitores da Bíblia e pregadores perdem o interesse pela história tãologo chegam à festa convocada para celebrar a volta do filho maisnovo (v. 24). Além de esquecer metade da parábola, muitos tendem aisolá-la do seu contexto, como se ela não tivesse nada a ver com oEvangelho de Lucas em seu todo.

Diante disto, o presente estudo analisa aquela que preferimos de-nominar de A Parábola do Pai Amoroso e dos Filhos Perdidos na suaíntegra e dentro de seu contexto. Propomos uma leitura à luz de ummétodo relativamente recente, denominado “Crítica da Narrativa”, ou,como preferimos chamar aqui, “Análise da Narrativa”. Daremos desta-que ao gênero literário das parábolas, ao método da análise da narra-tiva e concluiremos com um estudo exegético de Lucas 15.11-32. Oobjetivo maior é mostrar a importância de interpretar bem esse textopara que, desta forma, se possa proclamá-lo de forma clara, correta e,principalmente, evangélica.

1. O GÊNERO LITERÁRIO DAS PARÁBOLAS

Deus escolheu transmitir sua Palavra fazendo uso de vários tiposde comunicação ou gêneros literários. Assim, existem, na Bíblia, textosnarrativos, genealogias, profecias, poesias, provérbios, leis, parábo-las, cartas, sermões, entre outros. Há regras especiais que devem seraplicadas a cada forma literária. “Um poema não deve ser lido como umtexto legal, nem um credo como uma parábola”.2

Definição de parábola: o termo “parábola” é cognato do verbogrego parabálo, que quer dizer “colocar lado a lado, comparar”. Fazerou contar uma parábola significa, pois, colocar algo ao lado de outra

Júlio Jandt e Vilson Scholz1

A PARÁBOLA DO PAI AMOROSO E DOSFILHOS PERDIDOS (LC 15.11-32) SOB APERSPECTIVA DA ANÁLISE DA NARRATIVA

1 O Rev. Júlio Jandt é pastor da IELB. O Rev. Dr. Vilson Scholz é professor de TeologiaExegética (Novo Testamento) no Seminário Concórdia e na ULBRA e Consultor de Tradu-ções da Sociedade Bíblica do Brasil.2 Hans-Ruedi Weber, Bíblia: o livro que me lê (São Leopoldo: Sinodal, 1998), p. 43.

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coisa, ou seja, comparar.3 Segundo W. Randolph Tate, “a parábola éuma breve narrativa que compara uma coisa com outra; neste sentido,uma parábola é uma metáfora ampliada”.4

Outra característica da parábola é que ela é verossímil, ou seja,real à vida. Não que ela relate algo que realmente aconteceu, masalgo que poderia acontecer. As situações retratadas são, geralmente,muito familiares ao ouvinte. Mesmo o que para o homem ocidental pa-reça incomum, para os orientais era uma situação mais do que co-mum.5

Nos tempos de Jesus, as parábolas encantavam o povo, pois eramcontadas de forma simples, eram literatura popular. Porém, elas erammais do que simples histórias: por elas, Jesus nos contava verdadesacerca da salvação eterna e da vida cristã. Elas convenciam o ouvinte,levando-o a tomar uma decisão ou agir.6

Distinção entre parábola e outras figuras: a parábola se distin-gue do símile, da metáfora, da fábula e da alegoria. O símile é a com-paração de dois objetos distintos, sendo que o sinal de semelhança édiretamente expresso.7 “Este homem é como um leão” é um exemplode símile, porque um homem não é um leão. Já a metáfora é umacomparação não expressa. Nela não aparecem os termos “semelhan-te” ou “como”. Geralmente, em uma metáfora, o sujeito e a coisa coma qual ele é comparado estão entrelaçados.8 Já a fábula é uma históriairreal ou imaginária, na qual animais ou objetos inanimados conver-sam e argumentam como se fossem seres humanos.9 E a alegoria, porfim, é uma seqüência de metáforas que significam uma coisa nas pala-vras e outra no sentido. Na alegoria, cada detalhe da história repre-senta algo diferente do que se diz na história. Ela tem uma lição inde-pendente para cada detalhe, e é por isso que cada detalhe é impor-tante.10 Osmundo A. Miranda alerta que “uma das maiores adultera-

3 Robert C. McQuilkin, Our Lord’s Parables (Grand Rapids: Zondervan, 1980), p. 17.4 W. Randolph Tate, Biblical Interpretation: An Integrated Approach (Peabody: Hendrick-son, 1991), p. 116.5 Joachim Jeremias, As Parábolas de Jesus (São Paulo: Paulinas, 1978), p. 8.6 Ibidem, p. 15.7 McQuilkin, op. cit., p. 18.8 Henry A. Virkler, Hermenêutica: Princípios e Processos de Interpretação Bíblica (SãoPaulo: Vida, 1996), p. 122. Um exemplo de metáfora é a afirmação de Jesus: “Eu sou opão da vida”. Jesus não tenciona que suas palavras sejam tomadas de forma literal (afinal,Cristo não é um pedaço de pão). No entanto, ele identifica-se com o pão, pois é a fonte desustentação de nossa vida espiritual.9 McQuilkin, op. cit., p. 18. Na Bíblia, temos dois exemplos de fábulas; a primeira, registra-da em Juízes 9.7-20, contada por Jotão, e a segunda, descrita em 2Reis 14.9-10.10 Sátilas do Amaral Camargo, Ensinos de Jesus Através de Suas Parábolas (São Paulo:Imprensa Metodista, 1970), p. 11.

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ções da pregação do evangelho é a transformação das parábolas eoutras palavras de Jesus em alegoria, pois pela alegoria se diz o que o‘pregador’ quer, e não o que a Bíblia mesma ensina”.11

Por que estudar as parábolas: As parábolas de Jesus são estuda-das por uma série de razões. Uma delas é a razão denominada quan-titativa. Diz o evangelista que “sem parábolas nada lhes dizia” (Mt13.34). Estima-se que “mais ou menos um terço do ensino de Jesusestá em parábolas”.12 Há também razões teológicas e históricas, poisse tratam de palavras de Jesus. Esta ênfase norteou, por exemplo, otrabalho de Joachim Jeremias em “As Parábolas de Jesus”. Segundoeste autor, o estudo das parábolas tem a intenção de “abrir um aces-so, o mais largo possível, à própria palavra original de Jesus”.13

Para a maioria de nós, as parábolas têm um interesse prático, con-creto. Afinal, as parábolas continuam sendo textos de estudo e depregação. Na série trienal de perícopes litúrgicas, em sua versãoluterana, nada menos do que 24 leituras do Evangelho são parábolas.

O propósito das parábolas: Jesus não contou parábolas à toa.Não queria simplesmente informar, divertir ou ilustrar uma verdade.Jesus também não queria simplesmente transmitir informações quan-titativas sobre Deus e seu reino. Se assim fosse, Jesus poderia pedirpara alguém escrever enquanto recitasse belas frases sobre Deus eseu amor pelos pecadores. Mas não foi assim.

A parábola é uma narrativa, e, como tal, “obriga sempre o ouvinteou leitor à reflexão, ao exercício da memória, jogo do raciocínio, a termente aberta e manifestar simpatia pelo ponto de vista implícito nodesenrolar do fato exposto”.14 Em vista disso, as parábolas contadaspor Jesus tinham o objetivo de “provocar reação, para forçar os ouvin-tes a tomar decisões”.15

Mas Jesus sabia quem eram as pessoas para quem contava asparábolas. Isto é fundamental. Os fariseus orgulhosos eram homens“duros na queda”. Não queriam dobrar-se ante a realidade do reino deDeus. Por isso, Jesus conta parábolas fortes para quebrar a resistên-cia de seus corações, para que o Espírito Santo pudesse agir neles.

11 Osmundo Afonso Miranda, Introdução ao Estudo das Parábolas (São Paulo: ASTE, 1984),p. 32, 33.12 Vilson Scholz, Princípios de Interpretação Bíblica: Introdução à Hermenêutica com Ênfa-se em Gêneros Literários (Canoas: Editora da ULBRA, 2006), p. 169.13 Jeremias, op. cit., p. 5.14 Camargo, op. cit., p.15.15 Miranda, op. cit., p. 48.

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O ponto de comparação: A parábola tem uma riqueza de detalhesque formam o seu colorido. Porém, esses detalhes não são significati-vos individualmente e não devem ser forçados a dizer o que não di-zem, como na alegorização. No caso das parábolas, “a comparação éfeita com o todo da parábola”.16 Diante disso, podemos ver que osdetalhes existem em função do ponto de comparação da parábola.17

Detectar o ponto de comparação (tertium comparationis) da pará-bola é essencial. Em geral, esse ponto de comparação é único.18 “Emtempos recentes, tem-se questionado essa rigidez do ‘um só ponto’.Há quem argumente que existe um ponto por personagem, o que levaa dizer que a maioria das parábolas tem, no máximo, três pontos decomparação”.19

Geralmente, o ponto de comparação não é uma verdade moral ge-nérica ou um conselho sobre como viver com sabedoria, mas um ououtro aspecto do reino de Deus. Terá algo a ver com a situação decrise ou juízo provocada pela pregação do reino de Deus. “O sentidoou a lição da parábola quase sempre é mais simples do que se imagi-na. É preciso estar disposto a enxergar o óbvio”.20

As parábolas e a doutrina: Outro aspecto que não pode deixar deser mencionado é o fato de as parábolas não serem sedes doctrinae.Isto quer dizer que as parábolas não podem ser tomadas como pontode partida para estabelecer este ou aquele ponto de vista teológico.Trench lembra o antigo axioma: “Theologia parabolica non estargumentativa”.21 As parábolas não devem ser forçadas. “A ordem dainterpretação tem sido do literal ao figurado, do mais claro ao maisobscuro, mas é uma regra que tem sido [lamentavelmente] contraria-da”.22

A interpretação das parábolas nos tempos modernos: As parábo-las foram e ainda são interpretadas de forma alegórica. Quase todosos Pais da Igreja usaram alegoria para explicar as parábolas de Jesus,

16 Miranda, op. cit., p. 38.17 Richard C. Trench, Notes on the Parables of Our Lord (Los Angeles: Fleming H. Revell,1841), p.32. Trench faz a seguinte comparação: as parábolas são como uma faca, na qualnem tudo é fio cortante, mas tudo existe em função desse fio; são como uma harpa, ondenem tudo é corda, mas as outras partes da harpa estão ali para que a finalidade última sejaa música.18 Martin Scharlemann, Proclaiming the Parables (St. Louis: Concordia, 1963), p.28.19 Scholz, op. cit., p. 175.20 Ibidem, p. 176.21 Trench, op. cit., p. 40.22 Camargo, op. cit., p. 21.

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incluindo Irineu, Tertuliano, Orígenes, Clemente de Alexandria e Agos-tinho.23 Poucos foram os que, com a Escola de Antioquia e osReformadores do século 16, protestaram contra o uso do método ale-górico na interpretação das parábolas.

No século 19, um nome de grande destaque foi Richard Trench, comsua famosa obra “Notes on the Parables of Our Lord”, reeditada váriasvezes. Sua interpretação, porém, aproxima-se muito de Orígenes eClemente de Alexandria, com interpretações parabólicas altamente ale-góricas.24

Outro intérprete de destaque foi Adolf Jülicher (1857-1938). “É méritode Adolf Jülicher ter rompido definitivamente com a interpretação ale-górica”.25 Ele insistiu que as parábolas foram contadas para esclareceros ensinos de Jesus, para facilitar o entendimento das multidões econcluiu que as parábolas eram simples e fáceis de entender.26 Porém,Jülicher errou ao generalizar as verdades parabólicas e também aohelenizar parábolas que foram contadas no contexto aramaico.27 Asparábolas têm lição bem mais específica do que Jülicher pretendia. Asua ênfase sobre o “único ponto de comparação” levou-o ao extremoda abstração simplificada.28

Outros intérpretes de renome foram Charles Harold Dodd e JoachimJeremias, que privilegiaram a leitura à luz do conceito do reino de Deus.Dodd, em especial, enfatizou um aspecto do reino de Deus que veio aser conhecido como “escatologia realizada”.29 Mas, ao mesmo tempo,restringiu-se apenas às parábolas do reino.30

A partir do século 19, o estudo acadêmico da Bíblia foi dominadopelo método histórico-crítico.31 Hoje, ele é um conglomerado de enfoquese procura reconstruir a vida e o pensamento dos tempos bíblicos pormeio de uma análise objetiva e científica.32 Isto atingiu também o estu-do das parábolas.

Dentro deste “conglomerado de enfoques”, pode-se dizer que há,pelo menos, três correntes principais: a Crítica das Fontes, a Crítica da

23 Miranda, op. cit., p. 14.24 Ibidem, p.19.25 Jeremias, op. cit., p. 11.26 Miranda, op. cit., p. 21.27 Jeremias, op. cit., p. 13.28 David M. Granskou, Preaching on the Parables (Philadelphia: Fortress Press, 1972), p.11-15.29 Miranda, op. cit., p. 23,24.30 Jeremias, op. cit., p. 14.31 Mark Allan Powell, What is Narrative Criticism? (Minneapolis: Fortress Press, 1990), p. 2.32 A explicação clássica dos princípios que regem o método histórico-crítico foi dada peloteólogo alemão Ernst Troeltsch. Um resumo se encontra em Scholz, op. cit., p. 87-88.

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Forma e a Crítica da Redação. Todas estas disciplinas têm o desejocomum de dar um enfoque sobre períodos significantes na transmis-são dos Evangelhos: o período do Jesus histórico, o período da tradi-ção oral na vida da Igreja antiga, ou o período da “moldura final” dosEvangelhos formulada pelos evangelistas.33

Em tempos mais recentes, dentro do contexto de questionamentodo método histórico-crítico, surgiu a linha interpretativa da crítica lite-rária. A rigor, a crítica literária também não é um, mas sim vários méto-dos. Basicamente quatro métodos têm sido empregados nos estudosdo Novo Testamento, mais especialmente os Evangelhos e as parábo-las: o Estruturalismo, a Crítica Retórica, a Crítica da Resposta do Lei-tor34 e a Crítica da Narrativa.35

Para a crítica literária, o objetivo é descobrir a intenção do autor,levando em consideração o texto que temos e não o processo que deuorigem a ele; tem como característica a apreciação das modalidadesda produção do texto, o estilo, etc.36

2. O MÉTODO DA ANÁLISE DA NARRATIVA

Para o estudo da parábola de Lucas 15, seguiremos o método daCrítica da Narrativa, ou, como também é chamada, da Análise da Nar-rativa. Usaremos preferencialmente o nome de “Análise da Narrativa”,e não o termo “Crítica”, pois este último conota, em muitos casos, algonegativo.

Surgimento do método: Por ser uma coleção de textos, e textosliterários, nada mais natural do que estudar a Bíblia do ponto de vistaliterário. Porém, pode-se notar pelos métodos de interpretação em-pregados em seu estudo que o aspecto literário foi, muitas vezes, dei-xado de lado.

A perda do aspecto literário deu-se, de forma especial, com o usoda alegoria e, principalmente, do método histórico-crítico. Este mos-trou suas falácias especialmente na análise dos Evangelhos, procu-rando, através de suas técnicas e pressupostos, interpretar as histó-

33 Powell, op. cit., p. 2.34 Em outro contexto, como na Europa, este método é denominado de “Teoria da Recep-ção”.35 Powell, op. cit. 12.36 Johan Konings, A Bíblia, sua História e Leitura: uma Introdução (Petrópolis: Vozes, 1992),p. 238.

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rias ‘sobre’ Jesus, desmembrando, recortando e até mesmoreformulando os relatos dos evangelistas. “O que realmente vem a ser‘Palavra de Deus’ ficou uma coisa cada vez mais nebulosa”.37

A necessidade de uma abordagem mais literária dos Evangelhos foiexaminada em 1969 por William Beardslee. Segundo ele, os estudossobre os Evangelhos devem providenciar, entre outras coisas, o signi-ficado e impacto literário dos próprios textos e analisar como estestextos convidam o leitor a participar da narração e como evocam a suaresposta individual perante os fatos dessa narração.38

Em vista disso, as primeiras formas literárias no Novo Testamento aserem examinadas deste modo foram as parábolas. Alguns dos maisimportantes estudos foram os de Robert W. Funk, Dan O. Via e John D.Crossan.39 Eles reconheciam que o uso de um método puramente his-tórico tinha limitações que poderiam comprometer a interpretação bí-blica.

Mas a possibilidade de ler os Evangelhos como narrativas somenteviria a ser demonstrada em 1982, com a publicação do livro “Mark AsStory” (Marcos como Narrativa), de David Rhoads e Don Michie. No anoseguinte, mais duas obras foram publicadas: “The Christology of Mark’sGospel” (A Cristologia do Evangelho de Marcos), escrita por Jack D.Kingsbury, e “Anatomy of the Fourth Gospel” (Anatomia do Evangelhode João), de R. Alan Culpepper. Rhoads, Kingsbury, Culpepper e RobertTannehill são considerados os pioneiros do método.40 Estas obras inau-guraram o termo “Crítica da Narrativa”. Hoje, o método é usado pormuitos exegetas do Novo Testamento.41

Descrição do método: Quando se fala de crítica literária, uma im-portante questão a ser levantada é: “Quem é o leitor?” A Crítica Retó-rica está interessada nos leitores originais a quem a obra foi inicial-mente endereçada. O Estruturalismo quer definir as respostas de um‘leitor competente’ que entende um código da obra.42 Já a Crítica da

37 Maier, apud Mueller, Entendes o que Lês? – apêndice sobre o Método Histórico-Crítico, p. 268.38 Powell, op. cit., p. 2.39 Ibidem, p. 2,3.40 Ibidem, p. 6.41 Apesar disso, aqui no Brasil a Crítica da Narrativa ainda é pouco utilizada. Prova dissoé a bibliografia existente somente na língua inglesa. “What is Narrative Criticism?“, escri-to por Mark Allan Powell, é o melhor manual que temos disponível para descrevermos aAnálise da Narrativa e sua aplicabilidade ao evangelho de Lucas e, mais especificamente,à parábola do Pai Amoroso e dos Filhos Perdidos (Lc 15.11-32).42 Powell, op. cit., p. 19.

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Resposta do Leitor é um enfoque pragmático da literatura que enfatizao papel do leitor na determinação do significado.43

A Análise da Narrativa geralmente fala de um “leitor implícito”, queé pressuposto pela própria narrativa. Este leitor implícito é distinto doleitor real e histórico, do mesmo modo que o autor implícito é distintodo autor real e histórico. É impossível predizer as respostas efetivasdos leitores reais, mas pode haver pistas dentro da narrativa que indi-cam a resposta que se espera do leitor implícito.44

Por isso, a diferença básica entre a Análise da Narrativa e a Críticada Resposta do Leitor é que a primeira destaca os modos pelos quaiso texto determina a resposta do leitor, enquanto a última enfatiza osmodos pelos quais o leitor determina o significado. Segundo Powell, omodelo básico de comunicação para a Análise da Narrativa pode serdefinido como segue: 45

Autor Real Texto Leitor Real

Autor Implícito Narrativa Leitor Implícito

O autor real e o leitor real estão diagramados fora dos parâmetrosdo próprio texto. Os três componentes do meio (Autor Implícito – Nar-rativa – Leitor Implícito) agora tomam o lugar daquilo que previamentefoi descrito como o texto. Percebe-se que o texto pode ser visto comoqualquer outra mensagem de um modelo de comunicação ou comouma comunicação completa que contém os três componentes (emis-sor, mensagem e receptor), sendo, assim, completo em si mesmo.

Segundo Jack Kingsbury, o autor implícito é a “pessoa imagináriaque se tem em vista para que a intenção do texto possa sempre alcan-çar sua realização”.46 Este conceito de leitor implícito afasta a Análiseda Narrativa de um tipo de criticismo puramente centrado no leitor

43 Roger Lundin, Anthony C. Thiselton e Clarence Walhout, The Responsibility of Hermeneu-tics (Grand Rapids: Eerdmans, 1985), p. 90.Estes três autores utilizam o modelo da Crítica da Resposta do Leitor.44 Powell, op. cit., p. 19.45 Ibidem, p. 19.46 Jack Dean Kingsbury, Matthew as Story (Philadelphia: Fortress Press, 1990), p. 38.

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(pragmático, como a Crítica da Resposta do Leitor) e faz dela umenfoque mais centrado no texto.

Segundo Powell, para ler segundo esta perspectiva, é preciso co-nhecer tudo que o texto pressupõe que o leitor conheça, e “esquecer”tudo que o texto não pressupõe que o leitor conheça.47 Isto é relevan-te, pois estamos acostumados com uma visão dos quatro Evangelhos.Quando pensamos em uma perícope, procuramos observar tambémcomo ela foi apresentada por outro evangelista. Porém, na Análise daNarrativa, devemos encarar o escrito que temos e deixar de lado, porassim dizer, nossos conhecimentos prévios. Devemos ler aquilo quetemos, como se fosse (e como realmente é!) uma narrativa completaem si mesma, como se não tivéssemos à mão nenhum outro escritoparalelo que contasse a mesma história.

Para citar um exemplo, podemos dizer que o leitor implícito dosEvangelhos certamente saberá que um talento vale mais que umdenário, pois o próprio texto pressupõe isto. Por outro lado, os leito-res reais de hoje podem não ter este conhecimento. Entretanto, osleitores reais de hoje podem ter (e têm!) um conhecimento (como ocaso citado antes, o conhecimento dos outros Evangelhos) que o leitorimplícito da narrativa não tem. Mas, diga-se também, este conheci-mento do leitor atual pode minar ou mesmo deteriorar o efeito da his-tória pretendido pelo autor.

No caso da parábola de Lucas 15, não interessa qual o tema princi-pal de Mateus, Marcos, e até mesmo de João. O importante é analisarLucas e deixar que o texto fale. Somente nos interessará o que Lucasnos contou e como nos contou, e não a sua ligação com os demaisEvangelhos.

Narrativa, história e discurso: A narrativa é um tipo literário espe-cífico. É qualquer obra que conta uma história. Esta definição, emboraampla, não é inclusiva. Outras escolas da crítica literária, por exemplo,dedicam-se ao estudo de ensaios ou poesias. No Novo Testamento, osquatro Evangelhos e também Atos são considerados narrativas. AsEpístolas provavelmente não o são, embora incluam, aqui e ali, ele-mentos narrativos (Romanos 4, por exemplo).

A narrativa tem dois aspectos: história e discurso. História refere-se ao conteúdo da narrativa. É feita de elementos como acontecimen-tos, personagens e cenário, sendo que a interação desses elementos

47 Powell, op. cit., p. 20.

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forma o que se chama de “enredo”. Discurso refere-se à retórica danarrativa, à maneira como a história é contada.48

Nesse sentido, podemos dizer que o Evangelho de Lucas tem seusdois aspectos, como outra narrativa qualquer. A história de Lucas é ahistória da vida de Jesus, desde a concepção e nascimento até a suamorte, ressurreição e ascensão. O discurso de Lucas é o meio peloqual a história da vida de Jesus é contada.

Histórias que dizem respeito aos mesmos acontecimentos, perso-nagens e cenários podem ser contadas de vários modos, produzindodiferentes narrativas. Os quatro Evangelhos são um ótimo exemplodisso. Há semelhanças entre eles, pois todos contam a mesma histó-ria, ou seja, a história de Jesus; mas há também diferenças, pois cadaautor teve o seu discurso, a sua maneira de contar a história.

Também é possível distinguir entre tempo da história e tempo dodiscurso. O tempo da história refere-se à ordem na qual os aconteci-mentos ocorrem, enquanto que o tempo do discurso se refere à ordemna qual o narrador apresenta os acontecimentos ao leitor.49 Para aAnálise da Narrativa, importante é o tempo do discurso, uma vez queele mostra como o autor implícito organizou o enredo. A quantidade detempo que o narrador devota ao relato de um acontecimento pode serinconsistente com o tempo transcorrido para a ocorrência desse acon-tecimento.50

Por exemplo, há casos em que o tempo do discurso é bem menordo que o tempo da história, como a ida dos pais de Jesus para a Festada Páscoa (Lc 2.41). Ocorre também o inverso. É o caso da semana daentrada triunfal de Jesus em Jerusalém até a sua ressurreição. Ficaclaro, por este exemplo, que a intenção do autor implícito não é des-crever a viagem dos pais de Jesus, mas sim o cerne do evangelho, queé a paixão, morte e ressurreição de Cristo.

Ponto de vista: Uma questão central, segundo Powell, é como oautor implícito guia o leitor implícito no entendimento da história.51 Umdos modos pelos quais o autor implícito influencia o leitor implícito éinsistir que adote um ponto de vista consistente com o da narrativa.Alguns o chamam de “ponto de vista avaliativo”, que governa umaobra em geral.52 O ponto de vista avaliativo pode ser definido como

48 Ibidem, p. 3.49 Gerard Genette apud Powell, op. cit., p. 36.50 Powell, op. cit., p. 37.51 Ibidem, p. 23.52 Kingsbury, Matthew As Story, 1988, p. 2.

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“um padrão de julgamento pelo qual os leitores são levados a avaliaros acontecimentos, personagens e cenários que compõem a história”.53

Lucas, assim como os demais evangelistas, trabalha com uma pos-tura ética que está baseada no ponto de vista de Deus. Há uma distin-ção básica entre verdade e mentira. A verdade, por sua vez, está ali-nhada com o ponto de vista de Deus. “O que Deus pensa é, por defini-ção, verdadeiro e correto”.54

Em contraposição ao ponto de vista de Deus, Lucas também apre-senta o ponto de vista de Satanás. Este ponto de vista é negativo efalso, e pode aparecer direta ou indiretamente na narrativa. Mas, dequalquer forma, fica claro que se espera do leitor que aceite o pontode vista de Deus.

Narrador: O narrador é “a voz que o autor implícito usa para con-tar a história”.55 Com algumas exceções, os narradores dos quatro Evan-gelhos falam em terceira pessoa e não são personagens nas históriasque narram. Eles também variam quanto àquilo que sabem e quantoàquilo que decidem contar do que sabem. Kingsbury salienta que osnarradores são, por assim dizer, “oniscientes”, dada a facilidade comque obtêm informações sobre acontecimentos, personagens e cenári-os.56 Powell, porém, adverte que seu conhecimento é limitado pelaspercepções espaciais e temporais terrestres.57

Outro aspecto importante reside no fato de o narrador ser“intrusivo”, isto é, ele “não somente informa sobre os personagens,mas também passa a julgá-los, avaliando suas ações e motivos”.58 Al-guns narradores são mais intrusivos do que outros. Lucas, em geral, émenos manifesto.

Enredo: O enredo pode ser descrito como “o elemento dinâmico eseqüencial na literatura narrativa”.59 Ele é percebido pela observaçãocuidadosa das ações e movimentos na história, e foca a conexão entreas partes, seja através da continuação de uma parte prévia ou atra-vés de uma antecipação de alguma ação futura.60

53 Powell, op. cit., p. 24.54 Ibidem, p. 24.55 Jack Dean Kingsbury, Conflict in Luke (Minneapolis: Fortress Press, 1991), p. 10.56 Ibidem, p. 10.57 Powell, op. cit., p. 26.58 Kingsbury, Conflict in Luke, 1991, p. 10.59 Robert Scholes e Robert Kellog apud John R. Donahue, The Gospel in Parable (FortressPress, 1988), p. 22.60 Donahue, op. cit., p. 22.

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Para entender o enredo de uma narrativa, importa reconhecer oselementos de causalidade que conectam os acontecimentos entre si.Outro aspecto importante do enredo é a noção de conflito. SegundoLaurence Perrine, conflito é “um choque de ações, idéias, desejos ouvontades”.61 O mais comum é o conflito entre personagens, que decor-re, geralmente, de pontos de vista incompatíveis.

Em resumo, “o enredo de uma história tem a ver com o modo peloqual o autor organiza a história”.62 Ele se compõe de três partes bási-cas, que são imprescindíveis para o estudo de um texto narrativo soba perspectiva da Análise da Narrativa: acontecimentos, personagense cenário.

Acontecimentos: Os acontecimentos são as ações que ocorrem aolongo da história. Não se referem apenas aos atos físicos, mas incluemos atos de fala, os pensamentos, os sentimentos e as percepções.“Portanto, os discursos e declarações de Jesus relatados nos Evange-lhos são acontecimentos propriamente ditos, e devem ser considera-dos parte da narrativa”.63

Personagens: Os personagens são os agentes da narrativa, “aque-les sobre as quais a história é contada e cujas ações ou falas, ou,então, fracassos para agir e falar, dão seqüência ao enredo”.64

O que interessa de modo especial à Análise da Narrativa é a caracte-rização, isto é, o processo através do qual o autor implícito providenciaao leitor implícito o que é necessário para reconstruir um personagem.65

Para caracterizar um personagem, o autor implícito pode se valerde dois métodos: “falar sobre” o personagem ao leitor ou “mostrar”ao leitor sua caracterização. “Falando”, o narrador descreve estas pes-soas; “mostrando”, o autor simplesmente apresenta estas pessoasem ação ou em discurso.66

Segundo Powell, “a técnica de mostrar é menos precisa do que ade falar sobre, mas é normalmente mais interessante”.67 O leitor preci-sa juntar dados e avaliar, para poder chegar a conclusões quanto aoponto de vista do autor implícito sobre os personagens. O método demostrar também leva o leitor a comparar e avaliar os diferentes tipos

61 Laurence Perrine apud Powell, op. cit., p. 42.62 Kingsbury, Conflict in Luke, 1991, p. 34.63 Powell, op. cit., p. 35.64 Donahue, op. cit., p. 23.65 Powell, op. cit., p. 52.66 Kingsbury, Conflict in Luke, 1991, p. 9.67 Powell, op. cit., p. 52.

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de evidências na caracterização dos personagens.É claro que, quando os líderes judeus chamam Jesus de “príncipe

dos demônios”, esta caracterização deve ser descartada pelo fato doautor implícito, na seqüência da narrativa, demonstrar exatamente ocontrário. Aliás, o exemplo citado “revela mais sobre os próprios líde-res religiosos do que sobre Jesus”.68

Como em toda obra literária, há aqueles personagens que são prin-cipais, outros que são secundários e, por fim, aqueles que aparecemgeralmente uma só vez, e, ainda assim, apenas para reenfatizar opapel do protagonista.69

Quando um leitor avalia e compara as evidências quanto às carac-terísticas dos personagens, ele passa a revelar certa empatia por umpersonagem, e uma antipatia para com outro personagem.70 Isto é com-preensível a partir do elemento de “pontos de vista” idênticos, e tam-bém de algumas características semelhantes ou desejadas.

Cenários: Por cenário entendemos aquele “lugar, tempo ou circuns-tâncias sociais nas quais a ação ocorre”.71 O cenário é parte integral dahistória, tanto quanto o são os acontecimentos e os personagens.

O cenário serve para várias funções. Eles podem ser simbólicos,podem ajudar a revelar os personagens, determinar conflitos, ou mes-mo providenciar estruturas para a história. Muitos cenários sãoirrelevantes para o enredo, enquanto que outros são altamente signi-ficativos e importantes. Há, basicamente, três tipos de cenários: espa-cial, temporal e social.72

O cenário espacial inclui o contexto físico no qual os personagensvivem e agem. Kingsbury ressalta que, no Evangelho segundo Lucas,há o cenário geral e o cenário local. O cenário geral é a terra dos ju-deus. O cenário local pode variar, por ser mais específico.73 Em geral, “adescrição dos cenários espaciais nos Evangelhos parece limitada peloefeito dramático e utilitário. Cenário é apenas importante à medidaque ele afeta as ações específicas dos personagens.”74

68 Ibidem, p. 53.69 Edward Morgan Forster e Meyer Howard Abrams apud Powell, op. cit., p. 55.Estes mesmos estudiosos distinguem os diferentes tipos de personagens, com base emseus traços característicos: os “redondos” (Jesus e os discípulos), os “planos” (líderesreligiosos) e os “estereotipados” (como a viúva pobre, em Lc 21).70 Powell, op. cit., p. 56, 57.71 Kingsbury, Conflict in Luke, p. 69.72 Powell, op. cit., p. 69, 70.73 Kingsbury, Conflict in Luke, p. 5-7.74 Powell, op. cit., p. 72.

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O espaço temporal pode ser de dois tipos: cronológico ou tipológico.O cronológico pode ser locativo, quando se refere a um ponto específi-co no tempo no qual uma ação acontece, ou durativo, quando indicaum intervalo de tempo. O cenário tipológico indica o tipo de tempo noqual uma ação acontece (por exemplo, “de noite” – Jo 3.2).75

Por fim, o cenário social também é de extrema importância. É o quetemos chamado de “contexto histórico” em nossas exegeses. Ele cons-titui-se pelas circunstâncias sociais. “Estas incluem as instituições po-líticas, estruturas de classes, sistemas econômicos, costumes sociais econtexto cultural geral presentes na obra”.76

Os benefícios da Análise da Narrativa: A Análise da Narrativa, aocontrário do que poderia parecer, não é um método puramente literá-rio. Em outras palavras, não se quer, agora, passar a ler a Bíblia comoliteratura, esquecendo que ela é a Palavra de Deus. O que se quer éler a Bíblia como Escritura Sagrada e literatura ao mesmo tempo; ler aBíblia como Escritura na forma de uma narrativa ou história.77

Quanto aos benefícios proporcionados pela leitura de livros comoos Evangelhos e Atos sob a perspectiva da Análise da Narrativa, po-dem-se enumerar os seguintes:

a. A Análise da Narrativa dá destaque ao texto em si mesmo. Emoutras palavras, o texto não é visto como meio para outros fins. Apli-ca-se, neste caso, o princípio: “Gaste menos tempo estudando sobre aBíblia e mais tempo estudando a própria Bíblia”.78

b. A Análise da Narrativa fornece um meio para testar e contraba-lançar os métodos tradicionais de exegese bíblica. Isto significa que,se a leitura literária corrobora a interpretação histórica, ela ajuda acomprovar a exatidão desta última. Mas, se o significado de um textopercebido pela leitura literária for inconsistente com a leitura histórica,então as duas “escolas” devem reconsiderar seus posicionamentos.

c. O método lança alguma luz sobre os textos bíblicos, mesmo quenão se tenha clareza ou certeza quanto a seu pano de fundo histórico.Durante os últimos séculos, a maior parte da pesquisa bíblica tem sidodevotada a questões relativas a autoria, data, origem e fontes de vá-rios livros do Novo Testamento (como, por exemplo, a suposta fonte“Q”, nos Sinóticos). Não obstante, foram raros os casos em que se

75 Ibidem, p. 72, 73.76 Ibidem, p. 74.77 Ibidem, p. 85.78 Ibidem, p. 86.

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tenha chegado a um consenso. A vantagem da Análise Literária é queela permite aos estudiosos aprender muito sobre o significado e im-pacto de certos textos sem ter que primeiro “resolver” esses persis-tentes e talvez insolúveis problemas de natureza histórica.

d. A Análise da Narrativa tende a aproximar o leitor leigo do exegetaprofissional. Esta é uma grande vantagem do método, em contraposiçãodireta ao método histórico-crítico, que é extremamente racional e diri-gido apenas para os estudiosos, causando assim uma “idolatria dointelecto”.79 A vantagem da Análise da Narrativa consiste no fato debuscar a interpretação do texto sob a perspectiva do seu leitor implíci-to, do qual não se espera, por exemplo, que conheça alguma coisasobre a história da transmissão dos textos.

e. Por fim, vale ressaltar ainda que a Análise da Narrativa tem umíntimo relacionamento com a comunidade cristã. Como explica Powell,o método condiz com a compreensão cristã do cânone. A Igreja Cristãconfessa que a Escritura como tal tem autoridade, e não as supostastradições orais ou fontes que subjazem à mesma. Dando ênfase aotexto em sua forma final, a Análise da Narrativa interpreta a Escriturano nível canônico, ou seja, lê o mesmo texto que tem autoridade paraa comunidade cristã em termos de fé e vida. Além disso, abre-se espa-ço para o papel do Espírito Santo no processo de interpretação.80

3. A PARÁBOLA DO PAI AMOROSO E DOS FILHOS PERDIDOS

Uma vez descrito o funcionamento do método, podemos passar àexegese do texto de Lucas 15.11-32, a parábola do Pai Amoroso e dosFilhos Perdidos.

Esta parábola, registrada em Lucas 15.11-32, é considerada pormuitos como a melhor de todas as parábolas. Tradicionalmente cha-mada de “A Parábola do Filho Pródigo”, preferimos aqui chamá-la de “AParábola do Pai Amoroso e dos Filhos Perdidos”. Por que a mudança?Basicamente, esta é a questão-chave para o correto entendimento daparábola, como será visto a seguir. Em parte, a parábola tem sido malinterpretada porque o título tradicional, “o filho pródigo”, dá um enfoqueerrado para o texto.81

79 Uwe Wegner, Exegese do Novo Testamento (São Leopoldo: Sinodal, 1998), p. 19, 20.80Powell, op. cit., p. 88.81 Segundo Prange, esse título aparece em Bíblias inglesas do século 16 e remonta àVulgata. Victor H. Prange, Luke (St. Louis: Concordia, 1992), p. 176.

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Uma segunda razão, e talvez a mais importante, é o fato de consi-derar-se que, em Lucas 15.11-32, aparecem duas parábolas indepen-dentes. Essa tese divide a parábola em duas seções: a primeira, dosversos 11 até 24, com o título de “A Parábola do Filho Mais Moço”; e asegunda, dos versículos 25 a 32, denominada de “A Parábola do FilhoMais Velho”. Tal posição foi advogada, entre outros, por William M. Taylor,em “The Parables of Our Saviour”.82

A rigor, o texto consiste em uma parábola dupla. E, embora sejapossível, para fins de instrução metodológica acadêmica, fazer umadivisão na parábola, sem que isto necessariamente deturpe a verdadebíblica, cumpre lembrar que se trata de uma narrativa única, começan-do no verso 11 e terminando no 32. Como tal, precisa ser lida e estu-dada na íntegra. Quem lê um livro policial não vai interessar-se apenaspelo seu início, ou apenas pelo seu final. Como esse livro traz umahistória com um começo, um meio e um fim, ele merece ser lido naíntegra. O mesmo se aplica aos Evangelhos e à parábola de Lc 15.11-32: também aqui os três aspectos (começo, meio e fim) são importan-tes para o todo da narrativa.

Em virtude destes aspectos, entendemos que a Análise da Narrati-va é um método adequado para se ler a Parábola do Pai Amoroso edos Filhos Perdidos. Afinal, ela prioriza um entendimento não fragmen-tado do texto bíblico e, ao mesmo tempo, provê uma base fundamen-tada não em suposições humanas, mas naquilo que Deus realmentedisse.

O enredo: Para melhor entendermos o enredo do texto, precisa-mos examinar o que deu origem a ele. Isto se encontra em Lc 15.1-2:“Aproximavam-se de Jesus todos os publicanos e pecadores para oouvir. E murmuravam os fariseus e os escribas, dizendo: Este recebepecadores e come com eles”. A partir daí, Jesus conta as parábolas daovelha e da dracma perdidas, encerrando o seu “ciclo parabólico” coma parábola do Pai Amoroso e dos Filhos Perdidos.

Jesus conta essas parábolas com uma intenção apologética. Pre-tende não apenas explicar e justificar a pregação do evangelho aospublicanos e pecadores, povo desprezado naquela época,83 mas acimade tudo mostrar que o amor de Deus ultrapassa as barreiras sociais,que a salvação é universal. Jesus conta as parábolas da ovelha e da

82 William M. Taylor, The Parables of our Saviour (New York: George H. Doran, 1886), passim.83 Jeremias, op. cit., p. 134.

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dracma perdida mostrando o ponto de vista de Deus: a alegria que háno céu e, conseqüentemente, a alegria que Deus sente por buscaraquele que está perdido.84

O auge do ensinamento de Jesus ocorre na terceira parábola. Aexemplo dos perdidos nas parábolas anteriores, aqui também há umperdido: o filho mais moço. Contudo, a parábola é endereçada a pes-soas que, a exemplo do filho mais velho, se ofendem com a universali-dade da graça divina. Jesus defende a pregação do evangelho pre-gando o evangelho, contando a história que se tornou conhecida comoevangelium in Evangelio (“o evangelho dentro do Evangelho”).85

A narrativa indica que se trata de uma parábola, ou seja, algo queaconteceu ou que poderia muito bem acontecer. Ela é verossímil e fa-miliar à vida dos ouvintes. Apesar de não consistir numa alegoria, ondetodos os detalhes têm significado em e por si mesmos, podemos dizerque a parábola apresenta alguns traços alegóricos. Estes traços alegó-ricos consistem na representação dos personagens.

Portanto, vamos começar examinando os elementos que fazemparte do enredo da narrativa: cenário, personagens e eventos. Cum-pre lembrar, todavia, que os três estão interligados, e que, por isso,não é possível separá-los completamente.

O cenário: Ao longo da narrativa de Lucas, vemos que Jesus sem-pre andava em meio à multidão. De um lado, escribas e fariseus iamatrás de Jesus com o intuito de questioná-lo e pô-lo à prova. De outro,publicanos e pecadores corriam até Jesus para ouvi-lo falar da graçade Deus dirigida a todas as pessoas.

Jesus, então, conta as três parábolas de Lucas 15. O contexto daépoca era um contexto bem rural e, por isso, Jesus fala de uma ovelhaque havia se perdido e também de um homem dono de propriedadeagrícola, na qual trabalhavam servos.

O cenário espacial pretendido por Lucas pode ter sido uma fazen-da, uma vila no interior ou algo semelhante. Não era uma metrópoleou uma cidade bem estabelecida. Este mesmo cenário permeia a nar-rativa global, onde vemos Jesus caminhando com os discípulos por umaplantação e colhendo espigas, provavelmente de trigo, para alimen-tar-se (Lc 6.1-5), contando a parábola da figueira estéril (Lc 13.6-9) edo grão de mostarda (Lc 13.18-19).

Não é de estranhar que Jesus usasse este cenário também quan-

84 O. C. Edwards Jr., Luke’s Story of Jesus (Philadelphia: Fortress Press, 1981), p. 70, 71.85 Kenneth Bailey, As Parábolas de Lucas (São Paulo: Vida Nova, 1995), p. 208.

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do contava suas parábolas: este também era o seu cenário na vida.Ele andava pelas searas, ia até o mar com os pescadores e conheciatodo esse contexto rural da época.

Contando a parábola dos filhos perdidos amados pelo seu pai, Je-sus refere-se a um homem que tinha dois filhos. Ao prosseguir na nar-rativa, vemos que o pai tinha uma série de empregados, que o ajuda-vam na lida (vv. 17, 19, 22). O filho não quis ficar ali e foi até uma “terradistante” (v. 13). Outro aspecto que mostra a realidade rural é o fatode o pai ter matado o novilho cevado para a festa de recepção ao filho(v. 23). O verso 25 fala que o filho mais velho “estivera no campo”.Todos estes detalhes, contudo, não têm conotações simbólicas para ainterpretação da narrativa.

Quanto aos cenários temporais, o texto nos diz que o filho foi em-bora “passados não muitos dias” após ter pedido a sua parte da he-rança. O texto não diz quanto tempo o filho ficou longe de casa. Podeser que, “vivendo dissolutamente” (v. 13), tivesse gastado rapidamenteseus haveres e, ante a situação desesperadora do “guardar porcos”(v. 15), não hesitasse muito em voltar logo para casa.

O cenário social é a parte que mais nos interessa aqui. Contadapara os publicanos e pecadores, e bem especialmente para os escribase fariseus, a parábola tem detalhes que realçam ainda mais oensinamento de Jesus. Na época, a diferença entre fariseus e publicanosera enorme, a começar pela situação econômica. Para a população emgeral, publicanos tinham má fama, fama de roubadores do dinheiro dopovo quando da coleta dos impostos. Já os fariseus eram de classemédia inferior, vinham das melhores classes de artífices e pensavammuito no interesse do povo.86

Os personagens: Na verdade, o narrador (Jesus) não dá as carac-terísticas dos personagens. Ele prefere mostrar os personagens emação, levando o ouvinte e leitor a, com base nisso, formar uma imagema respeito deles. As palavras e as atitudes nos dão um retrato dequem são os personagens.

Este método torna a parábola ainda mais interessante, uma vezque, ao contá-la, Jesus deixou no ar um suspense quanto à identifica-ção dos personagens. Com certeza isso deve ter causado reflexão (equem sabe até revolta) nos personagens reais do Evangelho.

86 H. L. Ellison, “Fariseus”, In: O Novo Dicionário da Bíblia (São Paulo: Vida Nova, 1990), v.1,p. 604, 605.

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O filho mais moço: Este toma uma atitude intempestiva: resolvepedir a parte que lhe cabia dos bens familiares. “Pai, dá-me a partedos bens que me cabe”. Aqui recorremos às palavras de Kenneth Bailey,que, tendo vivido muito tempo no Oriente Médio, constatou o que sig-nifica este pedido na prática. Bailey cita uma conversa que teve sobreo assunto:

Alguém já fez um pedido assim em sua aldeia? – Nunca!Alguém poderia fazer um pedido assim? – Impossível!Se alguém o fizesse, o que aconteceria? – Seu pai bateria nele,

sem dúvida!Por quê? – Este pedido significa: ele quer que seu pai morra!87

Outro aspecto fundamental é que, segundo a lei, os bens somentepodiam ser repartidos depois da morte do pai. Por isso, podemos en-tender corretamente a afirmação do entrevistado de Bailey, supracitado.O pedido do filho moço tinha um aspecto duplo. Além de pedir a divisãoda herança, queria ainda dispor dela! Isto era algo inconcebível para aépoca.

Se lhe fosse concedido o pedido da divisão da herança, que seriaum ato de muito boa vontade do pai, mesmo assim não lhe seria pos-sível usufruir deste direito. “A propriedade é sua, mas não pode vendê-la”.88 O pai não nega o pedido, mesmo diante da exigência impostapelo filho: “E ele lhes repartiu os haveres”.

Em outras palavras, o pedido do filho mostra sua ingratidão portudo o que o pai lhe havia dado. Não havia compreendido o que erarealmente ser filho. Dispunha de tudo e, ao mesmo tempo, não se viacomo dono de nada. Já aqui o autor implícito mostra o tom da narrati-va: a compaixão do pai. Seu amor é maior do que a lei. Poderia baterno filho, repreendê-lo, mas preferiu dar o que ele queria.

Com “dinheiro na mão”, o filho mais moço parte de casa. Uma per-gunta que o texto não responde é: o que levou o filho a fugir de casa?Talvez num ímpeto de liberdade, de querer ser “dono do próprio nariz”,ele parte para uma terra distante, onde gasta todos os seus bens. Otexto diz ainda que ele viveu de forma dissoluta, devassa, corrupta. Eé daqui que nos vem o “filho pródigo”, o filho esbanjador.

Dividir a comida com os porcos (v. 16) era algo degradante. E esse

87 Bailey, op. cit., p. 212.88 Ibidem, p. 214.

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filho, que havia trabalhado guardando porcos e que, portanto, era im-puro do ponto de vista cerimonial, esse filho o pai abraçou e beijou,quando do seu retorno ao lar (v. 20). A esse filho o pai restitui a condi-ção de filho, dá-lhe um anel, que era sinal de autoridade, e as sandá-lias, um sinal de que era um homem livre, uma vez que os escravosandavam descalços. A esse filho o pai dá a melhor roupa!

O filho mais novo, ao fugir de casa (v. 13), mostra a atitude dospublicanos. Estavam longe não apenas da casa do pai, mas tambémlonge do pai! Porém, ocorre uma virada na vida desse filho: diante dasdificuldades impostas pela vida, pela vida impensada que levara, elereconhece sua indignidade (v. 19) e confessa. Os publicanos estavamindo até Jesus; queriam ouvi-lo, aprender dele (15.1). Deus os recebe,assim como o pai. Jesus não somente conversava com publicanos epecadores, mas inclusive fazia suas refeições com eles.

O filho mais velho: Este questiona (v. 26; cf. Lc 5.30) a atitude dopai e fica irritado com a situação (v. 28; cf. Lc 15.2). Usa palavras fortescomo, por exemplo, douléuo (“sirvo”), que dificilmente aparece por aca-so, querendo dizer, com isso, que servia ao pai como um escravo.89

Mesmo estando em casa, não se sentia como filho; não sabia o querepresentava ser, junto com o pai, dono de tudo.

O filho mais velho diz ainda: “nunca transgredi uma ordem tua enunca me deste”. As palavras “nunca” denotam que o pai não lhe deua atenção devida em nenhum momento, o que era algo, sem dúvida,um tanto absurdo. Na verdade, neste contexto de indignação, geral-mente tende-se a exagerar; trata-se de um personagem bem verossí-mil.

Continuando o seu discurso, o personagem revela desprezo peloseu irmão (v. 30). Volta-se não somente contra o pai, mas tambémcontra o irmão que havia voltado. Aparentemente, tem um profundo“zelo” pelas coisas da casa, pelos bens, combatendo assim quem de-les abusou (no caso, o irmão mais novo) e quem recebe aquele quedesperdiçou tudo (o pai). Porém, as suas próprias palavras o denunci-am. Também ele não se sentia em casa. Estava em casa, mas não erada casa. Dentro da casa de Deus, no entanto, longe de Deus.90

89 O conceito de escravo no NT não corresponde exatamente ao que modernamente seentende por escravo. “Ocasionalmente, escravos recebem uma posição de responsabili-dade e comando. Mesmo assim, o escravo deve ao seu senhor obediência exclusiva eabsoluta”. R. Tuente, “Escravo”, In: O Novo Dicionário Internacional de Teologia do NovoTestamento (São Paulo: Vida Nova, 1989), v. 2, p. 85.90 Ronald S. Wallace, Many Things in Parables (Grand Rapids: Eerdmans, 1963), p. 57.

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O pai: O pai representa Deus, e isto não apenas porque se usa otermo “pai”. É importante notar que, na parábola anterior, da dracmaperdida, Deus é representado por uma mulher! Nos três episódios,Deus é representado por aquele que busca quem está perdido.

O pai é, a rigor, um pai humano. “Todavia, através de algumas ex-pressões, reluz que ele, pelo seu amor, é imagem de Deus”.91 Trata-se,sem sombra de dúvida, de um pai todo especial. Ele faz a divisão dosbens e permite que o filho mais moço saia de casa. E, quando esteretorna arruinado, o pai corre ao seu encontro (v. 20). O seu amor émais forte do que a ira. Seu perdão é imediato e pleno, inclusive dandoao filho o que de melhor se poderia dar: os sinais de autoridade e derestauração como filho.

Ele se alegra com o arrependimento do filho. Porém, ele não amaapenas este filho. Ama também o filho velho e vai em busca dele, “ar-gumentando” com ele e procurando ganhá-lo para o seu ponto devista. O grande ponto de virada na narrativa acontece com o convitedo pai ao filho mais velho.

Ao correr da narrativa, fica evidente que os pontos de vista do filhomais novo e do filho mais velho devem ser abandonados. Por quê?Porque o filho mais novo pecou contra o pai, e ele mesmo reconheceisso; pediu a herança, querendo, em última análise, que seu pai mor-resse. Foi embora de casa, para um país distante, e lá gastou tudo oque possuía. Não bastasse isso, foi trabalhar com porcos, o que eraalgo indigno. Resolve voltar para casa. A reação natural seria ser man-dado embora. Depois do que fizera, não teria nem direito a roupa ealimentação, talvez nem como empregado. Com certeza, o leitor é le-vado pelo autor implícito a não aceitar este ponto de vista, pois nin-guém quereria primeiro errar para aprender o que é realmente certo.

O filho mais velho mostra sua total falta de compaixão. Pensa quetem o direito de recriminar o seu pai. Não considera aquele que voltouseu “irmão”, dirigindo ao pai as palavras “este teu filho” (v. 30). Apa-rentemente, estava muito preocupado com aquilo que era de seu pai.No entanto, a sua reação deveria ter sido outra, se é que realmenteestava interessado no bem da família. Uma vez que o pai estava ale-gre, caberia a ele, como bom filho, também alegrar-se.

É claro que a atitude dele não é apresentada como digna de imita-ção. Seu ponto de vista é meramente o de “retribuir na mesma moe-da”: “O filho gastou o dinheiro? Quis ir embora? Pois bem, que se váagora e não retorne mais”.

91 Jeremias, op. cit., p. 130.

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Mas o ponto de vista preferencial da história é o do pai. Faz a von-tade do filho, dividindo os bens. Mesmo após fazer tal ato de amor, ofilho foge. E quando retorna, o pai vai ao seu encontro, corre até ele,abraça-o e o beija. Para um oriental, pai de família, talvez até de idadeavançada, tratava-se de algo “totalmente incomum e abaixo de suadignidade, mesmo quando tem muita pressa”.92

As atitudes do pai são surpreendentes. Tamanho amor assim não énormal. Não deixa nem o filho terminar o seu discurso, e trata-o comoseu filho querido. Apesar do desacato do filho que havia ficado emcasa, o pai vai até ele com igual amor e procura persuadi-lo a entrarpara a festa. Isso manifesta-se de forma especial na interpelação “meufilho!”, o que equivale a “meu querido!”93

Conclui-se que o ponto de vista do pai é aquele a ser seguido.Suas atitudes são admiradas e exaltadas por todos que realmenteentendem a parábola. A despeito das trapalhadas e do desdém dosseus filhos, o amor do pai sobrepõe-se a tudo e a todos. De tal formaé o amor de Deus, presente em Jesus Cristo, que os publicanos esta-vam tentando reconhecer e os fariseus faziam gosto em desmerecer.

Quanto ao irmão mais velho, o leitor implícito provavelmente senti-rá uma antipatia com relação a ele. “Não é o tipo de pessoa que queroser!” Quanto ao irmão mais novo, é provável que o leitor sinta certasimpatia quando do seu arrependimento, mas na maior parte da nar-rativa sentirá aversão a ele, pois viveu de forma desordenada e im-pensada, gastando algo que o pai havia conquistado com muito traba-lho.

A grande simpatia do leitor ficará com o pai. Afinal, ele fez mais,muito mais do que era esperado. O ponto de vista do pai é o ponto devista divino. O pai é o grande personagem, o protagonista por exce-lência.

Parece claro, pois, pelo contexto da narrativa (15.1-2), que o pairepresenta Deus em Cristo; o filho mais velho seriam os escribas efariseus; e o mais novo, os publicanos e pecadores.94 Aliás, estes per-sonagens, juntamente com os discípulos (que, em geral, têm o mesmoponto de vista de Jesus), são também os personagens do restante doEvangelho segundo Lucas.

Os acontecimentos: A tônica de conflito que perpassa o Evangelho

92 Ibidem, p. 131.93 Ibidem, p. 132.94 Hillyer H. Straton, A Guide to the Parables of Jesus (Grand Rapids: Eerdmans, 1960), p. 89.

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tem destaque neste capítulo: Escribas e fariseus versus publicanos epecadores. Jesus não explicita na parábola esta classificação, mas adeixa subentendida. Ambos cumprem um papel importante na narrati-va dos Evangelhos.95

A narrativa começa com a especificação de que um pai tinha doisfilhos (v. 11). Isto indica que o filho mais velho está na história desde oinício.96 O filho mais moço, então, pede ao pai a parte que lhe cabia dosbens. Teria direito a um terço das propriedades. Como foi visto, estaera uma atitude intempestiva, que trazia uma série de pressupostosembutidos, como até mesmo almejar a morte de seu pai.

Pediu e obteve. O motivo de sua saída de casa não é explicadopelo texto. Foi para uma “terra distante” e lá viveu, esbanjando tudo oque tinha. “Depois de ter consumido tudo” não descreve o tempo queo pródigo levou até gastar tudo o que possuía, mas denota apenas otempo no qual “sobreveio àquele país grande fome”. Não bastasse tergasto todo o dinheiro, uma quebra na economia nacional deixou-o emmaus lençóis. Duas desgraças simultâneas ainda não foram suficien-tes para fazê-lo repensar sua atitude.

Passando necessidade, foi até um dos cidadãos da cidade. Este lhedeu um emprego: cuidar dos porcos da fazenda. Era o extremo dahumilhação. “Ele tem que ocupar-se com animais impuros (Lv 11.7),não pode santificar o sábado, isto é, ele chegou ao extremo da humi-lhação e praticamente obrigado a sempre renegar sua religião”.97 De-sejava comer aquilo que os porcos comiam, ou seja, as alfarrobas.98 Otexto diz que “ninguém lhe dava nada”, o que nos faz pensar na hipó-tese de que até teria roubado para poder se alimentar.

“Caindo em si” é o termo que designa seu arrependimento. Olhoupara trás e viu quantos erros havia cometido ao longo da vida. Notoutambém que até mesmo os empregados do seu pai tinham o que co-mer, e ele tinha de roubar a comida dos porcos. Reconheceu sua indig-nidade de continuar a ser chamado “filho”, mas iria implorar ao pai queo tratasse como um simples e humilde servo seu.

Leon Morris, ao comentar os vv. 18 e 19, observa que o motivo

95 Kingsbury, Conflict in Luke, p. 94.96 Leon L. Morris, Lucas – Introdução e Comentário (São Paulo: Vida Nova e MundoCristão, 1990), p. 226.97 Jeremias, op. cit., p. 131.98 A alfarroba, segundo a Bíblia de Estudo Almeida, era um fruto em forma de vagem,proveniente da alfarrobeira, uma árvore comum na Palestina. Essas vagens serviam dealimento aos animais, e as pessoas sem recursos também as comiam em casos deextrema necessidade.

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inicial do jovem não era especialmente altaneiro (o desejo de ser maisbem alimentado, 17), mas que “a confissão que planejou fazer é umclássico. Expressou tristeza, não por aquilo que perdera, mas sim, poraquilo que fizera: pecara”.99 Ele reconheceu que seu pecado era, antesde tudo, contra Deus, porque o pecado é sempre contra Deus antesde ser contra qualquer outra pessoa. Diante disso, voltou.

Um aspecto textual que se destaca é o fato de ele ter voltado “paraseu pai”, e não para sua aldeia, ou para a fazenda. É provável que opai tinha esperanças de que o filho voltasse. O que chama a atençãono texto não é a volta do pródigo; qualquer ser humano em condiçõesnormais de inteligência saberia que não restava ao filho outra saída, anão ser voltar. Para onde iria, a não ser para casa? Era sua últimacartada.

A grande virada na narrativa é o evento da recepção do pai. Este éo maior ponto de virada. É algo totalmente ilógico, segundo os pa-drões judaicos da época. Jesus, então, não economiza detalhes paramostrar a terna acolhida do pai. “Vinha ele ainda longe, quando seupai o avistou, e, compadecido dele, correndo, o abraçou e beijou”. Comoobserva Bailey, “o pai faz com que a reconciliação se torne pública, naentrada da aldeia. Desta forma, o filho entra na aldeia sob o cuidadoprotetor do pai”. 100 E os atos do pai dispensam palavras. Não há pala-vras de aceitação e boas-vindas. O amor expresso é profundo demaispara ser mostrado através de palavras. Só atos conseguem fazê-lo.

O discurso ensaiado pelo pródigo quando ainda em terra estranhanão foi totalmente concretizado. Foi interrompido pelo beijo e o abraçodo pai.101 O filho conseguiu, porém, dizer o mais importante: estavaarrependido de ter pecado contra Deus e contra o pai.102

Continuam os atos amorosos do pai. Manda que seus servos bus-quem a “melhor roupa”, o “anel” e as “sandálias”. Estes elementosdenotavam o carinho muito especial pelo filho que voltara; são orestabelecimento da sua condição de “filho”.103 O “novilho cevado” eraum animal cuidadosamente tratado, reservado para uma ocasião es-pecial. O fato de o pai ter ordenado que fosse abatido nessa ocasiãorevela que, segundo ele, “dificilmente poderia haver uma ocasião maisespecial do que esta”.104

Começa, então, a grande festa. A ordem vem do próprio pai: “Co-

99 Morris, op. cit., p. 228.100 Bailey, op. cit., p. 230.101 Straton, op. cit., p. 79, 80.102Morris, op. cit., p. 228.103Jeremias, op. cit., p. 132.104 Morris, op. cit., p. 228, 229.

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mamos e regozijemo-nos”. E o grande motivo para a festa é a volta dofilho: “... porque este meu filho estava morto e reviveu, estava perdidoe foi achado”.

Este é o ponto central na narrativa: a festa de chegada do pecadorarrependido, fruto do grande e inesgotável amor do pai.105 É interes-sante notar que, na recepção ao filho mais moço, o tempo do discursoé bem maior do que o tempo da história. Também é verdade que, emse tratando do período em que o filho estava fora de casa, o tempo dodiscurso é menor do que o tempo da história. Fica claro que a intençãodo autor implícito é ressaltar o comportamento divino do pai, o seuponto de vista.

Nas boas-vindas que o pai dá ao filho mais moço, Jesus está ensi-nando que o Pai celestial dá as boas-vindas aos pecadores que vol-tam. Isto era o que os fariseus não queriam entender e realmente nãoentendiam. Os conflitos com os publicanos e, conseqüentemente, comJesus, não deixavam os fariseus entenderem o motivo desta festa ce-leste.

Mas este grande amor do pai não termina aqui, isto é, não se limitaao filho mais novo. O pai também ama o filho mais velho. Para surpresade muitos pregadores, a narrativa prossegue.106 Há muitos folhetos,meditações e pregações que falam sobre a primeira parte da parábo-la; falam coisas bonitas e maravilhosas, mas não dizem, de forma al-guma, o que Jesus nos está ensinando. A história continua no versículo25. É para este tipo de pessoa, orgulhosa, cheia de justiça própria,que Jesus está contando a parábola.

Agora Jesus volta sua atenção ao filho mais velho. Ele também sepreocupa com os fariseus e aquelas pessoas que eram como eles. Oslíderes religiosos não haviam demonstrado nenhuma compaixão paracom os pecadores arrependidos. Esta seção da parábola é necessáriapara a lição integral que Jesus está ensinando.107

O filho mais velho estava trabalhando “no campo” (v. 25) e, en-quanto voltava, ouviu a música e o barulho das danças. O som deveriaestar muito alto, provavelmente orquestrado por artistas, não pelosservos do pai.108 Ele, então, procura um funcionário de seu pai parasaber o que estava ocorrendo.

O servo não se preocupou em contar maiores detalhes ao filho mais

105 McQuilkin, op. cit., p. 53.106 Robert H. Stein, An Introduction to the Parables of Jesus (Philadelphia: Westminster,1981), p. 121.107 Donahue, op. cit., p. 156.108 Morris, op. cit., p. 229.

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velho. Porém, o mais importante foi dito: o seu irmão havia voltado e opai tinha mandado matar o novilho cevado para comemorar a sua vol-ta. O servo acrescenta ainda: “porque o recuperou com saúde” (v. 27).

A reação do filho mais velho foi de indignação. Mais uma caracterís-tica sobre seu caráter. Não quis entrar para a festa. Não se pode dei-xar de ver aqui a semelhança com os fariseus.109 Eles não concebiam aidéia que Jesus comesse com publicanos e pecadores. Não queriamcear junto com tais pessoas. E, agora, são convidados a banqueteartodos juntos, como filhos amados de Deus.

Diante disso, a narrativa tem neste momento mais um ponto devirada: “saindo, porém, o pai, procurava conciliá-lo” (v. 28). Vendo aatitude grotesca do filho, o pai poderia muito bem tê-lo ignorado, dei-xando que resmungasse sozinho. Afinal, ele era o dono de tudo, erapai dos garotos e o anfitrião da festa.

Mas não foi isso que o pai fez. Ele amava o filho mais velho tantoquanto amava o mais novo. Por isso, foi em busca dele. Procurou trazê-lo para junto do irmão mais novo. A festa era para ele também! Aalegria também deveria ser dele! Mas o irmão mais velho não enten-deu assim. Seu orgulho não permitiu.

A resposta irada veio como um torpedo para cima do pai: “Há tan-tos anos que te sirvo e nunca me deste um cabrito sequer para ale-grar-me com os meus amigos” (v. 29). Não podia entender por que seupai ficou tão cheio de alegria com a volta do pródigo. “Queixa-se que opai nunca lhe deu um cabrito (muito menos um novilho) para uma festacom seus amigos (que seriam pessoas respeitáveis e não como oscolegas do outro filho)”.110

Não entendera a posição privilegiada em que se encontrava, comodono de tudo que o pai tinha. Realmente, o filho não havia compreen-dido seu status de filho. Então, continuando com seu discurso de “fi-lho–padrão”, podemos imaginar o filho mais velho dizendo acerca dopai: “Este recebe pecadores e come com eles” (v. 2). Não considera opródigo seu irmão (“esse teu filho” – v. 30).111

No seu longo desabafo, fala que o mais jovem dissipou o dinheirodo seu pai “com meretrizes”, algo que vai além do que foi dito atéentão, e que pode ter sido sua própria invenção.112 Seu egoísmo evaidade ainda o denunciam: “tu mandaste matar para ele o novilhocevado” (v. 30).

109 Prange, op. cit., p. 178.110 Morris, op. cit., p. 229.111 Bailey, op. cit., p. 245.112 Morris, op. cit., p. 230.

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Entra novamente em cena o pai. A despeito das grosserias exingamentos, o pai dá-lhe uma palavra de ternura: “Meu filho”. Sim, ofilho não é servo, não precisa servir como escravo: ele é filho do pai! Abrandura do pai alcança os dois filhos, e não somente o primeiro.

“Tu sempre estás comigo; tudo o que é meu é teu” (v. 31) é oargumento usado pelo pai a fim de lembrar ao filho que a distribuiçãodos bens continuava de pé. Ele não precisava queixar-se acerca docabrito, pois tudo era dele. Tinha os mesmos privilégios do outro filho,mas infelizmente não reconhecia a extensão desses privilégios.

A parábola encerra aqui. O final da parábola é aberto. Digno denota é que o conflito que deu origem à parábola contada por Jesus foio fato de ele receber pecadores e comer com eles, conforme os versos1 e 2. No final da parábola, fica o convite: “Junte-se a nós e vem prafesta”.113 A pergunta que surge agora é: o filho mais velho entrou paraa festa? Isto o texto não responde. Jesus não responde: a respostadepende de cada fariseu.114

Esta é uma parábola do reino, embora o texto não o diga explicita-mente. Ela revela e ensina a graça do reino. É interessante observarque a túnica e o banquete simbolizam a graça de Deus. O título daparábola, “O Pai Amoroso e os Filhos Perdidos”, faz-nos refletir justa-mente sobre isso: em primeiro lugar está o amor do pai, que perdoatodos os desvios dos filhos; a força motriz não é algo de bom nospróprios filhos, que demonstraram o quanto erravam enquanto segui-am seus próprios caminhos. A força motriz é a certeza de que o amordo Pai é maior do que a ira, e que, junto a ele, o perdão é semprecerto.

Função literária: “Quando leitores encontram uma parábola nosEvangelhos, eles precisam perguntar não somente qual é o ponto deJesus, mas qual função literária a parábola tem para o evangelista”.115

Este ponto, extremamente relevante, é um dos objetivos desta inves-tigação. A função que a parábola exerce dentro da narrativa maior doEvangelho conforme Lucas nos ajuda a entender qual o tema centraldo relato.

Já vimos que a parábola foi um recurso retórico importantíssimo noministério de Jesus, pois através desta didática simples as pessoaseram ensinadas a respeito da graça divina e também persuadidas a

113 Prange, op. cit., p. 178.114 Donahue, op. cit., p. 162.115 Tate, op. cit., p. 117.

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“entrarem para a festa do reino”, como ficou explícito na parábola doPai Amoroso e dos Filhos Perdidos.

Muito se tem argumentado que Lucas escreveu sua narrativa ten-do em vista uma apologia da pregação do evangelho aos pobres. Nãohá razão para se negar esta afirmação. Realmente, pelo contexto nar-rativo, vemos que Lucas incluiu, muitas vezes, os pobres e párias dasociedade para dizer que eles também são dignos de ouvir o evange-lho.

Porém, a ênfase extremada nesse tópico pode dar a entender queLucas era uma espécie de “radical socialista”, onde quem tivesse umpouco mais de dinheiro não era amado por Deus e, conseqüentemen-te, indigno de ouvir a maravilhosa mensagem do amor de Deus.

O que Lucas nos diz está muito acima da pregação do evangelhoaos pobres; o autor implícito dá-nos algo muito maior para o entendi-mento da narrativa: Deus ama a todos, indistintamente. Ama tanto osfariseus quanto os publicanos; tanto as mulheres quanto os homens;tanto os ricos quanto os pobres.

Desde o início da narrativa, Lucas descreve a universalidade dasalvação como o tema característico do seu Evangelho. Lucas usa qua-tro vezes a palavra “salvação”, duas vezes “Salvador”, e o verbo “sal-var” também aparece com freqüência.116 Segundo I. H. Marshall, “a idéiada salvação fornece a chave à teologia de Lucas”.117

Lucas começa e termina seu Evangelho com pessoas no templo emJerusalém. Ao todo, refere-se a Jerusalém 31 vezes. Há referências àviagem a Jerusalém, ao templo em Jerusalém, e todas estas referênci-as obrigam-nos a não negligenciar a “qualidade judaica”118 do Evange-lho, isto é, a narrativa não é dirigida somente aos gentios, mas muitoespecialmente também aos judeus.

Isto não é dito apenas pela estatística. O tom pastoral do Evange-lho mostra que a mensagem da salvação é dada aos homens em ge-ral, não somente a Israel, e também não somente aos gentios, comoos publicanos e pecadores.

No capítulo 5, começa o conflito que permeia a narrativa de Lucas.O contexto é Jesus comendo com pecadores, e os fariseus novamenterepudiando a atitude de Jesus. Eles não falam a Jesus, mas interpelamos discípulos. Jesus responde, dizendo que “os sãos não precisam demédico, e sim os doentes” (v. 31).

116 Morris, op. cit., p. 34, 35.117 I. H. Marshall apud Morris, op. cit., p. 35.118 Morris, op. cit., p. 35, 36.

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No capítulo 6, novamente o conflito: Jesus e os discípulos são recri-minados por debulhar espigas no sábado. Jesus é o dono da situação,ele é o Senhor do sábado. Os fariseus parecem não entender, poislogo em seguida atacam Jesus por curar um homem de mão ressequi-da num sábado. No verso 35, Jesus diz: “Pois ele [Deus] é benigno atépara com os ingratos e maus”.

O outro lado da moeda é mostrado no capítulo 7. Jesus cura o ser-vo de um centurião, um sujeito de muita autoridade na época. Não sãosó os desprezados que são amados por Jesus. Todos são amados porele, independentemente da classe social. É verdade que os ricos ti-nham um apego às riquezas que se tornava um obstáculo à fé, masJesus os considera como “perdidos” e quer trazê-los também para juntodo Pai.

Ainda no capítulo 7, Jesus vai até a casa de um fariseu. Lá tambémhá um conflito, por causa da pecadora que unge os pés de Jesus. Ofato de Jesus ter repreendido o fariseu com severa lei deve-se ao fatode ele e, em geral, sua classe, rejeitar a Jesus. A própria parábola doPai Amoroso e dos Filhos Perdidos retrata que o Pai celeste faz istotendo em mente a salvação dos seus filhos.

Quando Jesus ressuscita a filha de Jairo, o “chefe da sinagoga”(8.49-56), mais uma vez fica evidente o amor indiscriminado de Deus.Apesar de rirem de Jesus, apesar de o conflito estar cada vez maisprestes a estourar, Jesus mostra que o seu amor pelos pecadores su-pera as fronteiras do pecado.

Mais uma severa aplicação de lei aos fariseus está registrada em Lc11.37-52. Neste texto, novamente um conflito acentuado, Jesus cen-sura os fariseus por sua falta de fé e, com dor no coração, profere umasérie de “ais”, a fim de que se arrependessem daquilo que estavamfazendo. A repreensão continua no capítulo 12, mas o cuidado de Je-sus é pela salvação de suas almas, o que Lucas mostra com a parábo-la do homem rico, que perdera sua alma por confiar em si e nos seusesforços.

À medida que a narrativa prossegue, o conflito se acentua.119 En-tão, chegamos ao capítulo 15, onde Jesus conta as parábolas acercados perdidos. Estes relatos não são apenas uma justificativa da mis-são aos gentios120; são mais uma prova de que o amor de Deus alcan-ça fariseus e publicanos, os perdidos, aqueles que estavam longe de

119 Esta idéia é advogada por Jack Kingsbury, em “Matthew As Story“ e “Conflict in Luke“.120 Edwards Jr., op. cit., p. 70.

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Deus e que, alcançados pela mensagem salvífica, eram levados a crer.Sim, Deus vai em busca dos perdidos, fruto de sua misericórdia. Emcada uma dessas parábolas, a ênfase recai sobre quem encontra, enão sobre quem está perdido. Essas parábolas apresentam em formanarrativa a teologia paulina da justificação dos pecadores por domimerecido da parte de Deus.121

Com a parábola do fariseu e do publicano no capítulo 18, Jesusnovamente reprova a atitude dos fariseus. O ponto principal é a “jus-tificação” do pecador, o que Jesus queria também para os fariseus, enão apenas para o publicano. Foi para aqueles “que confiavam em simesmos, por se considerarem justos” que Jesus contou a parábola,querendo que a salvação alcançasse a estes também, por estaremperdidos.

“Porque o Filho do Homem veio buscar e salvar o perdido” (19.10)mostra novamente a tônica do evangelho. Os perdidos não são ape-nas os publicanos, mas também e principalmente os escribas e fariseus,que, num certo sentido, estavam mais longe de Deus do que ospublicanos e pecadores.

O conflito torna-se insustentável. Parece que não vai haver saída.Enquanto existir a maldade do pecado na vida do ser humano, e quesó cessará na bem-aventurança eterna, o conflito com Jesus e suapalavra continuará existindo. No entanto, dentro da narrativa de Lucashá uma “resolução fundamental” do conflito entre Jesus e os líderesreligiosos. Segundo Kingsbury, essa resolução fundamental ocorre nofinal do Evangelho (Lc 22.1-24.53).122 Na última cena em que aparecemas autoridades, junto à cruz de Jesus (Lc 23.35), tudo parece indicarque elas saíram vitoriosas. O que elas não percebem, todavia, é aironia de que a morte de Jesus era a vontade de Deus. Ao ressuscitar,Jesus saiu vitorioso em seu conflito com Israel (Lc 24.5-7).

A narrativa total de Lucas nos faz ver um Deus amoroso, disposto epronto a perdoar os pecados dos seus filhos. A parábola do Pai Amoro-so e dos Filhos Perdidos encaixa-se perfeitamente nesta temática. Deusvai em busca dos perdidos, sejam eles fariseus ou publicanos, ricos oupobres, mulheres ou homens. O evangelho é oferecido gratuitamentea todos os homens. Esta notícia é maravilhosa! Proclamemos aos qua-tro ventos esta “manchete internacional”!

121 Donahue, op. cit., p. 159.122 Kingsbury, Conflict in Luke, p. 106.

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Pregando a parábola: As parábolas de Jesus foram e continuamsendo textos de sermão. Cada nova geração de pregadores precisaperguntar: como pregar as parábolas? Em resposta, pode-se dizer queas parábolas precisam ser pregadas respeitando-se três aspectos.

O primeiro diz respeito à descoberta do sentido do todo. Não sepode “sair pregando” a parábola, agarrando-se a uma palavra aqui,outra ali, mas é preciso levar em conta o sentido do todo. Por isso, aAnálise da Narrativa propicia que se veja o texto como um todo, comouma história que tem começo, meio e fim.

Outro aspecto imprescindível é ter em mente o propósito de Jesus.Ele não contou parábolas para informar ou apenas ilustrar. Contouparábolas para captar o ouvinte e levá-lo a uma mudança de atitudediante do reino de Deus. As parábolas são maneiras de falar para den-tro de uma situação problemática, de conflito, procurando trazer o ou-vinte para o ponto de vista divino.

Estes dois aspectos já foram analisados no decorrer deste estudo.Compete agora analisar o terceiro: pregar a parábola – e pregá-la demodo criativo. Como alguém observou certa vez, enquanto Jesus fala-va por parábolas, nós falamos sobre suas parábolas. Como proceder,então?

Basicamente, há duas possibilidades. A primeira é apresentada porJacques Dupont,123 e consiste em transportar o ouvinte (leitor) moder-no ao tempo e lugar em que as parábolas foram inicialmente contadas.Trata-se de fornecer detalhes históricos, culturais, etc. sobre a vida dopovo daquela época. Pode-se fazer isto, embora logo de saída sejanecessário advertir contra o perigo de transformar o sermão num es-tudo exegético.

Para a pregação da parábola do Pai Amoroso e dos Filhos Perdidos,se este for o caminho escolhido, é fundamental que os detalhes histó-ricos e culturais sejam fornecidos. Caso contrário, os ouvintes não en-tenderão o absurdo do pedido do filho, o fato de ele trabalhar comporcos, o novilho cevado e outros detalhes empolgantes da históriaque Jesus contou. Dupont lembra que “o caminho não é impraticável;tem o inconveniente de ser longo, de distrair a atenção do essencialda mensagem em proveito do acessório, de supor um nível culturalrelativamente elevado”.124

Outra possibilidade, na pregação de parábolas, é a tentativa de

123 Jacques Dupont, O método das parábolas de Jesus hoje (Petrópolis: Vozes, 1984), p. 22,23.124 Ibidem, p. 22, 23.

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modernizar as parábolas, adaptando sua linguagem à experiência diá-ria do homem de hoje. Este modelo, levantado por Gerard H. Knoche,procura traduzir as parábolas para a situação contemporânea, ou seja,a vida numa sociedade industrializada e urbana. Em outras palavras,deve-se considerar a possibilidade de traduzir a parábola, usando umcontexto e personagens do mundo de hoje.125

Ligado a isto, e talvez mais complexo ainda, é criar novas parábo-las. Nossa tendência, na verdade, é intelectualizar a parábola, explicarlongamente sua lição. Devemos ter em mente que os ouvintes queremver, apalpar, sentir – e não tanto pensar. Criar novas parábolas, análo-gas àquela de Jesus, com a mesma lição, requer esforço. Quem o qui-ser fazer deve estar disposto a correr o risco de “capotar”. No entanto,não custa tentar.

Aplicando a Parábola do Pai Amoroso e dos Filhos Perdidos, pode-se dizer que falar de uma saída de casa, como o caso do filho maisnovo, pode não ser uma boa solução. Há tantos jovens que tambémsaem de casa, hoje, e não se trata mais de algo tão incomum comonaquela época. O erro de foco com relação ao protagonista pode des-virtuar o ensino da parábola. Colocar a ênfase na volta do filho maisnovo pode dar uma conotação sinergista e legalista para o ensino deJesus.

O amor do pai pelos seus dois filhos (e não apenas um deles) é oponto alto e central da narrativa. É a festa de recepção que dá o tompara a virada do enredo. Para mostrar quão surpreendente é a atitu-de do pai, isto é, a forma amorosa como Deus acolhe o pecador, ArchibaldHunter conta uma parábola oposta, que parece mais verossímil: “Vocêsdevem ter ouvido a história daquele pródigo de nossos dias que, apa-recendo na terra distante da paróquia vizinha, foi aconselhado pelopastor local a ‘voltar para casa, pois o pai acabaria matando o novilhocevado para ele’. Foi o que o pródigo fez. Um tempo depois, aquelepastor e o pródigo tiveram novo encontro. O pastor perguntou: ‘E aí, opai matou o novilho cevado?’ Ao que o pródigo, com ar de tristeza,respondeu: ‘Não, mas ele quase matou o filho pródigo”.126

Por isso, propomos um método narrativo para a proclamação daparábola. Pode-se recontar a história, talvez com fatos atuais, numcontexto bem nosso. Isso pode aguçar a imaginação dos ouvintes, efazer com que captem mais propriamente o sentido da parábola.

Por exemplo, dizer que um filho roubara seu pai, fugira de casa,gastara todo o dinheiro com prostitutas e com drogas, tendo depois

125 Gerard H. Knoche, The Creative Task: Writing the Sermon (St. Louis: Concordia, 1977), p. 9.126 Archibald M. Hunter, The Parables Then and Now (Philadelphia: Westminster, 1975), p. 60.

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que assaltar para poder sobreviver e, mesmo assim, não conseguindoalimentar-se direito, pode chocar o ouvinte, mas pode retratar o im-pacto da parábola que Jesus contou. Tal filho não seria digno de voltarpara casa, nem ser recebido por seu pai. Mas acontece o contrário. Opai gasta uma pequena fortuna para fazer uma festa de recepção aofilho. Retira um dinheiro da poupança, que estava reservado para aampliação de sua empresa, e investe em roupas novas, carro novo eoutros acessórios para o filho que voltara.

O filho que ficara em casa não entende a situação e se revolta.Apesar disso, o pai vai em busca dele, dizendo que ele também o ama-va, e que convinha que ele se alegrasse junto com todos os familiares,por causa do irmão que voltara. O final continua aberto: o filho entroupara a festa ou não?

Mais uma vez, o que surpreende aqui não é a volta do filho que,tendo esgotado todo o seu dinheiro e perdido a sua honra, tem comoúltima alternativa tentar algo em casa, com seu pai. O que chama aatenção é a atitude do pai, amoroso com o filho, alegre por sua volta,jubiloso por encontrá-lo com vida. A mensagem também é direcionadapara o filho mais velho, descontente com tal atitude de seu pai; aquiigualmente fica claro que o filho mais velho não compreende o quesignifica ser filho e, conseqüentemente, dono de tudo, juntamente comseu pai.

Como foi dito, todos os detalhes acima descritos podem chocar oouvinte, mas podem dar uma visão do impacto que Jesus causou hádois mil anos atrás, quando contou esta parábola. Além do mais, opregador que não investe na criatividade, segundo Thielicke, acaba setornando uma testemunha infiel. Traduzir a mensagem para o homemde hoje nos leva a fazer tentativas sempre sujeitas a fracassos, etambém correr riscos. Quem sempre repete as velhas frases não correriscos. Segundo Thielicke, quem fala a mensagem para a necessidadeatual, sempre corre o risco de queimar os dedos na chapa quente daheresia.127

Seja como for, as parábolas estimulam a pregação criativa. Elasindicam que é importante fugir da redução de tudo a um punhado deteses ou verdades e evitar, na medida do possível, aquela terminolo-gia teológica técnica que, por mais importante que seja no contextoeclesial e acadêmico, não se destina ao consumo do grande público.Deve-se resistir ao máximo à tentação de empregar sempre as mes-mas velhas palavras em sempre novas combinações. O estudo dasparábolas nos estimula a isso também.

127 Helmut Thielicke, The Trouble with the Church (New York: Harper & Row, 1965), p. 40.

A PARÁBOLA DO PAI AMOROSO E DOS FILHOS PERDIDOS(LC 15.11-32) SOB A PERSPECTIVA DA ANÁLISE DA NARRATIVA

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15 Se teu irmão pecar [contra ti], vai argüi-lo entre ti eele só; se ele te ouvir, ganhaste a teu irmão; 16 Se, po-rém, não te ouvir, toma ainda contigo uma ou duas pes-soas, para que pelo depoimento de duas ou três teste-munhas toda a palavra se estabeleça. 17 E se ele não osatender, dize-o à igreja; e se recusar a ouvir também aigreja, considera-o como um gentio e publicano. 18 Emverdade vos digo que tudo o que ligardes na terra, terásido ligado no céu, e tudo o que desligardes na terra,terá sido desligado no céu. 19 Em verdade também vosdigo que, se dois dentre vós, sobre a terra, concordarema respeito de qualquer coisa que porventura pedirem,ser-lhes-á concedida por meu Pai que está nos céus. 20

Porque onde estiverem dois ou três reunidos em meunome, aí estou eu no meio deles.

Mateus 18.15-202 é talvez o texto mais conhecido no Evangelho deMateus ou até mesmo do Novo Testamento. Cristãos o têm usado emsituações de litígio e solução de conflitos congregacionais. Seja paralidar com falsa doutrina, disciplina eclesiástica ou outras situações. Al-gumas vezes esse texto até tem funcionado em termos de acusaçãomútua entre as partes conflitantes: “você não procedeu segundoMateus 18”!

Contudo, nós queremos argumentar que o texto 18.15-20 não de-veria ser aplicado em formas que se ignore ou mesmo seja violado seu

PROCEDENDO DE ACORDO COM MATEUS18: UMA INTERPRETAÇÃO DE MATEUS18.15-20 À LUZ DO SEU CONTEXTO1

Jeffrey A. Gibbs e Jeffrey Kloha

1 Jeffrey A. Gibbs and Jeffrey J. Kloha. Professores de Teologia exegética no ConcordiaSeminary de St. Louis, U.S.A. Concordia Journal, Volume 29, Janeiro/2003, Número 1,pp.6-25. Texto traduzido por Anselmo Ernesto Graff, professor na Área Prática do Semi-nário Concórdia e ULBRA e revisado pelo Dr. Vilson Scholz, consultor da SBB, professorno Seminário Concórdia e ULBRA. Traduções do Concordia Journal são publicadas na IgrejaLuterana com permissão dos editores.2 A partir daqui as referências a Mateus serão citadas somente pelo capítulo e versículo.

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contexto no “Discurso Eclesiástico”, que é 18.1-353. Neste ensaio tenta-remos apresentar uma análise da estrutura de 18.1-35, visando mos-trar o devido lugar ocupado pelos versículos 15-20, no capítulo como umtodo. Depois procederemos com uma interpretação específica dosversículos 15-20, procurando entender sua mensagem à luz do seu con-texto no discurso completo de Jesus. Além disso, serão feitas algumasreflexões conclusivas sobre a teologia e aplicação deste texto.

MATEUS 18.1-4 COMO A BASE PARA A ESTRUTURA DE MATEUS 18

Não há um consenso geral a respeito da estrutura e coerência de18.1-35, o quarto dos cinco grandes discursos no Evangelho de Mateus.A monografia de William G. Thompson [1970], que é o único e maiscompreensivo estudo publicado sobre este texto, notou essa falta deconcordância há mais de 30 anos atrás e esta situação não se alte-rou4. Porém, queremos sugerir que Mateus 18 exibe uma unidadetemática que se torna aparente quando alguém define com precisão afunção e figura da criança [paidi,on] em 18.1-4. Antecipando os resul-tados da análise da estrutura do capítulo, em 18.1-4, Jesus usa umacriança para redefinir o conceito de “grandeza” no reino dos céus. Nacomunidade dos discípulos que reconheceram a presença do reino doscéus em Jesus, o maior, o membro mais importante da comunidade éexatamente aquele que está em necessidade de maior de cuidado,alimento e proteção. Ao desenvolver consistentemente o tema do “cui-dado pelo mais necessitado”, cada unidade em Mt 18 contribui para oaumento deste cuidado e culmina com o ensino a respeito do perdãoilimitado que os discípulos de Jesus estendem um ao outro. Para con-firmar o entendimento desta unidade temática de 18.1-35, vamos focara atenção em 18.1-4, especialmente na imagem da “criança” na socie-dade antiga e no Evangelho de Mateus.

Em 18.1 os discípulos de Jesus se aproximam dele e lhe pergun-tam: “Quem é porventura, o maior no reino dos céus?” Dois fatoresajudam a mostrar que os discípulos questionam a Jesus duma pers-

3 Ao referir 18.1-35 como “o Discurso Eclesiástico”, a intenção não é negar a conexãopróxima que existe entre Mt 17.22-27 e 18.1-35. William Thompson argumenta que“naquela hora” (v.1) possui uma grande força conectiva com o texto precedente [“Matthew’sAdvice to a Divided Community, Mt 17.22-18.35“. Analecta Biblica, Roma: Biblical Ins-titute Press, 1970]. De forma similar, D.A.Carson, “Matthew,” in Frank E. Gaebelein, gen.ed., The Expositor’s Bible Commentary, vol. 8 [Grand Rapids: Zondervan, 1984], 396.4 Thompson, “Matthew‘s Advice”, 2-4; Donald A. Hagner, Mateus 14-28, WBC vol. 33b[Nashville: Word, 1995], 514, declara, “Não há unanimidade a respeito da estruturadesse discurso”. Há também um estudo de Daniel Warren Ulrich, “True Greatness: Mat-thew 18 in its Literary Context“, [Dissertação de Ph. D., Union Theological Seminary,Virginia, 1996].

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pectiva que está muito longe da realidade que reflete o reino dos céus.Em primeiro lugar, o caráter geral dos discípulos em Mateus5 nos fazconcluir que em outras ocasiões (13.10; 15.12; 17.19) e também aqui,os discípulos “não sabem o que pedem” (cf.20.22). Um leitor ou ouvin-te bem informado do Evangelho de Mateus sabe que quando os discí-pulos se aproximam de Jesus para lhe perguntar algo, eles quase sem-pre o fazem em ignorância ou motivação pecaminosa. Em segundo lu-gar, o fato de Jesus escolher uma “criança” é tão inesperado, que ficaclaro que ele estava buscando remodelar e radicalmente reformar opensamento de seus discípulos sobre o que significa ser “o maior”6

entre a companhia dos discípulos que o estavam seguindo no tempo7

presente do reino de Deus na história humana8.A resposta inicial de Jesus (18.2-3) não diz respeito diretamente à

questão da grandeza. Antes, ele responde declarando enfaticamenteque somente aqueles que se tornam “como crianças” entrarão no rei-no dos céus no último dia9. Para apreender o uso das palavras deJesus, deve-se determinar tanto o papel como o lugar que as criançasocupavam no mundo antigo e no Judaísmo, bem como verificar o usodo termo “criança”, particularmente no Evangelho de Mateus.

5 Thompson, Matthew‘s Advice”, 84, and W. D. Davies and Dale C. Allison, Jr., A Criticaland Exegetical Commentary on the Gospel According to Saint Matthew, vol. 2 [New York:T. & T. Clark, 1991], 755, concluem que o texto não indica se a pergunta dos discípulosrevela um entendimento deficiente. Porém, o todo mostra os discípulos e as questões queeles fazem a Jesus, especialmente no Evangelho de Mateus, como favoráveis a essainterpretação em 18.1 e sua questão como sendo errada ou inadequada. Ver Jeffrey A.Gibbs, “Jerusalem and Parousia: Jesus’ Eschatological Discourse in Matthew’s Gospel“[St. Louis: Concordia, 2000], 178. Carson, “Matthew,” 396, concorda que a questão dosdiscípulos é equivocada, referindo-se à passagem paralela em Mc 9.33-37.6 O adjetivo de comparação [mei,zwn, literalmente, “maior”] funciona aqui e no versículo 4,como um superlativo [cf. F. Blass and A. Debrunner, trans. and ed. by Robert W. Funk, AGreek Grammar of the New Testament and Other Early Christian Literature - Chicago:University of Chicago Press, 1961, par. 60; James Hope Moulton, A Grammar of NewTestament Greek, vol. III, Syntax by Nigel Turner, 29].7 Não há como determinar com clareza se a pergunta dos discípulos “quem é o maior noreino dos céus”, se refere à manifestação atual do reino dos céus, à futura consumação, oumesmo ambos. Contudo, a resposta de Jesus enfatiza o valor e o cuidado dos discípulosuns pelos outros, já no presente Reino dos céus, presente já agora no ministério de Jesus.8 Donald Senior, C.P., “Matthew 18:21-35,” Interpretation 41 [1987]: 403-405, comenta,“ao contrário da comunidade humana comum [cujo espírito está refletido na pergunta dosdiscípulos] a comunidade de Jesus está construída sobre um diferente padrão de valores,valores que vão de encontro ou mesmo subvertem pressuposições normais. Estranha-mente, no reino dos céus alguém que é humilde, esse é o maior, aquele que parece ser omais fraco, esse é que deve ser o mais valorizado” [403].9 Em Mateus a frase “entrar no reino dos céus/Deus”, consistentemente se refere à salva-ção escatológica final [cf. 5.29; 7.21; 19.23, 24]. Uma possível exceção poderia ser23.13, que, todavia, pode também ser entendida como referência ao futuro. D. L. Stamps,“Children in Late Antiquity,” in Craig A. Evans and Stanley E. Porter, eds., Dictionary ofNew Testament Background [Downers Grove: InterVarsity, 2000],197.

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A cultura e a sociedade greco-romana tinham uma visão diversificadadas crianças e fica difícil resumir em poucas palavras a perspectivageral. Todavia, a principal é de que crianças eram consideradas como“adultos desinformados, que não tinham juízo e por esta razão neces-sitavam ser treinadas, o que incluía inclusive o castigo físico.”10. Embo-ra as crianças claramente fossem, muitas vezes, amadas em suas fa-mílias, o costume romano também permitia pais rejeitarem os filhos“indesejados” e deixá-los morrer ou abandoná-los, expondo-os, paraque outros os encontrassem e os criassem como escravos11. A visão de“criança como uma criança” naquele tempo continha um forte elemen-to negativo, que talvez possa ter sido o componente principal em comoas crianças eram vistas.

Albrecht Oepke12 pesquisou o lugar das crianças especificamenteno Judaísmo do Antigo Testamento. Ele conclui que “o julgamento ge-ral é bem negativo. A criança não tem entendimento e é teimosa. Suainclinação é à desobediência e necessita de firme disciplina humana edivina” (2 Rs 2.23s; Siraque 30.1-13)13. A pesquisa de outros estudio-sos ecoa as conclusões de Oepke14. Crianças não eram modelos decomportamento para os antigos assim como podem ser nos temposmodernos. É difícil imaginar um pensador do primeiro século dizendo,“tudo o que precisei saber, eu aprendi no jardim de infância”.15 Antes,os antigos geralmente consideravam a criança como o menor, o maisdependente, falto de entendimento e dependente da provisão de ou-tros.

10 D. L. Stamps, “Children in Late Antiquity,” in Craig A. Evans and Stanley E. Porter, eds.,Dictionary of New Testament Background [Downers Grove: InterVarsity, 2000], 197.11 Stamps, “Children” 197-198.12 Albrecht Oepke, “pai/j” in TDNT V.636-654.13 Ibid., 646.14 Warren Carter, Matthew: Storyteller, Interpreter, Evangelist [Peabody: Hendrickson,1996], 250, escreve, “A audiência [do Evangelho de Mateus] sabe que no mundo antigoas crianças eram geralmente consideradas como seres insignificantes e marginalizados,o menor, ou menos importante na família (18.2-4). Isto mostra que os discípulos nãobuscam por status maior ou de superioridade aos outros. Todos os discípulos comparti-lham do mesmo status de crianças que dependem uns dos outros e de Deus” [cf.Daviesand Allison, 2.759; Hagner, 517].15 Ulrich Luz, Das Evangelium nach Matthäus, 3. Teilband Mt 18-25 [Zurich: BenzigerVerlag/Neukirchener Verlag, 1997], 12-13, nos ajuda a entender que na história dainterpretação deste capítulo, comentaristas na maioria das vezes não perguntaram “comosão as crianças”, mas antes “como crianças deveriam ser” [“Die Ausleger fragen meistnicht danach, wie Kinder sind, sondern danach, wie Kinder sein sollten.”]. Luz, 13, nessesentido, dá um exemplo de como intérpretes através dos séculos têm caracterizado a“criança ideal”. As idéias variam desde a libertação da experiência sexual [Orígenes], atéa disposição em aceitar a disciplina dos pais [Lutero].

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A figura de “crianças” no Evangelho de Mateus combina de maneirasignificativa e positivamente com esta perspectiva geral na antiguida-de. O vocábulo específico paidi,on em Mateus se refere à figura dodesprotegido Jesus que deve ser abrigado por José e Maria (2.8-9, 11,13-14, 20-21), a crianças que são alimentadas em meio à grande mul-tidão por ocasião dos milagres de Jesus (14.21; 15.28), às criançasque recebem o carinho e a oração de Jesus (19.13-14) e os oponentesadultos de Jesus, os quais são comparados como crianças sem juízoque choram e murmuram (11.16). Quando alguém expande a pesquisapara incluir outras palavras que se referem a crianças, os resultadossão essencialmente os mesmos.16 “Crianças” em Mateus, seja comoreferência literal ou para adultos que agem como crianças, são inap-tas, com necessidades de comida, de proteção, cura, oração, exorcis-mo e revelação divina. Elas não são modelos a serem seguidos nosentido de que elas fazem coisas ou agem de forma exemplar. O maisimportante para entender a seqüência estrutural de Mateus 18 é sa-ber que crianças nunca são exemplos de serviço humilde. Quando em18.2-3 Jesus adverte seus discípulos que eles devem se tornar comocrianças para receber a salvação escatológica final, ele está lhes di-zendo que somente aqueles que reconhecem sua completa necessi-dade e total inabilidade, é que entrarão no reino dos céus no últimodia. Nas palavras de Martin Franzmann, “somente a miséria das crian-ças pode receber a grandeza que Deus confere...”17

Em 18.4 Jesus realmente responde à questão dos discípulos em18.1. “Quem é o maior no reino dos céus”? Baseado (ou=n -18.4) no queJesus acabou de dizer em 18.3, Jesus responde que “aquele que sehumilhar como esta criança, esse é o maior no reino dos céus”. A inter-pretação do “humilhar como esta criança” em 18.4 deve ser consisten-te com o entendimento do “tornardes como crianças” em 18.3, pois18.4 logicamente está construído sobre 18.3. É aqui precisamente quea interpretação tem sido às vezes capenga, considerando que “humi-lhar como esta criança” significa essencialmente “se tornar um servode outros”. Thompson, por exemplo, escreve que “todo o que se humi-lha como uma criança em seu meio será o maior no reino dos céus(v.4). Com essa orientação inicial apontando para a futura entrada egrandeza, a seguinte instrução (18.5-20) mostra como um verdadeiro

16Para “nhpi,oij”, ver 11.25 e 21.16; para “pai/j”, ver 2.16; 8.6, 8, 13; 17.18; 21.15; para“te,knwn”, ver 2.18; 7.11; 9.2; 15.26; 23.37.17 Martin H. Franzmann, “Follow Me: Discipleship According to Saint Matthew” [St.Louis:Concordia, 1961], 151.

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discípulo pratica uma auto-humilhação semelhante à da criança na comu-nidade cristã aqui na terra”.18

É certamente o caso que “humilhar-se” pode, no seu devido con-texto, ser um equivalente semântico de “tornar-se um humilde servode outros”. Este é o sentido geral de outro verbo em Mt 23.11-12 (oúnico uso do verbo tapeinow no Evangelho de Mateus), 2 Co 11.7 e Fp2.8 (cf. o adjetivo usado em Mt 11.29 e 2 Co 10.1). Todavia, “humilhar-se” no Novo Testamento na maioria das vezes significa “reconhecer anecessidade de alguém e dependência”, como em Lc 14.11; 18.14; 2Co 12.21; Fp 4.12; Tg 4.10 e 1 Pe 5.6 (cf. o adjetivo usado em Lc 1.52;Rm 12.16; 2 Co 7.6; Tg 1.9; 4.6; 1 Pe 5.5). Devido à influência contextualde 18.3 e à introdução do chamado de Jesus a “se tornar como crian-ças”, é extremamente improvável que “humilhar-se como uma criança”,em 18.4, seja uma exortação a ser “maior no reino dos céus”, tornan-do-se um humilde servo aos outros. Antes, as palavras de Jesus em18.4 dão uma resposta paradoxal à pergunta dos discípulos. Eles ti-nham perguntado, “quem é o maior no reino dos céus”? Sua respostaé de que aquele que é mais parecido como uma criança é o maior – ouseja, aquele que tem mais necessidades e que demanda um cuidado eproteção maiores, esse é o maior. Humilhar-se “como uma criança”,então, não significa “tornar-se um servo dos outros”, mas tem o senti-do de reconhecer a posição inferior de alguém e olhar para os outros –especialmente para Deus – para buscar ajuda, proteção e direção.Estes pequeninos são os mais importantes, os “maiores” entre os quereconhecem que o reino final de Deus entrou na história através deJesus, o Messias.19 Os discípulos necessitam desta compreensão, poiseste humilhar-se é que evita toda idéia de comparação e auto-sufici-ência e que olha em necessidade para Jesus como Messias e Salvador.

A ESTRUTURA DE MATEUS 18.1-35: UM CRESCENDO DE CUIDADO

A compreensão de 18.1-4 proposto acima é a chave que revela alinha consistente e coerente no restante do capítulo – o tema do “cui-dado pelo maior”. A idéia é oferecer breves comentários referentes a

18 Thompson, Matthew’s Advice, 84 [ênfase do autor]. Robert Gundry, Matthew: A Com-mentary on His Literary and Theological Art [Grand Rapids: Eerdmans, 1982], 361, errade um jeito parecido ao escrever que “a humildade não impede a modéstia e a auto-estima, mas vai ao encontro do serviço concreto em benefício de outros (25.31-46)“.19 A passagem paralela em Lc 9.46-48 explicitamente contém este mesmo ensino para-doxal do “menor e do mais necessitado” como o “maior”. Lá, depois de colocar uma criançano meio dos discípulos, Jesus declara, “pois o menor entre vós, este é o maior”. Estateologia do “mais necessitado como o maior/mais importante” é também bem parecidacom o ponto de vista expresso por Paulo em 1 Co 12.22-25, onde “os membros do corpoque parecem ser mais fracos, são necessários”.

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cada uma das unidades de Mt 18, e depois proceder com a análise de18.15-20.

O discurso pode ser dividido de maneira apropriada em duas se-ções e que são caracterizadas por uma terminologia comum. Davies eAllison sugerem que os seis parágrafos são constituídos em duas uni-dades tríades (18.1-5; 6-9; 10-14 e 18.15-20; 21-22; 23-35) e queestão conectadas por um lado através dos termos “criança/crianças”(18.2, 4, 5) e “pequeninos” (18.6,10,14) e por outro lado, com o termo“irmão” (18.15, 21, 35)20. Há, todavia, algum debate a respeito da po-sição do versículo 5 na estrutura do capítulo. Este versículo está juntocom 18.1-4 ou com 18.6-10? Alguns estudiosos argumentam que em18.5 há uma mudança de assunto e por esta razão 18.5 deveria estarjunto do que vem depois21. Porém, a “narrativa estranha” somenteserá estranha se falhamos em ver que “criança” em 18.1-4 não é tantoum “modelo para o discipulado”, mas um chamado para abandonar oorgulho e reconhecer a própria condição humilde e de necessidadeespiritual. No entanto, se alguém entender corretamente o sentido dacomparação com a “criança” em 18.1-4, fica claro que de fato não hámudança de assunto neste versículo. A “criança” de 18.1-4 não é al-guém que está servindo os outros, mas alguém que precisa ser servi-da e ajudada. As palavras de Jesus em 18.5 avançam neste entendi-mento de “criança”22, ao afirmar que quando um discípulo recebe eministra para tal cristão, que é uma “criança”, aquele discípulo tambémestá recebendo ao mesmo tempo o próprio Jesus23.

Mateus 18.5 é mais bem entendido como um versículo de transi-ção com forte conexão tanto com 18.1-4, como com 18.6-10. Entre osvínculos entre 18.5 e o texto que precede estão o uso de paidi,on, queecoa o mesmo uso do termo em 18.2-4 e o conectivo kai., que muito

20 Davies & Allison, 750; Craig Keener, A Commentary on the Gospel of Matthew [GrandRapids: Eerdmans, 1999], 447-465, concorda com Davies & Allison, embora ele junte18.21-35 como sendo uma unidade.21 Thompson, Matthew’s Advice, 101, comentando sobre o v. 5 diz: “Jesus se refere maisuma vez à criança no meio dos discípulos. Mas desta vez a lição parece ser diferente. Acriança não é mais apresentada aos discípulos como um modelo a ser imitado (vv.3,4),mas representa o tipo de pessoa que eles irão receber em nome de Jesus”. De maneiraparecida Davies & Allison, 759, alegam que no v. 5 “ a narrativa lógica é um poucoestranha. A criança não é mais um modelo a ser imitado [como nos vv.3-4], mas objeto deação de alguém”.22 Carson, “Matthew,“ 398, nos ajuda a notar que “em meu nome” em 18.5, está emparalelo com “aquele que crê em mim” em 18.6. Isto quer dizer que “quem receber umacriança tal como esta em meu nome”, significa “todo aquele que recebe tal criança que crêem mim”.23 Carson, “Matthew“ 398, escreve que 18.5-6 avança com o pensamento ao dirigir aatenção da auto-humilhação do verdadeiro discípulo (vv.3-4), para a maneira que outrosrecebem tal “pequenino”.

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provavelmente não dá início a uma nova unidade de pensamento24.Além disso, a inclusão de “um destes pequeninos” em 18.6 e 18.10sugere que 18.6-10 é uma discreta unidade de material. Por outrolado, conexões entre 18.5 e o que segue incluem as fortes constru-ções condicionais paralelas em 18.5 e 18.6, e o paralelo conceptualentre “meu nome” (18.5) e “que crê em mim” (18.6). Também podeser acrescentado o fato de que Jesus explicitamente responde à ques-tão dos discípulos (18.1) em 18.4 mostra que 18.1-4 é uma unidadedistinta.

Como as conexões verbais, gramaticais e conceituais se dirigem de18.5 em ambas as direções, o versículo é visto melhor como uma tran-sição de 18.1-4 a 18.6-10 e que inclui temas de ambas as seções. Comrespeito a 18.1-4, o v.5 acrescenta a verdade que os discípulos deJesus deveriam estar dispostos a receber e ministrar a “crianças”, quesão os menores e mais necessitados colegas discípulos,25 e tambémsaber que ao ministrar a estes “maiores” no reino dos céus, eles tam-bém ministrarão para o próprio Jesus26. Em relação a 18.6-10, o v. 5afirma positivamente (“receber uma criança”), o que 18.6-10 enfatica-mente declara negativamente: não cause tropeço a um destespequeninos e elimine de si mesmo o que pode escandalizar.27 O quedeveria ser enfatizado sobre toda a seção de 18.1-10, é que há um

24 No ensino de Jesus no evangelho de Mateus, parágrafos novos geralmente não come-çam com kai.. O evangelista prefere o uso de de, ou algum outro conector. Uma rápidapesquisa nos parágrafos apresentados na Nestle-Aland, 27ª edição, revela somente Mt6.5 como um exemplo de uma nova unidade didática começando com kai.25 Começando com 18.5, “criança” e “pequenino” se referem basicamente mais aos meno-res e mais necessitados discípulos de Jesus, do que literalmente a crianças. Isto nãoexcluiria da consideração cristãos jovens, mesmo crianças, só que eles não seriamincluídos por causa da sua idade, mas porque são necessitados.26 Há um óbvio e bem evidente link conceitual entre 18.5 e 25.31-46. Contudo, a teologiados dois textos não é idêntica. Para uma discussão mais completa do significado de25.31-46, ver Gibbs, Jerusalem and Parousia, 213-220.27 Os vv. 8-9 são melhor entendidos como uma estrutura em separado, o que faz emergira advertência contra o escandalizar e fazer cair da fé e em pecado um “pequenino” crente.A seqüência do parágrafo move do “não coloque pedras de tropeço no caminho de outros”para o “se há pedras de tropeço ou causas de pecado e/ou descrença em sua própria vida,elimine os”. Thompson, Matthew’s Advice, 115-117, tenta integrar 18.8-9 de maneiramais próxima dentro do contexto imediato, ao colocar o verbo skandali,zein, com uma força“causativa”, que não resulta no sentido de “causar [você] tropeçar”, mas “fazer de vocêuma pedra de tropeço”. É verdade que verbos que terminam com i,zw realmente carregamum sentido causativo [cf. BDF108.3]. Mas Thompson estendeu o que já tinha um sentidocausativo [isto é, “causar alguém outro tropeçar”] para um sentido causativo duplo nãocontemplado no léxico [“você causar alguém outro tropeçar”]. Hagner, 523, provavelmen-te vai mais direto ao ponto quando ele simplesmente escreve sobre 18.8-9, “a gravidadede pecar e cair da fé é enfatizada com mais ênfase, mas numa espécie de linha deabordagem diferente”.

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progresso no pensamento ou um “crescendo” conceitual28. Depois dosdiscípulos lhe perguntarem sobre quem é o maior, Jesus não pára como ensinamento de que o discípulo “necessitado, que é como uma crian-ça”, é o maior. Ele continua exortando seus discípulos para receber ecuidar de tais “crianças”, e mais, ele os exorta firmemente a não seremcausa de pecado grave ou descrença a esses “pequeninos”.29 A seçãoconclui com uma exortação a não desprezar esses “pequeninos” quecrêem em Jesus. Os anjos estão vendo constantemente a face do Paicelestial, o que quer dizer que tais discípulos lhe são preciosos (18.10).30

A próxima unidade em Mt 18 é 18.12-14.31Ela tem uma conexãoóbvia com 18.6,10, através da frase “a qualquer destes pequeninos”(18.14). Em termos de conceito, esses versículos formam uma unidadedistinta que utiliza uma comparação da prática esperada de pastoresem procurar por uma ovelha desgarrada, a fim de argumentar, do me-nor para o maior, que o Pai celestial dos discípulos não deseja quenenhum “destes pequeninos” pereça. Em termos de fluência datemática do discurso, 18.12-14 representa outro avanço, no aumentoda urgência do cuidado por um necessitado discípulo. Não é o bastan-te meramente evitar a colocação de uma causa de tropeço para al-guém outro que está seguindo a Jesus. Não, os discípulos devem reco-nhecer e agir segundo sua responsabilidade de ir em busca de um

28 Gundry, “Matthew” 358, adequadamente descreve o movimento de Mt 18 quando ele dizque “os sub-tópicos fluem um dentro do outro quase que imperceptivelmente...”29 A força contextual de skandali,zein em 18.6-10 é muito forte, como indicada pelasdrásticas penalidades que esperam aqueles que skandali,zein outro, ou quando se falha emremover os ska,ndala das suas próprias vidas: a alternativa é a condenação escatológicafinal no Geena [cf. Hagner, 522; Davies & Allison, 762; Thompson, Matthew’s Advice,103].30 Nós devemos honestamente admitir que não sabemos com precisão sobre o que Jesusestava falando ao se referir aos “seus anjos” em 18.10. Há alguma evidência no Judaísmoprimitivo, cuja crença num “anjo da guarda” pessoal [cf. T. Levi 5.3, 3 Bar 12-13, T. Adam4.1, T. Jacob 2.5 – observado em Davies & Allison, 770]. Hagner, 527, tem uma posiçãoparecida: “o ponto aqui não é especular sobre o papel dos anjos em assistir discípulos deJesus, mas simplesmente enfatizar a importância dos discípulos diante de Deus”.31Pode muito bem ser o caso que, assim como 18.5, 18.10 é um versículo de transiçãoentre o texto precedente e posterior. Os links entre 18.10 e o texto precedente inclui “umdestes pequeninos” (cf. 18.6) e a proibição explícita em não desprezá-los (cf. 18.6 e aproibição de não causar tropeço em pecado ou descrença). A conexão com o que segueconsiste na frase“ um destes pequeninos”, repetido também em 18.14.

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membro do rebanho que começou a se desviar da vida e fé comum32. Éassim que Deus agiria com um discípulo que começa a se desviar33 e éassim que os discípulos devem “cuidar do maior/o mais necessitadodiscípulo”.

Na seqüência vem 18.15-20. Parte deste capítulo que terá umainterpretação mais ampla. Contudo, antes de seguir com os próximosversículos, nós deveríamos notar que 18.15-20 adiciona algo a maisàquele crescendo temático. Considerando que em 18.12-14 Jesus en-sina seus discípulos que eles devem procurar pelo irmão que se dis-persou do rebanho, em 18.15-20, Jesus revela a cada um dos seusdiscípulos que se um irmão cometer um pecado público, sério e pesso-al, contra um deles, cada um tem a responsabilidade de ir individual eprivadamente em busca da reconciliação e a restauração da relaçãohorizontal que sofreu ruptura. Essa necessidade de cuidado e con-quista do irmão pecador é tão urgente que até a comunidade temenvolvimento. Tragicamente, se esta busca e cuidado se mostraremineficazes, a ruptura da relação horizontal deve ser declarada o queela de fato é, a saber, um sinal de que o irmão em pecado tambémrompeu sua relação com a comunidade inteira e com o próprio Deus.

As seções finais de Mateus 18 (18.21-22 e 18.23-35) podem serconsideradas em conjunto. Aqui o ensino de Jesus continua com o temado “cuidado pelo irmão que pecou contra mim” que começou em 18.15-20. Em 18.21, Pedro se aproxima de Jesus e lhe faz uma pergunta. Àluz de 18.1 e o “caráter” geral dos discípulos, não é de se surpreender

32John Paul Heil, “Ezekiel 34 and the Narrative Strategy of the Shepherd and Sheep Meta-phor in Matthew,” CBQ 55 [1993]: 698-708, pesquisa o tema do “pastor e das ovelhas”no evangelho de Mateus. Ele conclui, 704, (corretamente em nosso julgamento) que18.12-14 se refere mais diretamente à ação dos discípulos em procurar “ovelhas” que sedispersaram, do que a procura divina em Jesus. Todavia, há um eco consciente da açãodivina nisso, como Heil destaca mais abaixo, no pano de fundo de 18.12-14, há a promes-sa de Ez 34.16, onde Deus promete “a perdida [avpolwlo,j] buscarei [zh,thsw] e a desgarrada[planw,menon] tornarei a trazer” (cf. Davies & Allison, 769). Henry Alford, Alford’s GreekTestament: An Exegetical and Critical Commentary, vol. 1, pt. 1, Matthew-Mark [GrandRapids: Guardian Press, 1976], 187, afirma que 18.12-14 se refere “diretamente à obrade Cristo”.33Gundry, Matthew, 365, conclui que “uma ovelha não representa alguém perdido [isto é,um descrente], mas alguém em perigo de se perder ao afastar-se do rebanho” [isto é, umdiscípulo que professou sua fé em perigo de apostatar - cf. Davies & Allison, 773; Hagner,527]. Isto significa que o sentido de 18.12-14 difere um pouco do texto paralelo em Lc15.3-7, a principal interpretação da qual se aplica diretamente ao próprio ministério deJesus. Tanto John Wenham, Redating Matthew, Mark and Luke: A Fresh Assault on theSynoptic Problem [Downers Grove: InterVarsity, 1992], 74, and Carson, “Matthew,” 400,apresentam argumentos convincentes de que embora 18.12-14 e Lc 15.4-7 estão clara-mente relacionados, eles são unidades distintas e discretas do ensino parabólico deJesus.

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que a atitude de Pedro está longe do ensino do seu Senhor34. Ao invésde querer perdoar sete vezes ao irmão que pecou contra ele, Pedrodeveria estar pronto a oferecer perdão ilimitado35. Aqui Mateus 18 atingeo clímax do seu “crescendo de cuidado”. A parábola do credorincompassivo é significativa pela maneira extravagante que descreveo perdão divino e que está manifesto em Jesus no reino dos céus36.Também é notável o ensino que este perdão divino pode, irá e deverámotivar os discípulos de Jesus a sempre perdoar um ao outro.

Esta é a principal expressão de cuidado pelos “pequeninos” na co-munidade. Do mesmo perdão pelo qual os servos são sustentados emsua relação com o seu rei, fluirá o cuidado destes servos pelos irmãos.

Nós poderíamos resumir a estrutura de 18.1-35 como um todo daseguinte maneira. Em resposta à desinformada pergunta dos discípu-los, Jesus revela que os “maiores” no reino dos céus são realmente osmais necessitados, aqueles que demandam um cuidado maior dos dis-cípulos. Esta verdade é tão crucial que aqueles que recebem e minis-tram para tais “pequeninos” deveriam se dar conta de que estão cui-dando do próprio Jesus (18.1-5). Aos discípulos não cabe somente re-ceber tais discípulos necessitados, mas eles também devem a todocusto evitar que sejam motivo de tropeço e fazê-los cair em pecado edescrença (18.5-10). Sim, Jesus ensina, quando um necessitado discí-pulo parece ser uma ovelha que está se desviando da segurança dorebanho, outros discípulos devem ir atrás e trazê-la de volta (18.12-14). Mesmo que seja um caso de pecado pessoal contra o próprio dis-cípulo, ele deve sair atrás do irmão ou irmã que pecou e procurar ganhá-los de volta (18.15-20). E qual será o tamanho do perdão quando um

34 Ver nota 3 acima.35 Não se deveria perder de vista a alusão a Gn 4.24 na resposta de Jesus a Pedro. Lá,Lameque orgulhosamente anuncia, “Sete vezes se tomará vingança de Caim, de Lameque,porém, setenta vezes sete”. Como Thompson, Matthew’s Advice, 208, comenta, “Jesusreverte o espírito da vingança ilimitada...”36Estudiosos rotineiramente notam o incompreensível valor da dívida de 10.000 talentos,um valor que é “uma hipérbole que chega a ser engraçada ... o pobre homem deve ao reimais dinheiro do que está em circulação no país naquela época!” [Keener, Matthew, 458-459]. Martinus C. De Boer, “Ten Thousand Talents? Matthew’s Interpretation and Redac-tion of the Parable of the Unforgiving Servant (Mt 18.23-35),” CBQ 50 [1988]:214-232,crê que o tamanho da dívida confere à parábola um aspecto de improbabilidade e sugereque Mateus originalmente tenha pensado em 10.000 denários [De Boer, 218-219]. Davi-es & Allison, 795, seguem o argumento de De Boer em grande medida. O problemaessencial com o argumento de De Boer é que sua pressuposição é de que as parábolas deJesus devem se “plausíveis”. Como Norman Huffmann, “Atypical Features in the Parables of Jesus“ JBL 97[1978): 207-220, apontou há muito tempo atrás, muitos se não a maioria, que as pará-bolas de Jesus contêm elementos que não são “aplicáveis à vida real”.

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irmão peca contra o irmão? Tão grande quanto o perdão que os discí-pulos recebem de Deus, seu Pai celestial (18.21-35). Assim será nacomunidade daqueles que estão sob as bênçãos do reino dos céus,presente agora em Jesus, que veio para salvar seu povo dos seuspecados (Mt 1.21).

Mateus 18.15-20 deve ser interpretado neste contexto de cuidadopelos “pequeninos” que são irmãos. Agora podemos proceder com umbreve exame do texto.

UMA INTERPRETAÇÃO DE MATEUS 18.15-20À LUZ DE SEU CONTEXTO

O texto de Mt 18.15 apresenta de início um desafio para a interpre-tação e aplicação. Como deveriam ser lidas as palavras de Jesus? “Seo teu irmão pecar contra ti”? [eivj se.] Ou deveria a frase preposicionalser omitida e assim ser possível um sentido mais geral? O problema dacrítica textual é genuinamente difícil, e quase nenhuma discussão sig-nificativa do problema aparece na literatura especializada. No apêndi-ce deste estudo nós vamos apresentar evidências e argumentos quesustentam a leitura mais longa do texto, “contra ti”. Combinado com afrase do versículo 15 “entre ti e ele só”, a leitura mais longa deixa claroque a situação projetada no ensino de Jesus envolve um pecado co-metido diretamente contra um irmão na fé. O contexto no qual o peca-do ocorre é da evkklhsi,a, isto é, uma comunidade ou igreja local dosdiscípulos de Jesus.

Porém, o pecado descrito em 18.15 não pode ser considerado comoum assunto “meramente pessoal”. Seguindo com a metáfora de “bus-car pela ovelha desgarrada”, o uso do verbo “ganhar” [kerdainw] dizalgo importante sobre a natureza do pecado que Jesus tem em menteem seu ensino37. O sentido real de kerdainw implica que alguma coisaou alguém estava perdido ou não estava na devida custódia. Todos osusos de kerdainw em Mateus ilustram este ponto38 e podemos atélembrar 1 Pedro 3.1 e especialmente 1 Coríntios 9.19-22. Como umresultado do pecado que o ensino de Jesus tem em vista, o irmãopecador está em perigo de romper sua relação com seus irmãos discí-

37 William L. Kynes, “A Christology of Solidarity: Jesus as the Representative of His Peoplein Matthew“ [Lanham, MD: University Press of America, 1991], 120, enfatiza que há umaconexão conceitual entre “procurar uma ovelha que se extraviou” e “ganhar um irmão quepode estar perdido” [cf. Wilhelm Pesch, Matthäus als Seelsorger: Das neue Verständnisder Evangelien dargestellt am Beispiel von Matthäus 18 - Stuttgart: Verlag KatholischesBibelwerk, 1966- 37-38].38Mt 16.26; 25.16,17,20,22.

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pulos e em necessidade de ser ganho. Esse pecado é um assunto tãosério que os outros, que são testemunhas do mesmo (e, a rigor, todaa comunidade), podem acabar sendo envolvidos na questão.39 Tragica-mente, se não houver arrependimento por parte do pecador, o resul-tado pode ser a declaração de que o pecador impenitente fique carac-terizado como “gentio e publicano” e não mais membro da igreja40. Épróprio observar que o pecado tratado pode ser caracterizado comoóbvio e conhecido de outros que testemunhariam sua existência.

O que fica pressuposto no ensino de 18.15-20 é o relacionamento

39 Há uma espécie de “lacuna” semântica na afirmação de 18.16, “que pela boca de duasou três testemunhas toda a palavra se estabeleça”. Testemunhar o quê? Luz, Evangelium,43, representa muitos estudiosos, ao afirmar que as testemunhas adicionais não teste-munhariam o pecado em si, mas a conversa entre o irmão que pecou e o ofendido. [cf.Hagner, 532; Gundry, 368; Leon Morris, The Gospel According to Matthew - Grand Rapi-ds: Eerdmans, 1992- 468; R. T. France, The Gospel According to Matthew: An Introduc-tion and Commentary - Grand Rapids: Eerdmans, 1985 - 274; W. F. Albright and C. S.Mann, The Anchor Bible: Matthew - New York: Doubleday, 1971 – 220]. Nenhum destesautores citados acima oferece argumentos consistentes que provem sua posição de queaquela uma, ou as duas testemunhas não estão testemunhando o pecado que ocorreu.Carson, “Matthew,” 403, admite que a decisão“ não é clara à primeira vista”. Ele prefere aopção da maioria porque Dt 19.15 descreve antes uma “condenação judicial” do que“tentativas de convencer um irmão da sua falta”. Mas isto também não deixa claro por queisto deveria ser um argumento em favor do que a maioria pensa. Mas diversos fatorestornam mais provável que “testemunhas” podem testificar que o pecado de fato aconte-ceu. Primeiro, na passagem do Antigo Testamento aqui citada (Dt 19.15) as testemunhasenvolvidas são testemunhas do pecado. Segundo, nas outras passagens do Novo Testa-mento que citam ou aludem a Dt 19.15, as testemunhas são testemunhas do assuntodiretamente ligado a elas e não somente testemunhas secundárias para algum processoposterior (cf. especialmente 1Tm 5.19; também 2Co 13.1; Jo 8.17). Terceiro, podemosexaminar os usos do verbo marture,w para determinar o “objeto” implícito desse “testemu-nhar”. Na LXX e Novo Testamento somente Dt 31.21 e At 14.3 poderiam ser paralelos deum “testemunho secundário que uma conversação ocorreu”. Em forte contraste, 10 textosna LXX e mais do que 70 no Novo Testamento mostram que geralmente alguém é uma“testemunha” de um ato em que está diretamente envolvido, mesmo quando este teste-munhar acontece num contexto subseqüente (cf. Susanna 1:41; At 21.24; 22.5; 26.5).Para uma importante discussão sobre esta questão do “vínculo externo no caso de pala-vras que representam acontecimentos” na exegese, ver James W. Voelz, What DoesThisMean? Principles of Biblical Interpretation in the Post-Modern World, 2e [St. Louis]. Paraconcluir, um momento de reflexão mostra que o ponto de vista majoritário representadopor Luz e outros é inerentemente improvável. Se aquela uma testemunha ou outras duasdevem somente testemunhar de que um irmão confrontou o outro sobre o assunto de umalegado pecado, e do qual as testemunhas não têm conhecimento primário, o que evitariaa decepção das testemunhas se elas mesmas não poderiam confirmar o pecado queocorreu? Parece ser mais provável que outros que são trazidos para o caso tambémestarão aptos para atestar que este pecado de fato ocorreu. Isto também sublinha o fatode que o pecado é “de tal natureza que não se pode fazer vistas grossas, como se fosseuma fraqueza da qual todos somos vítimas, algumas vezes diariamente” [R.C.H. Lenski]The Interpretation of Matthew’s Gospel [Columbus: Wartburg, 1943], 698). Para confir-mar nosso ponto de vista, recomendamos ver também Matthew, 454.40 Davies & Allison, 785, declara com clareza: “Por esta razão, a passagem trata daexcomunhão” [cf. Carson, 403; Gundry, 368].

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indestrutível entre a dimensão horizontal e vertical da evkklhsi,a cristã.Certamente, 18.15-20 meramente apresenta um lado da moeda; 18.21-35 proclama o outro lado. Por um lado, quando um discípulo peca con-tra outro, o ofendido reconhece que este pecado é sintomático de umproblema maior e, em preocupação amorosa,41 a parte injuriada vaiatrás para buscar o arrependimento e reconciliação com o pecador(18.5-20). O motivo real do ofendido é o bem estar espiritual daqueleque pecou. Por outro lado, cada discípulo cristão deve também saberque, quando o perdão é buscado genuinamente por outro discípuloque pecou, cada perdão pode ser suspenso somente quando há riscode violar e negar a relação de alguém com o Pai celestial (18.21-35)42.

O contexto imediato então deixa claro o suficiente que o “ligar e odesligar” de 18.18 refere-se à declaração43 da igreja sobre a terra doque já é verdade no céu a respeito do irmão que pecou e sua condiçãode membro ou exclusão da comunidade cristã44. A promessa da pre-sença de Jesus45 e da resposta do Pai à oração não são promessasgenéricas. Estas promessas deveriam ser conectadas de maneira es-

41 Timothy R. Carmody, “Mateus 18.15-17 in Relation to Three Texts from Qumran, Lite-rature CD 9:2-8, 16-22; 1QS 5:25B6:1,” 141-158, in Maurya P. Horgan and Paul J.Kobelski, eds., To Touch the Text: Biblical and Related Studies in Honor of Joseph A.Fitzmyer, S.J. [New York: Crossroad, 1989] apresenta um valioso contraste entre o ensi-no de Jesus em Mt 18.15-20 e a legislação de Qumran [CD 9:2-8, 16-22 and 1 QS 5:25-6:1]. Os textos de Mateus e de Qumran têm em comum um mesmo vínculo com o texto deLv 19.17-18. No entanto, Carmody escreve que para Mateus “perdão e arrependimentosão as principais preocupações... em contraste, em CD 9:16-22, a infidelidade tem a vercom a transgressão da lei e é tratada em termos da punição descrita ou prescrita pelaprópria lei” [151]. Além disso, em Qumran o ato de reprovar o irmão que pecou é em favordaquele que fará a reprovação; em Mateus, é em favor daquele irmão que pecou [152].Terceiro, em Qumran as testemunhas envolvidas devem provar o erro do pecador junto àcorte; em Mateus, elas devem convencer o pecador do seu próprio problema espiritual[155]. E por fim, em Qumran a parte culpada é punida pela comunidade; em Mateus não hápunição, mas uma mudança de status – de membro de uma comunidade de salvos à perdade tal condição de membro [157].42 Victor Pfitzner, “Purified Community–Purified Sinner: Exclusion from the CommunityAccording to Matthew 18:15-18 and 1 Corinthians 5:1-5,” Australian Biblical Review 30[1982]: 34-55, destaca, 37, que o “v. 17 fala do julgamento de um pecador impenitente.Igualmente, o irmão que mostrar indisposição para reconsiderar e perdoar outra pessoana igreja deve saber que está sob o julgamento divino”.43 Note os verbos na segunda e terceira pessoas do plural em 18.18-20 [cf. Do poder ePrimado do Papa, Livro de Concórdia, p.350.24].44 Nós concordamos com Carson, 371-372, que o futuro perfeito perifrástico das formasverbais em 18.18 [e;stai dedeme,na e e;stai lelume,na] deveriam ser traduzidas mais em suaforça literal “terão sido ligadas/desligadas”. A razão de Carson por esta escolha numponto ambíguo da gramática é de que uma completa lista de formas do verbo lu,w estavadisponível para Mateus e que se ele tivesse desejado expressar uma mera forma no futuroperifrástico [isto é, “será ligado/desligado”], ele poderia prontamente ter feito assim; parao ponto de vista contrário, C. F. D. Moule, An Idiom Book of New Testament Greek Cam-bridge: Cambridge University Press, 1979], 18; Ernest DeWitt Burton, Syntax of theMoods and Tenses in New Testament Greek [Grand Rapids: Kregel, 1982], 94. O fato deque a decisão da igreja segue a decisão do próprio Deus tanto no aspecto lógico quanto notemporal não dilui a força do “tudo o que vós ligardes”. A decisão da igreja para ligar oudesligar é a atualização na terra da realidade celestial.

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pecial com o assunto em discussão, a saber, a dolorida realidade dadisciplina eclesiástica quando a busca em ganhar o irmão pecador semostra infrutífera46.

Em resumo, 18.15-20 é uma peça no contexto maior de Mateus 18e deve ser lido à luz deste contexto. Jesus ensina em 18.15-20 sobreo cuidado que os seus discípulos devem aplicar um ao outro, um cuida-do que compele a um irmão “ofendido” a buscar o bem do outro quepecou contra ele. O relacionamento entre os discípulos como “irmãos”é precioso e deve ser honrado e protegido. E quando isto é colocadoem perigo ou risco, não devem ser economizados esforços na conquis-ta da restauração desse relacionamento e ganhar aquele irmão para acomunidade e para Deus.

REFLEXÃO E APLICAÇÃO

Mateus 18.15-20 está situado num contexto literário e deve serinterpretado e aplicado à luz deste contexto. Isto significa, acima detudo, que o ensino de Jesus aqui tem a ver com a preocupação e ocuidado pelo outro, o necessitado irmão cristão – neste caso o irmãocristão está necessitado e “como uma criança”, precisamente porqueele caiu em pecado contra o discípulo irmão. Num provável contraste àabordagem na comunidade de Qumran47 (e a abordagem do “homemnatural” em todas as comunidades), o objetivo primeiro nunca é “con-vencer” o pecador ou mesmo estabelecer os “direitos” do irmão contraquem o pecado ocorreu. O irmão que pecou é um irmão em necessida-de de arrependimento, restauração e reconciliação. Aquele contra quemo pecado foi cometido deve ir atrás dele e tentar trazê-lo de voltacomo um irmão.

Além disso, o ensino de Jesus trata aqui de maneira clara de casosde pecados de um cristão contra o outro. O contexto no qual isto acon-

45 Joseph Sievers, “Where Two or Three…: The Rabbinic Concept of Shekhinah and Matthew18.20“ 171-182, in Asher Finkel and Lawrence Frizzell, eds., “Standing before God: Stu-dies on Prayer in Scriptures and in Tradition with essays in Honor of John M.Oesterreicher“[New York: Ktav, 1981], argumenta em favor de uma conexão próxima e mesmo literáriaentre 18.19-20 e o conceito da presença divina ou Shekhinah que emana da teologia dotemplo de Jerusalém como o lugar da habitação de Deus. Sievers levanta a intrigantepossibilidade de que o ensino de Jesus aqui deliberadamente evoca um conhecido ensinodo seu dia. Mas onde a tradição judaica coloca a glória de Deus no meio dos que estudama Torá, Jesus afirma que ele estará presente entre os que se reúnem em seu Nome (cf.Kynes, “Solidarity,” 128, “Jesus assume um papel divino e sua presença com seus discí-pulos é equivalente à presença do próprio Deus”).46De acordo com Kynes, “Solidarity,” 127, a conexão de 18.19-20 a 18.18 é indicada pelorepetido contraste de “nos céus” e “sobre a terra” (18.18 e 19), bem como pela forçacontinuativa do “em verdade” [pa,lin] em 18.19.47 Ver nota 43 acima.

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teceria é a congregação cristã local, que poderia fazer parte do pro-cesso de alcançar o pecador, mas ainda um irmão impenitente. Haverámuitos casos em que cristãos escolherão “voltar a outra face” e ir “umamilha extra” num espírito de tolerância, misericórdia e perdão paciente(Mt 5.38-42). Mas em situações das quais fala 18.15-20, ignorar o pe-cado não é possível, por causa do perigo que este representa para aqueleque pecou. Por esta razão, o ensino aqui não se aplica a situações emque cristãos estão em conflito ou disputas um com o outro, a não serque o conflito envolva um claro e grave pecado. Esta passagem, po-rém, não é sobre “resolução de conflitos” em si. Ela é sobre uma pro-funda preocupação por um irmão que é apanhado em uma transgres-são48.

Também podemos afirmar que 18.15-20 não se aplica igualmente acada situação que precisa ser corrigida na igreja. Uma ocasião contro-versa é quando um cristão pensa que outro cristão tem ensinado pu-blicamente doutrina falsa. Mas a não ser que o falso ensino é de talnatureza que se teme que a pessoa que ensina isso possa estar per-dida e em necessidade de ser ganha, é difícil ver como “Mateus 18”pode ser usado como uma espécie de exigência legal para lidar comsituações desta espécie. Tendo dito isto, contudo, seria de esperarque em casos onde um cristão (leigo ou clérigo) acredita que outroensinou algo que contradiz o puro ensino bíblico, o cristão preocupadodeveria ter o bom senso e a decência cristã e não apressar o julga-mento, mas fazer todo o esforço para falar direta, paciente e amorosa-mente com a outra parte em questão. Mateus 18.15-20 não é, afinalde contas, o único texto que se aplica ao nosso lidar de um para comoutro, como discípulos de Jesus.

Finalmente, e talvez o mais importante, 18.15-20 não “fornece re-gras para a excomunhão” (embora isto certamente é uma das maisdoloridas aplicações válidas deste ensino). Antes, esta “regra de Cris-to” revela a vontade de Cristo para seus discípulos e seu cuidado deum para com outro. Numa sociedade humana “normal”, a pessoa quefoi mal-tratada tem seus direitos e a pessoa que cometeu o erro deve-ria tomar a iniciativa e fazer a reparação. Mas isto não é assim entre osque seguem a Jesus. O amor perdoador que une os discípulos a Jesus

48 Ao enfatizar uma leitura contextual mais rígida de 18.15-20, não estamos sugerindoque não se possa aplicar o texto a outras situações, como a resolução de conflitos entrecristãos. Mas se este trecho da Escritura for aplicado assim, deveria ficar bem claro queesta aplicação é uma extensão do significado do texto e não o seu sentido primário. Istoajudará a prevenir eventuais usos equivocados e abusos da verdade escriturística queestão sempre à mão quando a Escritura é lida e é usada para extrair textos de prova quesão isolados de seu contexto original.

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é tão consistente, que este mesmo amor moverá o irmão que foi preju-dicado em direção ao que o lesou. O alvo será restaurar sua relação emanifestar seu relacionamento comum com Deus em Cristo, atravésdo arrependimento e restauração perdoadora49.

APÊNDICE: A LEITURA DE “CONTRA TI” [eivj seeivj seeivj seeivj seeivj se] EM MATEUS 18.15

Introdução ao problema

Originalmente, o texto de 18.15 dizia “se teu irmão pecar contra ti”[eivj se] ou “se teu irmão pecar?” O aparato crítico da 27ª edição deNestle-Aland lista os seguintes testemunhos em apoio à leitura maislonga: D L W Q 078 f13 33 Texto Majoritário Vetus Latina Siríaca Médio-Egípcia, Boaírica (em parte). O apoio para a leitura mais breve vem dea B 0281 f1 [mas não 118] 22 579 pc [= poucos] Saídica boaírica (par-te); Orígenes, Basílio e Cirilo50. Nestle-Aland coloca a locuçãopreposicional entre colchetes, indicando que “os críticos de texto dosnossos dias não estão completamente convencidos da autenticidadedestas palavras”.51 Comentaristas que abordam 18.15 também nãotêm unanimidade quanto à omissão ou inclusão do “contra ti”52. Nósencontramos somente uma análise completa deste problema de críticatextual, que é a de José M. Bover, S.J., “Si peccaverit in te frater tuus...Mt. 18:15,” Estudios Bíblicos 12 [1953], 195-198. Nós faremos referên-

49 Dietrich Bonhoeffer, Vida em Comunhão, trad. John W. Doberstein [San Francisco:Harper & Row, 1954], 28, escreve, “Assim a hora de desilusão com meu irmão se tornaincomparavelmente salutar, porque me ensina plenamente que ninguém de nós pode viverpor suas próprias palavras e atos, mas somente por aquela uma Palavra e Ato que nos une– o perdão de pecados em Jesus Cristo”.50A evidência a respeito do minúsculo 22, Basílio e Cirilo vem de M. J. Lagrange, Évangileselon Saint Matthieu [Paris: J. Gabalda, 1948], 353 [cf. Carson, 404]. A evidência para aleitura do minúsculo 118 vem de Reuben Swanson, ed., New Testament Greek Manus-cripts: Variant Readings Arranged in Horizontal Lines against Codex Vaticanus. Matthew[Sheffield: Sheffield/Pasadena, CA: Wm. Carey, 1995], 174.51Nestle-Aland, Novum Testamentum Graece [Deutsche Bibelgesellschaft, 1994], 49.Bruce M. Metzger, A Textual Commentary on the Greek New Testament [New York: UnitedBible Societies, 1971], 45, classifica a leitura com a letra “C,” indicando que “há umconsiderável grau de dúvida se o texto ou o aparato contém a leitura preferível” [xxviii].52Entre os autores que incluem a locução preposicional estão: Alford, 1.187; Gundry,Matthew, 367; Davies & Allison, 782; Carson, 404; Luz, Evangelium, 38; Paul Gaechter,Das Matthäus Evangelium: Ein Kommentar [Munich: Tyrolia-Verlag, 1962], 598. Entreos que omitem a locução estão R. T. France, The Gospel According to Matthew: AnIntroduction and Commentary [Grand Rapids: Eerdmans, 1985], 274; Thompson,Matthew’s Advice, 176; Pfitzner, “Purified Community,” 37; Lagrange, Saint Matthieu,353; Carmody, “Matthew 18:15-17,” 150; Kynes, “Solidarity,” 120-121.

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cia aos argumentos de Bover abaixo.Como há manuscritos que apóiam a leitura mais longa e manuscri-

tos que apóiam a mais breve, que argumentos podem ser usados paradefender cada posição? Nós podemos listar os cinco argumentos se-guintes favoráveis à leitura mais longa. Primeiro, é possível que escribasde um período mais recente tenham omitido a locução preposicionaloriginal, a fim de tornar o ensino de Jesus aplicável de maneira maisgeral e não limitá-lo a pecados que foram cometidos especificamentecontra um indivíduo53. Segundo, pode-se defender a primazia da leitu-ra mais longa porque ela se encaixa melhor dentro do contexto “pes-soal”, tanto de 18.15b (“entre ti e ele só”) quanto de 18.21 (“atéquantas vezes meu irmão pecará contra mim...”).54 Terceiro, algunsestudiosos indicam a possibilidade de que a locução eivj se, tenha sidoomitida mais tarde por causa da pronúncia idêntica à pronúncia dapalavra anterior, a`marth,sh|.55 Quarto, alguns afirmam que a leitura maisbreve surgiu devido a uma assimilação ao texto paralelo de Lc 17.3:“Se teu irmão pecar, repreende-o; se ele se arrepender, perdoa-lhe”.56

E por fim, baseado na obra de James Royse, pode-se argumentar que,nos papiros mais antigos, a tendência geral no papiro dos copistas eraa de encurtar o texto, ao invés de alongá-lo, e que a leitura mais brevede 18.15 surgiu desta tendência57.

Entre os argumentos a favor da originalidade da leitura mais brevepodem ser listados os seguintes. Primeiro, o acréscimo de “contra ti”poderia ter surgido da tendência geral dos escribas em harmonizar otexto com o contexto imediato, sendo que, neste caso, um escribateria ajustado o texto para fazê-lo mais coerente com o “entre ti e elesó” em 18.15b e “contra mim” em 18.21.58Segundo, o fato de essalocução ter pronúncia idêntica à palavra anterior (a`marth,sh| eivj se.)poderia ter levado à inserção acidental da locução preposicional. Ter-ceiro, pode-se argumentar que a leitura mais breve de fato comportade maneira mais concreta a teologia do contexto, pois o pecado não éuma mera ofensa “pessoal”, mas algo que ameaça o condição espiritu-

53Metzger, Textual Commentary, 45; Bover, “Si peccaverit,” 197.54Gundry, Matthew, 367; Bover, “Si peccaverit,” 195; Gaechter, Matthäus, 598.55Carson, “Matthew,” 404; Metzger, Textual Commentary, 45.56Luz, Matthäus, 38.57James Royse, “Scribal Tendencies in the Transmission of the Text of the New Testament,” 239-252, in Bart D. Ehrman and Michael W. Holmes, eds., The Text of the New Testamentin Contemporary Research: Essays on the Status Quaestionis [Grand Rapids: Eerdmans,1995], 246.58Royse, “Scribal Tendencies,” 246; Thompson, Matthew’s Advice, 176; Lagrange, Mat-thieu, 353; Carmody, “Matthew 18:15-17,” 150.

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al do irmão que pecou.59 E por último, Wilhelm Pesch propõe que aleitura mais longa surgiu da intenção de enfraquecer a natureza radi-cal da exigência de Jesus sobre cada membro da comunidade, ao limitá-la somente à pessoa contra quem o pecado foi cometido.60

Como é muitas vezes o caso nas decisões de crítica textual, a evidên-cia e os argumentos parecem, à primeira vista, favorecer ambos os lados.Antes, porém, de examinar com mais cuidado os argumentos, temos queprestar atenção aos argumentos que aparecem no único tratamento maisaprofundado dessa questão de natureza crítico-textual.

O PAPEL DE LUCAS 17.3-4 NO TRABALHO DE J. M. BOVER

“Si peccaverit in te frater tuus...Mt 18.15Bover escreveu esse artigo em 1953, em espanhol. Sua argumen-

tação principal a favor da leitura mais longa, isto é, da inclusão de“contra ti”, é, na verdade, extremamente breve: ele simplesmente afir-ma que o contexto imediato de 18.21 (“Senhor, até quantas vezesmeu irmão pecará contra mim”) é decisivo em mostrar que em 18.15Jesus também deve estar falando de uma ofensa pessoal. Ele concluique o “contra ti” deveria ser visto como parte do versículo 15.61

Bover reforça sua conclusão, contudo, ao apelar para a tradiçãomanuscrita da passagem paralela em Lc 17.3-4, que diz:

Lucas 17.3: “Acautelai-vos. Se teu irmão pecar, repreende-o; se elese arrepender, perdoa-lhe”.

Lucas 17.4: “Se por sete vezes no dia pecar contra ti e sete vezesvier ter contigo dizendo: estou arrependido, perdoa-lhe”.

Em 17.3, muitos manuscritos adicionam “contra ti” depois de “seteu irmão pecar”. Em 17.4, um número bem pequeno de manuscritosomite a locução “contra ti”. Bover argumenta que, em 17.3, a leiturapreferível é a mais breve (sem o “contra ti”) e que, no caso de 17.4, aleitura superior é o texto mais longo (com o “contra ti”), e com isto nósconcordamos.62

Bover então alega que a tradição manuscrita em Lc 17.3-4 forneceum exemplo positivo da tendência em “generalizar” o sentido do textoatravés da omissão de uma parte, de uma forma que é paralela ao quese verifica no caso da leitura mais breve em 18.15. Ele assevera queos manuscritos 28 1675 e uma tradução siríaca (a sinaítica) omitem o

59Kynes, “Solidarity,” 120-121.60Pesch, Seelsorger, 37.61Bover, “Si peccaverit,” 195, afirma que a pergunta de Pedro em 18:21 “presupone queJesús en 18,15, ha hablado de una ofensa personal.”62Bover, “Si peccaverit,” 196.

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“contra ti” em Lucas 17.4. Ele considera este como um concreto e forteexemplo paralelo ao que aconteceu em 18.15, onde manuscritos omi-tiram o “contra ti” para generalizar o sentido de 18.15-20.63

Porém, o argumento principal que Bover extrai do texto de Lucas17.3-4 desaparece quando examinado à luz de edições críticas e ou-tros recursos contemporâneos.64 De acordo com Swanson e o IGNTP[Projeto Internacional do Novo Testamento Grego], somente o lecionário859 e a versão siríaca sinaítica trazem a leitura mais breve em 17.3 etambém omitem a locução preposicional para criar uma leitura maisbreve em 17.4, o que revela uma “tendência generalizante”. No casodo manuscrito 1675 [e, poderíamos adicionar, 1424], embora a locuçãoesteja omitida em 17.4, os dois manuscritos cursivos trazem essa lo-cução em 17.3. O cursivo 28, ao invés de omitir a locução preposicionalem ambos os lugares, como Bover afirma, de fato traz essa locuçãonos dois versículos.65 Além disso, o oposto, a tendência“particularizante”, é muito fortemente atestada na tradição manuscri-ta, pois um grande número de manuscritos66 traz “contra ti” tanto emLc 17.3 como em 17.4, numa aparente harmonização com o contextoimediato. Se Lc 17.3-4 for usado como um exemplo paralelo das ten-dências encontradas nos manuscritos, parece que esse texto traz apoiomais significativo para a conclusão de que, em Mt 18.15, deve-se pre-ferir a leitura mais breve, sendo que, neste caso, a leitura mais longateria de ser vista com harmonização com o contexto imediato. Portan-to, o artigo de Bover não oferece nenhuma base substancial para seoptar pela leitura longa, a inclusão de “contra ti”, em 18.15.

AVALIANDO OS ARGUMENTOS EM MATEUS 18.15

Ao tentar avaliar os méritos da argumentação a favor do texto maislongo ou a favor do texto mais breve em Mt 18.15, é preciso sempreter em mente que, qualquer que seja a decisão, trata-se de uma deci-são difícil e que seria uma atitude muito pouco sábia querer erguer

63Ibid., 197.64Bover aqui se baseia na edição crítica, porém equivocada, do texto grego feita porHermann von Soden no início do século XX.65Reuben Swanson, ed., New Testament Greek Manuscripts: Variant Readings Arranged inHorizontal Lines against Codex Vaticanus. Luke (London: Sheffield Academic Press, 1995),293; The New Testament in Greek: The Gospel According to St. Luke, part two, chapters13-24, edited by the American and British Committees of the International Greek NewTestament Project (New York: Oxford University Press, 1987), 71-72.66De acordo com a 27a edição de Nestle-Aland, “contra ti” faz parte do texto de Lucas17.3 em D F f13 Texto Majoritário c e q r1 vgcl bomss.

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todo um edifício exegético sobre um alicerce tão incerto. Porém, nosparece que o peso da evidência favorece a leitura mais longa, “se teuirmão pecar contra ti”. Queremos voltar aos diferentes argumentoslistados acima, discutindo e desenvolvendo-os brevemente.

O argumento da pronúncia idêntica poderia teoricamente favorecertanto uma quanto outra possibilidade, pois um escriba tanto poderiaomitir como incluir a locução eivj se. depois do verbo amarth,sh|.67 Noentanto, uma pesquisa no Novo Testamento e na LXX não revelou ne-nhum exemplo concreto de omissão ou repetição de palavras em situ-ações similares e assim este argumento permanece puramente teóri-co e subjetivo.68

O argumento que o texto mais longo foi encurtado para “generali-zar” o ensino de Jesus é similarmente subjetivo e carece de funda-mento. Na verdade, se essa tendência fosse se manifestar em algumlugar, esse lugar seria, com certeza, Lc 17.3-4. No entanto, não é istoque se verifica de forma significativa na tradição manuscrita desse tex-to, como o ensaio de Bover tinha erroneamente afirmado [ver acima].

É provável que o argumento da assimilação a outro texto apóie deforma mais decisiva o texto mais breve do que o texto mais longo.Embora a locução pudesse ter sido omitida por assimilação ao maisdistante Lc 17.3, a influência do contexto “personalizado” mais próxi-mo (isto é, “entre ti e ele só” em 18.15 e “contra mim” em 18.21)parece ser mais forte, confirmando, assim, a tese de que a locução foiadicionada posteriormente. Sem dúvida, os diversos manuscritos que

67Para a evidência de que, no processo de transmissão do texto, facilmente se faziaconfusão entre as vogais e os ditongos pertinentes , ver Francis Thomas Gignac, AGrammar of Greek Papyri of the Roman and Byzantine Periods, vol. 1, “Phonology” (Mila-no: Istituto Editoriale Cisalpino, sem data), 183, 242-249.68A locução preposicional eivj se ocorre no Novo Testamento somente em Mt 18.15 e Lucas17.4. A LXX fornece dois exemplos pertinentes onde poderia ter havido uma omissãosimilar devida à semelhança dos sons. Em Jeremias 31.18 lemos avne,bh eivj se., mas lá nãohá variantes mencionadas [Joseph Ziegler, ed., Septuaginta, vol. 15, Ieremias, Baruch,Threni, Epistula Ieremiae (Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1957), 318]. Em Ezequi-el 3.3 se lê dedome,nhj eivj se,. Embora esta situação fônica não seja exatamente idêntica[visto que o particípio não termina num som de vogal], é interessante notar que a tradiçãomanuscrita não omite a locução preposicional eivj se, mas registra substituições para ela,presumivelmente para fugir da repetição de sons: soi, [534], pro,j se, [62] e epi, se, [Zv][Ziegler, vol. 16, 1, Ezechiel, 98]. Nota-se o mesmo fenômeno de substituição [nãoomissão] em reação à semelhança de sons em Lucas 23.42, onde a seqüência e;lqh|j eivjth.n | basilei,an| é substituída por e;lqh|j evn th| basilei,a|.

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trazem esse “contra ti” em Lc 17.3 parecem um exemplo desse tipo deassimilação ao contexto bem próximo em Lc 17.4.

O que nos resta é a argumentação baseada nas tendências geraisdos copistas. Aqui a obra de James Royse merece atenção especial69.O estudo de Royse sobre as tendências dos escribas mais antigos éuma análise das leituras “singulares” ou “únicas” encontradas nospapiros 45, 46, 47, 66, 72 e 75 que revelam os “hábitos” daquelesprimeiros escribas cristãos. Duas conclusões de Royse são especial-mente importantes para a nossa discussão sobre 18.15. Por um lado,Royse observa que esses seis escribas antigos revelam uma clara ten-dência em harmonizar textos com o contexto imediato através de adi-ções ao texto. Essa tendência poderia dar algum apoio à leitura maisbreve em 18.15, já que a “harmonização ao contexto é uma persisten-te fonte de erro e ela muitas vezes resulta em adições ou acrésci-mos”70. Contudo, o estudo de Royse mostrou que a grande maioriadas adições singulares que os escribas fizeram a seus textos consistiaem uma única palavra71.

Por outro lado, um segundo resultado do estudo de Royse repre-senta um significativo questionamento do tradicional princípio de críti-ca textual de que “deve-se dar preferência à leitura mais breve”. Seuestudo conclui que “a responsabilidade de apresentar provas deveser passada daqueles que defendem o texto mais longo para os de-fensores do texto mais breve. Não é preciso que se apresente uma‘razão’ para determinada omissão – ao menos durante os primeirosséculos de transmissão do texto; afinal, a omissão de texto foi o errocometido ‘naturalmente’ por esses primeiros escribas”.72 Como é pro-vável que as duas leituras em 18.15 são antigas, as conclusões deRoyse a respeito das tendências dos escribas parecem indicar que se

69James Ronald Royse, “Scribal Habits in Early Greek New Testament Papyri” [Th.D. diss.,Berkely, CA: Graduate Theological Union, 1981].70Ibid., 608.71Royse, “Scribal Habits,” declara que 24 de 28 adições no papiro 45, são palavras isola-das [124]; 53 de 55 adições no papiro 46 são palavras isoladas [251]; 4 de 5 adições aopapiro 47 são palavras isoladas [348]; 11 de 14 adições ao papiro 66 são palavrasisoladas [410-411]; 15 de 16 adições ao papiro 72 são palavras isoladas [478] e 11 de12 adições ao papiro 75 também são palavras isoladas [544-545]. Isto quer dizer que90.8% das adições “singulares” a seus textos por estes seis escribas consistiram emuma única palavra.72Ibid., 607. Royse, 602, resume os resultados de sua pesquisa. A leitura singular ouúnica de cada escriba resulta na seguinte proporção de “adições/omissão = perda depalavras”; P45 [28/63 = 102], P46 [55/167 = 283], P47 [5/18 = 43], P66 [14/19 = 22],P72 [16/29= 27], e P75 [12/41 = 53].

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73Ibid., 126, 255, 349, 411, 478-79, 546, mostra duas coisas: (1) omissões são bemmais prováveis do que adições nos papiros mais antigos que ele estudou e (2) as omis-sões têm a tendência de serem mais longas, consistindo em mais palavras, do que asadições.74Mesmo com as leituras mais breves tanto em Mt 18.15 e Lucas 17.4, permanece claroque é um irmão que peca e que a necessária interação deve ser em primeira instância numencontro a sós. Além disso, em 18.15 a natureza pessoal da interação é enfatizada pelo“entre ti e ele só” e pelas formas verbais que estão todas no singular em 18.15-17.Outros exemplos da omissão de locuções preposicionais “semanticamente dispensá-veis” podem ser fornecidos. Pode-se consultar: [1] Lucas 14.8 e a omissão de ga,mouj(omitido pelo papiro 75 b as) e upV auvtou/ (omitido pelo papiro 45 it sys.p bo); [2] Atos15.21 e a omissão de kata. po,lin (omitido pelo papiro 45).

deveria dar preferência à leitura mais longa, ou seja, a inclusão dalocução “contra ti”.73De fato, pode-se argumentar que uma combina-ção de fatores dá sustentação à leitura mais longa: [1] a tendênciageral em encurtar textos como descrito acima; [2] a possibilidade deomissão resultante da pronúncia idêntica de palavras ou locuções (umasubdivisão do fator número 1); e [3] o simples fato de que a omissãode “contra ti” em 18.15 (e em Lucas 17.4) não altera radicalmente osentido do texto.74 Mas à luz das várias maneiras como se pode exami-nar a evidência, a decisão quanto ao texto é um grande desafio.

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TEXTO E CONTEXTO

Os Evangelhos são narrativas da vida e obra de Jesus. O caráternarrativo dos Evangelhos sinaliza para o fato que estes “livros” tra-zem uma história de forma completa. Trata-se de um todo, não de umacoleção de relatos emendados como uma colcha de retalhos. Nem tudoestá relatado em cada um dos Evangelhos, mas cada evangelista rela-ta aquilo que permite o leitor ter um quadro fiel da narrativa da vida eobra de Jesus segundo o ponto de vista daquele evangelista (inspira-do pelo Espírito Santo, mas conservando sua própria identidade e ca-racterísticas).

Um dos aspectos importantes a considerar ao examinarmos um texto(“perícope”) de um dos Evangelhos é verificar em que “lugar” ele seencontra na narrativa. Não é diferente na análise das parábolas deJesus, conforme relatadas em Mateus capítulo 13. Na verdade, a con-sideração destas parábolas sem levar em conta o enredo do Evange-lho conforme Mateus e o lugar específico em que se encontram tirabastante da compreensão que o próprio texto procura evocar no leitor.

O capítulo 13 de Mateus traz algumas das bem conhecidas parábo-las de Jesus. São alegorias tiradas de situações do dia-a-dia dos ou-vintes de Jesus. E são um ensino num contexto de conflito. Opiniõesconflitantes a respeito de Jesus podem ser observadas já no capítulo11, em João Batista (11.3), nas cidades em que fizera milagres (11.20-24), entre o povo (12.23), mas especialmente o conflito se estabelececom os líderes judeus, na sua crescente rejeição a Jesus (12.2,10,24,38).E estes, pouco a pouco, vão desenvolvendo o plano para tirar a vidade Jesus, o que vai levar ao ápice do Evangelho, com o relato da pai-xão, morte e ressurreição. As parábolas são um marco no relato doEvangelho. Note-se que logo após relatar a parábola do semeador,Jesus toma os discípulos à parte e ouve deles a pergunta sobre oporquê dele ensinar por parábolas. E ele passa a mostrar-lhes o signi-ficado. Fica evidenciado que a compreensão das parábolas não se re-fere simplesmente a entender cada aspecto da história e encontrar

OITAVO DOMINGO APÓS PENTECOSTESMateus 13.1-9,18-23

AUXÍLIOS HOMILÉTICOS

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seu correspondente na “vida real”. Pelas palavras de Jesus, os discí-pulos tinham algo que faltava aos demais; por isso, ele os toma para olado e passa a explicar o significado da parábola. Não se trata de umaqualidade inerente a eles. Trata-se do fato que eles estão com Jesus.Foram chamados por ele e a ele estão ligados.

As parábolas do capítulo 13 de Mateus não são histórias com umfundo moral (ético). São ensinos a respeito do reino de Deus. Ou seja,são ensinos a respeito do que acontece quando o reino de Deus vem aomundo na pessoa de Jesus. É exatamente a postura da pessoa frente aJesus que define se haverá entendimento ou não do seu ensino. Asparábolas refletem de maneira bela, quase poética, a bênção que é tero reino de Deus se manifestado (e estar se manifestando) entre a hu-manidade. A parábola do semeador, sendo lida neste contexto, traráuma mensagem de alento, força e consolo para todos os que estão comJesus. Ao mesmo tempo trará um alerta aos que o desprezam e pensampoder lidar com a própria vida com uma independência irreal.

Observando os tipos de reação diante da proclamação da palavrade Deus, conforme descrito por Jesus (vv.19-23) é possível perceberconexões com as reações diante do ministério do próprio Jesus. E nãoé diferente do que ocorre também hoje: confusão quanto ao significa-do da palavra de Deus, por vezes ocasionada por explicações equivo-cadas por parte de falsos profetas ou pregadores desorientados; umouvir descomprometido e, por isso, superficial; o ouvir da palavra comoum detalhe na vida, por sinal detalhe dos menos importantes. Sãoreações que fazem a palavra ficar sem sua desejada reação (fruto),qual seja, fé e vida em comunhão com Deus. O problema não está nasemente (Palavra). Ela já demonstrou sua eficácia na criação do mun-do e na encarnação daquele que é o Verbo de Deus. O problema estáno coração humano.

Quando chega a quarta parte semeada, o que há de bom na terra?“Ouve a palavra e a compreende”, diz Jesus. Chama a atenção o verbousado por Jesus, traduzido por “compreender”. O verbo suniemi, quenão é dos mais comuns, não se refere tanto ao entender de um assun-to nos seus detalhes. Note-se que os discípulos precisaram que Jesuslhes ensinasse o sentido da parábola. O verbo se refere a “pegar osentido de algo que desafia o pensamento da própria pessoa” (Danker,Greek English lexicon, 2000, p. 972). Seu uso (por exemplo, Lc 2.50;18.34; 24.45) acentua que há aquele “detalhe’ que precisa ser “com-preendido” e que faz toda a diferença (como mostra o episódio dosdiscípulos de Emaús – Lc 24.45). A compreensão não é uma capacida-de humana, mas é dádiva que vem pela presença de Jesus. Por isso,não há como realmente entender as parábolas, ou as coisas do reino

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de Deus, sem “compreender” a Palavra (o Verbo encarnado). O batis-mo é o milagre de Deus pelo qual ele cria esta compreensão, que pre-cisa ser alimentada pela boa semente.

APLICAÇÃO HOMILÉTICA

No Ano da Bíblia (assim 2008 tem sido considerado, por marcar os60 anos da Sociedade Bíblica do Brasil), o texto bíblico sobre a ação dapalavra de Deus pode ser aplicado de maneira bem especial. Aindaque o texto da parábola enfoque a “palavra” como sendo a proclama-ção, seu ensino traz luz a nossa compreensão da palavra escrita, aBíblia.

Há quem considere a Bíblia pelo aspecto de sua utilidade para man-ter, conservar e aprimorar a moral de um povo. Nesta visão, a perspec-tiva ética é considerada a fundamental na leitura da Escritura e noensino da palavra de Deus. Também se pode verificar um crescenteentendimento (e uso) da Escritura como literatura, aliás, como exce-lente literatura. Estes dois aspectos têm sua razão de ser, tanto doponto de vista da experiência como teológico. Afinal, a Escritura Sagra-da ensina, sim, qual a vontade de Deus para as pessoas. E, da mesmaforma, a Escritura é literatura, visto Deus ter em sua misericórdia esco-lhido revelar-se de maneira compreensível, usando da língua e da for-ma de comunicação humanas.

Uma tentação sempre presente é ler a parábola do semeador sobuma perspectiva moralista. A ênfase acaba recaindo sobre os “quatrotipos de solo” e a inevitável pergunta acaba sendo feita: “De que tipode solo é você?”

No entanto, a parábola do semeador nos convida a considerar apalavra de Deus, tanto a sua proclamação como a palavra escrita, es-pecialmente como a dinâmica ação de Deus em vir até as pessoas. Poresta palavra, Deus mesmo confronta o leitor/ouvinte com suas fragili-dades, necessidades e pecado, e lhe traz vida e salvação, pelo perdãoe comunhão com Ele mesmo, por meio de Seu Filho (a Palavra encarna-da).

Nesta perspectiva, não são diferentes tipos de solo (= diferentes“tipos” de pessoas), mas diferentes reações ao ouvir da palavra. Ela ésempre poderosa e capaz de produzir o melhor resultado, ou seja, adádiva do Espírito Santo e a fé. Infelizmente cada um de nós tem atriste capacidade de rejeitar a mensagem.

Não nos parece que a melhor alternativa para o sermão seja con-duzir os ouvintes a uma análise sobre em qual tipo de solo cada um seenquadraria. Melhor seria denunciar, primeiro, os tipos de reações que

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naturalmente todos temos ao ouvirmos a palavra de Deus e que noscoloca em confronto com Jesus. E então é preciso enfatizar que estapalavra é poderosa em si mesma para produzir o efeito desejado. As-sim foi no batismo, quando ela nos regenerou, renovou, ressuscitoupara uma vida nova com Cristo. Esta mesma palavra continua conosco,como marca do reino de Deus entre nós. É, portanto, sinal da graça deDeus, que continua vindo até nós. O ano da Bíblia nos lembra quetemos o tesouro da palavra de Deus bem perto de nós. Esta é, semdúvida, uma manifestação muito evidente da graça e amor de Deuspor todas as pessoas.

Gerson L. LindenSão Leopoldo, RS

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CONTEXTO

Este capítulo integra a segunda grande divisão do livro de Isaías.Os capítulos 1-39 falam da situação política e especialmente religiosapor que passava o povo de Deus ao redor de 740 a.C., na Palestina.Nesta parte Deus, através do profeta Isaías, filho do Amoz, assegura-va a iminência do cativeiro porque o povo de Israel consciente e osten-sivamente optava por viver sua religião capitulada pelo sistema idóla-tra. Esta condição espiritual do povo seria a causa da sua servidão(novamente) no exílio, agora entre os babilônios. A segunda parte deIsaías, do capítulo 40-66, Deus, falando pelo mesmo profeta, antecipauma outra expectativa na realidade do exílio: o retorno e a salvaçãopor graça do povo de Israel. No cap. 1.1, se fala em “visão” , ou seja,o profeta antevê algo que outros não têm a bênção de vislumbrar, asaber, a antecipação da realidade futura do povo de Deus.

A segunda divisão de Isaías é, por isso, denominada “Livro da Con-solação”, porque nela Yahweh efetivamente consola o Seu povo exila-do. O cap. 44 integra também o que se chama de “Cânticos do Servo”.Nos cap. 41 a 53, Yahweh se dirige a Israel como Seu servo, através dequem Ele cumpre seus propósitos salvíficos com o próprio Israel, com asnações e o mundo. Vez por outra, o cântico está endereçado especifica-mente a um indivíduo que, por excelência, é o próprio Messias.

Diante da realidade consumada de que o exílio efetivamente acon-tecera, no texto de 44.6-8 Deus vem lembrar a Israel de que Ele é o quepossui a exclusiva supremacia e que os deuses em quem Israel confioudevem ser definitivamente abandonados. Num certo sentido, Yahwehestá vingando os seus profetas que por tantas vezes, começando demadrugada, alertaram o povo do risco que estavam correndo ao seagregar ao culto pagão e dispensar as riquezas da graça divina. Assimcomo as profecias se cumpriram naquele tempo, culminando no exílio,também agora a profecia de Deus tem a mesma equivalência de cumpri-mento com relação ao esplendor da sua divina graça.

TEXTO E COMENTÁRIO

No v. 6, Yahweh se apresenta como o verdadeiro e único Deus emoposição aos ídolos. Sua identidade é apresentada por meio de vários

NONO DOMINGO APÓS PENTECOSTESIsaías 44.6-8

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títulos. “Rei de Israel”, num contexto de exílio, é um título no mínimoousado. Por meio dele, Yahweh desmitifica o princípio religioso comumno Antigo Oriente Próximo de que a nação que domina o faz porque oseu deus é mais poderoso do que o da nação subjugada. Nesse caso,Israel, sendo prisioneiro dos babilônios, evidenciava que Marduqueera superior a Yahweh. Mas para Israel, a manifestação divina como“Rei de Israel” era um bálsamo, o mais puro evangelho porque descre-ve não apenas a relação de identidade Deus com Seu povo como tam-bém o interesse, preocupação e cuidado por ele. Alguém se apresen-tar como súdito de determinado rei significava revelar a sua própriaidentidade que lhe assegurava conseqüente proteção e imunidade.Mesmo no exílio, Yahweh é a embaixada divina para Israel. O termo“Redentor” (lag) aparece 13 vezes em Isaías e apenas nesta segun-da parte (a primeira vez ocorre em 41.14). Como “Redentor”, Yahwehse apresenta como o parente próximo que liberta o seqüestrado Isra-el por meio de pagamento de resgate. “SENHOR dos Exércitos” (twabchwhy) é expressão que não tem relação alguma com exército de qual-quer nação, antiga ou moderna. Mas a expressão implica a abrangênciade todas as coisas criadas por Deus. Deus tem o controle da criaçãoem Suas mãos. A providência divina, como enfatizavam os pais ortodo-xos, está presente com Israel. Ele tem o poder sobre tudo nos céus ena terra para levar a cabo a sua vontade redemptiva. E conclui com“Eu sou o primeiro e eu sou o último” (o emprego do pronome pessoalenfatiza a identidade). “Primeiro” (!wvar) e “Último” (!wrxa). Deus vaide horizonte a horizonte. Deus é de “A” a “Z”. Nele estão compreendi-das todas as coisas. O fato de esta mesma expressão ser empregadaem relação a Jesus não apenas uma, mas quatro vezes em Apocalipse(1.17; 2.8; 21.6; 22.13) é uma clara indicação de que Jesus Cristo eraYahweh encarnado no AT.

V. 7: O W no começo deste versículo é mais do que a simples conjun-ção “e”. Ele dá o motivo para a afirmação descrita no v. 6. Algo como:“Apenas eu sou Deus, pois ninguém exceto Eu pode profetizar (arq)”.A próxima cláusula é parentética, mas por causa do w torna-se conse-cutiva: “[se assim não for] então que se declare e exponha diante demim”. Yahweh desafia os supostos deuses a darem um passo à frente.Podem eles submeter também algum tipo de supremacia ou exclusivi-dade? A expressão “povo antigo” (~lw[ ~[) é uma referência a Israele sua história como povo de Deus. “Estabelecer” (~yf) é verbo queestá historicamente atrelado à aliança graciosa com Israel no AT. Ape-nas Deus criou um povo antigo e para ele e por meio dele declarou ascoisas que haveriam de acontecer. Pode um outro deus fazer o mesmopara Israel?

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V. 8: O objeto do medo de Israel é o suposto poder dos deusespagãos, num país estrangeiro. Em 40.18 e passagens adiante, Deusmostra que nem mesmo o Israel fiel estava plenamente convencidoque os deuses pagãos eram inúteis. Israel estava infectado com omedo deles e em 40.27 fica evidente que sua fé na divindade exclusivade Deus e Sua ajuda estava sendo solapada. Por isso, este versículo 8enfatiza bastante, de um lado, a divindade de Deus e, de outro, anulidade dos deuses. A forma whrt é um hapax, mas o paralelismo coma raiz mais comum dxp “aterrorizar” requer um significado semelhantea este. Talvez “não vos aterrorizeis nem vos assombreis (de assom-bração mesmo...)” seja uma tradução adequada. Deus quer consolar oSeu povo no exílio, como fizera antes. Israel é testemunha desse fatopassado. Deus assegura que está no controle de tudo o que aconte-cer ao povo. O momento atual também faz parte do Seu plano amoro-so e disciplinador. Israel pode confiar Nele. Afinal, Ele é a “Rocha” (rwc).A Rocha está ali muito tempo antes do “povo antigo”, antes das na-ções poderosas, antes de qualquer hipotético deus. A Rocha ninguémcria, Deus cria.

SUGESTÕES HOMILÉTICAS

1. Vivemos numa era de relativismo. A assim chamada era pós-moderna rejeita a verdade única. Toda verdade é relativa,caleidoscópica. Por isso rejeita também um Deus absoluto e exclusivo.Universidades confessionais muitas vezes são criticadas por não se-rem mais liberais, abertas e pluralistas na sua teologia. Muitos cris-tãos, até luteranos por vezes, acreditam que todas as religiões sãoboas na medida em que falam de Deus (seja lá qual for) e que seja boapara você. Na verdade, quando você cria um deus, esse deus não éoutra coisa senão a projeção de você mesmo – um deus de cera quese ajusta às conveniências do seu próprio criador. Idolatria, em últimaanálise, é o ser humano adorando a si mesmo.

2. Nosso texto, nessa relação, se apresenta com lei na medida emque destrói essa ilusão e revela um único Deus, o SENHOR, a quemdevemos prestar contas. A lei condena nossa busca e inclinação a ou-tros deuses, quaisquer que sejam, e expõe a nulidade e futilidadedeles. Deus, o SENHOR, é um Deus zeloso pelo Seu povo e por nós.Não admite partilhar com ninguém e com nada a sua divindade.

3. Mas a exclusividade de Deus não diz respeito apenas ao Seuser. Ela é também a fonte de conforto e consolo. Pois Ele é o únicoDeus que nos criou e nos redimiu, com o resgate cujo preço exclusivoEle mesmo pagou na pessoa do Servo Sofredor (Is 53). Estabelecendo

NONO DOMINGO APÓS PENTECOSTES

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a Sua aliança conosco no nosso batismo, Ele se tornou nosso Rei, nos-so Redentor e nós o seu povo escolhido. Como “Primeiro” e “Último”,Ele protege nossos limites e nossas fronteiras no tempo e no espaço.Enfim, Ele é a nossa Rocha que lá está desde o início: forte, inabalável,segura e, segundo Lutero, como “Refúgio” eterno. Enquanto fugacidadeé característica do poder, das nações, dos deuses, perenidade e soli-dez é característica da Rocha - “Rocha Eterna, meu Senhor” (HL 276).

Acir RaymannSão Leopoldo, RS

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CONTEXTO GRAMATICAL E LÓGICO – DESTAQUES EXEGÉTICOS

O locus da eterna eleição de Deus em relação aos seus eleitos étransparente nas leituras deste 10º Domingo após Pentecostes. Aodirecionarmos nossa reflexão ao como Deus o faz, a respostatransparece nas leituras selecionadas para este domingo. O salmista(119.129-136), nas palavras olha com bondade para mim, teu servo, eensina-me as tuas leis (v.135), nos ajuda entender como Deus nos ele-ge. Tanto o ser como o fazer de Deus em relação aos seus eleitosacontece fora do ser humano, na Sua eternidade. Salomão, por todasua importância diante do povo e das circunstâncias iniciais de seureinado, mostra-se sábio quando direciona o seu pedido também paraa ação de Deus, necessária como ponto de início para qualquer voca-ção cristã (1 Rs 3.5-12). O amor, o cuidado e o interesse de Salomãopelo seu povo tem origem nas intenções de Deus não só para o pró-prio Salomão, mas para todo o Israel. A eleição e as intenções de Deussempre são direcionadas ao seu povo, visto que o chamado individualsó é completo em meio à igreja. O apóstolo Paulo (Rm 8.28-30) descre-ve a ação de Deus em favor dos eleitos nas seguintes palavras: ...Deus chamou os que havia separado. Não somente os chamou, mas tam-bém os aceitou; e não somente os aceitou, mas também repartiu a suaglória com eles (v.30). Esta é a ação completa de Deus em favor daque-les que o amam, daqueles que ele chamou de acordo com o seu plano(v.28). O plano da eterna eleição é composto por verbos intensos erefletem a ação de Deus: chamar, declarar como justo e repartir a Glóriade Deus, Cristo, ações que ocorrem fora do homem, na eterna presci-ência de Deus. A manifestação da Glória de Deus, Cristo Jesus, é re-partida entre os chamados e declarados justos. Aqui está uma grandecruz para o teólogo cristão: a eternidade de Deus se manifesta natransitoriedade humana. A contingência do homem recebe de Deusuma dimensão de existir sem um fim. A igreja existe quando cada cren-te é chamado pela ação do Espírito de Deus para integrar aqui e agoraa congregação dos Santos e este chamado acontece na dimensão daeternidade de Deus.

DÉCIMO DOMINGO APÓS PENTECOSTESMateus 13.44-52

Os “eleitos” são agraciados na obra de Deus

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Esta dimensão da eternidade de Deus que se faz presente em meioà igreja é destacada na leitura do evangelho, Mt 13. Ambos, o tesouroescondido e a pérola, o mais precioso evangelho, se estavam escondi-dos ou ocultos, já não estão mais – estão à disposição de todos por-que o reino de Deus eterno não pode estar distante dos seres huma-nos. Dentro do imaginário popular, a busca por um tesouro sempretem desafiado a muitos. Em tempos de descobertas, tesouros como oouro e a prata sempre moveram muitos a sair da inércia, desafiando-os a se tornarem ricos. Este imaginário pode estar por trás das pala-vras de Jesus. O homem do campo e o comerciante que encontraram otesouro sabem do valor do mesmo. A ênfase de Jesus não está naação nem de um nem de outro, mas está no valor do tesouro. Aquinovamente uma perspectiva de eleição: ela ocorre fora das qualifica-ções dos crentes – ela está unicamente na ação/valor do que Deusoferece.

Mas para encontrarmos o tesouro escondido e a pérola, precisa-mos de um mapa adequado. Esta é a dimensão da igreja. Contrapon-do a um pensamento exclusivista ou individualista, precisamos desta-car o quanto Jesus dá ênfase na capacidade de alguém ler e entendero mapa que conduz ao verdadeiro tesouro. As coisas “desconhecidasdesde a criação do mundo” (v.35) são explanadas de forma simples edireta com a linguagem parabólica, mas esta linguagem está carrega-da de significado. O ministério de Jesus, o ministério pastoral, ajuda os“eleitos” a lerem o mapa corretamente a encontrarem o tesouro e apérola dados e oferecidos por Deus.

Ao mesmo tempo em que a igreja, por causa de seu ministério, tema tarefa de ajudar a ler o mapa da fé de forma correta, há uma dimen-são apresentada nesta parábola. A perspectiva escatológica tambémé marca dos eleitos de Deus. Os eleitos não são eleitos para o aqui eagora – eles o são para a eternidade. A separação entre os ponhrou.jevk me,sou tw/n dikai,wn (entre os seguidores de satanás e os justifica-dos) nos remete ao juízo de Deus. Novamente, precisamos percebercomo Deus agracia os seus, oportunizando arrependimento e perdãoem meio à igreja.

CONTEXTO RETÓRICO – DESTAQUES HOMILÉTICOS

Uma das características da Igreja Luterana é seu testemunho so-bre a universalidade da graça de Deus. Isto nos leva a entendermos oquando Deus nos elegeu em Cristo Jesus. O tesouro, a pérola, a sepa-ração entre crentes e descrentes, ligados à glória de Deus reveladaem Jesus Cristo, nos direciona para este domingo. O exemplo de

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Salomão deve ser seguido porque ele consegue deixar Deus ser Deusquanto ao seu chamado. Por toda a sua importância social, política eeconômica, o que se destaca em Salomão é que ele tinha (pelo menosnesta fase de sua vida) encontrado o tesouro e a pérola, o evangelhode Deus, e a partir dele se coloca à disposição do servir. Sem dúvida, amente de Salomão reproduz um mapa apropriado para entender seupapel em relação a Israel. E é por aí que o pastor precisa conduzirseus ouvintes: colocá-los diante do Senhor porque Ele os escolheudesde a eternidade para viverem esta certeza aqui e agora, sem es-quecermos a dimensão do juízo. Uma vez na fé não significa semprena fé – este determinismo ou pré-determinismo não existe no âmbitoda fé. A partir daí, pode-se destacar o papel hermenêutico – criar omapa – para que todos sempre possam encontrar o tesouro e a péroladados e oferecidos gratuitamente em Cristo.

Clóvis Jair PrunzelSão Leopoldo, RS

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TEXTO NOBRE

Romanos 8.35-39 é uma parte nobre da Escritura Sagrada. É fontede segurança e conforto. São palavras de Deus que animam, acalmamcorações, devolvem a segurança e a certeza do amor de Deus, quais-quer que sejam as ameaças ou circunstâncias.

A CARTA AOS ROMANOS

Romanos é uma carta missionária, escrita por um missionário, auma congregação missionária e que precisava suporte teológico paracontinuar a sua tarefa missionária. Nas palavras de Lutero, Romanos épuro Evangelho. Cada cristão deveria se ocupar com esse texto diari-amente. Nessa carta, o cristão encontra tudo o que deveria saber so-bre lei, evangelho, pecado, punição, graça, fé, justiça, Cristo, Deus,boas obras, amor, esperança e a cruz (Concordia Self-Study Bible, p.1713).

Nessa carta Paulo lista verdades teológicas fundamentais aos seusleitores. Algumas são:

1. A realidade da universalidade do pecado – Rm 1.28-32; 3.9;5.12;2. O pecador é declarado justo diante de Deus pela fé em Cristo –

Rm 1.16-17; 3.28; 5.1;3. Há frutos dessa justiça atribuída ao crente em Cristo – Rm 5.1-

11;4. A graça de Deus se manifesta na libertação da escravidão e tira-

nia do pecado – Rm 6;5. Também é a graça que anula a condenação da lei – Rm 7;6. Sem condenação, há vida no poder do Espírito – Rm 8.

OS QUATRO PILARES QUE SUSTENTAM A VIDA CRISTÃ

A partir de Rm 8.17, Paulo apresenta quatro pilares sobre os quaisele constrói passo a passo a certeza de que não há nada que podenos desconectar do amor de Deus.

Herdeiros com Cristo no sofrimento e na glorificação, o cristão tem

DÉCIMO PRIMEIRO DOMINGO APÓSPENTECOSTES

Romanos 8.35-39

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as seguintes razões para crer que está seguro, mesmo que “caiam milao teu lado e dez mil à tua direita” (Sl 91.7).

Rm 8.18-25: O sofrimento é globalizado (1 Pe 5.9), mas é insigni-ficante se comparado à glória a ser revelada do futuro. É a esperançaque sustenta em meio às tribulações a expectativa dessa glória. E agarantia antecipada dada por Deus para viver na esperança de umnovo céu e uma nova terra, é o Espírito. Aqui ele é apresentado comoas primícias, os primeiros frutos; em Efésios, numa linguagem comerci-al, ele “é o penhor da nossa herança até ao resgate da sua proprieda-de, em louvor de sua glória” (Ef 1.14). Este é o primeiro pilar.

Rm 8.26-27: A segunda coluna do encorajamento para suportaras aflições do tempo presente está na obra do Espírito. É ele que co-bre as fraquezas e a enfermidade irreversível de todo o ser humano, opecado. Os filhos de Deus têm dois que intercedem a seu favor no céu.Cristo (Rm 8.34; Hb 7.25; 1 Jo 2.1-2) e o Espírito (Jo 14.16-17).

Rm 8.28-30: O terceiro pilar que fundamenta o encorajamento aosfilhos de Deus em meio aos tormentos diários consiste na consolaçãoe na certeza de que todas as coisas têm como propósito último o bemdos cristãos.

Rm 8.31-34: E, finalmente, a garantia maior que pode ser dadaaos cristãos de que todas as coisas irão contribuir para o seu bem,está sendo apresentada aqui: Deus está do lado dos seus filhos. E amaior prova disso está na maior dádiva, o filho Jesus Cristo. Aqui po-deríamos lembrar o episódio de Acaz em Isaías 7.10-16. O sinal quelhe foi oferecido como prova de que Deus estaria do seu lado e que foirecusado, é tornado público e universal em Jesus Cristo. “Portanto oSenhor mesmo vos dará sinal: Eis que a virgem conceberá, e dará à luzum filho e lhe chamará Emanuel” (Is 7.14).

Mais do que um sinal, Jesus é o intercessor e advogado que noslivra das acusações e condenações que o pecado traz. Por causa desua morte e ressurreição (1 Co 15.17), somos justos e aceitos porDeus. São quatro razões na obra redentora de Cristo e que garantemque nada pode nos separar do amor de Deus. a. Jesus morreu (Rm4.25; 5.8); b. Jesus ressuscitou (Rm 6.5; 1 Co 15.17); c. Cristo estáexaltado à destra de Deus, o Deus-homem é Rei (At 2.33); d. Ele é onosso intercessor (Hb 7.25).

A TRIUNFANTE CONCLUSÃO – ROMANOS 8.35-39

Ao detalhar, pilar por pilar, a base para encorajar o povo de Deus asuportar com esperança as adversidades, gemidos e enfermidades, oapóstolo chega a essa triunfante conclusão. Não há nada que pode

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nos separar do amor de Deus. É o último degrau na escada do confor-to. É uma conclusão acima de qualquer dúvida.

Paulo elabora uma lista inicial do que pode ameaçar essa certeza eindicar que não estaríamos sendo amados por Deus. E o fundamentodessa confiança está no caráter da constância do amor de Cristo, certifi-cado pelos fatos relacionados no versículo 34. Não foi um “acidente” quenos fez filhos de Deus e assim não serão “acidentes” que poderão nosdesestabilizar a ponto de sermos separados do amor de Deus.

As circunstâncias adversas por que passam os santos peregrinossobre a terra são superadas pelo amor imutável de Cristo por eles (2Co 11.23-33). O sofrimento pode causar desespero e tentações, masas desventuras listadas no versículo 35 fazem parte de todas as gera-ções dos filhos de Deus (Sl 44.22; At 14.22; Hb 11.35-38). Porém, elasnunca foram páreo para o amor imutável de Deus por seus filhos erevelado de maneira concreta em Cristo Jesus. E nele está o principalsuporte para olhar para frente com certeza e esperança (Sl 44.26).

Nele somos vencedores, mesmo quando a vitória parece ser dosinfortúnios. Em cada encontro com a adversidade, “em todas as coi-sas”, a vitória é dos filhos amados de Deus em Cristo Jesus (Rm 5.3-4).

O hino triunfante do consolo e da certeza do amor de Deus termi-na, refletindo a própria convicção do apóstolo. Nenhum poder é capazde anular o amor de Deus, o qual está revelado e opera em JesusCristo (Sl 121.6).

SUGESTÃO DE ESBOÇO HOMILÉTICO

INTRODUÇÃO

Lutero afirma que há duas grandes tentações na vida do cristão.Uma, é não perceber a mão de Deus em meio ao sofrimento. Essa é amaior. A outra e a mais perigosa, segundo ele, é quando Satanás ten-ta nos roubar a alegria e confiança na graça de Deus e nas suas pro-messas de perdão de fortalecimento. É nesta tentação que Satanásfaz jus ao significado do seu nome: acusador. Ele quer transformar emdesespero e dúvida o conforto recebido em Cristo Jesus.

O FATOSofrimento é globalizado e vem em todas as épocas, em diferentes

embalagens e em intensidades variadas. O fato é que ele bate à portatambém da vida dos cristãos. E ele causa estranheza quando se sofrecomo cristão (1 Pe 4.16).

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TRANSIÇÃOPaulo cuidadosamente esboçou quatro fundamentos que podem

firmar os cristãos, para que eles não se abalem nas tempestades eturbulências da vida.

O TEXTO/APLICAÇÃO

Não há poder ou situação que pode nos separar do amor de Deusrevelado em Jesus Cristo. Não há ocasião, nem poder, que seja capazdisso.

ILUSTRAÇÃO – TEXTOS DO DOMINGO

O salmo (136.1-9, 23-26) é um louvor insistente e consistente deque Deus é bom e sua misericórdia é eterna. O texto do profeta Isaías(55.1-5) é um convite insistente para os famintos e sedentos pela fielmisericórdia de Deus. O evangelho (Mt 14.13-21) ilustra esse cuidadomisericordioso de Deus, quando Jesus atende a todas as necessida-des das pessoas.

CONCLUSÃO

Pode haver tentações grandes e perigosas, mas as leituras dessedomingo nos deixam a convicção de que não há poder no tempo, ou noespaço, ou em toda criação, que sejam capazes de anular o amor deDeus revelado no Senhor Jesus Cristo.

Anselmo Ernesto GraffSão Leopoldo, RS

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CONTEXTO LITERÁRIO E LITÚRGICO

Em Mateus, a narrativa intitulada “Jesus anda por sobre o mar” vemimediatamente após a leitura selecionada para o domingo anterior. Ouseja, não há nenhum intervalo entre a primeira multiplicação de pães epeixes e a história de hoje. (No caso do domingo seguinte, existe umalacuna de mais de 20 versículos. Para fugir à “pericopite” ou excessivafragmentação do texto, o pregador poderia fazer a ponte entre a leitu-ra de Mateus 15, prevista para o próximo domingo, e a leitura de hoje).

Quanto às demais leituras, o ponto de contato parece ser este: oSalmo 28 é um pedido de ajuda (“Salva-me, Senhor!”), paralelo a Mt14.30. 1Reis 19.9-18 apresenta alguns paralelos com Mateus 14. Tal-vez se queira comparar o profeta Elias com Jesus (embora em Mateus,ao contrário de Lucas, não se destaque o ofício profético do Salvador).Existem também os paralelos do monte e das perguntas em tom decensura (“Que fazes aqui, Elias?” e “Homem de pequena fé, por queduvidaste?”). No entanto, parece que a “rima temática” que osformuladores da série trienal viram entre 1Rs 19 e Mt 14 diz respeito àsemelhança de contexto: teofanias em meio a forças naturais amea-çadoras. Em 1Rs 19, Deus não estava no vento forte nem no terremo-to, mas no “cicio tranqüilo e suave” (ARA). Em Mateus 14, o poder deDeus não está no vento forte que derruba Pedro, mas na mão esten-dida de Jesus e nas palavras que Jesus dirige a ele. Quanto a Rm 9.1-5, a epístola do domingo, embora não exista nenhuma garantia deque vá existir algum paralelo, parece que o texto foi escolhido a dedopara aprofundar ainda mais a confissão que aparece no final do textodo Evangelho. Os discípulos confessam: “Verdadeiramente és Filho deDeus!” Paulo traz uma doxologia que leva isto um pouco adiante (ape-sar das tentativas de exegetas e tradutores que querem destacar asegunda metade de Rm 9.5, fazendo dela uma doxologia nãocristológica): “Que Cristo, que é o Deus que governa todos, seja lou-vado para sempre! Amém”. (NTLH) Em outras palavras, os discípulosafirmam que Jesus é Filho de Deus. Paulo confessa que ele é Deus!(Aliás, Rm 9.5 é uma das passagens do NT – poucas, embora significa-tivas – em que se diz explicitamente que Jesus Cristo é Deus).

DÉCIMO SEGUNDO DOMINGOAPÓS PENTECOSTES

Mateus 14.22-33

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TEXTO

O texto traz muita ação compactada em poucas linhas. (Se essescript fosse filmado, quanto tempo isso levaria? Quanto tempo teriaJesus levado apenas para despedir as multidões?) Os diálogos sãomínimos, embora significativos. Há várias cenas. Mateus parece sinali-zar o início de cada cena através do uso da partícula grega “dé” (que,neste caso, poderia ser traduzida por “e”, embora sua função pareçaser a de sinalizar a continuação da narrativa, com sucessivas mudan-ças de cenário). As traduções não reproduzem todos esses usos do“dé”. Quem conferir o grego notará que, seguindo as deixas dessaseqüência de usos do pequeno “dé”, as cenas são estruturadas daseguinte maneira: 14.22-23a; 23b; 24; 25; 26; 27; 28; 29a; 29b; 30;31; 32; 33. Também é possível ver um pequeno “pingue-pongue” naperspectiva com a que história é narrada, ou seja, o foco é, sucessiva-mente, Jesus – discípulos – Jesus – discípulos – etc.

Quanto ao texto em si, alguns detalhes chamam a atenção:2.1. A linguagem do v. 22 é forte, por mais que seja suavizada em

ARA (“compeliu”). Jesus obrigou os discípulos a embarcar. Não nos édito o motivo. Há quem diga, à luz do paralelo em Jo 6.15, que osdiscípulos ficaram entusiasmados com a possibilidade de proclamá-lorei, o que teria exigido um esforço extra para afastá-los do local.

2.2. A subida de Jesus ao monte não nos surpreende (veja-se Mt5.1 e Lc 9.28) e o mesmo vale, de certa forma, para o fato de Jesusestar sozinho. Só que a expressão grega “kat’ idían” designa, em ge-ral, nos Evangelhos, um estar a sós com os discípulos. Em poucas oca-siões, como aqui e em Mt 14.13, Jesus está realmente só. O final do v.23 deixa isto bem claro: “lá estava ele, só”.

2.3. A linguagem dos “muitos estádios” (v.24) precisa ser atualiza-da, especialmente nestes dias de popularização do esporte. A desig-nação é um tanto vaga. NTLH diz que o barco já estava no meio dolago. A “quarta vigília” (v.25) é a última vigília da noite. NTLH diz bem:“de madrugada, entre as três e as seis horas”.

2.4. Chama a atenção a maneira natural com que o evangelistarelata que Jesus andou sobre o mar. Já houve críticos que tentaram“esvaziar” o texto, dizendo que “epí ten thálassan” significa apenas“junto à praia”, mas o contexto impede essa manobra.

2.5. Num texto de tanta ação e pouca fala, vale a pena dar atençãoao que se diz. Isolando as falas, temos o seguinte:

Discípulos: É um fantasma. (Medo e superstição)Jesus: Tende bom ânimo! Sou eu. Não temais. (Correção e

reafirmação)

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Pedro: Se és tu, Senhor, manda-me ir ter contigo, por sobre aságuas. (Expressão de dúvida e proposta ousada)

Jesus: Vem! (Reafirmação e anuência surpreendente)Pedro: Salva-me, Senhor! (Fracasso e pedido de socorro)Jesus: Homem de pequena fé, por que duvidaste? (Pergunta de

censura; a única no diálogo)Discípulos: Verdadeiramente és Filho de Deus! (Confissão de fé, em

nítido contraste com a afirmação inicial: “É um fantasma”).

PARALELOS, PONTOS DE CONTATO

Este é um interessante texto que tem paralelo em Marcos e João,porém não em Lucas. Aliás, nos Sinóticos, como nos lembram os estu-diosos do assim chamado “problema sinótico”, são freqüentes as com-binações Mt-Mc x Lc e Lc-Mc x Mt. Em outras palavras, quando Lucas eMarcos andam juntos, Mateus está fora; e quando Mateus e Marcosandam juntos, Lucas segue seu próprio caminho. É o caso, aqui.

Sempre que há um paralelo sinótico, interessa de perto ao prega-dor aquilo que só o evangelista do dia apresenta. Em outras palavras,aquilo que “só Mateus viu (ou ouviu)”. No caso do evangelho de hoje,trata-se basicamente do relato a partir do v. 28 (Pedro e Jesus sobreas águas e a confissão dentro do barco). Com certeza, esta deveriaser a seção a ser explorada pelo pregador do relato de Mateus.

O ponto alto é, sem dúvida, a aclamação de cunho litúrgico, nofinal: “Verdadeiramente és Filho de Deus!”. Jesus é o Filho de Deus quesalva do abismo (veja Sl 18.16; 32.6; 144.7; Is 43.2) aqueles que cor-rem perigo dentro do barco.

Outros paralelos são os seguintes: o verbo com que Jesus fala so-bre a dúvida de Pedro (trata-se de distázo, e que ocorre apenas essasduas vezes, no NT) reaparece em Mt 28.17. O mesmo se aplica ao atode adoração coletiva (v.33): reaparece em Mt 28.17, ocorrendo tam-bém em 28.9 e 2.11. (Aliás, o verbo “adorar” – proskynéo, no grego –conota a divindade daquele que é adorado.) Já o reconhecimento deque Jesus é o Filho de Deus reaparece em Mt 27.54, quando o centuriãose manifesta diante da cruz.

USO HOMILÉTICO

Pregadores costumam abordar este texto da perspectiva dos nos-sos temores, mais ou menos no mesmo estilo da cena em que Jesusacalma a tempestade. Com certeza, o relato de Mateus permite talênfase. Um exemplo é o seguinte comentário de Joh. Ylvisaker, dos

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inícios do século 20: “Aqui temos uma impressionante imagem dasandanças espirituais do cristão. Está pisando num mar turbulento, tem-pestuoso. Enquanto mantém os seus pés firmados nas alianças deDeus e conserva os olhos da fé fixos nele, tudo vai bem. Ele tem aque-le poder que não pode ser vencido, pois vem de Deus. Mas tão logo eleperde de vista as promessas e permite que seu olhar se afaste doSenhor Jesus para os muitos perigos e aflições desta vida, passa a sersufocado por sua própria fraqueza; pois, então, tudo que lhe resta ésua própria força, e esta nada pode. Segundo Bengel, aquilo que foiiniciado por uma pessoa que confia na graça não pode ser completadoatravés de poder natural. Mas na adversidade Jesus está particular-mente próximo daqueles que são dele, e a proximidade de Jesus re-presenta, para eles, salvação” (The Gospels, p. 334).

No entanto, o clímax da história só chega ao final. O evangelistaquer que ouçamos a confissão apostólica: Tu és o Filho de Deus. Porisso, esta história é, antes de tudo, uma história a respeito de Jesus.

Em muitos dos milagres de Jesus, o discípulos perguntam: “Quem éeste?” Não é o caso aqui, em Mateus 14. No entanto, esta perguntaestá implícita. E existe, da parte dos discípulos, um sensível progressona identificação de Jesus. No início, há uma identificação equivocada:“É um fantasma”. Depois, uma identificação provisória ou incerta: “Seés tu ...” E, no final, uma confissão de fé: “Verdadeiramente és o Filhode Deus”.

É claro que a solução perfeita, para o pregador, é a combinação dosdois temas: temor em meio à fé (levando a nem perceber a presençade Cristo ou a duvidar dela), o que é um problema; e a graça da mãode Jesus que nos alcança e leva a confessar, em meio aos nossostemores: Verdadeiramente és o Filho de Deus!

Vilson ScholzSão Leopoldo, RS

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CONTEXTO

O texto do Evangelho de Mateus nos relata a história, a luta, ainsistência de uma mulher, que nem nome recebe, pela transformaçãoda realidade em que se encontra. Jesus está caminhando com seusdiscípulos numa região fora de Israel, onde vivia um outro povo, deuma outra cultura. De repente, vem uma mulher gritando em sua dire-ção. Essa mulher era cananéia. E o drama aqui é que era uma mulher!A mulher, segundo a opinião judaica, estava reduzida a nada, pois osrabinos chegavam a debater se elas tinham mesmo alma. Se um es-cravo ou um menino podia ler a lei nas sinagogas, isso não era permi-tido nem a uma judia adulta. Ela chama, implora por ajuda para suafilha que está doente. Jesus a ignora. Mas ela não desiste. A mulhersem nome continua gritando. A reação dos discípulos é afastá-la. Ainsistência desta mulher deixa Jesus sem alternativa. Não há mais comoignorá-la. Jesus tem de ouvi-la. Mas mesmo assim Jesus age de formainesperada, áspera. Mas ela não desiste! Ela luta por um espaço nacaminhada de Jesus, o reconhece como Messias – ao se dirigir a Elecomo Filho de Davi – e não se importa com os conceitos e dogmaspreestabelecidos. Se essa mulher vivesse em Betânia ou Jerusalém,um pedido desses já teria demonstrado uma grande fé. Mas quando otexto diz que ela era cananéia (dos lados de Tiro e Sidom), não erajudia, tal oração deixou a todos surpresos.

ÊNFASES

V. 21: Tiro e Sidom. A cidade de Tiro alcançou grande poder e es-plendor. Cerca de 150 anos depois da edificação do templo de Salomão,estabeleceu a grande colônia de Cartago – assenhoreou-se da ilha deChipre, que continha preciosas minas de cobre – e exerceu domíniosobre Sidom.

V. 22: Uma Mulher cananéia. O termo vem de cananeus, que incluidiversos povos distintos, como: os amorreus, os heteus, os girgaseus,os cananeus, os perizeus, os heveus e os jebuseus. No sentido maisapropriado, esse nome é aplicado a uma só tribo, àquela que habitava

DÉCIMO TERCEIRO DOMINGOAPÓS PENTECOSTES

Mateus 15.21-28

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à beira-mar e pela ribeira do Jordão. Os cananeus tinham por objetosde adoração Baal e Astarote. A expressão “Filho de Davi” diferenciavaas petições a Cristo. Quando um dos que se chamavam “pertencentesa Deus” (fariseus) oravam, faziam-no para aparecer. Aquela mulherestava convicta de que aquele Jesus, de quem ouvira falar em suasterras, era diferente do deus ao qual seu povo adorava. Não apenasum Jesus que operava milagres, mas sim um que podia tirar o pecadopela raiz.

V. 23: Parece estranho a indiferença de Jesus. Como diz o texto:“Mas Jesus não respondeu nada”. O fato de Jesus não lhe ter respondi-do coisa alguma, mostrou para os discípulos e para aquela mulher que afé que movimenta alguma coisa só é manifestada através da total humi-lhação aos pés do Senhor. Isso acontece quando uma pessoa se esva-zia completamente, chega ao zero diante de Deus, quando não temmais palavras ou argumentos para tentar reivindicar algo de Deus. Quan-do entra totalmente, como criança, na dependência do Pai.

V. 24: Agora parece ser o cúmulo do absurdo. Jesus dá uma palavradura aos ouvidos de quem estava por perto e mais ainda àquela mu-lher que clamava. O que Jesus quis dizer com isso? Jesus estava ape-nas explicando seu propósito, que era resgatar e religar o povo deIsrael ao seu verdadeiro Deus.

V. 25: O clamor da completa !dependência.V. 26: Se antes parecia o cúmulo do absurdo, do que se pode deno-

minar esta passagem?! Jesus, com muita coragem, simplesmente cha-ma a mulher de “cadela”.

Quando Jesus fala dessa forma, deixa mais claro ainda o seu pro-pósito junto ao Pai. Veio para restaurar a casa de Israel. Aí, sim, temosuma tipologia interessante e aplicativa nos dias de hoje. “Pão dos fi-lhos” significa Israel. Dá-los aos cachorrinhos significa o povo alcança-do e adquirido pela graça salvífica de Jesus. Visto que Israel não orecebeu como Filho de Davi, pois “veio para os seus e os seus não oreceberam”, Jesus estendeu sua misericórdia e salvação aos que nãopertenciam à casa de Israel.

V. 27: Jesus tinha uma capacidade incrível de incitar as pessoas ase moverem no campo da fé. Dava-lhes a oportunidade de dialogar, oque tem sido quase que extinto. Uma pessoa com tanto prestígio epoder dar ouvidos a publicanos, prostitutas, cegos, mendigos. Issoera maravilhoso para eles, mas muito criticado e abominado pelos ou-tros denominados “filhos de Deus”.

V. 28: A mulher cananéia obtém uma recompensa graciosa: “Mu-lher, você tem muita fé! Que seja feito o que você quer! E naquele mo-mento a filha dela foi curada”.

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PARALELOS

O Salmo 67 destaca a misericórdia e a bênção do Senhor, tanto nocampo material quanto no espiritual. Isso é motivo de temor e louvorpor parte dos povos do mundo inteiro. Deus quer que todos se ale-grem e cantem de alegria, que a sua salvação seja conhecida por to-dos os povos. Isaías 56 destaca o amor e a fidelidade de Deus paracom o seu povo de Israel e, ao mesmo tempo, demonstra o quanto eledeseja que também os estrangeiros possam apresentar “sacrifícios eofertas” em seu altar e estar em sua “casa de oração para todos ospovos”. Deus quer que outros povos sejam juntados ao seu povo,para que todos, a uma voz, possam “ficar felizes na minha casa deoração”. Em Romanos 11, Paulo dirige-se a não-judeus que, pela fé emCristo, tornaram-se “amigos de Deus” e receberam a vida.

SUGESTÕES HOMILÉTICAS

TEMAVerdadeira fé pode ser encontrada onde menos se espera.

APLICAÇÕES

– A aflição, por vezes, é transformada em bênção para a vida dapessoa.

– O povo de Deus, com freqüência, mostra-se menos misericordio-so e compassivo do que as orientações do próprio senhor.

– A fé sincera no Senhor certo de nossas vidas resulta em bênção eajuda.

CONCLUSÃO

A oração dessa mãe foi:– Sincera e breve. O momento não era para usar muitas palavras,

mas para dizer apenas a razão que a levara à presença de Jesus.– Foi humilde: ela prostrou-se aos pés de Jesus. Ela estava em

público e não se importou com os que a presenciavam naquele seugesto de tão profunda humildade.

– Foi fervorosa: fez a súplica com fé, na certeza de que Jesuspodia todas as coisas e não deixaria de atender aos rogos de umamãe que desejava ardentemente a cura de sua filha.

– Ela foi modesta: limitou-se a pedir a Jesus o que mais necessita-

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va naquele momento. Nenhuma outra coisa a preocupava mais que acura de sua filha.

– Foi reverente: usou a expressão “Filho de Davi”, chamando-o deRei. Ela creu. Essa expressão, que talvez para nós não diga nada, maspara o contexto dela (em que todos esperavam a chegado do Messi-as) estava dizendo: “Eu creio que Tu és o Messias, filho de Davi, envi-ado por Deus, e que tens poder para libertar minha filha”.

– Foi perseverante: não obstante o aparente desinteresse doMestre pelo seu pedido, ela insistiu, permaneceu perseverante, cren-do que seria atendida. Diante disso, Jesus disse: “Ó mulher, grande éa tua fé. Faça-se contigo como queres”. A Bíblia diz que desde aquelemomento a filha dela ficou sã.

Paulo Gerhard PietzschSão Leopoldo, RS

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CONTEXTO

Jesus está se aproximando do tempo de ser crucificado. Logo após,o texto prediz a sua morte e ressurreição (Mt 16.21). Portanto, dentrodeste contexto, a confissão de Pedro, “Tu é o Cristo, o Filho do Deusvivo” (v. 16), tem um sentido bem específico: Cristo, o Ungido de Deus,vem para dar sua vida e para vencer a morte, garantindo-nos, assim,vida eterna.

Dentro do contexto litúrgico, este texto faz parte do 14º Domingoapós Pentecostes da Série A. Os domingos após Pentecostes enfatizamos ensinamentos e o ministério de Jesus.

TEXTO

Os discípulos precisavam ser preparados para os dias difíceis queiriam acontecer mais tarde, quando Jesus seria entregue para morrere ressuscitar. Precisavam crescer na fé em Jesus para não vacilaremnos momentos de sua paixão e morte. Fazendo um teste para a fé dosdiscípulos, Jesus lhes pergunta sobre o testemunho do povo a respei-to dele.

Apesar das constantes injúrias que os fariseus faziam sobre Jesus,o povo ainda tinha uma grande estima por ele: comparam-no a umprofeta. As respostas do povo são diversas, mas convergem na crençapopular de que um dos mortos tenha ressuscitado: João Batista, Elias,Jeremias ou algum outro profeta. De fato, Jesus era um profeta, comojá estava predito: “O Senhor, teu Deus, te suscitará um profeta domeio de ti, de teus irmãos, semelhante a mim; a ele ouvirás” (Dt 18.15).Herodes Antipas já havia pensado de Jesus que ele seria João Batista,ressuscitado dentre os mortos. A volta de Elias era aguardada pelopovo de Israel, antes do Dia do Senhor, como precursor do Messias (Ml4.5-6). No entanto, mesmo tendo Jesus em alta estima, o povo nãotinha noção da verdadeira identidade de Jesus.

Jesus, ao fazer a pergunta aos discípulos sobre sua identidade,apresenta-se como o Filho do Homem (v. 13). O impetuoso Pedro imedi-atamente responde em nome dos discípulos com um testemunho de fé

DÉCIMO QUARTO DOMINGO APÓSPENTECOSTES

Mateus 16.13-20

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inabalável: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo” (v. 16). Foi uma decla-ração concisa, todavia precisa e completa sobre a divindade de Jesus.Expressa a fé dos discípulos em Jesus como o Redentor prometido. Foiuma réplica à afirmação que Jesus fez sobre si como o Filho do Homem(v. 13).

Jesus qualificou Pedro como bem-aventurado (v.17) em vista da suaresposta. Mas isto não se deveu a um mérito de Pedro: foi uma revela-ção do próprio Deus. O correto conhecimento de Jesus Cristo, a féverdadeira, é obra e dom de Deus. Jesus ainda acrescenta uma pro-messa a esta afirmação: “Também te digo que tu és Pedro, e sobreesta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não preva-lecerão contra ela” (v. 18). Pedra aqui também pode ser traduzida porrocha. O nome Pedro também significa pedra, rocha e aqui Jesus faz umjogo de palavras entre pétros (Pedro) e pétra (pedra, rocha). A igreja, opovo messiânico, edificada sobre a firme afirmação de Pedro, não pre-cisa temer o inferno.

Em vista da afirmação de Pedro, Jesus confere as chaves do reinodos céus aos discípulos. Em Jo 20.23, fica evidente que estas chavessão concedidas a todos os apóstolos.

O texto conclui com o pedido de Jesus de que não fosse divulgadoser ele o Cristo. Os judeus estavam com uma falsa concepção, procu-rando um Messias que fosse político. Se isto fosse espalhado, poderiaprecipitar-se uma rebelião contra Roma. Somente mais tarde, diantede sua crucificação, Jesus respondeu publicamente ao sumo sacerdoteque ele era o Cristo.

APLICAÇÕES HOMILÉTICAS

O texto nos mostra Jesus como “o Cristo, o Filho do Deus vivo”.Jesus é o fundamento da igreja sobre quem o inferno não tem poderde vencer.

A moléstia é reconhecer em Jesus um profeta como outro qualquere não ver nele o próprio Deus que se faz homem para padecer, morrere ressuscitar por nós. Jesus continua hoje a ser visto apenas como umexemplo de bondade que se destaca em sua doação às pessoas, semser visto como o Salvador da humanidade. Em nossos tempos, preci-samos cuidar para não nos acomodarmos e deixar que Jesus seja vis-to das mais diferentes formas. Não podemos nos calar diante das opi-niões diversas sobre Jesus. Precisamos interferir para mostrar que “Je-sus é o Cristo, o Filho do Deus vivo”.

Os meios para vencer esta visão incompleta sobre Jesus o próprioDeus nos dá. Assim como Deus revelou a Pedro que Jesus é “o Cristo,

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o Filho do Deus vivo”, ele continua a nos levar a esta fé e certezamediante a pregação de sua palavra e a administração dos sacramen-tos. Motivados pela certeza que Deus nos dá, não precisamos maisdeixar de divulgar que Jesus é o Cristo, pois agora já ficou claro que oMessias não veio para uma libertação política, mas para a maior liber-tação de que temos necessidade: a libertação de nossos pecados.Com as chaves do reino dos céus, podemos ter a certeza da ligação deDeus conosco mediante sua palavra e sacramentos.

PROPOSTA HOMILÉTICA

QUEM É O FILHO DO HOMEM HOJE?I – O Filho do Homem continua alvo de controvérsiaII – A verdade sobre o Filho do Homem é eterna: é o Cristo, o Filho

do Deus vivo.

Raul BlumSão Leopoldo, RS

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CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES

O apóstolo Paulo terminou a primeira sessão de sua epístola aosRomanos, ou seja, a parte doutrinária. Mostrou como ajustar e man-ter relações com Deus. Ele descreveu as diversas e variáveis manifes-tações da compaixão e misericórdia divinas em relação ao ser humanoe a amorosa e incansável busca de Deus em meio à desobediência eingratidão humanas. O apóstolo agora faz a transição entre a base damanifestação do amor de Deus para a prática da vida. A vida cristãpretende ser radicalmente consagrada a Deus, vivida não em confor-midade com o mundo, mas em “transformação” no sentido, a partir ena direção de Deus.

TEXTO

V. 1: “Rogo-vos, pois, irmãos, pelas misericórdias de Deus, queapresenteis o vosso corpo por sacrifício vivo, santo e agradável a Deus,que é o vosso culto racional”.

Pois, ou, por esta razão: Rogo. O modo como o apóstolo se dirigeaos cristãos romanos é modelar para todos os tempos. Sua exortaçãoé evangélica, não uma demanda da lei. Ele não escreve: eu determino,ou eu mando, mas: eu rogo. O apóstolo quer que os cristãos vivam emconformidade com a sagrada e santa vontade de Deus, não no sentidode que esse esforço ou comportamento mereçam ou tenham o méritode salvar ou, da salvação. A exortação do apóstolo baseia-se exclusi-vamente nas misericórdias de Deus. Ele chama os cristãos de Roma deirmãos, como filhos com ele do mesmo Pai celestial e, por esta razão,numa voluntária submissão a Ele em todos os tempos e em todas ascoisas. A imerecida graça de Deus, a insondável riqueza da sua miseri-córdia, que os leitores experimentaram em seus corações, esse é pro-priamente o motivo e incentivo do modo cristão de viver.

Deste modo, tudo que o cristão oferece e sujeita complacentemen-te ao Senhor e à Sua vontade, não é um ritualismo formal e morto, masé culto, adoração em espírito, uma mente incessantemente ativa em

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Romanos 12. 1-8

A nova vida no serviço de Deus

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planejar e pensar em como o conjunto do corpo, de todo seu ser, possaviver para a honra de Deus.

V. 2: “E não vos conformeis com este século, mas transformai-vospela renovação da vossa mente, para que experimenteis qual seja a boa,agradável e perfeita vontade de Deus”.

Os cristãos, sob nenhuma hipótese, desejam acomodar-se aos cos-tumes, hábitos e práticas que são comuns nesta vida. Eles estão nomundo, mas por estarem convertidos por dentro, de coração e alma,eles querem assumir um jeito de ser diferente enquanto no mundo.Isto eles querem realizar através da renovação da mente e do coraçãoque começa justamente na conversão e se estende por toda vida,num confronto permanente entre carne e espírito. Esse testemunhodos cristãos é, na realidade, o propósito deles estarem e permanece-rem aqui no nesta vida.

Vv. 3, 4, 5: “Porque, pela graça que me foi dada, digo a cada um dentrevós que não pense de si mesmo além do que convém; antes, pense commoderação, segundo a medida da fé que Deus repartiu a cada um. Porqueassim como num só corpo temos muitos membros, mas nem todos osmembros têm a mesma função, assim também nós, conquanto muitos,somos um só corpo em Cristo e membros uns dos outros”.

Até hoje, esta primeira instrução prática da vida cristã tem a maiorrelevância, qual seja, que todos sejam modestos na posse e na práti-ca de dons que Deus repartiu a cada um. Todos dons e habilidadesdevem servir para o bem comum, para o serviço de um para o outro, enão para a própria promoção ou exaltação. Simplesmente, modéstia ehumildade precisam caracterizar a vida prática no reino de Deus.

Vv. 6, 7, 8: “tendo, porém, diferentes dons segundo a graça que nos foidada: se profecia, seja segundo a proporção da fé; se ministério, dediquemo-nos ao ministério; ou o que ensina esmere-se no fazê-lo; ou o que exortafaça-o com dedicação; o que contribui, com liberalidade; o que preside, comdiligência; quem exerce misericórdia, com alegria”.

Os dons da graça percebidos na vida dos cristãos são diversos evariados. Porém, seu objetivo e fim são os mesmos, quais sejam, nãoservir para vantagens pessoais, mas para servir ao Senhor. O apósto-lo, sem dúvida, está pensando na comunidade cristã como uma orga-nização social, com seus vários membros cooperando para “um fimproveitoso”, para o bem comum. A lista de dons que segue mostraisso ao correlacionar as diversas funções, por exemplo: a profecia se-gundo a proporção da fé projeta harmonia entre conteúdo da fé e odiscurso na pregação e a conseqüente manifestação através do com-portamento. Ministério, ensino e exortação para terem efeito precisamser usados, cada qual, em seu devido lugar. A contribuição seja exercida

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sem ostentação; quem preside, ou seja, quem lidera, tanto na congre-gação quanto no lar, o faça com o maior zelo; e quem exerce misericór-dia, que o faça com alegria, compaixão, afabilidade.

PENSAMENTOS HOMILÉTICOS

- O apóstolo lembra, exorta no sentido de que a vida cristã é ne-cessariamente coerente com a fé (base doutrinária) e, por isso, pre-tende ser radicalmente consagrada a Deus, não em conformidade como mundo, mas em “transformação” no sentido, a partir e na direção deDeus.

- Os dons da graça de Deus, que Ele distribui segundo lhe apraz,devem servir sempre para o bem comum e não para a própria exaltaçãoou promoção.

- Modéstia e humildade precisam caracterizar a vida prática no rei-no de Deus.

Norberto Ernesto Heine Porto Alegre, RS

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AS OUTRAS LEITURAS DO DOMINGO

SALMO 119.113-120

Uma possível ligação com o texto de Mateus são as palavras dejuízo e condenação contra os “malfeitores”, “os que se desviam dosteus decretos”, os “ímpios” (vv. 115, 118, 119). A realidade e serieda-de da condenação do pecador impenitente sob a lei de Deus fica evi-dente.

EZEQUIEL 33.7-9

Neste texto, o profeta é colocado como “atalaia sobre a casa deIsrael.” A função do vigia ou sentinela é soar o alarme ou “soltar ogrito” quando algum perigo se aproxima. Semelhantemente, o profe-ta-atalaia seria responsável por anunciar a lei ao “perverso”. Ele deve-ria confrontar o pecador com o seu pecado. As alternativas colocadasdiante do profeta são: a) não avisar/confrontar (nesse caso, o perver-so morreria na sua iniqüidade e o profeta seria responsável por isso);b) avisar/confrontar (nesse caso, mesmo se o perverso não se arre-pendesse, o profeta não seria mais responsável por isso). O textorevela, ao mesmo tempo, a ira de Deus contra o pecado (que leva opecador impenitente à condenação) e o seu desejo de salvar o peca-dor. Deus não tem prazer na morte do ímpio. Por isso, ele envia oprofeta como atalaia para tentar obter o arrependimento e a salvaçãodo perverso.

ROMANOS 13.1-10

Neste mundo, Deus pune o transgressor ou recompensa o quepratica o bem por meio de seus ministros/servidores/agentes, no casoas “autoridades superiores”.

O cristão é chamado a se submeter em amor e colaborar comas autoridades para que, no exercício correto de suas funções, a von-tade de Deus se realize e se estabeleça e mantenha um ambiente

DÉCIMO SEXTO DOMINGOAPÓS PENTECOSTES

Mateus 18.15-20

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em que todos possam viver em paz e tranqüilidade. O amor ao próxi-mo é a lei suprema que deve governar os relacionamentos do cristãono mundo.

Este texto, portanto, amplia o campo de visão dos demais tex-tos da perícope mostrando que o amor ao próximo não se limita àpreocupação com a sua alma ou com seu bem-estar e salvação eterna,mas que este amor se reflete também em ações concretas na vidacotidiana neste mundo.

CONTEXTO

Um dos artigos desta edição da Igreja Luterana, da autoria de Gibbse Kloha, trata exatamente da interpretação de nosso texto em seucontexto. Recomendo insistentemente que o leitor leia esse artigo empreparação para a sua mensagem. Mas, para aqueles que estão re-correndo a este auxílio homilético na undécima hora, seguem algumasobservações extraídas do artigo citado. (No entanto, fica a recomen-dação de que estes leiam o artigo na segunda-feira).

A figura da criança (18.1-4) é decisiva para compreender a unidadetemática do capítulo. Os discípulos perguntam a Jesus quem é “o maiorno reino dos céus”. Jesus responde que aquele que se humilhar comoaquela criança que ele colocara no meio deles é “o maior no reino doscéus”. Gibbs e Kloha esclarecem que, em Mateus, crianças são vistascomo “impotentes, necessitadas de comida, proteção, cura, oração,exorcismo e revelação divina”. Esclarecem também que “humilhar-se”significa muitas vezes no Novo Testamento “reconhecer sua necessi-dade e submissa dependência”. Portanto, a resposta de Jesus aosdiscípulos é de que o maior é aquele que tem as maiores necessida-des, aquele que é o mais dependente de cuidado e proteção por partedos outros discípulos.

A estrutura do capítulo 18 revela um crescendo de “cuidado pelomais importante”. Jesus sublinha a importância desse cuidado pelos“pequeninos” dizendo que quem os recebe e os serve está cuidandodo próprio Jesus. Esses discípulos necessitados precisam ser “recebi-dos” pelos outros discípulos; estes devem evitar, a todo custo, deescandalizá-los (18.5-10). Quando um deles começar a se extraviar dorebanho, os demais discípulos devem procurá-lo e trazê-lo de volta(18.12-14). Mesmo que o discípulo tenha sido vítima de um claro peca-do, ele deve ir ao encontro do pecador que o ofendeu para procurarganhá-lo de volta (18.15-20). O perdão que o discípulo estende àque-le que o ofendeu dever ser tão amplo quanto aquele que ele própriorecebeu de seu Pai celeste (18.21-35).

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ALGUNS DESTAQUES DO TEXTO

“Se teu irmão pecar contra ti”. Os discípulos de Jesus são irmãos nafé. Esse relacionamento horizontal é precioso e deve ser preservadoespecialmente porque ele remete, imediatamente, ao relacionamentovertical, com o Senhor.

O pecado cometido neste caso não é um pecado qualquer que podeser ignorado ou simplesmente esquecido. Trata-se de uma ofensa gra-ve que põe em risco a vida espiritual do ofensor. Ou seja, a ofensacometida é sintomática de um problema mais sério e maior: a rupturado relacionamento horizontal está, no mínimo, ameaçando romper seurelacionamento vertical com Cristo. O fato de que o irmão precisa serganho de volta mostra isso e revela que ele estava perdido ou emrisco de se perder como a ovelha extraviada que o Senhor procurou etrouxe de volta (18.12-13).

A expressão “contra ti” é controvertida. Há argumentos a favor econtra sua inclusão no texto. Por isso, no dizer de Gibbs e Kloha, “cons-truir um edifício exegético sobre um alicerce tão incerto seria muitoimprudente”.

“Vai argüi-lo”. Eléncho é “mostrar às pessoas os seus pecados echamá-las ao arrependimento” (Kittel). O amor leva o discípulo a seimportar suficientemente com o irmão a ponto de não ignorar o riscoespiritual em que o mesmo se encontra. O irmão culposo precisa serconfrontado com seu pecado para que possa se arrepender e ser res-taurado. O cristão é chamado aqui a ser o atalaia que avisa aotransgressor sobre as conseqüências eternas que seu pecado lhe cau-sará (Ez 33.7-9).

“Entre ti e ele só”. O verdadeiro amor e a genuína preocupaçãocom o próximo querem também preservá-lo de conseqüências negati-vas que seu erro lhe poderá trazer neste mundo (cf. Rm 13.1-10). Épreciso proteger o bom nome do irmão e não expô-lo à maledicência edifamação de más línguas (cf 1 Pe 4.8; Tg 5.20).

“Se ele te ouvir, ganhaste a teu irmão”. Eis o ponto-chave e o alvode todo o processo. O objetivo da confrontação é ganhar o irmão:buscá-lo, conduzi-lo ao arrependimento, trazê-lo de volta à comunhão.Obviamente, para que este objetivo seja alcançado, todo o confrontoprecisa ser feito com muito amor, tato, carinho e gentileza.

“Se, porém, não te ouvir”. Infelizmente, existe esta possibilida-de. Por mais que o cristão se esforce com amor insistente e incansável,pode acontecer que alguém endureça seu coração e não reconheçaseu erro. Nesse caso, mais uma ou duas pessoas podem ser convida-

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das para ajudarem no confronto e na tentativa de buscar e salvar aovelha extraviada.

Finalmente, depois de esgotadas todas as possibilidades e es-peranças, a igreja ou congregação local é envolvida no processo. Se,mesmo assim, não houver arrependimento, aí finalmente ocorre a ex-clusão do pecador impenitente da comunhão dos irmãos. Essa é umadrástica e trágica declaração para o próprio envolvido e para os de-mais de que o ofensor rompeu não só o relacionamento horizontal,mas também o relacionamento vertical com o Senhor e de que ele nãopode mais ser considerado um irmão mas, sim, uma ovelha extraviada.É uma declaração dura, mas necessária para alertar o pecador dasterríveis conseqüências eternas que sua impenitência irá trazer sobreele (cf. Ez 33.7-9).

SUGESTÃO HOMILÉTICA

Mateus 18 tem sido interpretado e usado de muitas maneiras. Seuobjetivo, com certeza, não é o de “provar a culpa” ou “sentenciar” umréu. Também não é o de fornecer “regras para a excomunhão”, mesmoque essa venha a ocorrer no processo.

O objetivo do texto, como seu contexto claramente revela, é o detrazer um pecador de volta a um relacionamento fraterno com seusirmãos na fé e, ao mesmo tempo, restabelecer seu relacionamentocomo o próprio Senhor Jesus Cristo.

Aparentemente, há muitas possibilidades diferentes de reação quan-do se é ofendido por alguém. Mas, basicamente, todas essas reaçõespodem ser classificadas em duas categorias: a) reações segundo oespírito do mundo e da carne; e b) reações segundo o espírito deCristo. O mundo e a carne costumam reagir ou com fuga ou com agres-são. Isto é, procura-se negar a ofensa, ignorá-la, fugir do agressor ou,então, se ataca o ofensor seja com palavras (ofendendo-o, difaman-do-o, etc.) ou seja com agressão física que pode até culminar em as-sassinato em casos extremos. A reação conforme o espírito de Cristoprocura o bem e a salvação do agressor.

É claro que a velha natureza do cristão quer sempre seguir a recei-ta do mundo quando ofendido por alguém. O novo homem, porém, éguiado pelo Espírito Santo e busca forças em Cristo. A fé que produzas obras de amor em relação ao próximo é alimentada e cresce quan-do recebe a dádiva do Evangelho. O Evangelho revela que Cristo mor-reu por nós “sendo nós ainda pecadores” e que ele nos reconcilioucom Deus quando nós ainda éramos inimigos de Deus (Rm 5. 8, 10). Se

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realmente recebemos esse incompreensível presente do perdão e re-conhecemos nossa total indignidade em recebê-lo, devemos, também,repassar tal amor ao próximo que não o merece (Mt 18.21-35).

Paulo Wille BussSão Leopoldo, RS

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SALMO 103.1-13

Este domingo afirma a razão da existência do próprio Deus. O Se-nhor faz justiça: Ele perdoa, redime e farta (v. 3-6). O Senhor é:misericordioso, benigno, compassivo (v. 8). Portanto a grandeza deDeus se revela na sua misericórdia. Ele nos “redime da cova” e afastaas nossas trangressões “tanto quanto o Oriente está afastado doOcidente”.

Em contraste ao que Deus é e faz, estamos nós, em nossa estrutu-ra de pó. Mas a misericórdia do Senhor dura para sempre (v.17) edomina sobre tudo (v. 19 -22).

Esta leitura do Salmo encontra eco nas demais leituras deste do-mingo ao mostrar a fidelidade de José a este Deus e a infidelidade aeste Deus na pessoa do credor sem misericórdia. Este texto do Evan-gelho encerra a lição de Jesus sobre a prática do perdão em Mateus18. A lição de Mateus 18 termina com a advertência àqueles que nãoforem fiéis a Deus por pensarem e agirem com impiedade contra pes-soas que tenham caído em tentação.

GÊNESIS 50.15-21

Os irmãos de José têm a consciência pesada. Atentaram contra asua vida entregando-o por inveja a mercadores de escravos. José foraeliminado da família. O motivo? Os irmãos já não suportavam ver Josésendo abençoado pelo pai com amor e carinho. Era errado o que esta-va acontecendo. A atenção do pai por José os ofendia. A ofensa tinhade ser afastada para que eles tivessem paz.

Agora, passados esses anos, como encarar José? O que dizer? Ofen-sa, justiça e paz agora adquiriram novo significado. Os papéis se in-verteram. A autoridade que exerceram sobre José agora paira sobreeles como justo juízo.

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Salmo 103.1-13; Gênesis 50.15-21;Romanos 14.5-9; Mateus 18.21-35

Se vivemos, para o Senhor vivemos.

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Exercer autoridade sobre alguém não se justifica em si mesmo. Atéque ponto o juízo que pronunciamos sobre alguém pode vir a ser ojuízo que condena a nós próprios?

Com José aprenderam a conhecer uma nova dimensão da vida. Háum Senhor que dá vida, cuida e protege. Ele conduz a vida segundo osseus desígnios, independentemente do que nós julgamos certo oucondenável.

Esta não é simplesmente a história de José e seus irmãos. NelaDeus expõe e questiona a nossa motivação nas relações familiares eos problemas que elas nos acarretam. Isso tanto se refere à famílianuclear quanto à família ampliada.

ROMANOS 14.5-9

O apóstolo direciona a teologia da sua carta para dizer nas conclu-sões onde e como a teologia cristã manifesta o seu propósito: Acolheiao que é débil na fé (14.1); Porque foi para esse fim que Cristo morreue ressuscitou (14.9).

O apóstolo, nesta carta, percorreu um longo caminho, expondo duasrealidades conflitantes e irreconciliáveis. De um lado, a maldade danatureza humana, absoluta e incorrigível. De outro lado, a incrívelrealidade: as pessoas todas, o mundo inteiro vive porque Deus o pre-serva, Deus encaminha as ações humanas. Mas acima de tudo está amotivação de Deus: Ele preserva o mundo porque o mundo foi salvona ação de Deus a favor do mundo em Cristo. Em Cristo Deus revela asua verdadeira natureza e intenção final. É precioso ser acolhido emDeus pela palavra do Evangelho. Por esta razão: Acolhei (14.1), nãopara julgar (14.10).

Viver para o Senhor. Em outras palavras, reconhecer que cada as-pecto da nossa vida, por menor e mais insignificante que possa pare-cer, é cuidadosamente encaminhado por Deus. Não vivemos uma vidaprópria, nossa, mas vivemos a vida que Deus nos presenteia a cadadia. Nada temos ou somos que não seja do Senhor (14.8).

Amigos, vizinhos, família, colegas, patrões, empregados, oportuni-dades, empecilhos, obstáculos, em tudo isso Deus se manifesta a nóspor causa da obra de Cristo que selou para nós o amor de Deus parasempre. Nada temos, mas temos tudo. Nada somos, mas somos filhose herdeiros do Criador e Mantenedor.

O pecado em nós nos humilha diante de Deus e do semelhante.Mas por Cristo e em Cristo, Deus nos livra do mal e protege na tenta-ção. Em razão disso, ninguém mais pode olhar com desprezo para oímpio e o pecador, porque reconhecemos que Deus, em Cristo, nos

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presenteia diariamente com a santidade e a dignidade com que somosvistos e amados pelos que nos cercam. Essa é também a dívida deamor que devemos a cada criatura de Deus e muito mais àqueles queandam ao nosso lado na mesma fé.

Paulo está preocupado com o fato de que na igreja freqüentementeas pessoaas se expressam de tal maneira que alguns sejam vistos eaté marcados como pecadores. Incluíam-se os ascetas que afirmavamque o corpo e as sensações físicas, especialmente o prazer (inclua-seaí, especialmente, os prazeres da comida, da bebida e do sexo) nãopassavam de manifestações inferiores que deviam ser superadas pelaespiritualidade. Atraíam atenção sobre si e se davam como pessoaspuras e superiores. Com isso, as pessoas que não tinham esse estilode vida ficavam em dúvida quanto à sua religiosidade. Esses movimen-tos encontravam apoio entre os cristãos judaizantes com sua noçãode pureza herdada dos fariseus. Nesse sentido podemos ver a cartaaos cristãos romanos como esclarecedora, ao afirmar a absoluta de-pendência do ser humano da graça de Deus em Cristo, na medida emque toda a justiça que é visível ao outro é graça de Deus e não temqualquer mérito pessoal nisso.

O pecado maior é apropriar-se desta justiça que Deus nos presen-teia e ostentá-la como justiça própria e superior à do próximo (14.10).

MATEUS 18.21-35

É de supor que Mateus tenha agrupado tematicamente estes tex-tos do capítulo 18, o que em Marcos e Lucas não se repete. São exclu-sivos de Mateus os textos sobre a argüição do faltoso e a paráboladeste domingo. O cabeçalho que Mateus nos oferece para essas pala-vras de Jesus é a questão suscitada pelos discípulos: Quem é o maiorno reino dos céus? (18.1). Em outras palavras, como se deve definir aautoridade sobre os demais. O que dá a alguém a autoridade de opi-nar e julgar no reino dos céus. O reino dos céus não é uma realidadeimaterial. O reino dos céus se manifesta na relação com o irmão, oirmão fraco e o irmão perdido.

Este é um domingo que exige a ousadia profética de assumir o papeldo arauto e mensageiro para denunciar a maneira segundo a qual osdiscípulos queriam ser igreja e a maneira como Jesus e seus enviadosreverteram o raciocínio moldado pela natural soberba da carne que seinsinua no discurso e nas relações entre irmãos. Não importa como porvezes o raciocínio dos discípulos se instala e governa na igreja. O querealmente importa é a palavra final que o senhor dirige ao seu adminis-trador: “[...] não devias tu, igualmente, compadecer-te [...]?

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Desta vez a parábola não deixa o final em aberto. O fechamento éduro e seco. Trata-se da obra de Deus no seu princípio mais essenciale determinante: “Foi precisamente para esse fim que Cristo morreu eressurgiu”. Os discípulos jamais serão senhores. São servos a serviçoda obra do Senhor. “Senhor tanto de mortos como de vivos” (Rm 14.9).

SUGESTÃO TEMÁTICA

Vivemos para o Senhor1. Buscando a vida nele em nossa debilidade2. Acolhendo pessoas em suas debilidadesNota: O título dado à perícope em Rm 14.1-12, versão ARA, não

reflete bem a verdade do texto. Não se trata de mera sugestão pelatolerância. Trata-se aí da própria essência da obra de Cristo e da suavisibilidade no mundo. O perdão não é uma formalidade pontual. É aprópria vida cristã. Mais adequado está a NTLH: Não julgue os seusirmãos.

Paulo P. WeirichSão Leopoldo, RS

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PARÁBOLA

A perícope de Mt 20.1-16 é uma parábola. A parábola é uma figurade linguagem, uma comparação, uma história curta, real ou imaginária,uma ilustração contada para ensinar uma verdade espiritual maior. Oobjetivo principal do uso de uma parábola é tornar mais clara e maissimples uma verdade eterna para o ouvinte ou leitor. O uso da parábo-la é um método didático-pedagógico que Cristo aplicou na maior partede suas pregações. É o mestre destas ilustrações. Usou mais de 40parábolas diferentes em seu ministério público. “Jesus não dizia nadaa eles sem ser por meio de parábolas” (Mt 13.34). “Parábolas... Jesusfalava ao povo de um modo que eles podiam entender” (Mc 4.33).Normalmente, cada parábola ensina e sublinha apenas uma grandeverdade. O ponto principal da “parábola dos trabalhadores na vinha”é mostrar que Deus, o “dono do reino dos céus”, é justo e bom, e quea entrada no reino dos céus é favor de Deus e não mérito humano(Justo: correto, honesto, íntegro, exato, digno. Bondoso: bom, miseri-cordioso, benevolente, benigno, gracioso, generoso).

Reino dos céus – Jesus usa as expressões “reino dos céus” e “rei-no de Deus” como sinônimos (Mt 19.23,24). Das 40 parábolas que Je-sus usou, cerca de 20 delas falam do “reino dos céus” ou “reino deDeus”. As parábolas sobre o reino, por vezes, ensinam verdades so-bre a vida presente – o reino da graça com a vinda do Ungido – falandosobre a importância de o povo ouvir a mensagem da salvação; porvezes, falam sobre a vida futura – o retorno de Cristo para julgar vivose mortos. O “reino dos céus” de nossa perícope aparece numa pers-pectiva escatológica – o julgamento no futuro, no “último dia”.

Plantação de uvas – É uma figura de linguagem que representaIsrael, o povo de Deus, como mostra o profeta Isaías em 5.7: “A plan-tação de uvas do Senhor Todo-Poderoso... é o povo de Israel...” Maistarde, também passou a significar o “novo Israel”, a igreja cristã.

Acerto de contas – O dono da plantação de uvas contratou traba-lhadores em cinco horários diferentes para a mesma tarefa e no mes-mo dia: 1º grupo – 6h; 2º grupo – 9h; 3º grupo – 12h; 4º grupo – 15h;

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Mateus 20.1-16

Eu não sou injusto com vocês

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5º grupo – 17h. Às 18h, o “dono da vinha” disse ao administradorfazer o pagamento aos trabalhadores. Os do 1º grupo trabalharam12h; os do 5º grupo, apenas 1h. E houve surpresa. Todos os gruposreceberam o mesmo salário. E começou a reclamação, a murmuração,a acusação, a inveja pelos que trabalharam mais tempo. Claro, segun-do “a justiça humana”, o dono da vinha estava cometendo uma terrívele clamorosa “injustiça humana”. Mas o “dono da vinha” – “o Dono doreino dos céus” resolveu a questão, dizendo a cada um: você nãorecebeu o que nós combinamos? Você não concordou? Então o quevocê está reclamando? Não fui justo com você? Pegue o seu pagamen-to e vá embora!”

Não injustiça – O fato de Deus ser bondoso e generoso com todosnão pode ser interpretado como injustiça de Deus (cf. Is 55.8). “Sãomaus teus olhos por que eu sou bom?” Assim é o nosso Deus, graçasa Deus: Dá o mesmo reino, o mesmo galardão, o mesmo prêmio, amesma vida eterna aos que foram cristãos desde seu batismo infantil,ao longo de toda a vida, como aos que foram convertidos e creram noSalvador minutos antes de sua morte – como é o caso do malfeitor nacruz. Mais: não só Israel de ontem pode receber o “reino dos céus”,mas também os gentios dos “confins da terra” de hoje podem recebero “reino dos céus” pela fé no Salvador Jesus. Neste caso, nós estamosentre os últimos, os “de hoje”. A graça de Deus, a bondade de Deus, ofavor de Deus e o amor de Deus – revelado e consumado em Cristo –que confere o “reino dos céus”, é o mesmo para os cristãos das 6h damanhã como para os cristãos das 17h! Graças a Deus! Profissão de fée serem chamados por Deus e receberem a mesma vida eterna comonós!

Primeiros e últimos – As aparências podem enganar. Deus prepa-ra surpresas. Cristo, em muitos ensinos, gosta de surpreender e dechocar com paradoxos e com inversão de valores. Com pequenas vari-ações, Cristo aplica a mesma verdade dos “últimos serão primeiros, eos primeiros serão últimos” em diversas e diferentes oportunidades:Aqui, no vers. 16, ele mostra que os trabalhadores das 17h podem seros primeiros e os das 6h da manhã podem ser os últimos; em Mt 19.30e Mc 10.31, aplica a mesma sentença sobre conceder a “vida eterna”ao falar sobre o perigo das riquezas; em Lc 13.30, ao falar sobre o“esforçar-se para entrar pela porta estreita” e apontar para o juízofinal, Jesus também surpreende: muitos primeiros podem ser os últi-mos, e muitos últimos podem ser os primeiros. Por quê? Como? É queos homens julgam pelas “grandes e belas aparências exteriores” eDeus não olha as aparências externas, a cara, a posição, a cultura, as

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riquezas, a roupa, os títulos acadêmicos das pessoas – que podem sermascarados, falsos e hipócritas – mas Deus olha o amor, a sinceridade,a fé e a esperança que está no interior, no coração do filho de Deus! “OSenhor não vê como o homem. O homem vê o exterior, porém o Senhorvê o coração” (1 Sm 16.7). Os homens podem se enganar. Deus nuncase engana!

PROPOSTA DE ESTRUTURA DE SERMÃO

Sempre traçando o necessário paralelo, fazendo a correta inter-pretação e oportuna aplicação, o sermão poderia ser escrito e anunci-ado com o seguinte tema e partes, apontando para a lição maior daperícope:

INTRODUÇÃO

Pode ser próprio iniciar com a verdade que Jesus expressa no v.16: O juízo final reserva muitas surpresas. Por quê? Desperta a curio-sidade e a atenção dos ouvintes.

Tema: Eu não sou injusto com vocês Por que Deus não é injusto? O texto apresenta, no mínimo,

três razões.

PARTES

I – Porque eu fui justo e bondoso quando considerei iguais osdiversos trabalhadores contratados nos diferentes horários.

II – Porque eu fui justo e bondoso quando considerei iguais todasas horas de trabalho pagando a cada um o que havia prometido.

III – Porque eu sou justo e bondoso quando considero iguais to-dos os que estarão comigo no reino dos céus.

CONCLUSÃO

Tendo cuidado para fazer clara diferença entre lei e evangelho,entre justificação e santificação, é oportuno fazer os seguintes desta-ques:

- Retomar a surpresa da Introdução: Juízo final- Repetir e sublinhar o tema e as partes- Destacar a ação graciosa de Deus: criação, redenção, santificação

(Lutero)

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- Como redimidos e santificados e candidatos ao reino dos céus,“trabalhar na vinha” (igreja), considerando um privilégio de Deus enão mérito humano

- “Sempre abundantes...” – 1 Co 15.57,58- “Sê fiel...” – Ap 2.10- “Entra no...” – Mt 25.21

Leopoldo HeimannSão Leopoldo, RS

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CONTEXTO HISTÓRICO

O evangelista Mateus relata que a parábola dos dois filhos foracontada após uma série de acontecimentos que acenderam a ira e aindignação dos chefes dos sacerdotes, dos mestres da Lei e de algunslíderes judeus, todos registrados no capítulo 21. Primeiro, a sua entra-da triunfal em Jerusalém, sendo aclamado e adorado como o “Filho deDavi” que veio “em nome do Senhor” (v. 9). Segundo, sua interferênciaante os “prestadores de serviço” do templo (cambistas), derrubandomesas e cadeiras e os expulsando da “casa de oração” (v. 13). Tercei-ro, as curas que Ele efetuara no templo a cegos e coxos, que resulta-ram em líderes religiosos zangados (v. 15). Quarto, os louvores brada-dos pelas crianças no templo como eco da sua entrada em Jerusalém(v. 15), os quais Jesus interpretara como “perfeito louvor” (v. 17). E,por fim, o relato da ida de Jesus ao templo e que, estando lá a ensinar,fora questionado pelos chefes dos sacerdotes e líderes judeus, quan-to à autoridade que Ele tinha para realizar “estas coisas”, isto é, ascuras e milagres que praticava (v. 23).

Ler o texto de Mt 21.23-27 é fundamental para entender a parábo-la dos dois filhos. Há aqui uma situação de conflito. A liderança religio-sa judaica estava desafiando a Jesus. Queriam saber com que autori-dade realizava tais sinais e quem lhe havia dado tal autoridade. Jesusnão rebate diretamente, mas lança um desafio. Caso respondessem,Jesus lhes responderia também. A pergunta de Jesus: quem deu auto-ridade a João para batizar as pessoas – Deus ou seres humanos?

A resposta era óbvia. Tão óbvia que os próprios líderes religiososse sentiram como se estivessem em uma cilada. Se respondessem quea autoridade de João para batizar tinha vindo de Deus, Jesus pergun-taria a eles porque não haviam crido na sua mensagem; caso respon-dessem que a autoridade de João era humana, tinham medo da rea-ção do povo, que considerava João um profeta. “Não sabemos”, foi a

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Mateus 21.28-32

Não raras vezes vemos que a parábola dos dois filhos tem-setransformado numa incitação à obediência cristã. Na verdade, o

texto é mais rico do que isso. Ele fala de arrependimento e fé.

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saída encontrada pelos religiosos. Então Jesus também estava deso-brigado a responder com que autoridade realizava seus atos.

TEXTO – MEDITAÇÃO PRÁTICA

“E que vos parece?” – pergunta Jesus. E passa a contar a parábolados dois filhos, registrada somente por Mateus. Na verdade, esta é aprimeira de três parábolas, onde Jesus ataca o merecimento dos líde-res religiosos judeus quanto a serem membros do reino de Deus. São,então, parábolas do reino, embora não ditas explicitamente no texto.

O desafio proposto por Jesus foi mais do que encurralar os religio-sos. Ele tinha por objetivo ligar a sua autoridade à autoridade de João.As duas eram divinas. E ambas, em seus discursos e práticas, tiveramampla aceitação entre as pessoas comuns e aquelas que eram rejeita-das pela sociedade altamente religiosa dos judeus, como os publicanose as prostitutas.

Na parábola, ambos os filhos recebem o mesmo convite: trabalharna vinha do pai. O primeiro disse, prontamente, que iria, mas não foi. Osegundo respondeu, rudemente, que não queria, mas acabou indo.Por quê? ARA traduz: “depois, arrependido, foi”; NTLH traz: “mas de-pois mudou de idéia e foi”. Arrependido e mudou de idéia aqui émetamelhqei.j, um particípio aoristo passivo do verbo metamelomai. Em-bora a LXX não faça distinção entre os dois verbos, é bem provávelque o NT faça uma distinção entre eles; o exemplo de Judas torna claroisso. Judas reconheceu que Jesus fora falsamente condenado, lasti-mou sua traição (Mt 27.3), mas não achou o caminho para o arrependi-mento verdadeiro. A palavra “arrependimento” pode ter um sentidoamplo, a conversão como um todo (reconhecimento do pecado, contriçãoe fé), mas também pode ter um sentido restrito, que é reconhecimentodo pecado, coração quebrantado e contrição. Na parábola dos doisfilhos, as evidências indicam, pelo verbo usado, que se trata de arre-pendimento no sentido restrito, isto é, reconhecimento do erro e tris-teza no coração.

O que se deduz de tudo isso, e é corroborado por Walther (Lei eEvangelho, Edição Condensada, p. 85), é que o segundo filho sentira oefeito da lei: o pesar em seu coração por não cumprir a vontade do pai.O primeiro filho não havia passado por essa tristeza. Não havia sepreocupado com seus pecados e, assim, também fora impossível tervindo à fé. “Não pode haver fé num coração que, primeiramente, nãoesteve atemorizado”, diz Walther. Este era o caso dos fariseus e líde-res religiosos judeus. Por não terem reconhecido seus pecados nem

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sentido contrição por eles, estavam entre aqueles “noventa e novejustos que não necessitam de arrependimento”, ironicamente assimchamados por Jesus. A sua justiça própria era tão eminente que osimpedia de responder a qualquer convite de arrependimento.

Este é o tertium comparationis da parábola. O pai é Deus, em Je-sus. Os líderes religiosos judeus, a hierarquia espiritual judaica e osintérpretes da lei escrita e da tradição oral foram incluídos no com-portamento do primeiro filho. Os párias religiosos (prostitutas e co-bradores de impostos) são o segundo filho, que creram (epi,steusan)na mensagem de João Batista, isto é, reconheceram sua indignidadee agarraram-se às promessas de Deus. Os judeus, ao contrário, con-fiavam na sua dignidade: cumpridores das leis de Moisés, participan-tes assíduos da sinagoga, ofertantes de dízimos, doadores de esmo-las, praticantes de orações diárias públicas e particulares –obediên-cia era a marca registrada deles! Eles se achavam totalmente justos,sem pecado. Por que, então, arrepender-se? Jesus deixa claro: por-que Deus não nos aceita pela obediência, e sim por arrependimentoe fé! Os supostos justos não passaram pelo reconhecimento de seuspecados (ou de. metemelh,qhte) e muito menos creram (evpisteu,sate)na mensagem de justiça (dikaiosu,nhj) do reino de Deus. Despreza-ram a Cristo, “SENHOR, Justiça Nossa” (Jr 23.6), “a justiça que procedede Deus, baseada na fé” (Fp 3.9).

PONTOS DE CONTATO

Colocar a ênfase do texto sobre a obediência à lei como fazer avontade do pai é tornar a obediência à lei como pré-requisito para aentrada no reino de Deus. Isso é alegorizar a parábola e, mais queisso, é totalmente anticristão. Isso é salvação por obras! Jesus explicaa parábola: a vontade de Deus é, antes de obediência, que todos seacheguem a Ele, de graça, tocados por seu amor, depositando neletoda a sua esperança, crendo em Jesus como seu Salvador, perdoadosdos seus pecados, e recebam o reino dos céus. O texto fala de sentirindignidade e descansar em Deus, pela fé. Era justamente isso que ospublicanos e prostitutas experimentaram – a graça incondicional deDeus! Somente depois de experimentarem tristeza pela vida que leva-vam e de serem aceitos pela fé, por crerem na mensagem, por obra doEspírito (note: o texto é relativo a Pentecostes!), foi que passaram alevar uma vida de filhos de Deus. Obediência é conseqüência de arre-pendimento e fé.

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CONTEXTO LITÚRGICO

O texto é relativo ao 19° Domingo após Pentecostes. O período dePentecostes nos lembra justamente o que o texto ensina: arrependi-mento e fé (perdão) são as chaves para a entrada no reino de Deus.Isso não é obra humana, não é justiça própria, como pensavam oslíderes religiosos judeus. Isso é obra divina, justiça em Cristo. O Salmo25, versos 1 a 10, são uma oração de arrependimento, escrita porDavi. “Meu Deus, eu confio (espero) em ti. (...). Esquece os pecados eos erros da minha mocidade”, não porque eu sou bom e justo, mas“por causa do teu amor e da bondade”. O profeta Ezequiel, na leiturado AT (Ez 18.1-4,25-32), nos lembra do objetivo de Deus em relação aoseu povo: arrependimento (v. 30), conversão sincera (coração novo emente nova, v. 31). Deus não quer a morte do pecador – quer que eleviva, em arrependimento e fé. A epístola (Fp 2.1-5) lembra que a obedi-ência (veja os conselhos de Paulo nos versículos 2 a 5) só provêm dofato de que estamos “unidos com Cristo” (v. 1 – NTLH), e então hácomunhão do Espírito (v. 1 – ARA).

Esse conjunto de perícopes poderia estar na Quaresma, mas é pre-gada no Pentecostes. Bela lembrança! Lembrança de que arrependi-mento e fé são obra do Espírito Santo!

SUGESTÃO HOMILÉTICA

Tema: Que filho nós somos?Uma boa maneira de entendermos uma parábola contada pelo Se-

nhor Jesus é nos colocando na pele dos seus personagens. Convidovocês a fazerem esta viagem e a se imaginarem na pele de um dosdois filhos da história. Isso causa um choque, mas um choque espiritu-al que é bem-vindo.

a) primeiro filho, líderes religiosos judeus- primeiro choque: pensar que os líderes religiosos não sejam jus-

tos por aquilo que fazem!- mas é assim: nem eles nem nós somos justos por nós mesmos;- aliás, somos tentados por nosso velho homem, por nossa justiça

humana, a esperar méritos e recompensas espirituais por serviços pres-tados;

- mais do que obediência, Deus quer o coração voltado a Ele (arre-pendimento e fé);

- justiça espiritual só pode vir dEle!b) segundo filho, cobradores de impostos e prostitutas- outro choque: pensar que, espiritualmente, podemos nos compa-

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rar a cobradores de impostos (traidores do povo, ladrões, gente impu-ra e egoísta);

- o fato é que a atitude dessa gente, no tempo de Jesus, foi elogi-ada, justamente por não terem nada de que se orgulhar e achar-sedigno;

- não confiaram em si, mas creram na mensagem de amor e graçadivinos (arrependimento e fé);

- nós, também, somos indignos, mas somos amados;- por isso, somos incentivados a respondermos à ação de Deus,

por sua palavra e promessa de amor incondicional, em arrependimen-to diário e confiança na sua graça;

- pelo batismo fomos tornados justos, em Cristo;- pela fé nele descansamos em seu amor, mesmo ainda pecadores.

ILUSTRAÇÃO

Um missionário propôs-se a traduzir o Evangelho de João para odialeto local da tribo que estava evangelizando, porém deparou-secom uma enorme dificuldade ao ter de encontrar uma palavra adequa-da para traduzir a palavra bíblica “crer”. Continuou a fazer o seu traba-lho, mas tinha que deixar um espaço em branco sempre que essa pa-lavra particular surgia.

Então, um dia, um estafeta chegou ao acampamento ofegante,depois de ter percorrido uma grande distância com uma mensagemmuito importante. Depois de entregar a mensagem, caiu completamenteexausto numa maca. Ele balbuciou uma frase breve que parecia expri-mir tanto a sua grande fadiga quanto o seu contentamento em terencontrado um lugar delicioso para relaxar.

O missionário, que nunca antes tinha ouvido aquelas palavras, per-guntou a um presente o que é que o estafeta tinha dito.

– Oh, ele está a dizer: “Cheguei ao fim de mim mesmo, por issoestou a descansar aqui!”.

O missionário exclamou:– Louvado seja Deus! É esta exatamente a expressão que preciso

para a palavra “crer”!Povo de Deus, segundo filho!Cheguemos ao fim de nós mesmos, de nossa justiça, e descanse-

mos na graça e no amor de Jesus. Amém.

Júlio JandtBarra do Garças, MT

DÉCIMO NONO DOMINGO APÓS PENTECOSTES

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Pentecostes é o período da igreja que ora celebramos. A cor verdedesse período nos leva à reflexão quanto à vida espiritual que nos éconcedida diariamente por Deus. Somos o povo escolhido, recebemosa sua vinha e somos chamados para servi-lo com todo amor e grati-dão. Temos a oportunidade de, através dessa parábola, refletir sobrenossa vida diária. É momento de questionarmos quanto aos frutosque estão sendo produzidos e também usarmos o exemplo de Israelcomo advertência contra a insensibilidade espiritual, a apatia no servire a falsa segurança da filiação congregacional.

Jesus conta essa parábola com o objetivo de mostrar para os fariseusque sua religião não passava de hipocrisia e corrupção. A ilustração davinha era bem conhecida de seus ouvintes. Nela o Senhor mostra tudoo que havia feito por aquele povo. Tudo era obra dele, desde a suaescolha até a terra em que habitavam.

O objetivo dessa escolha era que fossem frutíferos em sua missãode portadores da mensagem da salvação. Todas as vezes que se des-viaram dessa missão, Deus enviou seus mensageiros para reconduzi-los ao arrependimento e todos foram rejeitados. Agora chegara o mo-mento decisivo, o seu filho estava ali. O povo escolhido estava prestesa chegar ao ápice de sua maldade, estava disposto a matar o Filho deDeus. Assim, vem a terrível declaração: “Portanto, vos digo que o reinode Deus vos será tirado e será entregue a um povo que lhe produzaos respectivos frutos”.

Nós somos o povo que recebeu o reino de Deus. Fomos chamadospara assumir o lugar daqueles que falharam. Assim como Israel, fomosescolhidos unicamente pela graça divina, como aprendemos no Cate-cismo Menor: “Creio que por minha própria razão ou força não possocrer em Jesus Cristo, meu Senhor, nem vir a ele; mas o Espírito Santome chamou pelo evangelho, iluminou com seus dons, santificou e con-servou na verdadeira fé”. Nossa missão também é a mesma, comoencontramos em Isaías 5.7b “este [Deus] desejou que exercessemjuízo...e justiça..”. Somos chamados para “exercer juízo” através deuma vida fiel aos seus mandamentos e “justiça” através de uma vidade fé e obras de amor.

VIGÉSIMO DOMINGOAPÓS PENTECOSTES

Salmo 118.19-24; Isaías 5.1-7;Filipenses 3.12-21; Mateus 21.33-43

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O único meio para que alcancemos essa missão é construirmosnossa vida sobre “a pedra que os construtores rejeitaram ... a princi-pal pedra, angular”. O Espírito Santo nos chamou para a fé em Cristo,através do qual nos tornamos filhos e herdeiros de Deus. Deus nos dátodo o necessário para uma vida de fé e obras: a Palavra e os Sacra-mentos. Por eles somos perdoados, orientados e fortalecidos.

Cada dia que recebemos é uma oportunidade de produzirmos bonsfrutos em honra ao nosso Senhor. Os frutos são o testemunho e a vidaconsagrada em todas as esferas de nossa vida. Na igreja, no lar, notrabalho e na sociedade temos a missão de sermos portadores damensagem da salvação.

Infelizmente, vivemos em tempos onde grande parte do povo deDeus segue os mesmos passos de Israel. A cada dia que passa, osfrutos estão escasseando. O mundo secular domina os lares e não hámais tempo para a palavra de Deus. Os mandamentos não fazem maissentido e são reinterpretados de acordo com os objetivos de cada um.O temor e amor reverencial têm esfriado em muitos corações. Os pre-gadores de hoje precisam ter a mesma coragem e a mesma fidelidadedos profetas para anunciar a vontade de Deus com o objetivo de des-pertar o povo para a realidade.

O amor de Deus por esse povo é o amor da cruz. Esse amor semanifesta na sua longanimidade e na presença constante de seu Espí-rito que jamais nos deixará sem a Palavra e os Sacramentos. Atravésdesses meios, Ele quer despertar o seu povo para uma vida de santi-dade com o objetivo de salvar a muitos pelo testemunho de uma vidapiedosa e em conformidade com a lei do amor.

Essa parábola é um exemplo de como Deus trata o seu povo. Ele épersistente e misericordioso, mas também é justo e não aceitará arebeldia e o desprezo para com o seu reino. Vale lembrar o alerta quePaulo nos faz em sua carta aos Romanos “Bem! Pela sua incredulidade[dos judeus], foram quebrados; tu, porém, mediante a fé, estás firme.Não te ensoberbeça, mas teme. Porque, se Deus não poupou os ra-mos naturais, também não te poupará” (Rm 11.20,21).

SUGESTÃO DE USO HOMILÉTICO

Assunto: SantificaçãoObjetivo: Refletir sobre a bênção e a responsabilidade de nossa

missão no reino de Deus. Através da lei, olhar para nossos frutos epelo evangelho mostrar tudo aquilo que Deus nos oferece para umavida frutífera.

Tema: Produzamos frutos que glorifiquem a Deus

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INTRODUÇÃO

Como está nossa produção? O que temos produzido?

1. Por que produzir frutos?- Porque essa é a vontade de Deus (Mt 21.43)- porque temos o exemplo de Israel que mostra o zelo de Deus- porque fomos escolhidos por Ele- porque Ele nos deu todos os meios para a produção (Mt 21.33)

2. Quais são os frutos?- Juízo e Justiça (Is 5.7)

3. Como produzimos?- Construindo nossa vida sobre Jesus, a pedra principal- Buscando força e orientação nos meios da graça- Abandonando o pecado e vivendo como filho de Deus (Fp 3.13-

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CONCLUSÃO

Glorifiquemos a Deus por tudo o que recebemos de suas mãoscom uma vida frutífera.

Cezar Squiavo SchuquelSão Leopoldo, RS

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LEITURAS DO DIA

Estamos nos aproximando do final do ano litúrgico. É um tempoapropriado para meditarmos na Pátria Celestial, porém ainda estamosem Pentecostes! A ênfase especial deste período é o crescimento es-piritual da Igreja. O Salmo (Sl 23), talvez o mais conhecido de toda aEscritura, é um belo poema no qual Davi expressa sua total dependên-cia de Deus, ao mesmo tempo em que demonstra o total cuidado dopastor, o qual provê o bem-estar de suas ovelhas. Somos, com isto,encorajados a confiar que Deus cuida de todas as nossas necessida-des. É possível estabelecer uma relação entre o presente salmo com aexplicação do primeiro artigo do credo, no catecismo menor: “...supre-me abundante e diariamente de todo o necessário para o corpo e a vida”...

A mesa farta, símbolo da aliança de Deus com o seu povo, é citadapor Isaías (Is 25.6-9). O texto não apenas aponta para a era messiânica,como também retrata o “quadro” da vitória final da Igreja, e sua felici-dade completa no banquete celestial. É em sua morada celeste queDeus irá congregar todos os povos da terra. No evangelho (Mt 22.1-10), Jesus enfatiza que, mesmo que alguns desprezem o convite, estecontinua sendo feito para todos, inclusive para os que o rejeitam. Aquitransparece a graça de Deus, cujo desejo é que todos tomem parte nobanquete celestial. O convite está lançado, e a vontade do dono dafesta é que todos vistam as vestimentas lavadas no sangue do Cor-deiro e ocupem seus lugares no banquete da festa bendita, seja aquineste mundo, crendo, ou na eternidade, livres do pecado, do inferno eda morte.

CONTEXTO

A igreja de Filipos foi fundada pelo apóstolo Paulo, a quem ele en-dereça a carta de filipenses entre os anos 53 e 55 A.D. Os cristãos deFilipos deram muitas alegrias ao apóstolo, porque colocaram a graçade Deus em prática e sempre o ajudaram na divulgação do evangelhopor todo o Império Romano. Na carta aos filipenses, Paulo expressasua gratidão por toda a ajuda recebida desta igreja, especialmente

VIGÉSIMO PRIMEIRO DOMINGOAPÓS PENTECOSTES

Filipenses 4.4-13

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durante o tempo que esteve na prisão (Fp 4.10-19). No texto propos-to, Paulo fala da alegria que o cristão deve sentir em sua vida de co-munhão com Deus e com o próximo. O apóstolo lança uma palavra deencorajamento e de estímulo aos filipenses, motivando-os a viveremalegres e com humildade, a fim de manter a comunhão com Deus etambém no plano horizontal. Embora estivesse preso, Paulo possuía acerteza de que a sua alegria residia em Cristo.

TEXTO

V. 4: Alegria - A alegria é um mote, cuja freqüência percorre toda acarta aos filipenses. Este verbo ocorre quatorze vezes nesta epístola.O apóstolo refere-se a uma alegria que ultrapassa a emoção natural.A fonte desta alegria está além da terra. É alegria no Senhor, e, por-tanto, está baseado fora de nós mesmos. Sua base está na esperança econfiança da justificação mediante Cristo Jesus. Este tipo de alegria está,freqüentemente, relacionada aos eventos escatológicos da volta deCristo, quando a alegria será completa no banquete celestial.

Por tratar-se de uma alegria que se origina fora do ser humano,entendemos o motivo pelo qual ela persiste também nas dificuldadese sofrimentos (Hc 3.17-18).

V. 5: Moderação - Nesta primeira parte do versículo, Paulo trata dosrelacionamentos da esfera horizontal, tais como a maneira como oscristãos devem se portar uns diante dos outros e até mesmo peranteos de fora da igreja. Ser moderado é tomar cuidado com os julgamen-tos e opiniões precipitadas. No texto original, esta palavra denota in-clusive humildade, capaz de submeter-se a injustiças e maus tratos,confiando a Deus o comando da vida humana, especialmente nessesmomentos.

Perto está o Senhor - Trata-se do retorno glorioso de Cristo, dia queserá de alegria completa para o povo de Deus (Fp 1.6; 3.20). Nestaesperança e certeza reside a verdadeira alegria cristã.

V. 6: Não andeis ansiosos - Paulo orienta os cristãos a não se preo-cuparem com as dificuldades terrenas (Mt 6.25-34), mas na hora danecessidade, que clamem ao Senhor (Ef 6.18). O apóstolo lembra tam-bém que a gratidão e o reconhecimento das misericórdias passadassão constantes na vida do cristão. Paulo exorta os filipenses a não setornarem ansiosos, pois as preocupações provenientes das dificulda-des e fardos da vida diária podem impossibilitar a alegria. A fé e aspreocupações são dois sentimentos conflitantes: enquanto o primeiroé a total dependência de Deus, o segundo pertence ao assegurar-se asi mesmo.

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V. 7: Paz de Deus - Trata-se de uma paz que vai além de um senti-mento meramente psicológico. É uma paz completa baseada na tran-qüilidade que vem do próprio Deus, e da certeza de que Ele nos per-doa o pecado. É importante notar que esta expressão não é um mani-festo de desejo, e sim uma declaração. Trata-se de uma promessa, dopoder de Deus que guarda a pessoa na salvação trazida por CristoJesus.

Guardará - Esta palavra é um termo militar que representa os sol-dados em guarda. Refere-se à vigilância, ao cuidado constante. A pro-messa é de que Deus irá cuidar dos nossos corações, isto é, dos nos-sos pensamentos e das nossas vontades.

Vv. 8 e 9: O versículo 08 é introduzido pela palavra “finalmente”,que é uma expressão de exortação. O apóstolo cita uma lista de virtu-des oriundas da filosofia estóica. Todos os conceitos aqui adotadospelo apóstolo pertencem à vida civil, constituem valores sociais queaqui são tomados a serviço do estilo de vida cristã. Estas virtudesdevem ser continuamente observadas. A combinação delas resulta emexcelente testemunho da fé.

V. 10: Renovastes - Esta palavra poderia ser também traduzida por“desabrochar”, cujo sentido descreve o germinar e florescer na prima-vera. Assim como a flor por si só não desabrocha, dependendo doCriador, também o cuidado dos filipenses para com Paulo desabrochoudo evangelho a eles pregado. Paulo também reconhece que o desa-brochar das lembranças, que em outras palavras nada mais é do que agratidão que sentia pela ajuda recebida dos filipenses, brotava da suaunião com Cristo.

Vv. 11-13: Paulo faz uma reflexão sobre a origem da sua auto-suficiência, isto é, da sua satisfação apesar das dificuldades. A razãonão se encontra nele, mas apenas em seu Senhor. Paulo encerra suareflexão no versículo 13 com a expressão “tudo posso por intermédiodaquele que me dá força”. Não é a força e a autodisciplina dele que ofaz superior, mas é outro que o segura. Por isso ele não tem necessi-dade de dissimular sua própria fraqueza e humanidade, não precisatransformar-se em algo especial ou mesmo num super-homem. Justa-mente em sua fraqueza é que se evidencia nele o poder de Cristo (2Co 12.9s.). Não precisa temer, nem negar a sua situação, porque co-nhece um Senhor cuja graça o envolve já aqui neste mundo. E sendoesse Senhor o Crucificado, mesmo aflição e morte não podem opor-seà sua proximidade. Eis a razão da sua alegria!

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COMENTÁRIO HOMILÉTICO

Ao aproximar-se do final do ano eclesiástico, penso que o prega-dor, à luz dos textos do dia, deveria pregar o contraste entre as alegri-as efêmeras da terra e as eternas do céu. É uma bela oportunidadepara falar da eternidade e da verdadeira alegria que aguarda a todosos que se assentarão no grande banquete celestial.

Sugestão de tema: Em Cristo, Deus torna-se a nossa alegria!

Emerson Carlos Ienke Itaguaçu, ES

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“15 Então, retirando-se os fariseus, consultaram entre si como o sur-preenderiam em alguma palavra.

16 E enviaram-lhe discípulos, juntamente com os herodianos, para di-zer-lhe: Mestre, sabemos que és verdadeiro e que ensinas o caminho deDeus, de acordo com a verdade, sem te importares com quem quer queseja, porque não olhas a aparência dos homens.

17 Dize-nos, pois: que te parece? É lícito pagar tributo a César ou não?18 Jesus, porém, conhecendo-lhes a malícia, respondeu: Por que me

experimentais, hipócritas?19 Mostrai-me a moeda do tributo. Trouxeram-lhe um denário.20 E ele lhes perguntou: De quem é esta efígie e inscrição?21 Responderam: De César. Então, lhes disse: Dai, pois, a César o que

é de César e a Deus o que é de Deus.”

Olhando para o contexto, vemos uma região sob o domínio roma-no. Domínio romano que inclui o culto à “deusa” Roma, culto ao impe-rador, impostos, etc. O fator político em si já é uma afronta às tradiçõese costumes do povo judeu, que é monoteísta, dizimista, nacionalista,povo escolhido de Deus. É um fardo grande estar sob o domínio deuma nação estrangeira.

Nesta segunda tentativa de pegar Jesus em contradição, ele é cer-cado por representantes de um dos principais grupos religiosos ju-deus, os fariseus, que seguiam rigorosamente a Lei de Moisés e astradições e os costumes dos antepassados. Juntos estão, também, osrepresentantes de Herodes, do partido de Herodes. “A pergunta, quan-to ao ser lícito ou permissível pagar imposto a César, ou não, foi, por-tanto, bem escolhida para prender Jesus num dilema: ou negar a au-toridade de César (sedição), ou plena autoridade de Deus (traição eblasfêmia).” (Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento,p.337 - César).

O tributo, imposto, traduz a palavra kenson, “taxa per capita”, “queera o imposto de recenseamento exigido de todas as pessoas adultase pago diretamente ao tesouro imperial. Distinguia-se do tele, palavrausada para designar impostos indiretos cobrados mediante direitosaduaneiros” (TASKER, comentário de Mateus, p.170).

VIGÉSIMO SEGUNDO DOMINGOAPÓS PENTECOSTES

Mateus 22.15-21

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Quando da resposta de Jesus, é empregado apodote, restituir, de-volver. Dá idéia de não ser um pagamento indevido, mas de fato umarestituição por direito. É de direito da administração pública ter resti-tuição para manter o império.

Para termos um uso coerente do texto, precisamos superar algunsobstáculos. O primeiro deles é de que no contexto brasileiro vivemos oregime da democracia. Isso traz dificuldades no sentido de não poder-mos simplesmente transportar o texto para hoje, um paralelo direto. Épreciso uma triagem.

Como povo de Deus, pagamos impostos. É lícito que o povo deDeus pague imposto? Vamos nos rebelar contra o governo? Pregar emnossas igrejas contra o imposto cobrado pelo governo? Primeiramen-te, no regime da democracia os impostos são aprovados, votados, porrepresentantes da população no governo. Isso implica responsabilida-de pessoal, que começa antes das eleições com a escolha de possíveiscandidatos. Em suma, não há uma ditadura imperial sobre nós, massomos co-responsáveis pela maneira como são cobrados os tributos eem que são aplicados. Não podemos simplesmente fazer a pergunta:é lícito pagar imposto ao governo ou não? Temos o dever de aprovar,desaprovar, controlar, fiscalizar, etc.

Outro aspecto importante é sobre a minha relação de filho de Deuscom o governo secular, com a administração do Brasil. Vivo para Deus epara a igreja e o resto é resto? “No ponto de vista de Jesus, era falsaa antítese: não há necessariamente conflito algum entre a autoridadepolítica e a divina. O pagamento do imposto é uma obrigação legítimadentro do complexo de relacionamentos humanos” (Dicionário Interna-cional de Teologia do NT). Se a antítese era falsa na época de Jesus,também o é hoje.

Entramos, assim, na complexa discussão a respeito dos “dois rei-nos”, “reino da direita”, de Deus, e “da esquerda”, terrestre, secular.Somos cidadãos destes dois reinos, um perfeito, outro imperfeito, o daesquerda. Ora, por ser o reino da esquerda imperfeito não significaque iremos desprezá-lo e deixar a encargo do próximo. Vivemos natensão que chamamos em nossa teologia de “já e ainda não”. Portan-to, neste sentido, temos participação na perfeição pela fé e somos co-participantes deste mundo imperfeito regido por políticas públicas quenão só “afetam” o povo de Deus como têm o “dedo” dos crentes naformulação das leis com a busca de interesses próprios, do crente indi-vidual, ou de congregações, de igrejas.

É saudável, ao abordar este texto, ter em mente o que Paulo fala acerca da “obediência às autoridades” em Romanos 13. Vou dar “im-posto”, “dízimo”, “oferta” somente para a igreja e não ao país? Aqui

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entramos na questão da sonegação de impostos, que pode ocorrerem maior ou menor grau em nossas congregações, em nível pessoalou de comunidade. Estamos honrando as autoridades ou desonrandona medida em que damos um “jeitinho brasileiro” na administraçãopessoal ou congregação local?

Dai a César o que é de César! Está pesado demais? O que fazer?Burlar a lei ou lutar para mudar a aplicação e o retorno destes recur-sos? “O homem pode viver dentro dos relacionamentos humanos deautoridade e obrigação e ainda ‘dar a Deus aquilo que é devido a Deus’”(DITNT).

SUGESTÃO DE USO HOMILÉTICO

Assunto: Mordomia cristã nos dois reinos; responsabilidade cristãObjetivo: levar o cristão individual e a congregação cristã a refletir

sobre a sua prática, suas ações, no reino da esquerda e da direita,considerando a clara distinção entre ambos e a linha tênue na qualvivemos ao levar essa distinção em conta.

Tema: O secular e o divino1. “Dai a César o que é de César”2. “Dai a Deus o que é de Deus”3. O envolvimento cristão na polisa) princípios bíblicos diluídos na vivência diáriab) princípios: amor - domínio próprio - respeito à autoridade - amor

ao próximo, etc.c) testemunho - ética4. O envolvimento cristão na Igreja - parece redundante mais não

é. Pessoas que se servem da religião, mas não estão dispostas a ser-vir a Deus ou ao próximo. É preciso comprometimento.

5. O secular e o divino – o viver ético nos dois reinos.a) envolvimento nas decisões acerca da aplicação de recursos pro-

venientes de impostos cobrados pelo governob) projetos no terceiro setorc) envolvimento nas decisões acerca da aplicação de recursos pro-

venientes das contribuições voluntárias nas igrejasd) lembrar que é dia da criança – responsabilidade para com elas.

Marco Antônio Meyer JacobsenCanoas, RS

VIGÉSIMO SEGUNDO DOMINGO APÓS PENTECOSTES

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O evangelho deste domingo é o resumo dos Dez Mandamentos,trata da questão do “grande mandamento” (ARA) ou do “mandamentomais importante” (NTLH). Há a sugestão da leitura ir além, incluindo osvv. 41-46, quando Jesus pergunta aos fariseus sobre o paradoxo doMessias ser descendente de Davi e Senhor de Davi. Talvez as duasperícopes possam ser integradas num único sermão, mas fosse me-lhor focalizar apenas uma das presentes leituras. O presente estudofocará a primeira parte. Sugerimos ao leitor o estudo homilético destemesmo texto na Igreja Luterana de 1996, nº. 1, vol. 55, pp. 118-120,do Rev. Luiz Carlos Garlipp, a fim de que este não se torne repetitivo.1

CONTEXTO

O texto está inserido na semana da Páscoa judaica. Jesus haviaentrado em Jerusalém (Mt 21) e no decorrer da Semana Santa foi con-frontado pelas autoridades religiosas. Esta batalha de palavras incluiuma série de três questionamentos. O primeiro foi sobre a questãodos impostos (15-22), em seguida a ressurreição (23-33) e, finalmen-te, o grande mandamento. Perguntas cujo objetivo era derrubar Je-sus, mas que falharam. Quem realmente foi brilhante, tanto nas trêsrespostas como na pergunta que ninguém foi capaz de responder (41-46), foi Jesus.

TEXTO

Vv. 34-36: Este trecho relata a ação dos fariseus. Eles viram que ossaduceus “se deram mal”, reuniram-se em conselho para conseguiruma prova contra Jesus. Para isso, elegeram um especialista em Leipara perguntar a Jesus qual era o mandamento mais importante.

Vv. 37-40: Aqui temos a resposta de Jesus. O primeiro, o maior e omais importante é o amor “integral” (coração, alma e mente) a Deus,

VIGÉSIMO TERCEIRO DOMINGOAPÓS PENTECOSTES

Mateus 22.34-40

1 Quem não tem a revista em mãos, está disponível no site do Seminário Concórdia, noseguinte link: http://www.seminarioconcordia.com.br/Biblioteca_arquivos/Page576.htm

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que ocorre através da fé. Jesus também lembra do segundo maiormandamento, que é parecido com o primeiro: amar o próximo como asi mesmo.

Toda a Lei de Moisés e os ensinamentos dos Profetas se baseiamnestes dois mandamentos. Os fariseus e os escribas que se gabavamdo “viver pela lei”, não compreendiam estes dois mandamentos, poisnão tinham fé em Jesus, e muito menos, amor pelo próximo (Mt 5.17).

Compartilhamos duas citações de teólogos brasileiros, que não fa-lam diretamente do texto, mas ajudam na reflexão deste tema. A pri-meira é do saudoso Dr. Martim Warth:

Quando Deus nos dá a sua Fé, o seu Nome e o seu Reino,como faz do 1º ao 3º mandamento, então estamos apare-lhados para servir ao próximo e proteger sua autoridade,sua vida, seu sexo, seu dinheiro, sua honra, sua casa esua família, como Deus nos ensina no resto do Decálogo,do 4º ao 10º mandamento.2

A segunda é do Dr. Ricardo Rieth:A confiança em Deus não tem seu fundamento em mim, emminhas virtudes, capacidades ou ações. A confiança emDeus baseia-se em seu amor inesgotável por nós. No amorincondicional de Deus somos acolhidos. Do amor de Deusoriginam-se a confiança e o amor que, de nossa parte,sentimos por ele. Da mesma forma, é pelo amor incondici-onal de Deus que somos levados a desviar os olhos denós mesmos para direcioná-los amorosamente às pesso-as ao nosso redor.3

PROPOSTA HOMILÉTICA

Assunto: O amor a Deus e ao próximo.Objetivo: Refletir sobre a nossa vida com Deus e com as pessoas

ao nosso redor. Os dias pós-modernos são mais hedonistas, com espí-rito imediatista (“eu quero e é agora”) e há pouco tempo para tudo(“era pra ontem”), afetando as relações familiares e a vida espiritual.Num ambiente desses, está cada vez mais difícil viver o amor a Deus eao próximo.

2 WARTH, Martim Carlos. A ética de cada dia. Canoas: Ulbra, 2002, p. 102. Interessantever o esquema utilizado para expor a citação acima.3 RIETH, Ricardo Willy. Martim Lutero, discípulo, testemunha, reformador. São Leopoldo:Sinodal, 2007, p. 57.

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TEMA E PARTES:

TEMA

Deus nos amou para amarmos

INTRODUÇÃO

Relatar sobre os dias que estamos vivendo, que são corridos eagitados, tornando-se até impessoais (com amigo converso por umprograma de mensagem instantânea, por exemplo: MSN, Skype; coma família talvez nem isso, é a esposa trabalhando fora para ajudar nosustento da casa, é o televisor ligado, o filho no quarto navegando nainternet ou saindo para ir a outros lugares).

I - Morto não pode amar!A lei nos orienta para amarmos a Deus e ao próximo, mas não o

fazemos e nem o conseguimos. Pelo contrário, amamos a ídolos (di-nheiro, trabalho, etc.) e não queremos ouvir a Deus. Com um coraçãoegoísta buscamos bem-estar, não nos preocupamos com os outros ecomo conseqüência acabamos sacrificando a família com a falta de amor.Estas crenças e atitudes são reflexos de nossos valores, que são amorte espiritual e a impossibilidade de reversão devido ao pecado.

II - Ressuscitado ama!Por isso que Jesus veio ao mundo, para reverter essa triste situa-

ção. Hoje, pelo batismo, não estamos mortos, mas ressuscitados ecom vida nova (Rm 6.4). O amor de Deus nos capacita a amar todosque nos cercam, seja na família, na escola, no trabalho, na sociedade.Para desviarmos os olhos de nós mesmos e direcioná-los ao próximo.E então, quando Deus nos deixa aparelhados, quando recebemos tudode Deus, estamos prontos para realizar a nossa tarefa: de proteger opróximo com amor.

CONCLUSÃO

A capacidade não está em nós, mas no Deus Espírito Santo que nosalimenta com Palavra e Sacramentos e sempre nos oferece o perdão deDeus em Cristo Jesus para vivermos amando a Deus e ao próximo.

Sugestão de hino do dia: HL 381

Marcos Jair FesterSão Leopoldo, RS

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CONTEXTO

A missão redentora do Filho de Deus está chegando ao seu ápice,pois o momento da crucificação está à porta. Sob a sombra da cruz,Jesus profere as palavras de Mt 23.37-39. O lamento sobre Jerusalémencontra-se logo após uma severa repreensão de Jesus aos Escribase Fariseus (Mt 23.1-36). Os ais (Ouvai,), a eles dirigidos, condenam umareligiosidade legalista e de aparências. Religiosidade esta que perse-guiu e matou os profetas e que ainda perseguiria o próprio Cristo eseus discípulos – o legalismo não suporta a pura mensagem do Evan-gelho – O lamento também precede o sermão profético da destruiçãodo Templo. Logo, o texto situa-se em um importante ponto deintermediação.

V. 37: Jerusalém é caracterizada como aquela que apedreja os queforam enviados, a matadora dos profetas e aquela que rejeita a açãoprotetora de Jesus. Em contraposição, Jesus é aquele que sempre ex-pressou o desejo e atitude de reunir os filhos desta sob as suas asas.É importante a constatação do uso de dois aoristos: Jesus diz quemuitas vezes ele quis (hvqe,lhsa) reunir os filhos de Jerusalém. O aoristo,como ação no passado e acabada, indica a descontinuidade deste que-rer. Evidentemente que Jesus ainda trabalha em sua Igreja a favor daconversão e salvação de todos os seres humanos, afinal de contas,Deus “deseja que todos os homens sejam salvos e cheguem ao plenoconhecimento da verdade” (1 Tm 2.4). Mas, no contexto específico denosso texto, o quis é um indicativo de juízo sobre Jerusalém; o que seconfirmaria com sua queda no ano 70 d. C. O segundo aoristo explicitao porquê do juízo: “vós não o quisestes (hvqelh,sate)”. Jesus continua-mente trabalha e anseia para que as pessoas se convertam a Ele enEle creiam como único e suficiente Salvador. Porém, muitos o rejei-tam. E essa rejeição mantém o juízo que pesa sobre o ser humano. AJerusalém que simboliza a religião de aparências, legalista e de justifi-cação pela lei está sendo substituída pela nova Jerusalém, que é areligião do Espírito e da verdade. O apóstolo Paulo compara Jerusalémcom Sara (de onde nasceu o filho da promessa) e Agar (da qual nasceuo filho segundo a carne): “Ora, Agar é o monte Sinai, na Arábia, e

VIGÉSIMO QUARTO DOMINGOAPÓS PENTECOSTES

Mateus 23.37-39

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corresponde à Jerusalém atual, que está em escravidão com seus filhos.Mas a Jerusalém lá de cima é livre, a qual é nossa mãe” (Gl 4.25-26).

A imagem da galinha que ajunta seus pintinhos debaixo das asasdá continuidade às alusões do Antigo Testamento que tratam da pro-teção usufruída pelos tementes de Deus: “Cobrir-te-á com suas penas,e, sob suas asas, estarás seguro” (Sl 91.4). É muito significativo o fatode que a galinha exerce a proteção mediante seu próprio corpo, mes-mo que este venha com isso a sofrer agressões. A proteção de Deustambém implicou no ferimento da sua própria carne. Para nos protegerda condenação do juízo, Jesus entregou sua própria vida para sersacrificada.

V. 38: A ARA traduz: “Eis que a vossa casa ficará deserta”. Uma tradu-ção mais literal do texto grego diria: “Eis que a vossa casa está sendodeixada deserta”. A ênfase no presente explica que o juízo já pesasobre Jerusalém e suas conseqüências já estão em ação. Todo aqueleque rejeita o Filho de Deus não apenas estará algum dia (juízo final)em condenação, mas já está a partir de agora. A condição de salvos oucondenados é uma situação que se inicia na fé ou em sua ausência,apenas se consumando no último dia.

V. 39: Jesus prediz que um dia todos dirão “bendito o que vem emnome do Senhor!”. Não se trata da chamada entrada triunfal em Jerusa-lém, pois Mateus já a relatou no capítulo 21. Estas são palavras queserão ditas no dia da vinda do Filho do Homem, no qual “todos os povosda terra se lamentarão” (Mt 24.30). Bem-aventurados são aqueles quedirão tais palavras estando entre os escolhidos, entre aqueles que acei-taram a proteção divina e buscaram refúgio sob suas asas.

DICAS HOMILÉTICAS

Há uma conhecida estória que conta sobre um marinheiro que, apósum naufrágio, refugiou-se sobre uma rocha em meio às ondas e à tem-pestade. No outro dia, quando enfim o resgataram, perguntaram aele: – Você não tremeu de medo diante de tantos ventos e ondas? –Tremi, sim! – respondeu ele – mas, a rocha não tremeu; e isso foi aminha salvação.

Caso Deus fosse inconstante em seu amor e em sua misericórdia,nós estaríamos perdidos. No entanto, Deus busca a salvação do serhumano desde o momento de sua queda e continuará buscando até aconsumação dos séculos. Sendo assim, o texto de juízo profético so-bre Jerusalém não é o apontamento de uma descontinuidade da mise-ricórdia divina, no sentido de que aquilo que Ele desejava – a salvação– não mais se faz presente. O texto aponta para a seriedade do juízo

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divino e as terríveis conseqüências da negação do Filho de Deus. Deuscontinua a estender amorosamente suas asas com o intuito de nosproteger.

Outra conseqüência que podemos extrair do texto é a de que nemsempre a mensagem evangélica será bem recebida. Na realidade, peladureza do coração humano, a Escritura está repleta de exemplos con-trários. Assim como Jerusalém matou e perseguiu os mensageiros deDeus, também hoje, certamente, muitos estão sendo perseguidos. Oscritérios humanos de sucesso como anunciador da boa notícia não sãoos critérios divinos. Portanto, não é o número de pessoas que está asua frente para ouvi-lo ou o entusiasmo que demonstram com suaspalavras que espelharão a veracidade de sua mensagem. A verdadeda mensagem está no anúncio do Deus que chora e se lamenta portodos aqueles que rejeitam sua proteção em Cristo.

PROPOSTA DE ESBOÇO

Tema: Deus lhe quer debaixo de suas asas.Objetivo: Levar o ouvinte a buscar em Jesus a salvação e o refú-

gio.a) A contínua busca do perdido.b) A rejeição e suas conseqüências.c) A não-rejeição e suas conseqüências.

Lademir Renato PetrichJuiz de Fora, MG

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DESTAQUES E PONTES DO SALMO 46

Muito tempo depois daquele 31 de outubro de 1517, Martinho Luteroesteve encerrado no castelo de Wartburg. Sem dúvida, desde sua ju-ventude já conhecia a segurança, a força e a paz que vinham doscastelos europeus, aquelas construções antigas e enormes, que emsituação de conflito, albergavam e protegiam os amigos do Rei.

Por isso, quando os conflitos e as pressões da Reforma sacodem avida de Martinho Lutero, ele se lembra do Salmo 46 e relaciona estasfamosas e firmes construções com a presença de Deus na nossa vidano que se tornou o hino oficial da Reforma: “Castelo Forte é o nossoDeus”. O Salmo 46 é um dos “cantos de Sião”, onde ressaltam a glóriade Jerusalém como “cidade de Deus” e é também uma confissão de féno poder do Senhor.

Quando este Salmo é visto na perspectiva da palavra “segurança”,outros detalhes aparecem: terra abalada, mares agitados, montes quetremem (2,3). É constatação da realidade. Por outro lado, aparece aação de Deus: Ele está do nosso lado (7), acaba com as guerras, que-bra os arcos, despedaça as lanças e destrói os escudos (paz). Além daação, está sua ordem: “Parem de lutar e fiquem sabendo que eu souDeus”.

Como conclusão, repete com outro enfoque o primeiro versículo: “ODeus de Jacó é o nosso refúgio”.

Quais são os refúgios do nosso século? Onde as pessoas encon-tram segurança na atualidade? Família, estabilidade econômica, etc.?Justo quando escrevo este material escuto notícias sobre o terremotona China (12 de maio de 2008) onde mais de 80 mil pessoas falecerame outras 20 mil estão desaparecidas. Onde agarrar-se quando a terratreme? “Deus é o nosso refúgio e a nossa força, socorro que não faltaem tempos de aflição” (46.1).

DESTAQUES E PONTES DE JEREMIAS 31.31-34

“Embora eu fosse o Deus deles, eles quebraram a minha alian-ça”. A época da Reforma foi precedida por momentos de escuridãoteológica. A Bíblia, ainda manuscrita e de difícil acesso, estava longe

DIA DA REFORMA – 31 DE OUTUBROSalmo 46; Jeremias 31.31-34;

Romanos 3.19-28; João 8.31-36

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das mentes e dos corações humanos e gerava uma grande inseguran-ça. A imagem de Deus era a pior possível, utilizada para gerar medo etornar as pessoas dependentes dos líderes religiosos. A venda de in-dulgências, nesta crise de conhecimentos bíblicos, era apenas umagota de água. A aliança com Deus estava quebrada, embora Deus con-tinuasse sendo o Deus deles. Com o impacto da Reforma e a distribui-ção de Bíblias através da invenção de Guttenberg, o povo começa aconhecer e a reconhecer o Deus Eterno. Como está nosso povo diantede Deus? Vive sua aliança com o Pai Eterno? A Palavra de Deus está àdisposição de todos, nunca houve tantas Bíblias e traduções. Preocu-pa o fato que o povo conheça a ação e a vontade de Deus e se leva asério esta aliança com tantas pressões e tentações como o materialis-mo, consumismo, feitiçaria e hedonismo. Fica nosso desafio como igre-ja: “Procure conhecer o Deus Eterno... eu perdoarei os seus peca-dos e nunca mais lembrarei das suas maldades”.

DESTAQUES E PONTES DE ROMANOS 3.19-28

Necessitamos de outra Reforma? Infelizmente a salvação por obrassegue sendo moda no mercado religioso da atualidade. Quantos exem-plos escutamos no dia-a-dia: fulano está no céu, pois foi bom aqui;preciso cumprir com a penitência até o fim para que Deus atenda osmeus pedidos; procissões, promessas e até sacrifícios para obter osfavores de Deus.

Infelizmente, continua faltando base bíblica como a de Roma-nos, por exemplo: “Deus aceita as pessoas por meio da fé que elastêm em Jesus Cristo e não por fazer o que a lei manda”. Essa objetivi-dade de Romanos necessita chegar ao povo que vive fazendo inter-câmbios com Deus à sua maneira. Como Igreja herdeira da Reforma,necessitamos trabalhar nesta perspectiva de levar o verdadeiro evan-gelho a quem o necessita. Boa oportunidade são os festejos da Refor-ma onde a história de Lutero e seus contemporâneos ajudam a resga-tar o papel de Cristo na salvação das pessoas, que são “aceitas porDeus pela fé e não por fazer o que a lei manda”.

JOÃO 8.31-36

31 Então Jesus disse para os que creram nele: Se vocês continuarem aobedecer aos meus ensinamentos, serão, de fato, meus discípulos.

“Creram Nele” – na verdade, eram judeus que esperavam um liber-tador sócio-político para libertá-los do poder do Império Romano. Mes-mo que seja a mesma palavra utilizada para aceitação, fé, confiança,

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entrega absoluta, Jesus mostra seu pensamento crítico especialmenteem João 2.23 quando os considera “duros de coração”.

“Serão, de fato, meus discípulos” – A diferença entre “os que cre-ram” e os “discípulos” está na obediência aos ensinamentos de Jesus.

32 e conhecerão a verdade, e a verdade os libertará.Conhecer a verdade sobre Deus é conhecer o seu amor por nós

através de Jesus. Essa é a única maneira de estar livre da escravidãodo pecado. Conhecer também implica transferir estes dados da mentepara a vida, do conhecimento histórico da salvação para o arrependi-mento e confiança no Salvador Jesus. Falar em verdade em tempospós-modernos é a grande missão da igreja, pois a notícia do evange-lho é a única que pode salvar vidas e libertar de todas as amarras econsequências do pecado. Jesus mesmo é a verdade que liberta, mos-trando o caminho para a vida eterna com o Criador.

33 Eles responderam: Nós somos descendentes de Abraão e nuncafomos escravos de ninguém. Como é que você diz que ficaremos livres?

O grande orgulho do povo judeu era ser filho de Abraão e sua con-dição de ser livre. A idéia de ser escravo do pecado desde a desobedi-ência de Adão e Eva era inconcebível. Falar de um ser humano caídoem pecado também é um grande desafio na atualidade. Buscamossubterfúgios e outras palavras (problema de fábrica, pecado original),mas este é, na verdade, o grande problema do ser humano e de suaconvivência no planeta. Inclusive a natureza treme e mostra sua im-perfeição.

34 Jesus disse a eles: Eu afirmo a vocês que isto é verdade: Quem pecaé escravo do pecado.

O pecado tem sua maneira de escravizar-nos, controlar, dominar editar nossas ações. Jesus pode libertar-nos desta escravidão que im-pede a pessoa de ser o que Deus tinha em mente ao criá-lo. Se opecado limita, domina e escraviza, Jesus pode destruir esse poder queo pecado tem sobre a sua vida (Santificação – frutos do Espírito San-to).

35 O escravo não fica sempre com a família, mas o filho sempre fazparte da família.

Escravo era objeto de negócio, propriedade de quem tinha maisdinheiro para pagar. Escravo estava na casa enquanto fosse útil. Ofilho, por sua vez, mesmo quando fugisse de casa, tinha seu lugarreservado. No discurso de Jesus fica evidente o seu amor e sua inicia-tiva para que os que ainda não acreditassem nele pudessem voltaraos braços do pai.

36 Se o Filho os libertar, vocês serão, de fato, livres.Implícito no ministério de Cristo, desde sua primeira autodeclaração

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em Nazaré (Lucas 4.16) até sua vitória sobre a morte, está o conceitoda total libertação do homem de tudo o que escraviza, desumaniza elimita a realização do seu potencial como ser humano e cristão. É as-sim como o evangelho, no processo que alcança libertar-se da suabagagem tradicional e cultural, sempre abre portas nas condições queescravizam a humanidade e proporciona ao cristão redimido uma pers-pectiva autenticamente livre.

APLICAÇÃO

Na comemoração da Reforma, sempre é importante ressaltar queos conceitos de liberdade e verdade estavam muito confusos tanto naépoca de Jesus como na época de Martinho Lutero. Os ventos pós-modernos da atualidade questionam a verdade de Jesus defendendoque todos os caminhos levam a Roma, todas as religiões levam a Deus.

No entanto o evangelista João registra a centralidade e exclusivi-dade de Jesus, pois ele “é o caminho, a verdade e a vida; ninguémvem ao Pai” senão através dele.

Essa verdade, defendida na Reforma, passa a ser essencial emtempos de tantas “verdades”.

Christian HoffmannMontevidéu, Uruguai

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A FIDELIDADE DE DEUS

Pelas palavras do profeta Oséias Deus fala a linguagem que lhe émais própria, a linguagem do amor extremo. Uma linguagem viva, con-creta, a que cada ser humano pode se associar. É linguagem que tocanas mais profundas emoções da experiência humana.

Para tanto, Deus não deixa que Oséias fique somente no discurso.Oséias deve mostrar na sua vida o que significa o amor de Deus. Noprimeiro capítulo Deus faz Oséias desfilar diante do público o papel demarido traído: “Vai, toma uma mulher de prostituições”. A fidelidade deOséias a esta mulher é um retrato pálido, mas vivo, do amor de Deuspelo seu povo, sua igreja. Onde qualquer homem se sentiria desonra-do, aquilo que repugna o ser humano, isso é a ação de Deus a favor dopecador.

É menos penoso informar pessoas de que Deus ama o pecador doque tentar descrever ou ainda demonstrar e viver esse amor na suadimensão real. O nosso pecado, conforme Deus demonstra pelo profe-ta Oséias, é tão grande e constante que Deus nos poupa de vê-lo nasua realidade. Lutero vê nisso uma das grandes bênçãos que Deusnos concede e à qual muitos não dão o valor: “Sem dúvida, ... Deusdispôs as coisas de tal maneira que o ser humano não perecesse aoenxergar os seus males mais íntimos. Ele os esconde ...” (OS 2. 17).

Assim, no entender de Lutero, a natureza humana não é diferentediante da lei, seja ela de um criminoso quanto a de um fiel cristão. Oque o leva a afirmar: “Quantas pessoas são enforcadas, estrangula-das, afogadas ou mortas à espada que talvez tenham cometido peca-dos menores do que nós! Sua morte e miséria são colocadas diante denós por Cristo também como espelho no qual podemos ver o que nósmerecemos ... Quantos milhares estão no inferno e na condenaçãoeterna que não tem a milésima parte de nossos pecados!” (OS 2.23)

Essa compreensão da nossa realidade é a que Jesus tenta trans-mitir ao falar da torre de Siloé em Lc 13. Essa compreensão de que opecado permanece em nós vivo e pronto a se soltar mesmo na pessoacristã após o batismo foi a encruzilhada teológica para os cristãos emtodos os tempos, especialmente na Reforma.

VIGÉSIMO QUINTO DOMINGOAPÓS PENTECOSTES

Oséias 11.1-4,8,9

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Razão porque as palavras de Oséias no capítulo 11 se tornam tãopreciosas para o cristão. Ele é amado porque é um pecador perdido.Na Apologia os confessores marcaram essa verdade ao dizer que agraça de Deus somente faz sentido e é de vital importância para ocrente na medida equivalente da sua consciência em relação à suacondição de pecador até a morte.

“Não atinavam que eu os curava” (v. 3). Deus vê o seu povo comoum pai que se vê diante do filho. Os cuidados do pai pelo filho são tãoconstantes e regulares que o filho já não se dá conta de que vive pelae da proteção do pai. Os cuidados do pai são rotina à qual se habi-tuou. Não há mais surpresas. Tudo se tornou normal e esperado aoponto de o filho já imaginar e agir como se tudo fosse seu de direito aoponto de a figura do pai se tornar irrelevante para ele. Isso nos repor-ta à parábola conhecida como “Do Filho Pródigo”: “Dá-me a MINHAparte da herança” (Lc 15) Não há mais gratidão no coração do filhoque Deus “amou quando era menino no Egito” (Os 11.1)

Mas o coração do Pai é um coração comovido de amor e de compai-xão pelo filho (v.8). Ele não se enfurece contra o filho. Por quê? “Por-que eu sou Deus e não homem . . . Não voltarei em ira” (v.9)

Se Deus pensasse como pensa o homem o juízo já teria se abatidosobre a humanidade muitas vezes como foi no dilúvio. Mas Deus pensacomo Deus. O seu juízo o próprio Deus faz abater sobre si próprio. Namorte de Cristo vemos tudo aquilo que o juízo de Deus exige comopagamento e resgate. Infelizmente até isto o ser humano recusa acei-tar e corre atrás de cultos e cerimônias que não o confrontem com oseu pecado e ingratidão e lhe permitam alimentar a ilusão de que elefaz o seu próprio destino.

Busca ignorar as evidências mais claras de que os seus dias estãonas mãos de Deus. A ciência, o acaso, a sorte, a reencarnação sãoalguns dos deuses pelos quais evita o confronto com o seu Criadordiante do qual terá de se explicar. Cega-se a si mesmo e endurece ocoração para não admitir que doença, morte, fome, miséria, conflitos eódios, injustiças e perseguições são os sinais do pecado do qual so-mos acusados por Deus e do qual teremos de prestar contas.

Entretanto, nem por isso Deus deixa o ser humano à deriva. Comoa esposa de Oséias ou o filho em nosso texto, o acolhimento é de talordem que os erros passados e presentes não interferem na decisãode Deus de continuar acolhendo aqueles que a sua vontade perdoou.“Tomei-os nos meus braços, mas não atinaram que era eu quem oscurava” (v.3). Deus não recebe gratidão. Deus é ignorado como aque-le que salva, mas nem por isso despeja o filho dos braços. Reconhecerque não andamos pelos caminhos do bem com as próprias pernas,

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mas reconhecer que andamos pelos caminhos do bem porque somoscarregados neles por Deus, isto é a fé que dá a devida honra a Deus.O eco dessa palavra de Oséias percorre as cartas de Paulo. Quando,por exemplo, diz aos Efésios 2: “Pois somos feitura dele, criados emCristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparoupara que andássemos nelas” (v.10).

Nesse sentido, toda a honra e dignidade são dons de Deus imere-cidos, estando nós mortos em delitos e pecados. Mas Deus se agra-dou de nós e nos adotou em Cristo para que, acolhidos em seus bra-ços, não tenhamos mais medo de admitir e confessar o que se moveem nosso íntimo. O medo de que essa natureza humana se solte, essemedo deve ser direcionado para a cruz que conforta e promete que oPai nos acolhe, carrega e protege do nosso próprio pecado.

Assim “vivemos para Deus” (Rm 14.8) e não mais para nós mes-mos. Vivemos da palavra que perdoa, acolhe e dá segurança. Pois nãopodemos apontar nada digno em nós que Deus possa aceitar comotal. Mas ele nos reveste de uma dignidade e nos educa e tira o véu dacegueira humana para aprendermos amar essa dignidade de Deus queo mundo acaba rejeitando em nós. “Todavia, eu ensinei a andar a Efraim... atraí-os com laços de amor” (Os 11.4).

A vida que vivemos é a vida que Deus preparou e na qual ele nosconduz dia após dia. Nada é do acaso. Lutero redescobriu isso quandoensinou que a vida que agrada a Deus não é a dedicação ao mundoeclesiástico governado pelos homens onde as pessoas recebem ogalardão desta vida. “Olha o teu estado (vocação) à luz dos Dez Man-damentos, se és pai, mãe, filho, filha, patrão, patroa, empregado, em-pregada, etc.” Deus não espera de nós obras grandiosas, renúnciaspessoais, a não ser aquelas simples, corriqueiras e diárias de quemama e respeita aqueles que lhe são próximos, na família e na socieda-de. Ali Deus promete acompanhar, carregar e dignificar os filhos queesperam pelo auxílio e proteção.

Tema: Deus é fiel1. De Deus, por natureza, nada esperamos a não ser rejeição2. De Deus tudo recebemos além do que seria de esperar3. Deus continue a carregar-nos como o Pai que carrega o seu fi-

lho.

Paulo P. WeirichSão Leopoldo, RS

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A VINDA DO FILHO DO HOMEM

Vivemos os tempos do fim. Tal afirmação poderá causar espanto eaté aterrorizar algumas pessoas. As agendas lotadas e os vencimen-tos das prestações do imóvel não têm espaço para tal verdade. Háprogramações previstas para o próximo ano e a última prestação sóvence em 60 meses. Por outro lado, se alguém quiser anotar a data ea hora para vinda de Jesus e para o fim do mundo, não poderá fazê-lo,pois ninguém sabe quando será.

Os cristãos vivem todos os dias este paradoxo. E precisam vivê-lo,afinal, não podem e não precisam esperar de braços cruzados a se-gunda vinda de Jesus. Eles foram criados por Deus e recriados no ba-tismo, e como filhos de Deus, por causa de Jesus, eles agora se ocu-pam com suas famílias, empregos e planejam o futuro, dentro da esfe-ra da criação divina e como parte da criação já regenerada, que, entre-tanto, ainda aguarda a total restauração. Os cristãos também são lem-brados de que tudo nesse mundo passará e “não ficará pedra sobrepedra”. Antes do fim, entretanto, alguns sinais surgirão, como a gran-de tribulação, falsos cristos e falsos profetas, os quais tentarão enga-nar os eleitos. Mesmo diante de tal perspectiva, os cristãos não sevêem abandonados ao desconhecido. Jesus indica que o tempo datribulação será abreviado por causa dos eleitos e que a vinda do Filhodo Homem será como o relâmpago que sai do oriente e se mostra noocidente.

O longo período após Pentecostes, que também sinaliza o períodoque vive a Igreja Cristã atual, agora visualiza as últimas coisas atéque Cristo venha. O Domingo anterior enfatiza os sinais do fim. Jesusfala sobre o princípio das dores. Assim também o penúltimo domingodo calendário dá ênfase ao grande julgamento. Entre estes fatos dofim está a vinda do Filho do Homem, a qual será visível e gloriosa. Estaparece ser a ênfase deste antepenúltimo Domingo Após Pentecostes.

A NARRATIVA

O quinto discurso proferido por Jesus em Mateus, no qual ele fala

ANTEPENÚLTIMO DOMINGODO ANO ECLESIÁSTICO

Mateus 24.15-28

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das coisas do fim, estende-se entre os capítulos 24 e 25. Em particular,no monte das Oliveiras, depois de Jesus ter afirmado que não ficarápedra sobre pedra do templo, os discípulos lhe perguntaram: “Dize-nos quando (1) sucederão estas coisas e que (2) sinais haverá da tuavinda e da consumação dos séculos”. Aparentemente, mas não de for-ma rígida, este discurso de Jesus procura responder estas duas ques-tões: 1) quando e 2) que sinais.

Assim, depois de anunciar que o Evangelho do reino será pregadopor todo o mundo antes do fim, Jesus passa a falar sobre “... o abomi-nável da desolação de que falou o profeta Daniel” (v.15). Essa parece seruma referência à destruição da cidade de Jerusalém e do lugar santo.O relato de Lucas é mais específico: “Quando, porém, virdes Jerusalémsitiada de exércitos, sabei que está próxima a sua devastação” (Lc21.20). O próprio contexto nos dá uma idéia dessa desolação: “...nãoficará aqui pedra sobre pedra que não seja derribada...” (24.2). Já oprofeta Daniel havia anunciado a destruição da cidade e do santuáriocomo segue: “Depois de sessenta e duas semanas, será morto o Un-gido e já não estará; e o povo de um príncipe que há de vir destruirá acidade e o santuário, e o seu fim será num dilúvio, e até o fim haveráguerra; desolações são determinadas” (Dn 9.27). Aparentemente Je-sus atualiza as profecias de Daniel e projeta dois eventos, um do futu-ro próximo (a destruição de Jerusalém) e outro evento final (a perse-guição intensificada no final dos tempos) em uma única figura.

Com relação ao primeiro evento, a advertência de Jesus é que to-dos fujam, não voltem para buscar alguma coisa da casa. Será umtempo difícil para as grávidas e para as que estiverem amamentando.Será difícil se a fuga tiver que ser no sábado ou no inverno. Os porme-nores parecem indicar que esta é uma referência à destruição de Jeru-salém, a qual aconteceu no ano 70 A.D., quando Jerusalém foi destruídapelo exército Romano comandado pelo imperador Tito.

Há também uma referência à grande tribulação que, segundo opróprio Jesus, será de grau e intensidade únicos, como jamais existiu,nem jamais existirá. Entretanto, “por causa dos escolhidos, tais diasserão abreviados” (v. 22). Há alguém no controle destes eventos eque se preocupa com os eleitos. A NTLH traduz “Deus diminuiu essetempo de sofrimento”. A tradução assume que é Deus que está nocontrole destes eventos e age em favor dos eleitos. Há aqui uma indi-cação também de que a perseguição não se limita a Jerusalém ou aosjudeus, mas é direcionada contra toda a igreja, uma vez que Jesus dizque aqueles dias serão abreviados “por causa dos eleitos”.

Também nesse tempo os falsos cristos e falsos profetas surgirãofazendo milagres e maravilhas, com o objetivo de enganar, se possí-

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vel, os próprios eleitos. Os tempos serão difíceis, de grande tribulação,e as pessoas procurarão, ou quererão saídas para seus sofrimentos,o que fará florescer o ensino dos falsos cristos, especialmente se hou-ver grandes sinais e milagres. A pergunta que segue é: “Como distin-guir os falsos cristos e profetas do verdadeiro Cristo?”

Jesus não deixa seus discípulos na ignorância, mas prediz e indicasinais, os quais não foram dados para o cálculo do tempo exato daconsumação dos séculos, mas indicam que esse tempo, de fato, che-gará. Quando surgirem falsos profetas, não acreditem neles, diz Je-sus, pois a vinda do Filho do Homem será como o relâmpago que sai dooriente e se mostra no ocidente. A vinda do Filho do Homem será visí-vel a todos. Não será secreta, mas será acompanhada de sinais evi-dentes para todos, assim como também os abutres avistam o cadáver.

É preciso ter sempre em mente que aquele que vem é o SalvadorJesus. Mais uma vez lembramos o que o profeta Daniel diz: “naqueletempo, será salvo o teu povo, todo aquele que for achado inscrito nolivro” (Dn12.1). A igreja vive, portanto, os últimos tempos e vivencia apresença de falsos cristos e falsos profetas, contudo, não fica sem otestemunho do Evangelho do reino, o qual, segundo o próprio Cristo,será pregado por todo o mundo antes que venha o fim (Mt 24.14). Operdão anunciado no Evangelho e pregado pela Igreja aos pecadoreshoje antecipa o que acontecerá no juízo final, quando o Filho do Ho-mem vem com poder e glória, trazendo a redenção final. Assim é, por-tanto, significativo perceber que este Filho do Homem que virá compoder e glória é aquele que foi morto na cruz e ressuscitado dos mor-tos em favor dos pecadores. Por isso, uma vez que Cristo conquistou avitória decisiva sobre Satanás, pecado e morte no passado, os even-tos escatológicos do futuro são o cumprimento final daquilo que já foicolocado em movimento pelo evento central da história da humanida-de, ou seja, a obra de Cristo na cruz e sua ressurreição (CTCR,September 1989, p. 20).

Assim, Jesus profetiza a destruição de Jerusalém, mas também falade uma tribulação maior e final e do aparecimento de falsos cristos efalsos profetas, antes da vinda gloriosa do Filho do Homem, o qualaparecerá como um relâmpago. Quanto à tribulação, esta será abrevi-ada por causa dos eleitos. Já o Filho do Homem que vem é o mesmoque conquistou perdão dos pecados na cruz pelos pecadores e, por-tanto, os cristãos não precisam se sentir aterrorizados com o fato deviverem o fim dos tempos, nem cruzar os braços à espera da vinda deJesus. Pelo contrário, por causa do perdão de Cristo, eles podem as-sumir suas vocações, certos de que estão servindo a Deus, quandotrabalham em prol do próximo. O perdão anunciado pelo Evangelho a

ANTEPE NÚLTIMO DOMINGO DO ANO ECLESIÁSTICO

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eles será o mesmo declarado pelo Filho do Homem naquele dia. A dife-rença será que Ele estará presente então de forma gloriosa e compoder e fará com que o “ainda não” se torne um “já” eterno.

SUGESTÃO DE TEMA E PARTES

A vinda do Filho do Homem1. Antes da vinda haverá grande tribulação2. Falsos cristos e falsos profetas3. Correr para onde?Entretanto,4. A tribulação será abreviada, por causa dos eleitos5. A vinda será como o relâmpago, visível do oriente ao ocidente.6. Jesus vem buscar os seus.

BIBLIOGRAFIA

The End Times: A study on Eschatology and millenialism, Commissionon Theology and Church Relation of the LCMS, September 1989.

Clécio L. SchadechAngra do Heroísmo, Açores – Portugal

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A PERÍCOPE

1. Intróito: Sl 105.1-71.1. Ênfases1.1.1. Louvor: “Rendei graças” (v. 1), “Invocai o seu nome” (v. 1),

“Cantai-lhe, cantai-lhe salmos” (v. 2), “Gloriai-vos no seu santo nome”(v. 3).

1.1.2. Testemunho: “fazei conhecidos, entre os povos, os seus fei-tos” (v. 1), “narrai todas as sua maravilhas” (v. 2).

1.1.3. Meditação: “Buscai o Senhor e o seu poder” (v. 4), “Lembrai-vos das maravilhas que fez” (v. 5).

1.2. Aplicação: O Sl do Penúltimo Domingo do Ano Litúrgico descrevea rotina dos filhos de Deus enquanto esperam o grande dia do encon-tro com seu Senhor: eles meditam na sua palavra, louvam o seu Deuse testemunham a sua fé, anunciando os grandes feitos de Deus.

2. Antigo Testamento: Jr 25.30-322.1. Ênfases2.1.1. Escatologia: “O Senhor lá do alto rugirá”, “rugirá fortemente

contra a sua malhada”, “fará ouvir a sua voz”, “com brados contratodos os moradores da terra”, “como o eia! dos que pisam as uvas”.(v. 30). “Chegará o estrondo”, “o Senhor tem contenda contra as na-ções”, “entrará em juízo contra toda carne”, “os perversos entregará àespada” (v 31). “Grande tormenta se levanta” (v.32).

2.1.2. Antropologia: “Eis que o mal passa de nação para nação” (v.32), “toda a carne” (v. 31).

2.1.3. Universalidade dos planos de Deus: “contra todos os morado-res da terra” (v. 30), “até à extremidade da terra”, “tem contenda comas nações”, “entrará em juízo contra toda a carne” (v. 31), “confins daterra” (v. 32).

2.2. Aplicação: As perícopes dos últimos domingos do Ano da Igrejaenfatizam os tempos do fim, a volta de Cristo, o juízo final, a condena-ção dos ímpios e a salvação dos cristãos. E isto fica muito claro emJr.25.30-32. O profeta anuncia o juízo que sobrevirá a todas as na-ções.

PENÚLTIMO DOMINGODO ANO ECLESIÁSTICO

Salmo 105.1-7; Jeremias 25.30-32; 1Tessalonicenses 1.3-10; Mateus 25.31-46

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3. Epístola: 1 Ts 1.3-103.1. Ênfases31.1. Vida santificada: “operosidade da vossa fé”, “abnegação do

vosso amor”, “firmeza da vossa esperança” (v. 3). “Vos tornastes imi-tadores nossos e do Senhor (v. 6), “vos tornastes o modelo para to-dos os crentes” (v. 7), “de vós repercutiu a palavra” , “se divulgou avossa fé” (v . 8). “que repercussão teve”, “deixando os ídolos”, “paraservirdes o Deus vivo e verdadeiro” (v. 9).

31.2. Escatologia: “da firmeza da vossa esperança em nosso Se-nhor Jesus Cristo” (v.3). “para aguardardes dos céus o seu Filho”.

3.2. Aplicação: Os cristãos de Tessalônica, sem dúvida nenhuma,eram os que mais ardentemente aguardavam a segunda vinda de Cris-to. Tinham tanta pressa quanto à vinda de Cristo, que foi preciso oapóstolo Paulo escrever e lhes fazer vários esclarecimentos a respeitodeste assunto. Eles chegavam até a ser um pouco ingênuos quanto àvolta de Cristo, mas a aguardavam ardentemente. E esta perspectivaescatológica contribuía para que vivessem tão intensamente a sua fé,levando o apóstolo Paulo a agradecer a Deus por isso e a elogiá-lospelas suas vidas santificadas. Em seu livro “Ética do Novo Testamen-to”, F. Wendland afirma que se o cristão perder a perspectivaescatológica, ele também se perde na ética cristã. Os cristãos deTessalônica são a prova de que o cristão que vive na expectativa davolta eminente de Cristo investe na sua santificação.

4. Evangelho: Mt 25.31-464.1. Ênfases41.1. Escatologia: “Quando vier o Filho do Homem” (v. 31), “separa

uns dos outros” (v.32), “vinde, benditos” (v. 34), “apartai-vos de mim,malditos” (v. 41), “irão este para o castigo eterno”, “porém os justos,para a vida eterna” (v 46).

41.2. Universalidade dos planos de Deus: “todas as nações serãoreunidas em sua presença” (v. 32).

41.3. Critérios para o julgamento: “me destes de comer”, “me destesde beber”, “me hospedastes” (v. 35), “me vestistes”, “me visitastes”,“fostes ver-me” (v. 36). Ou não ...

41.4. Destinos: “as ovelhas à sua direita”, “os cabritos, à sua es-querda” (v. 33). “Então o Rei dirá aos que estiverem à sua direita:Vinde... Entrai na posse do reino” (v.34), “porém os justos, para a vidaeterna” (v. 46). “aos que estiverem à sua esquerda: Apartai-vos demim... para o fogo eterno”, “e irão estes para o castigo eterno” (v.46).

4.2. Aplicação: Este é um dos textos que relata o juízo final comuma riqueza muito grande de detalhes. Aparentemente ele contradiz

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outros textos que afirmam a salvação pela fé, pois ele mostra que aspessoas serão julgadas pelas suas obras. No entanto, se observar-mos o contexto amplo das Escrituras Sagradas, veremos que não hácontradição neste texto. É preciso levar em consideração que o juízofinal será um ato público, no qual serão comprovadas tanto a salvaçãodos crentes quanto a condenação dos ímpios. E por se tratar de umato público, as evidências terão de ser concretas e não abstratas. Te-rão de ser objetivas e não subjetivas. Por isso Jesus estará mostran-do os frutos para comprovar a fé dos salvos e, por outro lado, estarámostrando a ausência dos frutos para comprovar a falta de fé doscondenados.

PROPOSTA HOMILÉTICA

O cristão espera ardentemente pela vinda de Cristo (Como?)1. Meditando diariamente na sua santa palavra (Sl 105.4,5)“Buscai o Senhor e o seu poder” (v. 4), “Lembrai-vos das maravi-

lhas que fez” (v. 5).2. Louvando seu Senhor e Salvador (Sl 105.1-3)“Rendei graças” (v. 1), “Invocai o seu nome” (v. 1), “Cantai-lhe,

cantai-lhe salmos” (v. 2), “Gloriai-vos no seu santo nome” (v. 3).3. Testemunhando sua fé (Sl 105. 1,2; 1Ts 1.3,6,7,8 e 9; Mt 25.35,

36)- “fazei conhecidos, entre os povos, os seus feitos” (v. 1), “narrai

todas as suas maravilhas” (v. 2).- “operosidade da vossa fé”, “abnegação do vosso amor”, “firmeza

da vossa esperança” (v. 3). “Vos tornastes imitadores nossos e doSenhor (v. 6), “vos tornastes o modelo para todos os crentes” (v. 7),“de vós repercutiu a palavra” , “se divulgou a vossa fé” (v . 8). “querepercussão teve”, “deixando os ídolos”, “para servirdes o Deus vivoe verdadeiro” (v. 9).

- “me destes de comer”, “me destes de beber”, “me hospedastes”(v. 35), “me vestistes”, “me visitastes”, “fostes ver-me” (v. 36).

Geraldo Walmir SchülerCacoal, RO

PENÚLTIMO DOMINGO DO ANO ECLESIÁSTICO

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CONTEXTO

a) Histórico: Considerem-se dois aspectos: a época (situação) e otempo. O nosso está 1900 anos além do dos apóstolos, que, conside-rando ambos, diziam com razão: “O fim está próximo”(1 Pe 4.17; 1 Co10,11). Os sinais (situação) que identificaram para afirmar isso, estãohoje tanto ou mais presentes.

b) Litúrgico: O Ano da Igreja tem dois tempos: o de Cristo e o daIgreja. O Último Domingo liga ambos. Por isso é denominado: Domingodo Cumprimento (“Fulfillment”). A segunda opção de cada leitura apontapara o coroamento da primeira parte do ano. Estas destacam Cristo, oRei. A primeira opção, com ênfase escatológica, como nos quatro do-mingos anteriores, aponta o coroamento do “tempo” da Igreja com oJuízo Final e a eternidade.

Ao escolher o texto de Mateus 25.31-46 não privilegiamos só asegunda opção, pois este texto reúne as duas ênfases: a do Rei (vv.31,34,40,41) e a do Juízo e da eternidade (vv.32,34,41,46). Na verda-de, chamamos a atenção para o critério, apontado por Jesus, comodecisivo para o Juízo: a atitude com o próximo. Pois nela se evidencia,ou não, a fé e o amor. Amor, pois são atos feitos às pessoas por reco-nhecer nelas “um destes meus (de Jesus) pequeninos irmãos”. Fé,porque os atos são feitos não apenas aos homens, mas por confiançae obediência a Jesus (“a mim o fizestes”).

c) Bíblico: O texto é a conclusão do último grande discurso-sermãode Jesus, relatado por Mateus (cap. 24,25). Seu contexto carrega ad-moestações e exortações à sabedoria (24.4,5,11,23, 24; 25.1-10), àconfiança (24.6-8,13,22,26,31; 25.14), fidelidade e perseverança(24.9,11,13,22; 25.16,17, 20-23), à prática do amor e da misericórdia(24.10,12,45-51) e à vigilância (24.33,39,42-44; 25.13).

Jesus diz aos discípulos que sua esperança não está em conheceros sinais do fim e encontrar “uma via de escape” ou “rota de fuga”(24.15-18) da realidade, mas em “estar aí” para cumprir deveres den-tro de sua realidade. Assim, através da ação da palavra de Deus nelese através deles, Deus estará, permanentemente na história, sinali-zando a existência do seu reino (24.14). A ação evangélica da igreja e

ÚLTIMO DOMINGO DO ANOECLESIÁSTICO

Mateus 25.31-46

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sua reação à agonia e ao caos do mundo são os sinais permanentesde Deus. Jesus diz assim a seus discípulos, em todos os tempos, quetipo de pessoas eles devem ser, quais as suas atitudes e comporta-mento (2 Pe 3.11-15): “... santo procedimento e piedade ... empenhopela paz, sem mácula e irrepreensíveis” (ARA).

Tudo isso forma o contexto, o pano de fundo, do texto e do tema epartes propostos neste estudo. Destaque-se a terceira parábola(25.14-30), que mostra como a “recompensa” (25.21,23) não é paga-mento de salário, mas dom da graça, presente gratuito, acima de qual-quer mérito pessoal. A vida eterna e todos os dons de Cristo, cada umdeles é sempre e totalmente algo imerecido. Só acontecem na vida docristão por que é nela que é revelado o seu maravilhoso e miraculoso(evangelho). Isto também mostra (lei) que o “não ter” (25.24-26, 28-30) é a suprema culpa. Ter um dom, talento, e não usá-lo, é lavrar aprópria sentença de morte!

O TEXTO

“Reunir” (25.32; 24.31), “separar” (25.32; 24.40,41) é um jogo depalavras. Mostram que compartilhamos a “humanidade” com todos;mas somos o povo separado para Deus (1 Pe 2.9,10). A forma radicaldesta realidade é mostrada no Juízo com o “venham” (25.34) e o “afas-tem-se” (25.41).

Observe-se que Jesus não cita “obras ostensivas”: sacrifício extre-mos, construções ou doações milionárias. Também não “pecados clássi-cos”: matar, roubar, imoralidade, mentira. O que conta é “o não ter feito”atos de amor a uma destas pessoas mais humildes. É no dia-a-dia, ematos de amor comuns e cotidianos que a fé é exercitada. Ou então émanifesta a falta dela pela omissão da ajuda e amparo ao carente.

Pela fé em Jesus, que o Espírito Santo planta em nosso coração, oSenhor cria um vínculo pessoal entre ele e o cristão, que nele confiacomo o seu Salvador. É o “foi a mim que fizeram”. O resultado da fé éum outro vínculo pessoal. Mas esse agora é um vínculo de amor entreo cristão e o seu próximo. É o “quando vocês fizeram isso ao maishumilde dos meus irmãos”.

Que a recompensa é dada pela graça fica evidente na afirmação deque o reino (já) está preparado para eles desde a fundação do mun-do. Pelo fato de que eles são abençoados por Deus (Mt 5.3-11) parapoderem servir a Jesus. E porque os próprios discípulos não contavamque seus serviços seriam lembrados. Não por último porque o infernofoi preparado para o diabo e seus anjos; os que para lá irão, só podemculpar-se a si mesmos por terem seguido o príncipe das trevas.

ÚLTIMO DOMINGO DO ANO ECLESIÁSTICO

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PROPOSTA HOMILÉTICA

Quando o Filho do Homem voltarO mundo incrédulo se escandaliza com a verdade de que todo ho-

mem é pecador e, mais, de que ele está sujeito ao Juízo. E ainda queaceite que cada um será julgado por suas obras e omissões, consideraloucura que só tenham valor as obras feitas na e pela fé em Jesus. Maseste fato também causa alegre surpresa e feliz espanto às ovelhas deJesus.

1. Ele será o Juiz, que julgará as nações (25.32) a) As reunirá na sua presença gloriosa (Fp 2.10,11; Mt 24.30) b) Separará, como o Pastor, as pessoas umas das outras (Jo 10.2;

Mt 24.31)2. Ele será o critério do Juízo (Mt 25.40c,45c) a) Quem espalha, é lançado fora (Mt 3.12; 12.30; 25.24,26,30,41) b) Quem com ele ajunta, é recolhido (Mt 3.12; 25.21b,23b,34)3. Ele será “a recompensa” dos que o serviram (25.34b) a) Ele reconhecerá o serviço dos discípulos (Mt 10.40-42;

25.35,36) b) Ele recompensará, por graça, o serviço deles (25.21,23; 25.34;

5.3-12)

Breno C. Thomé Estância Velha, RS

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BREVE HISTÓRICO

Cada ano, o presidente dos Estados Unidos da América convocaos cidadãos dos 50 Estados da União para agradecerem a Deus pelasbênçãos recebidas no último ano. Cristãos respondem à proclamaçãodo Presidente alegremente e tributam louvor ao Deus Triúno pelasbênçãos recebidas de muitas formas.

Nas congregações luteranas tem sido costume observar a Festa daColheita para agradecer ao Deus todo-poderoso pelos frutos da terrapara a subsistência da vida humana. Fazem isto conforme os moldesda Festa da Colheita, ordenada por Deus ao povo de Israel (cf.: Êxodo34.22; Levíticos 23.16 e Atos 2.1. A Festa da Colheita, celebrada porocasião de Pentecostes, 50 dias após a Páscoa, é a segunda maiorfesta das três grandes festas anuais do povo de Israel, e a primeiradas festas agrárias: Festa das Semanas ou Dia das Primícias. Nestedia, celebravam também a entrega da lei a Moisés). As diferentes Or-dens Litúrgicas mostram como as congregações européias celebravamsua Festa da Colheita, no dia de São Miguel, dia 29 de setembro. (cf.:as Agendas Litúrgicas de Calenberg, 1542, Osnabrueck, 1543,Hilderheim, 1544, Prússia, 1558). Os imigrantes europeus trouxeramesse costume para a América. Em 13/12/1621, o Governador Brandfordconclamou o povo para agradecer, após a 1ª colheita. Em 26/11/1789,o Presidente George Washington ordenou pela primeira vez um cultopúblico de agradecimento. Já em 1858, vinte e cinco governadores or-denaram o dia anual de Ação de Graças. Em 1863, o presidente Lincolnordenou o dia Nacional de Ação de Graças. Desde lá os Presidentesdos Estados Unidos conclamam o povo para a Ação de Graças na quin-ta-feira, da última semana cheia de novembro.

Em 1909, Joaquim Nabuco, embaixador do Brasil em Washington,propôs que se instituísse um Dia Internacional de Ação de Graças, des-tinado ao solene reconhecimento da providência divina entre os ho-mens e nações, mesmo que vivam nas mais difíceis circunstâncias. Hoje,mais ou menos 150 nações, de diferentes raças, credos e línguas, ce-lebram a benevolência do Criador nesta data.

AÇÃO DE GRAÇASSalmo 65; Deuteronômio 8.1-10;1 Timóteo 2.1-4; Lucas 17.11-19

Dia de Ação de Graças é um dia especial

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No Brasil, o dia foi instituído pelo Presidente Gaspar Dutra, por leido Congresso Nacional de número 781, de 17/08/1949: Que se cele-bre em todo o território nacional um dia de Ação de Graças em fins domês de novembro. O governo Castelo Branco fixou a data para a quar-ta quinta-feira de novembro. Durante o regime militar até o governoGeisel, a Igreja Católica eliminou a data do seu calendário litúrgico. Emconseqüência disso, o grupo Bradesco, presidido pelo empresário decredo evangélico, o sr. Amadeu Aguiar, assumiu a data, dando-lhe sen-tido ecumênico e repercussão Nacional, na “Cidade de Deus”, emOsasco. No Brasil, a data foi também fixada para a quinta-feira na últi-ma semana cheia de novembro.

Agradecer a Deus está de acordo com a vontade de Deus ex-pressa no Antigo e no Novo Testamentos

É próprio dos cristãos agradecerem e louvarem a Deus pelas mui-tas bênçãos materiais e espirituais. Abrindo a Bíblia, vemos que cadaTestamento tem seu vocabulário próprio. No hebraico, as palavrasadah e yada são as palavras mais usadas e se encontram mais de 60vezes nos diversos livros do Antigo Testamento. Há diversas exorta-ções ao louvor em 26 Salmos. A palavra para “dar graças” é todah.Um dos sacrifícios ordenados por Deus foi o sacrifício de agradeci-mento (Levítico 2).

O Novo Testamento usa um número de diferentes palavras paraexpressar o “dar graças”, como, por exemplo: eucharisteo, dar graças,ekshomolgeomai, dar glórias. Além disto, temos muitos exemplos deJesus e Paulo dando graças a Deus em diferentes ocasiões. Há maisde 100 passagens que expressam a apreciação das bênçãos de Deus.

OS TEXTOS DO DIA

Salmo 65: Um Salmo de louvor de Davi. Vv. 1-4: Deus se alegra quando sua grei (igreja), que ele chama,

ilumina e congrega se reúne e, firmada na graça de Cristo, se entregaconfiante às mãos de Deus com louvor e agradecimentos.

Vv. 5-8: Deus lhe respondeu com feitos tremendos (tanto ao casti-gar os inimigos, como ao salvar os seus pelo sacrifício de Cristo). E osque o conhecem exultam de júbilo.

Vv. 9-13: Ele mantém no universo verão e inverno, concede por suabênção o alimento. Paulo Gerhard o resume no seu hino: Exalto-te emmeu coração. (HL 224)

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Deuteronômio 8.1-10: O concerto de Deus é um dom, ao qual que-remos responder:

V. 1: Lembrando cuidadosamente suas leis. Deus formou o povo deIsrael, o abençoou e o libertou. Maior ainda é a libertação por Cristo.

V. 2: Importa recordar sempre estas bênçãos. Também nos mo-mentos em que nos humilha por nos termos desviado, para nos reerguerpor sua graça.

V. 7: Deus prometeu ao povo uma terra abençoada; a nós o seuamparo na peregrinação e a vida eterna.

1 Timóteo 2.1-8: Uma exortação à oração Falar com Deus é um privilégio dos filhos de Deus. Quando nos

dirigimos a Deus em oração, iniciamos com o louvor ao seu poder, suabondade e sua graça. A oração dos filhos (justos) pode mais do quequalquer outro poder, mas a oração não é um meio da graça. Deus nosordenou orar e prometeu atender. Humildemente nós nos colocamosem suas mãos e dizemos: Seja feita a tua vontade. As formas sãomuitas: súplicas, intercessões, ações de graça. Oramos confiantes emnome de nosso Mediador, Jesus Cristo.

Lucas 17.11-19: Gratidão e ingratidão.Estamos bem conscientes do que Deus nos fez em Jesus Cristo, ao

nos escolher desde a eternidade, ao nos chamar e iluminar no tempo,de nos conservar na fé? Somos gratos por isso, adorando e confes-sando quantas bênçãos materiais e espirituais estamos desfrutandodiariamente? De todo o coração renderei graças ao Senhor, na companhiados justos e na assembléia. Grandes são as obras do Senhor, considera-das por todos os que nele se comprazem (Sl 111.1,2).

SERMÃO

Para introdução pode ser usada a história do dia. Usando a epísto-la podemos destacar a oração, tanto o agradecimento como a inter-cessão. Se usarmos o evangelho, podemos explorar bem a história eaplicá-la, na medida em que a expomos à nossa realidade.

Horst R. Kuchenbecker São Leopoldo, RS

AÇÃO DE GRAÇAS

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PRIMEIRO DOMINGO DE ADVENTOSalmo 98; Isaías 63.16b-17; 1 Coríntios 1.3-9;

Marcos 13.33-37

SALMO 98

Um salmo de louvor a Deus por Ele ter memória. Toda expressãode júbilo está centrada no fato de que Deus “fez notória sua salvação”e “lembrou de sua misericórdia e de sua fidelidade”.

ISAÍAS 63.16b-17

Também o texto do AT faz referência à lembrança. Desde a antigui-dade o Senhor é o nosso Redentor. E o profeta está pedindo por umavolta ao passado. No sentido de pedir auxílio a Deus pela certeza deque os tempos em que tudo andava bem podem voltar a acontecer nopresente.

1 CORÍNTIOS 1.3-9

A certeza da “confirmação até o fim” está baseada no fato históricoda salvação por Cristo. “Só quem tem passado tem futuro”, diz umafrase. Em termos cristãos, isto é essencial. Quem recebeu, pelo Espíri-to Santo, a fé no ato histórico da redenção de Cristo, obtida na mortee ressurreição, sabe que pode aguardar com confiança e certeza arevelação de nosso Senhor Jesus Cristo. Fatos do passado que conti-nuam com efeito no presente.

Ou seja, os textos do domingo buscam não apenas o fato históricoem si, mas os atos de Deus que trazem vida, perdão, reconstrução nopresente. E são estes fatos que apontam para o futuro promissor, coma vinda de Cristo, a vida eterna, que o advento celebra, relembra epromete.

MARCOS 13.33-37Na parábola proposta por Jesus, o passado tem um papel impor-

tante. Por que vigiar? Porque sabemos que, em algum momento, al-guém avisou que voltaria e que gostaria de encontrar-nos alertas.Sem o conhecimento desta notícia, o vigiar torna-se supérfluo, e atéquestionado: “esperar pelo quê?”

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Vivemos uma geração que, tendo já desacreditado do futuro,em função de tantas ameaças à humanidade, também está se desli-gando do passado. Isto porque a conexão está somente com o pre-sente, e a internet é um paradigma disso. Navegar pela web é ‘esticaro presente’, fazer o agora durar o tempo que se desejar, clicando noque se desejar, para satisfazer necessidades das mais diversas. To-das imediatas.

O advento nos relembra dos atos e das promessas de Deus, quesão fundamentais para que entendamos a necessidade de vigiar, es-perar atentamente, ter pela fé convicção do novo mundo, o novo céu enova terra, que Cristo irá nos dar. O que nos faz olhar para além de ummero presente à deriva e sem sentido.

PROPOSTA HOMILÉTICA

Levar os ouvintes a, firmados nos feitos memoráveis de Deus, olha-rem com expectativa e alegria para o futuro, especialmente o futuroceleste.

MoléstiaO presente nos prende de tal forma que nos desligamos do passa-

do e desesperamos do futuro.Meio

O principal ato da História humana, a obra de Cristo, pela fé nosfortalece a dirigirmos nosso carro utilizando o espelho retrovisor parajamais nos esquecermos de onde viemos, mas com os olhos semprefitos na estrada à nossa frente, dirigindo atentamente, esperando achegada da cidade eterna.Tema: Vivendo de passado com a esperança no futuro.

ESBOÇO

INTRODUÇÃO

“Quem vive de passado é museu”. Esta frase precisa ser corrigida.Pois todos vivemos de passado. “Quem não tem passado não temfuturo”. O que não podemos é viver no passado.

Ilustração: Espelho retrovisor e sua importância. Sem ele, tería-mos que dirigir olhando pra trás e isto representa um grande risco Elenos auxilia a lembrarmos de onde viemos. Mas não podemos dirigirsomente olhando para ele, o que é igualmente perigoso.

PRIMEIRO DOMINGO DE ADVENTO

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I – O PERIGO DO PRESENTE

Nossa geração vive muito no presente.Ilustração: A explosão da internet e da busca por prazeres imedi-

atos (álcool, futebol, jogos, pornografia...) é um sinal claro disto.Sem memória, sem lembrar das promessas do passado, perde a

importância do esperar pelo futuro.

II – TER MEMÓRIA NOS DÁ FUTURO

Deus, com seus atos, não nos deixa esquecer o que realmenteimporta. Tendo, pela fé, na memória o que nos dá a identidade defilhos, nos reforça a certeza do Advento. O grande ato que jamais podesair da memória, do coração, Cristo consumou na cruz e no túmulovazio.

Na Ceia, um memorial das obras de Deus (Lutero utilizando o Sal-mo 111.4), somos fortalecidos no perdão para o passado e na espe-rança para o futuro.

III - CONCLUSÃO

Quem vive no passado, acaba ficando sem presente. Mas nós, fi-lhos de Deus, vivemos de passado, da obra salvadora de Cristo, dafiliação a Deus em fé, vivemos na expectativa do futuro brilhante. Po-demos, portanto, continuar no presente dirigindo com segurança, emSuas mãos. Pois Cristo nos colocou na estrada certa. Que leva aoscéus.

Lucas André AlbrechtCanoas, RS

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SEGUNDO DOMINGO DE ADVENTOSalmo 19

ASSUNTOS DAS LEITURAS BÍBLICAS DO DIA

Sl 19: Toda a criação anuncia a grandeza de seu Criador. A Palavradeste Deus Criador nos dá forças e nova vida. Is 40.1-11: O SenhorDeus pede que o seu povo seja consolado. O povo precisa estar pre-parado para a vinda do Senhor. A palavra de Deus dura para sempre.O Senhor cuidará do seu povo como um pastor cuida de suas ovelhas.2Pe 3.8-14: O Senhor faz o que promete. Deus não quer que sejamosdestruídos, mas quer que nos arrependamos de nossos pecados. ODia do Senhor virá, mas não sabemos quando isto acontecerá. Mc 1.1-8: Conforme a promessa do Antigo Testamento, João Batista apareceno deserto da Judéia pregando, batizando e anunciando a vinda doMessias.

RELAÇÃO ENTRE AS LEITURAS E O PERÍODO LITÚRGICO

O consolo da vinda de Cristo, anunciado desde o Antigo Testamen-to, nos leva a louvar o nosso Criador e a confiar nas suas promessas.O período de Advento, que destaca a preparação cristã e a esperançaque aponta para Cristo, vem reforçar a certeza do cumprimento daspromessas de Deus, que lemos na sua Palavra consoladora.

TÍTULOS DO SALMO 19

Almeida Revista e Atualizada: A excelência da criação e da pala-vra de Deus – “Ao mestre de canto. Salmo de Davi”. Almeida Revista eCorrigida: A excelência da criação e suas leis, assim como da palavrade Deus – “Salmo de Davi para o cantor-mor”. Nova Tradução na Lin-guagem de Hoje: A glória de Deus revelada no céu e na lei – “Salmode Davi. Ao regente do coro”. Concordia Self-Study Bible – NVI: “Forthe director of music. A psalm of David.”

DOUTRINAS RELACIONADAS COM O SALMO 19

De acordo com a primeira parte do Salmo 19 (v.1-6), as obras deDeus testemunham a respeito do próprio Criador. A “Dogmática Cristã”(p.152-155), e o “Sumário da Doutrina Cristã” (p.26-28) tratam deste

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assunto, falando do conhecimento natural e revelado de Deus. Estaparte do Salmo também está relacionada com os seguintes temas abor-dados pelo “Catecismo Menor” (p.36-38, 71-81): “Primeiro Mandamento”e “O Primeiro Artigo – Da Criação”.

De acordo com a segunda parte do Salmo 19 (v.7-13), “a lei doSenhor” nos fortalece. Para compreender esta parte, é necessário sa-ber em que sentido está sendo usado o termo “lei”, ou seja, no senti-do geral: palavra de Deus, onde é revelado o Evangelho. A “DogmáticaCristã” (p.443-444) e o “Sumário da Doutrina Cristã” (p.144-146) tam-bém tratam deste assunto, na explicação sobre lei e evangelho. Ob-servação: as páginas da “Dogmática Cristã” e do “Sumário da Doutri-na Cristã”, citadas na primeira parte do Salmo 19, também são funda-mentais para se compreender esta segunda parte, relacionada com aquestão da revelação de Deus através da Bíblia.

E, ainda, a conclusão do Salmo 19 (v.14), uma petição para quenossos pensamentos e palavras sejam aceitáveis a Deus, é citada no“Catecismo Menor” (p.117), quando se trata de “O Pai Nosso – Daoração em geral”, na questão “Que é a oração?”.

SUGESTÕES DE DIVISÃO DO SALMO 19

O Salmo 19 pode ser dividido em três partes: a) v.1-6: a criaçãocanta ao Criador; b) v.7-13: características e resultados da Palavra deDeus; c) v.14: oração final. Outra divisão possível: a) v.1-6: a criaçãocanta ao Criador; b) v.7-10: características da Palavra de Deus; c)v.11-14: atitude humana frente à Palavra de Deus.

COMENTÁRIOS E REFLEXÕES SOBRE O SALMO 19

Vv. 1-6: Como conhecer a Deus: Sabemos que existe um Ser Su-premo através da natureza, pois esta anuncia a glória de Deus. Tam-bém sabemos que precisamos prestar contas a um Ser Superior atra-vés da nossa consciência. Mas conhecemos o Salvador Jesus apenasatravés do testemunho do Evangelho que temos na Bíblia.

O texto (vv.1-6) trata da revelação de Deus através da natureza. Anatureza testemunha a respeito do seu próprio Criador numa lingua-gem que todos podem compreender. Até mesmo o silêncio do céu pro-clama a glória de Deus. Comparação: Assim como a luz do Sol é neces-sária para o mundo, a luz de Deus é necessária para a nossa vidaverdadeira. Temos esta luz na Palavra de Deus: Jesus.

Vv. 7-9: Lei de Deus e Justo Juiz: A perfeita lei de Deus (a Palavrade Deus) nos dá forças, os confiáveis conselhos de Deus dão sabedo-

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ria às pessoas, seus ensinos certos alegram o coração, seusensinamentos claros iluminam nossas mentes. É bom temer ao Se-nhor, e sua misericórdia dura para sempre. O julgamento de Deus éjusto e verdadeiro.

O texto (vv.7-9) também trata da revelação de Deus através dasua Palavra. Enquanto a natureza anuncia o seu Criador, a Palavraanuncia quem é, de fato, este Criador. No texto (vv.7-9), ainda temosuma descrição de algumas características da Palavra de Deus. NesteSalmo, entendemos que o termo “lei do Senhor” se refere a toda aPalavra de Deus (Lei e Evangelho). Só assim explicamos que a “lei doSenhor” pode nos restaurar e fortalecer. Pois a “Lei” de Deus no sen-tido estrito, apenas nos acusa e destrói. Mas o Evangelho, sim, renovae transforma nossa vida completamente.

Vv. 10-11: Ensino e recompensa: Os ensinos de Deus são precio-sos, puros e doces. Os ensinamentos de Deus nos concedem sabedo-ria e o servo obediente é recompensado.

As características apresentadas a respeito da Palavra de Deus (vv.7-9) nos mostram que esta é muito mais valiosa do que qualquer rique-za, mesmo o ouro, e muito mais agradável e afável do que o mel. Emúltima análise, o real motivo de tanto valor dado à Palavra de Deus é ofato de o Evangelho ser anunciado, nos revelando a obra de Cristo pornós. Nem todos consideram a Palavra de Deus desta forma. Mas arecompensa para aquele que ouve este Evangelho é muito mais valio-sa que o ouro e muito melhor que o mel. Em Cristo, guardamos e obe-decemos aos ensinamentos divinos e, por isso, recebemos a salvação.Quem conhece o Criador, procura seguir os ensinamentos da sua Pala-vra e é abençoado por este Deus.

Vv. 12-13: Cometemos pecados consciente e inconscientemente:Muitos dos nossos erros não conhecemos, vemos ou entendemos. OSenhor nos purifica até mesmo dos erros que cometemos sem perce-ber. Também cometemos pecados consciente e intencionalmente. QueDeus nos livre do domínio do pecado e sejamos pessoas direitas elivres.

A Palavra de Deus também nos revela a respeito de nós mesmos. ALei de Deus nos convence do pecado, mas Deus nos livra de todosatravés de Cristo, mesmo daqueles que cometemos sem perceber. APalavra de Deus nos concede a força necessária (v.7) para que o peca-do não nos domine.

Vv. 14: Pecamos por pensamentos, palavras, ações e omissões:Pedimos a Deus que nossos pensamentos e palavras agradem a ele.Este Deus é a nossa rocha e o nosso defensor.

A conseqüência de conhecer o Criador e sua Palavra é louvar a

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este Deus com o coração, com a mente e com as ações. O salmistaDavi ora a Deus (v.14) fazendo um pedido neste sentido.

PASSAGENS PARALELAS AO SALMO 19

V. 1: Sl 89.5; Is 40.22; Sl 50.6; Sl 148.3; Rm 1.19; Sl 4.2; Sl 8.1; Sl97.6; Is 6.3; Gn 1.8; Sl 8.6; Sl 103.22. v.2: Sl 74.16. v.3: Sl 148.3. v.4:Rm 10.18; Jó 36.29; Sl 104.2; Jz 5.31. v.5: Jl 2.16; Jó 36.29; 1Sm 17.4.v.6: Dt 30.4; Sl 113.3; Ec 1.5. v.7: Sl 1.2; Sl 119.142; Tg 1.25; Sl 23.3;Sl 93.5; Sl 111.7; Sl 119.138, 144; Dt 4.6; Sl 119.130. v.8: Sl 33.4; Sl119.128; Sl 119.14; Ed 9.8; Sl 38.10. v.9: Sl 34.11; Sl 111.10; Pv 1.7;Ec 12.13; Is 33.6; Sl 119.138. v.10: Jó 22.24; Sl 119.72; Pv 8.10; Sl119.103; Ct 4.11; Ez 3.3; 1Sm 14.27. v.11: Pv 29.18. v.12: Sl 51.2; Sl90.8; Ec 12.14. v.13: Nm 15.30; Sl 119.133; Gn 6.9; Sl 18.32. v.14: Sl104.34; Sl 18.31; Êx 6.6; Jó 19.25.

SUGESTÃO DE USO HOMILÉTICO PARA O SALMO 19

Assunto: A Criação e a Palavra anunciam a respeito de Deus, oSenhor.

Objetivo: Fé no Criador e vida de acordo com a vontade de Deus. Apalavra de Deus transforma nossas vidas, fazendo com que nossospensamentos e palavras sejam aceitáveis ao nosso próprio Criador eunindo nossas vozes com a natureza num cântico de louvor.

Tema: Deus se revela a nós. a) Através da natureza. b) Através da sua Palavra.Conclusão: Resultados da revelação de Deus na nossa vida de fé.

BIBLIOGRAFIA UTILIZADA

MUELLER, John Theodore. Dogmática Cristã; KOEHLER, Edward W.A. Sumário da Doutrina Cristã; CATECISMO MENOR – Editora Concórdia;O NOVO COMENTÁRIO DA BÍBLIA – Edições Vida Nova; KUNSTMANN,Walter G. Seleção de Salmos; BÍBLIA DE ESTUDO NTLH – SBB; CONCORDIASELF-STUDY BIBLE – NIV – CPH.

Ezequiel BlumNovo Hamburgo, RS

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TERCEIRO DOMINGO DE ADVENTO1Tessalonicenses 5.16-24

1 TESSALONICENSES 5.16-24 - CONTEXTO

A antiga colônia grega de Termas foi fundada pelo rei macedônioCassandro em 315 a.C. Cassandro modificou o nome da cidade paraTessalônica em homenagem à sua esposa, de mesmo nome. Em 146a.C., os romanos conquistaram a cidade e a promoveram para capitalda província da Macedônia. Tornou-se uma cidade próspera, pois tinhaum bom porto e por ela passava a Via Egnatia, que ligava Roma aBizâncio. Havia uma comunidade judaica florescente naquela região.Paulo pregou na sinagoga de Tessalônica, mas não obteve muito su-cesso (At 17.2). Seu trabalho teve mais aceitação entre os gregos (At17.4). Dali surgiu uma comunidade cristã composta principalmente deartífices e pequenos comerciantes.

1Ts é o primeiro escrito de Paulo no Novo Testamento (em ordemcronológica). Na segunda viagem missionária passou por Tessalônica(At 17.1) - provavelmente no verão do ano 50. Perseguido pelos ju-deus da cidade (At 17.5-12), dirigiu-se a Atenas e Corinto. Foi deCorinto, provavelmente no inverno de 50-51, que escreveu 1Ts. Silase Timóteo estavam com o apóstolo quando escreveu esta carta (At18.1-5).

TEXTO

1Ts 5.16-24 situa-se entre as breves exortações para a vida dacomunidade e uma saudação final de Paulo (5.12-28). Do trecho de1Ts proposto para o Terceiro Domingo de Advento, destaco duas ex-pressões:

Ficai sempre alegres (v.16). A alegria cristã é um tema constantenas cartas paulinas. Na carta aos Filipenses somos convidados a nosalegrarmos no Senhor (Fp 3.1; 4.4). Nas saudações finais de 2Co, oapóstolo exorta a comunidade a alegrar-se (2Co 13.11). A alegria nãodepende das circunstâncias, ela pode ser incessante, pois é dom doEspírito Santo (Gl 5.22ss). Nem mesmo as perseguições ou dificulda-des formam obstáculo para a verdadeira alegria, pois esta é superioràs coisas passageiras do mundo. Por isso, todo cristão tem direito e éconvidado a alegrar-se no Senhor.

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Orai sem cessar (v.17). No ministério e nas cartas de Paulo, a ora-ção é mais do que um assunto ou um tema teológico. A vida de oraçãosustenta todo o agir missionário de Paulo. Por conseguinte, a oraçãoaparece naturalmente nos textos de Paulo. Destaco aqui algumas pas-sagens das cartas paulinas: Rm 1.10; 12.12; Ef 6.18; Fl 1.3-4; 4.6; Cl1.3; 4.2; 2Ts 1.11; 1Tm 2.8; 5.5; 2Tm 1.3. Quando Paulo exorta a co-munidade a “orar sem cessar”, não está dizendo algo absolutamentenovo. Já nos evangelhos Jesus aconselha a orar sem cessar: “contou-lhes ainda uma parábola para mostrar a necessidade de orar sempre,sem jamais esmorecer” (Lc 18.1).

O propósito último da oração é que seja efetivada a vontadeamorosa de Deus em nossas vidas. A fé não deseja outra coisa se-não que “seja feita a Tua vontade” como ensinou Jesus no Pai-nos-so. Em outras palavras, que Deus vença toda oposição e efetive oseu domínio irrestrito (Gustaf Aulén). Contudo, a tentação é enten-der o “seja feita a Tua vontade” como se tudo o que acontecesseem nossa vida fosse vontade de Deus. Pelo contrário, a vida huma-na está repleta de situações que não expressam a vontade de Deus.Quando oramos “seja feita a Tua vontade”, estamos pedindo enten-dimento a Deus para que captemos plenamente a vontade divina eseus objetivos e para que essa vontade domine inteiramente emnossas vidas.

No Catecismo Maior, Lutero exorta: “Peçamos sem cessar: ‘QueridoPai, faça-se a tua vontade, não a vontade do diabo e de nossos inimi-gos, nem de nada daquilo que quer perseguir e suprimir a tua santapalavra ou quer impedir o teu reino. E dá-nos que suportemos compaciência e vençamos tudo o que tivermos de sofrer em razão disso,para que nossa pobre carne não ceda nem apostate, por debilidadeou indolência’” (CMa 67).

APLICAÇÃO

Alegria. Eis uma atitude que precisamos sempre de novo resgatarem nossas vidas e comunidades cristãs. A poeira do cotidiano cobrerapidamente a alegria que mora em nós. Por vezes esquecemos deespanar a poeira da tristeza e deixar que a alegria brilhe plenamentea partir de nós. Num mundo profundamente ferido, num tempo profun-damente marcado por corações dilacerados urge que nós, cristãos,sejamos sinal de alegria no mundo.

A alegria cristã não está fundamentada no poder, no sucesso, nodinheiro ou na saúde. A mídia atrelou alegria ao consumismo e ao ter.A mensagem subliminar da mídia é: “Só pode ser alegre quem conso-

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me”. “Só pode ser alegre quem tem um corpo escultural.” “Só pode seralegre quem venceu profissionalmente.” “Só consegue ser alegre quemtem dinheiro.” As pessoas internalizaram essa mensagem da mídia. Aspróprias igrejas assumiram em muitos casos esse jeito perverso damídia. E o resultado nós vemos na expressão do rosto de muitas pes-soas: pressa, abatimento, descontentamento. As pessoas vivem emfunção de um amanhã. A alegria está geralmente atrelada a algumaconquista que pode não vir. E quando conquistam já haverá outra coi-sa para conquistar e a alegria fica de novo como algo inatingível.

A fé cristã ensina que até mesmo doente e pobre posso ser alegre.A alegria vem de fora, de Deus, e jorra de dentro do cristão como umafonte. Ela é um presente do Espírito que em nós habita. Ela não de-pende de mim ou de algum mérito espiritual da minha parte. É oferta,é gratuidade. Ou acolhemos a alegria ou a rejeitamos, mas ela sempreestará ali à nossa disposição.

Ora, se alegria já está à nossa disposição, precisamos entrar emcontato com esta alegria que já está dentro de nós. Um modo inte-ressante de despertar a alegria é fazer com que as pessoas lem-brem-se daquilo com que se alegravam quando eram crianças. Quan-do crianças nos contentávamos com qualquer brinquedo. Qualquercoisa era motivo para alegria e encantamento. Hoje, saturados queestamos pelo consumismo, nada mais nos desperta alegria. Revivera criança que está dentro de nós é um bom modo de despertar aalegria escondida em nós. Outro caminho é despertar o encanta-mento pelas pequenas coisas: o sorriso de uma pessoa idosa, o solse pondo, a brisa que bate leve em nosso rosto, as crianças brin-cando no parque, o movimento das folhas secas levadas pelo vento,etc.

Infelizmente uma comunidade cristã ou um cristão não pode seralegre por decreto. Mas até mesmo nossas falhas e limitações estãoguardadas na misericórdia divina. Na oração de Daniel pelo povo ficabem expressa a verdade teológica de que até mesmo nossas falhasestão guardadas na misericórdia divina (Dn 9.4-19).

Por fim, os textos bíblicos anunciam aquele que é a fonte de todaalegria: Jesus, nosso Salvador. Deus, em sua misericórdia, enviou seuFilho ao mundo. Deus se fez como um de nós. Deus se fez servo paranos libertar de toda escravidão. Deus se fez fraco para nos dar a forçado seu Espírito. Ele, Jesus, é o motivo da nossa alegria. Alegria quetomou conta do coração de Isaías e de Maria. Sim, Jesus é o motivo danossa alegria. Em Jesus, “Deus não responde ao porquê do sofrimen-to. Ele sofre junto. Deus não responde ao porquê da dor. Ele se fazhomem das dores. Já não estamos mais sós na nossa imensa solidão.

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Ele está conosco. Não somos mais solitários. Mas solidários... O meni-no que nasce em Belém nos revela: Tudo possui um sentido secreto etão profundo que Deus mesmo quis assumi-lo. A estreiteza de nossomundo no qual Deus entrou tem uma saída abençoada e um desfechofeliz” (Leonardo Boff).

Gelson Neri BourckhardtConcórdia, SC

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QUARTO DOMINGO DE ADVENTOSalmo 98; 2 Samuel 7.(1-7)8-11,16;Romanos 16.25-27; Lucas 1.26-38

SALMO 98

Trata-se de um canto de vitória. O Natal está às portas e por issotem cheiro de vitória no ar. Às portas do Natal, o Salmo 98, que apare-ce também em outras datas do calendário litúrgico, é um convite paraa festa da vitória de Deus e de seu povo. O povo de Deus festeja ofato de que “com amor e fidelidade, ele cumpriu a sua promessa aopovo de Israel” (v.3). “Ele governará os povos com justiça” (v. 9). Ajustiça através da qual ele governa o seu povo é a justiça da fé, quebrota do evangelho. Pois o Natal é a festa da vitória do evangelho.

2 SAMUEL 7. (1-7) 8-11,16

Promessas são a tônica maior desse texto. Ao longo da história, oSENHOR faz inúmeras promessas a seu servo Davi. No texto em foco,ele traz uma mensagem encharcada de promessas. Destaca-se aque-la promessa que está ao final do versículo 11: “lhe darei descenden-tes” e no versículo 16: “Você sempre terá descendentes, e eu fareicom que o seu reino dure para sempre. E a sua descendência realnunca terminará”.

“Davi teria descendentes que seriam reis de Israel para sempre(12,14,16). Essas promessas aparecem em outros livros do Antigo Tes-tamento; especialmente nos Salmos (18.50; 89.3-4, 26-27, 36,37; 132)e nos profetas (Is 9.6; 11.1-10; 16.5; Mq 5.2). No Novo Testamento,elas são vistas como profecias a respeito de Jesus, o descendente deDavi (Jo 7.42; At 2.30). Jesus, o Messias, é chamado de “Filho de Davi”(Mt 21.9). (Nota introdutória da Bíblia de Estudo da NTLH).

Os reis não são reis para sempre. Somente o Rei dos reis é Rei parasempre e reina para sempre. No Natal vemos essa promessa se cum-prir. Os reis deste mundo vão. O nosso Rei vem!

ROMANOS 16.25-27

Necessariamente a Epístola não precisa rimar com as demais leitu-ras do dia. Ela sempre segue um caminho próprio. Quando rima é umafeliz coincidência. Na epístola para este Domingo encontramos termos

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e expressões que rimam, não só com estas leituras, mas com todas asmensagens evangélicas que são pregadas de nossos púlpitos. Desta-cam-se: “fé”, “evangelho” e “mensagem a respeito de Jesus Cristo”. Enesses dias em que o cheiro de Natal já está no ar, a mensagem é sósobre Jesus Cristo. Ao menos nas igrejas.

LUCAS 1.26-38

É sempre um desafio pregar textos dos primeiros capítulos de Lucas.No Natal temos praticamente só Lucas. Mateus não traz nada deanunciação. Nem de Jesus e muito menos de João Batista. Começafalando já do nascimento de Jesus. João entra por um outro caminho,seguramente mais elevado. Marcos não tem sequer uma de suas “man-chetes” sobre o tema do nascimento, quem dirá da anunciação. Quebom que o Espírito Santo conduziu Lucas a escrever sobre a anunciaçãoe sobre o nascimento de Jesus. Sem Lucas, não teríamos narrativa doNatal, ou a teríamos de forma muito mais pobre.

Desde a anunciação, as histórias de João Batista e de Jesus estãoconectadas. Aqui a conexão é feita com as palavras do evangelista“quando Isabel estava no sexto mês de gravidez...” (v.26) e com aspalavras do Anjo falando a Maria: “Fique sabendo que a tua parentaIsabel está grávida, mesmo sendo tão idosa” (v. 36).

Sobre Maria, nunca é demais lembrar a sua idade aproximada. Ma-ria tinha entre doze e quatorze anos. Só. Era a idade com que asmoças contratavam casamento e se casavam na época, entre o povojudeu.

A expressão “descendente do rei Davi” (v. 28) é aplicada aqui aJosé, e, por conseguinte a Maria, afinal os dois eram da mesma tribo.Fecha-se a idéia do “descendente” prometido a Davi, na leitura do AT.

Provavelmente Maria tivesse visto o anjo. Sendo assim, é bom con-siderar o misto de surpresa e de susto da jovem ao ver o que viu (umanjo) e ouvir o que ouviu do anjo: “Que a paz esteja com você, Ma-ria...”. A palavra de paz era a saudação comumente usada entre osjudeus. Ainda assim Maria podia saber que o anjo falava de uma pazque ia além, ou que vinha do além.

Depois de ouvir a palavra do anjo, ela “ficou muito admirada” (NTLH)ou “perturbou-se” (ARA). Admirada ou perturbada. Tanto faz. Não erapara menos.

Penso que mereça destaque, pela simples curiosidade, o fato de oanjo dizer a ela “você ficará grávida” e de ela responder, em meio asua admiração e perturbação, “mas isso não é possível, pois eu souvirgem” (NTLH) ou “não tenho relação com homem algum” (ARA). Quer

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me parecer que ela ouviu o anjo dizer: “você está grávida!”.Ainda sobre isso, vê-se que Maria não tinha clareza ou conheci-

mento da Palavra do SENHOR através dos profetas de que o Messiasnasceria de uma virgem. Mas, também, ela era apenas uma menina de12 ou 13 anos. E isso fazia muita diferença, ao menos naquele lugar enaquela época.

O texto original grego relaciona o “não tenha medo, Maria” com agraça, o que é preservado pela ARA (“achaste graça diante de Deus”)e desprezado pela NTLH. Em todo caso, a graça está presente. Pelagraça de Deus Maria não precisa ter medo, ou podia parar de ter medo.O Natal que está às portas é graça pura. No Natal a graça de Deusvem ao mundo embrulhada em carne humana. A graça de Deus assu-me forma de gente. E só por isso Maria não precisava ter medo e sópor isso nosso povo também pode parar de ter medo.

Nestor DuemesEsteio, RS

QUARTO DOMINGO DE ADVENTO

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LEITURAS DO DIA

Deus está no meio do seu povo. Deus está com o seu povo. Estassão as grandes ênfases que as leituras propostas para este dia noslembram. Em vista disso, celebremos ao Senhor com uma nova cançãopela maravilhosa presença do Deus vivo em nossa vida.

SALMO 96

Este salmo faz parte de um bloco de salmos (Sl 95 até 100) queLutero destaca nas palavras: “É uma profecia de Cristo”, ou então, “doreino de Cristo”. Este foi um dos salmos cantados quando Davi trouxea arca de Deus ao templo (citado quase textualmente em 1 Cr 16.23-33). Este hino de louvor celebra a realeza divina e a vinda do Juiz domundo – o Messias prometido. Através do Reino deste Messias, Deustrouxe a paz ao mundo. O nome do Messias é Jesus Cristo! Eis o moti-vo para cantarmos uma nova canção neste natal e em todos os mo-mentos de nossas vidas.

ISAÍAS 9.2-7

O profeta Isaías está anunciando o nascimento do Príncipe da Paz.Agora o povo que andava nas trevas (estavam perdidos e condena-dos) verão a grande luz da salvação, através do menino que Deusenviou ao mundo para ser Rei. Este Rei possui vários adjetivos queserão conhecidos entre as nações (cf. v.6): “Conselheiro Maravilhoso”,“Deus Poderoso”, “Pai Eterno”, “Príncipe da Paz”. Seja qual for seutítulo, as bases do seu governo serão sempre a fonte de toda justiça,paz e salvação. O seu reinado não terá fim (Lc 1.33).

TITO 2.11-14

“Deus revelou a sua graça para dar a salvação a todos” (v. 11). Esteversículo é um convite para uma nova vida, uma vida de santificação.Fomos tocados pela graça salvadora de Jesus que nos torna natural-mente praticantes de boas obras, independente de nossa atividade

VÉSPERA DE NATALIsaías 9.2-7

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social. Abençoados com a presença constante de Deus, seremos liber-tos de toda maldade e seremos pessoas dedicadas na prática do bem(cf. v. 14 e Sl 130.8).

LUCAS 2.1-20

Este é um texto obrigatório no Natal. Afinal de contas, o Natal énascimento de Jesus. Aqui temos o pano de fundo para o verdadeirosentido de nossa festa – uma festa baseada na humildade, nos mila-gres, no sobrenatural e que celebra o amor de Deus para com seupovo ao enviar o menino Jesus, o Salvador do mundo.

CONTEXTO

Isaías dedicou grande parte de seu ministério a pregar juízo e con-denação especialmente aos políticos e militares de Judá. Como o Im-pério Assírio estava cada vez mais em ascensão, dois grupos levanta-ram-se dentro de Israel: um procurava aliança com o Egito, outro coma temida Assíria. Isaías pregou que se apegassem a Iahweh. Foi ummomento decisivo da vida da nação.

Os líderes de Judá, ao invés de confiarem em Iahweh, achavamque através de pactos e alianças com nações pagãs iriam garantir paze segurança frente à ameaça iminente. Porém, mesmo com os prog-nósticos de juízo contra Jerusalém e Judá, o profeta prevê o gloriosotempo da vinda do Messias.

A terra das tribos de Zebulom e de Naftali ( 9.1) suportaram dura-mente as invasões de Tiglate-Pileser, rei da Assíria, por volta do ano733 a.C. As áreas aqui mencionadas são as partes de terra que, porrazões geográficas, eram especialmente vulneráveis à influência e do-mínio dos gentios; daí também a designação “Galiléia dos gentios”.Porém toda a dor da opressão e o desespero agora vão dar lugar àalegria e à esperança, “pois já nasceu uma criança, Deus nos mandouum menino que será o nosso rei...” (9.6 NTLH). Este versículo assumeum caráter messiânico explícito. Jesus, o descendente de Davi, vai darliberdade ao seu povo e governará com justiça e paz (2 Sm 7.1-29).Dias melhores virão - para sempre!

TEXTO

Vv. 2-5: “O povo que andava na escuridão viu uma forte luz” é o povoque vivia na Galiléia (Zebulom e Naftali). A partir desta região, o profe-ta estende os seus olhos para Israel como um todo. Sua visão é de

VÉSPERA DE NATAL

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dor, trevas, morte e angústias extremas. A luz simboliza salvação. Essaluz em primeiro momento descreve a libertação política – libertação dojugo assírio. É uma libertação alusiva à vitória conquistada por Gideãosobre os midianitas nesta mesma região (Jz 6-7). No sentido mais amploe espiritual, esta salvação aplica-se a Jesus que é a luz do mundo (Jo8.12). Aquele que dissipa as trevas – as trevas do pecado para a luzdo perdão dos pecados.

V. 6: A alegria da libertação do futuro ultrapassa os limites huma-nos comuns. Isaías de forma alguma tem em mente um príncipe terre-no, mas está se referindo diretamente ao grande Rei do futuro, queseria chamado, em sentido especial, de Messias ou Ungido. Esta crian-ça traz sobre seus ombros o governo, a autoridade, isto é, o poderespiritual. Por isso, o profeta passa a descrever os vários títulos eadjetivos que apresentam o futuro grandioso deste menino.

“Conselheiro Maravilhoso” – “Conselheiro” porque sendo ungido como Espírito de sabedoria (cf. Is 11.2), ele tem em si os conselhos sábiosnecessários ao exercício do seu ofício real, e indispensáveis para asalvação do Seu povo (cf. 1.26; 3.3; Mq 4.9). “Maravilhoso” transcendeos limites humanos comuns (cf. Jz 13.18).

“Deus Forte” – juntamente com “conselheiro”, as duas qualidadescardinais de um rei. Os frutos de um bom governo são os sábios con-selhos acompanhados do poder para ação.

“Pai Eterno” – Sua paternidade é perene, pois o seu reino não teráfim (Is 40.9-11). Nesta passagem temos uma alusão àquele que inter-virá na vinda da criança anunciada, portanto é clara e decisiva a refe-rência à encarnação e à união do divino e do humano na pessoa deCristo (Is 7.14; Gl 4.4; Lc 1.35). O título designado ao Menino não ésomente a possessão da eternidade, mas também de todos os cuida-dos que ele tem para com o seu povo (Is 22.21). Ele é o Pai eterno ecomo o eterno, rei de amor, de acordo com as descrições do Sl 72.

“Príncipe da paz” – o profeta retorna à descrição da paz que nas-ce para Israel (v. 4). Paz que no hebraico é “shalom” não deve serapenas interpretada como ausência de luta, visto que esta palavratambém tem sentido de salvação, bênção e felicidade. Os profetas deDeus dizem que a verdadeira paz escapa das limitações terrenas edeformações pecaminosas, transformando-se num elemento essenci-al na pregação escatológica. Os oráculos ameaçadores concluem comum anúncio de restauração (Os 2.20; Am 9.13). Se espera “aquele queserá a paz” (Mq 5.4). Isaías nos diz do Príncipe da Paz, que concedeuma paz para sempre (v.7), reconciliando, em si, Deus e os homens(2Co 5.18-19). E essa paz é a “paz que excede todo entendimento”(Fp 4.7) humano.

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V. 7: Este versículo descreve as características de como será oreinado do descendente de Davi (Is 11.1-5; 2 Sm 7.12-14; Jr 23.5;33.15). O governo de Jesus será baseado num reinado de paz portodo o império, as bases do seu governo serão de juízo e justiça, ondeo amor prevalecerá por todo o sempre. Esta visão do futuro é boademais para ser verdade. Mas ela será realizada: o zelo do Senhordos Exércitos fará isto. O seu zelo é o seu amor abrasador pela causado Seu reino e pela salvação do Seu povo (cf. Zc 1.14). Só o zelo doamor do Todo-Poderoso pode cumprir tais milagres, mas não há dúvi-das de que ele consegue fazê-lo. Afinal, para Deus não há nada im-possível (Lc 1.37).

PROPOSTA HOMILÉTICA

O pensamento central do texto é que mesmo em meio às trevassurge a Luz – Cristo Jesus. A luz do primeiro natal continua brilhandocomo sempre brilhará. Mesmo quando em muitos corações o verdadei-ro sentido do Natal caminha a passos largos cada vez mais para as“trevas” do esquecimento, da indiferença, da falta de amor e de paz.

As conseqüências do pecado atrapalham nossas expectativas deque dias melhores virão. Desanimamos frente às dificuldades que en-frentamos diariamente, dos obstáculos da ganância, do ciúme e dainveja. Mesmo diante da adversidade, resta-nos uma esperança: Umaluz brilha no meio das trevas – Jesus Cristo!

Tema: Jesus, a luz do mundo, quer brilhar em nossos corações!I – Dando-nos a salvaçãoII – Nos motivando com seu amor a compartilhar esta luz.

Héber Guéter Fach São Paulo, SP

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LEITURAS DO DIA

As leituras do dia para o dia de Natal são, além do evangelho, Lc2.1-20, o Sl 98, a leitura do Antigo Testamento, Is 62.10-12 e a epísto-la, Tt 3.4-7. O Sl 98 proclama a salvação universal de nosso Deus eincita para o louvor, principalmente no v. 4: “Celebrai com júbilo aoSenhor, todos os confins da terra”. A leitura do Antigo Testamento mandaque a filha de Sião prepare o caminho para seu Salvador que vem coma sua recompensa. A epístola fala da benignidade de Deus, nosso Sal-vador, e do seu amor para com todos, que nos salvou não com obrasde justiça praticadas por nós, mas segundo sua misericórdia, a fim deque, justificados por sua graça, nos tornemos seus herdeiros. As leitu-ras culminam com o relato de Lucas da História do Natal, num estilo deuma admirável simplicidade, mas ao mesmo tempo majestoso e memo-rável, em que a salvação pela graça e pelo amor de Deus brilha emtodo o seu esplendor.

CONTEXTO

Depois que Lucas relatara o anúncio do nascimento de João Batis-ta, o de Jesus, a visita de Maria a Isabel, o cântico de Maria, o nasci-mento de João Batista e o cântico de Zacarias, ele prossegue no cap. 2a relatar o nascimento de Jesus, sua apresentação no templo e suaestada no meio dos doutores no templo, aos doze anos, encerrandoassim sua narração sobre a infância de Jesus que só ele nos transmitecom tão ricos detalhes. O nosso texto nos descreve o nascimento deJesus, o seu anúncio aos pastores e o encontro deles com a criança,sua mãe e seu pai adotivo, na estrebaria de Belém.

TEXTO

V. 1: Com as palavras “naqueles dias” Lucas nos introduz no pano-rama político daquele tempo. O rei Herodes, o Grande, ainda estavavivo e o imperador de Roma, Augusto (31 A C. – 14 A.D.), no auge deseu poder, emitiu um decreto para que toda a população do império,no original, todo o mundo habitado, fosse recenseada. O propósito de

DIA DE NATALLucas 2.1-20

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Augusto era de estabelecer uma base para a cobrança de imposto euma melhor organização do rol de seus súditos.

V. 2: Foi esse o primeiro recenseamento feito quando Quirino eragovernador da Síria. A Síria era a província romana à qual pertencia aPalestina. Deve ter ocorrido nos anos 6 ou 5 A.C. Embora Quirino na-quele tempo não fosse o governador oficial da Síria, ele era o coman-dante em chefe do exército, sob cujas ordens certamente ocorreu ocenso. Uma tradução estritamente literal de Lc 2.2 poderia ser assimredigida: “Este recenseamento teve lugar como o primeiro, Quirino re-gendo (estando à testa de) a Síria (cf. Arndt, W. Dificuldades Bíblicas,p. 59).

Vv. 3-5: Cada um teve de recensear-se na cidade da origem deseus antepassados e como os antepassados de José e Maria descen-diam do rei Davi, tiveram de ir para a cidade de Davi, chamada Belém.Originalmente seu nome era Efrata (Gn 35.39). Era uma cidade situadaa uns 8 quilômetros ao sul de Jerusalém.

De acordo com o texto Nestle-Aland, Lucas fala de Maria como aprometida em casamento a José, em outras palavras, como a sua noi-va (cf. a tradução do Novo Testamento Interlinear Grego-Português),mas, a esta altura, ela já era sua mulher, como fica claro de Mt 20.24.No entanto, como ainda não tinham relações sexuais, continuavam aviver como noivos, de acordo com Mt 1.24b, 25 e Lucas, talvez em vistadisso, a descreve simplesmente como noiva de José. Temos traduçõesdiferentes em nossas Bíblias, devido a leituras diferentes nos manus-critos. Na ARA lemos: “sua esposa” e na NTLH, “com quem tinha casa-mento contratado”. Essa última leitura, que adota o texto de Nestle-Aland, parece a mais evidente.

Vv. 6,7: “Estando eles ali” pode enfatizar simplesmente a sua esta-da no local. Como parece, o nascimento ocorreu imediatamente após achegada, talvez já na mesma noite, de maneira que José teve poucotempo para procurar um local mais adequado para sua pousada. Acomplementação dos dias diz respeito à gravidez de Maria. “Ela deu àluz o seu filho primogênito (prwto,tokoj) sugere que ela teve outrosfilhos depois (cf Mt 13.55; 12.46,47; Mc 3.31,32; Lc 8.19,20). Se fosseseu único filho, deveria constar o adjetivo monogenhj. Há uma porçãode interpretações do lugar em que Jesus nasceu. Não vamos deter-nos em sua avaliação. O essencial é que Jesus nasceu num ambientede extrema pobreza, que pode ter sido uma estrebaria, ou um lugarem que se alojavam animais e sua primeira caminha era uma manje-doura ou cocho em que os animais comiam. Isso aconteceu porqueJosé não encontrara lugar numa hospedaria, pensão ou pousada, por-que esses lugares estavam superlotados ou por pessoas que vieram

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para o recenseamento, ou por funcionários do governo que o realiza-vam.

Assim também há corações que não possuem lugar para Jesus por-que são superlotados por desejos de riqueza, por prazeres munda-nos, pela ânsia de prestígio e honra, por preocupações e temores, poródios e ressentimentos.

Para que Jesus possa habitar em nosso coração é preciso que se-jamos regenerados pelo poder do Espírito Santo e creiamos em Jesuscomo nosso Salvador, cujo sangue também purifica a nós de todo opecado (1 Jo 1.7). Disse uma vez alguém: “Se Jesus tivesse nascido milvezes em Belém e não em mim, então eu ainda estaria perdido”.

Não havia lugar para Jesus na hospedaria. Há lugar para ele noseu coração?

Contrastemos a profunda pobreza e humildade de Jesus com o im-perador Augusto, assentado sobre o trono de seu império mundial.Mas já vislumbramos nesse ambiente paupérrimo de Jesus alguns rai-os de sua glória. O poderoso imperador teve de servir ao filho de Mariasem o saber. Ele teve de cooperar com a vontade de Deus para queCristo nascesse em Belém (cf. Mq 5.2). O imperador não tinha nenhu-ma idéia a respeito do efeito e das conseqüências de seu decreto. Elenada sabia do reino eterno dessa criança, que ofuscaria todos os rei-nos do mundo, também o dele. Nem ele, nem a alta sociedade de Beléme Jerusalém tinham a mínima noção da manifestação da benignidadede Deus e do seu amor para com todos (Tt 3.4).

Graças ao bondoso Deus que nos revelou o que ocultou a muitossábios e instruídos, o que muitos profetas e reis quiseram ver e ouvire não o viram e ouviram (cf. Lc 10.21,24). Podemos hoje adorar e lou-var o nosso Salvador que se encarnou nessa criança, que, sendo rico,se fez pobre por amor de nós para que, pela sua pobreza, nos tornás-semos ricos (2 Co 8,9). Aquele que não poupou o seu próprio Filho,antes, por todos nós o entregou, porventura, não nos dará graciosa-mente com ele todas as cousas? (Rm 8.32). Veja também outras pas-sagens sobre o amor de Deus, como Jo 3.16; Rm 5.5,8; 8.35,39; 1 Jo3.1 etc.

Vv. 8-11: Lucas agora nos narra como o nascimento de Jesus e oseu significado foi divulgado naquela noite. No lugar em que Jesusnasceu parece que o evento teve pouca repercussão. Os recipientesda mensagem eram gente humilde, pobre, de pouca influência social,pastores de ovelhas, que guardavam, nos campos próximos a Belém,seu rebanho durante as vigílias da noite. Eram pessoas de quem nãose esperava que recebessem uma distinção tão honrosa. No entanto,

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eram pessoas piedosas, provavelmente conhecedoras das profeciasmessiânicas e, como o velho Simão, esperavam a consolação de Israel(Lc 2.25).

De repente a noite iluminou-se, um anjo lhes apareceu e a glóriado Senhor brilhou ao redor deles. A “glória do Senhor”, na Septuaginta,é a expressão usada para designar a manifestação da presença deDeus no tabernáculo e no templo, numa nuvem luminosa, que maistarde o judaísmo designou de Shekinah. Em o Novo Testamento, de-signava o brilho que indicava a presença de Deus ou de um de seusmensageiros (cf. Lc 9.31ss e 2 Co 3.18). É bem natural que os pastoresficassem com muito medo. Desde a queda no pecado, a reação a umamanifestação sobrenatural é medo ou até pavor.

O anjo, contudo, mitiga o seu medo com o anúncio da boa-nova deque hoje lhes nascera o Salvador que veio justamente para libertá-losde todos os temores, entre os quais avultam o pecado, a morte e opoder do diabo. Essa boa-nova era de grande alegria e para todo opovo, não só para o povo de Israel, mas para todas as pessoas, poislao,j é usado às vezes para designar o povo em geral, o que acontecenesta passagem (cf. Lc 8.47; 9.13; 18.43; 21.38). O lema da IELB “Cristopara todos” identifica-se com o sentido do termo aqui usado.

No entanto, de suma importância para os pastores era o pronomevos. Hoje vos nasceu o Salvador. Também eles faziam parte do povopara quem era a boa-nova de grande alegria.

E esse Salvador era o prometido Messias tão longamente espera-do. Era Cristo, o Senhor. Chama-se Cristo ou Messias, porque é o Un-gido pelo Espírito Santo para ser o nosso profeta, sumo sacerdote erei. Ku,rioj (Senhor) é o termo usado pela Septuaginta para traduzir onome de Deus, Javé ou Jeová. No Antigo Testamento, é usado comreferência a Cristo no Sl 110.1 e em o Novo, em At 2.36, onde Pedroproclama as palavras: “... a este Jesus, que vós crucificastes, Deus ofez Senhor e Cristo”. Com esse nome o anjo faz alusão à sua divinda-de e, por isso, os cristãos primitivos insistiram em atribuir esse título aJesus e jamais a um imperador romano.

V. 12: Ao encerrar sua mensagem, o anjo ainda lhes dá um sinalpara acharem a criança recém-nascida. Iriam encontrá-la não em al-gum palácio feericamente iluminado, mas, envolta em panos e deitadanuma manjedoura. Assim eles foram prevenidos de não chocar-se como contraste entre o anúncio glorioso e as circunstâncias reais do lugarde seu nascimento.

Ainda hoje experimentamos o mesmo contraste em cada festejo deNatal, onde celebramos a origem humilde de nosso Salvador e o seu

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glorioso significado com hinos de Natal, entre os quais se destacam osversos:

Ó do universo Criador,quiseste ser humilde assim,por ser profundo teu amor,baixaste qual menino a mim.(Hinário Luterano, hino 26, estrofe 9)

V.13: A mensagem do anjo culmina com um espetáculo inesperadoe inesquecível. Subitamente apareceu uma multidão de anjos falandoe cantando o que foi chamado mais tarde o Gloria in Excelsis Deo e queainda hoje ecoa em corais do mundo inteiro. Glorificaram a Deus quehabita também nas maiores alturas, muito acima de suas criaturas,por ter proporcionado uma tão grande salvação aos homens, caídosem pecado, com os quais agora, por intermédio de seu Filho amado, sereconciliara, oferecendo-lhes a sua paz. É uma paz totalmente diferen-te da pax romana do imperador Augusto. Já dizia o filósofo romano doprimeiro século, Epitecto, que o imperador tinha o poder de proporcio-nar a paz política e social, mas era incapaz de conceder a paz do cora-ção, libertando as pessoas de suas paixões, mágoas e invejas, porcuja libertação ansiavam mais do que pela libertação dos inimigos ex-ternos. Os anjos falaram daquela paz cujas características essenciaissão o perdão dos pecados e a libertação do medo da morte e do poderdo diabo. Essa paz está à disposição de todos os homens e é apropri-ada pela fé em Jesus, o Príncipe da paz (cf. Is 9.6). Deus a oferece atodos os homens, aos quais agora com a oferta da reconciliação querbem.

Vv. 15-16: Após os anjos terem partido deles para o céu, os pasto-res imediatamente se mobilizaram para a ação da procura do menino.Não disseram: “Vamos a Belém e verifiquemos se é verdade o queouvimos”, mas: “Vejamos a palavra (tradução literal) que o Senhor nosdeu a conhecer”.

Foi o primeiro fruto de sua fé: confiaram na palavra transmitida pe-los anjos e não duvidaram. “Foram apressadamente”, outro fruto desua fé. Estavam ansiosos de encontrar seu Salvador no mais brevetempo possível e não adiaram o encontro para mais tarde, cometendoo pecado da procrastinação.

E sua fé foi coroada de pleno êxito. Encontraram tudo exatamentede acordo com o sinal dado pelo anjo. “Aqui vemos o que é a verdadei-ra fé”, observa um comentarista. “A fé confia na palavra que o Senhor

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agora faz pregar por intermédio de homens para homens, na palavrade Cristo que lhe promete graça, paz, vida e salvação”. Todo aqueleque crê nesta palavra já desfruta agora antecipadamente algo do quedesfrutará um dia plenamente na bem-aventurança eterna.

Vv. 17-19: A fé se manifesta necessariamente por outro fruto, queé o testemunho. Os pastores, logo depois de seu encontro com o me-nino Jesus, divulgaram as palavras que lhes foram transmitidas pelosanjos. Todos se admiraram, mas não todos creram. Isso sempre denovo está acontecendo. Muitos se admiram, até se emocionam até aslágrimas, com a mensagem natalina, mas são poucos que, como Maria,a guardam no coração, refletindo e meditando sobre ela, aplicando-a àsua vida diária.

V. 20: Voltaram os pastores, glorificando e louvando a Deus. Na suavida externa nada mudara, mas em seu coração nascera uma novaluz. Da palavra que ouviram tudo dependia. Creram nela, mas perma-neceram na sua profissão, exercendo-a com toda a fidelidade. No en-tanto, não puderam deixar de dar testemunho dela a todos que osrodeavam. Tornaram-se mensageiros natalinos pelo resto de sua vida.

Também para nós o maior presente de Natal é ter o nosso coraçãocheio da maravilha de nossa salvação que faz a nossa boca falar doque está cheio o coração (Lc.6.45).

PROPOSTA HOMILÉTICA

A história de Natal está tão repleta de conteúdo que jamais caberianum único sermão. Por isso sugerimos vários temas com suas partes:

1 A encarnação do Filho de Deus1.1 Sua história maravilhosa1.2 Seu significado

2. Hoje vos nasceu o Salvador2.1 É o Salvador de todos2.2 É também o meu Salvador

3. A maravilha da mensagem de Natal3.1 É a mensagem de nossa salvação eterna3.2 É a mensagem da paz verdadeira

4. O cântico dos anjos4.1 Glória a Deus nas maiores alturas4.2 Paz na terra entre os homens a quem ele quer bem

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5. Vamos com os pastores até Belém5.1 para contemplar o menino Jesus na manjedoura5.2 para voltar glorificando e louvando a Deus5.3 para testemunhar a todos que nos rodeiam

Paulo F. FlorDois Irmãos, RS

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CONTEXTO

O contexto para a nossa perícope é muito importante. Em Lucas 12vemos Jesus orientando os discípulos sobre a vida neste mundo. “Nadahá encoberto que não venha a ser revelado” – Lucas 12.2. Ajuda seusdiscípulos a viverem vigilantes, pois não sabem quando virá o Senhor– Lucas 12.35-48. E, por fim, fala dos sinais dos tempos – Lucas 12.54-59.

Lucas 13 inicia falando de arrependimento. Talvez esse seja o grandetema do capítulo. Jesus usa o exemplo da morte dos galileus paramostrar que todos somos pecadores e necessitamos do perdão.

Como contexto litúrgico, não podemos deixar de lembrar que esteé o último dia do ano. Normalmente fazemos uma avaliação de tudoque aconteceu durante este período. Todos os acontecimentos podemser analisados e veremos que Deus continua nos dando oportunida-des de arrependimento e realmente tarda em nos condenar.

TEXTO

O texto de Lucas 13.6-9 tem algumas particularidades interessan-tes. De uma forma geral, a mensagem inicial da parábola chama a aten-ção à necessidade de arrependimento, a oportunidade que Deus dáao pecador e que esta oportunidade não dura para sempre.

Nestes quatro versículos podemos destacar:V. 6: “figueira plantada numa vinha” – isto é importante pois de-

monstra que o solo em que estava plantada a figueira era fértil. Se osolo era fértil, realmente algo estava errado com a figueira.

V. 7: “há três anos” – segundo os entendidos em plantações, afigueira necessita em média quatro anos para começar a produzir. Apósisto ou produz todos os anos ou não produz nada. O texto sugere queesse tempo já havia passado e, posteriormente, a figueira ficou trêsanos sem produzir nada. Esta figueira era estéril, ou seja, não haveriapossibilidade, pelo menos aparente, de vir a produzir.

“ocupando inutilmente a terra” – palavras duras em relação à fi-

VÉSPERA DE ANO NOVOLucas 13.6-9

Mais uma chance

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gueira. Estava ocupando espaço que poderia ser de outra árvore.Melhor cortar.

V. 8: “deixa ainda este ano” – oportunidade. O Senhor da vinha dáuma oportunidade para que a figueira produza frutos. Mais um períodoem que se vai investir nela, mesmo sabendo da dificuldade em produ-zir algo depois de tanto tempo estéril.

“escave ao redor dela e lhe ponha estrume” – aqui o adubo é odiferencial para que talvez venha a produzir frutos. Deve-se investirtempo para cavar ao redor da figueira para que o adubo chegue à raiz.

V. 9: “se vier a dar fruto, bem está; se não, mandarás cortá-la” –se depois de todo este investimento ela produzir, ganhaste uma árvo-re, se não, o Senhor da vinha mandará cortá-la. Importante notar queo agente do corte é o Senhor, dono da vinha.

APLICAÇÕES

Como podemos notar no texto acima, o Senhor da vinha concedeoportunidades a uma figueira para que venha a produzir e não fiqueocupando lugar inutilmente.

Quando Jesus dirige estas palavras, está falando com o povo ju-deu. A referência de Lucas sugere que o povo de Israel era como umafigueira estéril. Automaticamente esta mensagem vem até os dias dehoje, pois também estamos na mesma situação. Desde o batismo aluta é diária – justos e pecadores.

Quando se fala em frutos, logo se imagina que o problema estána produção em si, o que não reflete a verdade bíblica. O problemaestá na pré-produção, ou seja, naquilo que motiva a produção defrutos. Transportando para a nossa linguagem, o problema não estánas obras em si, mas na fé que produz obras, ou melhor, neste casoa falta de fé.

Arrependimento está intimamente ligado à fé. Neste texto, Jesusdá um aviso claro de que Deus é tão bondoso que ainda dá tempo,ainda permite que muitos venham a arrepender-se. Chegará uma épocaque isso não vai acontecer. Por isso anteriormente se falou no final dostempos.

O fato importante é que vivemos este “um ano”, período em que opovo está sendo “adubado” pela palavra de Deus e pelos sacramen-tos. Tudo isto Deus faz para chegar à “raiz”, ao coração humano emodificar a nossa condição de perdidos e condenados para sãos esalvos. Não sabemos quanto tempo tem este período. Também nãosabemos quanto tempo ficamos “sem produzir”. Deus investiu tempo.Deus investiu seu único Filho “para que todo que Nele crê não pereça,

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mas tenha a vida eterna”. – João 3.16. Esse é o motivador da vidacristã.

E, por fim, vale ressaltar que o agente do “corte” é Deus. Nós te-mos apenas e simplesmente a missão de levar a mensagem, adubar,escavar às vezes, mas a ação é de Deus. E se a ação é Dele, temos agarantia de um Deus misericordioso que dá tempo para o arrependi-mento e mais ainda, diz que “Ele não quer que nenhum se perca” –Mateus 18.

SUGESTÃO DE TEMA

Tema: A chance da nossa vida1. De recebermos perdão (arrependimento) – desde o Batismo2. De nos fortalecermos – Palavra e Santa Ceia3. De darmos frutos – Vida CristãÚltimo dia do ano: a introdução pode ser voltada a perguntas rela-

cionadas ao ano que passou e o que fizemos nele.

Paulo Sérgio KühlNovo Hamburgo, RS

VÉSPERA DE ANO NOVO

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Começar o ano costuma fazer com que as pessoas se sintam dian-te de um grande vazio que precisa ser preenchido. A saudação “FelizAno Novo” parece deixar no ar a idéia de que o NOVO seja aquilo queo VELHO não conseguiu ser. As charges que aparecem nos jornais re-fletem isso ao apresentar o ano cessante como um senhor velhinho,encarquilhado, parecendo derrotado, enquanto que novo ano apare-ce como um bebê engatinhando, sorridente, pleno de boas expectati-vas. Isso se reflete também nos votos e promessas que as pessoasfazem a si mesmas e aos outros: “Neste ano vai ser diferente!” que-rendo dizer: Neste ano, sim, as coisas vão ser melhores. Metas demelhoria são propostas, mudanças de postura e comportamento sãopropostas e prometidas.

Cristãos usam a mesma linguagem. Ouvem-se palavras de estímu-lo e ouvem-se correspondentes promessas de que também nós va-mos fazer isso e aquilo de maneira diferente, melhor. Prometemos sermais assíduos, participativos, comprometidos em coisas que julgamosrelevantes para Deus, a igreja, o grupo de trabalho, etc.

Nesta reflexão homilética, gostaria de fazer uma crítica a esse jeitode pensar e oferecer alguns indicativos a partir da carta de Paulo edos textos sugeridos para esse dia. Nada contra que se celebre apassagem de ano e da avaliação de expectativas que datas especiaisoportunizam. A questão é quanto ao espírito da coisa.

A crítica: Não estamos em dívida sobre o ano que passou.O apóstolo está ensinando os Filipenses, entre outras coisas, a

também aprender a olhar para o passado e o futuro.Aliás, apesar de fazermos isso de maneira mais intensa em mo-

mentos de passagem na vida individual e familiar (aniversários, batis-mo, confirmação, casamento, novo emprego, aquisições, etc), o finalde ano realmente é especial porque é coletivo, é globalizado e condu-zido pelos meios de comunicação.

1. QUANDO PAULO OLHA PARA O PASSADO,ELE VÊ A OBRA DE DEUS

Esta obra de Deus é Cristo. Mas não somente o Cristo na cruz. O

ANO NOVOFilipenses 2.9-13

Deus faz

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texto que antecede o desse dia é dos mais ricos e abrangentes, eaponta para o fato maior da obra de Deus: a encarnação. A encarnaçãode Deus em Cristo mostra Deus a serviço da humanidade. Revela quenão há limites para o que Deus é capaz de fazer no amor que tem pelasua criatura. Deus nos dá inúmeros sinais de que sua vontade é boapara nós.

Final de ano, festas, é tempo de muita insegurança entre as pesso-as. Pessoas fazem muitas coisas que demonstram essa insegurança.Quase todos fazem votos de renovados esforços e comprometimentosem diferentes áreas da vida. Cuidar mais da saúde. Ser mais atenciosocom a família. A lista pode não ter fim. Demonstra, por isso mesmo, ainsegurança de quem de alguma forma pensa que tem de assumir ocontrole da sua vida. Até certo ponto, sim, o ser humano tem controlesobre muitos dos seus atos e decisões. O engano está em pressuportambém que os resultados decorrem desse controle. Como se dominaro caos da existência humana em pecado estivesse ao alcance da cria-tura.

Isso significa que de nós mesmos e de qualquer outra pessoa nadatemos a dizer a respeito do futuro nesse sentido. Jesus expressouisso em termos positivos: “Lançai sobre ele toda a vossa ansiedade,porque ele tem cuidado de vós”. Que palavra de esperança teríamos,então, a dizer a nós próprios e aos demais? Ficamos sem ter o quedizer?

2. QUANDO PAULO OLHA PARA O FUTURO,ELE O VÊ ATRAVÉS DA OBRA DE DEUS NO PASSADO

Deus exaltou o humilhado Jesus, seu Filho. Nele e a partir dele quedeixamos de ser palha ao sabor do vento do caos a que o pecadolegou a humanidade. Isso não é falar no abstrato, numa realidadeespiritualizada e imprecisa. Essa realidade foi cravada no solo doCalvário, viva, real e concreta, aos olhos de todos que naqueles diasestavam em Jerusalém, vindos de todas as partes do mundo (At 2).Não foi divulgada de maneira impessoal num noticiário impresso oudigitalizado. “Homens falaram da parte de Deus”. “Disso nós fomostestemunhas.” Pessoas que haviam concorrido para a sua morte,reconheceram:”Matamos o autor da vida”. Mas disseram isso já combálsamo do perdão e da paz que Deus derramou sobre eles: “Para vósé a promessa e para vossos filhos e para todos os que ainda estãolonge, isso é, para quantos o Senhor, nosso Deus, chamar”.

Aquelas pessoas, olhando para esse passado, passaram a louvara Deus todos os dias (At 2. 47) e, dessa maneira, atraíam sobre si e

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sua fé a simpatia de todo o povo. Aprenderam a gloriar-se do futurocom os olhos nesse passado. Era isso que cantaram nas prisões, quelhes deu forças sob a perseguição, e recontando esse passado seanimavam a encarar o presente. Até hoje, joelhos continuam se do-brando de felicidade quando a pecadores perdidos é estendido o bra-ço de comunhão manifestado por Deus concretamente em um lugar enum dia da nossa história.

Ali, naquele lugar da maior humilhação, todos fomos feitos partici-pantes da glória de Deus. Não perguntamos mais: “O que devo fazerpara merecer uma migalha da graça de Deus? O que me reserva ofuturo?” E as pessoas que vêm até nós com essa angústia, nós apon-tamos uma nova realidade e ensinamos a ver o futuro sob essa novavisão: a fé que vem desse passado reconstruído por Deus. Ali, passa-do e futuro se fundem numa só nova realidade.

Esta boa vontade de Deus é a garantia a partir da qual começamoso novo dia. Essa boa-vontade fez com que as coisas cooperassemtambém nas coisas materiais para o bem dos filhos de Deus. O que demais precioso alguém poderia desejar do que contar com a boa-vonta-de de Deus em todas as coisas?

Dificuldades? Tribulações? Ameaças? Essa é a estrada do peregri-no. Por ela chegamos até aqui. A estrada continua a mesma. Mas aboa vontade de Deus é luz e sombra, indicativo e proteção nas deci-sões que Ele puser diante de cada pessoa que ele ama. A estradamuda de feição muitas vezes. O que não muda é aquele que faz aestrada e nos chama a andar por ela.

Ao olharmos para o ano que passou, a fé nos mostra a ação contí-nua de Deus em cada um dos nossos momentos. Ele deixa de ser umano de frustrações. É um ano de bênçãos, no qual Deus nos protegeu,amparou e guiou. Desviou nossos passos do mal. Perdoou continua-mente nossos pecados e transformou nossas intenções e ações im-perfeitas em atos de amor na família e na vida. E fez de nós testemu-nhas a apontar para ele, o Senhor, diante de quem dobramos os joe-lhos para que todos o louvem. Com os olhos fixos nele, não temosdúvidas em desejar uns aos outros um novo e feliz ano de fé e teste-munho.

Paulo P. WeirichSão Leopoldo, RS

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PRIMEIRO DOMINGO APÓS O NATALIsaías 45.22-25

A Justiça de Deus nos ’dois natais’

CONTEXTO LITÚRGICO E DEMAIS LEITURAS

Este domingo mescla os dois natais: o nascimento do Messias como Natal dos gentios. Isaías já antecipa que “no Senhor será justificadatoda a semente de Israel” e serão “salvas todas as extremidades daterra” (v. 25a, 22b). Dessa forma, Iahweh é fiel à Aliança feita comAbraão: “em ti serão benditas todas as famílias da terra” (Gn 12.3).

Dentre os temas abordados pelas leituras, destaca-se a justiça deDeus em ser fiel à Aliança. O Salmo 111, um belíssimo acróstico, abor-da Deus e suas obras. No v. 3 o salmista lembra que “a justiça de Deuspermanece para sempre”. E, nos vv. 5 e 9, lê-se: “[Deus] lembrar-se-ásempre de sua Aliança...e enviou ao seu povo a sua redenção; esta-beleceu para sempre a sua aliança...”.

Em Lucas 2.25-40, notamos esta mescla litúrgica entre os dois na-tais. Simeão, zeloso nos costumes judaicos, aguardava a “consolaçãode Israel”. E, movido pelo Espírito, tomando Jesus nos braços, lembraque a “consolação de Israel” é também a “salvação preparada dianteda face de todos os povos; luz para epifania dos gentios”.

O TEXTO E SEU CONTEXTO

CONTEXTO

Isaías dirige os capítulos 39-66 de seu livro à futura comunidadeexílica. O objetivo desta seção do livro é duplo: 1. fortalecer a fé dosexilados na justiça do Deus UNO que é fiel e justo para salvar o povoescolhido; 2. alertar contra a idolatria.

No contexto imediato, os capítulos 44 e 45 repetem seis vezes aafirmação “Eu, Iahweh, sou Deus, e além de mim não há outro” (44.6,8; 45.5, 6, 14, 21). Isaías contrapõe a idolatria e suas conseqüênciafunestas com a fidelidade de Deus à Aliança firmada com Seu povo. Ocapítulo 45 começa com a comissão dada a Ciro1 e Deus realizandoalgo incomum: utilizando um estrangeiro para ´libertar´ Israel. Alémdisso, Isaías lembra que a ´justiça de Deus´ e o Reino da Graça nãose dirigem somente a Israel, mas a todos os povos.

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O TEXTO

V. 22: cvy - “Salvar, libertar”: Primordialmente, o termo possuíasignificado estritamente material. Denotava a ação de Deus em liber-tar o povo de um inimigo externo. Depois, cvy recebeu o significadoteológico de ´libertar do pecado’, sendo atrelado e tornando-se para-lelo ao termo “Justiça”. Em Is 45.21 já se nota este paralelismo: “Deusé Justo e Salvador”.2

Para Isaías, a salvação de Deus revela-se na justificação do povopelo sofrimento do Servo do Senhor.

Is 45.22, junto de Gn 12.1-3, Êx 19.5-9 e Is 49.6 podem ser consi-derados a Grande Comissão do Antigo Testamento: “e sejam salvastodas as extremidades da terra”. É esta noção de ´graça universal´que Simeão evoca em seu cântico. 3

V.23: yTi[.B;v.nI – O termo ‘jurar’ relaciona-se com ‘sheba’ (sete). Con-sidera-se que, ao jurar, os hebreus comprometiam-se com ‘sete coi-sas’. Por exemplo, Abraão dá sete cordeiros no juramente entre ele eAbimeleque.4 Na cultura semita, jurava-se por alguém que era consi-derado mutuamente maior e mais precioso do que aquele que faz ojuramento. Como não há ninguém maior do que Deus, Ele jura por simesmo5 (Hb 6.13). E, sua ‘Palavra não volta atrás’6.

O juramento de Deus evoca sua fidelidade. Ele nunca deixará decumprir suas promessas. Essa fidelidade se revela em sua Justiça emser fiel à Aliança de abençoar em Abraão todas as famílias da terra.

Mas, a salvação/justiça de Deus também guarda uma séria amea-ça: todos os joelhos se dobrarão diante de Deus e toda lingua ‘jurará’[que só Deus é o Senhor].7 No dia de Iahweh, o ato será para unshomologação da salvação e, para outros, reconhecimento da conde-nação. Pode-se ver aqui uma antecipação da profecia de Simeão dita àMaria: “Eis que este menino está destinado tanto para a ruína comopara livramento de muitos...” (Lc 2.34b).

1 Se considerarmos a autoria única do livro, calcula-se que Isaías escreveu os capítulos39-66 cerca de 150 anos antes do nascimento de Ciro.2 Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova,1999. Cf. Is 1.27: “Sião será redimida pelo direito, e os que se arrependem pela justiça”.3 Lc 2.30-32: “pois os meus olhos viram a tua salvação, a qual preparaste diante da facede todos os povos e luz para epifania dos gentios”.4 Cf. Gênesis 21.5 Deus também jura por si mesmo ao reafirmar sua Aliança com Abraão, após o teste dosacrifício de Isaque.6 O v.23 é paralelo a Is 55.11: “assim será a palavra que sair da minha boca: não voltarápara mim vazia, mas fará o que me apraz e prosperará naquilo para que a designei.”7 Cf., Rm 14.11, Fp 2.10-11.

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V. 24: hqdc. – “Justiça”. Em Isaías, o termo recebe o significado de“Deus proteger e livrar o povo com o qual possui Aliança”. Como ex-pressão do poder de Deus, a sua justiça significa que, devido à suafidelidade, Ele vindica e salva seu povo”8 Devido a essa ênfase na Ali-ança, a justiça divina se transforma em fidelidade às promessas. Deusé justo ao ser fiel!

Neste versículo, o termo justiça e força formam um binômio interes-sante. O termo z[ow (força) denota uma ação concreta, material. É ‘energiadinâmica’ e não potencial. Assim, Isaías transmite a idéia de que so-mente Iahweh possui a força (energia) de exercer justiça/salvação.

É esta mesma força que “traz à vergonha pública”9 todos os que se“incendeiam em raiva” contra Deus.

V. 25: Um dos objetivos dos capítulos 39-66 de Isaías é manter aesperança do livramento viva entre os judeus exilados. Por isso, otermo ‘remanescente’ recebe valor diferenciado. Ao saber que a “todaa semente de Israel será justificada”, os exilados são animados a per-severar na fé em Iahweh e resistir à idolatria. É esta bela esperançaque motiva o povo a confiar em Deus e esperar pelo dia da volta àterra natal para a reconstrução do Templo.

Como previsto no significado de hqdc., “justiça”, o fruto da açãosalvífica e justificante de Deus é exultação/júbilo do povo salvo.

Sobre o júbilo como fruto da salvação efetuada por Iahweh, Pauloem outra perícope deste domingo escreve: “Habite ricamente em vós apalavra de Cristo; instruí-vos e aconselhai-vos mutuamente em toda asabedoria, louvando a Deus, com salmos, e hinos, e cânticos espirituais,com gratidão, em vosso coração (Cl 3.16)”.

COMENTÁRIOS HOMILÉTICOS

A lei-moléstia do texto encontra-se no contexto histórico de nossotexto. Isaías 45.22-25 destina-se ao povo exilado que viveria cercadode tentações idólatras presentes nas terras babilônicas e, mais tarde,medo-persas. O profeta ensina: “Todos os artífices de imagens...nãosão nada, e a suas coisas...são de nenhum valor,”10 e “nada sabem osque carregam o lenho das suas imagens de escultura e fazem súplicas

8 id. ibid. p. 1265.9 Vwbo é muitos mais do que ´envergonhar´. O idéia do verbo é “trazer à vergonha /fazer cairem desgraça” , o que enfatiza o sentido de desgraça pública.

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a um deus que não pode salvar.” 11 A idolatria é totalmente improduti-va! Não há outros deuses capazes de salvar!

De certa forma, a Igreja, o povo de Deus, vive no exílio atualmente.“Aqui nós vivemos distantes do lar” e cercados de tentações à idola-tria. Na época de Lutero, o grande Baal era Mamôn. Hoje, Baal mudoude nome. De forma subversiva, a ditadura do ‘politicamente correto’procura dobrar os joelhos cristãos diante de valores anti-bíblicos. Re-traídos pelo medo, nosso testemunho e pregação tornam-se ‘espadasde algodão’ ou dicas de ‘auto-ajuda’, incapazes de mostrar a realidadedo pecado e a podridão resultante. Falta-nos a coragem de João Ba-tista. O grande Baal moderno é a relatividade da verdade e a ditadurado ‘politicamente correto’.

Isaías nos faz recordar que ‘nesse deusinho aí’ não há salvação,nem consolo. Pois, “só Iahweh é Deus e nenhum outro”. O primeirodomingo após Natal é dia propício para proclamar com coragem a jus-tiça de Deus nos dois natais. Devemos vibrar de júbilo e proclamar onascimento do “consolo de Israel” e da “luz dos gentios”. O meninoJesus, Servo do Senhor, é o cumprimento da promessa que ‘Deus porsi mesmo jurou’ a Abraão. Em Cristo, a justiça de Deus se revela tantoaos judeus como a toda extremidade da terra.

Por isso, impulsionados pela força dinâmica de Deus, somos capa-zes de proclamar com ímpeto a justiça de Deus em ser fiel à Suapromessa nos dois Natais: 1. Aos gentios: “Voltem-se para Deus esejam salvos todos os povos da terra, porque Iahweh é Deus e ne-nhum outro. Cristo, o menino-Deus, é a luz dos povos!” e 2. aosjudeus: “No Senhor será justificada a semente de Israel. O ‘consolode Israel’ já veio para redimir a todos e para a glória de Seu povoIsrael.”

O resultado da justiça de Deus em nossas vidas é mais coragempara dobrar os joelhos diante de Cristo, confessar que só Ele é o Senhor eexultar a Deus com nossas vidas. O júbilo é fruto da ação salvífica deDeus em nossas vidas.

10 Is 44.9a11 Is 45.20

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PROPOSTA HOMILÉTICA

Tema: A Justiça de Deus brilha no menino Jesus

I – que justifica toda a semente de Israel (v.45)Moléstia: Época do exílio o povo vivia cercado de idolatria.1. Hoje: a ‘tentação idólatra’ é calar-se para ser ‘politicamente cor-

reto’.Evangelho: Deus foi fiel à Aliança (Sl 11.5-9).a. Povo no exílio encontrou forças ao confiar no juramento que Deus

fez. “Somente no Senhor há justiça e poder...toda a semente de Israelserá justificada” (vv. 24-25).

b. Nós encontramos forças em Deus, “que é fiel e justo para nosperdoar e nos purificar de toda injustiça.” O ‘consolo de Israel’ espera-do por Simeão é nosso consolo também!

II – pois só Ele é Deus e nenhum outro.Moléstia: Isaías alertava o povo exilado acerca do perigo da idola-

tria: “nada sabem os que...fazem súplicas a um deus que não podesalvar” (45.20).

1. Hoje: Além da adoração de imagens, deve-se ter cuidado com osfalsos profetas que ensinam o povo a confiar em ‘rosas milagrosas’ eoutras relíquias ditas ‘evangélicas’.

Evangelho: Deus convida: “Virem seus olhos para mim e sejam sal-vos” (v.22) .

a. Hoje: Deus nos ilumina com sua Justiça. Jesus veio ao mundorevelar o amor do Pai e sua fidelidade à Aliança. Nenhum outro podenos justificar, somente Iahweh.

CONCLUSÃO

Pela Justiça de Deus revelada no Natal, todos os povos da Terra sedobrarão e confessarão que Jesus é o Senhor e louvarão a Deus (Is45.25 e Cl 3.16).

Mário Rafael Yudi Fukue Passo Fundo, RS

PRIMEIRO DOMINGO APÓS O NATAL

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SEGUNDO DOMINGO APÓS NATALJoão 1.1-18

O Verbo (Palavra) se tornou umser humano e morou entre nós (v.14)

CONTEXTO (CENÁRIO LITÚRGICO E HISTÓRICO)

O Prólogo Joanino (Jo 1.1-18) é um “tratado teológico” sobre a di-vindade de Jesus, bem como um resumo de todo o evangelho queproclama tal mensagem. O tema central do livro está em 1.14: “O Ver-bo (Palavra) se tornou um ser humano e morou entre nós”, cujo enfoquepode ser aplicado diretamente ao Natal recém comemorado.

O pano de fundo do pensamento e da linguagem de João pode serencontrado no Antigo Testamento, onde a “palavra de Deus” indicaDeus em ação, seja na criação do mundo, na revelação de sua vonta-de bem como na libertação de seu povo. O prólogo de João parecetambém levar em conta o gnosticismo, que pregava a total separaçãoentre Deus e a matéria, negando a humanidade de Cristo, a encarnaçãode Deus e a ressurreição. A salvação, de acordo com os gnósticos,seria conseqüência do conhecimento. João aborda a questão do co-nhecimento ligado à salvação, contudo, fala do conhecimento de Deusatravés do verbo encarnado, Jesus Cristo (17.3).

TEXTO: ÊNFASES, EXPRESSÕES QUE SE DESTACAM, ANÁLISE

O objetivo primeiro do evangelho de João foi expresso por ele mes-mo no capítulo 20.31, onde escreve: “Estes, porém, foram escritos paraque creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo,tenhais vida em seu nome”. João enfatiza que o conhecimento deJesus e de suas obras conduzem à verdadeira fé em Deus e esta féproduz vida espiritual e eterna naquele que crê. Apenas alguns dostantos conceitos importantes presentes no prólogo joanino poderãoser aqui analisados:

Verbo (Logos): traduzido como “Verbo” ou “Palavra”, expressa “apalavra em ação”. João parece querer mostrar que tudo o que foi re-gistrado no evangelho, desde o episódio de João Batista batizando norio Jordão até as aparições de Jesus depois da ressurreição, são umaprova viva de como a Palavra eterna de Deus tornou-se carne, paraque toda a humanidade pudesse vir a crer e a viver Nele. Logos tam-

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bém foi uma palavra-ponte através das quais pessoas educadas nafilosofia grega (século II) foram conduzidas ao Cristianismo joanino.Quando João diz que “o verbo se fez carne” aponta para a realidadehistórica de Jesus, afirmando que Deus se tornou um ser humano real,tal como nós.

Luz (vv.4,5,7,8 e 9): João se refere a Jesus como a luz que dissipaa escuridão do pecado e da descrença; o termo está ligado à ilumina-ção espiritual que marca o novo nascimento. A luz sempre será maisforte que as trevas, ou seja, a verdade e a bondade encarnadas emJesus sempre vencem a maldade e a falsidade daqueles que estãoafastados da luz de Cristo. Cristo é a luz que ilumina a todos (v.9), semdistinção, o que nos remete ao resumo de todo evangelho bíblico, ex-presso em Jo 3.16.

Testemunho: é outro dos grandes temas que transversalizam oevangelho de João. Abrange o testemunho do Pai (5.32,37 e 8.18), doFilho (8.14,18) e do Espírito (15.26), bem como das obras de Cristo(5.36 e 10.25), das Escrituras (5.39) e dos discípulos (15.27). Todosestes testemunhos têm a grande finalidade de levar as pessoas a crerem Jesus como verdadeiro Deus e Salvador, objetivo final do evange-lho (20.31).

“Morou entre nós” (v.14): Para M.J. Harris eskenosen (v.14) signifi-ca o tabernáculo, a localidade da presença de Deus na terra (AT), emque se faz presente entre os seres humanos; já no NT, isto é feitoatravés da pessoa de Jesus Cristo. Portanto, onde estiver Cristo, aliestará Deus. Literalmente o texto diz: “A Palavra se fez carne e mon-tou sua tenda no meio de nós!”. O conceito de glória (doxa) também éimportante na relação do Deus do AT com o Deus do NT. A mesma glóriaque foi revelada a Moisés (Êxodo 33.18ss.) é revelada agora a todospor meio de Jesus.

PARALELOS, PONTES E PONTES DE CONTATO

Há textos paralelos importantes que auxiliam na compreensão doprólogo joanino. Os versículos 1-3, que afirmam a pré-existência deJesus com o Criador e sua participação na obra da criação (a relaçãocom Gênesis 1 é explícita), são corroboradas por Paulo em Colossenses1.16ss. Outros textos de contato são Hb 1.2 e Ap 3.14. Já o conceitode vida no v.4 e 13 precisa ser visto, além do significado de uma novavida espiritual (o novo nascimento expresso em Jo 3: Jesus eNicodemos), mas também sob a perspectiva de Jo 5.19-29, em queJesus tem a mesma autoridade do Pai para dar a vida aos outros,apontando para a ressurreição do mortos e a vida eterna aponta para

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a ressurreição de Lázaro em Jo 11.38ss. Entre os demais textos dodia algumas pontes de contato são: Salmo 147.12-20: Aponta parao louvor a Deus, Criador e Mantenedor deste mundo, cujas ordens(Palavra) são obedecidas por toda a natureza e criação, que nadamais são do que uma expressão da própria palavra de Deus. Is 61.10– 62.3: Aponta para o Louvor a Deus que providenciou salvação atodas as nações. Ef 1.2-6, 15-18: Reafirma-se neste texto a relaçãoíntima entre Deus Pai e Jesus Cristo na missão redentora da humani-dade e a necessidade de conhecermos este Deus com profundidadepara recebermos as suas bênçãos.

SUGESTÕES HOMILÉTICAS (ASSUNTO, OBJETIVO,TEMA, DESDOBRAMENTOS)

Tema: Jesus, o Verdadeiro Deus, morou entre nós (v.14).1. Para que a luz e a glória divina brilhassem sobre nós (vv. 4 e

14).Jesus é a representação viva do poder e da glória de Deus. Ele nos

mostra quem é o nosso Deus, Criador e Preservador de todas as coi-sas. Este Deus poderoso se aproxima e mora entre nós, se torna ínti-mo dos seres humanos. Deus se dá a conhecer a nós e compartilhaconosco de sua luz e de sua glória.

2. Para que, em Cristo, nos tornássemos filhos de Deus (v.12).A obra da salvação está ligada ao amor de Deus Pai, que vem mo-

rar entre nós em Jesus, seu Filho e por meio dele nos convida a fazerparte de sua família. Jesus é o mediador da salvação, mas não originadordela (Cl 1.20, 2 Co 5.19). Jesus estabelece a ponte segura entre Cria-dor e criatura.

3. Para nos abençoar com as riquezas do seu amor (v.16).Como um pai amoroso que zela pelo bem-estar de sua família, ao

morar entre nós, Deus nos convida a usufruir das bênçãos advindasde sua proteção e cuidado.

4. Para que também nós nos tornássemos suas testemunhas (v.7).Assim como Deus enviou a João Batista para dar testemunho da luz

e da verdade, para ser a “lâmpada que ardia e iluminava” (Jo 5.35),cada um de nós também é chamado para ser esta lâmpada. Para que“as pedras não clamem” (Lc 19.40) é necessário que nós, cristãos,também proclamemos que Deus, em Jesus, morou entre nós e quequer morar no coração de tantos que ainda não o conhecem verdadei-ramente.

Thomas HeimannSão Leopoldo, RS