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Carrero sobre Mario de Andrade Edição 02 | Novembro 2012 www.portalliteral.com.br www.portalliteral.com.br Revista do Portal Literal Oficina Poética com Carlito Azevedo

Revista Literal n. 02

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Carrero sobre Mario de Andrade

Edição 02 | Novembro 2012www.portalliteral.com.br

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Revista do Portal Literal Oficina Poética com Carlito Azevedo

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Patrocínio

EXPEDIENTE

RealizaçãoConspiração Filmes

Produtor ExecutivoLuiz Noronha

CuradoriaHeloisa Buarque de Hollanda

CoordenaçãoElisa Ventura

Editor (site)Ramon Mello

Co-editora (site)Manoela Sawitzki

Revista Portal Literal n. 2

Editor (revista eletrônica)Bruno Dorigatti

ColaboraçãoCássio Loredano (caricaturas)Christiano Menezes (foto capa)Julio Sekiguchi

Oficina LiteráriaCarlito Azevedo (Oficina Poética)

Direção de Arte e DesignRetina78

AgradecimentosCássio Loredano, pela cessão das caricaturas que ilustram esta edição.Julio Sekiguchi, pela cessão da obra que ilustra esta página.Raimundo Rodriguez, pela cessão da obra Linha de Chegada, que ilustra a capa desta edição.

www.literal.com.br

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Raimundo Carrero sobre MÁRIO DE ANDRADE

Apresentação porHELOISA BUARQUE DE HOLLANDA

OFICINA POÉTICA com Carlito Azevedo

1.

2.

Revista do Portal Literal

pg 08

pg 11

pg 12

pg 87

Detalhe da obra Desvio para Pintura II (14 x 19 x 9 cm), de Julio Sekiguchi

A Revista Literal foi licenciada com uma Licença Creative Commons - Atribuição - Não Comercial - Compartilha Igual 3.0 Não Adaptada. 2012

http://creativecommons.org.br

©

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BEM LITE-RAL

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BEM LITE-RAL

HELOISABUARQUE

DE HOLLANDAOficina da Palavra

O Portal Literal nasceu no início deste século, mais precisamente em dezembro de 2002. Estávamos num momento de especial encantamento com as perspectivas da litera-tura na internet, sua prática descentralizada, um horizonte ainda por ser explorado em mil possibilidades expressivas. Portanto, um lo-cus perfeito para o acesso ampliado da obra de autores já reconhecidos e da hospedagem da palavra dos novíssimos dividindo entre si o mesmo espaço e tempo.

Nessa época, juntaram-se Luiz Noronha, da Conspiração Filmes, Ferreira Gullar, Lygia Fagundes Telles, José Rubem Fonseca, Luis Fernando Verissimo e Zuenir Ventura para uma incursão literária nos labirintos www, com o patrocínio da Petrobras, parceira des-de o início do projeto. Fui convidada para ser curadora do Portal, convite que aceitei ime-diatamente, sem nenhuma hesitação.

Daí para frente, desenrolou-se uma histó-ria linda de namoro, confronto e negociação entre a palavra literária e o potencial daquele novo espaço, ainda nebuloso. Cada autor me-receu um site personalizado, feito a muitas mãos, num trabalho experimental de plata-formas e modelos que pudessem expressar os muitos sentidos da obra de cada um. O Portal foi lançado numa grande festa pré-réveillon

no Museu de Arte Moderna, no Rio de Janeiro. Estava fincada a bandeira da literatura brasi-leira em terras ainda não colonizadas.

Além dos autores titulares do Portal Lite-ral, foi criada, por sugestão de Luiz Noronha, jornalista tarimbado, uma revista literária totalmente online e atualizada diariamente. O nome escolhido para a Revista foi Idiossin-crasia, consensualmente considerada a perfei-ta tradução da atmosfera do campo literário. Brincadeira ou não, o nome pegou e transfor-mou-se numa marca forte da presença da lite-ratura brasileira na internet.

Vários editores passaram pela nossa Idios-sincrasia. Luiz Fernando Vianna, o primeiro, que deu o tom editorial que a revista manteve duran-te todos esses anos. Em seguida, vieram Cristiane Costa, com sua paixão pelo livro, Cecilia Gianetti que ajustou com olho certeiro o ethos literário ao universo nerd, Bruno Dorigatti, ligado em pautas inovadoras, Bolívar Torres, e, finalmente, Ramon Mello e Manoela Sawitzki, poeta e escritora, que chegam agora com força total.

Nesses 10 anos, o Literal teve muitas idas e vindas. O compromisso de acompanhar a evo-lução acelerada do ambiente virtual fez com que mudássemos o perfil do Portal mais vezes do que previmos. O Portal Literal focou pro-gressivamente na agilidade da internet trazen-do a informação antes que ela se consolidasse em notícia, agregou várias plataformas como a Rádio Literal, a TV Literal, as plataformas transmídia, ofereceu oficinas literárias e final-mente reformulou sua navegação para forma-tos 2.0, mais participativos e capazes de abri-gar a palavra e a criação de seus leitores.

Foi uma longa jornada. Agora, oferecemos mais uma surpresa no território da palavra. Lançamos, como consolidação destes 10 anos de trabalho, quatro números especiais da Revista Literal, com a curadoria de Bruno Dorigatti e o design da Retina78, que oferece em formato de aplicativo uma primeira sele-ção do nosso acervo.

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Mário de AndradeCriador de Oficinas

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OFICI-NAS

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Criador de oficinas

Costuma-se dizer que as oficinas de criação literária nasceram, no Brasil, com Cyro dos Anjos – o festejado autor de O amanuense Belmiro, em torno de sessen-ta, sessenta e um, do século passado, na Universidade de Brasília, então fundada por Darcy Ribeiro, se não me engano, o seu primeiro reitor. É claro, sim, em sala de aula. Está certo. Não se discute. O mineiro Cyro era um estudioso e tanto da arte da ficção.

Por Raimundo CarreroPublicado originalmente em abril de 2010

OFICI-NAS

MÁRIO DE ANDRADE

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Mas me parece – sem contestar, sem brigar – que o criador mesmo das oficinas literárias no Brasil foi e é o mestre Mário de Andrade. Lembrei-me dele enquanto lia a matéria de Fernando Portela, na Revista da Cultura – da Livraria Cultura, deste bandeirante chamado Pedro Herz – sobre este assunto tão polêmico e tão apaixonante. Numa época em que o Correio gastava semanas e semanas para entregar uma carta, o escritor paulista – notável em toda a sua dimensão – se debruçava sobre livros que recebia, também pelo lento Correio, e exami-nava palavra por palavra.

Assim aconteceu com Fernando Sabino. A correspondência entre os dois – Cartas a um jovem escritor, publicada pela Edito-ra Record, em 1981 – é um desses grandes documentos de aprendizagem. De respeito e de determinação. Li ardentemente essas pá-

ginas, quase que dormia com elas sob o tra-vesseiro, acordava pela madrugada para re-lê-las. Me colocava humildemente diante de cada palavra. Alguém estava dizendo como é que se escreve, com a maior generosidade. Discutia cenas, capítulos, situações, indicava leituras, planejava.

Na primeira carta, por exemplo, Mário diz algo que deve ser reproduzido por todos os aspirantes a escritor, e até por escritores consagrados, e disposto sobre a mesa de tra-balho, de preferência na parede à frente: “Se você não fizer coisas maravilhosamente bem feitas como técnica, como estilo, como arte de escrever, como bom gosto espiritual, você será apenas mais um”. Sem pretensão, sem vontade de ultrapassar o lugar comum, sem um grande esforço diário, nada se consegue. A primeira grande aula de Mário, criador de oficinas.

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Oficina Poética com

Nascido no Rio de Janeiro em 1961, Carlito Azevedo é editor, crítico e poeta, autor de Collapsus linguae (Lynx, 1991), vencedor do Prêmio Jabuti de Poesia em 1992, As banhistas (Imago, 1993), Sob a noite física (7Letras, 1996), Sublunar (7Letras, 2001) e Monodrama (7Letras, 2009). Edita a revista de poesia Inimigo Rumor e ministra oficinas literárias na Uerj.

Oficina publicada originalmente entre dezembro de 2005 e maio de 2006.

CARLITO AZEVEDO

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Enrique Vila-Matas (1948)

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O escritor espanhol Enrique Vila-Matas “entrou” para a literatura de uma forma mui-to especial.

Logo nos primeiros anos de colégio, apai-xonou-se por uma daquelas adolescentes lin-das e inalcançáveis que só quem já foi ado-lescente apaixonado sabe como é difícil (e necessário) alcançar.

Traçou um plano.Copiou numa folha de caderno um poema

do grande lírico espanhol Luis Cernuda, ten-do, contudo, o cuidado de inserir, no meio do poema, um verso de sua própria autoria. Ofe-receu-o à moça.

No dia seguinte, quando recebeu os calorosos cumprimentos da, já não tão inacessível, jovem, pode compensar a sensação de fraude com a de-liciosa sensação de que, em verdade, uma peque-na parte daqueles elogios era de fato merecida, já que era autor de um dos versos do poema.

Na semana seguinte: a mesma estratégia e outro poema de Luis Cernuda foi copiado no

caderno, agora “infiltrado” por dois versos do próprio Vila-Matas.

Novos cumprimentos, e uma sensação cada vez maior de merecimento.

A coisa seguiu assim até que a moça, total-mente conquistada, já recebia poemas inteiros de Vila-Matas, sem a presença, agora incômo-da, de Luis Cernuda.

A moça passou, mas Vila-Matas nunca mais abandonou a literatura. Embora, após a ado-lescência, tenha trocado a poesia pela prosa. Inclusive porque sempre há outras musas a conquistar, a quem dedicar poemas... algumas de nomes muito conhecidos: “Glória”, “Revolu-ção”, “Verdade”... Voltaremos a falar delas.

•••

É uma pena que nem a jovem e nem Vila-Ma-tas tenham guardado os “originais” desses po-emas. Assim teríamos uma idéia mais clara de como o autor de Bartleby e companhia foi afir-

Poema em prosa, poesia e pintura, poesia e cinema, monólogo dramático, enumeração caótica na poesia moderna. Carlito Azevedo apresenta os temas da oficina e sugere o “procedimento Vila-Matas” para a criação poética.

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mando sua própria voz no meio do cânone, re-presentado ali pela grandeza de Luis Cernuda.

Afirmar sua própria voz em meio a uma tra-dição de tão poderosos solistas, os Baudelaire, os Drummond, os Shakespeare, as Ana Cristina Cesar, os César Vallejo, os Paulo Leminski, as Emily Dickinson etc., não é brincadeira...

Não é brincadeira, mas Borges conseguiu, Thomas Bernhard conseguiu, Czeslaw Milosz conseguiu, Paulo Henriques Britto conseguiu, Lu Menezes conseguiu... e não importam aqui hierarquizações do tipo “quem é mais impor-tante que quem”... Deixemos essa ociosa tarefa para os que acham alguma graça em hierarqui-zar coisas que podem muito bem ser vistas de uma perspectiva não-hierárquica...

Num de seus textos mais interessantes, T. S. Eliot dizia que toda vez que encontrava um su-jeito que gostava de absolutamente “todos” os autores bons, e desprezava absolutamente “to-dos” os autores “não-bons”, sentia que estava diante de alguém que era mais um “bom aluno” do que um verdadeiro amante da poesia... Al-guém que aprendeu tudo direitinho...

Para ele, o sujeito realmente apaixonado por poesia deveria desgostar de pelo menos um poeta maior, daqueles que todo mundo gosta... e deveria, por algum motivo misterio-so, trazer bem dentro do coração algum poeta menor, daqueles que ninguém gosta...

Porque na poesia acontece um pouco como no amor. Você tem todos os motivos para gostar

Jorge Luis Borges (1899-1986)

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daquela pessoa que seria perfeita pra você... mas não gosta... Ao invés disso, adora aquele ser que todos dizem (e você bem sabe) que não presta...

Não se incomodem portanto se os exercí-cios, aulas ou módulos colocarem em absolu-ta convivência democrática nomes como Ezra Pound e Charles, Mallarmé e Heitor Ferraz, João Cabral e Adília Lopes... O coração de quem ama poesia tem lugar para todos...

Como diz o poema “A acácia-meleira rosa”, do poeta norte-americano William Carlos Williams, um grande poeta que inventou seu lugar no meio da mais esplendorosa geração de poetas dos Estados Unidos:

“E assim, como esta flor,eu persevero –pela importância que isso possa ter.Não sou,e bem o sei,na galáxia dos poetasuma rosa,mas quem, entre os demais,me negaráo meu lugar.”

•••

Poesia?O que você quer exatamente com ela?Qual o nome da musa que te interessa?Glória?Revolução?Verdade?

“Glória” eu não recomendo. Dá atenção de-mais ao que os outros dizem.

“Revolução” também não. É o tipo de garota que no final pode se voltar contra você. Mesmo sabendo que você daria a vida por ela.

Quanto à “Verdade”... bem que poderia acu-sá-la de falta de imaginação. De viver copiando os outros. De viver dizendo o que é certo e o que é errado. Sem falar que seus dois irmãos, “Realismo” e “Naturalismo”, são dois sujeitos fortões que não permitem a menor liberdade com “Verdade”. Mas acho que o golpe fatal que pode ser dado nessa garota é outro: com o tem-po, sempre é desmentida.

Mas não fique assim, desanimado... repare naquele outro grupinho, o das “garotas más”: “Mentira”, “Fantasia”, “Invenção”... e no grupo de “rapazes maus”: “Logro”, “Fingimento”, “Fal-so Testemunho”... Essa turma é boa...

É claro que não são coisas que você vai querer encontrar na chamada “vida real”. Mas para a “vida simbolizada”, aquela dos poemas, dos contos, dos romances, são ingre-dientes fantásticos.

•••

Alguém pode perguntar assim: “Mas quer dizer então que aquele pungente e emocionan-te sentimento que encontramos, por exemplo, num poema belíssimo como “Algo preto”, no qual o francês Jacques Roubaud fala do desa-parecimento de sua esposa, é fingimento?”

De jeito nenhum.Mas pense bem. Se você descobrisse que

aquilo era uma invenção do Roubaud, que nun-ca houve essa esposa... que era tudo ficção... o poema seria menos “belíssimo”?

Ou melhor: é menos belíssima por ser in-ventada a história de Anna Karenina? A his-tória e o final trágico de Madame Bovary são menos pungentes por sabermos que Madame Bovary nunca existiu, ou, como dizia Flaubert, Madame Bovary era ele?

Em que melhoraria um poema como “A má-quina do mundo” se soubéssemos que Drum-mond realmente palmilhava uma estrada de Minas, pedregosa, quando para ele abriu-se a máquina do mundo?

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Um dos poemas mais famosos do roman-tismo francês é “O lago”, de Lamartine, que dizia tê-lo escrito de um jato, fulminado por uma inspiração, quando caminhava à beira de um lago. Depois de sua morte, pesquisadores encontraram, entre os seus papéis, rascunhos que atestam que o poema levou um bom tem-po, no mínimo quatro meses, entre seu nas-cimento e sua versão final... muito diversa da primeira...

Devemos gostar menos do poema por cau-sa disso?

Se você disse sim, então talvez você goste me-nos de poesia do que de processos mediúnicos... Tem gente que não acha graça nenhuma no fato do homem ter colocado um foguete de centenas de toneladas na lua, e tê-lo trazido de volta... mas basta alguém lhe dizer que presenciou um copo que se movia sozinho sobre uma mesa de viden-te que cairá de joelhos maravilhado...

Se você está escrevendo um romance, um poema ou um conto, não importa se o que está narrando aconteceu ou não... O importante é saber se em algum momento, para ser mais “fiel” ao fato real, você aceitou desligar a chave da imaginação... isso sim é imperdoável...

•••

Cabe, aliás, perguntar: será verdadeira aque-la história contada por Enrique Vila-Matas?

•••

Bem, se você chegou até aqui, parece que está preparado para o jogo da oficina literária. E como todo jogo, este deve começar com as regras sendo muito bem esclarecidas.

A oficina será composta por dez módulos (au-las). Em cada módulo apresentaremos um tema específico (por exemplo: o poema em prosa, po-esia e pintura, poesia e cinema, monólogo dramá-tico, enumeração caótica na poesia moderna etc.).

Tomemos como exemplo o caso do poema em prosa.

Contaremos um pouco do nascimento, de-senvolvimento e evolução do gênero “poema em prosa”. Depois comentaremos alguns poe-mas em prosa, desde os Pequenos poemas em prosa, de Baudelaire, até os atuais, que ates-tam a permanência do interesse dos poetas contemporâneos pelo gênero (como exemplo cito aqui o livro As coisas, de Arnaldo Antu-nes, todo composto por poemas em prosa). O interessante é se perguntar porque é que os poetas, em dado momento (que dura até hoje) acharam que o verso já era muito pouco para a poesia, que esta necessitava de um outro tipo de expansão...

Daremos sugestões de leitura crítica sobre o tema, para aqueles que desejarem se apro-fundar no assunto.

E, é claro, pediremos que escrevam poemas em prosa. Com sugestões técnicas que podem ser seguidas ou não. Em geral serão sugestões que ajudem a quebrar a rigidez dos modelos... afinal, ninguém está aqui para ser um bom alu-no, todo mundo está aqui querendo escrever poemas, falar sobre poesia...

•••

Na verdade, nosso processo será um pouco como o do Vila-Matas, exposto nos primeiros parágrafos deste texto.

Mas não é sempre assim?Lembram do episódio Bíblico (Gênesis, 18),

quando Deus queria destruir Sodoma?Abraão intercedeu pela cidade, dizendo que

se houvesse cinqüenta justos na cidade, eles não poderiam pagar pelos injustos.

Deus aceita não destruir a cidade se encon-trar ali cinqüenta justos.

Abraão depois fala em quarenta e cinco, depois quarenta, depois trinta, e no final fica combinado que a cidade seria salva se ali hou-vesse dez homens justos.

Pois bem. Digam-me se não foi inserindo a própria voz e poesia nessa história tão anti-ga que Jorge Luis Borges escreveu seu poema “Os justos”:

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Um homem que cultiva seu jardim, como queria Voltaire.O que agradece que na terra haja música.O que descobre com prazer uma etimologia.Dois empregados que num café do Sur jogam um silencioso xadrez.O ceramista que premedita uma cor e uma forma. O tipógrafo que compõe bem esta página, que talvez não lhe agrade.Uma mulher e um homem que lêem os tercetos finais de certo canto.O que acaricia um animal adormecido.O que justifica ou quer justificar um mal que lhe fizeram.O que agradece que na terra haja Stevenson.O que prefere que os outros tenham razão.Essas pessoas, que se ignoram, estão salvando o mundo.

(O talento de Borges foi o de, respeitando integralmente a essência da questão – ou seja: alguns homens justos podem salvar o mundo – , colocar muita coisa que não havia na his-tória original... por exemplo: a idéia de que os salvadores do mundo são homens simples, que fazem coisas simples, e nem se conhecem... es-ses é que estão salvando o mundo, e não aque-les famosos “salvadores da pátria”, os “Grandes Heróis” que se arvoram em “Grandes Heróis”, políticos, militares, homens públicos... Voltare-mos a falar nesse poema na aula-módulo “enu-meração caótica na poesia moderna”, de que ele constitui ótimo exemplo.)

•••

Esta primeira aula eu acho que contou mais como uma exposição de motivos, não é? Mas penso que abordamos questões importantes. De todo modo, se você já quiser um exercício

ou sugestão para um poema, que tal usar o “procedimento Vila-Matas”?

Pegue um poema de algum poeta de sua preferência e insira nele uma estrofe inteira de sua autoria... depois, pegue sua estrofe e faça o seu próprio poema... podemos considerar que os poetas nascem uns dos outros, e que do ca-sulo de um sai a borboleta de outro... Não se prenda a questões como “angústia da influên-cia”, “atentado à originalidade”... tente só se di-vertir um pouco...

Até breve...

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Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)

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Uma das definições mais conhecidas de “poesia lírica” afirma que ela é “a expressão do EU do poeta”.

Mas o que fazer com tal definição hoje, de-pois do tal “EU” ter passado, nos séculos 19 e 20, pelo bombardeio pesado da psicanálise, da lingüística e da filosofia?

Se ele (ou seja, o “EU”) não desapareceu to-talmente, como proclamaram com certa afoi-teza os que consideravam que o poema era escrito metade pela linguagem e metade pela sociedade (na qual o poeta teria a função de ser uma espécie de “impressora”), depois des-se bombardeio ele perdeu muito de sua pose, de sua pretensão. De “inalterável” e “sempre idêntico a sim mesmo” passou a ser “variável e ambíguo”. De “íntegro e indivisível” passou a ser “fragmentado, estilhaçado”.

Carlos Drummond de Andrade se deu conta disso e batizou uma seção de sua Antolo-gia poética de “Um Eu todo retorcido”, imagem que não deixa de lembrar aquelas estátuas

derretidas, retorcidas, quebradas, destruídas, das cidades bombardeadas na Segunda Guerra Mundial, estátuas que antes ostentavam, em bronze e mármore, uma olímpica pretensão de eternidade.

Os poetas mais sensíveis não deixaram de apresentar, em seus poemas, as feridas e es-coriações dessa batalha. No poema “Últimos dias”, o próprio Drummond escreveu o famoso verso: “Adeus, composição que um dia se cha-mou Carlos Drummond de Andrade”. Ferrei-ra Gullar escreveu um “Réquiem para Gullar” e Sebastião Uchoa Leite escreveu um irônico auto-epitáfio:

aqui jazpara o seudeleitesebastiãouchoaleite

O que fazer com aquela definição da poesia lírica como “expressão do EU”?, questiona Carlito Azevedo. Uma solução foi justamente deixar de falar de si e falar “de coisas”.

AULA 2

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Poema que traz à mente, é inevitável, o clássico de Paulo Leminski:

o pauloleminskié um cachorro loucoque deve ser mortoa pau a pedraa fogo a piquesenão é bem capazo filhadaputade fazer choverno nosso piquenique.

O grande poeta peruano César Vallejo ter-mina com os seguintes tercetos o seu soneto “Pedra negra sobre uma pedra branca”:

César Vallejo morreu, pois lhe batiamtodos sem que lhes fizesse nada;batiam firme com porrete e firme

também com um chicote; são testemunhasas quintas-feiras e os ossos úmeros,a solidão, a chuva, os caminhos...

César Vallejo (1892-1938)

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Há um lindo poema de Eudoro Augusto, chamado “Barcarola”, que termina assim:

Sem mais, comunico com pesarque o projeto Eudoro Augustonão é viável no momento.

E há o texto irônico, belo e radical, de Aníbal Cristobo que, a partir do próprio título “Ghost Writer”, brinca com essa condição fantasma-górica, zumbi, do “EU” autoral:

O poeta, eseus procedimentos: (aqui) círculo

a que regressam as paixões, - quasesem voz - ensombrecidaspela imaginação.

Ângulo do poema: “que ao falar com vocêexista intimidade, e que tudopossa ser perdido

e reencontrado assim: em outroscenários”.

[...]

Aníbalsumiu! Aníbalestá dormindo! -”

Bem, acho que não preciso chamar a aten-ção para o que estes poemas têm em comum. O que ocorre aqui é que por uma mesma pressão, vários poetas (e fazem parte da lista muitos outros, como Allen Ginsberg, Boris Vian, Régis Bonvicino, Augusto de Campos etc) sentiram a necessidade de inscrever seu nome próprio no poema, complicando ainda mais a questão do sujeito do poema...

Note-se que na maioria absoluta dos casos, o nome é expresso sob a forma da inviabilida-

de, da desaparição, da morte, da interdição, do desajustamento (“Vai, Carlos, ser gauche na vida!”). O “EU” que fora bombardeado pela psicanálise, filosofia e lingüística, não veio en-contrar no poema nenhum refúgio ou um so-corro... Pelo contrário, também o poema parti-cipava do bombardeio, da asfixia.

•••

Sendo assim, o que fazer com aquela de-finição da poesia lírica como “expressão do EU”? Definição responsável pela opinião, hoje já bastante desgastada, de que se um poema é “genial”, seu autor (de que ele seria a expressão mais fiel) seria um “gênio” necessariamente.

Em vez de responder a essa pergunta, siga-mos em frente observando algumas das várias soluções que os poetas encontraram para esse “estado de coisas”. Uma delas foi justamente deixar de falar de si e falar “de coisas”. O título de um livro do poeta Francis Ponge era sinto-mático: Le parti pris des choses, que se poderia traduzir por “O partido das coisas”, ou “Toman-do o partido das coisas”.

É claro que essa poesia do objeto, obje-tiva, não nasceria isenta de contradições e conflitos, como bem notou João Cabral, po-eta objetivo, no poema “Dúvidas apócrifas de Marianne Moore”:

Sempre evitei falar de mim,falar-me. Quis falar de coisas.Mas na seleção dessas coisasnão haverá um falar de mim?

Esta permanência residual do EU, agora não mais dominante, não mais senhor todo pode-roso do poema, não mais mandarim, mas sim reduzido a ser mais uma coisa entre coisas, um EU que duvida de si, tem sido em geral mais prolífica em bons poemas do que as tentativas anacrônicas de ressuscitar o EU maiúsculo e imperial (sob pretexto de um “fracasso” mo-dernista), e do que as poéticas hiper-vanguar-distas que alimentavam a fantasia de uma ob-jetividade total.

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Mas um “poema em vozes” também pode ter intenções menos claras, menos explícitas. Não só o “recorte” da fala no tecido social inte-ressa a esse tipo de formato poético. Também a invenção da fala pode abrir novas dimensões na linguagem, como bem mostra esse esplên-dido poema de Michael Palmer, um poeta nor-te americano nascido no início dos anos 40 (a tradução é do poeta Régis Bonvicino):

Autobiografia 4 idemVoz: Você vê o tom púrpura /que tomou o céu?Outra voz: Eu diria malva, é quase malva.V.: Existe alguma diferença?O.V.: Uma tem mais rosa.V.: Qual?O.V.: Qual o quê?V.: Qual tem mais rosa?O.V.: Eu realmente não sei.V.: Então, como você pode...O.V.: Soa correto, para essa cor.V.: Você vai sempre pelo som?O.V.: Som?V.: O som, o...O.V.: O que isso quer dizer “ir pelo som”?V.: Quero dizer às vezes que começa com sons – nada além. Você persegue, você...O.V.: Sons musicais?V.: Não, menos articulados.O.V.: Como os sons ao nosso redor agora?V.: Não, como os sons ao nosso redor agora.O.V.: Sons que não pode ouvir.V.: Sons que não pode ouvir.O.V.: Você escuta sons que não pode ouvir?V.: Não.O.V.: Não?V.: É antes de ouvir.O.V.: Antes de ouvir?V.: Ouvir é atenção. Antes da atenção.O.V.: Malva: “Púrpura delicado, violeta ou lilás”.

Outra solução, além desta, foi, e continua sendo cada vez mais, a utilização do “poema em vozes”, no qual o poeta, mais do que “al-guém que fala”, torna-se “alguém que escuta”.

Nesses casos, o poeta parece admitir que o tão falado “interior” é o “lugar não do MEU, não do EU, mas de uma passagem, de uma fresta por onde um sopro de fora nos toma”, como es-creveu o dramaturgo francês Valère Novarina.

Esse “poema em vozes” pode ser um recorte cotidiano com intenção crítica, como em tantos poemas de Francisco Alvim. Vejamos dois deles:

Moço, forteVem cávocê por acaso me chamou de ignorantevocê é que me chamouchamei a administradorame chame outra vezporque aí sim você vai vera ignorânciaora vá andandoeu estou aqui trabalhandoe vocêatoa um caralhoperdi dez mil cruzeirospor culpa de vocêschiu olha as senhoraschiu olha o respeito

AlmoçoSim senhor doutor, o que vai ser?Um filé mignon, um filezinho, com salada de batatas]Não: salada de tomatesE o que vai beber o meu patrão?Uma caxambu

Interessante observar que o registro de vo-zes aqui funciona também ao mostrar que a violência da subserviência “cordial” do segun-do poema não é menor do que a agressividade social do primeiro.

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V.: Púrpura: “Um tom de cor entre o azul e o vermelho; uma das cores usualmente chamada de violeta, lilás, malva etc.”O.V.: Não e mesmo.V.: Não e mesmo.O.V.: Não como mesmo.V.: Não mesmo.O.V.: Mesmo não mesmo.V.: A forma está completa aos 36.O.V.: Magenta.

Aqui, a linguagem, a fala, é mais do que a “moeda de troca” entre os homens, mais do que algo reduzido à tarefa de comunicar. Sua física é diferente. Entre a inexatidão e o acerto, entre a lógica e a anti-lógica, nossa fala é o que “abre um buraco no mundo” (Valère Novarina).

Há algumas diferenças técnicas interessan-tes entre os poemas de Alvim e Palmer. O pri-meiro não utiliza travessões para marcar as fa-las de cada personagem, falas que também não trazem nenhuma rubrica identificatória. Mas mesmo assim podemos definir com razoável facilidade quem fala e quando é interrompido, pois os papéis sociais se revelam nas tonalida-des e no vocabulário.

Já Palmer não só apresenta os travessões demarcatórios como identifica (por pouco

que seja) quem está por detrás dos travessões (uma voz, outra voz), mas por outro lado seu poema torna dificilmente identificáveis os “actantes” (a não ser que, guiados pelo título, imaginemos que essas duas vozes ou mais, já que “outra voz” pode ser sempre e a cada vez um “outro emissor” representem a os estilha-çamento do EU autobiografado).

Um belo poema em vozes foi escrito pelo grande lírico espanhol Federico García Lorca e se encontra no livro O poeta em Nova York:

Assassinato(Duas vozes de madrugada em Riverside Drive)– Como foi?– Um corte no rosto.E ponto final!Uma unha que oprime o talo.Um alfinete que mergulhaaté encontrar as raízes mínimas do grito.E o mar deixa de mover-se.– Como, como foi?– Assim.– Não pode ser! Dessa maneira?– Sim.O coração saiu sozinho.– Ai, ai de mim.

Federico García Lorca (1898-1936)

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O monólogo dramático é simplesmente um poema em que o poeta cede a voz a um perso-nagem (real ou ficcional). Sem ser interrompi-do (o que já constituiria um diálogo), o perso-nagem fala. Eis um exemplo bem conhecido, de João Cabral de Melo Neto:

Graciliano Ramos:Falo somente com o que falo:com as mesmas vinte palavrasgirando ao redor do solque as limpa do que não é faca:

de toda uma crosta viscosa,resto de janta abaianada,que fica na lâmina e cegaseu gosto da cicatriz clara.

(...)

Como todo o seu senso de humor, Jorge Luis Borges escolheu para ser o personagem de um de seus monólogos dramáticos justamente o inven-tor do monólogo dramático: Roberto Browning.

No poema de Borges, que reproduzo aí em-baixo, Browning ainda é um jovem que parece estar tendo a visão dos poemas que vai escre-ver e do gênero que vai inventar, pois cita per-sonagens que mais tarde serão personagens de seus monólogos dramáticos...

Browning resolve ser poetaPor estes rubros labirintos de Londresdescubro que escolhia mais curiosa das profissões humanas,embora todas, a seu modo, o sejam.Como os alquimistas que procuraram a pedra filosofalno fugitivo argento-vivo,farei com que as palavras comuns– cartas marcadas do taful, moeda da plebe –rendam a magia que foi suaquando Thor era o nume e o estrondo,

A cena (re)criada por Lorca é identificável: duas pessoas comentam um crime na madrugada. Mas a lírica transfiguradora e metafórica de Lorca vai buscar nessas vozes mais do que o mero relato do crime. Como ele mesmo diz, o alfinete do po-ema quer investigar as próprias “raízes do grito”.

40 anos depois de publicado o livro de Lorca, o poeta mineiro Cacaso, em plena ditadura mili-tar, vai glosar este poema em seu livro Grupo es-colar. Mas o que ouve o poeta do “país do futuro” não é o mesmo que ouve o “poeta em Nova York”:

O futuro já chegou– Como foi?– Com revólver, arrebentoua cabeça. E nem o sangue bastoupara desatar seus cabelos.O desespero cortou-sepela raiz.– Impossível. Como foi?– Assim.– Mas como?– Dizia que estava desanimado,que as coisas não faziam sentido.Ultimamentejá nem saía de casa.

•••

Talvez porque o diálogo seja uma das prin-cipais características do texto teatral (que, no entanto, não se reduz a ele), não há como não ler esses poemas como se fossem uma espécie de teatro-relâmpago, teatro-sintético. E é mes-mo pesquisando nas margens da poesia, onde a poesia faz fronteira com outras narrativida-des (cinema, teatro, prosa etc) que os poetas parecem buscar elementos para suprir o vazio deixado pelo derretimento do EU.

Mas além do diálogo, há outro formato bas-tante característico do teatro que foi adotado com tremendo sucesso pela poesia. Trata-se do “Monólogo dramático”, um formato criado no século 19 pelo poeta inglês Robert Browning.

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o trovão e a prece.No dialeto de hojedirei, por minha vez, coisas eternas;tentarei não ser indigno do grande eco de Byron.Este pó que sou será invulnerável.Se uma mulher compartilhar meu amor,meu verso roçará a décima esfera dos céus concêntricos;se uma mulher desdenhar meu amor,farei de minha tristeza uma música,um alto rio que continue ecoando no tempo.Viverei de esquecer.Serei o rosto que entrevejo e esqueço.serei Judas, que aceitaa divina missão de ser traidor,serei Caliban no lamaçal,serei um soldado mercenário que morresem temor nem fé,serei Polícrates, que vê com espantoo anel que o destino devolveu,serei o amigo que me odeia.O persa me dará o rouxinol e Roma, a espada.Máscaras, agonias, ressurreiçõesvão destecer e tecer minha sortee algum dia serei Robert Browning.

(Tradução de Josely Vianna Baptista)

ExercíciosDepois de toda essa conversa, não há muita

dúvida quanto ao que vou sugerir como exer-cício. Escolham uma dessas três opções (ou as três, se estiverem inspirados) e divirtam-se fa-zendo poemas...

1) Um EU todo retorcido: Faça um poema em que você escreva seu

nome próprio, como nos inúmeros exemplos aqui mostrados. Tente observar se ao escrevê-lo você está apresentando uma abordagem auto--crítica ou auto-celebratória, auto-piedosa ou

cruel, ou seja, se está vendo o seu nome sob um prisma olímpico ou da inviabilidade.

2) Poema em vozes: Vale aqui soltar a imaginação. Escreva diá-

logos que ouviu na rua ou invente diálogos do modo que achar melhor... Não há nenhum pro-blema se você quiser escrever até uma mini-peça (de no máximo duas páginas). O poeta e drama-turgo alemão Heiner Müller tem vários trabalhos que ficam numa região indecidível entre o poema e o drama, como esse aqui, tão curto quanto belo:

Peça coraçãoUm - Posso pôr meu coração a seus pés.Dois - Se não sujar meu chão.Um - Meu coração é limpo.Dois - É o que veremos.Um - Eu não consigo tirar.Dois - Você quer que eu ajude?Um - Se não incomodar.Dois - É um prazer para mim. Eu também não consigo tirar.Um - (Chora)Dois - Vou operar e tirar para você. Para quê que eu tenho um canivete. Vamos dar um jeito já. Trabalhar e não desesperar. Pronto – aqui está. Mas isto é um tijolo. Seu coração é um tijolo.Um - Mas ele bate por você.

(Tradução de Marcos Renaux)

3) Monólogo dramático: Escolha um desses personagens abaixo ci-

tados e faça-o falar no poema:

Capitu | Raskolnikoff | Super-Homem | Wol-verine | Joana D’Arc | Brecht | Che Guevara | Carmen Miranda | Hamlet

ou qualquer um que você queira... Mas faça--o falar, tenha o prazer de ser por um momento o “autor” da fala dessas figuras.

Espero que tenham muito prazer com essas brincadeiras...

Até breve.

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Charles Baudelaire (1821-1867)

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O poema em prosa seria um tema espinho-so e controverso, tão ou até mais espinhoso e controverso quanto a questão das letras de música (são ou não são poesia?), se não tives-se recebido, desde a origem, o aval de alguns dos mais incontestáveis poetas do século 19, quando parece ter sido criado, pelo menos nos moldes como é conhecido e praticado hoje.

Afinal, se Baudelaire escreveu seus Peque-nos poemas em prosa, se Rimbaud escolheu esse mesmo formato para seus dois livros prin-cipais Uma estadia no inferno e As iluminações, se Mallarmé, Francis Ponge, Drummond, Lau-tréamont, Manuel Bandeira, João Cabral, Octa-vio Paz, Jorge Luis Borges, Pablo Neruda, César Vallejo e tantos outros, nos quatro cantos do mundo, praticaram o poema em prosa, isso tor-na mais difícil, mas muito mais difícil mesmo, o trabalho dos “fiscais de fronteira poética”, es-sas criaturas que, sem nenhuma ironia ou auto--ironia, adoram ficar regulamentando as coisas: “isso é poesia, isso não é poesia”.

Porque exatamente disso se trata: cruzar fronteiras como um clandestino, forçar os li-

mites, ampliar os limites da poesia, levar mais além os confins da poesia. Quando alguns di-zem: até aqui! Outros dizem: ir mais além! Quando alguns dizem: basta! Outros dizem: não basta!

Mas se o poema em prosa, graças ao auxí-lio luxuoso desses grandes poetas, conseguiu “direito de cidadania”, nem por isso o proble-ma que ele propõe se tornou menos radical e revolucionário. Eu diria até que a rápida con-sagração do gênero deixou em segundo plano sua questão fundamental:

O poema, para ser poema, precisa do verso? O poema depende do verso? É refém do verso? Há poema fora do verso?

Bem, deixemos essas questões para mais adiante. Ou melhor, vamos dar uma olhadela em alguns poemas em prosa para sabermos melhor do que estamos falando, e deixar que os próprios poemas guiem nossa reflexão.

Comecemos com esse poema em prosa be-líssimo do brasileiro Jorge de Lima:

Cruzar fronteiras como um clandestino, forçar os limites, ampliar os limites da poesia, levar mais além os confins da poesia. Nesta aula, Carlito Azevedo se debruça sobre o poema em prosa.

AULA 3

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Vejamos agora outro poema em prosa, desta vez de um contemporâneo, Arnaldo Antunes.

As pedras são muito mais lentas do que os animais. As plantas exalam mais cheiro quando a chuva cai. As andorinhas quando chega o inverno voam até o verão. Os pombos gostam de milho e de migalhas de pão. As chuvas vêm da água que o sol evapora. Os homens quando vêm de longe trazem malas. Os peixes quando nadam junto formam um cardume. As larvas viram borboletas dentro dos casulos. Os dedos dos pés evitam que se caia. Os sábios ficam em silêncio quando os outros falam. As máquinas de fazer nada não estão quebradas. Os rabos dos macacos servem como braços. Os rabos dos cachorros servem como risos. As vacas comem duas vezes a mesma comida. As páginas foram escritas para serem lidas. As árvores podem viver mais tempo que as pessoas. Os elefantes e golfinhos têm boa memória. Palavras podem ser usadas de muitas maneiras. Os fósforos só podem ser usados uma vez. Os vidros quando estão bem limpos quase não se vê. Chicletes são para mastigar mas não para engolir. Os dromedários têm uma corcova e os camelos duas. As meias-noites duram menos do que os meios-dias. As tartarugas nascem em ovos mas não são aves. As baleias vivem na água mas não são peixes. Os dentes quando a gente escova ficam brancos. Cabelos quando ficam velhos ficam brancos. As músicas dos índios fazem cair chuva. Os corpos dos mortos enterrados adubam a terra. Os carros fazem muitas curvas para subir a serra. Crianças gostam de fazer perguntas sobre tudo. Nem todas as respostas cabem num adulto.

O grande desastre aéreo de ontemVejo sangue no ar, vejo o piloto que levava uma flor para a noiva, abraçado com a hélice. E o violinista em que a morte acentuou a palidez, despenhar-se com sua cabeleira negra e seu stradivárius. Há mãos e pernas de dançarinas arremessadas na explosão. Corpos irreconhecíveis identificados pelo Grande Reconhecedor. Vejo sangue no ar, vejo chuva de sangue caindo nas nuvens batizadas pelo sangue dos poetas mártires. Vejo a nadadora belíssima, no seu último salto de banhista, mais rápida porque vem sem vida. Vejo três meninas caindo rápidas, enfunadas, como se dançassem ainda. E vejo a louca abraçada ao ramalhete de rosas que ela pensou ser o pára-quedas, e a prima-dona com a longa cauda de lantejoulas riscando o céu como um cometa. E o sino que ia para uma capela do oeste, vir dobrando finados pelos pobres mortos. Presumo que a moça adormecida na cabine ainda vem dormindo, tão tranqüila e cega! Ó amigos, o paralítico vem com extrema rapidez, vem como uma estrela cadente, vem com as pernas do vento. Chove sangue sobre as nuvens de Deus. E há poetas míopes que pensam que é o arrebol.

Cada um pense porque é que o autor de ver-sos perfeitamente metrificados e versos livres de cadências tão sutis escolheu justamente a prosa para dar conta dessa imagem tão pode-rosa do desastre aéreo, mas não se esqueçam da ironia do final, quando se fala que diante daquela chuva de sangue no céu, os “poetas mí-opes” viam um “arrebol”. Afinal, a miopia de al-guns poetas talvez seja a responsável por eles não conseguirem ver que a estrada da poesia não termina logo ali, vai sempre mais longe.

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Quem conhece, por pouco que seja, o traba-lho de Arnaldo Antunes, sabe que ele atua no sentido contrário daqueles “fiscais da alfânde-ga poética” que vivem querendo impor limites para a poesia. O trabalho de Arnaldo é justa-mente testar até onde vai a poesia, um traba-lho que é, no mínimo, mais divertido. Daí seus poemas-foto, poemas-desenho, poemas-ra-bisco, poemas-verso (por que não?), poemas--em-prosa, poemas concretos, pós-concretos e pop-concretos etc... Nem todas as respostas cabem num adulto, mas todas as perguntas ca-bem num poema, em especial aquela: “por que é que não pode?”

Mais um poema em prosa antes de atacar-mos outro lado da questão. Vamos ao começo de tudo, vamos a Baudelaire:

Embriagai-vosÉ necessário estar sempre bêbado. Tudo se reduz a isso; eis o único problema. Para não sentirdes o fardo horrível do Tempo, que vos abate e voz faz pender para a terra, é preciso que vos embriagueis sem cessar.Mas de quê? De vinho, de poesia ou de virtude, como achardes melhor. Contanto que vos embriagueis.E, se algumas vezes, nos degraus de um palácio, na verde relva de um fosso, na desolada solidão do vosso quarto, despertardes, com a embriaguez já atenuada ou desaparecida, perguntai ao vento, à vaga, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo o que foge, a tudo o que geme, a tudo o que rola, a tudo o que canta, a tudo o que fala, perguntai-lhes que horas são; e o vento, e a vaga, e a estrela, e o pássaro, e o relógio, hão de vos responder:– É a hora da embriaguez! Para não serdes os martirizados escravos do Tempo, embriagai-

vos; embriagai-vos sem tréguas! De vinho, de poesia ou de virtude, como achardes melhor.

Este poema vai ecoar em Carlos Drum-mond de Andrade, num poema, aliás em ver-sos, chamado “Poema da necessidade”, que diz assim:

“É preciso estudar volapuque,/ é preciso estar sempre bêbado,/ é preciso ler Baudelaire,/ é preciso colher as flores/ de que rezam velhos autores.”

Aliás, os poemas em prosa de Baudelaire parecem ser umas das principais matrizes do primeiro Drummond, o que demonstra a im-portância particularmente grande que o gê-nero possui entre nós. Comparemos “A sopa e as nuvens”, de Baudelaire, com o poema “Sen-timental”, de Alguma poesia, livro de estréia de Drummond:

A sopa e as nuvensA louca da minha bem-amada me dava de jantar, e pela janela aberta da sala de refeições eu contemplava as movediças arquiteturas que Deus faz com as nuvens, as maravilhosas construções do impalpável. E dizia, comigo, através da minha contemplação: “Todas estas fantasmagorias são quase tão belas quanto os olhos de minha amada, a pequena louca monstruosa de olhos verdes.”De súbito senti um violento murro nas costas e ouvi uma voz rouca e encantadora, uma voz histérica, e como enrouquecida pela aguardente, a voz da minha querida bem-amada, que me dizia:– Trate de tomar a sua sopa, seu maluco, mercador de nuvens!

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de ambição, não sonhou com o milagre de uma prosa poética, musical sem ritmo e sem rima, bastante maleável e bastante rica de contras-tes para se adaptar aos movimentos líricos da alma, às ondulações do devaneio, aos sobres-saltos da consciência?”

Como quer que interpretemos essas pa-lavras, o fato é que ele está falando em liber-tação de amarras... Trata-se de levar a poesia para além do limite do verso (que contudo continuará sendo utilizado)... Trata-se de uma necessidade de romper as formas tradicionais e acrescentar a elas novas formas...

Pode-se argumentar que isso é, no mínimo, polêmico. Afinal, o que faria de algumas das narrativas curtíssimas de Kafka, prosa, e de alguns textos em prosa de Max Jacob, poesia?

Leiamos “As árvores”, de Kafka:

Porque somos como troncos de árvores na neve. Aparentemente, apenas estão apoiados na superfície, e com um pequeno empurrão seriam deslocados. Não, é impossível, porque estão firmemente unidos à terra. Mas atenção, também isto é pura aparência.

Leiamos “Noite infernal”, de Max Jacob:

Algo de terrivelmente frio me cai sobre os ombros. Algo pegajoso se me prende ao pescoço. Uma voz vinda do céu grita: “Monstro!” sem que eu saiba se é de mim e dos meus vícios que se trata, ou se de longe se referem ao ser viscoso que a mim se agarra.

E vejamos o que diz o poema de Drummond:

SentimentalPonho-me a escrever teu nomecom letras de macarrão.No prato, a sopa esfria, cheia de escamase debruçados na mesa todos contemplamesse romântico trabalho.

Desgraçadamente falta uma letra,uma letra somentepara acabar teu nome!

– Está sonhando? Olha que a sopa esfria!

Eu estava sonhando...E há em todas as consciências um cartaz amarelo:“Neste país é proibido sonhar.”

Acho que já podemos enfrentar então ou-tros pontos da discussão:

1. O poema em prosa “canônico” não é aque-le escrito em “linguagem prosaica”. É aquele que, independentemente da linguagem utiliza-da, abandona o verso, e segue de uma à outra margem da página linearmente... sem quebras, como na prosa.

2. Diz Baudelaire, ao prefaciar seu livro de poemas em prosa: “Qual de nós, em seus dias

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E este texto de Caio Fernando Abreu? Prosa ou poesia?

Mergulho IINa primeira noite, ele sonhou que o navio começara a afundar. As pessoas corriam desorientadas de um lado para outro no tombadilho, sem lhe dar atenção. Finalmente conseguiu segurar o braço de um marinheiro e disse que não sabia nadar. O marinheiro olhou bem para ele antes de responder, sacudindo os ombros: “Ou você aprende ou morre”. Acordou quando a água chegava a seus tornozelos.Na segunda noite, ele sonhou que o navio continuava afundando. As pessoas corriam de outro para um lado, e depois o braço, e depois o olhar, o marinheiro repetindo que ou ele aprendia a nadar ou morria. Quando a água alcançava quase a sua cintura, ele pensou que talvez pudesse aprender a nadar. Mas acordou antes de descobrir.Na terceira noite, o navio afundou.

Então, já conseguiu perceber porque Ka-fka é prosador e Max Jacob poeta? Não? En-tão acertou!

E já decidiu se o texto de Caio Fernando Abreu é prosa ou poesia? Também não? Então acertou de novo!

Porque se há romances que são evidente-mente romances, e se há poemas que são evi-dentemente poemas, há também “trabalhos” que ousam penetrar numa região híbrida, agir como espiões infiltrados em território alheio... roubando dali o que bem lhe interessar. Para esses textos, a mistura e a hibridez são mais valiosas que a obediência estrita aos cânones...

3. Mas porque é que alguns poetas, de re-pente, resolveram se infiltrar no país da pro-sa? Nas questões anteriores chegamos a com-preender a legitimidade dessa atitude. Mas qual a utilidade dessa atitude? O que os levou a tomá-la?

E que tal mais uma pergunta: quando Bau-delaire escreveu os Pequenos poemas em pro-sa, já tinha gente escrevendo verso livre, como Walt Whitman, por exemplo. Porque é que em vez de escrever poemas em prosa, Baudelaire não escreveu poemas em verso livre, já que

Arthur Rimbaud (1854-1891)

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também ele poderia significar uma forma “mu-sical sem ritmo e sem rima, bastante maleável e bastante rica de contrastes para se adaptar aos movimentos líricos da alma, às ondulações do devaneio, aos sobressaltos da consciência”?

Há aqui duas possíveis respostas: ou Bau-delaire era muito conservador e queria pre-servar para o verso a nobreza do metro e da rima, preferindo a prosa para seus experimen-tos mais livres... ou era mais revolucionário do que todos os “verso-livristas” de então, pela simples consciência de que o verso livre não passaria de um paliativo... ou um truque do verso para sobreviver em novos tempos. Com Baudelaire, nada de paliativos, se é para deixar o verso, que seja para penetrar de vez, sem pu-dores, no território proibido da prosa.

Bem, o que posso fazer agora, depois de dei-xar no ar estas questões, e além de pedir para que escrevam e me mandem os seus poemas em prosa, é sugerir algumas leituras.

Alguns clássicos do gênero “poema em pro-sa” já foram lançados no Brasil, como:

– Pequenos poemas em prosa, de Charles Baudelaire (Nova Fronteira).

– Uma estadia no inferno e Iluminações, de Rimbaud (dentro do volume Prosa poética, da Topbooks)

– Cantos de Maldoror, de Lautréamont (Ilu-minuras)

No Brasil, a produção de poemas em prosa se não é dominante, está presente em quase todos os poetas contemporâneos. Cito alguns:

– Os três mal-amados, de João Cabral de Melo Neto (Nova Fronteira, dentro da Poesia completa)

– Carlos Drummond de Andrade escreveu poucos mas preciosos poemas em prosa, como “Morte de Neco Andrade”, de Fazendeiro do ar, “O Enigma”, de Novos poemas, “Operário no mar”, de Sentimento do mundo, entre outros. Uma ótima mistura de poema em versos e po-ema em prosa está no poema “Outubro 1930”, de Alguma poesia.

– São clássicos os poemas em prosa de Ma-nuel Bandeira, como “Lenda brasileira” (de Li-bertinagem), “Noturno da rua da Lapa” (idem), “Desmemoriado de Vigário Geral” (de Estrela da manhã), entre outros.

– Crime na flora, editado pela José Olympio, é uma experiência radical de Ferreira Gullar com o poema em prosa que merece ser mais conhecida.

– Os poemas em prosa objetivistas de Se-bastião Uchoa Leite e os mais surrealistas de Leonardo Fróes estão entre os melhores poe-mas em prosa contemporâneos. Os de Sebas-tião poderão ser encontrados em livros como Obra em dobras (Coleção Claro Enigma), A re-gra secreta (Landy), e A ficção-vida (ed. 34). Os de Leonardo Fróes em Vertigens, que reúne quase toda a sua poesia (Rocco).

– Muito singulares dentro do “formato” po-ema em prosa são os livros Galáxias, de Ha-roldo de Campos, A teus pés, de Ana Cristina Cesar, e Me segura qu’eu vou dar um troço, de Waly Salomão. Nestes livros, todos da fase “pós-moderna” de nossa história poética, é o próprio poema em prosa que se vê levado a in-vestigar seus próprios limites... Se ele nasceu como uma explosão dos limites entre poesia e prosa, depois de duzentos anos, e praticado por tantos nomes canônicos e oficiais da poe-sia, era de se esperar que também o poema em prosa acabasse sendo uma regra, um formato, uma prisão, e que alguns poetas se sentissem tentados a explodi-lo desde dentro. O poema em prosa norte-americano de Ron Silliman e da “new sentence” faz isso sistematicamente, e os poemas em prosa de Régis Bonvicino são um bom exemplo do que já se conseguiu por aí.

– Dentro do espírito irreverente e desbun-dado da geração 70 surgiram alguns bons po-emas em prosa. Recomendo em especial os li-vros Quampérios, de Chacal, e Mais dia menos dia, de Ângela Melim.

- Um clássico: O mono gramático, de Octavio Paz, é leitura obrigatória.

Mandem brasa.

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Júlio Cortázar (1914-1984)

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A poesia tem uma coisa fantástica: quanto a temas, ela é absolutamente não-hierárquica.

Um ótimo poema sobre um desenho de criança na parede será sempre melhor do que um mau poema sobre os afrescos de Giotto em Pádua.

O famoso poema de João Cabral de Melo Neto sobre o ovo da galinha não é absoluta-mente menos importante do que seu poema sobre Paul Klee.

O não menos famoso poema de Drummond sobre uma pedra no meio do caminho é tão bom quanto seu poema sobre uma tela de Mondrian.

Há um belíssimo poema de Ferreira Gullar sobre bananas podres, sobre umas simples bananas que estão apodrecendo em um prato, que não fica nem um pouco atrás de seu poema sobre a arquitetura de Oscar Niemeyer.

Porque a poesia tem algo daquela “idiotia” a que se referia, positivamente, Júlio Cor-tázar. Ou seja, aquela capacidade de se ma-ravilhar tanto com uma escultura de Rodin quanto com uma teiazinha de aranha brilhan-do ao sol, sem precisar submeter-se ao esta-

tuto lógico segundo o qual uma escultura de Rodin é uma coisa mais importante e mais digna de maravilhamento do que uma teiazi-nha de aranha cheia de minúsculas gotas de orvalho cintilantes, e segundo o qual uma ba-nana podre, um desenhozinho infantil numa parede, uma pedra no caminho e um ovo de galinha são coisas que devem ser colocadas muitos milhões de degraus abaixo da arqui-tetura de Niemeyer, dos afrescos de Giotto, da pintura de Mondrian e Klee.

Com essa introdução, o que eu quero deixar claro é: não é porque hoje vamos falar de po-esia e artes plásticas, artes visuais, que vocês têm que assumir uma postura solene, um ar de profundidade intelectual, se levar a sério de-mais, começar a fazer pose de “iluminado”.

Nem precisam correr atrás de livros sobre pintura... afinal, não vou pedir que escrevam ensaios sobre esse ou aquele artista... aí sim, isso seria fundamental. Muita sensibilidade é fundamental... A simplicidade pode gerar bons resultados também nessa área, como prova o clássico poema de Jacques Prevert:

A poesia inventou um milhão de formas de falar da pintura, é o que ensina Carlito Azevedo nesta aula.

AULA 4

Júlio Cortázar (1914-1984)

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Para pintar o retrato de um pássaro Primeiro pinte uma gaiola com a porta aberta. Depois pinte algo gracioso algo simples algo bonito algo útil para o pássaro. Então encoste a tela a uma árvore em um jardim em um bosque ou em uma floresta. Esconda-se atrás da árvore sem falar sem se mover... Às vezes o pássaro aparece logo mas ele pode demorar muitos anos antes de se decidir. Não desanime. Espere. Espere durante anos, se for necessário. A rapidez ou a lentidão do pássaro não influi no bom resultado do quadro. Quando o pássaro aparecer se ele o fizer

observe no mais profundo silêncio até ele entrar na gaiola e quando ele assim agir delicadamente feche a porta com o pincel. Então, apague uma a uma todas as grades tomando cuidado para não tocar na plumagem do pássaro. Em seguida, pinte o retrato de uma árvore escolhendo o mais bonito de seus galhos para o pássaro. Pinte também a folhagem verde e o frescor do vento o dourado do sol e a algazarra das criaturas, na relva, sob o calor do verão. e então espere até que o pássaro decida cantar. Se ele não cantar é um mau sinal, um sinal de que a pintura está ruim. Mas se ele cantar é um bom sinal um sinal de que você pode assinar. Então, com muita delicadeza, você arranca uma das penas do pássaro e escreve seu nome em um canto do quadro.

Pablo Picasso (1881-1973)

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Agora, é claro que nem todos os poemas sobre pintura precisam ser tão simples... há poemas sofisticadíssimos, herméticos, e nem por isso menos importantes... E é claro que é recomendável ler livros sobre pintura... não só para o nosso curso, para a sua vida... afinal, quando a gente gosta de um tema (e acredito que todo mundo que tem sensibilidade para gostar de poesia deve gostar de pelo menos uma das muitas manifestações envolvidas no nome “artes visuais”), é sempre bom ouvir ou-tras pessoas que amam e conhecem o assun-to... e é sempre melhor conhecer coisas do que ignorar coisas...

Mas faço questão de deixar claro que um mau poeta pode ter visto de perto todas as te-las de um pintor, ter lido todos os livros sobre esse pintor, e ainda assim seu poema sobre esse pintor será um mau poema... Por outro lado, um dos mais belos poemas sobre Picasso que já li foi escrito por um poeta venezuelano que jamais viu de perto um quadro de Picasso e escreveu esse poema quando viu a reprodução de uma tela do espanhol na capa de um livro.

Vamos ler mais um poema, um poema do norte-americano Lawrence Ferlinghetti, um sujeito que sempre esteve próximo da geração beatnik. O poema se desenvolve a partir do co-nhecidíssimo quadro “O beijo”, de Klimt.

Conto sobre uma pintura de Gustav KlimtEstão ajoelhados sobre uma cama floridaEleacabou de prendê-la alie a detémO vestido deladesceu e deixoudescoberto o ombroEle sente uma fome urgentesua cabeça morenainclina-se sobre a dela

famintaE a mulher a mulherafasta dos lábios dele seus lábios de tangerinauma das mãos lembra a cabeça de um cisne mortoe repousa sobreo pescoço grosso do homemos dedosestranhamente crispadosapertados com forçao outro braço dobradosobre o seio premidoa mão é uma garra lânguidaagarrando a mão do homema qual quer apertar a boca da mulhercontra a suao vestido comprido é feitode flores de todas as coresbordadas a ouroos cabelos à Ticianocheio de estrelas azuisE o manto de ouro do homemarlequinalaxadrezado comquadrados escurosGrinaldas de ourocaem por sobreas pernas nuas da moça &seus pés tensosAli perto deve haveruma árvore de jóiascom folhas de vidro brilhantesno ar de ouroDeve sermanhã

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em algum lugar longínquoElesestão calados juntoscomo se num campo floridosobre o leito estivalque deve ser delaE ele a detémtão apaixonadamente

aperta-lhe a fronte contra a sua

tão leve tão insistentepara fazê-la levaros lábios aos seusOs olhos dela estão fechadoscomo pétalas de botãoElanão vai abri-losElenão é Aquele

(Tradução: Paulo Henriques Britto)

Convenhamos que é o tipo de ótimo poema que um sujeito pode escrever a partir até da observação de uma reprodução em um fascí-culo da coleção “Gênios da pintura”, desde que sua capacidade de observar, imaginar, fanta-siar, seja a de alguém talentoso... Só quem não tem muito talento para fantasiar não pode fa-zer poemas assim.

Faço questão de afirmar isso aqui porque parece que vivemos um momento tão elitista na poesia que daqui a pouco vão surgir críticos dizendo que quem não viu as obras originais dos artistas está proibido de fazer poemas so-bre esses artistas...

Agora leiamos um daqueles poemas for-midáveis que pressupõem um conhecimento abrangente do assunto... Um belíssimo poema do inglês W. H. Auden:

Musée des beaux artsNo que diz respeito ao sofrimento, nunca se enganaramos velhos mestre da pintura: como entenderam bema sua dimensão humana; como ele ocorreenquanto as outras pessoas comem ou abrem uma janela ou simplesmente passeiam;como, na hora em que os mais velhos aguardam reverente, apaixonadamenteo nascimento milagroso, sempre hácrianças que não estão nem aí para ele, patinamnum lago do bosque.

Nunca eles esqueceramque mesmo o martírio mais horrendo deve acontecerde forma simples numa esquina qualquer, num lugar sujocheio de cães vadios, onde o cavalo do algozarraste o traseiro inocente numa árvore.

No Ícaro de Brueghel, por exemplo: tudo volta as costascalmamente ao desastre: o lavrador talvez tenhaouvido o mergulho, um grito no ar;mas para ele não era nada demais; o sol brilhavacomo sempre sobre as pernas brancas que afundavam na águaesverdeada; e o delicado, luxuoso barco que viu,talvez, aquela coisa surpreendente, um rapaz caindo do céu,tinha um destino a atingir, e para ele suavemente navegou.

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É o tipo de poema que pressupõe o co-nhecimento da obra dos “grandes mestres”. Através da observação e da comparação de seus trabalhos, o poeta notou que o que há em comum entre eles é essa “não-monumen-talização” do sofrimento. Observações funda-mentais como essa é o que encontramos nos melhores livros de arte, cuja leitura, depois de ter feito a necessária ressalva anti-elitista, recomendo fortemente. Mas vejamos como um poeta norte-americano, William Carlos Williams, a partir de um poema bastante sim-ples e sofisticado ao mesmo tempo, fala quase a mesma coisa que esse poema de Auden, e a partir do mesmo quadro, “Paisagem com que-da de Ícaro”, de Brueghel:

Paisagem com queda de Ícaro

De acordo com Brueghelquando Ícaro caiuera primavera

um lavrador aravaos seus campostodo o esplendor

do anoformigava alià beira do mar

o lavradorconsigo mesmopreocupado

suava ao solque derretiaa cera das asas

perto da costahouve

uma pancada quase imperceptívelera Ícaroque se afogava

Essa invisibilidade, essa imperceptibilidade do sofrimento de Ícaro é a mesma que revela o poema de Auden.

W.H. Auden (1907-1973)

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Um poema que mistura a vida e a pintura de forma muito eficaz é “Uma coca-cola com você”, do poeta norte-americano Frank O’Hara. Trata-se de um dos meus poemas favoritos. Nele, O’Hara, que conhecia muito o tema (além de trabalhar no Museus de Arte Moderna de Nova York escreveu, por exemplo, um belíssi-mo ensaio sobre a pintura de Jackson Pollock), parece menosprezar a pintura em comparação com a vida... mas na verdade, vida e pintura saem ganhando enormemente depois da leitu-ra desse poema... vejam se não é verdade...

Uma coca-cola com vocêé ainda melhor que uma viagem a San Sebastian, Irún, Hendaye, Biarritz, Bayonneou que ficar enjoado na Travesera de Gracia em Barcelonaem parte porque nessa camisa laranja você parece um São Sebastião melhor e mais felizem parte porque eu gosto tanto de você, em parte porque você gosta tanto de iogurteem parte por causa das tulipas laranja fluorescente contra a casca branca das árvores em parte pelo segredo que nos vem ao sorriso perto de gente e de estatuáriaé difícil quando estou com você acreditar que existe alguma coisa tão paradatão solene tão desagradável e definitiva como estatuária quando bem na frente delasna luz quente de Nova York às quatro da tarde nós estamos indo e vindode um lado para o outro como a árvore respirando pelos olhos de seus nóse a exposição de retratos parece não ter nenhum rosto, só tinta

de repente você se surpreende que alguém se tenha dado ao trabalho de pintá-los

olho para você e prefiro de longe olhar para você do que para todos os retratos do mundoexceto talvez às vezes o Cavaleiro Polonês que de qualquer maneira está no Frickaonde graças a Deus você nunca e assim eu posso ir junto com você a primeira vez e isso de você se mover tão bonito mais ou menos dá conta do Futurismo assim como em casa nunca penso no Nu Descendo a Escada ounum ensaio em algum desenho de Leonardo ou Michelangelo que me deslumbrava e o que adianta aos Impressionistas tanta pesquisa quando elesnunca encontraram a pessoa certa para ficar perto de uma árvore quando o sol baixavaou por sinal Marino Marini que não escolheu o cavaleiro tão bem quanto o cavaloacho que eles todos deixaram de ter uma experiência maravilhosa que eu não vou desperdiçar por isso estou te contando

Outro poema preferido é “Eco de Auso-nius”, de Augusto de Campos, um poema que zomba de um pintor que tentou pintar Eco:

Por quê, pintor, figurar-me uma facee sujeitar uma deusa do vazio?Filha do ar e da fala, não de inanessonoridades, gero-me, voz sem mente.

Tomando pela cauda as derradeiras sílabas,divirto-me a seguir as palavras alheias.No labirinto do teu próprio ouvido, eis-meEco: se puderes, pinta o som.

Gosto muito destes dois poemas de Bertolt Brecht que apresento a seguir. O primeiro fala

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de uma gravura chinesa, outra de uma máscara oriental.

Numa gravura de leão chinesaOs maus temem tuas garras.Os bons se alegram de tua graça.Algo assimGostaria de ouvirDo meu verso.

A máscara do malEm minha parede há uma escultura de madeira japonesa,Máscara de um demônio mau, coberta de esmalte dourado.Compreensivo observoAs veias dilatadas da fronte, indicandoComo é cansativo ser mau.

Como vemos, neste segundo poema Brecht chama a atenção para a capacidade de observa-ção. É claro que diante dessa mesma escultura japonesa muitos outros poderão dizer muitas outras coisas. Uns farão uma leitura histórica, outros darão com precisão a data, outros ainda poderão dizer se aquela peça se inscreve numa tradição ou se ao contrário quebra uma tradi-ção. Para Brecht, a gravura e a máscara faziam brotar a questão do bem e do mau.

O nome do escultor Brancusi está presen-te nos próximos dois poemas que leremos. O primeiro, de Paul Celan, tece uma hipótese a partir das pedras produzidas por esse escul-tor. O segundo, de Haroldo de Campos, vis-lumbra uma peça de Brancusi na cabeça de uma mulher que sai do metrô em Paris. Veja-mos os poemas: Bertolt Brecht (1898-1956)

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Com Brancusi, a doisSe dessas pedras apenas umafizesse ressoaraquilo que a silencia:aqui, bem perto,na ponta do cinzel-bengala deste ancião,ela se abriria, como uma ferida,em que terias de mergulhar,sozinho,bem longe deste meu grito, nelaesculpido, lívido.(Paul Celan, tradução: Flávio Kothe)

BrancusiMarfimnegro

uma cabeça brancusinagazela ouleoa-passarinho

túnica em tubodáctilo-prateada (anéis em todos osdedos)

mais os arosdas pulseiras

tintinabulantesbailando a contranegro(contra o negro: a peleesse marfim brunidolustre virgemrevérbero não-tacto dedulcíssimojovem pergaminho)

o olhar: uma rainha em armas

(descendo do metrô em sèvres-babylone)

Vemos que não existe um modelo de poe-ma sobre pintura... existem aqueles sobre qua-dros imaginários (o poeta contemporâneo Júlio Castañon Guimarães é mestre nestes “quadros imaginários”), há aqueles que tentam contar uma história a partir da cena pintada, há aque-les que falam de imagens artísticas que voltam à nossa mente quando estamos andando no meio da rua ou tomando um banho ou qual-quer coisa de tão corriqueiro quanto isso... Há aqueles em que se tenta observar e dar a ver o método criativo do poeta (não conheço melhor exemplo do que o poema “O sim contra o sim”, de João Cabral de Melo Neto.

Uma boa sugestão de exercício é você tentar fazer uma série... coisa muito comum entre os pintores, que às vezes desenvolvem um tema em uma série de quadros... Cézanne pintou uma série de banhistas.

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Ou pegue por exemplo um quadro onde haja muitas figuras humanas e faça um poema para cada uma daquelas pessoas, um poema que seja um pouco o que cada uma delas está pensando.

Outro exercício, mais simples, é pegar uma foto, um quadro, uma instalação, uma escultu-ra, uma gravura, uma imagem de quadrinhos e tentar fazer um poema sobre ele... pode enfati-zar o autor, pode, a partir dessa imagem, tentar imaginar o processo criativo do artista...

Enfim, pode (e deve) ir ver alguma exposi-ção na sua cidade, ou pegar um livro de arte em qualquer biblioteca e olhar bem as ima-gens, observar a delicadeza ou a agressividade que devem ter custado aos seus autores... Pen-se se as pinceladas agressivas ou as delicadas mais combinam com a sua escrita, com o seu fraseado... Observe se os trabalhos que mais te impressionaram são os de mais luz ou menos luz... coisas assim...

Enfim, tente compreender as reações que aquilo provoca em você e extraia um poema desse atrito entre a sensibilidade exposta e construída no quadro e a sua sensibilidade.

Antes de terminar, deixo com vocês esse po-ema do Ferreira Gullar:

Pintura

Eu sei que se tocassecom a mão aquele canto do quadroonde um amarelo ardeme queimaria neleou teria manchado para sempre de delírioa ponta dos dedos.

Gullar não diz que quadro é esse, nem seu autor. Estamos acostumados a associar ama-relo e delírio à imagem de Van Gogh, mas o importante foi que o poeta preferiu apenas sugerir isso... pode ser, pode não ser... talvez ele pensasse que o fundamental era passar essa idéia de contágio pela obra... e que o “sig-no” Van Gogh já está tão cheio de referências (camisetas, xícaras, papéis de parede etc.) que o melhor é deixar no poema apenas aqui-lo que não se consegue domar, o indomável... Ou pode ser que nem de Van Gogh fosse o tal quadro... talvez fosse um daqueles quadros imaginários... Como disse um pouco mais aci-ma, a poesia inventou um milhão de formas de falar da pintura.

Abraços.

Vincent Van Gogh (1853-1890)

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Francesco Petrarca (1304-1374) e Ezra Pound (1885-1972)

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Para que vocês entendam melhor a aula de hoje, começarei com um poema em prosa bem curto de Max Jacob:

A mendiga de NápolesQuando eu morava em Nápoles, havia à porta da minha mansão, uma mendiga a quem eu atirava alguns níqueis, antes de subir no meu carro. Um dia, surpreso por nunca ter recebido um único “obrigado”, encarei a mendiga. Ora, como a encarasse, descobri que o que eu tomara por uma mendiga era, na realidade, um caixote de madeira pintada de verde que continha terra vermelha e umas bananas podres.

De onde vem a poesia desse poema? Bem, será que ajudaria a encontrar a respos-

ta saber que Max Jacob foi amigo e companhei-ro de luta dos pintores cubistas, como Picasso e Braque, em Paris, no início do século XX?

Talvez adiante alguma coisa, talvez não. Mas a grande “desautomatização” do olhar

proposta e realizada pelo cubismo está muito presente nesse poema que também, à sua ma-neira, faz a crítica do olhar burguês, do olhar que olha o mundo e não o vê, não é?

A escolha do “tom do poema”, do formato “poema em prosa” foram fundamentais para que ele tivesse a contundência que tem.

Mas quantas formas, formatos, linguagens, materiais Max Jacob teve que dispensar para chegar a essa depuração da linguagem?

Hoje falaremos disso um pouco.Escrever poesia é fazer escolhas. Eleger al-

guns materiais e técnicas e dispensar outras.Ainda que sejam escolhas inconscientes.Porque o acervo de formas, formatos, ma-

teriais, dimensões da poesia é tão grande e complexo que é praticamente impossível você utilizar todo o material disponível.

Sabem de algum poeta cuja obra contenha epopéias e poemas concretos, sonetos metri-ficados e versos livres, hai-kais e poemas sur-realistas, monólogos dramáticos e sextinas, literatura de cordel e acrósticos, poemas se-mióticos e baladas provençais, quadrinhas e trovas etc. etc.?

Uma vida só é pouco, e se alguém se arris-

Quantas formas, formatos, linguagens, materiais é preciso dispensar para chegar à depuração da linguagem?

AULA 5

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car a cumprir todo o circuito das formas e tons poéticos provavelmente terá escrito uma obra que vai interessar mais ao livro dos recordes do que aos amantes da poesia.

Sendo assim, só nos resta, eleger, esco-lher, selecionar. Ou seja, só nos resta fazer (consciente ou inconscientemente) a crítica das formas, dizendo que essa aqui não nos interessa, mas aquela lá sim, esta outra não, aquela talvez...

Pois ao optar (consciente ou inconsciente-mente) por poemas curtos, você já está deixan-do de lado os poemas longos.

E ao optar (consciente ou inconscientemen-te) por poemas longos, você já está deixando de lado os poemas curtos.

E ao optar (consciente ou inconscientemen-te) por escrever tanto poemas curtos como longos, deixando que cada poema dite um pou-co sua dimensão na página, já está deixando de lado as duas opções anteriores.

(Podemos estender isso indefinidamente.Ao optar por uma linguagem coloquial, você

já fez uma escolha que colocou de lado a lin-guagem mais solene.

Ao optar por uma linguagem mais solene, você já fez uma escolha que colocou de lado a linguagem coloquial.

Ao optar por uma linguagem mesclada, ora coloquial, ora solene, você já fez uma escolha que eliminou as duas opções anteriores.

Apliquemos isso a questões como “lingua-gem metafórica” versus “linguagem mais co-lada ao real”. Ou “formas fixas de estrofação e metrificação” versus “irregularidade dos ver-sos e das estrofes”.

Etc. etc.)

A crítica Susanne K. Langer, no seu livro Sen-timento e forma, observa com muita precisão que um poeta tende a eleger cinco ou seis mate-riais com os quais vai trabalhar, e que, após essa eleição, passa a identificá-los como os materiais que contém a “essência” da poesia.

O problema é que a partir daí, a maior parte dos poetas tenderá a condenar os que fizeram

escolhas diferentes, e admirar todos os que fi-zeram escolhas parecidas.

Esse é um dos poucos argumentos contra a idéia bastante comum de que o melhor crítico de poesia é o poeta.

Só o será se levar em conta aquela frase de Ezra Pound: “Mau crítico é aquele que prefere um mau poeta de sua escola literária a um bom poeta da escola literária adversária”.

O mais comum é que os poetas que esco-lheram uma linguagem mais concisa, o poema curto e econômico, acusem os que escolheram linguagens mais caudalosas e poemas longos de verborragia e exagero.

E que os poetas que identificaram a essên-cia poética com longos discursos por sua vez, acusem os que escolheram a concisão e a eco-nomia de insignificância, irrelevância.

Um poeminha de Francisco Alvim resume a questão:

Luta literáriaEu é que presto.

O grande erro está em julgar um material poético (a metáfora, o poema longo, o poema curto, a forma fixa etc.), e não o talento do po-eta na utilização desse material.

É claro que cada escolha define uma posi-ção. E é preciso responder por essa escolha.

O soneto é uma forma que já foi tão usada, e tão identificada com a própria poesia, tornan-do-se quase que uma “garantia” de qualidade poética, que ao eleger essa forma hoje em dia o poeta já está tomando uma posição...

Se não for um soneto auto-irônico, ou um “soneto para acabar com os sonetos”, o mínimo que se pode dizer desse poeta é que prefere (ou não o incomoda muito) conferir ao seu fa-zer poético uma certa oficialidade, e que pre-fere andar no território do convencional e do bom comportamento já reconhecido.

Mas já que falamos dele, vejamos que mesmo um material tão desgastado como o soneto pode ganhar, nas mãos de um bom poeta, uma vivacida-

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de e uma atualidade, que estão muito longe do au-tomatismo que cerca o formato... pelo contrário.

No caso da série de sonetos “Até segunda ordem”, do poeta contemporâneo Paulo Hen-riques Britto, o que há é uma subversão da linguagem dentro do formato oficial (e repare que o tema do poema também tem algo de cri-me cometido sob fachada e proteção oficial):

Até segunda ordem(10 de outubro)Até segunda ordem estão suspensastodas as autorizações de férias,viagens, tratamentos e licenças.É hora de pensar em coisas sérias.

Deve chegar mais um carregamentoaté o dia quinze, dezesseisno máximo. Fui lá em Sacramento,mas não deu pra encontrar com o tal inglês —

será que alguém errou o codinome?Confere aí com quem organizouo negócio todo. Bem, amanhã

a gente se fala, que agora a fomeestá apertando. (Ah, o padre adorouo canivete suíço de Taiwan.)

(9 de novembro)Tudo resolvido. O campo de pousoaté que é razoável. Mas o tal deCarlão, hein, vou te contar. É nervoso,não sei; parece que sofre de mal de

Parkinson, ou coisa que o valha. Mas issoé o de menos. O pior é que o “Almirante”desde terça tomou chá de sumiço.Não sei que fim levou; é preocupante.

Chegou a encomenda de Lisboa.O número é 318.A senha: “O olho esquerdo de Camões

não vale uma epopéia”. (Essa é boa!)Não agüento mais ter que jantar biscoito.No mais, tudo bem. Aguardo instruções.

(21 de dezembro)Sim, recebi a carta do João.Só que o seu telefonema da sextajá havia alterado a situaçãocompletamente. É, o Bento é uma besta,

mas você, também... Nessas horas é que sevê que falta faz um profissional.Você nunca vai ser como era o Alex.Mas deixa isso pra lá. O principal

é que o negócio está de pé, ainda.O que não pode é pôr tudo a perdera essa altura do campeonato.

Não diga nada, nada, à dona Arminda.Toma cuidado. Conto com você.Aguarde o nosso próximo contato.

(12 de janeiro)Por quê que ninguém me deu um aviso?Pra que que serve essa porra de bip?Assim não dá. Que falta de juízo,de... de... sei lá! Eu lá em Arembipe

dando duro, e vocês aí de pândega!O deputado, é claro, virou bicho,e não vai mais ajudar lá na alfândega.Meses de esforço jogados no lixo!

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E agora? E o alvará do “Três Irmãos”?E os dez mil dólares do Mr. Walloughby?Não vou nem falar com o doutor Felipe.

Vocês que agüentem o tranco. Eu lavo as mãos.Se alguém me perguntar, eu tenho um álibiperfeito: “Eu estava lá em Arembipe”.

(19 de janeiro)Até esta chegar às suas mãoseu já devo ter cruzado a fronteira.Entregue por favor aos meus irmãosos livros da segunda prateleira,

e àquela moça – a dos “quatorze dígitos” –o embrulho que ficou com o teu amigo.Eu lavei com cuidado o disco rígido.Os disquetes back-up estão comigo.

Até mais. Heroísmo não é a minha.A barra pesou. Desculpe o mau jeito.Levei tudo que coube na viatura,

mas deixei um revólver na cozinha,com uma bala. Destrua este sonetoimediatamente após a leitura.

Uma coisa o poeta contemporâneo não po-de ser: ingênuo.

E Paulo Henriques Britto não é nem um pouco ingênuo. Ele sabe que para arrancar alguma faísca de vivacidade desse formato repetido à exaustão por tantos poetas, é pre-

ciso ser irônico e auto-irônico (“Destrua este soneto/ imediatamente após a leitura.”). Ou seja, não pode continuar acreditando que o mero fato de saber metrificar e rimar já ga-rante a qualidade do poeta e, conseqüente-mente, do poema.

Sonetos, métrica e rima já não são garantias de qualidade poética.

Assim como, versos livres, estrofação irre-gular também não são.

•••

Este é o ponto: todos os materiais podem ser utilizados...

Mas não como num self-service todas as co-midas podem ser escolhidas...

não como num armário todos os estilos de moda podem ser usados...

Ou melhor, poder podem, mas quem vai ar-car com a conseqüência dessa indiscrimina-ção total é o seu poema, o seu estômago e o seu visual.

Para evitar que seu poema pareça um estô-mago embrulhado ou uma “perua”, a única coisa você pode fazer é selecionar, e selecionar quer dizer, fazer a crítica dos materiais selecionados.

Nenhum dos materiais citados trazem con-sigo a garantia do “poético”, e alguns (como a metáfora, por exemplo), pelo simples fato de terem sido identificados por muito tempo como a própria essência poética, trazem um perigo adicional embutido, o grande perigo para qualquer poesia: o clichê.

•••

Os poemas que observaremos na aula de hoje podem nos ajudar a aguçar o senso críti-co. O primeiro é de um dos principais poetas iugoslavos do século XX, Vasko Popa:

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PorcoSó quando ouviuA faca furiosa na gargantaA cortina vermelhaExplicou-lhe o jogoE ele lamentouTer-se desprendidoDos braços do lamaçalE à noite do campoTão alegre ter corridoCorrido para o portão amarelo.

•••

Quando nenhum elemento mais é garantia de qualidade poética, uma dúvida enriquece-dora nasce: de onde surge exatamente a força poética de um poema? Acho este poema de Vasko Popa belíssimo.

Será pela simplicidade? (Mas existem poemas simples que são horrí-

veis. Além disso, há ótimos poemas complexos.)Será por sua concisão? (Mas existem poemas concisos e chatos.

E o longo poema Uivo, de Allen Ginsberg, por exemplo, é ótimo.)

Será pelo jogo cromático entre a cortina vermelha e o portão amarelo?

Podemos arriscar um palpite: as elipses do poema são manejadas muito habilmente pelo poeta.

A elipse, que já foi chamada muito lindamen-te de “estilo de persianas” pelo poeta Haroldo de Campos, é aquele jeito de contar ocultando, revelar escondendo, sugerir pelo silêncio.

Obedecendo ao que foi dito mais acima, não direi que a elipse deve ser julgada (positiva ou negativamente), o que podemos julgar, e mui-

to positivamente, é a habilidade, o talento de Vasko Popa no manejo da elipse.

Ele não diz nada sobre a pessoa que mora na casa. O que podemos fazer é tentar recom-por, preencher essa elipse com suposições: a de que o morador da casa estava com fome e viu a chegada daquele porco como um milagre, por exemplo. Ou sei lá que leitura você aí deve ter feito desse poema.

Aqui tocamos em um ponto importantíssimo.Um poema deve possuir várias leituras

possíveis.A linguagem tem um ponto máximo de de-

terminação.É aquele que você usa se quer pedir a alguém

que vá até a padaria e traga um litro de leite.Para conseguir plenamente esse objetivo,

você vai emitir uma mensagem com um grau de determinação tal que a pessoa que a rece-beu não tenha a menor margem de possibili-dade de entender que o que você pediu foi que ela se dirigisse à farmácia e comprasse um analgésico.

Mas a linguagem também tem um ponto máximo de indeterminação. Não digo que nes-te ponto máximo se encontre o lar da poesia, mas sem dúvida a poesia está mais perto dele do que do ponto máximo de determinação. Porque quando se trata de poesia, a pessoa que recebeu a mensagem deve ter muitas possibili-dades interpretativas.

Uma coisa é uma pessoa chamada João dizer:“Meu nome é João”.Outra coisa é uma pessoa chamada João dizer:“Meu nome é legião”.

O poema deve se prestar, como dissemos, a várias leituras. E uma boa elipse, ou seja, uma elipse bem manejada, é um instrumento formi-dável para criar essa zona onde muitos senti-dos são cabíveis.

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Uma elipse mal manejada, contudo, resulta em carência. Sente-se que faltou algo ao poema.

•••

Mas vejamos outro poema, este do argentino Juan Gelman:

Ancorado em ParisDe quem tenho saudades é do velho leão do zoológico,sempre tomávamos café no Bois de Boulogne,e era ali que me contava as suas aventuras na Rodésia do Sul.Mas mentia, era evidente que nunca tinha saído do Saara.

Seja como for, me encantava a sua elegância,sua maneira de erguer os ombros diante das mesquinharias da vida,olhava os franceses pela vidraça do cafée dizia “e esses idiotas ainda fazem filhos”.

Os dois ou três caçadores ingleses que tinha comidolhe provocavam más recordações e até melan-colia,“as coisas que a gente tem que fazer para viver”, filosofava,

ajeitando a própria juba no espelho do café.Sim, tenho muitas saudades dele,nunca se mexeu para pagar a conta,mas sempre calculava quanto se devia deixar de gorjetae os garçons o cumprimentavam com especial deferência.Nos despedíamos às margens do crepúsculo,ele regressava a son bureau, como dizia,não sem antes me advertir com uma pata em meu ombro“muito cuidado, meu filho, com as noite de Paris”.

Tenho muitas saudades dele, de verdade,seus olhos às vezes se enchiam de desertomas sabia calar-se como um irmãoquando emocionado, emocionado,eu lhe falava de Carlos Gardel.

•••Aqui, podemos desconfiar que a força poé-

tica nasce do “estranhamento”. Desconfio que Juan Gelman, que viveu exilado em Paris, só encontrou, para dar uma idéia dessa sensa-ção de estranhamento que é a do sujeito que de repente se vê obrigado a viver longe de sua pátria, a imagem de um leão com que se possa beber e falar da vida e de Gardel.

Juan Gelman (1930)

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Se em nossa canção do exílio se fala que as aves que na pátria gorjeavam não gorjeavam como as do exílio, no poema de Juan Gelman se pode imaginar que os leões que por Paris rugiam não estavam rugindo como os da Ar-gentina da ditadura militar.

•••

Disse várias vezes aqui que nenhum for-mato, técnica ou material é garantia de qua-lidade poética.

Mas quando um autor é forte e certeiro em suas escolhas, até um curriculum vitae pode virar poema. Como no caso desse poema da polonesa Wislawa Szymborska:

Curriculum VitaeQue é necessário fazer?É necessário preencher um requerimentoE anexar um curriculum vitae.

Qualquer que seja a duração da vidaO C. V. deve ser sucinto.

Recomenda-se a concisão e uma boa seleção dos dados.Transformar o que era paisagem em endereço.E as vagas lembranças em datas fixas.

De todos os amores, basta o conjugal,De todos os filhos, só os que nasceram.

Quem te conhece, não quem conheces.Viagens, só ao exterior.Filiações sem as razões.Distinções sem menção ao mérito.

Escreva como se nem te conhecesses.Como se te mantivesses sempre à distância de ti.

Silêncio total sobre cães, gatos, passarinhos,Lembranças, amigos e sonhos.Prêmios, mais que o valor.Títulos, mais que a relevância.Número dos sapatos, e não onde eles vão.

Anexar uma foto com orelhas bem visíveis.É a forma delas que conta, e não o que elas ouvem.E o que é que elas ouvem?Barulho de máquinas de picar papel.

•••

Reflexão é fundamental para o poeta. Aliás, ironizando a figura de um poeta totalmente des-provido de talento, Machado de Assis escreveu essas linhas cômicas e perfeitamente sérias:

“O autor de Goivos e camélias não era homem que meditasse uma página de leitura; ele ia atrás das grandes frases, - sobretudo das frases sono-ras – demorava-se nelas, repetia-as, ruminava-as com verdadeira delícia. O que era reflexão, ob-servação, análise parecia-lhe árido, e ele corria depressa por elas.” (Histórias da meia-noite).

Machado é o nosso melhor exemplo de que a reflexão e o pensamento não matam o talento e a espontaneidade, como costumam pregar os preguiçosos... (E notem que de brinde ele ain-da deixou uma crítica agudíssima sobre o gos-to de certos poetas pela grandiloqüência vazia, as frases sonoras...)

•••

A aula de hoje foi mesmo para refletir, e o exercício proposto também vai bater nessa tecla...

Mande um poema que tenha gostado muito de fazer e que represente, no seu modo de ver, as suas “escolhas poéticas”... e junto com ele mande dez linhas falando sobre quais são es-sas escolhas poéticas. Se puder comente tam-bém um pouco o que você NÃO inclui na sua receita poética, e o porque dessa exclusão.

Topam a parada?Um abraço.

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Stéphane Mallarmé (1842-1898)

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Todas as artes são primas.Poesia e cinema são irmãs.Pelo menos no jeito onívoro de ser.Que outra arte, como essas duas, será “ca-

paz de assimilar os materiais mais diversos e transformá-los em elementos próprios”? (Su-zanne K. Langer)

Veja-se o que elas fizeram com a música, por exemplo.

Certa vez, Debussy disse que gostaria de co-locar música em um poema de Mallarmé.

O mestre do lance de dados então respon-deu: “engraçado... pensei que já havia eu mes-mo colocado música suficiente ali”.

Quanto ao cinema, desde os tempos em que era mudo já incorporava uma orquestra ao pé da tela... imagina depois do Dolby...

Um dos maiores críticos de cinema, Michel Chion, que é aliás fabuloso compositor, descre-ve um filme como uma “sinfonia audiovisual”.

Que outra arte, como essas duas, soube rou-bar a música e fazer dela “coisa sua”?

Outra semelhança: tanto quando lemos um poema como quando assistimos a um filme, há

algo de sonho fluindo ante nossos olhos. Os cortes, bruscos ou não, dos versos e das cenas, imprimem ao fluxo de um filme ou de um poe-ma algo da descontinuidade dos sonhos.

Por isso, talvez, alguns grandes poemas foram escritos tendo o cinema como fonte de inspiração.

Há poemas sobre atores e atrizes.Há poemas sobre filmes específicos.Há poemas sobre diretores (quase todo po-

eta, até bem pouco tempo atrás, tinha o seu po-ema sobre Charles Chaplin).

Há poemas sobre existirem cinemas (e reco-mendo muito a leitura de “Indecisão do Méier”, de Carlos Drummond de Andrade, do livro Sen-timento do mundo, sobre a existência de dois cinemas nesse tradicional bairro carioca).

Há poemas sobre uma cena específica de um filme... e aqui, não há como não citar um dos mais belos que conheço, da poeta, compositora e performer norte-americana Laurie Anderson, sobre uma cena de um fil-me de Fassbinder:

Tanto quando lemos um poema como quando assistimos a um filme, há algo de sonho fluindo ante nossos olhos. Nesta aula, Carlito Azevedo comenta a relação entre poesia e cinema.

AULA 6

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Lírio BrancoEm que filme do Fassbinder é que é? Um homem sem um braçoEntra numa florista e diz:Qual é a flor que exprimeA passagem dos diasOs dias que se sucedem sem fimPuxando-nosPara o futuro?A infinitaPassagem dos diasPuxando-nos infinitamentePara o futuro?E a florista diz:O lírio branco.(Tradução de João Lisboa)

Há poemas sobre os efeitos do cinema no comportamento, como esse, quase um ma-nifesto, do também norte-americano Frank O’Hara:

Ave MariaMães da Américadeixem seus filhos ir ao cinema!mandem seus filhos sair de casa para não ver o que vocês aprontamestá certo que ar fresco faz bem para o corpomas e a almaque cresce na escuridão, nutrida por imagens prateadase quando vocês envelhecerem como tem de acontecereles não vão odiá-lasnem criticá-las não vão nem saberporque vão estar num país glamourosoque viram pela primeira vez numa tarde de sábado ou [matando aulatalvez até agradeçam a vocêssua primeira experiência sexual

que só custou vinte e cinco cêntimose não perturbou a santa paz do larvão aprender de onde vêm as barras de chocolatee sacos gratuitos de pipocatão gratuitos como sair do cinema antes do fim do filmecom um desconhecido simpático cujo apartamento é o Céu do Edifício Terraperto da ponte de Williamsburgah mães vocês vão fazer os diabinhostão felizes porque também se ninguém os pegar no cinemaeles nem vão saber o que perderame se alguém os pegar vai ser a glóriae de um modo ou de outro eles vão se divertirem vez de ficar bestando no quintalou no quartoodiando vocêsprematuramente antes mesmo de vocês fazerem alguma maldade horrívelque não a de negar-lhes os prazeres mais escuroso que é imperdoáveldepois não digam que não avisei se não seguirem meu conselhoe a família se desestruturare seus filhos ficarem velhos e cegos diante da TVvendoos filmes que vocês não os deixaram ver quando eram jovens.(Tradução de Paulo Henriques Britto)

O fato é que, como se lê no prefácio a uma bela antologia de contos sobre o cinema (Le ci-néma des écrivains, Cahiers du cinema, 1995), “ir ao cinema, ver filmes, é algo que só se com-preende acompanhado do prazer de prolongar essa experiência através da palavra, da conver-sa, até da escrita”.

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Pois é. E nem precisa ser escrita crítica não. Chegamos em casa, depois de um filme, e ano-tamos algo em um caderno, talvez um diário ín-timo, um blog, qualquer impressão marcante do filme. Às vezes é um pouco mais do que isso... e vem um poema. Este é o ponto que nos interessa.

Assim como é bom, após um bom filme, conversar com pessoas sensíveis e inteligen-tes sobre o filme que se acabou de ver, trocar impressões, notar como outros nos chamam a atenção para detalhes que não percebemos, e como podemos iluminar para outros passa-gens que lhes ficaram um tanto obscuras, é bom ir carregando por horas, dias, semanas, meses, anos, uma sensação forte de um filme, até que um dia... um poema...

Esta sensação de “depois do filme”, quando tudo o que vemos e fazemos se torna um pou-co “cena de cinema”, foi tema de um poema de Heitor Ferraz, um poema que lemos como se fosse um pouco escrito por nós.

Depois do filmep/ Augusto MassiQuando, depois do filme,volto de carro pela avenida(ainda úmida de chuva,ainda úmida de imagens)

outra câmera se abreem descontínua linha de luze entre um farol e outro- paro, tudo é vermelho -

novo filme passa a rodardentro deste túnel de cenasque a janela enquadrae ao mesmo tempo barra:

pequena mão inofensivaque num gesto de quase vôoarrebenta o vidro nos olhose rebobina falsos recortes.

•••

Deu pra perceber qual o exercício de hoje, não é?

Poemas sobre cinema.Não é preciso ser cinéfilo. Basta ter gostado

certa vez de um filme e ter deixado que, den-tro de você, em torno dele, crescessem, como ramificações, um pouco suas e um pouco dele, sensações, vagas lembranças, reflexões... Ou nem isso, basta apenas que você reconheça a existência dessa sala escura onde, por vezes, preferimos mergulhar, enfiar nossa cabeça, porque a vida simbolizada ficou pesada de-mais para seguir sem aquilo...

Darei agora dois exemplos muito distintos. O primeiro é de nosso maior poeta-cinéfilo: Sebastião Uchoa Leite, que não só escreveu vários poemas sobre filmes (como “Cat peo-ple”, “A woman of Paris”, “Black Widow”, “Dark Mirror” etc.), como também preciosíssimos en-saios sobre a sétima arte.

É tipicamente de cinéfilo esse delicioso poema:

Os assassinos e as vítimaseu bogartdecifro o falcão maltêsmas sou tragado por você mary astoreu robert walker troco o meu crimepelo de farley grangerele esquece o pacto mas eu nãonós montand e signoretmatamos de susto vera clouzotassassina perseguida pelo crimeeu delon mato maurice ronetaposso-me da identidademas o cadáver dele me segueeu clift negoque afoguei shelley wintersmas a imagem persisteeu o fotógrafo persigoeu o fotógrafo persigoo crime de vanessa redgraveou sou perseguido por ele?

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O outro exemplo vem do poeta Francisco Alvim, que eu não sei se é cinéfilo ou não, mas isso não importa. Importa que aqui o “cine-ma” não é um diretor, uma atriz, um filme etc. É mesmo a concreta sala escura, buraco negro dentro da cidade, onde por vezes, como disse-mos há pouco, para ver-não ver, para sentir--não sentir o peso do tempo, entramos...

Sozinha– Vá ao cinema.– Com quem?

•••

Bem, Carlos Drummond de Andrade me-receria um capítulo especial neste tema, tantos e tão excelentes são seus poemas sobre cinema. Desde o arqui-conhecido “Canto ao homem do povo Charles Chaplin” aos mais simples, como o já citado “Indecisão no Méier”.

Seria interessante organizar uma antologia com os poemas de Drummond sobre cinema.

Minha preferência particular vai para os poemas que dedicou às estrelas do cinema que inspiraram platônicos desejos no poeta. Como:

Joan Crawford: In memorianNo firmamento apagadonão luciluzem mais estrelas de cinema.Greta Garbopasseia incógnita a solidão de sua solitude.Marlene Dietrichquebrou a perna mítica de valquíria.Joan Crawford,produtora de refrigerantes, o coração a matou.O cinema é uma fábula de antigamente(ontem passou a ser antigamente)contada por arqueólogos de sonho, em estilo didático,a jovens ouvintes que pensam em outra coisa.O nome perdura. Também é outra coisa.Tudo é outra coisa depois que envelhecemos.

E não há mais deusas e deuses. Há figurinhasMóveis, falantes, coloridas, projetadasno interior da casa. Não saem nunca mais,enquanto se esvazia o céu da Gréciadentro de nós – azul já negro, ou neutra-cor.Joan, não beberei por ti, à guisa de luto,nenhum líquido fácil e moderno,sorvo tua lembrançaa lentos goles.

•••

É o caso de se pensar: por que não há mais poemas sobre as estrelas de cinema? Elas não são mais Grandes Mitos como Greta Garbo, Mar-lene Dietrich etc? Mas será que não merecem poemas pela alegria que nos dão quando ilumi-nam a tela e nossos olhos musas e musos como Scarlett Johansson, Zhang Ziyi, Cameron Diaz, Al Pacino, Gabriel Bernal Granados etc. etc.?

Vocês podem fazer o poema sobre cinema que quiserem, é claro, mas eu adoraria que a ti-midez e a repressão não os impedissem, como não impediram grandes poetas como Drum-mond e Bandeira, de fazer poema de fã! Desde que fã sensível e inteligente, como eles foram...

O importante é não deixar afrouxar esse laço que sempre uniu os poetas ao cinema...

Aí estão também Wenders, Godard, Tru-ffaut, Fellini, Wong Kar Way, Ana Carolina...

Almodóvar dá poesia.Mesmo aquelas paqueras mais ousadas

dentro da sala escura podem dar poemas... como esse, ótimo, de Oswald de Andrade, com um final maravilhoso...

Linha no escuroÉ fita de risadaA criançada hurla como o ventoMas os cotovelos se encontramSe acotovelam e se apalpam

Mãos descem na calada da lua quadrângulaEnquanto a orquestra os cavalos o letreiro galopam

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Entre saias uma lixa humana se arredondaMas quando amanheceA mulher qualquerDesaparece

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Acho que aquela lua quadrângula é a tela de cinema, não é? Isso explicaria o verso “Mas quando amanhece”, que quer dizer, talvez, quando a luz acende...

Vocês também têm um poema escrito “na calada da lua quadrângula”?

ExercíciosBem. É simples. Tentem fazer poemas que

envolvam direta ou indiretamente o cinema.Uma sugestão: que tal “contar um filme” em

poema? Algo como aquela narração que faze-mos, às vezes demorada, às vezes acelerada, a alguém que não viu certo filme e que nos pede que o contemos... Aproveitem para tensionar os registros (épico, melodramático, cômico, trágico etc)...

Uma técnica de um dos maiores poetas con-temporâneos, o norte-americano John Ash-bery: ele costuma ir ao cinema (ver filmes no-vos mas também a produção dos anos 20 e 30) e escolher uma frase qualquer dita dentro do filme. Uma vez escolhida, esta frase será o pri-meiro verso do seu poema.

Repare que o que é tremendamente clichê em um filme pode ser interessante como re-curso poético. Em um ensaio sobre montagem cinematográfica, Eisenstein cita um “clichê” cinematográfico... mas talvez nem tenha per-cebido que aquilo é poeticamente instigante... trata-se da seguinte seqüência:

1. A mão levanta a faca.2. Os olhos da vítima abrem-se repenti-

namente.3. Mãos agarram uma mesa.4. A faca desce.5. Olhos piscam involuntariamente.6. O sangue espirra.

7. Uma boca solta um grito.8. Algo pinga no sapato.Trata-se de uma cena bem clichê... mas não

dá pra fazer uns poemas bem legais com essa técnica?

Bem, espero que tenham curtido mais essa.Até a próxima.

Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)

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Walter Benjamin (1892-1940)

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A poesia moderna começa quando as ruas deixam de ser apenas a pacata faixa de terre-no destinada à passagem de quem vai visitar um parente, dar um passeio, e passam a ser o caótico torvelinho da multidão e do trânsi-to, um espaço onde a paixão e a morte podem nos surpreender a qualquer momento sem aviso prévio.

Paixão e morte, duas coisas tão caras aos poemas de todos os tempos, e que requeriam todo um processo, toda uma linha de conduta, agora podiam surgir de súbito, do nada.

Dois poemas conhecidíssimos de Charles Baudelaire exemplificam perfeitamente esse processo. E não é à toa que nove entre dez crí-ticos o consideram o primeiro poeta moderno.

O primeiro poema é “A uma passante”. Aqui, a passagem rápida de uma mulher no meio da multidão, numa rua tumultuosa e ba-rulhenta, toca o coração do poeta... ela surge, passa e desaparece...

Com isso, como escreveu o crítico Walter Benjamin, Baudelaire mostrava que a expe-

riência urbana transformava o romântico tema do “amor à primeira vista”, no moderníssimo tema do “amor à última vista”. O fugaz, o efê-mero, o provisório, o precário começavam a invadir o terreno do que antes era sagrado, eterno, inamovível.

O outro poema se chama “Perda de auréo-la”, o melhor é reproduzi-lo:

“O quê!? Você aqui, meu caro? Você, num lugar desses! Você, o bebedor de quintessências!, O comedor de ambrosia! Francamente, é de surpreender.”“Meu caro, bem conheces o pavor que tenho dos cavalos e dos coches. Agora há pouco, quando atravessava apressado o bulevar, saltando sobre a lama, através desse caos movente em que a morte chega a galope, por todos os lados ao mesmo tempo, minha auréola, num movimento brusco, escorregou de minha cabeça para o lodo do macadame.

Se a poesia moderna nasceu quando as pessoas passaram a conviver nas ruas, o que estará acontecendo com a poesia agora que as pessoas abandonam as ruas?

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Não tive coragem de apanhá-la. Julguei menos desagradável perder minhas insígnias do que quebrar os ossos. E depois pensei cá comigo, há males que vêm para bem. Agora posso passear incógnito, praticar ações baixas, entregar-me à devassidão como os simples mortais. E aqui estou eu, igualzinho a você, como pode ver!”“Deveria ao menos dar parte do desaparecimento dessa auréola, comunicar o ocorrido ao comissário.”“Ah, não. Me sinto bem. Só você me reconheceu. Aliás, a dignidade me aborrece. Depois, penso com alegria que algum poeta medíocre vai achá-la e com ela, impudentemente, se cobrir. Fazer alguém feliz, que prazer! E principalmente um felizardo que me faça rir! Pense em X ou Z! Hein? Como vai ser engraçado!”(Tradução de Leda Tenório da Mota)

O artista, ao atravessar a rua que leva da fase pré-moderna à fase moderna, se despoja dos ornamentos, das insígnias, dos sinais de distinção; agora, ei-lo: “igualzinho a você”.

Ora, isso se passou no século XIX. Uma crí-tica norte-americana, Marjorie Perloff, se per-guntava há pouco algo interessantíssimo.

Se a poesia moderna nasceu quando as pessoas passaram a conviver nas ruas, expos-tas a tudo o que a experiência das ruas ofe-rece, o que estará acontecendo com a poesia agora que as pessoas abandonam as ruas, dei-xam de freqüentá-la, tanto pelo medo da vio-lência, como pelos confortos que a tecnologia nos trouxe e que nos permitem fazer tudo sem sair de casa?

Eis uma pergunta a ser respondida com poemas...

Leiamos um poema do poeta mexicano Oc-tavio Paz, Prêmio Nobel de Literatura:

PedestreSeguia entre a multidãopelo bulevar Sebastópensando em suas coisas.O semáforo o deteve.Olhou para cima:Sobreos prédios cinza, prateadoentre pássaros pardosvoava um peixe.O semáforo mudou de cor.Perguntou-se enquanto atravessava a ruano que é que estava pensando.

O belo desse poema é revelar um pouco a dinâmica da vida nas ruas. Baudelaire mostrou que o amor e a morte deixavam de ser coisas motivadas por uma seqüência de acontecimen-tos e passavam a existir como aparições súbi-tas. Mas nem todos que andam pelas ruas se apaixonam ou morrem.

O poema de Paz talvez diga que mais funda-mental do que isso, o que mudava na dinâmica da cidade, era o próprio modo de pensar, agora mais cheio de descontinuidades impostas pe-las próprias descontinuidades da cidade.

Esbarrões, vitrines, semáforos, tudo isso impõe um movimento de andar e parar e per-der o fluxo do pensamento. Pensamos na crise do Oriente Médio até que uma vitrine nos im-põe a imagem de uma blusa e passamos a pen-sar no tecido, no design, na nossa necessidade ou desejo de tê-la, e pronto... perdemos o fluxo do pensamento...

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Este poema de Ferreira Gullar que lere-mos a seguir é quase um clássico. É um pou-co o reverso de “A uma passante”. Enquanto Baudelaire vislumbra, no meio da multidão, uma mulher que passa e pela qual se apaixo-na pouco antes de vê-la desaparecer, Gullar busca no meio da multidão a mulher que não passa, que não pode passar, como que dizen-do que aquele era um tipo de amor que não sobreviveria no mundo atual, onde só existi-ria enquanto inviabilidade...

Pela ruaSem qualquer esperançadetenho-me diante de uma vitrina de bolsasna Avenida Nossa Senhora de Copacabana, domingo,enquanto o crepúsculo se desata sobre o bairro.

Sem qualquer esperançate espero.Na multidão que vai e vementra e sai dos bares e cinemassurge teu rosto e somenum vislumbre e o coração dispara.Te vejo no restaurantena fila do cinema, de azuldiriges um automóvel, a pécruzas a ruamiragemque finalmente se desintegra com a tarde acima dos edifíciose se esvai nas nuvens. A cidade é grande

Octavio Paz (1914-1998)

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tem quatro milhões de habitantes e tu és uma só.Em algum lugar estás a esta hora, parada ou andando,talvez na rua ao lado, talvez na praiatalvez converses num bar distanteou no terraço desse edifício em frente,talvez estejas vindo ao meu encontro, sem o saberes,misturada às pessoas que vejo ao longo da Avenida.Mas que esperança! Tenhouma chance em quatro milhões.Ah, se ao menos fosses mildisseminada pela cidade.

A noite se ergue comercialnas constelações da Avenida.Sem qualquer esperançacontinuoe meu coração vai repetindo teu nomeabafado pelo barulho dos motoressolto ao fumo da gasolina queimada.

Enquanto boa parte da poesia brasileira su-põe um espectador que, de sua janela, observa o mundo, a poesia de Sebastião Uchoa Leite é daquelas que desce às ruas e não foge ao “con-tato furioso da existência”:

PasseioMarcelo Gama – coitado –caiu de um trem por distração.Não beberia naquele diao tal licor marasquinoe nem leria Cesário Verde (Ó Mestredo “Sentimento d’um ocidental”).Pois bem – flanêur – ele(Marcelo Gama)adoraria o calçadão da Vieira Soutoe o vaivém das ondas e de gente

de gringos cor-de-rosaa jeunes-filles-en-fleurcom hiperglândulas mamárias.Chamaram-me para uma voltae uma água de coco.Ela vai mais depressa do que eu.Esqueci as asinhas nos pés.Eu e Aquilesnão somos mais aqueles.

A ironia corrosiva é uma característica da poesia de Sebastião Uchoa Leite. E neste poe-ma parece que sua intenção é ironizar os dois poemas de Baudelaire a que nos referimos...

A morte que nos espreita nas ruas é repre-sentada, no começo do poema, pela figura do poeta Marcelo Gama, que de fato morreu ao cair de um trem... Já o mito da passante é re-baixado na moça que “vai mais depressa que eu”, já que além de não ter mais uma auréola, o poeta ainda esqueceu as asinhas nos pés...

Um poema de Eudoro Augusto revela a grande ópera das ruas do fim de século XX, uma ópera surrealista e ecológica.

OfeganteAté aqui a paisagem é limpae são claros os motivos da manhã.O mar anda sujo, preguiçoso.Mal tem força para brincar com as criançasque cospem nele às gargalhadase nele mijaminfiltrando ainda mais a cor da dúvidaem sua espuma.Os adultos discutem as absurdas taxas de jurosE o mito da virgindade.Aos mais velhos desagrada sobretudoA interferência grosseira das bases partidáriasE dos temas sexuais no café da manhã.Uma nova ordem democrática atravessa a rua

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absolutamente incógnita.Um bando de focas percorre canhestro a orla marítimacom seus folhetos turísticos e seus bigodes curiosos.As mais lustrosas compram jornais e chocolatese as mais opacas atendem telefones alarmantes.Outras se apressam em direção às limusines.Até aqui tudo normal e atlântico:o dia parece de vidro.Então ele surge e subverte tudoem questão de segundos.Um rastro nervoso, uma respiração ofegante.Mãos pegajosas. A tarde chega descabelada,Cigarro no canto da boca. Nada a fazer.O dragão respira fundo. Ele aspiraAquele ar saturado de signos e sirenes.Depois revira os olhos para o norteE os aviões param no céu.Alguém descobre que não são aviões, são estrelas cadentes.O dragão torna-se apenas um gemido.

Neste poema de Augusto Massi a rua hesita entre ser fluxo e estática:

Ponto mortoA minha primeira mulherse divorciou do terceiro marido.A minha segunda mulheracabou casando com a melhor amiga dela.A terceira (seria a quarta?)detesta os filhos do meu primeiro casamento.Estes, por sua vez, não suportam os filhosdo terceiro casamento da minha primeira mulher.Confesso que guardo afeto pelas minhas ex-sogras.

Estava sozinhoquando um dos meus filhos acenou para mim no meio do engarrafamento.A memória demorou para engatar seu nome.Por segundos, a vida parou em ponto morto.

ExercícioBem, o exercício de hoje é simples... e com-

plexo...Façam um poema que fale de uma rua ou

de ruas...Esse é o aspecto simples...O aspecto complexo é outro. Não apenas fa-

lem de ruas, mas tentem compreender as ruas em suas complexidades, dinâmicas.

Local privilegiado para as tensões mais di-versas, a rua não pode ser apenas um “tema de poesia”, mas exige que o poema seja ele pró-prio atravessado por essas tensões que a atra-vessam:

dinâmica x estáticahabitável x inviávelfluxo x contençãorazão x desrazão

Vamos nessa?

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William Shakespeare (1564-1616)

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Há alguns anos, um intelectual comentava: “ouvimos centenas de canções de amor, e de-pois gastamos milhares de dólares nos psica-nalistas para descobrir onde foi que erramos no amor.”

Sim, porque não é mole fazer sua “educação sentimental” ouvindo coisas como “eu sei que vou te amar, por toda a minha vida eu vou te amar, a cada despedida eu vou te amar, deses-peradamente eu sei que vou te amar”...

Quando as coisas não dão tão certo assim como queria o cantor é claro que pensamos que a culpa foi nossa.

Nesse ponto os poemas de amor têm pelo menos essa vantagem. Devem mandar muito menos gente para o divã...

Já entenderam, não é? O tema de hoje é: po-emas de amor.

Tema perigosíssimo, eu concordo. Afinal, se já se disse que não há originalidade que resista a uma boa pesquisa de fontes (obri-gado por essa, Bráulio Tavares), se o tema é amor a coisa ainda é mais grave... pois depois de Ronsard, Petrarca, os provençais, Camões, Shakespeare... é difícil não ficar com a sen-sação de que tudo já foi dito...

E isso para falar só nos mais famosos...Mas basta ler um não tão famoso poeta

como Mark Alexander Boyd... este sujeito, en-quanto o Brasil ainda estava sendo descoberto, já escrevia coisas assim, lá na Inglaterra:

De areia a areia, selva a selva eu ando,Presa da minha frágil fantasia,Como o vime que o vento vai dobrandoOu a folha a vogar na ventania.

Um cego pela mão me está levando,Que uma criança fútil tem por guiaE uma mulher esguia atrai, nadando,Nada do mar, mais ágil que uma enguia.

Triste de quem, a vida toda a arar,Só ara a areia e semeia no ar.

Porém mais triste é aquele que se lança,Movido pelo ímã do mal amar.No fogo, atrás de uma mulher de mar,Guiado por um cego e uma criança.(Tradução de Augusto de Campos)

E sem falar no Cântico dos cânticos, em Gui-do Cavalcanti, nos poemas japoneses de muito antes de Cristo...

Sim... levemos em conta tudo isso... mas levemos em conta também a quadrinha de Maiakovski que diz:

Velha é a melodia das baladas,Mas se as palavras combalidasFalam daquilo que as abala,De novo soam belas as baladas.

Portanto, nada impede que mais uma vez, mais um poeta, escreva um poema de amor.

E que ao tema dediquemos nossa conversa de hoje.

Um jovem poeta, argentino e brasileiro, Aníbal Cristobo, nascido na década de 70, fe-lizmente não hesitou em escrever o seu:

Depois de Ronsard, Petrarca, os provençais, Camões, Shakespeare, é difícil não ficar com a sensação de que tudo já foi dito nos poemas de amor

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William Shakespeare (1564-1616)

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Tema de amor de KrillEm vão espereina superfície do líquen, comcâimbras na mão, olhandoaquelas fotos do reconhecimento

e pensando: em comochegarias. Me apaixonei

pelo assassino? Pelo rumordo mar e das cigarras? O erropoderia ser um dígito, um ledsem controle de simesmo – me apaixonei

pelo roçar das algas, acheique fosse amor, que fosse ofundo do coração.

Aqui, parafraseando o penúltimo verso do poema de Mark Alexander Boyd, o “erro pode-ria ser” o fato de Krill estar no mar, atrás de uma mulher de fogo? Há mais semelhanças en-tre o fundo do mar e o fundo do coração do que podemos supor?

Bem, já que apontei a pequena analogia entre o poema de Aníbal e o de Boyd (nasci-do em 1563!), posso aproveitar aquele trecho do “Tema de amor de Krill” (“olhando aquelas fotos do reconhecimento”, “me apaixonei pelo assassino”), que interpreto como a súbita pai-xão nascida em alguém que contempla fotos numa delegacia para reconhecer um assassino, (o que não deixa de ser uma belíssima alegoria da paixão), pois bem aproveito esse trechinho para encaixar aqui um poema em prosa de Max Jacob, o poeta francês pré-surrealista que é um de meus preferidos:

O que a flauta nos traz O viajante ferido morreu na casa de campo e foi enterrado debaixo das árvores da estrada. Um dia, de seu túmulo, saiu uma ratazana; um cavalo que passava empinou. Oram a ratazana largou, na corrida, uma fotografia muito roída. O viajante pedira que o enterrassem com aquela imagem de uma mulher com belo decote. O cavaleiro que a viu, encantado pela imagem, apaixonou-se pela fotografada.

•••

Não quero aqui interpretar esse poema, mas note-se que depois de Baudelaire e suas Flores do mal, o contexto em que se fala de amor pode muito bem compreender enterros, túmulos e uma ratazana. Bem, na verdade há muita coisa a se dizer sobre esse poema. Sugi-ro aqui, brevemente, que ele é o perfeito poe-ma sobre poemas de amor. Quando pensamos que o tema já está sepultado, uma ratazana o retira do túmulo e o primeiro que passa torna a lhe dar vida...

•••

Vamos em frente.É claro que poemas de amor, pelo menos

para nós, pós-freudianos, habitantes do século XXI, têm que levar em conta que não sabemos muito bem o que é o amor, nem quais são os limites do amor. Ou melhor, que tudo o que sabemos sobre amor tem validade muito redu-zida quando aplicado ao outro, e no amor “o outro” é pelo menos 50%, não é?

Um belíssimo poema sobre poemas de amor conseguiu incrivelmente dar voz ao “ou-tro” dos poemas de amor, e o que se ouve ali não é muito lisonjeiro...

O poema é de autoria do norte-americano Robert Bringhurst, e a tradução que cito foi pu-blicada na revista de poesia Azougue.

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Vladimir Maiakovski (1893-1930)

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Esses poemas, ela disseEsses poemas, esses poemas,esses poemas, ela disse, são poemassem nenhum amor. São poemas de um homemque poderia deixar mulher e filhos apenasporque fazem barulho durante seu estudo. São poemasde um homem que poderia matar sua mãe para reclamarherança. São poemas de um homemcomo Platão, ela disse, dizendo algo que nãoentendo mas mesmo assimme ofende. São poemas de um homemque preferiria dormir consigo mesmo no lugar de uma mulher,ela disse. São poemas de um homemcom olhos como estilete, mãos como as mãos de um trombadinha, urdidos de água e lógicae raiva, com nenhuma sombra de amor neles. Essespoemas são tão sem coração como o canto dos pássaros,tão ausentes de significados como as folhas de carvalho,que, se amam, amam apenas o amplo céu azul e o mar e a idéiade folhas de carvalho. Amor próprio é um fim, ela disse,não um começo. Amor significa amorpela coisa cantada, não pela canção ou pelo cantar.Esses poemas, ela disse...Você é linda,ele disse.Isto não é amor, ela respondeu, justa,

•••

Uma coisa se pode dizer dos poemas de amor: não houve escola ou movimento literário que não produzisse pelos menos meia dúzia de bons po-emas de amor. Ou de desamor, como vemos pelo nem sempre muito grande otimismo dos poemas de “amor”. Como disse uma vez Cacaso, “o amor que não dá certo/ sempre está por perto”.

E isto vem de longe, se pegarmos o próprio Ronsard (poeta francês nascido em 1524 e que pelo seu livro Os amores se tornou o protótipo do autor de poemas de amor – Drummond, naquele poema sobre “Fulana”, chega a citá-lo na estrofe que diz: “Sou eu, o poeta precário/ que fez de Fu-lana um mito,/ nutrindo-me de Petrarca,/ Ron-sard, Camões e Capim”), pois bem, se pegarmos o próprio Ronsard, veremos que seu poema mais célebre e celebrado lamenta a esquiva da amada, mais do que celebra as venturas do amor. Ei-lo em tradução de José Lino Grünewald:

Quando fores bem velha, à noite junto à vela,Sentada ao pé do fogo, enovelando e fiando,Dirá, cantando os versos meus e te enlevando,“Ronsard me celebrava ao tempo em que era bela”.Então na haverá, ouvindo o recital,Serva, ao fim do trabalho e semi-sonolenta,Que com o som do meu nome não desperte atentaA saudar o teu nome em louvor imortal.Estarei sob a terra e, fantasma sem osso,Pelas sombras dos mirtos terei meu repouso;Tu serás à lareira uma anciã encolhidaChorando o meu amor e o teu fero desdém.Se me crês, não espere o amanhã também:Vive, colhe desde hoje as rosas desta vida.

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Já deixando bem claro que as mudanças do mundo e do tempo é que modificam os amo-res, os amados e o amor, deixando claro que

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este não é imutável, e muda como tudo, o po-eta português Manuel António Pina escreveu esse “clássico”:

EsplanadaNaquele tempo falavas muito de perfeição,da prosa dos versos irregularesonde cantam os sentimentos irregulares.Envelhecemos todos, tu, eu e a discussão,

agora lês saramagos & coisas assime eu já não fico a ouvir-te amo antigamenteolhando as tuas pernas que subiam lentamenteaté um sítio escuro dentro de mim.

O café agora é um banco, tu professora do liceu;Bob Dylan encheu-se de dinheiro, o Che morreu.Agora as tuas pernas são coisas úteis, andantes,e não caminhos por andar, como dantes.

•••

Por quê será que o amor que não dá cer-to, não deu certo, nunca dará certo, encanta tanto os poetas? Há muitas respostas. Tento aqui uma suposição. Na vida real, ou seja, na vida não simbolizada, gostaríamos que tudo transcorresse na maior calma, na maior tran-qüilidade... quem gostaria de um amor com tantos percalços e final tão trágico quanto o de Romeu & Julieta?

Mas na arte, bom é Romeu & Julieta. É con-flito, aventura, sobressaltos, reviravoltas...

Porque ali, nas palavras que o poeta utiliza, podemos testar nossos limites e os do amor. Diz o velho Terêncio: “Sou humano, nada do que é hu-mano me é estranho”. O mais estranho no amor ainda é humano, e por isso não nos é estranho...

Por estar experimentando com os limites é que talvez tenhamos visto tantos túmulos, tan-to fundo do coração, tanto gesto extremo nos

poemas de amor. Se as canções de amor nos mandam para os psicanalista, talvez os poe-mas de amor nos tirem de lá...

•••

ExercícioO que vou sugerir é isso mesmo o que vocês

estão pensando: façam poemas de amor.Mas não vai ser fácil assim.Façam uma lista de palavras que vocês acham

que não faltam ou não podem faltar em um poe-ma de amor.

Depois façam outra lista de palavras que vo-cês acham que não cabem nem podem caber em nenhum poema de amor.

Depois de feitas as listas, façam um poema de amor com as palavras da segunda lista, é claro.

Bom trabalho.

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Paul Valéry (1871-1945)

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Sabemos que, segundo as perspectivas mais otimistas, durante alguns bilhões de anos nosso querido planeta Terra cumpriu, astro obediente e pertinaz, a sua órbita, sem carregar na carcaça essa estranha forma de vida chamada “homem”.

E também sabemos que, por um motivo ou por outro, mais cedo ou mais tarde, essa mes-ma Terra será de novo apenas uma rocha gi-rando na engrenagem de rochas e luz do uni-verso, alheia a qualquer forma de vida.

E teremos sido um brevíssimo segundo diante da incomensurável massa de tempo que houve antes de nós e haverá depois de nós.

Quer dizer: só rindo mesmo de qualquer pretensão de seriedade, não é?

Concordo com aquele sujeito que escreveu que “a vida é uma grande piada cósmica”.

O estranho é que não vivamos rindo o dia inteiro, e que desperdicemos esse nosso “bre-víssimo lapso” com lamentações.

Já dizia o Paul Valéry: “o ser é apenas um defeito na pureza de não-ser”. Um defeito que, aliás, não tardará muito a ser corrigido.

Só rindo.Aliás, é disso que trata a nossa conversa

de hoje.Daquelas vezes em que, com felicidade, a

poesia riu de nós, riu de si, riu de tudo, e nos fez rir de si, de nós e de tudo. Seja o riso irô-nico, a gargalhada grosseirona e franca, o riso melancólico etc, todos os matizes desse ato que nos distingue de todos os outros seres do planeta. Afinal, como disse primeiro que todos Aristóteles, o homem é o único animal que ri.

E a poesia sempre riu, desde o começo, e principalmente da estupidez e das pretensões do homem. Este animal que para se impor não hesitou muitas vezes (e continua não hesitan-do) em massacrar, torturar e matar... Como de-nunciam, com um riso corrosivo, esses poemas de Nicanor Parra e Nicolas Behr:

Aparecer apareceu.Só que numa lista de desaparecidos.

(Nicanor Parra)

•••

A poesia sempre riu, desde o começo, e principalmente da estupidez e das pretensões do homem.

AULA 9

Paul Valéry (1871-1945)

Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.)

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Quem teve a mão decepadaLevanta o dedo.

(Nicolas Behr)

Se fosse o caso de encontrar semelhanças entre a poesia e o riso, diria, baseando-me um pouco em Bergson, que os dois trabalham no sentido da desautomatização, que os dois são um drible na rigidez.

Se há uma coisa contra a qual os poetas e artistas em geral devem lutar é a automatiza-ção da sensibilidade, da sua produção artística.

Quando a coisa chega nesse nível, como diz João Cabral (um poeta que várias vezes recla-mou porque a crítica literária não dava a devi-da atenção ao aspecto humorístico de sua po-esia), o melhor é passar a escrever (ou pintar) com a mão esquerda, como se lê nesse poema, que trata do bem-humoradíssimo Miró:

Miró sentia a mão direitademasiado sábiae que de saber tantojá não podia inventar nada.

Quis então que desaprendesseo muito que aprendera,a fim de reencontrara linha ainda fresca da esquerda.

Pois que ela não pôde, ele pôs-sea desenhar com estaaté que, se operando,no braço direito ele a enxerta.

A esquerda (se não se é canhoto)é mão sem habilidade:reaprende a cada linha,cada instante, a recomeçar-se.

O riso e a poesia acontecem justamente quando um “acidente” provoca uma quebra na automatização, na visão automatizada da vida, na prática automatizada e obediente da vida.

Eis um ótimo exemplo de casamento feliz en-tre poesia e riso, de autoria de José Paulo Paes:

Falso diálogo entre Pessoa e Caeiro– A chuva me deixa triste.– A mim me deixa molhado.

•••

Uma visão absurda do automatismo a que somos submetidos nesse estranho consenso chamado “vida real” ou “realidade” é brilhan-temente expressa por esse texto do argenti-no Júlio Cortázar. Como sabemos, o “absurdo” em Cortázar tem com principal característica prescindir de mirabolantes efeitos pirotécni-cos, magias e sobrenaturais, ocorrendo o mais das vezes como o “outro lado” do real, nas coi-sas mais comuns, como chaves, jarros, bondes, camisas, fósforos, sapatos, fotos, focadas ou desfocadas, e esse é um ótimo exemplo:

A foto saiu fora de focoUm cronópio vai abrir a porta da rua e ao enfiar a mão no bolso para pegar a chave o que tira é uma caixa de fósforos; então este cronópio fica muito aflito e começa a pensar que se em vez da chave ele encontra os fósforos, seria terrível que o mundo se houvesse deslocado de repente, e então se os fósforos estão no lugar da chave, pode acontecer que ele ache a carteira de dinheiro cheia de fósforos, e o açucareiro cheio de dinheiro, e o piano cheio de açúcar, e o catálogo do telefone cheio de música, e o armário cheio de assinantes, e a cama cheia de roupas, e as

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jarras cheias de lençóis, e os bondes cheios de rosas, e os campos cheios de bondes. Assim este cronópio fica horrivelmente aflito e corre para se olhar no espelho, mas como o espelho está um pouco de lado, o que ele enxerga é o portaguarda-chuvas do vestíbulo, e suas desconfianças se confirmam e ele desata a soluçar, cai de joelhos e junta suas mãozinhas nem sabe para quê. Os famas vizinhos acodem para consolá-lo, e também as esperanças, mas passa-se muito tempo antes que o cronópio saia de seu desespero e aceite uma xícara de chá, que olha e examina muito antes de beber, não vá acontecer em lugar de uma xícara de chá seja um formigueiro ou um livro de Samuel Smiles.

•••

Os “cronópios” de Júlio Cortázar serão tal-vez descendentes de “Pluma”, o inacreditável personagem do francês Henri Michaux (que, como o argentino Cortázar, nasceu na Bélgi-ca), cujo humor quase alucinógeno permanece inédito no Brasil por algum mistério que me escapa. Leiam esse fragmento (o livro é todo composto por fragmentos), e, se puderem, me expliquem porque é que o livro Plume, que narra as aventuras desse que é um dos mais geniais personagens da literatura do século XX ainda não foi traduzido e publicado por aqui:

Um homem tranqüiloAo estender as mãos fora do leito, Pluma ficou surpreso de não encontrar a parede. “Bem, pensou ele, vai ver que as formigas a comeram...” e tornou a dormir.Pouco depois, sua mulher agarrou-o e sacudiu:

Joan Miró (1893-1983)

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“Veja, disse a ele, preguiçoso! Enquanto você se ocupava dormindo nos roubaram a casa.” E de fato um céu intacto se estendia por todos os lados. “Ah, não há mais nada a fazer”, pensou.Pouco depois, ouviu-se um ruído. Era um trem que vinha na direção do casal a toda velocidade. “Com a pressa que tem, pensou, seguramente chegará antes de nós”, e tornou a dormir.Depois o frio o despertou. Estava todo coberto de sangue. Alguns pedaços de sua mulher jaziam a seu lado. “Com o sangue, pensou, sempre surgem um monte de problemas: se o trem não tivesse passado eu estaria bem contente. Mas já que já passou mesmo...”, e tornou a dormir.- Vejamos, disse o juiz, como o senhor explica que sua mulher tenha se acidentado a ponto de que a tenham encontrado partida em oito pedaços, sem que o senhor, que estava a seu lado, fizesse o menor gesto para impedi-lo, sem que sequer se tenha dado conta. Eis o mistério. Ao reside o x da questão. - Em relação a esse assunto não poderei ajudá-lo, pensou Pluma, e tornou a dormir. - A execução será realizada amanhã. O acusado quer acrescentar alguma coisa?- Desculpe-me, disse ele, eu não acompanhei o julgamento.

Aqui no Brasil inventamos um gênero cujas ações andam muito em baixa na bolsa de va-lores literários: o poema-piada. Todos o con-denam como se não fosse uma coisa lá muito séria. Alguns críticos parecem quase “descul-par” Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Oswald de Andrade, Murilo Mendes, ou seja, nossos maiores poetas, por terem pra-ticado poemas-piada durante toda a vida...

É claro que o poema-piada é apenas um ca-pítulo na vasta matéria sobre poesia e riso, e é claro que da vasta gama de risos (o riso cor-rosivo, o riso melancólico, o riso celebratório, o riso-denúncia etc.), o poema-piada utilizou apenas uma pequena parte...

Mas talvez seja justamente porque suas “ações” na “bolsa de valores literários” andam tão em baixa (qualquer crítico se sente um Papa da solenidade e da profundidade quan-do condena, em um livro qualquer, um poema mais engraçadinho), que aí mesmo resida seu interesse... É longe das unanimidades, longe da multidão de diluidores, longe dos prêmios lite-rários, longe das comendas, que a poesia mais se renova...

Enquanto os formatos mais premiados, di-luídos, repetidos, cultuados acabam se auto-matizando e adquirindo a rigidez que os tor-na risíveis...

O já citado José Paulo Paes foi um dos raros a não fugir do formato “modernista” do poe-ma-piada nem se deixar limitar por ele, aí vão 3 de seus “clássicos”:

CronologiaA.C.D.C.W.C.

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Grafitoneste lugar solitárioo homem toda manhãtem o porte estatuáriode um pensador de rodin

neste lugar solitárioextravasa sem sursiscomo num confessionárioo mais íntimo de si

neste lugar solitárioarúspice desentranhao aflito vocabuláriode suas próprias entranhas

neste lugar solitáriofaz a conta mais doída:em lançamentos diáriosa soma da sua vida

Larespaço que separao volkswagenda televisão

O poeta carioca José Lino Grünewald conse-guiu um ótimo casamento entre poema-piada e poesia concreta:

Serviço públicobate pontobate papobate ponto

Para os que alimentam algum preconcei-to contra o humor na poesia, e que em geral necessitam de alguma “autoridade” para re-ferendar ou “autorizar” seus gostos, cito aqui poemas de dois poetas perfeitamente sérios, verdadeiras “autoridades poéticas”. um deles inclusive vencedor de Prêmio Nobel (o que deve comover quase às lágrimas – de inveja – nossos “sérios de plantão”): Octavio Paz, poe-ta que felizmente bebeu desde cedo nas fontes do humor negro do surrealismo. Eis dois poe-mas de Paz:

Efeitos do batismoO jovem Hassanpara casar-se com uma cristã,foi batizado.O padre,como a um viking,chamou-o Erik.Agoratem dois nomese uma só mulher.

•••O outroInventou-se uma cara.Por trás delaViveu, morreu e ressuscitoumuitas vezes.Sua carahoje tem as rugas dessa cara.Suas rugas não têm cara.

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O outro poeta é o inglês W. H. Auden, autor desse delicioso “poema breve”:

Quem poderá imaginarCalvino, Pascal ou Nietzschecomo um róseo bebê rechonchudo?

Também aqui o poema/riso nasce do dese-quilíbrio entre nossa visão já fossilizada desses “grandes homens” com suas fisionomias graves e solenes, e a face rosada do bebê que desautomati-za totalmente nossa memória. Releia agora o poe-ma “O outro”, de Octavio Paz, e veja se não há uma ligação muito sutil entre esses dois poemas...

E já que falamos no surrealismo, um ótimo exemplo do “humour noir” dos surrealistas pode ser esse poema do francês Robert Des-nos, que retira do velho e vasto sortilégio das pragas uma inspiração para a poesia:

A pomba da arcaMalditoseja o pai da esposado ferreiro que forjou o ferro do machadocom o qual o lenhador abateu o carvalhono qual foi esculpido o leitoem que foi engendrado o bisavôdo homem que conduzia o ônibusem que tua mãeconheceu teu pai!

Na poesia brasileira contemporânea, se há um nome absolutamente incontornável quando o tema é poesia e humor, este nome é o de Zuca Sardan. Trata-se de nosso poe-ta mais original. Desconfio que o fato de seu nome ainda permanecer tão desconhecido do público em geral, quando ao contrário realiza uma obra absolutamente “acessível”,

tem a ver com a radicalidade de seu questio-namento da “seriedade” da poesia. Ninguém como Zuca empreende uma guerra tão sem tréguas contra a solenidade, contra o poe-ta muito cheio de si, contra o poema muito cheio de si. Seu poema-riso às vezes se quer sutil, às vezes bem grosseirão, mas não é nunca o que esperamos.

Há um poema de Zuca que tematiza jus-tamente o poder do riso de demolir as hie-rarquias:

Vea victisMalgrado a cabeleiraDe cachos empoados,Luiz XV revelou-seO maior republicano da França.

Num tribunal reacionárioRetrógrado e contra-revolucionárioO teriam certamente condenadoPra deixar de ser burro.

Mas compareceu, de fato,Àquele tribunal re-volucionário.

Então, pra se safarSó havia mesmoDizer que sua pessoa... era sagrada.

Nem por isso o teriam menosGuilhotinado.Mas, em todo caso,Morreria com certa dignidade.

A não ser que...Aqueles juízes grosseirõesComeçassem a rir...

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“Só para ficar nu/ preciso de dez alfaiates”, diz El Rey num poema de Zuca, e é bem contra essa retórica, esse gosto pelos floreios da elo-qüência, que se dirigem as setas de seu riso.

Não consigo não ligar a figura de Zuca Sar-dan com a de dois outros poetas, com os quais encerro a conversa de hoje. São eles o já citado Nicanor Parra, chileno, e a portuguesa Adília Lopes. No poema de Parra, o riso desintegra nossas pretensões de progresso e evolução, nosso orgulho por nossos avanços técnicos. Chama-se:

Projeto de trem instantâneoA locomotiva do trem instantâneofica no lugar de destino (Puerto Montt)e o último carro no ponto de partida (Santiago)

a vantagem apresentada por este tipo de tremconsiste em que o viajante chegainstantaneamente em Puerto Montt nomesmo momento em que aborda o último carroem Santiago

a única coisa que precisa fazer a seguiré dirigir-se com suas maletaspelo interior do trematé chegar ao primeiro carro

uma vez realizada esta operaçãoo viajante pode abandonaro trem instantâneoque terá permanecido imóveldurante todo o trajeto(Nicanor Parra)

•••

O poema de Adília Lopes é revelador de uma das características dessa poeta. Trata-se de ver a coisa mais comum (os mesmos “ob-jetos” comuns de Cortázar) com um olhar tão livre que a coisa comum (mas por um motivo bem diverso do absurdo de Cortázar) parece vir de Marte ou Vênus, revelada em toda a sua estranheza:

A bifurcação sucessivaDivido a minha vida em duas partes uma em que tinha orelhas e não tinha brincos uma em que já não tinha orelhas e toda a gente me dava brincos para me consolar de duas coisas de não ter orelhas e de não ter tido brincos quando tinha orelhas de todos nós assim era só euporque orelhas tinha duas

Espero que tenham curtido essa seleção do humor. Se tiverem conseguido pelo menos um risinho em algum desses poemas já justifica-ram tudo.

Que tal quebrarem todas as barreiras que impedem o riso de se expandir por regiões di-tas “proibidas” para ele, como a Arte, a Poesia, o Ritual, o Solene, e deixar a poesia que escre-vem rir um pouco de vocês, com vocês?

Até a próxima.

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Luís de Camões (1524-1580)

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Como esta é a nossa última aula (aliás, muito obrigado pela paciência!), gostaria de começar essa conversa falando um pouco da situação da poesia no mundo, tal como a encontrará o poeta novo, aquele que chegou à conclusão de que é, definitivamente, poeta, e que deve arcar com todas as conseqüências desse gesto meio tresloucado de resolver pensar por si, de se re--inventar, de pensar contra o consenso, contra as opiniões que só são consensuais porque são as que todos adotam... as opiniões de todo mun-do..., contra, enfim, a sociedade do espetáculo, do entretenimento e da diversão (que nada tem de diverso ou divergente, pelo contrário, funcio-na pelo eterno retorno do mesmo)...

Começo então citando algumas palavras do filósofo alemão Karl Jaspers, tendo tomado o cuidado, contudo, de substituir a palavra “fi-losofia”, empregada por ele, pela palavra “poe-sia”, que é o que nos interessa aqui...

Como sou dos que consideram a filosofia e a poesia “irmãs em universo” (o do pensamen-to crítico), creio que a coisa continuará a fazer sentido mesmo depois de minha interferência...

A citação, um pouco longo, se refere à oposi-ção que as pessoas em geral fazem ao exercício desse pensamento crítico que está entranhado na poesia e na filosofia:

“Mas como se coloca o mundo em relação com a poesia?

Há cursos de poesia nas universidades. Atu-almente, representam uma posição embaraço-sa. Claro que por força da tradição, a poesia é polidamente respeitada, mas, no fundo, é obje-to de desprezo. A opinião corrente é a de que a poesia não tem nada a dizer e carece de qual-quer utilidade prática.

A oposição se traduz em fórmulas como: a poesia é muito complexa: não a compreendo; está além do meu alcance; não tenho vocação para ela, e, portanto, não me diz respeito. Ora, isso equivale a dizer: é inútil o interesse pelas questões fundamentais da vida; o negócio é abster-se de pensar no plano geral para mer-gulhar num capítulo qualquer de atividade prática; quanto ao resto, bastará ter “opiniões” e contentar-se com elas.

Como se coloca o mundo em relação com a poesia? Carlito Azevedo encerra a oficina sugerindo: “Cultive um jardim, e faça poemas. Crie um cãozinho, e faça poemas.”

AULA 10

Luís de Camões (1524-1580)

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Um instinto vital, ignorado de si mesmo, odeia a poesia e diz: a poesia é perigosa. Se eu a compreendesse, teria de alterar a minha vida, teria de rever meus juízos.

E daí surgem os detratores que desejam substituir a obsoleta poesia por algo novo e to-talmente diverso.”

Pergunto: o “espetáculo”?“Muitos agentes do “espetáculo” vêem fa-

cilitado seu nefasto trabalho pela ausência de poesia. Massas são mais fáceis de manipular quando não pensam, mas tão-somente usam de uma inteligência de rebanho. É preciso im-pedir que os homens se tornem sensatos. Mais vale, portanto, que a poesia seja vista como algo entediante.”

Fim da citação, ou da quase citação... já que mudei algumas coisas, como, neste último pa-rágrafo, de onde retirei a expressão de Karl Jaspers “políticos” e coloquei “agentes do es-petáculo”... no fundo são a mesma coisa...

Pois bem... minha sugestão agora é que to-dos tenham em mente essas questões. Não pre-cisam nem concordar com o que está aí... mas é fundamental dar sua própria resposta a esse estado de coisas... coloquemos a questão nos seguintes termos:

a) Vale a pena tentar reunir poesia e “socie-dade do espetáculo”?

b) Mesmo sabendo que a sociedade do es-petáculo, e sua principal arma, a TV, só admite a figura do poeta quando devidamente “espe-tacularizada” pela morte (de preferência sui-cídio), ou sob a forma do “sujeito maluquinho”, “artista irreverentezinho”, o “bobo-da-corte pós moderninho” que fará caretas e trejeitos para a câmera, e só reforçará a idéia de que a poesia é de fato uma coisa irrelevante?

c) Será que essa postura expressa aí na le-tra b é uma postura “elitista” e “antiquada” e “fora de moda”?

d) O negócio então seria penetrar nas “bre-chas” do sistema do espetáculo para miná-lo “por dentro”?

e) Alguém já conseguiu esse feito?f) A que preço?g) O importante é alcançar a tão desejada

VISIBILIDADE?h) Ou a invisibilidade, a arte de desapare-

cer, podem ser os trunfos mais valiosos do po-eta hoje?

Enfim, são questões que deixo aqui para múltiplas respostas... as mais divergentes, as mais originais...

Pense nisso tudo e faça poemas!

•••

Mas se acentuei a parte mais difícil da si-tuação da poesia no mundo hoje, faço questão de acentuar também os aspectos positivos da situação. E eles existem...

Há alguns anos, o grande poeta mexicano fi-cou espantado de ver como conseguem conviver no mundo a opinião de que a poesia morreu, e, ao mesmo tempo, uma situação em que realmente é impossível citar um único país, por mais pobre ou por mais rico, que não conte com um grupo de poetas que editam uma revista de poesia, ou mantém uma editora especializada em poesia, ou, em lugares mais carentes, se reúnem em pra-ças para ler poemas e discutir poesia...

Vá ao Paraguai e encontrará grupos de po-esia, revistas de poesia ou blogs de poesia. O mesmo encontrará na Argentina, no Chile, no Iraque, na França, na Alemanha, na Guatemala, em Porto Rico etc...

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Esse é o lado bacana: na nossa estranha invi-sibilidade temos uma possibilidade imensa de interlocuções... Há países que ignoram o fute-bol, mas não a poesia. Há países que ignoram o golfe, o tiro com arco, mas não a poesia.

Esse é o lado bacana...Pense nisso também e faça poemas.

•••

Veja as fotos da recente agitação em São Paulo, e faça poemas.

Veja uma exposição de quadros abstratos, e faça poemas.

Dê uma caminhada pelo centro da cidade, note como ela, a cidade, entra pelos seus cinco sentidos, suas formas e cores pela visão, seus sabores pelo paladar, seus rumores pela audi-ção, seus esbarrões ou carícias pelo tato, seus odores doces ou acres pelo olfato, sinta isso e faça poemas.

Experimente isso num lugar tranqüilo, e também faça poemas.

Leia os filósofos, e faça poemas.Converse com os porteiros, e faça poemas.Aguce o ouvido quando estiver em um

transporte público ou ajuntamento popular, roube frases dali e faça poemas.

Pegue uma edição de Os lusíadas e faça um poema usando apenas uma palavra de cada es-trofe.

Aprenda uma língua que seja considerada “inútil” no mundo das relações econômicas, e faça um poema nela.

Cultive um jardim, e faça poemas.Crie um cãozinho, e faça poemas.A poesia está no mundo, e a ele se refere.Era isso.Um abraço.

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