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preço 10 Negócios Estrangeiros número 14 Abril 2009 publicação semestral do Instituto Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros Anton Bebler Carlos Alberto Damas Carlos Neves Ferreira Christian-Peter Hanelt Elsa Maria Dias Dinis Fauzia Nasreen Fernando A. de Figueiredo Filipe Ribeiro de Meneses Francisco Knopfli Francisco Proença Garcia Gonçalo Santa Clara Gomes João Sabido Costa Jorge Azevedo Correia José Carlos de Vasconcelos José Segismundo de Saldanha Leonardo Mathias Manuel Duarte de Jesus Marcello Vaultier Mathias Marina Eleftheriadou Meliha Benli Altunisik Nuno Caseiro Miguel Nuno Wahnon Martins Paulo Vizeu Pinheiro Pedro Catarino Rui Reininho Vasco Graça Moura Vicente Jorge Silva

Revista Mne14 Internet[1]

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NegóciosEstrangeirosnúmero 14Abril 2009

publicação semestral doInstituto Diplomáticodo Ministério dos Negócios Estrangeiros

Anton BeblerCarlos Alberto DamasCarlos Neves FerreiraChristian-Peter HaneltElsa Maria Dias DinisFauzia NasreenFernando A. de FigueiredoFilipe Ribeiro de Meneses Francisco KnopfliFrancisco Proença GarciaGonçalo Santa Clara GomesJoão Sabido CostaJorge Azevedo CorreiaJosé Carlos de VasconcelosJosé Segismundo de SaldanhaLeonardo MathiasManuel Duarte de Jesus Marcello Vaultier MathiasMarina Eleftheriadou Meliha Benli AltunisikNuno Caseiro MiguelNuno Wahnon MartinsPaulo Vizeu PinheiroPedro CatarinoRui ReininhoVasco Graça MouraVicente Jorge Silva

NegóciosEstrangeirosRevista N.º 14

RevistaPublicação do Instituto Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros

DirectorEmbaixador Carlos Neves Ferreira

(Presidente do Instituto Diplomático)

Directora ExecutivaMaria Madalena Requixa

Design GráficoRisco – Projectistas e Consultores de Design, S.A.

Pré-impressão e ImpressãoEuropress

Tiragem1000 exemplares

PeriodicidadeSemestral

Preço de capa€10

Anotação/ICS

N.º de Depósito Legal176965/02

ISSN1645-1244

EdiçãoInstituto Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE)

Rua das Necessidades, n.º 19 – 1350-218 LisboaTel. 351 21 393 20 40 – Fax 351 21 393 20 49 – e-mail: [email protected]

Número14 . Abril 2009

NegóciosEstrangeiros

5 Nota do Director

9 After Gaza: a common dialogue platform for the Middle East Christian-Peter Hanelt

18 The Shia protocols: the Iranian project of Shiite proselytism Marina Eleftheriadou

22 A situação actual no Cáucaso Paulo Vizeu Pinheiro

29 Turkey’s new activism in the Middle East Meliha Benli Altunisik

40 What to do about the Western Balkans? Anton Bebler

53 O diferendo sobre o nome ofi cial da Antiga República Jugoslava da Macedónia: a perspectiva da Grécia Marcello Vaultier Mathias

76 A nova polemologia Francisco Proença Garcia

112 Globalização, crime organizado e terrorismo: que relação? Nuno Gonçalo Caseiro Miguel

123 A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975): aspectos e implicações do relacionamento com a Austrália Fernando Augusto de Figueiredo

177 Os pedidos de empréstimos do Estado às casas bancárias Sir Francis Baring & C.º e Henry Hope & C.ª (1797-1802) Carlos Alberto Damas

211 A política diplomática portuguesa anterior à transferência da Corte para o Brasil João Sabido Costa

232 Portugal/Brasil, cinco séculos e alguns anos de convívio Francisco Knopfli

242 O regresso da Comunidade e a ascensão da religião: três contributos para a fundamentação do liberalismo

Jorge Azevedo Correia

Índice

264 Intervenção da Directora da Academia dos Negócios Estrangeiros do Paquistão, Embaixadora Fauzia Nasreen, por ocasião da assinatura do Protocolo de Cooperação entre o Instituto Diplomático e a Academia

Fauzia Nasreen

NOTAS DE LEITURA

275 Uma autobiografi a disfarçada, de João Hall Themido Uma vida dedicada à Diplomacia por Leonardo Mathias

277 De Pequim a Washington. Memórias de um diplomata português, de Luís Esteves Fernandes Um livro sincero e corajoso por Pedro Catarino

282 Letra e música, de Paulo Castilho Compositora e Intérprete por Rui Reininho

285 Encontro em Capri ou o diário italiano de Gorki, de Marcello Duarte Mathias Algures no Mediterrâneo por Vasco Graça Moura

291 Tanto Mar? Portugal, o Brasil e a Europa, de Francisco Seixas da Costa Portugal/Brasil: compreender e agir por José Carlos de Vasconcelos

294 Todo-o terreno. 4 anos de reflexões, de Ana Gomes por Vicente Jorge Silva

296 António Feijó – diplomata, de Fernando de Castro Brandão por Manuel Duarte de Jesus

298 Guerra civil de Espanha: intervenção e não intervenção europeia, de Luís Soares de Oliveira por Filipe Ribeiro de Meneses

302 Teatro de sombras – Contos, de António Pinto da França Entre Ironia e Cumplicidade por Gonçalo Santa Clara Gomes

304 China – cooperação e conflito na questão de Taiwan, de Luís Cunha por Elsa Maria Dias Dinis

308 Inside the Jihad. My life with Al-Qaeda, a spy’s story, de Omar Nasiri por Nuno Wahnon Martins

CADERNOS DE ARQUIVO

315 Relação da Embaixada e Entrada Pública que deu nesta Corte o Conde de Valdstein, Embaixador Extraordinário da Alemanha, ao Senhor Rei D. Pedro II, escrita pelo Conde de Assumar D. João de Almeida vedor da Casa Real que por ordem de El-Rei lhe fez a hospedagem

José Segismundo de Saldanha

Linhas de Orientação

Os artigos reflectem apenas a opinião dos seus autores.

5

COMO SE SABE, mas convém sempre recordar, em revistas editadas por organismos oficiais

os artigos de opinião publicados comprometem apenas os seus autores e não

representam o ponto de vista oficial, oficioso ou mesmo diplomaticamente discreto,

do Governo que tutela a entidade editora. Isso será tão mais verdade quanto mais

polémicos possam ser os pontos de vista expressos. Pretender dar alguma vida e

animação a uma publicação semestral é pois uma ambição frágil que só se for assente

num módico de controvérsia pode adquirir alguma sustentabilidade. Há que fugir

do politicamente correcto e das suas variantes oficiosas. É preciso evitar cair num sea

of platitudes, para roubar uma expressão de Henry Kissinger, ouvida numa reunião da

NATO nos anos 70, em que a procura obstinada do consenso transformava os textos

a aprovar numa prosa inócua e esquiva.

Não tem a NE um conselho de leitura, por cujo crivo passem os textos publicados.

Quer isto dizer que a responsabilidade da sua escolha é integralmente do director

da publicação, que se limitou a pedir a um ou outro especialista nas áreas cobertas

pelos artigos uma simples opinião de sim ou não quanto ao mérito e à oportunidade

da sua publicação. Não há pois qualquer diluição da responsabilidade pela via da sua

transferência para um comité que assuma as escolhas que, sendo porventura polé-

micas, repousam depois na inocência e no anonimato das decisões colectivas.

Dito isto, umas palavras sobre o conteúdo do presente número.

Saíram em 2008 alguns livros cujos autores são membros da carreira diplomática.

Cobrem vários géneros; memórias (embaixador João Hall Themido, Uma Autobiografia

Disfarçada, e embaixador Luís Esteves Fernandes, De Pequim a Washington: Memórias de um

Diplomata Português); ficção (embaixador Paulo Castilho, Letra e Música, embaixador

Marcello Mathias, Encontro em Capri ou O Diário Italiano de Gorki e embaixador António

Pinto da França, Teatro de sombras – Contos); compilações de intervenções públicas

(embaixador Francisco Seixas da Costa, Tanto Mar? Portugal, o Brasil e a Europa e embaixadora

Ana Gomes, Todo -o -Terereno – 4 anos de reflexões); ensaio biográfico, (embaixador Fernando

de Castro Brandão, António Feijó, diplomata); estudos sobre a diplomacia portuguesa

(embaixador Soares de Oliveira, Guerra Civil de Espanha: Intervenção e Não Intervenção Europeia).

Nota do Director

NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 5-7

6 São publicadas, também, notas de leitura relativas a outros livros recentemente

editados.

Há que saudar com entusiasmo estas manifestações de veia literária:

algumas que acompanharam a vida profissional dos seus autores, nasceram

e maturaram ao longo dela (Marcello Mathias, Paulo Castilho, Pinto da

França), outros, que esperaram a guilhotina legal que atira os diplomatas aos

sessenta e cinco para a estranhamente denominada disponibilidade em

serviço ou para a equívoca alacridade do estado de jubilação; outros, ainda,

que traduzem uma vontade constante de intervenção na vida política

nacional (Ana Gomes, Seixas da Costa); outros, finalmente, que se espera

contribuam para um costume abandonado, o do memorialismo e do

testemunho pessoal das causas e dos factos que preencheram vidas

profissionais e que se conhecem de forma esparsa por mera tradição oral

(Hall Themido, Esteves Fernandes). Por último, é de dar um merecido relevo

aos estudos sobre aspectos concretos da vida diplomática nacional e

internacional, como os do embaixador Soares de Oliveira e embaixador

Castro Brandão, sobre a diplomacia portuguesa no quadro mais vasto da

guerra de Espanha e a acção de um escritor -diplomata de prestígio como

António Feijó. Os estudos, monografias e ensaios perderam motivação e

impulso (irremediavelmente?) quando no sistema de progressão na carreira

se optou pela facilidade em nome da equanimidade, e se abandonou a

dissertação, prévia à promoção a conselheiro, até aí, obrigatória. Perdeu -se o

hábito da análise aprofundada do caso concreto e da sua peer review. Perdeu-

-se, também, uma fonte sistemática para o registo da visão do país sobre

questões determinadas, nacionais ou não, sobre as actuações seguidas, as

escolhas feitas e as alternativas rejeitadas.

Não foi fácil a selecção dos textos agora publicados. Procurou -se um

equilíbrio entre as questões da actualidade com importância e algum relevo

para Portugal, entre autores nacionais – diplomatas, civis, militares,

académicos –, e estrangeiros que, gentilmente, nos cederam artigos inéditos

ou deram a autorização para se reproduzirem textos já editados, porém em

publicações de divulgação mais restrita.

Um conjunto de notas de leitura acompanha a notícia dos livros

editados em Portugal, da autoria de diplomatas de carreira. Muitos dos que

acederam a elaborá -las não são do MNE ou com o Ministério terão tido uma

NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 5-7

7relação remota. Procuraram -se afinidades electivas temperadas com visão

crítica, espera -se que isso tenha vindo ao de cima.

Numa nova secção, a que se chamou “Cadernos de Arquivo”, passamos

a transcrever documentos que são fontes para a História da Diplomacia, e

que podem ser encontrados no Arquivo Histórico Diplomático, bem como

noutros arquivos nacionais ou estrangeiros. Com esta nova secção espera -se

suscitar interesses, despertar curiosidades e, até, estimular vocações científicas

para a História da Diplomacia. Nestes Cadernos poderão publicar -se as

transcrições de documentos que os leitores ou os investigadores desta área

se disponham a enviar ao Arquivo Histórico Diplomático para esse efeito.

Quando foi possível e pareceu justificar -se, os artigos publicados foram

precedidos de um abstract em inglês.

Por último, cumpre registar que este número foi possível porque se

manteve a colaboração com a empresa ARED e com o seu director, Didier

D’Arcy Dachez.

O Presidente do Instituto DiplomáticoCarlos Neves Ferreira

Embaixador

NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 5-7

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9After Gaza: a common dialogue platform for the

Middle East

Christian-Peter Hanelt*

■ Abstract:

If one wants to have peace in the Middle East, one will have to persuade all of the actors

to sit around a table and to talk about all of the conflicts. Secret negotiations are just as

ineffectual as the exclusion of certain actors. Only a common platform for dialogue will

enable the European Union and above all the U.S. to fulfil their peacemaking mission.

■ Key words:

Middle East, Conflict-resolution, Europes role in the Middle East, Iran, Syria, USA.

I – The Hamas -Israeli War THE WAR AGAINST Hamas has strengthened Israel directly in military

terms, but has completely ruined its reputation in the Arab and Muslim world. The

danger of Hamas rocket attacks may have been terminated for the time being, but in

regional terms Israel’s security situation has not got any better.

Can anyone still provide security in the Gaza Strip? The Palestinians are divided

and without a legitimate leadership, and the situation seems hopeless and desolate in

Gaza. The Annapolis negotiations between Israelis and Palestinians have not yet led to

a two -state solution. The strategy which involves strengthening Fatah on the West Bank

and isolating Hamas in the Gaza Strip has not worked. The political elites continue to

fight shy of an open and honest dialogue with their citizens. Although they are fully

aware of the basic facts of a solution to the conflict between Israel and Palestine, they

continue to steer clear of spelling out the compromises that will have to be made.

Trust in others has reached its nadir. Each side has its own media and perceptions.

The Arabs watch Al Jazeera, the Israelis watch Channel 2, the Americans watch Fox

News, and the Europeans watch the BBC. The conflict has generated a great deal of

emotional turmoil, as the worldwide pro -Israeli and pro -Palestinian demonstrations

have shown. Apart from demonstrations in European capitals, hundreds of people took

* Senior Expert, Program Europe’s Future, Bertelsmann Foundation. Bertelsmann Stiftung, christian.hanelt@

bertelsmann.de

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10 to the streets in German provincial towns, too. This poisons the whole atmosphere,

and more and more people are prompted to espouse radical views. The moderate

forces and governments are being weakened and the prospects of an Israeli-

-Palestinian two -state solution is becoming increasingly improbable.

In the Hamas -Israeli conflict in particular the European Union is once again

being called upon to bear the burden of conflict management. This was already the

case in the summer of 2006 in southern Lebanon, when the war between Israel and

Hizbollah ended only after the deployment of the UNIFIL II mission. Yet this conflict

demonstrates that the end of a war does not signify peace by any stretch of the

imagination. The international missions monitoring the ceasefire will only turn out

to be a success once peace treaties between Israel, the Palestinians and their Arab

neighbours have been concluded.

II – Everything is Interconnected The convoluted state of affairs continues to worsen because

all of the actors in the Middle East taken as a whole have their fingers in the pie

somewhere, either with regard to the use of force or to attempts at peace -making, as

some examples connected with the most recent Hamas -Israeli war demonstrate:

• Syria is allowing exiled Hamas leader Mashaal to act more freely in order to

show Israel and the U.S. that Syria wishes to have a say in matters relating to

war and peace.

• The hardliners in Iran are relieved yet again that international attention has

now shifted to Israel and Gaza and away from their nuclear programme.

• Israel is attacking Hamas alos in order to deter Hizbollah on its northern

border.

• Egypt has sealed off Hamas within the Gaza Strip in order to prevent it from

cooperating with the Egyptian Muslim Brotherhood.

• Iran and Syria are using their influence on Hamas in order to strike the

U.S. via Israel, in other words, to demonstrate that they can harm American

interests in the region, but that they can also promote them.

“Regional Powers are playing the game indirectly.”

In these manoeuvres the regional powers are playing the game indirectly. Whilst

demonstrating to each other how potentially disruptive they can be, they are not

giving anyone a reason to attack them.

This method is also used in order to delay or even to torpedo bilateral attempts

to resolve conflicts.

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11• Turkish attempts to bring about a rap prochement between Israel and Syria has

mobilised Lebanese and Palestinians, since they fear that such an agreement

will be at their expense.

• Mere rumours that Washington is trying to reach a bilateral agreement with

Tehran has Saudis, Emiratis, Israelis and Iraqis up in arms. They are afraid that

an American -Iranian treaty might fail to take into account their own security

interests.

• Israel is in favour of peace with Syria primarily in order to isolate Iran, and

construes the stand -offs with Hamas and Hizbollah as proxy wars with Iran.

• Pictures of the unabated construction of settlements in East -Jerusalem or on the

West Bank make it increasingly difficult even for moderate Arab leaders in the

Gulf to ask their countries to support the Arab peace initiative with Israel.

The attempts to ignore, neutralize or isolate spoilsports and obstructionists

have come to grief as a result of regional entanglements.

• The Israeli government’s plan to negotiate a two -state solution with Fatah has

ground to a halt also because it has been impossible to isolate Hamas, who

are in control of Gaza.

• The Lebanese Hizbollah emerged strengthen-

ed from the asymmetrical war against the

Israeli Army in the summer of 2006. It was

able to exercise its veto in the context of

intra -Lebanese wrangling and, by pointing

to the ongoing conflict with Israel, to

stop attempts to disarm it. In this regard

Iran and Syria have displayed the extent of

their influence. A Syrian -Saudi quarrel

paralyzed an intra -Lebanese agreement for

months.

Thus the so -called non -state actors such

as Hamas and Hizbollah are in fact tools of

the competing regional powers in the Middle

East. And to make everything even more

complicated, moderate politicians and radical

leaders are jostling for power even within

movements such as Hamas and Hizbollah.

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12 The former CIA case officer and Middle East specialist Robert Baer sums up the

situation thus. “Hizbollah, Hamas and the Shiite parties in Iraq look to Tehran for

financial aid and support. As long as the U.S. does not solve the Israeli -Palestinian

conflict, Iran’s influence will grow.”

Thus it is possible to argue that the attempt to isolate the regional powers Syria

and Iran has been a failure. Furthermore, bids to conclude bilateral agreements have

come to grief on account of the veto powers of neighbouring states. Conflict

management as in the case of Israel -Gaza and Israel -South Lebanon may be of

importance in order to bring armed conflicts to an end, yet conflict management per

se simply increases the potential for further wars. The next step in the dispute

relating to the Iranian nuclear programme is already discernible on the horizon.

And last but no least, conflict management is becoming more expensive. The

international community is having to come up with more and more diplomatic,

financial and human resources to support a UN mandate, whilst at the same time

endangering the lives of its aid workers and blue helmets. And the missions come to

an end only when it is possible to make peace. For example, the UNIFIL II mission

in southern Lebanon, which since the summer of 2006 has been run primarily by

European blue helmets, will turn out to be a success only after Israel has signed

peace treaties with Syria and Lebanon.

Each actor in the Middle East is afraid that his interests and anxieties will be

passed over or ignored. Each actor wishes to be esteemed, accepted and taken

seriously by his neighbours and the USA. Each actor would like to show how

important he is in the region and that it is worth supporting him in political and

economic terms. Each actor is striving for security and prosperity.

Politics is no doubt a sober business of balancing interests. Yet in the Middle East

emotions, symbols, vivid ideas and neurotic images also play an important role.

Future conflict management and conflict resolution need to pay more attention to

such perceptions.

III – A Common Platform for Dialogue Future diplomatic efforts should be directed

primarily at providing a common platform for all of the actors and thus for all of

their interests, fears and cleavages.

However, this common platform will not simply be part of a never -ending series

of Middle East intergovernmental conferences and not another summit held for its

own sake. No actor will be excluded, all interests will have a voice, every conflict will

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13be taken seriously and everyone will have the same opportunity to explain his

anxieties and fears about the future. It will all be about honesty, openness, modesty

and a new language of reconciliation.

It is not about pageantry, showmanship, big promises or bitter accusations. This

is not a naive or cosy strategy, and is also all about sending out a symbolic signal:

There will be no more secret negotiations of the kind which give rise to nothing but

suspicion and opposition. Secretiveness spawns rumours and conspiracy theories,

and in the Middle East this always means that everything has already come to grief

before it has even got off the ground. The search for peace in the Middle East needs

to escape from this vicious circle.

“Avoid as much diplomatic wrangling as possible.”

The methodology of this new approach is based on the idea of inviting all parties to

share a common platform on which they can search for ways for a common and

sustainable resolution of their various interlinked conflicts. The goal of this quest is

not as in the past conflict management as such. Many actors in the region reject the

kind of conflict management strategy pursued in recent years, which they believe is

nothing more than muddling through and procrastination, and has been unable to

reduce the potential for new outbursts of violence.

In contrast to this the goal of this quest is nothing less than conflict resolution,

though in all modesty on two levels of attainment: The first level, which takes its

bearings from the notion of conflict transformation, is a stage in which the dialogue

platform becomes the forum within which potential conflicts can be nudged into

peaceful channels. The second level presupposes that a serious effort will be made

by all of the participants to terminate as many conflicts as possible with the help of

peace treaties. Thus the platform could move on from being a dialogue forum to

become a negotiating forum.

Once all of the actors are sitting round a table, they will have become an integral

part of the process. No one will be able to claim that he was not invited or that he

was not listened to, and that he thus has every right to opt out of the process and to

make trouble for everyone else. Anyone who turns down an invitation is telling the

rest of the world that he is trying to hold things up. He can no longer hide behind

the claim that an external force, as was the case with the Bush administration, has

done all it can to isolate him (as in the case of Iran) or is actually dead set against

having him there at all (as in the case of Syria).

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14 All the actors will be invited on the basis of equality. The envoy system will be

used in order to avoid as much diplomatic wrangling as possible about status

questions before the platform convenes. Every head of state and government will

choose an envoy. The Palestinians (in point of fact without a legitimate leadership

since 9 January) will decide themselves, without pressure from outside, who is to

represent them at the talks. If it is one person from Gaza and one person from the

West Bank, then that may initially be possible, though in the course of time they will

also have to reach agreement on a special envoy. The platform will be exerting

pressure on them to attain a consensus. As a multilateral external actor the European

Union should agree on one voice, which might well be that of the High Representative

for the Common Foreign and Security Policy, Javier Solana.

The meetings will take place on a regular,

or, and this would be even better, on a

permanent basis, so that invitations to the next

gathering will not involve a great deal of

diplomatic effort. The envoy solution will

make it easier to agree on dates and on an

agenda. All the various conflicts will be on the

agenda. The discussions will then consider all

of the more or less interwoven lines of conflict:

Israel -Palestine, Israel -Syria, Israel -Lebanon,

Arab World -Israel, Lebanon -Syria, Iraq -Iran-

-Turkey -Syria, Gulf States -Iran, Iran -Israel, and

Iraq and its neighbours. The most important

thing is to attempt to create as much consensus

as possible and to balance the various interests in an equitable manner. And if progress

is made in the discussions and negotiations on the Israeli -Syrian agenda item, for

example, it will have a positive influence on the other conflicts.

All the fundamental issues on which these conflicts are based, such Israel’s right

to exist as a Jewish state, the Palestinians’ and the Kurds’ right to self -determination,

the territorial integrity of Iraq, the independence of Lebanon and Syria, Iran’s

security interests, or the stability and security of the Arab Gulf states will be taken

into account.

The comprehensive approach of a common platform for dialogue will give the

Arab world the assurance that all the contentious points relating to Israel will be dealt

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15with, as will Israel’s concerns about its regional security and full incorporation into

the region. Iran will be able to make out a case for its wish to be an integral part of

the region. The U.S. will perceive that the withdrawal of its troops from Iraq is safe in

the regional context. And the smaller countries of the region will also have their say.

The symbolism of the venue is of some importance. For this reason the common

forum for dialogue will not be meeting in places which remind people of previous

Middle East initiatives such as Oslo, Madrid, Annapolis, Camp David or Shepherdstown.

Nor will the participants be meeting in places which are associated with important

historical agreements such as San Francisco, Rome or Seville (however pleasant it

might be, though not all of the actors may be of this opinion). The common forum

for dialogue is supposed to stand for a new beginning of a modest, inclusive and

goal -oriented kind, and for this reason as many associations as possible should be

avoided. It must be a practical working location for the envoys. The best thing would

be somewhere in the Middle East, partly in order to emphasize the connection with

the region, and the commitment of the actors who actually live there.

The greatest responsibility devolves on the host as discussion leader. What is

needed is a powerful and very tactful personality. Even if many actors believe that the

U.S. has lost its reputation as an honest broker, it continues to be the most powerful

external actor. It has a sizeable number of armed forces in the region, a plethora of

interests, and the greatest ability to issue certain guarantees. For almost everyone in

the region the new American president stands for hope and a new beginning. His

envoy should also embody this positive kind of authority. The reason for this is that

the American envoy will bear the principal responsibility for the atmosphere of the

talks. He must avoid that the multilateral talks will fall apart into bilateral and (semi -)

secret negotiations. And last but not least he will also have to incorporate the other

external actors (EU, UN, Russia, China, and Japan) on an equal footing.

IV – No time to lose The inauguration of the new U.S. president would seem to be a good

moment to start with the initiative. Barack Obama himself has announced that he

will quickly become involved in the Middle East conflict. Thus it seems that on this

occasion presidential participation, in contrast to Obama’s predecessors Clinton and

Bush, can already be expected at the beginning of a term of office and not at the

end. That would strengthen the authority and the commitment of U.S. involvement.

At the same time Obama will encounter a great willingness on the part of the

Europeans and many regional actors to work together closely.

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16 In recent months Obama’s advisers have let it be known that they will be

suggesting to the new U.S. administration that there should be multilateral

involvement, close cooperation and burden -sharing with the EU, and a dialogue

between Washington, Damascus and Tehran. Furthermore, Israel is electing a new

parliament in February and thus a new government, and Iran is electing a new

president in June. And the Palestinians are being pressured to determine a new

legitimate leadership. These are the points which suggest that 2009 may well be a

year of opportunity in which it would make sense to embark on a new approach to

conflict resolution in the Middle East.

The difficult and unpredictable challenges posed by the global economic and

financial crisis still constitute a risk. Thus the Obama administration might well have

to deal with growing intra -American problems, and this may leave little time for

foreign policy initiatives. Similarly, new incidents in the Middle East may lead to

crises or wars at a moment’s notice, and this would terminate an ongoing dialogue

or defer it indefinitely.

V – What is the EU doing? The European Union possesses a wealth of experience and skills

with which it can help to implement a new Middle East ap proach on the basis of a

common platform for dialogue.

• The EU can impress upon the new U.S. administration that the inclusive

approach is better than to act bilaterally and to isolate important players; that

Obama must move on the Middle East at the beginning of his presidency

and not towards the end; that the strategy should be conflict resolution and

not procrastinatory conflict management; that a new negotiating approach

must be adopted and that all this taken together can dramatically improve the

image of the U.S. in the region, and in the final analysis can even create better

regional conditions for a withdrawal of U.S. troops from Iraq.

“The isolation of Syria and Iran has failed.”

• The EU has resilient relations with all of the actors in the region, and for this

reason it can underline the importance of American envoy invitations to states

such as Iran and Syria that have hitherto been isolated from the USA.

• The EU is the largest financial donor to the Palestinian administration. It is

involved in police training (EUPOL COPPS) and in customs clearance at Rafah

crossing between Gaza and Egypt (EU BAM).

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17• Europe needs peace projects in its southern neighbourhood so that the

Mediterranean Union can get off the ground and that at long last the great

social and economic challenges in North Africa and the Middle East can move

to the centre of the policymaking stage.

Despite this important potential, the European Union should not adopt a

competitive stance towards the USA. In fact the EU should realize that a solution of

the conflict will only be possible if there is a new and stronger role for the U.S.,

which in its turn is placing its hopes in a resilient Transatlantic partnership.NE

FOR FURTHER READING:

Christian Hanelt / Almut Möller (Editors): Bound to Cooperate – Europe and the

Middle East II, Bertelsmann Stiftung, 2008

Bertelsmann Foundation: Trans -Atlantic Briefing Book – Managing Expectations,

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NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 9-17

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18 The Shia protocols: the Iranian project of Shiite

proselytism

Marina Eleftheriadou*

■ Abstract:

Lately there has been a heated debate about Iranian efforts to spread Shiism to Sunni

countries. Many Sunni religious and political figures have contributed to this latest

addition of anti -Iranian rhetoric, exaggerating the actual extent of the phenomenon of

Shia conversions. It seems that once again Iran’s rising regional status challenges Sunni

predominance in the region. However, although politically more prolific, religiously, the

Iranian example, at least for now, flourishes only under very specific circumstances.

IN SEPTEMBER 2008 one of the most prominent Islamist scholars – perhaps the most creative of

the Muslim Brotherhood trend – Yusuf al -Qaradawi, condemned the Shiite “attempts

to invade the Sunni community… [through] missionary work”. From inside the Sunni front

some more or less discreetly nodded their heads, while others in turn dismissed

Qaradawi’s remarks in abhorrence usually attributed to someone still evaluating the

situation. Qaradawi’s warning was the latest ring in a chain of similar statements

starting from Jordan’s king Abdullah who first spoke of the ‘Shia crescent’, followed

by Hosni Mubarak, who in 2006 asserted that the Arab Shia were more loyal to Iran

than to their own countries. Saudi king Abdullah said in this context that the Shia

were trying to convert Sunnis, while assuring at the same time that “the dimensions

of spreading Shiism” were under the close scrutiny of the Saudi regime. Furthermore,

Qaradawi himself accused the Shia of trying to exploit Hezbollah’s victory against

Israel in order to penetrate Sunni societies.

In the meantime newspapers and figures of lesser influence and with no real

interest in the official political -correctness preserved the issue by adding drama to the

debate. The editor -in -chief of Al -Ahram linked Iran’s project of “spreading Shiism” to the

desire to “revive the dreams of Safavid” (a Persian dynasty that in 16th century established

Shiism as the official religion of the Persian Empire). Accordingly, the Jordanian

* Senior Researcher and PhD candidate at the Center for Mediterranean, Middle East and Islamic Studies of the

Peloponnese University, Greece. This article was published in the Middle East Bulletin, Issue 13, November

2008, http://pedis.uop.gr

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19newspaper, Ad -Dustour, identified that the project’s plans were to expand Shiism from

India to Egypt. However, nothing was more indicative of the Sunni community’s low

spirit than the moan of wounded pride in the article published in Al -Siyassa (Kuwait),

written by its editor -in -chief Ahmad al -Jarallah. In his article, Jarallah pleaded the

“leaders of all Arab countries [to] hold a summit to prevent Iran from stealing Arab issues”.

The Middle East witnesses Iran’s second 1979 and the Sunni regimes are alarmed

by it, more so since the Sunni community perceives an ongoing transformation of this

threat from a political into an existential one.

Iran’s current rise might lack the revolutionary charm of 1979; however, quite

contrary to the heydays of the Iranian Revolution it is now characterized by firmer

foundations. The inexperienced leadership of 1979 entered Islamist and generally

Middle Eastern affairs like a bull into a china shop, stirring up the whole region but

in the end ‘grabbing’ more than it could hold. Nowadays, the Sunnis argue that Teheran

takes one step at a time, sneaking into the former’s open wounds and letting its

defiance of regional and global norms of conduct attract followers. A message, which

was proven inadequate in the post -1979 “shia expansion”, has been ‘surrounded’ now

by an entire – conspiracy – strategy in order to support its validity and consistency. In

the past Iran merely managed briefly to mobilize the Gulf Shia: civil unrest in the oil-

-rich Shia -populated eastern provinces of Saudi Arabia erupted in December 1979 but

soon died out although one has to say that its products remained active even after the

revolution (e.g. the Saudi Arabian Hezbollah and its attack on the Khobar towers in

1996). The Iranian Revolution also inspired the creation of the Palestinian Islamic Jihad

and created its star product the Lebanese Hezbollah. Finally, it gave a note of militancy

to the Sunni Islamists which however in their majority preferred to use the Iranian

example without adopting its dogma. Soon the Sunni militants would either turn

indifferent in the face of the new Islamic ideal in Afghanistan or applaud Saddam as he

was bleeding out Iran. Briefly, Iran’s final balance -sheet was far from positive.

Nonetheless, in 2008 as the Sunni regimes failed to cope with the mounting

crises, they saw their cherished containment of Iran evaporate. On Iran’s east, the

Taliban -Pakistan -Saudi Arabia axis might remain strong and potent, however, it has

been transformed while additionally the Pakistani and Saudi Arabian link have been

highly volatile and therefore less manageable. On Iran’s west the Iraqi bulwark

disappeared into thin air, opening thus the gates of the Middle East. As the great force

multiplier (nuclear power) is coming into being, Iran is scoring victories in Iraq,

Lebanon (via the other Shia player, Hezbollah) and Palestine (through its direct or

Syria -intermediate relations with Hamas and smaller rejectionist Palestinian groups,

e.g. Islamic Jihad and PF -General Command).

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20 In other words, Teheran is stealing the Arab issues while the Arab elites want to

secure the Sunni soul. In 1979 Saudi Arabia battled Shia expansionism by highlighting

Iran’s Shia particularity as directly linked to Persian nationalism. Today, it is not

anymore only about more assertive Shia communities inside Sunni -dominated states

but also about losing followers to the Shia. What can seem more threating compared

to the image of scores of Shia converts in “Egypt, Sudan, Tunisia, Algeria, Morocco, and other

non -Arab countries such as Malaysia, Indonesia, Nigeria, and Senegal…even the Gulf States and Syria, but

of course, Syria, Iraq and Lebanon have Shia communities and therefore, unlike countries where there was

no Shia, conversion to the Shia sect does not stand out” (Yusuf al -Qaradawi).

Actual figures which would allow estimations are lacking and Sunni alarmism

blurs the picture even more. However, conversions, although far less common than

asserted, seem to occur mostly in predominately Sunni regions, which share some

kind of acquaintance with Shia culture. On the contrary, in regions of mixed

populations and Shia minority status (Arab Gulf) or in regions of increased Shia

assertiveness and tensed Sunni -Shia relations (Iraq and Lebanon) the Sunni identity

seems more solid and resistant. An exception to this pattern is Syria which due to

the political leverage exerted by Iran and the peculiar sectarian nature of its regime

forms the most interesting case. One could also add Jordan. However, Amman’s

increasing preoccupation with Shia converts is most probably connected with the

social upheaval created by the arrival of thousands of well -off Iraqi Shia refugees.

In this context, conversions occur in North African countries, including Egypt,

which acquired their religious folk familiarity with Shia practices from the time of

the Fatimid rule. When Qaradawi highlighted the case of Egypt: “I left Egypt 47 years

ago, it had not a single Shiite and now there are many... who took them to Shiism? Egypt is the cradle of

Sunnism and the country of Al -Azhar”. However, he overlooked that Al -Azhar was founded

during the Fatimid era or as Qaddafi said: “Cairo cannot escape its Fatimid destiny”.

Although Shia in Egypt are said to represent less than 1% of the population (and any

sporadic conversions can hardly change that), the authorities, in order to rally the

people around the flag vis -à -vis Iran, look worried. So are the Algerians, the Sudanese

and the Moroccans. Two years ago the Algerian Ministry of education suspended

eleven teachers as they were accused of conducting Shia missionary work. While in

Algeria primarily Shia expatriates from Iraq, Syria and Lebanon were held responsible,

in Morocco the .messengers. were Moroccans working in Europe where they were

approached by Iranian charitable organizations. In Sudan the accusations have been

directed towards the Iranians themselves who allegedly took advantage of Khartoum.s

friendly disposition towards the Iranian revolution. According to the Sudanese.

Supreme Council for Coordination among the Islamic Associations, through the

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21proselytism of the Iranian Cultural Center in Khartoum, “whole villages have been converted

to Shiism, and Shi’a mosques have proliferated in Khartoum”.

While these predominately Sunni countries are more susceptible to Shia

proselytism, the Gulf countries on the other hand, which are home to large Shia

communities (20% in Saudi Arabia, 30% in Kuwait, 70% however politically

subordinated in Bahrain), are more vulnerable to the prospect of militant Shiism

rather than proselytism as the Sunni community, threatened as it feels, is heavily

entrenched behind its sectarian identity. This is even more explicit in Lebanon and

Iraq. Not only, as Nasrallah, said would it be cheaper simply to produce more

children (as the Shia in Lebanon have been doing for the last decades), but also the

possible candidates for conversion are more probable to turn to militant Sunnism to

safeguard their political position rather than change camp.

Syria’s Sunnis present a different situation. Not only have they been indoctrinated

for years in a Ba’athist -Alawi regime and subjected to significant Iranian political

and economic penetration, but they have also been deprived from a rallying point

since the ouster of the Muslim Brotherhood. It is disputed whether conversions

predominately affect the Alawi or the Sunni community (official statistics point to

the former, while the Sunnis claim it is the latter under the regime’s blessing).

However, in any case, both of them are subjected to the same set of powers. Iran’s

and Hezbollah’s achievements are multiplied via Iran’s political, economic and

cultural inroads into the country. Dozens of Shia shrines have been built or restored,

hundreds of hawzas (Shia seminary) and cultural centers have been established and

several hundreds of thousands religious Shia tourists (mostly Iranian) flood the

country every year. At the same time, Iran’s huge investments engulf the Syrian

economy. If the state sector is earmarked for the close circle of Assad’s Alawi loyalists,

the private sector is not less cliental, but in this case it is the Iranians who occupy

the HR positions. It is exactly the combination of Iranian political and economic

involvement and the doctrinal -sectarian proximity of the two regimes that allowed

Teheran to establish an enormous mechanism of cultural influence. This explains

why for example in Palestine (Gaza), despite the defamatory “Shiites” increasingly

attributed to Hamas by Fatah, there is no such phenomenon.

In the final analysis, as a Shiite cleric in Saudi Arabia said: “People in the region always

complain about a Shiite crescent...That’s just a crescent. What about the full Sunni moon?” The exact

extent of the “Shia invasion” little matters. It is more interesting and important to

see if the Sunni world and especially Saudi Arabia is capable to recuperate from 9/11

setbacks and put again in motion its extensive counter -Iranian mechanism that

worked so effectively in the 1980s.NE

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22 A situação actual no Cáucaso

Paulo Vizeu Pinheiro*

AGRADEÇO AO PROFESSOR LUÍS Filipe Tomás, da UCP, e ao Embaixador Carlos Neves Ferreira,

Presidente do Instituto Diplomático que me desafiaram para participar nesta mesa

redonda sobre a região do Cáucaso. Aceitei de imediato, pois sabia que seria sempre

um enorme prazer regressar, ainda que por breves instantes, à casa onde me licenciei

e onde frequentei, em simultâneo, uma pós -graduação e um mestrado.

Começaria por uma pergunta provocatória.

Qual o interesse de e para Portugal? É que não importamos nem petróleo nem gás. Para

Portugal, em termos concretos, quer energéticos, quer económicos ou comerciais, é

uma espécie de non issue. Também não é uma zona de passagem dos nossos bens. Não

é sequer um entreposto de serviços para o nosso país.

• E em termos humanos, de imigração (segurança humana e segurança

nacional) a importância do Cáucaso é também reduzida.

• O Cáucaso não reflecte nenhum interesse vital ou fundamental, verdadeiramente

insubstituível ou incontornável. Também não constitui uma ameaça à nossa

segurança.

• Ainda para mais é provavelmente a região com maior concentração de

conflitos irresolúveis por km2 – os hoje chamados conflitos gelados, mas que,

desde há séculos, existem sobre outras denominações. Conflitos anteriores a

Pedro o Grande ou Catarina.

• Reparem que os períodos de alguma estabilidade e identidade nacional, na

Arménia ou Geórgia, são sempre muito curtos. Aproveitando as transições nos

ciclos imperiais. O período mais recente, o do fim da URSS, também

testemunhou conflitos secessionistas e integracionistas. Ou seja, mesmo no

* Diplomata, Director-geral de Política da Defesa Nacional. Intervenção num Seminário organizado pela

Universidade Católica.

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23período ideal para afirmação nacional, de desagregação súbita do império

soviético, os conflitos, do início dos anos 90, extremamente sangrentos, não

tiveram um desfecho minimamente claro ou estável, como sucedeu, em

grande medida, nos Balcãs, em que a antiga Jugoslávia se desdobrou e

multiplicou em países viáveis, hoje membros da UE ou NATO, ou a estes

candidatos.

• Mais, por razões de simplificação analítica gostamos de nos referir ao Cáucaso

como uma região bem definida. Mas estamos a falar do Cáucaso do Sul, com

três países independentes que muito pouco têm a ver entre si em termos

políticos, culturais e militares. A Arménia, a Geórgia e o Azerbeijão. O Cáucaso

do Norte é todo ele russo, mas também muito diverso em termos de moldura

humana, cultural e até confessional. Se me perguntarem o que é que têm de

comum a Ingushia, a Chechénia ou o Daguestão, diria que o jugo estatal

russo, o rublo, a língua russa e a administração. Mas o Daguestão poderia ser

considerado uma extensão natural do Azerbeijão. E a Ingushetia, uma extensão

europeizada da Chechénia. E a Chechénia, um país como o Iémen… Mas se

espetarem uma vara, em Grozni, ela vem manchada de preto, com petróleo a

1 metro. Muitas casas na Chechénia têm mini -refinarias improvisadas. Em

2000, as Forças russas desmantelavam por mês entre 1500 a 2000 refinarias

rebeldes. Agora imaginem aquelas que colaboravam com os exércitos russos.

• Hitler não hesitou em procurar chegar até Baku para garantir o que hoje

chamaríamos segurança energética… e sofreu a maior derrota, a de Estaline-

grado, que muito analistas militares consideram o ponto de viragem da

segunda guerra mundial.

• Estes territórios, do norte e sul do Cáucaso, tresandam a petróleo, tresandam

a gás, e estão no ponto de passagem que liga a Europa à Ásia, no ponto de

passagem comercial por excelência entre blocos de interesses, entre potências

comerciais, entre pólos de hegemonia militar.

• Mas a cultura local não mudou, desde o tempo do “Prisioneiro do Cáucaso”,

de Pushkin, que relata as desventuras de um soldado russo na transição do

século XVIII -XIX escravizado pelos islâmicos chechenos, isto no apogeu do

controlo cossaco. Em 1998, no tempo do moderado auto proclamado Presidente

checheno Aslan Maskhadov, aplicava -se a Sharia em Grozni, e todas as semanas

havia decapitações e amputações, decretadas pelas Shuras. Em 1999, foram

decapitados em segredo, pelos combatentes chechenos, 4 trabalhadores

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24 britânicos de telecomunicações, acusados de espionagem a favor dos impe-

rialistas ocidentais mas também ao serviço do imperialismo russo. Em 2000,

ainda decorrendo a campanha brutal e sangrenta militar russa, eram

descobertos, em buracos, “escravos”, normalmente eslavos, mas também de

culturas inferiores à chechena, como jordanos ou iemenitas… Estamos a falar

de práticas do Século VIII mas no século XXI. A corrente islâmica mais em

voga na Chechénia é a do Waabismo saudita, a de Bin Laden.

• Para Moscovo, nenhum Estado ou mais apropriadamente Província ou Região

da Federação russa é separável. E muito menos os do estratégico e

economicamente rentável Sul. Importa não esquecer que há outras províncias

russas de matriz islâmica, como o Tatarstão ou a Bashkiria. O mesmo se diga

de algumas regiões siberianas ou o extremo oriental russo, onde os problemas

têm outro nome, como a fragilidade demográfica e a fortaleza económica,

comercial e demográfica da confinante China.

• Daí que desde há muito, já dos tempos de Ieltsin, mas agora agravado pela era

neo nacionalista expansiva ou musculada de Putin, que os Russos designam

por “vizinhança próxima” o Cáucaso do Sul e até a Bielorrússia ou mesmo a

Ucrânia, na frente ocidental.

• E em plena Europa da União Europeia e da NATO, os russos mantêm, com

mão de ferro, o enclave de Kaliningrado. Para a identidade Russa, o país tem

11 fusos horários, de Kaliningrado até Kamchatcka, onde a zona de

contencioso territorial das Kurilas, tem como adversário o Japão.

• Ou seja, quando falamos do Cáucaso estamos em grande medida a falar da

Rússia e da sua afirmação, crescente e musculada, como pólo de poder, face

aos EUA, UE -NATO, incluindo aqui naturalmente a Turquia, mas também o

Mundo árabe da região do Golfo, o Irão, a China e a Índia.

• Mas será que a Rússia tem direito a ter um backyard? É do interesse europeu?

Dá -nos mais ou menos estabilidade? Qual o interesse ocidental em jogo?

Se me perguntarem se o Cáucaso é importante para a segurança e estabilidade da Europa,

da Eurásia e da Ásia, não hesito em responder afirmativamente.

• Portugal pode não ter um interesse directo, vital ou não, na região. Mas tem

um interesse mediato muito importante, como país da UE, como Aliado da

NATO e como nação com uma política selectivamente global e de vocação

universalista.

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25• Como país da União Europeia, Portugal não pode ser indiferente ao jogo, estron-

dosamente geo estratégico, eu diria neo clássico, que se está a desenrolar no

Cáucaso. E que, pela via colectiva, o afecta, quer em termos económicos, comerciais

europeus, quer em termos de segurança de vanguarda ou fronteira europeia.

• A segurança energética – e estamos a falar do euro -asiático Cáspio ao euro-

-europeu Mar Negro – não nos pode ser indiferente. É também um problema

português, quanto mais não seja pela inerente pressão crescente do preço

mundial das comodities, do crude ao gás, mas também pela pressão que não

deixaremos de sentir nos nossos tradicionais mercados abastecedores resultante

da diversificação energética dos nossos parceiros europeus. Não nos devemos

fiar na elasticidade na área dos recursos energéticos. E muito menos na

plasticidade do comércio mundial nesta área, sobretudo conhecendo a OPEP

e as tentativas russas de uma OPEP do gás.

• E também importa ter em consideração que nem sempre a Europa esteve ou

está à altura dos seus interesses e capacidades. O ex -chanceler alemão é um

administrador da maior máquina de pressão político -económica russa

existente, a Gazprom. E o mercado comum energético europeu continua

ainda por alcançar não obstante as evidencias.

• E vamos ser claros, a actual crise financeira, económica e comercial mundial,

que nos pôs a todos em recessão, em pressão sócio -laboral de magnitude

planetária e totalmente imprevisível em termos de estabilidade política

governativa à escala nacional e regional, veio tornar ainda mais premente e

dramático o jogo caucasiano. Este, desenrola -se às nossas portas, pode

contaminar, através de uma geometria política e económica de mutação

permanente, o nosso Mediterrâneo, tanto o oriental – que está a passar

também por uma situação de contornos dramáticos no Médio Oriente – como

o Ocidental, o que está aqui ao nosso lado, que exporta mão-de-obra

magrebina e africana negra para o nosso pacato Sul.

• Infelizmente, já não existem conflitos puramente nacionais ou exclusivamente

regionais. A era da globalização tornou -nos inter dependentes uns dos outros,

em regiões cada vez mais distantes, para o melhor e para o pior.

• E se Portugal joga também os seus interesses no Cáucaso enquanto país da

União Europeia, cuja segurança e estabilidade nos afecta directamente, o

nosso país também é actor na região enquanto aliado fundador da NATO. E

como todos sabem, a Geórgia é um candidato à Aliança, já com lugar

prometido na Cimeira da NATO em Bucareste, no ano passado.

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26 • No pior dos cenários, Portugal poderá vir a jogar a sua solidariedade ao

abrigo do artigo V. Tudo, mas mesmo tudo, devemos fazer para que o Worst case

scenario nunca venha a ter lugar.

• E aqui entra, ou deve entrar, a nossa diplomacia, política e económica, de

vocação universal e de diálogo permanente. Que não é de empreitada ou

proxi, que não é subsidiária de interesses ou lógicas de hegemonia ou

domínio.

• Portugal é, por natureza, um Honest Broker singular, pois sendo do Ocidente,

Euro -Atlântico, é também do Sul Afro -Sul -Americano e Oriental, com

presença histórica em todo o Grande Médio Oriente, que vai da Mauritânia à

Índia. Mas vamos também até ao Japão. E estivemos na Corte Russa, quer nos

tempos de Pedro o Grande, quer nos tempos de Catarina. Perguntem a todos

estes povos (até em Omã) o que pensam dos portugueses. Perguntem também

às elites. Somos uma “ponte natural” inter continental e subcontinental.

Lembro que o nome original da Geórgia é “Ibéria Oriental”. Existe no

Cáucaso do Sul, particularmente na Geórgia e na Arménia, uma cultura

(incluindo a gastronómica) do tipo mediterrânica. As nossas raízes e os

nossos consequentes bons laços inter confessionais e inter culturais, a nossa

vocação universalista e ecuménica, pode ser particularmente útil nesta região,

como tem sido em muitas outras. Veja -se por exemplo a opinião unânime de

responsáveis, oficiais ou “fácticos” libaneses, bem como dos israelitas, sobre

o profissionalismo, a perspicácia, a tolerância, o diálogo, boa percepção e

inserção do contingente português na UNIFIL.

• Dizia há dias o nosso Presidente da Comissão Europeia que numa crise

mundial desta escala, onde o sistema internacional – quer em termos geo-

políticos, quer em termos de governação ou regulação global económica,

financeira e comercial – está em processo reconfiguração, de mutação

acelerada decorrente em parte da emergência célere, factual, do tão falado

mundo multi polar, são precisos mais diplomatas. Mais visão global, integradora,

com capacidade de diagnóstico frio ou pragmático mas também de previsão

estratégica de novas alianças e parcerias.

• E aqui entra Portugal, que tem um potencial único, enquanto país, enquanto

exportador de quadros qualificados, mas sobretudo, enquanto construtor de

pontes e diálogos. E também como bom e equilibrado parceiro comercial

europeu e afro -europeu.

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27• Falo -vos da minha experiência em Washington, Moscovo e Tbilisi (deixo de

lado África, onde também estive e onde vou regularmente). Falo -vos da nossa

participação na Troika (EUA, URSS -Rússia) sobre Angola e Moçambique

(processos de paz). Falo -vos da nossa experiência, em Moscovo, da Presidência

portuguesa do Conselho da UE em 2000, e particularmente da primeira missão

de monitorização europeia na Chechénia, que a diplomacia portuguesa

conseguiu desbloquear. Falo -vos da nossa experiência, também no ângulo de

Moscovo, da Presidência portuguesa ministerial da OSCE, em que se conseguiu

introduzir no Fórum Económico o difícil e conflituoso tema da gestão dos

recursos hídricos, explorando modelos de estabilização e criação de confiança.

• Mas que pontes podemos nós, portugueses, construir no Cáucaso? Antes de

mais ajudar a criar dinâmicas de confiança gradual entre países, directa ou

indirectamente, relacionados pelos frozen conflicts, passando por Moscovo, isto é,

não contra Moscovo. Tornando a Rússia confiante que pode ser parte ganha-

dora, política e economicamente, da solução e não parte do problema.

• Num dos mais complexos cenários da geopolítica contemporânea, ainda

repleto de separatismos, etno -nacionalismos, redefinição de áreas de influência,

devemos acentuar o que traz estabilidade, certeza, como os princípios da

integridade territorial, não só da Geórgia mas também da Rússia. Como

defensores de minorias, incluindo as russas

• O 8/8/8 surgiu como a mais mediatizada das tensões “Rússia/“Ocidente”.

Uma percepção errada na minha opinião. Não creio que o “Ocidente” tivesse

sido ali ameaçado, pelo menos tanto quanto os russos se sentem com a

entrada de conselheiros e instrutores militares de países da NATO e a adesão,

acelerada, à Aliança Atlântica. Mas efectivamente, a diplomacia que funcionou

com a cabeça fria foi a europeia de Sarkozi. Pergunto -me para que servem

tantos conselheiros militares quando o problema não é primacialmente

militar. Podemos ajudar os georgianos a garantirem a impermeabilidade da

fronteira georgiana com a Rússia no vale checheno de Pankissi?

• Nos 5 focos de tensão:

1. Ossétia do Sul, Geógia X Rússia;

2. Abkházia, Geógia X Rússia;

3. Nagorno -Karabakh, Arménia X Azerbaijão, 1M refugiados e deslocados;

4. Chechénia, Rússia;

5. Reconhecimento da fronteira comum, Arménia X Turquia.

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28 Cabe perguntar do papel que Portugal pode jogar no quadro europeu, não só

da UE, mas também da OSCE e Conselho de Europa, onde têm assento

interesses russos. Poderemos algum dia ser “os noruegueses do Cáucaso”, mas

de forma consistente?

• Recentemente, a Turquia, visando uma abrangente cooperação regional,

propôs “Caucasus Stability and Cooperation Platform (CSCP) initiative”, «visando o

fortalecimento da paz, da estabilidade e da segurança, encorajar o diálogo político regional,

fomentar a cooperação económica, desanuviar tensões e desenvolver políticas de boa

vizinhança na região».

Foi bem recebida pelo Azerbaijão, Arménia e Rússia.

A Geórgia, não rejeitando a iniciativa, está ainda hesitante em sentar -se à

mesma mesa com a Rússia, pelo menos enquanto decorrem sessões negociais

em Genebra;

A Turquia tem tentado convencer a Geórgia de que, agora, ainda é mais

importante o estabelecimento de um diálogo directo entre as duas partes

(dando assim relevo à importância da sua iniciativa). Mas não seria possível

contar com uma parceria luso -turca neste domínio? É que, por exemplo, na

Aliança Atlântica, temos uma relação muito próxima com Ankara e leituras

regionais convergentes. E temos a vantagem de não sermos um país da região!

E como reflexão inicial acho que termino por aqui. Muito obrigado.NE

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29Turkey’s new activism in the Middle East

Meliha Benli Altunisik*

■ Abstract:

Turkey has become increasingly active in its foreign policy towards the Middle

East in recent years. This article explains Turkey’s new activism with structural

transformations in the region as well as with the new vision of the current AKP

government. Turkey’s engagement with the Middle is discussed through three cases:

Improvement of relations with neighbors; third part roles in regional conflicts; and

Turkey’s soft power. It is argued that changes in the regional landscape and Turkey’s

domestic transformations as well as expected changes in the US policy under the

Obama Administration have poised Turkey to play constructive roles in this region.

Yet such a role is also contingent on several variables related to domestic and foreign

policies of Turkey.

■ Keywords:

Turkish foreign policy; the Middle East; AKP foreign policy; Turkey’s new activism.

TURKEY HAS STARTED to play a more active role in the Middle East recently. Dangerously volatile

and unstable environment in the Middle East, and thus increasing challenges to

Turkish security, can partly explain this new activism. These challenges in the fluid

post -Cold War context required Turkey to be more interested in the region and

to be more innovative in its policy. Particularly the developments in neighboring

Iraq since 1991 War have forced Turkey to be more engaged with the region. The

general instability in Iraq as well its implications specifically for the Kurdish issue

in Turkey meant that Turkey could not ignore what happens in the Middle East. Yet

Turkey’s interest in the region also goes beyond strategic interest. Especially after the

coming to power of the Justice and Development Party (Adalet ve Kalkınma Partisi-

-henceforth AKP) in 2002 the government has developed a comprehensive Middle

* Professor. Department of International Relations, Middle East Technical University, Ankara 06531 Turkey.

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30 East policy which underlined the importance of historical and cultural ties and

responsibilities to this region in addition to strategic interest.

Thus the AKP continued Turkey’s new engagement in the region and added some

new dimensions to it.1 In practice this new interest translated into three interrelated

policy outputs. First, the AKP developed a “zero -problem with neighbors” policy

and thus made an effort to improve Turkey’s relations with its Middle Eastern

neighbors. This perspective also meant moving away from security oriented and

zero -sum mentality; instead the government emphasized constructive engagement

and win -win. Second, the new activism meant engagement in regional conflicts as a

third party. This constituted a departure from traditional Turkish policy which

avoided entanglement in regional conflicts. Third, the government began to

emphasize Turkey’s soft power in the region in addition to its hard power. This article

will analyze these three policy outputs and then discuss the opportunities and

limitations of this policy.

Improving Relations with Neighbors One of the consequences of new forms of activism

and engagement has been improved relations with the Middle East. Compared to

the most of the 1990s, Turkey’s has been able to develop closer relations with the

regional countries. The new strategic environment that emerged after Iraq War of

2003 as well as AKP government’s efforts contributed to this development. The most

important example has been the successful transformation of conflictual relations

with Syria into a quite cooperative one.2 Turkish -Syrian relations hit the bottom

when Turkey threatened Syria with the use of force in October 1998 if it did not

cut its support to the PKK, illegal Kurdish organization fighting against the Turkish

state. The crisis was resolved with Adana Agreement when Syria committed to end

its support to the PKK. After the resolution of this particular conflict Turkey has been

determined to take the bilateral relations beyond normalization. As a result, the two

countries have been able to establish quite close and diversified relationship since

then.

1 For more on this new vision and it’s comparison with other visions see ALTUNISIK, Meliha Benli, “Worldviews

and Turkish Foreign Policy in the Middle East”, Special Issue on Turkish Foreign Policy, New Perspectives on

Turkey, forthcoming.2 ALTUNISIK, Meliha Benli and TUR, Özlem, “From Distant Neighbors to Partners? Changing Syrian -Turkish

Relations,” Security Dialogue 37, 2 (2006): 229 -248.

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31Turkish -Iranian relations also improved through enhanced security cooperation

and deepening economic relations.3 First, the two countries cooperated against the

separatist Kurdish organizations of PKK and its Iranian version PJAK. Such cooperation

had intensified after Iraq War of 2003. To reflect the new level of cooperation Turkey-

-Iran High Security Committee, which was established in 1988 but largely remained

ineffective in those years, was revived. The 12th meeting of the Committee convened

in Ankara in April 2008 was said to be once again dominated by discussion on

security cooperation against terrorism. In the meantime, Turkey and Iran started to

deepen their energy cooperation. There is already a natural gas pipeline from Tabriz

to Ankara that became operational in 2001. As a result Iran has become Turkey’s

biggest supplier of natural gas after Russia and accounts more than 20 percent of its

imports. In May 2007 Turkey and Iran agreed in principle over dam and power

station construction and electricity trade. In July 2007 the two countries signed a

deal to use Iran as a transit for Turkmen gas and also agreed to develop Iran’s South

Pars gas field to facilitate the transport of gas via Turkey to Europe as part of the

Nabucco project.

In general, Turkey’s relations with -and the image in - the Arab and Islamic world

have improved significantly. Turkey established the Turkish -Arab Cooperation Forum

with the Arab League.4 Turkey also got the post of Secretary -General of the

Organization of the Islamic Conference (OIC) in March 2008. This was the first time

that the Secretary General was determined through election in the organization.

Ekmelleddin Ihsanoglu was re -elected in March 2008.

Turkey has also been able to develop more cooperative relationships with all the

communities in Iraq, including finally with the Kurdistan Regional Government

(KRG). Turkey was able to come to a point of cooperation on PKK issues with the US

and Iraq in 2008. The central Iraqi government was already more inclined to

eliminate the PKK as a negative factor in Turkish -Iraqi relations. Iraqi Prime Minister

Nuri el -Maliki reiterated this position during his visit to Ankara in December 2008

and said “PKK’s actions are designed to create problems in Turkish -Iraqi relations”.5

3 OLSON, Robert, Turkey -Iran Relations 1979 -2004: Revolution, Ideology, War, Coups, and Geopolitics, Costa

Mesa, CA: Mazda Publications, 2004; ARAS, Bulent, “Turkish Foreign Policy towards Iran: Ideology and

Foreign Policy in Flux”, Journal of Third World Studies, Spring 2001.4 “First Turkey -Arab League Forum to meet in ·Istanbul”, Turkish Daily News, 11 October 2008. 5 Hürriyet, 19 December 2008.

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32 Nevertheless, there were limitations to what the central government could do as long

as the KRG refused to cooperate. Thus it was quite significant that Turkey and the KRG

were able to develop a working relationship on this issue. Faced with the reality of US

withdrawal and increasing power of the central government under Maliki, the KRG

realized that it would no longer gain by using the PKK against Turkey. On the contrary,

it needed Turkey as an outlet to the world. Thus, the KRG ended its hostile rhetoric

against Turkey and started to put pressure on the PKK in its region. Turkey responded

by opening an official dialogue, for the first time since 2003.

Turkey as a Third Party In addition, Turkey has become more eager to play third party roles,

promoted network of economic and political relations, engaged more in coalition

building activities. In sum, Turkey increasingly began to favor engagement as a form

of dealing with challenges it faced in the region. In the context of bipolar regional

system in the Middle East, Turkey defined itself as a constructive power willing and

able to talk to both blocs.

Eagerness to play third party roles is a relatively new aspect of Turkey’s Middle

East policy and in significant contrast to Turkey’s long -held policy of not getting

involved in regional conflicts. Again changing geostrategic environment and

increasing instability in the region began to have repercussions for Turkey and forced

Ankara to be more involved in the management of conflicts. The protracted conflicts

led to radicalization and a constant threat of war in the region. The continuation of

Arab -Israeli conflict also allows some states to exploit the conflict to increase their

power and influence in the region. For instance, the Palestinian conflict has allowed

Iran to increase its power and influence beyond its immediate neighborhood and

made it effectively a Mediterranean power. These developments upset the regional

balance of power and thus are of concern to Turkey. In addition, the current AKP

government has also been particularly eager to play third party roles in the region.

The government believes that due to its historical ties with this region, Turkey cannot

be indifferent to what happens there.

The examples of Turkey’s third party roles are many. The involvements in the

Israeli -Syrian track as well as the Palestinian issue will be discussed in more detail

below. Yet Turkey has also been involved in Lebanon. Turkey is participating in

UNIFIL II which was created after the Lebanon War in 2006. Together with Qatar,

Turkey was also instrumental in brokering the Doha Agreement that ended the

political stalemate in Lebanese politics.

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33Similarly Turkey has been announcing its eagerness to play roles in Iranian

nuclear issue. The possibility of a nuclear Iran imposes limitations on Turkish -Iranian

relations. Turkey is disturbed by a nuclear Iran as it would completely alter the

bilateral and regional balance of power. This would go against the main principles of

Turkish foreign policy in the region and vis -à -vis Iran, which rejects regional

domination by a country. This would also be against the Turkish position of having

a WMD -free Middle East. Thus, possible nuclearization of Iran, which may provoke

a general proliferation in the region, is not clearly welcomed by Turkey. However,

Turkey is also concerned about the escalation of conflict between its Western allies

and Iran. The failure of diplomatic channels and a possible military operation against

Iran entails several minefields from Turkey’s perspective. All the possible scenarios

such as chaos in Iran or Iranian retaliation would have enormous economic, political

and strategic repercussions for Turkey. Ultimately Turkey is trying to maintain a

delicate balance between its desire to see a stable Middle East and its Euro -Atlantic

relations. In these conditions so far Turkish policy has been formulated under three

pillars: Making it clear that Turkey would not let the use of its territory for an attack

against a neighboring country; using Turkey’s relations with Iran, the US and the EU

to facilitate diplomatic solution to the problem; harmonizing its policies with the

international community, particularly with that of the International Atomic Energy

Agency (IAEA). In the meantime, Turkey has been giving Iran the message that it

should be transparent about its nuclear program and cooperate fully with the IAEA.

During the Bush Administration Washington reacted negatively for any Turkish role

to mediate with Iran as well as being highly critical of developing Turkish ties with

that country. However, with Obama Administration’s declarations of its willingness

to talk to Iran, Turkish Prime Minister Erdogan said that the government was

considering raising the issue of mediation with him.6 The intensification of visits

recently with Tehran points to a possibility of such a role for Turkey in the new

period.

Turkey also tried to play constructive roles in Iraq. In 2003 Turkey initiated Iraq’s

Neighbors Forum, which later expanded to include Iraq. The Forum continues to

meet at the level of foreign and interior ministers and aims to tackle the Iraqi issues

on a regional basis and to foster confidence building measures in this sub -region.

6 “Iran sought Turkey’s help to mend links with US, says Erdogan,” Guardian, 24 February 2009.

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34 Similarly Turkey organized a meeting in Istanbul with the participation of Sunni

leaders from Iraq to convince the Sunnis to participate the elections in 2005.

Mediation between Israel and Syria:

Following the gradual improvement of it’s relations with Syria after the October

1998 crisis Turkey began to pass messages to both Syria and Israel that it would be

ready to bring them together if they were ready to do so. After the collapse of Syrian-

-Israeli talks in 2000 and the deterioration of U.S. -Syrian relations under the Bush

administration the US was not in the scene to restart the negotiations. Turkey was the

only country in the region with good ties to both sides that could play such a role.

Ankara believed that resolution of the Israeli -Syrian conflict would not only bring

peace and stability to the region, but also engage Syria more constructively into the

regional politics. Thus with these considerations in mind Prime Minister Erdogan is

said to be involved personally and to have conveyed messages to both sides.

Finally in May 2008, after several failed attempts, the two countries started

indirect peace talks in Istanbul under Turkey’s aegis. The two parties had their own

reasons to engage in the process. As a result, Israel and Syria held four rounds of

indirect negations in Turkey after the peace talks were launched in May. The talks

were suspended when Israeli Prime Minister Ehud Olmert announced he would step

down as a result of charges of corruption brought against him in Israel. During

Olmert’s visit to Ankara in December 2008 Erdogan and Olmert had a meeting that

lasted more than five hours. Later it was revealed that through telephone diplomacy

Turkey had facilitated another round of indirect talks and aimed to bring parties to

agree on starting direct talks soon. The parties began working on a common text to

that end. However, when five days after Olmert’s visit to Turkey Israel launched its

Gaza operation, Turkey announced that it ended its efforts of facilitating Israeli-

-Syrian talks.

Israeli -Palestinian Issue:

Historically Turkey has been concerned about the Palestinian problem and for long

argued for a negotiated settlement based on two -state solution. Thus Ankara

supported the Peace Process that started with the Madrid Conference in 1991. Turkey

headed the ACRS (Arms Control and Regional Security) multilateral group within

that context and became part of the Temporary International Presence in Hebron

which was formed in 1997. Turkey has also been providing development and

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35humanitarian aid for Palestinians. Since the Paris Protocol of 1996 Turkey has

provided a total of 10 million US Dollars in the fields of health, education, public

administration, institutionalization, security, tourism and agriculture.

In terms of capacity and institution building activities, Turkey has supported the

political reform process and Turkish experts participated in constitutional and

administrative reform efforts in Palestinian Authority. Similarly Turkish Foreign

Ministry conducted Young Palestinian Diplomats’ Training Program. Another such

attempt has been the TOBB -BIS Industry for Peace Initiative, which has been led by

the Turkish Chambers and Commodity Exchanges. Part of this initiative is the Ankara

Forum, consists of the representatives from the Chambers of Commerce of Israel,

Palestine and Turkey, based on the understanding that private sector dialogue is good

for confidence building. The Forum has so far had five meetings. Another aspect of

this initiative is to focus on the specific project of Erez Industrial Zone. After Hamas

takeover in Gaza the project was decided to be moved to the West Bank. This project

also is based on the understanding that there is a close correlation between economic

development and peace and thus aims to contribute to the Palestinian economy by

creating up to 7,000 jobs. The project also offers profit for the Turkish companies

and security for Israel on its borders. Thus it is a win -win project for all the parties

involved. However, the implementation of the project has been slow due to first

worsening security situation in the area and the problems of signing a security

protocol with Israel. In addition to TOBB Initiative, projects about pipelines for

energy, water and power supply are also under discussion.

With the eruption of al -Aqsa Intifada and increasing violence and instability in

the region Turkey has supported activities to cease hostilities. Former President

Suleyman Demirel was part of the Mitchell Commission which was formed after the

eruption of violence in 2000. Turkey formed the Jerusalem Technical Committee to

investigate whether the excavation works by Israel are detrimental to Haram al -Sharif.

Turkey also supported the Quartet and its Road Map.

After the victory of Hamas in the legislative elections Turkey also took a bold

step in its role as a third party in the Israeli -Palestinian conflict and invited Khaled

Mishal, Hamas leader who is currently residing in Damascus. The Turkish government

later announced that Mishal was called to convey the message that now that it won

the elections it should act in a reasonable and a democratic way. However, Mishal

made no announcement of moderation or change in policy while he was in Turkey

and thus the whole saga served only to give legitimacy to him. The visit was thus

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36 created a debate in Turkey and raised doubts about previous involvement of the

Foreign Ministry in whole affair. The visit of Mishal on the other hand demonstrated

how far the AKP government was ready to go in its third party role. In this case

Turkey was threading a very fine line that could hurt its longstanding role as an

honest broker. More than the idea of talking to Hamas, which could be a valuable

third party role for Turkey, the way it was done was problematic.

Disappointed by post -Annapolis inaction and the negative impact of the embargo

on the Gaza population, the Turkish government emphasized the volatility of the

situation throughout 2008. Prime Minister Erdogan referred to Gaza as an open prison

and apparently asked the Israeli government to lift the blockade. When the cease -fire

between Hamas and Israel ended, Ankara supported Egypt’s efforts to extend it.

The Israeli attacks against Gaza created a harsh response from the Turkish

government. Prime Minister Erdogan immediately started a regional tour where he

paid visits to Jordan, Syria, Egypt and Saudi Arabia. He also had talks with the

President of the Palestinian Authority, Mahmoud Abbas. Then the Turkish diplomats

got involved in a shuttle diplomacy to broker a cease fire.

The government’s response to Gaza attack however seemed to tarnish Turkey’s

image as an honest broker in the conflict. Especially the Prime Minister’s approach

to the issue was quite emotional. Erdogan was very critical of Israel and yet equally

silent about Hamas’ share of responsibilities in the whole saga. The overall Turkish

attitude during the crisis gave the impression of Turkey acting as a spokesperson for

Hamas. Although this attitude has become popular with the masses in Turkey and in

the Middle East, it created tensions in Turkish -Israeli relations. The relations were

restrained further when Erdogan clashed angrily with Israeli President Shimon Peres

in Davos and stormed out of the meeting.

On the other hand, the new setting also created some opportunities for Turkey

to be influential over Hamas and to convince it to behave act as a legitimate political

party. Turkey has also been active in reconciling Fatah and Hamas, which seems

essential for any progress in the peace process. Whether Turkey could use this

potential, however, remains to be seen.

In any case, however, both the regional and extra regional actors recognize

Turkey’s significance in the region. This fact, coupled with Turkish government’s

continuing eagerness to be engaged, creates a space for Turkish activism. Both Israel

and Turkey have already engaged in downplaying the impact of the recent crisis and

engaged in damage control. It is also clear that Turkey stands out as the most important

partner for Obama Administration in the wake of new initiatives in the region.

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37In sum, Turkey has increasingly been involved in the management and resolution

of conflicts in the Middle East, and its role has been accepted by different regional and

external actors. However, it is clear that Turkey needs to study and think more about its

goals and the appropriateness of its various methodologies. In doing so, Turkey must

to assess its own capabilities and connection to the conflicts, as there is a danger of

having an expectations -abilities gap. Similarly, in each case, there should be an

assessment of costs and benefits, as the Mishal visit vividly demonstrated. Finally, there

is the danger of overextension as Turkey remains eager to play third party roles.

From Hard to Soft Power In the 1990s Turkey tried to tackle the challenges emanating from

the Middle East through traditional power politics approach. Ankara redefined its

strategy and identified the Middle East as the number one source of threat to Turkey.

Casting of the issue as one of an existential threat called for increasing use of military

means towards the region. Turkey’s new policies led to a general deterioration of

Turkey’s relations with the region. Thus, in most of 1990s Turkey had problems with

its Middle Eastern neighbors. Ankara only perceived threats from the region and

tried to deal with those threats through the use of hard power. Turkey used the threat

to use of force against Syria, militarily intervened in northern Iraq to deal with the

PKK problem and developed its military ties with Israel.7

In recent years Turkey has also been increasing its ability to use soft power. Due

to its political and economic transformation, linked strongly to the EU process,

Turkey has become an object of attraction. Especially the AKP government has been

eager to project Turkey as a soft power in the Arab and Muslim world. In their

speeches at different meetings both Prime Minister Erdogan and then Foreign

Minister Abdullah Gül stressed the compatibility of Islam and democracy; the

necessity of political and economic reform in the Islamic world; and the promotion

of harmony between different cultures and civilizations. Turkey, from this perspective,

was an example of all that. In his speech at the Council on Foreign Relations in New

York in 2004 Prime Minister Erdogan stated that Turkey

as a stable country with a successful development model, its place within the

Western world, its rich historical heritage and identity. Turkey will become a

symbol of harmony of cultures and civilizations in the 21st century. Turkey will

7 For Turkey’s Middle East policy in the 1990s see ROBINS, Philip, Suits and Uniforms: Turkish Foreign Policy

Since the Cold War, Seattle: University of Washington Press, 2003.

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38 achieve this not only through economic and military power, but with its

capability to contribute to universal values and to facilitate the interaction of

these values among different regions. In this regard, Turkey will be a reliable

power for the maintenance of security, a partner for economic development, and

an ally in overcoming existing instabilities in its vicinity, primarily in the Middle

East. Thus, Turkey will become a source of inspiration for the countries in its

region in taking steps which will prevent them from becoming failed states.8

Similarly, Gül in his speeches at the Organization of Islamic Conference (OIC)

foreign ministers meeting in Tehran in May 2003 and the World Economic Forum

meeting in Jordan emphasized the importance of achieving good governance,

transparency, accountability, respect for human rights, and integration with the rest

of the world for the Islamic world. 9

Turkey has also been instrumental in trying to fight with the idea of a clash

between the Islamic world and the West. Thus together with Spain Turkey became the

co -president of an initiative called Alliance of Civilization under the UN auspices. As

a country with a Muslim population and historically been part of the Western

institutions Turkey is out to lose tremendously from a clash between civilizations.

Thus the prevention of such a clash and promotion of links between two worlds has

become an important part of AKP government’s policy.

Recently Turkey’s image in the Arab world and Iran has further improved as a

result of Turkey’s critical stance against Israeli policies and particularly the recent

Gaza assault. Turkey’s new policies undermined two powerful criticisms traditionally

directed against Turkey in the region: namely, being a stooge of the US in the region

and its relations with Israel. Turkey’s new activism is thus characterized by a respected

Arab intellectual as “a regional power out of hibernation.”10

Turkey’s newfound popularity is reflected in the popularity of Turkish TV series

in the Arab world. The Turkish lifestyle that is reflected in these dramas has clearly

attracted a lot of interest in Turkey, as demonstrated in increasing tourism to Turkey

as well as interest in learning the Turkish language.

8 ERDOGAN, Recep Tayyip 2004. “Turkish Foreign Policy for the 21st Century”, Council on Foreign Relations, January 26, available at www.cfr.org/publication.html?id=6717 accessed on September 22, 2008.

9 GUL, Abdullah, “Turkey’s Role in a Changing Middle East Environment”, Mediterranean Quarterly, Winter 2004.10 Adonis, “Turkey: A Regional power out of hibernation,” 2 February 2009 available at http://adonis49.

wordpress.com/2009/02/02/turkey -a -regional -power -out -of -hibernation/ accessed on 5 March 2009.

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39Therefore, it can be argued that geopolitical threats and opportunities together

with AKP government’s willingness as well as changing image of Turkey in the

region come together to create new opportunities for Turkey to play constructive

roles in the Middle East. Turkey looks attractive to different actors as it promotes

cooperation, constructive engagement, stability, regionalism and wealth rather than

conflict, instability, and domination. The realization of playing such roles for Turkey,

however, is also contingent on several factors. First, domestically Turkey should be

able to overcome the politics of polarization that has debilitates the country from

time to time and should continue its own reforms and democratization process.

Turkey’s own domestic political and economic strengths will increase its assets as to

playing more constructive roles in the region. Second, in terms of foreign policy the

issue of reconciling Turkey’s activism in the Middle East with that of Turkey’s

traditional Western orientation will continue to be at utmost importance. This does

not mean to agree totally on every policy issue, and yet it signifies an agreement on

the general norms and principles and working towards similar objectives. With the

Obama Administration there seems to be more convergence between the US and

Turkey in that regard. Continuation of the EU process is also very significant in that

respect. The evolution of Turkey’s Middle East policy towards more constructive

engagement and increase in Turkey’s soft power potential have occurred within the

context of improving Turkey -EU relations. Similarly, it is also clear that there is much

for Turkey to contribute the EU’s actorness in this region. Therefore, positive

developments in Turkey -EU relations are bound to create new synergies in the

region. If Turkey can be successful in achieving these domestic and foreign policy

objectives this would contribute immensely to the prosperity and stability in a

region where they are badly needed.NE

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■ Abstract:

At the turn of the last century outward tranquillity was imposed on the – Western

Balkans, the most volatile and troublesome part of the European continent. The

termination of large scale violence however did not add up to long -term stability in

the region. Its political elites have proven to be incapable and/or unwilling to resolve

among themselves peacefully their differences and to provide for the region’s security.

The management of the most burning problems in the Western Balkans would be best

assured within the process of European integration. With active and well coordinated

roles played by key international organizations, the Western Balkans could be

eventually transformed into a region of security, democracy and prosperity.

■ Key words:

Western Balkans, Balkanization, Kosovo, security, international community, UN,

OSCE, EU, NATO.

POLITICAL TENSIONS IN 2008 related to or in Kosovo, Serbia, Macedonia and Bosnia & Herzegovina

have again attracted attention to the Western Balkans in mass media and in several

important international bodies (UN, OSCE, EU, NATO). The purpose of this article

is to elucidate the Balkans’ manifold complexity, its conflict potential, the recent

geopolitical shifts in and around the region, the controversial problem of Kosovo, its

international implications and the lessons that could be drawn from the international

community’s record in dealing with the volatile Western Balkans.

The general characteristic of the region During the last two centuries the Western Balkans

have well merited the distinction as the most volatile and troublesome part of the

European continent. Throughout the XXth century local armed conflicts and coalition

What to do about the Western Balkans?

Anton Bebler*

* Professor. Faculty of Social Sciences, University of Ljubljana, Slovenia. [email protected]

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41wars with continental implications, terrorism, uprisings, revolutions, coups d’etat, mass

expulsion of population, outright genocide and other forms of violence have at almost

regular intervals punctured the periods of regional peace. After four decades of relative

calm the latest bouts of bloody violence and wars in the region took place again in

1990-1995 and in 1998 -1999.1

This former upsurge was largely triggered by otherwise positive developments –

by the end of the “Cold War”, the breakdown of communist regimes and by the

ensuing transition in Eastern European states to more democratic political systems and

to market economies. The Western Balkans have once again shown high sensitivity to

the shifts in the balance of power among major extraregional actors. In these respects

the Balkans have differed very appreciably from all other regions in Europe, including

the Northern half of former Eastern Europe Not incidentally the geopolitical fault line

stretching from South -Eastern Europe eastward all the way to the Pacific was branded

by Z. Brzezinski the “Euroasian Balkans”.2

The geopolitical instability in the Balkans has had deep historical roots. During more

than a millennium numerous incursions, conquests and migrations created in the

Balkans a unique and most heterogonous mixture of peoples and ethnic groups speaking

different languages and professing different religions.3 South Eastern Europe overlaps

partly with the Mediterranean, Central Europe, Pannonian and the Black Sea regions. The

central part of South Eastern Europe – the Balkans have been for many centuries divided

between several empires, all with extraregional centers of power. The Balkans have

therefore never become a viable and coherent region in cultural, economic or political

sense. Even its present name was invented about three and a half centuries ago by

outsiders (German geographers) mistakenly using a Turkish word for a “mountain”.

After four centuries of Ottoman domination and their withdrawal from most of

their former European possessions the Balkans have become a complicated political

mosaic clearly lacking the own center of gravity. The disintegration of ex-Yugoslavia in

stages between 1991 and 2008 has greatly increased the number of states in the

Western Balkans. The proclamation of Kosovo´s independence was the latest

development in this direction. However the potential for further political fragmentation

in the region, largely following the ethnic–national lines has not yet been fully exhausted,

1 Blank, Stephen J. (ed.), Yugoslavia’s wars: The problem from hell, Carlisle, Pa, Strategic Studies Institute, U.S. Army War College, 1995, Chapters 2,3,5,6.

2 Zbigniew Brzezinski, The Grand Chessboard, Basic Books, 1997, New York, Chapter 3 ‘Euroasian Balkans’, pp. 7 -25, 29 -45, 99 -108.

3 Johnsen, William T., Deciphering the Balkan enigma: Using History to Inform Policy, Carlisle, Pa, Strategic Studies Institute, U.S: Army War College, 1995, Chapters 2 in 3, pp. 9 -60.

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42 in spite of the general disapproval of ‘Balkanization’ by major powers. Each of the seven

much smaller states which resulted from the breakdown is today much more

homogeneous within its own boundaries from the ethnic, religious and cultural view-

-points than had been the SFR of Yugoslavia.

The dramatic change, wars and other developments since the late 1980s have also

caused huge economic dislocation and damage to the region.4 The Western Balkans still

have not reached the pre -1991 levels of industrial and agricultural production. In some

parts of the region war losses, dislocation of human and natural resources, the breakdown

of previously integrated transportation and energy systems, economic fragmentation

and the loss of markets wiped out the positive results of up to three decades of the

preceding economic progress. The very uneven damage to their economies has greatly

increased the disparities between the most and the least prosperous parts of the region.

The intraregional differentials in GNP per capita and in the level of unemployment

inside have gone up dramatically. Huge disparities and poverty in parts of the region

inevitably feed illegal trafficking and organized crime. It is estimated, for example, that

about three fourths of heroin is being smuggled to the EU area from/via the Balkans.

Social instability, economic difficulties and political unrest have very significantly

contributed to the continuity of negative national and religious stereotypes created and

maintained by the generations-long indoctrination with historical myths.5 Interethnic

tensions have been further magnified by modern mass media manipulated and exploited

by ruthless politicians. The traumatic history of the region has thus served as a powerful

tool for mass mobilization with nationalist, religious and xenophobic slogans. All this

has led to the most tragic results in Bosnia and Herzegovina and in Kosovo.

The present security situation in the Balkans The tectonic geopolitical shifts in the early

1990s and the crisis of neutralism and nonalignment led to a radical political and

military realignment in the Balkans and also in the region’s relations with external

powers. With the greatly reduced Russian influence (and the total eclipse of the

shortly -lived Chinese political presence in Albania) practically the entire region has

become oriented towards the West. As the region lacks large scale mineral, energy or

other resources its geopolitical importance has relatively declined. The Balkans have

furthermore ceased to be an object of overt contests for political and military control

4 Altmann, Franz -Lothar, Regional economic problems and prospects in The Western Balkans: Moving on, Chaillot Paper no.70, Paris, Institute for Security Studies, 2004, p.p. 69-84.

5 Batt, Judy, Introduction: the stabilisation/integration dilemma in The Western Balkans: Moving on, Chaillot Paper no.70, Paris, Institute for Security Studies, 2004, p.p. 7-19.

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43or domination by external powers. The extra -regional sources of conflict in, over or

about the Balkans have been therefore greatly reduced. Most importantly, the Balkans

are not anymore Europe’s powderkeg as they were in 1914. Instead the region gained

in international notoriety as a source of frequent troubles and as a costly nuisance.

On the other hand, the geopolitical shifts have also greatly diminished the big

powers’ positive motivation for providing international assistance to the region.

Since June 1999 outward tranquility was imposed on the Western Balkans. After

several unsuccessful attempts by UN, CSCE/OSCE and EEC/EU6 the end of armed

hostilities was achieved primarily by NATO. After considerable hesitation the Western

powers had decided in mid -1990s to intervene, politically and militarily in the

Balkans. The very positive result of their forceful military and political interventions

the termination of armed violence in Croatia, Bosnia and Herzegovina, Kosovo and

Macedonia. It was followed by the advances of com petitive political democracy

which have however remained rather superficial. The tranquility in the region has

been since preserved by de facto international protectorates over parts of the region.

These systems of external surveillance and assistance have included the stationing of

peace -keeping and stabilization troops, the presence of international police, armed

and unarmed observers, judges, ombudsmen, administrative overseers etc.

As was noted earlier the termination of the East -West political and military

rivalry over the Balkans has had security -wise both negative and positive consequences.

The suppression of armed violence by superior force did not add up to long -term

regional stability, as was manifested in 2008 in Kosovo, Serbia, Macedonia and

Bosnia & Herzegovina. The security situation in the Western Balkans still remains

precarious and we observe in the region a combination of old sources of tensions

and some new positive developments. Under the veneer of tranquility some serious

political and security problems still persist in the Western Balkans:

the presence of intolerance, pathological nationalism and xenophobia;

underdeveloped democratic political culture, the lacking art of compromise;

several varieties of non -military threats to regional security and stability (ill -

-governance, corruption, organized crime, illegal trafficking in arms, drugs,

human beings etc.);

unresolved problems of interstate borders and minorities;

the humanitarian problem of well over one million and a half refugees and

displaced persons.

6 Burg, L. Steven, Negotiating a settlement: lessons of the diplomatic process in Yugoslavia’s wars: The problem from hell, 1995, p.p. 47 -86.

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44 Many attempts have been made in the past to create region -wide webs of

cooperation and security in the Balkans. These included two Balkans defense pacts,

one in the 1930s and the other in the 1950s. The first failed miserably while the

second – the Balkan pact between Yugoslavia, Greece and Turkey signed in August

1954 – never became a reality. So far none of the regionally generated initiatives and

undertakings has proven viable, largely because they have never led to sustained

political activity on a regional basis. Moreover, all Balkans initiatives have as a rule

lacked the support and active involvement by the public, mass media and organizations

of civil society.

A more promising approach to cure the instability in the region has manifested

itself in the efforts to induce and infuse from outside economic, political and security

cooperation with and among all Balkans states.7 These efforts have resulted since the

1980s in a web of ties among these states and between them and a number of

international organizations. This web has been almost exclusively Western in origin

and included such nets as the “Stability Pact for South -Eastern Europe”, CEFTA, SECI,

NATO’s “Partnership for Peace”, “South East Europe Initiative”, “South East Europe

Security Cooperation Steering Group” et. al. Through the “South -East European

Cooperation Process” (SEECP) the European Union has fostered multifaceted

cooperation among the states of the Western Balkan. Its recent successor – the

‘’Regional Cooperation Council’’ with the seat of its Secretariat in Sarajevo will

hopefully continue successfully this laudable effort. The European Union has

promoted regional integration also by concluding several types of cooperation,

stabilization and association agreements. These agreements have served as preliminary

steps to bringing closer to and hopefully eventually admitting all remaining Balkans

states into the ranks of its future members. The strategy of staged integration had been

successfully practiced earlier with two other groups of former Eastern European states

- the Visegrad group and the three Baltic republics.

However this strategy has not so far worked well in the Western Balkans as the

nets involving these states have been overly dependent on outside donors, mostly

understaffed, poorly interconnected and coordinated. As a result of these shortcomings

a few of them have proven to be effective. In addition some of these nets have partly

blocked one another. For example, the EU enlargement has undermined the pre-

7 Delevic, Milica, Regional cooperation in the Western Balkans, Chaillot Paper no.104, Paris, Institute for Security Studies,

2007, Ch.2,3, pp. 31 -72.

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45viously existing free trade and visa -free regimes in the region and in fact erected new

interstate barriers. The EU visa rules and the extension of the Schengen regime have

also created considerable problems on the practical level which have hampered the

movement of persons, economic and cultural cooperation. Moreover, there had been

a conceptual incongruity between the “Stability Pact for the South -Eastern Europe’’

and the “Stabili zation and Association Process” conducted by the European Union.

The Kosovo problem and its international implications Kosovo’s proclamation of inde-

pendence on February 17, 2008 and the birth of the so far youngest European

state have highlighted the salience of historically generated sources of intraregional

tensions and conflicts in the region.8

In late XIX c. – early XX c. the Kosovo issue used to be a minor chapter in the

wider Albanian question within the decaying Ottoman Empire. Kosovo as a separate

and potentially volatile problem was created in 1912 -1913 by the Kingdom of Serbia,

strongly supported by the Russian Empire and also assisted by other great European

powers. Prior to 1912 Serbia, Greece and Montenegro have for many years conspired

with the Russian Empire in order to prevent the birth of an independent Albanian

state on the ruins of the Ottomans possessions in the Western Balkans. According to

their coordinated plans the three Orthodox states were to occupy and partition the

lands with the majority Albanian population thus forestalling an Albanian declaration

of independence.

According to these plans the Serbian army invaded Kosovo in 1912 on its way to

conquer Northern Albania and its main port Durres. However Serbia’s plans to gain

by force a permanent territorial access to the Mediterranean sea were foiled by

Austro -Hungary and Italy. Having bowed to an Austro -Hungarian ultimatum the

Serbian Army hesitantly withdrew from Northern Albania in 1913. The European

powers – Great Britain, France, Germany, Austro -Hungary and Italy, at Russia’s

insistence allowed however Serbia and Montenegro to retain the already occupied

Eastern parts of the Ottoman possessions inhabited predominately by the Albanians,

by other Muslims and Orthodox Slavic Macedonians.9 These lands (the Sandzhak of

Novi Pazar, today’s Kosovo and Western Macedonia) were absorbed by Serbia without

a duly legalized annexation. The new Serbian colonial possessions were incorporated

8 Delevic, Milica, The Kosovo problem in a regional perspective in The Regional cooperation in the Western Balkans, Chaillot Paper

no.10, Paris, Institute for Security Studies, 2007, p.p. 79-82.9 Kola, Paulin, The search for greater Albania, Hurst & Company, London, 2003, pp. 10 -18.

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46 in 1918 -1919 into the Kingdom of the Serbs, Croats and Slovenes10 which was later

renamed into the Kingdom of Yugoslavia.

Between the two World Wars the problem of Kosovo had represented a serious

problem with internal political and security implications. Its destabilizing effect

contributed two decades later to the Kingdom of Yugoslavia’s disintegration in

1941. Kosovo continued to create considerable internal difficulties also in the

second, post -1945 Communist Yugoslavia and eventually accelerated its breakdown

in 1991 -1992. After the latter’s demise the Kosovo problem had been for several

years totally ignored by the international community and reappeared only in 1997-

-1998 as an unresolved regional political issue, the last vestige of Yugoslavia’s

succession wars.

The Kosovo problem has contained at its kernel a political conflict between the

Kosovar Albanians’ desire for national emancipation and self -determination and, on

the other hand, the Serbia political class’ endeavors to continue ruling the land from

Belgrade. For Serbian cultural and political elites Kosovo still remains a cherished

symbol of Serbia’s past glory. A compromise solution in the form of Kosovo’s wide

autonomy within Serbia had existed in the past under the last SFRY constitution of

1974. This historic compromise was however effectively annulled in 1989. Its brutal

unilateral act by the Milosevic regime, accompanied by police intimidation and by

the presence of tanks in the streets of Pristina. The termination of Kosovo’s autonomy

grossly violated the Yugoslav constitutional order. Moreover, the Yugoslav military

and Serbian police committed numerous crimes against the Kosovar Albanians and

other Muslims in Kosovo in 1989 -1999, the causing i.a. death of at least 10.000

Kosovars. According to the UNHCR statistics about 350.000 persons, mostly

Albanians, were forced by the Serbian authorities to leave Kosovo in 1998 and nearly

1,5 million by June 1999.11 The Serbian rule over Kosovo was abruptly terminated

by the NATO intervention in March -June 1999. Subsequently it could be reestablished

neither peacefully nor by armed force.

Since summer 1999 Kosovo had been a NATO protectorate and a de facto

increasingly self -governing country under a UN mandate, fully separate from and

independent of Serbia. During that period Kosovo had developed a different political

10 Noel, Malcolm, Kosovo, A Short History, London, Macmillan, 1998, pp. 43 -50,61 -63,129 -256,289 -294,

314 -316.11 Kola, Paulin, The search for greater Albania, Hurst & Company, London, 2003, p. 363.

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47and economic system and adopted a different currency.12 Under international

protectorate the economic, social and political situation in Kosovo has significantly

improved. The progress has been due to international assistance (around 21% GNP)

and the Kosovars’ remittances from abroad (roughly15% of GNP). Gross national

product per capita in Kosovo has quadrupled to around € 1000 p.c. It has remained

however twice lower than in the neighbouring Balkans states, while poverty (about

45% of the population) and very high unemployment still prevail (well over 40%

generally, and about 70% among the females and the young). The international

community has spent on its regular activities in Kosovo about € 2 billion annually,

although mostly on providing security and maintaining its personnel. Only a small

fraction of international funds (5 -8%) flows directly into Kosovo’s economy.

The problem of Kosovo´s status was formally resolved by a unilateral declaration

of independence, with a tacit approval of USA and major EU members. This action

was carried out, however, without a prior UN Security Council resolution. The

Security Council however did not subsequently annul Kosovo’s independence, as

Serbia demanded. A large EU mission called EULEX started operating on June 15,

2008 when the new constitution of Kosovo came into effect. Its legality was claimed

by the Western powers under the UNSC Resolution 1244/99 but challenged by the

Russian Federation. As the UN mandate could not terminated due to disagreements

in the Security Council the presence of UNMIK, as well as of the missions of OSCE

and NATO have continued. After protracted negotiations the EULEX operation was

legalized within the framework and with the constraints of the same Resolution

1244/99. The EULEX however was not allowed to carry out the UN -commissioned

recommendations by Marti Ahtisaari.

The youngest European state has been since its declaration of independence

recognized by 54 states, including three permanent members of UN Security

Council, a majority of EU and NATO members and by all Kosovo’s neighbours with

the sole exception of Serbia. Although its existence has been protected by

international forces and its economic survival secured Kosovo remains an incomplete

structure with limited viability and sovereignty, lacking control over its entire

territory and population. The declaration of independence was a necessity but it did

not resolve Kosovo’s burning political and social problems. Kosovo thus still remains

on Europe´s political agenda as a divisive issue.

12 Altmann, Franz -Lothar, The status of Kosovo in What status for Kosovo?, Chaillot Paper no. 50, Paris, Institute for Security Studies, 2001, p.p. 19-32.

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48 Kosovo represents only one of the numerous political conflicts in the world

which has been closely related to the ethnic, national, linguistic, cultural and

religious divides within sovereign states. In the Euro -Atlantic area alone the

geography of these tension areas spans from Quebec, Greenland, Scotland, Ulster,

Catalunya and Basque country in Spain, Belgium and Corsica in France, to Slovakia,

Estonia, Western Ukraine, Bosnia & Herzegovina, Western Macedonia, Eastern

Moldova, Southern Russia and Cyprus. Further to the South -East and East similar

trouble spots stretch from Palestine and Northern Iraq all the way to Tibet, Taiwan,

Shri Lanka, Philippines and Indonesia. The total number of problems threatening the

internal stability of many multiethnic and multireligious states in Africa is also high.

Each of these conflicts has been dealt with (or ignored) by the international

community separately.

Thus the resolution of Kosovo’s legal status did not have to create a spill -over

effect and/or be replicated elsewhere. It was quite unnecessary for the Russian

Federation to cite the recognition of Kosovo’s independence by the West as

justification for recognizing Abhazia’s and Southern Osetia’s independence. In these

three, in some respects similar developments the Russian Federation and also most

EU and NATO member states acted inconsequentially when they honoured the

principle of self -determination by one case and disregarded in the other(s).

Since the end of the ‘Cold War’ there have been close to two dozen changes of

internationally recognized borders in the Euro -Atlantic area, mostly without a UN

Security Council approval. Each of these changes – in Germany, former Yugoslavia,

Czechoslovakia and the Soviet Union took its own course. The political effects of the

new interstate borders has mostly positively affected European security. The year

since the adjustment of Kosovo’s legal status vis -a -vis Serbia to the de facto situation

since 1999 has brought largely the same results in spite of occasional flare -ups of

protests and low -scale violence in North Kosovo. Once the relations between the two

states are normalized the peaceful new interstate border between Serbia and Kosovo

could in the future become a positive example of constructive cooperation.

International community facing the Western Balkans The political elites in the Western

Balkans have proven time and over again their unwillingness and/or inability

to reach by mutual accommodation and compromise agreements on conflictual

issues with their neighborus. This fundamental feature has been demonstrated,

i.a. in the longstanding Greek -Macedonian dispute over the constitutional name

of Macedonia and in the Serbian -Kosovar Albanian negotiations on the status of

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49Kosovo. When involved in conflicts with their neighbours the Balkans elites usually

strive to pull in outside powers instead of trying to solve the problems bilaterally

or within a regional framework. Mainly for this reason the recent Balkans conflicts

brought about the political and military involvement by four permanent members

of the UN Security Council (US, UK, France and the Russian Federation). During

the last two decades they have also been frequently on the agendas of the UN,

CSCE/OSCE, EEC/EU, NATO and the Council of Europe, often contributing to the

already existing divisions and antagonisms among the great powers.13 The Kosovo

problem has served as cause or pretext for political tensions, notably between USA,

and major EU members, on one hand, and the Russian Federation and Serbia, on

the other.

In 1998 -1999 the Kosovo issue posed a serious challenge also to NATO's inner

political cohesion. The Alliance was able then to soften the differences among its

members and to reach a consensus concerning the pending forceful military action

against the Miloševic regime in the Federal Republic of Yugoslavia in March -June

1999. Nine years later the question of Kosovo’s status has again divided EU and

NATO members. A strong majority in both organizations has accepted the M.

Ahtisaari recommendation as the least bad of all available alternatives and

consequently recognized Kosovo’s independence. A minority of EU and NATO

members, notably Greece, Cyprus, Spain, Slovakia and Romania have however

remained so far close to Serbia’s flatly rejectionist position. The disagreements

among the EU members on this issue have been more visible in 2008 than were the

discords among the EEC members in 1991 concerning the recognition of Slovenia’s

and Croatia’s independence. This comparison does not speak well about the

coherence of the EU Common Foreign and Security Policy fifteen years after its

official launching in November 1993.

The international record of dealing with the sources of instability and insecurity

in the Western Balkans has highlighted the importance of:

• the clear understanding and realistic appreciation of the complexity of

problems in the Western Balkans which defy quick unidimensional solutions;

• the previously underestimated interconnection between the security in the

region and the security in other parts of the continent;

13 Sophia, Clement, The International Community response in Conflict Prevention in the Balkans, (Chaillot Paper no. 30), Paris,

Institute for Security Studies, 1997, p.p. 46 -74.

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50 • a robust and well -coordinated international action to improve the economic and

social situation in the region and to repair and develop its infrastructure;

• the great contribution to conflict management and stabilization in the Western

Balkans made by NATO and EU members (France, UK, Germany, Italy, Turkey,

Greece) and also by some non -members, including the Russian Federation

and Ukraine;

• the fundamental need for a consensus among and subsequently coordinated

actions by Western powers, particularly by USA and EU members states;

• the need for a rational division of labor and effective coordination of activities

among numerous international actors operating in and/or dealing with the

region (UN, OSCE, NATO, EU, Contact group etc.); and also between various

programs conducted under their sponsorship;

• avoiding the danger of a vicious circle of dependency on foreign peace-

-keepers (as it has happened on Cyprus) and the adoption of a realistic exit

strategy for them.

The more overlapping Balkans institutions there exist and well function, the

more states take active part in them the better it is for the region and for the whole

Euro -Atlantic community. These observations are relevant also in the case of the

youngest Balkans state. Having become an independent state Kosovo ought to be

admitted to international financial institutions and other organizations as well as to

regional interstate networks in the Western Balkans. Kosovo’s admission into these

bodies would have beneficial effects on the overall security situation in the Balkans.

All states aspiring to become members of the European Union and/or of NATO have

been warned however that their admission into these organizations would be

conditional on their commitment to fulfill constructively their responsibilities in the

region. The implementation of this injunction would certainly help to promote

regional cooperation.14

A note of caution ought to be added concerning the general proposition that

the management of Balkans problems would be best assured within the framework

of European integration. The ill fate of the ´Treaty on a constitution for new Europe´

and the rejection of the Lisbon Treaty by Irish voters indicated, in addition to

unrelated internal political reasons also considerable resistance in the older member

14 Van Meurs, Wim (ed.), Prospects and Risks Beyond EU Enlargement, Southeastern Europe: Weak States and Strong International

Support, Opladen, Leske + Budrich, 2003, pp. 16 -20.

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51states to further enlargement of the European Union into Eastern Europe and the

Balkans. It became questionable whether EU will be indeed willing and able in the

near future to implement the Thesaloniki commitments to the Western Balkans states

without scaling down and delaying their implementation.

Conclusion The above -presented review of the problems in and related to the Western

Balkans leads to the question how best to deal with the Western Balkans? First of

all, the Western Balkans countries should be actively encouraged to further develop

and strengthen the existing ties among themselves by forming pragmatic regional

networks of cooperation in practical matters. On the other hand, one could not

realistically expect the Balkans countries to overcome the persisting sources of

internal instability in the region entirely by their own efforts. The Balkans elites, if

left alone are simply incapable of transforming the region into a viable and peaceful

community of nations even distantly comparable e.g. to Scandinavia.

The international community’s ability to manage numerous problems in the

Western Balkans could be best improved by the further strengthening of the

European Union’s and of NATO’s presence and influence, while preventing the

appearance of new lines of division within the region. This extension would have

better results if coordinated with the UN, OSCE, Council of Europe, World Bank,

EBRD etc. The region’s transformation should be firmly imbedded in the broader

European integration process. Moreover, international military and police presence

will be still needed probably for many years.

This has been one of main objectives of Slovenia’s Presidency in the Council

of the European Union in the first half of 2008. During those six months the net

of stabilization and association agreements was extended to cover the entire

region, except Kosovo. Pre -accession negotiations have since continued with

Croatia and Macedonia as official candidates for EU membership. The status of

potential candidates was confirmed for Albania, Bosnia & Herzegovina, Serbia,

Montenegro and also for Kosovo within the context of UN Security Council

Resolution no. 1244/99. The admission of Croatia and Albania into NATO in 2009

will also represent steps in the right direction. In the decades to come the process

of EU and NATO enlargement, in spite of many difficulties and occasional setbacks

is expected to transform the Western Balkans into a desired space of democracy,

economic and cultural dynamism, prosperity and security. This process needs

however to be consistent, well coordinated, sensibly tuned and finely adapted to

each country.NE

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52 SELECTED BIBLIOGRAPHY:

Batt, Judy (ed.), The Western Balkans: moving on (Chaillot Paper no. 70), Paris, EU Institute for

Security Studies, 2004.

Batt, Judy, The question of Serbia, (Chaillot Paper no. 81), Paris, EU Institute for Security

Studies, 2005.

Batt, Judy (ed.), Is there an Albanian question?, (Chaillot Paper no. 107), Paris, EU Institute for

Security Studies, 2008.

Blank, Stephen J. (ed.), Yugoslavia’s wars: The problem from hell, Carlisle, Pa, Strategic Studies

Institute, U.S. Army War College, 1995.

Clément, Sophia, Conflict prevention in the Balkans: case studies of Kosovo and the FYR of Macedonia

(Chaillot Paper no. 30), Paris, EU Institute for Security Studies, 1997.

Delevic, Milica, Regional cooperation in the Western Balkans (Chaillot Paper no. 104), Paris, EU

Institute for Security Studies, 2007.

Johnsen, William T., Deciphering the Balkan enigma: Using History to Inform Policy, Carlisle, Pa,

Strategic Studies Institute, U.S: Army War College, 1995.

Kola, Paulin, The Search for Greater Albania, London, Hurst & Company, 2003.

Malcolm, Noel, Kosovo, A ShortHhistory, London, Macmillan, 1998.

Rrecaj, Besfort T., Kosova’s right to self -determination and statehood, Pristina, Kosovo, 2006.

Tindemans, Leo (Ch.), Unfinished Peace, Report of the International Commission on the Balkans,

Aspen Institute, Berlin, 1996

Triantaphyllou, Dimitrios (ed.), What status for Kosovo, (Chaillot Paper no. 50), Paris, EU

Institute for Security Studies, 2001.

Van Meurs, Wim (ed.), Prospects and Risks Beyond EU Enlargement, Southeastern Europe: Weak

States and Strong International Support, Opladen, Leske + Budrich, 2003.

Weller, Marc: Negotiating the final status of Kosovo, (Chaillot Paper no. 114), Paris, EU Institute

for Security Studies, 2008.

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53

■ Abstract:

The Difference over the name of the Former Yugoslav Republic of Macedonia

The Greek Perspective

The issue over the official name of the Former Yugoslav Republic of Macedonia has

lasted for more than 17 years and still holds back both Greece and FYROM from

reaching an agreement. The controversy, which lays on an identity difference

between the two States, has led to a diplomatic struggle over which entity has the

right to use the name Macedonia.

This article will attempt an analysis of the dispute mainly in the Greek perspective,

from its origins to the present day, in order to underline the factors that have, over

the years, influenced the Greek Policy. Therefore, it will focus on periods of particular

significance and will examine how they have contributed to further developments.

Finally it aims to contribute to a better understanding of today’s Greek Foreign

Policy position on the issue.

PARA MELHOR COMPREENDER a natureza e contornos do diferendo existente entre Atenas e Skopje,

sobre a denominação da Antiga República Jugoslava da Macedónia (ARJM), importará

pôr em perspectiva os antecedentes históricos da questão. Embora não se pretenda

aqui relatar, a par e passo, todos os factos relacionados com a designação da Antiga

República Jugoslava da Macedónia (ARJM) e com a disputa existente sobre o assunto,

valerá a pena recordar alguns aspectos essenciais que estão na origem deste

contencioso, bem como avaliar a sua evolução, na perspectiva da Grécia. Desde logo,

convirá ter presente que, nesta matéria, quase todos os aspectos da questão são fonte

O diferendo sobre o nome oficial da Antiga República

Jugoslava da Macedónia: a perspectiva da Grécia

“The Balkans produce more history than they can consume”Winston Churchill

Marcello Vaultier Mathias*

* Diplomata, Secretário de Embaixada em Atenas.

NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 53-75

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54 de discórdia, a começar pelo próprio termo “Macedónia”, que tem sido tema de

disputa entre especialistas, no que toca à sua definição, geográfica, demográfica e

linguística.

Enquadramento Histórico Segundo a mitologia grega antiga, a palavra “Macedónia”

encontra as suas origens no termo “Makedon”, nome atribuído ao chefe da tribo

que se estabeleceu na região norte da Grécia. A palavra é referida, pela primeira vez,

nos escritos conhecidos do historiador grego Heródoto1, na sua obra “As Histórias

de Heródoto”. A palavra surge sob a forma de adjectivo “makedonós”, que significava

“alto”, “comprido” e “elevado”. De igual modo o descreve o poeta grego Homero.

O termo “Macedónia” era, assim, usado na Antiguidade para denominar a área

habitada por uma tribo de gente de alto porte, tendo sido precisamente a aparência

física desses habitantes que acabou por dar origem ao nome da região. Em termos

sucintos, importará assinalar três fases distintas:

– a Macedónia como Antigo Reinado, situado a Norte da Grécia Antiga fazendo

fronteira a Ocidente com o Reino de Epiro e a Oriente com a Região da

Trácia; durante o reinado de Filipe II, a Macedónia alcançará uma posição

hegemónica dentro da Grécia; o primeiro Estado Macedónio formar -se -á no

século VIII ou inícios do século VII AC, no tempo de Alexandre o Grande; o

império irá durar até à conquista romana em 146 AC.

– a Macedónia como região Província do Império Romano de 146 AC. até

284/395 DC.

– a Macedónia como Província do Império Bizantino desde 284 -395 até 14532,

quando se dá a conquista de Constantinopla pelos Otomanos, passando a

fazer parte do Império Otomano em 1355; os Turcos Otomanos estiveram na

Macedónia durante cinco séculos.

Em 1864 dá -se a divisão da Macedónia, no seio do Império Otomano, em três

províncias, Salónica, Monastir e Kosovo. Em 1877, o Tratado de San Stefano reorganiza

o domínio do Império Otomano sobre os Balcãs, incorporando grande parte da área

geográfica da Macedónia no território búlgaro, que se estende até ao Mar Egeu e Mar

Negro. Pouco depois, em Julho de 1878, o Tratado de Berlim vem revogar as decisões

1 Nascido em 485 AC, em Halicarnasso, que corresponde hoje a Bodrum na Turquia.2 Embora de 972 a 1014 se encontre sob domínio búlgaro e de 1316 a 1341 sob domínio sérvio.

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55tomadas em San Stefano e, assim, retirar o domínio búlgaro sobre parte da

Macedónia, que dessa forma regressa na totalidade ao Império Otomano. O Tratado

reconhece, ainda, a total independência da Roménia, Sérvia e Montenegro. A região

da Macedónia é, já nessa altura, motivo de fricção entre a Grécia, Bulgária e Sérvia,

num período em que todos estes começam a dar sinais de um nacionalismo agressivo.

A região é então habitada por búlgaros, gregos, turcos, albaneses, sérvios, arménios

e judeus. Em 1893 é fundada a Organização Revolucionária Interna Macedónia, cujo

principal objectivo é o de promover uma Macedónia única, indivisível e autónoma,

habitada por “macedónios”, independentemente das suas origens religiosas ou

étnicas. Rapidamente os países dos Balcãs se apercebem da necessidade de se unirem

para conseguir retirar ao Império Otomano o domínio sobre a região da Macedónia.

Nasce, assim, em 1912, uma aliança entre Sérvia, Montenegro, Grécia e Bulgária, a

que é dado o nome de Liga Balcânica (ou Liga dos Balcãs), que visa conquistar os

territórios ainda sob controlo Otomano. Nos anos de 1912 e 1913 dão -se as duas

Guerras dos Balcãs, primeiro entre a Liga Balcânica e o Império Otomano, pela

divisão dos territórios, e posteriormente entre a Bulgária de um lado e os seus

antigos aliados (Sérvia, Grécia e Montenegro), aos quais se juntam a Roménia e o

Império Otomano, por estarem insatisfeitos com o redesenhar do mapa dos Balcãs,

que dava vantagens territoriais à Bulgária, em detrimento da Sérvia. Resultou na

divisão do território macedónio entre gregos (região costeira) e sérvios (região

central e norte da Macedónia). O Tratado de Bucareste, assinado em Agosto de 1913,

veio pôr fim à Segunda Guerra dos Balcãs, retirando à Bulgária praticamente toda a

área geográfica da Macedónia que lhe pertencera.

Depois da Primeira Guerra Mundial, em 1918, é criado o Reino da Jugoslávia3,

composto pela Eslovénia, Croácia, Bósnia -Herzegovina, Sérvia e Montenegro,

incluindo as partes sérvias do Kosovo, Vojvodina e Macedónia. O Tratado de Lausanne,

de 1923, vem reconhecer internacionalmente a nova República da Turquia como

sucessora do extinto Império Otomano. O Acordo estabelece, ainda, a protecção da

minoria grega residente na Turquia e da minoria muçulmana turca na Grécia. Dão -se

trocas populacionais entre ambos os países. Nos primeiros dez anos de existência, o

Reino da Jugoslávia era designado “Reino dos Sérvios, Croatas e Eslovenos”, mas o

termo Jugoslávia era já então o mais corrente. Durante a Segunda Guerra Mundial, a

3 A palavra “Jugoslávia” significa “terra dos eslavos do sul”.

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56 Macedónia é ocupada pela Bulgária e depois integra a Jugoslávia. A partir de

Dezembro de 1945 é criada a República Federal Popular da Jugoslávia, composta por

seis repúblicas (de que fazia parte a República Popular da Macedónia) até 1963,

altura em que passa a denominar -se República Socialista Federal da Jugoslávia. O

nome República Popular da Macedónia é então igualmente alterado para República

Socialista da Macedónia, designação que se irá manter até 1991, quando se dá a sua

independência.

A evolução da questão na Grécia Em meados dos anos oitenta, à excepção de esporádicas

referências na imprensa, não existia um verdadeiro debate na Grécia sobre o nome

oficial da Macedónia. Apenas alguns políticos, académicos e jornalistas, da cidade de

Salónica, a norte da Grécia, pareciam preocupar -se com a questão. E só a partir de

1990 é que foram progressivamente surgindo novas vozes que, a pouco e pouco,

conseguiram criar um consenso em torno dos perigos provenientes dos Balcãs e dos

desenvolvimentos que conheciam os países da região. Rapidamente se criaram

movimentos de contestação que, a coberto do slogan “a Macedónia é grega” deram

início a marchas e manifestações pelas ruas da cidade de Salónica. Na altura, tendo

em conta o período conturbado e confuso vivido na região dos Balcãs, a crescente

contestação grega terá mesmo sido vista, por alguns, como uma tentativa de

aproveitamento por parte da Grécia da situação caótica, decorrente da desintegração

da Jugoslávia. Na realidade o principal objectivo era o de, por um lado, restaurar a

estreita ligação existente entre a República Helénica e a Antiga Macedónia e, por

outro, deixar claro, desde logo, que não seriam toleradas eventuais ambições

irredentistas de anexação da região greco -macedónia, nem desígnios de se criar uma

Grande Macedónia. A mensagem consistia em acentuar a ideia de que nenhuma

outra região dos Balcãs, para além da Macedónia grega, poderia associar -se ou ser

identificada com o antigo reino da Macedónia, pelo que seria excessivo por parte de

um país eslavo querer, sequer, aspirar a usar o termo “Macedónia” para a sua

designação oficial como novo Estado independente4.

Na década de 90, os países da região dos Balcãs começam a procurar soluções e

prioridades para os problemas que enfrentam tanto interna como externamente. A

Macedónia, encontrando -se no coração da Península Balcânica e sendo habitada por

4 Foi, aliás, por essa altura, em 1992, que os Serviços de Correio gregos resolveram emitir uma série de selos representando antigos bens e objectos bizantinos e macedónios com o texto “a Macedónia foi e será sempre grega”.

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57várias nacionalidades (eslava, búlgara, albanesa, grega e turca), reunia em si

circunstâncias particularmente sensíveis e complicadas. Na era pós -Tito, tornou -se

claro que os frágeis equilíbrios dos últimos quarenta anos chegavam ao fim. Com a

queda do Muro de Berlim e os crescentes tumultos que se registavam na região,

rapidamente se aceleraram as tendências centrífugas. Em Dezembro de 1990, um

referendo dá início ao processo de independência da Eslovénia. Um ano depois,

outro referendo na República Socialista da Macedónia recolhe uma larga maioria de

votos a favor da independência, a qual vem a ser declarada a 17 de Setembro de

1991. A partir daí, a ARJM procura o reconhecimento internacional como “República

da Macedónia”. Desde então, evidenciam -se quatro fases distintas no relacionamento

bilateral entre Skopje e Atenas, que merecem particular destaque: de 1991 a 1995,

de 1995 a 2005, de 2005 a 2008 e de 2008 em diante.

A 27 de Agosto de 1991, havia sido criada, pelo Conselho de Ministros da CEE,

a Comissão Arbitrária da Conferência para a Paz na Jugoslávia, igualmente conhecida

por Comissão Badinter5. Tinha por objectivo prestar apoio jurídico, através de

opiniões e recomendações, sobre questões legais decorrentes da fragmentação da

Jugoslávia, nomeadamente no que se referia à independência das antigas repúblicas

jugoslavas. As primeiras conclusões da Comissão Badinter foram apresentadas em

Novembro desse ano e as finais em Janeiro de 1992. No que se refere à República

Socialista da Macedónia, a Comissão considerou que o país havia reunido as

condições necessárias para aceder à independência, não tomando, assim, em

consideração os argumentos avançados pela Grécia6. Por essa altura, o Parlamento

macedónio havia transmitido às autoridades gregas a sua disponibilidade para

proceder a algumas emendas na sua Constituição, solicitadas por Atenas. Para além

disso, o Executivo de Skopje manifestara o seu empenho em cessar qualquer tipo de

propaganda contra a Grécia, pelo que a Comissão Badinter considerou existirem

sinais positivos para que o país pudesse aceder à independência.

Contudo, a Declaração sobre a FYROM, do Conselho de MNE’s, de Dezembro de

1991 e a posterior evolução desta questão durante a Presidência portuguesa de 1992,

acabaram por enfraquecer a recomendação da Comissão Badinter. Senão vejamos. Em

5 Robert Badinter era, nessa altura, Presidente do Conselho Constitucional francês e havia sido designado Presidente da referida Comissão

Arbitrária. 6 Com efeito, na sua opinião n.º 6, a Comissão Badinter entendeu que o recurso ao termo “Macedónia” não implicava, nem representava,

reivindicações territoriais sobre outro Estado.

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58 Dezembro de 1991, o Conselho de Ministros Negócios Estrangeiros da Comunidade

Europeia é chamado a pronunciar -se sobre o desmembramento das repúblicas

jugoslavas. O então MNE grego, Antonis Samaras transmitiu a posição da Grécia

sobre a matéria, reiterando as objecções de Atenas ao uso do termo “Macedónia”,

acentuando os perigos de futuras ou eventuais reivindicações territoriais e

condenando a propaganda hostil proveniente de Skopje. A Grécia consegue, nessa

altura, a inclusão dos seus pontos de vista nas conclusões em que são pedidas

garantias a Skopje de que não haverá reivindicações territoriais sobre o país vizinho,

nem serão conduzidas acções hostis contra o referido Estado7. De igual modo, o

Ministro Samaras interpela a Assembleia -geral da OSCE, em Moscovo, quanto aos

perigos de eventuais reivindicações territoriais por parte de Skopje sobre a região

Norte da Grécia. O então Presidente macedónio, Kiro Gligorof, terá enviado uma

missiva às autoridades gregas dando garantias de não existirem quaisquer intenções

por parte do seu país sobre essa matéria.

No ano de 1992, a batalha diplomática travada tanto por Atenas como por

Skopje, para fazer valer os seus argumentos, adquire novos contornos. Por um lado,

registam -se manifestações intensas na cidade de Salónica, tanto em 1992 como em

1993, que receberam ampla cobertura dos meios de comunicação social e às quais

não terá sido alheia a intervenção da igreja ortodoxa grega8. As referidas concentra-

ções contribuíram para passar uma mensagem à Comunidade Internacional de que

o povo grego se sentia profundamente injuriado pela forma como esta questão estava

a ser orientada. Criaram -se, assim, movimentos de base, que posteriormente

passaram a ser usados como instrumentos ao serviço da política externa grega,

atribuindo às populações uma influência, indirecta mas efectiva, sobre matérias de

política externa. O povo grego rapidamente adoptou a posição mais extrema que

vinha sendo defendida pelo Executivo, segundo a qual a República da Macedónia em

caso algum poderia vir a ser reconhecida com um nome que incluísse o termo

“Macedónia” ou quaisquer palavras derivadas. A partir dessa altura, as autoridades

gregas apercebem -se que a eventual intenção de alcançar um compromisso com o

país vizinho teria sempre pela frente um juízo decisivo do eleitorado.

7 “The Community and its members also require the Yugoslav Republic to commit itself, prior to recognition, to adopt constitutional and political guarantees ensuring that it has no territorial claims towards a neighboring Community State and it will conduct no hostile propaganda activities versus a neighboring Community State, including the use of a denomination which implies territorial claims”.

8 A esse propósito, refira -se o papel desempenhado, ao longo destes anos, pela Igreja Ortodoxa grega na diáspora, nomeadamente junto das comunidades gregas dos Estados Unidos, Canadá e Austrália, que muito contribuiu para consolidar a posição defendida pela Grécia.

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59O então Presidente Karamanlis e o seu Ministro dos Negócios Estrangeiros

Samaras empenharam -se em contactos regulares com seus parceiros europeus e

acentuam a urgência de se encontrar uma solução ao diferendo. Em Fevereiro de

1992, no Conselho de Ministros dos Negócios Estrangeiros da Comunidade Europeia,

realizado em Lisboa, sob Presidência portuguesa, os Ministros dos Negócios

Estrangeiros holandês e dinamarquês exerceram alguma pressão sob o seu homólogo

grego para que Atenas aceitasse reconhecer a República da Macedónia. O MNE

Samaras torna pública essa exigência e no dia seguinte começa, na Grécia, um boicote

aos produtos holandeses e dinamarqueses. Atenas tornava -se, assim, parte do problema

e não parte da solução. O então Ministro dos Negócios Estrangeiros português, João

de Deus Pinheiro, explorou contudo as perspectivas de se alcançar um compromisso

e apresentou duas propostas. A primeira correspondia a uma convenção sobre mútuo

reconhecimento e inviolabilidade de fronteiras. A segunda consistia numa carta em

que o Governo de Skopje, transmitiria às autoridades gregas: i) a renúncia a qualquer

reivindicação territorial sobre a província grega da Macedónia, ii) o repúdio por

quaisquer acções dessa natureza levadas a cabo pela anterior república jugoslava, iii)

a promessa de não invocar, no futuro, direitos relacionados com minorias e iv) a

garantia de que não fomentaria ideologias ou projectos sobre uma futura Macedónia

unificada. As propostas9 de João de Deus Pinheiro sugeriam, ainda, a denominação

“Nova Macedónia”, como designação oficial do país. O plano acabou por ser rejeitado,

por conter o termo “Macedónia”. A 13 de Abril de 1992, o Presidente Karamanlis

tinha convocado uma reunião extraordinária com o Primeiro -ministro e os líderes de

todos os partidos políticos representados no Parlamento, que contou ainda com a

presença Ministro dos Negócios Estrangeiros, para fazer um ponto de situação sobre

a matéria. A reunião veio reforçar a posição grega de que não seria aceite a palavra

“Macedónia” na denominação que viesse a ser escolhida para o país vizinho.

Em Abril de 1992, o Primeiro -ministro grego, Constantinos Mitsotakis, demite

o então Ministro dos Negócios Estrangeiros Antonios Samaras e assume cumula-

tivamente a pasta dos Negócios Estrangeiros10. Alguns anos mais tarde, diversas

publicações relativas a esse período da História da Grécia contemporânea trouxeram

9 As propostas avançadas por João de Deus Pinheiro ficaram conhecidas, e são ainda hoje referidas, por “Plano Pinheiro” ou “Pacote

Pinheiro”.10 A questão da denominação do país vizinho havia, assim, conseguido gerar uma crise no seio do Governo grego, que um ano mais tarde

levará à queda do Executivo e à realização de eleições em Setembro de 1993, de que saiu vencedor o Partido Socialista PASOK, na altura

sob a direcção de Andreas Papandreou.

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60 alguns esclarecimentos sobre a forma como o partido no governo – Nova Democracia –

havia assumido a gestão desta matéria. Na origem daquela demissão existia uma

acentuada discordância entre o Primeiro -ministro e o Ministro dos Negócios

Estrangeiros, quanto à melhor forma de defender os interesses gregos. Enquanto o

MNE Samaras defendia junto dos seus parceiros europeus uma solução maximalista

do problema, o Primeiro -ministro Mitsotakis transmitia aos seus homólogos nas

suas respectivas capitais a disponibilidade do Executivo grego para uma solução de

compromisso sobre o nome. A visão antagónica de ambos acabou por levar à

demissão do MNE Samaras. Contudo, depois dessa demissão, ao invés de optar pela

posição mais conciliatória que vinha defendendo, Mitsotakis acabou por enveredar

pelas teorias mais extremadas, defendidas anteriormente pelo ex -MNE, por estas

entretanto também terem sido adoptadas por três dos quatros principais partidos na

oposição e pelo próprio Presidente Karamanlis.

Pouco depois, no Conselho informal de Guimarães, de 1 de Maio de 1992, os

Ministros dos Negócios Estrangeiros manifestam sua disponibilidade em reconhecer

a ARJM como Estado independente e soberano, sob um nome que pudesse ser aceite

pelas partes interessadas11. O culminar dos esforços desenvolvidos pelas autoridades

gregas é alcançado no Conselho Europeu de Junho desse ano. Com efeito, em

Declaração anexa às Conclusões do Conselho12, é reiterada a posição assumida em

Guimarães e assinalada a disponibilidade em reconhecer o novo Estado independente,

desde que o seu nome não inclua o termo “Macedónia”. Considerada uma vitória,

pela opinião pública grega, a decisão do Conselho Europeu é acolhida no país

vizinho de forma drástica. A 3 de Julho de 1992, as autoridades de Skopje designam

como bandeira oficial do país o Sol de Vergina ou Estrela de Vergina13 e, a partir de

Setembro, os livros escolares apresentam várias referências à “Grande Macedónia”

com reivindicações de ordem diversa sobre a herança cultural helénica. Em resposta,

Atenas impõe um embargo petrolífero, impedindo a entrega de petróleo à vizinha

Macedónia pelas fronteiras gregas14.

11 “(…) as a sovereign and independent state, within its existing borders and under a name that can be accepted by all parties concerned”.12 “Declaration on former Yugoslavia – (…) The European Council reiterates the position taken by the Community and its members States

in Guimarães on the request of the former Yugoslav Republic of Macedonia to be recognized as an independent sate. It expresses its readiness to recognize that republic within its existing borders according to their Declaration on 16 December 1991 under a name which does not include the term Macedonia.”

13 Estrela composta por 16 raios; trata -se de um símbolo histórico da província grega da Macedónia, correspondente à Dinastia de Filipe II e de Alexandre o Grande, encontrado em 1977 durante as escavações arqueológicas em Vergina efectuadas pelo Prof. Manolis Andronikos.

14 Nessa altura, cerca de 80 toneladas de petróleo ficam retidas em Salónica, a pretexto do embargo.

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61A Macedónia procura então obter reconhecimento junto das Nações Unidas e

apresenta formalmente o seu pedido a 30 de Julho. Em Agosto de 1992, a Rússia

decide reconhecer a República da Macedónia e, simultaneamente, a então Presidência

britânica da UE dá a entender que a decisão tomada em Lisboa deveria ser reavaliada.

A 7 de Abril de 1993, o Conselho de Segurança das Nações Unidas15 aceita a adesão

do país16. Fá -lo, no entanto, sob duas condições, a saber:

– o uso temporário da denominação “Antiga República Jugoslava da

Macedónia”17, enquanto não se encontrar resolvida a disputa com a Grécia,

justificando essa decisão com a necessidade de manter a paz e estabilidade na

região, bem como promover boas relações de vizinhança;

– a proibição da Macedónia usar a sua bandeira oficial com a Estrela de Vergina,

reconhecendo assim à Grécia o direito de defender e proteger um símbolo

que associa ao seu património cultural.

Para além disso, as Nações Unidas18 decidem assumir a responsabilidade de

tentar alcançar uma solução entre ambas as partes, através dos mediadores Lord

Owen e Cyrus Vance, aos quais competia elaborar um projecto de Acordo, que

tomasse em consideração todas as questões em aberto, incluindo a do nome. A

primeira proposta apresentada, após intensas consultas com Atenas e Skopje, sugeria

o nome “Nova Makedonija”, que, na realidade, retomava a sugestão do Ministro João

de Deus Pinheiro, mas na sua versão eslava. A solução não só tinha em consideração

as preocupações gregas, como assinalava as origens eslavas dos cidadãos da ARJM.

Contudo, em Maio de 1993, a Grécia rejeita a proposta. Apesar de o novo MNE,

Michalis Papaconstantinou, se mostrar receptivo, o então Primeiro -ministro

Mitsotakis, pressionado pelo seu próprio partido e temendo perder a maioria

parlamentar, decide rejeitar a solução. As eleições, poucos meses depois, em Outubro

de 1993, dão então vitória a Andréas Papandreou e ao PASOK. Em Novembro desse

ano, Papandreou decide cessar todas as negociações em curso com Skopje. Em finais

de 1993, alguns parceiros europeus já tinham reconhecido a ARJM e em Fevereiro

15 Resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas n.º 817, de 7 de Abril de 1993.16 "Admission of the former Yugoslav Republic of Macedonia to membership in the United Nations", United Nations General Assembly

Resolution n.º 47/225, 8 April 1993.17 Por extraordinário que possa parecer, foi aceite que a Antiga República da Macedónia passasse a constar da lista dos Estados -membros das

Nações Unidas sob a letra “T”, que corresponde à primeira letra da denominação “the former Yugoslav Republic of Macedonia”.18 Resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas n.º 845, de 18 de Junho de 1993.

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62 de 1994, os Estados Unidos reconhecem formalmente a Antiga República Jugoslava

da Macedónia19. O Executivo grego decide então impor um embargo económico ao

país vizinho.

Em 1995, após várias rondas negociais, os mediadores Owen e Vance apresentam

às partes um novo projecto de Acordo, que visa regular as relações entre a Grécia e

a ARJM, tendo em vista a resolução do diferendo. O “Acordo Interino”20 é assinado

em Setembro de 1995 e vem estipular as relações entre Atenas e Skopje, por um lado

no que se refere à questão da denominação do país e, por outro, no que toca ao

relacionamento bilateral propriamente dito. Não estatui sobre a questão da deno-

minação em si, deixando a sua resolução para um momento posterior. Acima de

tudo, constitui um código de conduta e marca o consentimento de ambas as partes

em prosseguirem com as negociações sob os auspícios do Secretário -geral das

Nações Unidas, tendo em vista a resolução do diferendo, à luz das supracitadas

Resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas. O Acordo Interino é pois

um marco nas relações entre os dois países e vem dar início a uma nova fase no

relacionamento entre Skopje e Atenas, caracterizada por uma maior cooperação. Pela

importância de que se reveste, importará destacar o essencial do seu conteúdo e

alguns princípios nele enunciados:

– é estabelecido um prazo de sete anos21 para que as duas partes cheguem a

uma solução mutuamente aceitável sobre a designação da ARJM; durante esse

período, a vizinha Macedónia fica obrigada a usar o nome “Antiga República

Jugoslava da Macedónia”;

– a Grécia põe fim ao embargo que havia imposto à ARJM e reconhece ao

país vizinho o estatuto de Estado -nação; por outro lado, é vedado o uso do

símbolo “Sol de Vergina” às autoridades de Skopje; ficam, ainda, impedidas

de interferir em assuntos internos da Grécia; esta mantém o seu direito de

objectar a adesão da ARJM em qualquer organização internacional, com outra

designação que não “Antiga República Jugoslava da Macedónia”;

Para além destes aspectos, o Acordo Interino prevê também que ambos os países

respeitem as suas fronteiras, a sua integralidade territorial e soberania. Apela à

19 Mais tarde, em 2004, os Estados Unidos reconhecem a ARJM sob o seu nome constitucional “República da Macedónia”.20 “Greece and the former Yugoslav Republic of Macedonia Interim Accord”, Vol. 1891, I -32193, United Nations Treaty Series. 21 Se nenhuma das partes manifestar a sua intenção de se desvincular do Acordo, este ficará em vigor, ad infinitum, até que seja encontrada

uma solução.

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63cooperação entre as partes para que seja alcançada uma solução e estimula a

promoção de relações comerciais e económicas. Solicita, igualmente, que ambos os

países estabeleçam relações diplomáticas logo que possível. O Acordo prevê a

possibilidade de se socorrerem dos bons ofícios da União Europeia e dos Estados

Unidos para os assistir na execução de algumas medidas práticas referidas no

convénio. Por último, estabelece o recurso ao Tribunal Internacional de Justiça, por

qualquer uma das partes, no caso de se verificarem discrepâncias ou desentendimentos

sobre a interpretação e implementação do Acordo.

A assinatura do Acordo Interino permitiu a melhoria considerável das relações

entre Skopje e Atenas. Ambos os países ter -se -ão apercebido que as inexistentes

relações entre Atenas e Skopje, durante o período que medeia os anos 1991 a 1995,

não terá servido os seus interesses, nem em nada terá contribuído para o

relacionamento bilateral, que se viu afectado em termos financeiros, diplomáticos e

políticos. A assinatura do Acordo Interino veio pois acentuar a urgência e importância

de se privilegiar uma relação de cooperação, como alternativa a uma relação de

conflito. É, desde logo, no âmbito comercial e económico que se registam progressos

significativos. A título de exemplo, valerá a pena referir a celebração de 21 acordos

bilaterais entre as partes, no seguimento do Acordo Interino22. Os resultados foram

óbvios, não só no plano do relacionamento político, como também no que toca aos

laços económicos e comerciais que se foram desenvolvendo desde então. Refira -se,

a esse propósito, que as exportações da Grécia para o país vizinho alcançaram os

648,6 milhões de dólares em 2008, contra os 535,3 milhões em 2007. De igual

modo, registou -se um aumento de 28,9% das importações gregas com a ARJM, que

passaram dos 408,3 milhões de dólares em 2007 para 526,3 milhões de dólares em

2008. Por outro lado, os investimentos directos da Grécia são os mais elevados na

ARJM e somam um total de 985 milhões de euros e criaram 20 mil empregos23.

Trata -se de investimentos centrados no sector bancário (28%), energético (25%),

nas telecomunicações (17%), na indústria transformadora (15%), no cimento, no

tabaco, na extracção de mármore e nos produtos alimentares e bebidas24. A Grécia

atribuiu, ainda, 74.840.000 euros à ARJM, para o financiamento de projectos de

investimentos públicos e privados, no âmbito do Plano Helénico para a Reconstrução

22 A ratificação destes Acordos pela Parlamento Helénico encontra -se ainda pendente devido ao diferendo sobre o nome. 23 Existem cerca de 280 empresas de interesses gregos na FYROM.24 Informação transmitida pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros grego.

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64 Económica dos Balcãs25. Acrescente -se, também, o compromisso assumido por

Atenas de financiar, durante os próximos quatro anos, em 100 milhões de euros, a

implementação do corredor pan -europeu X, que atravessa a região dos Balcãs de

Noroeste a Sudeste, ligando Salzburgo a Salónica, passando por Liubliana, Zagrebe,

Belgrado, Nis, Skopje e Veles. No quadro da União Europeia, foram -se desenvolvendo

programas de cooperação com a ARJM, tendo o Banco Europeu de Investimento

vindo a apoiar projectos no país, desde Dezembro de 2005, com fundos no valor de

163 milhões de euros.

Nos anos que se seguiram à assinatura do Acordo Interino, importará destacar

as datas -chave do processo de aproximação da ARJM à União Europeia, que a seguir

se assinalam sucintamente:

– em 1996, a ARJM passa a poder beneficiar dos programas PHARE da União

Europeia;

– em 1997 é assinado o Acordo de Cooperação;

– em Novembro de 2000, na Cimeira de Zagrebe, são iniciados os Processos de

Estabilização e Associação com cinco países dos Balcãs, incluída a ARJM;

– em Abril de 2001 é assinado o Acordo de Estabilização e Associação com o

país;

– em Março de 2004, a ARJM apresenta a sua candidatura para adesão à UE;

– em Dezembro de 2005, o Conselho Europeu, sob Presidência Britânica,

concede o estatuto de país candidato à ARJM26;

– em Janeiro de 2006, o Conselho adopta a Parceria Europeia com o país;

– em Janeiro de 2008, entra em vigor o Acordo de Facilitação de Vistos e de

Readmissão entre a UE e a ARJM;

– em Fevereiro de 2008, o Conselho adopta a Parceria para a Adesão;

Durante todo este processo de aproximação da ARJM à União Europeia, a Grécia

procurou apoiar as perspectivas europeias do país, não tendo apresentado obstáculos

ou empecilhos às aspirações do país vizinho. Contudo, Atenas deixou sempre claro

que jamais poderá concordar com a adesão da ARJM à OTAN ou UE, sob a designação

25 Hellenic Plan for the Economic Reconstruction of the Balkans – HiPERB; foi aprovado em 27 de Março de 2002 com o principal

objectivo de impulsionar e promover a reconstrução económica, social e institucional dos países do Sudeste Europeu (Albânia, Bulgária,

Montenegro, ARJM, Bósnia -Herzegovina, Roménia e Sérvia); o plano plurianual, inicialmente previsto para o período 2002 -2006 foi,

entretanto, prolongado até 2011, pelo facto de a sua implementação prática se ter iniciado apenas em meados do ano de 2004. 26 Conclusões do Conselho Europeu de Bruxelas de 15/16 de Dezembro de 2005.

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65“República da Macedónia” e fez sempre questão em acentuar a necessidade de se

cumprirem as obrigações assumidas no Acordo Interino de 1995, nomeadamente no

que se refere às relações de boa vizinhança27.

Na mais recente evolução desta questão, importa, ainda, salientar o veto exercido

pela Grécia na Cimeira da OTAN, em Bucareste, em Maio de 2008, quando as

autoridades gregas decidiram opor -se ao convite para a adesão da ARJM à Aliança

Atlântica. Atenas defendeu com determinação, junto dos seus aliados, que as boas

relações de vizinhança e a resolução deste diferendo eram condições necessárias à

participação da ARJM na organização. O argumento avançado pela Grécia de que

dificilmente se poderia aceitar, como novo aliado na estrutura atlântica, um país com

o qual Atenas tem um contencioso e difíceis relações de vizinhança – essenciais à

estabilidade e segurança da região dos Balcãs – colheu a simpatia de alguns parceiros

da NATO, em particular do Presidente francês, Nicholas Sarkozy, que manifestou de

forma clara o seu apoio às teses defendidas pela Grécia. Nas conclusões da referida

Cimeira, ficam expressas as recomendações da Aliança para que as negociações se

possam desenrolar da melhor forma e assim prosseguir no sentido de se alcançar

uma solução em torno da denominação oficial do país28. Para além do resultado

positivo alcançado em Bucareste, Atenas conseguiu ainda incluir os seus argumentos

nas Conclusões do Conselho Europeu de 19 de Junho de 200829, em que uma vez

mais é recordado à ARJM a importância das relações de boa vizinhança e a necessidade

de se alcançar uma solução mutuamente aceitável sobre a questão do nome.

Posteriormente, em Dezembro de 2008, o Conselho de Assuntos Gerais e Relações

Externas de Ministros dos Negócios Estrangeiros faz nova referência, nos mesmos

termos, no ponto relativo à ARJM.

Será agora um momento de viragem na evolução deste diferendo? Tudo indica

que sim. Embora seja prematuro fazerem -se prognósticos, o relacionamento dos dois

países parece ter entrado numa nova fase. Disso é aliás também prova a recente

27 A título de exemplo refira -se a decisão tomada pelo Executivo de Skopje, em Janeiro de 2007, de alterar o nome do seu aeroporto de “Petrovec” para “Alexandre o Grande”, o que levou as autoridades gregas a condenar o acto e reiterar a necessidade de se respeitarem compromissos assumidos e se promoverem relações de boa vizinhança.

28 “We recognize the hard work and the commitment demonstrated by the former Yugoslav Republic of Macedonia to NATO values and Alliance operations. We commend them for their efforts to build a multi ethnic society. Within the framework of the UN, many actors have worked hard to resolve the name issue, but the Alliance has noted with regret that these talks have not produced a successful outcome. Therefore we agreed that an invitation to the former Yugoslav Republic of Macedonia will be extended as soon as a mutually acceptable solution to the name issue has been reached. We encourage the negotiations to be resumed without delay and expect them to be concluded as soon as possible”.

29 “Maintaining good neighborly relations, including a negotiated and mutually acceptable solution on the name issue, remains essential”.

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66 decisão, tomada pelas autoridades de Skopje, de recorrer ao principal órgão judiciário

das Nações Unidas, para aferir da legalidade do veto grego. Recorde -se que, em

Novembro de 2008, a ARJM interpôs recurso junto do Tribunal Internacional de

Justiça30, por alegado incumprimento por parte da Grécia do artigo 11.º 31 do Acordo

Interino de 1995, quanto à adesão do país a organizações internacionais. Foram já

estabelecidos os prazos processuais, isto é, a ARJM deverá expor os seus fundamentos

até 20 de Julho de 2009, cabendo à Grécia apresentar a sua contestação até 20 de

Janeiro de 2010. O processo agora iniciado, que se prevê possa vir a ser longo,

deverá permitir às partes, uma vez mais, defender as suas posições e fazer valer os

seus argumentos.

Por último, outro aspecto essencial a sublinhar é o papel do actual Enviado

Especial do Secretário -geral das Nações Unidas. Matthew Nimetz encontra -se ligado

à questão desde 1994, como Representante Especial do Presidente Clinton e

posteriormente como Adjunto do então Enviado Especial do Secretário -geral das

Nações Unidas, Cyrus Vance. A partir de Dezembro de 1999 Nimetz substituiu Vance

nas suas funções de mediador. Desde então, realizaram -se variadíssimas rondas de

negociações com os representantes designados pelos Governos de Skopje e Atenas.

Foram apresentadas diversas propostas de nomes32, não tendo até à data (Março

2009) sido encontrada uma solução definitiva. A mais recente proposta apresentada

por Nimetz em Outubro de 2008 sugeria “Republic of North Macedonia”, tendo

ambas as partes solicitado alterações quanto a diversos aspectos do conjunto de

ideias apresentadas pelo Enviado Especial. Não sendo porventura a melhor opção,

nem para Atenas, nem para Skopje, foi reconhecido pelo governo de Karamanlis que

a proposta de Nimetz poderá constituir uma boa base de negociação ou ponto de

partida para uma eventual solução. As conversações prosseguem e prevê -se que uma

nova ronda de negociações possa ter lugar antes do Verão de 2009, depois das

eleições Presidenciais e Municipais na ARJM, a 5 de Abril.

30 Vd. www.icj -cij.org (“the former Yugoslav Republic of Macedonia institutes proceedings against Greece for a violation of Article 11 of the

Interim Accord of 13 September 1995”).31 O Artigo 11.º do Acordo Interino refere expressamente que a Grécia não pode obstar à adesão da ARJM a qualquer Organização

Internacional a que pertença, reservando -se apenas o direito de objectar à entrada do país com outra designação que não a actual “Antiga

República Jugoslava da Macedónia”.32 Entre outros refira -se: “Constitutional Republic of Macedonia”, “Democratic Republic of Macedonia”, “Independent Republic of Macedonia”,

“New Republic of Macedonia”, “Republic of New Macedonia”, “Republic of Macedonia -Skopje”, “Republic of Upper Macedonia”.

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67Factos determinantes na elaboração da posição da Grécia Apresentados os principais

contornos desta questão, considerem -se os factos que contribuíram para a elaboração

da posição da Grécia33. Como constatámos, a intensificação e o exacerbar do diferendo

entre Atenas e Skopje, constituíram por si só tema de desacordo entre ambas as

partes. Apesar de se ter registado uma evolução significativa das relações existentes

entre os dois países, depois da assinatura do Acordo Interino, a verdade é que a

disputa sobre a designação da ARJM se mantém e a mediação do Enviado Especial

do Secretário -Geral das Nações Unidas não logrou, ainda, levar ambas as partes a um

entendimento definitivo. Por outro lado, estima -se que cerca de 120 países já terão

reconhecido a ARJM sob o seu nome constitucional, i.e, “República da Macedónia”,

o que na perspectiva das autoridades de Skopje, constitui um claro sinal do apoio da

Comunidade Internacional aos seus argumentos. No quadro da União Europeia, a

única expressão utilizada continua a ser “Antiga República Jugoslava da Macedónia”,

não só por uma questão de solidariedade com a Grécia mas por ser essa a denominação

em vigor internacionalmente34. De igual modo, tanto a Organização para a Segurança

e Cooperação na Europa (OSCE), como a Organização do Tratado do Atlântico Norte

(OTAN) usam a designação “Antiga República Jugoslava da Macedónia”35. Dito isto,

alguns Estados -membros destas organizações reconhecem a ARJM por “República da

Macedónia” nas suas relações bilaterais com este país36, mas mantêm a designação

ARJM no âmbito das organizações internacionais a que pertencem. No caso de

Portugal, tem sido usada, até hoje, a denominação “Antiga República Jugoslava da

Macedónia”. O facto da ARJM ter conseguido obter o reconhecimento do seu nome

constitucional junto de tantos países, é aliás considerado por Atenas como revelador

da falta de empenho das autoridades de Skopje em alcançar uma verdadeira solução

mutuamente aceitável, sob os auspícios das Nações Unidas. Segundo as autoridades

gregas, se houvesse uma real e efectiva intenção por parte do país vizinho em chegar

a um entendimento e à resolução definitiva do diferendo, a ARJM não teria vindo

33 O essencial destas notas baseia-se na argumentação defendida por Demetrius Andreas Floudas em “Pardon? A Conflict for a Name? FYROM’s Dispute with Greece Revisited”.

34 “On proposal by the Presidency, the Council agreed to add to the minutes of the Council that until a mutually acceptable solution to the name issue has been reached with Greece, the EU will continue to use the temporary designation “the former Yugoslav Republic of Macedonia” in all EU documents and fora”, vd. Conclusões do Conselho de Assuntos Gerais e Relações Externas da União Europeia de 12 de Dezembro de 2005.

35 “Decision nº 81 of the Permanent Council of the OSCE”, de 12 de Outubro de 1995, e “NATO document ES(2000)30 on the treatment of the name of the former Yugoslav Republic of Macedonia”, de 29 de Fevereiro de 2000.

36 Nomeadamente: Reino Unido, Alemanha, Suécia, Eslovénia, Dinamarca, República Checa, Polónia, Roménia e Bulgária.

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68 a promover, ao longo destes anos, o reconhecimento internacional do seu nome

constitucional. Do ponto de vista de Skopje compreende -se, porém que assim seja. Para

quê voltar atrás quando, a pouco e pouco, se vai instalando o “costume internacional”

de designar o país conforme querem as suas autoridades e a sua população?

A definição da política externa grega no período de 1989 a 1995 viu -se

influenciada por considerações de ordem diversa, algumas de natureza histórica,

outras de índole académica e outras ainda de carácter prático. A posição de base

grega – que perdurou durante mais de 45 anos – de que não existia sequer uma

questão macedónica, permitiu que a Jugoslávia do Marechal Tito prosseguisse os

seus desígnios; por outro lado, deixou a opinião pública internacional na perfeita

ignorância sobre o eventual ponto de vista grego. Foi com um fervor tardio que

Atenas resolveu debruçar -se sobre a matéria, quando deu início a uma campanha

interna de macedonização dos seus próprios elementos e emblemas37.

Nos anos 1991-1992, existia, ainda, um certo desdém por parte de alguma

sociedade grega, convicta de que ninguém daria crédito aos estratagemas da ARJM e

às suas tentativas de usurpar a herança cultural grega, a que se aliava a certeza do

bem fundado das reivindicações gregas. Assim, quando o país pretende tornar-se

independente, a comunidade internacional tem como primeira interrogação, não

tanto a questão de avaliar se o país se deve chamar Macedónia ou não, mas sim quais

as razões que levam os vizinhos gregos a não permitir tal denominação. A posição

das autoridades gregas, que até então revelara uma certa inércia e indiferença, fez

com que a ARJM conseguisse ganhar terreno, durante anos, através de conferências,

publicações e monografias em Universidades e livrarias, pelo mundo fora.

A posterior posição inflexível tomada por Atenas sobre esta matéria não deixa de

ser curiosa. Por um lado, a vinda a público e divulgação do diferendo existente entre

a ARJM e um país, política, económica e militarmente superior, originou reacções de

ordem diversa e até mesmo alegações de que a Grécia estaria a desenvolver manobras

de intimidação junto da ARJM. Por outro, as intensas manifestações que tiveram lugar

na cidade de Salónica transmitiam a imagem de uma população determinada, com

pontos de vista categóricos sobre o assunto. À medida que a disputa ia evoluindo, a

intransigência de ambas as partes não permitia vislumbrar possíveis formas de

37 Refira -se a título de exemplo: a alteração, em 1988, de “Ministry for Nothern Greece” para “Ministry for Macedonia -Thrace; a criação,

em 1991, da “Macedonian Press Agency” de Salónica; o cunhar de moedas com o Sol de Vergina; a consagração, em 1993, da Estrela

de Vergina como símbolo nacional grego.

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69solucionar o problema. E foi precisamente essa intransigência que acabou por reduzir

as respectivas margens de manobra de Atenas e Skopje e gerou, perante alguma

perplexidade internacional, a presente situação de (quase) impasse.

As preocupações e prioridades da política externa grega, centrada nas suas

relações com a Turquia, não lhe davam espaço para assegurar uma política coerente

com vista à estabilidade dos Balcãs, nem de se preparar para a previsível ruptura da

Federação Jugoslava, subsequente à morte do Marechal Tito. A política externa grega

não estava, assim, preparada para fazer face aos novos desafios decorrentes da

dissolução do Bloco de Leste e da redistribuição dos poderes regionais. A posição,

anterior aos anos 90, de refutação da existência de qualquer questão macedónica,

bem como a tranquilidade das relações com a Jugoslávia e a República Socialista da

Macedónia, sua parte integrante, eram reveladores de que a Grécia não antevia que

pudessem surgir eventuais alterações no status quo da Macedónia38.

É clara e evidente a impossibilidade de se analisar esta matéria fora do seu

contexto histórico, i.e do conflito jugoslavo e outras questões paralelas. Os interesses

defendidos por Atenas, nessa altura, eram contrários aos interesses da maior parte

das potências ocidentais. Refira -se nomeadamente, a ideia defendida pelas autoridades

gregas de se preservar a Jugoslávia, o que contrariava os desígnios da Alemanha,

Áustria e Itália e, até da Santa Sé, que, não só por razões históricas como devido a

uma crescente necessidade de aumentar a sua influência na região, pretendiam o

desmembramento da Jugoslávia. Saliente -se, ainda, o apoio da Grécia à Sérvia, seu

único aliado histórico na região – o que não reforçou a reputação internacional de

Atenas.

A questão macedónica surgia cada vez mais como um agravamento absurdo de

uma situação por si só já exacerbada. No caso concreto da ARJM, indepen-

dentemente do bem fundado dos argumentos apresentados por Atenas, a Europa

não iria permitir que a Grécia asfixiasse este novo país, na medida em que isso

poderia resultar em mais um foco de conflito ou outra tentativa falhada de se

assegurar a paz na região. A hostilidade grega contra a Antiga República Jugoslava

era vista como uma eventual ameaça à sua existência e possível factor de expansão

dos conflitos a sul.

38 Até praticamente 1991, o Consulado da Grécia endereçava comunicações e dirigia -se ao Governo de Skopje usando o termo República

Socialista da Macedónia.

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70 Por seu turno, vários Estados -membros da UE tinham uma apreciação superficial

e distante da essência do diferendo que opunha Atenas a Skopje, frequentemente

considerada, por alguns, uma “histeria infantil” ou mais uma “peculiaridade bal-

cânica impenetrável”. A Grécia surgia, assim, dividida entre a necessidade de adoptar

critérios ocidentais de aceitação da liberdade alheia aplicáveis à política externa e a

urgência em obter resultados no difícil panorama diplomático e correspondentes

jogos de interesses que se desenvolviam em torno da região dos Balcãs.

Consequentemente, a política externa grega oscilava entre o recurso a argumentos de

natureza cultural ou a invocação de fundamentos pragmáticos para fazer valer a sua

posição. Contudo, a opção por critérios racionais nem sempre conseguia vingar,

dada a falta de serenidade e deficiente conhecimento dos seus interlocutores da

história dos Balcãs.

A decisão dos Chefes de Estado e de Governo da Comunidade Europeia, reunidos

em Lisboa durante a Presidência portuguesa de 1992 – em que é reafirmada a

vontade da Comunidade em reconhecer a Antiga República Jugoslava como Estado

independente, desde que a nova apelação não contenha o termo “Macedónia” –,

constituirá ao longo destes anos um dos pontos altos da solidariedade europeia e terá

sido porventura uma oportunidade única, desperdiçada por Atenas, de alcançar o

melhor resultado possível, tendo em conta os seus interesses nesta questão. Mas a

rotação de Presidências do Conselho acabou por ser favorável a Skopje com a entrada

em funções, no segundo semestre de 1992, da Presidência britânica, que procurou

relativizar a importância da Declaração de Lisboa e até mesmo alterá -la. A ARJM

ganhou alguma simpatia internacional, ao projectar a imagem de um país ameaçado

e oprimido pelo seu vizinho poderoso, o que lhe terá permitido recolher apoios

junto de alguns órgãos de comunicação social de países europeus, que não hesitaram

em optar por posturas anti -helénicas sobre a matéria. Nos anos seguintes, a Grécia

apercebeu -se da necessidade de promover um melhor e mais forte lobby a seu favor,

dentro e fora da UE. Como se viu, as contra -medidas, tomadas por Atenas em 1994,

são disso exemplo. Uma palavra ainda sobre o papel desempenhado pela Igreja

Ortodoxa grega, que igualmente contribuiu para consolidar as posições defendidas

por Atenas. Recorde -se não só o apoio às manifestações organizadas em Salónica, em

1992 e 1993, mas também a outras demonstrações e concentrações que tiveram

lugar nos Estados Unidos, Canadá e Austrália, o que lhe permitiu unir e consolidar

a diáspora, ao longo destes anos. Ainda acerca desta matéria, valerá a pena referir

que, em 2001, o Santo Sínodo da Igreja Ortodoxa grega, em consonância com o

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71Governo, havia tornado público os seus pontos de vista e acentuado a ideia de que

o uso do termo “Macedónia” constituía uma usurpação da História e cultura grega

e abria caminho a reivindicações territoriais39.

A actual posição da Grécia A posição hoje defendida por Atenas já não corresponde às teses

maximalistas do início da década de 90. Desde logo, importa assinalar o facto de

hoje ser aceite pelas autoridades gregas a possibilidade de o futuro nome, que vier

a designar oficialmente o país vizinho, possa ser um nome composto e possa incluir

a palavra “Macedónia”40. Nesse sentido, poder -se -á dizer que, na perspectiva da

Grécia, a sua posição evoluiu a caminho de um ‘meio -termo’ na questão do nome,

pois ao aceitar -se um nome composto e a palavra “Macedónia”, na designação

oficial do país, as autoridades gregas consideram estar a fazer uma concessão

maior às reivindicações dos seus opositores. Chegados a este ponto, valerá a pena

debruçarmo -nos um pouco sobre os principais pontos que caracterizam a posição

defendida hoje por Atenas. O Executivo grego considera que, tanto a Grécia, como a

ARJM, assumiram a responsabilidade de resolver a questão da disputa sobre o nome

do país, pelo que, tanto um como o outro, devem actuar nessa conformidade. Assim,

cabe a ambos cumprir o compromisso assumido de contribuir para as negociações,

mediadas pelas Nações Unidas, tendo em vista uma solução mutuamente aceitável.

Atenas considera estar a executar a sua quota -parte de responsabilidade nessa matéria.

Não tem dúvidas de que ambos os países terão de fazer concessões, pelo que entende

ser indispensável quebrar o actual círculo vicioso em que se encontra encerrada esta

questão, para evitar que ambas as partes ficam reféns das suas posições. Por outro

lado, Atenas tem defendido que não deve haver nem vencedores, nem vencidos,

mas sim um acordo que satisfaça as partes interessadas e corresponda à realidade

geográfica e histórica. A solução terá, assim, que ser mutuamente aceitável e ter por

basear o processo negocial conduzido pelo Representante Especial das NU para a

39 “The Church of Greece believes that the use of the name ‘Macedonia’ by the neighboring state constitutes usurpation of a considerable

portion of our history and culture, paves the way for territorial demands and the resurgence of non -existent minority issues, assails

Greek dignity, and violates the historical truth. The Church cannot be unmindful of the cries of protest which are being raised by the

organizations of [Greek] Macedonians abroad and are being heard the length and breadth of the globe. Nor can the Church overlook

the profound dismay of its flock living in Northern Greece. For if we put our signature to the recognition of a state the name of which

includes the term ‘Macedonia’, then it will not be long before the Northern Greeks are forbidden to call themselves ‘Macedonians’.40 Em Março de 2005, em resposta a uma proposta avançada por Nimetz, a Grécia manifesta a sua disponibilidade em aceitar que o termo

“Macedónia” faça parte do nome composto que vier a ser escolhido.

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72 questão da designação da ARJM. Deverá enquadrar -se nas Resoluções do Conselho

de Segurança das Nações Unidas e nos princípios europeus. Para a Grécia, é pois

essencial e determinante que a resolução do diferendo contemple os seguintes três

aspectos:

– a adopção de uma denominação, que se poderá apresentar sob a forma de

um nome composto e conter a palavra “Macedónia”, com um qualificativo

geográfico que permita distinguir o país vizinho do resto da zona geogra-

ficamente conhecida como Macedónia, isto é, a Macedónia grega41; uma

designação erga omnes, isto é, um nome internacionalmente reconhecido por

todos, quer a nível bilateral, quer no plano multilateral42, para todos os fins e

propósitos;

– que a ARJM renuncie definitivamente a qualquer usurpação da herança

histórica e cultural helénica e se afaste de conceitos irredentistas que per-

tencem ao passado;

– a adopção e endosso pelas Nações Unidas da solução definitiva por forma a

assegurar o respeito pela sua implementação.

Conclusão Na perspectiva da Grécia, o diferendo sobre a designação do país vizinho constitui

um elemento de particular relevância da sua política externa. As autoridades gregas

não perdem nunca a oportunidade de reiterar a importância desta matéria, nem de

acentuar o empenho com que procuram alcançar uma solução e a parte do caminho

que já percorreram. Tal solução deverá permitir, simultaneamente, defender os

interesses do país e da região grega da Macedónia, pelo que a questão, enquanto

estiver por resolver, se manterá sempre na ordem do dia, independentemente do

partido ou coligação que possa estar no poder. Por outro lado, a questão só ficará

resolvida em sede constitucional, mediante ratificação parlamentar, a qual poderá

41 Melhor dizendo, os eventuais adjectivos que possam ser apostos à denominação “República da Macedónia” devem diferenciar o termo

“Macedónia” e não o termo “República”. Para a Grécia, o que importa é distinguir a palavra que está na origem do diferendo, pelo que

de nada servem eventuais soluções com os termos “Constitutional”, “Democratic” ou “Independent” apostos à palavra “Republic”, mas

já poderá fazer diferença se essas mesmas sugestões ou outras forem inseridas junto à palavra “Macedonia”, como seriam os casos de

“Republic of Upper Macedonia” ou “Republic of New Macedonia”. Só assim poderá haver, segundo as autoridades gregas, uma efectiva

diferenciação do termo Macedónia em relação à região grega da Macedónia.42 Atenas é contra uma solução dual, em que haveria uma designação apenas para uso das relações bilaterais entre a Grécia e a ARJM e

outra a ser utilizada nas relações da ARJM com os restantes países da Comunidade Internacional ou no âmbito das Organizações

Internacionais.

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73ser complexa dada a agressividade da luta política inter -partidária grega. Nesse

sentido, Atenas deverá prosseguir em diante com seus argumentos, deixando todas

as opções em aberto, para melhor apresentar a sua posição e proteger seus interesses,

tendo em conta que o limite dos negociadores terá de coincidir com os limites do

entendimento entre os partidos.

Toda a problemática se prende com o facto de que a questão de denominação

da ARJM não se circunscreve apenas ao nome a escolher. Tudo aquilo que é

apresentado pelas autoridades gregas como sinais reveladores do seu empenho em

alcançar uma solução é naturalmente contestado pela ARJM e vice -versa. O que opõe

ambas as partes é a própria essência do diferendo. Para a Grécia, se em tempos se

tratou de uma questão de segurança nacional, hoje é sobretudo em termos de

identidade e de preservação de uma herança cultural que o problema se coloca. Já

no que se refere à ARJM, a questão põe em causa não só a identidade do país, como

a sua própria existência, na medida em que o termo “Macedónia” é considerado o

nome de raiz do Estado e do seu povo. Na perspectiva de Skopje, a componente

Macedónica é determinante na caracterização da sua identidade e etnicidade – e do

seu estatuto como país do sudeste Europeu –, não só em termos de nacionalidade

como de língua, pelo que as objecções da Grécia ao uso do nome são vistas no país

vizinho como uma negação da existência da nação Macedónica enquanto tal. Essa é

aliás, no entender das autoridades de Skopje, a razão pela qual Atenas contesta

qualquer discussão em torno de questões étnicas e se opõe ao uso do adjectivo

“macedónio” no que toca à nacionalidade e língua da ARJM. Mas vários outros

aspectos relacionados com a matéria devem ser tidos em conta e terão que ficar

devidamente regulados na solução que vier a ser encontrada, nomeadamente no que

toca à necessidade de se estabelecerem critérios para a comercialização de produtos

oriundos, tanto da ARJM como da região Norte da Grécia. Outro ponto essencial a

ter em conta será a forma de implementar o acordo entre as partes. Para a Grécia,

não bastará haver uma Resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas,

tornando -se indispensável que exista, por um lado, uma ratificação constitucional e,

por outro, um mecanismo de follow -up, que permita acompanhar a correcta imple-

mentação da solução que vier a ser aceite. No futuro mais próximo a Grécia procurará

fazer valer os seus argumentos no âmbito do processo agora instaurado no Tribunal

Internacional de Justiça, em que deverá dar conta daquilo que considera terem sido,

ao longo destes anos, claras e contínuas violações do Acordo Interino por parte das

autoridades de Skopje.

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74 Dito isto, ao olharmos mais atentamente para a evolução desta questão nos

últimos 15 anos, torna -se claro que o processo de aproximação à União Europeia

constituiu o caminho certo e uma oportunidade para a consolidação das relações

entre Atenas e Skopje. Um futuro europeu comum poderá ser a melhor forma de

ultrapassar as diferenças de identidade e levar à resolução do diferendo sobre a

denominação do país.NE

BIBLIOGRAFIA

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■ Abstract:

This article is about the new wars and new threats to international security, which

constitute a new approach to Polemology. It also analyses the 6 fundamental

characteristics of the so -called war made by the forces of transformation.

SÃO INÚMERAS AS questões que têm captado a atenção de várias gerações de estudiosos das

Relações Internacionais e da Estratégia, como por exemplo:

• O que é e por que razão surge a Guerra?

• Como se pode caracterizar a Guerra na actualidade?

• Qual o posicionamento da entidade Estado como estrutura política no novo

contexto internacional?

• O uso da Força nas Relações Internacionais ainda é útil?

• Porquê, e por quem é a Segurança dos Estados e das pessoas ameaçada?

Procurando encontrar respostas a estão questões, articulámos este artigo em oito

capítulos distintos mas interrelacionados. Ao longo do texto traçaremos uma

perspectiva das transformações ocorridas nos conflitos armados e caracterizaremos

as principais ameaças à Segurança, procurando mostrar a ligação entre estas e a

Guerra no nosso século. Caracterizaremos ainda as guerras de alta tecnologia,

findando com uma abordagem da civilinização da actividade militar e o importante

papel desempenhado pelas empresas militares privadas. Esta análise permite -nos,

desde logo, verificar a profunda evolução do fenómeno da Guerra. De facto, evoluiu-

-se de um modelo essencialmente clausewitziano para um modelo de guerra

irregular, global, assimétrica e permanente, sem uma origem clara e que pode surgir

em qualquer lugar.

A nova polemologia

Francisco Proença Garcia*

* Tenente-Coronel. Conselheiro Militar na PODELNATO. O presente artigo corresponde ao texto integral da lição

de encerramento apresentada pelo autor nas provas de Agregação em Relações Internacionais no Instituto

de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa, no dia 17 e 18 de Setembro de 2008.

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77I. As guerras no nosso século – uma perspectiva O fim da II Guerra Mundial foi marcado pela

rivalidade do mundo em equilíbrio bipolar. Estas tensões entre os grandes poderes

no campo económico, ideológico e político, traduziu -se na utilização preferencial

da força militar como instrumento de dissuasão. O período é caracterizado pelos

inúmeros conflitos nas zonas de confluência dos interesses das grandes potências,

que se enfrentavam por locução interposta.

A conjuntura internacional sofreu profundas alterações após a queda do muro

de Berlim. No actual Sistema Internacional caracterizado pela sua complexidade, não

linearidade, imprevisibilidade, heterogenidade, mutabilidade e dinamismo, a

ameaça, que mantinha coordenadas de espaço e de tempo bem definidas, desapareceu,

dando lugar a um período de anormal instabilidade, com uma ampla série de riscos

e perigos, uns novos, outros antigos, que apenas subiram na hierarquia das

preocupações dos Estados.

A comunidade internacional, habituada a um equilíbrio pelo terror do

holocausto nuclear, foi assim forçada a reconhecer que para além do Estado existiam

outros actores que empregavam a força como instrumento nas Relações Internacionais,

situação que apesar de não ser nova influenciaria decisivamente o fenómeno da

Guerra a partir da última década do século XX.

Mas as incertezas no dealbar deste terceiro milénio são inúmeras. Num mundo

hoje marcado pela volatilidade identitária (Badie, 2001; p. 71), as zonas de interesse

estratégico fundamentais alteraram -se, e passaram a ser aquelas que são capazes de

exportar a sua própria instabilidade (Ramonet, 2001; p. 56). As Guerras já não

obedecem apenas à concepção clausewitziana (Estado, Forças Armadas, População),

típica do anterior Sistema Internacional. Hoje a violência global é assimétrica e

permanente, não tem uma origem clara e pode surgir em qualquer lugar. Para

muitos, trata -se de uma situação típica do mundo tendencialmente unipolar do

ponto de vista do esforço militar.

A actual conjuntura internacional, onde o papel do Estado soberano está em

crise, também se caracteriza pela flexibilização do conceito de fronteira e pela

aceitação de situações de cidadanias múltiplas e de governança partilhada.

No imaginário ocidental, quando se pensa ou fala em Guerra, normalmente a

imagem associada é a da confrontação entre as Forças Armadas organizadas de dois

ou mais Estados. Porém, os Estados, como forma de organização política ocidental,

são criações artificiais recentes que surgem após Vestfalia, pelo que a Guerra, como

instrumento da política do Estado que opunha um Estado a outro e umas Forças

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78 Armadas a outras Forças Armadas, constitui um fenómeno relativamente recente e

que poderá ter tendência a desaparecer (Creveld, 1991; p. 75).

As guerras contemporâneas, acentuadamente depois de 1945, tornaram -se cada

vez menos entre Estados e passaram a contemplar outros actores, infra -estatais, que

perseguem múltiplos e diversos objectivos, que obedecem a lógicas e a racionais

também diferentes, verificando -se uma extrema plasticidade dos seus actuantes,

assemelhando -se muitas vezes a uma luta pela sobrevivência, sem regras, sem

objectivos claramente definidos, podemos mesmo dizer, totalmente irracional,

caótica, poluída, penetrada pelo crime organizado, pelo terrorismo e pelo tribalismo

(Bauer e Raufer, 2003; p. 165). Igualmente relevante é o aparecimento de entidades

supra -estatais institucionalizadas capazes de executar acções militares conjuntas, um

fenómeno que exige acompanhamento.

No caso de regiões menos desenvolvidos, onde são inúmeros os Estados que

jamais foram capazes de se afirmarem face a outras entidades sociais (nomeadamente

em relação à tribo e aos grupos etnolinguísticos), tem -se observado que, no decorrer

de confrontações violentas, a distinção entre Estado, Forças Armadas e população

começou a esbater -se antes mesmo de ter sido correctamente estabelecida (Olsen,

2003).

Na história existiram as estruturas tribais, as estruturas feudais, as associações

religiosas, os bandos de mercenários ao serviço de senhores da guerra, e mesmo

organizações comerciais. Muitas destas entidades não eram sequer políticas nem

detentoras de soberania. Não possuíam governo, Forças Armadas nem população (no

sentido actual do termo), mas defrontavam -se em guerras e campanhas bem

organizadas.

É neste sentido que alguns autores consideram que o mundo está a enfrentar

uma situação de neo -medievalismo (Berzins e Cullen, 2003), ou mesmo um eventual

regresso ao primitivo, favorecendo o falhanço do Estado e o crescimento da violência

internacional não -estatal, em casos extremos, privatizada (Kaldor, 2001; p. 91 -96),

perdendo o Estado o uso exclusivo da Força. Para Herfried Munkler (2003, p. 18),

passou a haver uma desmilitarização da guerra, no sentido em que os objectivos civis

não se distinguem dos militares e a violência extrema é exercida contra não-

-combatentes e sobre todos os domínios da vida social. Nestas novas guerras usam -se

profusamente crianças -soldado (Singer, 2005; p. 7).

As formas de barbárie que não aparecem desprovidas de funcionalidade,

permitem assegurar a fidelidade dos participantes e criam uma cumplicidade do

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79crime, de afirmação de uma identidade colectiva face ao Inimigo, de exercer sobre

ele um terror cruel, dificultando a sua resistência pela imprevisibilidade e

arbitrariedade das represálias e da sua crueldade (Sémelin, 2000; p. 124). No fundo,

a violência ascendeu aos extremos a que Clausweitz (1976; p. 75) se referia, e o que

separa a guerra da barbárie é a existência do conceito da honra do guerreiro

(Ignatieff, 1998; p. 157).

Tendo em consideração que os actores deste tipo de conflito são outros, também

o seu carácter teve que evoluir: são guerras irregulares, estrutural ou temporariamente

assimétricas, sem frentes, sem campanhas, sem bases, sem uniformes, sem respeito

pelos limites territoriais, de objectivos fluidos, de combate próximo, estando os

combatentes misturados com a população que utilizam como escudo e, se necessário,

como moeda de troca. Os seus pontos fortes estão na inovação, na surpresa e na

imprevisibilidade, onde os fins justificam os meios, empregando por vezes o terror;

onde o estatuto de neutralidade e a distinção civil/militar desaparecem. Estas guerras

de hoje não são apenas mais comuns do que no passado, mas são também

estrategicamente mais importantes e desenvolvem -se em Teatros de Operações

urbanos; são travadas, essencialmente, em ambiente operacional de cariz

subversivo.

a. A urbanização da luta

As populações rurais, motivadas pela fome, pobreza e pelas guerras, refugiam -se ou

imigram para os grandes centros urbanos, que crescem desreguladamente. Essas

comunidades migrantes vão instalar -se nas favelas, bairros da lata, vilas miséria, callampas ou

shantytowns, das cinturas suburbanas em condições sub -humanas. Neste ambiente

encontram terreno para emergir as mais diversas formas de subversão, como os gangs

de rua (Manwaring, 2005), que ajustam as suas tácticas e estratégias, no bom

reconhecimento de que o centro de poder político -económico -militar está na

conurbação, que o poder pode e deve ser atacado na sua sede e não na periferia

(Laqueur, 1984; p. 344).

Tal como na guerrilha rural, nas selvas de zinco e adobe, os combatentes que se

misturam com a população com mais facilidade conseguem a cobertura dos media,

mostrando a incapacidade do poder para a proteger (Taw e Hoffman, 2005; p. 15).

Neste pano de fundo, a subversão acaba por controlar uma determinada área e

estabelecer formas alternativas de poder, beneficiando os seus seguidores com a

prestação de alguns apoios (incluindo a distribuição de alimentos).

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80 São bons exemplos de subversão urbana as actuações do Primeiro Comando da

Capital no Brasil a partir de 2001; os motins urbanos que ocorreram em Los Angeles

em 1992; os movimentos urbanos, como as manifestações e formas de “acção

directa anti -hegemónica” da “Esquerda festiva”, em 1999, em Seattle e, mais recen-

temente, em Paris em Novembro de 2005; ou ainda os levantamentos populares

pró -Democracia ocidental e liberal na Europa Central e de Leste (Guedes, 2005).

Todas estas actuações aproveitaram muito o sensacionalismo dos media.

A luta urbana não é uma técnica nova. Assim foi na América Latina, onde no

final da década de sessenta do século XX, o centro de gravidade da luta subversiva

passou do campo para a cidade, o que rapidamente originou uma nova doutrina da

guerrilha urbana. No Brasil destacaram -se guerrilheiros urbanos como Carlos

Lamarca e Carlos Marighella (1969). Na selva de cimento do Uruguai, os Tupamaros,

na Argentina os Montoneros e no Perú o Sendero Luminoso. As acções subversivas em

ambiente urbano surgiram ainda, entre outros países, na Itália (Brigate Rosse), na

Alemanha (Baader -Meinhof), em França (Action Directe), e no Japão (Nihon Sekigun). Todas

desafiaram a integridade política e socioeconómica dos seus países, criando um

clima de instabilidade e de insegurança individual e colectiva (Manwaring, 2004;

p. 29), seguindo um processo doutrinário comum de três fases típicas da subversão

urbana: organização, desordem civil e terrorismo (Laqueur, 1984; p. 377), procu-

rando sempre a repressão violenta do poder. No fundo, o aparelho do Estado devia

ser desmoralizado, parcialmente paralisado, destruindo -se assim o mito da sua

invulnerabilidade e ubiquidade.

b. Tendências de futuro

A tendência actual aponta para que no futuro as guerras persistam entre Estados

pequenos e fracos, ou em países menos desenvolvidos, e não envolvendo as grandes

potências, eventualmente com base em considerações étnicas e de identidade,

considerando -se difícil que Estados cujo regime político -constitucional seja a

democracia, entrem em conflito entre si (Holsti, 1996; p. 23).

Embora pareça razoável defender esta interpretação, é muito claro que esta visão

da guerra do futuro não colhe a aceitação generalizada dos estudiosos da Estratégia.

Como visão divergente, é útil realçar a posição de Colin Gray (2005). Este autor,

dentro da lógica do neorealismo clássico a que diz pertencer, defende que a trindade

clausewitziana veio para ficar. Para Gray, seria errado admitir um desaparecimento,

no futuro próximo, das guerras regulares centradas nos Estados e que foram típicas

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81do período vestefaliano, embora admita que, presentemente, se constata uma

tendência importante no sentido da utilização de forças irregulares.

O normativismo internacional sobre a guerra, inspirado nos pensamentos de

Santo Agostinho e de São Tomás de Aquino, ainda existe, mas ninguém lhe confere

muita importância. Com esta alteração, os Estados, outras entidades e mesmo os

indivíduos já não sentem a necessidade de assumir posições claras perante os

conflitos, nem a necessidade de adoptar o amplo normativismo internacional criado

para conter ou limitar a guerra e os seus efeitos.

Nos conflitos da última década não houve qualquer declaração formal de guerra

ou de neutralidade feita por um único Estado, assim como também não houve

qualquer tratado de paz formal. A maior parte dos Estados ou entidades limitou -se a

definir uma política geral perante o recurso à força militar, que variava ao longo do

tempo (Telo, 2002; p. 225). O caso mais emblemático é o do Kosovo, onde a opção

da OTAN se manifestou na legitimidade pelo exercício, ou seja, bombardeou -se

primeiro e só depois se alterou o Conceito Estratégico.

Identificadas as transformações fundamentais das características, mas

principalmente dos actores envolvidos nas guerras da actualidade, são inúmeras as

tendências para o futuro, que pensamos já se terem iniciado. De uma maneira muito

genérica, como vimos, é comum classificar as guerras como regulares e irregulares.

Se nas primeiras o modelo clausewitziano tradicional está presente, nas últimas os

Estados podem entrar em guerra contra uma rede terrorista, uma milícia, um

movimento independentista, um exército rebelde ou ainda contra o crime

organizado. As guerras irregulares podem também ser travadas entre dois ou mais

grupos organizados, não envolvendo nenhum Estado. Em ambas as tipologias, a

superioridade no acesso e tratamento da informação é determinante.

Consideramos nesta nossa Lição de Encerramento duas aproximações

fundamentais para caracterizar as guerras no nosso século, sejam elas regulares ou

irregulares. A primeira procura o entendimento de fenómenos como as “novas

guerras” e as “novas ameaças”, a segunda visão dedica -se ao estudo das implicações

das guerras espectáculo, possibilitadas pelas forças da Revolução Militar em Curso

(RMC), que têm por base os enormes avanços da tecnologia. Seja qual for a

abordagem, existe consenso quanto ao facto de neste século as guerras se

desenvolverem num mundo assimétrico, com fortes desequilíbrios quantitativos e

qualitativos e onde surge um novo e discreto instrumento de intervenção, as

empresas militares privadas (EMP).

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82 II. As novas ameaças à segurança e a guerra A Guerra hoje em dia aparece -nos muito

associada às novas ameaças transnacionais. Assim devemos antes de mais esclarecer

o que hoje se entende por novas ameaças, sabendo -se que reflectem numerosas

alterações políticas, económicas e sociais ocorridas no mundo desde a queda do

muro de Berlim e sobretudo no pós -11 de Setembro de 2001.

Tradicionalmente ameaça é definida como sendo qualquer acontecimento ou

acção (em curso ou previsível), de variada natureza e proveniente de uma vontade

consciente que contraria a consecução de um objectivo que, por norma, é causador

de danos, materiais ou morais; no fundo, o produto de uma possibilidade por uma

intenção (Couto, 1998; p. 329).

Porém, este conceito, por não ser suficientemente abrangente, apresenta hoje

difíceis problemas quando procuramos precisar o que compreende; além do mais

não permite a inclusão das consideradas ameaças não -tradicionais à segurança como

é o caso da SIDA. É fácil observar que esta pandemia não é uma ameaça na concepção

clássica, estruturalmente identificável num produto de uma capacidade por uma

intenção. Por outro lado, também não parece possível entendê -la como um risco,

que durante longas décadas se opôs ao conceito de ameaça, entendido como acção

não directamente intencional e eventualmente sem carácter intrinsecamente hostil

(Nogueira, 2005; p. 73).

Face à multiplicidade de conceitos sobre o assunto, neste estudo optámos por

adoptar a definição de ameaça transnacional do relatório das Nações Unidas, A More

Secure World: Our Shared Responsability, que admite uma concepção bastante ampla de

ameaça, encarada como:

“(…) Any event or process that leads to large -scale death or lessening of life

chances and undermines States as the basic unit of the international system is a

threat to international security (…)” (2004, p. 12).

Nesta ordem de ideias, consideramos como principais ameaças relacionadas

com a nova conflitualidade: o fracasso dos Estados, o crime organizado transnacional,

o terrorismo transnacional e a pandemia da SIDA.

III. O fracasso do Estado e a subversão A primeira destas ameaças podemos considerar

ter emergido com a alteração do Sistema Internacional após o fim da Guerra-

-fria. De acordo com dados da Agência Norte -Americana para o Desenvolvimento

Internacional (USAID, 2005), pelo menos um terço da população mundial vive agora

em áreas consideradas instáveis ou frágeis. São inúmeros os exemplos de Estados

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83fracassados pelo Continente Africano e no Sudeste Asiático; os mais prementes são a

Somália e o Iraque.

São vários os elementos constitutivos do Estado, como o território, o povo e o

poder político soberano, competindo -lhe tradicionalmente garantir a prossecução

dos seus fins de segurança, justiça e bem -estar social (Caetano, 1991; p. 144 -149).

Na definição tradicional de Jean Bodin, o Estado é supremo na ordem interna e

independente na ordem externa, ou seja, decide por si mesmo como irá enfrentar os

seus problemas internos e externos, incluindo se quer ou não procurar a assistência

de outros e, ao fazê -lo, limitar a sua liberdade chegando a compromissos com eles

(Waltz, 2002; p. 135 -136).

Os conceitos que nos aparecem associados à definição de Estados Fracassados são

inúmeros, bem como diversos são os seus critérios de classificação, sejam eles

indicados por académicos de renome como Fukuyama (2006), Rotberg Robert (2004)

ou William Zartman (2001), ou ainda institucionais como a USAID e, no caso nacional

o documento “Nova Visão Estratégica para a Cooperação Portuguesa” (2005).

Porém, entendemos operacionalizar um conceito como instrumento útil. Assim,

dentro do conceito de Estado Fracassado, latu censu, inserem -se três categorias que nos

aparecem de uma forma gradativa:

• Estados fracos;

• Estados falhados;

• Estados colapsados.

Por “Estado fraco” entendemos aquele cujos órgãos de soberania e as suas

instituições não conseguem exercer a sua actividade plena em toda a extensão do

território, são incapazes de garantir os serviços básicos à população e, perante esta

são tidos como ilegítimos. Muitos dos que ocupam ou ocuparam posições de relevo

na sua administração, ou seja, a sua Elite política, tem uma visão patrimonial do

Estado, transformando -se, no fundo, em gestores de um “(...) complexo sistema de

relações sociais, que premeia o indivíduo em função da lealdade, punindo os tidos

por desleais ou por competidores (...)” (Nóbrega, 2003; p. 181). Já o “Estado

falhado”, e numa escala de insucesso superior, é aquele que na ordem interna não

tem o monopólio da legítima violência que Weber (1946) nos falava, ou seja,

surgem outras entidades como milícias, exércitos privados ou uma qualquer

organização subversiva, nas suas variadas tipologias, que competem com o poder

formal, por vezes controlando partes significativas do território e da sua população,

não tendo necessariamente responsabilidade social sobre esta última.

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84 O “Estado colapsado” aparece -nos no fim desta escala crescente de inviabilidade

do Estado, o poder formal simplesmente não existe, os órgãos de soberania e as

instituições num determinado território, que no passado já possuiu os atributos

tradicionais de um Estado, colapsaram; ou seja, no caos jurídico, legislativo e

administrativo prevalece a lei do mais forte, surgindo ou subsistindo diversas formas

de organização social e comunitária, lumpen, etno -linguísticas ou popular, que possuem

capacidade de exercer a força e conduzir operações armadas, que competem entre si

pelo controlo de território e pelo acesso a recursos, e que controlam e exercem

alguma forma de responsabilidade social sobre as populações residentes.

Analisemos um pouco mais detalhadamente estas formas de organização social

e comunitária de cariz subversivo.

a. Tipologia subversiva lumpen

Os movimentos lumpen são bandos armados ligeiramente organizados, de estrutura

informal e horizontal, que podem emergir e obter sucesso contra um Estado fraco. A

sua energia irradia da rua e não pelo desenvolvimento intelectual de uma ideologia, a

actuação militar precede a conceptualização dos motivos, em vez de emergir deles, e é

realizada sobretudo em áreas rurais. A disciplina assenta na brutalidade extrema, com

utilização profusa de estupefacientes e de bebidas alcoólicas, onde o apoio da população

surge pela mera questão de sobrevivência, uma vez que os elementos das unidades lumpen

sistematicamente agridem e exploram as populações; a pertença ao grupo, para além da

sobrevivência, é uma questão de identidade, sendo o recrutamento forçado (Mackinlay,

2002; p. 44 -54). A Frente Unida Revolucionária da Serra Leoa é um bom exemplo.

b. Tipologia subversiva etno -linguística

A base etno -linguística para a organização social surge em locais como a Somália e

o Afeganistão. A organização é definida pelos laços familiares das estruturas que

podem ser mobilizadas para o conflito em unidades militares primitivas e que são

capazes de efectuar pequenas acções, contudo, não um combate sustentado; são

muito idênticas na actuação às forças lumpen, lutando sobretudo por recursos e, cada

vez mais, numa perspectiva de enriquecimento. No entanto, as lealdades assentam na

genealogia e a pertença não é uma opção; uma unidade de combate de um grupo

etno -linguístico é organizada numa estrutura tradicional, onde as decisões são

deliberações dos mais velhos que desempenham um papel de relevo. A sua perenidade

deve -se à necessidade individual de sobrevivência.

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85As suas Forças são a manifestação da sua cultura e apresentam poucos vestígios

de doutrina de insurreição ou de organização em estado -maior, e a liderança é

indicada pelos membros, de onde lhe advém o ascendente pelos pares e a boa acei-

tação pelos mais velhos, de quem dependem na angariação de fundos e recrutamento

(Mackinlay, 2002; p. 54 -66).

c. Tipologia subversiva Popular

As Forças Populares distinguem -se das lumpen e das etno -linguísticas pela sua

ideologia mais elaborada e pela proximidade das populações que apoiam essa

ideologia, tendendo para uma organização militar mais consolidada. Na forma

tradicional, podemos dizer que tem um período pré -insurreccional e um

insurreccional. Surgem de uma organização em segredo que pode evoluir e conduzir

operações prolongadas no tempo. A sua estrutura é celular e tendem para adquirir

uma componente política autónoma em relação à militar. Um bom exemplo é o dos

movimentos independentistas, como aqueles que o poder português enfrentou em

África. Os seus métodos variam dependendo da fase da campanha.

Por vezes é difícil distinguir quando se está na presença de uma campanha

revolucionária ou perante uma campanha apenas de senhor da guerra. Actualmente,

um movimento subversivo cai com facilidade na criminalização da actividade, sem

procurar qualquer outra forma de responsabilidade social e política que beneficie a

população (Mackinlay, 2002; p. 94).

O fracasso do Estado pode e deve ser relacionado com as outras ameaças aqui

referidas, pois, não possuindo poder, ficam permeáveis a que dentro de si germinem

e se desenvolvam as mais diversas formas de terrorismo e de criminalidade

organizada. Esta combinação pode comprometer ainda mais a já de si frágil existência

destes países como realidade política.

IV. O terrorismo transnacional Nos Estados Unidos da América (EUA) o entendimento

do fenómeno do terrorismo após o 11 de Setembro de 2001 foi sujeito a revisão

na sequência do aparecimento de estratégias de desestabilização globais e mais

radicais. O seu potencial foi acrescido, quer pelo grau de violência, quer pela

capacidade organizativa. Surgiram novas estratégias de recrutamento (Romana, 2004,

p. 258), e deu -se a privatização da sua actividade (Singer, 2003, p. 52). O fenómeno

sofreu também uma alteração qualitativa e passámos a falar do ciberterrorismo, do

bioterrorismo, do ecoterrorismo, do terrorismo químico e mesmo do nuclear.

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86 O terrorismo transnacional procura atingir os pontos mais críticos de

convergência entre a sociedade e o aparelho do Estado e está mais vocacionado para

desgastar o poder que desafia, ou para promover a sua rejeição, do que para o

derrubar, procurando forçar um comportamento repressivo, logo comprometedor, e

demonstrar a constrangedora ineficácia da prevenção (Monteiro, 2002; p. 3). Para

além da espectacularidade dos efeitos das suas actuações (concepção e execução dos

actos materiais em si mesmos), procura a ressonância publicitária junto da opinião

pública, bem como os efeitos psicológicos causados nos alvos.

Hoje a face visível do terrorismo transnacional é Bin Laden e a al -Qaeda,

organização armada de estrutura adaptativa complexa, que possui intenções,

objectivos, financiamento e recrutamento globais e é apoiada por vastas camadas

populacionais que partilham a mesma ideologia ou religião.

A al -Qaeda tem como móbil uma amálgama de considerações político -religiosas.

Basicamente, o principal móbil da subversão global assenta num conceito geopolítico

de pan -integrismo islâmico (Lousada, 2007; p. 32), tendo por base a modificação

da actual ordem internacional e o estabelecimento de um Califado no coração do

mundo islâmico, o Iraque1, regido por uma Sharia (Corão e Sunna) concebida a partir

de uma interpretação integrista do Corão, procurando assim a transformação da

sociedade muçulmana, limpando -a de inovação doutrinária (Zuhur, 2005; p. 6).

Como objectivos intermédios procura não apenas aterrorizar, mas também a retirada

das forças Ocidentais e interesses do Iraque, da Palestina e da Arábia Saudita, e ainda

estender a Jihad aos países seculares da região e a sequente substituição das suas

lideranças. No fundo, dominar os Estados (Garcia, 2007 a; p. 132). Para alcançar os

seus objectivos, e tal como consta no manual de treinos da al Qaeda, é permitido o

recurso a mecanismos não apenas políticos mas também violentos2.

O terrorismo transnacional pode ser analisado segundo dois ângulos que

consideramos interdependentes: uma análise racional em função dos objectivos, ou

por outro lado, uma análise segundo as motivações de quem no terreno efectua as

1 Para uma análise mais pormenorizada podemos confrontar as diversas declarações de Bin Laden disponíveis em www.state.gov./s/ct/rls/pgtrpt/2003/31711.htm, e mais recentemente em http://www.dni.gov/releases.html. O Governo norte -americano considera as intenções do Terrorismo transnacional de uma forma ainda mais ambiciosa, referindo no seu Conceito Estratégico de Segurança de Março de 2006 as intenções do Terrorismo: “The transnational terrorists confronting us today exploit the proud religion of Islam to serve a violent political vision: the establishment, by terrorism and subversion, of a totalitarian empire that denies all political and religious freedom”.

2 Este manual está disponível on line em http://www.usdoj.gov/ag/manualpart1_1.pdf.

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87tácticas subversivas, onde os combatentes agem sem racionalidade e de forma

emocional. É aqui que as análises ocidentais pecam sobretudo nas percepções, dado

que por norma, segundo Zuhur (2005; p. 10 -11) interpretamos as suas mentalidades

como diferentes das nossas. No entanto do que na realidade se trata é de uma

diferença de valores e de técnicas associativas, no fundo, os novos combatentes da

Jhiad estão auto -convencidos que os seus actos de violência são morais, mas de modo

nenhum desafiam a lógica moderna de padrões da sua mentalidade.

O curioso desta atitude – em que os Ocidentais são o inimigo e que “(...) para

a violência estrutural do Ocidente apenas o terrorismo global é a resposta eficaz

(...)” (Moreira, 2004; p. 10) – é que ela é aceite por camadas significativas da

população, contrastando com o entendimento do poder, como se verifica com o

Paquistão, Arábia Saudita, Egipto, Argélia, Jordânia, ou ainda em países que estão a

braços com movimentos secessionistas de raiz islâmica, como acontece na Rússia, na

China, na Indonésia ou no Bangladesh (Lousada, 2007; p. 32).

Hoje, a maior ameaça representada pelo terrorismo transnacional está na

possibilidade de associação do fenómeno à utilização de Armas de Destruição

Massiva (ADM), dado que é com alguma facilidade que uma organização terrorista

pode ter acesso ou mesmo montar ADM, dado que muitos dos ingredientes

necessários para a sua fabricação não estão devidamente protegidos3.

a. Estrutura do terrorismo

A al Qaeda, ou aquilo que ela representa no nosso imaginário, apresenta uma

maleabilidade, uma plasticidade e um oportunismo nas suas ligações, efectuando

sempre alianças coerentes mas sobretudo convenientes, juntando grupos que

pretendem a derrota do inimigo longínquo, o Ocidente e Israel, com grupos que

apenas pretendem a autonomia local (Zuhur, 2005; p. 10).

Consideramos três grandes perspectivas para abordar a estrutura do terrorismo.

A visão tradicional considera que apesar da organização em rede há uma unidade na

“organização”, e que esta reside na identidade centrípeta religiosa (Lousada, 2007;

p. 32), referindo James Phillips que a “organização” possui um núcleo disciplinado

e profissional, que provavelmente conta com cerca de 500 elementos. De acordo

com este autor, tradicionalmente a al Qaeda opera através de uma estrutura horizontal

3 Sobre este tema devemos consultar a obra coordenada pelo Brigadeiro -General Russel Howard e pelo Professor James Forest, Weapons of Mass Destruction and Terrorism editado em 2006. A obra analisa detalhadamente os conceitos, a ameaça e as suas variantes, a resposta a dar e ainda as lições aprendidas e as ameaças futuras.

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88 informal, talvez combinada com uma estrutura mais formal, vertical, onde surge a

figura de Bin Laden, que será mais importante como porta voz da “organização” do

que como Comandante (Phillips, 2006; p. 2), e o egípcio Ayman al -Zawahiri como

Comandante Operacional. Este núcleo será assessorado por um conselho consultivo

(a majlis al shura) que coordena quatro comités (militar, financeiro, religioso e

propaganda), cabendo ao comité responsável pela área militar a nomeação dos

responsáveis das células espalhadas pelo mundo (Smith, 2002; p. 35), desempenhando

cada célula uma função específica (suporte e operacional). Em torno da al Qaeda há

também colaboradores, militantes e simpatizantes (Smith, 2002).

A segunda perspectiva enquadramo -la no modelo em rede abordado por autores

como Raab e Milward (2003) e Sageman (2004), para quem os elementos centrais

da organização fornecem o contexto ideológico, a estratégia, o planeamento, os

recursos, algum apoio administrativo, e são fundamentais para estabelecer a ligação

entre células que se encontram descentralizados e dispersas geograficamente.

Sageman, ao descrever a estrutura da al Qaeda, adianta um modelo estruturado a

partir de hubs e nodes4, sendo os primeiros fundamentais para as ligações de uma

direcção e comunicação centralizada entre os segundos, que se encontram, estes sim,

descentralizados e independentes entre eles (Sageman, 2004; p. 164).

Há no entanto uma versão significativamente diferente sobre a estrutura e

organização da al Qaeda. Albert Barábasi (2003; p. 221) considera que no centro desta

“teia sem aranha” não existe qualquer líder central, ou uma cadeia de comando

formal, caracterizadora de uma estrutura militarizada ou das corporações do século

XXI, que controle todos os detalhes. Douglas Macdonald (2007) perfilha desta ideia e

vai mais longe, comparando a visão política extremista islâmica a totalitarismos como

o Nazi. No regime do Füher, os little Hitlers gastavam a sua energia a trabalharem para

Hitler, antecipando os seus desejos a partir dos seus discursos, ideologia e acção, mas

tendo a iniciativa localmente. Assim, para Macdonald, a rede global é melhor entendida

quando comparada a little Bin Ladens, financiados, treinados e guiados pela “base” mas a

planearem os ataques de acordo com as condições e capacidades locais (Macdonald,

2007; p. 10).

4 Para Sageman os hubs são essenciais para a direcção das operações da al Qaeda, ao passo que os nodes, que são pequenos grupos de indivíduos isolados da comunidade envolvente e o produto de uma livre associação local, com laços de união interna extremamente fortes e resistentes à erosão, são aqueles que possibilitam as capacidades locais e sobretudo a presença operacional em áreas de interesse da organização como um todo.

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89Ao certo, o que podemos considerar é que actualmente aquela “organização”

funciona cada vez mais como uma confederação (Brissard, 2002; p. 7) que congrega

um conjunto de redes, com uma dimensão e estrutura variáveis, complexas e

flexíveis, que gere e utiliza diversos centros de apoio espalhados por aproximadamente

60 países (Phillips, 2006; p. 1), apoiando -se os grupos radicais mutuamente,

constatando -se ainda a existência de uma rede de solidariedade activa que se estende

da Chechénia ao Sudão, passando pelas Filipinas, pela Somália, pela Malásia e pela

Indonésia, passando igualmente pela Europa, onde possui uma muito elevada

interoperacionalidade em domínios como a recolha de fundos, o recrutamento e a

aquisição de material não letal (Romana, 2004; p. 260).

Esta estrutura descentralizada cuja trajectória político -operacional é, do médio

prazo para diante, uma incógnita (Boniface, 2002; p. 20) parece assim estar a evoluir

para uma maior descentralização, num conjunto de redes de base regional (Singer,

2004; p. 145), formando uma “rede de redes”, demonstrando uma capacidade de

actuação global, atacando inclusivamente o coração de grandes poderes, como fez

em Nova Iorque, Madrid e Londres, conseguindo sobreviver a intensas contra-

-medidas (Mackinlay, 2002; p. 79). A sua capacidade de sobrevivência advém -lhe da

desterritorialização, mas em nosso entender vêm -lhe sobretudo da sua capacidade de

aprendizagem organizacional.

b. Apoios ao terrorismo

A fim de sustentar o terrorismo e os seus objectivos, a al Qaeda conseguiu construir

uma complexa teia de apoios e instrumentos políticos, religiosos económicos e

financeiros (Brissard, 2002; p. 7). Apesar de a mistura entre religião, ideologia,

crime e fontes de investimento tornar difícil determinar a origem clara de qualquer

fundo terrorista específico, podemos considerar apoios de diversas fontes e formas.

As principais fontes de apoio são os Estados, diásporas, guerrilhas exteriores,

refugiados, organizações religiosas e de caridade5, instituições bancárias, Organizações

5 A al Qaeda infiltrou -se e estabeleceu -se numa série de Organizações Muçulmanas de Caridade, as quais podiam ser facilmente utilizadas para colher donativos, mascarar os fundos de que ela necessitava para financiar as suas actividades, montar autênticos centros de apoio à causa e distribuir os necessários às suas células espalhadas pelo mundo inteiro, ao mesmo tempo que serviam para apoio e ajuda humanitária legítima. Mais de 50 instituições de caridade locais e internacionais foram investigadas e conseguiu--se relacionar algumas com a al Qaeda, sendo as mais importantes as seguintes: a International Islamic Relief Organization (IIRO), a Benevolence International Foundation, a Al Haramain Islamic Foundation e a Rabita Trust. Todas elas têm escritórios espalhados pelo mundo e as suas actividades são, ou eram, relacionadas com programas religiosos, educacionais, sociais e humanitários (Brissard, 2002; p. 27).

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90 Não -Governamentais, personalidades com fortuna pessoal, o Zakat (esmola legal), o

Sadaqah6, e inclusive de grupos activistas de direitos humanos. Para angariar fundos,

a “organização” mantém -se também associada a toda a espécie de actividades ligadas

ao crime organizado7.

Os motivos de apoio são variados. Os Estados são mais motivados por questões

geopolíticas do que por afinidades étnicas, ideológicas, ou religiosas. Em contraste,

as diásporas apoiam sobretudo por motivos étnicos e os refugiados são normalmente

motivados pelo desejo de regressar a casa e restaurar as suas vidas e da sua nação em

determinado território (Byman, 2001; p. 55). As formas de apoio vão do político

nos fora internacionais e junto das grandes potências, ao simples encorajamento para

a subversão do poder, passando pelo tradicional apoio financeiro, material, de

intelligence, acabando no santuário, no treino ou mesmo em apoio militar directo.

c. O recrutamento

Tendencialmente, na opinião pública perpassa a ideia de que o terrorismo está

apenas associado à pobreza, à miséria humana; são as próprias Nações Unidas a

reconhecer que existe uma relação muito próxima entre terrorismo e pobreza, sendo

as regiões mais pobres do mundo as mais propensas à ocorrência de violência.

Contudo, nos atentados de Setembro de 2001 em Nova Iorque e de Julho de 2007

em Glasgow, pela análise das biografias dos suicidas, verificou -se que as fileiras do

terrorismo também são preenchidas por indivíduos de nível social, económico e

educacional, relativamente elevado.

As fontes de recrutamento e os motivos para adesão são diversos e estão

sobretudo associadas à revolta com situações sociais degradantes, a factores culturais

considerados humilhantes, a injustiça, a desigualdades e a xenofobia, mas também,

segundo Zuhur (2005; p. 7), os extremistas recrutam por uma crença recente na

missão islâmica, a da´wa, e na glorificação da Jihad e do martírio, juntamente com o

desejo de poderem contribuir para a mudança do meio que os rodeia e do mundo

em geral. O apelo à Jihad tem funcionado e seduzido ainda como um ritual de

6 Participação em actos de caridade e trabalho voluntário.7 A Drug Eenforcement Agency (DEA) norte -americana, estima que, por exemplo, só no Afeganistão a al Qaeda lucra

mais de 40 milhões de dólares ano com o tráfico do ópio (Carpenter, 2004; p.3). A Célula de Madrid

foi talvez a mais importante a ser desmantelada desde o 11 de Setembro, tendo -se verificado inclusive

que a mesma financiava outras células, como a de Hamburgo, e que obteve os fundos para comprar os

explosivos usados no 11 de Março, através da venda de haxixe.

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91transição para a idade adulta e ainda como o demonstrativo da devoção ao Islão,

transformando os recrutados em mujahedin.

No seu processo de recrutamento os aliciadores utilizam múltiplos meios de

persuasão como, por exemplo, imagens de muçulmanos perseguidos e de mulheres e

crianças em sofrimento nos campos de refugiados palestinianos. A estas motivações

podemos acrescentar outras tais como o encarar da Jihad como um “emprego alterna-

tivo”; para os mais puristas, na Jihad encontram a grande oportunidade de junção do

domínio espiritual com o material. Houve recrutadores que utilizaram ainda o artifício

da peregrinação para enganar alguns dos jovens aliciados (Curcio, 2005; p. 18 -19).

Um dos mais poderosos argumentos para o recrutamento desta Jihad tem na sua

génese a ocupação e a presença militar estrangeira em terreno muçulmano. Por outro

lado, os movimentos terroristas também sabem que os ataques suicidas são multi-

plicadores de força; atraem os media; são relativamente “económicos” e adaptados à

natureza irregular da organização e aumentam o recrutamento, sendo curioso veri-

ficar o aumento crescente de mulheres suicidas (Zuhur, 2005; p. 54).

A tudo isto acresce, o exponencial crescimento demográfico e o factor migra-

tório, com o fluxo orientado predominantemente para os países do Ocidente, onde

as novas comunidades que se instalam dificilmente são integradas nas sociedades

locais, potenciando o acréscimo de desencantados e de potenciais filiados e comba-

tentes pela alternativa apresentada pelo terrorismo.

Como uma organização que se modifica e adapta constantemente, procurando

novas formas de evitar a detecção ou dos seus membros serem capturados, a al Qaeda

tem procurado a surpresa e a exposição mínima, recrutando operacionais oriundos

não só de países muçulmanos mas também em países como a Grã -Bretanha, França,

Austrália e os próprios EUA (Jacquard, 2001).

O recrutamento é efectuado essencialmente de duas formas que podemos

designar por recrutamento directo e recrutamento indirecto.

1) Recrutamento directo

Nesta forma de recrutamento o contacto com o elementos a recrutar é feito

directamente e incide sobretudo em jovens previamente sondados e persuadidos,

facilmente manipuláveis, sendo por isso a forma de recrutamento mais eficaz

(Zuhur, 2005; p. 23).

O contacto com os futuros recrutas efectua -se sobretudo em mesquitas, ou nas

escolas corânicas (madrassas). Neste momento o Iraque é considerado como o epicentro

para atrair, organizar e treinar a nova geração de terroristas (Phillips, 2006; p.2).

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92 2) Recrutamento indirecto

Esta forma de recrutamento engloba todos os processos utilizados para integrar

novos membros, sem que exista uma abordagem inicial, nem contacto ou interacção

directa entre a entidade recrutadora e o elemento a recrutar. Aqui a actuação cinge -se

ao campo das emoções, sendo utilizados os conhecimentos das leis da psicologia, da

psicossociologia a da psicotecnologia para influenciar crenças e sentimentos.

Destes processos os mais conhecidos são a divulgação de cassetes de vídeo, pro-

duzidas por apoiantes de Bin Laden, e onde surgem imagens do próprio, além de

propaganda sobre o estado do mundo muçulmano, das causas desse estado e a

solução para o mesmo, que não é senão a “guerra sagrada” contra os infiéis.

Também a internet se tornou um novo meio de recrutamento e treino dos novos

elementos, de captação de fundos e recursos, de divulgação e reivindicação das suas

acções e de comunicação, tudo isto com facilidade de acesso e a possibilidade de

anonimato quase garantida, mesmo com a intensa vigilância a que esta rede está

agora sujeita.

Nesta forma de recrutamento os jovens entram num processo de auto-

-aprendizagem com recurso a manuais de acções terrorista e gravações em vídeo ou

CD. Quando e sempre que possível completam o seu treino a nível operacional com

curtas passagens por grupos paramilitares no estrangeiro (Curcio, 2005; p. 23).

Uma vez que o terrorismo transnacional, tem intenções, objectivos, recrutamento

e organização globais, consideramos o fenómeno como uma acção subversiva global

(Mackinlay, 2002, Garcia, 2007 b).

V. O crime organizado transnacional As Organizações Criminosas Transnacionais (OCT)

possuem objectivos lucrativos muito bem definidos, uma capacidade de planeamento

ao nível estratégico e de condução de conflitos armados, envolvendo um inimigo ou

uma rede de inimigos, socorrendo -se muitas vezes das mais modernas tecnologias

(Metz, 2000, p. 56 -57 e Carriço, 2002, p. 622), desenvolvendo a sua actividade criando

um ambiente subversivo, não visando, no entanto, a tomada técnica do poder.

Hoje, das diversas actividades a que o crime organizado transnacional se dedica,

o tráfico de estupefacientes é das mais rentáveis. Com as verbas geradass as OCT

adquirem um nível de poder que compete com o dos Estados. Exprimem -no pela

capacidade de criar diversas formas de instabilidade nos países onde operam,

instabilidade de amplo espectro, da social à económica, da política à psicológica. Ao

mesmo tempo tentam conquistar indirectamente o poder político pela corrupção dos

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93seus órgãos de soberania e dos funcionários. Por outro lado, com a finalidade de

intimidar o poder instituído de forma a garantirem completa liberdade de acção nas

suas actividades criminosas, grupos como o Mara Salvatrucha, estão dispostos a usar

elevados níveis de violência armada (Santos, 2004, p. 91 -92) e, tal como já acontece

na Bolívia e na Colômbia, chegam a administrar partes significativas de um determinado

território, assumindo para si os fins de segurança, bem -estar social e por vezes até de

administrar a justiça, substituindo -se plenamente ao Estado, colocando ao mesmo

tempo os conceitos tradicionais de soberania e integridade territorial em causa.

As novas formas de subversão, associadas aos conflitos armados que surgem no

contexto da globalização, também têm uma dimensão económica, quer na origem,

quer nas consequências (Williams, 2000; p. 89). São ainda indivisíveis do que é

criminal, que passa para além das fronteiras e envolve regiões inteiras, misturando

numa rede económica informal o saque e a pilhagem, o tráfico de seres humanos,

de armas e narcóticos, as contribuições de imigrantes (Angoustures e Pascal, 1996),

os “impostos” sobre assistência humanitária, tudo a viver da insegurança, da guerra,

carecendo da continuação do conflito.

Foram diversas as organizações revolucionárias que se envolveram na

comercialização de estupefacientes, criminalizando as suas actividades, pondo assim

um pouco à parte a vertente ideológica do conflito e transformando -se em narco-

-guerrilhas (Labrousse, 1996). Porém este envolvimento, que inicialmente seria

apenas para o financiamento, pode ser depois o próprio motor da guerra.

A criminalização pode também afectar as Forças Armadas que ou se deixam

corromper entrando numa lógica de enriquecimento pessoal (narco -corrupção), ou

então utilizam os fundos para financiar as suas actividades. Esta situação acaba por

prolongar os conflitos, uma vez que a eliminação das narco -guerrilhas provocaria

também o desaparecimento de uma boa fonte de rendimentos (Labrousse, 1996).

VI. A SIDA A infecção por HIV/SIDA representa uma pandemia global, da qual se conhecem

casos em todos os continentes. Inicialmente não se conheciam as reais dimensões do

fenómeno, mas o facto é que desde 1981 já provocou a morte de aproximadamente

22 milhões de pessoas, deixando 13 milhões de crianças órfãs8. É hoje certo que a

8 O vírus da Imunodeficiência Adquirida (HIV) foi identificado pela comunidade científica há aproximadamente

20 anos.

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94 SIDA provocou mais baixas do que qualquer conflito armado ocorrido no século XX,

incluindo qualquer uma das Grandes Guerras, e a tendência é para o agravar da situação.

Actualmente há cerca de 40 milhões de portadores do vírus, ou seja HIV positivos.

Podemos comparar a sua progressão à das Divisões Panzer do General Guderian,

com a Blietzkrieg. Simplesmente agora esta progressão é profundamente marcada por

um carácter distintivo e único, na história da humanidade, quer pela extensão da sua

propagação quer na morte que consigo transporta. A progressão é contínua, global,

sem escolher raça nem credo, latitude nem longitude, nem condição social. O seu

poder de destruição estende -se a toda a comunidade.

No epicentro do fenómeno encontramos o continente africano. De facto, 24 dos

25 países mais atingidos por este flagelo são africanos. Pensa -se que a SIDA é res-

ponsável por 1 morte em cada 4 mortes de adultos em África (Singer, 2002; p. 147).

É inegável que tem expressão global, embora se manifeste mais ao nível urbano do

que rural, progredindo rapidamente na Ásia, nas Caraíbas e nas Américas do Sul e

Central, bem como nos territórios da antiga URSS.

Com a transição do milénio, a pandemia da SIDA recebe atenção especial ao

nível internacional. As Nações Unidas têm sido uma notável frente de combate ao

problema. A partir do ano 2000 o tema deu o mote a sessões especiais quer ao nível

da Assembleia Geral quer do Conselho de Segurança. Sucederam -se, igualmente,

diversas manifestações a nível regional, bem como iniciativas mais localizadas em

diversos países.

Do ponto de vista político, a SIDA como ameaça não -tradicional à segurança

deve muito ao empenho da Administração Clinton. O então vice -presidente Al Gore

apresenta ao Conselho de Segurança, a 10 de Janeiro de 20009, os fundamentos do

posicionamento norte -americano (Prins, 2004):

1) O Coração da Segurança é a protecção de vidas;

2) Quando uma simples doença ameaça tudo, desde a economia às operações de

manutenção de paz, enfrentamos claramente uma ameaça à segurança a um

nível global;

3) É uma crise de segurança porque ameaça não só e apenas o indivíduo, mas

as instituições definidoras da sociedade.

9 Neste dia, o Conselho de Segurança debateu a SIDA em África, tendo sido a primeira vez que este órgão

discutiu um assunto relacionado com a saúde como ameaça à paz e segurança. O encontro demorou mais

de 7 horas e teve cerca de 40 intervenções. Não foi aprovada qualquer resolução.

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95O Conselho de Segurança também aprovou em 17 Julho de 2000 a Resolução

1308, que estabelece a SIDA como um problema de segurança, reconhecendo que

esta pandemia é exacerbada por condições de violência e de instabilidade e que se

não for acautelada pode colocar em risco a estabilidade e a segurança internacional.

O International Crisis Group (2001, p. 2) aprofundou as múltiplas dimensões

geopolíticas deste problema, considerando a SIDA como um problema transversal às

diversas formas de segurança, da pessoal à económica, passando pela comunitária,

nacional e findando na SIDA como um problema para a segurança internacional.

a. A SIDA e o Estado

A SIDA afecta o Estado como um todo, corroendo, à medida que alastra, as bases da

sociedade, o indivíduo, a família e a própria comunidade. De acordo com o Director

da UNAIDS (Joint United Nations Programme on HIV/AIDS), a doença está a devastar os

postos de trabalho ocupados pelos membros mais produtivos da sociedade com uma

eficácia que, na história da humanidade, apenas tínhamos conhecido em resultado

de grandes conflitos armados (Internacional Crisis Group, 2001; p. 1). A sua

progressão faz -se sentir nas áreas governamental, económica e de desenvolvimento

social, com a agravante que estes elementos mais produtivos, das classes média e alta,

dificilmente são substituídos.

O fenómeno também incrementa as necessidades orçamentais e as taxas de

apoio social, desencorajando o investimento estrangeiro. A força de trabalho fica

assim reduzida, o que provoca a queda em flecha dos ganhos sobretudo nos países

mais debilitados ou em desenvolvimento10.

Para o Banco Mundial esta doença é a maior ameaça para a economia africana,

onde se espera que a redução do PIB atinja os 20% apenas numa década (Central

Intelligence Agency, 1999). Todavia esta ameaça transnacional também atinge os Estados

consolidados, não apenas pelos reflexos directos, mas indirectamente devido à

globalização das economias.

No fundo, o impacto é global e funciona como destabilizador social, securitário

e económico.

10 Esta situação tem um reflexo enorme nas famílias afectadas com o vírus: menor rendimento nas actividades

laborais, diminuição do rendimento familiar, crescimento dos gastos com medicamentos, má nutrição. As

estimativas disponíveis apontam para uma quebra entre os 40 e os 60% nos rendimentos (Internacional

Crisis Group, 2001).

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96 b. A SIDA e as operações militares

Dos países africanos com maior incidência de SIDA mais de metade está envolvido

em conflitos armados. As estatísticas também são claras no que diz respeito aos

militares contaminados com o HIV. São aproximadamente 5 vezes superiores aos

civis e em períodos de guerra este valor cresce para 50 vezes mais.

A situação é de tal maneira grave que muitas vezes as FA são mesmo o principal

grupo de contaminados. Trata -se, sem dúvida, de uma situação que leva a que,

nalguns casos, seja esta a principal causa de baixas. Além do mais, como a SIDA não

escolhe postos, há consequências importantes nas cadeias de comando, na capacidade

das Forças e mesmo na sua coesão.

Os motivos para esta elevada incidência são diversos: desde razões que se

prendem com a idade biológica, ao distanciamento das companheiras(os) sexuais e

finalmente uma cultura do risco instalada em muitas FA pelo mundo fora.

Temos que notar que os comandos em países onde a taxa de infecção é significativa

já estão preocupados com a capacidade de projecção de força. Esta constelação de

problemas agrava -se com a circunstância de a SIDA, como notou Singer, por via do

enfraquecimento da instituição militar, propiciar mecanismos de desestabilização

interna e de debilidade que aumentam a probabilidade de vir a ocorrer um ataque

externo (Singer, 2002; p. 149). Se tivermos em conta que em alguns países, como a

Namíbia, os dados estatísticos de militares infectados é uma informação classificada,

teremos de admitir que o fenómeno tomou proporções alarmantes.

Verifica -se que a multiplicação de contingentes de militares infectados com HIV

inviabiliza a participação de muitos países em operações de paz. Pode ainda dizer -se

que, devido às características e comportamentos dos seus elementos, a própria força

tende a ser uma fonte de infecção no local da missão bem como, no regresso, um

foco infeccioso junto das comunidades de origem, pois há sempre o risco/proba-

bilidade de contrair a doença durante as missões (Internacional Crisis Group, 2001;

p. 22 -23). Assiste -se, estamos certos, a uma crise nos mecanismos de resolução de

conflitos provocada pela diminuição da capacidade internacional de acudir, com o

potencial humano adequado, a crises e conflitos.

Deve observar -se, por outro lado, que a SIDA é crescentemente utilizada como

uma poderosa arma de guerra. Os raptos e os genocídios combinam -se desde sempre

em muitos conflitos. Todavia, o facto relevante é a sua associação, recente, ao contágio

do vírus da SIDA: é possível que a transmissão de SIDA possa corresponder a uma

prática de genocídio, na medida em que parece estar presente o elemento de

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97intencionalidade na passagem do vírus para a população. Terá sido isto que se passou

no Ruanda e presentemente no Congo, onde mais de 500 mil mulheres foram desta

forma infectadas com SIDA.

Esta é uma doença que afecta sobretudo as faixas etárias mais jovens e, sabendo

que a probabilidade de eclosão de violência entre os jovens do sexo masculino é

cerca de 40% superior quando comparamos os valores obtidos nas faixas etárias mais

avançadas (Singer, 2002; p. 151), permite -nos aviltar sobre a facilidade com que este

jovens se constituem em alvo fácil do recrutamento por “senhores da guerra” que

costumam incluir no seu quotidiano ritos iniciáticos de extrema violência11.

Como se isto não bastasse, estas crianças e jovens, por norma mal nutridos e com

pouca escolaridade, são no fundo um meio barato de manter e alimentar estas novas

guerras. Os conflitos armados provocam ainda um mar de refugiados que habitam em

campos onde, normalmente, a miséria é grande e os cuidados profiláticos decrescem.

Apesar de estudos recentes não encontrarem evidências de que as situações de

conflito incrementam os níveis de transmissão do vírus (Nações Unidas, 2006),

pensamos que a situação aqui descrita nos indica que o fenómeno da SIDA se

propaga sempre, independentemente de a situação ser de conflito ou de paz.

Acreditamos, pois, que se trata de um processo infeccioso de difícil interrupção ao

longo da poderosa cadeia de transmissão.

VII. A guerra das forças da Revolução Militar em Curso A guerra deste início de século foi

de algum modo antecipada no livro de Alvin e Heidi Toffler, Guerra e Anti -guerra, de

1994. Nesta obra os Toffler anunciaram a divisão tripartida do mundo e das guerras

em vagas: A vaga das “guerras agrárias”, típica do período das revoluções agrárias; a

vaga das “guerras industriais”, produto da revolução industrial; e, por fim, a vaga da

“guerra da informação”, resultante da revolução da informação e do conhecimento.

As guerras típicas das sociedades de terceira vaga têm por base as forças da

Revolução Militar em Curso (RMC) e estão ligadas sobretudo aos grandes poderes.

Porém, as forças RMC na sua formulação mais profunda estão associadas exclusi-

vamente – actualmente e nos tempos mais próximos – às capacidades do poder

militar dos EUA.

11 A este propósito devemos recordar a título de exemplo o recrutamento feito pela RENAMO em Moçambique

durante a guerra civil, ou pela RUF na Serra Leoa.

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98 Há uma tendência, que erradamente se generalizou que caracteriza as guerras

feitas por forças RMC apenas pela alta tecnologia, nomeadamente a tecnologia ligada

à informação. Na verdade, se apenas estiverem ligadas à tecnologia, podemos

considerar que são guerras de forças pós -modernas, mas não são RMC. As forças

RMC actuais apresentam as seguintes características (Garcia; 2005 b; Telo, 2002).

• Uso de tecnologia da sociedade da informação,

• utilização do espaço,

• novas tácticas e composição orgânica das unidades,

• necessidade essencial de conter a violência dentro de limites políticos, éticos

e estratégicos aceitáveis pela comunidade internacional,

• papel dos media e da opinião pública,

• civilinização

• e sobretudo pelo modelo de organização das tecnologias existentes e já

disponíveis mesmo no mercado civil, e a partir das quais é possível criar novas

e diferentes capacidades num sistema de sistemas.

A ordem de batalha nas guerras centradas e em rede, de alta tecnologia, desen volve-

-se em volta do conceito de Domínio Rápido, de operações RISTA (Reconnaissance, Intelligence,

Surveillance and Target Aquisition) e dos 4S (Scan, Swarm, Strike, Scatter), com profusa utilização

de armas inteligentes, de elevada precisão; selectivas. O novo campo de batalha está

dominado por um sistema de sistemas, com base no C2W (Command and Control,

Warfare), constituindo uma 5.ª dimensão12 da guerra (Pereira, 2003; p. 160), onde a

manobra informacional se sobrepõe, e por vezes substitui a manobra do terreno.

Face à esmagadora superioridade tecnológica e a operações baseadas nos efeitos,

as baixas tendem a ser zero, ou a aproximar -se do zero, pelo menos de um dos lados.

O objectivo já não é aniquilar, mas imobilizar, controlar, alterar e moldar o seu

comportamento de forma a criar um novo ambiente político com perdas controladas,

mesmo para o inimigo, evitando reacções negativas da opinião pública. É por esta

razão que Edward Luttwak (1995) definiu este fenómeno como guerra pós -heróica;

a força pode ser empregue sem o risco de perdas de vida.

As novas tecnologias e a digitalização das unidades ditam novas doutrinas

estratégicas, tácticas e organizacionais. A tendência é para a robotização do campo de

batalha de uma forma progressiva.

12 As outras dimensões são a terra, o mar, o ar e o espaço extra -atmosférico.

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99As forças RMC empregam muito a guerra de informação, o vector moderno da

guerra psicológica e da subversão tradicionais (Valle, 2001; p. 208). No actual

ambiente operacional (e no futuro), o mais importante é (e continuará previsivelmente

a ser) o domínio da informação, mais precisamente, o acesso, o controlo e o

respectivo processamento com o objectivo de obter a sua transformação em conhe-

cimento e depois partilhá -lo em tempo útil.

Em breve, a psicotecnologia disponibilizará novos instrumentos capazes de

influenciar os “corações e as mentes”, o que incrementará ainda mais o papel da

guerra psicológica e dos guerreiros da informação que nas suas operações psicológicas

e de informação aprendem a implantar falsas realidades e a induzir movimentos

psico -culturais e políticos, em prol de determinados interesses nacionais, criando

uma realidade virtual quando a realidade efectiva contradiz os imperativos estratégicos

de momento. No fundo, uma verdadeira guerra de representações, na expressão de

Alexandre del Valle (Valle, 2001).

Nesta ordem de ideias, um outro elemento a ter em consideração nas guerras

da actualidade é a presença e a actuação dos media. Estes hoje ajudam os guerreiros

da informação a gerir as diversas percepções que as populações têm da situação. Há

uma realidade percebida/construída, diferente da realidade efectiva.

Ao nível estratégico a guerra de informação implica um domínio do ciberespaço,

uma vez que os ciberataques não podem ser descurados, com as suas bombas lógicas,

vírus e cavalos de Tróia. Esta diferente forma de guerra implica uma política de

segurança e defesa para o ciberespaço, pois este impôs uma nova dimensão geopo-

lítica, a do próprio ciberespaço (Adams, 1993).

Nas guerras das forças RMC a supremacia dos meios e sistemas de comunicações

é um factor imperioso. Na maior parte dos casos o espaço tende a ser entendido como

a quarta dimensão da guerra. Quem tiver capacidade para dominar o espaço dominará

o mundo. Com a colocação de sistemas de armas de intervenção global o espaço será

militarizado (Boniface, 2002; p. 122), criando uma nova forma de dissuasão. Estes

conceitos implicam um outro, um conceito geopolítico para o espaço.

Com a civilinização, a distinção entre civil e militar ficará esbatida, uma vez que já não

são apenas as Forças Armadas que entram em combate, mas as comunidades políticas

que elas servem. Assim, este fenómeno de interpenetração é indicador de um novo tipo

de Forças Armadas. Estas tendem a ser profissionais, com efectivos substancialmente

mais reduzidos, com uma maior ligação aos meios universitários e centros de

investigação, a integrarem mais mulheres e minorias e, em certa medida, tende -se para

uma privatização da actividade militar (Moskos, Williams e Segal, 2000).

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100 As guerras com forças RMC são também guerras distantes. O poder que está na

defensiva é castigado e muito limitado na sua resposta. Muitas vezes sente -se mesmo

impotente (Telo, 2002; p. 222). Também distante no comando e controlo, onde os

media e a informação sobre a guerra desempenham um papel primordial. Podemos

dizer que é, em certo sentido, uma guerra subversiva feita pelos grandes poderes na

Era da Informação13.

Nas guerras RMC a duração em termos de uma acção militar intensa é muito

curta, e é importante que assim seja, sobretudo por razões de opinião pública e de

interesse político (Telo, 2002; p. 227), o que não quer dizer que no período

posterior à acção militar decisiva, tipicamente de estabilização, a presença militar

não se arraste por vários anos, já que actua em ambiente subversivo.

Parece gerar consenso a convicção de que as guerras de hoje, apesar de manterem

a mesma natureza, apresentam novos actores e já não correspondem na íntegra à

classificação clássica do prussiano Clausewitz. Para ele, lembramos, a Guerra era a

realização das relações políticas por outros meios (Clausewitz, 1976; p. 737). Hoje

aquela máxima parece ter tendência para se inverter, passando a Política, sim, a ser a

continuação/diversificação do estado de guerra. Em nosso entender a guerra deve -se

sim ao falhanço da política, mantendo -se assim associada a ela. No fundo a guerra é

uma forma de política. Após revisitarmos Clausewitz, consideramos que a sua

trindade permanece em parte válida e actualizada, no sentido em que apesar de os

actores envolvidos na guerra poderem ser outros, a violência original, a lei das

probabilidades e do acaso, bem como a ligação ao fenómeno político, persistem.

Uma das mais importantes implicações desta mudança qualitativa de conceito

de guerra é a alteração dos laços funcionais entre o poder político e o aparelho

militar. A envolvente política perpassa agora verticalmente todos os níveis de actuação

militar: a estrutura de comando militar nos diversos níveis de responsabilidade

preocupa -se principalmente com a actuação política14. Mesmo ao nível táctico, um

comandante de uma pequena força desempenha esse papel no seu contacto com a

população e com as autoridades locais.

13 António Telo (2002; p. 222) entende que há a guerra de guerrilha dos tempos modernos; também Mary

Kaldor (2001; p. 7) entende que as novas Guerras baseiam a sua actuação nos ensinamentos da guerrilha

e da contra -insurreição. Nós optamos pela comparação com a guerra subversiva, pois esta é mais lata e

na vertente armada pode sim assumir a forma de guerrilha. Pode ainda ser aplicado a outras tipologias de

guerra irregular, isto apesar de a principal táctica ser a guerrilha.14 A este propósito devemos ver as obras dos Generais Wesley Clark (2004) e Ruperth Smith (2006).

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101As guerras que envolvam a grande potência sozinha ou em coligação, sejam elas

regulares ou irregulares, serão sempre efectuadas por forças RMC. Na actual Guerra

no Iraque, a intervenção da coligação internacional pautou -se pela superioridade

tecnológica, pela supremacia aérea, com domínio do espaço, pelo uso de armas

inteligentes e também por uma intensa guerra de informação, num cenário típico de

guerra regular.

A força RMC da coligação, com combates sucessivos e assimétricos, vergou a

vontade de combater iraquiana e a operação militar foi uma nova Blitzkrieg. Porém,

após a ocupação militar, houve uma transformação da natureza do conflito armado,

deixando de obedecer ao modelo clausewitziano; além dos Estados, passou a

envolver outros actores. Conforme a circunstância, qualificamos os seus elementos

como bandidos, terroristas, guerrilheiros, mercenários ou milícias. Estes não

representam um Estado e não obedecem a um governo.

As operações militares de estabilização, apesar de feitas por forças RMC, fazem-

-se agora num ambiente de cariz subversivo, de combate próximo, onde não existe

uma estratégia e uma táctica bem definida, sendo os objectivos fluidos, onde a

inovação impera e a surpresa/imprevisibilidade são as suas principais características.

O emprego do terror é frequente, desaparecendo a distinção civil/militar, estando os

combatentes misturados com a população que desempenha aqui um papel

fundamental de apoio de retaguarda logístico, em informações e ao mesmo tempo

fonte de recrutamento. Por outro lado, também é o alvo principal e a maior vítima.

Em ambientes operacionais destes é normal a generalização da violação do

direito aplicável aos conflitos armados (internacionais e não internacionais), bem

como do regime de protecção dos direitos humanos.

No Iraque devemos ter presente a velha premissa de que as guerras de cariz

subversivo não se ganham com acção militar, mas perdem -se pela inacção militar.

VIII. A Civilinização e as Empresas Militares Privadas Nesta nova conflitualidade devemos

ter em consideração o novo paradigma que surge com a alteração significativa na

estrutura das Forças Armadas e no emergir da civilinização, onde assumem grande

relevância as modernas Empresas Militares Privadas (EMP), que prestam serviços e

tarefas de natureza militar.

A privatização do conflito e o uso de mercenários não são um fenómeno novo.

Porém, hoje o contexto é substancialmente diferente e as Corporate Warriors na

expressão de Singer (2003) têm um enquadramento jurídico distinto dos mercenários

tradicionais.

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102 Podemos considerar como elementos de diferencialidade das EMP em relação

aos mercenários15; a sua estrutura organizacional com directores e accionistas, serem

legalmente registadas, prestarem contas ao fisco e à segurança social, visarem o lucro

a longo prazo, operarem em vários Teatros e para vários clientes ao mesmo tempo,

ou seja, são organizações privadas de natureza comercial, cujo objecto é o forne-

cimento de um largo espectro de serviços de natureza militar e de segurança a

entidades nacionais e não -nacionais, apresentando -se assim como alternativa aos

serviços tradicionalmente consagrados às FA dos Estados.

As modernas EMP emergem a partir de 1967, ano em que foi criada a Watch Guard

International, uma companhia que empregava antigo pessoal do Special Air Service britânico

para treinar militares no exterior. Depois, a partir dos anos 70 do século XX, destaca-

-se em África a Executive Outcomes, com grande envolvimento nas guerras civis de

Angola e da Serra Leoa. Com o esboroar do antigo Império soviético e a sequente

redefinição dos dispositivos militares, ficaram disponíveis inúmeros homens e

material, que com iniciativa se organizaram e criaram diversas empresas que

passaram a estar activas e a desempenhar um papel diferenciador em zonas de

conflito ou de transição, um pouco por todo o planeta. A partir dos anos 90 do

mesmo século o termo EMP começa a ser vulgarizado no léxico militar.

Com a Guerra nos Balcãs a actividade sofre um grande incremento mas o grande

boom vem com o actual conflito no Iraque. A actuação destas empresas é hoje global,

estando contabilizadas mais de 150 companhias que funcionam em mais de 50 países

nos diversos Continentes, sendo no entanto os seus principais Teatros de intervenção

o Afeganistão e o Iraque. Neste território, onde são o segundo maior contingente da

Coligação, estimam -se mais de 45 mil funcionários (MilTech, 2007; p. 41).

As EMP vendem os seus serviços a multinacionais, ONG´s, Organizações Inter-

nacionais como as Nações Unidas, contando como principais clientes os Estados. Em

termos financeiros, e só para ficarmos com uma pequena ideia dos montantes envol-

vidos, estima -se que o rendimento desta indústria atinja o valor anual de 202 biliões

de dólares no ano de 2010 (MilTech, 2007; p. 43).

15 De acordo com o primeiro Protocolo Adicional às Convenções de Genebra de 1949, e segundo o seu artigo

47.º um mercenário apresenta as seguintes características: (a) “é especialmente recrutado localmente

ou fora do local de conflito para lutar nesse mesmo conflito”, (b) toma de forma directa parte nas

hostilidades”, (c) “é motivado pelo desejo de ganhos privados”, (d) “não é um nacional da parte em

conflito nem um residente do território controlado por um parte do conflito”, (e) “não é um membro

das forças armadas de uma parte no conflito”.

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103São inúmeras as justificações que levam os Estados a contratar estas empresas.

Nos Estados considerados Fracos, o recurso a este tipo de empresas prende -se

sobretudo com a incapacidade de dar resposta às necessidades básicas de segurança

das populações, ao passo que no mundo pós -moderno esse recurso apresenta -se

mais como uma consequência de considerandos economicistas, sociais e políticos

(O´Brien, 2002 e Vaz, 2005).

O crescimento destas empresas e a diversificação dos serviços por si prestados

não foi no entanto acompanhado pela regulamentação internacional específica.

Apesar desta não existir, não podemos considerar que haja um vazio legal, pois há

um conjunto de legislação nacional e internacional que directa ou indirectamente

cobre esta actividade. Normalmente as EMP devem operar de acordo com o enqua-

dramento legal do país objecto do contrato e a nível internacional lembramos entre

outras o Direito Internacional Humanitário e diversas legislação sobre mercenários.

Porém equacionam -se vários problemas, como a aplicação directa da legislação sobre

mercenários16, e muitas vezes os Estados que contratam esta prestação de serviços

têm um sistema judicial debilitado para que possa efectuar o controlo destas

empresas. No Iraque, por exemplo, estão protegidas contra a responsabilidade cri-

minal, como foi no caso dramático da prisão de Abu Ghraib, onde os abusos foram

cometidos quer por profissionais das EMP quer por militares, mas apenas os militares

foram responsabilizados pelos seus actos (MilTech, 2007; p. 44).

Os Estados Unidos da América em Março de 2007, deram um passo significativo

para contrariar esta situação, tendo sido aprovada legislação que coloca as EMP sob a

alçada da Lei e dos Tribunais Militares. Anteriormente, esta modalidade aplicava -se

apenas em situações em que o Congresso tivesse declarado formalmente Guerra; com

a alteração agora introduzida, a Lei passa a contemplar Operações de Contingência,

onde se incluem as realizadas no Iraque e Afeganistão (MilTech, 2007; p. 43).

16 O problema com artigo 47 do Protocolo Adicional I prende -se sobretudo com as alíneas a) é que tem que ser provado que um recrutamento especial para um determinado conflito ocorreu. Como o pessoal contratado pelas PMCs é, muitas vezes, contratado a longo prazo ou até numa base permanente, não pode, desta forma, ser considerado mercenário. Com a alínea b) o problema coloca -se relativamente à exclusão de conselheiros e formadores, entre outros. E como quase todas as PMCs não entram em combate (na definição da NATO de combate), não podem ser consideradas mercenárias. A alínea c) acrescenta um elemento perigoso: a motivação. É difícil julgar alguém como mercenário argumentando que está envolvido só por desejo de lucro. Não só há mais motivações, como a ideológica ou a política, como também seria fácil de mentir neste ponto. Com as alíneas e) e f) a questão seria facilmente resolvida com o Estado cliente dando nacionalidade ou residência ou integrando simplesmente o indivíduo nas Forças Armadas.) Um exemplo deste tipo de prática é a integração dos Gurkhas dentro das Forças Armadas Britânicas. Outro problema com este artigo é o facto de apenas contemplar conflitos armados internacionais e não guerras civis.

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104 Estas iniciativas são o indicador de esperança na regulamentação, no entanto

ficam ainda a faltar os mecanismos de controlo e inspecção a nível internacional,

uma vez que enquanto a regulamentação e fiscalização não forem eficientes,

receamos que este tipo de empresas não possam ou não queiram entender, na mira

do lucro, a “natureza complexa dos interesses nacionais e aceitem participar num

jogo em que a sua posição, sem ser claramente oposta aos interesses do seus país,

também não possa considerar -se favorável” (Vaz, 2005), subsistindo assim o perigo

real de existir um poder militar armado não -residente na legitimidade do Estado.

Esta nova realidade complexa e ainda mal estudada carece de regulamentação e

fiscalização e merece o nosso acompanhamento, tanto académico como de cidadãos

interessados no assunto.

Uma conclusão Apesar das incertezas típicas que o futuro nos reserva, a guerra continuará a

ser uma questão de poder e, no actual século, cremos que continuaremos a assistir a

guerras provocadas pela alteração de relação de forças entre actores não -estatais e os

Estados, guerras irregulares e em ambiente subversivo, sem regras, sem princípios,

sem frente ou retaguarda, onde os objectivos são fluidos, na boa compreensão que

a única legitimidade é a do seu exercício. Guerras que no fundo não são tão novas

assim. Por outro lado, assistiremos às guerras espectáculo, típicas das sociedades de

terceira vaga e que tem por base as forças RMC, com um novo tipo de Forças Armadas,

de alta tecnologia, com profusa utilização do espaço como a 4.ª dimensão da guerra.

Nestas novas guerras (regulares ou irregulares) emergem ainda as empresas militares

privadas, que acabam por vir enfatizar a utilização do termo civilinização.

A única certeza que temos quanto às guerras deste século que agora se inicia é

que o factor diferença/surpresa é permanente, como permanentes são o fluir da

História e a diversidade dos cenários e dos homens, pelo que a Guerra é uma

constante histórica que persistirá.NE

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■ Abstract:

The globalisation era, usually regarded as an era of growing interdependence and

unification between people all over the world, is also seen as an era with new

challenges for peace and international security. In this context, old threats as the

organised crime and terrorism are reaching unimagined dimensions. Therefore, the

aim of this essay is to help understanding the link between organised crime,

terrorism, and the globalisation process.

According to the author globalisation has motivated and facilitated the rise of these

two threats to higher levels, making them one of the first priorities of political

leaders in western democracies, and also that the answer to this problem lies on the

restructuring of several practices in place nowadays.

I. Introdução O MUNDO DESTE início de século XXI está refém das transformações causadas

pelo programa político de liberalização, de capitalismo e de promoção da democracia

e do desenvolvimento, vulgarmente designado por globalização.

Numa época em que as ameaças à paz e segurança internacional, nomeadamente

o crime organizado e o terrorismo, parecem assumir contornos cada vez mais

preocupantes, é imperioso reflectir sobre a seguinte questão: qual a relação existente

entre a globalização e o crescimento do crime organizado e do terrorismo?

Ao contrário do que muitos esperavam, o fim do mundo bipolar não trouxe a

paz prometida, nem tão pouco conduziu ao atenuar das guerras e ao fim da

história. Do vácuo criado pela destruição da ordem e da estabilidade geopolítica

global, características da Guerra Fria, emergiu uma nova era, a da globalização,

assente numa ordem de contornos ainda indefinidos onde impera a instabilidade.

“A «ameaça comunista» desvaneceu -se, deixando espaço livre para os perigos de

Globalização, crime organizado e terrorismo:

que relação?

Nuno Gonçalo Caseiro Miguel*

* Capitão piloto aviador. Mestrando da Universidade Católica Portuguesa.

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113um caos internacional”1. É neste contexto da segurança que a questão colocada

assume particular relevância.

Como se verá ao longo deste ensaio, e como o 11 de Setembro veio a comprovar

de forma cruel, a globalização não só fomentou o crescimento de actividades ligadas

ao crime organizado e ao terrorismo, como também ajudou a elevar o grau de risco

dessas ameaças a patamares nunca antes imaginados.

II. A Globalização A queda do muro de Berlim a 9 de Novembro de 19892, que está na

génese do fim da Guerra Fria, vem pôr termo ao período da “longa paz” do sistema

bipolar vivido durante a segunda metade do século XX. A realidade conceptual que

melhor define o contexto histórico e geopolítico que daí resultou, na última década

do século XX, e no conturbado início de século XXI3, tem o nome de globalização.

Órfã do final da Guerra Fria, a globalização nasce do novo sistema de distribuição

de poder mundial, onde vinga o sistema unipolar em que os EUA, vencedores dessa

guerra, se afirmam como a principal potência mundial. A tendência natural, seguida

em várias partes do mundo, foi uma aproximação mais ou menos caótica aos ideais

defendidos pelas democracias liberais ocidentais, que estimulou um redesenhar do

espaço geopolítico mundial.

O processo gerado representa uma transformação na organização espacial das

relações sociais por via da extensão, intensidade, velocidade e impacto das transacções

entre os cidadãos do globo. O motor desse processo baseia -se na confluência de

vários factores, respectivamente: de ordem política4; de cariz económico5; de

natureza tecnológica6; e de carácter cultural7. No final do processo, encontra -se o

aumento qualitativo e quantitativo dos fluxos e das redes transnacionais e inter-

-regionais de actividades, de interacções e do exercício do poder.

1 Paul Magnette, “A União Europeia aparece como uma tentativa única de construção multinacional organizada

por Estados” in AAVV, Le nouvel état du monde, Paris, Éditions La Découverte & Syros, 1999, sob a direcção de

Serge Cordellier. Tradução portuguesa de Eduarda Castro, Joana Caspurro e Raquel Mouta, O novo estado do

mundo, Porto, Campo das Letras, 2000, p. 68.2 Seguida da reunificação das duas Alemanhas a 3 de Outubro de 1990; da dissolução do Pacto de Varsóvia a 25

de Fevereiro de 1991; e da dissolução da União Soviética em Dezembro desse ano.3 Que ficou marcado pelos acontecimentos de 11 de Setembro de 2001.4 Onde se destaca o fim da Guerra Fria.5 Por via do triunfo do capitalismo enquanto modelo das democracias liberais ocidentais.6 Onde a revolução no domínio da informática e das comunicações encetou novas possibilidades.7 Fruto da conjugação dos outros factores e da percepção da inevitabilidade da interdependência.

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114 A globalização é um fenómeno que está associado à crescente sensação de

interdependência e de aproximação entre povos, assim como ao esbater das divisões

e fronteiras, mas que, paradoxalmente, se articula com uma forte sensação de

vulnerabilidade e de insegurança face à disseminação e escala das mudanças globais.

Assim sendo, a globalização é uma realidade que une ao mesmo tempo que divide,

e está a criar um mundo sem regras e mais desigual.

Apesar de a globalização ter duas componentes fundamentais, respectivamente

a política e a económica, a verdade é que “são os aspectos estritamente económicos

da globalização que geram controvérsia, e as instituições internacionais que ditam as

regras, que impõem ou fomentam, por exemplo, a liberalização dos mercados de

capitais”8.

Para que a globalização possa acompanhar convenientemente a transformação

em curso, minimizando a desigualdade e a controvérsia, ela deverá ser gerida. Uma

das estratégias para o fazer é através da reforma das instituições internacionais que

incorporam as regras do sistema global. Essa regulação deverá contemplar a

participação dos países em desenvolvimento, tornando essas regras mais justas e

democráticas. É fundamental que haja “mais transparência, no aperfeiçoamento da

informação de que os cidadãos dispõem acerca da sua actividade, para que sejam

mais intervenientes na formulação das políticas que os afectam”9 e que as regras

sejam, e pareçam, equitativas e justas, contemplando tanto os poderosos como os

pobres, reflectindo um sentido fundamental de honestidade e de justiça social.

Nessa reestruturação é imperioso integrar diferentes realidades e consolidar a

componente política do processo, fazendo com que a componente económica lhe

esteja subordinada, ao contrário do que parece hoje acontecer.

III. Ameaças à Segurança O período de transição em que vivemos é caracterizado por um

conjunto de ameaças e riscos imprevisíveis, de carácter multifacetado e transnacional,

em que se destacam, para além do crime organizado e do terrorismo, o agravamento

das assimetrias Norte -Sul, os movimentos migratórios descontrolados, os atentados

ecológicos, e a proliferação de armas de destruição maciça. As duas primeiras

8 Joseph Stiglitz, Globalization and its Discontents, Nova Iorque, W. W. Norton & Company Inc., 2002. Tradução

portuguesa de Maria Filomena Duarte, Globalização: a grande desilusão, Lisboa, 2002 (3.ª edição revista, 2004),

p. 47.9 Joseph Stiglitz, Globalization…, p. 27.

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115ameaças destacam -se, pois “na década que se seguiu ao fim da Guerra Fria e

parcialmente sustentados pela globalização, tanto o terrorismo como o crime

organizado evoluíram para patamares de ameaça nunca antes imaginados”10.

1. O crime organizado

Uma organização criminosa persegue os mesmos objectivos traçados no mundo

empresarial, mas por outros meios: tal como acontece com todas as outras empresas,

o seu objectivo é o lucro. Contudo, os negócios propriamente ditos e as formas de

atingir o lucro desejado, ou seja, as regras do jogo utilizadas, diferem bastante. Por

um lado, negoceiam no mercado ilícito do tráfico de drogas, de armas, e de seres

humanos, entre outros; por outro, e porque a competitividade sectorial é muito

acentuada e agressiva, não olham a meios para atingir os seus fins.

O recurso à violência é uma das armas utilizadas por estas organizações. Esse

expediente deve -se por motivos de autoprotecção, mas também para atingir os seus

objectivos financeiros e económicos. Apesar disso, estas organizações só recorrem a

esta prática “quando as tácticas de intimidação falham. Assim sendo, e na maior parte

dos casos, a violência é selectiva, diferentemente da violência indiscriminada,

tratando -se normalmente de uma questão de ‘negócios’”11.

Outro dos meios mais utilizados é o recurso à corrupção. São dois os objectivos

visados com a utilização deste expediente: um de carácter instrumental; outro de

ordem sistémica. O primeiro está relacionado com as dificuldades inerentes à

passagem de fronteiras12; o segundo, de natureza bem mais inquietante, refere -se à

corrupção dos mais altos responsáveis políticos e judiciais de um Estado.

2. O terrorismo

As organizações terroristas visam atingir objectivos políticos, através do uso

indiscriminado da violência. Para eles, a violência não é mais do que a continuação

10 Phil Williams, “Strategy for a New World: Combating Terrorism and Transnational Organized Crime” in

AAVV, Strategy in the contemporary world, Nova Iorque, Oxford University Press, 2002 (2.ª edição, 2007), sob

a direcção de John Baylis et al., p. 194: “(…) in the decade after the end of the cold war and fuelled in

large part by globalization, both terrorism and organized crime morphed into far more formidable threats

than ever before.”11 Phil Williams, “Strategy for…”, p. 197: “(…) after intimidation tactics have failed. For the most part,

therefore, the violence is selective rather than random and usually is a matter of ‘business’.”12 Pelo que visa corromper o pessoal que trabalha na imigração e controlo de alfândegas.

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116 da política por outros meios. “Os actos de terror, para o terrorista, equivalem em

termos utilitaristas aos actos de guerra, para o Estado”13.

Outra característica destas organizações é que, independentemente das inspirações

de ordem doutrinária ou religiosa, as suas acções visam a subversão. Como regra, os

seus ataques pretendem causar o máximo de impacto psicológico nas populações. Para

tal, contam com o apoio dos meios de comunicação social que, “ao dar importância

aos atentados, aumentam os medos que eles suscitam e vão reforçar a sua eficácia”14.

As actividades secundárias de suporte a esses ataques incluem a procura de

formas de financiamento, o recrutamento, o treino de operacionais, o desenvolvimento

e aperfeiçoamento de competências especializadas, e a preparação dos atentados.

A natureza dos futuros ataques terroristas representa uma das principais

preocupações actuais. A probabilidade de poderem vir a ser utilizadas armas de

destruição maciça nessas acções é muito elevada15. Determinados cenários indiciam

que essa probabilidade aumenta no que toca à utilização de bombas radiológicas, ou

mesmo de pequenas bombas nucleares.

Perante a natureza imprevisível desta ameaça, e sobretudo face à escala e dimensão

das suas consequências, o combate ao terrorismo exige uma atenção mais cuidada, e

uma disponibilização de recursos superior à que é reservada ao crime organizado.

3. A segurança num mundo globalizado

De acordo com Joseph Nye Jr., “À medida que as ameaças transnacionais aumentam,

os estados irão não apenas questionar as normas da Vestefália, que traçam distinções

claras entre o que é nacional e o que é internacional, mas também a alargar os seus

conceitos de segurança e defesa. Muitas das novas ameaças não serão susceptíveis de

solução por parte de exércitos disparando explosivos potentes”16. Assim sendo, o

combate a estas ameaças requer o envolvimento de todos. É neste contexto que toma

forma o conceito de segurança cooperativa alargada.

13 Phil Williams, “Strategy for…”, p. 195: “(…) acts of terror for the terrorist are the equivalent in utilitarian terms of acts of war for the state.”

14 Pascal Boniface, Les Guerres de Demain, s.l., Editions du Seuil, 2002. Tradução portuguesa de António Manuel Lopes Rodrigues, Guerras do amanhã, Mem Martins, Editorial Inquérito, 2003, p. 17.

15 Há já alguns exemplos desta prática, nomeadamente: no Japão, em 1995, onde a organização terrorista Aum Shinrikyo libertou gás sarin no metro de Tóquio, expondo cerca de 5000 pessoas aos seus efeitos; e na Jordânia, em 2004, onde foi frustrado um ataque terrorista que envolvia o uso de armas químicas, que mataria presumivelmente cerca de 20.000 a 80.000 pessoas.

16 Joseph Nye Jr., Understanding International Conflicts, s.l., Joseph Nye Jr., 2000. Tradução portuguesa de Tiago Araújo, Compreender os Conflitos Internacionais, Lisboa, Gradiva, 2002, p. 273.

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117Torna -se fundamental imprimir à segurança um carácter multidisciplinar,

assente não só nos pressupostos da defesa militar, mas também nos conteúdos de

outras áreas estratégicas17. Esta prospectiva estratégica global, aliada à coordenação

de esforços entre Estados e a uma gestão conveniente da globalização, permitirá

encontrar respostas conjuntas mais eficazes face aos desafios colocados.

A chave para o sucesso da globalização passa por garantir que o conceito da

segurança é verdadeiramente aquilatado, em todas as suas dimensões. É esta a

mensagem que Jean Ziegler pretende transmitir quando adverte que “em nome da

organização multilateral da segurança colectiva, os senhores do capital apostaram na

capacidade militar da superpotência americana. (…) E longe de confiar a produção

e a distribuição dos bens do Planeta a uma economia normativa que tivesse em conta

as necessidades elementares dos habitantes, esses senhores entregaram -se à «mão

invisível» do mercado mundial integrado, que controlam perfeitamente. Em poucos

meses, arruinaram assim as esperanças enraizadas na base da consciência colectiva

desde a paz da Vestefália em 1648: a esperança de um contrato social universal entre

Estados e povos de dimensões diferentes, mas iguais em direitos; a esperança da

regra de direito que substitui a violência do mais forte; a esperança, enfim, de

arbitragem internacional e da segurança colectiva para conjurar a guerra”18.

IV. Globalização, Crime Organizado e Terrorismo Apesar de o crime organizado e do terrorismo

constituírem práticas já antigas, com a globalização, a natureza dessas ameaças

sofreu uma transformação radical: elas tornaram -se transnacionais, provocando

um aumento nos índices de insegurança. Essa realidade é mais evidente na área do

terrorismo: “Os prejuízos materiais e humanos provocados pelo terrorismo eram

considerados até 11 de Setembro de 2001 como relativamente limitados na sua

extensão, mas os atentados nos Estados Unidos mostraram que podiam adquirir uma

amplitude considerável: matar milhares de pessoas e atingir alvos julgados ao abrigo

de qualquer ameaça. Conforme ficou provado, o impacto do terrorismo é enorme.

Ataca às cegas as populações civis na sua vida quotidiana exactamente onde elas

acreditavam estar perfeitamente protegidas…”19.

17 Como as áreas da política interna, da política externa, da economia e da psicologia.18 Jean Ziegler, Les Nouveaux Maîtres du Monde, Paris, Éditions Fayard, 2002. Tradução portuguesa de Magda Bigotte

de Figueiredo, Os Novos Senhores do Mundo, Lisboa, Terramar, 2003, p. 33.19 Pascal Boniface, Les Guerres…, p. 15.

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118 A globalização representa um factor de motivação e de facilitação para o crime

organizado e para o terrorismo.

Por um lado, implicou a alteração nos padrões de emprego, de cultura, de

segurança, de capacidade de resposta por parte dos Estados, e, numa palavra, de

estabilidade. Os efeitos secundários indesejados não demoraram muito a aparecer,

criando um forte sentimento de desigualdade e de injustiça em largas franjas da

população mundial. Dessa forma, a globalização motivou a implementação e

disseminação de uma nova série de ameaças.

Por outro lado, algumas das vantagens da globalização, que se traduzem em

enormes avanços tecnológicos, estão disponíveis para todos. De facto, a densidade de

informações e de ligações que se estabelecem hoje em dia entre as áreas mais remotas

do globo, face à facilidade e acessibilidade das vias de comunicação, impossibilita o

controlo da disseminação do crime e da violência. Assim sendo, a globalização facilitou

o crescimento exponencial do crime organizado e do terrorismo.

1. O recurso às alianças

Tal como acontece em grande parte das actividades legais, que compõem os diversos

sectores da economia, também as organizações criminosas e terroristas recorrem à

simbiose para sobreviverem num mundo globalizado.

No caso das organizações criminosas, as alianças podem ser circunstanciais, de

carácter táctico, ou mesmo de cariz estratégico. O facto de estas organizações poderem

operar em rede facilita a dinâmica de cooperação entre as diversas partes. Essas redes

podem -se ramificar indefinidamente, atingindo dimensões verdadeiramente inima-

gináveis. Considere -se como exemplo o grupo criminoso italiano da Máfia. Esta orga-

nização representa o maior segmento da economia do país. No último ano, a Máfia

desenvolveu actividades que resultaram num lucro de noventa mil milhões de euros,

ou seja, o correspondente a sete por cento do produto interno bruto italiano.

Tal como acontece com as organizações criminosas, também os grupos

terroristas se aliam em determinadas circunstâncias. Apesar disso, essas uniões,

diferentemente do que acontece no primeiro caso, baseiam -se na comunhão de

valores e de objectivos.

2. A descentralização das actividades

Uma característica da globalização é que existem poucas regras, ou controlos formais,

ao funcionamento do mercado. Em contrapartida, se os limites existentes forem

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119contrários aos interesses de uma determinada empresa, ela pode simplesmente deslocar-

-se para outro local mais conveniente. Agindo desta forma, ou seja, tirando partido da

dispersão de meios e de actividades, os actores não estatais livram -se facilmente dos

inconvenientes da centralização. Como é natural, tanto os grupos criminosos como as

organizações terroristas também utilizam este expediente como trunfo.

Um exemplo paradigmático desta realidade é o caso do grupo Bin Laden, com

fortes ligações à organização terrorista da Al -Qaeda: “Os projectos atribuídos ao grupo

Bin Laden já não se limitam ao reino; passam também pelo Líbano, onde Yehia bin

Laden participa na reconstrução do centro de Beirute, devastado pela guerra civil; por

Londres, onde o grupo tem um escritório que o representa, a Binexport; por Genebra,

onde a Sico, Saudi Investment Company, se ocupa de numerosos negócios internacionais.

(…) A Sico, sede principal do grupo no estrangeiro, possui também escritórios em

Londres e na ilha Coraçau, nas Antilhas holandesas. (…) Muito particularmente em

França, os Bin Laden ocupam o conselho de administração de um banco, o al -Saudi,

que será parcialmente adquirido pelo banco Indo -Suez, tornando -se deste modo o

Banco Francês para o Oriente antes de se fundir com o grupo Mediterrâneo de Rafik

Hariri, primeiro ministro libanês…”20.

3. Outras variáveis

As seguintes linhas, que não esgotam o tema analisado, têm como principal objectivo

alertar para outros assuntos que poderão influenciar o frágil equilíbrio que existe

entre a globalização, o crime organizado e o terrorismo.

3.a O papel do Estado

A teoria das relações internacionais, que vê o Estado enquanto único actor relevante

no mundo da política e da segurança internacional, está cada vez mais desacreditada.

A globalização está na base da alteração deste paradigma, uma vez que o último

símbolo da soberania, que é o controlo interno e externo do uso da força, deixou de

fazer sentido. Hoje em dia, a segurança internacional está condicionada tanto pelos

Estados, como por outros actores. A ideia de que a globalização e o capitalismo

reduzem a violência não corresponde à realidade.

20 Roland Jacquard, Au Nom D’Oussama Ben Laden, s.l., Jean Piccolec éditeur, 2001. Tradução portuguesa de Carlos

Correia Monteiro de Oliveira, Osama Bin Laden: A Estratégia do Terror, Lisboa, Editora Livros do Brasil, 2001,

p. 36.

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120 Se o crime organizado e o terrorismo empregam processos altamente dinâmicos,

o Estado encontra -se no outro extremo. Não se defende que o Estado utilize essas

mesmas armas. No entanto, é urgente que o Estado adeqúe as suas instituições à nova

realidade, de forma a agilizar processos, desburocratizando tomadas de decisão, e

garantindo outros níveis de eficácia no combate a estas ameaças.

3.b A quantificação do armamento

Se por um lado a globalização gera novos actores não-estatais com influência

transnacional, por outro, essa constatação implica que será cada vez mais difícil

aferir o poderio militar global.

A corrida ao armamento no mercado aberto torna praticamente impossível o

controlo do armamento mundial, e, naturalmente, o respeito pelos acordos de

manutenção e monitorização de armas. Como é natural, estas acções beneficiarão as

organizações criminosas e terroristas, ao mesmo tempo que fomentarão um aumento

da sensação de instabilidade e de insegurança.

3.c A segurança como bem público

Uma outra questão sobre a qual se deve reflectir diz respeito à segurança: será este

um bem público ou privado? Segundo Peter Singer, na sua obra Corporate Warriors, a

segurança é um bem público. Recorrendo ao exemplo do seu país, este analista

constata que a Constituição Norte Americana consagra a segurança enquanto bem

público, supervisionado por entidades públicas.

Acontece que, nos nossos dias, a segurança deixou de ser um bem público,

passando a ser objecto de negócio por parte de privados. Assim sendo, a legitimidade

do Estado fica enfraquecida e o contrato social fica em causa: para quê ser leal ao

Estado? A política passa a estar directa e abertamente ligada ao poder económico. Nos

países mais desfavorecidos isso significa que só quem tem dinheiro é que tem acesso

à segurança. A privatização da segurança implica um extremar das clivagens sociais.

Se forem quebrados certos padrões de coesão social na era da globalização, estão

criadas as condições ideais para o triunfo do crime organizado e do terrorismo.

V. Conclusão Na globalização, e “numa situação de interdependência, a política parece

diferente se levantarmos o véu do interesse nacional e o da segurança nacional”21.

21 Joseph Nye Jr., Understanding…, p. 246.

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121A globalização é sinónimo de altas taxas de crescimento económico, e de um

mundo cada vez mais interdependente. Contudo ela acarreta também, e em

proporção directa, um aumento do grau de ameaça do crime organizado e do

terrorismo. Não é possível ter “o melhor de dois mundos”. Se os decisores políticos

continuarem a apostar exclusivamente na componente económica como via de

desenvolvimento, estarão a colocar em causa o futuro da humanidade. Assim sendo,

torna -se absurdo dissociar o interesse nacional – que hoje em dia se confunde com

o interesse económico – do conceito de segurança nacional.

Por outro lado, os factores que estimulam determinados grupos da sociedade

global a recorrerem à prática de actividades ilícitas não diminuem face à retórica

apaziguadora de certos líderes mundiais. Pelo contrário, palavras contrárias às acções

têm um efeito perverso, uma vez que conduzem a um acicatar dos ânimos e a um

extremar de posições.

Pelo que ficou exposto verifica -se que é necessário intervir no processo da

globalização, nomeadamente através da: articulação de esforços; adaptação das

instituições à realidade do século XXI; agilização de processos; maior dedicação e

afectação de recursos à problemática da segurança.

Por último, não é possível escamotear a base do problema, isto é, o combate às

assimetrias. “Não há, pois, outra solução senão a de atacar as verdadeiras raízes do

mal: injustiça, ausência de democracia, desigualdades, etc.”22.NE

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22 Pascal Boniface, Les Guerres …, p. 13.

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■ É com o intuito de contribuir para um melhor conhecimento deste período que

ora se publica este artigo, após uma investigação de âmbito mais vasto sobre a

presença portuguesa em Timor -Leste após 1945, baseada, principalmente, em

documentação de arquivos nacionais, dos NAA (National Archives of Australia) e dos NA

(National Archives) de Londres. Servir -lhe -ão de apoio estudos nacionais e estrangeiros,

uma vez que pareceu essencial fazer uma inserção no contexto regional e geral do

evoluir local, ao longo de três décadas.

A AUSTRÁLIA, UM País relativamente novo, havia emergido na região pouco antes da Segunda

Guerra Mundial. Durante o conflito, tentou apoderar -se do Timor português, de

modo a proteger -se à distância. De facto, a proposta de Spender, deputado do

Partido Trabalhista, para que se comprasse o território, baseava -se no facto deste ser

considerado vital para a defesa do seu País1. Por seu lado, Salazar receava que o vazio

deixado pela administração portuguesa servisse de pretexto para que a Austrália

o viesse a ocupar. Em larga medida, isso explica a intransigência manifestada

sobretudo para com a atitude dos funcionários públicos, civis e militares, e agentes

comerciais que, durante a ocupação japonesa, se dispunham a abandonar a colónia

e se refugiavam, precisamente, na Austrália.

O equilíbrio das alianças estabelecidas na região, a cedência de facilidades aos

Aliados nos Açores, a determinação do Governo português de querer participar na

última fase do conflito, a manutenção de uma presença, embora mais simbólica do

que efectiva, durante a ocupação nipónica, e uma rápida reocupação, contribuíram

para que a pretensão australiana não se concretizasse.

* Doutor em História e investigador do Centro de Estudos Históricos da Universidade Nova de Lisboa.1 Durante a I Guerra Mundial, tinha sido o primeiro -ministro Andrew Fisher a dar a sugestão de que se

ocupasse Timor. Cf. Wendy Way (Editor), Australia and the Indonesian Incorporation of Portuguese Timor, 1974 -1976,

Melbourne, Melbourne University Press, 2000, p. 17.

A presença portuguesa em Timor-Leste (1945-1975):

aspectos e implicações do relacionamento com a

Austrália

Fernando Augusto de Figueiredo*

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124 De facto, durante a guerra, o continente australiano sofreu pela primeira vez

bombardeamentos aéreos e um bloqueio naval, enquanto cerca de 600 australianos

morreram em defesa da Papua Nova Guiné Oriental e ilhas adjacentes. Ao mesmo

tempo, a Austrália foi um País acolhedor para refugiados do Sudeste Asiático,

substanciais forças holandesas e muitas centenas de milhares de militares americanos2.

Também em termos de defesa, havia agora muita coisa a equacionar.

A partir da década de 1960, alguns factores irão contribuir para um

posicionamento diferente da Austrália relativamente à presença portuguesa em

Timor. Os mais importantes parecem -nos ser: as mudanças operadas no processo de

descolonização dos povos e o envolvimento da Austrália enquanto membro activo

nesse movimento; a pressão dos governos democráticos do Ocidente para que

desempenhasse um papel mais directo na questão de Timor, dada a sua incomodidade

em fazê -lo, em virtude das obrigações que tinham para com Portugal; a consolidação

da sua defesa próxima e regional; e uma opinião pública interna mais crítica em

relação à colonização em geral.

Após um período de indefinição e de não -confrontação directa durante o

governo de Sukarno, também uma maior aproximação à Indonésia de Suharto,

baseada em interesses mútuos, designadamente em relação à exploração de petróleo

no Mar de Timor, ajudará a compreender a atitude australiana face à ocupação

indonésia e posterior reconhecimento da anexação do território.

Do pós -guerra ao início da década de 1960 No imediato pós -guerra, a política de defesa

da Austrália apontava em três direcções: eliminar a capacidade militar do Japão e

prevenir o seu ressurgimento; apoiar os esforços de paz da ONU; e contribuir para

acordos de segurança regional, que deveriam incluir a Grã -Bretanha e os Estados

Unidos. Estes objectivos não foram conseguidos a curto prazo, mas também não

havia então perigo para a segurança do País, a não ser muito remota e indirectamente,

sobretudo se fosse tida em linha de conta a situação que atravessava a Europa, em

cujo continente se sentia mais o confronto Leste/Oeste3.

Em 1950, quanto à componente que envolvia Timor, o deputado Spender, já

ministro dos Negócios Estrangeiros australiano e fora do contexto de guerra, colocou

2 Cf. Gordon Greenwood and Norman Harper (Edited), Australia in Word Affairs 1961 -1965, Melbourne -Canberra-

-Sydney, Australian Institute of International Affairs, s/d., p. 251.3 Idem, ibid., p. 252.

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125a questão no Parlamento noutros termos, que o cônsul de Portugal em Sidney

comunicou por telegrama ao Governo central:

“[...].Todos os Governos vitalmente interessados [na] estabilidade [da]Ásia, [e

do] Sul [do] Pacífico e capazes [de] assumir compromissos militares deveriam

estudar [a] possibilidade [de um] pacto regional. [Esta] Comunidade formaria

[um] núcleo ao qual se associariam outros Países principalmente [os] Estados

Unidos. Fins [do] pacto - defesa militar, elevação [do] nível [de] vida, promoção

[das] instituições democráticas [e] laços comerciais. Independentemente [do]

pacto deve [a] Austrália assegurar -se por todos os meios ao seu alcance [de que]

nas ilhas imediatamente adjacentes nada aconteça [que] possa ameaçar [a] sua

segurança. [A] Experiência mostrou [que] estas ilhas são [o] último anel [de]

defesa [da] Austrália [pelo que] temos interesse vital [em] quaisquer modificações

[que] nelas ocorram. Ninguém deve supor [que a] Austrália tomaria papel

passivo perante eventuais mudanças fundamentais nestas áreas. Tenho [em]

mente principalmente mas não apenas [a] Nova Guiné do mesmo modo [que]

não podemos ser passivos observadores [de] quaisquer desequilíbrios [em]

Timor, Novas Hébridas, [e] Caledónia [que] possam ter indesejáveis

consequências [na] Austrália. Mas isto é negativo. Estamos positivamente

dispostos [a] negociar com governos destes Países [no] arranjo [de] mútuo

benefício económico e segurança. Não é interferência [nos] negócios alheios

mas simplesmente [uma] questão com carácter [de] prudência e cooperação

mútua”.4

No mesmo ano, um periódico de Sidney expandia a ideia de que Timor e outras

possessões vizinhas da Austrália deviam ser controladas pelo seu País ou por uma

“Potência muito amiga”. Era, principalmente, por este tipo de posições que, da parte

do cônsul, existia a convicção de que o relacionamento de Portugal com a Austrália

devia ser idêntico ao que havia com a Inglaterra e os Estados Unidos da América5.

Ou seja: Portugal devia entrar num acordo regional que incluísse, obviamente, a

Austrália, e que envolvesse também aqueles dois Países, com os quais Portugal estava

na NATO.

4 Citado in AHDMNE (Arquivo Histórico -Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros), Timor,

2.º Piso, armário 49, maço 44, processo 34.27, telegrama n.º 7, Sidney, 28 de Março de 1950.5 Cf. AHDMNE, ibid., 2.º Piso, armário 49, maço 44, processo 34.27, Anexo ao ofício n.º 21, do Consulado em

Sidney, de 28 de Janeiro de 1950.

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126 A Austrália saía da “iron age of austerity” dos anos quarenta para os “silver years

of growing confidence and conformity” dos anos cinquenta, prelúdio do que viria

a ser a “golden age” dos anos sessenta até meados da década seguinte, beneficiando

então de um “long boom”, como fenómeno global que atingiu as economias mais

avançadas durante este período, em virtude de grandes investimentos, do acesso a

novas tecnologias, e a modernas formas de gestão e administração6. Por outro lado,

era um dos vencedores da Segunda Guerra Mundial, estatuto que lhe dava peso

negocial, que podia acrescentar à sua importância estratégica.

A transição da “idade do bronze” para a “idade da prata” ocorreu em plena

Guerra -Fria. No confronto bipolar entre capitalismo e comunismo, a Austrália alinhou,

claramente, ao lado da “Western Alliance”, o que iria condicionar a orientação da sua

política de defesa. Assim, em 1948, com a Nova Zelândia, integrou uma plataforma

anticomunista, conhecida como “ANZAM Treaty”, destinada a coordenar a defesa aérea

e as comunicações marítimas na região, tendo sido estendida à Confederação Malaia

em 1954. Começou com uma assistência militar à Grã -Bretanha para ajudar a derrotar

a insurreição comunista ocorrida naquele território. Em 1957, depois da independência

da Confederação, foi incorporado na Anglo -Malayan Defence Agreement.

Em 1950, já com Robert Menzies, como primeiro -ministro, à frente de uma

aliança entre o Liberal Party e os Country Parties, enviou tropas para a Coreia a fim de

combaterem ao lado das forças americanas que se opunham ao avanço para Sul das

forças comunistas. Mais do que o receio do rearmamento do Japão, interessava agora

desfazer a onda comunista que avançava no Oriente a na própria Europa.

Por sua vez, os partidos que formavam a coligação conservadora nunca tiveram

a simpatia dos nacionalistas indonésios, como havia acontecido com o Labor Party e

especialmente com o ministro dos Negócios Estrangeiros, Herbert Vere Evatt. Acrescia

que, se a instável e ambígua Indonésia obtivesse sucesso na sua reivindicação da

Nova Guiné Ocidental, haveriam de surgir problemas na comum, indefinida e

insegura fronteira daquele território7. E isso era uma questão que tocaria directamente

à Austrália, que administrava a Nova Guiné Oriental.

A participação na Guerra da Coreia, a coberto do apelo da ONU para a defesa da

paz mundial, mas também como “British and democratic nation” e em apoio de uma

nação amiga, teve efeitos de vários tipos na Austrália: fez aumentar a inflação; firmou

6 Cf. Stuart Macintyre, A Concise History of Australia, Cambridge, Cambridge University Press, 1999, pp. 196 -197.7 Cf. Gordon Greenwood and Norman Harper (Edited ), ob. cit., p. 261.

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127alguns planos para limitar a reconstrução económica japonesa e o seu rearmamento;

encorajou os Estados Unidos a conceder à Austrália um empréstimo para o seu

desenvolvimento; e ajudou sobretudo a tornar possível um pacto que os líderes

australianos procuravam há muito tempo8.

Com o fundamento de que, como um vasto território e uma reduzida população,

o País só poderia resistir a uma onda comunista vinda de Norte, ou a outro qualquer

grande inimigo externo, com a ajuda de potências amigas, designadamente a maior

de todas – os Estados Unidos da América –, em 1 de Setembro de 1951, os dirigentes

australianos formalizaram com este País e com a vizinha Nova Zelândia um tratado

de defesa (ANZUS – The Australia, New Zealand, United States Security Treaty):

“[...]. ANZUS was essentialy a corollary to its system of alliances in the Asia-

-Pacific region, which served to reconcile Australia to America’s far more

important relationship with the former enemy, Japan.”9

Este tratado constituía, essencialmente, uma garantia dos Estados Unidos no que

respeitava à defesa da Austrália e da Nova Zelândia, dos territórios sob a sua

jurisdição, assistência às suas forças armadas, e aos barcos e navios públicos na

“Pacific Area”. Excluía, no entanto, o Oceano Índico, o que deveria ser, assim se

presumia, da principal responsabilidade do Reino Unido. Na sua aplicação, o tratado

deixava indefinido também o que se referia a partes da Indonésia, a área do Bornéu

e o Antárctico. Quanto à Grã -Bretanha, por insistência americana, tinha sido excluída

do tratado, o que foi desvalorizado pelos governantes australianos, que o apresentavam

como um complemento dos acordos com o Reino Unido na ANZAM10.

Em 1954, a Austrália integrou a SEATO (South East Asia Treaty Organization), que

incluía também os EUA, o Reino Unido, a França e a Nova Zelândia – a “more

comprehensive system of regional security in the Pacific Area” –, dinamizado pelos

Estados Unidos após a derrota francesa no Vietname perante as forças comunistas.

Cada um dos Países aderentes tinha os seus interesses e objectivos. Para o

Governo australiano, a SEATO substituía o poder colonial francês, contendo “the

agressive policies of international communism” no Sudeste Asiático. Este tratado

vinha complementar o ANZUS: enquanto este apenas implicava encontros periódicos

8 Idem, ibid., p. 264.9 Stuart Macintyre, ob. cit., p. 206.10 Cf. Gordon Greenwood and Norman Harper (Edited ), ob. cit., pp. 264 -265.

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128 de um conselho ministerial e ocasionais de representantes militares e pessoal de

planeamento, a SEATO assentava numa organização com contínua ligação entre

pessoal de informação e planeamento, e representantes diplomáticos. Este tratado

permitia à Austrália uma série de contactos com os Estados Unidos, que seriam

importantes no desenvolvimento de uma mútua confiança e acessibilidade11.

Desde o início de 1954, neste enquadramento, a Grã -Bretanha, a Austrália e a

Nova Zelândia começaram as conversações do pessoal militar sobre os problemas

relativos à defesa da Malásia, dos territórios -ilhas na região, e das próprias Austrália

e Nova Zelândia, como referimos. O tratado cobria também a Commonwealth Stategic

Reserve, com forças australianas12.

Qual a importância da Confederação Malaia, para um tão forte empenhamento,

sobretudo destes dois últimos Países da Commonwealth?

“Economic considerations lay close to the heart of British strategic planning for

South -East Asia as is revealed in a paper grandiosely entitled ‘Review of Defence

Policy and Global Strategy’. In this the Chiefs of Staff declared: ‘Malaya is of the

greatest economic value to the United Kingdom and its strategic importance in

a war lies largely in its position as an outer defence of Australasia.’ Indeed,

British Malaya provided a bridge between the Western Powers in Asia, between

Anglo -American special relationship and the Commonwealth alliance, and

between the Commonwealth and the non -aligned states.”13

Se era importante para a estratégia global do Ocidente, a participação australiana

na sua defesa decorria desta visão abrangente, da qual não podia alhear -se:

“By participating in the defence of Malaya, Australia showed its interest in the

security not only of South -East Asia but also of the Indian Ocean.”14

J. B. Howse, subsecretário de Estado para os Territórios, defendia que a Austrália

devia ter “um sistema de defesa móvel e empregar as suas reservas antes como ‘task-

-force’ do que espalhá -las por todo o País”, aprendendo as lições do passado, em

várias regiões do mundo. Segundo ele, devia ser aproveitado o “alto conceito

internacional” em que eram tidos o primeiro -ministro Menzies e o ministro dos

11 Idem, ibid., pp. 269 -270.12 Idem, ibid., pp. 271 -273.13 D.K. Basset and V. T. King (Edited), Britain and South -East Asia, Occassional Paper, n.º 13, The University of Hull,

Centre for South -East Asian Studies, 1986, p. 82.14 Gordon Greenwood and Norman Harper (Edited ), ob. cit., p. 275.

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129Negócios Estrangeiros, Casey, que haviam permitido ao Governo contribuir para a

realização do Plano Colombo15, do Pacto ANZUS e da SEATO. O primeiro, pela ajuda

em géneros alimentícios e equipamento técnico que permitia aos Países asiáticos

amigos, tinha criado uma enorme onda de simpatia para com o seu País; o Pacto

ANZUS garantia um auxílio valioso dos Estados Unidos da América e da Nova

Zelândia em caso de ataque; e na SEATO, o Governo ia participar activamente para

fortalecer a segurança da Austrália16.

Por sua vez, o seu conceito de defesa próxima incluía a cadeia de ilhas ao Norte

do País: Timor, as ilhas Aru, Nova Guiné, Nova Irlanda, Nova Bretanha, Salomão

australianas e Salomão britânicas. Por isso, havia que fechar esta porta de entrada na

Austrália:

“[...]. Não temos pretensões sobre o Timor holandês (sic) ou português, nem

sobre as ilhas neerlandesas de Aru nem sobre a Nova Guiné neerlandesa ou

Ocidental, mas estamos interessados de forma vital na sua defesa. [...]. A atitude

da Austrália tem sido sempre bem nítida. Estas ilhas devem ficar nas mãos

daqueles que querem e podem defendê -las.”17

Assim, propunha que se fizesse um pacto com a Holanda e Portugal para

garantir a defesa conjunta destas áreas importantes. Para ele contribuiria

economicamente sobretudo a Austrália, que deveria alargar o seu serviço militar

obrigatório e efectuar também um “acordo qualquer” com a Grã -Bretanha,

mostrando, deste modo aos seus aliados que estava a fazer o devido esforço em

organização defensiva18. Faltava ainda fazer algo para consolidar este anel de

protecção, já que a defesa mais afastada e a do próprio País estavam asseguradas. E

isso implicava a Indonésia, a Holanda e Portugal.

A partir de 1957, a Indonésia, onde os seus dirigentes até então se haviam

mantido bastante ocupados na resolução de problemas internos e com a consolidação

do Estado, fez subir de tom as suas reclamações sobre a Nova Guiné Ocidental,

15 Plano económico de reconstrução da “Ásia pacífica”, dinamizado pelos EUA em 1951.16 Cf. IANTT (Instituto de Arquivos Nacionais Torre do Tombo), AOS (Arquivo de Oliveira Salazar) /CO/UL -27, pt. 1

“Timor. A segurança da Austrália e Ilhas Adjacentes ao Norte (1954)”, Diário de Sessões Parlamentares,

n.º 5, de 17 de Agosto de 1954, pp. 1 -3.17 IANTT, ibid., pt. 1 “Timor. A segurança da Austrália e Ilhas Adjacentes ao Norte (1954)”, Diário de Sessões

Parlamentares, n.º 5, de 17 de Agosto de 1954, p. 4.18 Cf. Idem, ibid., pt. 1 “Timor. A segurança da Austrália e Ilhas Adjacentes ao Norte (1954)”, Diário de Sessões

Parlamentares, n.º 5, de 17 de Agosto de 1954, pp. 4 -8.

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130 admitindo o uso da força para o conseguir. Reclamou também como suas águas

territoriais uma área à volta, entre e junto das várias ilhas que a compunham, de 12

milhas de largura a partir da costa. A Austrália resistiu a uma e outra reivindicação,

apesar de preferir os holandeses como vizinhos na Nova Guiné Ocidental. As diligências

da diplomacia foram no sentido de evitar o uso da força. Assim, até 1962, para os

governantes australianos, a principal preocupação na região era sem dúvida a

Indonésia19.

Na Malaia, apesar de, formalmente, o estado de emergência ter terminado em 1960,

as forças australianas continuaram empenhadas em acções operacionais contra grupos

terroristas, numa “border security area” integradas na Commonwealth Strategic Reserve.

Qual o sentido da continuada participação da Austrália na defesa da Federação

da Malaia, após 1957, agora contra a vizinha Indonésia?

“The Australian viewpoint was that Malaysia was the best solution to the

problem of descolonisation in the area, the best possible arrangement for the

future of the Borneo territories, and would contribute to the stability of the

region. Australia had no formal, public commitment to defend Malaya after

1957, even though its forces continued until 1960 to combat Communist

insurgents there. [...], in September 1963, the treaty was extended to include all

the territories of Malaysia.”20

De facto, o combate ao comunismo e as obrigações decorrentes para com o

Reino Unido justificavam esse prolongado apoio ao longo da primeira metade dos

anos sessenta, enquanto a Indonésia não entrou na era de Suharto, já que, a partir

daí, foi a própria Indonésia a inverter a sua política externa.

Acerca da Nova Guiné Ocidental, o Governo australiano defendia o ponto de

vista de que o Governo holandês detinha ali a soberania e que o povo do território

evidenciava afinidades étnicas com os da Nova Guiné Oriental e não com os

Indonésios. Mas aceitava que esse mesmo território viesse a fazer parte da Indonésia

se o Supremo Tribunal de Justiça assim o decidisse, se os Governos dos Países Baixos

e da Indonésia o acordassem, ou se o povo que o habitava assim o votasse na altura

19 Cf. Gordon Greenwood and Norman Harper (Edited), ob. cit., pp. 279 -280.20 Gordon Greenwood and Norman Harper (Edited), ibid., pp. 287. Veja -se também: AHU (Arquivo Histórico

Ultramarino), MU(Ministério do Ultramar)/GM(Gabinete do Ministro/GNP(Gabinete dos Negócios Políticos)/034 Timor, “Relatórios da Comissão de Defesa Civil”, pt. 1 (1962 -1964), relatório respeitante ao mês de Setembro de 1963, enviado com o ofício n.º 98, secreto, do governador de Timor para o Ministério do Ultramar, Díli, 8 de Outubro de 1963, Anexo A: “Defence of Malasia – Statement by Australian Prime Minister”, pp. 1 -2.

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131da independência ou subsequentemente. Fora destas condições, opunha -se, sobretudo

se fosse utilizada a força para o anexar. A questão foi posteriormente ultrapassada

quando, em 8 de Novembro, na Assembleia Geral da ONU, a Holanda aceitou

transferir a soberania para o povo da Nova Guiné Ocidental, logo que a própria ONU

pudesse assumir ali o controle administrativo, já que a população não estava pronta

para o fazer. Seguiu -se um período de pressão do Governo de Sukarno, nomeadamente

com a formação do Conselho Nacional de Segurança, Mas, em 15 de Agosto de

1962, os dois Países concordaram em transferir a Nova Guiné Ocidental para a

administração indonésia, a partir de 1 de Maio de 196321.

Entretanto, desenvolvia -se a guerra do Vietname, na qual a Austrália, em defesa

dos mesmos interesses, também participava.

Quanto ao seu envolvimento pela Federação da Malásia, após a sua formação

(1963), ao lado da Grã -Bretanha, na confrontação que a Indonésia lhe moveu, a

Austrália, em várias ocasiões, informou este País acerca da sua atitude face à

confrontação e às razões do seu apoio. Mas, aparentemente, com poucos resultados.

Por sua vez, a Indonésia quase sempre omitia referências hostis à presença australiana,

evitando, assim, uma deterioração nas relações bilaterais, para não abrir mais frentes

e para continuar a beneficiar da vasta e diversificada ajuda do “Plano Colombo”.

Havia, portanto, interesse de ambas as partes em não se hostilizarem abertamente.

Enquanto se envolvia directamente em questões como a da Malásia, a Austrália

ia afirmando os seus interesses na Ásia: precisamente através do “Plano Colombo”,

estabeleceu um esquema de cooperação com os Países do Sul e do Sudeste Asiático,

que levou 10.000 jovens asiáticos a estudar na Austrália, justificado como “a

profhylatic against communist infection”. Possibilitou também aos beneficiários

uma experiência directa de vida na tranquila “Austrália branca”. Os australianos

estiveram presentes na Ásia como conselheiros, técnicos, professores, diplomatas e

jornalistas, mas, acima de tudo, como militares. Envolveram -se com os seus vizinhos

em viagens, estudos, arte e literatura, apresentando a Ásia ainda como uma zona de

contestação e perigo que requeria a presença dos seus poderosos amigos. Durante as

décadas de 1950 e 1960, esta necessidade envolvente levou o Governo australiano a

desafiar o perigo comunista, na dinâmica introduzida pela Guerra -Fria, que consistia

em marcar o lado de que se estava. Isso também significou que a Austrália seguiu os

Estados Unidos sempre que este País esteve à frente de qualquer movimentação ou

21 Cf. Gordon Greenwood and Norman Harper (Edited), ob. cit., pp. 280 -286.

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132 barreira, e exerceu toda a sua influência para colocar as forças americanas entre a

China e os Países do Sudeste Asiático22. Por sua vez, para muitos australianos, a

influência americana no País era uma “penalty for a privileged position.” Para o

Governo australiano “it was seen as the price of security, if not of survival.”23

Em todo o sistema de segurança e de defesa australianos, os seus serviços

secretos tiveram um importante papel:

“The Joint Intelligence Bureau was created in 1947. Its basic responsabilities

were not altered substantially during the 20 years of its existence. The JIB was

responsible for collating (but not collecing), evaluating and distributing

intelligence mostly of a strategic, scientific and military nature. The activities of

the JIB were reflected in its organisation structure which, in addition to

administrative and servicing branches, contained six functional branches

dealing with such matters as military geography, economics, transport and

communications and scientific intelligence.

In addition to the JIB, which was within the Department of Defence, four other

departments were also involved in the collation and evaluation of intelligence.

Political intelligence was very largely the domain of the Department of External

Affairs.”24

Após este alargado ainda que sucinto enquadramento, até ao início dos anos

sessenta, interessa agora focar a análise em Timor português, onde, durante estas

duas décadas, haverá a fazer algumas referências que consideramos essenciais.

Ultrapassada a questão da rendição japonesa, houve que proceder à evacuação

dos portugueses refugiados na Austrália. Para tal, foram desenvolvidas diligências,

terminando com o envio de um barco português que, em 27 de Novembro de 1945,

trouxe a maior parte deles de regresso à Metrópole.

O cônsul de Portugal em Sidney, Álvaro Brilhante Laborinho, em nome do

Governo do seu País agradeceu a “generosa hospitalidade”, a “valiosa assistência” e

a “pronta colaboração” recebidas das autoridades australianas25. Refira -se que os

22 Cf. Stuart Macintyre, ob. cit., pp. 207 -209.23 Gordon Greenwood and Norman Harper), ob. cit., pp. 287 -301. 24 F. A. Mediansky, “Defence Reorganisation 1957 -75”, in Australia in Word Affairs 1971 -1975, Sydney -London-

-Boston, George Allen & Unwin et Australian Institute of International Affairs, 1980, p. 47.25 Cf. NAA (National Archives of Austrália), Portuguese Timor, “Evacuees from Portuguese Timor”, A1838,

C550098, SC377/3/3/4, 1945 -1947, ofício n.º 1051, do consulado de Portugal em Sidney para o Ministério dos Negócios Estrangeiros, Sidney, 5 de Dezembro de 1945.

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133termos constantes deste agradecimento estavam em contradição com o tratamento

de “indigentes” a que, ao abrigo do Regulamento Consular, os mesmos consideravam

terem estado sujeitos, o que mereceu um apelo directo do ministro das Colónias,

Marcello Caetano, a Salazar26.

Por outro lado, os governantes australianos empenhavam -se em adquirir uma

posição dominante nos negócios da colónia portuguesa, substituindo a influência

holandesa anterior à guerra e que, tendia de novo a impor -se, principalmente devido

à navegação marítima que retomaram27.

Em princípios de 1946, a abertura do consulado em Díli visava sobretudo

estreitar as relações nos domínios da defesa, do comércio e das comunicações28.

Por sua vez, no mesmo ano, o governador Óscar Freire Vasconcelos Ruas (1945-

-1950), depois de ter recebido o residente holandês de Cupang, referia ao ministro

das Colónias:

“É nítido nos holandeses o sentimento do ciúme para com os australianos a

nosso respeito. Somos neste momento a mulher bonita, cortejada por mais de

um homem. Bom sintoma é para a nossa posição internacional”29.

Em 1945 -1946, a partir da Austrália, as importações da colónia portuguesa não

foram além de 7296 libras australianas, sendo as principais:

Manufacturas de madeira ......................... 1469

Gado para criação .................................... 726

Batatas ...................................................... 420

Carrinhos para transporte de motores ...... 350

Cimento ................................................... 300

Total ......................................................... 3275

26 Cf. Carta de 10 de Maio de 1945, in José Freire Antunes, Salazar e Caetano: Cartas Secretas 1932 -1968, Lisboa, Círculo de Leitores, 1993, p. 159.

27 Idem, ibid., “Australian Policy towards Portuguese Timor”, A1838, C140065, SC377/3/1 part 1, 1945 -1950, apêndice de Apontamento sobre as Relações australianas com Timor Português – 1945 -1946.

28 Idem, ibid., “Establishement of Consulate”, A1838, C248146, SC377/1/1 part 3, 1946, documento do Foreign Affairs para o Acting Treasure, Camberra, 11 de Abril de 1946.

29 IANTT, AMC (Arquivo Marcello Caetano), “4.º Secção – Ministro das Colónias (1944 -1947), Correspondência com o governador de Timor...”, cx. 9, doc. n.º 26, cópia da carta do governador de Timor para o ministro das Colónias, Díli, 27 de Agosto de 1946. p. 8.

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134 Nessa altura, Timor aparecia aos agentes australianos como um forte potencial

em: borracha, café, sisal, copra, algodão, kapok, etc., mas sobretudo de petróleo30.

Nos finais de 1947, as importações eram já em maior número e mais diver-

sificadas (Quadro 1):

Quadro 1

Importações da Austrália1947

Produtos Quantidade

Açúcar 100 caixas

Bacon 300 libras.

Betume (asfalto) 100 tambores

Cimento 300 toneladas

Coberturas p/ telhados 500 rolos

Corned beef 10 caixas

Manteiga 2000 libras

Meias, peúgas e agasalhos de lã 500 libras

Presunto 500 libras

Queijo 1000 libras

Refeições enlatadas várias 20 caixas

Vestuário 500 peças

Fonte: NAA, Portuguese Timor, “Commercial Relations with Australia”, A1838, C550114, SC377/3/5 part 2, 1946 -1949, memorando n.º 147, do consulado australiano em Timor para o Department of External Affairs, Díli, 15 de Novembro de 1947.

No que respeita à aproximação entretanto verificada entre Portugal e Austrália,

merece referência a visita que, em Junho de 1947, o mesmo governador fez àquele

País, como hóspede do Governo.

Para as discussões informais que haveriam de acontecer com o governador

português, e só a esse nível, o Comité de Defesa da Austrália havia elaborado uma

série de tópicos, donde sobressaem os seguintes:

– Timor português era da maior importância para a Austrália, tendo em vista a

possibilidade de se vir ali a estabelecer um potencial agressor, dada a situação

ainda existente no Pacífico, que ameaçaria directamente a defesa do País,

sobretudo se ali fossem construídas bases navais e aéreas;

30 Cf. NAA, Portuguese Timor, “Commercial Relations with Australia”, A1838, C550114, SC377/3/5 part 2, 1946-

-1949.

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135– havia que conseguir facilidades nesses domínios para a Austrália;

– o desenvolvimento de eficientes serviços de transportes civis, marítimos e

aéreos, para fins comerciais, podia ser uma vantagem do ponto de vista da

defesa;

– a exploração de petróleo por australianos poderia representar uma importante

fonte de recursos energéticos próxima, com vantagem sobre os distantes

abastecimentos longínquos de que o País necessitava;

– era aconselhável promover visitas ocasionais de boa vontade a Timor português

para conseguir tais intentos;

– devia ficar de fora de discussão a matéria respeitante a “intelligence”, embora

Timor português estivesse dentro da área operacional da Estação Naval

Australiana e da área coberta pelo Joint Intelligence Committee australiano31.

Por seu turno, quando foi ocupar o seu posto, o governador Óscar Ruas levara

instruções para intensificar as relações entre Timor e o poderoso vizinho do Sul, em

detrimento do intercâmbio que até à guerra existira, a Norte, com as possessões

holandesas. No que respeita às pesquisas petrolíferas, por exemplo, dava -se

preferência ao grupo australiano, pondo de parte as companhias neerlandesas. Mas a

falta de carreiras de navegação e de correntes comerciais levaram a que tudo

continuasse quase como dantes.

Para esta visita, as instruções, dadas ao governador por telegrama, deviam

orientar -se no seguinte sentido:

“Não convém dar -lhes facilidades [de] qualquer ordem tendentes a criar inte-

resses permanentes nessa Colónia, devido [às] pretensões políticas apresentadas

por eles. Portanto concessões agrícolas mineiras e outras [d] este género, e ainda

colaboração política e militar deverão ser dificultadas, embora sem que isso

tenha ar de política premeditada. Deve pois dizer -lhes que [os] assuntos de tal

natureza são tratados aqui. Em compensação pode prometer -lhes toda a espécie

[de] facilidades [em] negócios ocasionais, [por] exemplo [de] importações e

exportações, e tudo que lhe interesse de momento, como fornecimentos para

[a] obra [de] reconstrução. [...]. Recomendo [o] maior cuidado em não tomar

31 Idem, ibid., “Australian Defence Interests”, A1838, C271581, SC377/3/31, 1947 -1951, documento produzido pelo Comité de Defesa Australiano – Discussões Informais com o Governador de Timor Português; e idem, ibid., “Visits to Australia by Governor”, C 550105, SC 377/4/1 part 1, 1946 -1956, documento, secreto, do Department of Defence, Department of Air, Department of Civil Aviation e Post Master General’s Department para o Department of External Affairs, Melbourne, 21 de Maio de 1947.

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136 compromissos, mas não deixando sequer transparecer que tem instruções

[para] criar dificuldades [do] género [das] atrás apontadas. Aparentemente deve

dar -lhes impressão de [existir a] melhor boa vontade sua e nossa.”32

Porém, com esta iniciativa, o governador teve oportunidade de trocar pontos de

vista com as principais autoridades australianas sobre intercâmbio comercial, postal,

aéreo, navegação, etc. A visita foi depois retribuída por uma delegação composta de um

ministro do Governo, acompanhado pelo governador dos Territórios do Norte, um

senador e alguns altos funcionários33. Enquanto não se tornava possível concretizar

algo mais, o governador tentava obter divisas para comprar gasolina e outros produtos

na Austrália, procurando efectuar exportações (copra, coco, etc.) para a área do dólar,

tendo sido abertos créditos para ela a favor do consulado português em Nova York34.

Por sua vez, a Gazette de Lausanne et Journal Suisse (n.º 124 -Jeudi 27 Mai 1948, p. 1),

num artigo sob o título “Timor portugais, îlot latin au coeur de l’Indonésie”,

assinado pelo seu enviado especial à Indonésia, Alain de Prelle, fazia uma apreciação

bem diferente desta visita e, sobretudo, do seu alcance político:

“[...]. Fort au courant des convoitises grandissantes de l’Australie sur ce territoire

startégique, le gouvernment de Lisbonne eut l’habileté de faire solennelment

reconaitre par Américans et Britanniques ses droits sur Timor, au moment où

avaient lieu aux Açores de bases navales et aériennes alliées. [...].

Bien au contraire, l’Australie, qui se montrait si violemment hostile aux

Hollandais en Indonésie, manifestait brusquement les plus grandes sympathies

pour la petite colonie du Portugal. [...].Les Hollandais parlérent d’un pacte

secret inféodant la colonie portugaise au grand continent voisin. A l’appui de

cette affirmation, ils pointérent vers le fait que Timor, qui ne possédait qu’un

aérodrome avant la guerre, n’en compte pas moins de six aujourd’hui, dont un

sera bientôt capable de recevoir les avions transocéaniques ‘Constellation’. Le

voyage vraiment triomphal que vient d’accomplir en Australie le governeur

portugais de Timor est lui aussi sujet à de nombreuses spéculations”35 .

32 IANTT, AOS/CO/UL -10A, pt. 20 “Visita do Governador de Timor à Austrália”, doc. n.º 2, telegrama do ministro das Colónias para o governador de Timor, Lisboa, 7 de Maio de 1947.

33 Cf. AHU, Gabinete do Ministro, sala 2, est. II, prat. 7, maço n.º 180, “Relatório do Governo da Colónia de Timor – 1946/1947”, governador Óscar Freire de Vasconcelos Ruas, pp. 185 -186.

34 Cf. AHDMNE, Timor, 2.º Piso, armário 49, maço 44, processo 34.27, “Relações entre Timor e a Austrália”, Informação da Repartição das Questões Económicas, Lisboa, 29 de Março de 1950.

35 IANTT, AOS/CO/UL -10A, pt. 21 “Notícias sobre Timor”, Anexo ao ofício da ANI – Agência de Notícias e de Informação, Lisboa, 31 de Maio de 1948.

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137Após a visita do governador português de Timor, ficou acordado que o Director

de Navegação tentaria conseguir um serviço marítimo trimestral entre Darwin e Díli,

e que o Departamento de Comércio e Agricultura, e Abastecimento e Navegação iria

apoiar o governador, com a exportação de materiais essenciais para a reabilitação de

Timor. Como a balança comercial era favorável à Austrália, pretendia -se estabelecer

um certo equilíbrio com a importação de café da colónia portuguesa36. Mas tornou-

-se impossível manter um serviço que não tinha retorno suficiente para ser

rentável.

De facto, nos finais de 1948, as importações da Austrália eram as que haviam

sido estabelecidas em 1946, por quotas mensais entre a SAPT (Sociedade Agrícola

Pátria e Trabalho), a maior empresa de Timor, e a Dodson Trading C.o, australiana, com

interesses no território, para as quais era preciso obter as necessárias licenças

(Quadro 2):

Quadro 2

Importações da Austrália1948

Produtos Quantidade

Açúcar branco 10 toneladas

Farinha de 1.º grau 25 toneladas

Leite condensado 3000 libras

Leite em pó 1000 libras

Manteiga 1000 libras

Presunto 500 libras

Queijo 600 libras

Fonte: Idem, ibid., memorando n.º 170, do consulado australiano em Timor para o Department of External Affairs, Díli, 8 de Dezembro de 1948.

Nessa altura, o Governo australiano procedia a uma primeira avaliação do que

tinha custado a sua política em relação a Timor, na implantação do consulado, e em

apoios vários para captar a amizade e a simpatia dos principais responsáveis

portugueses em Timor: cerca de 150.000 libras. Como o interesse estratégico se

mantinha, embora a tentativa de um serviço de navegação regular, e a exportação de

36 Cf. NAA, Portuguese Timor, “Commercial Relations with Australia”, A1838, C550114, SC377/3/5 part 2,

1946 -1949, memorando do Department of External Affairs para o Department of Trade & Customs, Camberra, 30 de

Dezembro de 1947.

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138 produtos timorenses e a exploração de petróleo não estivessem a resultar, era

recomendado ao primeiro -ministro que fossem feitos esforços para conceder os

apoios e os benefícios, de forma equilibrada; manter a carreira de navegação

trimestral e um serviço aéreo quinzenal com Timor; e iniciar conversações com

Lisboa para um acordo, englobando a navegação, as comunicações, a defesa e um

limitado leque comercial37.

Efectivamente, em 1950, o cônsul de Portugal em Sidney dava conhecimento ao

Governo central do desapontamento do executivo australiano, que tinha instalado

um consulado em Díli com o intuito de desenvolver relações comerciais mais

intensas com Timor, investindo capitais e participando na reconstrução; bem como

promover a discussão da segurança do território, estrategicamente muito importante

para a Austrália, a tal ponto que não permitiria que a Indonésia ocupasse Timor

Oriental. A não haver modificações notórias, aquele País ponderava retirar o

consulado, por não estar a cumprir a finalidade para que fora criado38. Mas, na

verdade, o consulado servia essencialmente para enviar informações detalhadas e

permanentes acerca de Timor para o seu Governo e seria mantido enquanto fosse

politicamente sustentável ali permanecer.

Entretanto, uma pretensão australiana de celebrar um tratado, por dez anos, com

vista à aquisição do café, e de organizar plantações do mesmo produto, em Timor,

não foi atendida, por se considerar que, no primeiro caso, era um período demasiado

longo; e, no segundo, porque já não havia terras disponíveis apropriadas para tal.

Deste modo, evitava -se a influência local de um vizinho forte, que se poderia tornar

incómodo39.

No ano seguinte, o então governador da província, César Maria de Serpa Rosa

(1950 -1958), foi convidado a visitar a Austrália. O interesse das autoridades daquele

País centrava -se em efectuar “discussões informais de mútuo interesse dos dois

37 Idem, ibid., “Austalian Policy towards Portuguese Timor”, A1838, C140065, SC377/3/1 part 1, 1945 -1950,

documento do Department of External Affairs para o MNE, s/d.38 Cf. AHDMNE, Timor, 2.º Piso, armário 49, maço 44, processo 34.27, “Relações entre Timor e a Austrália”,

Entrega [de] Aide -Memoire sobre Proposta [de] Cooperação Australiana, telegrama n.º 2, do Consulado

de Portugal em Sidney, de 11 de Março de 1950; e NAA, Portuguese Timor, “Australian Representation –

General”, A1838, C453504, SC377/1/2 part 1, 1945 -1950, documento do Foreign Affairs – Pacific Division

para o ministro, Camberra, 4 de Agosto de 1950.39 Idem, ibid., 2.º Piso, armário 49, maço 44, processo 34,27, “Relações entre Timor e a Austrália”, Parecer da

Repartição das Questões Económicas, Lisboa, 7 de Fevereiro de 1950.

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139Países, com troca de visitas sobre matérias de interesse comum”. Mas, da parte

portuguesa, pretendia -se apenas que a visita tivesse “fundamentalmente natureza de

cortezia e boa vizinhança mas sem excluir o aspecto de informação recíproca sobre

problemas de interesse comum sem negociações nem compromissos.”40 Na verdade,

a estratégia do Governo central português consistia em deixar pendentes as grandes

questões entre os dois Países para futuras negociações ao mais alto nível. Por isso, a

visita do governador apenas permitiu um reforço da amizade e um melhor

conhecimento das partes.

Nesta altura, o Governo português não atribuía significado político importante

ao consulado da Austrália em Díli, não considerava de grande relevância as relações

comerciais existentes e os investimentos que particulares australianos desejavam

fazer em Timor, e não queria alterar os compromissos de defesa, assumidos na nota

britânica de 4 de Setembro de 1943 e no memorando português de 12 de Setembro

de 1945. Receava -se um aumento da influência australiana em Timor e, por isso,

preferia -se a manutenção do statu quo, puro e simples, na expectativa do que se

passava na Indonésia e à sua volta. Em contrapartida, o executivo australiano parecia

ter pressa em definir melhor os contornos de interesses e de vizinhança.

De novo, a correspondência do consulado português em Sidney permite que

acompanhemos o modo como o Governo central ia sendo informado e alertado para

que se dessem passos em determinadas direcções de modo a assegurar o essencial.

Com efeito, no seu relatório respeitante ao ano de 1951, este diplomata

lembrava que, atendendo ao valor político e estratégico de Timor e à cobiça de que

era objecto, a posição portuguesa em Timor poderia reforçar -se, se Portugal, apesar

do País não fazer parte de nenhum dos Pactos então existentes na região, entrasse

“num elo da cadeia de alianças do Pacífico”, de preferência numa organização

técnica, como era, por exemplo, a South Pacific Comission. Tal participação não teria

inconvenientes políticos e inseria -se plenamente nas orientações coloniais

predominantes: desenvolvimento dos povos, e melhoria do seu bem -estar e

explorações dos recursos existentes. Por outro lado, o relacionamento com a Austrália

dependeria da política que Portugal desenvolvesse com aquele País, e da posição que

conseguisse manter perante os Estados Unidos e a Inglaterra. No fundo, era

40 AHU, Gabinete do Ministro, sala 2, est. I, prat. 1, maço n.º 15, telegrama n.º 24, cifrado, do ministro das Colónias

para o governador de Timor, Lisboa, 2 de Abril de 1951.

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140 compreensível que, no mínimo, o Governo australiano tentasse obter ligações que

lhe possibilitassem uma mais eficaz defesa e protecção das zonas costeiras, usufruindo

de bons aeródromos e de um porto acostável, bem como de uma maior presença

comercial. De resto, estar ali a coberto da soberania portuguesa evitaria também

reivindicações e protestos indonésios. No imediato, impunha -se desenvolver as

relações diplomáticas com a Indonésia e estabelecê -las com a Austrália, colocando,

nomeadamente, um ministro em Jacarta e abrindo uma legação portuguesa em

Sidney, de modo a lançar os alicerces funcionais de uma tal política41.

O relatório do cônsul não se detinha por aqui. Continha ainda uma profunda

reflexão acerca dos principais desafios que, do ponto de vista internacional e

regional, se colocavam então à presença portuguesa em Timor. Por um lado, o

território situava -se numa zona mal definida da influência das duas superpotências

– URSS e EUA; por outro lado, a comparação do seu grau de desenvolvimento com

o da Indonésia e da Austrália, embora saídas de colonialismos diferentes, tornava -se

inevitável, sendo desfavorável, em qualquer caso, a Portugal. Deste modo, a

capacidade do País estava de novo à prova, tanto mais que se tratava de uma

colonização marcadamente administrativa, carecendo, por isso, de investir muito na

vertente civilizadora. Impunham -se então o ensino profissional e algumas realizações

materiais, de modo a elevar o nível e a preparação do indígena, aumentando -lhe o

bem -estar42.

Na verdade, a posição melindrosa da presença colonial portuguesa em metade

de uma pequena ilha tão distante da Metrópole, com reduzida força militar e que só

a grande distância e com limitados meios podia ser socorrida desde Macau, quando

à sua volta fervilhava o nacionalismo e se acentuava uma disputa estratégica, tornada

mais clara com os pactos e os acordos entretanto celebrados, causava natural

apreensão, que levava alguns responsáveis mais atentos a apresentar propostas.

Em Abril de 1952, na continuação das que haviam sido feitas nos três anos ime-

diatamente anteriores, o Governo australiano procedia a uma reapreciação política,

relativamente a Timor português. Nela se concluía que, até 1953, a situação permaneceria

inalterável; mas que, em 1957, era provável que o território pudesse já estar incorporado

na República da Indonésia. Na pior hipótese, isso podia significar que toda a ilha de

41 Cf. AHU, Gabinete do Ministro, sala 2, est. I, prat. 1, maço n.º 15, do consulado de Portugal em Sidney,

pp. 19 -30. 42 Idem, ibid., est. I, prat. 1, maço n.º 15, do Consulado de Portugal em Sidney, pp. 31 -43.

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141Timor estivesse sob influência comunista43. Entre 1953 e 1954, o lugar de cônsul

em Díli esteve vago, o que parecia reflectir um tempo de reapreciação do interesse

por Timor após os tratados entretanto celebrados, a que acima nos referimos.

Em 1954, o executivo australiano fazia uma apreciação actualizada do significado

estratégico de Timor português, no seguinte contexto: evolução política na Indonésia,

tendo em consideração principalmente a fronteira comum na ilha de Timor; e as

possíveis consequências políticas e estratégicas da descoberta e exploração de petróleo

no Noroeste da Austrália, e de urânio e de outros minerais naquela região e também

no Norte do País. Interessava ainda rever as conclusões tomadas pelo Comité de Defesa

à luz dos desenvolvimentos gerais internacionais nos últimos seis anos44.

Por sua vez, o Joint Planning Committee concluía que: enquanto a Malaia estivesse

com os Aliados, Timor português era de pequena importância estratégica, quer para

estes quer para os comunistas, embora pudesse revestir -se de valor para a RAAF (Royal

Australian Air Force - Força Aérea Australiana), como um ponto de escala na linha para

Singapura; se a Malaia caísse em mãos comunistas, Timor podia ser de uma grande

importância estratégica para prevenir a defesa à distância do Norte da Austrália, até

porque a sua utilização podia ser impedida por essas forças; havia, por isso, que

manter com Timor português relações favoráveis, desenvolvendo as facilidades

existentes, de modo a poder tirar vantagens disso45.

Terá acuidade fazer aqui referência a uma alusão do consulado australiano em

Timor, ao facto de o embaixador americano em Jacarta, E. R. Johnson, ter ficado

surpreendido com o facto de, em 1954, não haver uma ligação civil, marítima ou

aérea, entre a Austrália e Timor português, por pensar que os interesses da Austrália

passavam por ter um barco a escalar Díli, mesmo que não compensasse

comercialmente46. Parece perceber -se a preocupação com o que se passava a Norte,

na Indochina, e com eventuais repercussões no Pacífico Sul.

43 Cf. NAA, Portuguese Timor, “Top Secret Documents”, A1838, C841420, SCTS 383/7/1, 1957 -1962, Political

Appreciation, J. I. C. Appreciation n.º 6/1949, revised october 1950, revised August 1951, revised April

1952, top secret, Anexo “J” ao Apêndice “A”.44 Idem, ibid., “Strategic Significance”, A1945, C156571, SC248/9/2, 1954 -1966, memorando n.º 47/1/8, do

Department of External Affairs para o Department of Defence, Camberra, 11 de Janeiro de 1954.45 Idem, ibid., “Strategic Significance”, A1945, C156571, SC248/9/2, 1954 -1966, relatório n. º 24, secreto, do

Joint Planning Committee, Melbourne, 27 de Abril de 1954.46 Idem, ibid., “Economic Relations with Australia”, A1838, C564693, SC756/1 part 2, 1954, memorando

n.º 151/54, restrito, do consulado australiano em Timor para o Department of External Affairs, Díli, 24

de Maio de 1954.

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142 Em 1956, da parte portuguesa, sob proposta da Missão Geográfica de Timor, as

autoridades desejavam iniciar com as suas congéneres australianas discussões técnicas

com vista a elaborar um estudo geodésico comum. Mas não chegou a efectuar -se, ao

que parece, por delongas da parte australiana47.

No ano seguinte, após alguns contactos estabelecidos em Díli entre o

subsecretário da Administração Ultramarina português, Joaquim da Silva Cunha,

futuro ministro do Ultramar, e o cônsul australiano, Francis Whittaker, relativamente

à emigração de portugueses para a Austrália, foi comunicado ao representante

português que os seus concidadãos não estavam incluídos no programa de imigração

australiano, estendendo a sua preferência pelos britânicos. Ficava apenas a promessa

de se vir a ter em consideração a pretensão portuguesa, no caso de haver uma

mudança favorável nas circunstâncias em que se processava a selecção de

elementos48.

Por contraste, em 1958, a visita a Fátima de Norman Thomas Gilroy, cardeal

arcebispo de Sidney, à frente de uma peregrinação nacional de católicos australianos,

constituía um momento também de reconhecimento a Salazar e à sua “maneira

magnífica como [...] tem conduzido o País através de tempos agitados”49, como era

referido pelo representante daquele prelado após este ter sido recebido pelo

Presidente do Conselho de Ministros de Portugal. Esta postura não deixava de ser

também um reflexo de uma imagem e de uma maneira de estar, com as quais a

sociedade australiana conseguiu conviver durante décadas.

Entre o final da guerra o ocaso da década de 1950, em termos gerais, a Austrália

orientou a política de defesa nacional de modo a poder garantir a sua segurança de

forma alargada, com pactos e acordos predominantemente regionais. Mas, a partir

de 1957, o principal objectivo era já a “continental defence”, embora mantendo o

nível de poder militar adequado ao envolvimento externo com eventuais adversários

e de forma a respeitar os compromissos com os seus aliados.

47 Idem, ibid., “Austalian Relations with and Policy towards Portuguese Timor”, A1838, C584246, SC3038/10/1

part 1, 1943 -1961, documento n.º 313, do Departmet of National Development para o Department of External Affairs,

Camberra, 10 de Agosto de 1956.48 Idem, ibid., “Austalian Relations with and Policy towards Portuguese Timor”, A1838, C584246, SC3038/10/1

part 1, 1943 -1961, documento dirigido ao cônsul australiano em Timor, “Migration from Portugal to

Australia”, Camberra, 14 de Agosto de 1957.49 Cf. IANTT, AOS/CO/PC -ID, pt. 33 “Pedido de audiência para Norman Thomas Gilroy, Cardeal Arcebispo de

Sydney, Austrália (1958)”.

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143Desde o início da década de 1960 à invasão indonésia A partir de 1960, a política externa

australiana mudou, sobretudo em face da dinâmica que conheceu a descolonização

na África e na própria Ásia, com reflexos na ONU, em cuja Assembleia Geral os novos

Países passaram a ter uma maioria:

“[...]. The decolonization process has affected Australia in two principal ways. In

the first place, the process has had a market effect on international politics at large.

[...]. Australia has faced an additional difficulty in that her regional company

mainly comprises former dependencies, one of the more politically lively of them

her immediate neighbour. This has made difficult the implementation of the

obviously necessary policy of friendly relations with Asia, of rapport between a

white, dependency -administering state and still sensitively nationalistic and at

times aggressively anti -colonial states.

In the second place, the decolonization process has touched territories which

Australia administers, which are adjacent to (indeed, virtually contiguous with) her

metropolitan territory and which have been higly valued by her in security terms.

Australia may have been slow to see herself as a colonial power: [...]. Until recently,

however, there has been little uncertaintly or inconsistency about the Australian view

of the importance of holding control of Papua and New Guinea – the former, and

closer, a colony or, in United Nations Charter terms, a non -self -governing territory

under Australian sovereignty; the other a mandate and now a trust territory.”50

Os contactos da Austrália com Portugal sempre tinham ocorrido nas Nações

Unidas e através do consulado australiano em Timor, raramente pelos consulados

portugueses existentes em algumas cidades australianas. Em 1960, Portugal e a

Austrália acordaram em estabelecer relações diplomáticas directas, ficando a

embaixada portuguesa em Camberra a cargo de um encarregado de negócios, não se

prevendo quando a Austrália enviaria para Lisboa um representante seu.

Agora eram os governantes de Portugal que se apressavam a tentar negociar com

os da Austrália em áreas nas quais nunca haviam aceitado aprofundar a cooperação.

Em Março de 1961, diligenciaram para estabelecer um acordo de defesa, de

modo a constituir -se uma frente comum contra uma eventual usurpação indonésia,

e incluindo a preparação de oficiais e facilidades de treino51.

50 W. J. Hudson, Australia and the Colonial Question at the United Nations, Sydney, Sydney University Press, 1970, pp. 3 -4.51 Cf. NAA, Portuguese Timor, “Austalian Relations with and Policy towards Portuguese Timor”, A1838, C584246,

SC3038/10/1 part 1, 1943 -1961, telegrama n.º 8, confidencial, do consulado australiano em Timor para o Department of External Affairs, Díli, 19 de Março de 1961.

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144 Ao longo deste ano, do lado australiano, várias diligências foram também sendo

feitas de modo a reexaminar a importância militar de Timor português para o seu

País, com particular interesse pelas implicações militares que podia ter a queda do

território sob controle indonésio. Chegou -se à conclusão que a integração de Timor

português na Indonésia não acrescentaria muito à sua capacidade militar, e que isso

podia não representar um perigo efectivo para a Austrália, uma vez que esta dispunha

de várias bases que podia utilizar contra esta posição avançada que, por sua vez,

talvez não compensassse manter, tendo em vista a relação valor/preço52.

Em Janeiro de 1962, o encarregado de negócios português, sob instruções do

seu Governo, solicitou uma definição da Austrália no caso de uma agressão indonésia

contra Timor português. O Departament of External Affairs sugeriu ao seu ministério que

a resposta fosse oral e confidencial, assentando nas seguintes linhas: o Governo

australiano levaria muito a sério uma agressão da Indonésia; nesta hipotética situação,

as etapas a seguir seriam vistas à luz de todas as circunstâncias relevantes quanto tal

acontecesse, pelo que seria de esperar que o Governo apoiasse propostas nas Nações

Unidas de um cessar -fogo para a saída das forças indonésias; e não fornecesse apoio

militar ou logístico, excepto em cumprimento de uma resolução das Nações Unidas

ou em associação com o Reino Unido e os Estados Unidos da América53. Assim,

ficavam bem delimitados os moldes de uma eventual intervenção australiana ante

uma hipotético avanço indonésio sobre Timor português. Por isso, Portugal não podia

contar com um apoio directo no caso de a sua soberania ali ser posta em causa.

Nos finais do ano, o cônsul australiano em Timor, James Stanley Dunn, queixava-

-se ao seu Governo das perseguições de que era alvo por parte da PIDE, ele e o

consulado, enquanto garantia que não tinha contacto com nenhum movimento

separatista e as amizades que mantinha com alguns oficiais portugueses desafectos

ao regime não tinham propósitos conspirativos, assim como não encorajava

sobretudo militares portugueses a emigrar para a Austrália. Era acusado de tudo isto

mas reclamava inocência, solicitando instruções para agir54.

52 Idem, ibid., “Strategic Significance”, A1945, C156571, SC248/9/2, 1954 -1966, doc. n.º 3038/10/1, do

Department of External Affairs para o Department of Defence, Camberra, 21 de Julho de 1961; e documento do Joint

Planning Intelligence Committee, muito secreto, Melbourne, Setembro de 1961.53 Idem, ibid., “Austalian Relations with and Policy towards Portuguese Timor”, A1838, C584248, SC3038/10/1

part 2, 1962 -1963, documento do Department of External Affairs para o ministro, Camberra, 16 de Janeiro de 1962.54 Idem, ibid., “Austalian Representation”, A1838, C 1505957, SC3038/10/6 part 1, 1951 -1971, telegrama n.º 73,

secreto, do consulado australiano em Timor para o Department of External Affairs, Díli, 19 de Dezembro de 1962.

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145Este cônsul merecia muita desconfiança às autoridades cimeiras em Timor e,

principalmente à PIDE, que o considerava senão apologista do comunismo, pelo

menos simpatizante deste regime ou admirador da cultura russa, o que, na altura,

era quase a mesma coisa. De facto, ele tinha servido na URSS e exibia conhecimentos

de língua russa, manifestando admiração por alguns valores desses povos. Também

não escondia a sua antipatia pelo regime vigente em Portugal. Por outro lado, ao

conviver com alguns militares não afectos à situação, dentre os quais o major Pastor

Fernandes, comandante militar, enquanto fazia a apologia do modo de vida

australiano, prestava -se a ser objecto de observação e denúncia. Mas terminou a sua

comissão de serviço em 1964, tendo ali acompanhado um período melindroso. Mais

tarde, durante o domínio indonésio, este diplomata viria a ser um defensor militante

da causa timorense.

A inflexão da Austrália em relação à política colonial portuguesa foi notada pelos

membros da ONU, tendo mesmo passado a integrar a “Comissão dos 24” desse

organismo, encarregada da verificação da administração dos territórios não

autodeterminados. Mas, no que lhe tocava directamente, estava ainda muito reticente

em relação ao futuro da Papua -Nova Guiné Oriental, sob a sua administração. É

também nesse contexto que deve ser apreciada a correspondência trocada entre

Robert Menzies e Oliveira Salazar, nos primeiros anos da década de 1960.

Com efeito, entre 1961 e 1964, verificou -se uma troca de correspondência

entre os “arquiconservadores”, primeiro -ministro da Austrália, Robert Gordon

Menzies, e o Presidente do Conselho de Ministros português, António de Oliveira

Salazar. Dela resultou, basicamente, a rejeição de uma proposta moderada de

concessão de um autogoverno a Timor, feita por Menzies a Salazar.

Vários factores terão contribuído para que o primeiro -ministro australiano

tentasse persuadir Salazar a inflectir a sua obstinada política colonial: o impacto dos

acontecimentos dos primeiros meses de 1961 em Angola sobre a opinião pública

australiana; a tomada de posição dos meios de comunicação social e do Partido

Trabalhista na oposição; e as influências internacionais exercidas sobretudo pela

ONU e pelos EUA para que os Países coloniais efectuassem descolonizações

negociadas55.

55 Cf. Moisés Silva Fernandes, “Timor nas relações luso -australianas: as diligências de Menzies junto de Salazar

para conceder autogoverno a Timor, 1961 -1964”, Oriente, Lisboa, Fundação Oriente, n.º 5, Abril, 2003,

pp. 16 -17.

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146 Na primeira carta, de 18 de Outubro de 1961, o chefe do Governo australiano,

embora não abordando directamente a questão de Timor, exortava Salazar a tomar

uma atitude mais conciliadora em relação à situação em Angola; ao capítulo XI da

Carta da ONU e da resolução de descolonização 1542 (XV) relativamente às colónias

portuguesas, que Portugal se recusava a cumprir; e à complexa situação dos

refugiados angolanos no Congo. Apesar de partilhar o princípio de que a Assembleia

Geral da ONU não devia pronunciar -se sobre os domínios portugueses e reiterasse a

posição australiana de distanciamento em relação ao “Terceiro Mundo”, aconselhava

Salazar a transigir, como o haviam feito as outras potências ocidentais, fornecendo à

ONU informações sobre os territórios ultramarinos portugueses. A resposta de

Salazar ocorreu a 28 de Outubro. O chefe do Governo português não só não cedeu

em nenhuma das questões colocadas por Menzies, como lamentou a alteração de

posição da Austrália para com o seu regime, ao mesmo tempo que tentou justificar

a política colonial seguida, como um caso especial, semelhante a um Estado federado,

propondo ao seu homólogo australiano que enviasse uma delegação do seu País a

Angola, Moçambique ou outra colónia portuguesa para in loco apreciar a situação56.

Efectivamente, a posição oficial da Austrália tinha mudado, pois, ao longo dos

anos 1943 e seguinte, e no imediato pós -guerra, vários documentos atestam a

intenção de libertar Timor das forças japonesas e de ali ajudar a restaurar e manter a

soberania portuguesa57. Ao longo da década de 1950, como temos vindo a referir,

essa posição não se alterara significativamente.

Numa segunda missiva, em 8 de Fevereiro de 1963, em virtude de não lhe ter

agradado a resposta de Salazar, preocupado com a evolução política na Nova Guiné

Ocidental, e com as ambições expansionistas e atitudes belicistas de Sukarno,

relativamente aos Países da região, Menzies propunha já a Salazar uma autodeterminação

para Timor. Reconhecendo embora a diferença de perspectivas, esperava, no entanto,

que viessem a verificar -se aproximações conjuntas; e recordava também a Salazar que

a Austrália era membro da “Comissão dos 24” da ONU, sendo provável que, na

56 Cf. IANTT, AOS/COE, pt. 1 “Austrália (1961 -1964)”, doc. n.º 13, carta do primeiro -ministro australiano, R.

G. Menzies para Oliveira Salazar, Camberra, 18 de Outubro de 1961; e doc. n.º 16, carta de Oliveira Salazar

para o primeiro -ministro australiano, R. G. Menzies , Lisboa, 28 de Outubro de 1961. Veja -se também:

Moisés Silva Fernandes, art. cit., p. 17.57 Veja -se: IANTT, AOS/COE, pt. 1 “Austrália (1961 -1964)”, docs. n.ºs 35 e 36, da embaixada britânica em

Lisboa, de 14 de Setembro de 1943 e de 28 de Novembro de 1944, respectivamente; e n.º 39, telegrama

enviado da embaixada de Portugal em Londres, de 28 de Novembro de 1944.

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147sessão que se aproximava, não apenas as questões relativas às colónias africanas, mas

também o futuro de Timor português, viessem a ser levantados. Ora, o seu País, em

virtude da proximidade geográfica com Timor, e da fronteira terrestre comum entre

Portugal e a Indonésia, via -se compelido a pronunciar -se, prevenindo, assim, Salazar

de que Timor podia tornar -se para Portugal num sério problema político regional e

internacional, a manter -se o estatuto do território sem que as suas populações se

pronunciassem sobre o seu destino, de acordo com as regras internacionais58.

Algumas apreensões de Menzies eram partilhadas por Salazar, que não confiava

muito na posição oficial da Indonésia, e assistia com receio à contestação da política

colonial portuguesa em Jacarta, e às tentativas de infiltração na fronteira oeste de

Timor e no enclave de Oé -Cússi, tendo reforçado o contingente militar no território

desde os princípios da década de 1960. No entanto, a posição de princípio tinha de

se aplicar a todas as possessões portugueses, da qual o próprio Governo se encontrava

prisioneiro, não podendo agir diferentemente em qualquer delas.

A resposta do chefe do Governo português seguiu para a Austrália em 27 de

Fevereiro de 1963. Nela rejeitava o princípio de autodeterminação sugerido,

contestando a sua concessão “a esmo”, por, segundo dizia, não assegurar a liberdade

dos homens; adiantava que a Constituição portuguesa tinha sido plebiscitada, e que

o chefe de Estado e os deputados eram eleitos por todos os Portugueses,

designadamente os das províncias ultramarinas; que o Ocidente se estava a deixar

influenciar pelos blocos comunista e afro -asiático, e que lamentava a colaboração da

Austrália neste domínio; e relativamente à ameaça de paz em Timor, argumentou que

a Austrália não devia preocupar -se com a ordem interna nem com um ataque à

soberania, mas com a maneira como essa soberania se observaria, uma vez que

Timor não podia ser um Estado independente e que nesta matéria só havia duas

hipóteses: continuar a fazer parte de Portugal como província autónoma, que já era,

ou ser anexado pela Indonésia. Ora, como não previa qualquer “domínio ou

condomínio australiano”, por melhores relações que pudessem existir entre a

Austrália e a Indonésia, parecia -lhe mais seguro e mais atento aos interesses

australianos um Timor português do que integrado naquela República. Salazar

invocava ainda o comportamento australiano durante a Segunda Guerra Mundial em

58 Cf. Idem, ibid., pt. 1 “Austrália (1961 -1964)”, doc. n.º 40, carta do primeiro -ministro australiano, R. G.

Menzies para Oliveira Salazar, Camberra, 8 de Fevereiro de 1963. Veja -se também: Moisés Silva Fernandes,

art. cit., pp. 17 -18.

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148 Timor e as declarações de aceitação dos dirigentes indonésios em relação ao estatuto

da colónia, e salientou as relações de amizade entre os cônsules australiano e

indonésio em Díli, aproveitando o ensejo para solicitar informações acerca das

actividades do cônsul australiano James Stanley Dunn59.

Para Salazar, a questão que se colocava era a seguinte: se a o domínio da Austrália

era impossível, se a independência de Timor se revelava inviável e se a soberania

portuguesa parecia ser a única segura para a Austrália, o que pensavam os seus

dirigentes ou podia fazer o seu Governo para manter o statu quo? Para tal, devia

abandonar a ideia de que o povo estava apto a escolher quanto a relações

internacionais e a definir o seu estatuto interno, e de que isso seria a situação mais

favorável à Austrália. Apontava depois o caso de Goa como exemplo a evitar, a cujas

populações também havia sido prometida a autodeterminação60.

Por seu lado, em telegrama de 5 de Maio de 1963, com base num recorte do

jornal australiano “The North Territory News”, de Darwin, que dava grande relevo a

um apelo do Republican Party (Partido Republicano) para que a própria Austrália fizesse

a libertação de Timor, o governador de Timor avançava a seguinte interpretação: “a

Austrália está desenvolvendo mais abertamente uma política de incitamento da

Indonésia para um ataque contra nós para melhor se perceber quais são os verdadeiros

propósitos da Indonésia no futuro próximo”, o que considerava mau para a Austrália,

revelando “medo e insegurança” na sua política externa e “manifesta desorientação”

perante a opinião pública61.

Entre a última carta de Salazar e a resposta de Menzies, em 23 de Maio de 1963,

a que a seguir nos reportamos, o Parlamento australiano aprovou a proposta de lei

do Governo Menzies, que instituiu a House of Assembley (Assembleia Legislativa) para a

Papua -Nova Guiné Oriental. Na sua constituição, procurava -se cooptar um elevado

número de elementos crioulos do território, evitando o aparecimento de um

movimento nacionalista. Mas a natureza conservadora do projecto mereceu críticas

59 Cf. Moisés Silva Fernandes, ibid., pp. 18 -19.60 Cf. IANTT, AOS/COE, pt. 1 “Austrália (1961 -1964)”, doc. n.º 42, carta de Oliveira Salazar para o primeiro-

-ministro australiano, R. G. Menzies, Lisboa, 27 de Fevereiro de 1963. Veja -se também: Moisés Silva

Fernandes, ibid., p. 19.61 Cf. IANTT, AOS/CO/UL -8I, pt. 5 (cont.), “ Governo de Timor”, telegrama do governador de Timor para o

Ministério do Ultramar, Díli, 6 de Maio de 1963. Veja -se também: Idem, AOS/CO/PC -78I, pt. 3 “Mensagens

sobre a situação política em Timor (1961 -1963)”, mensagem n.º 47, secreto, do governador de Timor

para DEFNAC, Díli, 7 de Maio de 1963.

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149do Labour Party (Partido Trabalhista), que defendia mais autonomia para o território,

receando os ataques dos Países do bloco afro -asiático à Austrália62.

Em 15 de Outubro de 1963, Menzies respondeu a Salazar, referindo que a

questão do domínio ou condomínio australiano sobre Timor não se colocava,

clarificando assim um ponto que Salazar tinha sub -repticiamente deixado; quanto à

acusação de falta de solidariedade da Austrália com o mundo ocidental, Menzies

assegurou que o seu País de modo algum colaboraria com forças que estivessem

interessadas na desintegração desse espaço, estando consciente da herança europeia

e que desejava que a Europa pudesse manter os seus interesses. Lembrou a Salazar

que, apesar da Austrália fazer parte da “Comissão dos 24”, nada podia fazer para

manter o statu quo, numa conjuntura internacional claramente adversa. Por fim,

atendendo a que a Rádio Indonésia e um jornal de Hong Kong tinham divulgado a

informação de que o “movimento de libertação de Timor”, a URT (União da

República de Timor), havia solicitado o reconhecimento e o apoio do Governo de

Sukarno, Menzies exortou Salazar a procurar envolver a ONU em Timor. Em resumo,

o chefe do Governo australiano estava apreensivo com as repercussões regionais e

internacionais dos diferentes interesses em presença no território vizinho de

Timor63.

Em 5 de Março de 1964, nova missiva de Salazar tentava rebater os argumentos

de Menzies, retomando as questões: a Carta da ONU e a indevida interferência desta

organização na vida dos povos; a política colonial portuguesa não contrariava aquela

Carta e as normas que regiam a comunidade internacional; o controle dos blocos

comunista e afro -asiático sobre a ONU e o receio do Ocidente em os enfrentar; a

conivência dos Países ocidentais no caso de Goa; o reiterar de que Timor Oriental

não era viável como País independente, de que a Indonésia não aceitaria tal estatuto

e de que de a única alternativa era manter ali o statu quo; uma eventual tutela ou

protecção da ONU de Timor era “ingénua”; o envolvimento da ONU na Nova Guiné

Ocidental não estava a garantir a autodeterminação, mas sim a anexação pela

Indonésia; lamentava a falta de apoio ocidental à política colonial portuguesa,

considerando -a de “resultados catastróficos, para o próprio Ocidente e para as

62 Cf. Moisés Silva Fernandes, art. cit., p. 19.63 Cf. IANTT, AOS/COE, pt. 1 “Austrália (1961 -1964)”, doc. n.º 56, carta do primeiro -ministro australiano, R.G.

Menzies para Oliveira Salazar, Camberra, 15 de Outubro de 1963. Veja -se também: Moisés Silva Fernandes,

ibid., p. 20.

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150 populações em cujo nome se proclamam certos princípios, e cuja defesa e progresso

se diz ter em vista”; o vaticínio de que, uma vez derrubadas as barreiras que a

antecediam numa série de recuos, a própria Austrália poderia ter que defender -se; por

último, a compreensão da dificuldade de a Austrália apoiar abertamente o seu País, mas

pouca compreensão por “certos aspectos menos amistosos da Austrália em relação a

Portugal”, como a campanha na imprensa australiana contra a política colonial

portuguesa, a alegada dificuldade em obter “pequenos serviços de apoio logístico”

para Timor e a ausência de uma missão diplomática australiana em Lisboa64.

Nesta última carta enviada a Menzies havia muitos aspectos que, em 29 de

Fevereiro de 1964, haviam sido avançados por Salazar ao ministro dos Negócios

Estrangeiros americano, George Ball, ao rejeitar a proposta do seu País para uma

solução política negociada para a questão colonial portuguesa. Vingava, assim, a opção

do regime por uma solução militar65. Essa posição já havia sido tomada em 1961, não

só em relação a África, como, coerentemente, a todos os outros domínios coloniais

portugueses.

A perspectiva de Menzies não colidia de todo com a presença portuguesa em

Timor, uma vez que toda a sua governação se tinha caracterizado por posições

conservadoras e ausência de mudanças significativas. O que propunha a Salazar parecia

apenas uma solução moderada que se reflectisse numa maior autonomia para Timor

– um autogoverno –, onde a elite local participasse mais na governação e nos destinos

do território, de modo a conter o expansionismo javanês66. De resto, apresentava uma

perspectiva semelhante àquela que, nesta altura, informava o modelo ensaiado na

Papua Nova Guiné Oriental. Mas foi ela própria evoluindo, a partir de então.

Entretanto, em princípios de Fevereiro de 1963, o Department of External Affairs

australiano enviava um documento às suas embaixadas de Washington, Londres e

Jacarta, bem como a outros departamentos de Estado, no qual realçava que Timor

português só teria viabilidade económica com uma ajuda financeira e técnica do

exterior. Ao mesmo tempo, apresentava a continuada presença portuguesa como uma

crescente estagnação económica, prejudicial sobretudo à população indígena, que

64 Cf. IANTT, AOS/COE, pt. 1 “Austrália (1961 -1964)”, doc. n.º 60, carta de Oliveira Salazar para o primeiro-

-ministro australiano, R. G. Menzies, Lisboa, 5 de Março de 1964. Veja -se também: Moisés Silva Fernandes,

ibid., pp. 21 -22.65 Idem, ibid., p.22.66 Idem, ibid., pp.22 -23.

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151seria propícia ao aparecimento de levantamentos. Contudo, receava -se que um

ataque indonésio provocasse uma reacção portuguesa, criando uma situação de

insurreição em toda a província, com apoios divididos. Segundo se dizia, aos

Timorenses não faltaria vontade de expulsar os Portugueses, carecendo apenas de

uma liderança, o que acabaria por acontecer, contando com a ajuda indonésia67.

Uns dias depois, num “Encontro Especial do Comité dos Negócios Estrangeiros na

Casa do Parlamento”, o ministro dos Negócios Estrangeiros australiano disse que

Timor não tinha importância estratégica para a Austrália; que não lograria futuro como

País independente; e que a melhor solução seria a sua integração na Indonésia, por

meios pacíficos e não em resultado de qualquer acção agressiva. Contudo, reconhecia

que, dada a intransigência do Governo de Salazar, seria difícil encontrar um caminho

para o conseguir, uma vez que todas as iniciativas australianas se revelavam infrutíferas,

apesar de o Governo norte -americano considerar que Portugal marcaria uma posição

importante se conduzisse os Timorenses à autodeterminação68.

Na sequência das iniciativas anteriores, foi constituído um “Grupo de Trabalho

sobre Timor Português”. As deliberações deste grupo deviam ser tomadas em alta

confidencialidade e no prazo máximo de três semanas. Como base de trabalho,

eram -lhe apresentadas três considerações de forma clara: os Portugueses nada fariam

pelos Timorenses; os EUA não apoiariam o colonialismo português; e os indonésios,

se não houvesse quem os impedisse, avançariam contra o território, sendo isso um

sério encorajamento para os elementos irresponsáveis e expansionistas na Indonésia

e constituindo, a longo prazo, uma grande ameaça para os interesses australianos.

Nessa eventualidade, um poder revolucionário e nacionalista, apoiado por armas

russas, constituiria um perigo às portas da Austrália, esperando os EUA e o Reino

Unido que este País tomasse alguma iniciativa para o impedir. Assim, este grupo de

trabalho devia explorar todas as medidas possíveis e analisar os desenvolvimentos

que podiam ser iniciados ou encorajados, de modo a evitar a afectação dos interesses

australianos69.

67 Cf. NAA, Portuguese Timor, “The Future of Portuguese Timor”, A109, C1160284, SC 1974/9010, 1961 -1964,

ofício n.º 2296, do Department of External Affairs para várias embaixadas e departamentos de Estado, Camberra,

5 de Fevereiro de 1963.68 Idem, ibid., “Australian Relations with and Polices towards Portuguese Timor” A1838, C584248,

SC3038/10/1 part 2, 1962 -1963, documento confidencial, Camberra, 18 de Fevereiro de 1963.69 Idem, ibid., “Australian Relations with and Polices towards Portuguese Timor” A1838, C584248,

SC3038/10/1 part 2, 1962 -1963, documento secreto, Camberra, 25 de Fevereiro de 1963.

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152 No entanto, o relatório do grupo de trabalho concluía que o executivo australiano,

depois da saída dos Portugueses, poderia via a dispor de mais tempo do que se pensava

em relação à Indonésia. Este País tornar -se -ia então mais flexível em relação ao futuro

estatuto internacional de Timor. Entretanto, o aparecimento de um movimento

nacionalista interno seria apenas uma questão de tempo e, se constrangido a actuar

contra a administração portuguesa, só podia ater -se ao apoio da Indonésia. O perigo

mais imediato podia ser o surgimento de um movimento de resistência genuína no

interior de Timor, que viesse a ser aniquilado pelo Governo, provocando assim uma

situação volátil, já que muitos dos seus elementos podiam tentar fugir para Timor

Ocidental, pedindo asilo e criando situações delicadas de confrontação70.

A um nível mais alargado, o problema de Timor já havia começado a fazer parte

das Quadripartite Talks (entre delegações dos Estados Unidos da América, Grã -Bretanha,

Austrália e Nova Zelândia), que tiveram lugar nos meses de Fevereiro e Outubro de

1963, em Washington. Aí se discutiu o assunto em duas vertentes:

1 – O que fazer perante uma acção indonésia contra Timor, tendo em conta que

as partes não estavam interessadas em assistir a uma agressão, até pelo perigo que

isso representava para outros territórios (britânicos e australianos, entenda -se),

havendo aqui, perante sinais evidentes de ameaça, que tentar dissuadir a Indonésia,

através de organismos das Nações Unidas , designadamente o “Comité dos 24”, de

modo a ser esta instituição a resolver o futuro de Timor português. A maior

dificuldade estava em que, em tal situação, o Governo de Portugal tentaria persuadir

a Grã -Bretanha e os EUA a apoiar a manutenção do seu regime colonial em Timor,

invocando as facilidades militares concedidas no Ultramar português a estes Países.

2 – Considerar a questão suscitada por Portugal, em 1962, na reunião da NATO,

na cidade de Atenas, uma consulta multilateral ou acção que podia ser decidida em

resultado das conversações de Washington. De facto, nestas conversações, analisaram-

-se as várias questões que se prendiam com o futuro de Timor, na sua complexa

amplitude: o território não tinha viabilidade económica, mas, por outro lado, as

populações nativas não haviam reivindicado uma separação de Portugal; a Indonésia,

mais tarde ou mais cedo, tentaria anexar Timor, com o qual não tinha diferenças

étnicas, mas também não havia um passado histórico comum; e o regime português

70 Idem, ibid.,“The Future of Portuguese Timor”, A109, C1160284, SC 1974/9010, 1961 -1964, relatório do

Grupo de Trabalho do Departament of Officers, Camberra, 4 de Abril de 1963.

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153não estava disposto a entregar um milímetro dos territórios coloniais que

administrava, nem cederia às pressões das Nações Unidas . Ora, o que se afigurava

mais eficaz e vantajoso para os interesses ocidentais era tentar inibir a agressão

indonésia e colocar o futuro do território nas mãos das Nações Unidas. Pesados

todos os prós e contras, tornava -se aconselhável associar Portugal a qualquer acção

multilateral que viesse a envolver o território. Ou seja: a mais ou menos longo prazo,

uma acção da Indonésia sobre Timor parecia inevitável e conduziria à integração; e

o interesse das partes era que houvesse uma transição pacífica do território para a

Indonésia. Para que isso acontecesse, devia envolver -se a ONU desde já e discutir -se

com outros participantes como e quando tal devia ocorrer, uma vez que o assunto

podia ficar para mais tarde, quando a situação de perigo se tornasse mais séria.

Entretanto, havia que persuadir o Governo português a fazer progressos na direcção

de conceder ao território um Governo mais autónomo. Qualquer decisão, quando o

caso se viesse a colocar, devia assegurar aos habitantes de Timor Oriental o direito ao

exercício da autodeterminação71.

Tendo em conta estes desenvolvimentos, parece -nos agora que o futuro de

Timor estava traçado bem antes de 1975 e que só a conjuntura então definida lhe

havia de deparar, a muito custo e a prazo, outro caminho.

Por seu lado, perante a intransigência do executivo português em descolonizar

Timor Oriental, e devido ao conjunto de interesses americanos e ingleses, que

impediam que confrontassem directamente Portugal, tinha sido atribuído um papel

activo de persuasão à Austrália e apontada a ONU como a entidade que, mais tarde

ou mais cedo, haveria de ter uma acção indispensável naquele território.

Entretanto, em 1962, o jornalista australiano Pat Burgess, que visitara Timor

como jornalista desportivo, escrevera depois alguns artigos, que foi publicando no

jornal The Sun, mandados traduzir pela subdelegação da PIDE em Timor. Num deles

“Os ‘diggers’ disseram que voltariam, mas essa esperança diluiu -se”, podia ler -se:

“Se tivéssemos tomado conta de Timor em vez de a restituirmos hoje aos portugueses,

teríamos pelo menos a satisfação de receber a visita de sir Hug Foote e um comité

71 Cf. NA (National Archives – Londres), Portuguese Timor, “FO 371/169908: Indonesian regional ambitions: defence

of Borneo Territories, Malaya and Portuguese Timor (1963”, Quadripartite Talks on Indonesia – Washington

February 1963 – Steering Brief, Brief n.º 1 e Brief n.º 15; e Quadripartite Talks on Indonesia – Washington

October 1963, Brief n.º 10. Veja -se também: “FO371/169801: Political relations with Indonesia: potential

threat to Portuguese Timor”.

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154 das N. U.[Nações Unidas] ao território para nos dizerem o que devemos fazer para

a autodeterminação dos indígenas.”72

Em contraste com a atitude mais crítica do Governo e dos media australianos, o

interesse de alguns sectores australianos por Timor parece ter aumentado com o

retomar dos voos regulares pela Trans Australian Airline (TAA), permitindo -lhes uma

mais fácil comunicação e oferecendo -se -lhes como destino turístico.

Em 1963, no que se refere mais directamente ao possível interesse australiano no

desenvolvimento do território, o próprio cônsul da Austrália em Díli, James Dunn,

sugeria às autoridades portuguesas locais que contactassem o Governo do seu País, com

vista a obterem uma “comparticipação australiana” para esse fim, “pois ele, certamente,

estaria na disposição de o fazer”. Esta diligência chegou a ser interpretada como uma

possibilidade de, a este título, ser feita uma indemnização de guerra a Portugal73.

Todavia, a sugestão prendia -se apenas com a instalação de alguns interesses australianos

em Timor Oriental, no seguimento, aliás, de uma estratégia já antes delineada.

Na primeira semana de Agosto de 1963, o encarregado de negócios de Portugal

em Camberra, Rebello de Andrade, fazia uma visita a Timor, com a finalidade de

estudar as possibilidades de aumentar as trocas comerciais deste território com a

Austrália. No seu relatório, apontava para a necessidade de uma tentativa séria de

penetração do café no mercado australiano, na venda de chapéus e cadeiras de palha,

e de mobiliário de madeira, além do incremento do turismo. Em resposta, o

governador do território fazia saber que a penetração do café estava a ser tentada

através do mercado de Darwin, utilizando a carreira aérea, e do de Sidney, recorrendo

ao navio “Arbiru”. Também as outras sugestões estavam a merecer diligências

urgentes por parte do Governo, de modo a interessar os australianos74. Ou seja: não

havia nada a fazer que não estivesse a ser tentado.

72 IANTT, PIDE/DGS/SC, Timor, “Pastas Organizadas por Províncias Ultramarinas: Timor”, pasta n.º 8972, relatório n.º 31/62, confidencial, da subdelegação da PIDE em Timor para a direcção -geral da PIDE em Lisboa, Lisboa, 17 de Dezembro de 1962, Anexo: “Tradução do artigo do jornalista australiano, Pat Burggess, ‘Os ‘diggers’ disseram que voltariam, mas essa esperança diluiu -se”, The Sun, 26 de Novembro de 1962, p. 5.

73 Cf. AHDMNE, Timor, 2.º Piso, armário P.A.A., maço 809, processo 948,46, “Relações Políticas com a Austrália”, ofício n.º 1608, secreto, do Ministério do Ultramar para o Ministério dos Negócios Estrangeiros, Lisboa, 9 de Março de 1963.

74 Idem, ibid., armário 1, gaveta 2, maço 220, “Visita a Timor do Encarregado de Negócios de Portugal em Camberra, dr. Rebello de Andrade (31/7 a 7/8 de 1963)”, ofício n.º 7194/E -7 -15 -1, confidencial, do Ministério do Ultramar para o Ministério dos Negócios Estrangeiros, Lisboa, 10 de Dezembro de 1963.

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155Efectivamente, sugestões não faltavam. Mais difícil era passar de tentativas

esporádicas ao estabelecimento de circuitos nos mercados australianos e, a montante,

garantir uma produção contínua de qualidade e de prestação de bons serviços, no

que ao turismo e transportes dizia respeito. E, acima de tudo, prevalecia agora a

questão política da soberania portuguesa em Timor.

No Relatório da visita que fez a Timor, em finais de 1964, o subsecretário da

Administração Ultramarina previa que a evolução das relações de Portugal com a

Austrália não ia ser fácil e se prenderia muito com o modo como o conflito da

Malásia de desenvolvesse. Como, em seu entender, o expansionismo indonésio

esbarrava contra a protecção dada pelas tropas da “Reserva Estratégica da Comunidade”

à Malásia, isso fazia da Austrália um potencial adversário da Indonésia. Prevendo

então, que a colisão entre os dois Países era uma questão de tempo e de oportunidade,

achava que o vizinho do Sul deveria orientar a sua política externa no sentido de um

entendimento com Portugal, levando a um reforço da posição deste País em Timor e

lembrando, por exemplo, que o aeroporto de Baucau, em aviões convencionais,

estava a hora e meia de voo de Darwin, que, por sua vez, se encontrava a seis horas

de voo em “jacto” das principais cidades do Sul da Austrália. Aliás, desde a reacção

indonésia à formação da Malásia parecia esboçar -se uma melhoria no relacionamento

com Portugal, verificando -se menor agressividade da imprensa e um maior interesse

pelos recursos turísticos de Timor75. No entanto, a agudização da crise na Malásia

não atingiu as repercussões esperadas, pelo que os receios de confronto directo se

desvaneceram. Agora era Portugal, com receio da Indonésia, a querer estabelecer um

acordo com a Austrália, oferecendo quase tudo.

Em Julho de 1964, o Relatório da Comissão de Defesa Civil de Timor referia que

se estava “processando em crescente intensidade um surto de grande interesse da

Austrália pelo Timor português.” O sinal mais evidente consistia no facto de, nas

últimas semanas, representantes de várias indústrias se terem deslocado a Díli, a fim

de estabelecer contactos para uma aproximação económica entre Timor e a

Austrália76.

75 Cf. IANTT, AOS/CO/UL -58, pt. 2 “Situação em Timor (1965)”, Relatório da Visita do Subsecretário de Estado

da Administração Ultramarina, 1965, pp. 57 -58.76 Cf. AHU, MU/GM/GNP/034 Timor, “Relatórios da Comissão de Defesa Civil”, pt. 2 (1964 -1966), relatório

respeitante ao mês de Julho de 1964, enviado com o ofício n.º 68, secreto, do governador de Timor para

o Ministério do Ultramar, Díli, 18 de Agosto de 1964, p. 7.

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156 Verificava -se, assim, não diremos um entusiasmo, mas um interesse

suficiente, que os poderes políticos locais e os agentes económicos não podiam

deixar de interpretar como de algum optimismo em relação à evolução política

no Timor português. Tudo levava a crer que a Austrália não só o não considerava

como um “caso perdido”, como havia de empenhar -se em que essa evolução

contemplasse os interesses dos seus cidadãos. No entanto, parecia ignorar -se que

a Austrália era um País onde havia eleições livres e a própria posição, em política

externa, além dos interesses a contemplar, dependia também da orientação do

partido ou coligação que o governasse. Mas havia quem compreendesse isso e

estivesse atento, como acontecia com o encarregado de negócios de Portugal em

Camberra.

Em Outubro de 1966, este diplomata enviou ao governador de Timor um

comentário ao texto de declarações sobre a política externa, na parte em que se

referia a Timor português, proferidas em Agosto do mesmo ano pelo Sr Bryant,

membro da ala esquerda do Partido Trabalhista Australiano, na oposição. Tratava-

-se de um ataque à política governamental no Sudeste Asiático:

“Eu gostava de ver o Governo assumir uma atitude de moralidade

internacional baseada na não -violência e na inviolabilidade das fronteiras.

Concordo plenamente com o Governo se introduzir algumas das garantias

da Nações Unidas acerca das fronteiras nacionais. Portugal tem, certamente,

poucos amigos, mas se a Indonésia resolvesse invadir Timor tentando

realizar a ‘libertação’, ou tudo o que possa ser chamado, afirmaria que a

comunidade internacional devia rejeitar aquela acção e actuar a favor do

povo afectado.

Creio que a necessidade internacional mais premente é garantir as fronteiras

dos Países mais pequenos do mundo. Depois, devemos rejeitar a ideia de que

a violência é um direito válido da política nacional. Todos devemos acatar as

decisões internacionais”77.

77 AHU, ibid., “Relatórios da Comissão de Defesa Civil”, cx. 3 (1965 -1967), relatório respeitante ao mês de

Outubro de 1966, enviado com o ofício n.º 86, secreto, do governador de Timor para o Ministério do

Ultramar, Díli, 21 de Novembro de 1964, Anexo B: “Ofício n.º UL -A 2/59, de 1 de Setembro de 1966,

do encarregado dos negócios de Portugal em Camberra para o governador de Timor, comentando o texto

das recentes declarações sobre a política externa, feitas pelo membro trabalhista do Partido Australiano, Sr.

Bryant, em que se refere ao Timor Português”.

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157Porém, o mesmo responsável incluía também a posição oficial do Partido

Trabalhista, aprovada em convenção, respeitante à descolonização, a qual não oferecia

quaisquer dúvidas e incluía Timor Oriental:

“O Partido Trabalhista deseja uma descolonização autêntica dos territórios do

Norte do Bornéu, do Sarawak, do Brunei e do Timor Oriental, mas considera

que a influência australiana seria útil, procurando que tal descolonização se

realizasse de acordo com os princípios da Organização das Nações Unidas.

O Partido Trabalhista pensa que a Austrália devia insistir junto da Comissão do

Pacífico Sul para que promova e organize a descolonização de todos os territórios

do Sul do Pacífico”78.

Embora se tratasse apenas de uma posição de princípio e o partido continuasse

por mais algum tempo na oposição, bem avisadas estavam as autoridades portuguesas

acerca do que mais tarde podiam esperar. Era esse também o sentido da História. No

entanto, vimos a expressão da intransigência de Salazar.

Outra importante vertente a ter em conta prende -se com a evolução do

relacionamento entre a Austrália e a Indonésia pós -Sukarno. Nos primeiros anos da

década de 1970, além da participação na ANZUS e na SEATO, e com a mesma

perspectiva de reforço da segurança regional, a Austrália fez acordos bilaterais de

carácter defensivo, particularmente com a Indonésia.

Neste âmbito, ainda nos finais dos anos sessenta, a ajuda a este País começou

com um apoio de técnicos das Forças Armadas australianas, apoiadas pela RAAF, às

Forças Armadas indonésias na elaboração da carta geográfica de Bornéu. Em 1971,

estas actividades estenderam -se a um grande projecto em Samatra. Mas, o mais

importante contributo neste domínio foi a transferência de 16 aviões de combate

“Sabre”, da RAAF para a Força Aérea indonésia. Dois anos depois, era feita uma

concessão até ao limite de 20 milhões de dólares pelo Governo australiano com vista

à melhoria das forças de vigilância marítima indonésias, incluindo diverso material.

A ajuda incluía também exercícios navais conjuntos, cooperação em pesquisa técnica

e um acordo indonésio para regular as pescas nas águas da Austrália79.

78 Idem, ibid.,“Relatórios da Comissão de Defesa Civil”, cx. 3 (1965 -1967), relatório respeitante ao mês de

Outubro de 1966, enviado com o ofício n.º 86, secreto, do governador de Timor para o Ministério do

Ultramar, Díli, 21 de Novembro de 1964, Anexo E: “Ofício n.º POL -B 2/68, de 1 de Setembro de 1966,

do encarregado dos negócios de Portugal em Camberra para o governador de Timor, comentando as

declarações de oposição (Partido Trabalhista Australiano) sobre Descolonização”.79 Cf. Robert O’Neil, “Defence Policy”, in Australia in Word Affairs 1971 -1975, pp. 20 -21.

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158 O Programa de Cooperação de Defesa com a Indonésia, iniciado em 1972, era

descrito como de “cooperação”, mais do que “ajuda”, abrangendo actividades que

iam para além dos anteriores projectos com este fim. A estratégia do Departamento

de Defesa era sugerir projectos seus e procurar evitar convites de ajuda de defesa, do

tipo “listas de compras”. Mas, na prática, havia “dificuldades consideráveis” para

encontrar áreas sustentáveis de cooperação, nos três ramos das Forças Armadas80.

Os principais objectivos expressos deste programa eram os seguintes:

– demonstrar aos Indonésios um empenhamento sério na cooperação de defesa

conjunta, com um programa prático que, em termos financeiros, não fosse

comparativamente inferior aos esforços despendidos com as forças de defesa

australianas envolvidas na Malásia e em Singapura;

– estreitar a posição de influência na Indonésia, para desenvolver ulteriores

relações de confiança e segredo, de modo a preencher a política regional de

segurança da Austrália;

– desenvolver vantagens mútuas, sustentadas em contratos de trabalho com

as forças armadas indonésias, reconhecendo a importância do seu papel no

tecido administrativo e governamental;

– ajudar a Indonésia a tornar as suas Forças Armadas equipadas a nível razoável,

com o seu desenvolvimento dirigido para um caminho sensível, que evitasse

um desnecessário desvio de recursos e preservasse experiências essenciais;

– providenciar assistência de clara utilização para um ataque externo e não para

o Governo assegurar uma posição contra a oposição interna; e

– apoiar, quanto possível, projectos que tivessem mérito de desenvolvimento

económico e capacidade de defesa da Indonésia81.

Apesar das críticas da ala esquerda do Partido Liberal, o Governo do trabalhista

Gough Whitlam, formado após a vitória nas eleições de 1972, empenhou -se em

tornar o programa de cooperação de defesa com a Indonésia como um modelo para

futuros acordos, no que respeitava a assistência técnica, troca de pontos de vista,

treino e exercícios conjuntos82.

80 Cf. NAA, Portuguese Timor, “Defence: Co -operation with Indonesia”, A1838, C1757323, SC696/2/2/ 1, 1974,

Informação do Foreign Affairs para o ministro, Camberra, 9 de Agosto de 1974.81 Idem, ibid., “Defence: Co -operation with Indonesia”, A1838, C1757323, SC696/2/2/ 1, 1974, Informação

do Foreign Affairs para o ministro, Camberra, 9 de Agosto de 1974.82 Cf. Robert O’Neil, art. cit., p. 21.

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159Esta aproximação de interesses regionais, que visava também atrair mais simpatia

dos Países vizinhos, e um maior afrontamento em relação a situações coloniais,

marcariam uma nova orientação da política externa australiana, conduzida pelos

trabalhistas, e ajudará a compreender melhor a atitude australiana em relação à

invasão de Timor português pela Indonésia.

Entretanto, no dia 13 de Abril de 1969, teve lugar em Timor a cerimónia da

inauguração do memorial levantado como um tributo ao seu povo pela assistência

dada aos militares australianos da Companhia de Comandos que, durante a Segunda

Guerra Mundial, numa guerra de guerrilha, combateu as tropas japonesas em solo

timorense. A iniciativa foi da Associação de Comandos australiana, contou com a

participação financeira do Governo em metade do seu custo, 4000 libras australianas,

e teve a presença do administrador dos Territórios do Norte, em representação do

Governo australiano83. Além destes actos mais solenes, havia verdadeiras “romagens

de saudade” a Timor de antigos comandos australianos que, segundo o metereologista

Manuel Costa Alves, eram bem vistas pelo povo timorense.

Quanto à situação no Timor português, nos finais de 1970, o Ministério dos

Negócios Estrangeiros australiano chegava à conclusão de que: não se previam

desenvolvimentos internos em Timor, que se revelassem significativos do ponto de

vista australiano; o interesse político australiano em Timor seria limitado, quer o seu

novo estatuto decorresse de uma saída voluntária dos Portugueses, quer de uma

administração exterior; não se esperava para breve uma acção indonésia que se

apoderasse de Timor, mas também não era provável que outra qualquer força que o

tentasse pudesse resistir à Indonésia; a longo prazo, o estatuto de Timor seria a

incorporação na Indonésia; o interesse político da Austrália em Timor português

seria mais bem defendido em Portugal, na Indonésia ou noutros Países, do que num

consulado em Díli; os serviços secretos australianos tinham sido devidamente

informados pelo consulado acerca do que verdadeiramente lhes interessava em

Timor: disposição de tropas, instalações militares, estradas, campos de aviação e

enseadas, havendo talvez a limitação de, futuramente, a Austrália não poder prestar

esse serviço aos Estados Unidos; e as relações com Portugal podiam melhorar através

de um embaixador residente em Lisboa. Por tudo isto, não se justificavam os custos

83 Cf. NAA, Portuguese Timor, “Reports on Economic Development”, A1838, C551952, SC756/2 part 1, 1948-

-1975, “Portuguese Overseas Provinces – Relations with Australia”, 1969.

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160 da manutenção do consulado em Díli, aconselhando -se o seu encerramento84. De

facto, em Agosto de 1971, depois de algumas diligências junto das autoridades

portuguesas para acertar as principais questões relacionadas com a cessação de

actividades do seu consulado em Díli, a Austrália, concretizou o que desde algum

tempo se anunciava.

Esta medida política levantava alguns problemas à administração colonial

portuguesa, em virtude do relacionamento existente e da dependência que Timor

registava em alguns domínios. Logo aquando do primeiro anúncio do fecho, a

delegação da PIDE/DGS em Timor comunicou aos seus serviços centrais os seguintes

pontos a ter em atenção, relativamente ao assunto:

– a Austrália era então o País que mais atraía os timorenses, quer para

emigrar quer para fins turísticos, necessitando do respectivo “visto” para ali

entrarem;

– Darwin, cidade ao Norte da Austrália, era local de residência de muitos

timorenses, que para ali haviam partido em busca de uma vida melhor, com

famílias radicadas em Timor, os quais, gostariam de as visitar de vez em

quando;

– Timor, por causa do seu petróleo e dos seus minérios, passara a ser mais

procurado por várias companhias australianas para investimento de capitais,

havendo interesses comuns aos dois Países a acautelar;

– politicamente, um maior afastamento da Austrália implicaria uma indesejável

aproximação da Indonésia, e um prejuízo para os povos da província, que

ficariam mais desprotegidos e afastados do mundo; e

– sugeria -se também que, uma vez que os australianos estavam dispensados

da apresentação de “visto” para entrarem em Portugal metropolitano,

esse acordo fosse tornado extensivo aos portugueses residentes em Timor,

quando se deslocassem à Austrália, designadamente em viagens de turismo

ou de negócios, remediando assim parte dos inconvenientes resultantes do

encerramento do consulado85.

84 Idem, ibid., “Portugal: Foreign Policy”, A1838, C1874207, SC49/2/1/1 part 1, 1959 -1971, documento do

Foreign Affairs para o ministro, confidencial, Camberra, 1 de Dezembro de 1970.85 Cf. IANTT, PIDE/DGS/SC, Timor, “Pastas Organizadas por Províncias Ultramarinas: Timor”, pasta 8978,

relatório n.º 4/71 – G. U., confidencial, da delegação da DGS em Timor para a sede da DGS em Lisboa,

Díli, 30 de Abril de 1971, pp. 8 -10.

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161De facto, por ordem do Governo australiano, deslocou -se depois a Díli o snr.

Lazarus Liveris, director do Departamento de Emigração do Território Norte da

Austrália, para troca de impressões com as autoridades portuguesas e para

apresentação de sugestões sobre o modo de facilitar a ida de portugueses à Austrália,

com dispensa de visto consular. As conversações continuaram depois em Darwin

com o inspector da PIDE/DGS, tendo sido acordado que a documentação dos futuros

emigrantes fosse enviada através da Repartição Provincial da Administração Civil para

o consulado de Portugal em Darwin, através do qual seriam tratados todos os

assuntos com os Serviços de Emigração Australianos naquela cidade, enviando -se a

Timor, quando o número de emigrantes o justificasse, um funcionário categorizado

para apreciar os pedidos e dar -lhes seguimento, servindo -se de médicos portugueses

para os exames necessários.

Precisamente, quanto aos doentes que necessitassem de deslocar -se à Austrália,

foi aceite que, em casos de urgência, os mesmos pudessem ali entrar sem autorização

prévia e sem visto, desde que tal fosse pedido telegraficamente pelo Governo de

Timor, com a garantia de pagamento das respectivas despesas.

No que respeitava aos turistas, segundo o sr. Liveris, continuava a exigir -se que os

mesmos fossem portadores de passaporte válido, certificado internacional de vacinação,

atestado médico, certificado de bom comportamento moral e civil, bilhete de regresso

a Timor ou para continuação de viagem, e o mínimo de cinco dólares australianos ou

moeda equivalente por cada dia que desejassem permanecer na Austrália, admitindo

que o atestado médico e o certificado de bom comportamento fossem válidos por um

ano e pudessem ser utilizados um número ilimitado de vezes86. Apesar das medidas

para mitigar o impacto, o encerramento do consulado australiano em Díli, além do

significado político, veio dificultar imenso o relacionamento entre Timor e o seu

poderoso vizinho do Sul, do qual tanto dependia.

Na Austrália, a partir de 1973, com o Partido Trabalhista no Governo, conju garam-

-se vários factores, que levaram ao fim da “golden age”: Whitlam, confrontado com as

contracções da economia, tinha dobrado o investimento público nos últimos três anos.

Para satisfazer ambições de modernização, efectuou um corte de 25% nos direitos

alfandegários. Por outro lado, com a valorização da moeda, muitos pequenos produtores

86 Idem, ibid., “Pastas Organizadas por Províncias Ultramarinas: Timor”, pasta 8978, relatório n.º 7/71 – G. U.,

confidencial, da delegação da DGS em Timor para a sede da DGS em Lisboa, Díli, 31 de Julho de 1971,

pp. 11 -12.

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162 faliram. Ao mesmo tempo, os preços e os salários tinham subido acima dos 10% no fim

do ano. Veio então o embargo imposto ao Ocidente pelos Países árabes em retaliação

pela guerra do Yom Kippur, no Médio Oriente, provocando o aumento do custo do

petróleo. O impacto directo sobre a Austrália foi limitado, por ter sido possível satisfazer

as suas necessidades energéticas. Porém, os efeitos indirectos foram catastróficos. A

inflação resultante da crise do petróleo trouxe uma onda de choque contra a economia

mundial, que quebrou a rede de comércio e investimento. Nos anos seguintes, as nações

mais industrializadas entraram em “stagflation”, estagnando a produção com alta

inflação. O desemprego atingiu níveis não vistos desde os anos 30. Em 1975, com as

contracções orçamentais, passou de 250.000. Tinha chegado ao fim a “golden age”87.

Entretanto, em 1973, relativamente a Portugal e à sua política colonial, podia

ler -se na própria imprensa australiana:

“A Austrália presentemente tomou uma posição de condenação às violentas

acções de Portugal nas suas possessões distantes da Austrália, mas, encoraja as

relações com o Timor Português, nosso vizinho estrangeiro mais próximo.

Por uma fórmula inexplicável, presumivelmente tomada pelo 1.º Ministro, a

Austrália decidiu que Timor está excluído das resoluções da ONU que impõem

sanções contra os territórios ultramarinos portugueses.

[...].

À parte do transporte de tropas portuguesas à civil para aquela colónia, a Austrália

exporta anualmente para Timor, produtos no valor aproximado de um milhão de

dólares (a importação de Timor cifrou -se em 8 dólares) e encoraja as firmas

australianas para explorarem petróleo e minerais, até ao momento não demonstrou

qualquer desaprovação a uma nova sociedade a ser estabelecida pelas empresas

australianas desde que o partido Trabalhista assumiu o poder.”88

No mesmo periódico, punha -se depois em confronto esta actuação com as

palavras do próprio Gough Whitlam, proferidas dez anos antes, quando estava na

oposição:

“O Timor Oriental tende a tornar -se como anacrónico a qualquer País do

Mundo excepto a Portugal[...]. Não merecemos ser considerados e estimados no

87 Cf. Stuart Macintyre, ob. cit., p. 233.88 IANTT, PIDE/DGS/SC, Timor, “Pastas Organizadas por Províncias Ultramarinas: Timor”, pasta 8979, relatório

n.º 8/73 – G. U., confidencial, da delegação da DGS em Timor para a sede da DGS em Lisboa, Díli, 31 de

Agosto de 1973, Anexo: “O Vizinho Império Moribundo”, The Australian, 13 de Julho de 1973, p. 1.

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163Mundo se continuarmos a apoiar os portugueses. Eles devem ser informados em

termos directos que o nível de vida deve ser rapidamente elevado e concedido

total direito de autodeterminação[...].

Devemos actuar rapidamente através das Nações Unidas para solucionar esse

problema”89.

A ambiguidade da Austrália situava -se no confronto entre os princípios de

autonomia dos povos, em termos gerais, e dos seus interesses locais e regionais, que

envolviam, naturalmente, a Indonésia e Timor Oriental.

Em 18 de Agosto de 1973, para dar corpo à ideia de que defenderia melhor os

seus interesses em Lisboa do que com um consulado em Díli, tendo sobretudo em

vista a questão pendente da área de exploração marítima do petróleo, a que se fará

referência mais abaixo, o Governo australiano colocou o seu primeiro embaixador

residente em Lisboa, K. T. Kelly.

Efectivamente, no que se refere à presença portuguesa em Timor, tendo em

consideração o período que vai desde os primeiros anos da década de 1960 até

1975, no essencial, a posição do Governo australiano era ambígua e até contraditória.

Por um lado, votava favoravelmente as resoluções da ONU que criticavam o

colonialismo português; por outro lado, subsidiava uma ligação vital para a

manutenção da situação colonial vigente e para a deslocação de passageiros, e

apoiava várias companhias comerciais com interesses ali instalados. Por seu turno, a

imprensa australiana, com várias iniciativas, dava a conhecer aos cidadãos do seu País

as belezas naturais do território, enquanto denunciava as dificuldades e o

subdesenvolvimento patentes, que atribuía à administração colonial. Simultaneamente,

a curto ou a médio prazo, preparava a sua opinião pública para uma inevitável

mudança política, tendo em consideração quer as contraditórias declarações dos

dirigentes indonésios quer a acção dos movimentos que, mesmo episodicamente,

emergiam na direcção da autonomia90.

Em Timor Leste: Amanhã em Díli, José Ramos -Horta refere que, quando se deslocou

à Austrália, em Julho de 1974, “a questão de Timor Leste era completamente

desconhecida do público e a sua cobertura na imprensa periódica era nula.” Por sua

89 Idem, ibid., “Pastas Organizadas por Províncias Ultramarinas: Timor”, pasta 8979, relatório n.º 8/73 – G. U.,

confidencial, da delegação da DGS em Timor para a sede da DGS em Lisboa, Díli, 31 de Agosto de 1973,

Anexo: “O Vizinho Império Moribundo”, The Australian, 13 de Julho de 1973, p. 2.90 Veja -se: Geoffrey C. Gunn, Timor Loro Sae: 500 Anos, Macau, Livros do Oriente, 1999, pp. 290 -292.

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164 vez, “Nos círculos do poder em Camberra, duas escolas se confrontavam: a do

Departamento de Negócios Estrangeiros, povoado por burocratas que tinham o

intelecto assestado sobre a Indonésia como a grande parceira da Austrália na região

e isso prevalecia sobre todas as outras considerações. A do Departamento de Defesa

que ainda via Timor Leste como um ‘buffer zone’, zona tampão, base avançada de

defesa da Austrália contra um potencial inimigo ao norte, obviamente a Indonésia.”

Daí, concluir que, “Elementos -chaves do Departamento de Defesa viam assim com

bons olhos um Timor Leste independente.”91

Ainda segundo o mesmo autor, alguma imprensa, com destaque para o jornalista

Peter Hastings, do Sydney Morning Herald, “intimamente ligado à Defesa e aos serviços

de Inteligência australianos, favorecia igualmente um Timor Leste independente.”

Mas, como o próprio reconhece, o limite de tempo e a onda de simpatia criada não

permitiram “virar” a opinião pública australiana para um apoio massivo à causa de

um Timor -Leste independente. Por seu lado, o funcionamento do sistema político,

com prevalência da posição do Governo, e as cumplicidades estabelecidas, ao nível

diplomático, jogavam a favor de Jacarta92.

A ausência de viabilidade económica de um Timor Oriental independente tinha

sido invocada por Salazar em várias circunstâncias e era, provavelmente, a maior

reticência que os Países desenvolvidos colocavam a tal possibilidade política, mesmo

depois do golpe militar de 1974 em Portugal. Num relatório de 27 de Agosto de

1974, James S. Dunn, antigo cônsul australiano em Díli e director do Foreign Affairs

Group, refere esta situação, salvaguardando, no entanto, o aparecimento de um

milagre, que seria o jorrar de petróleo93.

A propósito da posição australiana, o antigo cônsul em Díli advertia que a ela

podia ser simpática a influentes políticos indonésios que preconizavam a incorporação,

podia até ser proveitosa para os interesses australianos na região, mas arriscava -se a

levar a que outras capitais do Sudeste Asiático, designadamente Port Moresby (Papua-

-Nova Guiné Oriental), perdessem o respeito pelo seu País, além de que se podiam

estar a abrir caminhos aos políticos indonésios, com implicações inimigas para a

91 José Ramos -Horta, Timor Leste: Amanhã em Díli, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1994, pp. 141 -142. 92 Cf. Idem, ibid., pp. 142 -143.93 Cf. NA, Portuguese Timor–East Timor, “FCO 15/1956: Political Situation in Portuguese Timor (1974)”, Portuguese

Timor before and after the coup. Options for the future. Documento preparado por J. S. Dunn, do Foreign

Affairs Group -Parliament of Australia, Camberra, 27 de Agosto de 1974, p. 16.

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165segurança regional. Por isso, preconizava que a Austrália se empenhasse numa

cooperação com a Indonésia, com vista a ajudar a construir um novo Estado, se esse

fosse o desejo claro da população. Também a reabertura do consulado em Díli deveria

ser feita rapidamente, de modo a facultar informação segura e atempada ao Governo.

A Austrália devia ainda ajudar, com vários tipos de assistência, Portugal, e as forças

políticas emergentes em Timor e o próprio povo94. Mas não foi esse o caminho

seguido pelo seu Governo.

Em Setembro de 1974, em Jogyacarta (Java -Indonésia), num encontro, para o

efeito realizado, o futuro de Timor foi discutido entre o primeiro -ministro

australiano, Gough Whitlam, e o Presidente indonésio, Mohammed Suharto. Whitlam

assegurava a Suharto que se mostrava muito confiante, uma vez que, desde 1972, as

suas medidas tomadas em matéria de política externa tinham sido bem aceites pelo

seu partido – o partido do Governo –, pelo que seria importante ouvir o Presidente

indonésio acerca do evoluir dos acontecimentos em Timor. Para ele, havia duas coisas

fundamentais: não se opunha à integração de Timor português na Indonésia; e isso

devia acontecer de acordo com a escolha expressa do povo timorense. Por isso,

assegurava que a Austrália não procurava ter com aquele território nenhuma relação

especial, dada a diferença que os caracterizava a todos os níveis. Reiterava também a

ideia dominante de que Timor era demasiado pequeno para ser independente e

economicamente inviável. Referia ainda que, para a opinião interna do seu País, a

incorporação na Indonésia se apresentava como um processo natural, brotando dos

desejos do povo.

Por sua vez, Suharto considerava que a Timor se apresentavam duas alternativas:

a independência ou a incorporação noutro País. Quanto à primeira, não lhe

reconhecia viabilidade económica, pelo que, se tal acontecesse, necessitaria da ajuda

externa, por motivos meramente políticos. Nesta situação, um eventual aproveitamento

da URSS e da China provocaria a intervenção de outra grande potência, o que

constituiria “um espinho no olho da Austrália e um espinho nas costas da Indonésia”.

A aceitação do princípio de autodeterminação, que a Indonésia reconhecia ao povo

de Timor português, podia resultar na independência, com os problemas referidos.

Por sua vez, a escolha pela incorporação na Indonésia não podia fazer -se como um

estado separado, mas como uma região autónoma ou daerha, como o distrito especial

94 Idem, ibid., p. 24.

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166 de Jogyacarta, uma vez que a República não era uma federação. Terminou desejando

que a incorporação ocorresse segundo os desejos do povo timorense e no melhor

interesse da região, da Indonésia e da Austrália95.

Assim o primeiro -ministro Whitlam fazia saber a Suharto que o Governo

australiano favorecia uma eventual integração de Timor português na Indonésia,

contanto que este fosse o caminho que satisfizesse a opinião internacional e os

interesses da estabilidade regional. No entanto, a reacção da opinião pública fez com

que a política australiana fosse sobretudo na direcção do reconhecimento do povo

daquele território à autodeterminação, pelo que, em finais de 1974, a orientação

política ia já no sentido de integração na Indonésia, desde que isso expressasse o desejo

dos Timorenses e se encontrasse na linha que satisfazia a opinião internacional96.

Na sequência do encontro de Jogyacarta, de 3 a 5 de Abril de 1975, na cidade

australiana de Queenslândia, Townsville, o Presidente indonésio Suharto e o primeiro-

-ministro australiano Whitlam estiveram reunidos mais uma vez para discutir o futuro

de Timor. Suharto reafirmou que a Indonésia não tinha “ambições expansionistas e que

favorecia um processo de autodeterminação para os Timorenses Portugueses”. Mas,

dois meses antes, o jornal indonésio “The New Standard”, controlado pelo conselheiro

do Presidente Suharto em Segurança, general Ali Murtopo, publicara artigos onde se

afirmava que “Timor não se pode tornar independente por não dispor de recursos

naturais e porque um Timor independente seria permeável à penetração comunista

afectando a estabilidade regional”. Como refere J. Chris Chrystello, em Abril, as

preocupações de segurança regional tinham passado do “vermelho” ao “amarelo”97.

De facto, a evolução política no território e a pressão de alguma opinião pública

australiana aconselhavam algumas cautelas em relação à abertura manifestada

anteriormente pela Austrália à Indonésia. Assim, o ministro dos Negócios Estrangeiros

recomendava ao primeiro -ministro: manter um diálogo com os Indonésios, de

modo a tentar afastá -los de uma medida avançada e assegurar que os desenvolvimentos

não se tornassem um obstáculo às boas relações entre os dois Países; tentar explicar

aos líderes timorenses que a Austrália respeitaria os desejos do seu povo num

95 Cf. NAA, Portuguese Timor, “The Future of Portuguese Timor, Policy”, A1209, C4151579, SC1974/7573, 1974-

-1975, Extract of Meeting between the Prime Minister and President Soeharto, Jogyakarta, 6 de Setembro de 1974.96 Cf. NA, Portuguese Timor - East Timor, “FCO 15/1956: Political situation in Portuguese Timor (1974”, ofício n.º 3/28,

da British High Commission para a embaixada australiana em Lisboa, Camberra, 5 de Novembro de 1974. 97 Cf. J. Chris Chrystello, Timor -Leste: 1973 -1975, o Dossier Secreto, Matosinhos, Contemporânea Editora, 1999,

pp. 91 -92.

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167genuíno acto de autodeterminação, mas que eles deviam ter cuidado com actos que

corressem o risco de os colocar nas mãos da Indonésia; que não devia abrir um

consulado em Díli; e que a eventual ajuda a prestar seria sob uma forma que

envolvesse também Portugal e a Indonésia, mas que, chegado o momento, a iniciativa

devia ficar apenas com estes dois Países98. A Austrália devia tentar sobretudo não se

comprometer directamente.

Não era nessa direcção que apontavam algumas organizações da sociedade civil

australiana, que tomavam posições dignas de registo, como, por exemplo, o ACFOA –

Australian Council for Overseas AID (Câmara Australiana de Assistência ao Ultramar) – que,

em finais de Agosto de 1975, na sua reunião anual, tomou uma série de posições

relativamente ao que se passava em Timor, tentando envolver o Governo australiano

num outro sentido:

– expressando a sua consternação pelo conflito que já ocorria em Timor, exigia

do Governo australiano que mostrasse uma conduta humanitária e ajudasse,

o mais rápido possível, a construir uma resolução justa;

– apelava ainda ao executivo australiano para: expressar o seu apoio ao princípio

de independência da escolha do povo timorense e opor -se a uma intervenção

externa que viesse influenciar o futuro estatuto do território; oferecer todas

as facilidades disponíveis para acabar o presente conflito; restabelecer o

consulado em Díli; e promover o desenvolvimento da assistência em Timor-

-Leste, onde já havia carência de bens essenciais, sobretudo na região de

Maubisse, de modo a restaurar a normalidade99.

Mas, nessa altura, a dinâmica dos acontecimentos no território ultrapassava

todas as previsões e já dificultava qualquer execução concertada.

Com efeito, numa carta do embaixador australiano em Jacarta, datada de 4 de

Outubro de 1975, Richard Alexandre Woolcott, dirigida ao Departament of External

Affairs, mas com carácter pessoal, encontramos exposto o que podíamos considerar

o pragmatismo dos interesses:

– o âmago do problema de Timor português para a Austrália devia inserir -se no

futuro relacionamento com a Indonésia e com o Sudeste da Ásia como um

todo;

98 Cf. NAA, Portuguese Timor, “The Future of Portuguese Timor, Policy”, A1209, C4151579, SC1974/7573, 1974--1975, documento do Foreign Affairs para o primeiro -ministro, s/d.

99 Idem, ibid., “Australian Aid to Portuguese Timor”, A1838, C150600, SC3038/10/15 part 1, 1975 -1976, documento do ACFOA para o Foreign Affairs, Camberra, 16 de Setembro de 1975.

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168 – reconhecia que a situação era complexa, verificando -se um conflito entre o

princípio de autodeterminação consagrado na Carta das Nações Unidas e a incor-

poração na Indonésia, considerada pelos Países da região como a melhor saída

da colonização para Timor Oriental;

– este choque entre princípios e interesses (nacional e regional), por um

lado; contemplava também, por outro lado, a vontade de alguns dirigentes

indonésios, nomeadamente o Presidente, de que a incorporação resultasse de

um processo preparado com tempo suficiente para levar as forças políticas

genuínas de Timor -Leste a emergir;

– a posição australiana devia orientar -se sobretudo pelo interesse nacional e não

via como Timor independente podia interessar à Austrália;

– a longo prazo, o relacionamento da Austrália com a Indonésia situar -se -ia ao

nível dos mais importantes na política internacional, designadamente com o

Japão, EUA e possivelmente a China;

– a Austrália não devia opor -se ao que a Indonésia, apoiada por outros Países da

região, via como o seu interesse de segurança nacional;

– a autodeterminação era um princípio que a Austrália devia continuar a

enfatizar, mas não havia condições para um acto genuíno dessa natureza,

sendo um facto “de que podemos não gostar, mas ao qual temos que nos

habituar”, porque nem a incorporação na Indonésia nem um Governo da

FRETILIN, estabelecidos pela força, o constituíam;

– ao colocar o território perante esta alternativa, era Portugal que tinha falhado

e não a Indonésia;

– por mais que isso envolvesse contradição de princípios, os interesses da Aus-

trália eram mais bem servidos com a incorporação de Timor Oriental na

Indonésia do que como um País independente; e

– como mediador, a Austrália devia resistir à tentativa de manipulação indonésia

no seu próprio interesse, e à eventual tentação de substituir Portugal na sua

incapacidade ou desinteresse, sendo o não envolvimento a atitude acon-

selhável100. A intenção deste diplomata parecia ser sobretudo a de persuadir

o ministro Peacock a modificar a sua posição pró -independência de Timor-

-Leste, aconselhando o não -envolvimento do País.

100 Idem, ibid., “Richard Alexander Woolcoot, Personal Letters”, A11.443, C4151643, SC6, 1975 -1977,

documento da embaixada australiana em Jacarta para o Department of External Affairs, Jacarta, 4 de Outubro

de 1975.

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169Mas, em 31 do mesmo mês, o Governo australiano fazia saber que estava

interessado em contribuir para a resolução pacífica do problema de Timor, de modo

a que o povo pudesse exercer o seu direito à autodeterminação, oferecendo o seu

território para conversações, enquanto responsabilizava os “imaturos aspirantes a

líderes políticos” dos partidos formados pelo clima de guerra civil instaurado, e

Portugal, pela deterioração a que a situação chegara desde o golpe da UDT (11 de

Agosto de 1975). Ao mesmo tempo que dizia compreender a apreensão da Indonésia,

referia ter insistido para que este País perseguisse os seus interesses por via

diplomática e esclarecido que se opunha ao uso da força. Numa séria advertência à

FRETIILIN, referia também que estava fora de questão a aceitação de um partido

como único representante de Timor Oriental101.

Nesta conformidade, a Austrália não reconheceu a declaração unilateral de

independência feita pela FRETILIN em 28 de Novembro de 1975, que os outros

partidos também não aceitaram, insistindo na responsabilização de Portugal, País

detentor da soberania102.

Com a formação de um novo Governo, presidido por Malcom Frazer à frente de

uma coligação liberal -conservadora, e à luz dos mais recentes desenvolvimentos em

Timor e dos procedimentos das Nações Unidas, a Austrália procedia a uma revisão

da sua política relativamente a Timor -Leste. Com efeito, as duas questões equacionadas

eram as seguintes: a Austrália aceita a incorporação de Timor português na Indonésia?,

e como pretende envolver -se nesse problema? Em 22 de Dezembro de 1975, o

secretário do Department of External Affairs recomendava ao ministro:

– a Austrália devia aceitar a incorporação de Timor Oriental na Indonésia para

que em breve parecesse um acto consumado;

– o País não deveria resistir a esta tendência, antes devia aceitá -la como a que

constituía no momento a melhor solução;

– havia, no entanto, que ter em conta uma sensibilidade regional para um

eventual envenenamento das relações entre a Indonésia e a Austrália;

– embora contra as presentes indicações, se os Indonésios fossem incapazes

de assegurar o controle de Timor Oriental, o Governo australiano devia estar

101 Cf. NA, Portuguese Timor -East Timor, “FCO15/1706: Political Situation in East Timor; including death of

journalists at Balibo (1975)”, ofício n.º M73, do Department of Foreign Affairs para o Foreign Office, Camberra,

31 de Outubro de 1975. 102 Idem, ibid., “FCO15/1707: Political Situation in East Timor; including death of journalists at Balibo (1975)”,

ofício n.º M81, do Department of Foreign Affairs para o Foreign Office, Camberra, 29 de Novembro de 1975.

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170 preparado para rever as suas políticas com vista a persuadi -los a aceitar algo

entre a incorporação e um mais genuíno processo de autodeterminação;

– a Austrália devia permanecer como tinha estado, evitando tornar -se uma parte

principal do problema;

– se a opinião regional e internacional aumentasse a pressão, a Austrália podia

ter de envolver -se no solo de Timor, não mais do que desejava, e excluir o

emprego das suas forças armadas;

– a Austrália devia continuar a apoiar publicamente a necessidade de um

processo de autodeterminação em Timor e ainda que não achasse que ele

pudesse ser genuíno, devia encorajar a Indonésia nesse sentido;

– era necessário continuar a explicar aos Indonésios as dificuldades internas

que se deparavam ao Governo australiano, devendo continuar a preveni -los

de que aceitavam os seus objectivos básicos da integração, mas necessitavam

de criticar publicamente os métodos utilizados; e

– nas Nações Unidas, a Austrália não devia desempenhar o papel de apologista

da actuação da Indonésia, ao mesmo tempo que revelaria entendimento pela

sua especial posição, não estando na linha da frente dos seus críticos103.

Esta posição de princípio, já após a invasão indonésia, deixava caminho aberto

para um posterior reconhecimento, em 1978.

Entretanto, a situação humanitária em Timor Oriental havia -se deteriorado

fortemente. Com vista a manter em estado satisfatório de nutrição a população civil

e assistir aos refugiados no Timor indonésio, a Cruz Vermelha Australiana enviara

10.000 dólares para o ICRC – International Committee of the Red Cross (Comité Internacional

da Cruz Vermelha), sendo metade para um programa de assistência para cerca de

40.000 refugiados na metade ocidental da ilha, com um custo total estimado em

300.000 dólares para dois meses, em colaboração do ICRC com a Cruz Vermelha

Indonésia. A ajuda incluía ainda 100 toneladas de arroz e 50 toneladas de farinha, a

arranjar para distribuir nas semanas seguintes104.

103 Cf. NAA, Portuguese Timor, “Submissions to Ministers and Briefs on Portuguese Timor”, A1838, C1505915,

SC3038/10/1/2 part 3, 1975 -1976, documento, secreto, do Department of External Affairs para o ministro,

Camberra, 22 de Dezembro de 1975.104 Idem, ibid., “Australian Aid to Portuguese Timor”, A1838, C150600, SC3038/10/15 part 1, 1975 -1976,

telegrama n.º 1240, do Department of External Affairs para o primeiro -ministro australiano e outras entidades,

Camberra, 28 de Outubro de 1975, enviando o texto de uma conferência de imprensa dada pela Australian

Red Cross Society, em 22 de Outubro de 1975.

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171Após a invasão indonésia, a Cruz Vermelha Australiana foi forçada a sair de Timor

Oriental. Em princípios de 1976, enviou 3000 libras australianas à sua congénere

indonésia para apoiar ali o seu trabalho, depois de, anteriormente, haver fornecido

uma quantidade de leite para ser distribuído pelos refugiados no Timor Ocidental.

Também a Cruz Vermelha Internacional teve que retirar, não tendo depois resultado

a pressão da Cruz Vermelha Australiana para que aquela voltasse ao território, de

modo a poder exercer as suas tarefas específicas conforme a Convenção de Genebra105.

De facto, os militares indonésios não queriam observadores no terreno e isso

sobrepôs -se às normas internacionais.

No imediato, a acção indonésia sobre Timor Oriental foi referida também por

Camberra como um objectivo de restabelecer a lei e a ordem que Portugal não tinha

sido capaz de preservar, considerando -o louvável, mas cujo uso da força era matéria

a acordar e a regular agora. Defendia também o Governo que devia tentar -se um

cessar -fogo e proporcionar uma oportunidade para que o Conselho de Segurança

tomasse deliberações de modo a garantir que tivesse lugar um acto de autodeterminação,

observado pela ONU e ao qual se esperava que a Indonésia respondesse

positivamente106. Para o Governo australiano, o acto estava consumado. Havia que

tentar minimizar -lhe os efeitos e procurar que a ONU viesse a empreender um

processo que lhe desse legitimidade. Perante as circunstâncias, parecia resignado e

tentava encontrar justificações para o pragmatismo que se ajustava aos seus interesses,

como acontecera em várias ocasiões anteriores.

Diferente foi a reacção de algumas organizações da sociedade civil australiana

perante a brutalidade usada pelos chamados “voluntários” indonésios sobre Timor:

No seu encontro de 17 de Dezembro de 1975, o ACFOA voltou à liça e apelou

ao Governo australiano para:

– se opor “à interferência externa destinada a influenciar o futuro estatuto de

Timor português” e ao uso da força;

– como organização humanitária, vendo -se impedido de prestar assistência

ao povo de Timor -Leste, solicitava também ao Governo australiano para que

tomasse as maiores iniciativas no que concernia: à ajuda ao estabelecimento

105 Idem, ibid., “Australian Aid to Portuguese Timor”, A1838, C 150600, SC 3038/10/15 part 1, 1975 -1976,

documento n.º 52, da Australian Red Cross Society, Camberra, 19 de Janeiro de 1976.106 Cf. NA, Portuguese Timor -East Timor, “FCO15/1707: Political Situation in East Timor; including death of

journalists at Balibo (1975)”, telegrama n.º 236, imediato, da Missão do Reino Unido em Nova York para

o Foreign Office, Nova York, 8 de Dezembro de 1975.

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172 de uma zona neutra para refugiados e para distribuição no território; ao apelo

a todas as partes no conflito para que observassem a Convenção de Genebra;

à insistência para que a Cruz Vermelha Internacional pudesse seguir para

Timor imediatamente, a fim de poder prestar ajuda humanitária e fazer o seu

trabalho médico; e à oferta de facilidades aos refugiados para que pudessem

deslocar -se para a Austrália e ali serem acomodados;

– reconhecendo o impedimento ao programa de ajuda a Timor -Leste, o Governo

devia então suspender a entrega de duas aeronaves e toda a ajuda militar à

Indonésia até que ela cessasse a presente intervenção; e

– recomendava ainda ao Governo australiano para que desse o seu apoio ao

esboço de resolução do 4.º Comité das Nações Unidas e ainda mais fortemente

à acção das Nações Unidas, que solicitava a saída dos agressores e visava garantir

o princípio de independência de escolha ao povo de Timor português107.

Por sua vez, numa conferência de imprensa sobre a situação em Timor, dois

bispos australianos, J. Gleeson, the Chairman of Australian Catholic Relief e R. Mulkearns, the

Chairmain of the National Commission for Justice and Peace, apelaram a todo o povo da Austrália

e particularmente aos católicos para: rezarem para que o combate terminasse

rapidamente e não viesse a ocorrer uma guerra de guerrilha; apoiarem programas de

ajuda humanitária que esperavam poder continuar para que as vítimas daquela triste

situação não fossem forçadas a sofrer ainda mais; e oferecerem imediata hospitalidade

e socorro aos refugiados que solicitassem asilo e assistência na Austrália. A todos os

líderes políticos australianos apelavam para trabalhar no sentido de: uma acção

urgente das Nações Unidas que pusesse fim ao combate; uma rápida determinação

das Nações Unidas que facultasse a expressão dos desejos do povo de Timor -Leste,

livre de pressão ou interferência de forças externas; um efectivo programa de

refugiados por parte da Austrália; e um programa de ajuda humanitária108.

A convergência de pontos de vista no sentido de repúdio da acção violenta da

Indonésia, de empenhamento do Governo da Austrália junto da ONU, no próprio terreno

e na ajuda directa, bem como da sociedade australiana, evidencia uma visão muito

completa da situação e das implicações que o drama vivido pelas populações de Timor

havia de repercutir. Mas, os interesses políticos ofuscavam esta visão abrangente.

107 Idem, ibid., “FCO15/1708: Political Situation in East Timor; including death of journalists at Balibo (1975)”, Anexo: “Press Release: Aid to Timor”.

108 Idem, ibid., “FCO15/1708: Political Situation in East Timor; including death of journalists at Balibo (1975)”, Anexo: “Press Release: Statement on Timor”.

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173Com a retirada portuguesa, em 1975, ficava ainda pendente a questão da

plataforma petrolífera entre a Austrália e Timor.

O processo das negociações entre Portugal e a Austrália para a definição da

fronteira marítima de Timor, iniciado no longínquo ano de 1953 e que viria a

envolver mais tarde também a Indonésia, para o estabelecimento de uma linha de

demarcação comum, foi interrompido com a invasão do território por este País,

deixando para trás a questão conhecida por Timor Gap, com repercussões no apoio da

Austrália à anexação.

Com efeito, em 1971, a Austrália mostrara -se relutante em assinar um acordo

de fronteira marítima com Portugal, enquanto esta não tivesse sido definida com a

Indonésia. Nos dois anos seguintes, foi o Governo português que manifestou

interesse em diferir as negociações até depois da Lei da Conferência sobre o Mar,

prevista para a Conferência Internacional sobre Direitos Marítimos, a realizar em

Junho de 1974, em Caracas (Venezuela), onde se esperava que viesse a ser claramente

definida a regra da mediana, que o Governo português contrapunha à da plataforma

continental, preconizada pelo seu homólogo australiano.

Entretanto, em Janeiro deste ano, o Governo português autorizara o seu ministro

do Ultramar a assinar um acordo com a companhia americana Oceanic Exploration

Company, de Denver, à qual veio a conceder direitos de exploração de petróleo e

outros minerais, numa área submarina de cerca de 60.000 quilómetros quadrados.

Nos termos da concessão, a companhia devia sediar -se em território português

entre 60 dias após a assinatura do contrato. O seu capital inicial teria de ser de 1,5

milhões de escudos, e o Governo de Timor devia deter 20% das acções. A companhia

podia ter que recorrer a financiamento português ou estrangeiro, por empréstimos ou

títulos emitidos, podendo também, com a autorização do ministro do Ultramar, ser

associada a outras afins numa joint venture. Depois do período inicial de prospecção, a

concessão podia ser estendida por mais dois anos se a companhia pagasse, por ano, um

aluguer da superfície de 60$00 por quilómetro quadrados, sendo para cada extensão

posterior, pago, anualmente, a importância de 80$00 por quilómetro quadrado109.

Parte desta área no Mar de Timor era reclamada pela Austrália, como estando

dentro da sua jurisdição. Além do mais, segundo a versão australiana, a área cruzava-

-se com sete concessões garantidas ou renovadas a várias companhias de exploração

nacionais, entre 1963 e 1969. Além da desconfiança política, a essência da disputa

109 Idem, ibid.,

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174 situava -se no seguinte: enquanto a Austrália defendia que havia duas plataformas

continentais distintas nessa área, separadas pela “Baixa de Timor”, que se situa a

cerca de sessenta milhas a Sul daquele território e a trezentas milhas a Norte da

Austrália; Portugal sustentava a tese de que havia apenas uma plataforma continental

e que a linha média devia ser traçada entre a costa australiana e a de Timor. Em 25

de Março de 1974, perante a atitude portuguesa, o Governo australiano apresentou

um protesto oral através do embaixador de Portugal em Camberra, mas reiterava a

vontade de negociar, e esclarecia que a atitude e o protesto não se relacionavam com

os acontecimentos políticos ocorridos na Guiné -Bissau, como podia supor -se110.

A concessão efectuada por Portugal rejeitava também as bases do acordo firmado

em 1972, entre a Austrália e a Indonésia, que assegurava à Austrália o controle sobre

cerca de 70% do leito marinho entre o norte do País e a ilha de Timor111.

Em resposta ao protesto oral, o embaixador português entregou uma Nota,

contendo os pontos de vista do seu Governo:

– Portugal reconhecia apenas uma plataforma continental entre a Austrália e

Timor português e a linha média entre as respectivas costas como fronteira,

pelo que tinha feito uma concessão até esse limite do lado português;

– a concessão continha cláusulas que acautelavam um ajuste de fronteira

resultante de um eventual acordo internacional;

– a concessão, que restringia a companhia a certos tipos de prospecção sísmica

e magnética, era por um período inicial de 18 meses, renovável por outros

sucessivos de 12 meses, até a questão da fronteira estar definitivamente

resolvida entre Portugal e a Austrália; e

– Portugal rejeitava as declarações públicas do primeiro -ministro australiano

sobre a matéria, mas mantinha a sua vontade de negociar as fronteiras,

preferindo esperar pelo resultado da Conferência de Caracas112.

110 Cf. NAA, Portuguese Timor, “Oil”, A1838, C1875689, SC756/2/4/1, 1955 -1976, protesto contra Portugal

sobre as concessões de Petróleo no Mar de Timor. Veja -se também: IANTT, PIDE/DGS/SC, Timor, “Pastas

Organizadas por Províncias Ultramarinas: Timor”, pasta 8979, relatório n.º 8/73 – G.U., confidencial, da

delegação da DGS em Timor para a sede da DGS em Lisboa, Díli, 31 de Agosto de 1973, Anexo: “Austrália

encara a séria Estância das Nações Unidas sobre a Baliza Marítima de Timor” (Tradução).111 Veja -se: Geoffrey C. Gunn, ob. cit., pp. 281 -282.112 Cf. NAA, Portuguese Timor, “Australian Relations with and Policy towards Portuguese Timor”, A1838,

C550911, SC3038/10/1 part 5, 1974 -1975, documento do Department of Foreign Affairs, Camberra, 18 de

Abril de 1974.

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175Em 11 de Dezembro de 1974, foram concedidos direitos de exploração à

Petrotimor, um consórcio liderado pela American Oceanic Exploration e envolvendo

interesses portugueses. Mas este abandonou os escritórios em Díli e interrompeu os

trabalhos de prospecção, após o golpe da UDT113.

A questão da exploração do petróleo ficou nestes termos, de conflitualidade de

interesses entre Portugal e a Austrália, quando ocorreu a invasão indonésia do

território.

Após a retirada da administração portuguesa, continuou a verificar -se uma

grande ambiguidade por parte do executivo australiano, quer apoiando, durante

anos, a sua anexação pela Indonésia e reconhecendo -a, oficialmente; quer,

posteriormente, liderando a força que visou garantir o cumprimento do resultado

do Referendo de 1999.NE

Cônsules da Austrália em Timor português (Díli)

1946 -1971

1946 -1947: Charles Eaton

1947: A Rigram (em exercício)

1947 -1950: Henry White

1951 -1952: N. McE Elliott

1953 -1954: Vago

1955 -1961: Francis Whittaker

1962 -1964: James S. Dunn

1965 -1967: D. W. Milton

1968 -1969: John Denvers

1970 -1971 (31 de Agosto): M. F. Berman.

O Consulado iniciou as suas actividades em 1 de Janeiro de 1946.

(Fonte: NAA, Portuguese Timor)

113 Cf. A. Barbedo de Magalhães, Timor -Leste – Interesses internacionais e actores locais, Vol. I: Da Invasão australo -holandesa à

decisão australo -indonésia de anexar, 1941 -1974, Porto, Edições Afrontamento, 2007, pp. 203 -204.

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■ Abstract:In order to restore “peace and unity with the French Republic” after the so -called “orange war”, Portugal was forced to settle balances with the Napoleon demand for war compensation.This study broaches the subject of the multiple terms, the vicissitudes and personal business interests, commercial and others, that conformed to the governmental, diplomatic, commercial and banking contacts pertaining to the bank loan effected in 1802 of 13 million florins, which would safeguard the sought -after neutrality of the country in relation to the Napoleon advance.The difficult negotiations – where amongst many important personalities D. Rodrigo de Souza Coutinho and important businessmen such as Joaquim Pedro Quintela and Jacinto Fernandes Bandeira as well as the main European bankers of the time were involved –, reached a favourable agreement after mortgaging the diamond production of Brazil as well as the income derived from the tobacco contract.

Introdução O PRESENTE ESTUDO – que constitui parte de uma investigação em curso – pretende dar a conhecer aspectos porventura menos conhecidos das negociações empreendidas pelo Governo português para a obtenção de meios financeiros no mercado externo, que permitissem solver os compromissos que foi forçado a assumir, entre os anos finais do séc. XVIII e os primeiros do século XIX.

Com recurso à intermediação dos negociantes Joaquim Pedro Quintela e Jacinto Fernandes Bandeira, os governantes nacionais, com destaque especial para D. Rodrigo de Souza Coutinho, Presidente do Real Erário de 1801 a 1803, procuraram – em momentos diferentes, mas sempre para “satisfazer à França os interesses pecuniários que S.A.R. se obrigou a dar -lhe...”1 –, o financiamento junto de duas das mais prestigiadas casas bancárias da praça londrina.

* Director do Centro de História do Grupo Espírito Santo.1 • Centro de História do Grupo BancoEspírito Santo. ([email protected]) Aos Professores João Cosme (Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa) e Rita de Sousa (Instituto

Superior de Economia e Gestão, da Universidade Técnica de Lisboa) estou reconhecido pela disponibilidade que tiveram para ler a versão inicial deste estudo. Agradeço também aos Técnicos Superiores de Arquivo, John Orbell e Moira Lovegrove, do Baring Archive, em Londres, e à Joana Braga do IAN/TT a pesquisa de documentação existente relacionada com este tema. IAN/TT, Livro de registo, Carta de D. Rodrigo de Souza Coutinho a Cypriano Ribeiro Freire, 16 de Fevereiro de 1802.

Os pedidos de empréstimo do Estado às casas bancárias

Sir Francis Baring & Cº. e Henry Hope & Cº. (1797-1802)

Carlos Alberto Damas*

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178 As dívidas tiveram a sua origem na participação portuguesa nas guerras

europeias, de “mau agouro”2 para o País, contribuindo para o agravamento das

débeis condições financeiras do Reino.

Esta comunicação faz uma primeira abordagem aos múltiplos condicionalismos,

vicissitudes e jogos de interesses, mercantis e outros, que envolveram os contactos

governamentais, diplomáticos, comerciais e bancários tendentes à efectivação dos

empréstimos.

Na primeira parte do texto esboça -se o contexto político e financeiro que

justificou o apelo aos empréstimos externos, após o que, e com os dados disponíveis

nesta fase da investigação, se explanam alguns dos aspectos mais significativos das

negociações.

E se, em 1797, as diligências dos governantes não lograram convencer os

potenciais credores, já em 1802, o empréstimo bancário de 13 milhões de florins

esteve na origem do lançamento da primeira emissão obrigacionista portuguesa nos

mercados internacionais.

A ideia para o desenvolvimento desta investigação foi sugerida pela leitura de

um texto evocativo do bicentenário do primeiro empréstimo obrigacionista

português (1802 -2002), redigido por John Orbell, responsável pelos arquivos do

Baring, e editado pelo ING Bank, entidade bancária holandesa que, em 1995,

absorveu a Baring Brothers & Co. Ltd., banco de investimento e de gestão de activos

sedeado na capital inglesa.

De acordo com John Orbell, se a transação de 1802 representou um marco na

história fiscal e económica de Portugal, para o Barings, no mesmo ano, tal operação

foi igualmente um marco na sua história, por ter sido a primeira operação de relevo

daquela Casa Bancária no mercado dos empréstimos internacionais, razões suficientes

para que esse evento fosse de novo recordado, dois séculos depois.

1. Enquadramento político -financeiro Poucos anos após o eclodir da Revolução Francesa,

mais concretamente a partir de 1792, o nosso país viu -se envolvido na belicosa teia

que emergiu do choque de interesses económicos e políticos entre a Inglaterra e os

seus aliados e a França revolucionária e imperial.

No crepúsculo do século XVIII e no dealbar de Oitocentos, a Portugal parecia

não restar outra alternativa senão a “compra” da neutralidade, mas essa busca, bem

2 Jorge Braga de Macedo, Álvaro Ferreira da Silva e Rita Martins de Sousa, “War, taxes, and gold”, p. 209.

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179cedo, viria a revelar -se uma miragem face aos condicionalismos estratégicos e

geográficos das potências beligerantes. Numa Europa acometida pelos ventos

revolucionários, a conflagração contra a coligação de países com os quais a Grã-

-Bretanha estabeleceu alianças (Rússia, Prússia, Áustria, Espanha e alguns principados

alemães), inicia -se com a declaração de guerra da França à Áustria e à Prússia em

Abril de 1792. A bandeira que a todos unia era a da restauração do trono francês. A

contragosto Portugal ver -se -ia também envolvido num conflito do qual, inicialmente,

procurara manter -se afastado, investindo antes numa política de frágeis compromissos,

consequência da sua posição “de grande debilidade, dependente do auxílio inglês e

dos caprichos egoístas da sua multissecular aliada”3.

Em Agosto de 1792, dias depois do destronar dos reis franceses, o governo

português rejeitou a tentativa austríaca para que o País participasse na coligação

europeia contra a França. A nossa participação nessa aliança só teria lugar caso a

Espanha fosse atacada, atitude que mereceu então a concordância do governo

inglês.

A morte de Luís XVI, em Janeiro de 1793, conduz a Espanha a declarar guerra

à França no mês seguinte. Esta retribui com uma dupla declaração de guerra à Grã-

-Bretanha e à Espanha, respectivamente em Fevereiro e Março de 1793. Estes

acontecimentos determinaram a assinatura de um convénio de mútua amizade e

socorros, em 15 de Julho de 1793, entre D. Maria I de Portugal e Carlos IV de

Espanha.

Por sua vez, o agravamento da tensão franco -britânica levou a Grã -Bretanha a

alterar a sua posição inicial, buscando o apoio activo de Portugal4. Na sequência dos

esforços diplomáticos então desenvolvidos, o Príncipe Regente, em 26 de Setembro,

assinou a convenção luso -inglesa de mútuo auxílio.

Assim se iniciava o que tem sido designado como o nosso afrontamento com a

“dolorosa supremacia francesa”.

Em Setembro, um corpo expedicionário português constituído por cerca de

6000 homens comandados pelo militar escocês John Forbes, junta -se ao exército

castelhano da Catalunha. Aí tiveram lugar as campanhas do Rossilhão, chegando o

exército luso -castelhano a ameaçar as cidades de Bayonne e Perpignan, com as forças

3 António Ventura, “Uma cimeira ibérica em 1796”, p. 144.4 Jeremy Black, How the French revolution stuck the Portuguese, p. 24.

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180 portuguesas a ocuparem as povoações de Ceret e Villeneuve. Contudo, a contra

ofensiva francesa, a partir de finais de 1793 obrigou à retirada precipitada dos

efectivos portugueses e espanhóis, a que se seguiu a derrota dos realistas francesas,

apoiados por efectivos anglo -castelhanos, em Toulon, em 19 de Dezembro desse

ano, mercê da estratégia de um desconhecido militar, de seu nome Napoleão

Bonaparte.

A retaliação das forças do Directório prosseguiu na Catalunha e em Navarra, no

segundo semestre de 1794, e chegou ao País Basco, onde as cidades de S. Sebastián,

Bilbao e Vitória foram ocupadas.

Estes sucessos forçaram Godoy a assinar, em Julho de 1795, o Tratado de Paz de

Basileia5, pelo qual a Espanha reavia (liquidando as esperanças dos partidários da

autonomia basca) as povoações ocupadas, em troca da cedência6 de metade da ilha

de S. Domingo aos franceses. Madrid juntava -se assim à França revolucionária

deixando Portugal isolado.

Nesse período e durante algum tempo apenas, a República revolucionária intensifica

a guerra marítima, através do corso, contra o aliado continental do seu principal

inimigo, pressionando a Coroa portuguesa a negociar a paz. Mas, nesse teatro líquido

da guerra o poder naval britânico iria infligir sucessivos desaires à já enfraquecida força

naval da Convenção e ao seu forçado aliado, a Espanha de Carlos IV.

Em Agosto de 1796, os dois Estados pirenaicos assinavam o Tratado de Santo

Ildefonso, que mais contribuiu para desequilibrar a situação em desfavor de Portugal.

Com efeito, num dos artigos secretos desse convénio o monarca espanhol obrigava-

-se a influenciar ou, se necessário, a forçar Portugal a fechar os portos aos ingleses

logo que a guerra fosse declarada, “e o Directório Executivo da República Francesa

promete à Espanha todas as forças necessárias para esse efeito, se Portugal ousar

resistir à vontade de Sua Majestade Católica”.7 Como consequência, na primeira

semana de Outubro a Espanha declara oficialmente guerra à Grã -Bretanha.

A estratégia da “corte das Tulherias” (expressão de Acúrsio das Neves) obtivera

o que sempre desejara, ao separar uma grande potência como a Espanha da sua

natural aliança com a rival insular.

5 Com o mesmo nome, Tratado de Paz de Basileia, a França assinou convenções com a Prússia, em 5 de Abril e

com o Landgrave de Hesse -Cassel, em 28 de Agosto.6 Que era virtual, como nota Michel Kerautret em Les grands traités du consulat (1799 -1804), p. 517 4º Artigo secreto do Tratado de aliança de Santo Ildefonso, in Michel Kerautret, Les grands traités... p. 57.

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181Por sua vez, a posição política portuguesa estribava -se na aliança com a Grã-

-Bretanha, condição que não quis romper, declarando a sua neutralidade no conflito

anglo -espanhol.

Alguns investigadores, ao analisarem os rumos diversos que os dois países

ibéricos tomaram nas circunstâncias de então, não entenderam as razões predominantes

da nossa ligação à corte de Jorge III, decorrente da secular aliança luso -britânica. Tal

foi o caso de Marten Buist ao considerar que, “Portugal foi incapaz de seguir o

exemplo da Espanha na busca da paz”8.

Com efeito, se examinarmos atentamente as variáveis que se apresentavam e as

condições geo -estratégicos que determinaram o comportamento de cada um dos actores

neste cenário, a atitude portuguesa foi a mais consentânea com os interesses nacionais.

Já os espanhóis, sem muitas alternativas, e atendendo até a que, e como assinala

António Ventura9, o Pacto de Família entre a Espanha e a França assinado em 1761,

continuava ainda em vigor, Manuel de Godoy, o jovem primeiro ministro espanhol10,

lançou a Coroa dos Bourbons na órbita do seu vizinho do norte, no tempo em que

Napoleão Bonaparte, Comandante em Chefe do Exército francês em Itália, somava

vitórias para a bandeira tricolor. Recorde -se que na península italiana a Espanha

tinha interesses que procurava – em vão – acautelar, o que era uma razão mais para

justificar a oscilante política de Carlos IV.

A diplomacia portuguesa, debatendo -se entre a cedência a um “compromisso

continental [que] só podia afectar o equilíbrio da estrutura económica com que

Portugal se integrava na conjuntura mundial”11, e a fidelidade à aliança inglesa, que

pretendia honrar, movimenta -se para que o país não fosse obrigado a uma opção em

definitivo pelas alternativas que se lhe apresentavam, para mais quando, não só as

deficiências do exército português, mal equipado e mal organizado, não eram de

molde a sugerir qualquer envolvência em campanhas militares, como a debilidade

das finanças públicas não deixavam margem para acções mais adequadas.

No Outono de 1796, António de Araújo de Azevedo, representante português na

capital holandesa, inicia, em Paris, negociações para a assinatura de um Tratado de

8 Marten Buist, At spes non fracta. Hope and Co., 1770 -1815. Merchant bankers and diplomats at work, p. 383.9 António Ventura, Uma cimeira ibérica em 1796, p. 148.10 Em 1807, François de Beauharnais, embaixador francês na corte de Madrid, descrevia ao seu Ministro das

Relações Exteriores a personalidade do “Príncipe da Paz” nestes termos: “É falso, velhaco e ignorante”. Cf. Thierry Lentz, p. 14.

11 Jorge Borges de Macedo, O bloqueio continental, p. 38.

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182 paz a troco de um pagamento de 3 milhões de cruzados (aproximadamente 10 mi lhões

de libras tornesas, ou 1,2 milhões de libras esterlinas), cujo empréstimo pelo mesmo

montante, em Março de 1797, a Coroa portuguesa procuraria, sem êxito, assegurar

junto de banqueiros londrinos, como veremos.

Em paralelo com a acção diplomática, e para fazer prover o exaurido tesouro

público, a Rainha autoriza o Real Erário “a aceitar todo o dinheiro que se oferecer por

via de empréstimo, até á quantia de dez milhões de cruzados, a juro de cinco por cento

em cada um ano”.12 Aos credores eram entregues apólices de 100$000 cada,

constituindo estas títulos de dívida da Real Fazenda que podiam circular como letras

de câmbio. Em Março do ano seguinte, este empréstimo foi ampliado para 12 milhões

de cruzados, ficando os novos mutuantes, a vencer um juro de 6% e isentos do

pagamento da décima.

Meses depois, a 10 de Agosto de 1797, em Paris, ficou estabelecido o pagamento

de 10 milhões de libras tornesas e a permissão de entrada anual de apenas 6 navios

ingleses nos portos nacionais. Mas a Grã -Bretanha, confrontada com o lento desfazer

da coligação antigaulesa que averbava derrotas sucessivas, opôs -se aos termos do

Tratado, que não foi ratificado por Portugal.

A situação de incumprimento provocou na França napoleónica, a subida de tom

da irritação contra a Coroa portuguesa, que mantinha abertos os seus portos aos

navios britânicos.

Meses depois, o Tratado de Campo Formio, entre a França e a Áustria, assinalou

o fim da 1.ª coligação europeia, deixando a Grã -Bretanha quase isolada na luta que

lhe movia o seu adversário.

No decorrer de 1799, e com o vizinho reino ibérico cada vez mais submetido aos

ditames dos interesses franceses, D. João – entretanto nomeado regente do Reino –,

procura não só quebrar o isolamento diplomático, como defender os interesses

comerciais e estratégicos do país, subscrevendo Tratados de amizade e comércio com

a Rússia, a regência de Tripoli e o bei de Tunes, no mesmo ano em que o general

Bonaparte recebia o título de Primeiro Cônsul.

Em Maio de 1800, Armand Lebrun Houssaye, Chefe de Brigada do 3.º Regimento

dos hussardos ameaçava: “Portugal não quer fazer a paz connosco? Conquistá -lo -emos”.

No dia 1 de Outubro do mesmo ano, a França e a Espanha celebram o 2.º Tratado

de Stº. Ildefonso, pelo qual o reino de Carlos IV devolve – em troca de abstractas

12 Resolução régia de 29 de Outubro de 1796, in Colecção de Legislação Portugueza..., p. 327.

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183promessas em obter territórios na Toscânia –, o antigo domínio francês da Louisiana.

Cerca de dois anos depois, em 30 de Abril de 1803, Napoleão, por não poder

defender todos os seus domínios coloniais, tratou de vender por 60 milhões de

francos esse território aos Estados Unidos que, por intermédio dos Baring, emitiu

um empréstimo obrigacionista no valor de 11, 25 milhões de dólares.

Da Grã -Bretanha, Portugal não poderia esperar grande auxílio, tendo mesmo o

seu representante diplomático em Lisboa, John Hookman Frere, aconselhado o

governo português a armar -se “quanto lhe fosse possível”13, no mais curto espaço

de tempo. Nesta fase, e até ao armistício celebrado entre Napoleão e o Czar Alexandre

da Rússia, em 1807, a estratégia inglesa delineada por William Pitt assentava no

apoio maciço em dinheiro, armas e abastecimentos às potências da Europa (Prússia,

Áustria, Rússia), não fazendo Portugal parte das suas prioridades estratégicas.

A esperança britânica em conter as ofensivas napoleónicas nos principais países

das diversas coligações, a terceira e última das quais, formada em 1805, um ano

antes do falecimento do líder britânico, foi varrida pelas vitórias sucessivas de

Napoleão e dos seus cabos de guerra.

***

Em Agosto de 1800, Napoleão dizia a Talleyrand que o general Berthiez, enviado

para Madrid como ministro plenipotenciário, “devia exortar, por todos os meios

possíveis, a Espanha a fazer a guerra a Portugal”. 14 E tão bem o fez que Carlos IV – pai

de Carlota Joaquina de Bourbon, Princesa espanhola e futura Rainha de Portugal – ,

em 27 de Fevereiro de 1801, e sem esperar pelas tropas francesas, declarou guerra a

Portugal, com o objectivo de forçar o nosso país a fechar os portos à Grã -Bretanha.

Fazendo -se eco da fraseologia do Primeiro Cônsul, os seus partidários

apregoavam o mesmo que, em muitas outras circunstâncias e noutros contextos,

seria dito aos povos submetidos ao domínio recente da França napoleónica: “É para

restituir à nação portuguesa a sua independência e o seu antigo poder, é para quebrar

os seus ferros e arrancá -la a uma vassalagem humilhadora, que Bonaparte levou a

guerra a Portugal. Ele quer regenerar esta nação, dar -lhe o conhecimento das suas

forças e a energia que em outro tempo animou os conquistadores das Índias e os

13 Damião Peres, História de Portugal, Vol. VII, p. 28114 Thierry Lentz, Les relations franco -espagnoles, p. 8.

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184 rivais castelhanos; ele quer ser o protector de um povo oprimido, e colocá -lo naquela

ordem que devem ocupar os senhores do Brasil e do Tejo”.15

Os dados estavam lançados e o tempo era escasso para tomar previdências. Ainda

assim, o Regente do Reino procurou suprir o esgotamento dos recursos financeiros

lançando mão de mais um empréstimo público. No preâmbulo do alvará de 7 de

Março de 1801 diz D. João que, havendo procurado “por todos os meios compatíveis

com o decoro (...) evitar que a guerra acendida na Europa envolvesse os meus fiéis

vassalos...”, para fazer face a despesas extraordinárias no aprovisionamento do Exército

e da Marinha, era necessário ter recursos também extraordinários e, nesse sentido,

ordenava “sem perda de tempo” a abertura de um empréstimo de 12 milhões de

cruzados.

Aproximadamente dois meses depois, a 20 de Maio, as tropas espanholas,

comandadas por Manuel Godoy, invadem o território português tomando as praças de

Olivença, Juromenha e Campo Maior, que se entregaram sem luta, circunstância que

não deixou de intrigar o senhor dos franceses, desconfiado que uma guerra tão curta

não poderia ter origem senão num entendimento entre Godoy e os portugueses.16

Duas semanas após a chamada “guerra das laranjas”, a 6 de Junho, Portugal é

coagido a assinar, em Badajoz, dois Tratados de paz, com cada uma das potências

belicistas. Num deles, a Espanha, para além de obrigar Portugal ao pagamento de

uma vexatória indemnização pelos danos e prejuízos causados pelas embarcações da

Grã -Bretanha ou de Portugal durante a guerra, e ainda, a compensar o tesouro

espanhol pelos débitos que as suas tropas deixaram de satisfazer quando se retiraram

da guerra de França, ficou com a posse de Olivença. No outro Tratado, com a França,

entre outras cláusulas, ficou consignado que, até à assinatura da paz entre a França e

a Grã -Bretanha, os portos e ancoradouros portugueses seriam interditos aos vasos de

guerra e de comércio ingleses, em contrapartida da sua abertura aos da República e

seus aliados. No clausulado secreto, o Príncipe Regente obrigava -se ao pagamento de

15 milhões de libras tornesas, metade em dinheiro, metade em pedras preciosas.

As condições estabelecidas nessas convenções não agradaram ao Primeiro Cônsul

que exigiu a anulação dos Tratados, obrigando Portugal a submeter -se a um outro

convénio, assinado em Madrid, datado de 29 de Setembro pelos ministros plenipo-

15 “Tableau historique et politique des opérations militaires et civiles de Bonaparte”, citado em Acúrsio das Neves,

História geral das invasões francesas em Portugal e da restauração deste Reino, vol. I, p. 164.16 Thierry Lentz, Les relations franco -espagnoles, p. 9.

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185tenciários Cipriano Ribeiro Freire e Luciano Bonaparte, dois dias antes da assinatura,

em Londres, dos preliminares de paz das hostilidades franco -britânicas,

A indemnização de guerra a pagar por Portugal foi agravada para 20 milhões de

libras tornesas, para além do estabelecimento de novos limites entre as Guianas

francesa e portuguesa, que beneficiavam generosamente o domínio territorial

francês. A Coroa espanhola, que recusou revogar o Tratado de Badajoz, foi ameaçada

de perder a ilha de Trindade se cumprisse as cláusulas assinadas com o Regente

português.

A paz temporária que os dois inimigos acordaram em 1 de Outubro17,

contribuíra para diminuir a tensão. O momento de as tropas francesas invadirem

Portugal, não obstante a compra da neutralidade, ainda não chegara.

Para já, essa “neutralidade” representava um provento de 2,5 milhões de libras

tornesas para o orçamento do estado francês, a juntar aos muitos outros milhões

extorquidos às nações sob o seu domínio, efectivo ou não.

Para Eugueni Tarlé, “um dos aspectos mais característicos das finanças

napoleónicas, era considerar as despesas de guerra, como despesas “ordinárias” e

nunca extraordinárias”.18 Para que isso acontecesse, Napoleão e os seus marechais

utilizavam todos os pretextos, reais ou fictícios, para que no orçamento do estado

francês não existissem despesas extraordinárias. De entre os muitos contribuintes

forçados, nos anos finais do século XVIII, para além de Portugal, citem -se os casos

do Duque de Parma que, em 1796, na luta que opunha franceses a austríacos no

decorrer da campanha de Itália, não obstante a sua declarada neutralidade viu não só

o território do Ducado ser atravessado pelo exército de Napoleão, como teve ainda

de pagar uma contribuição de 2 milhões de francos. Ou, um ano depois, quando o

Papa Pio VI foi obrigado, pelo Tratado de Tolentino, datado de 19 de Fevereiro, a

comprar a paz, que lhe garantia a posse dos territórios pontifícios, mediante a

entrega de 30 milhões de francos ouro.

***

Em Outubro de 1801, e para dar satisfação às suas obrigações em troca da “boa

paz e união com a República Francesa” que o Príncipe do Brasil por decreto de 28

17 O Art.º 6.º dos preliminares de paz de Londres, estabelecia que os territórios e as possessões ultramarinas

portuguesas manteriam a sua integridade. 18 Eugénio Tarlé, Napoleão. Vol. I, p. 206

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186 desse mês mandou observar, Portugal enceta os primeiros contactos com os

banqueiros Baring de Londres, com vista à emissão, no mercado internacional, de

obrigações no valor de 13 milhões de florins19, tema sobre o qual nos debruçaremos

mais adiante deste estudo.

Entretanto, a 26 de Março de 1802, e para dar corpo à nova política francesa em

relação a Portugal, chega a Lisboa o General Jean Lannes, representante diplomático

que Napoleão nomeara em Novembro do ano anterior, para tratar dos interesses

daquele país junto da hesitante corte portuguesa, na sequência do Tratado de paz

luso -francês assinado no final de Setembro, em Madrid.

A chegada do representante do Primeiro Cônsul, “excedeu as expectativas de

Bonaparte, exasperou a delegação diplomática britânica e deixou preocupados os

emigrados franceses”20. Segundo nos indica Margaret Crisawn, no notável artigo que

dedica à missão do General Lannes em Lisboa, a sua missão consistia em proteger os

interesses da França, particularmente à custa dos da Grã -Bretanha.

Considerando que parte do governo português, ao não promover a aplicação

prática do bloqueio aos navios de Sua Majestade Jorge III, e em demorar o

cumprimento das cláusulas do Tratado de Madrid, evidenciava uma posição servil

perante os interesses do seu principal inimigo, o militar francês desenvolve uma

estratégia de permanente confrontação. Para isso, não hesita em socorrer -se de

atitudes pouco consentâneas com o cargo que exercia21. O intuito era o de forçar o

Regente a demitir alguns dos ministros, considerados anglófilos, propósito que viria

a conseguir. D. Rodrigo de Souza Coutinho e Pina Manique eram dos “anti -franceses”

que Lannes mais queria ver afastados das funções que desempenhavam. Em relação

a este último, só os argumentos dos seus ministros é que levaram o Príncipe Regente,

a não demitir o Intendente, depois de ter prometido fazê -lo. Com efeito, na sequência

de um incidente com um ajudante de campo do general francês, este ameaçou

abandonar o seu posto e regressar a França, a menos que Pina Manique fosse afastado.

Não tendo alcançado os seus intentos, Lannes concretizou a ameaça, partindo para

França em 10 de Agosto de 1802. Para D. João, a “abrupta e inconvencional” saída

19 O equivalente a 80 milhões de euros.20 Margaret Chrisawn, A military bull in a diplomatic China shop: Jean Lannes’s mission to Lisbon 1802 -1804. 21 Em carta datada de 5 de Abril de 1803, Souza Coutinho levava ao conhecimento de Talleyrand a “incivilidade”

do seu representante em Lisboa, que chegava ao ponto de “interromper o Príncipe Regente a meio de uma

frase” (Vd. Margaret Chrisawn, Ob. cit.)

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187do embaixador constituiu, numa primeira fase, motivo de alarme e preocupação.

Mas, em 1803 – já depois do retorno de Lannes a Lisboa – D. João acabou por ceder,

afastando -o do cargo de Administrador Geral da Alfândega.

Quanto a D. Rodrigo de Souza Coutinho, as pressões que sobre ele se exerceram,

levaram -no a apresentar a demissão a 15 de Novembro. D. João, consciente da

decisiva acção do Conde de Linhares na condução das finanças públicas, num

primeiro momento recusa a pretensão. Meses depois, e sem que Lannes abandonasse

os seus intentos, o nosso Ministro das Finanças vê deferida pelo Príncipe Regente a

sua exigência, sendo exonerado a 31 de Agosto de 1803. Outros dois portugueses

com cargos oficiais da mais alta importância foram sacrificados, também em 1803,

em consequência da perseguição do representante diplomático francês: o embaixador

português em Paris, Dom José Maria de Souza e o Ministro dos Negócios Estrangeiros,

Dom João de Almeida Mello e Castro, que foi substituído no cargo pelo Visconde de

Balsemão, Luís Pinto de Souza Coutinho.

Por essa ocasião já o general francês regressara a Lisboa, reenviado por Bonaparte.

Com efeito, desde 10 de Março de 1803 que o cidadão Lannes voltara a incomodar

todos quantos resistiam às exigências da França. No Outono de 1803, D. João acabou

por ceder em grande parte às imposições apresentadas pelo diplomata gaulês para

grande desapontamento do embaixador britânico, Lord Robert Stephen Fitzgerald,

que assistia ao dissipar da sua influência na Corte portuguesa. Segundo Crisawn, que

vimos citando, Lannes tirou partido do seu novo estatuto junto do Regente para

exigir a assinatura de um Tratado que substantivasse a nova correlação de forças.

Em 3 de Junho, e na sequência do apresamento de um navio -correio inglês feito

ao largo de Bordéus por um barco pirata francês que transportava um volume

contendo 15.000 quilates de diamantes portugueses – consequência do reassumir

das hostilidades entre a França e a Inglaterra – D. João decreta a proibição do acesso

de corsários das potências em guerra aos portos portugueses, com o intuito de

“regular o inviolável sistema da neutralidade”. Mas a tentativa da Coroa esbarrou

com a intransigência francesa que considerou de nulo efeito tal declaração.

Das conversações diplomáticas que se seguiram – em que já participou D. Luís

de Vasconcelos, sucessor de Souza Coutinho –, no último trimestre de 1803, foi

redigido um acordo secreto entre Portugal e a República Francesa, que recebeu a

assinatura de D. João em 19 de Dezembro. Pressionado pelo Primeiro Cônsul a

introduzir alterações mais favoráveis à França, a chamada convenção franco-

-portuguesa de neutralidade e de subsídios, foi formalmente assinada por Lannes e

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188 por José Manuel Pinto de Souza 22 a 19 de Março de 1804. Nela se estipulava que as

obrigações impostas a Portugal pelo Tratado de 29 de Setembro de 1801, e para

garantir a neutralidade, fossem convertidas “num subsídio pecuniário de 16 milhões

de francos” 23, a par da concessão de facilidades comerciais às mercadorias franceses

(sedas, panos de linho e algodão, rendas, cambraias e joalharias). Portugal ficava

obrigado a liquidar, um mês após a ratificação do convénio, em dinheiro, o valor

correspondente às prestações desde 1 de Dezembro de 1803; o resto do subsídio

seria liquidado através de obrigações no valor de um milhão de francos,

sucessivamente pagáveis de mês a mês até à liquidação da responsabilidade.

Para a concessão de um empréstimo suplementar que suportasse os novos

ditames, Bandeira ainda sondou as casas Hope e Baring. Mas no contexto da guerra

reaberta, a operação foi considerada desaconselhável pelos banqueiros.

Por sua vez, a reacção inglesa não se fez esperar: o governo britânico considerava

que o pagamento de qualquer subsídio português à França seria considerado, como

“um acto de ajuda aos inimigos de Sua Majestade [e lhe] dava o direito de considerar

Portugal como um inimigo”24.

Poucos anos faltariam para que, após a instituição do bloqueio continental, em

Novembro de 1806 e a celebração da paz com a Rússia, assinada em Tilsit, a 8 de

Julho de 1807, o imperador Napoleão Bonaparte dispusesse do tempo e dos meios

necessários para se dedicar a Portugal, nação que nunca deixara de ter debaixo da

sua atenção e vigilância, para mais quando a adesão dos portugueses ao bloqueio não

se verificara.

Duas semanas depois, a 27 de Julho, as tropas francesas, com o apoio castelhano,

a quem foi prometida uma parcela do território português, começaram a concentrar-

-se em Bayonne, preparando -se para a invasão. A 12 de Agosto, o representante

diplomático francês em Lisboa apresentou um ultimatum, exigindo o rompimento

22 Representante diplomático português em Estocolmo.23 Michel Kerautret, ob. cit,, p. 305 -307. Na documentação consultada, esta é a única vez em que a designação

da moeda francesa aparece em francos. Segundo Rodrigues de Brito, “ainda hoje em França a livra tornesa, posto

que já ideal e imaginária, e que vale cento e cinquenta e um réis e 70/100, serve para o cômputo das contas(...)”. In Memórias

políticas, p. 162. Segundo Damião Peres (História de Portugal, vol. VI, p. 277), o valor da indemnização era

de 18 milhões de libras.

Esta convenção foi anulada em 1 de Maio de 1808 pelo Manifesto e artigo adicional que D. João fez

publicar no Rio de Janeiro.24 Margaret Crisawn, ob. cit.

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189das relações de Portugal com os ingleses. Sem resposta, a 29 de Novembro, um dia

após o embarque de D. João e da sua corte para o Brasil, as tropas de Junot passam

a fronteira portuguesa consumando a ocupação do extremo ocidental do Atlântico,

na intenção de fechar definitivamente uma das portas de entrada das mercadorias

inglesas na Europa.

Mal sabia o então imperador dos franceses que a resistência de guerrilha que lhe

foi movida nos estados peninsulares marcaria o início do fim do seu “reinado”.

2. O primeiro pedido de empréstimo (1797) “Os banqueiros não gostam da guerra,

mas não desdenham as oportunidades de negócio que os acasos da guerra lhes

proporcionam”25. A asserção de Philip Ziegler adapta -se bem às vicissitudes que a

eclosão das guerras da França revolucionária semeou na Europa depois de 1789, e

aos benefícios que estas proporcionaram aos irmãos Baring, prestigiados banqueiros

ingleses, aos quais Portugal recorreu pela primeira vez em 179726.

* *

*

No final do século XVIII, a firma dos irmãos Baring era já uma das mais antigas

e conceituadas casas bancárias da city londrina, e à qual, no decurso dos séculos

seguintes, viriam a recorrer os mais diversos governos estrangeiros na mira de

empréstimos que solvessem problemas domésticos ou financiassem iniciativas de

grande valor.

Fundada em 1762, a partir da actividade de um merchant bank, esta Casa Bancária

no decorrer do tempo foi objecto de várias alterações na sua designação social: de

John & Francis Baring & Cº., no ano da fundação para Sir Francis Baring & Cº. (1801)

e Baring Brothers & Cº., de 1807 em diante. A importância desta Casa no contexto

das instituições bancárias europeias era de tal modo relevante que, em 1818, Armand

du Plessis, Duque de Richelieu, ainda Presidente do Conselho e Ministro dos

25 Philip Ziegler, The sixth great power, p. 55.26 Em 1762, Martinho de Melo e Castro, representante diplomático português em Londres, solicitava os bons

ofícios de John Perceval, 2º Conde de Egmont (então membro da Câmara dos Lordes e futuro Primeiro

Lord do Almirantado) para a obtenção de um empréstimo de 200 mil libras que desse ao Tesouro

português os meios necessários para a defesa do Reino, ameaçado de invasão das tropas franco -espanholas

ao abrigo do Pacto de Família., no contexto da guerra dos Sete Anos. (IAN/TT – Ministério do Reino, Maço

616, Caixa 178, 27 de Setembro de 1762).

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190 Negócios Estrangeiros francês, nomeava as seis grandes potências europeias de

então: França, Inglaterra, Áustria, Rússia, Prússia e Baring Brothers27.

A prosperidade destes banqueiros, acrescida nos anos em que os britânicos

procuravam restaurar o trono dos Bourbons em França, devia -se em grande parte ao

pragmatismo dos seus responsáveis, como atesta a subida da média anual de lucros

no período de 1794 a 1798, de 33.077 libras para 93.984 libras no lustro seguinte.

Mas não só.

Em Fevereiro de 1793, Henry Hope, merchant banker anglo -holandês foi obrigado

a abandonar Amsterdão e a sair do país, quando se deu a primeira tentativa de

invasão do território pela França. Segundo Buist, que citamos, em Londres

constituíram a firma Henry Hope & Cº. Poucos meses depois regressou à praça de

Amsterdão onde permaneceu até Outubro de 1794, altura em que retornou a

Londres acompanhado de John Williams Hope, quando os revolucionários da

Convenção, numa segunda ofensiva, preparavam a tomada final da República das

Províncias Unidas, no Inverno de 1794/1795. Levava consigo perto de quatro

centenas de obras de arte, que constituiu “um dos maiores e mais bem documentados

exemplos, de transferência de capital do continente europeu antes da chegada da

Revolução Francesa e dos seus exércitos”28.

Na capital inglesa, onde os negócios bancários eram conduzidos pelos irmãos

Baring, a junção da sua experiência em transacções do mercado de capitais com a

actividade seguradora do comércio internacional de mercadorias dos banqueiros

holandeses, concorreu para criar, o que Larry Neal designa como uma “unique

combination”, a qual durou mais de um século, beneficiando de forma notória a

importância e os ganhos que a John e Francis Baring tal parceria proporcionava.

* *

*

A abordagem a estas casas bancárias, seria feita em 1796 por dois dos mais

importantes negociantes de Lisboa, Joaquim Pedro Quintela e Jacinto Fernandes

Bandeira que, segundo Jorge Pedreira, as escolheram com base em antigas relações

de negócio. Com efeito, “a firma Henry Hope & Co. pretendera, por mais de uma vez,

27 John Orbell, Baring Brothers & Cº., Limited. A history to 1939, p. 23.28 Larry Neal, The rise of financial capitalism, p. 180.

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191arrebatar a Daniel Gildemeester o monopólio da venda dos diamantes no

estrangeiro29. Nunca atingira o seu desiderato mas, em 1791, conseguira fazer -se

escolher por Joaquim Pedro Bandeira, o novo concessionário, para seu agente em

Amsterdão”30.

Quanto a Francis Baring, considerado “porventura a personagem mais influente

da City na transição para o séc. XIX, mantinha um antigo relacionamento comercial

com John Standley, negociante britânico em Lisboa que servia também como

guarda -livros a Jacinto Fernandes Bandeira”31.

Sobre a primeira tentativa de obtenção de financiamento nos mercados

internacionais em 1796/1797 são escassas as referências a tal pedido, provavelmente

por o mesmo não ter chegado a concretizar -se. A ela aludem, de forma muito

sucinta, Philip Ziegler e Marten Buist nas histórias dos Baring e Hope. Contudo, a

mesma documentação a que tiveram acesso contém abundante informação que

justifica uma análise mais aprofundada, particularmente a que se encontra em

Londres.

***

A partir do Verão de 1796 as trocas de correspondência entre os agentes da coroa

portuguesa, Bandeira e Quintela, e as casas bancárias Insinger, de Amsterdão, e Hope

e Baring, de Londres, em momentos diferentes, ilustram as vicissitudes que rodearam

a frustrada operação, com intervenções de permeio, dos irmãos Stephens (John e

William), da Real Fábrica de Vidros da Marinha Grande.

Inicialmente a proposta portuguesa era a de obter um empréstimo de 1,2 milhões

de libras (cerca de 11 milhões de cruzados), sobre hipoteca de diamantes, a depositar

no Banco de Londres, que cobrissem não só o valor do empréstimo, como os juros,

num total de 2 milhões de libras. Joaquim Pedro Quintela, na fase preliminar de

contactos com os banqueiros, ainda no decorrer de 1796, dirige -se quase em

simultâneo a Londres e a Amsterdão, diversificando as possíveis fontes de financiamento,

precavendo -se desse modo para a hipótese de um deles não aceitar a operação.

29 Desde 1765 que a casa Hope & Cº. de Amsterdão, tentava obter o contrato dos diamantes. Para o efeito, de

acordo com Buist, os contactos com Portugal foram processados através do representante diplomático

dinamarquês em Lisboa.30 Jorge Pedreira, Os homens de negócio da praça de Lisboa (1755 -1822). Diferenciação, reprodução e identificação de um grupo

social, p. 180 e segs. 31 Idem, ibidem.

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192 Em carta datada de 25 de Junho, remetida a H. Insinger, entre outras questões

abordadas, o negociador português pedia que este disponibilizasse a soma em

questão, caso o empréstimo solicitado a Henry Hope, de Londres, (a quem primeiro

se dirigira) fosse recusado, como veio a acontecer.

Em 18 de Julho o responsável da Insinger & Cº., em carta dirigida ao agente por-

tuguês, dizia responder “muito mal à confiança que deposita em mim, devido à

situação precária a que nos conduziu a ruinosa guerra, e ao esgotamento das nossas

finanças”32.

Ao longo da missiva espraiava -se em alegações diversas, argumentando que o

governo holandês para encontrar dinheiro tivera de recorrer a empréstimos internos

forçados, acrescentando: “se emprestássemos ao estrangeiro soma tão considerável, o

nosso governo poderia acusar -nos de anti -patriotismo. Os procedimentos de um

empréstimo do Rei da Sardenha são ainda muito recentes na memória de cada um,

para que não cause embaraços num negócio que é, um pouco, da mesma

natureza”33.

Alguns dias depois, Quintela replicou dizendo que conhecia muito bem os “avis

publics”, segundo os quais havia pouco dinheiro em circulação. E, quanto a

Amsterdão, acrescentava: “Mas para uma cidade tão rica e fértil, e que em dois anos

emprestou tantos milhões ao Imperador, 3 milhões de cruzados são uma bagatela”34,

e com fina ironia terminava dizendo que a hipoteca que oferecia aos emprestadores

num dos “ditos” bancos públicos, ou nas suas próprias mãos, se assim o quisessem,

“est pour le moins aussi bien sure que la promesse d’une tête couronnée”.

Prevendo que do mercador -banqueiro holandês não obteria quaisquer fundos, e

conhecendo a conflitualidade existente no mercado distribuidor dos diamantes, J P

Quintela pressiona -os, dizendo que poderia procurar noutro país quem lhe fizesse o

empréstimo, estando para isso disposto a fazer o depósito dos diamantes em

Hamburgo ou Londres “de tantas pedras para 4 milhões de cruzados”, em troca da

obtenção da quantia dos ditos 3 milhões, “que me é necessária sobre hipoteca”.

Na documentação existente nos arquivos do extinto Baring Brothers & Cº. Ltd.

(actual ING Baring Holdings, Ltd.), em Londres, este assunto é retomado em Fevereiro do

32 Baring Archive, NP, 1 A -19.7. Carta de H. A. Insinger a Joaquim Pedro Quintela, 18 de Julho de 1796.33 O rei da Sardenha obtivera um empréstimo de 200.000 francos da casa holandesa, sobre hipoteca de

diamantes aí depositados, no valor de 11 milhões de francos. Mas, com a tomada de Amsterdão pelos franceses, esse tesouro foi confiscado. Apesar desse esbulho, Insinger garantia a Quintela: “pode dizer -se que estamos em paz com os portugueses, e que a propriedade da vossa nação será respeitada aqui”.

34 Baring Archive, NP, 1 A -19.7. Carta de Joaquim Pedro Quintela a H. A. Insinger, 25 de Julho de 1796.

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193ano seguinte, através da carta que Jacinto Fernandes da Costa Bandeira remeteu a Sir

Francis Baring, banqueiro a quem recorreu, após a recusa de Insinger.

Embora as condições propostas fossem as mesmas (empréstimo de 1,2 milhões

de libras por hipoteca de diamantes), Bandeira avança com uma outra garantia

hipotecária, no caso de a oferta não ser satisfatória: a penhora ou mesmo a venda das

ilhas de Timor, Solor e Boléu, ou ainda, se necessário, o território de Moçambique35,

esclarecendo que as ilhas asiáticas eram “todas subordinadas a Goa, e que nos dizem

ter alguns bons portos, abundância da melhor madeira de sândalo, cera e algumas

mercadorias necessárias à China”. Francis Baring, entusiasmado com as garantias

territoriais, dá a conhecer o assunto ao Gabinete britânico, na pessoa do seu Primeiro

Ministro, William Pitt. Aduzindo razões para persuadir o governo a concordar com

o empréstimo, argumentava que as ilhas poderiam ser utilizadas pela Companhia da

Índias Orientais. Acrescentava ainda que a East Indian Company podia usufruir, o “rico

reino e ilhas de Moçambique, um excelente porto na costa oriental de África, lugares

esses que, em tempo de guerra, podem refrear os franceses das ilhas Bourbon36 e da

Maurícia”. Tendo presente a situação de guerra no continente europeu, crescentemente

dominado pelos seus inimigos, acrescentava que as ilhas e territórios portugueses

“podiam ser hipotecados e de grande utilidade para o comércio africano da East Indian

Company”, logo que a navegação pelo Cabo da Boa Esperança fosse restabelecida.

Pedia uma resposta pronta do Governo inglês, uma vez que, sendo o empréstimo

politicamente aprovado pelo Governo de Sua Majestade Britânica, o Príncipe Regente

de Portugal encarregaria o seu representante em Londres, de ratificar as condições

do acordo, entregar os penhores, receber as prestações a dinheiro e adequar os

prazos de resgate.

À cautela, o banqueiro expediu no mesmo dia uma cópia desta missiva a John

James Stephans37, negociante inglês há muito radicado em Portugal. O memorando

“muito secreto” em que respondeu ao banqueiro, começava por confirmar que a

carta de Bandeira com vista à abertura das negociações para o empréstimo, havia sido

35 Baring Archive, NP, 1 A -19.7. Carta de Jacinto da Costa Bandeira para Sir Francis Baring, 21 de Fevereiro de

1797.36 As actuais ilhas Reunião e arquipélago das Comores.37 John James Stephans (1748 -1826), irmão e sócio de William Stephans. Após a morte deste em 1802, herdou

a Real Fábrica de Vidros da Marinha Grande (Cf. Maria Cristina Pancada Correia, A Marinha Grande sob o sopro

do vidro, De c. 1748 a c. de 1810. Lisboa: 2002, p. 57. Tese de Mestrado em História Local e Regional. Faculdade

de Letras de Lisboa (Texto policopiado).

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194 sancionada pela Corte, embora sem a concordância unânime do governo quanto à

proposta de hipotecar Moçambique ou as ilhas da costa ocidental africana.

De forma muito pragmática, Stephans dizia que se a East Indian Company quisesse

emprestar o dinheiro, os territórios oferecidos podiam ser aceites. Mas acrescentava:

“se bem que tenham bons portos, como garantia privada não servem para nada”;

donde, se o empréstimo fosse concedido pela Casa Bancária John & Francis Baring & Cº.

, os penhores deveriam ser ou em diamantes ou com a hipoteca dos rendimentos do

contrato do tabaco ou da Alfândega. Não se esqueceu de oferecer os seus préstimos

para participar na negociação com os portugueses, dos quais poderia obter na

“presente emergência” em que se encontrava o governo de Lisboa, um juro de 7%

ou mesmo um pouco mais, com as garantias em mão.

A 7 de Março de 1797, em carta dirigida à firma William & John James Stephens & Cº,

de Lisboa, Sir Francis dizia que procurava obter outros pareceres, uma vez que “a

situação deste país no que se refere aos seus poderes pecuniários e recursos é tão

frágil e tão diferente do que já foi”. O entusiasmo perante as condições oferecidas

pela Coroa portuguesa, levava -o a considerar que, muito embora as dificuldades em

Inglaterra fossem grandes devidas à escassez de capital, entendia que elas não eram

obstáculos intransponíveis.

Sem dúvida que a tentação era grande. Mas era necessário obter previamente o

aval político do governo britânico. No dia 14 de Março, William Pitt recebeu pessoal-

mente o banqueiro a quem comunicou as suas reservas quanto à possibilidade de ser

concedido o empréstimo a Portugal. Justificava -se dizendo recear “que as condições

actuais e a situação difícil que Portugal atravessava, aconselhavam o impedimento do

empréstimo” 38. O Primeiro Ministro enjeitou a hipótese de venda, ou mesmo a

cedência temporária das possessões ultramarinas portuguesas, deixando claro que,

no caso dos banqueiros avançarem com a transacção, esta seria exclusivamente da

responsabilidade privada dos emprestadores.

Não era pois, o momento ideal para o governo servir de garante a operações de

financiamento a governos estrangeiros, ainda que, e estritamente em termos

políticos, Pitt encarasse com bons olhos o sucesso da operação de ajuda ao seu aliado

continental.

Ao tempo o governo inglês debatia -se com crescentes dificuldades financeiras,

não obstante o recurso continuado ao aumento dos impostos sobre os mais variados

38 Baring Archive, NP, 1 A -19.7. Carta de Francis Baring para William & John Stephens, 14 de Março de 1797.

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195produtos (chá, tabaco, açúcar, bebidas alcoólicas, cavalos, entre outras). Apesar

dessas medidas o défice orçamental continuaria a subir, atingindo em Novembro de

1797, 22 milhões de libras, situação que a breve prazo iria tornar insustentável a

posição do primeiro -ministro britânico.

Falhada a tentativa de obter a garantia do governo inglês, o interesse de Francis

Baring na operação ficou seriamente comprometido. Em nova carta que enviou aos

irmãos Stephans dava conta da recusa governamental em apoiar o empréstimo, e

acrescia alguns outros argumentos de interesse para este estudo. Desde logo a

constatação de que “não sendo para a Coroa portuguesa muito agradável entregar

parte das suas possessões territoriais nas mãos de privados, o assunto ficava confinado

aos diamantes e às rendas do tabaco...”. Entrava depois no que considerava a “parte

mais desagradável deste assunto”, a saber, a preocupante situação em que Portugal,

e mesmo outros países, se encontravam no que se referia a operações monetárias a

que, e no caso concreto da Corte de Lisboa, se somava a sua frágil situação política.

E rematava o seu raciocínio do seguinte modo: “It maybe necessary to observe to

you, that it will be impossible to procure bills on Portugal, to remit for large sums,

and we have no gold to send”39.

Mediante o cenário de risco e sem apoio político, os irmãos Baring optaram por

recusar, em data que desconhecemos, a proposta de Jacinto Fernandes Bandeira.

Recorde -se que, quase em simultâneo com as diligências dos negociantes por-

tugueses para obtenção do empréstimo na Grã -Bretanha, o governo português –

depois de a Espanha, em Outubro de 1796, ter declarado guerra aos britânicos –,

procurava outras fontes para aumentar os seus recursos financeiros, diante de um

quadro que, tudo indicava, seria de guerra iminente. Assim, por alvará de 13 de

Março, o empréstimo interno de 10 milhões de cruzados, decretado em 29 de

Outubro do ano anterior, foi actualizado para 12 milhões.

Muito embora do lado inglês a recusa já estivesse assumida, em Portugal, ainda

em Abril de 1797, D. Rodrigo de Souza Coutinho, a pedido do Regente, dava o seu

parecer acerca deste empréstimo40.

No plano que elaborou prova, através de cálculos detalhados, que para realizar

esta operação bancária, só o pagamento de juros a 5% num período de 25 anos

39 Idem, ibidem.40 Publicada em D. Rodrigo de Souza Coutinho, Textos políticos económicos e financeiros, vol. II, p. 103 -105.

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196 atingiria o valor de 1,33 milhões de libras, excedendo os 1,2 milhões do empréstimo

pedido, além de que os ingleses obrigavam ao depósito, no Banco de Inglaterra, de

diamantes que garantissem o total do empréstimo e dos juros. Razões bastantes para

que Souza Coutinho – para mais quando se conhecia a generalizada descapitalização

do tesouro público, geradora de uma natural desconfiança sobre a nossa solvência –

fosse de parecer que o empréstimo não deveria sequer ser tentado. Nesta conjuntura

o responsável pelo Erário Régio “aproveitou a ocasião para concluir a favor de uma

reforma completa da administração da Fazenda Real, acompanhada da reforma da

fiscalidade”41.

Nos anos seguintes, o governo português iria procurar – através do aumento das

rendas e recorrendo ao endividamento interno – fazer face às despesas extraordinárias

para a defesa do Reino, operações essas cuja análise não cabe neste breve estudo42.

3. O primeiro empréstimo obrigacionista português (1802) Como “os tiros que o governo

francês despedia sobre Londres reverberavam sempre para o Tejo”43, cinco anos

depois, e sem que a almejada neutralidade pudesse ser alcançada, a Corte de Lisboa

ver -se -ia obrigada, uma vez mais e pelas razões já aduzidas na primeira parte deste

trabalho, a voltar ao mercado internacional e ao auxílio dos banqueiros ingleses.

Se a primeira tentativa da França revolucionária em 1795, para colocar Portugal

sob o domínio da Espanha, acabou por não se concretizar, a segunda, em 1801,

resultou na invasão do Alentejo, com a anexação de Olivença, e na assinatura de

outro Tratado nos termos ditados pelos vencedores. Era mais uma tentativa para, por

um lado, forçar o derradeiro aliado continental dos ingleses a aderir à estratégia de

Napoleão para quem o controlo sobre Portugal se tinha tornado essencial44 e, por

outro, a prova de que a defesa da neutralidade que o país perseguia, mais não era do

que um adiar do que viria a ocorrer em 1807.

Para comprar a paz e retomar a soberania sobre o território, Portugal assina,

primeiro o Tratado de Badajoz, no qual se previa o pagamento de uma indemnização

41 Nota de Andrée Diniz Silva in D. Rodrigo de Souza Coutinho, Textos políticos, económicos e financeiros

1783 -1811, Tomo II, p. 103.42 Sobre esta matéria vd.: Luís Espinha da Silveira, “Aspectos da evolução das finanças públicas portuguesas nas

primeiras décadas do século XIX (1800 -27)”; Nuno Valério et allia, As finanças públicas no Parlamento português.

Estudos preliminares.43 José Acúrsio das Neves, História geral das invasões francesas em Portugal e da restauração deste Reino, vol. I, p. 180.44 Sandro Sideri, Comércio e Poder. Colonialismo informal nas relações anglo -portuguesas, p. 173.

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197de guerra no valor de 15 milhões de libras tornesas, importância esta que a vora-

cidade de Napoleão subira, pelo Tratado de Madrid, de Setembro de 1801, num

primeiro momento para 25 milhões, que depois reduziu para 20 milhões, a realizar

em dinheiro, pedras preciosas e outros valores comerciais.

No final do mês seguinte (Outubro de 1801), John Standley aborda a Casa

Baring quanto à possibilidade de um empréstimo de 300.000 libras esterlinas a

conceder à Coroa portuguesa, pedido que obteve parecer favorável45. Segundo Buist,

o governo francês exigia a Portugal o pagamento de 4 milhões de cruzados em

dinheiro, diamantes no valor de 3 milhões, e outros 3 milhões em algodão e açúcar,

sendo que 1/3 destes valores deveriam ser satisfeitos até meados do mês seguinte,

isto é Novembro.

Contudo, pouco depois, os franceses mudaram de opinião e exigiram que a

exacção fosse satisfeita na sua totalidade em numerário. Por essa razão Standley

propôs ao seu correspondente o aumento para 1,2 milhões de libras esterlinas.

Nas abordagens iniciais junto do banqueiro Francis Baring este recomendou ao

governo português a participação de Quintela, uma vez que lhes parecia “insensato

ignorar uma tão respeitável e poderosa casa”46. Esta circunstância veio determinar o

afastamento, nesta operação, de John Standley, que assim viu gorada a possibilidade

de auferir as elevadas comissões que se propunha.

Em Novembro, a Coroa portuguesa, através dos já mencionados negociantes

Joaquim Pedro Quintela e Jacinto Fernandes Bandeira47, formalizou junto da casa

bancária Sir Francis Baring & Cº., um pedido de empréstimo, por dez anos, no total de

13 milhões de florins (1,2 milhões de libras esterlinas), mediante o lançamento de

45 Marten G. Buist, At spes non fracta. Hope and Co., 1770 -1815. Merchant bankers and diplomats at work, p. 387. Este autor

refere uma primeira aproximação, feita em Março de 1800, por Quintela a Henry Hope & Cº. para a

concessão de um empréstimo que foi recusado. Esta firma, no entanto, manifestava -se disposta a avançar,

em conjunto com a casa Sir Francis Baring & Cº., uma quantia de 100.000 libras esterlinas, por um prazo

de 2 anos, a um juro de 6%, e 5% de comissão, garantido por 40.000 quilates de diamantes avaliados em

147.000 libras esterlinas. 46 Idem, ibidem.47 De entre as condições impostas pelos banqueiros estrangeiros, ressalta a obrigação do Príncipe Regente

decretar a prorrogação do contrato geral de tabaco por mais 9 anos sem ir à praça, “com o aumento de

cem mil cruzados por ano, “assegurando a Quintela, Bandeira, Cruz Sobral e demais sócios o monopólio

da venda deste produto. (Decreto de 8 de Fevereiro de 1802). O produto do contrato ficava consignado

ao cumprimento das obrigações para com os emprestadores, “na parte que for necessária”. Ver tb. Raul Esteves dos Santos, Os tabacos, p. 49 e Fernando Dores Costa, Crise financeira, dívida pública e

capitalistas 1796 -1807, p. 78.

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198 uma emissão obrigacionista nos mercados internacionais. Portugal garantia a

operação por via de um depósito imediato de diamantes no valor aproximado de

300.000 libras esterlinas, e para o pagamento dos juros e comissões, a hipoteca das

rendas dos tabacos e das propriedades da Coroa.

Em princípios de Dezembro de 1801, George Baring, filho do sócio principal

da casa bancária londrina, acompanhado do banqueiro Pierre Labouchère, da firma

Hope & Cº. empreendem um tormentosa viagem até Lisboa, onde chegam a 28 de

Janeiro do ano seguinte para negociarem, in loco, as condições da operação.

Refeitos da lenta travessia dos Pirinéus48, efectuada no dorso de mulas depois da

fracassada tentativa de alugarem um barco em Bayonne, logo que aqui chegou,

Labouchère desdobrou -se em diligências, numa intensa actividade pluridisciplinar

(advogado, contabilista, banqueiro, tradutor)49, a fim de, segundo dizia, no mais breve

espaço de tempo possível Portugal poder dispor da quantia que lhe era necessária.

Segundo Buist, uma das primeiras decisões tomadas foi a de transferir a operação

para a casa Hope & Cº., de Amsterdão por sugestão dos banqueiros londrinos, o que

seria de interesse da Coroa portuguesa também “porque os empréstimos estrangeiros

eram difíceis de colocar em Inglaterra e muito dispendiosos”50.

Mas, de acordo com o preâmbulo do contrato terá sido o banqueiro inglês

quem, face ao elevado montante da operação, propôs que a Casa Hope & Co., então a

operar em Londres, participasse na operação a fim de se “juntar a eles para a recolha

da dita soma de um milhão e duzentas mil libras esterlinas (...)”51.

Assim, com a anuência do governo português, as casas Baring e Hope concer-

tavam esforços e dividiam responsabilidades.

A 8 de Fevereiro de 1802, um dia após o genro de Sir Francis ser recebido por

D. Rodrigo de Souza Coutinho, o Príncipe Regente emitia a carta de confirmação e

aprovação das condições que regulavam esta operação financeira52, consignando no

48 O percurso de Bayonne a Madrid demorou 9 dias. Cf. Buist, p. 389.49 The bicentenary of the 1802 Kingdom of Portugal bond issue, p. 4. 50 Buist, p. 390. Mas não só por estas razões. Tinha sido previamente acordado que o grau de participação de

cada casa seria de 5 para 2, assumindo a Hope & Cº., o maior quinhão.51 IAN/TT, Livro de Registo, Contrato para o empréstimo de treze milhões de florins, 19 de Fevereiro de 1802.,

fólios 1 a 5.52 Os textos da confirmação e aprovação das condições do empréstimo (ambos com data de 8 de Fevereiro)

estão transcritos em: D. Rodrigo de Souza Coutinho. Textos políticos, económicos e financeiros, 1783 -1811, Tomo II, p. 256

e seguintes; Livro de Registo de Decretos e Ordens do Tesouro Real (1761 -1808). Vol. 420, fls. 172 -181.

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199parágrafo 8º, que as casas Sir Francis Baring & Cª. e Hope & Cº. fossem consideradas

“como banqueiros e agentes especiais da minha real Coroa, tanto na Holanda, como

na Inglaterra”53.

Na semana seguinte D. Rodrigo de Souza Coutinho expediu uma carta para os

representantes diplomáticos de Portugal em Madrid e em Paris dando -lhes conta das

condições do empréstimo de 13 milhões de florins54 acabado de negociar.

Em aberto ficava o take over price da operação, acordado provisoriamente em 92%,

devido ao estado precário dos mercados de crédito na Europa. Os negociadores

bancários anteviam mesmo as dificuldades de circulação de uma nova emissão

obrigacionista à taxa de 5%, o que levou a Corte, nas negociações, a aceitar o pre-

juízo de 8%, que posteriormente viria a fixar -se nos 10%.

No dia 2 de Março, Labouchère e Baring partiram de Lisboa, com destino a

Gibraltar, de onde rumaram a Paris, que alcançaram a 17 de Abril.

Na capital francesa esperava -se que Pierre Labouchère pudesse fazer alguns ajustes

com vantagem para a Fazenda Real. Nas missivas diplomáticas eram dadas instruções

para que junto do representante da Casa Baring se mostrasse “o sistema que se deve

seguir de exagerar aos franceses a dificuldade que há em se achar os sobreditos fundos,

a fim de que ele tente se pode descontá -los com vantagem para a Coroa de Portugal”55.

Em concreto, a Cypriano Ribeiro Freire pedia -se que “se puder sem comprometimento

fazer vacilar o governo francês sobre a possibilidade da exacção dos pagamentos na

época prometida”. Foi esta a alternativa aceite pelos franceses, sendo o primeiro paga-

mento fixado para antes de 1 de Junho de 1802. Situação que se ajustava igualmente às

pretensões dos banqueiros, então a braços com a participação num empréstimo ao

governo britânico que lhes imobilizava boa parte dos fundos disponíveis.

*

Semanas depois os intermediários portugueses informavam a Casa Hope & Cº. que

a bordo do navio “Príncipe de Gales” seguia a primeira de uma série de 6 caixas,

contendo 20 000 quilates de diamantes brutos do Brasil, com destino à Casa Bancária

53 Na sequência desta condição de banqueiros da Coroa portuguesa, em 22 de Junho de 1802, a operação de compra pela Real Fábrica da Cordoaria de 14.000 quintais de cânhamo, foram dadas instruções ao cônsul português em Riga, Venceslau Teodoro Gama, para que o pagamento fosse feito através de saques sobre a Casa Baring, a liquidar pela Casa Dias Santos.

54 Na realidade apenas de 11.050.000 florins, depois de deduzidas as comissões e outras taxas.55 IAN/TT, Livro de Registo, Carta de D. Rodrigo de Souza Coutinho a Cypriano Ribeiro Freire, 16 de Fevereiro

de 1802, fl. 7.

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200 Sir Francis Baring & Cº. “a quem enviaremos nos barcos seguintes todos os outros

diamantes que se encontram no nosso tesouro real, e os que esperamos este ano do

Rio de Janeiro”56. Depositadas no Banco de Inglaterra as pedras preciosas seriam

entregues à consignação da firma Insinger & Cº., de Amsterdão, que se responsabilizava

pela sua venda.

Os pormenores relacionados com a transacção dos diamantes e os diferentes

interesses envolvidos nesse negócio vêm descritos num capítulo da obra de Marten

Buist, intitulado “The portuguese diamond loan”, assim como os diversos incidentes

que entretanto ocorreram, radicados na situação política em que a Holanda se via

envolvida, e que teve como consequência a recusa dos governantes batavos em

autorizar que a emissão obrigacionista tivesse lugar em Amsterdão.

Recorde -se, a propósito, que neste período vivia -se a denominada “paz

experimental”, entre a França e a Grã -Bretanha, decorrente do Tratado de Amiens,

circunstância que a casa Hope & Cº. aproveitou regressar a Amsterdão. Para esse

ressurgimento no mercado financeiro do seu país, Henri Hope contava precisamente

com o lançamento dos títulos portugueses, esperando com isso assegurar para a

então República da Batávia, o comércio de diamantes, em detrimento da Grã-

-Bretanha.

*

Assegurada a operação e reajustados os prazos de liquidação, em 6 de Maio, o

Príncipe Regente, “havendo consignado para o pagamento dos fundos e interesses

do empréstimo (...) não só o produto dos diamantes que existiam no meu Real

Erário e dos que a ele vierem enquanto o mesmo empréstimo não se extinguir, mas

também o que for preciso aplicar das mesadas e quartéis do preço do actual

Contrato Geral do Tabaco, e da prorrogação que por esta causa mandei fazer...”

autoriza o Ministro das Finanças que os descontos que eventualmente tivessem de

ser feitos nas mesadas, fossem não só creditados na conta do tesouro público, “mas

também que sejam infalíveis e inalteráveis sem que lhe obstem casos ou ocorrências

extraordinárias porque a todos deve prevalecer o contrato e convenção assim

celebrados”57.

56 Baring Archive, NP, 1 A -19.8. Carta de Joaquim Pedro Quintela e Jacinto Fernandes Bandeira, 25 de Fevereiro

de 1802.57 Livro de Registo de Decretos e Ordens do Tesouro Real (1761 -1808). Vol. 420, fl. 172.

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201Quanto aos diamantes, nas cláusulas do contrato provisório celebrado com

Labouchère ficara estabelecido que os mesmos constituíam a garantia principal do

empréstimo. Tanto os que se encontravam à data no Tesouro Régio, avaliados em

250.000 libras esterlinas, como todos aqueles que, mal chegados a Lisboa, seriam

enviados para depósito no Banco de Inglaterra, e que seriam vendidos à medida das

necessidades da Hope & Cº.

*

Na sequência dos compromissos estabelecidos, a 14 de Maio de 1802, o

tesoureiro do governo francês, o cidadão Estève, recebeu os primeiros 3 milhões de

libras tornesas58 entregues pelas casas Perregaux & Cie. e Baguenault & Cie., através de

saques sobre a Hope & Cº.

Os pagamentos seguintes, com início em 30 de Junho de 1802, seguir -se -iam

ao ritmo de 1 milhão por mês, até 31 de Agosto de 1803. A estes 18 milhões de

libras tornesas juntavam -se os 2 milhões em dinheiro metálico que, em Março ou

Abril, os negociadores portugueses deveriam entregar em Lisboa, a Leclerc, cunhado

de Napoleão, para financiar a expedição que este, em 1802, enviou para conter a

rebelião que se declarara na ilha de Santo Domingo, no ano anterior.

Contudo, em Junho, e porque os 2 milhões de libras “se achavam aqui

demorados”, a França exigiu a sua entrega em Paris, operação que foi realizada pelos

negociantes Quintela e Bandeira, não sem que o governo português diligenciasse

através de D. José Maria de Souza, nosso embaixador em Paris, para que este entrasse

em negociações “para ver a indemnização que o governo francês quer conceder

pelas despesas que houve com a remessa destes fundos para Lisboa, e de Lisboa para

Paris, pois é sempre essencial não fazer maiores sacrifícios do que aqueles que são

necessários”59.

Neste período as pressões do governo francês eram tais que em quase todo o

expediente trocado entre Souza Coutinho e os seus correspondentes, se fazia eco das

“insistentes solicitações deste governo que devora tudo, e cuja inquietante ambição

não tem nem repouso nem limite”60. O receio do poderio francês estava sempre

presente e era patente nas missivas do correio diplomático.

58 Cerca de 1 440 000 florins. (Uma libra tornesa em 1803 era equivalente a 0,48 florins, cf. Buist, p. 394)59 IAN/TT, Livro de registo, Carta de D. Rodrigo de Souza Coutinho a D. José Maria de Souza, 15 de Junho de 1802.60 Idem, ibidem.

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202 ***

Em 18 de Janeiro de 1803 a casa holandesa dirigia a D. Rodrigo de Souza

Coutinho uma carta, fazendo o ponto da situação do empréstimo português, de que

esta Casa Bancária passava a ser então única responsável, assim como o acompanhamento

das contas para que o Real Erário as conferisse. Segundo a documentação disponível,

no mês anterior os banqueiros ingleses deixaram de assumir a gestão principal do

empréstimo, consignando o negócio definitivo à casa de Amsterdão.

Depois de fazer prova na boa vontade da Hope & Cº., o sócio principal, Henry

Hope, dizia que “apesar das dificuldades dos tempos e das circunstâncias, o nosso

zelo e a nossa dedicação não foram de modo algum retardados, e que se preferimos

o sistema da prudência, não dando a Sua Alteza Real esperanças que os acontecimentos

pudessem desmentir, estamos no entanto vivamente compenetrados da importância

de que esta operação possa efectuar -se nos termos acordados no seu começo”61.

Dava a conhecer que a perseverança do governo holandês ao não autorizar a

assinatura das obrigações por um notário local, coagia a uma “pequena alteração, não

na obrigação original, que está concebida de maneira a servir em todos os casos”, mas

na solicitude de Jacinto Fernandes Bandeira e de Joaquim Pedro Quintela, que deviam,

em Lisboa, procurar a assinatura de um notário nas reimpressas “obrigações parciais”

que a Casa Sir Francis Baring & Cº. mandara fazer, nas quais a palavra “Amsterdão” fora

substituída por “Londres”. Os títulos seriam, a pouco e pouco, enviados para Lisboa

por via marítima, após o que retornariam a Amsterdão para a assinatura dos banqueiros

que asseguravam a operação. Este incidente esteve na origem de algum atraso no

lançamento das obrigações no mercado holandês, suportando os banqueiros os

“dissabores” decorrentes do imprevisto acontecimento.

Este episódio motivara já uma carta, em Agosto do ano anterior, de Souza

Coutinho a João Paula Bezerra, nosso representante em Haia, para que procurasse

remover “todas estas dificuldades e conseguir do governo batavo que consiga a favor

de uma potência amiga aquelas mesmas facilidades que tem acordado a respeito de

outras potências, e que são muito conformes aos seus interesses económicos, dando

um novo movimento ao comércio que existe entre os dois países”62. Mas, ao que

61 Baring Archive, NP, 1 A -19.8. Carta da firma Hope & Co. a D. Rodrigo de Souza Coutinho, 18 de Janeiro de

1803.62 IAN/TT, Livro de Registo, Carta de D. Rodrigo de Souza Coutinho a João Paulo Bezerra, 20 de Agosto de 1802,

fl. 21 v.

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203consta, as diligências não tiveram sucesso, em parte devido à frágil situação política

holandesa, então “colonizada” pela França.

Ainda pela missiva de 18 de Janeiro de 1803, já mencionada, ficamos ainda a

saber da pouca receptividade dos investidores em subscrever as obrigações. Contudo,

a Hope & Cº. estava esperançada nos esforços que envidaria para que fosse possível a

subscrição da totalidade das 13 000 obrigações. E fazia esta profissão de fé, na

sequência da carta que o responsável pela Fazenda Pública portuguesa enviara a

Francis Baring, justificando o atraso na entrega dos diamantes do Brasil, “que

esperamos com impaciência pela feliz chegada”.

Na longa exposição que a Casa Hope & Cº. juntava à contabilidade da operação,

ressalta as cautelas com que estes banqueiros, não obstante os sucessivos protestos

protocolares pela consideração que tinham para com Souza Coutinho e para com o

Príncipe Regente, não deixaram de fazer notar que os progressos da emissão, estavam

dependentes da chegada ou não dos diamantes necessários para cobrir o

investimento63. Mas não só. A qualidade das pedras preciosas fazia também oscilar a

conta corrente, resguardando -se sempre os banqueiros com o argumento de que

“até que possamos reconhecer o valor das parcelas esperadas, não podemos dar às

nossas vendas toda a actividade que desejamos”, razão pela qual não podiam adiantar

valores a crédito da Coroa portuguesa. A conta corrente, no final de Dezembro de

1802, acusava um saldo positivo de mais de 3 milhões de florins a favor de Portugal,

quando ainda faltava saldar junto do governo francês prestações no valor de 8

milhões de libras tornesas (cerca de 3,8 milhões de florins). O défice resultante seria

liquidado através de saques mensais de 100 000 libras sobre Quintela ou Bandeira.

Na mesma data, numa outra carta remetida para Lisboa, John Williams Hope,

confessava a John Standley, e depois de dar nota da conta -corrente do empréstimo,

que se tinha convertido à ideia de que Portugal “tem mais do que amplos meios para

providenciar todas as suas necessidades, desde que possa, por muito tempo, ser

governado com a mesma sabedoria e moderação”64.

A elogiosa referência tinha como destinatário D. Rodrigo de Souza Coutinho,

responsável pelas finanças públicas portuguesas que, com determinação e empenho,

63 Os atrasos na chegada dos diamantes a Londres, que eram objecto de constantes reparos de Sir Francis Baring, obrigaram o Presidente do Real Erário a esclarecer que “o distrito dos diamantes no Brasil estava bastante afastado das costas, para que as ordens da Corte aí chegassem tão prontamente quanto os desejos de Sua Alteza Real” (Carta de 20 de Novembro de 1802).

64 Baring Archive, NP, 1 A -19.8. Carta de Henry Hope para John Standley, 18 de Janeiro de 1803.

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204 vinha desde 1801 a implementar o programa de saneamento das contas do Estado.

Segundo Cardoso, “a coerência e determinação com que [D. Rodrigo] defendia uma

orientação anti -francesa na política externa, em Junho e Agosto de 1803, viriam a

ser a última oportunidade de demonstrar que queria estar no governo para exercer

a sua política(...)”65. O que era verdade. Datado de 20 de Junho de 1803, Souza

Coutinho, a pedido do Regente, lavra um parecer sobre a compra da neutralidade à

França66, onde manifesta a opinião de que “as proposições da França não podem de

modo algum ser aceites em primeiro lugar porque nenhuma potência poderia

actualmente dar 36 milhões de libras67 sem recorrer a empréstimos (...). Para o

responsável pelas finanças públicas, melhor seria utilizar tal quantia na defesa de

Portugal, sustentando a sua independência “do que sujeitar -se a um sistema de

escravidão perpétuo” tornando o Regente feudatário do governo francês. Incita D.

João a defender -se, pondo -se “à testa da sua Nação, ou para morrer independente

com ela na Europa, ou para ir em último resultado criar um grande império no

Brasil” e de onde pudesse vir a retomar os seus domínios no continente europeu.

Justifica -se aqui uma nota sobre a subscrição das obrigações portuguesas.

Segundo Buist (p. 403), no final de 1802, das 5.000 obrigações vendidas, 3.418

foram adquiridas pela Casa Hope; esta revendeu 1.793 títulos a diversos membros

da sua família, enquanto 942 foram contabilizadas nas reservas da Casa Bancária,

Outras 972 foram adquiridas por investidores particulares, familiares de Labouchère,

Quintela, Bandeira e o embaixador José Maria de Souza. Em 1803 a Casa hope

comprou mais 3.000 e um grupo de empresários liderados por Willem Borsky

comprou 1.000. Estes grupo, no final de 1804, tinha em carteira 2.678 obrigações

do empréstimo português.

Em Agosto de 1803, a Hope & Cº. liquidaria a última prestação à França. Pouco

mais de um ano depois, Sir Francis Baring, a propósito dos empréstimos concedidos

a Portugal e aos Estados Unidos, escrevia a Henry Hope: “(...) The Portuguese

government was weak, its Ministers ignorant, thinking to receive the law at your

65 José Luís Cardoso, O pensamento económico em Portugal nos finais do século XVIII, 1780 -1708, p. 187.66 Publicado em Ângelo Pereira, D. João VI. Príncipe e Rei, p. 123 -124.67 Este valor poderá corresponder à soma das indemnizações de 20 milhões de libras tornesas (Tratado de

Madrid de 29 de Setembro de 1801), e de 16 milhões de francos estipulados na Convenção de subsídios

assinada em 19 de Março de 1804, mas que provavelmente em Junho de 1803 era já do conhecimento

de Souza Coutinho.

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205hands. Not so those with whom Alexander negotiated”68. E acrescentava: “Mas não

aqueles com quem Alexander [Baring] negociou”, isto é, com os americanos.

Opinião possivelmente não partilhada pelo destinatário, cujo irmão, e como

anteriormente ficou referido (nota 51), louvara os governantes de Lisboa.

Ainda antes do final desse ano, e como já referido, a França voltaria a exigir o

pagamento de outra indemnização, de novo com a promessa de garantir a

neutralidade a Portugal. Para Acúrsio das Neves, Napoleão “vendia Tratados para ter

dinheiro, e faltava a eles para obter novas vendas”, pois só assim era possível

“satisfazer a vontade destas harpias69 que queriam devorar Portugal”70.

Com efeito, mesmo depois da partida da Corte para o Brasil, na véspera da

primeira invasão francesa, o nosso país continuaria, ao longo dos anos, e embora de

forma irregular e com muitos incidentes de permeio, a solver os compromissos

internacionais que assumira para a compra de uma neutralidade que os invasores,

em circunstância alguma estiveram interessados em respeitar, donde o reconhecimento

de que, “(...) nem as habilidades diplomáticas, nem o ouro do Real Erário,

conseguiram refrear as ambições imperialistas de Bonaparte”71.

A invasão do território nacional iniciara -se em 1801, com a conivência de uma

Espanha que cometera “a aleivosia de nos pedir socorro contra os franceses; de nos fazer

a guerra porque o demos; de nos dar aparências de que não principiará as hostilidades;

e de cair de repente sobre as nossas praças”72. A compra da paz a que Portugal se

sujeitou, esteve na origem da exacção de 20 milhões de libras tornesas que a Coroa

teve de procurar além fronteiras. Não podendo contar com a mobilização forçada de

recursos militares para as suas campanhas, o que obrigou às nações europeias que

conquistou, a França exigia – a um país onde a abundância de diamantes vindos do

Brasil era uma excelente alternativa –, um pesado tributo para garantir a paz.

E, em 1810, quando Portugal ainda não saldara as suas dívidas junto da banca

europeia, já as divisões francesas invadiam o território do último aliado britânico,

lançando a mais total devastação sobre o país.

68 Baring Archive, NP, 1A 4.59. Carta de Sir Francis Baring para Henri Hope, remetida de Bath, 3 de Outubro

de 1804.69 Monstro fabuloso com cabeça de mulher e corpo de abutre.70 José Acúrsio das Neves, História geral das invasões francesas em Portugal e da restauração deste Reino, p. 170 e 186.71 Ângelo Pereira, D. João VI. Príncipe e Rei, p. 114.72 Carta do General Marquês de Alorna a D. João, 19 de Janeiro de 1804 (in Ângelo Pereira, p. 141).

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206 Conclusão Este estudo apresenta os resultados da investigação a decorrer sobre o primeiro

empréstimo obrigacionista português, com base nos arquivos da Casa Baring e na

documentação conhecida existente nos Arquivos Nacionais.

Não obstante a inglória busca de uma neutralidade que poupasse o País à

devastação que assolou a Europa, Portugal ver -se -ia arrastado para o torvelinho da

conflitualidade europeia, vítima dos ardis da política da Corte castelhana (que

acabaram por lhe ser fatais) e das conveniências estratégicas de um aliado secular

com uma visão unívoca das suas responsabilidades enquanto parte contraente da

mais antiga aliança europeia.

Dessa situação de grande fragilidade do reino de Portugal aproveitou a França

para exigir ao aliado da sua inimiga, contributos financeiros incomportáveis para a

fazenda pública nacional, que os responsáveis pelas finanças portuguesas procuraram

prontamente cumprir de acordo com as instruções do Príncipe Regente.

A situação financeira internacional existente à data dos pedidos feitos pelo

governo português, entre 1797 e 1802, não se apresentava favorável aos desígnios

nacionais. Com efeito, as alterações que a Revolução francesa provocou em toda a

estrutura política, social e económica da Europa – de que os pedidos portugueses

foram uma consequência – não eram de molde a favorecer as pretensões da Coroa

portuguesa, no esforço para encontrar os meios monetários que satisfizessem a

voracidade dos novos senhores da Europa.

Os argumentos invocados pelos banqueiros a quem Portugal se dirigiu giravam

à volta das dificuldades dos mercados internacionais para a realização de operações

que, no contexto da guerras napoleónicas, assumiam elevado risco, que manifestamente

não estavam dispostos a assumir sem sólidas garantias.

Com base em considerações de natureza ou política ou financeira, ou mesmo

ambas, consoante os momentos, os banqueiros e governos da Grã -Bretanha e da

Holanda (muitas vezes cruzando argumentos) justificaram as suas dúplices atitudes,

em relação às operações que lhes foram submetidas por Portugal.

E se, em 1797, os argumentos político avançados pelos ingleses impediram os

banqueiros Baring de mediarem uma apetecida operação financeira, para mais

garantida (e se a hipoteca da produção diamantífera não fosse suficiente), pela oferta

dos territórios da África oriental sob domínio português, em 1802, os cobiçados

diamantes do Brasil, a par das rendas do contrato do tabaco, sossegaram o espírito

dos credores. Mas também porque as condições, sobretudo políticas, tinham sofrido

mudança.

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207Do primeiro momento sobressai a recusa da Casa Insinger & Cº., de Amsterdão, em

emprestar dinheiro aos portugueses, com base no “anti -patriotismo” de que poderia

ser acusada pelo seu governo. De igual modo os ingleses, segunda escolha dos

negociantes Bandeira e Quintela, recusariam o seu envolvimento alegando a

inoportunidade do momento, ao verem rejeitada a garantia política que desejavam

do governo de William Pitt. Mas este, a debater -se com sérias dificuldades na

condução da sua política interna, não quis expor -se a maior desgaste.

Em 1802, e tendo como pano de fundo a confrontação franco -britânica,

prevaleceu o “business as usual”, que proporcionou à França receber de Portugal as

prestações mensais de um milhão de libras tornesas, inicialmente através dos

banqueiros ingleses.

Não obstante a conjuntura depressiva que Portugal suportou e as humilhações

a que foi sujeito, a orientação estratégica de D. João permitiu evitar que o país se

sujeitasse à vontade do inimigo, e pudesse continuar a lutar, na esteira dos

ensinamentos de Von Clausewitz, um dos quais estipula que “teremos o dever de

intervir quando as hipóteses de sucesso são diminutas, desde que a única alternativa

seja a inacção e a capitulação”73.NE

FONTES MANUSCRITAS

Arquivo Histórico do Tribunal de Contas

Fundo. Geral do Erário Régio

Livro de Registo de Decretos e Ordens do Tesouro Real, 1761 -1808.

Livro 420 (1801 -1803)

Cartório Avulso

Caixa 40

Baring Archive at ING Bank (London)

Northbrook Business Papers

1A – 4.4, 4.6, 4.25, 4.52, 4.59, 13.3, 19.7, 19.8.

1D – 11.6

73 Carl Von Clausewitz, Princípios da guerra, p. 20.

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208 Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo

Ministério do Reino

Maço 616, Caixa 178, 27 de Setembro de 1762

Ministério da Fazenda

Livro de registo pertencente ao empréstimo de Baring & Cª. e Hope & Cª.

Livro 3974, 16 de Fevereiro de 1802 a 11 de Junho de 1807

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■ Abstract:

At the beginning of the so-called Napoleonic Wars, Portugal kept an extremely

advantageous trade position regarding France and England. Therefore, although

entering the Roussillon War, in a first moment, in order not to be excluded from an

alliance between Spain and England, Portugal tried its best to be neutral vis -â -vis the

different belligerent parties. That option was nevertheless antagonised by France,

who tried to push Portugal into its side. Highly dependent of sea traffic to keep its

economic growth, Portugal had only the alternative as to join England in the process

of war. England was then – as always – the main world sea Power, whose consent

was essential to sustain any regular trade by sea. While secretly negotiating with

England the necessary conditions to keep its sovereignty, territorial integrity and the

safety of its huge overseas territories in Africa, America and Asia, Portugal maintained

simultaneously a constant dialogue with France with a view to postpone a possible

invasion of its territory in Europe until the negotiations with England were ripe.

Imagining a defenceless and terrified Portugal, fearful of its martial power, Napoleon

never thought that with the resourceful solution of moving the Court to Brazil, the

Prince Regent D. João would put the Portuguese sovereignty out of his reach. In fact,

unable to control the Portuguese lawful rulers, any French presence in Portugal was

to be limited to a military one. Dealing with two of the world main powers of the

time, the Prince Regent D. João played a skilful but extremely dangerous diplomatic

game that nevertheless lead to the keeping of the Portuguese royal house as well as

of all of the Portuguese territories.

COMO SE SABE, há duzentos anos atrás, no início de 1808, a Corte Portuguesa chega ao Brasil,

para aí se instalar durante algumas décadas. Foi uma acção pioneira, para a época,

o fato de uma Corte Europeia, o que na altura significava o centro nervoso de todo

A política diplomática portuguesa anterior à transferência

da Corte para o Brasil

João Sabido Costa*

* Diplomata, Cônsul-Geral em Salvador.

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212 um país, se transferir para uma das suas colónias, isto é, para um dos territórios

ultramarinos que nessa altura várias potências da Europa detinham e administravam,

por descoberta ou conquista.

Afinal, que tipo de circunstâncias levava, assim, a essa deslocação, a que muitos

mais tarde (efectivamente mais tarde) chamaram fuga? O circunstancialismo,

indubitavelmente, foi o das Guerras Napoleónicas, que então grassavam pela Europa. E

a deslocação portuguesa para o Brasil, de certo modo, alargando o cenário – bélico e

diplomático – europeu, para outro continente, provava que a Europa já não se podia

considerar um espaço geoestratégico fechado, mas que outras regiões do mundo

influenciavam – inclusive por motivos económicos – o que nela se forjava.

Na verdade, o julgamento que dessa decisão de “transmigração” pela Corte

Portuguesa, no final de 1807, foi mais tarde analisada e julgada à lupa das necessidades

de justificação de outro sistema social e político, que transformou o cultivo da ciência

histórica num quase panfleto onde tudo cabia: caricatura, análises comportamentais,

intuições que até poderiam ser geniais senão desprovidas de suporte documental,

suficiente espírito crítico e consistência com o quadro geral do período focado. Essa

foi uma análise histórica que causou uma percepção que “ficou”, em Portugal e não

só, nomeadamente devido à ausência de uma historiografia posterior que a esse

período se dedicasse com espírito verdadeiramente científico e analítico.

Por outro lado, mesmo nos dias de hoje, a ausência de uma historiografia

verdadeiramente “diplomática” leva a que a intenção da análise dos “passos” da

diplomacia do período antecedente, as negociações, o envio e retirada de representantes,

fossem entendidas de um modo literal, sem se atender ao objectivo geral visado, que

é essencial na percepção de qualquer processo diplomático e que dá um sentido a

todas as peças dessa sequência, que não podem ser entendidas desgarradas. Do mesmo

modo, é um fato que o conteúdo de qualquer declaração, proposta, ou mesmo ameaça

num processo internacional não pode ser vista como diferenciada das reais

possibilidades da sua concretização.

Igualmente, o recurso à personalidade dos personagens históricos, incluindo os

“defeitos” e “qualidades” que as posteriores gerações lhes atribuem, só com muito

cui dado podem ser usadas para justificação dos fenómenos históricos e da sua

sequência.

Na realidade, diz -nos a experiência da observação, ou a leitura de estudos

históricos, que a vontade humana, ou a falta dela, pode bem pouco na complexa

conjuntura de fatos cruzados e concatenados que desliza, com inércia imparável, nos

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213corredores do tempo. Mesmo que fosse só pela multiplicidade quase infinita das

vontades humanas envolvidas – em níveis de decisão ou influência diferentes, é certo –

ficava demonstrada a incapacidade de um só ser derrotar o fado inelutável dos destinos

da História.

Isso não significa claro, que defendamos a anulação da vontade e do querer

humano na determinação da História. Queremos, é, dizer que qualquer vontade

individual terá de ser, em qualquer estudo, relativizada, sendo certo que qualquer

grande príncipe ou soberano da História soube aproveitar a massa quase esmagadora

de factores políticos, sociais e económicos que se antepunham, em vez de tolamente

se lhes procurar opor.

Outro aspecto que tem prejudicado a nossa visão histórica de um período tão

importante para Portugal – e Brasil – é que, na ausência de estudos nacionais

suficientes, os factos da época são relidos pela óptica de historiadores de outras

nacionalidades, vulgo europeias, que, naturalmente, tendem a enaltecer o ponto de

vista do seu país, descurando – muitas vezes até por desconhecimento e menor

compreensão da nossa Língua – a documentação eventualmente explicativa que segue

guardada nos nossos arquivos: afinal, continua sendo uma quimera a possibilidade

científica de uma História Universal verdadeiramente imparcial e objectiva.

Como refere Braga de Macedo1: “(...) a história diplomática tem sido escrita na

óptica das grandes potências, desprezando a pequena dimensão. (No entanto, sem) a

pequena dimensão, a análise limita -se a organizações que, como é o caso dos impérios,

sendo estatais, às vezes ultrapassam a nação”. A dimensão nacional da História, e a sua

“diferencialidade” específica são, assim, essenciais para a compreensão pelo português

ou outro, da História de Portugal.

Valeria a pena referir, neste contexto, o importante papel que a historiografia e os

autores brasileiros, a propósito das Comemorações de 1808, deram para a revisão

histórica deste período, de um modo muito mais racional, permitindo explicar os

importantes acontecimentos que, a partir daí, conduziram, inclusive, à independência

do Brasil.

De qualquer modo, se pretendermos ter uma perspectiva do que foi a política

internacional seguida por Portugal nos anos antecedendo a partida da Corte para o

Brasil, teremos de focar os seguintes aspectos.

1 Citado por Braga de Macedo, págs. 30 e 31.

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214 As Guerras Napoleónicas e a Política de Napoleão As Guerras chamadas “napoleónicas”

iniciaram -se, na realidade, ainda antes “de Napoleão”, no final do século XVIII, como

consequência da Revolução Francesa. Esta veio pôr, de modo drástico, em causa o

sistema político e social vigente em França, criando uma perspectiva de alteração de

equilíbrio internacional na Europa, e dando origem a uma reacção tendencialmente

articulada de diversas potências contra o Estado Francês.

Foram várias, entre 1792 e 1806 as sucessivas coligações negociadas contra

França, no início das quais Portugal participou, todas elas vindo, de certo modo, a ser

desfeitas na sequência do conflito com as tropas francesas. É nessa série de fatos

políticos e bélicos, já iniciada, que se vem a destacar a figura de Napoleão Bonaparte,

depois arvorado à mais alta chefia da Nação.

Nesse sentido, as “Guerras Napoleónicas”, as terrestres, combatidas em solo

europeu, procuraram assegurar, para França, condições de defesa, garantias de

estabilidade e um papel por ela considerado suficiente e adequado na “balança” da

Europa. Decorridas em primeiro lugar nas fronteiras geográficas orientais de França,

nos “Países Baixos Austríacos” e no Piemonte, foram -se desenvolvendo – inclusive por

outras regiões sucessivamente mais a Leste (até pelo aproveitamento por Napoleão das

vantagens estratégicas dos Alpes) –, à medida que tal se tornava necessário para França

assegurar a instalação de soberanias amigas em regiões estrategicamente interessantes,

ou para firmar juridicamente, através de Tratados, as condições de Paz e de favorecimento

que este país pretendia obter das potências com as quais havia estado em guerra.

Surge, assim, a República Italiana, em 1802, a Coroação de Napoleão como Rei de

Itália, a Coroação de José Bonaparte como Rei de Nápoles, em 1806, a de Luís

Bonaparte como rei da Holanda, no mesmo ano. São, por outro lado, sucessivamente

firmadas a Paz de Basel e a Paz com Espanha, ambas em 1795, o cessar -fogo com o

Piemonte, em 1796, o cessar -fogo de Leoben e a Paz de Campo Formio com a Áustria,

ambos em 1797, a Paz de Lunéville, em 1801, a Paz de Amiens em 1802, a Paz de

Pressburg em 1805 e a Paz de Tilsit em 1807.

Fator importante da influência de Napoleão na política europeia foi a aceleração

da dissolução do Sacro Império Romano Germânico, instrumento importante da

política da Áustria na Europa, entidade que, na realidade, já estava bastante abalada pelo

crescente relevo de um Estado como a Prússia.

Napoleão contribui para criar, assim, um complexo de Estados germânicos, alguns

dos quais se tornam seus importantes aliados, como a Baviera, vendo alguns, inclusive,

elevado o seu estatuto no plano internacional. É o que acontece, por exemplo, para

além da Baviera, com o Würtemberg, Mainz, Baden, Berg e Hesse -Darmstadt. Também

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215o Chefe da Casa de Nassau se torna Gtão -Duque e o de Leyen, Príncipe2, alterando o

equilíbrio do mapa político europeu.

Já a Oeste, pelo menos até 1808, a política napoleônica foi mais simples. Tendo

ganho com sucesso a Guerra do Russilhão, de 1794, contra a Espanha – esta, nomea-

damente, ajudada por Portugal – a França firma, em Junho de 1795, uma paz com

aquele país, pela qual ele se torna seu aliado e, se necessário, instrumento para controlar

Portugal, o mais ocidental país da Europa – na perspectiva francesa, seria, assim,

suficiente uma articulação com Espanha para determinar o destino de Portugal.

Será de dizer, contudo, que logo esse último ponto de vista se desfaz, com os

resultados fracos da “Guerra das Laranjas”, de 1801, invasão espanhola de território

português da qual resulta – para Espanha – o ganho de fato da aquisição de Olivença,

e, para o “mundo”, a evidência de dois exércitos que se “poupavam” (principalmente

o português) e de um invasor que não mostrava grandes desejos – ou capacidades – de

conquistas extensas num território com as características do de Portugal.

Situação inglesa Com a Inglaterra a situação era completamente diferente. Estrategicamente

oposta a Napoleão desde a primeira hora, procura evitar intervenções de grande vulto

no continente enquanto comprova ser completamente capaz de derrotar as forças

navais francesas (e espanholas). Nessa sua política, e à medida que Napoleão dominava

a Europa, os portos portugueses continuavam a prestar um apoio precioso às esquadras

inglesas, intervindo a Marinha portuguesa, quando necessário, ao lado da inglesa.

Posição portuguesa anterior ao Bloqueio Continental Após a decapitação de Luís XVI,

no início de 1793, o desejo da França era que Portugal se mantivesse neutro no

seu conflito com outros países europeus. No entanto, o “(...) Governo de Lisboa,

preocupado com a aliança que fora entretanto celebrada entre a Grã -Bretanha e a

Espanha, de que não fazia parte, resolveu participar na coligação contra a França

(...)”3, celebrando dois acordos com aqueles dois países. Terá de se recordar que, aliado

tradicional da Inglaterra, não interessava a Portugal qualquer aproximação deste país a

Espanha, principalmente se esta se concretizasse de forma que o excluísse.

Como já se viu, desse belicismo português resultou a sua entrada na Guerra do

Russilhão, que terminou com uma paz separada entre França e Espanha. Procurando

2 Reifenscheid, pág. 281.3 Magalhães, pág. 121.

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216 recuperar o terreno perdido, e uma vez que a guerra deixara de lhe interessar, Portugal

tenta estabelecer uma paz com França, sendo, em 10 de Agosto de 1797, celebrado

um Tratado, a que se seguiu “(...) outro relativo ao pagamento de dez milhões de

francos à França, com data de 20 de Agosto”4. Portugal concederia também

facilidades comerciais a França e interromperia a ajuda militar a Inglaterra. Seriam

também revistas as fronteiras da Guiana francesa. Após peripécias várias, os tratados,

depois de serem assinados por França, são -no, por fim, por Portugal, mas então já

sem ser aceites pela Parte francesa.

A partir daí, vai ser a França que não se contenta com a neutralidade portuguesa,

pretendendo atrair Portugal “para o seu campo”5. Não conseguindo, orquestra com

Espanha a já referida invasão de Portugal.

Após esta “Guerra das Laranjas”, resultam, em 1801, tratados de paz com

Espanha e França. “Por estes tratados Portugal comprometia -se a fechar os portos aos

navios britânicos devendo a Espanha restituir as praças tomadas (salvo Olivença).

Portugal teria de pagar à França uma indemnização de 15 milhões de libras tornesas,

aceitar as fronteiras da Guiana (francesa) até à foz do rio Arawani e autorizar a

importação de lanifícios franceses no regime de nação mais favorecida”6. O fim do

apoio português a Inglaterra continuava a ser uma das condições impostas. Estas

condições foram depois agravadas, por iniciativa francesa, em Setembro de 1801.

No entanto, Portugal mantém, de facto, o apoio militar a Inglaterra, tanto através

da colaboração da esquadra portuguesa, como da aceitação de acções inglesas

organizadas a partir de Portugal. Como refere Light7: “Portugal (...) era forçado a

recorrer a um jogo político bem orquestrado a fim de manter a França à distância e,

ao mesmo tempo, conservar boas relações com o seu aliado tradicional, a Grã-

-Bretanha”. Tal significava, também, para o Governo português, ignorar as referidas

disposições negociadas com França em 1801 relativas ao encerramento dos seus

portos aos ingleses.

“Em 19 de Março de 1804, as negociações com França culminaram com a

“Convenção de Neutralidade e Subsídios entre o Príncipe Regente D. João e a

República Francesa”, assinada pelo plenipotenciário português José Manuel Pinto de

Sousa, ministro de Portugal em Estocolmo, e pelo plenipotenciário francês, general

4 Idem, 122.5 Idem, pág. 124.6 Idem, 123.7 Pág. 22.

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217Jean Lannes. Estipulava -se o pagamento e o preço para manter a paz, equivalente a

40 mil libras por mês”8. Este tratado haveria, porém, de vir a ser ignorado por

França, quando determinou impor (também a Portugal), a política conhecida como

Bloqueio Continental.

De salientar que as vantagens comerciais que nessa altura Portugal mantinha face

a França e Inglaterra justificavam que, para obter a neutralidade, se afigurasse

disposto a aceitar exigências francesas (aliás, aparentemente nunca concretizadas)

que, noutro circunstancialismo financeiro, seriam francamente intoleráveis.

A política económica francesa – o Bloqueio Continental Parte essencial deste processo bélico,

e na sequência do estabelecimento por Inglaterra de um bloqueio naval às costas de

França, foi o recurso (por Napoleão) à “guerra económica” a Inglaterra, através da

decretação, em 21 de Novembro de 1806, do chamado Bloqueio Continental, “pelo

qual se proibia o comércio com a Inglaterra, país considerado em estado de sítio e se

declarava boa presa todo e qualquer barco que tivesse tocado em porto inglês. Estas

decisões do bloqueio foram alargadas por um decreto de 17 de Dezembro de 1806,

que ampliava a designação de boa presa aos barcos que houvessem pago imposto ao

Tesouro britânico ou tivessem recebido a visita de um navio inglês”9.

“O objectivo era fechar o continente europeu às produções, industriais e outras,

remetidas de Inglaterra e suscitar assim a desorganização deste país, cuja prosperidade

assentava no envio, para diferentes regiões, da sua produção, realizada em excelentes

condições técnicas e distribuída por um aparelho comercial também de excepcional

valor”10.

Das decisões de Napoleão foi notificado o Governo Português, que não se terá

importado muito por diversas razões. Na realidade, tanto ou mais importante que

para Inglaterra, o era o comércio através dos portos portugueses para França.

Efectivamente, já no Tratado de Paz de 29 de Setembro de 1801, “(se) estipulava (...)

o encerramento dos portos portugueses à navegação inglesa, condição que,

evidentemente, não teve (como se viu) qualquer efeito”11.

Também a seguir à “ruptura da Paz de Amiens e das medidas inglesas sobre o

bloqueio da costa francesa, a Corte de Lisboa publica o decreto de 3 de Junho de

8 Light, pág. 20.9 Macedo, pág. 38.10 Idem, pág. 38.11 Idem, pág. 41.

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218 1803 (...)12”, aprovando medidas de fiscalização da neutralidade portuguesa, mas

que “(...) estavam longe de ser cumpridas à risca. Salvavam as aparências, em face da

situação difícil criada para a Inglaterra depois daquela paz13”.

Na realidade, pelo facto de a sua Marinha controlar os mares, a Inglaterra

tolerava o comércio francês, que se desenrolava paralelamente ao seu. Essa tolerância

pararia, porém, pela própria intolerância francesa, caso se quisesse impor realmente

o bloqueio continental. “O encerramento dos portos portugueses (...) era um

projecto cuja realização prejudicava França em virtude dos grandes abastecimentos

de produtos coloniais que daqui recebia14”. “Para levar a efeito o esforço que o

Bloqueio impunha, os franceses foram forçados a cortar a sua mais segura via de

abastecimento em produtos coloniais”15.

Esse fato é claramente referido no Manifesto do Príncipe Regente, já no Rio de

Janeiro, a 1 de Maio de 180816: “A França recebeu de Portugal desde 1804 a 1807,

todos os géneros coloniais e matérias -primas para as suas manufacturas. A aliança da

Inglaterra com Portugal foi útil à França, e na decadência que tiveram as artes e

indústrias, em consequência de uma guerra perpétua por terra e de outra desastrosa

por mar, em que ela só teve desbaratos, foi sem dúvida de grande vantagem para a

França o não ter sido o comércio de Portugal interrompido; por certo foi ele

igualmente útil a ambos os países”.

Por outro lado, sem poder marítimo suficiente, a França (e com ela Espanha)

nunca teria hipóteses de verdadeiramente controlar os portos portugueses. “Napoleão,

na sua estratégia, ao ter que entregar às armas a solução da resistência portuguesa ao

Bloqueio Continental, teve que anular uma fonte essencial para os seus abastecimentos

em matérias -primas”17.

Já para Inglaterra, o comércio português não se centrava tanto nos produtos

coloniais, nomeadamente brasileiros. A “(...) distribuição do comércio inglês era

mais harmónica do que o francês, pois apresentava uma participação mais equilibrada

de produtos ultramarinos e metropolitanos e ainda de produtos reexportados (...).

O vinho, o sal, o azeite e as lãs continentais equilibravam ou, por vezes, ultrapassavam

12 Idem, pág. 41.13 Idem, pág. 41.14 Idem, pág. 61.15 Idem, pág. 69.16 Citado por Macedo, pág. 50.17 Macedo, pág. 54.

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219o algodão, o açúcar, as madeiras, os couros ultramarinos”18. O “(...) comércio inglês

mergulhava no interior (de Portugal) e interessava -se igualmente pela produção

metropolitana. O fato não é de pequena importância, para se compreender a

vitalidade da união de interesses anglo -portugueses na luta contra a hegemonia

continental da França e a dificuldade desta potência encontrar, em Portugal, para

além de indivíduos isolados, camadas sociais interessadas em relações políticas mais

profundas entre os dois países”19.

Para os portugueses do continente, o comércio com Inglaterra era muito mais

interessante do que aquele com França, que beneficiava mais as cidades costeiras e

os territórios coloniais. Tal ficou, aliás, comprovado, pela raiva provocada no povo

português contra França aquando da partida de mercadores ingleses, em Outubro de

1807.

Desse modo, pela consciência da ambiguidade dos interesses franceses, o

Governo Português foi descurando o cumprimento das “instruções” emanadas de

Napoleão, ao mesmo tempo que “(...) procurava tranquilizar o País, pondo em

evidência que o Oceano Atlântico escapava ao domínio napoleónico20”.

Claro que, em 1807, tudo mudou, com o agravamento das imposições francesas.

Dá -se, assim, início ao “Verão quente” desse ano, que se prolongaria até Novembro,

com a saída da Corte para o Brasil.

Alternativas colocadas a Portugal perante a imposição do Bloqueio Continental Como

refere Borges de Macedo21, perante a nova situação criada com a (então já mais

forte) obrigação imposta pela França a Portugal de aderir ao Bloqueio Continental,

e embora a preferência portuguesa continuasse a ser pela neutralidade, a única

opção seria a “guerra ao lado de Inglaterra, que dominava o mar”. Pois “(...) era

do Atlântico que Portugal recebia a prosperidade, a riqueza e a segurança, expressas

no amplo comércio colonial que se movimentava nos seus portos: por aí, tinha a

garantia permanente de poder receber auxílio militar com que podia fazer face aos

perigos da fronteira terrestre”22.

18 Idem, págs 54/55. 19 Idem, pág. 55.20 Idem, pág. 40.21 Pág. 40.22 Macedo, pág. 40.

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220 Tal não significava naturalmente, que não tivesse havido divisões dentro do

Estado Português sobre o rumo a tomar. É, assim, normalmente, apontado o Ministro

António de Araújo de Azevedo como o defensor de que o “second best”, a seguir à

manutenção da neutralidade, seria a opção por França: isto é, a tentativa de um

entendimento com França que a persuadisse “a não invadir Portugal”23 - era a visão

depois classificada como “francófona”.

A esta perspectiva opor -se -ia outra geralmente classificada de “anglófona”, que

defenderia o corte imediato com França e a entrada na guerra ao lado de

Inglaterra.

Nesse sentido, no Conselho de Estado de 19 de Agosto, D. Rodrigo de Sousa

Coutinho defende que, em vez de manobras dilatórias, deveria partir para a guerra

com França e Espanha, sendo a possibilidade da ida da Corte para o Brasil uma

estratégia de recuo em caso de fracasso da força militar no continente.

Venceu, contudo, o parecer de manter as duas frentes “abertas” – eventualmente

com vista a “não fechar portas” antes da formalização de um entendimento com a

Grã -Bretanha. Portugal procurou mostrar aos franceses a inutilidade dos seus

esforços e a vantagem (principalmente comercial) que a própria França teria na

manutenção do “status quo”. Por outro lado, como apontam muitos autores,

prevendo -se a possibilidade da transmigração da Corte para o Brasil, urgia ocultar

todos os preparativos (que tinham de ser volumosos), deixando sempre aberta a

possibilidade de uma tergiversação face à França.

De todas as formas, apesar de todo o apoio inglês, não se podia pôr de lado um

possível desentendimento com aquele país – nesse caso, sendo útil a manutenção de

uma política “francesa”. O não encerramento de relações com França permitia,

assim, colocar uma certa pressão diplomática sobre as negociações que prosseguiam

com Londres, através de um perigoso jogo de “bluff” só completamente esclarecido,

à última hora, à boca do Tejo, no momento da saída para o Brasil da Família Real.

Nesse sentido, poder -se á classificar como “realista” a linha diplomática

prevalecente, que mantinha os canais comunicação abertos com França –

nomeadamente para obstar a uma invasão militar do solo português – até ter a

certeza das condições concretas dos compromissos ingleses (firmadas no Tratado de

22 de Outubro de 1807).

23 Light, pág. 19.

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221Por outro lado, a total imperícia da diplomacia francesa, transformando diligências

em quase ameaças militares não deixou espaço na opinião pública portuguesa para

qualquer espírito de negociação “séria” com França, principalmente por tais “ameaças”

não serem susceptíveis de concretização devido à inferioridade naval deste país. Na

realidade, no deslumbre dos seus sucessos bélicos, Napoleão terminou caindo na

armadilha da teorização excessiva, confundindo as condições de imposição do Bloqueio

ao Leste Europeu com as possíveis em Portugal. “Aí (no Leste Europeu), o bloqueio

continental negociara suportes políticos que lhe eram concedidos pelas autoridades

legais. O mesmo sucedia no Mediterrâneo“24. Com Portugal, Napoleão nunca chegou

a negociar esses suportes, julgando poder angariá -los facilmente pela força.

Teremos de pensar também nas “ameaças” francesas de invasão – como, aliás, refe-

rida também na Paz de Tilsit – e “desmembramento” de Portugal, declarações datando

já de 1806 e feitas, de certo modo, como forma de pressão sobre a Inglaterra – ciente

a França da importância que para Inglaterra tinha a possibilidade de acesso aos

portos portugueses. Esse tipo de intenções vem mais tarde a concretizar -se no

famoso Tratado de Fontainebleau, ratificado por Napoleão em 29 de Outubro de

1807, segundo o qual o território português seria dividido em três partes: “Entre-

-Douro e Minho seriam dados à Rainha da Etrúria, formando a Lusitânia Setentrional,

em troca da Toscana; Alentejo e Algarves pertenceriam a Godoy (ministro de Espanha

e doravante Príncipe dos Algarves); e Beira, Trás -os -Montes e Estremadura seriam

mantidos pelos Bragança, se certas condições fossem cumpridas (inclusive a

improvável devolução de Gibraltar à Espanha), senão reverteria para soberania da

França. As colónias portuguesas seriam divididas entre a França e a Espanha”25. O Rei

de Espanha alcançaria o título de Imperador das Américas e protetor dos Novos

Reinos da Lusitânia e dos Algarves. Teria também o direito de investidura desses

novos reinos no caso de interrupção das linhas reinantes.

É neste ambiente que prosseguem os contactos diplomáticos entre Portugal e

França (e Espanha), principalmente já no Verão de 1807, quando as pressões

francesas no sentido do Bloqueio se tornam mais agudas:

Em 17 de Julho de 1807, “Talleyrand recebe ordem para advertir, mais uma vez

e mais energicamente, o Príncipe Regente D. João de que de deve fechar defini-

tivamente os portos aos ingleses: confiscar -lhe os bens e prender os residentes em

24 Macedo, pág. 15.25 Light, pág. 28.

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222 Portugal, dentro de um prazo que terminava a 1 de Setembro desse ano. Dez dias

depois da advertência – a 27 de Julho -, começa a concentrar -se em Baiona o corpo

de exército que deveria invadir o país”.26

Em 29 de Julho, o Ministro interino dos Negócios Estrangeiros francês,

Hauterive, transmite a D. Lourenço de Lima, que regressava de Tilsit, as exigências

francesas, informação que chega a Lisboa a 10 de Agosto, tendo o Embaixador de

Portugal em Espanha, o Conde da Ega, recebido igual notificação, que também foi

apresentada pelos representantes de França e Espanha em Lisboa, em 12 de Agosto.

Tem então lugar, em Lisboa, o Conselho de Estado de 19 de Agosto, que toma

diversas decisões estratégicas, com o intuito de evitar ou adiar uma invasão. Daí

resultou a decisão de “aceitar” o encerramento dos portos, mas não o confisco dos

bens ingleses em Portugal. Importante, seria também “dar a conhecer” a Londres a

situação portuguesa, ao mesmo tempo em que seria dado início a negociações com

o Governo britânico.

António de Araújo consegue prorrogar, entretanto, o prazo do “ultimato”

franco -espanhol para 1 de Outubro, vitória dessa “política de proscratinação”27.

Mas a reacção portuguesa às ameaças francesas continua sendo lenta. Portugal

vem a “aderir” ao Bloqueio Continental apenas a 25 de Setembro. Como decidido

em Conselho, na carta de “adesão” ao Bloqueio, o ministro António de Araújo de

Azevedo recusa -se “a fazer o confisco dos bens ingleses (alegando que os bens

portugueses na Inglaterra poderiam ser confiscados por represália e eram muito

superiores28)” e põe “a questão evidente de que o Bloqueio Continental, a ser levado

a efeito, acarretaria o bloqueio inglês aos portos portugueses29”.

“Insinuava, por outras palavras (o ministro português), que a França não tinha

poder naval para empreender, com êxito, operações no Atlântico (...)30”.

De todas as formas, em 1 de Outubro deixam Portugal os representantes

diplomáticos de França e Espanha.

Depois disso, a 20 de Outubro, é dada ordem de saída dos barcos ingleses. “Essa

ordem é recebida pelas autoridades do Porto de Lisboa, dois dias depois de os

26 Macedo, pág. 39.27 Light, pág. 35.28 O que numa primeira fase começou por acontecer.29 Macedo, pág. 45.30 Idem.

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223elementos comerciais ingleses mais importantes – discretamente avisados – terem

saído ou terem tomado as suas precauções31”. Portugal garante à Inglaterra que

nunca prenderia os súbditos britânicos, admitindo a Inglaterra a possibilidade de

encerramento dos portos portugueses, se tal fosse condição para impedir uma

invasão. Estava, assim, ciente, o Governo de Londres que, salvo se se verificasse uma

invasão francesa de Portugal, seria difícil a França, inferior em poder marítimo,

verificar eficazmente o cumprimento das condições do Bloqueio.

Mesmo assim, a ordem régia só é posta em execução quinze dias depois, através

das seguintes (quase risíveis) medidas: “vedou -se a saída a uma escuna (inglesa) e

deram -se indicações a cinco militares para vigiarem um brigue!32”

Entretanto, a 22 de Outubro, Napoleão comunica ao Encarregado de Negócios

português em Paris a sua decisão de declarar guerra a Portugal, já depois da saída do

Embaixador D. Lourenço de Lima, que viajava para Lisboa para relatar a ameaça

napoleónica, por ele pessoalmente ouvida, de pôr termo ao reinado da Casa de

Bragança em Portugal, notícia só recebida na capital portuguesa a 27 de Outubro.

É com base nesta informação que o Conselho decide, em 30 de Outubro, o

envio a Paris do Marquês de Marialva, como Embaixador Extraordinário, para

informar Bonaparte das providências tomadas contra os ingleses. Com vista a suster

uma possível invasão, Marialva poderia também negociar o casamento do Infante D.

Pedro com uma sobrinha de Napoleão, para além de transportar consigo diamantes

e presentes valiosíssimos – não chegará, contudo, nunca, a passar de Madrid.

Ainda com o objectivo de impedir uma invasão, em 5 de Novembro, o Príncipe

Regente assinou o decreto atendendo ao restante das exigências de Napoleão, tendo

sido instruído Lord Strangfdord, representante diplomático inglês, para abandonar

Lisboa.

Contudo, a notícia, recebida a 23 de Novembro “de que tropas francesas estavam

em território (português) forçando a marcha para chegar a Lisboa, somada à

informação exibida no (jornal francês) Le Moniteur (de 11 de Novembro, eventualmente

trazido para Lisboa por um barco inglês), sobre o destino que Bonaparte reservara

para Portugal e sua família real, fechava quaisquer opções que, até então, esta pudesse

ter tido”33.

31 Idem, pág. 43.32 Idem, pág. 45.33 Light, pág. 55.

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224 O Conselho de Estado de 24 de Novembro decidiu, assim, que “a família real

deveria partir para o Brasil34”, sendo instituído um Conselho de Regência. Foi

concedida audiência a Lord Strangford, que permanecia num barco inglês, ao largo

de Portugal.

O aviso ao público da sua partida foi já feito por D. João a 28 de Novembro,

quando já estava embarcado.

Negociações com Inglaterra Tinham prosseguido, entretanto, as negociações com Inglaterra,

que culminaram num Tratado só ratificado por esta em Janeiro de 1808, mas cujas

principais disposições tinham sido acordadas, em Londres, desde 22 de Outubro.

Para as compreender, será necessário apreciar quais as principais preocupações

das Partes, Inglaterra e Portugal, no decurso das mesmas.

Posição inglesa Além de todas as razões comerciais e económicas atrás citadas, para a

Inglaterra, Portugal era um dos raros pontos de apoio da armada britânica, que usava

o Algarve para bloquear os portos do sul de Espanha.

Interessava -lhe, assim, manter o acesso à costa portuguesa.

No entanto, como as tropas francesas bem o experimentariam (e os ingleses

tinham noção desde o início), são imensas as dificuldades do poder militar de

ocupação sem o apoio político ou da população no território ocupado. Para a

Inglaterra era, assim, mais preocupante um D. João colaborador com os franceses que

um Junot ocupando Lisboa, pois só o Príncipe português teria condições de, mesmo

que só a partir de terra, tornar mais completamente efectivos os preceitos do

bloqueio.

A Inglaterra defendia, assim, vigorosamente, na perspectiva da inevitabilidade

da invasão francesa de Portugal, a partida do Regente para o Brasil, o que, não só,

salvaguardaria a soberania sobre o solo metropolitano português como – segunda

grande preocupação inglesa – evitaria que a esquadra portuguesa passasse para o

serviço dos seus inimigos. Pois interessava à Grã -Bretanha a preservação da

operacionalidade (não em mãos francesas) da esquadra de Portugal. Como refere

Keneth Light35, embora já não tivesse a importância relativa que tivera, a força da

34 Idem, pág. 55.35 Pág. 61.

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225frota portuguesa era ainda considerável, sendo composta por 23 naus de linha, 18

fragatas e uma dúzia de corvetas, bergantins e escunas.

Outro aspecto, que depois se vem a concretizar, é o da garantia de um importante

porto no Atlântico oriental, nomeadamente no caso da ocupação – mesmo que

momentânea - pela França dos portos portugueses. Centram -se, assim, as atenções

na ilha da Madeira, que nunca é envolvida nas disposições adoptadas por Portugal

contra Inglaterra nos termos do Bloqueio Continental.

Resta dizer que, caso essas condições não fossem conseguidas, pelo menos

aquelas concernentes à esquadra, Londres estaria prestes a impô -las à força contra

Portugal.

Posição portuguesa Para Portugal, o importante era assegurar a soberania sobre o seu

território – e a permanência da Casa de Bragança, posta em risco por Napoleão.

Necessitava, assim, da formalização pela Inglaterra de compromissos concretos, que

nomeadamente salvaguardassem contra eventuais ameaças inglesas, sempre possíveis

(pelas próprias necessidades bélicas e estratégicas dos contendores) no decurso de

uma guerra tão abrangente como aquela que se verificava.

A pressão sobre Inglaterra não poderia, assim, ser muito grande. Por exemplo,

a já referida decisão de encerramento dos portos portugueses a Inglaterra, de finais

de Outubro, não incluía, como já se viu, a ilha da Madeira. Mesmo assim, são

tomadas medidas de defesa dos nossos portos, inclusive no Brasil.

Por outro lado, em todas as medidas de aparente cedência à França, a diplomacia

portuguesa conseguiu, mesmo quem sempre imediatamente, ir sossegando os seus

aliados ingleses da pouca consistência destas. “Em Londres, o governo de S.M.

reconheceu as circunstâncias especiais e incomuns que tinham forçado Portugal a

fechar os seus portos. O sentimento em relação a Portugal, longe de ser beligerante,

era compreensivo e condescendente; como resultado, as ordens dadas na primeira

reacção às notícias recebidas de Portugal foram canceladas; os navios e bens

pertencentes a mercadores portugueses na Grã -Bretanha foram liberados”36.

Vale a pena, contudo, focar ainda um dos aspectos mais controversos dos

acontecimentos desse período, a “transmigração” da Corte Portuguesa para o Brasil,

conforme designada por alguns actuais historiadores.

36 Light, pág. 96.

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226 A ¨”transmigração” da Corte para o Brasil A possibilidade da transferência da Corte

Portuguesa para o Brasil, com vista a, a partir daí, melhor defender (e se necessário

recuperar) a totalidade do seu território, criando uma base operacional mais

defensável do que a do território europeu, datava já de há vários séculos. Após o

início das Guerras Napoleónicas, fora, no entanto, expressamente referida pelo

Marquês de Alorna, em 1801, e por D. Rodrigo de Sousa Coutinho, em 1803.

Esta ideia teria já sido discutida, em 1806, entre a Inglaterra e Portugal, na

sequência das “ameaças” feitas por Talleyrand a Lord Landerdale sobre a possibilidade

de invasão e desmembramento de Portugal.

Não era, naturalmente, uma tarefa leve, ou fácil. Como diz Lilia Moritz

Schwarcz37: “Organizar um esquadrão (naval) sem grande aviso prévio e fazer a

realeza mudar de casa, levando de quebra a pesada estrutura burocrática portuguesa,

não era tarefa fácil: ao contrário, era sina das mais monumentais”.

“Os preparativos para transferir a Família Real e a Corte para o Brasil (...)

tiveram início bem antes que os representantes francês e espanhol junto à Corte

Portuguesa entregassem os ultimatos dos seus países. O plano teria seguido várias

fases: chamar de volta várias esquadras de suas tarefas normais para o posto de

origem em Lisboa, a fim de serem aprestadas para a longa jornada; suspender o

transporte de mercadorias e riquezas do Brasil; e o recolhimento, em terra, de tudo

que fosse transportável e pudesse ser levado, inclusive o arquivo do Estado,

bibliotecas e metade do erário”38.

Coloca -se também a possibilidade de ser apenas um príncipe português,

eventualmente D. Pedro, a ir para o Brasil, em vez do seu pai. Na realidade, essa

eventualidade – que chegou a ser divulgada - alicerçar -se -ia em duas razões: uma, a

que visava disfarçar os preparativos da ida total da Corte, encabeçada pelo Príncipe

Regente; a segunda a de, de qualquer forma, assegurar a soberania portuguesa sobre

o Brasil – inclusive em face da Inglaterra – independentemente do rumo real que os

acontecimentos seguissem na metrópole.

Em 7 de Setembro, é enviado ao Rio de Janeiro o bergantim Gavião, avisando da

possibilidade da transferência para o Brasil da Corte Portuguesa.

Ainda em 21 de Novembro, António de Araújo manifesta preferir que a

deslocação para o Brasil pudesse ser usada como “moeda de troca” com Napoleão,

37 “Apresentação: Entre a melancolia e a obstinação”, in Light, pág. 9.38 Light, pág. 21.

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227para este não invadir Portugal. Mas não foi essa a opção de D. João, que decide não

dar, sequer, essa satisfação aos franceses, a de revelar o que se encontrava em

negociação com Inglaterra.

No entanto, a decisão final sobre a deslocação só foi tomada em 24 de Novembro

de 1807.

E sobre esse acontecimento, diz, assim, Kenneth Light39: “A importância da

jornada empreendida rumo ao Brasil, em 1807, pela Família Real portuguesa, pela

maioria de sua corte e por um grande número de cidadãos – um total de 12 a 15

mil homens, mulheres e crianças, considerando as tripulações – deriva da

consequência que essa ação teve na História”.

O Tratado com a Inglaterra Da Convenção que em 22 de Outubro com a Inglaterra, ressaltam

os seguintes aspectos40:

Ter -se -á, primeiramente, que ver que, no ritmo a que os acontecimentos se

precipitaram, o seu texto não levava necessariamente em conta a definitividade de

uma invasão francesa de Portugal metropolitano, que poderia, talvez, pensava -se,

ainda ser evitada. Procurava -se, sim, obter garantias inglesas, mesmo face a “cedências

“que pPortugal se visse obrigado a fazer a frança para evitar a invasão.

O objectivo da Convenção é, pois, apontado como a conservação da Monarquia

Portuguesa, a Ilha da Madeira e as mais possessões portuguesas.

O Art. I visava evitar qualquer acção inglesa – sem coordenação com Portugal –

contra a Ilha da Madeira e possessões portuguesas sem “algum passo ou declaração

hostil” de França contra Portugal, mesmo se, para evitar guerra com França, Portugal

praticasse algum “acto de hostilidade contra a Grã -Bretanha, fechando os seus portos

à bandeira inglesa” (como se viu, a Inglaterra estava disposta a aceitar o encerramento

dos portos – que, de qualquer modo, seria sempre difícil de verificar por França, se

isso mantivesse o território português em “mãos amigas”).

Do mesmo modo, D. João vedaria o Brasil e a ilha da Madeira a franceses,

mesmo que ao serviço de Portugal.

O Art. II A Inglaterra comprometia -se a concordar e apoiar uma eventual

deslocação do Príncipe Regente para o Brasil, mesmo “sem ser a isso forçado pelos

39 Pág. 13.40 Consultar Light, pág. 242 e segs.

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228 procedimentos dos franceses dirigidos contra Portugal”, bem como de um “príncipe

de sua família”.

Segundo Art. III, em caso de Portugal se vir forçado a fechar os portos aos navios

ingleses, Portugal admitiria o uso provisório pela Inglaterra da Ilha da Madeira, em

termos a acordar com o Embaixador português em Londres.

O Art. IV continha disposições sobre a esquadra portuguesa, incluindo a

exigência inglesa da entrega dos fortes costeiros de Portugal que protegessem a

partida da Corte para o Brasil e a interferência inglesa nas designações dos

comandantes dos barcos que a transportassem.

Pelo Art. VI, a Inglaterra obrigava -se a respeitar a soberania da Casa de Bragança

sobre o território metropolitano português, assim como a manter “relações de

amizade” com a regência que, em caso da partida da Corte para o Brasil, seria

deixada em Portugal.

A Convenção foi ratificada por Portugal em 8 de Novembro, com a ressalva por

Portugal das disposições prevendo, nomeadamente, a entrega à Inglaterra do

comando dos fortes que protegessem a partida da Corte, algumas disposições

relativas à esquadra portuguesa, nomeadamente a interferência na escolha dos

comandantes dos barcos que transportassem a corte para o Brasil, e a cedência de um

porto franco no Brasil.

Estas reticências levam a que a Inglaterra, como referido, atrasasse a ratificação

do documento.

Como se viu, uma das cláusulas do Tratado foi a tão apregoada “escolta inglesa”,

que para muitos, ainda hoje, é interpretada como uma espécie de “dependência”

portuguesa da dominação britânica. Na realidade, mal grado tudo, a negociação da

protecção naval britânica, para além dos seus aspectos práticos – como aquele,

referido por Light41, de que “as naus (de guerra) da armada (portuguesa) estavam

transformadas em navios de transporte”, não ao podendo, desse modo, defender -se –

permitia classificar a ida da Corte Portuguesa para o Brasil como um gesto inte-

grado na estratégia de guerra conjuntamente seguida por Portugal e pela Inglaterra,

e não como um gesto unilateral de D. João, exposto às ilações que a Grã -Bretanha

quisesse tirar desse ato: a escolta “selava” a coerência da viagem com a Aliança luso-

-inglesa.

41 Pág. 21.

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229Por outro lado, no que respeitava às condições não ratificadas por Portugal, de

entrega dos fortes e monitorização do comando da esquadra, é o próprio Lord

Strangford que desaconselha a sua imposição, aliviado que ficara com a constatação,

quase no último minuto, da intenção de partida da Corte42. A subtileza da diplomacia

portuguesa nessa questão, aliás, reflecte -se nas próprias palavras de Sir Sidney Smith,

comandante da esquadra inglesa que acompanhará D. João ao Brasil, que por sua vez

tentara convencer o Príncipe regente a aceitar o propósito inglês de que lhe fosse

transmitido o comando dos fortes portugueses que protegessem a partida43: “Sua

Alteza Real recusou com grande delicadeza e sentimento, mas estava bastante fixo em

sua determinação nesta direcção, embora tenha dito que ele ficaria feliz em vê -los

(os fortes) em minha posse, se eu pudesse obtê -los por negociação com a regência

que ele tinha estabelecido, e à qual ele não gostava de dar ordens sob suas presentes

circunstâncias, para não comprometê -la, e aos habitantes de Lisboa, com os

franceses”.

Conclusão Em resumo, após uma fase inicial de belicismo contra a França, devido ao risco

(depois dissipado) de Portugal ficar excluído de uma aproximação anglo -espanhola,

a política diplomática portuguesa consistiu, essencialmente, nos seguintes aspectos:

tentar a todo o custo manter a neutralidade no conflito europeu – pelo menos a partir

de 1795; caso isso não fosse possível, negociar com Inglaterra as melhores condições

de sobrevivência integral de Portugal (que nessa altura era muito maior que a sua

parte europeia), ao mesmo tempo que tentava, por todos, os meios, postergar (ou

evitar) uma agressão militar francesa contra o território português.

Tratava -se, afinal mais -ou -menos, daquilo que percepciona o personagem de

José Norton, em “O último Távora”44: “(...) não ter a Inglaterra em força aberta

contra nós (portugueses) e conseguirmos que a França se ponha connosco em

estado de não dar auxílio a Espanha contra nós (...)”.

A imposição napoleónica do Bloqueio Continental e o pouco respeito

demonstrado por Portugal por parte do próprio Napoleão e seus representantes

tornam também impossível qualquer negociação com França, e a nossa política para

com este país passa a ser a da dilação, enquanto se negociam com Inglaterra as

42 Light, pág. 101.43 Citado por Light, pág. 109.44 Pág. 141.

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230 condições de uma estratégia portuguesa, que incluía a deslocação do Governo para

o Brasil. Afinal, Napoleão haveria de estar certo quando mais tarde reconhece ter sido

D. João o (único) soberano que o ludibriou.

Com a partida para o Brasil, e perante o seu envolvimento num conflito

internacional, onde “o poder político (português) acompanhou a disposição

estratégica dos seus recursos reais (afinal, a orientação do príncipe D. João VI) mais

não fazia do que aplicar a regra de ouro de Von Clausewitz, quanto à estratégia que

é de evitar sujeitar -se à vontade do inimigo e poder continuar a luta militar”45.

“Curiosamente, quem primeiro beneficiou com uma tal situação jurídica (ou

sua ausência, criada pelas tropas francesas em Portugal), foi a própria Espanha,

também (de início) invasora. Ao substituir, como rei, Fernando VII, herdeiro

Bourbon do trono espanhol, por José Bonaparte, a ilegitimidade da presença francesa

em Portugal alargava -se a toda a Península (Ibérica) que assim se tornava território

ocupado”46.

Tratou -se, afinal, das “ligações efectivas entre a diplomacia, os interesses

económicos e a segurança nacional”47 perante o aumento do peso da ideologia

oriunda dos ideais da Revolução Francesa.

A partida da Corte para o Brasil constituiu, também, o reforço e confirmação da

Aliança Inglesa e de um “destino” atlântico português. Acompanha, também, a

ascensão da Inglaterra na Europa e, com isso, certa dominação inglesa sobre o

continente, com consequências também para Portugal. Mas isso transcende já o

objectivo deste texto.NE

BIBLIOGRAFIA

Braga de Macedo, Jorge, “Diferencialidade Revisitada: a Propósito dos Lançamentos

da 2.ª Edição Revista e Ilustrada da História Diplomática Portuguesa”, in Negócios

Estrangeiros, 10 de Fevereiro de 2007;

Light, Kenneth, “A viagem marítima da Família Real – A transferência da Corte

Portuguesa para o Brasil”, Zahar 2008;

45 Macedo, pág. 15.46 Idem, pág. 15.47 Idem, pág. 14.

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231Macedo, Jorge Borges de, “O Bloqueio Continental”, Gradiva, 2.ª Edição 1990;

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Europa -América, 1990;

Norton, José, “O último Távora”, Editora Planeta do Brasil, 2008.

Nunes, António Pires, “Portugal e o novo conflito armado emergente da Revolução

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e Nuno Severiano Teixeira, Vol. III, Círculo de Leitores, 2004;

Reifenscheid, Richard, “Die Habsburger in Lebensbildern, von Rudolf I. bis Karl I.”,

Diedrichs, 2000;

Rothenberg, Gunther, “Die Napoleonischen Kriege”, Brandenburgisches Verlaghaus

2000;

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das Laranjas”, in Nova História Militar de Portugal, Direção de Manuel Themudo

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■ O Brasil e Portugal tiveram sempre um processo de relacionamento com vicissitudes

que foram sempre resolvidas pela boa vontade dos seus Povos. A experiência adquirida

como Cônsul em Santos e Embaixador em Brasília levam a concluir que do Império

até à Democracia os caminhos não -coincidentes se inscrevem num contínuo. O

momento actual, e após a assinatura do Tratado de Amizade, Cooperação e Consulta,

assinado pelos Ministros Jaime Gama e Luís Filipe Lampreia, em 22 de Abril do ano de

2000, e a actual disposição dos governantes de hoje, faz acreditar que os velhos do

Restelo das nossas relações não têm razão de ser.

DIZEM OS HISTORIADORES que terão sido quatro os portugueses que ficaram na Costa do

Descobrimento enquanto a frota de Cabral seguia o seu caminho para Calecute.

Estes quatro “luso -brasileiros” tinham destinos cruzados, dois ficaram porque

quiseram, eram grumetes desertores, provavelmente seduzidos pela sensualidade da

Terra. Os outros dois eram degredados, exilados à força, a Mata Atlântica que

prenunciava o Pantanal e o Amazonas e a afabilidade dos Tupiniquins, era -lhes

indiferente, tal o desejo que guardavam de voltar ao Reino.

Durante três décadas os portugueses foram ao Brasil em busca de pau -brasil não

havendo notícia de qualquer acto violento entre os portugueses, os franceses e os

tupiniquins.

A exploração da madeira consolidou as feitorias onde conviviam soldados e

artesãos orientados por um feitor coadjuvado por um escrivão.

Cabo Frio, São Vicente, Igaraçu, Porto Seguro, Santo Aleixo, Santa Cruz foram

algumas delas que perduraram até à decisão de D. João III iniciar a colonização oficial

do Brasil.

Até aqui as lutas eram sobretudo entre portugueses e franceses e seus aliados

índios e nunca entre americanos e europeus.

Portugal/Brasil, cinco séculos e alguns anos de convívio

Francisco Knopfli*

* Diplomata. Ex-Embaixador de Portugal em Brasília.

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233Será a introdução do cultivo da cana-do-açúcar que trará a violência entre os

portugueses e as nações índias. A conquista da terra, a necessidade de braços escravos

rompem o “idílio” luso -tupi.

Com a administração portuguesa estabelecida em Salvador, por decisão de

D. João III, e com a chegada dos primeiros jesuítas a paz esfumou -se nas relações luso-

-índias.

O colonizador, como se referiu, necessitava da mão -de -obra indígena, em breve o

escambo ou compra de cativos “deixaram a breve trecho de satisfazer as presentes

necessidades de braços para a lavoura canavieira”.

A revolta dos Caetés na capitania de Pernambuco já no terceiro quartel de século XVI e

a cena de antropofagia que tirou a vida a cerca de cem náufragos da nau Nossa Senhora da

Ajuda – o Bispo Sardinha era um dos que o mar havia poupado para morrer às mãos dos

Caetés – são duas cenas que demonstram o reabrir da tensão entre colonos e indígenas.

Com a expedição punitiva que de imediato se organizou e com o aparecimento

da varíola, mais de trinta mil índios pereceriam só na região da Bahia/Pernambuco

provocando a paralisação da economia agrária.

Acrescente -se a constante atenção dos jesuítas às costumeiras irregularidades dos

colonos na tomada de índios, e fácil será entender como em poucos anos o paraíso

brasileiro se tornou em terra madrasta para a maioria dos seus filhos.

O Rei D. Sebastião, em 1570, inspirado na “filosofia” jesuística, proíbe por

diploma régio a escravização dos índios convertidos, deixando de fora todos os outros

que não haviam querido ou podido abraçar a religião católica.

A fuga constante dos índios em particular dos Tupinambás, mas também dos

Tamoios e Carijos, dos engenhosos que deles dependiam a quase 100% levou a que da

escravatura se passasse a modelos de trabalho voluntário pago. Mas a inadequação dos

índios para a pecuária e metalurgia trouxe problemas acrescidos.

A solução seria a de importar escravos de África, o que foi feito de forma

sistemática na segunda metade do século XVI.

Durante os últimos quarenta anos do século XVI terão atravessado o Atlântico, em

particular vindos da Costa da Guiné, primeiro, e já no fim do século de Angola, cerca

de 100.000 escravos.

Os escravos africanos passaram a substituir os índios nos engenhos de açucar no

cultivo da folha do tabaco e na criação de gado, continuando os índios a trabalhar nos

campos de cultivo de mandioca.

O Governador -geral Tomé de Sousa, que fundara Salvador em 1550, cessa funções

em 1553 depois de ter iniciado a exploração de sertão e mandado fortificar as poucas

vilas na costa Sul.

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234 Mas o Brasil Português foi constantemente cobiçado, primeiro pelos franceses

com o desejo de constituírem a França Antárctica, na região do Rio de Janeiro, sonho

frustrado de Nicolau Durand de Villegagnon, e depois pelos holandeses de Maurício

de Nassau, já durante a monarquia dual.

Recuperada a coroa por D. João VI, consolidada a soberania portuguesa nos

territórios ultramarinos, caberá ao Marquês de Pombal, já na segunda metade do

século XVIII abrir uma nova página política e económica sobre a América Portuguesa,

onde havia sido descoberto, em Minas Gerais, ouro e diamantes em quantidades

suficientes para obrigar a mudança da Capital de Salvador para o Rio de Janeiro.

Sublinhe -se que o aportar de Cabral a Santa Cruz não foi fruto de um qualquer

acidente de navegação como alguns já pretenderam, correspondendo antes a uma

estratégia clara e previamente definida de Portugal e a um conhecimento científico

da arte de navegar e da construção naval. As longas negociações do Tratado de

Tordesilhas em 1494 são também a demonstração do bom conhecimento geográfico

dos portugueses e de uma Diplomacia hábil e segura.

A colonização do Brasil por outro lado também não foi fruto do destino. A

administração portuguesa, nomeadamente a partir de D. João III, lançou as bases de

uma verdadeira e efectiva organização territorial e administrativa das novas terras de

Santa Cruz, da foz do rio Amazonas, no actual Estado do Pará até ao que hoje é o

Estado de Santa Catarina.

Os Negócios da Índia afastaram Portugal do Brasil por quase 50 anos, todavia o reco-

nhecimento territorial foi feito logo nos primeiros anos do século XVI graças às expedições

de Gonçalo Coelho, logo depois foram criadas as capitanias hereditárias, pro cesso já

utilizado com êxito nas ilhas atlânticas: primeiro, atribuindo à iniciativa particular a posse

e usufruto das terras, experiência que deixou sinais de sucesso, pelo menos, em S. Vicente,

no litoral paulista e em Pernambuco; e depois através de um regime de administração por

delegação directa do monarca que inaugurou o sistema do Governo -Geral no Brasil, com

sede inicial na Bahia, e que transitou depois para o Rio de Janeiro, já em 1793, época em

que o titular da representação real passava então a ter título de Vice -Rei.

Com um sistema de administração colonial bem implantado no terreno, cedo se

desenharam, por parte dos governantes portugueses, os propósitos de desenvolver,

promover e aproveitar as inúmeras riquezas que a terra brasileira guardava. Inaugurava-

-se também o ciclo de cana-do-açúcar e da actividade dos engenhos. Já no século XVII

o Brasil seria o primeiro produtor mundial de açúcar.

Durante a monarquia exógena ocupou o Brasil posição de importância e destaque

no que alguns autores consideram ser a “atlantização da política externa de Portugal”

(tendência compreensível, aliás, face às condicionantes geopolíticas então impostas a

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235Portugal no contexto europeu) com o seu consequente afastamento das conexões e

laços continentais.

Como regra de sobrevivência, Portugal privilegiou, naquele conturbado e difícil

período da sua história, mais do que com África, as relações com o Brasil, tornando

mesmo dispersa e ocasional a frequência das grandes linhas de tráfego com o

Mediterrâneo e o Mar do Norte onde a importância relativa da Feitoria da Flandres

ia progressivamente diminuindo, tendo até em conta a transferência, entretanto

operada, do comércio das especiarias para Lisboa.

Não obstante a Restauração da Independência de Portugal, em 1640, ter assinalado,

de facto, o seu “regresso à Europa” e o inevitável envolvimento nas contendas que opu-

nham a Espanha e a Casa de Áustria à França e à Holanda, não nos restarão hoje dúvidas

acerca da proeminência e relevo do papel desempenhado pelo Brasil, em momento

particular da nossa história comum, no quadro da política externa portuguesa da época.

Evidenciavam -se então as principais coordenadas e linhas de força de uma

diplomacia própria em que a vocação atlântica se afirmava, naturalmente, como

traço caracterizador determinante e onde o Brasil era peça fundamental.

É ainda, por esta altura, que se começou a traçar, no Brasil, o primeiro esboço

de uma consciência propriamente brasileira, de um amor e apego à terra que

brancos, portugueses ou descendentes de portugueses, negros vindos de África e

índios nativos indistintamente partilhavam e que então originou o movimento

denominado Insurreição Pernambucana.

A revolta genuína dos locais contra a presença do invasor holandês que assolou o

Nordeste brasileiro durante o domínio espanhol em Portugal traduziria, por

antecipação, essa natural capacidade de integração e adaptação de muitas raças e povos

a uma terra que já então consideravam sua e que veio a constituir, porventura, nos

planos antropológico e sociológico, uma das maiores riquezas do Brasil moderno.

Ficou o século XVIII assinalado por vários factos integrantes do passado comum

de portugueses e brasileiros, compondo um painel histórico rico de acontecimentos

e que testemunham, uma vez mais, a importância do Brasil para Portugal,

nomeadamente no quadro da sua história diplomática e da sua afirmação enquanto

potência europeia.

São exemplos do referido:

I – Descoberta do ouro que iniciou o “ciclo de ouro”, (1700 e 1770), durante

os reinados de D. João V e D. José o ouro afluiu então generosamente ao

Reino, contribuiu para a magnificência, majestade e prestígio da Corte

portuguesa no contexto da política europeia e do seu relacionamento com

as outras Casas Reais ao longo de quase toda a centúria;

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236 II – Assinatura do Tratado de Madrid (que veio estabelecer as fronteiras entre as

possessões Portuguesas e Espanholas na América do Sul, até aí regidas pelo

já anacrónico tratado de Tordesilhas, provocando a consolidação territorial

e geográfica do Brasil Moderno);

III – Acção do Marquês de Pombal no Brasil (caracterizada por inúmeras

iniciativas destinadas a reforçar as estruturas administrativas locais, tais

como a instrução pública, a lavoura, a indústria, a navegação, a arrecadação

da Fazenda, a organização militar. No plano das reformas judiciárias, da

protecção dos seus confins territoriais e nas providências sociais); em todos

estes domínios, como alguém já afirmou, “o dedo gigante de Pombal ficou

assinalado no Brasil”;

IV – O movimento emancipacionista denominado “inconfidência mineira”, em

1792, que teve como figura proeminente o alferes José Joaquim da Silva

Xavier, o Tiradentes, conhecido na história brasileira como o protomártir

da Independência, A revolta dos conjurados de Minas Gerais foi então

duramente reprimida mas não deixou de constituir sinal dos tempos que se

avizinhavam e haveriam de trazer consigo, trinta anos depois, a declaração

de independência do Brasil.

Cheio, pois, de significados e premonições o século XVIII para o devir da terra

brasileira. Pleno de antecipações históricas que contribuiriam para o que haveria de

ser o Brasil nas duas primeiras décadas da 19.ª centúria e o projectariam para uma

existência enquanto Grande Nação independente, de dimensão continental e factor

geopolítico incontornável na perspectiva da evolução do continente sul -americano.

Em 1808, como consequência dos graves imperativos internacionais prevalecentes

na nova ordem europeia e em que os desígnios expansionistas de Napoleão Bonaparte,

dando corpo a uma concepção visionária e utópica de uma França Imperial, constituíam

expressão mais evidente, determinou o Príncipe Regente de Portugal, D. João, a

transferência da Corte portuguesa para o Rio de Janeiro. De 7 de Março de 1808 até

26 de Abril de 1821 seria aquela cidade a capital da Monarquia portuguesa, facto de

extraordinário significado para o futuro político do Brasil. Fácil é -nos hoje imaginar

o incentivo e a projecção aqui verificadas com a instalação da Família Real e da

máquina política e administrativa portuguesa, implicando a transmigração de cerca

de 15.000 pessoas e propiciando a criação de uma aristocracia e nobreza locais e de

quadros superiores que haveriam de constituir as elites dirigentes da Nação.

O Brasil passou a ser sede de órgãos administrativos semelhantes aos de Portugal.

O Corpo Diplomático tinha sede no Rio de Janeiro, de onde partiam as instruções

para a representação portuguesa no Congresso de Viena, chefiada pelo Duque de

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237Palmela. Foi instaurado o livre acesso à actividade industrial, criadas as escolas de

medicina na Baía e no Rio, a Academia Militar no Rio de Janeiro, o Banco do Brasil

e o Jardim Botânico. Permitiu -se a entrada de estrangeiros, o que contribuiu para

abrir o Brasil ao Mundo e dotá -lo de um imenso capital humano que tão fundamental

se revelaria para a construção da independência que estava próxima. Colocou o

Governo a tónica da sua acção nas actividades económicas, financeiras e fazendárias

com a abertura dos portos, a criação de uma cadeira de ciência económica no Rio

de Janeiro e a criação de uma Companhia de Seguros na Baía.

Fica caracterizado:

I – Uma vez mais a clara vocação atlantista de Portugal no quadro da sua acção

externa;

II – A consolidação da estratégia dos nossos governantes em dotar o Brasil

de sólidas estruturas de poder, culturais e de organização e estabilidade

territorial que se revelariam fundamentais para a sua independência;

III – A afirmação do Brasil como natural extensão geográfica de Portugal,

enquanto a sua projecção estratégica no Atlântico Sul, assente numa

relação cujas componentes humana, sociológica, linguística e cultural lhe

atribuíam posição especialíssima no contexto do seu Império Colonial:

quer em relação a África, onde só após a Conferência de Berlim houve a

necessidade da “ocupação efectiva” em virtude da falência da tese que ali

defendemos dos “direitos históricos”, quer mesmo em relação ao Império

do Oriente onde não podemos manter intactas as nossas posições.

Significativamente, com a aclamação do Príncipe Regente como Rei, após a

morte de D. Maria I, no Rio, em 20 de Março de 1816, a Monarquia Portuguesa passa

a denominar -se Reino Unido de Portugal, do Brasil e dos Algarves. Na verdade, o Brasil deixava

aqui de ser colónia pois já era parte integrante do Reino.

O Brasil acedeu à independência em 1822 numa conjuntura internacional

marcada pela fragmentação do Império Espanhol nas Américas e pelos ventos

emancipistas que sopraram no que hoje é a América Central na esteira da Revolução

Americana, da Revolução Francesa e do fenómeno napoleónico.

Foi, contudo, um processo diferente, já que não foi fruto de uma guerra como

na América espanhola, e singular, dados os particulares condicionalismos históricos

que o rodearam, radicados na longa presença da Corte portuguesa no Brasil e nos

laços entretanto aqui criados pela Família Real.

Sem dúvida, o processo de independência dentro do regime monárquico

originado de Portugal foi factor de grande importância para a manutenção da

unidade territorial do Brasil como Grande Nação Soberana que hoje é.

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238 Desde o reconhecimento da independência por Portugal, em 1825, até à

segunda metade do século XX, e não obstante as vicissitudes por que passaram as

relações entre as duas Pátrias irmãs, foi longo e fecundo o caminho percorrido.

Alcançada a maturidade dos regimes e a Democracia plena, e após o labor da

estruturação jurídica das suas relações bilaterais, feito, todo ele, ao longo do século XX,

alcançámos patamares de entendimento, diálogo e relacionamento.

Estes parecem agora propiciar, mais do que nunca, uma real convergência luso-

-brasileira em que as relações políticas e económicas se apresentam já à altura das

expectativas legítimas geradas pela natureza dos laços que nos unem.

Em particular, nos finais do século passado, em que, no plano político se

reforçaram mecanismos de cooperação bilateral, com a periodicidade dada às Cimeiras

Governamentais e o processo regular de consultas políticas, estas últimas permitindo a

concertação de posições dos dois países em temas relevantes da agenda internacional.

Por outro lado, são incontáveis as visitas de Estadistas, Ministros, Secretários de

Estado e responsáveis de ambas as partes, bem reveladoras do interesse que Portugal

e o Brasil suscitam nos dois lados do Atlântico. A clarividência e vontades dos nossos

Governantes em impulsionar e redimensionar o relacionamento bilateral aos mais

diversos níveis, de acordo com critérios mais modernos e inovadores, sob um

adequado e bem estruturado enquadramento político, é também visível no plano

económico, financeiro e dos investimentos.

Por outro lado, a presença activa de Portugal no processo de integração na

Europa e o papel do Brasil no contexto do MERCOSUL têm facilitado o fluxo de

investimentos de ambas as partes à procura de novos e mais promissores mercados.

Em particular, sabe o Brasil que tem em Portugal, na União Europeia, já hoje o seu

principal parceiro comercial, um aliado preferencial. Acresce, naturalmente, o

indiscutível interesse de Portugal em levar para a União Europeia o peso e o prestígio

da sua relação com o Brasil.

Refira -se que a abertura do Brasil à economia internacional e o retomar do cresci-

mento económico chamaram os investimentos portugueses para participar, de forma

determinante, no processo de desenvolvimento e reforço da economia brasileira.

Com efeito, podemos afirmar que as relações económicas entre Portugal e

Brasil, num plano global, são hoje excelentes e atravessam uma fase de dinamismo

sustentado.

Mas é sobretudo na área dos investimentos directos de capitais portugueses no

Brasil que a transformação e a evolução do relacionamento é mais visível.

Estes investimentos distribuem -se fundamentalmente pelos sectores de cimentos,

bancos, energia e telecomunicações e estão presentes praticamente em todo o

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239território brasileiro. Capitais portugueses participam nos Bancos Itaú, Inter-Atlântico.

A Portugal Telecom adquiriu participações no processo de privatização da Telebrás

num valor estimado em mais de US$ 3 biliões, concretizando o maior investimento

já realizado por uma empresa portuguesa no estrangeiro; por outro lado, a CIMPOR-

-Cimentos de Portugal comprou 4 fábricas brasileiras do sector, totalizando um

investimento de cerca de US$ 500 milhões.

Estes são apenas alguns exemplos do vigor e expressão dos negócios que estamos a

fazer em terra brasileira. Já em 1996, o montante de capitais portugueses no Brasil

representou 30% do total de investimentos directos externos portugueses nesse ano e o

investimento acumulado de Portugal, para 1997 – ano que assumi a gerência da nossa

Embaixada em Brasília – atingiu valores superiores a US$ 4,5 biliões. Refira -se, por outro

lado, que segundo dados do BNDS – Banco Nacional de Desenvolvimento Económico e

Social – Portugal era, na altura, o quinto maior investidor estrangeiro no Brasil.

Uma última palavra para referir ainda que ao interesse da relação bilateral e da

relação entre espaços integrados juntam -se as relações com a África lusófona, traduzidas

na criação e afirmação da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).

São, pois, estes, alguns dos termos fundamentais de um processo histórico

comum que nos levou, juntos, do sonho e da utopia de Cabral à realidade hodierna,

que nos projecta no futuro e que as Comemorações dos 500 Anos da Descoberta

pretenderam demonstrar perante o Mundo.

Estas últimas tiveram acertos e desacertos, mas foram passos dados por caminhos

certos que, espero, ajudem a que o vector multilateral não se sobreponha ao bilateral,

no contexto das nossas relações.

Será ainda de destacar que o Tratado de Amizade, Cooperação e Consulta entre a

República Portuguesa e a República Federativa do Brasil, que foi assinado pelo

Ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros de Portugal e pelo Ministro de Estado

para as Relações Exteriores do Brasil no dia 22 de Abril de 2000, em Porto Seguro,

dia em que se comemoram os 500 anos da chegada de Pedro Álvares Cabral ao Brasil,

representa um novo marco no relacionamento bilateral entre os dois países.

O novo Tratado encontra -se ajustado às coordenadas políticas e ao sistema de

valores prevalecente nos dois países, reflectindo o facto de Portugal e o Brasil serem

hoje países assentes na organização democrática do Estado de Direito, no respeito

dos direitos e liberdades fundamentais e na busca de uma maior justiça social.

O Tratado é igualmente compatível com o novo enquadramento internacional,

caracterizado pelo crescente peso dos movimentos de integração regional, tomando

em linha de conta o impacto na definição das relações bilaterais resultante da

adesão de Portugal em 1986 à Comunidade Económica Europeia e da adesão do

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240 Brasil ao MERCOSUL, bem como da integração de ambos na CPLP desde a sua

fundação em 1996.

Quanto ao seu conteúdo, o Tratado incorpora e amplia o conteúdo dos vários

Tratados bilaterais até aqui existentes, que ficam na sua maioria expressamente

revogados (ver lista em anexo), retomando -os num novo enquadramento doutrinal,

sendo de destacar:

a) a definição de uma forma sistematizada, dos mecanismos institucionais

previstos para prossecução e acompanhamento das relações bilaterais;

b) o estatuto dos portugueses no Brasil e dos brasileiros em Portugal, onde se

verifica uma importante inovação que constitui a redução de cinco para três

anos do período mínimo de residência exigido para acesso ao estatuto de

igualdade relativamente aos nacionais do Estado de residência.

c) no âmbito da cooperação cultural, científica e tecnológica, inova -se ao

estabelecer como regra a validação mútua dos graus e títulos académicos

emitidos pelas Universidades, as quais vêem expressamente reconhecidas a

sua competência nesta matéria; do mesmo modo, é igualmente respeitada a

autonomia das ordens profissionais quanto às autorizações para o acesso e

exercício da profissão em condições de igualdade;

d) na área da cooperação económica e financeira, é introduzido um preceito

programático visando a criação de dispositivos legais que permitam um tra-

tamento tendencialmente unitário das pessoas singulares e colectivas de ambas

as nacionalidades no outro país, com o objectivo de propiciar uma eventual

aproximação mais profunda entre as economias portuguesa e brasileira;

e) o Tratado abrange ainda as áreas do Meio Ambiente e Ordenamento do

Território, Segurança Social, Justiça, Administração Pública, Acção Consular,

e contempla o alargamento da cooperação a novos domínios nas áreas da

Saúde e das Forças Armadas, onde é referida a cooperação militar no quadro

das Operações de Paz das Nações.

A iniciativa de elaborar um Tratado -Quadro entre os dois países foi proposta

pelo Governo português às autoridades brasileiras em, Abril de 1996, por intermédio

do Ministro dos Negócios Estrangeiros português Jaime Gama. Uma vez convalidada

a ideia pelos dois Governos em Dezembro desse ano, a Cimeira de Brasília de 1997

deu luz verde à negociação do novo Tratado.

O Tratado consubstancia -se, no fundo, no desejo bilateral de simplificar o

ordenamento jurídico que nos liga, esquecendo o supérfluo para dinamizar o nosso

relacionamento actual. Esse foi o desejo dos seus criadores, entre os quais incluo os

diplomatas portugueses acreditados, na altura, no Brasil.NE

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241ANEXO

INSTRUMENTOS JURÍDICOS BILATERAIS EXPRESSAMENTE REVOGADOS PELO TRATADO DE AMIZADE, COOPERAÇÃO E CONSULTA ENTRE A REPÚBLICA PORTUGUESA E A REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL

Acordo entre Portugal e os Estados Unidos do Brasil para a Supressão de Vistos

em Passaportes Diplomáticos e Especiais, celebrado em Lisboa, aos 15 dias do mês

de Outubro de 1951, por troca de Notas.

Tratado de Amizade e Consulta entre Portugal e o Brasil, celebrado no Rio de

Janeiro, aos 16 dias do mês de Novembro de 1953.

Acordo sobre Vistos em Passaportes Comuns, entre Portugal e o Brasil, concluído

em Lisboa, por troca de Notas, aos 9 dias do mês de Agosto de 1960.

Acordo Cultural entre Portugal e o Brasil, celebrado em Lisboa, aos 7 dias do

mês de Setembro de 1966.

Protocolo Adicional ao Acordo Cultural de 7 de Setembro de 1996, celebrado

em Lisboa, aos 22 dias do mês de Abril de 1971.

Convenção sobre Igualdade de Direitos e Deveres entre portugueses e brasileiros,

celebrada em Brasília, aos 7 dias do mês de Setembro de 1971.

Acordo, por troca de Notas, entre Portugal e o Brasil, para a abolição do

pagamento da taxa de residência pelos nacionais de cada um dos países residente no

território do outro, celebrado em Brasília, aos 7 dias do mês de Julho de 1979.

Acordo Quadro de Cooperação entre o Governo da República Portuguesa e o

Governo da República Federativa do Brasil, celebrado em Brasília, aos 7 dias do mês

de Maio de 1991.

Acordo entre o Governo da República Portuguesa e o Governo da República

Federativa do Brasil relativo à isenção de Vistos, celebrado em Brasília, aos 15 dias do

mês de Abril de 1996.

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■ Abstract:

In a time where the liberal lexicon presents itself as the hegemonic language of

contemporary political paradigm and liberal principles are being submitted to

profound reshaping we can observe several proposals for redefining the meaning

of “liberty” and “liberalism”. In the present article we analyze three proposals for a

new definition of the principles of liberal societies, namely Pierre Manent’s “A Razão

das Nações” (Edições 70, Lisboa, 2008), Marcello Pera’s “Perché Dobbiamo Dirci Cristiani”

(Mondadori, Milano, 2008) and John Gray’s “Black Mass: Apocalyptic Religion and the Death of

Utopia” (Penguin Books, London, 2007). These proposals are based on an understanding

of the inadequacies and insufficiencies of the liberal lexicon and liberalism and set

themselves to find a more profound foundation of liberalism in either community

or religion. These proposals seem to cast away the specter of the “disenchantment

of the world” – viewed by many as an inevitable consequence of Modernity – and

rediscovering community and religion as the way for preserving liberal society.

Introdução AS SOCIEDADES MODERNAS são recorrentemente confrontadas com o anúncio ou

o panegírico da extinção das comunidades políticas, da dissolução das diferenças

num mundo em uniformização e globalização, originado no crescimento de uma

racionalidade materialista que relega as concepções religiosas e filosóficas para o

plano meramente pessoal. Nos últimos três séculos assistimos frequentemente a

estas exageradas certidões de óbito do fenómeno religioso e de “desencantamento

do mundo”1. Comte, Marx ou Nietzsche, criaram as suas ideologias preparando

o mundo para a inevitabilidade da confrontação com a inexistência do Criador,

que, segundo perspectivavam, provinha do apogeu da compreensão moderna do

mundo. Segundo a sua interpretação, os homens religar -se -iam segundo a nova

* Assessor do Instituto Diplomático, MNE.1 Max Weber, “Politics as a Vocation” in From Max Weber: Essays in Sociology, tradução e edição de H. H. Gerth and C.

Wright Mills, New York: Oxford University Press, 1946, p.155.

O regresso da Comunidade e a ascensão da religião:

três contributos para uma fundamentação do

liberalismo

Jorge Azevedo Correia*

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243compreensão das coisas terrenas, abandonando assim as comunidades tradicionais,

baseadas na fé e no costume. Em Comte as várias comunidades caminhariam para

um culto da Humanidade, através da “filosofia positiva”, e encontrariam desta

forma uma comunidade mundial em que se realizaria o sonho da racionalidade

perfeita2. Na teoria de Marx, o mesmo sonho de uma “cosmópolis” subsiste na

defesa do internacionalismo proletário, que se afirma nesta concepção como única

construção social lícita à luz dessa interpretação do futuro do Homem3. Nos escritos

de Nietzsche existe, da mesma forma, uma reconfiguração necessária da comunidade

para que esta acomode a essência do laço preponderante entre todos os seres

humanos, a “vontade de poder”4.

A própria teoria liberal, que pertence ao núcleo duro da ideologia contemporânea,

contribui, em muito, para a presente ilusão sobre o fim da comunidade e a emergência

de uma ordem universal. A “razão”, como factor determinante da existência humana,

impeliria, segundo a teoria de Kant5, a Humanidade a uma submissão a leis com a

abrangência de toda a Criação e, através dessa obediência, constituir -se -ia uma nova

jurisdição universal, com valor cogente. Recentemente, no mesmo sentido, os estudos de

David Held6 debruçam-se, sob um ponto de vista liberal, sobre a forma como o mundo

moderno e as suas interacções geram depreciação dos particularismos e fortalecem a

“inclusividade” no seio da ordenação política. Estas características são um factor decisivo

no mundo contemporâneo e nos processos de integração global que o caracterizam.

A emergência do Liberalismo, contudo, parece ter resultado num tipo de sociedade

diferente, onde as suas várias parcelas (indivíduos, famílias, grupos, associações

profissionais) se encontram num estado de autonomia ou independência, ainda que

muitas vezes meramente teórica, face à comunidade. O Liberalismo como ideia política,

2 Ver Andrew Wernick, Auguste Comte and the Religion of Humanity: The Post -Theistic Program of French social theory, Cambridge

University Press, Cambridge, 2001, pp. 153 -220.3 Karl Marx e Friederich Engels postularam no seu Manifesto Comunista a união universal dos trabalhadores, sendo

a sua última mensagem no manifesto “Proletários de todo o Mundo, Uni -vos!”.4 A ideia de que Nietzsche foi uma figura fundamental no surgimento de uma nova ideia política, o nazismo,

é ainda hoje debatida, sendo, contudo, indiscutível que a nova percepção do Homem comportaria uma

renovada estrutura comunitária. Uma das interpretações mais frequentes dessa ordenação é a o “anti-

-fundacionalismo de Foucault. Já Ernst Junger, Armin Mohler ou Oswald Mosley fundamentaram nas teses

de Nietzsche a formulação da sociedade nacional -socialista.5 Ver a este propósito Immanuel Kant, A Paz Perpétua e Outros Opúsculos, Edições 70, Lisboa, 2008.6 Em particular, David Held Democracy and the Global Order: From the Modern State to Cosmopolitan Governance (1995),

Cosmopolitan Democracy: An Agenda for a New World Order (com Daniele Archibugi) (1995) e Cosmopolitanism: A

Defence (2003).

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244 expressão teórica desse impulso autonómico, apresenta -se, portanto, como uma ideia

abrangente, capaz de proceder a uma organização da sociedade que prescinde de uma

estrutura de univocidade política. Tal posição resulta na aposição de valores à

comunidade política, como defendeu Rawls, a apresentação de uma concepção de

Justiça desprovida de fundamento ontológico, e que se sobrepõe a todas as considerações

de cariz religioso e moral. É neste desígnio de supremacia face às várias percepções de

Bem e as finalidades lícitas da comunidade, que o Liberalismo se apresenta como ideia

de neutralidade, superando assim a perspectiva religiosa enquanto ideia suprema da

comunidade. A pretensão liberal de que o sistema de autonomia individual se constitui

como cúpula neutral da organização política, pressupondo uma doutrina em que o

Liberalismo e seus valores e objectivos possuem um valor próprio e auto -sustentado,

não dependendo de perspectivas ou concepções culturais ou religiosas para a sua

afirmação é amplamente contestado no nosso mundo, mas sustentado por autores

liberais de todos os quadrantes, sendo uma das pedras -de -toque da sociedade

contemporânea. A veracidade desta proposição é debatida por autores que a vêem como

um erro que mina toda a nossa compreensão da política e pelos liberais que fazem a

sua apologia, compreendendo ambos que se fala da própria fundamentação das

sociedades ocidentais e que dessa concepção partirá toda a aceitação ou rejeição da

forma como as comunidades se estruturam presentemente7.

O Liberalismo tem dificuldade em conviver com a sua própria natureza enquanto

ideia abrangente. Se por um lado se arroga como ideia motriz da sociedade, por

outro lado, por considerar a autonomia individual como seu desígnio fundamental,

apresenta algum pudor na delimitação clara do seu sistema de valores e das suas

finalidades, permanecendo um enorme debate entre os que acreditam que as

finalidades do liberalismo político se podem encontrar na própria compreensão

liberal do mundo (a Autonomia) ou que se submetem a finalidades externas. No

nosso tempo esta clivagem é patente pela forma como o Liberalismo, por si só, se

apresenta cada vez mais como incapaz de dar soluções ao problema fundamental da

obediência política, não comportando hoje o paradigma liberal, ou dizendo melhor

7 À aceitação da neutralidade liberal de pensadores liberais como Bruce Ackerman em Justice in the Liberal State, Yale University Press, New Haven CT, 1980; John Rawls em Justice as Fairness: a Restatement, Erwin Kelly (ed.), The Belknap Press of Harvard University Press, Cambridge MA, 2001; ou Ronald Dworkin, “Liberalism” in A Matter of Principle, Harvard University Press, Cambridge, 1985; responderam autores em sentido inverso como são os casos de Michael Sandel em Liberalism and the Limits of Justice, Cambridge University Press, Cambridge, 1982; Alasdair MacIntyre, After Virtue, Duckworth, London, 1981; ou Charles Taylor, Sources of the Self, Harvard University Press, Cambridge MA, 1992.

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245“neo liberal”8, a capacidade para erguer uma sociedade fundamentada em axiomas

que validem universal e racionalmente esta função social. Qualquer apologista da

“escola liberal clássica” pode aperceber -se dessa incapacidade pela forma como a

nossa justiça “liberal” comporta um sem -número de transacções involuntárias de

propriedade, sem que estas sejam observadas como uma violação do direito

fundamental à propriedade. Em sistemas políticos onde a referência política máxima

é a Democracia, onde o valor principal é a Vontade da comunidade, como pode ser

arguida qualquer concepção que seja superveniente e que possa evitar que a política

recaia num despotismo maioritário? Como pode um sistema de propriedade

individual defender a sua fórmula quando aceita que a Democracia, a vontade dos

cidadãos, é a racionalidade última da argumentação política?

As três obras analisadas por este artigo consistem em compreensões da referida

incapacidade do Liberalismo Político dotar a comunidade de valores que sejam de

maior valor normativo que a apologia da autonomia individual. Pierre Manent

discute os condicionalismos comunitários (sociedade civil, discursividade comum,

identidade, religião) que possibilitam a existência de uma sociedade liberal e

democrática que não incorra na assumpção de que não existem normas externas a

si. Este é um argumento que segue uma longa linhagem na filosofia política ocidental

e cristã, concentrando a sua atenção nas condicionantes sociais indispensáveis à

existência de um regime constitucional bem ordenado. Só numa sociedade em que

existam crenças fortes acerca da ordem política pode repousar nas mãos da

população o poder de eliminar dívidas, de transferir propriedade individual para

finalidades colectivas, de decidir da vida e morte dos concidadãos. Essa condição do

sistema liberal -democrático é possível apenas numa sociedade em que os laços vêm

de um profundo sentido partilhado de Justiça. Onde não exista esse forte sentido

colectivo, que coloque acima das transacções e opiniões políticas as estruturas

civilizacionais que possibilitam a existência intocada de esferas de liberdade social,

a liberdade dos indivíduos e das colectividades encontra -se à mercê da vontade das

maiorias, predominando aí relações de força social e não de direito. O propósito da

comunidade e em particular do Estado -Nação, é dotar os cidadãos de um enqua-

8 No Liberalismo Clássico a fundamentação última da ordem jurídico-política repousa num conjunto de axiomas religiosos que transbordam para a razão secular. No Neoliberalismo presente, por seu turno, a defesa das virtudes do sistema liberal é feito enquanto permite um conjunto de finalidades externas ao próprio liberalismo (progresso, bem -estar, segurança, propriedade) e não segundo a perspectiva de que o Criador colocou o Homem na Terra com o poder de tomar sua uma parte da criação que seria inviolável por outrém.

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246 dramento que permita a manutenção de consensos, condição prévia do político,

acerca dessas estruturas essenciais. A Nação é, dessa forma, segundo Manent, uma

instituição geradora ou respeitadora da “sociedade civil”, afirmando -se como

conjunto de elementos que transcendem o carácter meramente volitivo da política

liberal. No conceito de Estado -Nação repousam os conceitos que subjazem a uma

sociedade, os seus dogmas e postulados tácitos, que constituem o verdadeiro reduto

da comunidade, a sua pressuposição colectiva.

O livro de Marcello Pera desvia -se deste argumento político, quanto à natureza

da comunidade. Ao invés de estabelecer a preponderância da comunidade na

determinação dos significados das coisas humanas, Pera remete para as insuficiências

da afirmação autónoma e não -transcendente do liberalismo que é timbre do nosso

tempo. Sob uma perspectiva liberal, seguindo os trilhos marcados por Lord Acton,

ou mais presentemente Joseph Weiler, o autor procura demonstrar de que forma o

Liberalismo contemporâneo e os sistemas liberais não podem – como o não fizeram

no tempo de sua concepção – prescindir de uma compreensão de Deus para revestir

de carácter normativo as suas prescrições. Recorrendo a uma análise dos founding

fathers do liberalismo, e à forma como estes repudiaram a construção de sistemas

onde não existisse a presença ou o reconhecimento de Deus, Pera passa a elaborar

uma justificação para a reordenação do sistema liberal, para a sua refundação ou

recentramento no seio dos preceitos do Cristianismo. Contra as definições actuais do

Liberalismo que postulam o afastamento da questão da transcendência da esfera

pública (Rawls, Habermas, Rorty)9, o senador italiano pretende ancorar no

liberalismo os preceitos da civilização judaico -cristã, como complementos essenciais

para a interpretação e enquadramento dessa mesma ideia política.

Se o argumento de Pera consiste na necessidade de um Deus que complete a

construção do Estado fundado no jusnaturalismo liberal, o argumento de Gray acerca

da Modernidade caminha no sentido de mostrar como as próprias concepções que

possuímos na contemporaneidade sobre as relações entre a Religião e a Política se

baseiam em falsos pressupostos de laicismo e irreligiosidade. Todo o laicismo que é

apanágio do nosso tempo não é mais, segundo Gray, que um reflexo da visão cristã do

Mundo, um Cristianismo segundo a perspectiva da Modernidade. O Cristianismo sem

Deus, do nosso tempo e dos últimos séculos, vive de um conjunto de elementos

cristãos que sofreram adulterações modernas: a crença no fim da História e na existência

9 Aquilo a que Pera chama “equação laica”. Pera, p. 25 e segs.

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247de um sentido da mesma, na perfectibilidade humana, na possibilidade da ciência dotar

o Homem de certezas. Estas características são, para o filósofo britânico, apenas um

longo epílogo do Cristianismo e um ressurgimento de conceitos cristãos despidos da

sua espiritualidade e transcendência. Este é um severo ataque à pretensa neutralidade

do ateísmo e do agnosticismo dominantes no ideário liberal observado em Pera, mais

precisamente à ideia de que a política é, conforme o cânone contemporâneo e pós-

-moderno, mero fruto dos desejos do Homem e concepção independente das visões

extra -subjectivas dos cidadãos. Esta concepção, de que todo o ordenamento político

implica uma escolha positiva e nada equidistante perante as várias propostas político-

-morais de sociedade, vai ao cerne do problema do político do nosso tempo, tendo, por

isso, gerado um apaixonado, ainda que comprometido, debate10.

As três obras apresentadas são um reequacionar da forma como vemos o

Liberalismo Político (nas suas formas clássica ou reformada), questionando o papel

crucial que a contemporaneidade lhe atribui como ideia autónoma, fundadora, auto-

-suficiente ou equidistante e portanto, superior no plano político. As três obras

apresentam -se como tentativas de salvar a sociedade e o ethos liberal, através da

dotação de significados mais profundos a essa concepção política. No caso de

Manent é a comunidade e as suas instituições sociais que têm a função de evitar o

totalitarismo, a consequência lógica do liberalismo. Já para Pera é a religião e a

perspectiva que a sociedade tem desta que tem esse papel de coluna vertebral da

fórmula liberal, servindo -lhe de correctivo e de referencial interpretativo. Em Gray o

Liberalismo é assombrado por um conjunto de mitos do passado que lhe dão um

carácter agressivo, precisando o liberalismo de os substituir por formulações de

maior benevolência.

Pierre Manent: A Comunidade como Intangível

“A nossa democracia extrema, que intima ao respeito absoluto das identidades, junta -se ao

fundamentalismo que pune de morte o apóstata. Já não há mudança legítima, porque já não há

preferência legítima. Sob o flash da sua unidade proclamada, a humanidade imobiliza -se para

uma adoração contínua e interminável de adoração de si” 11.

10 A irredutibilidade de posições e a crítica por vezes demasiado simplificada demonstram até que ponto os

pressupostos para o debate racional se encontram inquinados. A título de exemplo veja -se a recensão de

A. C. Grayling “Through the Looking Glass”, in The New Humanist, vol.122, n.º 4, Jul/Aug 2007.11 Manent, p. 15.

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248 Relativamente desconhecido em Portugal, Pierre Manent é um autor francês de

créditos firmados, que goza de enorme aceitação no mundo anglo -saxónico e

nalguns sectores da análise teórica política que se reclamam do legado intelectual de

Leo Strauss. Depois do sucesso entre os académicos que foi a publicação de Les

Libéraux12, uma história do percurso filosófico do liberalismo francês, que mereceu

uma reedição em 2001 e uma versão em inglês pela Princeton University Press13,

bem como da revificação da problemática tocquevilliana da democracia14, operada

em Tocqueville et la nature de la démocratie (1982, reed. 1993)15, Manent surge com uma

obra eminentemente política. Reflectindo, mais uma vez, na questão das condições

da democracia, Manent introduz como característica essencial da democracia a

comunidade e em particular o Estado -Nação, como forma política que permite a

conjugação da responsabilidade colectiva com a possibilidade de uma realização em

que os fundamentos da sociedade não se encontram sujeitos a um escrutínio

permanente16. Este é um eco evidente da problemática de Alexis de Tocqueville que

em De la Démocratie en Amérique (1835 e 1840), analisou a forma como a sociedade

democrática e moderna poderia manter a sua estrutura intocada por determinadas

visões igualitárias que perigam a liberdade. Afirmava Tocqueville que só através de

um escrupuloso respeito pelas várias esferas da sociedade (a família, a comunidade

e a religião) poderia a Democracia sobreviver sem que o impulso igualitário, uma

força da mesma modernidade que origina a proposição democrática, tomasse conta

do governo e destruísse as estruturas da propriedade e da autonomia humana17.

Manent prossegue esta linha argumentativa e reflecte sobre as condições de

permanência de esferas da vida social imunes à “vontade humana” (a autoridade

12 Editado pela Gallimard em 2001, após primeira edição de 1986.13 Sob o título An Intellectual History of Liberalism, trad. Rebecca Balinski, Princeton University Press, Princeton, NJ:,

1994. 14 Uma descrição iluminadora do renascimento desta problemática por via de pensadores como Leo Strauss e

Irving Kristol pode ser encontrada em Bruce Frohnen, Virtue and the Promise of Conservatism: the legacy of Burke and

Tocqueville, pp. 90 -118, University Press of Kansas, Kansas, 1993.15 Também traduzida para inglês nos EUA como Tocqueville and the Nature of Democracy, trad. John Waggoner,

Rowman & Littlefield, Lanham MD, 1996. 16 Contra a tese de Ernest Renan em “Quest’ce une Nation?” (1882) em que esta é entendida como subproduto das

vontades de permanecer em comum, Manent apresenta a nação como um acervo de valores comunitários

que constituem o próprio entendimento da comunidade. Valores que são prévios à vontade e ao seu auto-

-entendimento.17 Transformando assim o entendimento da própria definição de liberdade. Através desta inversão conceptual,

a liberdade deixa de ser encarada como esfera de autonomia individual, para ser entendida enquanto capacidade dos indivíduos para obter determinados fins. Sobre este assunto a fonte clássica mais referida é o artigo de Isaiah Berlin, “Two Concepts on Liberty”, The Clarendon Press, Oxford,1961.

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249paternal, o respeito pelos ancestrais, o respeito pelo divino, são redutos em que a

vontade humana não consegue subverter as tradições estabelecidas), que, segundo

Tocqueville, mantêm a possibilidade de uma sociedade livre da reinvenção totalitária.

Esta reinvenção, segundo Manent, só pode ser limitada ou abortada através de uma

estrutura identitária, que subjugue a vontade do presente às responsabilidades do

passado. Como Aristóteles observou há mais de 2300 anos, os regimes democráticos,

ao consagrarem como vinculativa apenas a vontade dos cidadãos, possuem a

capacidade de não respeitar os anteriores vínculos da “cidade”18, sendo que por isso

terão tendência para se tornarem uma máquina de extorsão dos pobres, a maioria,

aos ricos, a minoria, e um regime de arbitrariedade que ninguém beneficia19. A

razão de ser do Estado -Nação prender -se -ia com essa mesma representação histórica

de continuidade que permite uma síntese entre a liberdade e a autoridade.

Possibilitando que o presente tenha a necessidade e a capacidade de redimir o

passado, torna -se possível que a política possua uma “memória institucional” onde

reside a concepção do “justo” e do “injusto”20.

A emergência da União Europeia, um projecto essencialmente político, é, no dizer

de Pierre Manent, um perigoso desafio que não pode prescindir do Estado -Nação,

dado o risco que constitui um kratos sem demos21. Onde não existe uma comunhão entre

a comunidade e onde aquilo que é comum – o elemento que une e é prévio às

perspectivas individuais dos vários membros que permite que um agregado humano

se qualifique como tal – nasce o espectro do relativismo. Estamos aqui perante um

ponto straussiano. Uma comunidade que não possui um conjunto de significações

partilhadas sobre o que é Bom, ou que não é detentor das ferramentas civilizacionais

para tal, trilha o caminho do relativismo (seja pela via historicista ou pela via

igualitária), sendo que em tal concepção político -moral o papel do diálogo racional

declina e perde qualquer importância. A aceitação de qualquer visão como lícita,

porque situada, subjectiva e inconsequente na estrutura política é uma característica

do totalitarismo, que a União Europeia, pela sua ausência de uma concepção de justiça

supra -subjectiva que lhe sirva de identidade, parece perfilhar22.

18 Aristóteles, Política, Livro VI.19 Idem.20 Manent, p. 12.21 Manent, p. 14.22 Este é um tema do straussianismo que Manent perfilha. Em “The Three Waves of Modernity” in An introduction to

Political Philosophy: ten essays by Leo Strauss, ed. Hilal Gildin, Wayne State University Press, 1989, pp. 86 -98, Leo Strauss observa de que forma a emergência da filosofia moderna, em particular a de Rousseau, compõe uma visão da comunidade como mero produto humano e como esta perspectiva conduz ao totalitarismo da perspectiva marxista.

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250 O que o Manent descreve no capítulo dedicado à Democracia é uma interessante

reflexão sobre o papel do Estado Moderno no mundo contemporâneo (poder -se -á

dizer numa era pós -moderna). O Estado Moderno que tinha o papel de disciplinador

e de nivelador na “disciplina napoleónica” é destituído em prol de uma concepção de

governo como elemento respeitador e gestor de diferenças23. O Maio de 68, com todo

o seu apelo autenticista e expressivista, é o grande momento de afirmação dos ideais

do relativismo, que se condensam socialmente na perspectiva do Estado como mero

administrador dos recursos colectivos e respeitador de diferenças insanáveis e

insondáveis dos indivíduos. Ao conceber o Estado como mero administrador e não

como elemento reflexivo da comunidade, a Europa (que tem como lema “a unidade

na diversidade”), abraça como sistema de valores a abrangência e a tolerância. Sem

possuir um sistema valorativo que não seja o respeito por todos os sistemas, como

expressões de individualidade, o político reduz -se a uma acção arbitrária de resolução

de conflitos que tem como propósito único a manutenção do próprio sistema

político24. A crítica de Manent, embora velada, é evidente. Um sistema que se baseia

na tolerância e na abrangência não possui em si os elementos que permitam discernir

entre a posição lícita e ilícita, tendo por isso a incapacidade de traçar fronteiras entre

os “seus” e os “outros”. Sem incorrer em dicotomias schmittianas, Manent denuncia a

ilogicidade desta concepção de Estado, que se expressa no paradoxo de um Estado que

não aceita a pena -de -morte para os assassinos, mas que pede aos seus cidadãos

cumpridores que dêem a vida por si25. O Estado que não encontra diferenças que sejam

passíveis de excluir alguém da sua égide e de remeter o indivíduo para fora da sua

esfera de protecção (lançando o prevaricador na terra de ninguém do estado -de-

-natureza) é reflexo dessa decisão de não tomar posição sobre o que é ou não justo.

Para Manent, o Estado-Nação é o ponto de equilíbrio entre a obediência e o

voluntarismo, que permite que sejam preenchidas as condições para uma relação de

justiça partilhada pelos cidadãos, residindo aí a verdadeira comunidade. Afirma: “É a

comunidade política que mantém em conjunto e faz retinir todos os registos da

palavra, e toda a comunicação verdadeira apoia -se nessa escala harmónica.”26. A

inexistência dos significados partilhados de que se reveste a verdadeira comunidade é

23 Manent, p. 22.24 O autor descreve esta “ideologia” pós -moderna na frase citada que serve de mote ao presente segmento do

artigo.25 Manent, pp. 30 -32.26 Manent, p. 39.

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251uma das razões da degenerescência da governação para a governance. A governação,

relação entre governantes e governados que vai no sentido das normas que preenchem

os sentidos da justiça da comunidade, é substituída pela governance, conjunto de acções

político -administrativas que visam interacções com o exterior e não a relação directa

com os governados, com vista à manutenção do Poder. Essa substituição é uma

degradação da política em sentido clássico, uma vez que uma relação política, em que

o interesse ou bem dos cidadãos não é a máxima regra, se torna em massa informe,

uma sociedade em que a força (violenta ou não) triunfa e onde não existe lugar para

qualquer bem -comum ou concepção de justiça (ou de “dever ser”) que sirva de

orientação imparcial ao aparelho político.

A Europa Unida é uma concepção política em que a comunidade recusa ter uma

identidade substantiva27 e recusa uma concepção sobre qualquer forma de transcendência.

A miragem do Estado Neutro, um equívoco da neutralidade da teoria liberal

contemporânea, esconde apenas uma posição agnóstica e que possui claras implicações

políticas: uma implicação de identificação e outra de delimitação, onde não existe uma

fronteira inequívoca do “nós”, religiosa e cultural, onde impere apenas a identificação

da aceitação do “outro” enquanto fronteira essencial da delimitação do “eu” ou do

“nós”, não existe uma limitação espacial do domínio político, o que remete para uma

estrutura imperial de Poder com todas as suas vicissitudes28. A outra incapacidade

prende -se com a impossibilidade de dotar a comunidade de uma estrutura valorativa e

independente das estruturas de vontade individual, que tenham a capacidade de formular

e enquadrar concepções de justiça. Sem uma escolha moral concreta, o político tende a

transformar -se numa mera declaração de intenções, ou numa mera gestão de diferenças

com intuitos económico -políticos. Esta degradação dos vínculos políticos é diagnosticada

por Manent e um ponto -de -partida para a reflexão teórica de Marcello Pera.

Marcello Pera: Os Fundamentos Cristãos da Liberdade

“Ma Atene e Roma non annullano a Betlemme, né Betlemme annulla Gerusalemme. Il

cristianesimo è l’anima dell’Europa, non perché non si sia mescolato con altre culture, ma perché

le ha portate ad unità, le ha articulate, fuse, composte in un quadro che ha fatto della terra in

cui sbarcarono Pietro e Paolo il «continente cristiano».29

27 Escolhe kantianamente não ter escolhas, identidade ou matriz cultural, mas identificar -se com princípios

abstractos. 28 Um império universal que o autor descreve na citação inicial.29 Pera, p. 96.

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252 Prefaciado por carta do Papa Bento XVI, o livro de Marcello Pera é de interesse

para a compreensão da encruzilhada liberal. Compreender de que forma o Liberalismo

pôde prescindir de uma compreensão de Deus, até que, sem grande controvérsia,

emergiu como pensamento “sem traço de divindade”30, é, possivelmente, a questão

mais importante para compreender o presente das sociedades ocidentais. Apresentando-

-se como uma “ideia abrangente”31, o liberalismo contemporâneo interpreta -se como

uma ideia dirigente da sociedade que prescinde das escolhas morais fundamentais,

remetendo tais decisões para o foro privado/individual de cada membro da sociedade.

Esta visão esquece que, no passado mais recente (sécs. XVII - XIX), as próprias

fundamentações da liberdade, o liberalismo clássico, se encontravam intimamente

ligadas a uma concepção teológica. Ainda que se tenha tornado ideia fundamental do

nosso tempo, o liberalismo não conseguiu tornar -se num sistema de valores, numa

concepção política que guarda as respostas fundamentais sobre as questões humanas.

As variadas tentativas de transformar a liberdade individual em finalidade da

comunidade (do marxismo ao anarco -capitalismo libertário) terminaram em descrédito

ou sendo absorvidas por outras finalidades políticas sem essa finalidade libertária

(progressismo, neo -liberalismo, social -democracia, sindicalismo…). Dessa incapacidade

nascem inúmeros conflitos no nosso tempo, e a incapacidade do liberalismo responder

a assuntos que lhe são directamente relevantes, como o caso de determinar os limites

da “Vida Humana”, para que esta possa ser protegida juridicamente, é apenas um dos

casos em que se demonstra de que forma o liberalismo se terá de socorrer de outras

formas de pensamento (religião, filosofia, ciência, democracia), para a prossecução de

suas finalidades.

É no seguimento destas insuficiências do liberalismo, que hoje em dia parecem

ser salientadas um pouco por todos quadrantes, desde a “crítica comunitária do

liberalismo” à Teoria Crítica, que Pera conduz um argumento interessante acerca das

origens e do espírito do liberalismo. Segundo este autor, o jusnaturalismo, a ideia de

que a comunidade deve agir em conformidade com a Natureza e não com critérios

voluntários, é um elemento essencial do liberalismo, servindo -lhe de limitação. Esta

visão de Pera sobre Locke, os Founding Fathers, ou Kant, é fundamental, uma vez que este

vê o Liberalismo enquanto forma política supra -democrática, ou seja, um reduto que

30 Richard Rorty in Pera, pp. 25 -26.31 Na teoria política anglo -saxónica o termo descritivo é “comprehensive”.

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253se encontra imune às pressões do político e que ordena toda a estrutura legislativa. As

afinidades com Pierre Manent são evidentes. Onde em Manent a Constituição – em

sentido clássico32 – se encontra nos preceitos comunitários, em Pera o reduto máximo

da inteligibilidade do sistema liberal reside no Cristianismo, sendo este quem dota o

liberalismo das várias finalidades e significados de que o Liberalismo, por si só, é

incapaz de possuir33. Pera considera que o Cristianismo garante ao liberalismo, como

já havia sido reivindicado pelos fundadores do liberalismo, um ponto exterior,

imperativo, natural, uma formação que se baseia não em estruturas de arbitrariedade

individual e colectiva – como as arguidas por Rousseau e seus seguidores –, mas na

existência e submissão a um construção racional que se funda na Natureza da Criação.

A essência jusnatural do Liberalismo, que Pera defende na senda dos grandes liberais

clássicos, é um factor decisivo na obtenção de duas conclusões de relevo: que o

liberalismo é insuficiente na sua formulação contemporânea e que a formulação

contemporânea, ao rejeitar pressupostos religiosos na sua formulação, não só se afasta

do desígnio dos seus fundadores, mas perde a sua inteligibilidade enquanto sistema de

valores. O afastamento dos conceitos religiosos da “esfera pública”, da discussão

central das nossas sociedades, acarreta, dessa forma, não apenas uma degradação do

Cristianismo ou, se se preferir, da religião, mas a própria erosão dos conceitos

formativos do sistema liberal.

A liberdade, segundo a concepção jusnaturalista, que Pera observa nos liberalismos

clássicos e que defende, não se funda num conjunto de axiomas de preferência, nas

vontades comunitárias (mesmo as inconscientes e involuntárias que Manent releva),

mas por um respeito por concepções de Humanidade que se encontram nas

formulações do Cristianismo e que determinam a Igualdade do Género Humano34. A

alternativa a estas concepções seria um Estado sem qualquer traço ético, uma agregação

política que não se orientasse no sentido de obter quaisquer finalidades éticas benéficas

para os seus membros. Pera rejeita esta formulação política, que parece estar “na

mesa”, num momento em que as propostas políticas para a Europa Unida fazem uma

apologia da neutralidade ou mera operacionalidade/funcionalidade dos preceitos

jurídico -políticos. Por toda a obra é latente a compreensão de que num discurso

32 Reduto máximo da expressão comunitária que serve de limitação ao poder dos indivíduos e que distingue

os “regimes constitucionais” das “democracias” na tipologia aristotélica. Ver Aristóteles, Política, Livro IV.33 Pera pp. 46 -47.34 Pera pp. 46.

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254 político depauperado de uma reflexão sobre os princípios éticos e religiosos, os

conceitos que presidem ao respeito pelas liberdades de terceiros se encontram numa

situação crítica. E da mesma forma, contra Habermas, Pera afirma que o patriotismo

constitucional liberal35 não possui capacidade para fundamentar uma comunidade

política como a Europa, dado que o seu apelo reside no que cada uma das várias

interpretações europeias, as culturas nacionais, tomam por Europa e não por um

conjunto de valores que residam na mesma. Pera fala da perspectiva do “patriotismo

constitucional” de Habermas como um “cosmopolitismo” fundado em camadas de

memória histórica (o Holocausto e os Totalitarismos e as lutas pela democracia, pelo

Estado -Social, a paz e contra a hegemonia americana36) que nada têm de originalmente

europeu. No mesmo sentido, uma união não se faz de diferentes perspectivas ou

interpretações sobre um mesmo objecto, mas de perspectivas ou percepções comuns

sobre a mesma. Construir uma Europa baseada em perspectivas sobre um mesmo

objecto, a Constituição Europeia, ou outra, é proceder a uma falsa unificação, sem

espessura37 para responder aos desígnios que dela se exigem e que só se coadunam

com a existência de uma resposta ao desafio ético do nosso tempo38. Fundamentar o

liberalismo é, desta forma, mais do que pretender inserir a religião na vida liberal,

conseguir destruir os falsos pressupostos de neutralidade liberal que sustentam as

formas de liberalismo que o estão a destruir e que será a grande razão para a reflexão

que John Gray elabora sobre a Modernidade.

John Gray: A Religiosidade do Secularismo

“The age of utopias ended in Fallujah, a city razed by rival fundamentalists. The secular era is not

in the future, as liberal humanists believe. It is in the past, which we have yet to understand.” 39

Passadas as ilusões do “thatcherismo”, onde se distinguiu com um livro notável

que reabilitou F. A. von Hayek enquanto pensador político40 – numa época em que era

visto como mero economista –, e do New Labour, por onde passou na década de 90,

John Gray emergiu como crítico dos humanismos e um autor de relevo em termos

35 Pera pp. 79 -86.36 Pera p. 84.37 Pera p. 86.38 Pera pp. 86 -90.39 Gray p. 261.40 Hayek on Liberty, Blackwell, Oxford, 1986.

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255de pensamento original. Em Straw Dogs41, o seu livro anterior, o propósito era

denunciar a inquietude do Mundo Moderno, a sua reverência pela funcionalidade, a

religiosidade da produção e a incapacidade de gerar contemplação. Em Black Mass:

Apocalyptic Religion and the Death of Utopia, o autor tenta traçar uma genealogia do erro das

sociedades modernas, no intuito de libertar o sistema liberal da sua fundamentação

humanista, que, segundo este, impregna toda a vida ocidental.

Black Mass não é apenas mais um livro de questionamento da sociedade ocidental,

mas uma obra em que é traçada uma História da Modernidade e uma interpretação

do Iluminismo e da sua descendência política e filosófica enquanto subproduto de

uma mesma substância religiosa. O argumento não é, de forma alguma, original,

mas encontra força ao longo das páginas do livro, onde se vão explicando os

processos sob os quais o Cristianismo foi transmutado em “religião política” ou

“religião secular” pelos intérpretes da Modernidade. A substituição da escatologia

Cristã por um conjunto de elementos religiosos adulterados e imanentizados, onde

a salvação do Cristianismo se metamorfoseia no Mundo Novo, no ponto ómega do

Progresso, no fim -da -escassez do socialismo científico de Marx, no Comunismo de

Estaline ou no Homem Novo do Nazismo é uma ideia que perpassa todo o livro.

Contra as teses de “desideologização” ou de desencantamento do Mundo42,

Gray mostra ao longo do livro como nada existe de secular no secularismo e como

este se encontra decisivamente povoado por ideias que não são mais do que

aplicações à mentalidade materialista da modernidade dos preceitos da religião. Tal

tem implicações profundas na forma como apercebemos o nosso tempo, como a

generalidade das comunidades ocidentais não questionam posições como os Direitos

Humanos, que se inscrevem claramente numa tradição religiosa -filosófica há muito

abandonada43, como as nossas sociedades apresentam o Progresso como uma

imperatividade insofismável e inescapável, como vivem absorvidas com o controlo

de imprevistos e de circunstâncias naturais44.

41 John Gray, Straw Dogs: thoughts on humans and other animals, Farrar, Straus & Giroux, 2007.42 Ver Nota 1 deste artigo.43 É interessante observar como as fórmulas liberais de declaração de direitos subsistiram num mundo em que

as concepções deístas já não são afirmadas como fonte das mesmas.44 John Gray interpreta na Modernidade uma obsessão com o Progresso, que é bastante similar à posição de Leo

Strauss em Thoughts on Machiavelli (University of Chicago Press, Chigago IL, 1995.), onde esta é vista como a obsessão com a compreensão das leis da Natureza não para a submissão às suas normas (como é apanágio do pensamento clássico), mas para uma reformulação do mundo à vontade humana, perspectiva de que Maquiavel foi o grande precursor.

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256 Como é evidente, existem numerosos conceitos do Estado Contemporâneo que

saem maculados pela exposição de Gray, que expõe como a suposta neutralidade do

Estado liberal e democrático o seu posicionamento não -valorativo45, a sua equidistância

perante as formas de vida e as crenças morais, não passam de um simulacro, não sendo

mais do que uma enfabulação com finalidades políticas. Se a religião formalizada é

despromovida e subordinada ao domínio da esfera privada, a “religião política” torna-

-se hegemónica e traz consigo o perigo do Totalitarismo, a dogmatização dos cultos

secularistas do progresso e o seu predomínio político através da máquina estatal.

A “missa negra” a que o título original da obra alude, e que foi com enorme

prejuízo retirada do título da versão portuguesa do livro46, é uma descrição da

corruptela religiosa em que a nossa ideologia, a religião política contemporânea, se

transmutou e que, na senda do milenarismo cristão, acreditando ser possível o

estabelecimento da perfectibilidade humana e o estabelecimento da utopia no nosso

mundo, criou uma “para -religião” da perfectibilidade humana47. A acção política,

desta forma, passa da perfectibilidade moral, a busca da obediência ao preceito, à acção

sobre o mundo e a tentativa de construção do paraíso terreno. A política e as próprias

ciências do fenómeno político adquirem um significado radicalmente diferente do

anterior, passando a visar não a compreensão ou explicação de fenómenos, mas a acção

sobre o mundo, a erradicação dos seus males, do sofrimento à exclusão social. A

sociologia engagé dos anos 60 e 70 que se destinou a eliminar aquilo que considerava

serem as “doenças sociais” do seu tempo, nada mais foi que um estado terapêutico,

que acreditou na eternidade das coisas físicas e na morte das coisas perenes, sem nunca

se questionar sobre a legitimidade do enquadramento e das suas expectativas utópicas.

O neoconservadorismo da Era Bush cai nesse mesmo erro, sendo uma tentativa

“evangélica” de cumprir a missão divina de instaurar o paraíso terreno: o “Fim da

História” liberal e democrático, da escatologia de Fukuyama48. O laço entre estas duas

ideias é evidente e Gray é eficaz a demonstrar as semelhanças de weltanschauung entre o

milenarismo utópico do socialismo revolucionário e a crença no carácter redentor da

Democracia e “Destino Manifesto”49 americano que enformou a política externa

45 Atente -se no que foi dito sobre este assunto a propósito de Manent na p.10 deste artigo.46 A Morte da Utopia e o Regresso das Religiões Apocalípticas (Guerra e Paz, Lisboa, 2008) não parece ser um título capaz

de descrever com as mesma precisão que a “missa negra” a forma como a religião cristã e seus mitos se apresenta para Gray como uma presença que mancha o pensamento liberal.

47 Gray, p. 23.48 Francis Fukuyama, The End of History and the Last Man, Free Press, 1992.49 O “Manifest Destiny” que corresponde à crença no carácter redentor dos Estados Unidos da América.

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257americana dos últimos anos, numa característica amálgama de neoconservadores,

securitários, nacionalistas americanos e democratas -radicais. Segundo esta aliança, o

mundo pode e deve emular uma determinada interpretação do american way of life, sendo

esta transição o último estádio da História.

Segundo Gray, a perspectiva sobre o fim -da -história neoconservador está

intimamente ligado ao problema central da Guerra Moderna e à forma como esta

adquire na cultura moderna um carácter catártico e redentor. Gray observa como na

Idade Média nenhuma guerra era vista como uma prática que poderia mudar o

mundo50, mas apenas como uma última ratio na resolução de disputas. A isto se contrapõe

a Guerra no Iraque, de clara feição neo conservadora, em que, apesar da multiplicidade

de modos de acção possíveis, o conflito bélico é visto como um degrau para a obtenção

de um Mundo Novo, dos “amanhãs que cantam” do capitalismo global51.

Desta posição, claramente contra a política externa da Administração Bush, não

podem ser depreendidos quaisquer alinhamentos políticos utópicos ou marxistas, uma

vez que Gray claramente imputa aos neoconservadores americanos a forma mentis do

trotskismo52, onde o carácter redentor da violência como portadora do “paraíso

terreno” está, e se mantém, bem patente53. Daí que Gray dê caça a todos os movimentos

modernos, às pretensões imanentistas das Utopias de esquerda ou direita, e a todos os

que pretendem, como Bush, assumir relações directas com Deus através de

“chamamentos para além das estrelas”54 ou da história das relações de produção. O

problema encontra -se, segundo este, na crença de que o Mundo tem um sentido, que

irá desembocar num mundo mágico, onde não existe “pecado” (seja este um erro

racional dos iluministas, o espírito individualista do marxismo ou o anti capitalismo

do paraíso “neocon”) e onde a humanidade se encontra em perfeita sintonia cósmica

50 Gray, p.36.51 Em Gray p. 173, o autor descreve de forma muito interessante a relação entre Alexandre Kojéve e Francis

Fukuyama que traduz para a linguagem neo -liberal e capitalista um conjunto de conceitos provenientes do marxismo, em particular a inevitabilidade da emergência de uma ordem capitalista.

52 Gray, p. 173.53 John Gray descreve (Gray pp. 34;37;46) a forma como a violência e a guerra são, no mundo moderno,

encaradas como forças descisivas, no sentido de fornecerem ao mundo o seu sentido verdadeiro. Gray descreve essa tendência como “optimismo beligerante”.

54 A crença numa relação directa entre os representantes da comunidade política americana na Administração Bush foi um assunto muito debatido a partir da véspera da tomada de posse, de no discurso pré -inaugural: “Tomorrow, I will take an oath and deliver an inaugural address. You’ll be pleased to hear I’m not going to deliver it twice. But I will speak about freedom. This is the cause that unites our country and gives hope to the world and will lead us to a future of peace. We have a calling from beyond the stars to stand for freedom, and America will always be faithful to that cause.”

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258 com o Universo. Qualquer que seja a Fé que provenha da árvore imanentizadora55 da

Modernidade, a prática encontrará sempre dificuldade em adequar -se à realidade, seja

na crença absoluta da liberalização e da livre -iniciativa empresarial como panaceia –

Gray traça uma brilhante genealogia do liberalismo como religião do mercado de

Adam Smith a Margareth Thatcher56 –, seja na fé marxista na acção reguladora e

omnipotente da centralmente planificada economia do Bloco de Leste, que vai

ganhando adeptos por todo o mundo na sua versão adulterada.

A crença de que vivemos numa era pós -religiosa é, segundo Gray, uma ilusão

criada pelo Iluminismo, como forma de justificar todos os crimes (afogamentos

colectivos, decapitações) da Revolução Francesa, é uma mera ilusão justificativa.

Acreditar que vivemos numa época de superioridade face ao passado foi a estratégia

encontrada para reconciliar a sociedade moderna com o facto de não conseguir

transcender os mitos redentores do Cristianismo e defender a violência como forma

de garantir a preservação contra a violência religiosa. Só através da criação de uma

Paz definitiva no nosso mundo, se pode justificar a violência secular para terminar

com a religiosa. É desta forma que o secularismo, através da Utopia, se crê acima da

disputa religiosa e num “moral high ground”.

Conclusões: Fundamentar o Liberalismo – Um Novo Liberalismo? As propostas dos autores,

sumariamente apresentadas, passam pela inscrição do Liberalismo em estruturas de

pensamento que o transcendem, evitando o monopólio da vontade humana como

fundamento legislativo, que o liberalismo entendido como finalidade em si própria

parece acarretar. Pretendem da mesma forma contrariar esta formulação, que parece

gerar situações de ingovernabilidade ou situações em que os direitos são utilizados

para destruir a fonte de direitos donde os primeiros emanam57. Quando tomados

como princípios absolutos ou finalidades, a “autodeterminação” do indivíduo ou a

inviolabilidade da propriedade, sem que estejam inseridos numa estrutura que ordena

o seu alcance – um quadro interpretativo –, entramos no domínio axiomático, onde

55 A crença de que o homem tem na sua existência terrena a única dimensão existencial.56 Gray, pp. 108 -131.57 Grande parte da literatura conservadora do século XX parte do “paradoxo de Weimar”. A questão essencial

para autores conservadores como Leo Strauss ou Eric Voegelin, que foram emigrados do Reich Nazi, prendia -se com as condições existenciais da democracia e com a forma como um sistema constitucional liberal, pleno de garantias e “evoluído”, como ainda hoje é proclamada a “República de Weimar”, permitiu a ascensão dos regimes totalitários.

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259nada é possível explicar ou fundamentar58. E os autores alertam com veemência para

o perigo de explicar a liberdade com a liberdade, não explicando os seus benefícios

numa escala de valores, mas apresentando -a como única finalidade possível.

A obra de Pierre Manent propõe a Comunidade como elemento corrector do

liberalismo. O Estado -Nação, uma forma específica desta, é, segundo o autor, a melhor

forma de, recorrendo aos elementos que se encontram na sociedade, evitar o colapso

do liberalismo sobre si próprio, evitando as consequências lógicas da Modernidade e do

Liberalismo que concorrem para o niilismo e para uma sociedade desordenada. Aqui

surge, porém, uma dificuldade na perspectiva de Manent. Ferdinand Tönnies estabeleceu,

em Gemeinschaft und Gesellschaft (1887), uma distinção fundamental entre associações

humanas voluntárias e involuntárias. Às primeiras chamar -se -ia “sociedade”59, enquanto

que às segundas “comunidades”60. Emerge daí uma distinção imprescindível, que

consiste em saber se o Estado -Nação presente não tem mais de “sociedade” do que de

“comunidade”, ou seja se o elemento preponderante das nossas agregações políticas

não é o carácter voluntário das instituições e a forma como um cidadão se pode não

rever nas própria nação61. Este é, também, um problema tocquevilliano, sendo

fundamental perceber de que forma na sociedade as instituições sociais naturais foram

impregnadas pelo voluntarismo que caracteriza a ideia liberal e, por consequência, a

ideia democrática. Analisando o problema, facilmente se poderá detectar que não

estamos perante um Estado -Nação monolítico, mas perante uma “idealização” do

conceito, dado em muitos Estados da Europa as estruturas sociais autónomas (onde

segundo a teoria de Alexis de Tocqueville repousaria a essência da liberdade moderna)

foram há muito adulteradas pelo Estado com o seu carácter voluntário e igualitário,

assim como pela imposição dos seus princípios, sendo neste momento meros reflexos

da ordenação estatal. A forma como o casamento e a família se encontram neste

momento subordinadas a concepções meramente civis, sendo tomadas pela política e

sociedade como matérias referendáveis, demonstram como essa “teoria da sociedade

civil”, que Manent anexa ao Estado -Nação, se apresenta extremamente débil na Europa

do nosso tempo. Onde o Estado parece ter penetrado as várias esferas da existência

58 Afirmações como “quero “x”, porque sim” são impedimentos a qualquer discussão racional e impedem qualquer diálogo que vise a compreensão ou fundamentação, tornando impossível qualquer fundamentação filosófica.

59 Gesellschaft no alemão original.60 Gemeinschaft no alemão original.61 O direito a desprezar os símbolos nacionais é hoje, cada vez mais, um direito consagrado nas estruturas

legislativas e nas práticas sociais das nações europeias.

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260 humana, pouco espaço há para a autonomia organizacional das estruturas sociais.

Nessas circunstâncias o papel do Estado -Nação enquanto elemento correctivo do

carácter autonomista do liberalismo é dúbio, para dizer o mínimo.

O argumento de Marcello Pera, encontra também um conjunto de problemas que

se prendem com as particularidades do Catolicismo quando colocado perante o

Liberalismo. Socorrendo -se da concepção constitucional americana do Divino, que é

claramente influenciada pelo Deísmo lockeano62, Pera faz uma defesa de uma concepção

do Divino como guardiã das normas do liberalismo. A aplicação do paradigma americano

ao processo de constitucionalização da Europa encontra, porém, bastantes problemas

conceptuais. Marcello Pera ressuscita as formulações do Constitucionalismo Americano,

a ideia de um Deus tido constitucionalmente como um referencial externo que garante

a igualdade e a vinculatividade da ordenação política, é uma parte importante do legado

lockeano na tradição americana. Mas essa influência reflecte -se num dúplice problema:

a formulação lockeana pressupõe a exclusão da ordem política de pessoas que não

perfilhem essa visão protestante de Deus, sendo também uma formulação situada no

tempo, com difícil transposição para o enquadramento católico.

Ambas as objecções estão claramente interligadas. A primeira, a exclusão de

católicos e ateus da sociedade, provém da própria natureza da revolução americana, um

projecto de auto -governo que visava libertar do passado europeu as populações

protestantes do Novo Mundo. Contudo, a influência de Locke e da vinculatividade

jusnaturalista da constituição, tem vindo a ser erodida no século XX. Este facto

representa um problema para a tese de Pera. Ou o autor toma como exemplo as teorias

fundacionais americanas e se desliga do espírito do tempo actual americano, que já

pouco reconhece o carácter imperativo da concepção protestante do Divino, e aceita

como natural a exclusão dos católicos e ateus da ordem política (contra o espírito do

tempo actual do liberalismo), ou aceita o espírito americano e a forma como as

interpretações constitucionais presentes afastam qualquer relação com Deus da

ordenação política. Não se verificando o espírito do tempo do momento fundacional

da ordem americana, é difícil ver como tais conceitos poderiam ser transpostos para

uma ordem constitucional europeia. O mesmo se pode aferir quanto à perspectiva

constitucional americana ser transplantada para uma ordem com uma formulação

social (aceitando verdade na tese de Pera de que a Europa ainda encontra a sua

62 Ver S.G. Hefelbower, The Relation of John Locke to English Deism, University of Chicago Press, Chicago IL, 1918.

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261formulação mental essencial, a base da sua cultura, no Cristianismo) onde imperem

pressupostos católicos, dada a diferença entre ambas as visões da política, a cultura

protestante e católica63.

Da mesma forma, é bastante problemática a observação da forma como Pera tenta

compatibilizar o hegelianismo de Benedetto Croce64 e a sua apologia do Espírito

Cristão da contemporaneidade com o Catolicismo. Segundo o autor italiano, o

liberalismo não pode prescindir do Cristianismo, uma vez que é esse o “espírito do

tempo” que ainda predomina nos sentidos que damos ao mundo e nos valores de que

o povoamos. Esta asserção esconde, contudo, uma afirmação mais profunda: que a

assertividade social do catolicismo provém da forma cultural dos indivíduos e não da

verdade intrínseca da sua mensagem. Coloca dessa forma o Cristianismo como fórmula

mental das sociedades europeias, e dá -lhe, em virtude desse posicionamento, carácter

de trave -mestra dos sentidos da sociedade liberal. A forma como Pera apresenta o

Catolicismo e o Cristianismo como pura forma cultural, sendo independente da sua

estrutura e hierarquia de valores e meramente dependente do sentir dos crentes. Ao

colocar a questão nesses termos o Cristianismo torna -se líquido e modelável, podendo

a qualquer momento ser confundido com formulações que lhe poderão ser opostas.

Importaria saber qual a autoridade, bem como o quadro interpretativo, que, em caso

de necessidade de esclarecimento desse espírito cristão, procederá à limitação do

quadro liberal. Que autoridade poderá assumir a tarefa de interpretar os sentidos do

liberalismo para que este não resvale no niilismo?

Para John Gray, a fundamentação do liberalismo e a forma como este resvala

invariavelmente em “religiões políticas” deve -se sobretudo à presença de mitos

fundadores incompatíveis com a mensagem liberal. Onde Pera considera a necessidade

de fundamentar o liberalismo na cultura cristã, Gray considera que a principal tarefa

do liberalismo presente é apartar -se dos mitos cristãos que geraram a Modernidade e

empreender uma refundação da sua fórmula mental sobre formas mais inócuas, mais

capazes de preservar o respeito pela alteridade que fundamenta o liberalismo.

Encontramo -nos aqui num momento pós -moderno de refundação do liberalismo,

onde, ao estilo heiddegeriano, o próprio passado é visto como uma construção do

63 A concepção protestante aceita a comunidade política como realidade meramente humana, sendo por esse facto que toda a teoria jusnatural secularista se apoia nessas premissas. Já a perspectiva católica clássica, perfilhando o jusnaturalismo clássico, crê na comunidade política como ferramenta de propósitos que não os meramente seculares, como postulada pela visão de justiça política de São Tomás de Aquino.

64 Pera, pp. 49 -54.

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262 presente, onde são as finalidades presentes a determinar o mito. Encontramo -nos assim

perante uma solução ultra -moderna para um problema moderno, onde o desejo de

alterar ou aperfeiçoar o paradigma existencial conduz a uma reconstrução da própria

estrutura espiritual do indivíduo e da sociedade. Apoiando -se fortemente na obra de

Hobbes e Oakeshott65, na observação sociológica das religiões orientais66, Gray apela a

uma construção que rejeita toda a teleologia cristã e moderna, em favor de uma

sociedade sem quaisquer finalidades transcendentes. Tal sociedade, afirma, respeitará a

subsistência física e moral de todos os seus membros por possuir como finalidade

política a mera contemplação do tempo e do mundo natural.

Quanto a este ponto da reformulação do pensamento ocidental, os problemas com

que Gray se depara são inúmeros, sendo o seu livro omisso quanto a quaisquer

respostas concretas. Na base de todo o livro subjaz a ideia de que o Cristianismo é a

causa motriz da Modernidade, não sendo, em grande medida, os dois conceitos

absolutamente destrinçáveis. Tal pode ser observado na forma como Gray descreve o

Cristianismo como principal força da Modernidade que determina o seu carácter

teleológico e salvífico, dotando -se da capacidade de fazer o Bem e de nesse processo

proceder a todo o tipo de crimes.

É, contudo, fundamental retroceder um pouco, observando o que escreveram

outros autores que se debruçaram sobre a Modernidade enquanto religião secular, para

proceder a uma compreensão mais profunda da natureza do secularismo e da sua

relação com o Cristianismo. Autores como Max Weber ou Karl Löwith postularam -na

como reflexo da concepção judaico -cristã, da esperança do Cristianismo e da espera

judaica67. Mas aquele que é, sem dúvida, o grande teórico das “religiões políticas”, Eric

Voegelin, ancorou as formas ideológicas da Modernidade numa acção de “imanentização

da escatologia cristã”, significando esta a redução do horizonte humano ao eixo de

existência terrena, onde elementos claramente escatológicos como o Paraíso é

transformado em Utopia, a salvação é transmutada na crença na perfectibilidade

humana, onde a Fé é substituída pela certeza científica racionalista, onde a Paz Cristã

é substituída pela ausência de conflito. Ao contrário de Gray, que vê no Cristianismo a

fonte de toda a imposição sobre o “outro”, Voegelin define como problema estrutural

da Modernidade o abandono da posição tradicional do Cristianismo, a metaxia, onde

toda a avaliação da realidade repousa sobre uma visão do “outro mundo”, transcendente,

65 Gray, pp. 260: 294.66 As religiões sem catecismo aludidas em Gray, p.297. 67 Yotam Hotam, Gnosis and Modernity, in “Totalitarian Movements and Political Religions”, n.º 8 : 3, pp. 59 -68.

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263para uma concepção meramente imanentista do cosmos. Em Voegelin, a Modernidade

é um Cristianismo degradado, onde os seus conceitos -chave foram substituídos por

uma concepção meramente terrena, residindo nessa degradação a própria degradação

do pensar contemporâneo. Em Gray, porém, o Cristianismo alberga tanto as ideologias

modernas, como os preceitos tradicionais que se lhe opuseram, incluindo, desta

forma, uma coisa e o seu contrário. O facto de Gray não explorar a forma como o

Cristianismo e a Igreja se opuseram à concepção imanentista e secularista, apesar de a

mencionar68, cria um problema de definição do que é o Cristianismo e de que forma

se deve às suas concepções a fonte dos males modernos. A rejeição do Cristianismo e

a sua substituição por mitos mais inofensivos, parte dessa premissa insuficientemente

analisada, numa linha em muito tributária da filosofia política britânica de Hobbes e

Oakeshott, onde a paz civil se sobrepõe às concepções de justiça provindas das posições

filosóficas e religiosas da comunidade69. O desígnio de Gray de reconstruir a fórmula

mental de toda uma civilização, desprezando os seus elementos constitutivos, com o

propósito da sua pacificação decisiva, não corresponderá ao mesmo impulso e método

das religiões políticas totalitárias?

O Liberalismo encontra -se, na sociedade pós -moderna, perante um problema

essencial. É ele a gramática comum da sociedade, o detentor de toda a fórmula

discursiva de Direitos e Deveres, de esferas individuais, de premissas libertárias da

comunidade e, contudo, dada a sua falta de subsistência metafísica e afirmação da sua

visão peculiar do mundo, tornou -se uma concha vazia à espera de hospedeiros que lhe

preencham os sentidos e definições. A própria história do liberalismo pode ser

confundida com esse processo. O triunfo da discursividade liberal significou pouco em

termos de sedimentação dos seus conceitos e mesmo o socialismo mais férreo se

esconde sob o manto dos direitos laborais e das garantias adquiridas, para subverter as

premissas do liberalismo. Da mesma forma, os autores e obras que foram observados

procedem a essa mesma tentativa de dotar o discurso liberal de um conjunto de

significados (clássico, medieval e moderno ou ultramoderno, respectivamente) que

são estranhos à formulação liberal clássica da sociedade, buscando outras argumentações,

mais amplas que o próprio liberalismo.NE

68 O autor explica como a Igreja se opôs, na Idade Média, às religiões políticas, mas não discute a eficácia ou como esta resistência seria ou não eficaz no mundo de hoje.

69 Vários autores vêem como origem desta concepção de paz social como grande finalidade política, que terá importância fundamental na tradição política anglo -saxónica, na obra de Marsílio de Pádua Defensor Pacis.

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His Excellency Ambassador Carlos Neves Ferreira.

President of the Diplomatic Institute of Lisbon

And Officers of the Portuguese Foreign Office

I AM DELIGHTED to be in Lisbon – a city that has fascinated me for a very long time. I have been

captivated by its mystique and charm. Equally charming are the people of Portugal.

The warmth and hospitality which I have received since my arrival here has touched

me deeply.

I am thankful to the Portugese Ministry of Foreign Affairs and the Diplomatic

Institute of Lisbon for making it possible for me to visit your beautiful country. My

special gratitude goes to His Excellency Ambassador Carlos Neves Ferreira for

organizing this morning’s activities. I am confident that the conclusion of the MOU

which we have concluded today will be a precursor to a valuable partnership between

our two institutions.

I also attach great importance to the opportunity to share my thoughts with the

officers of the Portugese Foreign Office on the foreign policy of Pakistan. My views

reflect the understanding of a person detached from the official positions on day -to-

-day developments in the external relations of Pakistan.

Let me at the outset remind you that, among the different factors influencing the

foreign policy of any country are two categories of factors: the determinants and the

variables. In the case of Pakistan by and large the determinants can be identified as

• Geography or geo -strategic location of Pakistan;

• Historical legacies and outstanding disputes;

• Ideological and cultural moorings; and

• Aspirations of the people of Pakistan.

Intervenção da Directora da Academia dos Negócios

Estrangeiros do Paquistão, Embaixadora Fauzia Nasreen,

por ocasião da assinatura do Protocolo de Cooperação

entre o Instituto Diplomático e a Academia

Fauzia Nasreen*

* Directora-Geral da Foreign Service Academy of Pakistan.

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265The most significant factor in the variables is the international setting and the

regional environment. Since foreign policy is constantly operating within these

paradigms and change is a constant factor, adjustments have been an imperative also

for us. Building on the guiding principles of inter -state relations Pakistan’s foreign

policy lays paramount emphasis on the internationally recognized norms which

include sovereign equality of all states; non -interference in the internal affairs of other

states; respect for the sovereignty and territorial integrity of all states; non -aggression

and peaceful settlement of disputes. As a matter of policy we have desired to develop

friendly and cordial relations with all countries of the world. As we all know

management of foreign policy is a complex phenomenon especially for a country like

Pakistan as we do not have the option of withdrawing into isolation neither we would

want to exercise that option.

Let me refer to our founder leader’s vision of Pakistan. It was of a country that

desired peace and good neighbourly relations and of a country that was to be a

moderate Muslim state. These ideals came into collision with disputes and conflicts

that emerged as soon as the state was created. The exercised by the leaders in earnest

good faith were inspired by making the country not only survive but stand on its own

feet. Security challenges gave hardly any option and obviating vulnerabilities as well as

sustaining defence equilibrium with the eastern neighbour dictated the direction of

our foreign policy for several decades. The Cold War scenario also posed grave options

for Pakistan. The foreign policy pursued reflected the interplay of domestic compulsions

and opportunities and challenges arising from the global and regional developments.

I will start with the most significant determining feature of Pakistan’s foreign

policy that is the geo-strategic location. From time to time the nuances have changed

while referring to our location. Our linkage with four important regions: South Asia,

Central Asia, West Asia and the Middle East, has provided continuity in the foreign

policy preoccupation. In the 21st Century Pakistan wants to leverage its geography by

promoting infrastructure connectivity and by becoming a hub of economic and

commercial activity and a trade, energy and tourism corridor. These can be actualized

through foresight, determination and focused strategies. Our geo-strategic location is

our inherent strength. Since one of the crucial objectives of foreign policy is to

promote economic prosperity, Pakistan’s diplomacy and policy framework have

progressively evolved to achieve these goals.

The discussion automatically leads me to the perennial debate about security and

economic prosperity or development especially on the question which takes

precedence. It is being regarded as a crucible in the context of reconstruction and

stabilization of Afghanistan and indeed some of our own regions. The arguments have so

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266 far produced inconclusive results but beyond doubt they are intertwined. Security in a

broader context would imply comprehensiveness. An umbrella of secure frontiers with

solid human security and strength that will make a country’s voice credible and powerful,

occupy a pivotal position in the foreign policy calculations and effective diplomacy. As a

major participant in the global efforts to curb transnational terrorism, Pakistan stands at

an enhanced level of strategic relevance for the interested major powers. Therefore the

geographical location can be regarded both as a bane and a boon.

The success of any foreign policy is co-related to the degree to which national

interests are protected and promoted. It is inherent in withstanding pressures and

converting challenges into opportunities. More importantly it is in creating necessary

space for maneuverability. Considering that “Pakistan’s foreign policy has been

extension of its national security requirements” in my view to a large extent the

foreign policy has managed to deliver. In the present day context as I see it Pakistan is

confronting some challenges in the spheres of

• Fight against teror and dove tailing the external demands with domestic

clamourings;

• Constructive engagement with main partners such as the United States, the

European Union and China;

• Utilization of external relations for the economic and social development of

Pakistan;

• Image building of the country and correction of misperceptions;

• Conversion of the Composite Dialogue with India into a result oriented process;

and

• Developing identity of perceptions with Afghanistan on regional security and

internal stability of Pakistan and Afghanistan.

With regard to fight against terror there are no two opinions about the dangers it

poses to Pakistan's own security, the region and the world at large. Its history in the

context of Afghanistan is all too familiar to us. However the principled stand of

Pakistan is intrinsically linked with its own security, economic prosperity, development,

eradication of poverty and the welfare of the people. Therefore it has constituted a

major plank of our foreign policy. Our decision to join the international community

and the coalition against terror in the aftermath of 9/11 was to ensure:

• Security of the country against possible threats;

• Non -disruption of economic measures;

• Safety of our strategic assets; and

• Regional security.

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267The end goals of combating terror have remained constant. The means have to be

molded in a way that they lead to the higher aims. With this central theme Pakistan has

advocated a three -pronged approach resting on political and economic means backed

by the use of force. Our commitment to fight terror has been unswerving. We are

fighting terror because we believe that this is in our interest as we have been its victim.

In 2007 alone there have been more than 2000 civilian casualties in various bombing

incidents across Pakistan, including the loss of former Prime Minister Benazir Bhutto.

The latest horrific incident of terrorist attack in Islamabad on 20th September is a

gruesome reminder of the danger to our security. While it has strengthened our resolve

to eradicate this menace, we also favor concerted action for formulation of a

comprehensive strategy to counter terrorism in all its forms and manifestations.

It is also an un -denying fact that terrorism and its heinous form of suicide

bombings have created an atmosphere of fear, uncertainty and chaos depriving the

nation of Pakistan of economic prosperity and geo -strategic dividends. It has restrained

us from achieving our true potential. It has marred the image of Pakistani Diaspora,

denying educational and employment opportunities for Pakistanis abroad. It is taking a

heavy toll on the psyche of the nation. Hence there is an overarching consensus on

effectively dealing with terrorism. This can be done by possibly separating the hard core

terrorist elements and the pliable extremist elements and those who are willing to

renounce terrorism and changing the mind set of the latter. Addressing some of the

fundamental catalyst factors such as injustice, desperation, economic deprivation, social

inequity and poverty could have salutary impact on the overall counter terror strategy.

Ladies and Gentlemen,

Allow me to dilate upon Pakistan's relations with some of our major partners.

Establishing long term, broad based and strategic relations with major powers

especially the US, EU and China is of abiding and strong interest to Pakistan.

Notwithstanding the periodical hiccups the strategic interests of Pakistan converge

with the US on wider spectrum of bilateral, regional and global issues. The relations

have shown considerable resilience. The shared objectives of eradicating global

terrorism and promoting regional peace and security have added impetus to these ties.

The leadership of the two has reaffirmed their desire to extend the cooperative

relationship beyond the war on terror to include areas of defense, economy, trade,

investment, education and technology. During the recent visit of the Prime Minister of

Pakistan to Washington, the US President described Pakistan as a "strong ally and a

vibrant democracy" and reiterated interest in forging a long -term multifaceted

relationship with Pakistan. However the latest spate of US violations of Pakistani

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268 territory through predators has caused consternation and anguish with the Government

of Pakistan spelling out that "any action against the militants inside our territory is the

sole right of Pakistan." It also stated that matters would be settled diplomatically. The

President of Pakistan, Mr. Asif Ali Zardari's meeting with President Bush on 23rd

September in New York was aimed at arriving at an understanding that would facilitate

achievement of our mutual interests. Exchange of views has therefore been useful.

European Union’s global strength as a cohesive body gives it interests with

wider reach and dimension. Pakistan is cognizant of its long term relations with the

Union as a whole as well as with individual member countries. Pakistan’s relations

with the European Union are multifaceted with special interest in political,

economic, commercial and migration issues. EU is the largest trading partner of

Pakistan with a bilateral trade to the tune of US $10 billion. EU is also the largest

investor and its ODA to Pakistan spans areas of poverty alleviation and sustainable

development. Pakistan recognizes with interest EU priorities in the areas of

consolidation of democracy, poverty alleviation and curbing rise of religious

extremism and militancy in our region.

The political dialogue revived in 2004 serves as a useful vehicle for exchanging

views and ideas on a range of peace and security and other political issues. It also

enables the two sides to set the pace for mutual, collaboration. The next Pakistan -EU

troika meeting at the ministerial level took place in New York on the sidelines of the

General Assembly meeting. A comprehensive review of relations took place. Pakistan

has underscored its desire to forge greater cooperation. A roadmap for such a

consolidated relationship was also discussed between the two sides. My view is that

with the EU’s eastward thrust our ties with the Union have acquired a new dimension.

The dynamics of Central Asia resting on energy together with EU member countries

in Afghanistan, Pakistan should figure prominently in the Union’s calculus. We value

EU’s understanding and support for Pakistan’s multi -pronged strategy to deal with

extremism and militancy. With the strength of experience and sense of history the EU

can play a pivotal role in dealing with the complexities of the regional situation.

I think I will be remiss if I did not talk about Pakistan’s relations with Portugal.

In addition to our interaction with Portugal within the framework of the European

Union whose Commission’s President is the illustrious His Excellency Jose Manuel

Barroso, our two countries enjoy multifaceted bilateral relations. These range from

defence and security to commerce and political related exchanges. We deeply

appreciate the solidarity displayed by Portugal when the devastating earthquake

struck certain parts of Pakistan in October 2005. Your assistance has been valuable

and touched the hearts of many Pakistanis. The sharing of the grief of the people of

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269Pakistan who have been victims of terrorism is evident from the appreciation of our

role in the fight against terrorism. Portugal’s sympathy expressed at the highest level

over the grievous loss of the former Prime Minister Benazir Bhutto shows the acute

awareness here of the tragic dimension of terrorism and the price Pakistan is paying

for combating this menace. My earnest hope is that your country will, in the

backdrop of strategic patience, facilitate our efforts in reversing this catastrophic

trend globally and regionally.

Ladies and Gentlemen,

Pakistan and China enjoy close and time tested relations. The two countries have

convergence of political interests especially in the preservation of peace and stability

at the global and regional levels. Political fundamentals of bilateral ties are sound

reflected in the frequent high level exchanges and mutual cooperation. Numerous

consultative mechanisms exist for promoting cooperation, understanding and

support for each other in international forum. The two countries have signed a large

number of agreements to enhance relationship in various fields. The recent efforts

are aimed at giving boost to bilateral economic relations to bring them to a higher

level, compatible with the political content of relationship. With an eye on future

perspective, expansion of relations in educational and cultural fields as well as

people -to -people contact is being encouraged. In addition to Chinese assistance for

mega -projects, the two countries have identified a wide number of projects under

the Five Year Programme on Trade and Economic Cooperation. These projects are in

the sectors of energy, agriculture and infrastructure. Pakistan and China as partners

want to bring peace and prosperity to the region through further consolidation of

their relationship.

We attach seriousness to the pursuit of tension free and cooperative relations

with India. Our two countries have come a long way from the tense period of the

years 2001 and 2002. The Composite Dialogue process has been in place since 2004.

The latest fifth round was launched in New Delhi in July 2008. Both sides have

agreed on several confidence building measures to remove mistrust and improve the

atmosphere. Foreign Minister of Pakistan during his June visit to India held useful

parleys with his interlocutors. He emphasized the necessity of a meaningful,

constructive and result oriented dialogue aimed at resolving the core issue of Jammu

and Kashmir. Pakistan is in favor of greater trade and economic relations with India –

a relationship that should be based on a win -win partnership. Pakistan also wants to

promote large scale multidimensional ventures such as Iran -Pakistan -India and

Turkmenistan -Afghanistan -Pakistan -India gas pipelines.

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270 We remain hopeful that the recent adverse developments will not result in the

frittering away of gains made over the last four years. Our national priority is on

socio -economic development – a prerequisite for internal and regional stability. This

objective can be achieved only if there is a stable and peaceful neighborhood. It is

also in the vital interest of our neighboring countries to ensure that stability prevails

in all the countries of the region including Pakistan. The condemnation expressed at

the highest level by India over the tragic loss of innocent lives in the terrorist attack

of 20th September indicates the awareness at the regional level about the grievous

and catastrophic trend internationally. President Zardari’s recent meeting with the

Indian Prime Minister in New York has been productive. The Composite Dialogue

will be resumed in October and the meeting of the Joint Anti -Terrorism Mechanism

will also be held at the same time. The Indian Prime Minister has also invited

President Zardari to visit India. These are positive indications of a forward

movement.

Let me also briefly mention about our multilateral diplomacy. Playing an active

role at the multilateral institutions especially the United Nations is a priority in the

policy of engagement with the international community and playing a constructive

role in the international system. This engagement is a cornerstone of our foreign

policy. Compatible with these objectives Pakistan has maintained a high profile

through active participation in the UN activities and election to important UN

institutions. Our areas of prime focus have been projection of Pakistan as a moderate

Muslim country, developing international consensus on issues of prime concern to

us, development issues and reform of the UN Security Council. On the last issue

Pakistan favors a kind of reform that will not exacerbate the divisions and discord

among the UN members. Pakistan also contributed as co -chair of the UN High Level

Panel for UN System Wide Coherence at the head of government level. The Panel’s

report highlighted the deficiencies in the UN delivery mechanism at the country

level. A number of measures were presented to address the issues involved. Pakistan

was selected as a model country for implementing these proposals.

Ladies and Gentlemen,

Economic prosperity, social stability and development are the overriding

objectives of any government policy. Foreign policy is no exception. The idea behind

creating economic interdependence in the region is to ensure a favourable situation

for all parties. This is to be achieved through bilateral, regional and multilateral

mechanisms that would create stakes and bring dividends to all concerned. This

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271entails target oriented engagement with major powers, the US, the EU, Asian, Latin

American and African countries. Several initiatives have been undertaken to widen

the scope of collaboration. Intelligent management of our geo -strategic location is

imperative if we want to convert challenges into opportunities. Our linkages with

four important regions mentioned earlier have acquired even more significance in

the 21st century. We do hope that the on -going discussion on the Reconstruction

Opportunity Zones with the United States will come to early fruition and that the

EU would also show its action oriented interest in this venture.

Our philosophy is that economic interdependence that ensures benefit to all can

be achieved through prudent policies taking into account the enlightened self interest

of all concerned. Creating stakes of all concerned will bring the desired dividends to

the region.

Let me turn to our neighbouring country Afghanistan. It is a very important

country for Pakistan and the security of our two countries is interlinked. As far as

Pakistan is concerned we have always stood by Afghanistan in times of trial and

tribulation. We have hosted for over a quarter of a century, millions of Afghan refugees

on our soil. We are facilitating their honorable and dignified return to their home

countries. We have supported the Bonn process and have pledged $320 million of

assistance. Pakistan is one of the leading participants in the reconstruction of that

country. Today, both countries are facing the twin menace of terrorism and extremism.

No country is affected more, or has more stakes in Afghanistan’s success in fight

against terrorism and extremism than Pakistan. Common threats demand collective

responsibility based on deep trust and mutual understanding. Both the President and

Prime Minister of Pakistan have met the Afghan President recently with both sides

reiterating common desire to move forward leaving behind the blame game. Pakistan

will continue to make sincere efforts to address and allay Afghan misgivings with the

expectation that the same maturity will be shown by the other side.

In conclusion let me emphasize that all foreign policies operate within certain

constraints and limitations. They stem from a number of factors. However in a

democratic dispensation domestic constituency assumes enhanced importance. The

contours of our foreign policy be they in the context of relations with the countries

of the region, or major powers and Muslim countries, are framed on the basis of the

changing realities of the international system and the world in the 21st century.

Nothing is permanent but change. Therefore foreign policy has to take into

consideration this factor on a continuous basis. Adjustments in emphasis and nuances

are necessary and inevitable.

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I end with words of thanks to all of you for a patient hearing. I want to thank our

very capable Ambassador Fauzia Sana who has coordinated arrangements with such

care and attention. With her focused and meticulous approach, I can see that she has

made substantial contribution in forging our bilateral relations and in particular in

promoting mutual understanding between Pakistan and Portugal. I thank you.NE

NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 264-272

273Notas de Leitura

274

275

UMA AUTOBIOGRAFIA DISFARÇADA

de João Hall ThemidoEditora: Instituto Diplomático, MNE

NÃO É DA nossa tradição a publicação de

memórias de diplomatas. É uma das razões que

me levam a saudar este livro do Embaixador

Hall Themido, conjunto de recordações

de uma carreira brilhante e diversificada,

que enriquecem os reduzidos testemunhos

da nossa diplomacia em termos de obras

publicadas. Terão sido redigidas em roda livre,

como nos diz o autor, sem apoio de notas

ou arquivos, e quando atinge os oitenta

anos. Sem compromissos portanto e liberto

Uma vida dedicada à Diplomacia

Leonardo Mathias*

de responsabilidades que o pudessem inibir.

Mas é uma obra, como o são os livros de

memórias, circunscrita a um espaço, o que

dá outro prazer à leitura pelo que revela de

um mundo próximo onde os acontecimentos

marcaram um tempo da vida portuguesa que

o autor não tem a pretensão de criticar mesmo

se, aqui ou ali, deixa escapar um comentário

que pode ser assumido como tal. É uma

história que as novas gerações desconhecem

mas que terão de começar a estudar.

O português clássico, das Necessidades,

que se reconhece facilmente, retrata -nos

momentos, cidades e países bem como

personalidades que cruzaram a vida pessoal

e profissional do seu autor: Tanger, com

um episódio pitoresco que se não esquece;

Nova Delhi, e o trabalho de cifra no período

que vai anteceder a invasão e ocupação de

Goa; Estocolmo e os trabalhos para a tese do

concurso a Conselheiro. E ainda a compra em

Roma da Vila Barberini que se fica a dever ao

seu bom gosto e à sua noção da dignidade

da representação externa do Estado. Depois

os grandes postos da carreira, Washington,

Roma, Londres, quando difíceis, complexos

e inesperados desafios se colocam com mais

regularidade aos Chefes de Missão. E antes

disso ou entre essas capitais, o exercício de

altas funções em Lisboa. São casos numa

João Hall Themido

Uma AutobiografiaDisfarçada

* Embaixador.

NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 275-276

Um

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tobi

ogra

fia

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arça

da

276 Carreira que fazem de João Hall Themido

actor ou observador atento das graves crises

que nessa altura o país conhece. E fala -nos

da Rodésia, do Biafra ou da situação em

Macau, entre tantos assuntos que surgem

no contexto da política ultramarina e da sua

defesa. Como alto funcionário cumpre as suas

obrigações com competência e lealdade. E

assim o Ministério, mobilizado, está sempre

presente e nele a rica personalidade de Franco

Nogueira que seduz os homens da sua geração,

e tantos outros, e não deixa indiferentes os

que discordam dele. Estes momentos, cuja

história está ainda por fazer, precisam de

obras como esta para se ir juntando às demais,

que de uma forma ou de outra, contribuem

para o seu estudo quando se multiplicavam

as ameaças ao país velho de séculos e a sua

acção em África era contestada por cada vez

maior número de nações. “Uma política

de compromisso seria fácil mas levaria, a

curtíssimo prazo, ao desaparecimento do

Império português, que era justamente o que

se pretendia evitar”. Pertencia a um grupo de

elite, diz -nos o autor, onde todos colaboravam

de forma desinteressada para o bem do país,

por puro patriotismo e sentido do dever.

Posso comprová-lo.

A este respeito o autor demora -se a

referir a evolução das nossas relações com

os Estados Unidos, onde teve o privilégio

de servir durante mais de dez anos, antes

e depois da Revolução de Abril de 1974.

Neste último caso por inteligente iniciativa

de Mário Soares, que assim demonstrava

não estarem em causa as orientações gerais

da política externa nacional. O Embaixador

lembra -nos que com Kennedy na Presidência

se tinham alterado essas relações para pior.

Embora melhores com Nixon, acabariam por

ficar definitivamente comprometidas pelo

ultimato do Outono de 1973, quando a

guerra do Yom Kippur impõe a utilização das

Lages pelas forças americanas em apoio ao

seu aliado Israel, sem qualquer consideração

pelos interesses portugueses na altura. Hall

Themido é depois testemunha da tentativa de

reparação que nos é feita.

Merece assim a este respeito observar

a leitura que o Embaixador em Washington

faz destas realidades. Alude às relações entre

Portugal e os Estados Unidos que antecedem

de meia dúzia de meses a Revolução de Abril

e depois a forma como trata dos avanços e

recuos a que essas relações ficam submetidas.

Nota alta justifica -se para a excelente síntese

que é o retrato de Mário Soares ou para as

menções a Sá Carneiro, Costa Gomes ou Vasco

Gonçalves e, no lado oposto, para Kissinger

ou Carlucci. A literatura política dos últimos

trinta anos tem -nos dado conhecimento dessas

vicissitudes. Mas aqui é um dos principais

actores portugueses que nos descreve como

viveu e o seu depoimento é despojado, como

são as melhores Informações de Serviço do

Ministério dos Estrangeiros. E para melhor

esclarecimento dos factos, e conhecimento

da personalidade do autor, observa ainda Hall

Themido ter resistido a uma carreira política

que Theotónio Pereira lhe proporciona e não

ter autorizado Franco Nogueira a sugerir o seu

nome como seu substituto nas Necessidades.

Pela qualidade intelectual de quem

o escreveu, pela maneira como alude aos

homens, aos factos e aos momentos políticos

e diplomáticos que acompanhou, este livro

do Embaixador João Hall Themido é um

documento que preenche uma lacuna e

enriquece uma biblioteca. Por tudo isso vale

a pena ser lido.NE

NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 275-276

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fia

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arça

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ao leitor a imagem e o sabor do exercício

da profissão de diplomata, quer nos seus

aspectos substantivos, como agente da política

externa e representante do seu país e como

observador privilegiado da realidade política,

quer no respeitante à gestão do quotidiano

no relacionamento com a sua capital e com

os meios locais.

É o próprio LEF que o diz quando na

introdução sublinha que “se começasse a

desfiar o rosário, seria um não acabar”. Por

isso propôs -se descrever em pinceladas largas

o essencial das situações que foi vivendo, para

o leitor ter a percepção da atmosfera em que

actuou, acrescentando as reminiscências da

sua experiência pessoal que mais vivamente

permaneceram no seu espírito.

E fá -lo com notável espírito de síntese,

com a perspicácia de um observador inte-

ligente e culto e com a maturidade e

profundidade de um profissional experimen-

tado e de alto calibre.

Anote -se que as memórias são escritas,

conforme nos é revelado pelo seu filho, que

em tão boa hora decidiu editar o presente

livro, entre 1964 a 1966, sendo portanto

uma retrospectiva dos factos relatados.

Após umas considerações preambulares

e um capítulo dedicado a “Portugal no início

do Século XX” e outro sobre “a Universidade

DE PEQUIM A WASHINGTON. MEMÓRIAS DE UM DIPLOMATA

PORTUGUÊSde Luís Esteves Fernandes

Editora: Prefácio

LI COM PRAZER e interesse o livro de memórias

de Luís Esteves Fernandes, muito bem

sintetizado no excelente prefácio de Teresa

Patrício Gouveia.

Constitui uma contribuição interessante

e valiosa para a história político-diplomática

dos anos abrangidos pela sua longa e brilhante

carreira (1920 -1961), mas dá sobretudo

Um livro sincero e corajoso

Pedro Catarino*

* Embaixador.

NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 277-281

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278 e início de carreira”, acompanhamos o

percurso de LEF através de uma sucessão

impressionante de postos, todos eles postos

de topo, de grande relevância política.

Vale a pena atentar nos títulos alta-

mente sugestivos dos diversos capítulos,

correspondentes a cada um dos postos e nas

respectivas datas, para se ter ideia da riqueza

e intensidade das experiências vividas por

LEF.

Bem diz LEF no preâmbulo: “só um

cego ou um surdo não teria muito que contar

em situação semelhante à minha”.

Vejamos os capítulos:

A China pós -imperial face ao colo-

nialismo (1925 -31); a França exangue

(1932 -33); Necessidades (1933 -34); Reino

Unido – ocaso de um Império (1934 -35);

África do Sul: a fénix Bóer renasce (1935-

-37); Sociedade das Nações – corrida para

o abismo (1937 -38); Espanha – triunfo dos

nacionalistas (1939); no Japão da 2.ª guerra

mundial (1940 -45); Lisboa – Direcção -Geral

dos Negócios Económicos e Consulares;

primórdios do multilateralismo (1946 -50);

Washington de Truman a Kennedy; anti-

colonialismo onusiano e a política de avestruz

(1950 -61).

LEF deixa patente a alta qualidade da

sua prestação profissional como diplomata,

bem como a sua dedicação à causa

pública, ao mesmo tempo que mostra a

sua forte personalidade e o seu espírito

independente, fortalecido por uma visão

universal e humanista, refinada certamente

pela diversidade das suas experiências nas

cinco partidas do mundo.

Há dois postos que o marcam de uma

forma mais profunda, o que se sente pela

forma emotiva e pessoal como a eles se

refere, pouco habitual para a personalidade

fria e analítica de diplomata como era a de

LEF. Trata -se da China e do Japão nos quais

vive situações de natureza muito diferente

que lhe suscitam sentimentos também muito

diferentes.

Publicou aliás, em 1948, um inte-

ressante livro intitulado China de Ontem, China

de Sempre, constituído por “esbocetos da vida

chinesa” escritos durante a sua estada em

Pequim.

Estes dois postos terão contribuído,

mais do que quaisquer outros, para o

amadurecimento da sua atitude e

personalidade. Talvez por se tratar de

sociedades e culturas tão radicalmente

diferentes da nossa, cujo contacto nos

induz a um esforço reflexivo sobre nós

próprios e sobre as nossas idiossincrasias,

talvez por ter em ambos vivido situações

extremas de enorme intensidade emocional

correspondentes a períodos críticos da

história da China e do Japão, ou talvez

pela escala do sofrimento humano cuja

proximidade sentiu, esses 2 postos terão

gerado em LEF uma impressão e sentimentos

tão profundos.

As experiências nos restantes postos, à

excepção de Washington, embora tenham

sido sempre em lugares pairando nos cumes

da política mundial, foram passagens mais

ou menos fugazes – nunca ultrapassaram os

2 anos – que serviram para amadurecer o seu

espírito, diversificando e aprofundando a sua

experiência.

O seu relato e as suas observações

sobre tais postos não são contudo menos

interessantes.

Finalmente Washington, onde perma-

neceu 11 anos, foi o posto que culminando

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279a sua carreira, num período de grande

intensidade política para Portugal – a pressão

da ONU em relação à política colonial

portuguesa, o assalto ao paquete Santa Maria,

os ataques dos movimentos de libertação em

Angola – faz sobressair o choque, sempre

latente desde os tempos iniciais da sua

carreira, entre a sua personalidade e a visão

e espírito aberto que tinha do mundo e

a sociedade fechada, arcaica e dogmática

prevalecente no Portugal de então.

Este embate, superlativado no período

final da carreira de LEF, vem de certo modo

fazer-nos compreender o desencanto e a acidez

com que vai comentando as dificuldades com

que se foi sempre deparando, resultantes de

uma administração que não consegue dar

coerência aos seus esforços, nem superar as

suas contradições.

Assim, logo após ter concorrido ao

Ministério, embora tenha ficado em 1.º

lugar no concurso de admissão, a nomeação

para a primeira vaga é dada a um afilhado

de casamento do Presidente Bernardino

Machado! Dentro da legalidade, sublinha, por

se tratar de um antigo revolucionário, agente

consular na Galiza no tempo das incursões

monárquicas.

As descrições que faz do Ministério são

cáusticas: um alguidar de lacraus, o ar que se

respirava no domínio intelectual asfixiava, o

trabalho… uma rotina monótona.

Mas não havia razão para preocupação,

no dizer de um velho director -geral dirigindo-

-se aos colegas mais jovens, que cita “isto era

assim ainda os senhores não eram nascidos,

assim continuará e todos vamos vivendo”.

Na Embaixada em Pequim, apesar da

existência de Macau, que justificava, nas

palavras de LEF a própria existência da

embaixada, as instruções de Lisboa primavam

pela carência, o que não importava, acres-

centa.

Refere com ironia que, aquando da

sua partida para Pequim se despediu do seu

Ministro, um homem culto e inteligente,

acrescenta, este lhe fez um relambório

sobre a epopeia dos descobrimentos dos

portugueses sem lhe dar uma palavra de

directivas ou instruções. Depois do seu

regresso, após durante 5 anos ter vivido

situações inimagináveis de tumultos civis

e militares e um fervilhar das ambições

das grandes potências, LEF foi apresentar-

-se ao novo Ministro. Este, já do novo

regime, na época cognominado de Revolução

ou Ditadura Nacional, faz -lhe também um

relambório glorificando a nossa epopeia dos

descobrimentos e missão civilizadora. Nem

um comentário ou informação lhe pediu

sobre a sua estada na China ou qualquer

outro assunto.

Em Paris, a chancelaria era escura e suja,

definível no vocábulo – inverosímil. A posição

portuguesa consistia no alheamento total ao

que se passava na Europa. E quanto a África só

na hora zero é que se reagia. “Santa Bárbara

só é lembrada, quando troveja, ao menos no

Palácio das Necessidades” – observa LEF.

Em Londres, LEF lembra a diligência

feita por instruções de Lisboa junto do

Foreign Office no sentido de apoiar a invasão

da Etiópia pelo exército italiano. E, no final

da sua curta estadia em Londres desabafa:

“desencantado como estava com os meus

dias em Londres, ingratos e frustrantes,

recebi agradavelmente a notícia da minha

próxima nomeação para a União Sul

Africana na qualidade de Encarregado de

Negócios”.

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280 Enquanto na África do Sul conta que se

desloca a Lourenço Marques para consultas

com as autoridades da colónia, mas estas

pouco ou nada se mostraram interessadas.

Observa LEF: “à maneira portuguesa,

prescindíamos da preparação, confiantes

nos nossos dons de improvisação, de que

usamos e abusamos”.

Em Genebra, LEF, nos meandros da

diplomacia multilateral, refere alguns

episódios reflectindo a posição do Estado

Novo para o qual a Organização Internacional

do Trabalho era um antro socialista

comunizante que transformava o equilíbrio

social existente. Uma das questões ali

debatidas dizia respeito às responsabilidades

imputadas a Portugal no comércio de ópio

em Macau. Foi um posto em que mais uma

vez primou a falta de instruções.

Depois de uma breve estadia em Espanha,

em San Sebastián onde funcionava a capital,

LEF é colocado em Tóquio como Ministro à

frente da Legação de Portugal. Antes de partir

vai despedir -se do Ministro das Colónias uma

vez que a razão de ser da Legação em Tóquio

derivava da presença portuguesa em Macau

e Timor. O titular daquela pasta alude ao

desmembramento da China e ao dinamismo

da acção japonesa e recomenda a LEF, pasme-

-se, que procure obter o apoio nipónico para

a resolução do velho litígio Portugal -China –

a questão de soberania sobre a Ilha da Lapa!

No regresso a Lisboa, LEF, diz que

na Secretaria de Estado deparou com um

deserto e desabafa: “senti -me isolado em

país estranho”. O espírito de solidariedade

e de camaradagem primavam pela ausência.

Em relação à decisão do Governo português

de recusar o Plano Marshall e dispensar

qualquer ajuda financeira, empréstimos

ou dádivas, comenta: “pobres, atrasados e

arrogantes”.

As observações e críticas atrás referidas,

escolhidas entre tantas outras, reflectem o

estado de desânimo que ganhou o espírito

de LEF e têm tanto mais força quanto a sua

estatura moral, profissional e intelectual é

bem reconhecida.

Em Washington e perante a política

colonial do Governo, virada para o passado,

irrealista e sem futuro, LEF esforça -se por

introduzir alguns elementos de dinamismo

que fizessem quebrar o dogmatismo daquela

política.

Fala com o Subsecretário do Ultramar,

com o seu Ministro, na altura Franco

Nogueira, com o próprio Salazar.

Sugere um referendo em Goa, relatórios

apresentados à Assembleia Nacional e

fornecidos a título de informação à ONU,

a criação nas províncias ultramarinas de

escolas, liceus e universidades, a participação

dos Governadores de Angola e Moçambique

no Conselho de Ministros.

Sugestões sempre rejeitadas, sem debate

e sem discussão.

Fraca a influência dos diplomatas, se

poderá concluir, sobretudo quando se trata de

aspectos da política do Governo consideradas

por este como fundamentais.

LEF sente por outro lado a falta de

informação que deixa por vezes a embaixada

em situações de embaraço, a retórica vazia das

nossas posições oficiais, os actos e decisões

insensatas.

Desiludido, frustrado, desanimado, LEF

pede o regresso a Lisboa para se reformar.

Ainda lhe é oferecido o prestigioso posto

de Londres e o cargo de Secretário-Geral,

chefe da carreira. Recusa em ambos os casos.

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281Permitam -me uma reflexão final. A

força da diplomacia é ditada muitas vezes

por factores intangíveis que não podem ser

quantificados e que se ligam à qualidade dos

diplomatas.

Tais factores prendem -se com a expe-

riência acumulada através dos anos e que vai

sendo absorvida por uma grande diversidade

de meios pelas novas gerações.

É claro que é essencial que a diplomacia

demonstre capacidade de se modernizar,

adaptando -se aos novos condicionalismos

e desafios da sociedade e que neste sentido

vá sempre renovando e actualizando os

seus métodos de actuação e a sua própria

mentalidade.

Mas tratando -se de uma profissão em

que as relações humanas são tão importantes

e que põe em confronto os seus agentes com

uma tão grande diversidade de culturas,

mentalidades e interesses, haverá sempre um

savoir faire que só se consegue afinar através

da experiência.

Portugal, com uma história de mais de

8 séculos e com uma riqueza de contactos de

longuíssima duração e enorme diversidade,

tem uma diplomacia que se vem exercitando

há muitas gerações em toda a espécie de

tratações e com toda a espécie de povos e

países.

É claro também, saliente -se, que a

diplomacia vale o que valer o país que

representa com o seu substrato social, peso

histórico, nível cultural, desenvolvimento

económico, com a força das suas instituições,

com o seu nível científico e tecnológico,

com a sua coesão.

As memórias dos nossos diplomatas

sejam elas análises sócio -políticas ou meras

reminiscências pessoais do seu quotidiano

são um excelente meio de transmissão

da experiência passada às novas gerações,

que assim vão gradualmente recebendo e

incorporando na sua capacidade genética

um acervo de conhecimentos e faculdades

essenciais para o exercício da sua profissão.

Neste contexto, as memórias de LEF

constituem um importante contributo e

devemos -lhe a nossa gratidão por ter tido a

generosidade de as ter deixado.

Concluo, com um episódio que me foi

contado pelo nosso saudoso colega Eduardo

Condé, já falecido. Ele estava colocado em

Washington no período em que o embaixador

era LEF. Outro colega mais novo, António

Cabrita Matias, também já falecido, acabara

de chegar ao posto e Condé apressou -se a

acompanhá -lo ao gabinete do Embaixador

para os cumprimentos da praxe.

LEF era um homem alto com uma

figura imponente e austera. Levantou -se

cortêsmente para cumprimentar o novo

secretário de embaixada, que com o

nervosismo da sua inexperiência e timidez,

pegou na mão do velho embaixador e

beijou -a respeitosamente.

Muitas vezes pensei neste episódio, nos

4 anos e meio que estive em Washington,

onde, como LEF, terminei, 45 anos depois, a

minha carreira no estrangeiro.NE

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282

LETRA E MÚSICAde Paulo Castilho

Editora: Oceanos

NADA NEM NINGUÉM pode ser tão ou mais

refrescante do que uma memória; estendida,

bem ou de males passados ela é forçosamente

a origem de um romance, já que a matéria

sintética de que se servem os poemas não se

estende o suficiente até aos finos rebordos

de uma pizza média, familiar.

As décadas, eras prodigiosas que se

contêm em ciclos mais ou menos menstruais

arrumam -se em estantes, com os discos, os

Compositora e Intérprete

Rui Reininho*

albuns de fotografias e os outrora livros de

razão: reconhecemos aqui e ali uma brecha

da cultura de cada um mas, sobretudo a

civilização.

Os diários, os escritos, é mais em

gavetas, baús e sotãos; as músicas brotam

das caves como os musgos e líquenes, os

cogumelos e outras alucinações.

Londres, Sintra, as avenidas (ainda)

novas, um Maio soixanteouitarde, “we all

come to look for America...”.

Não houve coincidências – os que

primeiro pousaram aos pés da Loura Albion

para ouvir a Lola dos Kinks, sabiam de

antemão que esta fora a britania dos mods,

dos teddy boys, até dos cockneys.

Sob um céu vitoriano de Camdem em

que os taxistas não param de falar, para citar

alguém de origem irlandesa e coração de leão.

Aos primeiros acordes de uma guitarra

eléctrica, antes e durante o choro azulado

de um blue num pub dos arredores, quantas

freaks de boas famílias não sonharam per-

tencer à psicadélica minoria que haveria

de substituir o lema ‘Honny Soit qui Mal

Y Pense’ pelo leitmotiv “sex’n’drugs and

rock’n’roll”?

A linha IMaginot de Cascais e do Estoril

de príncipes exilados, a Granja Fozeira com

* Compositor e intérprete.

NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 282-284

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283os seus aristocratas arruinados, a Figueira

mai -los do putsch Coimbrão summer 69,

ei -los a bordo do trem expresso Marrakech,

Stones, yardbirds e outros pássaros exóticos

do terreiro.

O Soho das pegas e boxeurs como o

Bairro alto dos Faias e Severas dos papás,

num voo kamikaze suicidário pós-guerra

que não deixaria pedra sobre pedra da velha

Miss Europa, entretanto viúva.

E a Mónica. M de Matou, dial M for

Murder.

A aventura vivida essencialmente no

feminino, como só Almodovar faria renascer

mais tarde, com uns homens acessórios,

fracos, inúteis e imprestáveis para lá

das suas erecções e companheirismos,

ver cumplicidades: a história começa, o

quadro compõe -se e demoramos páginas

emocionantes de câmara à mão sem

nos apercebermos do sexo da primeira

pessoa; ela mantém -se indefinida, como os

cabeleireiros e as drugstores ambíguas da

época.

Confusão de sentimentos, diria

Somerset Maugham mas também Oscar

de realização para Wilde (e Waugh, no seu

BridesHead, visitado pelos Vingadores de

guarda -chuva, chapéu de coco e as minis

op -arte de Miss Peel).

A swinging London, por um lado Pop

Beatle, condecorada pela rainha até cuspida

pelos punks de Chelsea, a seita de Malcom

Mclaren: o Blow -up de Antonioni com a

guitarra bluesy a desfazer o amplificador no

pesadelo de overdose de Hendrix, o hino

do ultramar, o nosso Vietnam em Angola ou

na Guiné.

Perdemo -nos da Mónica por um par

de anos e isso custou -nos uma nova década.

Apareceu -nos uma lisérgica nuvem ácida

de novos ventos, ainda mais ambígua e

decadente com um Bowie aos comandos

de uma nave futurista, decadente, camp; a

moça portuga que toca por aí então chama-

-se Ana Silva e as...Raincoats.

Um adido cultural da embaixada por-

tuguesa na altura submete -nos uma banda

com um maxi single de uns tais Police e um

tema (Rock Sand? Roxanne?) e a Mónica

Mendes é uma giraça que tem um programa

musical de autor na Rádio Comercial; o Rui

Reininho é uma personagem de um conto

(curto) do Pedro Paixão que se passa algures

entre o Aniki BoBo e a Boavista do Porto.

Sim, esse que odeia lavar pratos mais

do que um dia, troca pences nas lavandarias

às senhoras bifas (Hi, Love...) e sonha

conhecer o Brian Eno e tocar no Marquee ou

no Astoria enquanto entorna pints mornas

no 100hundred Club.

Todos fomos mais ou menos Mónicas,

sonhando com o mais glamouroso palco da

europa/mundo que se poderia abrir para as

américas, lá Jefferson Airplane e a sua Elkie

Brooks, se calhar a Janis Joplin, mesmo a

Judy Blue Eyes ou a Joni Mitchell.

A diplomacia é, segundo os grandes

mestres, Paulo Rocha realizador no Japão e

Ian Flemming em todo o lado, um nicho de

espionagem privilegiado de comportamentos

e criações.

Quando não se confundem nas volutas

da poesia, no ópio da política ou nos

contornos das azeitonas dos gins mais ou

menos secos, temos al fresco argutos nacos

NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 282-284

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284 de prosa, pinceladas subtis que perduram

pendentes em quadros vivos, nas casas, nas

estradas e nas cidades que visita.

O conde Drácula nunca entraria no

sistema circulatório de uma casa (na Matilde)

sem ser convidado: a Isabel é o Filipe mais

o Pat menos o Chaz mais a mãe menos o

arquitecto.

O nosso ponto de vista, é o da Joana

que já não sonha com o jesus christ superstar

nem o Oh calcuta nem a ratoeira da Agatha

Christie e o general hospital, os tin soldiers

and nixons coming, a L.A. woman que diz:

“conheci a Mónica muito bem, sou co -autor

das canções”.

Nem o de personagens que vivem na

real idade, como tentou a popstar da Rebelo

Pinto ao deitar -se com o Robbie Williams

em High Street Kensington.

Mas este livro dava um filme (outra

Letra e Música, com Hugh Grant e a Drew

dos Barrimore).

Como um bom velho vinho e uma

mota vintage e ao som do “Born to be Wild

do nosso SteppenWolf:

Gostámos mais do livro...NE

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NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 282-284

285

Bessa -Luís, este Encontro em Capri ou o diário italiano

de Gorki, de Marcello Duarte Mathias, coloca

uma série de problemas muito interessantes.

O primeiro é o da remissão para o

contexto histórico em que as coisas acon-

tecem. O radicalismo político e a proximidade

ideológica de Máximo Gorki com os social-

-democratas russos (os futuros bolcheviques)

tinham -lhe valido a atenção da Okhrana, a

polícia secreta russa, e também, por mais de

uma vez, a ida para a prisão.

Como escritor, Gorki já era célebre

no seu país a partir de finais do século

XIX. Em 1902, em represália pelas suas

simpatias revolucionárias, o czar Nicolau

II tinha anulado a eleição de Gorki para a

Academia Imperial, o que levara à demissão

de escritores como Tchecov e Korolenko e do

matemático Markov.

Depois da tentativa revolucionária gorada

de 1905, o escritor, por razões de saúde e

também por razões políticas, instala -se em

Capri no ano seguinte. É aí que vai viver

durante sete anos. E em Capri, onde escreve

algumas das suas obras mais importantes,

Gorki é visitado por duas vezes pelo seu

amigo Vladimir Ulianov, mais conhecido por

Lenine.

A primeira guerra mundial e a revolução

russa ainda estão longe. Mas há já surdos

ENCONTRO EM CAPRI OU O DIÁRIO ITALIANO DE GORKI

de Marcello Duarte MathiasEditora: Oceanos

COM UMA ESCRITA despojada e flexível, precisa

e sugestiva, que sabe distribuir os materiais

segundo uma economia criteriosa de modo

a assegurar o ritmo da narração, é capaz de

grande atenção aos pormenores cenográficos

(paisagens, lugares, referências históricas,

atitudes, gestos...) e, last but not least, dispõe

de uma agilidade de formulação aforística

fora do comum, só comparável à de Agustina

Algures no Mediterrâneo

Vasco Graça Moura*

* Escritor e eurodeputado. Texto de apresentação por ocasião do lançamento do livro, no dia 15 de Novembro de 2008.

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286 pressentimentos no horizonte, quer quanto a

uma quer quanto a outra.

Quanto à guerra, sabemos pelos

trabalhos de historiadores das origens da

guerra de 1914 -1918, como A. J. P. Taylor e

David Fromkin, a que ponto o estado -maior

alemão pensava que a guerra na Europa,

envolvendo a Alemanha, a França, a Áustria,

a Rússia e a Inglaterra seria inevitável mais

tarde ou mais cedo.

Quanto à revolução na Rússia, embora a

tentativa de 1905 tivesse falhado, as nuvens

começavam a adensar -se cada vez mais

sobre o horizonte político de Nicolau II

e da sua corte. Gorki tinha assistido aos

acontecimentos, porventura com alguma

implicação neles: precisamente, durante

o massacre do Domingo Sangrento de

S. Petersburgo, o padre Gapon, um dos

promotores da pacífica movimentação social

que esteve na sua origem, tinha acabado por

se refugiar no apartamento do escritor. Esta

participação é, de resto aludida por Stefan

Zweig no seu relato de um encontro com

Gorki aqui referido.

O período que vai do princípio

do século XX a 1914 foi recentemente

objecto de um compacto estudo de Philipp

Blom, sugestivamente intitulado The Vertigo

Years, Change and Culture in the West, 1900 -1914

(Os anos da vertigem, mudança e cultura

no Ocidente, 1900 -1914). Esses anos da

vertigem são os quinze anos em que se

inscreve premonitoriamente quase tudo o

que veio a acontecer no século XX, das

grandes conquistas do espírito às grandes

catástrofes humanas, das descobertas de

Einstein e dos Curie ao genocídio no Congo

de Leopoldo II, dos vários Modernismos,

da eclosão do Futurismo e do Cubismo

ao culto da máquina e da velocidade, das

rupturas culturais e epistemológicas de Viena

às repercussões europeias da Revolução

Industrial, ao crescimento urbano desmedido,

à criação dos grandes dispositivos para

acolhimento das massas nas metrópoles

urbanas, centros comerciais, cinemas, etc.

Ou, citando o próprio Philipp Blom na

sua introdução, “tudo o que ia tornar -se

importante durante o século XX – da física

quântica à emancipação da mulher, da arte

abstracta à viagem no espaço, do comunismo

e do fascismo à sociedade de consumo,

do massacre industrializado ao poder dos

media – tinha deixado fundas marcas nos

anos anteriores a 1914, pelo que o resto do

século foi pouco mais do que um exercício,

alternadamente maravilhoso e horrível, de

viver e explorar essas novas possibilidades”.

É nessa mesma linha que Marcello

Duarte Mathias nos diz agora quanto às

grandes encruzilhadas ideológicas e

impasses intelectuais e sobretudo à por vezes

complexa fronteira entre, de um lado, ética

e humanidade, e, do outro, pragmatismo,

cinismo, violência e acusações de traição,

cujos ecos e contra -ecos vêm reverberar a

Capri para aí se personificarem, polarizados

em Gorki e Lenine: “No fundo, encontramos

aqui, avant la lettre, o debate dos grandes temas

da intelectualidade europeia dos anos Trinta

e dos anos posteriores à Segunda Guerra

Mundial”.

Das duas personagens principais,

Máximo Gorki e Lenine, ambas pela casa

dos quarenta anos, são -nos dados retratos

muito cuidados, quer no aspecto físico, quer

no aspecto moral e intelectual. O de Gorki,

procurando o desenho de corpo inteiro, o de

Lenine, concentrado na expressão das feições.

NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 285-290

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287“Se o primeiro era corpo, figura, silhueta,

sombra, ossos, o segundo era só rosto.

Dele dimanava a intensidade e a violência

contidas que são o traço principal do seu

carácter”. Mas Lenine, que segundo o diário

de Gorki não tem problemas de identidade,

é ainda apresentado como viajando com

outros adereços e acessórios típicos do

revolucionário profissional (perucas de cor

e formatos diferentes, uma pistola Browning,

nomes falsos e falsas profissões, bengala de

cavalo -marinho com estoque).

De quem é a voz que nos narra os

acontecimentos? De um investigador? de um

ensaísta? de um jornalista? de um ficcionista?

de um simples curioso? Essa voz fala na

primeira pessoa e chega a citar Antero, essa

voz elabora sobre os materiais de que dispõe,

põe -se a conjecturar que o primeiro encontro

entre Lenine e Gorki terá sido anterior a

1905, provavelmente por alturas de 1898,

não sabendo todavia se antes ou depois do

exílio de Lenine na Sibéria. E situa assim o

caso: “Independentemente da verdade no

tocante a este ponto, o certo é que logo

se estabeleceu uma corrente de simpatia

que, mau grado desavenças várias, perdurou

pela vida fora. Nem de outro modo se

compreende as idas de Lenine a Capri por

dois longos períodos de tempo no meio de

afazeres e compromissos de toda a ordem”.

Retenhamos aquele início de frase:

“Independentemente da verdade no tocante a

este ponto”... Essa consideração vai projectar-

-se em muitos outros pontos cuja factuali-

dade é estabelecida “independentemente da

verdade” no tocante a eles.

Da contraposição dos retratos resulta um

Gorki (pseudónimo que, sintomaticamente,

significa “amargo”) ensimesmado em

questões morais e dramas da existência,

enquanto Lenine é um pragmático, dominado

pela sua obsessão ideológica e política, e,

provavelmente por causa disso mesmo,

interessado em compreender a visão que

o escritor lhe podia fornecer da Rússia,

valorando a responsabilidade do escritor e do

artista apenas na medida em que ela contribua

para a consecução dos objectivos políticos

que ele próprio defende com exclusão de

todos os outros. Debate que, ainda hoje, tem

os seus cultores.

Tudo o mais passa para segundo plano,

incluindo os envolvimentos amorosos. E

é de notar que ambos os protagonistas se

situam, nas suas preocupações, à margem

dos grandes movimentos que estão, nesse

preciso momento, a preparar uma revolução

nas artes. Neste aspecto, parecem contentar-

-se com os primórdios do realismo socialista,

de que Gorki é um dos founding fathers, apesar

de, segundo Marcello Mathias, a poetisa Anna

Akhmatova e o pintor Amedeo Modigliani

terem passado por Capri, apesar de na Rússia,

nessa Rússia de que Gorki tanto sente a falta,

estarem a revelar -se nomes de vanguarda

como os dos pintores Malevitch ou Larionov,

dos músicos Sytravinsky ou Scriabine, de

escritores como Maiakovsky ou como Ivan

Bunin, Andrei Bely ou Leonid Andreyev, estes

por sinal marcados pelo desespero e pela

tragédia apocalíptica dos acontecimentos do

Domingo Sangrento.

Mas essas questões de ruptura formal

com a tradição criativa não interessam aos

dois amigos que, de resto, estão longe de se

entender quanto a todos os pontos no tocante

à revolução e à política. Como Marcello

escreve, “a ideologia política não era aquilo

que os aproximava, era precisamente aquilo

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288 que os separava”, embora muito mais

tarde, já na década de trinta, as posições

de Gorki se tenham caracterizado por uma

grave ambiguidade pró -estalinista. Ou, como

escreve Simon Montefiore, “mais tarde, Gorki

tornar -se -ia amigo do ditador, escandaloso

apologista, troféu patético e possivelmente

vítima”.

Na fase de Capri todavia, Gorki vive

outro tipo de escrúpulos. E, como escreve

numa entrada do seu diário, Lenine comentou

ao vê -lo com A Morte de Ivan Ilitch debaixo do

braço: “Os escritores, os artistas só falam da

morte, não sabem falar de outra coisa. São

uns derrotistas. Não é com gente como esse

teu Tolstoi, um piegas bem -intencionado,

que havemos de fazer a revolução, mas com

os milhões de miseráveis que não sabem ler

nem escrever e constituem, apesar de tudo,

a verdadeira substância da nossa pátria. São

eles, acredita, o nosso primeiro e último

recurso”.

Mas não é só da relação com Lenine e da

necessidade de o entender na sua veemência

política obstinada que o livro nos vai

dando conta. “Lenine é um revolucionário;

Gorki um revoltado. Ou, melhor dito,

um inconformado”. Neste aspecto, ganha

também especial sentido a evocação de

Tolstoi e da natureza das experiências vividas

que o separam de Gorki: “(…) o essencial da

discórdia resultava sobretudo das origens de

cada um. Gorki duvidava do inconformismo

social de Tolstoi e do seu empenho em libertar

o povo […]. Via -o como um grande senhor

aristocrata que afectava não o ser, não sendo

no íntimo outra coisa. Para Tolstoi, Gorki era

um autodidacta em tudo, até no despeito”.

O processo do diário é provavelmente

o ideal para espelhar a maneira fragmentária

como Gorki vê Lenine, numa espiral

admirativa e crítica, mas por vezes também

perplexa, hesitante e contraditória. Isso

permite a Marcello Mathias incorporar no livro,

também premonitoriamente, uma realidade

que viria a desmultiplicar -se no futuro

histórico: o mesmo Gorki que, nos 50 anos

de Lenine, ficava maravilhado por ver “este

homem simples, amável, afectuoso, rindo

com um sorriso magnífico, transformar-

-se numa figura titânica, cuja importância

é difícil de abarcar”, é quem, poucos dias

depois da Revolução de Outubro, escreve

que “Lenine e Trotsky não têm nenhuma

ideia da liberdade e dos direitos do Homem.

Já estão corrompidos pelo sujo veneno do

poder”. Gorki tinha desde essa altura relações

instáveis com os bolcheviques e chegara a

ser ameaçado de morte por uma carta do

próprio Lenine em 1919. E esse aspecto

fragilizador e fragmentário da maneira como

Gorki constrói a sua imagem de Lenine

não escapou a Trotsky que achava muito

fraco o que ele tinha escrito sobre Vladimir

Ulianov, com uma textura de descrição que

parecia feita dos elementos mais diversos e

a presença constante do moralista pequeno-

-burguês. Este afrontamento, ora implícito,

ora explícito, entre o criador artístico e

o activista e ideólogo político é uma das

alavancas permanentes do encontro em

Capri.

Um outro problema de crucial impor-

tância para este livro é o da relação entre

o verdadeiro e o falso e a de ambos com o

simplesmente conjectural.

Grande parte das situações, dos

documentos invocados e até das personagens

mais ou menos secundárias que são referidas

no livro não têm qualquer correspondência

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289histórica. Nunca existiram. São pura invenção,

como diz o autor.

Nunca existiu o diário de Gorki de

que tanta citação é feita e que eu (e, como

eu, qualquer leitor que se disponha a

entrar no jogo) venho tomando como real

para os exemplos e citações que dele vou

extraindo. Salvo poucas excepções, nunca

existiram jornalistas e entrevistas, factos

referidos, personalidades cujos testemunhos

são invocados. Armadilhando esses e outros

aspectos da sua narração com um coeficiente

de verosimilhança do mais elevado grau,

é exactamente através do vero -símil, do

semelhante à verdade, que Marcello Mathias

procura chegar a essa verdade através da

ficção, de uma ficção a cujo serviço põe o seu

conhecimento muito vasto das problemáticas

da autobiografia e da diarística (um dos

temas que lhe são caros), de par com a sua

leitura da História e a sua análise das paixões

humanas, passando, ou melhor, fazendo a

sua personagem Gorki passar “da teoria à

prática” e pondo -a a dedicar -se à escrita desse

diário.

Num longo ensaio intitulado “Auto-

biografias e diários”, publicado há alguns

anos na revista Colóquio/Letras, Marcello

enumera algumas das notas que caracterizam

este tipo de atitude e de escrita, entre as quais

se incluem “o acaso, as horas de convívio, o

lusco -fusco da memória e as encruzilhadas

do tempo; a reflexão sobre os caminhos

da criação, as mil expressões do nosso

imaginário, mas também o inexprimível,

o sagrado, certa maneira de estarmos no

mundo, de o interpretar e refazer, o que afinal

nos liga a ele e dele nos separa; a projecção

da nossa individualidade, o confronto com

os anos de infância e adolescência, o fluir

das coisas que fomos e deixámos de ser, a

vertigem do passado e a saudade de todos os

outroras”.

Ora também em Capri, o diarismo

fragmentado de Gorki corresponde a estas

notas, espelhando uma consciência do

exílio, incluindo o exílio da língua materna,

as recordações da infância distante, as

solidariedades políticas e outras, as meditações

e as incertezas da condição presente do

escritor.

O mais curioso é que com a transcrição

do diário coexiste, em contraponto, um

comentário dubitativo e conjectural. Por

exemplo, ao tratar da relação de Gorki com

as mulheres e com as sucessivas mulheres

da sua vida, o narrador interroga -se sobre

o tipo de relação que Gorki terá “mantido

com as mulheres que conheceu. De ternura?

De conflito? De exasperação? De culpa?

De encantamento?” E remata a sequência

perguntando -se se Gorki terá encontrado

nelas “uma cumplicidade em termos de

equilíbrio afectivo, uma felicidade dos

sentidos, uma grata dependência partilhada”

para concluir: “Creio bem que sim”.

Há aqui portanto uma dupla pista de

ficcionalidade: a de um diário que nunca

existiu e onde portanto o suposto autor

nunca escreveu nada do que nos é dito no

livro que ele escreveu e a do próprio narrador

que conjectura outras coisas em paralelo com

a suposição de existência e conhecimento do

conteúdo desse diário.

E assim, ao lado de personagens

históricas que realmente existiram, Marcello

inventa outras personagens históricas, factos,

peripécias, textos, testemunhos, encontros,

viagens, situações que nunca se verificaram...,

incluindo a ida a Capri de Ana Akhmatova

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290 com Modigliani, incluindo o estudo que

Gorki estaria a redigir em 1909, “a conselho

e por insistência de Lenine”, sobre Mazzini e

Garibaldi, uma vez que no seu exílio de Capri

as figuras de Garibaldi e Mazzini também

acabam por se transformar em fantasmas

políticos dessa estada mediterrânica.

Este é mesmo o pretexto para uma

espécie de mise en abîme em que Lenine teria

incitado Gorki a desenvolver todo o livro

sobre Mazzini e Garibaldi “em torno de um

único e hipotético encontro que reunisse

todos os outros”, uma vez que, para ele, “a

verdade factual era meramente adjectivante

quando comparada com a dimensão filosófica

do diálogo político, o confronto de vontades,

os temperamentos e as prioridades”, sendo

certo que essa maneira de falsear a História

por motivos de ordem ideológica repugnava

a Gorki, o qual consignava no diário saber

que “Lenine é uma consciência mutilada pela

fé ideológica”.

Ora a “verdade factual” deste encontro

em Capri torna -se, ela também, meramente

adjectivante e instrumental para a construção

e o diálogo destas personagens que assim

encontraram o seu autor e encenador.

De resto, foi a leitura das memórias

inexistentes de uma não menos inexistente

Angelina que, diz o narrador, “me levou

ao diário italiano de Gorki e me incitou

mais tarde e a escrivinhar estas dezenas de

páginas”.

Temos portanto um texto suposto,

as memórias de Angelina, de que somos

informados já vai o livro em meio, as

quais induzem à leitura de outro texto

suposto, o diário de Gorki, por sua vez

estudado primeiramente por um especialista

ele também inexistente, o belga Maurice

Martin -Merrère, professor de língua e

literatura russas na Universidade de Bruxelas,

quanto a cuja intervenção se chega a pôr a

hipótese de ter implicado supressões ou a

censura de partes do texto, o que, aliás, o

próprio sempre terá negado. Deste modo

se desdobra um jogo de espelhos fictícios

que se vão incessantemente reenviando

essas imagens virtuais e apresentando um

conjunto interessantíssimo de questões para

a teoria da literatura e do romance realista,

até pela ambiguidade da forma romance,

aqui contaminada, tanto pelo ensaio e pela

reflexão, como por uma intromissão na

História a partir de uma série de fontes

absolutamente apócrifas com o objectivo de

construir uma realidade ou de se objectivar

a partir dela.

Na penúltima página, fala -se neste

“pequeno ensaio sobre o diário italiano de

Gorki”; na última, lemos: “ (...) qualquer

romance é uma tarefa comum que transcende

o autor. No fundo, pede -se agora ao leitor que

o reescreva, já sem ninguém a seu lado”.

E é esse o convite aliciante para a

solidão de uma leitura em que uma outra

solidão humana se nos apresenta, nas suas

estranhezas e nas suas amarguras, algures no

Mediterrâneo, num dos tais momentos que

prenunciaram e preludiaram muito do que

no século XX veio a acontecer.NE

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a resposta, ou melhor: as respostas, directas

ou ‘indirectas’, a estas duas questões, são

inteligentes, estimulantes e deviam mesmo

constituir uma espécie de ponto de partida

obrigatório para quem pretende reforçar e

aprofundar, com realismo, as relações entre

os dois países.

O volume reúne 49 intervenções,

artigos, mensagens, entrevistas, que

constituíram «posições públicas assumidas»

durante o período, agora chegado ao fim,

em que Francisco Seixas da Costa (FSC) foi

embaixador de Portugal em Brasília. E o

título, claro, é tirado da famosa cantiga de

Chico Buarque, escrita logo após o nosso 25

de Abril, com Portugal em plena euforia da

liberdade conquistada e o Brasil ainda em

ditadura. De «tanto mar» a nos «separar»

falava então o poeta/ compositor/ cantor.

FSC, logo em Outubro de 2005, na Folha de

São Paulo, no que constitui o primeiro artigo

coligido, após aquela excelente introdução,

que dá uma visão englobante, sistematizada,

das ideias e perspectivas do autor, FSC, dizia,

comenta: «Desde que cheguei ao Brasil, há

uma coisa que aprendi: Chico Buarque não

tem razão. Hoje já não há tanto mar a nos

separar».

TANTO MAR? PORTUGAL, O BRASIL E A EUROPA

de Francisco Seixas da CostaEditora: Thesaurus Editora

«AO LONGO DE quase quatro anos no

Brasil coloquei sempre duas questões a

mim mesmo: o que é hoje o Brasil para

Portugal? E Portugal para o Brasil? Não

sei se obtive ou obterei alguma vez a

verdadeira resposta, mas ouso arriscar a

minha», escreve Francisco Seixas da Costa

na introdução ao seu novo livro Tanto Mar?. E

Portugal/Brasil: compreender e agir

José Carlos de Vasconcelos*

* Jornalista e escritor.

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NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 291-293

292 O livro divide -se em três partes. A

primeira, que trata especificamente de

«Portugal e o Brasil», está por sua vez

dividida em cinco capítulos: Política,

Comunidade, Cultura, Economia, História. A

segunda, a mais curta, chama -se «Portugal,

o Brasil e a Europa» (que é o subtítulo,

descritivo, do próprio volume). A terceira,

«Diálogos», colige 11 entrevistas a órgãos de

comunicação social portugueses e brasileiros,

ou a parte delas relativa às matérias aqui

em pauta, sendo de destacar a concedida ao

programa «Roda Viva», em rede nacional da

TV Cultura.

Como se vê ou infere, dentro de uma

unidade temática fundamental, há uma

diversidade grande de assuntos; e também da

forma de os abordar. Porque o livro é, além

do mais, de certo modo, uma consequência, um

reflexo, um resumo e uma espécie de balanço final

da acção de Seixas da Costa na sua «missão

brasileira».

Assim, nestas páginas têm presença

marcante questões que vão das sobretudo

atinentes à comunidade portuguesa e aos

luso -descendentes, às económicas – com

destaque para as importantíssimas relações

entre os dois países nesse domínio – e às

culturais, em particular as da língua. E estas

são absolutamente essenciais, até porque na

base do que especifica e mais profundamente

nos liga, há cinco séculos e para sempre –

do que FSC tem plena consciência, sabendo

muito bem, ao contrário de outros, que a

língua e o ‘cultural’ são decisivos mesmo para

o económico.

Quanto à relativa diversidade de forma

ela resulta nomeadamente dos vários destinos

dos textos e fins que visaram atingir. Não

podem deixar de ser diferentes, como

são, não só no conteúdo como na forma,

mensagens no Dia de Portugal ou no Dia

da Comunidade Luso -Brasileira, intervenções

para empresários, investidores, intelectuais

ou mesmo no Senado Federal, artigos para

múltiplos órgãos de comunicação social,

incluindo alguns dos mais importantes do

Brasil, como a referida Folha de São Paulo, O

Globo, etc.

Quanto a estes artigos, sublinhe -se que as

mais das vezes eles representam o exercício a

elevado nível, e por meios (em duplo sentido)

só acessíveis a alguém com a qualidade e

o prestígio de Seixas da Costa, da acção de

embaixador de Portugal. Designadamente,

mas não só, na pronta resposta a posições,

afirmações ou insinuações injustas e lesivas

da dignidade, do prestígio e dos legítimos

interesses do nosso país. Creio, aliás, que essa

deve ser uma das ‘tarefas’ dos representantes

portugueses no estrangeiro e também neste

aspecto FSC se distingue.

Desde há muito que o redactor desta

nota cursiva tem uma relação intensa com

o Brasil, defende o aprofundamento das

relações entre os dois países a que não

por acaso durante muito tempo se chamou

«irmãos»: aprofundamento em todos os

domínios, a nível bilateral e no quadro

de uma Comunidade de Países e Povos

de Língua Portuguesa, como decorrência

lógica e imposição da História, devendo

constituir em todas as circunstâncias uma

primeiríssima prioridade da nossa política

externa. E, desde o 25 de Abril de 1974

seguindo de muito perto o que nesse sentido

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293se faz ou não faz, julga poder afirmar que

nenhum embaixador em Brasília fez mais e

melhor do que Seixas da Costa.

Este Tanto Mar?, além de ser um expressivo

testemunho disso mesmo, constitui, como

comecei por dizer ou sugerir, um assinalável

contributo para o bom conhecimento e

a adequada avaliação de uma situação e

dos problemas que comporta, em ordem

a discuti -los e tentar resolvê -los, por parte

de um diplomata de invulgar competência

e dedicação, que ao mesmo tempo é um

homem de cultura e de ideias.

«O Brasil é muito mais do que o que

Portugal por aqui deixou (….) Quem em

Portugal não entender isto, não vai conseguir

entender nunca o Brasil. O que não significa

que não nos reste muito ainda em comum,

a começar pela tolerância que permite esta

sã convivência de culturas e pessoas – essa

sim uma das duas valiosas heranças que por

aqui deixámos. A outra é a língua (…) que

liga ambos os países a outros continentes e

que se procura agora evitar que se afaste na

sua forma escrita, para melhor nos servir na

nossa afirmação individual e colectiva pelo

mundo», sublinha, por exemplo, Seixas da

Costa.NE

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mundo em que vivemos. Tudo coisas que têm

o seu preço, particularmente em Portugal.

Acusam-na de excessiva, demasiado

apaixonada, fogosa e pouco diplomática –

ou seja, acusam-se de não ser hipócrita ou

cúmplice com os jogos de conveniências,

mesuras, disfarces, os pequenos cálculos

medíocres da diplomacia e, nomeadamente,

da diplomacia leve leve e planadora, de caixeiro

viajante – como ela diz, e que é, infelizmente,

a nossa.

Ao contrário de mim, porém, a paixão

da Ana pela acção política tem-se revelado

muito mais consequente. E este livro é a prova

provada disso. Confesso que pessoalmente não

resisti ao confronto com os constrangimentos

da actividade política em que estive envolvido

efemeramente como deputado à Assembleia

da República. Talvez por não ter jeito para

isso, porque as regras e costumes da política

‘real’ eram adversos à minha maneira de ser

e porque me senti estrangeiro e inútil nesse

espaço de que continuo a ser observador,

espectador comprometido, mas não actor.

Mas a Ana continuou, continua a bater-

-se e viaja até aos quatro cantos do mundo

para demonstrar que vale a pena, depois de

ter sido ela quem protagonizou em Portugal

a causa de Timor. Ela esteve em quase toda a

parte onde a dor humana e os conflitos mais

TODO -O TERRENO. 4 ANOS DE REFLEXÕES

de Ana GomesEditora: Rui Costa Pinto Edições

A MINHA JÁ longa amizade e cumplicidade

com a Ana Gomes tem sido acompanhada

por uma admiração crescente pelo que ela é

e pelo que ela faz.

A admiração conforta a amizade – a

velha irmandade que nos une.

Uma irmandade de ideais, de princípios,

de inconformismo, de insubmissão, de

recusa do cinismo, de fidelidade a causas e

princípios que outros diriam quixotescos no

Vicente Jorge Silva*

* Jornalista e cineasta. Texto lido no lançamento do livro.

NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 294-295

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295tétricos parecem insanáveis: dos Balcãs ao

Darfur, passando pelo Iraque, pelo Afeganistão,

pela Etiópia, pela Palestina… Para ver, para

ouvir, para discutir, para tentar perceber o

que se passa, para tentar contribuir para a

mudança e combater a fatalidade. Não foi

por acaso, percebe -se assim, que tenha sido

eleita no Parliament Magazine como a deputada

activista de 2008.

Acontece que ela tem razão. Yes, we can,

como diria Barack Obama. Aliás, a vitória de

Obama – que a Ana e eu desejámos e pre-

vimos, apesar do cepticismo de tantos amigos

comuns – dá -nos hoje um novo motivo para

acreditar que o mundo pode ser mudado

para melhor apesar de todas as decepções e

desilusões que apareçam no horizonte.

António Guterres diz no prefácio deste

livro que a Ana é uma força da natureza. Eu

diria que ela é uma força da natureza porque

é, ao mesmo tempo, e sobretudo, uma força

de carácter.

Todo o Terreno – um título que é todo um

programa e que tão bem resume a adrenalina

e a energia únicas da Ana – recolhe textos

publicados ao longo de quatro anos e uma das

coisas que nele mais impressiona é a coerência

da reflexão, a insistência na busca da verdade,

a recusa das mentiras e mistificações, o

optimismo da vontade. Lê -los em perspectiva

dá -nos um pensamento em acção e uma

acção que não desiste de procurar saídas para

os imbróglios e tragédias do mundo.

Leiam -se, por exemplo, os seus textos

sobre a questão do Irão e da proliferação

nuclear e constate -se como, ao contrário

das acusações que lhe fazem, ela revela um

pragmatismo no melhor sentido, a procura de

saídas coerentes e consistentes para um dos

problemas mais inquietantes da actualidade.

Além disso, ela teve razão sobre o Iraque

e a denúncia do embuste catastrófico a que

conduziu a Administração Bush, envolvendo

algumas cumplicidades europeias que hoje

se procuram disfarçar e a que o Governo de

Durão Barroso esteve associado na cimeira

das Lajes. Ela tem razão ao denunciar essa

outra vergonha que é Guantánamo e ao exigir

que se faça luz sobre as cumplicidades e

encobrimentos que envolveram os chamados

voos da CIA em território português.

Não estou de acordo com ela sobre

tudo, e ainda bem. Mantenho -me céptico

em relação ao Tratado de Lisboa e sobre o

destino político da Europa em que ela

continua a acreditar contra ventos e marés,

apesar de sermos ambos apaixonadamente

europeus. E a forma condescendente como

se prepara a renovação do mandato de

Durão Barroso, lamento dizê -lo, só me

parece apontar para a permanência dessa

Europa minimalista e inconsequente

em que vivemos. Tenho também muitas

dúvidas sobre a independência do Kosovo

e, já agora, sobre a existência do Sistema

Integrado de Segurança Interna dependente

do primeiro -ministro, como ela aceita. E

discordo dela acerca dos polémicos cartoons

dinamarqueses sobre Maomé, o que daria

pano para mangas numa dessas longas

conversas que temos regularmente com

outros amigos.

A Ana pediu -me para ser crítico. Lamento

não o ser tanto como ela porventura desejaria,

porque a verdade é que concordo com ela na

grande maioria das questões, e a crítica e a

discordância, além de serem fundamentais no

debate democrático são também indissociáveis

da verdadeira amizade. Pelo menos como ela

e eu o entendemos.NE

NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 294-295

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Enveredou por um género – não

em exclusividade – que alguns poderão

considerar de menor relevância. Certamente

que nenhum historiador ou investigador do

domínio das relações externas de Portugal

partilha esta opinião.

Estas suas obras constituem uma base

de dados, um referenciário obrigatório para

aqueles que se dedicam à investigação: as

cronologias.

Mas desta vez, Castro Brandão apresenta-

-nos um livro, que se lê como um romance,

com a diferença de que as personagens e os

factos são reais e resultam de uma apurada

investigação de fontes: António Feijó –

diplomata.

O António Feijó que conhecemos –

quase intimamente – no seu livro não podia

ser mais português – as suas neuras, o quase

constante desalento por querer algo sempre

de diferente, sem, por vezes, saber identificar

o desiderato, as suas depressões.

A Secretaria de Estado, com as óbvias

diferenças entre os nossos dias e a sua

época, continua sempre com um fundo

substantivo igual a si próprio – a lentidão

nas decisões, os silêncios como respostas,

por vezes entrelaçadas com gentilezas

pessoais, também tão portuguesas.

ANTÓNIO FEIJÓ – DIPLOMATAde Fernando de Castro Brandão

Editora: Europress, Lda.

SE ALGUM DIPLOMATA, em Portugal, se tem

dedicado com afinco, seriedade e abundância

à história da diplomacia portuguesa tem sido

o Embaixador Fernando Castro Brandão.

Historiador de formação e paixão,

diplomata de profissão, Castro Brandão

tem -nos presenteado com uma enorme

quantidade de livros preciosos para qualquer

investigador das relações externas do nosso

país, desde a época afonsina.

Manuel Duarte de Jesus*

* Embaixador.

Fernando de Castro Brandão

ANTÓNIO FEIJÓ

colecção

DIPLOMATA

NegóciosEstrangeiros . N.º 14 Abril de 2009 pp. 296-297

Ant

ónio

Fei

jó –

dip

lom

ata

297Mas, para além destes factos, deparamo-

-nos com um diplomata de grande valor

na análise das circunstâncias geopolíticas

regionais e mundiais, sempre atento à

definição dos interesses nacionais e capaz

de ultrapassar etapas difíceis.

Depois de uma breve passagem pelo

Brasil, que lhe não deixou saudades, passou

o resto da sua vida no complexo mundo

escandinavo da altura.

Castro Brandão descreve, como se de

uma reportagem se tratasse, o seu contacto

com o aparecimento das grandes e ordeiras

manifestações socialistas, as peripécias

diplomáticas e políticas ligadas à autonomia

da Noruega e o fim do Pacto Uninacional

que a unia à Suécia.

Afigura -se -me do maior interesse

ver como o nosso Cônsul -Geral e depois

Ministro Plenipotenciário zelava por uma

diplomacia económica activa e quão curioso

é verificar como a nossa balança comercial

com a Suécia nos era favorável.

Das passagens que li com maior interesse

dizem respeito à sua experiência única de

ter assistido à entrega do primeiro Prémio

Nobel e das peripécias tão portuguesas com

os qui -pro -quos, atrasos e erros administrativos

que enfermaram as candidaturas de Antero

de Quental.

Feijó, como bem descreve o autor,

passa pelos difíceis períodos do regicídio e

depois, da implantação da República. A sua

prudente habilidade foi notável.

Naquela altura uma, se não a sua

principal preocupação foi o que hoje se

chamaria de “diplomacia pública”. Como

poupar e defender a imagem de Portugal,

posta de rastos pela imprensa internacional,

independentemente do regime.

Feijó viveu os seus últimos dias na

amargura e tristeza pelo desaparecimento

prematuro de sua mulher, Mercedes Dagmar

grande amor de sua vida. Certamente,

período que lhe inspirou alguns dos seus

poemas do “Sol de Inverno”.

Por lá faleceu em 1917, em plena

Grande Guerra, tendo -lhe as autoridades

suecas manifestado o seu apreço através de

invulgares cerimónias fúnebres.

Dez anos mais tarde, a Suécia, que não

havia esquecido aquele diplomata português,

prestou -lhe esta última homenagem: em

1927, o cruzador sueco Fylgria trazia para

Lisboa os seus restos mortais. Portugal,

pelo seu lado, homenageou -o, então, com

uma cerimónia que incluiu o Ministro dos

Negócios Estrangeiros da altura e o próprio

Chefe de Estado.

Este magnífico livro poderia integrar

uma série começada, mas infelizmente,

interrompida – a dos Diplomatas Portugueses –

uma série em boa hora lançada pela AAHD

(Associação dos Amigos do Arquivo

Histórico-Diplomático) e a APHRI (Asso-

ciação Portuguesa de História das Relações

Internacionais) com o apoio do IDI (Instituto

Diplomático).NE

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prenúncio, mas não necessariamente causa,

da Segunda Guerra Mundial, que levou à

formação do Eixo Berlim -Roma, permitiu a

Hitler conquistar, sem um só soldado morto,

a Áustria e a Checoslováquia, contribuiu

para o desprestígio da Sociedade das Nações

e, por fim, levou Estaline a desistir de uma

coligação antifascista, resolvendo chegar a

um acordo com Hitler que desse à União

Soviética mais alguns anos de paz.

Soares de Oliveira opta por acompanhar

o desenrolar cronológico da crise

espanhola, criando espaços de reflexão,

de quando em quando, para explicar as

circunstâncias domésticas que ajudam a

compreender as posturas diplomáticas dos

vários intervenientes. Fá -lo com excepcional

clareza, por exemplo, em relação a França,

detalhando as pressões que levaram Léon

Blum, líder socialista e primeiro -ministro

de um governo de Frente Popular, a

optar inicialmente por apoiar o governo

republicano espanhol – também ele nascido

de uma Frente Popular – e pouco tempo

depois a mudar de caminho, instando por

uma política de não intervenção. Guerra Civil

de Espanha traça a rota desta política de não

intervenção, que serviu, na prática, não para

impedir a intervenção militar em Espanha,

GUERRA CIVIL DE ESPANHA: INTERVENÇÃO E NÃO

INTERVENÇÃO EUROPEIAde Luís Soares de Oliveira

Editora: Prefácio

GUERRA CIVIL DE Espanha, de Luís Soares de

Oliveira, é uma obra rara na historiografia

portuguesa: o estudo de um acontecimento –

ou antes, da evolução de um fenómeno

diplomático – no qual Portugal participou,

mas em que essa participação não se sobrepõe

à de outros países. Por outras palavras,

estamos perante uma análise da reacção

internacional à Guerra Civil de Espanha,

Filipe Ribeiro de Meneses*

* Professor. National University of Ireland, Maynooth.

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299mas, sobretudo, para a regular e negociar,

de forma a não permitir que ela provocasse

uma conflagração generalizada. Tendo a

Grã -Bretanha decidido apadrinhar a não

intervenção, a figura central desta política, e

por isso mesmo da obra de Soares de Oliveira,

é Anthony Eden. O autor é extremamente

crítico de Eden, homem privado, segundo

Soares de Oliveira, da imaginação necessária

para ser um grande líder, o que se viria

a confirmar, supostamente, durante

a crise do Canal do Suez. Eden, porém,

estava numa posição impossível, devido

à vontade popular, manifestada na Grã-

-Bretanha e em França, de apaziguamento

e às consequências políticas deste desejo de

paz,1 o que Winston Churchill reconheceu

num discurso na Câmara dos Comuns em

Dezembro de 1937:

The House as a whole felt sympathy

with Mr. Eden. There was not one

of them, however ambitious or self-

-confident, who would like to bear Mr.

Eden’s load from day to day – a load

which, as anybody could see, had aged

him faster than the passage of the years

[apoiados].

A não intervenção resultaria, em teoria,

na criação de um vácuo em torno do

território espanhol, para que os dois lados

na contenda resolvessem a sua querela sem

interferências estrangeiras. Assim sendo,

negou direitos de beligerância quer aos

rebeldes militares quer ao governo legítimo

de Madrid, a primeira de muitas traições que

este iria sofrer ao longo dos próximos três

anos. O acordo de não intervenção serviu

também para impedir a discussão da questão

espanhola da Sociedade das Nações. Quando

a política de não intervenção foi proposta,

Blum tinha a esperança que a República

espanhola, controlando as grandes cidades e a

capacidade industrial do país, pudesse ganhar

a guerra. Porém, quando ficou demonstrado

que a não intervenção não estava a funcionar,

aprofundou -se o erro, em vez de o corrigir,

criando -se um comité para implementar

o “acordo de cavalheiros” (como se tal

fosse possível na década de Trinta). Este

começou a funcionar em Setembro de 1936,

transformando -se rapidamente numa farsa

custeada pela população espanhola. Por trás

desta farsa estavam a já referida política de

apaziguamento e os reflexos financeiros

da Grande Depressão. As imprensas alemãs

e italiana, totalmente controladas pelos

respectivos governos, aplaudiam abertamente

o esforço de guerra dos seus voluntários, mas

nada de concreto se fez no comité para

impedir tais apoios, assim como o da União

Soviética a favor dos republicanos. A política

de não intervenção atingiu o seu ponto

1 Luís Soares de Oliveira exagera o impacte do bombardeamento de Guernica, e do quadro de Picasso, a este respeito. A noção de que a próxima guerra seria “apocalíptica”, graças ao bombardeamento aéreo das grandes cidades, tinha-se popularizado em toda a Europa antes da Guerra Civil de Espanha. Mesmo em Portugal esta ideia se tinha espalhado; ver, por exemplo, A Grande Ameaça: A Guerra de Amanhã, um “romance documentário” de Adolfo Coelho, publicado em 1934.

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300 mais baixo em 1937, quando submarinos

italianos começaram a torpedear tudo o

que navegasse no Mediterrâneo a caminho

de portos republicanos, sendo tais actos

de guerra atribuídos a submarinos piratas, de

forma a não provocar um confronto entre

as três potências navais daquele mar: Grã-

-Bretanha, França e Itália. Quando Londres e

Paris se puseram de acordo, fora do comité,

para pôr fim a esses ataques, graças a

um patrulhamento activo do Mediterrâneo,

Mussolini reclamou para a Itália, e obteve, o

direito de se juntar a esse patrulhamento. No

seu já citado discurso, afirmou Churchill,

I must pay my tribute to Signor

Mussolini, who joined in the common

exertions of the Mediterranean Powers

[risos] – and whose prestige and

authority by the mere terror of his

name quelled the wicked depredations

of those pirates [muitos risos]. Since the

days of Caesar himself there had been

no more salutary clearance of pirates

from the Mediterranean [risos].

Dada a natureza absurda de todo o

processo de não intervenção, quase todos os

autores que sobre ele escrevem – no contexto,

por exemplo, de narrativas da Guerra Civil de

Espanha – limitam -se a descrever em algum

detalhe o início dos trabalhos, referindo-

-se depois a alguns pontos de viragem: a

colocação de observadores nas fronteiras

terrestres de Espanha, o bloqueio naval e

a retirada de voluntários em 1938. Soares de

Oliveira, porém, revela grande persistência,

acompanhando de perto os trabalhos do

comité de não intervenção e demonstrando,

pelo exame das suas regras e das ambições

dos vários intervenientes, porque se manteve

de pé durante todo o conflito. É nesta

persistência que reside o mérito do autor e o

valor da obra.

Podemos, porém, apontar -lhe duas

lacunas. A primeira é a surpreendente

falta de discussão sobre os motivos que

influenciaram a diplomacia portuguesa.

Oliveira Salazar, Armindo Monteiro, Pedro

Teotónio Pereira e Teixeira de Sampaio – os

actores principais da diplomacia portuguesa

da época – agem, neste livro, de acordo

com princípios que não são discutidos ou

suficientemente analisados, apesar de não

serem de todo óbvios. Salazar decidiu que

uma vitória republicana seria uma ameaça

para o Estado Novo e por isso mesmo para

Portugal: mas as bases desse juízo eram

risíveis e por vários canais lhe chegaram,

no início da guerra, indicações de que

era possível um entendimento com os

republicanos. Nesse sentido, a documentação

existente no Arquivo Histórico -Diplomático,

incluindo a reunida na série Dez Anos de

Política Externa, não chega para explicar o

posicionamento de Salazar, porque não é

nela que são discutidas as alternativas. Por

outras palavras, não está dita a última

palavra sobre a diplomacia do Estado Novo,

e não se pode escrever sobre o período

sem introduzir um elemento de dúvida

sobre o que realmente motivava Salazar,

explicando as contradições presentes na sua

acção. Segundo Soares de Oliveira, “para

o estadista português [Salazar], a política

tem que conjugar forma e substância e não

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301pode existir sem uma e outra”; tal afirmação

transmite uma imagem de Salazar que se

não coaduna com muito do que sabemos

hoje sobre a sua forma de governar.

A segunda lacuna, mais grave, refere -se

à própria Espanha, e ao que nela se passou

antes e durante a guerra. A Introdução, ao

defender a tese da inevitabilidade da Guerra

Civil, devido em parte ao “particularismo”

do caso espanhol, diminui a responsabilidade

de quem iniciou o conflito; a compressão

necessária para explicar com brevidade as

causas da guerra pode muito bem estar

por trás desta descrição simplista, mas não

deixa de causar dúvidas e mal -entendidos

(como por exemplo, a afirmação de que

Largo Caballero foi ministro da Guerra

após as eleições de Fevereiro de 1936 e

que enquanto tal “construiu o seu exército

com milicianos recrutados nos sindicatos

e enquadrados por graduados eleitos”:

nada disto aconteceu, já que os ministros

da Guerra deste período foram o General

Masquelet e, mais tarde, Casares Quiroga).

Quanto às principais figuras espanholas do

conflito, são apresentadas – sobretudo as do

lado republicano – como simples joguetes

na mão de interesses estrangeiros; a Guerra

Civil, a partir de certo ponto, não é nada

mais do que o choque desses interesses. De

Juan Negrín, afirma Soares de Oliveira que se

submeteu “ao mando de Moscovo”; e tudo

o que é eficiente na República é apresentado

no livro como sendo enviado de, ou liderado

e enquadrado por, Moscovo. Mas Negrín

apoiava -se nos comunistas porque queria

resistir a Franco, e julgava – correctamente –

que uma guerra europeia vinha a caminho,

sendo por isso necessário aguentar até

que os dois conflitos se tornassem num

só. Havia uma concordância de fins entre

Negrín e os comunistas que não implicava

a subordinação das outras forças políticas

ao Partido Comunista Espanhol. A influência

deste partido, e dos seus mentores russos,

é sobre -estimada por Soares de Oliveira

quando afirma que o PCE “detinha o

controlo de todo o aparelho militar e por

decorrência, também do aparelho político

da República”. Se Franco triunfou em 1939,

não foi só por causa do apoio recebido

de Berlim, Roma e Lisboa; se Negrín saiu

derrotado da contenda, não foi só porque

a certa altura Moscovo mudou de opinião

quanto à necessidade de apoiar a República

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302

António Pinto da França é, prova-

velmente, tão sensível como inteligente

(ou será vice -versa?). Mas, por inclinação

ou por escolha, distancia -se do mundo, e

das gentes (e de si mesmo, às vezes) e o

pensamento domina – e de tal modo que até

pensa com o sentimento. O Autor tem uma

curiosidade sôfrega, olha constantemente

quem o rodeia, não lhe escapa o ridículo

e a estranheza das pessoas, mas sente por

elas simpatia e até cumplicidade. Daqui

resulta uma ironia tingida por ternura para

com os personagens que recria, mesmo

os mais caricatos, os mais obnóxios e as

mais pernósticas. Essa simpatia é tão grande

como o mundo e este é o teatro em que as

histórias deste livro se desenrolam.

Entre razão e sentimento, quando um

não afoga o outro, resulta uma tensão

permanente: tudo é sério e nada o é.

Não há sistema racional, não há uma

visão do mundo que possam abarcar tanta

disparidade. Um certo relativismo instala -se

e a ordem sofre, perturbada constantemente

pela irrupção de elementos excêntricos,

esdrúxulos, maníacos. Mas por detrás das

aparências ou sombras vislumbra -se uma

outra realidade.

Os diplomatas, sabem melhor que

ninguém que “o diabo está nos detalhes”.

TEATRO DE SOMBRAS – CONTOSde António Pinto da França

Editora: Prefácio

CREIO QUE FOI Horace Walpole que disse

que o mundo é uma comédia para os

que pensam e uma tragédia para os que

sentem. Ao ler Teatro de Sombras, o último

livro de António Pinto da França, veio-

-me a frase à memória acompanhada pela

pergunta – como é o mundo para os que

simultaneamente sentem e pensam com

quase a mesma intensidade? O Teatro de

Sombras em que género se situa?

Entre Ironia e Cumplicidade

Gonçalo Santa Clara Gomes*

* Embaixador.

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tos

303Não é o verdadeiro diabo, é um diabrete

que cria a confusão do mundo e perturba a

ordem, ou o que passa por o ser. O ironista

encontra as fraquezas, as pretensões e os

limites humanos por todo o lado e segue

os passos do mafarrico perturbador com

minúcia e com delícia. Devo dizer que,

neste livro, os contos que mais apreciei são

justamente aqueles em que o próprio Autor,

benévolo e tolerante, solta o diabrete e aponta

o fracasso das tentativas humanas de criar e

impor ordem nas vidas e comportamentos.

“Os Custódios” é um conto paradigmático

disso – além de uma construção narrativa

quase perfeita, é difícil imaginar como a luta

pela ordem, pela conservação, pela travagem

do tempo e do espaço possam ser vistos

como tão absurdas, tão deliciosamente sem

sentido. Reencontrada a liberdade, Pinto

da França não poupa sequer o MNE: um

diplomata em Copenhaga, em “Os Elos da

Cadeia” tem de justificar habilidosamente

a escolha entre a abstenção e o votar com a

maioria, única alternativa que Lisboa deixa

aos seus enviados.

Mas também há coincidências que são

mais do que isso – entre pessoas, cenários

e factos há teias e laços que não são acaso.

Eu diria que há em Pinto da França algo

de quase herético: Deus talvez não tenha

criado este mundo – pelo menos deixou aos

homens o encargo de o completar – mas olha

para ele com tolerância benevolente e não

resiste a intervir ocasionalmente provocando

coincidências, acasos e encontros. Através

dessas tangentes e secantes o que parece

inevitável deixa de o ser e há quem consiga

fugir e escape dos círculos viciosos em que

se fechou, ou em que o enredaram. Há fugas

e figas ao destino em contos como “Tiago”

que morre gloriosamente livre ao realizar o

seu sonho, com “uma expressão beatífica”.

E os elos tecidos podem até desenrolar -se

em longas cadeias no tempo – no “Anel”

passam duzentos anos até um reencontro se

dar por interpostas pessoas. E deparamos,

por vezes, com a saudade do que podia ter

sido, a tristeza de oportunidades perdidas.

Pinto da França vem da diplomacia,

do serviço público, da escrita oficial, de um

esforço de décadas para explicar claramente

a gente simples e apressada o que se passa em

mundos que eles ignoram. Passou daí para a

escrita mais personalizada, mas igualmente

didáctica, que são as memórias do que se

passou por onde passou. Saltou agora para a

ficção; mas não o fez totalmente – há muito

de memorialístico ainda nestes contos e,

mais frequentemente que Hitchcock nos

seus filmes, encontramos a cara sorridente

e os olhos penetrantes do António nalgumas

esquinas. Perdoa -se -lhe: é a eterna criança

deslumbrada, divertida, endiabrada que não

resiste a soltar gargalhadas enquanto faz das

suas.

Na apresentação deste livro, o Pinto

da França prometeu – melhor, ameaçou –

que não haveria mais livros dele. Era o que

faltava: “cada um de nós é vários, é muitos,

é uma prolixidade de si mesmo”, diz o Livro

do Desassossego. O António ainda só viveu três

ou quatro vidas e não deve fechar a boca

ao ficcionista que desponta. Ele tem muito

tempo à frente para amadurecer – pelas

minhas contas, pouco mais terá que 70

anos…NE

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em apresentar uma perspectiva sobre a China

que se concentra muito mais na República

da China (Taiwan) e na problemática

internacional por resolver do reconhecimento da

soberania deste estado e da sua independência

política em relação à Grande China.

Habituados que estamos a um mercado

editorial – nacional e internacional – que

se concentra em estudos sobre a envolvente

política, económica, cultural e social da RPC,

não podemos deixar de nos sentir enriquecidos

em termos nacionais com este livro que agora

nos é apresentado, pela perspectiva inovadora

de estudo e reflexão que revela.

Importa neste ponto recordar a histórica

tradição lusófona de chegar a mares nunca dantes

navegados que nos ajuda a enaltecer o feito

de termos sido um dos primeiros povos

ocidentais a aportar em Taiwan (local que até

aos nossos dias também se chama de Formosa,

supostamente por baptismo português). Com

o seu olhar sobre a China direccionado pela

Questão de Taiwan, Luís Cunha faz juz à nossa

tradição diferenciadora, trazendo à estampa

uma reflexão que se encontra entre uma das

muito poucas produzidas em Portugal – e em

Português – sobre a actualidade internacional

deste tema.

CHINA – COOPERAÇÃO E CONFLITO NA QUESTÃO DE

TAIWANde Luís CunhaEditora: Prefácio

CHINA – COOPERAÇÃO E Conflito na Questão de Taiwan

é uma obra única no contexto nacional

da literatura e da investigação académica

sobre a República Popular da China (em

diante RPC). Luís Cunha – o autor, jornalista

e presentemente doutorando em Relações

Internacionais – desafia o olhar do leitor

sobre as questões chinesas, preocupando -se

Elsa Maria Dias Dinis*

* Assistente Convidada do ISCSP-UTL.

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305Resultado de um trabalho de inves-

tigação académica que se materializou

em Dissertação de Mestrado, a obra tem

o dom de agregar o espírito da escrita

jornalística do autor com as suas sólidas

reflexões intelectuais enquanto politólogo e

internacionalista. Ao longo de mais de 200

páginas de escrita fluída e inovadora sobre o

tema, Luís Cunha aborda a questão de Taiwan

nos seus prismas de «relação interna» entre a

República da China e a RPC, e considerando,

em simultâneo, os paradoxos da análise do

tema no contexto das relações de poder do

sistema internacional (e suas consequências

num contexto dominado por uma RPC em

sólida ascenção para discussão do lugar de

prima potentia do sistema).

O autor preocupa -se ainda em

enquadrar a sua hipótese de trabalho no

contexto de uma das mais interessantes,

ciclícas e permanentes dicotomias do sistema

internacional – a primazia das relações

políticas entre estados versus a relevância

dos laços económicos e ponderação de

equilíbrios na dependência entre soberanias

criada por estes laços, em cada momento de

vida do sistema.

A investigação que esteve na origem

da presente obra prova que o fatídico

destino verbalizado na famosa expressão de

campanha de Bill Clinton em 1992 – “It’s the

economy stupid!” – se poderá voltar a aplicar

com sucesso na resolução de uma questão

política, desta feita entre dois Estados1. E

se é verdade que a história é fundamental

quando a conhecemos, analisamos e apren-

demos com as suas lições, o livro China –

Cooperação e Conflito na Questão de Taiwan tende

a levar -nos a reflectir na ideia de que a

RPC terá olhado para o seu passado e

retirado aprendizagens relevantes no que

respeita à resolução de questões políticas...

A leitura deste trabalho projecta -nos para

uma perspectiva nova do tema, colocando

a forte dependência económica que China e

Taiwan têm consolidado no centro da leitura

política do facto histórico por resolver do

retorno de Taiwan a soberania chinesa.

A abordagem ao tema da China e dos

equilíbrios de Cooperação e Conflito na

resolução da Questão de Taiwan é feita em

quatro capítulos distintos e estruturantes. O

contexto do tema é dado pela perspectiva

histórica da Questão de Taiwan no

sistema internacional e as actuais forças

motrizes da relação entre os dois Estados

são perspectivadas no capítulo sobre as

relações económicas entre Taiwan e a RPC

1 James Carville, estratega da campanha política de Bill Clinton à Presidência dos EUA em 1992, é considerado o responsável pela fama desta expressão, usada para explicar que o candidato democrata seria melhor escolha que o seu concorrente republicano George H. W. Bush. Ainda que George W. Bush fosse considerado imbatível em questões de política externa, a campanha democrata pretendeu demonstrar que não são apenas as questões políticas que sustentam a força de uma grande nação, sendo que os EUA em recessão económica não teriam, com toda a certeza, alcançado os mesmos sucessos internacionais. Recordamos que esta campanha política decorreu no contexto de grande popularidade do Presidente George W. Bush pela 1.ª invasão do Iraque em Março de 1991, ano em que os EUA sofreram uma das mais fortes recessões económicas do pós-2.ª Guerra Mundial.

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306 e interdepedência que se tem gerado em

torno dos crescentes contactos directos entre

as duas soberanias. Discute -se num terceiro

momento o elemento do nacionalismo em

ambas as realidades sociais e a sua relação

com as clivagens ideológicas que afastam a

RPC e a República da China desde 1949. A

obra encerra com um capítulo fundamental

de discussão acerca do já famoso conceito

de soberania com características chinesas!

Para além da riqueza de discussão

intelectual que o livro encerra, importa ainda

referir a sua relevância enquanto fonte de

informação potencial muito completa. Com

efeito, o autor recorre a uma incomparável

bibliografia e webgrafia, com referências

e autores de todas as nacionalidades e

quadrantes de conhecimento.

Do ponto de vista pedagógico e inte-

lectual, importa -nos aqui referir dois ele-

mentos fundamentais a destacar nesta obra:

1. A abordagem à temática do

nacionalismo enquanto ideia política

dominante na vivência quotidiana da

soberania da República Popular da China

e na sólida argumentação usada por Taiwan

internacionalmente para se defender de um

regresso à autoridade de Pequim. Destacamos

sobretudo o facto de a reflexão em torno

do nacionalismo chinês nos fazer recordar

Oscar Wilde em O Retrato de Dorian Gray,

quando afirmava “De que serve um homem

conquistar o mundo e perder a própria

alma?”. Luís Cunha recorda -nos sempre e

em cada momento que a RPC pode estar em

posição de conquistar o mundo, mas não

esquece que a alma do Estado está incompleta

pelo menos há século e meio quando a

intervenção externa de outros poderes deu

origem a partições do seu nacionalismo. A

Questão de Taiwan é o último reduto deste

afastamento que a Grande China pretende

ver resolvida até meados do século XXI2.

2. As reflexões em torno do conceito

de soberania com características chinesas que nos

direccionam, enquanto estudiosos do

conceito de Estado e poder na sua vertente

interna e externa, a olhar para a sólida

evolução que a RPC sofreu neste contexto

nos últimos 30 anos. O poder político chinês

parece ter evoluído para um comportamento

que assegure o cumprimento de um dos seus

mais antigos provérbios: A ordem movimenta -se

devagar, mas com segurança. A desordem vai sempre

apressada. A Questão de Taiwan será resolvida

com uma paciência de chinês, no contexto

de uma evolução significativa do conceito

de soberania na RPC, fundamentada numa

ordem que é sustentada no sucesso da

soberania com características chinesas! Por outro

lado, a Questão de Taiwan – que tende

a ser analisada como única no contexto

internacional – não pode deixar de ser vista

à luz dos tão actuais conceitos de Estado de

facto e Estado -ficção, ainda recentemente

trazidos a lume pela problemática da

2 Na mesma ordem de ideias, recordamos que os acordos de transferência de soberania de Hong Kong e Macau que a RPC assinou, respectivamente, com o Reino Unido e Portugal, prevêm períodos de transição dos modelos políticos em ambas as Regiões Administrativas Especiais até 2049, sob o signo do conceito “Um país, dois sistemas”.

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307independência do Kosovo. Ao analisar a

ideia de soberania com características chinesas e

o princípio de Uma Só China, Luís Cunha

recorda aos teóricos e académicos que,

na prática, o olhar sobre a soberania de

facto de um Estado não pode apenas ser

orientado para a sua capacidade económica

de sobrevivência...

Assinalando -se em 2008 -2009 alguns

marcos históricos de relevância para a RPC3,

esta obra será uma importante abordagem

nacional a um dos principais desafios

que este Estado enfrenta nos nossos dias.

Por outro lado, não podemos deixar de

mencionar que se assinalam também neste

período os 30 anos do restabelecimento das

relações diplomáticas entre Portugal e a RPC.

A obra que Luís Cunha nos trouxe neste

momento de relevância assume um interesse

ainda maior para investigadores, políticos e

diplomatas, estudantes ou simples leitores,

como fundamento para compreensão de

parte dos muitos mistérios que aquele país

parece encerrar!

Por último, enquanto amiga e

admiradora, recomendo vivamente a leitura

desta obra. As longas conversas que tive

oportunidade de ter com o Luís sobre o

livro apenas me abriram o apetite para

muitas e diferentes leituras. Enquanto

docente regresso inúmeras vezes a esta obra

para recordar (a mim e aos meus alunos)

que nenhum facto ligado ao poder de um

Estado tem apenas uma explicação e que,

como me ensinou um docente do ISCSP –

UTL há já muitos anos, o fundamental é

perceber o que se encontra por detrás da

primeira evidência.

Tendo assimilado de forma exímia

esta máxima da aprendizagem Iscpiana, o

Luís Cunha não deixou de nos surpreender

com a sua capacidade de análise sobre as

múltiplas perspectivas do poder de um

Estado na sua relação internacional, na

humildade de quem – tendo vivido 14 anos

em Macau – acredita ser alguém que não

sabe da RPC o suficiente para escrever um

livro sobre aquela soberania...NE

3 Entre outros poderemos referir a abertura da China ao mundo e as reformas económicas iniciadas em 1978 que são a base dos sucessos actuais daquele Estado enquanto potência económica.

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nos odeiam? A resposta comum é a ideia

de que nós, o mundo ocidental, não só

nos metemos nos assuntos internos dos

países muçulmanos bem como humilhamos

constantemente as populações desses

mesmos países. Esta resposta é aceite, quer

dentro do mundo muçulmano, quer dentro

de alguns meios ocidentais. Contudo, ela é

perigosa porque condena a maturidade dos

países muçulmanos, não deixando lugar à

progressão política nessas sociedades.

Em Inside the Jihad encontramos um relato

que nos dá algumas pistas para entendermos

o modo de pensar e de funcionar dos

fundamentalistas muçulmanos (doravante

islamitas). A narrativa contém ainda um

misto de romantismo, ficção e ingenuidade.

O seu autor, Omar Nasiri (nome fictício),

vive no dilema de poder conciliar a sua

convicção religiosa, o acreditar nos preceitos

religiosos do Islão, com o seu modo de vida

ocidental e, em simultâneo, tentar “salvar o

Islão dos seus excessos e inovações.”

Este é um livro que tem como subtítulo,

“A Spy’s Story” e, na verdade, pretende ser

um relato das experiências de alguém que

decidiu ser espião. Essa decisão não foi

tomada por mero acaso, mas por iniciativa

própria e o seu relato, enquanto ficção,

INSIDE THE JIHAD – MY LIFE WITH AL -QAEDA, A SPY’S

STORYde Omar NasiriEditora: Basic Books

“DEATH COMES TO all, but for him [the

Jihadist] there is martyrdom. He will

proceed to the Garden, while his conquerors

go to the Fire.”

Sayyd Qutb

Os atentados ocorridos no dia 11 de

Setembro de 2001 criaram uma interrogação

na população ocidental: Porque é que eles

Nuno Wahnon Martins*

* Research Fellow no Le Cercle.

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309tenta ser fiel ao género literário dos contos

de espionagem. Como nos livros de Ian

Fleming, a personagem principal é cativante,

inteligente, esperta, desembaraçada e,

extraordinariamente, sortuda. A questão da

veracidade da descrição acompanha o leitor

em alguns momentos do livro. Obviamente

que o optimismo da narrativa traz uma certa

panache à narrativa, tornando o narrador num

herói. Mas na vida real o herói não tem

sete vidas! Daí que, e sem tirar o mérito à

sua coragem, parece -nos que haverá algum

excesso de confiança do autor.

Por outro lado, os relatos geográficos são

fabulosos. A história começa em Bruxelas, mas

desenrola -se em locais tão distintos como o

Senegal, a Turquia ou o Afeganistão. O que

mais atrai a atenção do leitor é precisamente

o período em que o narrador vai para o

Paquistão e daí para um campo de treinos no

Afeganistão. Do ponto de vista do relato

histórico -geográfico, as descrições são

exemplares. O relato da Khyber Pass leva -nos ao

mundo do século XIX aquando das Guerras

Anglo -Afegãs e sendo certo que esses terri-

tórios pouco mudaram desde então, então

basta utilizar a nossa imaginação e substituir

os personagens e a história é quase a mesma.

Neste canto do mundo o modus vivendi das

populações continua a ser, no mínimo,

exótico. O detalhe da descrição dos campos

de treino é importante para conhecermos o

dia -a -dia na vida de um potencial terrorista. O

autor foca ainda a preparação psicológica dos

voluntários. Esta é essencial no caso de captura

e demonstra igualmente a importância da

ideologia, ou melhor, como esta esvazia a

mente humana de tudo o resto.

O lado político da obra oferece -nos

uma perspectiva diferente. Ajuda -nos a

compreender as lutas políticas dentro do

mundo muçulmano, as fraquezas do mundo

ocidental, sobretudo no que respeita aos

serviços de inteligência e como o sentimento

Jihadista é verdadeiramente global.

O leitor colocará ao longo do livro

a pergunta sobre qual o significado da

Jihad. Não havendo uma resposta definitiva,

acabamos por perceber que o autor

não define o seu significado, bem pelo

contrário, atribui sim diversos sentidos que

se distinguem consoante o contexto ou

a conotação. O relato acaba por reforçar

a tese de que o que interessa no Islão é a

interpretação do Alcorão. Assim, a Jihad pode

então ter vários significados, que se formam

independentemente do contexto onde se

encontram. Nesta recensão Jihad significa a

luta dos islamitas contra o mundo moderno

e a sua vontade em introduzir um califado

mundial. Este problema de interpretação

acaba por abrir todas as possibilidades na

utilização de um discurso político -religioso.

Sobretudo para os mais radicais, que

consideram como traidores aos princípios

do Islão, todos aqueles cuja mente tenha

sido modificada pelo Ocidente.

O único conceito inerente a todos

os discursos é o de Oumma ou, por outras

palavras, o da comunidade de muçulmanos

para lá de qualquer nacionalidade. Este

conceito explica por um lado, a Jihad global,

ou seja, a união dos muçulmanos islamitas

na promoção da implementação de um

califado em terras do Islão e, por outro, a

inclusão de todo o tipo de muçulmanos

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310 nesse significado, considerando os islamitas

e os não crentes em pé de igualdade. A

Oumma pode ser ainda considerada de forma

distinta: uma conceptual, relacionando todos

os fiéis muçulmanos que se designem como

tal, e outra imaginativa, todos aqueles que

podem ser, em potência muçulmanos. Daí

que a deserção ao Islão tenha consequências

nefastas, já que todo aquele que deixa

de ser muçulmano, acaba por deixar, na

verdade, a Oumma. Este é um conceito que

acompanha todo o livro e permite explicar

simplisticamente dois factos: (i) o medo

que os fiéis muçulmanos têm em trair

os seus pares e, consequentemente, (ii) a

dificuldade que os serviços de espionagem

ocidentais têm em arranjar espiões dispostos

a fornecer informações sobre os meios

terroristas.

Podemos ainda considerar duas visões

distintas na forma de abordar os interesses

nacionais com os interesses globais dentro

da Oumma. Para o mundo ocidental, e

para a maioria dos governos dos países

muçulmanos, a política externa é considerada

como a prossecução dos interesses internos.

Para os islamitas, pelo contrário, a política

externa tem como objectivo a realização de

um califado à escala global. Os interesses

nacionais, neste caso, não se podem sobrepor

aos interesses de um Islão transnacional.

Por isso, podemos distinguir dois tipos de

atitudes ao longo do livro. No que respeita

aos membros dos serviços de inteligência

britânicos, franceses ou marroquinos, a sua

maior preocupação é a não realização de

atentados dentro dos seus respectivos países.

Mesmo que haja uma colaboração entre

os vários serviços, esta tem sempre como

fim último o impedimento de possíveis

atentados dentro da esfera nacional. Mas

para o Islamista os diversos campos de

batalha têm como objectivo o de promover

a união entre todos os países muçulmanos e,

em ultima instância, trabalhar em conjunto

para o, acima referido, califado. Em resumo,

enquanto que a Jihad global é precisamente

uma ameaça para todo o mundo, os serviços

secretos nacionais viam nessa ameaça um

perigo para a segurança nacional. Ora, estas

atitudes consubstanciadas em premissas

diferentes, apenas beneficiaram o terrorismo

global e, em consequência, fragilizaram as

seguranças internas dos países ocidentais

porque não se souberam adaptar para a

ameaça global.

A Jihad global é, simultaneamente, uma

característica da modernidade e uma ameaça

à própria modernidade. No primeiro caso

porque os seus ideólogos estudaram no

Ocidente, como Saayd Qutb, ou os seus

agentes são muitas vezes ocidentais que se

converteram ao Islão, assimilando o discurso

niilista dos islamitas. Por outro lado, a

Jihad global é um conceito que ameaça a

modernidade no sentido em que pretende o

derrube do modo de vida contemporâneo.

Tudo é resumido na submissão ao Islão e

todos os conceitos sociológicos e políticos

só fazem sentido, para os islamitas,

enquanto ligados à teologia muçulmana.

Aqui podemos verificar como Omar Nasiri é

um muçulmano que adquiriu características

ocidentais no seu modo de pensar. O autor

não se submete ao Islão, tout court, mas

oferece -lhe luta e argumenta contra alguns

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311preceitos específicos da teologia islâmica.

Um exemplo disso é o facto de o autor

apreciar “um bom vinho,” ou seja, ao

oferecer ao leitor esta opinião pessoal, Omar

Nasiri sai da tradicional submissão Islâmica

para com o Corão. A submissão, ao contrário

das outras religiões monoteístas, é um

elemento primordial na religião muçulmana.

Tomando como exemplo o episódio bíblico

sobre o sacrifício de Isaac, Abraão, e de

acordo com a tradição muçulmana, aceitou

livremente a ordem divina para que matasse

Isaac. O mesmo não se passa nas outras

religiões do Livro, já que nestas, ele segue

contrariado a ordem divina de sacrifício do

seu filho. Este é um elemento essencial para

perceber a disposição terrorista, bem como

para distinguir as três religiões monoteístas.

Um outro elemento a reter no discurso

de Omar Nasiri é o facto de considerar

que os países muçulmanos dependem do

Ocidente para prosseguir com qualquer

dos seus fins. Através de um episódio em

que os terroristas adquirem Uzis (armas

de fabrico Israelita) para procederem a um

ataque propagado pelo GIA (Grupo Islâmico

de Salvação), grupo terrorista argelino, em

Argel, leva o autor a concluir que a utilização

de meios ocidentais é uma triste necessidade

que faz com que “o moderno Islão viva

numa concha.” Para nós isto constitui um

paradoxo do Islão e dos grupos terroristas.

Se o que os aflige é a modernidade, então a

utilização de meios modernos para atingir

os seus fins é uma contradição dos próprios

termos. Na verdade, apesar de todas as

riquezas naturais existentes nos países

árabes, o dinheiro capitalizado pela venda

daquelas, em vez de servir para desenvolver

as suas populações, tem sido utilizado sim

para o aumento das riquezas pessoais de

uma pequena minoria e para apoiar a prática

de ataques terroristas. Os recursos naturais

não têm sido capitalizados para desenvolver

a sociedade civil daí que o autor se sinta

“irritado” com a necessidade de aquisição

de meios fornecidos pelo Ocidente para

poder realizar quase tudo. Contudo, parece-

-nos que este facto deveria dar força ao

autor para criticar ainda mais a fundo o

que está a acontecer um pouco por todo o

mundo Islâmico.

Por último, não podemos deixar de

mencionar que Omar Nasiri conheceu e

privou com algumas das personagens que

vieram mais tarde a tornar -se, tristemente,

famosas. Falamos de Ali Touchent, a cabeça

do GIA e que ainda hoje não se sabe se

se encontra morto ou vivo e Abu Hamza,

o famoso imã, com a mão de gancho, da

Mesquita Londrina de Finsbury Park. Estas

duas sinistras personagens estarão por trás

de vários atentados terroristas um pouco

por todo o mundo. A descrição feita por

Nasiri a respeito do líder religioso Londrino

é interessante, pois o autor mostra -nos uma

pessoa pouco inteligente e que se move

por interesses pessoais, mas que acaba por

influenciar os seus ouvintes.

Inside Jihad é um livro que se lê facilmente

e que demonstra o modo do funcionamento

prático das células terroristas e as razões por

que estas cativam os seus adeptos por todo

o espectro muçulmano. A descrição dos

espaços públicos muçulmanos no Ocidente

é sintomática da propagação internacional

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312 dos elementos radicais. Torna -se assim difícil

encontrar neste contexto os denominados

“moderados” do Islão.

O nível do detalhe na crítica aos

islamitas é importante para perceber o modo

de funcionamento dos terroristas. Contudo,

se o leitor estiver à espera de encontrar

alguém que vai criticar o Islão ou colocar

em causa o terrorismo internacional, então

sairá frustrado. O autor procura sim ver nos

islamitas um grupo que está a denegrir a

imagem do verdadeiro Islão, contudo, ele

não deixa de ver no Ocidente uma entidade

arrogante e imperialista, sem necessitar

de distinguir os países uns dos outros,

que humilha sistematicamente o mundo

muçulmano.

Omar Nasiri oferece -nos um bom

livro de espionagem, juntando elementos

importantes para perceber o que antecedeu

os atentados de 11 de Setembro de 2001.

Mas para quem vê nas palavras de Qutb

“uma linguagem que faz sentido” é porque

não está a ser demasiado coerente com a

crítica ao Islão radical ou então está a ser

demasiado ingénuo!NE

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313Cadernos de Arquivo

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■ Relação da Embaixada e Entrada Pública que deu nesta Corte o Conde de

Valdstein, Embaixador Extraordinário da Alemanha, ao Senhor Rei D. Pedro II,

escrita pelo Conde de Assumar D. João de Almeida vedor da Casa Real que por

ordem de El -Rei lhe fez a hospedagem

DEPOIS DA FELIZ aclamação do Senhor Rei D. João IV de gloriosa memória e da prisão

que o Imperador Fernando [....] fez ao Senhor Infante D. Duarte, o qual o entregou

depois a El -Rei de Castela Filipe IV, que o mandou meter no Castelo de Milão

adonde ultimamente morreu, nunca mais este reino teve trato com o Império, nem

depois do Tratado das pazes que El -Rei D. Pedro II, sendo Príncipe Regente fez com

a monarquia de Espanha, se mandaram Embaixadores de uma a outra corte e como

eram poucos os interesses que entre eles havia, ficou suspenso o co mércio até o

ano de 1687, em que S. Majestade mandou à Corte de Heidelberg o Conde de Vilar

Maior, Manuel Telles da Sylva, depois Marquês de Alegrete, por seu Embaixador

Extraordinário, para tratar e concluir o segundo ma trimónio com a princesa Maria

Sofia de Neubourg, filha segunda do Duque de Neubourg Conde Palatino do Reno

Filipe Guilherme, Eleitor do Sacro Império. E como este Príncipe havia dado sua filha

primogénita ao Imperador Leopoldo I, que com esta aliança fi cava sendo cunhado

de El -Rei Nosso Senhor, desejou muito que assim como ficavam unidos pelo sangue

o fossem também na amizade e para esse efeito procurou com repetidas diligências

persuadir ao nosso Embaixador o grande desejo que o Imperador tinha de ver um

Ministro de Portugal na Corte de Viena, segu rando que se S. Majestade se resolvesse

a mandá -lo se lhe faria todo o bom trata mento e as mesmas honras e prerrogativas

que se costumavam con ceder ao Embaixador de Espanha.

José Segismundo de Saldanha*

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* Doutor em História, investigador.

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316 Chegando o Marquês de Alegrete neste Reino e referindo a S. Majestade toda a

série da sua Embaixada, lhe fez presente as di li gências que com ele havia feito o

Eleitor Palatino sobre S. Majestade mandar um Embaixador a Viena. E como lhe

pedira que de sua parte lhe rogasse segurando -lhe o grande gosto e contentamento

que disso poderia receber, a isto se seguiram as repetidas instâncias da Rainha nossa

Senhora que ou por com prazer ao pai ou à irmã ou por desejo particular que tivesse

desta nossa [....], depois que chegou a esta corte não cessou de persuadir a El -Rei

seu marido, a que mandasse um Embaixador ao Império. E foram tão poderosas as

suas instân cias que ultimamente se re solveu S. Majestade no ano de 1696 a no mear

por Embaixador Extraordinário ao Imperador ao Príncipe Senescal de Ligne, Marquês

de Arronches, que sendo filho terceiro de sua Casa ha via vindo da Flandres a casar

com a neta herdeira de Henrique de Sousa, Marquês de Arronches, filha de Diogo

Lopes de Sousa, Conde de Miranda, o qual, partindo desta Corte em Novembro do

mesmo ano se deteve em Paris alguns meses a fazer as suas li brés e equipagens com

toda a grandeza e luzimento que era pos sível. E tanto que as teve prontas se pôs a

caminho para Viena a donde, de pois de estar alguns tempos, fez a sua entrada pública

com toda aquela pompa e magnificência que é possível, entre gando ao Imperador a

carta de crença que de S. Majestade levava e à Imperatriz a da Rainha nossa Senhora,

em que lhe significava o gosto que tinha de ver outra vez unidas em boa

correspondên cia as duas Coroas, a Imperial e a Portuguesa.

Passado algum tempo, entendendo o Imperador, que era razão mostrar a El -Rei

nosso Senhor a grande estimação que fazia da sua pessoa, do seu parentesco e da

sua amizade, nomeou por Embaixador Extraordinário a este Reino o Bispo de

Passovia, hoje Cardeal Lambert, Príncipe do Sacro Império, para que da sua parte

viesse re presentar a El -Rei a grande satisfação que ti nha de ver de todo extin tas as

antigas inimizades e estabelecida outra vez a boa correspon dência entre as duas

coroas. Porém sendo -lhe depois preciso valer -se da pessoa e talentos do dito Bispo

na Dieta geral que se fazia na Polónia sobre a eleição do novo Rei em que o Império

tinha tantos in teresses e dando -lhe fim à sua negociação com a eleição que fez do

Duque da Saxónia, que era o mesmo que o Imperador queria o ocu pou novamente

fazendo -o Presidente da Dieta de Ratisbona em que os círculos e mais Príncipes do

Império se juntavam para regular as depen dências do novo eleitorado que

novamente se havia regido na pessoa do Duque de Hanover. E como esta ocupação

lhe retar dava o poder vir a Portugal, o dispensou desta jornada, no meando em seu

lugar ao Conde de Waldstein, cavaleiro do Tozão de Ouro, do Conselho de Estado

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317do Imperador, gentil homem da Câmara de El -Rei dos Romanos e filho do seu

Camareiro -Mor e do Conselho do Gabinete, o qual separando -se de sua mulher em

Paris, a donde tam bém esteve dispondo as suas equipagens para vir por terra a

Madrid, donde tinha alguns negócios, a mandou por mar em um navio com a

maior parte do seu fato.

Logo que ela aqui chegou, lhe mandou S. Majestade falúas para desembarcar

para as casa do Visconde de Asseca que lhe tinham tomado e ele mandou dar a boa

vinda por D. Manuel de Azevedo, Tenente General da Cavalaria da Província da

Estremadura, e pou cos dias depois chegou pela posta a Aldeia Galega o Conde seu

ma rido. E fazendo aviso que ali ficava, se lhe mandaram as faluas e mais embarcações

que se costumam para o transporta rem a esta Corte. E chegando à praia do Cais do

Carvão, donde desembarcou, o estava esperando o Conde de Monsanto D. Manuel de

Castro, filho primogénito do Marquês de Cascais, nos coches de S. Majestade para o

conduzir a sua casa. E depois de entrados no coche, dando -lhe o Conde sempre ao

Embaixador a mão direita na cadeira de trás, e de ele dar a boa vinda da parte de S.

Majestade, falando -lhe por Excelência lhe respondeu o Embaixador por Senhoria e o

Conde lhe tornou a falar por Senhoria também, e assim foram continuando até que

o Conde o pôs em casa. E queixando -se o Embaixador do trata mento que o Conde

lhe havia dado, lhe respondeu S. Majestade que os Condes de Portugal não davam

Excelência senão a quem lha tomava, e o Embaixador se satisfez e deu várias escusas

de que não sabia este estilo e que perguntando em Aldeia Galega ao Juíz de Fora e

de pois a Marco António, o tratamento que os Condes tinham em Portugal, lhe

haviam dito ambos, que era de Senhoria. Porém que ele não duvidava em lhe dar

Excelência e assim o praticou com todos dali por diante.

Foi o Embaixador dispondo os aprestos para a sua entrada pública e antes de os

ter de todo findo, faleceu em Madrid ao 1.º de Novembro El -Rei de Castela Carlos II

e como tinha tanta aliança com o Imperador seu amo, por ser da mesma Casa, sus-

pendeu as preven ções que tinha feito e ia fazendo até avisar Viena, para saber se havia

de fazer a sua entrada de luto ou de gala. Tardou algum tempo a res posta, até que

El -Rei nosso Senhor partiu para Salvaterra com toda a família Real em 19 de Janeiro

deste presente ano de 1701, com motivo de preservar a seus filhos de uma epidemia

de bexigas que havia em Lisboa, e como elas fossem continuando durou a detença

de S. Majestade em Salvaterra até 2 de Maio, dia em que se restituiu a esta Corte.

Pouco depois pediu o Embaixador audiência pública que se lhe retardou alguns dias

por se achar S. Majestade ocupado com a Aliança que fazia com as Duas Coroas de

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318 França e Espanha, e logo que o Tratado se concluiu e ratificou, mandou S. Majestade

dizer ao Embaixador que podia fazer a sua entrada e ter a grande au diência de

cerimónia em Quarta -feira 13 de Julho, e em 25 de Junho me mandou encarregar a

hospedagem deste Embaixador, por um escrito do Secretário de Estado Mendo Foyos

Pereira, em que me dizia o que adiante se verá na cópia dele, ao qual avi sei o que

contém a minha resposta que também se segue; e mandando S. Majestade considera-

das as razões que nela apontava para me haver de escusar de assistir a esta função sem

um em bargo delas, foi servido resolver que eu to masse por minha conta, como

consta dos dois escritos do Secretário de Estado que ao diante vão trasladados, os

quais re cebidos, avisei logo ao escrivão da cozinha António Rebelo da Fonseca que

mandasse fazer prestes tudo o necessário para esta fun ção e passei a ver das casas

de Manuel Lobo da Silva, a Santa Apolónia que estavam escolhidas, e não achando

nelas toda a ca paci dade necessária por ter uma sala muito pequena e incapaz de nela

se pôr um aparador, mandei fazer diligências por outras casas. E vendo -se as do

Conde da Ponte, se não achavam nelas as oficinas ne cessárias nem tão pouco na

Quinta de D. João de Sousa a S. Bento, nem na do Duque de Cadaval em Palhavã;

por ser pouco o tempo para se fazerem nelas as obras necessárias, foi preciso

acomodar as que estavam escolhidas, por não se acha rem outras capazes. Mandei

logo aos mestres das obras do Paço que lhe fizessem os repartimentos que fossem

precisos com a maior brevidade e a João de Leiros, guarda das tapeçarias e ade reços

do Paço, ordenei que as ornasse com toda aquela decência que era costume. O que

ele fez, pondo na sala um docel de tela branca com sanefas de tela carmesim e no

res caldo do docel guarnição do mesmo com cortinas de damasco carme sim.

Debaixo do docel estava um grande aparador com quatro de graus todos cheios de

excelente prata dourada de Bastiões e de Alemanha que chegava quase ao tecto da

casa em que estavam vários vasos de diferentes sortes e algumas figuras de animais

excelente mente feitas. A casa toda estava rodeada de mesas em que se costu mam pôr

as iguarias que vêm da cozinha e os triun fos e mais ornatos que se tiram da mesa

em que o Embaixador come. Para dentro se se guia uma saleta pequena com sanefas

de veludo lavrado carmesim e franjas de ouro e cortinas de damasco e com bancos

de encosto para sentarem os criados do Embaixador. A esta se seguia uma casa

grande em que o Embaixador havia de comer, com docel e sanefas nas portas e

ja nelas de veludo lavrado carmesim com franjas de ouro, cadeiras e panos de bufete

do mesmo. Mais para dentro estava outra casa de bastante grandeza com docel de

damasco de ouro muito rico, sanefas, cadeiras e panos de bufete do mesmo,

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319também com franjas de ouro e cortinas de damasco carmesim. Mais para den tro

estava a câmara em que o Embaixador havia de dormir, na qual es tava armado um

leito de ébano e paramentos de damasco verde de ouro mui rico, com boas franjas

do mesmo e as sanefas e cadeiras e panos de bufete do mesmo. Muitas outras casas

esta vam também adereçadas com cortinas, sanefas, bufetes e leitos, com vários para-

mentos para nelas comerem e dormirem os seus gentis -homens e pa jens e mais

família que era tão numerosa como adiante se referirá na ordem das mesas. E

porque o Embaixador representou ao Secretário de Estado, que teria mais como-

didade em fazer a entrada pública de sua casa a respeito das suas carruagens e

família, que te ria grande discómodo em vir de tão longe, me avisou o Secretário da

parte de S. Majestade o que contém o escrito abaixo, e em virtude dele, mandei que

os aprestos que estavam feitos para começarem a hospedagem por ceia se mudassem

para jantar.

Em Domingo 10 de Junho vieram à minha porta quatro co ches da família de S.

Majestade em que havia de vir a família do Embaixador e o seu de Respeito em que

eu o havia de conduzir. Meti -me nele pelas nove horas da manhã, levando atrás de

mim um coche com seis gentis -homens e dez lacaios vestidos de pano alvadio com

ferros e bocais nas mangas de pano azul ferrete. Os quatro coches da família iam

diante, logo seguia o em que eu ia e em último lugar o dos meus cria dos. Assim fui

pela Cruz de Pau, Calçada do Combro, Poço dos Negros, Esperança, até chegar a casa

do Visconde de Asseca, de fronte dos Marianos. Chegando à porta achei nela todos

os gentis -homens do Embaixador e pe dindo -lhes que o avisassem de que eu ali

estava, me disseram que podia subir. Apeei -me do coche acompa nhado de todos os

seus criados e dos meus e no último lanço da es cada junto à lógia achei o Embaixador

que tanto que me viu desceu o último degrau e caminhou para mim, que ainda

estava a poucos passos do coche. Ali me fez logo o seu cumprimento, dando -me

sem pre a mão e a porta. Passámos por quatro casas nobres e ricamente adereçadas

com docéis, cadeiras, bufetes e espelhos, tudo muito rico e de bom gosto. Na última

casa em que parámos, me deu a melhor cadeira e eu em me sentando lhe disse que

S. Majestade me havia dado a comissão de o levar para a casa em que mandava

hospedá -lo e que eu lhe havia beijado a mão por esta missão de que fazia a maior

estimação por ter o gosto de poder assistir -lhe e o oferecer -me a seu serviço com

outras semelhantes razões. Ele me respondeu por Excelência, dizendo que ao

Secretário de Estado havia já represen tado que da sua parte quisesse fazer presente a

El -Rei o quanto se achava agradecido a S. Majestade por me haver nomeado a mim

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320 para esta função e a grande esti mação que fazia da minha pessoa e com muitos

outros cumpri mentos. E logo mandou que trouxessem chocolate e entretanto

estivemos conversando em várias coisas até que vieram seis pa jens seus com vários

doces e água e depois com chocolates e biscoitos, que tomámos. E no mesmo tempo

se deram na ante câmara aos meus criados várias bebidas. Acabado isto, lhe disse que

tanto que S. Excelência achasse que era tempo que podía mos ir, que estava para lhe

obedecer. E logo nos levantámos e fomos para os coches, no qual entrou o

Embaixador por primeiro e lhe dei a mão di reita na cadeira de trás em que também

me sentei com ele, e os seus criados se meteram nos coches da família de S. Majestade

que para isso haviam ido, e assim fomos caminhando pela Calçada do Combro,

Portas de Santa Catarina, Rua Nova de Almada, Rua Nova, Ribeira, Cais do Carvão,

Bica do Sapato, até às casas de Santa Apolónia a donde nos estavam espe rando à porta

quarenta repostei ros, João de Leiros e um Moço da Câmara Francisco da Silveira e o

Escrivão da Cozinha António Rebelo da Fonseca.

Abriu o coche o meu estribeiro e nos apeámos, e ali pus logo o Embaixador à

minha mão direita e lhe fui dando as portas e quando chegámos à última casa que

era a câmara em que não havia docel, lhe dei a melhor cadeira e depois de estarmos

algum espaço de tempo me veio o moço da câmara perguntar se o Embaixador

queria ouvir missa e dizendo que sim, fomos para o oratório a donde estava posto

um banco coberto com um pano de damasco de ouro com sua almo fada em cima e

outra em baixo, no qual nos pusemos a ouvir missa. E acabada ela voltámos para a

mesma câmara até que me deram re cado de que estava pronto o comer.

Fomos para a mesa e antes de chegar a ela chegaram dois re pos teiros com duas

salvas douradas em que o Embaixador e eu pusemos os nossos chapéus e logo

vieram outros com dois pratos e dois gomis também dourados, e apertando muito

comigo o Embaixador que la vasse primeiro, não aceitei e cada um de nós lavou as

mãos ao mesmo tempo e em seu prato diverso. Chegámos à mesa e dois repos teiros

nos chegaram também as cadeiras no mesmo tempo. A mesa teria trinta palmos de

com prido e largura ordinária. Estava muito vistosamente ornada com triunfos, várias

outras coisas que a faziam mui luzida. O Embaixador se sentou no topo da mesa e

eu logo na ou tra à sua mão direita.

Esta primeira coberta era de natas, manteigas, espumas e fru tas do princípio,

seladas, presuntos, paios e línguas e tudo o mais que se costuma, muito bem

consertados com cidra e abó bora em que os copeiros tinham feito vários lavores

muito agradáveis. Depois que o Embaixador não quis mais desta primeira coberta

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321que teria [....] pratos, pediu de beber e logo vieram dois reposteiros com duas salvas

douradas e em cada uma três garrafinhas de vidro cristalino e um copo. As duas, uma

de vinho tinto outra de branco e a terceira de água, as quais se puseram uma diante

do Embaixador, outra de mim, e brindando ele com vinho e água à saúde de

S. Majestade fiz eu a razão. Feito isto mandei levantar os triunfos e toda a primeira

coberta, ficando só na mesa os talheres dourados e os em que eu e o Embaixador

tí nhamos o pão, garfo, colher e faca, e logo veio uma co berta de carnes com 24 pra-

tos grandes e 12 pratinhos de diferentes e várias potagens feitas por diferentes sortes

de todas as cas tas de aves, e acepipes com que a mesa ficou toda cheia. Comeu o

Embaixador do que melhor lhe pareceu e fez vários brindes na mesma forma do

primeiro. E tanto que se me fez aceno de que na copa estava já pronta outra coberta,

mandei levantar a que es tava na mesa e veio outra de assados do mesmo número de

pra tos. Depois que o Embaixador não quis mais dela a mandei levan tar e veio outra

de massas feita em diferentes tortas, pastelões e empadas com vários lavores, que as

faziam agradáveis não só ao gosto mas à vista.

Levantada esta coberta, outra de doces de toda a sorte assim secos como de

ovos, ornados os pratos em várias formas, todas muito agra dáveis. O Embaixador

e eu comemos dos que mais gostámos e logo dois reposteiros nos trouxeram duas

salvas, cada uma com três pú caros, um de água de ginjas, outro de limão e outro

de água pura, to das nevadas, para que cada um bebesse da que mais gostasse. Feito

isto se levantou a coberta de doces e veio a última de frutas de toda a variedade

que o tempo permite, ornados os pratos todos com capelas e triunfos de flores que

faziam a mesa formosamente vistosa e de pois que Embaixador não quis mais delas

se levantaram, ficando a última toalha. É de advertir que em todas as ocasiões que

se levanta vam as cobertas se tiravam juntamente as toalhas e guardanapos e quando

se le vantava a toalha ficava debaixo outra e vinham novos ta lheres com guardanapos,

facas e garfos da copa. Feito isto vieram para o Embaixador e para mim várias

águas geladas em tigelinhas de vi dro cristalino em salvas douradas e em outras

pastilhas de boca e de cachundê, e depois que as tomámos, veio água às mãos que

lavámos como no princípio da mesa e dando -nos os chapéus que tí nhamos no

princípio postos em salvas, nos levantámos da mesa e fomos para a câmara do

Embaixador com o qual me en tretive um bastante espaço e depois dizendo que o

queria deixar descansar e não incomodá -lo, ele me veio acompanhar até o topo da

escada, e a sua família e a de S. Majestade que ali estava vie ram até à minha car-

ruagem.

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322 Acabada como fica referida a mesa do Embaixador, se entrou logo a servir as de sua

família, que eram quatro, a saber, a dos gentis homens que eram dezoito e em que se

lhes puseram por várias vezes [....] pratos, a dos pajens que eram dez, uma de ajudas da

câmara, porteiros e outras pessoas que por todas eram oito, em que se lhes pu seram

[.....] pratos. A de quarenta lacaios em que houve [....] pratos. Todas elas foram servidas

pelos reposteiros no mesmo tempo sem que o comer de uma servisse para a outra, como

também não havia servido para nenhuma o que sobejou da mesa do Embaixador porque

se se reparte todo pelos repostei ros, assim como dela sai sem que torne à cozinha.

De tarde foi o Embaixador visitado pelo Presidente Rullié Embaixador de França

e pelo Residente do Marquês de Brandenbourg e outro do mesmo Príncipe que aqui

veio de Madrid para se embarcar para os seus Estados, aos quais mandei que se des-

sem vários doces e águas nevadas de todas as sortes e quando o Embaixador saiu,

mandei que o alumiassem com seis tochas que le varam seis reposteiros e quando me

pareceram ho ras, tornei para a casa da hospedagem a donde me estavam tam bém

esperando outros seis reposteiros com seis tochas que me foram alumiando até à

casa donde estava o aparador, e a mais família me foi acompanhando até à casa de

dentro, donde o Embaixador me veio esperar e entrámos para a câmara a donde

estivemos conversando até que me vieram di zer que a ceia estava pronta e indo para

a mesa se fez na mesma forma que ao jantar.

No segundo dia se fez tudo na mesma forma que no primeiro, sendo sempre o

mesmo número das iguarias, porém diferentes to das, de sorte que a que uma vez

chegou a ir à mesa se não viu mais nela. Na tarde deste dia o foi visitar Monsenhor

Conty Arcebispo de Tarso, Núncio de Sua Santidade, a quem se fez o mesmo que ao

Embaixador de França e também foi o Residente de Holanda.

No terceiro dia houve os mesmos comeres com as mesmas ceri mónias e nele

tornaram os Residentes de Brandenbourg a visitar o Embaixador e depois que acabou

de cear e toda a sua família, me vie ram dar recado que estava tudo pronto, e assim

descemos pelas esca das abaixo acompanhados de todos os cria dos de S. Majestade e

dos do Embaixador e os meus, e nos mes mos coches de S. Majestade em que tinha

ido para a hospeda gem o conduzi até sua casa que era do Visconde de Asseca de

fronte dos Padres Marianos a donde me apeei com ele e subi até ao seu quarto e

depois de vários cumprimentos me despedi. Ele me veio acompanhando até ao

coche e me viu partir e as sim me recolhi para minha casa.

O dito Embaixador mandou dar várias quantias de dinheiro que se repartiram

pelos reposteiros, copeiros e cozinheiros que haviam as sistido na hospedagem e ao

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323Escrivão da Cozinha António Rebelo da Fonseca mandou dar uma jóia e ao Moço da

Câmara de S. Majestade e Guarde Reposta, outras.

No dia seguinte teve audiência pública de S. Majestade no sa lão do Forte a que

foi conduzido pelo Conde de Alvor, Francisco de Távora, do Conselho de Estado de

S. Majestade e foi a ela com cinco coches, duas liteiras, e grande número de gentis

homens, pajens e lacaios com uma boa libré e tudo com grande magnifi cência e

luzimento.NE

ANTT, Miscelâneas Manuscritas n.º 1096, fol. 132V -139.

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324 LINHAS DE ORIENTAÇÃOOs trabalhos devem ser inéditos e ter entre 10 a 30 páginas e deverão ser entregues no Instituto Diplomático, Ministério dos Negócios Estrangeiros, acompanhados dos seguintes elementos:

– versão electrónica em Word para Windows;

– resumo até 10 linhas em inglês, eventualmente com 4 ou 6 palavras-chave;

– versão final pronta a publicar, devidamente revista.

À parte, deverá ser entregue a identificação do autor, CV resumido, a instituição a que per-tence, morada completa e contacto.

Quando os trabalhos incluírem materiais gráficos ou imagens, devem fazer-se acompanhar pelos originais em bom estado, ou ser elaborados em computador e guardados em formato gráfico.

Em sistema de peer-review, os trabalhos serão apreciados pelo menos por um avaliador externo anónimo. Quando publicados, responsabilizarão apenas os seus autores. O envio de um trabalho implica compromisso por parte do autor de publicação exclusiva na revista Negócios Estrangeiros, salvo acordo em contrário. Os trabalhos enviados serão apreciados dentro de um prazo razoável e a sua devolução não fica assegurada.

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– a 10 line abstract, with 4 or 6 key-words;

– final version, ready to publish and duly revised for possible typing errors.

Identification, full address, resumé, and professional contacts should be given separately.

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Número 11.1, 11.2, 11.3 e 11.4

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Número 12 – 10 Número 13 – 10 Número 14 – 10

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Rua das Necessidades, 19 . 1350-218 Lisboa . T 21 393 29 40 . F 21 393 20 49 . [email protected]

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O pagamento deve ser efectuado por cheque à ordem do Ministério dos Negócios Estrangeiros e anexado a este Boletim.

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A energia do país passa por nós.Fazer chegar a energia onde ela é necessária é uma das nossas missões. Sempre com consciência e preocupação

a nível social e ambiental e com altos critérios de qualidade e segurança. Por isso, a REN – Redes Energéticas

Nacionais – assegura um canal de transporte eficaz de toda a energia do país, seja ela de muito alta tensão

ou de alta pressão tendo em conta os elevados padrões de exigência do mercado. Porque é no futuro de todos

nós que dedicamos toda a nossa energia – Electricidade ou Gás - onde é preciso. Em todo o país.

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