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proa uma revista de jornalismo literário Ano I / Edição zero Dezembro 2011

Revista proa - ed. zero

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proa - uma revista de jornalismo literário. ano I, edição zero.

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2 / dezembro de 2011 / proa

embarque / bússola /

tripulação /

Edição:

Sub-Edição:

diagramação:

rEviSão dE diagramação:

rEviSão dE tExto:

Foto da capa E contracapa:

projEto Editorial:

projEto gráFico:

imprESSão:

FEchamEnto:

tiragEm:

contato:

2 / dezembro de 2011 / proa

O estilo literário no jornalismo é experimentado no curso de Comunicação Social - Jornalismo da Universidade Federal de Santa Maria desde 1990. Inicialmente, através de uma disciplina comple-mentar, chamada Teoria e Prática da Reportagem Impressa. Desde 2006, essa experiência tem lugar em outra disciplina, a de Jornalis-mo Literário.

A proposta do ensino do jornalismo literário é humanizar o relato jornalístico desde a pauta até a edição do texto, utilizando técnicas das ciências sociais e da literatura de ficção. Não bastasse isso, propõe-se também a ser uma oficina de textos. Com o passar dos anos, avaliou-se que diante de tamanha e tão qualificada pro-dução deveria-se pensar em alguma estratégia para visibilizar esses materiais, restritos aos autores, monitores e professor da disciplina.

Em 2010, um grupo de alunos reflete sobre a necessidade de se criar um produto impresso para publicação desses materiais. Depois de várias discussões entre os integrantes do grupo durante a disciplina de Produção Gráfica, surge a ideia da proa.

A analogia a uma viagem foi o modo encontrado pelo grupo para dar vida e sentido ao projeto editorial e gráfico. A leitura de textos mais aprofundados e trabalhados é comparada a uma via-gem, pois a intenção é fazer o leitor entrar no texto, refletir e vi-venciar essa experiência junto com os personagens aqui retratados.

O nome da revista remete a parte dianteira de um navio. A es-trutura editorial reflete essa viagem: Bússola [sumário], Tripulação [expediente], Embarque [editorial], Leme [opinião], Léguas Sub-marinas [ficção], Rotas [reportagens], A bordo [perfis], À deriva [ensaios fotográficos], Um copo de mar [resenhas], Resgate [resga-te histórico], Desembarque [sugestões culturais].

Este primeiro número é apresentado ao leitor em caráter ex-perimental. Uma homenagem também aos egressos do curso, aos amantes do jornalismo literário, aos 40 anos da Facos, à formação de jornalistas mais humanos e sensíveis aos personagens e fatos que dão vida à atividade jornalística.

Neste primeiro número de proa, existem trabalhos produzidos em 2009 e 2010. Em cada um deles, propõe-se que a informação esteja acompanhada da emoção dos personagens e dos autores. Conta-se também com colaboradores, como a ficção escrita pelo primeiro monitor da disciplina de Jornalismo Literário, Augusto Machado Paim, formado em 2007 pela Facos, e com o ensaio de Larissa Drabeski, também egressa da instituição.

Dessa maneira, nada-se contra a corrente do estilo convencional lido em periódicos. Não se quer que o leitor esteja apenas informado, mas que participe da história contada. Que o leitor de proa tenha a informação mais completa com o prazer de estar lendo contos e crô-nicas e que encontre aqui contribuições para uma leitura do mundo mais humanizada.

Paulo Roberto Araujo e Viviane Borelli Editores

Paulo Roberto Araujo - Mtb/RS 4219/14/23 v RSViviane Borelli - Mtb/RS 8992

Kamila BaidekMarlon DiasOlívia Scarpari

Daniele BubansGuilherme PortoMaurício BrumRonei da Cruz

Gabriela Belnhak

Débora Dalla PozzaGiuliana MatiuzziIuri MüllerMarlon DiasOlívia Scarpari

Iuri Müller

Débora Dalla PozzaEduarda GindriGiuliana MatiuzziJanine AppelKamila BaidekMarlon DiasOlívia Scarpari

Igor Müller

Imprensa Universitária

Dezembro de 2011

500 exemplares

[email protected]

Universidade Federal de Santa Maria (UFSM)Centro de Ciências Sociais e Humanas (CCSH)

Curso de Comunicação Social - Jornalismo

Leme | p. 3

Léguas submarinas | p. 4

Rotas 1 | p. 6

Rotas 2 | p. 10

À deriva 1 | p. 15

A bordo 1 | p. 18

Rotas 3 | p. 21

A bordo 2 | p. 27

À deriva 2 | p. 30

Rotas 4 | p. 32

À deriva 3 | p. 38

Um copo de mar | p. 40

Resgate | p. 42

Desembarque | p. 43

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XIX ganhavam a vida como homens da imprensa. Foi o caso de Ma-chado de Assis, José de Alencar, Gonçalves Dias, entre outros.

Ao mesmo tempo, algumas obras jornalísticas publicadas antes da década de 1960 podiam ser comparadas à qualidade narrativa da lite-ratura. Euclides da Cunha, enviado como correspondente do jornal O Estado de São Paulo para a Guerra de Canudos, colheu material que mais tarde originou uma das principais obras da literatura brasileira: Os sertões, publicada em 1902. Por outro lado, na literatura, correntes como o Realismo Social também se utilizavam da observação da rea-lidade para a construção de romances, que, embora fossem ficcionais, traziam consigo muitos aspectos realistas.

É importante ressaltar que fazer Jornalismo Literário é muito mais do que colocar técnicas literárias em textos jornalísticos. Trata-se de uma postura que deve ser adotada desde o embrião da reportagem, ou seja, desde a definição da pauta.

No processo de apuração, por sua vez, essa postura torna-se indis-pensável. Tom Wolfe, tido como porta-voz do New Journalism, apon-tou uma dificuldade para construção do texto desse estilo: “nosso maior problema como repórter é, apenas, conseguir ficar ao lado da pessoa sobre a qual escrevemos durante tempo suficiente para as ce-nas ocorrerem diante dos nossos olhos”.

A Revista Realidade, que foi um dos veículos nos quais o Jornalismo Literário mais teve espaço no Brasil, dava aos seus repórteres esse tempo que reclamava Tom Wolfe. O veículo foi capaz de documentar as transformações da sociedade brasileira durante a ditadura militar e se tornou referência nos estudos de jornalismo.

Entretanto, a Realidade teve uma vida breve. Surgida em 1966, encer-rou suas atividades já em 1976. O fim da revista pode levar à reflexão: há espaço na imprensa atual para o exercício do Jornalismo Literário?

Linhas editoriais adotadas em muitos veículos de grande tiragem de-fendem textos breves e concisos, sob a justificativa de que o leitor não tem tempo para ler. Tampouco os jornalistas para apurar suas pautas.

Indo de encontro aos que defendem a brevidade no jornalismo, presenciamos o surgimento de revistas que propõem a valorização dos recursos estilísticos, ao mesmo tempo em que buscam trazer um conteúdo ampliado. O resultado são textos longos, que tomam o tem-po do leitor, mas, em contrapartida, oferecem-lhe informações apro-fundadas e o prazer da leitura.

Alguns desses veículos surgem com finalidades comerciais. Outros buscam a experimentação, além da difusão de textos atraentes e ex-pressivos. Este segundo é o caso da revista proa. E você, está pronto para embarcar em uma viagem pelo Jornalismo Literário?

Será possível reunir em um único texto o melhor do jornalismo e o melhor da literatura? Trabalhar o potencial jornalístico de captação da realidade, enriquecendo-o com as técnicas de narrativa da ficção: é a isso que se propõe o chamado Jornalismo Literário.

Contrariando escolas mais ortodoxas de jornalismo, que defen-dem o ideal –ao fim, inatingível – de objetividade, esse outro estilo jornalístico mergulha fundo no mundo subjetivo dos indivíduos e dos acontecimentos.

O Jornalismo Literário pode ser comparado a um guarda-chuva, que abarca outros subgêneros, como o romance-reportagem, a biogra-fia, a ficção jornalística e o New Journalism americano.

Esse último subgênero teve início com uma corrente surgida em meio ao contexto transgressor americano da década de 1960. Os adep-tos não eram um grupo coeso de participantes e nem tinham regras de estilo estabelecidas. Valia a experimentação.

A obra tida como marco inicial do New Journalism é de autoria de um escritor de ficção. Ironicamente, em uma época em que o jornalismo era considerado “o primo pobre” da literatura, Truman Capote dedicou-se durante seis anos a investigar as circunstâncias do assassinato de uma família, ocorrido em uma pequena cidade no Kansas. A sangue frio foi publicado em 1965 e – afora as discus-sões éticas que cercam a obra – Capote utilizou-se de uma atividade totalmente jornalística e transformou a realidade em um romance recheado de suspense.

Os novos jornalistas abriam espaço para descrições detalhadas de pessoas, cenários, situações ou outros elementos que pudessem con-tribuir para a compreensão da narrativa. Os diálogos entre os perso-nagens apareciam reconstruídos. O ponto de vista do jornalista que observava os fatos de forma distante também deu espaço, por várias vezes, à revelação dos fatos sob o olhar dos próprios personagens. Além disso, a história se desenrolava em cenas que sucediam umas às outras, como em um filme, criando expectativa no leitor.

No entanto, essas experimentações no gênero jornalístico foram recebidas com desconfiança à época. A própria denominação utilizada para definir esses autores tinha um tom pejorativo, querendo separá--los do “bom e velho” jornalismo.

E não se engane, caro leitor: o que a turma de Truman Capote, Tom Wolfe, Gay Talese e Jimmy Bresly, entre outros, fazia não era nenhuma grande novidade. O fato é que jornalismo e literatura se enamoram desde muito antes.

Até os primeiros anos do século XX os dois gêneros chegavam a se confundir. Basta verificar que grandes escritores ficcionais do século

a Literatura na rota do Jornalismo

leme /

Por: Larissa Drabeski

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léguas submarinas /

O rosto de Cristian parecia azulejo em dia de umidade. A camiseta regata encharcada de suor não lhe incomodava, tampouco as meias

úmidas dentro dos tênis. A testa sim. É que os fi os molhados machucam quando caem sobre os olhos. Para afastar a franja, ele teria que largar os botijões no chão, e isso, em plena subida, difi cultaria ainda mais sua via crúcis. A experiência dizia que é melhor não parar.

Havia poucos minutos, na entrada da fave-la, o chefe comunicara aos seus subordinados: “vocês tem 15 minutos para levar isso lá em cima e voltar”. Então olhou para o relógio e corrigiu: “Não, 14 minutos.” O chefe era in-teligente. Ele sabia que quinze minutos, no Brasil, eram apenas uma expressão de tempo. O caminhão recém tinha encostado e as tare-fas já estavam sendo distribuídas. Um a um, os carregadores foram subindo o morro com os carrinhos de mão. Quando chegou a vez de Cristian, acabaram-se os carrinhos. O che-fe não se importou: havia uma encomenda de dois botijões para o armazém do Seu Pedro, lá em cima, passando a igrejinha, e a entrega precisava ser feita antes de o estabelecimento abrir as portas. Cristian era forte. Pôs um boti-jão sobre o ombro direito e pediu para o rapaz

que descarregava o caminhão pôr o outro so-bre o ombro esquerdo. Inclinou-se para frente e começou sua marcha pisando sobre um resto de macumba deixado na esquina.

Mal subira uma dezena de metros pelas ruas apertadas, quando se deparou com o primeiro obstáculo: doze vira-latas latindo e pulando à sua volta. Um deles tentou lhe derrubar. Cristian perdeu o equilíbrio, mas não revidou. Em vez disso, enquadrou o corpo e seguiu fi r-me. Logo os cães cansaram.

Mais adiante, Cristian escutou um rádio ligado no volume máximo. Música sertaneja. O som vinha de um sobrado de alvenaria do outro lado da rua. Debruçada na janela, uma senhora gorda fazia sinal com a mão. Cristian balançou a cabeça, mas a mulher insistia. Ele teve que gritar:

— Não, dona Maria. Nenhum desses é o da senhora.

Disse isso se virando um pouco para trás e, nesse movimento, trançou uma perna na outra. Ele teria caído se não fosse Simon, o motivado menino de dezesseis anos que, por estar há apenas dois meses na fi rma, já vinha descendo o morro correndo depois de fazer sua entrega. Simon amparou o botijão do om-bro direito, suportando uma parte do peso até

Paracima

o santonão ajuda

Por: Augusto Machado Paim Ilustração: Rafael Balbueno

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Cristian se reequilibrar. Depois disso, deixou-o sozinho e correu até o caminhão.

E foi aí que os cabelos de Cristian colaram na testa. Ele comprimiu as pálpebras e seguiu em frente, caminhando com os olhos quase fechados. Por mais que a marcha doesse, recomeçar depois de uma parada seria ainda pior. Cristian fazia um esforço mental que se equiparava ao braçal, procurando motivação no fato de que, nesse ritmo, em pouco tempo estaria lá em cima.

Pensava nisso quando teve seu bícepes envolvido por dedos macios. Parou. Na sua frente surgiu Verônica. Cristian a conhecia de olhar, ou melhor, de olhares. Ela lhe mostrou um lencinho de papel e com ele secou o rosto de Cristian. Depois, sem dizer nada, virou-se e seguiu rebolando o short jeans morro acima.

As ruas iam perdendo o calçamento confor-me se aproximavam do cume. Cristian pisava em pequenas pedras, vez que outra escorre-gando, mas sem grandes riscos. Até que surgiu debaixo do seu pé uma pedra maior, quase uma bola de tênis, no tamanho e no formato. Com a pisada, Cristian se desestabilizou, o corpo in-clinou de lado e, para não cair, ele continuou com as passadas fi rmes, porém sem freios. Foi bater contra um muro – mas não caiu.

As badaladas de um sino. Cristian ergueu os olhos. Poucos metros acima, estava a pequena igreja, com seu reboco quebrado e os tijolos de seis furos à mostra. Evangélica. Aí o pior: logo uma dúzia de beatas descia na direção contrá-ria. Cristian fi cou onde estava. Seus braços do-íam, mas não podia seguir adiante em meio às ruelas lotadas de gente. Depois que a procis-são se foi, apoiou as costas no muro, embalou o tronco e, com muito esforço, retomou a sua própria peregrinação.

A parada lhe custou caro. Agora ele sentia pontadas sob as axilas. Para piorar, o cadarço do tênis direito afrouxara. Sabendo que o so-frimento só chegaria mesmo ao fi m quando entregasse os botijões, Cristian correu. O ar-mazém do seu Pedro logo surgiu à sua frente.

Nesse último esforço, quanto mais avançava, mais doía e, no fi m da jornada, parecia que pregos lhe perfuravam os braços.

Então, o inevitável: em frente ao armazém, pisou no cadarço e desabou. Por sorte, seu Pe-dro e os empregados já esperavam junto à venda e conseguiram impedir a queda. Dos botijões, não de Cristian, que caiu no chão num baque.

Ele olhou para o lado e viu que todo mun-do voltara para dentro do estabelecimento. Deixou-se fi car no chão por alguns segundos. Então sentiu que os tênis lhe saiam do pé. Ergueu a cabeça a tempo de ver dois moleques descendo a ladeira em fuga.

Ficou por lá estendido no chão, os braços abertos, o peito arfando. Sentia as pedras pon-tiagudas sob as costas e sob a cabeça. À sua frente, o céu da manhã era subitamente invadi-do por uma nuvem negra. A nuvem avançava por todas as direções e logo escureceu tudo tudo tudo. Depois disso, Cristian não se lem-bra de mais nada.

A sensação é de que se passaram muitos dias, até que um par de braços pegou nos sova-cos de Cristian e o ergueu. Alguém comentou que o armazém abriria em cinco minutos e que antes disso a entrada precisava estar livre. Aos poucos, Cristian foi recobrando a consciência. Olhou para o relógio. Fizera a entrega em tem-po, mas tinha só mais dois minutos para estar de volta ao caminhão.

Apesar de a descida ser sempre mais fácil, o corpo de Cristian doía a cada movimento.

— Ei, rapaz!Cristian virou-se. Na porta do armazém,

Seu Pedro fazia-lhe mímica. Como a comuni-cação não surtiu efeito, Seu Pedro chamou um menino que jogava bola ali perto. Disse-lhe algo. O garoto fez que sim, deu as costas ao dono do estabelecimento e desceu correndo até onde Cristian estava. Com o peito estufa-do e o olhar orgulhoso de quem cumpre uma grande tarefa, olhou para ele e disse:

— O Seu Pedro mandou avisar que hoje vai querer quatro botijões.

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rotas 1 / baile disrítmico

Sem Monotonianem Descanso

Por: João Pedro Amaral Fotos: Iuri Müller

“Salve a terceira idade/Salve a terceira idade/Vejam que turma legal/Vejam que alto astral/Viva a terceira idade”

diversão não sente calor nem frio. No salão da Domingueira, há um palco com cerca de quinze metros de largura e, na frente, uma pista de-marcada com parquê de cor clara. Em volta da pista, os domingueiros têm a opção de se sentarem às mesas de madeira com toalhas de mesa brancas em cima.

Exatamente às 17 horas, a banda Tranco de Vaneira começa a tocar. O conjunto é quase a banda da casa da Domingueira, pois tocam duas vezes por mês nessa festa. E para aguentar cinco horas de vaneira, bo-lero, bandinha, forró, sertanejo, fandango e música gauchesca, o con-junto reveza seus integrantes. Mas isso não é problema para quem está nos embalos de um domingo à tarde, muito menos para o técnico de som, José Pereira. Ele é dono de todos equipamentos e “coloca som até em velório”. Adora ser técnico da Domingueira porque o ambiente é agradável, além da banda e do público serem humildes. Na Domin-gueira, José até pode trabalhar sentado tomando uma cerveja ao lado da esposa. José prefere colocar o som na Domingueira a sonorizar em bailões ou festa de jovens. “Os jovens são tudo loco! Nos bailões o pessoal bebe demais e dá muita peleia” – conta José.

Realmente, na Domingueira bebe-se pouco. Nas mesas há o predo-mínio de água mineral com gás, mas há quem prefira refrigerante. A maioria dos que pedem cerveja, bebem com elegância. O resto bebe e finge que está elegante, como um rapaz de camiseta azul que se con-trolava para ficar parado. Mesmo com seus olhos caídos e o corpo tremendo, o rapaz de camiseta azul flertava com uma moça para dançar.

É com esse refrão contagiante que a banda Tranco de Vanei-ra anima o início da festa do Clube de Atiradores Santama-riense no dia 30 de novembro. O Clube localiza-se na rua Venâncio Aires, 1242 e a festa ocorre sempre aos domin-

gos das 17 às 22 horas. Justo nesse dia, à tardinha, hora em que Fausto Silva, Sílvio Santos, Gugu, Celso Portioli e Netinho de Paula (!) dis-putam a audiência da televisão aberta. Programas tentadores, ô louco, meu! Mas apesar dessas maravilhas do mundo televisivo, há em média 500 pessoas de Santa Maria e região que abdicam desses programas televisivos para participar de um programa social: a Domingueira. Nessa festa são bem-vindos senhoras e senhores, moças e rapazes, meninos e meninas.

A entrada custa oito reais, pagos na hora, em um balcãozinho vigia-do por duas moças associadas ao Clube. Ambas têm um broche com o símbolo do Clube de Atiradores Santamariense: um círculo vermelho em um fundo branco e, no meio, duas armas vermelhas cruzadas entre si fazem um “X” dentro do círculo. Adentrando o local, há um hall com doze mesas de madeira com uma toalha de mesa vermelha por cima e ali também se localizam o banheiro masculino e o feminino. Nas pare-des há quadros com todos os presidentes do Clube e, ao fundo desse hall, há um portal que, aos domingos, leva a outro universo.

Durante a Domingueira faz muito calor e, mesmo os doze ventila-dores fixados na parede, juntos com outros seis no teto, não aplacam a alta temperatura. Mas os domingueiros não se importam, já que a

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Ela era magra, cabelo preto e liso na altura dos ombros e usava uma camisa preta e branca com uma calça vermelha. Depois de olhar de longe e apontar direto para ela, o moço, que não obteve retorno, sentou-se à mesa dela e deixou a sua cerveja com a amiga da mulher para poder dançar com a pretendente. A dança deles era esquisita, parecia que eles estavam em ritmos diferentes. A mão bêbada virou boba e, no meio da música, a pretendente do rapaz de camisa azul sentou-se à mesa com sua ami-ga. O rapaz apertou o braço da moça, tentou beijá-la a força, sem sucesso. Mas isso não foi o bastante para ele. Continuou sentado, inves-tiu mais algumas vezes mas, depois de algumas negativas, desistiu. Então, foi finalmente recar-regar seu isopor para tentar caçar outra presa.

Para atender todos os domingueiros, há uma copa e dois garçons rodando o salão à procura de clientes. Um deles é Deivid, que trabalha há dois anos na domingueira e gosta de lá porque os clientes são honestos e sempre pagam, mesmo que tardiamente. O inusitado é que as águas e refrigerantes são conservados em isopores de garrafas de cerveja. Uma boa maneira de manter resfriada sua bebida en-quanto se vai bailar.

O salão inteiro é uma grande dança das cadeiras. Enquanto a música toca, pessoas dançam até a música parar. Durante o in-tervalo entre uma música e outra, os pares voltam apressados para suas mesas para ou-tros pares irem à pista de dança. Esportiva-mente, essa prática seria chamada de dança de revezamento todos por todos. Uma dança de várias modalidades: lenta, rápida, junti-nha, simpática, amistosa, apaixonada, dança do flerte, dança do acasalamento, gaudéria, animada, giratória, um por um, dois por um, dois por dois, dois por nada, nada por algu-ma coisa e a dança da gaivota renga. Esta, a mais engraçada das modalidades, consiste primeiramente em um homem fisgar sua pre-sa e arrastá-la para o meio do salão. Então o homem empurra a sua companheira com o seu tronco enquanto os braços abertos fi-cam se debatendo na altura da cabeça de sua companheira, como uma gaivota. E os pas-sos seriam dados justamente no contratempo da música, dando a impressão que o dançari-no estaria rengo. Quando a música termina, os domingueiros sentam-se nos seus lugares,

entregam as parceiras às suas mesas. Ou sen-tam-se juntos para, quem sabe, dançarem no-vamente depois do próximo intervalo.

Na pista de dança, esses atletas não têm uni-formes, mas há a predominância de vestidos floridos na altura das canelas nas mulheres e nos homens camisas de botões e bombachas. Mas há também muitos chapéus, muitos ócu-los, muitos leques (acessório que provou não estar em extinção), muitos sapatos, muitos sal-tos altos, um All-Star, muitos cabelos brancos, poucos cabelos masculinos, muito laquê, mui-tas camisas listradas, uma camisa amarela com listras vermelhas, azuis e brancas, outra camisa amarela com listras vermelhas, azuis e brancas, algumas calças jeans, muitas bolsas coloridas e uma menina de doze anos.

A menina chama-se Yasmin, e é sua pri-meira vez na Domingueira. Porém, ela já foi a muitas outras festas semelhantes no Caixeiral, no Avenida Tênis Clube e no Clube Esportivo. Ela foi à Domingueira acompanhada da mãe, e as duas adoraram esse encontro dançante. Yasmin já ensinou seu avô a dançar e, inclu-sive, destaca-se como uma das melhores dan-çarinas da festa. Tanto é que ela concedeu a honra de danças para muitos homens.

– Eu adoro dançar bandinha. Não gosto de NxZero, essas coisas. – explica

Yasmin quebra estereótipos e prova que não há idade para ir à Domingueira. Não tem

idade também o amor que aflora dentro da festa. Na mesma mesa de Yasmin, há uma moça com cerca de 30 anos. Ela tinha cabe-los loiros longos e cacheados, rosto redon-do repleto de maquiagem. Vestia uma calça jeans apertada e blusa preta de um mate-rial semelhante a um véu negro. A beleza da mulher chamou a atenção de um senhor calvo com resquícios de cabelos brancos, magro e com a aparência de ter o dobro de sua idade. O senhor, apesar do calor, não perdia o charme, pois era o único que usava um terno no salão. Ele vestia uma camisa branca por baixo do paletó, calça social e sapatos pretos. O namorico começou com o senhor a passar as mãos desde o início do maxilar, perto da orelha, que desceram até o queixo. Enquanto fazia isso, declamava à moça palavras bonitas.

– Obrigada – os lábios da moça articulam.As mãos continuaram a afagar os cabelos, o

maxilar e orelhas da moça. O senhor proferiu pa-lavras ainda mais bonitas até que ela pegou sua bolsa amarela e os dois saíram juntos do salão. Quem sabe o cupido acertou suas flechas e trou-xe a felicidade em dois corações solitários. Quem sabe os dois dar-se-ão bem e viverão felizes para sempre. Quem sabe eles só querem um romance passageiro, já que relacionamentos duradouros estão ultrapassados. E quem sabe, a química na-quele momento se estendeu ao desejo carnal.

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A Primeira Vez

A Majestade

Lembro-me bem daquele momento. Eu es-tava nervoso, suando bastante, principalmente nas mãos. Já estava sentado ali com ela fazia algum tempo, mas ninguém tinha coragem de tomar a iniciativa. Depois de todo aquele tem-po, acabaria acontecendo. Não dava para con-trolar os instintos.

Tomei alguns goles de bravura e finalmente começamos. A trilha sonora foi por conta da mú-sica “Vou Pra Santa Catarina”, do Musical JM. No início, a insegurança tomou conta do meu corpo. Não sabia onde encostar, para onde olhar e nem se ela estava gostando.

- Ai, João!Aí notei que algo estava errado. Acho que

fui rápido demais, pois estava ansioso por esse momento. Acalmei-me, procurei a velocidade certa. Não tinha certeza do que estava fazen-do, mas fiquei concentrado o tempo todo, não ligando para nada ao meu redor.

- Para, João! O que tu tá fazendo?- Desculpa. É que realmente eu não sei fa-

zer isso – respondi.A cara que ela fez pra mim me intimidou, mas

isso não impediu que nós terminássemos o que

havíamos começado. Foi rápido, por volta de uns cinco minutos. A primeira vez ninguém gosta, é claro, mas precisava experimentar. E foi assim que, pela primeira vez, dancei acompanhado.

Embora tivesse esbarrado em muitos casais, não pisei no pé dela nenhuma vez! Eu saí do meio do salão extasiado, mas não posso dizer o mesmo dela. E, ainda por cima, todos estão olhando pra mim e pro João com cara de riso. Até o baixista da banda, que vergonha! Agora é só baixar a cabeça e correr para uma mesa bem afastada e fugir desses olhares.

Vestido vermelho florido até as canelas, ca-belos pretos, presos e lisos na altura da metade das costas, sandália de salto alto, queixo alinha-do com o pescoço, sorriso que não sai da boca e uma faixa vermelha que cruza o dorso com o título em dourado: Rainha da Domingueira.

Trajada assim que Ângela Maria Faber é a grande majestade. Ela esteve presente desde a pri-meira edição da festa, no dia quatro de setembro de 2005. Antes de reinar sobre os domingueiros, Ângela era a Rainha do grupo de terceira idade Unidos Venceremos. Em 2009, o Clube de Atira-dores fez uma eleição e, ganhando de três candi-datas, ela assumiu o trono da Domingueira.

é inesquecível

Como toda majestade, Ângela tem obri-gações a cumprir para com seus súditos. Ela tem que estar presente em todas as festas, mostrar animação e receber todos os domin-gueiros de uma forma simpática. Deveres estes que ela cumpre com sucesso. Não é di-fícil perceber Ângela rodeando o salão sor-rindo e dançando o tempo inteiro. Ela cum-primenta todos os presentes e parece nunca perder a formosura e o bom humor. Vez ou outra, alguns súditos ousam dançar com a Rainha. Mas nessa monarquia, a majestade é do povão. Os convites para danças são bem-vindos, inclusive de quem só dançou uma vez, como eu. Não sabia dançar a tcha-ca nem o dois por um, mas arrisquei o um por um. E mesmo com um inexperiente, ela não perdeu a elegância.

A dança preferida de Ângela é o tango. O problema é a dificuldade em achar um par que dance esse ritmo também. Mas, excetuando essa dança, ela adora bolero, bandinha e va-neira. Na Domingueira, a realeza até sobe no palco para animar ainda mais o ambiente. Seu carisma e a política de boa convivência leva-ram-na ao posto que chegou, e o que ela mais gosta na Domingueira é da simplicidade e do carinho das pessoas. “Aqui é como se fosse uma família” – diz Ângela.

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ter acabado a festa ou por não terem consegui-do um par –, poucos homens que continuam bebendo escorados na parede, gente que que-ria continuar dançando e um pessoal que tenta arranjar desesperadamente um amor que não conseguiu durante a noite. No salão, depois das 22 horas, alguns seguranças fi cam esperan-do os domingueiros saírem para acabar seu ex-pediente. Um trabalho relativamente fácil, pois na Domingueira quase nunca há brigas.

Ainda há um pessoal que vai estender a noi-te. Um grupo de amigos combina continuar a festa no Clube Caixeiral; outras três amigas também querem continuar a noitada, mas sem destino certo.

– Vamos lá no Comercial? – sugere uma amiga para a outra, enquanto a terceira foi falar com um mototaxista.

– Não! Vamos no Escato, na Borges.Continuando a festa ou não, os domingueiros

saem purifi cados dessa grande catarse.

A Domingueira termina às 22 horas, junto com a banda que acaba de tocar, religiosamen-te, nesse horário. Mas é claro que há sempre pessoas que fi cam mais tempo no salão e a fes-ta fi naliza mesmo quando todos vão embora. Chegando perto das 22 horas, o salão continua cheio e são poucas pessoas que saem durante a festa. No fi nal da noite é que algumas peculia-ridades aparecem, como o senhor e a moça que estão de volta, mas agora cada um está com um par diferente. O amor, além de cego, também foi efêmero.

Talvez agora o álcool tenha tomado conta dos domingueiros que bebem. Duas amigas brincam como se fossem crianças. Uma guerri-nha de água. Água não, cerveja. As duas senho-ras jogam-se copos de cerveja no decote dos seios e nas costas desnudas. Há também um se-nhor que comprou uma rosa vermelha para sua

A Finaleira pretendente e agora dança com ela entre seus seios. Outros, perto das 22 horas, saem do Clu-be gritando de braços abertos e mulheres saem rindo estridentemente. Nessa hora que, mes-mo sendo proibido fumar, uma fumaça mais intensa invade a Domingueira. Uma fumaça de suor e animação. A maioria das mulheres agora dança sem seus calçados e os homens parecem que passaram por um temporal.

Os domingueiros saem da festa paulati-namente. As pessoas mais idosas saem por primeiro. Vão logo também aqueles que vão viajar – como os amigos Alfredo e Ingrid, que vieram do interior, devido à cidade deles “não ter opção de festa”. Os acompanhados, depois. Em seguida, um grupo de pessoas cansadas sai arrastando os pés, junto com alguns domin-gueiros bêbados que continuam a gritar. Mas também há aqueles que permanecem no salão depois da banda acabar de tocar. São pessoas que fi cam sentadas com tristeza nos olhos – por

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rotas 2 / vida desperdiçada

Vida perdida, morte frustrada

Por: Gabriel Eduardo Bortulini Ilustração: Rafael Balbueno

Era dia 27 de julho de 1989. Ficamos sabendo do acidente que envolvia o Nelson. A tragédia tinha acontecido numa estrada no Norte gaúcho. Chegávamos ao local eu e meu amigo – e irmão do Nelson. A estrada, que corta os campos

e as campinas esverdeadas daquela parte do Alto Uruguai, amplia-se em curvas fechadas, paredes de terra e pedras e muitos barrancos. Foi logo antes de um desses barrancos que encontramos o carro. Estava queimado: a cor já não era a mesma. Não havia, porém, uma marca que revelasse uma grande batida.

– Se o revólver estiver no meio dos bancos, é ele – comentou o ir-mão com tranquilidade.

Mas por que ele estava tão tranquilo? Havia dúvidas de ser o Nelson quem havia batido? O que ele quis dizer com “se o revólver estiver no meio dos bancos”? Não entendia de onde brotava aquela frieza do homem que estava ao meu lado, afinal, era o seu irmão quem tinha fa-lecido. Se fosse comigo, eu estaria desesperado, tentando abrir a porta do carro para ver se o encontraria com vida. Tudo me parecia muito estranho, mas não ousei perguntar nada.

Paramos o automóvel, saímos e nos dirigimos ao veículo jogado fora da estrada. Era o carro do Nelson. Olhei para os pneus derretidos, para a estrada e percebi então: não se enxergava marcas de freadas. Ele teria dormido? Mas, se ele não freou, a lata deveria estar destruída. Como um carro pegou fogo desse jeito?

Abrimos a porta do carro. Lá estava um corpo, irreconhecível, com-pletamente carbonizado. No momento, pareceu-me em posição muito estranha, hoje, eu a vejo como patética: o cadáver estava jogado no banco do caroneiro. A menos que o corpo tivesse mudado de lugar por algum motivo sobrenatural, não era ele quem dirigia o carro no momento do acidente. Entre os bancos, o revólver.

Mais pessoas iam chegando ao lugar: bombeiros, enfermeiros e muitos curiosos. Em pouco tempo, os bombeiros retiraram o corpo e o conduziram ao hospital. Meu vizinho estava morto.

Entramos no carro e voltamos. O irmão de Nelson ainda estava calmo. E eu já começava a me incomodar com aquela situação. Com certeza, estava mais desesperado do que ele. A viagem seguiu em silên-cio até chegarmos à cidade. Cada um foi para a sua casa.

Fui pelos fundos, subi as escadas, abri a porta e entrei. Minha mu-lher me aguardava, com uma cuia de mate gordo em sua mão direita.

– E daí? Era verdade? – perguntou-me após beber um gole do chi-marrão.

– Era o carro dele. E o corpo tava dentro.– Ai, Jesus. Que desgraça. Coitada da Margarida, deve tá desolada.Ressoou o ronco do chimarrão. O chiado da chaleira chamou-a. Foi

ao fogão, pegou o recipiente, encheu a cuia e entregou-me. – Mas alguma coisa tá errada. O Olímpio tava muito calmo – comentei.– Ah, não deve ter caído a ficha ainda.

Quando criança, teve tudo. Cresceu e a vida já não lhe permitia regalias. A solução pareceu simples: morrer. Funcionou, mas por pouco tempo. Esta é a história de uma vida, de uma morte e – sobretudo – de suas perdas.

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– Pode ser... mas eu ainda acho que é uma história muito mal contada.

– Como assim?– Não tinha marca de batida no carro. Ele

só tava queimado. Ainda por cima, o corpo tava no banco do caroneiro...

– Estranho mesmo. Bom, não é hora de pa-ranoia. Anda, toma logo esse mate e vamo lá na Margarida pra consolar ela.

Saímos de casa e fomos. Em pouco tempo, estávamos lá. Uma casa de tom bege com ja-nelas de madeira escura, dois andares, situada na esquina das duas principais ruas da cidade. O edifício ocupa boa parte da quadra. A famí-lia vive até hoje no segundo andar, o primei-ro piso é destinado a aluguéis. No portão de casa, um pedaço de tecido preto contornava a fechadura, amarrado com um nó fi rme. O si-lêncio era total no lugar. Não havia choro, nem gritos, nem ao menos conversa.

– Café! Zelda, Margarida! – ouvimos repen-tinamente. Era o papagaio que fi cava em uma gaiola pendurada no lado de dentro do portão

quem pronunciara as palavras. As janelas estavam fechadas. A porta de

casa – que se pode ver do lado de fora e ge-ralmente se mantém aberta – também estava. Não chamamos por ninguém, demos meia- volta e retornamos.

Soubemos, então, que o velório começaria em seguida. Logo iniciou a movimentação de pessoas. Elas desciam e depois subiam a rua do ginásio e dobravam à direita. Esse é o tra-jeto de quem vai à Capela Mortuária. É uma construção de cor branca que se estende por um bom espaço paralelo à rua. O lugar é de-marcado por uma cerca de ferro. Dentro, há uma área coberta, ao ar livre, onde as pessoas costumam fi car sentadas, conversando sobre a vida e sobre o morto. Adiante, há uma sala, onde os corpos são velados no centro e uma abertura para um segundo ambiente, destinado à família. Na frente da capela, está o cemitério: um quarteirão delimitado por um muro branco que só se segmenta onde há as entradas em forma de arco.

Fomos à garagem, entramos no carro e sa-ímos de casa. Seguimos aquelas pessoas todas e nos dirigimos ao velório. Quando viramos a esquina e já enxergávamos o cemitério e a ca-pela, já havia veículos por toda a rua. Os auto-móveis no estacionamento oblíquo apontavam para o lado contrário de onde acontecia a ceri-mônia fúnebre. Prosseguimos, passamos entre o estacionamento e fi ndaram-se os carros. Ha-via ainda bastante espaço, era cedo. Parei entre as duas linhas brancas pintadas nos calçamen-to e descemos.

As pessoas entravam pelo portão do lu-gar. Algumas paravam na área coberta; outras entravam na sala onde o Nelson era velado e aglomeravam-se à voz macabra das orações ao morto. Nós acompanhamos o eco das rezas:

– Ave Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco... – uma única voz falava. Pronta-mente, o coro seguia:

–Santa Maria, mãe de Deus, rogai por nós pecadores...

Abrimos espaço entre as pessoas e podemos

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ver claramente: o caixão estava lá, no centro, como sempre, mas fechado. Do lado esquerdo, a viúva chorava consolada pelas irmãs. Flores e coroas rodeavam o fi nado. A minha mulher foi dar os pêsames à amiga. Eu fi quei parado ali, rezando com o povo e lembrando a cena que vira mais cedo.

Horas passaram e o momento do enterro chegara. Seu irmão e cinco amigos ergueram o caixão e o conduziram entre o corredor for-mado de pessoas, fl ores e lágrimas até o ce-mitério que fi cava a poucos metros dali. Atrás deles, as pessoas faziam fi las e cantarolavam canções de luto.

Os seis pararam. A cova estava pronta. O padre fez um sinal e o caixão foi posto dentro dela. As pessoas rodearam o lugar e o sacerdo-te reiniciou as orações.

– Dai-lhe, Senhor, o descanso eterno – pronunciava.

– Que a luz perpétua o ilumine – o coro acompanhava.

– Dai-lhe, Senhor, o descanso eterno.– Que a luz perpétua o ilumine.– Dai-lhe, Senhor, o descanso eterno.– Que a luz perpétua o ilumine.– Descanse em paz.– Amém.O clérigo se afastou. Gritos de choro des-

tacavam-se entre as pessoas. Flores eram joga-das dentro do túmulo. Quando já não havia o que arremessar, com uma pá, o que se atirava era terra. Aos poucos, as fl ores foram sumindo entre o marrom dos grãos. A cada movimento feito pelo coveiro, os gritos tornavam-se mais altos.

Terminara. A terra agora era socada ao chão sem nenhum receio. As pessoas já se dispersavam da multidão e saíam do cemité-rio. Em pouco tempo, só havia amigos pró-ximos e a família. Não demorou muito, tam-bém partiram.

Um mês havia passado e eu recebi uma li-gação. Era o gerente de uma agência bancária que queria conversar comigo. Desliguei o tele-fone e fui ao banco.

– Boa tarde.– Boa tarde. To devendo muito pra vocês?

– perguntei em tom debochado.– Não, não – riu – não é sobre o senhor.– Então é sobre o quê?– O senhor conhece uma pessoa de Manaus

com esse nome? – apontou para um documento. Eu nunca tinha ouvido falar naquele cidadão.

De Manaus, eu só conhecia o meu cunhado. – Não, nunca ouvi falar.– E o Olímpio Cavgnac, o senhor conhece?– Sim, claro.– Você tem alguma idéia, então, do motivo

de o Olímpio estar mandando esta quantia em dinheiro para esse homem de Manaus?

Dei de ombros. Era muito dinheiro de uma vez só. De onde o Olímpio tinha arranjado tanto? Ouvia-se falar que, ao contrário, ele es-tava cheio de dívidas. E quem era esse homem?

Me mudei para o Amazonas seis meses depois de ter me acidentado. Estava no meu Fiat 147 quando fui de encontro a uma carre-ta. Me arrebentei todo. Fiquei alguns meses no hospital e era cuidado pela minha família. Me lembro de ter acordado um dia dizendo “vou trabalhar” e sair correndo em direção à jane-la. Por sorte, meu cunhado me impediu. Era normal eu ter essas alucinações. Quem mais fi cava comigo era a minha irmã mais nova. Perdi a conta de quantas vezes a pedi em casa-mento. Era quase todos os dias. Ela sentava do meu lado, falava alguma coisa e eu perguntava: “Quer casar comigo?”.

Havia me curado. Não demorou muito, eu fi quei sabendo sobre a Zona Franca de Ma-naus. Era o começo de tudo aquilo e eu fui tentar a vida lá. Minha família era contra, eu recém tinha melhorado, mas ninguém me im-pediu. Juntei todas as minhas coisas e parti.

Aquele lugar era completamente diferente. Fui criado numa cidadezinha onde conhecia todo mundo. Era formada por italianos, ale-mães, polacos e alguns poucos negros. Manaus não. Eu era estranho lá. As pessoas me olhavam e me tratavam como se eu fosse um gringo. Fa-lavam com um sotaque esquisito. Não sabia se era português, tupi, guarani ou tudo junto. Eu era um ponto branco perdido no meio de um estado gigantesco. O calor era infernal. Uma sauna selvagem. Árvores, árvores, árvores. Negros, índios, mamelucos, cafusos, mulatos e mulatas. Ah, as mulatas. Estava cansado das alemoas do Rio Grande do Sul. No Amazonas, difi cilmente encontraria as malditas loirinhas. Era o paraíso para um solteiro que tinha visto branquelas durante quase toda a vida.

– Tomara que elas se interessem por um gaú-cho – pensei. No fi m, descobri que elas adoram.

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Alguns anos se passaram e eu já estava viven-do bem. Era gerente de exportação de eletro-domésticos em uma empresa na Zona Franca e ainda estava solteiro (como se eu planejasse me casar em um lugar daqueles). Naquela noite, eu fui a um restaurante onde eu geralmente janta-va. Estava comendo e então eu o vi entrar: um homem de meia idade, alto, cabelos castanhos claros, pele branca e magro. Estranho. Era difícil ver pessoas brancas por lá.

– Deve ser um gringo – pensei.Estava de costas. Escolheu uma mesa e

sentou-se. Meus olhos, então, esbugalharam--se. Eu podia ver seu rosto. Aquele rosto tão conhecido. Não podia ser. Há tempos eu não o enxergava, mas eu tinha certeza que era ele. Mas como? Sabia que ele havia falecido fazia meio ano. Tudo fi cou claro num instante:

– O quê? Não acredito, eu tô morto, é ób-vio. É pra cá que os mortos vêm! Agora, tá tudo explicado. Eu morri naquele acidente de 147 e seis meses depois eu vim pra cá. Acon-teceu o mesmo com o Nelson. Ele morreu e, meio ano depois, ele chegou aqui. Não creio! Todas essas pessoas tão mortas. Essas mulatas são mesmo as anjas do paraíso que eu pensei. Estranho é esse calor, o inferno é que deveria ser tão quente – cogitei no momento de pânico.

Ele não me viu naquele dia e eu tive medo de cumprimentá-lo. Esperei ele sair, fui para minha casa e liguei para a minha irmã.

– Eu tô morto, mana!– O quê? Bateu a cabeça de novo?– Não. Eu tô morto! Eu descobri. Vi o

Nelson aqui num restaurante hoje.– Quem?– O Nelson. Tu disse que ele tinha morrido

esses tempos...– Ai, Deus. Calma. Essa história tá mal con-

tada. Eu e o teu cunhado estamos desconfi an-do faz um tempo já.

– Como assim?– Ah, a gente acha que é tudo armação. Cal-

ma. Tu tá vivo... e parece que ele também.Me tranquilizei e dormi.Na outra noite, voltei ao restaurante. Nova-

mente, vi ele entrar. Senti um pouco de medo, mas fi quei calmo. De repente, ele vira os olhos para a minha direção e toma um susto. Maldi-to lugar que eu fui escolher para me esconder, está tudo acabado, ele vai contar a minha farsa e eu vou ser preso, não acredito, como eu ia

imaginar que encontraria alguém conhecido no meio da Amazônia? Levantei repentina-mente e fui embora.

Mais um dia se passou e eu retornei a jan-tar no restaurante. Como esperei, ele estava lá. Dessa vez eu deixei o medo de lado e fui falar com ele.

– Boa noite.Nelson me olhou com os olhos arregala-

dos, demorou alguns segundos e me respon-deu gaguejando um pouco:

– B-boa noite. – Posso sentar aqui contigo?– Hmm, pode, pode.Sentei, chamei o garçom e pedi uma cer-

veja. Conversamos um pouco sobre a minha vida, mas o que eu queria, de fato, era saber sobre a morte dele.

– Mas me explica essa história, Nelson. Tu não tava morto? Como tu conseguiu forjar?

– Bom, foi assim...Me contou a história. Obviamente escon-

deu bastante coisa, porém, boa parte estava explicada. Jantamos, continuamos a conversar, rimos, combinamos de beber em alguns luga-res e saímos do restaurante. Nos despedimos e fui para o meu carro. Entrei e, quando estava dando a marcha ré, ouço uma buzina. Era o Nelson dirigindo uma camionete nova, na épo-ca, de última geração. Parecia que a história do seguro de vida tinha dado certo.

Meu pai havia sido prefeito de onde eu nas-ci. Sempre vivi bem e tive tudo o que precisei. Casei e a vida começou a piorar. Estava preci-sando de dinheiro e soube, então, de um jeito rápido de consegui-lo: faria um seguro de vida e forjaria a minha morte.

No início, planejei sozinho, era quase uma utopia. A ideia, porém, foi crescendo e eu fui notando que poderia dar certo. Contei a um amigo e ao meu irmão. Nenhum acreditou que eu estava falando sério, mas logo perceberam que era verdade.

– Tu tá fi cando louco? – meu irmão per-guntou transtornado.

– Calma. Tu não percebe como é fácil? Eu já fi z o seguro de vida. Se vocês me ajudarem a forjar a minha morte, eu vou ganhar muito dinheiro. Não tem mistério, mas eu preciso da ajuda de vocês.

– Tu tá doente, só pode...Foi difícil, mas convenci eles a me ajuda-

rem. Comecei, então, a juntar dinheiro para conseguir fugir. Uma semana antes da minha morte, meus melhores amigos já sabiam do plano. Fizemos até uma festa de despedida para mim. Na época, eu era um dos melho-res vendedores de insumos agrícolas da região e um cliente queria fazer uma compra muito grande. Negociei e não repassei o dinheiro à empresa. Fiquei com tudo.

Era a véspera da minha morte. Peguei o carro de noite e fui para uma cidade um pou-co longe. Cheguei lá no início da madrugada e procurei um cemitério afastado. Parei o auto-móvel, esperei para ver se tinha movimentação de pessoas. Não havia. Tomei coragem e saí. Abri o porta-malas, peguei algumas ferramen-tas e entrei no cemitério. Tentava encontrar um túmulo recente, de algum homem. Não procurei muito, estava tremendo. Logo encon-trei um jazigo e achei que serviria. Quebrei o concreto, retirei o caixão, abri, tirei o corpo, enrolei em uma capa e levei ao carro. Ninguém viu. Entrei no veículo, respirei alguns segundos e dei a partida.

Parei na estrada, já perto de casa. Ali, havia uma escavação que tinha sido feito na rocha para a construção da estrada. Logo após, tinha um pequeno barranco. Pus o carro no lugar, deixei meus documentos dentro, coloquei meu revólver entre os bancos, como de costume, e saí. O meu amigo já tinha chegado ao local.

Pegamos um galão de gasolina e ateamos fogo no automóvel. O crime tinha sido feito. O clarão do fogo iluminava a estrada e não tínhamos tempo para fi car ali. Entramos no outro carro e partimos para um município vizinho. Eu suava frio e tremia muito. Notei, então, que havia feito a besteira de esquecer o corpo no banco errado. Não importava, não havia tempo para voltar. Estava feito.

Já tinha comprado uma passagem para Curi-tiba e conseguido documentos falsos. Cheguei à cidade, fui à rodoviária e peguei meu ônibus. Eu estava morto.

Desembarquei em Curitiba, passei alguns dias lá e fui para Manaus. Achei que ninguém me descobriria. Por algum tempo, eu consegui me esconder. Resolvi, porém, jantar naquele restaurante e o encontrei. Alto, magro, incon-fundível. A primeira vez que ele me encarou, me deixou apavorado e eu saí rapidamente. Na segunda vez, ele veio falar comigo.

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Sorte a minha que ele não contou pra nin-guém. No fi m, viramos bons amigos e fi zemos muita festa.

Eu estava muito bem de vida. Meu irmão me mandava o dinheiro do seguro e eu fazia bom uso. Achei um sócio e montamos uma empresa. Ia tudo muito bem. Aí é que a ques-tão de estar morto vira problema. Eu não era ninguém. O maldito descobriu isso e me rou-bou tudo. Exigiu a minha parte da empresa. Como eu reagiria? Se ele contasse o meu se-gredo, eu estaria perdido. Se ele me matasse, ele não poderia ser preso, eu já estava morto. Não tinha saída.

Fugi para Cuiabá. Vivi alguns anos com o resto do dinheiro do seguro, mas ele aca-bou. Eu teria que trabalhar, no entanto, não conseguia emprego. Virei vendedor ambu-lante. Passei o resto da farsa desse jeito. Até que, em 2003, eu fui procurar um advogado. Contei a história e então descobri: o crime já havia prescrito.

– Já faz 14 anos que o senhor foi dado como morto. Há algum tempo o crime já prescreveu na Justiça.

– É sério? Quer dizer que eu tenho direi-to ao meu nome de novo?

– Sim. O senhor pode anular o óbito, ter

seus documentos de volta e tem direito a 50% dos bens da tua mulher.

– Mas a seguradora não pode exigir o dinheiro?– Não. O direito de eles reaverem o di-

nheiro também já prescreveu. Finalmente a sorte voltara. Não pensei

duas vezes: exigi meus papéis e anulei o óbi-to. Fui descoberto, mas, como o crime já ha-via prescrito, não pude ser preso. A notícia logo se espalhou pelo país inteiro. O telefone não parava. Repórteres não me deixavam em paz. Apareci no Jornal Nacional e ganhei um apelido da boca de William Bonner: Morto--Vivo. Revi minha cidade natal pela televisão e voltei para lá.

Hoje, eu sou a principal notícia do mu-nicípio. Algumas pessoas me veem pela rua e cochicham; outras viram o rosto, apavo-radas; e há ainda aquelas que apontam sem nenhuma vergonha. Voltei a encontrar meus antigos amigos, minha família e exigi o que era meu por direito. Mesmo que minha mu-lher não quisesse ceder, ela foi obrigada. Re-cebi meu dinheiro. É pouco, mas ajuda.

Eu volto hoje para Cuiabá. Estou de ma-las prontas e vou para a rodoviária de carona com um antigo amigo. Estou na casa dele esperando se arrumar.

– Tá pronto, Nelson?– Sim. Vamo?– Vamo.Ele vai à garagem, abre o carro e me man-

da entrar. Saímos de casa e estamos indo. – Ei, só um pouco. São que horas?– São cinco e meia. – A aula não acaba agora?–Sim. Mas por quê?– Então para o carro ali na frente do co-

légio um pouco.– Não to entendendo, Nelson. Pra que tu

quer isso?– Só para um pouco.Ele parou. Os alunos estão começando a

sair.– É aquela de rosa? É aquela a minha fi -

lha?– Sim, é aquela mesmo.Como tá grande. Uma moça. Será que

tem namorado? Será que tem o jeito da mãe? Como será que foi crescer sem pai? Será que ela tá chateada comigo? Provavelmente... Ela viveu sem pai a vida toda e, quando ele apa-rece, ela descobre que ele é um criminoso. Valeu a pena, Nelson?

– Bom, já fi z tudo o que tinha para fazer. Podemos ir.

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à deriva /

Há invernos em que a neblina quase esconde o Barrio Sur de Montevidéu. As velhas casas, que se vestem de festa a cada fevereiro – é por ali que passa o carnaval –, agora parecem também sofrer com o vento frio. As ruas vazias

fazem da capital uruguaia uma cidade fantasma; o vapor que sai da boca do gaúcho que caminha pela Ciudad Vieja é o que há de mais vivo. Os porteños padecem do mesmo frio, mas Buenos Aires se mo-difica menos. Ainda são multidões que cruzam a Avenida Corrientes, que enchem os vagões do subte e que esquentam um mate nas primei-ras horas do dia. Em Porto Alegre, aquela que deixa o Mercado Públi-co rumo à Praça Montevidéu leva um romance de Ricardo Güiraldes debaixo do guarda-chuva. Séculos, guerras e tratados se passaram des-de o dia em que, em meio ao pampa, todos foram somente gauchos. Há quem diga, porém, que as capitais do Rio Grande do Sul, do Uruguai e da Argentina ainda guardam algo em comum. Ou ao menos mantém certas semelhanças, vestígios a se encontrar. Talvez no hotel por onde passou Quintana, na fraca luz de um espelho montevideano ou em uma janela em La Boca. Nas próximas páginas, surgirão fotos de três cidades que nasceram de um porto – como três faróis ao sul.

Milongade tres banderas

Por: Iuri Müller

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à deriva / porto alegre

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a bordo 1 / sapatos de borracha

“Sua lata, suas garrafase seus sapatos de borracha

vão dizendo aos homens no sonoque alguém acordou cedinho

e veio do último subúrbiotrazer o leite mais frioe mais alvo da melhor vaca

para todos criarem forçana luta brava da cidade.”

Morte do Leiteiro, Carlos Drummond de Andrade

Os raios de sol nem bem banhavam o céu em túneis gra-ciosos de luz naquela manhã gelada de primavera e Seu Pasquetti já estava pronto para a primeira ordenha do dia. Todos os dias na vida daquele pacato leiteiro eram assim:

acordar cedinho antes mesmo do sol preguiçoso despertar, tirar o leite, tomar um café reforçado e ir trabalhar na roça. Depois, ao findar do dia, quando já tivesse voltado exausto do lavoro, era hora da segunda ordenha e da entrega do leite. É um trabalho solitário na maioria das vezes. A mulher e a filha trabalham na cidade o dia inteiro. Já o filho estuda e também não tem tempo de acompanhar o pai na lida, apesar de gostar muito de ajudá-lo. E assim iam-se dissolvendo os dias na vida daquele senhor de cinquenta e um anos de idade com feições marcantes, mãos calejadas e olhos tímidos. Um senhor que é as botas de borracha sujas de lama, que é as mãos trabalhando sem parar, que é simples e que a vida toda respirou o ar puro do campo.

O relógio marcava cinco horas da tarde quando cheguei. Com um boné azul, as vestes simples, as mesmas botas de borracha e um ar tran-quilo, Seu Pasquetti já me esperava. Seguimos por um caminho pelos fundos da casa. Vejo uma pastagem bonita e bem cuidada, dois bois de carga, sete vacas de leite e uma estrebaria simples, já machucada pela

ação do tempo. Ele abre o portão da estrebaria. – Tu não te importa? Tem muita lama aqui dentro, é. Eu entro seguida dele. Havia lama, sim, mas não me importava. O

portão se fecha e é hora de preparar o cocho. Cuidadosamente, Seu Pasquetti prepara a comida para cada uma das vacas. Em seguida, as chama com carinho.

– Vem, vem! Vem, vaca, vem! Todas elas obedecem ao chamado e fazem sentinela do lado de fora

da estrebaria. – Só entra uma de cada vez, e cada uma sabe qual é o seu cocho.A primeira entra e muito rapidamente ocupa seu lugar. Fiquei im-

pressionada. Seu Pasquetti lava bem o úbere, pega um caneco, um ban-co que mais parece um toquinho de madeira, senta e começa o traba-lho. A experiência de quem tira leite há vinte anos salta aos olhos. As mãos, judiadas pelos anos de trabalho, fazem um vai-e-vem incessante.

– Quando eu era criança não tirava tanto leite assim, como tiro hoje. Só ajudava um pouco a mãe.

Ele me conta que, quando morava em Linha Quatro, trabalhava mais na roça, lavrando as terras com o pai.

– Naquela época, era só lavrar, lavrar e plantar, plantar tudo a mão.

Por: Kamila Baidek

SEU PASQUETTI E as sete vacas de leite

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A gente levantava cedinho, pegava o cavalo ou ia a pé, trabalhava o dia inteiro e, no outro dia, acordava cedinho e começava tudo de novo.

Como o trabalho era duro e muito se tinha por fazer, a escola acabou ficando em segundo plano: Seu Pasquetti não teve a oportunidade e o incentivo para continuar a estudar depois que terminou a quarta série.

O caneco se enche com o leite recém tira-do. Seu Pasquetti se levanta e coloca o que ti-rou em um recipiente maior. Eu observo cada movimento dele como se fosse uma criança querendo aprender. Dispensa a primeira vaca e, em seguida, chama a próxima da fila.

– Vem, Laranja, vem! Ela vem. Mas, ao contrário da outra, para

na porta. Estranha a minha presença. Seu Pas-quetti e eu nos divertimos com a cena. Logo ela se acalma, adentra a estrebaria e toma seu lugar.

– Essa é mais xucra. Tem que prender até o rabo.

E lá vai ele fazer tudo de novo. A prosa segue gostosa, mesmo Seu Pasquetti sendo mais reservado. Pergunto sobre a família. Ele me conta que só tem a mãe e mais seis irmãos, quatro rapazes e duas moças. O pai foi levado, há quatro anos, pelo câncer de pulmão.

– Foi tudo de repente, mas o pai sempre gostou de um cigarrinho.

Seu Pasquetti vem de uma família de ori-gem italiana e aprendeu um bocadinho de ita-liano com a mãe.

– Io capisco tutto e non parlo niente, diz numa gargalhada.

Dos italianos ele herdou o gosto pelo lavoro. – A vida é trabalhar e trabalhar.Mais um caneco fica recheado de leite, e

mais uma vaca entra na estrebaria. Além do

trabalho árduo que fazia quando era mais novo, Seu Pasquetti também gostava de se divertir. Ia sempre às matinês de domingo com os amigos e irmãos. Gostava de dan-çar, o danado. Mas, não era só de dançar que ele gostava.

– Eu gostava mesmo era de jogar bola! Jogava sábado, domingo, todo final de se-mana. Naquele tempo jogar bola era uma diversão! Já joguei até em time, sabia? Lá na Linha Quatro, quando tinha uns vinte anos. Eu jogava pelo Grêmio União. Hoje, a colu-na não me deixa mais jogar, né. Agora jogo bocha. Nos domingos desço na cidade e vou jogar. Não erro uma bochada! Já ganhei até um campeonato!

Seu Pasquetti desmancha-se em sorrisos acanhados de orgulho enquanto segue o tra-balho em ritmo ligeiro.

Uma a uma, as outras vacas foram en-trando. Já estava quase na minha vez. Eu era sempre a última. Ficava do lado de fora da estrebaria esperando. Enquanto espe-rava, observava aquele homem que tirava meu leite para seu sustento. Ele é um ho-mem bom. Nos trata muito bem e é dedica-do no que faz. Nenhum diazinho sequer ele se atrasou ou deixou de vir fazer trabalho. Sempre foi muito quieto, quase nunca fala enquanto trabalha. Mas hoje eu podia ouvir sua voz.

– Vem, Pintada, vem! Essa última é a mais coiceira. Já levei tantos coices dela que perdi a conta. Uma vez ela até se jogou no chão de teimosia.

Será que ele estaria falando de mim? Não entendo muita coisa, mesmo. Ouço o chama-do e entro no meu cocho. A refeição já estava lá, me esperando. Me distraio com a comida.

Mas, entre uma mastigada e outra, percebo que ele não era o único que falava. Tinha uma menina com ele.

Seu Pasquetti parecia um tanto cansado. Também pudera, ordenhar aquelas vacas to-das dava um trabalhão.

– Um cara me ofereceu uma ordenhadeira uma vez, mas o bom mesmo é tirar leite com a mão pra sentir o animal.

Sensibilidade. Seu Pasquetti tinha de so-bra. Apesar de aparentar ser um homem rude do interior, ele era cuidadoso e zeloso com os animais. Isso se refletia na quanti-dade enorme de pessoas a quem ele entre-gava o leite tirado.

– Faz dezoito anos que entrego leite todas às segundas, terças e sextas-feiras. As pessoas preferem esse leite, e eu também.

No entanto, não foi só de vender leite que viveu Seu Pasquetti. Ele trabalhou doze anos no açougue do irmão. Mexia com a carne congelada, matava porco e fazia sa-lame, sempre usando as mãos como instru-mento de trabalho. Muitas vezes voltava pra casa sem sentir as mãos, tão fria era a carne com que lidava. Além do açougue, Seu Pasquetti fazia uns “bicos pra fora”. Lavrava uma terra, plantava milho. Outras vezes, matava porco.

– Sempre ia matar porco pra uns cara aqui perto, fazia salame, tudo.

E assim foram passando os anos na vida desse humilde leiteiro que nunca teve a oportunidade de desbravar as terras além dos limites das suas.

– A minha vida inteira trabalhei com isso, com a lida na roça, não conheço outra coisa pra dizer se gostaria de fazer. Quando era pequeno pensava que ia ser criança pra sempre.

“Ele é um homem muito bom. Nos trata muito bem e é dedicado no que faz. Nenhum diazinho sequer ele se atrasou ou deixou de vir fazer o trabalho.”

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O riso agora é abafado. O silêncio é a me-lhor resposta que consigo dar. Seu Pasquetti estava tão absorto em seu trabalho naquele momento que esquecera que eu estava ali. Pa-recia mergulhar no passado e reviver lembranças esquecidas no tempo.

Acabo de chegar em casa do serviço. Minha santa, como meus pés doem! Pre-ciso recolher as roupas que ainda estão no varal. Vou recolhendo e olho, com o canto do olho, aquela menina e o Delmir. Ele não falou muito com ela, será? Mas que coisa! O Delmir sempre foi assim, calado. Me lem-bro como se fosse hoje da primeira vez que vi ele. Eu fui visitar a dona Angelina, dos Binotto, lá da Linha Quatro, porque minha mãe tinha pedido pra eu ir lá ver se ela tinha melhorado da gripe. Chovia muito naque-le dia, tava um lamaçal. Eu fui de a cava-lo, saí cedinho de casa porque não morava muito perto da casa dos Binotto. Cheguei lá de tardinha, toda encharcada. Ela era tia do Delmir, a Angelina. E lá tava ele. Tinha acabado de chegar da lida na roça. Tava mais ensopado que eu. Rimos um da cara do outro. Ele quase não falou comigo, era muito encabulado, o guri. E eu, que já fa-lava pelos cotovelos, fui puxando assunto. Conversa vai, conversa vem, foi surgindo um interesse. E esse interesse já dura vinte e três anos, tempo que somos casados. Desde que casamos, o Delmir tira leite. Nunca vi, não posso nem chegar perto da estrebaria. Lá é o lugar dele e das Marias dele, como ele chama as vacas. E eu também não gosto muito, nunca gostei. Só ajudava a entregar. Era muito difícil, porque a gente entregava tudo a pé. Colocava os litros em um saco de batata e ia estrada afora. Hoje trabalho na

cidade o dia inteiro, fazendo faxina, porque não dá pra viver só com o que o leite dá, né? Ai, senhor, acho que vou fazer um mate bem gostoso e dar uma descansada agora.

Ele já tinha acabado de ordrnhar meu leite. Eu estava esperando para me juntar às outras vacas. Era hora de voltarmos pro piquete.

A noite ia engolindo o dia e o sol esvaia-se no horizonte. Seu Pasquetti soltava as vacas para pastarem, enquanto eu trazia os baldes com o leite recém tirado.

– Todo dia é assim, viu, guria? Não tem dia san-to, nem nada. Eu sempre vou deitar com as vacas e levantar com elas. É um trabalho cansativo.

E era. Até eu me cansei. E o dia ainda não havia terminado.

Coloco os baldes na mesa, em uma peque-na cozinha. Seu Pasquetti liga o rádio, lava bem as mãos e pega os recipientes limpíssimos para enchê-los de leite e se junta a mim na cozinha. Aos poucos, o leite alvo e fresquinho vai se espalhando nas garrafas outrora vazias.

O mate já tava quase pronto. Depois de um dia inteiro de trabalho, trabalho e traba-lho, não tem nada melhor. Eu não acredito no que meus olhos veem! O Delmir deixou ela entrar na cozinha dele, mas que milagre! Não deixa ninguém chegar nem perto das geladeiras onde ele guarda o bendito leite. Não posso fazer nada que vá pra geladeira de um dia para o outro porque não tenho mais minhas geladeiras! Ele usa as duas só pro leite que ele tira, pode? E experimenta colocar alguma coisa que não seja leite lá dentro: ele coloca fora na mesma hora... Eu mereço! Nunca vi alguém ser tão cerrrtinho. A prosa aqui do lado parece boa, daqui a pouco vou lá xeretar.

Um a um, os vinte e dois litros foram fi cando

cheios. Seu Pasquetti é muito cauteloso com tudo, não quer que nada saia errado. Com o pouco leite que sobra, ele ainda faz queijo pra vender. Tudo de forma artesanal.

Já passava das sete e meia da noite quando Seu Pasquetti termina de tomar banho para, fi -nalmente, entregarmos o leite na cidade. Ele estava bem alinhado, já não tinha mais as botas de borracha, mas o boné azul permanecia.

– Agora tu vai andar de carro de museu, brinca ele, sorrindo.

A entrega do leite, antes feita a pé, foi fei-ta hoje, com uma Brasília ano 1976. O carro era de um marrom desbotado e de um esme-ro inconfundível.

– Vamo, vamo!Despeço-me de Dona Tânia.– Tu tem que vir mais vezes aqui, pra to-

mar mate comigo! Prometi que voltaria. Entramos no carro,

Seu Pasquetti e eu. O caminho mal iluminado e de chão batido pelo qual seguimos vai apon-tando a primeira casa que esperava ansiosa pelo leite. As pessoas pareciam sentir de longe o cheiro do leite que se aproximava. Estavam à porta, esperando. E assim foi em cada uma das quinze casas por que passamos.

– E o queijo, Seu Pasquetti?– Esse leite é do bom?– Tem que pagar agora? As casas foram fechando suas portas e

seus moradores foram se escondendo para saborear o leite fresco que acabara de chegar em suas mãos. Mas, o que as pessoas não sa-bem valorizar é a força e a dedicação de “al-guém que acordou cedinho e veio do último subúrbio trazer o leite mais frio e mais alvo da melhor vaca, para todos criarem força na luta brava da cidade”.

“Seu Pasquetti estava tão absorto [...] que parecia mergulhar no passado e reviver lembranças esquecidas no tempo.”

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rotas 3 / romaria de todas as graças

Aos teus pés

Por: Marlon Dias Fotos: Iuri Müller e Tainan Tomazetti

Moro num lugar gélido e escuro, iluminado pela pouca luz que entra pelo único vitral do ambiente. Camélias, crisântemos e rosas brancas enfeitam as grandes lápi-des que forram a parede. Aqui, as almas repousam no

descanso eterno. O silêncio é característico deste lugar, onde apenas se escutam sussurros de orações. Fico sozinha num altar de mármore branco. Do lado oposto ao meu, vê-se outro altar, onde são realizadas as missas aos mortos. Atrás deste, encontra-se uma parede de tábuas de madeira em formato de semicírculo, a qual hospeda algumas ima-gens sagradas. Elas me encaram com seus olhares ora acolhedores, ora questionadores. Afinal, quem era Maria ali? Éramos todas. Cada uma possuía um segundo nome, para não haver briga ou confusão. Tinha Guadalupe, Rosário, Amparo, Conceição, Socorro, Fátima, Aparecida e eu, Medianeira.

Cada uma vem de uma região do mundo, trazidas de presente por bispos e padres que visitam o Santuário. E lá ficam fazendo-me compa-nhia na cripta escura. Éramos mães de Jesus, mas ao longo desses anos traçamos histórias distintas. Eu mesma nem lembro direito como surgi. Se não me falha a memória, foi naquela epidemia que dizimou milhões de pessoas na Europa. Peste negra, não? É, foi ali mesmo. Mas foi aqui no Brasil, séculos depois, que ganhei notoriedade. Antes de começar a história, porém, deixe-me contar os motivos que me fizeram migrar para o Brasil e tornaram-me a personagem principal da maior manifes-tação religiosa do Rio Grande do Sul.

Santa Maria, 1926. A cidade localizada nos morros centrais das ter-ras gaúchas vivia uma de suas fases mais sombrias. Os santa-marienses

presenciaram uma batalha entre o Exército e a Brigada Militar. Foram dois dias de intenso confronto, com mais de 200 canhonaços, 200 tiros disparados e um saldo de treze pessoas mortas. Santa Maria começou a enfrentar dificuldades, ficou às escuras e até carne e pão tornaram-se escassos. Nessa época, chega ao Seminário São José um rapaz de olhos dorminhocos, cara redonda e estatura mediana, que usava um enorme óculos preto “fundo de garrafa”. Seu nome era Ignácio Rafael Valle, seminarista catarinense que viera ordenar-se padre na paróquia da cida-de. Devoto de Nossa Senhora Medianeira, Valle ficou chocado com os inúmeros relatos do que havia acontecido nos anos anteriores. Decidiu, então, incentivar a devoção à Medianeira, para que ela se tornasse pro-tetora da cidade. Mandou trazer da Bélgica uma pequena imagem da santa e deu início aos cultos à Nossa Senhora no seminário, que ficava onde hoje é o Parque da Medianeira.

A vontade que Ignácio tinha de me transformar em protetora da cidade não era somente por motivo de devoção. Na verdade, aquele jovem estava apenas cumprindo uma promessa feita a mim, anos antes. Quando jovem, Ignácio sofrera de uma grave doença. Não saberia explicar ao certo qual mal o acometia, mas os médicos não achavam cura alguma. Se eu o salvasse, trabalharia durante toda a vida para incentivar a devoção a minha imagem, como Nossa Se-nhora Medianeira de Todas as Graças. Eu atendi seu pedido e, como forma de retribuição, ele entrou para a vida eclesiástica, na qual acha-va mais fácil cumprir a promessa. Foi com os grupos de oração for-mados por Ignácio naquela cidade que iniciaram as demonstrações de devoção a mim.

A história da santa que veio da Bélgica para tornar-se a personagem principal da maior procissão do Rio Grande do Sul.

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OLHA LÁ, VAI PASSANDOA PROCISSÃO...Os sinos da catedral badalavam desde cedo

naquela manhã. As ruas, que geralmente são vazias aos domingos, eram tomadas por uma multidão que seguia em direção à Avenida Rio Branco. Pessoas trajando roupas brancas, ou-tras com imagens religiosas estampadas nas camisetas e ainda aquelas que carregavam crianças vestidas de anjo. Todas iam se aglo-merando em frente à Catedral. Era catorze de novembro, oito e vinte e cinco da manhã. A última missa terminara e o quadro com a ima-gem de Nossa Senhora Medianeira era retirado do templo para ser colocado sobre a carroceria de uma viatura da Brigada Militar.

O quadro mostra Nossa Senhora de bra-ços abertos, vestindo uma túnica branca e um manto azul claro. Sob sua cabeça, a imagem de Deus segurando Jesus Cristo na cruz e anjos que contornam um círculo dourado, represen-tando a figura do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Abaixo de seus pés, a terra. A pintura é a representação do significado do nome de Nossa Senhora: Medianeira é a mediação entre os homens, na terra, e Deus, no céu.

O primeiro quadro com a imagem de Nos-sa Senhora Medianeira fora pintado em 1930, pela irmã franciscana Angelita, cujo nome de batismo era Ida Stefani. As missas realizadas

Setembro de 1930. Um novo combate ameaçava desencadear-se em Santa Maria.Temerosas com a situação, um grupo de vin-te e três senhoras participantes do grupo de oração à Medianeira realizou uma procissão, da Catedral Diocesana à capela do seminário. Essa ficou conhecida como a primeira Roma-ria a Nossa Senhora Medianeira. Uma semana depois, a população resolve se unir para uma grande procissão, repetindo o mesmo trajeto feito pelo grupo de senhoras no domingo an-terior. Sob o sol quente da tarde de catorze de setembro, mil pessoas peregrinaram até a cape-la do Seminário São José, crentes de que aquele ato faria Nossa Senhora intervir por eles e evi-tar que a cidade virasse novamente um campo de batalha.

Aquela tarde de setembro estava terrivel-mente quente. Os morros que rodeiam San-ta Maria só ajudavam a aumentar o calor na depressão onde se localiza a cidade. Mesmo com o clima incômodo, um grande número de pessoas começou a se aglomerar em frente à Catedral. Às três horas em ponto, guiado por Monsenhor Luiz Scortegagna, governador da Diocese e substituto do bispo, o povo iniciou a peregrinação. Iam entoando hinos de louvor e seguiam ao meu encontro no Seminário São José. Quando lá chegou, o grupo deparou-se com um grande quadro da santa que vos fala. E oraram, durante várias horas, pedindo pro-teção. Um mês depois, a revolução teve fim. E Santa Maria nada sofreu, pois nenhum tiro foi disparado por aqui. Desde aquele momento, a veneração por minha imagem cresceu assusta-doramente e, a mim, foram creditadas inúme-ras bênçãos e milagres.

Volto ao lugar onde habito para continuar a contar minha história. Ao contrário das san-tas que dividem a escuridão da cripta comi-go, uma vez por ano tenho a oportunidade de abandonar este grande mausoléu e peregrinar pela cidade. Já deveríamos estar em novem-bro, época da peregrinação, pois percebi que os cuidados comigo aumentavam. Todos os anos, antes de sair para a rua, é a mesma fun-ção: as freiras vêm limpar os altares, tirar o pó dos vasos que ficam embaixo de mim, trocar as flores, ver se não há nada de errado com a moldura ou com a pintura do quadro.

Às sete horas da noite, sou levada por dois funcionários do Santuário até o automóvel. Lá fora, várias pessoas já aguardam o translado.

Vou na carroceria do carro principal, seguida por inúmeros veículos. O trajeto no primeiro dia é curto: percorre-se apenas uma avenida sinuosa. O destino é a paróquia de Nossa Se-nhora das Dores.

Os nove dias que antecedem a Romaria de Nossa Senhora Medianeira são dedicados à no-vena móvel. O quadro com a imagem de Nossa Senhora deixa o Santuário-Basílica da Media-neira às dezenove horas, e às vinte horas inicia a missa na paróquia escolhida. Em 2010, a nove-na iniciou no dia cinco de novembro, na Igre-ja de Nossa Senhora das Dores. A imagem de Medianeira permanece na paróquia até as deze-nove horas do dia seguinte, quando é transferi-da para o próximo destino. Depois das Dores, a imagem percorreu as paróquias de Santo An-tônio, Nossa Senhora de Fátima, Bonfim, N. S. do Rosário, São José do Patrocínio, N. S. do Perpétuo Socorro, Santa Catarina, até chegar à Catedral Diocesana, na véspera da Romaria.

Em cada paróquia visitada, a recepção é sempre calorosa, com fogos de artifício, ba-rulho de buzinas e cânticos de louvor. Em alguns locais, sou homenageada com coros e orquestras que entoam cantos gregorianos que deixam qualquer um com os olhos cheios de lá-grimas. Todas as festividades nessas paróquias são importantes, mas, claro, nenhuma se com-para com a grande manifestação popular que ocorre na Romaria. Deixemos de enrolar com meias-histórias e partamos para o que realmen-te interessa: a procissão.

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MARIA, MARIAO relógio marca seis horas da manhã. O

sol nem bem despontou no horizonte e já es-tou de pé. Desço ao saguão do hotel para o desjejum. Mesmo cedo, já há movimentação de pessoas na Avenida. Folheio o jornal do dia anterior, que estava em cima da bancada. Uma das notícias de capa anuncia a expectativa de haver mais de 250 mil peregrinos na 67ª Ro-maria da Medianeira. Incrível como a cada ano o número de fiéis que vem à Santa Maria au-menta. Há dezoito anos, saio de minha cidade para prestigiar essa celebração cristã. Mas não sou católica. Venho apenas agradecer uma gra-ça alcançada. Aliás, acho que antes de qualquer coisa, devo lhes contar minha história para que saibam como virei devota de Medianeira.

Meu nome é Maria de Lourdes. Tenho nome de santa, sim, mas podem esquecer se pensam que meus pais deram-me este nome por causa de sua fé. Pelo contrário, meus pais eram as pessoas mais céticas que conheci. O nome foi apenas uma homenagem a uma que-rida amiga do casal. Ateus declarados, meus

pais me ensinaram desde cedo que a história de Jesus Cristo era a mais bem inventada de todos os tempos. Pessoas abrindo mares, vir-gens engravidando do Espírito Santo, mulhe-res formando-se da costela alheia, tudo estó-ria. Pouquíssimas eram as vezes que eu havia entrado numa igreja, não conhecia as histórias da Bíblia, tampouco sabia qualquer oração que fosse. Não sentia falta, até que minha vida mu-dou numa manhã de domingo.

A mulher caminhava com dificuldade. Pa-recia desnorteada, olhava para dentro dos quartos. Eu estava acostumada a presenciar situações como aquela. As ataduras denun-ciavam que a moça sofrera um acidente. Ela continuou andando pelo corredor do hospital, arrastando a perna esquerda. De repente, ela para. Tinha chegado ao fim do corredor, onde me encontrava. A mulher fitou-me com olhar de receio e desconfiança. É provável que não soubesse quem eu era. Parecia perdida. Por al-guns minutos, ela me encara, calada. Eis que fecha os olhos e com dificuldade, ajoelha-se. Da sua boca, ouço apenas um sussurro – “Me ajuda, Maria”. Aos meus pés, a mulher chorou.

Era uma manhã de domingo como essa, de céu nublado. Meu marido e eu voltávamos da Serra, pela estrada estreita e sinuosa. Numa das tantas curvas, colidimos com outro veícu-lo. Desmaiados, fomos levados ao hospital da cidade mais próxima. Na manhã do dia seguin-te, acordei incomodada com a luz que entrava pela fresta da janela aberta. Um homem ves-tindo um jaleco branco entra em meu quarto.

– Tudo bem com a senhora?– Sinto um pouco de dor nas costas. – Mas está tudo bem com a senhora, Dona

Maria. Foram apenas alguns ferimentos leves. Ficará com uns hematomas. Amanhã, faremos mais alguns exames.

– E meu marido, doutor? – questionei.– A senhora precisa repousar. Fique aqui,

pedirei para a enfermeira trazer o remédio para dor.

– Doutor, meu marido está bem?O médico baixou a cabeça e demorou a

olhar para mim. Aproximou-se da cama e con-tou que meu marido estava em coma. O outro carro havia batido no lado que ele estava e seu estado era grave. Suas chances de sobreviver eram poucas. Mas vamos rezar, disse o médico antes de fechar a porta. Chorei.

pelo padre Ignácio Rafael Valle no Seminá-rio São José reuniam cada vez mais devotos. Viu-se, então, a necessidade de trocar a peque-na imagem vinda da Bélgica por uma em ta-manho maior. Numa tarde, em conversa com um amigo, Valle falou de sua busca por alguém que soubesse pintar para retratar Nossa Se-nhora. O amigo, que também era padre, disse que tinha uma irmã, uma ótima desenhista que poderia ajudar na feitura do quadro. Angelita, de início, recusou. “Como assim, pintar uma santa? É uma honra, mas não quero essa responsabilida-de”. Depois de muito insistir, o padre convenceu irmã Angelita a pintar a obra.

Uma voz no alto-falante do caminhão que acompanha a procissão anuncia o início da Ro-maria. Os bispos tomam frente à multidão. Eles chamam a atenção com seus trajes litúrgicos: uma túnica branca sobreposta por uma casu-la dourada, com pequenas cruzes bordadas na frente. Na cabeça, a mitra, espécie de chapéu alto e pontudo, simbolizando o poder espiritual. Na fileira de trás, alguns padres vestindo branco e, ao seu lado, políticos da cidade. Ao redor do carro onde se encontra Nossa Senhora, alguns homens de gravata branca, estampada com a imagem da Mãe. São os guardiões da Medianeira, senhores - todos aparentam ter mais de 60 anos - que dedi-cam suas vidas à manutenção do templo.

Na calçada, um pouco afastada da multidão, vejo uma mulher de estatura baixa, cabelos ruivos, com algumas rugas no rosto, segurando um peque-

no quadro com a imagem de Nossa Senhora. Ela caminha de cabeça baixa, como se estivesse com os olhos fechados, e canta hinos de louvor. Tinha nome de santa, a mulher. Curioso, me aproximo para saber o porquê de tanta devoção. Mas, ao con-trário do que pensei, a fervorosa Maria de Lourdes não era católica.

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MULTIDÃOCAMINHANTE,

MULTIDÃOTRANSPIRANTE

Ainda debilitada, andei pelo corredor, ten-do a esperança de achar o quarto onde estava meu marido. Foi quando vi, no fim do corredor do hospital, a imagem de uma santa. Por vá-rios minutos, nos encaramos. Cheguei perto e ajoelhei-me. Naquele momento senti como se ela me abraçasse. Não rezei, porque não sabia nenhuma oração de cor. Apenas pedi para que meu marido fosse salvo: “Me ajuda, Maria”. Aos seus pés, chorei.

Um mês após o acidente, o marido de Maria de Lourdes acordou do coma. Desde então, ela virou devota. Todos os anos, Maria vem me visitar, traz flores e passa horas na Basílica, agradecendo por tudo que fiz a ela. Seu mari-do ficou numa cadeira de rodas e, por isso, não vem para a procissão. Mesmo assim, são agra-decidos por eu ter dado a vida a ele de novo. Mal sabe ela que quem salvou seu esposo não fui eu, mas sim a fé que nasceu dentro de seu coração. Ela o abriu para Deus, entregou-se num momento de fragilidade.

Maria de Lourdes volta ao quarto, pega a imagem de Nossa Senhora Medianeira que deixou sobre o bidê. Passa protetor solar no rosto. O céu está nublado, mas a menina do tempo avisou na televisão que o dia seria de temperaturas elevadas. Coloca óculos escu-ros e sai do hotel. Chega à catedral a tempo de assistir a última missa rezada antes do início da Romaria.

A multidão vai tomando as ruas da cidade e se arrasta que nem cobra pelo chão. No for-migueiro de gente, inúmeras pessoas carregam velas gigantes. A vela é para a Mãe Medianeira – explica um dos romeiros – para que ela con-tinue iluminando nosso caminho.

No meio do trajeto, encontro um homem de testa franzida, sentado num banquinho de madeira, ao lado de alguns baldes com flores. Veste uma camisa rosa desbotada, com os bo-tões superiores abertos, que deixam à mostra os pelos brancos do peito; usa uma sandália preta e a calça de tecido marrom curta mal

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e, depois de um tempo, grita para o ajudante: – Olha lá, a senhora tá perguntando o preço da rosa. Vai lá, leva o balde.

Olindo e seu ajudante são alguns dos vários ambulantes que veem na romaria a oportunidade de ganhar dinheiro. Para isso, apelam a táticas de venda que, para muitos, parecem fajutas: flores abençoadas pelo papa, imagens da Medianeira vindas do Vaticano, pulseiras benzidas com água benta. E pelo trajeto, passamos por vários deles. Vendedo-res de pulseiras, flores, guardanapos de pano estampados com a imagem da santa, “santi-nhos”, terços, escapulários, água mineral. Os ambulantes que em outros tempos vendiam comida foram tirados do trajeto. Graças às reclamações dos romeiros, este ano a prefei-tura municipal decidiu colocá-los em tendas, apenas em frente ao Santuário.

João Pedro, cinco anos, é um dos romeiros. O menino de pele morena, cabelos pretos e cacheados, usa uma túnica branca que vai até os pés e, na barra, um bordado com linha dou-rada. Carrega em suas costas, com alguma di-ficuldade, as asas de algodão presas por uma armadura de arame. O traje de anjo deve-se a uma promessa de sua mãe. João nasceu pre-maturo, na época das festas de Natal. As com-plicações no parto fizeram com que o menino

ficasse durante dois meses na incubadora. Sua mãe rezava todos os dias para que Mãe Media-neira salvasse seu filho. O menino recuperou a saúde e o agradecimento veio em forma de promessa. João Pedro participará da romaria, vestido de anjo, até completar sete anos de ida-de. Assim como João, outros tantos meninos e meninas transformam-se em anjos no dia de celebrar as bênçãos de Medianeira. Assim como João, outras tantas histórias de penitên-cias são vistas pelo trajeto da Romaria.

É o caso de Simone. A santa-mariense cha-ma a atenção dos demais romeiros. Não por sua aparência – a moça tem os cabelos des-grenhados, rosto redondo, corpo robusto e aparência sofrida –, mas sim pela penitência a que estava submetida. A jovem de vinte e três anos percorreu o trajeto da procissão de joelhos. Apoiada por dois parentes, que lhe seguravam as mãos, Simone paga a promessa feita à Medianeira no início do ano. Sua filha, um bebê de seis meses, teve sérios problemas respiratórios. Desesperada, Simone pediu que Medianeira salvasse a menina. Em troca, iria de joelhos da Catedral à Basílica. A medida em que a procissão ia andando, Simone ficava para trás. Avançava alguns centímetros e parava. A dor nos joelhos era insuportável, mesmo que estivessem protegidos por panos e ataduras. “Chegarei lá e cumprirei a promessa”, diz Si-mone com os olhos cheios de lágrimas.

A procissão seguiu seu rumo. A voz que vinha do caminhão pedia para que as pessoas dessem as mãos e, em coro, rezassem o Pai Nosso. As demonstrações de fé e admiração por Mãe Medianeira não partiam apenas dos peregrinos, mas também das pessoas que, do alto dos prédios, acenavam para Nossa Se-nhora. Faixas com frases como “Eu agradeço, Senhor, pelo teu imenso amor!” ou “A von-tade de Deus é que recebamos tudo de Ma-ria” enfeitavam as sacadas. Balões nas cores branca e azul balançavam e, soltos no vento, faziam uma coreografia até subir aos céus. O termômetro marcava trinta e dois graus. De repente, começa a chover. Era uma chuva de pétalas de rosas, jogadas por uma senhora da sacada de seu apartamento.

Chego à Basílica cansada. Não tenho a viva-cidade de outrora. Antes de entrar no parque, para onde se dirige a procissão, paro em uma das tendas para comprar água. Dois jovens,

cobre o calcanhar rachado. Descasca uma laran-ja, enquanto grita “Rosas já benzidas por Ben-to XVI. Compre e seja abençoado!”. Pergunto quanto custam as flores e, com olhar desconfia-do, responde que posso levar duas por cinco re-ais. Tento conversar com o velho, de respiração curta e sobrancelhas arqueadas, que com cara de poucos amigos, diz que não tem tempo para jogar conversa fora. Estava trabalhando.

Olindo Gracioli é católico apostólico roma-no, como gosta de dizer, e trabalha como ven-dedor de flores há 49 anos. Sempre as vendeu na Romaria, mas a idade e as dores na perna o impedem de caminhar e oferecer as rosas para os romeiros. Para isso, conta com o apoio de um ajudante nanico. O rapaz corre de um lado pro outro, atacando os romeiros e oferecen-do as flores: “Linda, rosa linda! Também te-mos crisântemos. Quer levar senhora? É pra santinha”. Logo após vender uma rosa, volta à calçada e repete sempre a mesma ação: tira do bolso da camisa listrada um pequeno pente alaranjado, penteia o cabelo grisalho e olha-se no vidro da vitrina de uma loja.

– Onde tá a romaria?– Lá na esquina da Frizzo já, responde o

ajudante.O velho cospe a semente da laranja e res-

munga: – Ah, isso vai longe. Mira o horizonte

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carregando um grande isopor, abordam-me na frente do Santuário. Oferecem cerveja. “Três real, madame”. Recuso, afi nal, onde já se viu duas crianças vendendo bebida alcoóli-ca em frente a um templo cristão?! Acho que são coisas assim que me fazem não entrar em defi nitivo para a Igreja. Prefi ro continuar re-zando em casa, sozinha, para minha Mãe. Sigo em direção ao Altar Monumento, onde já se encontram os sacerdotes, um coral ao fundo e a imagem de Medianeira no centro. Dom Dadeus Grings, arcebispo da Arquidiocese de Porto Alegre, inicia a missa às dez horas em ponto, sob um forte sol de novembro.

As festividades em homenagem à Medianei-ra duram o dia inteiro. Fico até o fi m: assisto à missa da Saúde, à tarde, e à missa de encerra-mento, às oito da noite. Após o término, espe-ro as poucas pessoas que ainda restam sair do Santuário. O silêncio volta a reinar no templo. Caminho pelo vão entre os bancos. No alto do altar central, a pintura de um Jesus Cristo de braços abertos, pronto para acolher a quem pre-cisa. Faço o sinal da cruz e dirijo-me à direita do Santuário. Num altar menor, encontra-se Maria, Mãe Medianeira. Ajoelho-me e por alguns se-gundos encaro a imagem, como da primeira vez em que nos vimos. Peço para que proteja meu

marido, meus fi lhos e a mim. Mais do que tudo, agradeço. Uma lágrima escorre. Faço o sinal da cruz, levanto e sigo em direção à porta. Preciso voltar ao hotel, arrumar a mala para retornar a minha cidade no próximo ônibus.

O silêncio volta a reinar no templo. Uma mu-lher ajoelha-se aos meus pés. Encara-me com olhar resignado. Era Maria de Lourdes, que, como todos os anos, faz questão de ser a últi-ma a se despedir de mim. Ela agradece e percebo que uma lágrima escorre em seu rosto. Maria de Lourdes sai e as portas do Santuário são fecha-das. Volto à escuridão da minha morada, ilumi-nada pelo luar que entra pelos vitrais.

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a bordo 2 / tiro de bocha

A cancha de bocha se parece com um quadro de Van Gogh, toda pincelada pelos tiros. Seu João, quando dá seu tiro, coloca uma perna para trás e dobra a da frente. Abre bem as duas mãos e agarra a bocha mexendo os pulsos e fazen-

do com que a bola sinta-se acariciada para cumprir o seu papel. Tum, tum, tum, plact! Bum! Três passos em corrida, o arremesso e a bocha que se choca contra a adversária, até então em posição de vantagem, e voa de encontro à parede de madeira da cancha do meio do Clube Es-portivo. O time a que seu João pertence é o Atiradores. Veteranos. Um com menos de 49 anos e os outros acima de 50. Seu João tem 54 anos e nasceu em sete de março de mil novecentos e cinquenta e cinco. Ho-mem magrinho, de braços longos, óculos de grau com grandes aros a frente de seus olhos azuis, barba curta que invade o pescoço, barba que faz um bigode e contorna sua boca de fala rápida. Quando Seu João apenas joga a bocha, ele junta seus dois pés, apoia sua mão esquerda na perna esquerda e lança com a mão direita. Essa última fica balançando e a outra se levanta ao ar esperando. Seus dedos estalam no compasso do rolar da bola e seus pés pequenos dão passos rápidos com paradas como alguém que fica espionando por trás de árvores que lhe impedem a visão. A concentração deixa o ambiente silencioso e surgem apenas exclamações enquanto a bola não chega, essa foi curta, curta, curta. Ai, ai, longa demais, passou, passou. Boa, boa bocha! É necessário precisar a força e ter experiência para pôr-se em ângulo certo. E é preciso que o espírito de competitividade não ultrapasse o prazer da diversão.

Isso é para diversão. Eu gosto de ir lá pra isso. Não brigar, não dis-cutir. Dar risada, fazer brincadeira, isso sim!

Pode-se dizer que a bocha é o oposto do futebol. E pode-se dizer que foi o futebol que levou Seu João Alberto Niederauer, bisneto do coronel que dá nome à rua do centro de Santa Maria, até a bocha. Hou-ve uma quebra no meio desse caminho. Uma literal quebra que o fez mudar de esporte.

Seu João é homem que não fica parado. A primeira impressão é de ser reservado e sério. Mas esconde assim um cômico. Talvez pelas suas origens que sua molecagem tenha se desenvolvido croni-camente, talvez por ser ele mesmo. Uma figura receptiva e que abre as portas de sua casa para conversar. Talvez pela mulher que há por trás da porta daquela casa, que se une a ele nas primeiras palavras e mostra uma intimidade e conforto que casais que passaram por muitas coisas juntos conseguem criar. Se chamam de “pai” e “mãe”. Sobremesas de chuchu e laranja e o refrigerante de uva e a pergunta que aquece quando é quase meia-noite: quer um cafezinho? Os cães vêm brincar e os gatos que se escondem nos cômodos da casa des-confiam em sua preguiça.

Sempre sorrindo com os dentes de baixo em predominância, conta suas peripécias com muito humor, até levanta-se da cadeira, gesticula, faz as caretas, relembra as dores e esquece as datas e os anos que dona Rosane, sua esposa, recorda.

Olha que é muita coisa, hein, não vai dar pra falar tudo não!Nasci lá no Boqueirão, hoje é um distrito, morei lá até os dois anos,

depois fui para Val de Serra e fiquei lá até os seis anos, aí Júlio de Cas-tilhos, onde eu morei até os nove anos. Em São Martinho da Serra eu fiquei até os 19 anos.

PLACT!

Por: Caren Rhoden

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Crescido na liberdade de cidades pequenas, ele conseguiu aprontar e passar por perrengues que hoje não possuem a mesma gravidade do que quando ocorridos. E ele vai falando da sua infância e dos afazeres e instrumentos rudimentares utilizados.

Tinha uma mula, mas era uma mula bem forte, se colocasse o boi ela até puxava ele, en-tão a gente enchia de lenha na carroça e ela andava. Só estudei o primeiro grau, a gente trabalhava mais com essas coisas de agricultu-ra. Usava o arado de tatu, sabe como é, já viu um? E saraquá, que vai largando as sementi-nhas de milho, ou feijão dentro do buraco. Eu, com dez anos, peguei o caminhão do meu pai que transportava alfafa, coloquei umas almo-fadinhas e saí dirigindo, já imaginou se faz isso hoje em dia?

E a única coisa que eu não quebrei foi a, deixa eu ver, a perna direita. O resto quebrei tudo, sabe como é.

O braço direito quebrei caindo de uma laranjeira, o esquerdo foi quando caí de um

cavalo. A cabeça eu rachei uma vez enquanto brincava. Tava na frente de um poço, daqueles antigos, de uns 15 metros de profundidade, com balde e manivela, dando soco e brigando, mas tudo de brincadeira, com um amigo meu, e eu acertei ele e ele veio pra me devolver e eu fui sair do soco e bati a cabeça na manivela. Abriu a cabeça e começou a sangrar muito. O guri, assustado, saiu correndo e eu fiquei ali desmaiado. Passou um senhor e me viu deita-do naquele monte de sangue e me levou pra fazer uns pontos. Aí fiquei bem.

E dona Rosane complementava contando.

Se bobear foi o homem que mais levou in-jeções. Conta pra ela.

Sim, a gente carregava lenha né, aí tinha aquelas formigas bem grandes – e mostrava com os dedos um espaço de uns cinco centí-metros – e elas picavam e eu tava sentindo meu tornozelo coçar muito, uma ardência, uma dor e começou a me dar uma tontura e eu falando, mas como isso arde! De repente um dos que estavam comigo deu uma marretada e levantou aquela cobra, me mostrou e disse: tá aqui a tua formiga! Me levaram pra tomar leite com alho e colocaram brasa na picada, mas não adiantou. Começou a jorrar sangue de tudo – e passava as mãos nos olhos – do olho, dos ouvidos, dos dentes, do nariz. Aí viram que eu tava morren-do, tinham que me levar prum hospital.

É, esse aí quase morreu, essa vez foi por pouco – diz dona Rosane.

Lá no hospital achavam que eu não ia sobre-viver, magrinho como eu era, deitado ali. Levei, só de chegada, 50 injeções ao redor do umbigo, depois, mais 150 injeções em tudo que é lugar,

até no bumbum. Fiquei bem depois. Imagina só, 200 injeções mais as que ele to-

mou depois quando quebrou a perna. É. Hein, mãe, ela não vai acreditar. Nós

somos primos-irmãos. É, as nossas mães são irmãs, a gente cresceu junto e daí, em 15 de dezembro de 1976, a gente casou, foi o melhor emprego que arrumei na minha vida.

É que Seu João não era muito de parar em emprego. No quartel ele ficou dos 19 aos 21 anos e, apesar de gostar bastante e de fazer um pouco de tudo lá, largou. Outro lugar que durou pouco tempo foi quando trabalhou pra

Brahma. Quinze dias entregando caixas e cai-xas de cerveja pra festas como as do Comercial e depois não quis saber mais.

Mas tinha uma coisa que não era substituída nunca: o futebol.

Sou colorado, sabe, mas não gosto mui-to de vermelho, pode ver, hoje tô de preto, e gosto, gosto muito de azul, de preto, mas não gosto de vermelho.

A Oficina Nossa Senhora do Trabalho exis-tiu por 16 anos em um grande galpão de 80x40. Era uma sociedade dele e de um primo de dona Rosane, Luis Ramires. Com esse trabalho de mecânico adquiriu muita experiência e hoje monta um motor sem precisar de aparelhos de grande desenvolvimento tecnológico. Algumas ferramentas rudimentares são o necessário.

Sabe, o que eu vejo é que esses jovens da universidade entendem muito de teoria, mas não tem prática nenhuma. Eles nem entendem o que tão vendo ali na frente deles. Tem coisas que só muito tempo de repetição consegue.

Dessa oficina surgiu o time de futebol que, é claro, Seu João jogava e na posição de golei-ro. Com um ano de casado, pode-se dizer que se fez aí a parte mais complicada da vida de Seu João.

Em um torneio, no final do jogo, ele lan-çou a bola e um velhinho chutou a sua per-na. Trincou. Parecia que iria ficar por isso mesmo, mas prosseguiu.

No domingo, a gente tava jogando em Val de Serra, quatro minutos e meio do primeiro tempo, levei outro chute.

Plact! Não era um tiro de bocha. Gritavam para seu João não por o pé no chão. Tinha sido um som muito alto, parecia um tiro. A perna estava quebrada e Seu João não sentia nada, nem conseguia entender o alvoroço que se ins-talara. O osso parecia ali, forçando a pele para fora, pedindo para sair.

Plact! Era o som de um tiro. Matavam o fu-tebol. Não seria mais possível correr e gritar e chutar a bola.

“No hospital achavam que eu não ia sobreviver. Levei 50 injeções ao redor do umbigo, depois mais 150 injeções em tudo que é lugar.”

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A primeira cirurgia foi feita sessenta dias dei-tado na cama assistindo televisão, sem dormir à noite. Quando tirou o gesso teve que ir até a loja e comprar um outro aparelho, já que, de tanto fi -car ligada, a antiga televisão pifara. Indo pagar a primeira prestação sentiu uma dor.

Mas o que é isso? eu pensei. A perna conti-nuava quebrada. Na primeira cirurgia colocaramum parafuso em um lugar que nem tinha pro-blemas. Continuava lá, quebrada. Aí, por uns amigos, cheguei a um bom médico que fez a segunda cirurgia. Dessa vez deu tudo certo. Coloquei duas placas de prata e dez parafusos.

E quando ele morrer, fala rindo dona Rosa-ne, sou eu que fi co com a perna!

Mais nove meses de paralisia para Seu João. Dava tempo até para ter um fi lho. Era o joga-dor de bocha que se preparava para ser parido? Era, mas ninguém sabia.

Ah, eu me virava cuidando da casa, das crianças, e ele sem poder fazer muita coisa.

Teve uma vez que eu peguei a bengalinha e saí de carro. Acelerava com ela mesma, não aconteceu nada.

E tem que ver como essa perna gela no inverno, conta dona Rosane, encosta em mim e deusulivre, aquele gelo só, por causa do parafuso, né.

Então, tendo de abdicar de seu esporte pre-ferido, e que o é até hoje, Seu João encontrou a bocha. Trinta anos de experiência. Dona Ro-sane joga há dezesseis. Desse tempo todo vie-ram muitas medalhas e muitos troféus. Os dois foram campeões no jogo misto, e deixam à mostra, na casa, alguns dos troféus, os outros eles guardam.

Junto da casa está a Ofi cina, a nova. A Ofi -cina do Fininho, que é só dele desde 1993. João Alberto Niederauer, microempresário. O fato é que ele também sempre gostou muito de ser mecânico. E motorista. Enquanto trabalhava como bico, nessa última profi ssão, conheceu lugares como Punta del’Este e Florianópolis.

Conheço aquelas praias como a palma da minha mão. Viajei muito pra lá.

Na ofi cina tem um toca-discos e fi tas. A Jovem Guarda está em peso. Rei Roberto Carlos, Erasmo, Wanderléa. Músicas serta-nejas e bandinhas.

Só não gosto de música gaúcha. Discos estão guardados porque a agulha

não funciona. Então, Seu João liga o rádio.Escuta só, o som é perfeito. Aquele ruído de rádio antigo parece trazer

um clima saudosista para a Ofi cina. Na mesa do Seu João microempresário tem um relógio muito antigo que soa alto quando desperta. Relógio do pai dele, diferentes dos de hoje, que estragam por qualquer coisinha. Relógio feito pra durar. Marcar o tempo até que o tempo acabe. Relógio pra ter uma vida, numa vida.

É uma pena – fala Rosane melancólica – eu queria ter alguém pra deixar a ofi cina. Tem tudo ali, tudo que precisa. Mas ninguém quer. Eu tentei convencer meu primo, disse que era só ele querer, que ele aprendia rápido. O que vamos fazer com isso depois? Eu sou mãe de três fi lhos, mas só tenho o casal. A minha menina (Lucélia Juliane Niederauer, nascida em 1977) só pensa em estudar. Ela é formada

em matemática e agora está se especializando. Disse até pro pai dela estudar que agora ele não precisa mais fazer vestibular, né. Só pensa em estudar, vive com os livros, tem que só ver como é boa com os números. O outro, o meu menino, o Daniel (Carlos Daniel Niederauer, nascido em 1979) é defi ciente. Meu menino não pode, né.

O terceiro fi lho fi ca perdido. Fica em al-gum buraquinho que parece doer. Melhor não falar, né, pai. Tem coisas em que é melhor não mexer.

Dona Rosane fi cou com os olhos mareja-dos, seu João não falou muito, preferiu man-ter o silêncio, com um sorriso entristecido foi buscar a chave do carro para buscar a fi lha que esperava na rodoviária. Plact!

E uma bola começou a rolar em direção ne-nhuma. Ela só rolava, rolava. Seu João puxava a calça, estalava os dedos. Pra onde vai, será que para, será que passa, será que está na medida?

Cada força vem de uma outra força e a bola rola. Esse parece ser o mais importante ali. A bola continua rolando cheia de seus trejeitos de sua doçura lenta. Vai sorrindo e delicada a bola. Vai pegando um pouco da sujeira e se re-frescando com a brisa que a atinge. Tum, Tum, Tum. Plact!

Olha só, o Negão. Ô Negão, onde tava Negão?Esse é o nosso gato, tem mais um que deve

estar dormindo por aí.

“Seu João tem um relógio muito antigo que soa altoquando desperta. Relógio feito pra durar. Relógio pra ter

uma vida, numa vida.”

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à deriva / montevidéu

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rotas 4 / veteranos atrás da bola

Amadores do futebol

Por: Hilberto Prochnow Filho

M anhã fria de inverno, 28 de julho de 1984. Na noite ante-rior, em Avellaneda, o Club Atlético Independiente em-patou em 0 a 0 com o Grêmio e conquistou o seu sétimo título da Copa Libertadores da América, principal torneio

de futebol do continente. Naquele dia, as conversas entre muitos adoles-centes nascidos na região de Santa Maria entre 1965 e 1970 devem ter sido assim:

– É... não deu para o Grêmio... Morreram na praia. Adeus bicampeo-nato...

– Até que não jogamos mal ontem. O problema foi ter perdido o pri-meiro jogo da final no Olímpico lotado por 1 a 0... Lá na Argentina a gente sabe que não é fácil...

– E esse time do Independiente é copero mesmo. Agora eles são hep-tacampeões. Já pensou? Sete Libertadores...

– Ganharam a Libertadores em 1964 e 1965 e depois mais quatro se-guidas: de 1972 a 1975.

Goyén, Clausen, Villaverde, Trossero e Enrique; Giusti, Marangoni, Bochíni e Burruchaga; Bufaríni e Barberón. Estes são os jogadores do Independiente que iniciaram a partida de ontem. E no Grêmio atuaram, entre outros, Baidek, De León, Casemiro, China, Osvaldo, Renato e Tar-ciso, campeões mundiais e da América no ano anterior.

– Mas acho que o problema do Grêmio foi o técnico. Com o Carlos Froner não dá.

Muitos daqueles adolescentes tiveram o sonho de ser jogadores de fu-tebol profissional. Pouquíssimos conseguiram. Mas o futebol continuou, continua e continuará fazendo parte de suas vidas.

***Santa Maria. Tarde quente de sábado, 4 de dezembro de 2010, campo

do Novo Horizonte. Independente e Independência vão fazer a partir das três e meia o jogo de volta das quartas-de-final da 23ª Copa Amizade de Futebol Veterano, categoria 40 anos (atletas nascidos entre 1965 e 1970). No primeiro confronto, vitória do Independente por 2 a 1. O Indepen-dência precisa ganhar por um escore mínimo de dois gols para se classifi-car às semifinais.

Mas eles sabem que a tarefa não será fácil. Os comentários que se ou-vem nas rodas de conversa sobre o futebol amador exaltam a campanha do Independente dos 40 anos. Na fase classificatória, ficou em 1º lugar,

invicto, com 11 vitórias e 3 empates, 60 gols marcados e 14 sofridos. Pos-sui o goleiro menos vazado e os dois artilheiros da competição: Sandro Gaúcho e Gringo.

Já o Independência foi o 8º, ou seja, o último colocado, com 6 vitórias, 2 empates, 6 derrotas. Fizeram 36 e tomaram 34 gols.

- O Independente não perde, se não me engano, desde setembro de 2009, aquele 2 a 1 para o Imembuy, quando eles tinham só doze cara para jogar e o juiz foi muito mal naquele dia – fala um bem-informado torcedor, que acompanha todas as estatísticas e os resultados do futebol amador de Santa Maria no site do professor Pedro Luís.

– Tu viu que eles escreveram ali nas costas das camisas de passeio os títulos que eles ganharam agora por último: campeão da Copa Verão, Copa Diário, Copa Amizade e Copa Prefeito? E em cima: “Campeão de Tudo 2009”.

– O jogo de volta é lá no Novo Horizonte, não é? Acho que vou lá dar uma olhada...

O local da partida pertenceu há 48 anos ao Mercúrio. Mas depois que a transportadora, dona do time, foi adquirida pela estrangeira TNT em 2007, acabou o futebol e o campo foi cedido para a Sociedade Esportiva Novo Horizonte, do presidente Roberto Jucelino Ruy, militar do Exército. O portão de entrada fica no encontro das ruas sem calçamento Dr. Mário Salvador e Sílvio Ângelo Cauduro, no Bairro Medianeira. Na verdade, é uma passagem estreita entre arbustos e a tela de uma residência. Em cima, uma placa branca, mas já encardida, identifica o local: “Estádio Novo Ho-rizonte”, escrito em letras laranjas. Abaixo, o escudo do clube em forma de elipse. E na parte inferior da placa, escrito também em laranja: “Enti-dade Fundada em 1º de Janeiro de 1997”. Fixado à tela, um banner avisa que é cobrado R$ 2,00 de estacionamento no pátio do estádio, que servirá de ajuda para a manutenção das categorias de base do clube.

– Tu viu que o Independente já começou a sentir a falta do Beck no último jogo. Bei! O Beck joga muito. Acho que era o melhor jogador nos 40 de Santa Maria.

– Mas é militar, sargento do Exército, sabe como é... Transferiram ele para Altamira, lá no Pará.

– Esse cara, baixinho, franzino, sabe driblar, chuta de direita, de es-querda, corre que nem um louco o tempo todo em campo, marca firme, toma pau o jogo inteiro, faz gol...

independente do resultado

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– Parece que o Independente até imortalizou a camisa 7 dele. Ninguém no time vai jogar mais com a 7 do Beck.

– Mas tu viu que se o Independente chegar à final eles tão querendo fazer uma vaquinha para pagar a viagem e trazer ele para jogar a final?

Ao cruzar o portão do estádio, à direita, há uma construção que abriga os banheiros: uma porta verde-escura com o pronome “elas” em branco. E, ao lado, o masculino. Esta constru-ção, já bastante desgastada, foi pintada na me-tade superior de branco, vermelho na inferior e uma faixa verde entre ambas. Ali também fica a copa: local administrado por Moacir de Lemes, um senhor parrudo, de estatura media-na, cabelos negros, vestido com uma camisa branca com a inscrição “Rádio Santamariense” à altura do peito, no lado direito; e à esquerda, o desenho de uma bola de futebol sobre um “S” estilizado. Uma calça de abrigo vermelha do Inter remangada até um pouco abaixo do joelho e chinelos brancos compõem o seu fi-gurino. Sua fala pausada e forte deixa exposto o seu único dente na parte inferior.

Ex-atleta e irmão de um dos fundadores do Mercúrio, Seu Moacir viu o time sub-12 do seu Inter de Porto Alegre jogar ali no dia 26 de novembro passado contra o Novo Horizonte, partida de ida válida pelo campeonato estadual da categoria. Impressionou-se com a diferença de nível físico e de estrutura oferecidos pelo time da capital, que em menos de 10 minutos vencia por 2 a 0 e a partir daí ficou só tocan-do a bola. E para não haver uma humilhação maior, colocou os reservas durante o resto do jogo. Sobre o nível físico dos guris do Novo Horizonte, Seu Moacir considera “muito fra-quinho, bei tá loco!... Por isso quando eles vão lá, eles não fecham... Acostumadinho a comer uma asinha de galinha, arroz, feijão... E quan-do come, entendeu? Aí chega aqui, eles pegam aqueles touro que vive ali dentro, comida na hora certa, todos comem o mesmo tipo de co-mida, dormem na hora... Ah, não tem graça!... Tu tem de cuidar desde menino, senão...” Seu Moacir ainda não sabia o resultado deste jogo, que ficou nos 2 a 0: “Acho que tomaram uns vinte... não, não, eles não botam... é... eles não humilham... eles sabem que é criança. Até nem perguntei... o Ruy teve aqui hoje... nem per-guntei quanto tinha levado... não tem como encarar, bei tá loco! São muito fraquinho.”

O ônibus que trouxe a delegação colorada não conseguiu entrar no Estádio e ficou esta-cionado ali na rua, próximo ao portão. “Bei! um ônibus de dois andar daqueles... os gurizinho se apaixonaram. Tinha um que chorou quando ga-nhou uma bola do pessoal do Inter... Fiquei até com uma pena de ver aquilo...”

Mas é raro um “time grande” ir jogar ali. Este campo é cenário de partidas dos campeonatos amadores de Santa Maria, além dos jogos do Novo Horizonte, que o cedeu para o Indepen-dente. Ainda sem um campo próprio, a Associa-ção Recreativa Cultural Esportiva Independente Futebol Clube, fundada em 1º de maio de 1997, tem a sua “sede provisória” situada na Rua Adão Gastavino Neves nº 380, Vila Jóckey Clube. Tra-ta-se da residência de seu presidente, Claudiomir Pereira da Rosa, sargento da Brigada Militar, que trabalha no hospital desta instituição.

A diretoria também é composta em grande parte pelos irmãos “Souza Machado”.

Luís Carlos de Souza Machado, o Maria, é o vice-presidente e quem está sempre nos jogos. João Batista de Souza Machado é o diretor de esportes e técnico do time na categoria 40 anos. Agora, o Independente disputa campeonatos de veteranos nos 40 e 45 anos. O departamento de 35 anos tornou-se muito oneroso devido ao cus-to com viagens e foi extinto.

Seu Moacir, quando o movimento na Copa dá uma parada, observa as partidas do Indepen-dente: “É difícil ganhar deles. Ganham e ganham bem. Até 11 a 0 já botaram aí. É parelho o time. O Sandro às vezes não joga merda nenhuma... fazer gol ele faz... é que ele joga demais... mas o dia que ele tá desligado... É difícil ganhar do Independente aqui dos 40 anos. É um grupo fe-chado, né tche... são tudo gente boa, o Maria, os guri tudo... são um monte de irmão... o Ruy ce-deu o campo para eles”. Assim, o Estádio Novo Horizonte é até agora a casa do Independente e Seu Moacir é o “nosso copeiro, cuida do campo, frita pastel, busca a bola... faz tudo”.

- O João deu uma inventada no último jogo. Saíram jogando no 3-5-2. O time não tava acos-tumado a jogar assim e tu viu que no primeiro tempo foi uma dificuldade contra o Indepen-dência.

- É... daí no segundo tempo voltou ao esque-ma antigo e logo fizeram 2 a 0. Mas deram uma ratiada e no final tomaram aquele gol.

- Mas não adianta, o Independente sempre

acaba ganhando no preparo físico. – Além do mais, eles jogam junto faz tempo.

A base do time joga desde os 35 anos, quando a maioria jogava no Grêmio de Subtenentes e Sargentos.

– Com esse calor desgraçado, tu vai ver que no segundo tempo o Independente vai passear.

Seu Moacir coloca mais garrafas de cerveja no freezer. “Mas quem é que vem jogar aqui hoje mesmo?... Ah, o Independência?... Às três e meia?... Eles têm um uniforme bonito, todo azul, que nem o do Cruzeiro, bom time, bom time”. Dentre as “estrelas” do Independência, está Toninho, meia-atacante, o camisa 7 que, di-zem, já foi jogador do Telê Santana e do Amé-rica do México; e o atacante Polga, de Santiago, que seria primo do Ânderson Polga, ex-Grêmio, pentacampeão mundial em 2002 pelo Brasil. “É... então daqui a pouco eles começam a che-gar. Até agora não chegou ninguém”, diz Seu Moacir voltando a sentar em sua cadeira recliná-vel colocada à sombra, na frente da Copa.

Duas e vinte da tarde. “Ó... esse aí que che-gou é atleta...” É um mulato de aproximada-mente 1m80cm de altura, transparecendo tran-quilidade, cabelo baixo, de óculos, vestindo uma camisa preta com detalhes em dourado, que pa-rece ser a do Clube do Remo; e uma calça de abrigo vermelha do Independente FC escrito ao longo da perna. Carrega consigo uma sacola preta pendurada ao ombro esquerdo por uma alça. Seu nome é Nélson Ribeiro de Lima, o Nelsinho, 43 anos, lateral esquerdo do Indepen-dente. Saiu meio dia e trinta de Nova Esperança do Sul, de carona no carro do Edgar, que joga às cinco e meia nos 45 anos. Nelsinho trabalha de segunda a sexta-feira na fábrica de calçados KR, naquela pequena cidade localizada a 150 km de Santa Maria. “Eu só monto a bota, mas não faço a costura... quem faz é o patrão”. Enquanto espera o horário do jogo, lembranças do baile daquela madrugada no interior de São Francisco de Assis vêm à sua mente. Nelsinho foi o gaitei-ro de um conjunto que animou da meia noite às duas horas os seus conterrâneos de “São Chico” e redondezas. “Aprendi a tocar gaita só ouvindo no rádio”.

Três horas da tarde. “Ó... esse aí é zagueiro... dá bico pra tudo que é lado...”: um sujeito de cerca de 1m75cm, magro, “raquítico”, camisa de física, calção e chinelos, pele queimada do sol, já descascando nos ombros e com uma voz forte.

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Aédson dos Santos Peterman é o Zen, zaguei-ro que atua pela esquerda no Independente. Passa a semana lidando com tijolos, cimento, areia, madeiras... É pedreiro no Residencial Lopes, onde mora.

A partir de agora começam a chegar a maio-ria dos jogadores, tanto do Independente quan-to do Independência. É a única vez na semana em que se reunirão. Não fazem treinamentos durante a semana, apenas alguns jogam futebol--sete ou futsal com outros amigos uma ou duas vezes no período, sempre depois do serviço. Então, nos sábados à tarde há um momento de confraternização, de reencontro, de contar cau-sos, de lembrar o jogo passado, a campanha no campeonato e “de liberar o estresse da semana”.

Quem chega animado, bem falante, com seu andar um pouco encurvado, alguns cabelos já grisalhos, olhos azuis, dentes da frente um pou-co salientes é Régis Costa Assumpção, o Pirica, volante, camisa 5 titular do Independente. Tra-balha há 18 anos em um escritório de contabili-dade localizado no andar superior do edifício Isi-doro Grassi, de cor azul, na Rua Venâncio Aires nº 1962, em frente a Praça Saldanha Marinho. O acesso ao local se dá por uma extensa esca-da. “Sempre trabalhei em contabilidade. Não fiz curso. É a facão mesmo, como se diz”. O escri-tório, dividido com José Valmir da Silva, “ele sim é formado”, cuida da parte trabalhista (rescisão/admissão) e fiscal (lançamento de notas).

– Dá um refri gelado pra mim... - pediu o Zen ao Seu Moacir.

– Começou a abafar de novo...– Como é que tá Pirica, tá bem hoje? - per-

guntou Eduardo, depois de chegar sorridente, cumprimentando a todos.

– Tranquilaço... agora com esse calor não tem como tá bem.

– Eu, como jogo mal, jogo em todas. Só de zagueiro e goleiro é que não, por causa da altura – justifica Eduardo ou Oscar Eduardo Guasta-vino, camisa 6 do Independente, reserva, mas “o coringa”, e durante a semana, analista de vendas da AL Distribuidora de Medicamentos. Sempre que dá, por volta do meio-dia, costuma fazer uma corridinha e tiros de 40m no campo do Imembuy.

No canto esquerdo da copa há uma pia com um bule e potes em cima. Ao lado, um fogão velho de duas bocas, uma televisão pequena, e sobre o freezer branco copos plásticos ensaca-

dos e um aparelho de som.Marina Mainardi. A sequência de três músicas gauchescas da Rádio Nativa FM é interrompida pelas mensagens pu-blicitárias entoadas pela voz de Cláudio Zappe. Há uma prateleira fixada à parede do fundo, so-bre a qual estão outros potes de vidro, de tempe-ros e pranchetas prendendo papéis manuscritos. Uma imagem de Santo Expedito também está pregada com um percevejo em sua borda.

– Chegou os atleta do exterior... da área me-tropolitana de Toropi City... - exclama gritando Pirica ao passar buzinando um Volkswagen Polo cor cinza escuro metálica com placas de Toropi--RS. Na direção vem Guinter Engroft Scholz, um típico descendente alemão que mora no interior. No Passo do Julião, próximo a Toropi, para ser mais preciso. Guinter, camisa 11, late-ral esquerdo reserva do Independente, cabelos loiros, pele muito branca, olhos azuis, durante a semana semeou milho e soja e cuidou da criação de porcos, galinhas e vacas em sua propriedade

rural. De carona com ele vieram Sandro Ivori de Mello e Altemir José Bassoto, ambos bombeiros em São Pedro do Sul.

Anexo à copa, mais ao lado, com janelas gradeadas, fica o quarto onde Seu Moacir dor-me. Ele também vigia o Estádio à noite. Mais adiante, encontra-se praticamente pronto um vestiário novinho, todo coberto de azulejo bege, com três chuveiros, pia e vaso sanitário. E há sinais de que mais obras estão sendo fei-tas: uma quantidade enorme de entulho (res-tos de argamassa e principalmente pedaços de madeira de vários tamanhos) ocupa espaço no corredor por onde passam os personagens do futebol, quando chegam ao local. O presidente Ruy consegue mão-de-obra com detentos do presídio ali próximo que fazem o serviço ge-ralmente aos domingos. Já o campo de jogo é cercado por uma tela sustentada por pilares de concreto que o separa deste corredor. O piso é um pouco irregular, com grama alta em vários

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pontos e as linhas demarcatórias são verdadei-ros buracos para ali se colocar a cal.

José Arlindo Resta Ferreira chega ao estádio pilotando uma moto. E é em outra, de cor bran-ca, marca Yamaha, identificada com o nº 09 e com o brasão de Santa Maria, que ele, o agente municipal de trânsito Ferreira, anda há oito anos pelas ruas do município fiscalizando, fazendo escolta, notificando acidentes ou conduzindo carreatas. Mas no mundo do futebol, seu nome é Sapo, o lateral direito, que atuou em todos os jogos do Independente no campeonato.

Também de carro, mais dois jogadores do In-dependente chegam ao estádio: o goleiro Cézar Kneipp, dentista, um alemão alto, cabelo ruivo, possui consultório em Agudo, na Avenida Con-córdia, em frente ao Banrisul. Casado com a filha mais moça da falecida D. Diva Brandina Poetter Schorn (conhecida de todos, pois trabalhava no cartório de registro civil de lá), o arqueiro menos vazado do campeonato, cuidou dos dentes de

muita gente no interior de Agudo, pois durante cinco anos trabalhou no Programa de Saúde da Família, o PSF; de carona vem Cléber Rossato, zagueiro pela direita, o camisa 4, que tem o Pon-to Bar 206, no Quiosque da Praça, no centro de Nova Palma. “Trabalho lá com a mulher e três, quatro empregados. A gente não ganha muito, mas dá para viver. Eu venho de carro até Polêsi-ne, pra esperar o Cézar” - conta, com um forte sotaque italiano.

Às três e dez aparece o técnico do Inde-pendente João Batista dirigindo o seu Corolla, azul-marinho, vestindo uma bermuda longa, um boné e uma camisa branca do time com uma faixa horizontal vermelha, o escudo com o desenho de uma águia e, às costas, o nº 45 e seu nome.

– Pô... isso é hora do treinador chegar! – ex-clama brincando o Pirica.

O João, pele bronzeada, já um pouco calvo, olhos de índio, durante a semana é vendedor da

Constinta (empresa de tintas e produtos para pintura, na filial da Avenida Nossa Senhora das Dores). Passa o dia atendendo clientes e fazendo entregas de moto pela cidade.

– Olha lá... o João já foi direto falar com o juiz. Alguém sabe quem apita hoje?

– Parece que é o Oliveira.– Ei! Bota cara chato aquele... Dá cartão pra

tudo!Com a chegada do técnico, os atletas come-

çam a se fardar para o jogo. O local escolhido é a sombra de um eucalipto localizado em uma extremidade do corredor, onde estacionam os carros. Cada um fica responsável pelo seu far-damento: calções, meias e a camisa vermelha, “marca Nike”, gola amarela, uma faixa branca horizontal um pouco acima do peito delineada em amarelo e na cor branca o número e o escu-do com a águia. Nas costas, estão o patrocínio da Constinta e da Sinalcar, o número e, na maioria dos jogadores, o seu nome personalizado.

– O Goiás vai fazer o crime lá, rapaz – pro-jeta Rogério Silva da Luz, o Zeca, camisa 14 do time, jardineiro do capitão do Exército João Bortoluzzi, com intenção de provocar os gre-mistas por perto. Ele se refere ao jogo de quar-ta-feira entre Independiente e Goiás, em Avella-neda, pela final da Copa Sulamericana, em que o título da equipe argentina dá uma vaga para o Grêmio na Copa Libertadores de 2011.

– Não sonha, não sonha. - contesta Pirica, fa-zendo sinal negativo com a cabeça.

– Mas bota ruim aquele time de lá, o Inde-pendiente, tá loco! - na avaliação do Sapo.

– É... mas lá eles vão fazer tumulto.. vão fazer de tudo. É a previsão feita por Zen.

– No jogo daqui, o Goiás também achou dois gols bruxo daqueles! – Sapo recorda.

– Qualquer um dos dois não ganha de nós na Recopa. Apesar que o meu time tá ruim tam-bém. - admite Zeca.

– Vamos gurizada, já é quase três e meia, va-mos pro campo...

– Mais cadê o Sandro? Ainda não veio?– Tá lá ele. Tá chegando agora, em cima da

hora, como sempre.Sandro Preigschadt, o Sandro Gaúcho, arti-

lheiro do campeonato, camisa 9, e agora também o capitão do time com a saída do Sérgio Iran Beck, estaciona sua moto Honda e começa a co-locar o uniforme. Ex-atleta profissional, jogou em vários clubes do país. Destacou-se principal-

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mente no Fortaleza, do Ceará. Hoje trabalha de motorista da Marquetto Agropecuária, fazendo entregas.

– Apura aí, Sandro!Agora sim, todos os atletas estão em campo.

São três e quarenta da tarde. Os jogadores do Independente fazem um círculo junto com o técnico. Ele inicia uma breve preleção, alertando que o jogo é eliminatório e pedindo atenção do início ao fim, para se impor desde o começo e jogar sério e concentrado. João lembra que no último duelo, em vários momentos, o Indepen-dência esteve melhor do que eles.

– Talvez muitos de nós estão achando que esse jogo já tá jogado... – começa a falar o capi-tão Sandro Gaúcho....

– Não! Não! Não!... – respondem todos.– ... Mas é nesse tipo de jogo que geralmente

um time se complica. Os cara saem na frente, seguram o jogo e aí começa o desespero... vamos cuidar isso...

O técnico João passa mais algumas instru-ções, orienta a marcação sobre Toninho e Polga e o Pai-Nosso é rezado por todos em voz alta.

– Mas quem é que vai sair jogando, João?... Ainda não sei se jogo ou não... – pergunta o la-teral Sapo.

– Tá aqui o time. Pirica e o Sandro mais atrás. – João mostra um bloco de anotações com a es-calação do time: 1 Cézar; 2 Sapo, 4 Cléber, 15 Zen, 22 Nelsinho, 5 Pirica, 10 Sandro, 21 Bas-soto, 8 Miro, 12 Gringo, 9 Sandro Gaúcho. Os reservas são: 14 Zeca, 27 Pica, 6 Eduardo, 25 Guto, 20 Giba, 11 Guinter, 45 Ben-Hur e 18 Kalu.

Quinze para as quatro da tarde. O árbitro Paulo Oliveira, homem de baixa estatura que também trabalha de repórter na Rádio Imem-buí, pede para que na casamata dos times fiquem somente os reservas, o treinador e o massagis-ta. Dirigentes e torcedores tem de se retirarem. Os jogadores do Independência discutem com Oliveira e o resultado é a aplicação do primeiro cartão amarelo antes de começar a partida, o que deixou os de camisa azul mais irritados ainda.

Começa o jogo às dez para as quatro. Decor-ridos dois minutos, o Independente tem uma falta no lado esquerdo de ataque. Nelsinho toma distância, parte em direção à bola, chuta de pé esquerdo com força. A bola ganha altura e cai bem na cabeça de Sandro Gaúcho, dentro da área. Ela toma a direção de Gringo, que a ajeita

com o pé esquerdo e com o direito chuta para o gol: 1 a 0 – vibram os de vermelho. Gringo é Carlos Leandro Machado, um baixinho franzi-no, com um princípio de calvície, ágil e ligeiro em campo. Fora dele, trabalha no almoxarifa-do do Hospital de Caridade Dr. Astrogildo de Azevedo. Lá é o Carlinhos, que faz a reposição diária do estoque de medicamentos na farmácia da instituição, emite relatórios deste movimento, confere a chegada das mercadorias e as coloca separadas em prateleiras específicas: soros, am-polas, comprimidos. E os “controlados” ficam em um armário fechado.

A segunda vibração no campo do Novo Horizonte veio com 35 minutos de jogo. O sar-gento Claudiomiro Trindade, o camisa 8 Miro, mais um bombeiro neste meio-campo do In-dependente, junto com Sandro e Bassoto, mas que atua na parte administrativa da Corporação em Santa Maria, fez um lançamento para Sandro Gaúcho que se deslocava livre de marcação para o gol. Recebeu a bola, driblou o goleiro e 2 a 0 no placar.

O primeiro tempo termina e o desejo dos jo-gadores é procurar uma sombra e tomar água. Os do Independente vão para debaixo de uma árvore atrás do gol, que fica no lado dos aparta-mentos de um residencial.

– Como é que tu me perde um gol daqueles, Gringo?

– Peguei mal na bola.– E o pior foi o Nélson que pegou o rebote e

chutou quase lá nos prédio.– Agora no final aquele do Sandro... Deus

que me perdoe... – Esse jogo já tá morto. Eles têm de fazer

quatro... – Sapo fala com tranquilidade.E é verdade. Todos do Independente sabem

que no segundo tempo o preparo físico do time vai fazer a diferença. No primeiro, o goleiro Cézar foi pouco exigido. O lance mais perigoso foi uma falta cobrada no travessão por Toninho. A defesa com Cléber e Zen esteve segura. Os laterais Sapo e Nelsinho vão bastante para o ataque, mas às vezes deixam espaços atrás. Pirica é o batalhador do meio-campo. Sandro o ajuda na marcação. Bassoto é que esteve um pouco lento e Miro foi figura discreta no jogo. O Gringo se movimenta muito e o Sandro Gaúcho é sempre a referência no ataque. Todas as jogadas são para ele.

Duas mudanças no Independente para o 2º tempo: entrou Guinter na lateral esquerda no

lugar do Nelsinho (serão efeitos do baile de São Chico?... Talvez, mas ele ganhou um descanso, pois tem o joelho esquerdo operado e por isso joga com uma proteção no local); e saiu o Miro, substituído por Manuel Augusto Paiva de Var-gas, o Guto, sujeito de estatura baixa e um pouco acima do peso, que durante a semana desenha à mão os cartazes de ofertas do Maxxi Atacado.

A etapa final começa. Com 10 minutos, o bombeiro Sandro, que com a entrada de Guto jogou mais adiantado no meio-campo, teve a sorte de receber um passe do zagueiro do In-dependência. Correu livre em direção ao gol e chutou com o pé esquerdo a bola que só parou quando se chocou com a rede: 3 a 0.

O prêmio pelo gol foi a saída de campo: Sandro saiu, entrou Eduardo. E este foi o autor do quarto gol: um chute da intermediária. Em seguida, Gringo deixou o gramado. O gigante Ben-Hur José Gradaschi, de quase dois metros e cem quilos, reformado do Exército, agora dono de uma empresa de reforma e pintura, foi para o ataque e com suas passadas largas fez 5 a 0.

– Coloquei o Eduardo e fez gol. Coloquei o Ben-Hur e fez gol. Mas que técnico inteligente esse. – Fala sorrindo o técnico João, que durante o jogo, além de passar instruções, fuma cigarros Carlton-Dunhill e conversa através da tela com jogadores do time de 45 anos que começam a chegar.

E seguem as modificações (sem limite no amador): o zagueiro Cléber sai e fica na casamata narrando o jogo. Mário Augusto Scapin Rava-nello, o Kalu, é o substituto. O outro zagueiro, o Zen, deixa o campo. Zeca entra. Outro que in-gressa é o zagueiro Alcindo Rodrigues dos San-tos, o Pica, um sujeito alto, magro, negro, com tipo de cabelo e feições de um indiano. Tem uma voz rouca e difícil de entender, pois fala muito rápido e não pronuncia algumas sílabas. Gosta de chamar os outros de: “ô... cu chujo”. Durante a partida, enquanto estava no banco de reservas, precisou urinar. Então se agachou ao lado da ca-samata e mijou ali mesmo. Fora dos gramados, Pica é “chapa”, ou como ele diz: “auxiliar de des-carregamento de caminhão”. Seu “ponto” é no trevo do Castelinho. Mora ali próximo, na Vila Bilibio, e também produz artesanato de cipó. Sua esposa trabalha em um restaurante e seu fi-lho, na Cia. das Lonas.

– Hein, Pica... Não vai me entrar e fazer pê-nalti, hein... – pede o técnico João.

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O artilheiro Sandro Gaúcho também se des-pede de todos e dá a partida em sua moto.

– Já vai agora, alemão? Vamo tomá uns ki--suco aí... – convida o Pica.

– Como que tá a patroa, Sandro? – pergunta o Nélson.

– Graças a Deus, tá bem. – Sandro responde.– Te cuida que o Ben-Hur tá chegando, hein...

– provoca o Zen.– Acho que achamos o substituto do Beck. –

fala o Zeca.Sandro Gaúcho arranca com a moto e grita

com a intenção de zombar o técnico João, que está olhando o jogo dos 45 enquanto toma a sua cerveja e conversa com seus irmãos:

– Ô treinador burro!... – Eu tenho uma cunhada que tá com o mes-

mo problema da mulher do Sandro... câncer de mama... – Nélson conta para o Zeca. Ambos lembram o jantar que o Independente fez com a ajuda de todos ali para arrecadar dinheiro para a cirurgia da esposa do Sandro Gaúcho.

Pirica chega com mais garrafas de cerveja e vai enchendo os copos dos que ainda não foram embora. Quando termina o jogo do time dos 45 (2 a 0 para o Independente, com direito à con-quista da liderança do seu grupo e classifi cação à semifi nal), chega a vez desta turma ir até a Copa e pedir cerveja e pastel para Seu Moacir.

– O pastel já acabou. Os trinta que eu fritei já foram.

Quanto à cerveja, já foram esvaziados quatro engradados de 24 garrafas.

A maioria do time da categoria dos 40 anos já foi embora do Estádio Novo Horizonte. Mas ainda estão ali bebendo com o pessoal dos 45 o Zeca, o Zen, o Nélson, o Pica e o Pirica. Este último, já sem camisa, com seus pelos à mos-tra, agora também está sendo chamado de Totó, uma alusão ao personagem interpretado por Tony Ramos na novela “Passione”.

– Vem cá Totó... traz mais cerveja aqui... – pede o Zen.

– Mas o que é? Agora eu tô que nem guri de vocês... leva e traz. – reclama o Pirica.

Essa turma volta a se reunir no sábado que vem, dia 11 de dezembro às cinco e meia da tar-de, no campo do Gauchão 1, não muito longe dali, quando o Independente – categoria 40 anos – faz o jogo de ida das semifi nais da Copa Ami-zade contra o Grêmio. Grêmio de Subtenentes e Sargentos de Santa Maria, que fi que claro.

– Pó dexá professô... Pó dexá professô...– Valeu Bassoto! – os colegas aplaudem,

quando da saída do último bombeiro em campo.Chegou a hora do incansável Pirica deixar o

jogo. E quem voltou foi o Nelsinho. No amador isso é permitido.

– Pô! Achei que o Pirica não ia sair mais... – observa o Sapo que também fora substituído minutos antes por Aroldo Fagundes da Silva, advogado, camisa 28, um cara baixo, meio gor-dinho, que chegou mais tarde, mas ainda assim “entrou para dar uma corrida”. Às cinco horas, foi o professor de Educação Física Jorge Pellenz quem apareceu: “Achei que o jogo era às cinco e meia”, se fardou, colocou sua camisa 16, mas disse que não ia entrar. Estava machucado.

– Olha só os cara do Independência... tão mortinho em campo.

Em uma rara chegada do ataque adversário, o goleiro Cézar segurou com fi rmeza a bola.

– O Cézar é um diferencial deste nosso time. Sempre joga sério... que nem o lateral direito que saiu. – brinca o Sapo, assistindo ao jogo da casa-mata e incentivando os colegas em campo.

Aos 34 minutos do segundo tempo, mais uma grande jogada do Ben-Hur. Ele recebeu um passe na ponta direita. Com uma velocidade es-pantosa, considerando o seu peso e a sua altura, chegou quase à linha de fundo e cruzou a bola rasteira para o meio da área. Lá estava o mata-dor, Sandro Gaúcho, para chutar de primeira e fazer 6 a 0 no placar.

E termina o jogo aos 45 minutos. Indepen-dente classifi cado às semifi nais. Surgem os cum-primentos entre os jogadores das duas equipes e a arbitragem. Atletas e o técnico João fazem um círculo novamente.

– Agora que começa o campeonato pra gen-te. A gente sabia que ia chegar entre os quatro. Então vamos se cuidar durante a semana. Se ti-ver que jogar, joguem no máximo na quinta-fei-ra... e descansem na sexta... Quero todo mundo inteiro para o próximo sábado. – pede João. E todos rezam outro Pai-Nosso.

Depois disso, chega o momento mais es-perado: ir até a Copa e pedir a Seu Moacir uns pastéis e garrafas de cerveja gelada. O ponto de reunião é na sombra do eucalipto que serviu an-tes do jogo de vestiário. O líquido amarelo com espuma branca é derramado em vários copos plásticos, que são avidamente levados à boca e sorvidos com prazer. E da boca saem os comen-

tários sobre os lances do jogo e a atuação dos jogadores. Conforme vai acabando a cerveja, é feita uma vaquinha e cada um dá o que pode. O Pirica arrecada o dinheiro e volta com mais garrafas cheias e geladas.

– Eu dei 50 pila pro Pirica e ele me vem com só quatro garrafas. Tá gastando tudo em pastel, Pirica? – fala brincando o Sapo.

– Que pastel, o quê? Não trago tudo agora porque senão a cerveja fi ca quente. E não me vem com essa de 50 não.

– A gente se reúne aqui é por causa desse momento aqui ó, tá vendo? Essa união toda só o Independente tem. Isso é o que vale para nós. Nos outros times, termina a partida cada um vai embora, vai para o seu canto. – fala o zagueiro Zen, bebendo com gosto seu copo de cerveja.

As atenções também se voltam para o campo de jogo, pois o time da categoria 45 anos do In-dependente agora está enfrentando o Uberlân-dia, time que veste camisas verdes.

Entre conversas e gritos de incentivo aos amigos do 45, os atletas de fora de Santa Maria já começam a se despedir dos companheiros. O goleiro Cézar e o zagueiro Cléber apertam a mão de todos.

– Quando quiserem aparecer lá em Nova Pal-ma, vocês já sabem onde é. É só chegar.

– Certo. Vamos pegar e passar um dia inteiro lá. Eu levo a minha gaita e tocamos o dia inteiro lá. – promete o Nélson com seu copo de cerveja na mão.

– Ele falou uma coisa que não aconteceu ain-da: o Nélson disse que se o Independente for campeão, ele traz a gaita pra tocar pra gente. – comenta o Zen.

Guinter e os bombeiros de São Pedro do Sul também estão de saída. Já dentro do carro, eles olham o Pica parar na frente e falar:

– Ô cu chujo... já vão embora? - Enquan-to segura um copo de cerveja, com a outra mão ele aperta a buzina do carro do Guinter. Biiiiiiiiiiiiiiiiiiii... Biiiiiiiiiiiiiiiiii... Biiiiiiiiiiiiiiiii...

– Dale, dale Independente, rumo ao título. – grita o Pica.

– Valeu, gurizada! – diz o Guinter saindo e abanando.

Mais tarde, Pica percebe que está começando a faltar cerveja.

– Ô Eduardo! Abre a mão aí... Ô treinadô! Abre a mão aí pra vaquinha... Vamo se coçá aí, bando de cu chujo!

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à deriva / buenos aires

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um copo de mar

A infância costuma ser um período mais sombrio do que as lembranças posteriores dão a entender. Ao olhar em retrospectiva, o adulto pensa em felicidade inocente e despreocupação. Um tempo em que havia tempo; e ele

era gasto brincando. Mas, dificilmente, estamos seguros se a infân-cia tinha de fato a pureza idealizada ou se bom mesmo era estar descobrindo a vida. Na infância, há incertezas, monstros reais ou metafóricos, vergonhas e desilusões tornadas mais esmagadoras exatamente pela visão inocente de criança.

O primeiro mérito do espanhol Juan José Millás, no romance au-tobiográfico “O Mundo”, é não negar o sofrimento dos primeiros anos de vida. O segundo, não negar coisa alguma sobre as influências daquilo em tudo o que veio depois, incluindo sua produção literária. Como diz o autor no princípio do romance: “Aquele que sofreu com o frio quando era pequeno, sentirá frio pelo resto da vida, porque o frio da infância não desaparece nunca”. Millás – transmutando-se em si mesmo – aos nove anos de idade, com o apelido de Juanjo, percebe seus dias anteriores com a crueza necessária para compre-ender o significado dos acontecimentos que o cercavam.

A dor de trocar o cotidiano na litorânea Valencia pela aridez de Ma-drid; o sentimento constante de estar deslocado da família, morando na mesma casa; os pensamentos de uma menino sozinho: “O Mundo” é, em grande parte, uma jornada de solidão. Os refúgios entorpecentes seriam o éter, na infância, e os narcóticos pesados, quando a idade de-mandasse mais. Mas também seriam a desorientação natural da febre provocada por alguma doença (“Nenhuma das drogas que provei de-pois, ao longo da vida, me proporcionou as experiências alucinógenas da febre”), ou simplesmente a busca pela rua.

Talvez o único amigo de Juanjo em toda a narrativa seja Vita-minas, um menino do bairro condenado à morte por uma doença congênita. Ao lado dele, pela janelinha de um porão, observar o

Sozinho no Mundo

Por: Maurício Brum

movimento das cercanias daria a Millás um novo sentido de perten-cimento – fora do mundo de casa, havia a rua, que era um mundo à parte. Novo. Usando a alegoria do Nobel de Literatura alemão Hermann Hesse em “Demian”, de 1919 (“A ave sai do ovo. O ovo é o mundo. Quem quiser nascer tem que destruir um mundo”), pode-se dizer que ali o pequeno Juanjo golpeava a casca do ovo do lar, onde de qualquer forma não estava satisfeito, para vislumbrar a luz do exterior.

Na sua busca por um lugar no lado de fora, ele parece levar para sempre a interpretação da janela do porão. Na edição portuguesa do livro, há na capa uma frase – inexistente nas versões originais e na lançada no Brasil – que resume essa transferência da primeira im-pressão do mundo para cada uma que haveria depois: “o mundo é a rua da tua infância”. Mesmo sem se sentir preso por essa situação, Millás dá a entender que a rua, aplicada infinitamente a qualquer cenário, depois de certo ponto, já não bastaria.

Como convém a um relato de uma vida inacabada, abre-se espa-ço para calcular as alternativas do autor. Numa das memórias febris da infância, Juanjo, ao se alongar deitado na cama, sentiu os pés se chocarem com outros, idênticos aos seus. A cena remete à percep-ção infantil que Fernando Sabino dá, no também autobiográfico “O menino no espelho” (1982), à descoberta de que seu reflexo tinha uma personalidade própria. Sabino descreve como puxou sua imagem para fora do espelho e conviveu com ela por alguns dias. Seu espelho era real. As consequências, fantasiosas.Com Millás, en-tretanto, ocorreu o inverso: o espelho na ponta oposta da cama só existia na sua mente combalida pela febre. A experiência, no en-tanto, deixaria marcas que direcionaram seus objetivos, mais ainda quando a rua insistia em se repetir. “Ocorreu para me mostrar que há outro lado. Talvez não tenha feito outra coisa na vida que tentar alcançar esse outro lado”.

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O escritor espanhol Juan José Millás trata “O Mundo” como o romance central da sua obra. Não apenas porque este lhe rendeu o Prêmio Planeta 2007 e seus seiscentos mil euros, mas também pelo fato de que, enquanto o es-

crevia, pôde atravessar e vencer episódios ainda não tragados de sua infância. Explicitamente autobiográfico, o romance recupera instantes de uma vida já distante que nunca deixou de rever-berar no presente do escritor.

Millás, que também é jornalista e colunista do El País de Madrid, conta que o livro surgiu de um pedido para que escrevesse uma reportagem sobre si mesmo. Ao seguir os próprios hábitos e aten-tar mais do que nunca para as recordações, diz ter sido “atropelado por um romance”. A reporta-gem, então, teve de ser abandonada. Dividido em quatro capítulos, que coincidem com quatro fases distintas da infância ao início da adolescência, en-tremeados com relatos de um Millás já adulto, “O Mundo” inicia com a saída do protagonista Juanjo de Valência para viver em Madrid.

Mais do que a troca da cidade natal para um lu-gar ainda desconhecido, a viagem iria representar também a troca da praia, do mar e do sol por uma cidade fria, em que as condições de vida para a sua família seriam nitidamente mais complicadas. Juanjo, tido como o mais sensível e frágil de uma família de nove irmãos, parecia antever as dificul-dades da mudança. Para ele, era nítido o contraste entre a linguagem da boca e a dos olhos de seus pais: enquanto se falava em uma vida nova, em uma cidade cheia de oportunidades para todos, os olhares pareciam admitir a aflição que estaria por chegar.

A pobreza sentida na pele em Madrid e o frio que transpassava todos os cômodos de uma casa repleta de frestas aparecem no livro como temas que Millás precisava cicatrizar. E, para tanto, o narrador

QUANDO A LITERATURA NOS DEVOLVE

O MUNDOPor: Iuri Müller

lembra-se de uma frase do pai, que trabalhava com objetos de eletro-medicina, dita em alguma tarde distante: “o bisturi cauteriza a ferida no mesmo instante em que a produz”. A literatura surgiu para Millás como o único elemento capaz de dar cor a uma vida dita então opaca. Ela agiria de forma semelhante ao bisturi elétrico: “a leitura se conver-teu numa fenda pela qual podia escapar daquela família, daquela rua,

daquele bairro, daquela opacidade.”.Por vezes, o romance aparece, ainda, como um

índice dos demais livros de Millás. São várias as menções a outros títulos seus que são relacionados a acontecimentos descritos também em “O Mun-do”. Na narrativa, há conexões com, por exemplo, “Cerbero son las sombras” – texto de estreia do autor, igualmente reconhecido como autobiográ-fico –, “Letra Muerta” e “La soledad era esto”. Em “O Mundo”, no entanto, tudo é revelador – e o relato pessoal divide espaço com a angústia de voltar a enfrentar-se com certas situações. O tre-cho em que, após dias desesperados, Juanjo decide não voltar ao colégio em que apanha a cada ma-nhã, aparece intercalado com a dificuldade que foi transformar a lembrança em literatura.

Na infância de Millás, o mundo aparece em cada esquina das ruas do subúrbio de Madrid: revela-se no vizinho que diz ser um espião da Interpol, encan-ta com uma nova visão da rua da própria casa e as-susta quando, após um passeio de trem, o centro da metrópole surge com seus edifícios opressores. Em

“O Mundo”, Juan José Millás, garante que a literatura lhe assegurou não só o sucesso profissional, mas também a sobrevivência. Foi nela em que se agarrou para resistir às tristezas da infância e graças a ela que aguçou uma sensibilidade que pode ser sentida ao longo da leitura do romance.

para um homem navegar /

“O Mundo”, Juan José Millás. Tradução de Marcelo Barbão; Planeta, 2009: 216 páginas; Preço médio R$ 45.

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resgate /

Por: Giuliana Matiuzzi Foto: Iuri MüllerA jornada começava cedo, desde as cinco da manhã, quando os primeiros clientes queriam tomar um café antes de partir nos ôni-bus da pequena rodoviária. O bar e restaurante de Manuel Antunes chamava-se Vera Cruz.

Santa Maria era então uma cidade que vivia em função dos trens, e a Avenida Rio Branco era onde as coisas aconteciam. Com vinte e cin-co mil habitantes, a cidade se expandia, mas os problemas de estrutura ficam claros no ditado recitado entre risos por seu Augusto: “Santa Maria, terra onde passou Jesus, de dia falta água, de noite falta luz”. A energia ainda provinha de um gerador localizado na Rua Venâncio Aires, em corrente contínua, e os únicos prédios da cidade eram o edi-fício do Hotel Jansen e o edifício Mauá, o último ainda em construção.

Em 1956, com o crescimento do negócio, o Vera Cruz muda-se para uma Avenida Medianeira sem asfalto, como toda a cidade – com exceção da 1ª quadra da Bozano, Venâncio Aires e da Avenida Rio Branco até a Rua Silva Jardim. A Rua Fernando Ferrari, hoje próxima ao local, era uma trilha que levava a pequenas chácaras que existiam na região. Foi nessa época que o galeto, que viria a ser um prato de refe-rência da culinária local, começou a ser servido. Para isso, as aves eram criadas exclusivamente para consumo do restaurante, já que na épo-ca não havia de quem comprar os galetos. Os pintinhos, a princípio, eram comprados fora da cidade, criados na propriedade da família, e foi só mais tarde que pai e filho conseguiram comprar de produtores da região. Nem mesmo a ração que alimentava as aves estava disponível

Se o trem que vinha de Porto Alegre até Uruguaiana não fizesse baldeação em Santa Maria, talvez tudo tivesse sido diferente para Augusto Martins. Foi em uma dessas paradas do trem que seu pai, Manoel Antunes, em uma tarde do ano de 1945,

subiu a Avenida Rio Branco em direção à Praça Saldanha Marinho para comprar um cigarro Liberty. Quase na Rua Venâncio Aires, parou no bar de Emilio Krieg, que ficava ao lado da antiga rodoviária de San-ta Maria, nos tempos em que as viagens de ônibus eram poucas e não existiam muitas estradas abertas. Além do cigarro, o português Manoel Antunes acabou por comprar o bar. Ele contava com a experiência em restaurantes de Porto Alegre, cidade em que havia morado antes, e com uma boa dose de intuição – era ela que o tinha levado para o Brasil, em busca de uma vida mais digna.

Augusto, seu filho mais velho, ainda estava no povoado de Eiri-go, de pés no chão e comendo broas de milho. Portugal dos tem-pos de Salazar era terra de muita fome e pouco estudo, por isso partir para o Brasil também foi o destino dele, seguindo a senda do pai que ainda não havia conhecido. Manoel Antunes havia partido quando ele contava com apenas oito meses de idade. A primeira carta que o pai lhe escrevera chegou quando tinha dezessete anos. Em 1949, Augusto chegava à cidade, conhecia seu pai e começava o trabalho no restaurante que ele comprara. Foram quatro anos para restituir o valor da passagem, e seu primeiro meio de transporte naqueles tempos foi uma bicicleta comprada nos irmãos Ugalde.

O restaurante que o trem deixou

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no mercado, e também foi tarefa de Augusto produzi-la. Em tempos de uma produção bastante artesanal, o pintinho virava galeto em qua-renta dias. Hoje, bastam vinte e oito. Tudo era mais lento, e apenas de meia em meia hora um carro cortava a Rua do Acampamento. Os ferroviários deitavam nos trilhos em greve e o governo enviava vagões com dinheiro para pagar os atrasados. Todo sábado, a banda do Séti-mo Batalhão tocava no coreto da Praça Saldanha Marinho. A maioria das ruas eram, na verdade, pontilhões de madeira.

O Vera Cruz era o local onde os santa-marienses se encontravam para comer um galeto, peixe no espeto ou churrasco. Augusto aju-dava a atender e cuidava também da granja da chácara da família, no bairro Duque de Caxias. A vida no Brasil vinha sendo generosa, comparada ao panorama de carestia da aldeia em Eirigo. No entan-to, a mãe havia fi cado em Portugal e o desejo de Augusto era que ela que pudesse viver com ele no Brasil. A vinda da ex-mulher desagra-dou tanto a seu Manoel e a madrasta Rosa que o fi lho acabou por ser expulso da sociedade.

Já casado e com dois fi lhos, Augusto precisou sair em busca de um novo local para trabalhar. Para comprar um restaurante, não havia dinheiro que fosse sufi ciente, embora ele tenha procurado estabeleci-mentos à venda em São Sepé, Cruz Alta e São Gabriel. Foi então que seu ex-sogro, senhor Celso Teixeira, lhe ofereceu um terreno na Rua Floriano Peixoto, aos fundos de um prédio que ele possuía. O local era um velho depósito de uma cachaçaria, com um galpão também an-tigo. Em um primeiro momento, fi cou inseguro. “Isso é um buraco”, disse ele a Celso. No entanto, destruiu o galpão e construiu ali o seu próprio restaurante, com poucas mesas e churrasqueira no próprio salão. Como já era conhecido do trabalho no Vera Cruz, o sogro tam-bém o aconselhou a usar seu próprio nome para o negócio. Em trinta de maio de 1968 o restaurante Augusto abriu suas portas no local onde funciona até hoje. Os clientes vieram desde o primeiro dia; com eles, as reformas, as ampliações, os novos pratos. Para os que passa-vam pela cidade, jantar era sinônimo de uma ida ao Augusto. Figuras ilustres da política, como Ulisses Guimarães, Luiz Carlos Prestes, Lula e Brizola já vieram provar o tempero do galeto santa-mariense. Admar da Silva, garçom do restaurante há mais de vinte anos, atendeu deze-nas de personalidades e artistas, viu o estabelecimento crescer e a cida-de mudar. A experiência permite saber os pratos e as mesas preferidas pelos clientes – e se orgulha quando eles aguardam especialmente para serem atendidos na sua fi leira no salão.

O tempero de sálvia, manjerona, alecrim e cheiro verde do galeto segue sendo a identidade do restaurante, embora o cardápio tenha aumentado muito e agregado as pimentas, o curry, os queijos e diver-sos outros molhos dos fi lés, hoje também uma especialidade da casa. Desde o fi nal da década de 80, o estabelecimento trocou de adminis-tração, mas continua na família. Quem dirige é o fi lho de seu Augusto, Augustinho, e o genro, Marco Fank.

A década de 1960, com os trens, os passeios na primeira quadra, as garrafas de Cyrilinha e os sábados de banda na praça fi caram para trás, mas comer um galeto no Augusto segue sendo um prazeroso programa santa-mariense. Mesmo passadas décadas, erguidos cente-nas de prédios, enferrujados os trens, construídas universidades, o que é autêntico e feito com esmero continua fazendo parte do que a cidade tem de melhor.

desembarque /Por: Gabriela Belnhak Fotos: Divulgação

(500) Dias com Ela2009O fi lme é de 2009, mas serve para qualquer ano e estação. Com a recente vinda de Morrissey, vocalista da banda inglesa The Smiths, ao Brasil, volta à tona uma cena muito bonita de (500) Dias com Ela, retratada na imagem acima. The Smiths integra a trilha sonora do longa que trata da memória de um jovem sobre um amor fracassado. A narrativa é não-linear e encantadora. Joseph Gordon-Levitt e Zooey Deschanel são Tom e Summer, o casal que se descobre na música, nas afi nidades e nos desencontros. A trilha é um espetáculo à parte: além da banda de Morrisey, destacam-se Carla Bruni, Feist, Regina Spektor, She & Him e Simon & Garfunkel. O fi lme é dirigido por Marc Webb.

“The Rip Tide”, Beirut2011O novo disco da banda estadunidense Beirut, liderada por Zach Condon, não foge às infl uências dos primeiros trabalhos. Lançado ofi cialmente em agosto de 2011, The Rip Tide é uma ótima alternativa para os navegantes em busca de águas serenas, com balanço equilibrado entre suas correntes e linearidade entre as diferentes canções. Músicas como “Santa Fe” podem soar mecânicas de antemão, e ranger nos ouvidos daqueles já acostumados ao tradicional som de Beirut. Já Vagabond, não é melhor nem pior: é exatamente o que esperávamos da banda que viaja tranquilamente pelo folk e pelo pop – raízes ciganas de uma música que não permite limites de gênero e classifi cação. Pode ser um disco para se remar no lago em uma tarde ensolarada de domingo – tem tudo para ser enfadonho, tem tudo para ser incrível. Aventure-se.

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